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    "As fricas de Pancho Guedes"Uma coleco africana

    "As fricas de Pancho Guedes - Coleco de Dori e Amncio Guedes" - Mercado de SantaClara, Lisboa, Portugal (16 Dez. 2010 - 8 Mar. 2011)

    A arte tradicional das mscaras e outros artefactos rituais, de que se ocupam as coleces

    dedicadas a frica mais habitualmente mostradas, e que documentam um passado histricoe tribal mais ou menos distante, primitivo e perdido, reune-se na coleco de Dori eAmncio Guedes com as obras ditas de artes plsticas com que se comeou a afirmar amodernidade artstica do continente, a partir dos anos 50, ao tempo das primeirasindependncias. Um excepcional conjunto de 17 pinturas de Malangatana dos anos 1959-61,no exacto incio da sua carreira, a expresso mais forte desse ncleo da coleco.Mas a exposio "As fricas de Pancho Guedes" inclui tambm manifestaes de artepopular onde se revelam novas formas de criatividade original que respondem stransformaes das sociedades tradicionais, com destino aos mercados urbanos, como ocaso especial da escultura oriunda dos arredores da antiga Loureno Marques, agoraMaputo. E acolhe igualmente objectos de uso quotidiano, de restrito prestgio social ou de

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    uso corrente e democrtico, que aliam a exigncia da funcionalidade inveno de formasdistintivas de diferentes culturas e regies, de que so exemplos mais frequentes os bancos eos apoios de cabea que fazem as vezes de travesseiros.

    A diversidade dos ncleos da coleco assim vistos em contiguidade pe em questo as

    fronteiras entre gneros e as respectivas hierarquias, ilustrando a multiplicidade e asimultaneidade das prticas numa frica viva e sempre em mudana aqui, a partir de ummomento decisivo da histria comum, as dcadas de 50/60.O acervo que se expe, depois de ir viajando e ampliando-se pelos vrios espaosdomsticos dos seus proprietrios (Loureno Marques, Joanesburgo, Lisboa), tambmpermite pr em dilogo ou em conflito as variadas relaes que se estabelecem com odiferente e o extico, o tradicional e o moderno, questionando o valor atribudo santiguidades e as reaces face novidade, proporcionando a abordagem erudita doantroplogo ou do historiador de arte e o olhar sensvel mais interessado pelas formas, oupelo acordo entre a funo e a forma, mesmo se a localizao ou a cultura de origem no

    est identificada.Viaja-se da chamada "arte tribal" (que j foi arte negra e foi arte primitiva e que algunsdesignam agora como artes primeiras) at arte popular destinada ao consumo urbano,passando pelas situaes de convivncia ou transio entre as tradies locais e as tcnicasartsticas de lio ocidental, com ateno s criaes de amadores e artistas "outsiders. tudo arte popular, diz Pancho Guedes.

    A formao da coleco acompanha a intensa actividade desenvolvida em Moambique edepois na frica do Sul por Pancho Guedes, arquitecto e professor, testemunhando o seuinteresse constante pelo dilogo concreto com outros modos de expresso. Os objectos que

    coleccionou, como ele prprio tambm afirma, ajudaram-no a livrar-se do eurocentrismodominante do homem branco que vive na terra dos outros (In Pancho Guedes, VitruviusMozambicanus, Museu Coleco Berardo, 2009, pg. 165).

    Noutras situaes, mais frequentes, a seleco coleccionista dos objectos, com os seuscritrios prprios de atribuio de valor e distino, um exerccio possessivo deeurocentrismo. Ao contrrio das coleces que se querem especializadas ou sistemticas,feitas na Europa e no mercado dos antiqurios, esta uma coleco africana vivida emfrica, reunida ao sabor das viagens, das circunstncias e dos encontros pessoais, feita deescolhas prprias, com algumas recolhas no terreno e tambm com um olhar subtilmente

    erudito e atento exercido sobre a oferta mltipla dos vendedores de feira. Dos cemitriosMbali em Angola aos terreiros de adivinhos Yoruba, na Nigria, e aos contactos directoscom os populares macua-lmue, a quem adquiriu tanto as rarssimas mscaras de entrecascade rvore como os bancos pessoais que os homens transportam consigo na bicicleta.

    uma coleco plural e diversificada, uma coleco de coleces, mas em especial umacervo singular e ideossincrtico, associado prpria actividade criadora de um grandearquitecto com inmeras obras construdas em frica, que tambm pintor e escultor (tudoisso se mostrou amplamente na exposio apresentada no CCB/Museu Coleco Berardo,em 2009). E que ponto menos referido - igualmente reconhecido internacionalmente

    como um dos principais patronos ou impulsionadores da arte contempornea africana numadcada decisiva, a das independncias de muitas antigas colnias, em dilogo estreito com

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    figuras determinantes como Frank McEwen, em Salisbria/Harare, o organizador do 1Congresso Internacional da Cultura Africana em 1962, ou Ulli Beier, fundador do MbariClub e da revista Black Orpheus, em Ibadan, Nigria.

    O cenrio expositivo bifurca-se pela galeria das chamadas artes plsticas e pelo itinerrioatravs dos objectos tribais e/ou populares. No percurso lateral do Mercado de Santa Clara,as mscaras esto desde logo em evidncia com a teatralidade especfica dos lmues emacondes, e destacam-as duas antigas e muito raras mscaras Ngoni/Nyau de Moambique,cujo naturalismo identifica uma direco esttica a muito presente, divergente dasorientaes sintticas e abstractas que interessaram as vanguardas do sculo XX. A artefunerria Mbali, de Angola, entretanto um caso especfico de aculturao, de arte popular.A arte do bronze e o trfico do ouro da antiga Nigria comparece em verses a recolhidasnos anos da respectiva independncia, e no campo dos objectos rituais destacam-se comomuito pouco vistas as bonecas do Sudoeste de Angola, que tambm so brinquedos. Aspeas de escultura maconde documentam momentos de transio de um grupo tnico hmuito identificado pela produo de arte - agricultores e artistas -, sendo exemplossingulares as figuras dos dois venerveis casais e depois as ilustraes da ordem colonial.

    No espao dedicado a processos e suportes artsticos de lio europeia (a pintura mvel),atravessa-se tambm uma situao plural onde convivem artistas de origem portuguesa e osprimeiros pintores locais, de formao escolar ou sem ela, mas a podem caber prticas daescultura que tm fortes linhas de continuidade com a tradio. Ao lado de Malangatanaesto os outros africanos que Pancho Guedes levou ao Congresso de 1962, at agora nunca

    de novo reunidos, e mais pintores que intervieram numa situao que os impasses da guerra

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    colonial afectou. Artistas eruditos ou de aprendizagem local, conhecidos e desconhecidos so as obras que valem por si, e por terem sido coleccionadas por Dori e Pancho Guedes.

    Entre as derivas mais originais, esto os bordados feitos por homens de Loureno Marques/Maputo, vindos de uma recente tradio perdida, e j ignorada, e o caso singular do pintor

    Tito Zungu, de que Pancho Guedes apresentou a primeira exposio individual em 1982, eque em 1993 pde integrar a representao oficial da frica do Sul na Bienal de Veneza. Soas fricas, vrias fricas, que aqui comparecem, e de que assim nos podemos aproximar,no uma qualquer ideia redutora das muitas diferenas locais e das mltiplas relaes aestabelecer.

    Alexandre Pomar