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UMA CRÍTICA AO TRIBUNAL DO JÚRI A PARTIR DO JULGAMENTO DE DIMITRI KARAMAZOV DA OBRA OS IRMÃOS KARAMAZOVI DE DOSTOIÉVSKI Alexandre Pereira Hubert 1 Rodrigo Alessandro Sartoti 2 RESUMO: O presente artigo traz uma análise crítica da instituição do júri através do estudo cruzado entre Direito e Literatura, tendo como pano de fundo a obra Irmãos Karamazovi, do autor russo Fiodor Dostoiévski. Começa-se pela introdução do marco teórico adotado, que é especificado como o estudo do “Direito na Liteatura”. Após, apresenta-se uma breve análise histórica do instituto do júri e, em seguida, introduzir-se-á o romance em um bosquejo de definição da personalidade de cada um dos principais personagens, estando em destaque Dimítri Karamazov, o filho acusado de parricídio, levado ao júri ao qual nos reportaremos. Ao fim, será trabalhada a decisão a que chegou o corpo de sentença, buscando estabelecer possíveis relações entre a função social exercida pela mesma. PALAVRAS-CHAVE: Direito e Literatura; Irmãos Karamazovi; Júri. 1. INTRODUÇÃO 1 Acadêmico da 10ª Fase de Direito da UFSC e membro do Grupo de Pesquisa em Direito e Literatura na mesma instituição. 2 Acadêmico da 4ª Fase de Direito da UFSC e bolsista do Grupo de Pesquisa em Direito e Literatura na mesma instituição.

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UMA CRÍTICA AO TRIBUNAL DO JÚRI A PARTIR DO

JULGAMENTO DE DIMITRI KARAMAZOV DA OBRA OS IRMÃOS

KARAMAZOVI DE DOSTOIÉVSKI

Alexandre Pereira Hubert1

Rodrigo Alessandro Sartoti2

RESUMO: O presente artigo traz uma análise crítica da instituição do júri através do estudo

cruzado entre Direito e Literatura, tendo como pano de fundo a obra Irmãos Karamazovi, do

autor russo Fiodor Dostoiévski. Começa-se pela introdução do marco teórico adotado, que é

especificado como o estudo do “Direito na Liteatura”. Após, apresenta-se uma breve análise

histórica do instituto do júri e, em seguida, introduzir-se-á o romance em um bosquejo de

definição da personalidade de cada um dos principais personagens, estando em destaque

Dimítri Karamazov, o filho acusado de parricídio, levado ao júri ao qual nos reportaremos. Ao

fim, será trabalhada a decisão a que chegou o corpo de sentença, buscando estabelecer

possíveis relações entre a função social exercida pela mesma.

PALAVRAS-CHAVE: Direito e Literatura; Irmãos Karamazovi; Júri.

1. INTRODUÇÃO

O artigo que apresentaremos busca trabalhar, através dos instrumentos de

análise que alguns dos teóricos do estudo do direito através da literatura – “O Direito na

literatura” – nos proporcionam, críticas à Instituição do Júri com base no Livro “Um erro

Judiciário”, do romance “Irmãos Karamazóvi” de Fiodor Dostoiévski.

Para tal, começaremos por expor em linhas gerais a corrente de estudos

chamada “Direito e Literatura”, subdividindo-a conforme seu objeto de análise.

Em seguida, será apresentada uma breve análise histórica da instituição do júri,

com suas origens mais remotas e a sua chegada ao Brasil.

1 Acadêmico da 10ª Fase de Direito da UFSC e membro do Grupo de Pesquisa em Direito e Literatura na mesma instituição.2 Acadêmico da 4ª Fase de Direito da UFSC e bolsista do Grupo de Pesquisa em Direito e Literatura na mesma instituição.

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Após, introduziremos o romance delineando os principais personagens, para

então chegarmos à situação do júri a que é levado Dimítri Karamázov, acusado de parricídio.

No júri trabalharemos a exposição de Dostoiévski do ambiente do mesmo, não

deixando de mencionar a posição social de cada um dos membros do conselho de sentença,

bem como a reação que cada uma das estratégias, seja da defesa, seja da acusação, conseguia

produzir nos presentes ao grande espetáculo nacional em que havia se tornado o caso do pai

assassinado pelo filho.

Apresentaremos em nosso trabalho também o posicionamento de defensores e

críticos da instituição do júri, sendo que para tal trazemos, do primeiro lado, Lenio Streck e,

do outro, Nelson Hungria.

Ao fim, tentaremos delinear a natureza da decisão do corpo de jurados no caso

específico do Karamazov, sem, no entanto, que se caia em falsas ilusões quanto à diferença

entre uma sentença técnica ou popular.

2. O “DIREITO NA LITERATURA”

A proposta de aproximação entre o estudo do Direito e da Literatura começou a

ganhar importância acadêmica no espaço institucional norte-americano a partir da década de

1960. Surgiu como uma das várias tendências antipositivistas do mais amplo movimento

Direito e Sociedade, atuando na formação do profissional do direito de forma a resgatar

aspectos humanísticos de que as carreiras jurídicas se afastaram.

A centralização do Direito no Positivismo Kelseniano levou à redução

gramatical de seus enunciados e a uma análise estritamente sintática e semântica de suas

normas, tornando-o incapaz de atender às demandas sociais postas a si mesmo. Como

proposta a essa insuficiência do reducionismo positivista, o movimento Law and Literature

pretende proporcionar uma miragem crítica e inovadora que possa construir alternativas

teóricas para o direito, acusando seus limites, incompletudes e contradições.

O movimento Law and Literature é composto por diferentes tendências de

estudos diferenciados dentro do campo de estudo proposto. Os principais são: o Direito da

literatura, o Direito como Literatura, o Direito comparado à Literatura e o Direito na

Literatura.

O Direito na Literatura é a vertente do movimento voltada à análise de

trabalhos de ficção que tratam de questões jurídicas. Quem estuda esta corrente parte do

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pressuposto que o conhecimento de obras literárias é importante porque ajuda o jurista e o

estudante a entrar em contato com a realidade legal. É um estudo de caráter instrumental:

propicia a busca do jurídico no estético. Esta abordagem centra-se na busca do direito

enquanto expressão literária, em dimensão retórica, com estações em modulações de

desconstrução, bem como na formatação de modelo criticismo cultural do Direito, que se

ocupa em leituras culturais do capitalismo e das disputas jurídicas. Tal corrente de estudo é

partidária da ideia de que a literatura é capaz de transportar o leitor a uma situação estranha à

sua, é capaz de refletir a percepção de uma sociedade sobre a atuação e postura dos

profissionais do direito e refletir o entendimento social das normas jurídicas. A literatura

permite que o sistema jurídico seja recontado e reinterpretado por autores e personagens de

diferentes épocas e contextos.

Estaremos, de acordo com Joana Aguiar e Silva, nesta área dos estudos de

Direito e Literatura, na medida em que:

Os estudos desenvolvidos sob esta designação, do Direito na Literatura, visam à análise de obras literárias em função dos interesses particulares do universo jurídico; uma análise que se pretende fazer incidir não apenas sobre obras em que esse universo se verte direta e explicitamente, mas de igual modo sobre outro tipo de conteúdos literários3.

Ainda, trazemos Talavera, quando o jurista espanhol nos traz:

A literatura apresenta-se como um rico manancial de fontes para a reflexão crítica do direito, através do qual ainda é possível retirar as vendas com as quais o positivismo normativista cega incessantemente os juristas, na medida em que o estudo do direito através da literatura permite, justamente, o desvelamento do sentido do direito e de sua conexão com a justiça4.

O interesse que suscita o conhecimento da literatura para o direito reside na sua

singular capacidade de elucidação e reflexão crítica de questões que se colocam no campo

jurídico, conectando o essencial de suas raízes e origens às suas formulações mais avançadas.

O estudo do Direito na Literatura, sendo capaz de transportar o leitor a uma

situação estranha à sua, faz com que este reflita a perspectiva de uma sociedade – e, por

conseqüência, da sociedade em que está inserido – sobre a atuação e postura dos profissionais

do Direito e também o entendimento social das normas jurídicas.

Segundo François Ost:

3 SILVA, Joana Aguiar e. Direito e Literatura: potencial pedagógico de um estudo disciplinar. In: Revista do CEJ, n. 1. Coimbra: Almedina, 2º semestre/2004.4 TALAVERA, apud. TRINDADE; GUBERT, op. cit. p. 50.

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Se a literatura é hábil em manejar a derrisão e o paradoxo em seu empreendimento crítico, ela também emprega, ocasionalmente, a análise científica. Com efeito, há tesouros de saberes nas narrativas de ficção – uma mina com a qual as ciências sociais contemporâneas fariam bem em se preocupar. Para ficarmos no César Birotteau (Ascensão e queda de César Birotteau), por exemplo, há ali uma “avaliação legislativa” da lei de 1807 sobre as falências que poderia servir de modelo a muitos trabalhos atuais de sociologia jurídica. Sabe-se, de resto, que esta lei foi modificada dez meses após a publicação do livro. Outro exemplo: a lucidez criminológica de Tolstoi, em Ressureição, reduz a migalhas as teorias de Lombroso, de Garófalo e de Ferri numa época em que estes pontificavam nos congressos de criminologia em toda a Europa erudita.(...)A prosa livre do literato – um “flibusteiro epistemológico” – o aproxima geralmente mais das complexidades do trabalho de campo que muitos saberes acadêmicos. Essa “indisciplina” literária que se insinua nas falhas das disciplinas excessivamente bem instituídas realiza assim um trabalho de interpelação do jurídico, fragilizando os pretensos saberes positivos sobre os quais o direito tenta apoiar sua própria positividade.5

Ainda, acordando com Luis Carlos Cancellier de Olivo, temos que “é possível

melhor compreender a questão da interpretação do Direito através do método comparativo

com outros campos do conhecimento, e em especial a literatura”6.

Partiremos, assim, da perspectiva de que a Literatura pode permitir que o

sistema jurídico seja recontado e (re)interpretado por autores e personagens de diferente

épocas e contextos, por vezes o esclarecendo muito mais eficazmente do que a percepção

direta e cotidiana dos acontecimentos.

3. ALGUNS ASPECTOS HISTÓRICOS DO TRIBUNAL DO JÚRI

Considerando o Direito como uma das mais notáveis formas de controle social e o Direito

Penal como o seu braço mais extremo, torna-se importante analisar cuidadosamente seus aparelhos

de aplicação. Para tanto, torna-se de vital importância o estudo sobre a instituição do tribunal do

júri.

É importante observar que, em princípio, o tribunal do júri tem um caráter extraordinário7,

oportunizando um julgamento dito popular, sob uma perspectiva popular, daqueles crimes que

violam o bem jurídico mais precioso, a vida. Observando o ordenamento jurídico brasileiro, a

5 OST, François. Contar a lei. Trad. de Paulo Neves. São Leopoldo: Unisinos, 2005, p. 14-15.6 OLIVO, Luis Carlos Callier de. O Estudo do Direito através da literatura. Tubarão: Editorial Studium, 2005, p. 20.7 Reconhece a Constituição Federal, ao Tribunal do Júri, apenas a competência para o julgamento para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida, em seu artigo 5º, XXXVIII, “d”.

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instituição do Júri Popular, especialmente pelo viés constitucional, pode-se ter a certeza de que sua

utilização vem como uma garantia ao réu, que será julgado por seus. Todavia, analisando a

atribuição de competências do Tribunal do Júri, disposta no parágrafo 1º, artigo 74, do Código de

Processo Penal (Decreto Lei Nº. 3.689/1941), temos um abarcamento de crimes e condições

específicas, mas com grande intensidade, que nos leva a altercar a ajustamento de tais

competências ao disposto na Constituição.

Ao mesmo tempo, é necessária uma análise dos aspectos históricos, assim como os

fundamentos teóricos, para um melhor exame acerca da legitimidade social e histórica do tribunal

do júri, em concordância com o seu discurso democrático.

Uma análise deve considerar as contradições sociais como ponto fundamental sobre uma

avaliação da imparcialidade real e de um caráter democrático válido deste instituto. É importante

salientar que, em nossos dias, muito maior é o julgamento moral que a sociedade faz sobre o

indivíduo, do que precisamente sobre a conduta praticada, contaminado de uma série de conceitos

pré-concebidos, que são capazes de modificar toda uma visão acerca da reprovabilidade de uma

dada conduta.

Investigando as origens do tribunal do júri, remontamos à Grécia antiga, que, segundo

Lênio Streck8, é possível encontrar os primeiros vestígios no Tribunal dos Heliastas, que re reunia

numa praça pública e era composto por cidadãos, que eram homens livres, traduzindo, desta

maneira, o princípio da justiça popular. Ainda segundo Streck, tal modelo serviu de inspiração para

a instituição do júri inglês. Na sua versão romana, o júri era composto por um pretor, que tomava o

nome de quaesetio, e dos jurados, judices juratio. Estes eram escolhidos entre os senadores,

cavaleiros e tribunos do tesouro.

A Lei Pompéia exigiu que os jurados tivessem condição de renda, aptidão e mais de trinta anos. O Tribunal funcionava publicamente no Fórum, onde, no dia do julgamento, os jurados eram sorteados, sendo facultado ao acusador e ao acusado o direito de recusá-los sem qualquer motivação até esgotar-se a lista.9

É importante lembrar que, na Antiguidade Clássica, a justiça era exclusiva dos cidadãos,

bem como o conceito formal de cidadania daqueles tempos era profundamente ligado à condição

econômica e social do sujeito e mera conseqüência desta. Contudo, tal característica da sociedade

grega e romana antiga não se distância, em essência, do conceito de cidadania que observamos na

prática penal predominante, como já observado criticamente por Juarez Cirino dos Santos:

8 STRECK, Lenio L. Tribunal do Júri: símbolos e rituais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1993.9 SCHIMITT, Ricardo Augusto. Princípios Gerais Constitucionais. Salvador: Jus PODIVM, 2007.

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Seja como for, é no processo de criminalização que a posição social dos sujeitos criminalizáveis revela sua função determinante do resultado de condenação/absolvição criminal: a variável decisiva da criminalização secundária é a posição social do autor, integrada por indivíduos vulneráveis selecionados por estereótipos, preconceitos e outros mecanismos ideológicos dos agentes de controle social – e não pela gravidade do crime ou pela extensão social do dano10.

Ao mesmo passo, ressalta Eugenio Raúl Zaffaroni juntamente com José Henrique

Pierangeli:

É indiscutível que em toda sociedade existe uma estrutura de poder e segmentos ou setores mais próximos – ou hegemônicos – e outros mais alijados – marginalizados – do poder. Obviamente, esta estrutura tende a sustentar-se através do controle social e de sua parte punitiva, denominada sistema penal.11

3.1 A origem do Tribunal do Júri no Brasil

O instituto do tribunal do júri hoje no Brasil tem respaldo constitucional e

competência para julgar os crimes dolosos contra a vida, no entanto, não é esta a sua origem em

nosso país.

O tribunal do júri foi instituído no Brasil no ano de 1822, com a finalidade de julgar

os crimes de imprensa. O corpo de sentença era formado por 24 jurados, escolhidos entre os

“homens bons, honrados, inteligentes e patriotas”.12

Este critério de seleção dos jurados é algo que relembra o método de escolha

utilizado para júri popular na Antiguidade Clássica, onde tal status era de exclusividade dos

cidadãos.

A partir de 1830, o júri brasileiro adotou ritos semelhantes ao modelo inglês,

incorporando o júri de acusação e o grande júri. Competia aos 23 membros do júri de acusação a

constituição da culpa, e o recebimento dos processos do juiz de paz da sede. Logo em seguida, os

jurados eram conduzidos pelo juiz de direito à sala secreta, para analisarem, apreciarem e

decidirem acerca da culpa.

Posteriormente era executado o julgamento pelo grande júri, composto por 12

membros, novamente escolhidos através de critério subjetivo, os “eleitores de reconhecido bom

10 SANTOS, Juarez Cirino. Direito Penal Parte Geral. Rio de Janeiro: Lumem Júris, 2000.11 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro, volume 1: parte geral. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006.12 SCHIMITT, Ricardo Augusto. Princípios Gerais Constitucionais. Salvador: Jus PODIVM, 2007.

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senso e probidade”13, que poderiam condenar ou absolver o réu, marcando, mais uma vez, a

exclusividade da elite econômica na formação do corpo de jurados.

É em 1891 que o Júri recebe a categoria de princípio fundamental, dado pela

primeira constituição da república, sendo mantido como garantia até a nossa atual Carta

Constitucional.

Entretanto, a Constituição de 1937, outorgada, claramente de caráter totalitário e

autoritário, delega ao júri as atribuições semelhantes às atuais, muito embora a própria constituição

silenciasse sobre o tema. O Decreto-Lei 167/1938 determina como de competência do júri os

crimes dolosos contra a vida. Também foram atribuídos ao júri, os crimes de latrocínio, lesões

corporais seguidas de morte e o duelo seguido de morte, hoje tipificado como homicídio.

A soberania dos veredictos do júri foi instituída pela Constituição de 1946, sendo

extinta durante a Ditadura Militar, no ano de 1969, com a Emenda Constitucional nº1, restabelecida

somente pela Constituição de 1988.

4. O JÚRI DE DIMITRI KARAMÁZOV

Em linhas gerais, o livro “Irmãos Karamázovi” trata da conturbada relação dos

filhos de Fiodor Karamazov entre si e com o próprio pai.

Dentre tais filhos, Dimítri Karamazov destaca-se pela vida boêmia, desregrada,

libertina, por agressões e ameaças ao pai.

Alieksei é o filho noviço, religioso, habita um mosteiro ortodoxo, é

caracterizado pela personificação dos valores cristãos.

Ivã Karamazov é o intelectual clássico, tendo estudado em universidades e

levado uma vida com certo requinte que o diferencia dos irmãos. Ateu, representa certo

nihilismo individualista que o autor, sem esconder posicionamentos, nos parece querer

demonstrar como exacerbado.

Com o desenrolar da história, sempre baseada entre conflitos latentes entre

Fiodor e seus filhos Karamazovi, o pai é encontrado assinado. Dimítri, o filho boêmio, que de

fato esteve na residência minutos antes. É o principal suspeito.

Este filho, então, é levado a júri popular. Sem maiores suspenses, o Livro que

narra o julgamento tem como título “Um erro Judiciário”.

13 Ibidem.

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Neste ponto, principia-se a leitura e crítica, ainda que feita de forma descritiva,

das instituições jurídicas pelo autor. O caso do suposto parricídio logo toma proporções de

notícia nacional: experts em psicologia, criminologia e comportamentos desenvolvem as suas

teses sobre o caso. O acusado é narrado em seu comportamento dito anti-social. Como não

poderia deixar de ser, Dimitri Karamazov é descrito em suas relações interpessoais: sua

atração por “Gruchenka” – a concubina por quem o pai também vertia amores –, seu

alcoolismo infame, a violência de sua relação com o pai e, principalmente, aquilo que é

narrado como uma “suscetibilidade aflorada às paixões”.

Após essa repercussão nacional do caso, um importante advogado de São

Petersburgo manifesta interesse na defesa de Karamazov, ante o pagamento relativamente

baixo de uma senhora apaixonada pelo acusado. O procurador – o acusador público – por sua

vez, que representa a Província onde se deu o relatado assassinato, avoca para si a defesa

daquela sociedade, seus valores e suas famílias, passando a conceber a condenação do

acusado como, não que ele mesmo não estivesse plenamente convencido da culpa, a ocasião

em que haveria de mostrar seu valor, tão desconsiderado, ante à comunidade que o cercava.

Dostoievski se coloca como narrador por entre o numeroso público presente ao

acontecimento. Daí poderá narrar emoções, arroubos e sensações dos que com ele

presenciavam esse espetáculo da justiça.

O júri, principia o autor, compunha-se de quatro funcionários, dois

comerciantes, seis camponeses e pequenos burgueses da cidade. Já no princípio da narração

do procedimento, Dostoiévski destaca o seguinte comentário que podia se ouvir por entre as

mulheres da dita província russa: “Será possível que um caso de psicologia tão complicada

seja submetido à decisão de funcionários e de mujiques? Que é que eles compreenderão

disso?”14.

Com efeito, Dostoiévski assim descreve os integrantes do júri:

Os quatro funcionários que faziam parte do júri eram gente modesta, já grisalha, exceto um, pouco conhecidos em nossa [como afirmamos, o autor se coloca entre o povo que ali estava] sociedade, tendo vegetado com mesquinhos ordenados; deviam ser casados com velhas, impossíveis de exibir, e ter uma ninhada de meninos, talvez descalços; as cartas encantavam-lhes os lazeres e não tinham, bem entendido, jamais lido coisa alguma. Os dois comerciantes tinham o ar calmo, mas estranhamente taciturno e imóvel, estando um deles barbeado e trajado à européia, e o outro, de barba grisalha, trazia no pescoço uma medalha. Nada a dizer dos pequenos burgueses e camponeses. Os primeiros assemelham-se bastante aos segundos e trabalham com eles. Dois dentre eles usavam traje europeu, o que os fazia parecerem mais sujos e mais feios talvez que os outros, tanto que todos perguntavam a si mesmos, involuntariamente, como o fiz, olhando-os: “Que pode essa gente

14 DOSTOIÉVSKI, Fiodor M. Os Irmãos Karamázovi. São Paulo: Editora Abril, 1971, p. 459.

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compreender mesmo de um tal caso?” Não obstante, seus rostos, rígidos e carrancudos, mostravam uma expressão imponente15.

Neste ponto, Nelson Hungria ecoa a preocupação latente naqueles senhores

presentes ao julgamento, que questionavam a preparação de um corpo de pessoas do povo em

sentenciar o destino de um dos seus pares, afirmando o autor brasileiro:

Juízes improvisados e escolhidos por sorteio, em gritante contraste com a natureza técnica e crítica do Direito e processos penais contemporâneos; com os seus veredicta sem qualquer motivação e sem uniformidade, dependendo da maior ou menor impressão causada pelos golpes teatrais dos advogados de defesa16.

Interessante notar como a crítica do jurista pátrio se limita à possibilidade de

absolvição, tamanha era a sua esperança na possibilidade da pena servir de papel

exemplificativo em relação aos demais cidadãos. Esta crítica, assim, baseia-se sobremaneira

na idéia de um tecnicismo jurídico-penal levada a cabo por Nelson Hungria, mais adiante,

ainda no trecho citado, o autor, demonstrando a origem de sua preocupação, afirma que

chamar leigos para julgar é “semelhante a incumbir a um sapateiro o concerto de um

relógio”17. O direito, segundo Hungria, é atividade eminentemente técnica, devendo, por que,

ser exercida por aqueles que a quem o estudo e a prática concederam as habilidades

necessárias.

Lenio Streck, por sua vez, opondo-se aos críticos do júri, afirma que:

Argumentos com ‘a influência exercida pela fácil retórica’ e ‘a incapacidade dos jurados de apreciarem questões de alta relevância jurídica’ servem como forte sustentáculo retórico para a descaracterização do Tribunal do Júri. Se um juiz comete uma injustiça em um julgamento singular, os advogados ou as partes não reclamarão, uma vez que existe, por parte dos atores jurídicos, o que Luhmann chama de ‘prontidão generalizada para a aceitação das decisões’ bastando ‘que se contorne a incerteza de qual decisão ocorrerá pela certeza de que uma decisão ocorrerá, para legitimá-la’. Já com relação às decisões do Tribunal do Júri, não obstante estarem, também, ‘legitimadas pelo procedimento’, estas sofrem críticas que visam a descaracterizar o júri enquanto instituição jurídica, sob argumentos como a ‘ausência de rigor técnico nos veredictos’.(...)Assim, a ciência, valor dominante na sociedade global, funciona como fator ideológico de legitimação do judiciário togado18.

15 Ibid. p. 459-460.16 HUNGRIA, Nélson; FRAGOSO, Heleno Cláudio. Comentários ao código penal. Volume I. Tomo I. 5ª edição. RJ: Forense, 1977, p. 57 (nota de rodapé). 17 Ibidem. 18 STRECK, Lenio L. Tribunal do Júri: símbolos e rituais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1993, p. 44.

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Destarte, segundo Streck, os críticos apóiam-se nos mitos da Neutralidade e da

Verdade Real para justificar tão somente a atuação dos juristas – aqueles que foram dotados

da ciência – como capazes de efetuarem julgamento correto.

Este autor, após elencar estes elementos da crítica, traz um importante

questionamento: Há, ainda, garantia de que a decisão do juiz togado nascerá livre de

ideologias ou preconceitos?

Pois bem, a audiência principia. Dentre as testemunhas de acusação, os mais

variados cidadãos que presenciaram brigas e indisposições entre pai e filho. Enquanto o

promotor lhes tenta extrair o caráter violento do acusado, o advogado de defesa, através de

ataques pessoais a cada uma das testemunhas, lhes retira a confiabilidade do testemunho.

Dostoiévski não hesita em descrever o espetáculo em que se configurou a

audiência, enquanto as senhoras haviam acorrido ao júri por acreditarem que seria o réu seria

absolvido, estranhamente, mesmo definindo-o como certamente culpado:

(...) os homens interessavam-se, sobretudo, pela luta entre o procurador e o famoso

Fietiukóvitch [eis o nome do advogado trazido de São Petersburgo]. Todos

perguntavam a si mesmos com espanto: que poderá fazer de uma causa perdida de

antemão Fietiukóvitch, com todo o seu talento?19.

A audiência das testemunhas da defesa vem em sequência, e aí ocorre

fenômeno interessante. Tais testemunhas, excetuando Alieksei, o irmão noviço, acabam por

convencerem-se elas mesmas da culpabilidade do acusado, fazendo assim o papel da

acusação. Ivã, o irmão intelectual, único conhecedor da verdadeira identidade do assassino, é

acometido de um acesso de loucura durante seu testemunho, que acaba por lhe retirar a

credibilidade.

Na sustentação final, o procurador desenvolve uma corrente de raciocínio que,

baseada em um psicologismo que ele julga dotado de uma cientificidade impecável, traça a

perfeita personalidade de um homicida passional. O pretenso cientificismo que embasa a tese

acusatória é, após, atacado pela defesa em capítulo que Dostoievski nomeia “A defesa: uma

faca de dois gumes”. Em sua sustentação, o consagrado advogado ataca as bases do raciocínio

da acusação, mostrando como a lógica psicológica que se propõe prever determinadas

condutas pode muito bem, caso sejam outros os fatos a serem incluídos no desenvolvimento,

levar a conclusões totalmente opostas, afirma o defensor:

19 DOSTOIÉVSKI, op. cit. p. 461.

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É de propósito, senhores jurados, que recorro também eu à psicologia para demonstrar claramente que dela se pode tirar não importa o que. Tudo depende daquele que opera. Quero falar dos excessos da psicologia, senhores jurados, dos abusos que dela se faz20.

A ambição de concluir pela execução ou não de um crime – ambição vinculada

às escolas etiológicas da criminologia – fica assim desacreditada pela sustentação da defesa

que propugna pela absolvição do réu ante a ausência de evidências da autoria.

No momento em que cessa o debate e se retira o corpo de sentença para a

discussão a propósito da decisão – o modelo russo assemelha-se ao americano, doze jurados

que devem chegar a uma decisão unânime – o burburinho na plateia dá conta de que, após tão

brilhante e qualificada defesa, o réu será certamente absolvido.

5. A SENTENÇA

O derradeiro capítulo do júri traz, no entanto, um título desanimador: “Os

mujiques mantiveram-se firmes”. Ocorre que, mesmo em dissonância com a beleza e a

eloquência da tese defensiva, o réu foi considerado culpado sem qualquer atenuante, o que

espantou agressivamente o ambiente da plateia:

Ninguém esperava por isso, todos contavam pelo menos com a indulgência do júri. O silêncio continuava, como se o auditório estivesse petrificado, tanto os partidários da condenação como os da absolvição. Mas foram apenas os primeiros minutos, aos quais sucedeu um terrível tumulto. Entre o público masculino, muitos estavam encantados. Outros chegavam mesmo a esfregar as mãos, sem dissimular sua alegria Os descontentes tinham o ar acabrunhado, erguiam os ombros, cochichavam como se ainda não se dessem conta. Mas as nossas damas, meu Deus! Pensei que elas iam fazer um motim. A princípio, não quiseram acreditar em seus ouvidos. De repente, ruidosas exclamações ecoaram: “O que é isso? Por que isso?”. Deixavam seus lugares. Certamente, imaginavam que se podia, no mesmo instante, mudar aquilo e recomeçar. 21

Dostoiévski, como já dissemos, narra o episódio do júri na figura de um dos

espectadores presentes ao público, de modo que não temos conhecimento dos debates

efetuados entre os jurados, entretanto, a penúltima e a última frases deste capítulo parecem

denunciar a natureza da condenação sofrida por Dimitri, são elas:

– Sim, os nossos mujiques mantiveram-se firmes

20 DOSTOIÉVSKI, op. cit. p. 462.21 DOSTOIÉVSKI, op. cit. p. 518.

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– E ajustaram suas contas com o nosso Mítia!22.

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Observando as várias modificações que o tribunal do júri sofreu em sua experiência

histórica brasileira, notamos uma ampla variação de objetivos implícitos na sua utilização.

Todavia, é evidente a inexistência de um caráter puramente democrático em tal

instituição ao longo da sua evolução histórica, tendo a composição do corpo de sentença critérios

subjetivos e notadamente elitistas, que ainda perduram na sua versão atual. Basta observar que,

principalmente nos grandes centros, temos uma classe média que julga aqueles que são

criminalizados: as camadas mais pobres e periféricas da nossa sociedade.

Na obra em tela, o júri, á sua maneira, cumpriu uma função de vingador

público, saciando a “sede de vingança do povo” – muito semelhante à que é produzida

atualmente pela mídia – baseando sua decisão na má-fama e nos traços da personalidade do

réu. Julgou antes pelas suas convicções acerca do certo e errado nas condutas sociais e morais.

Sua decisão mereceu o título de um “erro judiciário”, conforme cunhado pelo autor.

Não nos parece adequado, entretanto, afirmar com certeza que diverso teria

sido o posicionamento de um juiz togado.

7. BIBLIOGRAFIA

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SANTOS, Juarez Cirino. Direito penal parte geral. Rio de Janeiro: Lumem Júris, 2000.

22 DOSTOIÉVSKI, op. cit. p. 520.

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STRECK, Lenio L. Tribunal do júri: símbolos e rituais. Porto Alegre: Livraria do

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Reflexões teóricas. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008.