Uma educação artística brasileira

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Uma educação artística brasileira Artigo para Carta Capital, por Rosane Almeida (março, 2013) Ariano Suassuna certa vez falou: “Saudamos todos aqueles que sabem que não cultuamos as cinzas dos nossos antepassados, mas a chama imortal que os animavam.” E assim começamos... O que vem a ser um Cavalo Marinho? A princípio, uma exuberante "brincadeira" popular da zona da mata de Pernambuco. Ele pode ser visto como um auto religioso que celebra o nascimento do menino Jesus e a chegada dos "santos reis do Oriente", mas pode também ser compreendido como um teatro ou uma ópera popular que, a céu aberto e através de entremeios dramáticos, reúne um conjunto de linguagens artísticas: dança, poesia, circo, música, artes plásticas, teatro de máscaras constituído de personagens humanos, sobrehumanos e animais, etc. Como uma manifestação popular pode ganhar tamanha exuberância? Quando os portugueses chegaram ao Brasil, trouxeram também em sua bagagem cultural grupos processionais e peditórios denominados de reisadas e janeiras que saíam em cortejos por casas, ruas e povoações num período de 12 dias, (24 de dezembro a 6 de janeiro) louvando e cantando o nascimento do menino Jesus e a chegada dos reis magos. Peregrinavam ao som de violas, rabecas e instrumentos de percussão. No Brasil, esses pequenos grupos caminheiros ao longo dos séculos foram incorporando às suas andanças tipos e figuras teatrais provenientes de diversas fontes, tais como, cancioneiro, romanceiro, personagens populares, mitos, etc. São esses pequenos grupos itinerantes, que no Brasil, vão ganhar o nome de Reisados. Cada um desses reisados se intitulava a partir do nome de uma das suas figuras mais representativas. Assim, havia o reisado do João do Vale, o do Jaraguá, o do Cavalo Marinho, etc. Com o passar do tempo tais grupos vão aglutinando vários reisados num só, vão perdendo o seu caráter de peregrinação e tornandose uma trupedebrincantes que se fixam numa determinada região ou localidade para a apresentação de sua numerosa galeria de tipos e figuras. Todo esse processo se dá graça ao encontro com as culturas indígenas e africanas, aos recortes geográficos e diferentes contextos sociais, que vão unindo pessoas, procedimentos, desejos e valores que serão transmitidos nessas festas cuja origem remontam a antiquíssimos cultos agrários que celebravam, o solstício de verão (o dia mais longo), o

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Uma  educação  artística  brasileira    Artigo  para  Carta  Capital,  por  Rosane  Almeida  (março,  2013)    Ariano  Suassuna  certa  vez  falou:    “Saudamos  todos  aqueles  que  sabem  que  não  cultuamos  as  cinzas  dos  nossos  antepassados,  mas  a  chama  imortal  que  os  animavam.”  E  assim  começamos...  O  que  vem  a  ser  um  Cavalo  Marinho?  A  princípio,  uma  exuberante  "brincadeira"  popular  da  zona  da  mata  de  Pernambuco.  Ele  pode   ser   visto   como  um  auto   religioso  que   celebra  o  nascimento  do  menino  Jesus  e  a  chegada  dos  "santos  reis  do  Oriente",  mas      pode  também    ser  compreendido    como  um  teatro  ou  uma  ópera  popular   que,   a   céu   aberto   e   através   de   entremeios   dramáticos,   reúne  um  conjunto  de  linguagens  artísticas:  dança,  poesia,  circo,  música,  artes  plásticas,   teatro   de   máscaras   constituído   de   personagens   humanos,  sobre-­‐humanos  e  animais,  etc.  Como  uma  manifestação  popular  pode  ganhar  tamanha  exuberância?    Quando  os  portugueses  chegaram  ao  Brasil,  trouxeram  também  em  sua    bagagem   cultural   grupos   processionais   e   peditórios   denominados   de  reisadas  e  janeiras  que  saíam    em  cortejos    por  casas,  ruas  e  povoações  num   período   de   12   dias,   (24   de   dezembro   a   6   de   janeiro)   louvando   e  cantando   o   nascimento   do  menino   Jesus   e   a   chegada   dos   reis  magos.  Peregrinavam   ao   som  de   violas,   rabecas   e   instrumentos   de   percussão.  No   Brasil,   esses   pequenos   grupos   caminheiros   ao   longo   dos   séculos    foram   incorporando   às   suas   andanças   tipos   e   figuras   teatrais    provenientes   de   diversas   fontes,   tais   como,   cancioneiro,   romanceiro,  personagens   populares,   mitos,   etc.   São   esses   pequenos   grupos  itinerantes,   que   no   Brasil,   vão   ganhar   o   nome     de   Reisados.   Cada   um  desses   reisados  se   intitulava  a  partir  do  nome  de  uma  das  suas   figuras  mais   representativas.   Assim,   havia   o   reisado   do   João   do   Vale,   o   do  Jaraguá,  o  do  Cavalo  Marinho,  etc.    Com  o  passar  do  tempo  tais  grupos  vão  aglutinando  vários  reisados  num  só,  vão  perdendo  o  seu  caráter  de  peregrinação  e  tornando-­‐se  uma  trupe-­‐de-­‐brincantes  que  se  fixam  numa  determinada  região  ou  localidade    para  a  apresentação  de  sua  numerosa  galeria  de  tipos  e  figuras.      Todo  esse  processo  se  dá  graça  ao  encontro  com  as  culturas    indígenas  e  africanas,   aos   recortes   geográficos   e   diferentes   contextos   sociais,   que  vão   unindo   pessoas,   procedimentos,   desejos   e   valores   que   serão  transmitidos    nessas  festas  cuja  origem  remontam  a  antiquíssimos  cultos  agrários   que   celebravam,   o   solstício   de   verão   (o   dia   mais   longo),   o  

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solstício  de   inverno   (a  noite  mais   longa)   e  os   equinócios   (noites   e  dias  com  a  mesma  duração).  Com  algumas  variantes  esse  processo  se  repete  em  relação  a    boa  parte    das   manifestações   da   cultura   popular   brasileira:   Congadas,  Moçambiques,  Maracatus,   Bois,   Batuques   etc.   São   todos   encontros   de  diferentes   culturas   para   celebrar     determinadas   situações   comuns   a  todos   os   envolvidos:   plantio,   colheita,   fertilidade,     ritos   de   passagem,  etc.    Uma  educação  brasileira  poderia  também  refletir    essa  nossa  vocação  de  unir,  recriar  e  relacionar.    Uma   educação   artística     poderia     priorizar     experiências   que   nos  marcassem   tanto   pela   beleza   quanto   pelo   significado   anímico   que   nos  trazem.    Uma   educação   artística   brasileira   deveria   ser   o   reflexo   dessa   nossa  vocação   para   agregar   e   recriar   impulsionando   uma   mobilização   de  professores,   alunos   e   da   comunidade   para     buscarem,   juntos,    experiências   com   tudo   aquilo   que   é   orgânico   e   traz   saúde   para   a  natureza  humana...    Mestre  Aldenir,  um  mestre  de  Reisado  do  Ceará,    quando  foi  perguntado  sobre   o   que   era   o   Reisado   para   ele,   respondeu:     “É   uma   coisa   bonita    que  me  dá  saúde,  alegria...  É  muito  simples!!!”  É  de  fato  muito  simples,  são  simplesmente  escolhas  por  ações  que  nos  representam,  escolhas  por  procedimentos  que  nos  orgulham  pela  beleza  e  alcance  que  podem  ter  dentro  da  coletividade,  escolhas    por  atitudes  e  criações   que   devolvem   ao   ser   humano   seu   grande   diferencial:   Sua    Dignidade  –    Essas  manifestações  não  foram    criadas  e  muito  menos  preservadas  em  consequência  de  modismos,  poder  ou  remunerações  financeiras.  Foram  vividas   para   trazerem,   entre   outras   coisas,     dignidade.   Um   conceito  negligenciado  nas  escolas,  subutilizado  na  família  e  mal  representado  na  politica.  É  bom  lembrar  que  nossos  antepassados  gastaram  muito  do  seu  tempo  desenvolvendo   procedimentos   que   simplesmente   os   tornavam   dignos  perante   si   mesmos   e   isso   de   alguma   maneira   nos   acompanha     até   o  momento  atual.  Pode  ser  encontrado  nas  festas  populares,  nas  reflexões  do   povo,   na   lógica   das   comunidades   periféricas,     também   na  originalidade  rítmica,  na  inteligência  da  literatura  de  cordel  e  da  poesia  popular,   nos   gingados   e    meneios   corporais,   na   delicadeza   dos   versos  cantados,   nas   diferentes   rodas   de   dança...   enfim   em   cada   metro  

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quadrado   do   Brasil   pode   ser   encontrado   referencias   dignas   de     uma  educação  artística  brasileira.    No   entanto   nos   falta     um     olhar  mais   refinado   para   enxergar   como   e  porque   tudo   isso   pode   fazer   a   diferença.   Inserir   a   cultura   popular  brasileira   dentro   do   ensino   formal   não   significa   vestir   as   crianças   com  saias   de   chita   para   dançar   um   Coco.   Não   basta   organizar   cortejos   de  maracatu  ou  escolas  de  samba.  Inserir  a  cultura  popular  é  abrir  espaço  para  uma  escola  de  criação,  cujo    grande  exercício  é  o  da  liberdade,  através  de  experiências  com  o  corpo,  com  a  música,  com  as  artes  plásticas,  com    a  palavra,  o  espaço  e  o  outro.  Uma   escola   que     está   sempre   no   movimento   inteligente   para  desenvolver  todo  o  potencial  humano.  Essa  escola  só  pode  existir  se  for  permitido  ao  professor  passar  pelas  mesmas    experiências  que  estamos  propondo   as   crianças.   Os   cursos   de   capacitação   e   formação   de  professores  devem  levar  em  conta    o  potencial  criativo  desse  individuo,  sua   história   de   vida,   seus   desejos,   suas   vocações.   Tem   que     oferecer    atividades   que   tragam   significados   para     a   vida,   que   os   abasteça   de  recursos  artísticos  que  os  sensibilizem  e  fortaleçam  nas  suas  atitudes  e  que  os  acorde      para  toda  a  dignidade  que  lhes  pertence.  E  tudo  deve  ser  feito  de  uma  maneira  bonita   e   divertida.  Difícil?  Não  deve   ser.  Nossos  antepassados  nos  deixaram  bons  exemplos  que  vem    sendo  seguidos  por  muitos  artistas  populares.  Os  mestres  de  maracatus,  homens  com  mais  de  60  anos  ,  mãos  calejadas  pelo   corte   de   cana,   bordam   as   próprias   indumentárias.   Confeccionam  manualmente   belíssimos     mantos   repletos   de   desenhos   abstratos   e  figurativos.  Os  brincantes  de  cavalo  marinho,  homens  com  a  pele  rachada  pelo  sol  e  pela   aspereza   do   cotidiano,   fazem   suas  máscaras   e   criam  personagens  que  vão  ganhar  vida  com  versos,  danças,  improvisos;  os  dos    Reisados  de  Alagoas  "edificam"  seus  chapéus-­‐catedrais  a  partir  de  vidrilhos,  aljofar  e  espelhos,  pequenas  armações  que  surpreendem    até  os    arquitetos...  Os  cortejos  dos    moçambiques    têm  os   jogos  de  bastões  que  transitam  dos  mais  simples  aos  mais  complexos.  São  executados  por  pessoas  cujo  o  salário  não  ultrapassa  o  mínimo.  Todos  naquele  momento  se  orgulham  do  que  estão  fazendo,  se  veem  como  Reis,  trazem  seu  brilho  para  o  entorno.  Exercem  uma  vaidade  generosa.  Se  sentem  poderosos  por  transformar  o  pobre,  o  feio,  o  seco,  o  esquecido;  em  riso,  festa,  ouro,  palácios.  O  aparentemente  sem  valor  vira  matéria  de  grande  riqueza  simbólica  e  humana.  As  pedras  tornam-­‐se    preciosas,  tudo  é  um  verdadeiro  “BRINCO”  

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Qual  será  o  nosso  sacrifício  (nosso  sagrado  oficio)?  Convicção    verdadeira  nas  nossas  escolhas  e  um  pouco  de  coragem  para  colocá-­‐las  em  prática.  Praticar   o   que   se   deseja   é   sempre   um   problema   quando   precisamos  confrontar   os   valores   da   sociedade   com   aquilo   que   de   fato   deve   ser  valorizado   no   indivíduo.   Mas   esse   é   um   bom   lugar   para   se   pensar   a  cultura  popular,  pensar  essa  cultura  como  o  meio  e  não  como  um  fim,  como   possibilidade,   inspiração,   referência,   chão   coletivo.   Entender  cultura  como  cultivo    de  conhecimentos.      

Os   conhecimentos,   as   habilidades   e   as   experiências     que   a   cultura  popular  brasileira  podem  nos    oferecer,  nos  trazem  algo  que  parece  faltar  no  mundo  atual,  ou  seja,  algo  que  preenche  esse  espaço  entre  razão   e   emoção,   lógica   e   intuição,     estratégia   e   improviso;   aquela  dimensão  em  que  as  coisas  fazem  sentido  e  tem  significado    no  lugar  e  no    momento  em  que  estão  sendo  aplicadas.  Se   tivermos   a   convicção   de   quanto   isso   é   necessário,   vamos  encontrar  maneiras  de  “realizar”.  

Como  dizia  Dona  Teté,  mestra  de  Cacuriá:  “Sabendo  olhar  não  vai  faltar”    Uma  atividade:  A  DANÇA  DOS  ARCOS  Muitas   culturas   cultivaram    a  dança  dos  arcos.   Seu   simbolismo   remete  ao   arco-­‐íris.   Ao   encontro   entre   o   céu   e   a   terra,   a   essa     ponte   que  contempla  todas  as  cores.  Nessa  atividade  cabem  muitas  reflexões.  Para  a  confecção  de  cada  arco  o  professor  vai  precisar:    De  1  bambolê    2  metros  de  TNT  e  barbante.  Cada  aluno  pode  confeccionar  seu  próprio  arco.  Esses   dois   metros   de   TNT   deve   ser   cortados   em   tiras   de  aproximadamente  4  cm.  No  sentido  do  comprimento  maior  porque  ele  será  amarrado  no  bambolê  com  um  nozinho  de  gravata.    Essas  tiras  de  4cm  podem  ter  as  cores  misturadas,  para  cada  arco  ficar  bem  colorido.  Deixe  um  espaço  nas  pontas  o  bambolê  sem  TNT,    para  o  aluno  segurar  o  arco.  Passe  o  barbante  cruzado  por  cima  de  cada  tira  de  TNT  para  bem  fixa-­‐la  no  bambolê.  O  importante  é  cortar  cada  cor  de  TNT  em  pedaços  de  dois  metros  e  só  depois  cortar  as  tiras  de  4cm.    Existem   desenhos   tradicionais    muito   bonitos   para   a   dança   dos   arcos,  mas   com  um  arco   para   cada   aluno   o   professor   pode   sugerir   desenhos  

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em  filas,  duplas,  quartetos,  rodas,  até  as  brincadeiras  da   infância   ficam  mais   bonitas,   quando   executadas   com  os   arcos.   A  musica   pode   variar,  pode  ser  tocada  ao  vivo,  pode  ser  quadrilha,  cirandas,  pode  ser  até  uma  musica   clássica.   Os   alunos   podem   ser   divididos   em   diferentes   grupos  que  podem  brincar  com  diferentes    musicas.  Experimente  professor,  se  estiver   com   dúvidas     no   site   www.intitutobrincate.org.br,   você   vai  encontrar  mais  exemplos  e  possibilidades  tanto  para  a  confecção  como  para  a  utilização  desse  material.  Mas   lembre-­‐se   para   isso   ter   significado   a   atividade   tem   que   levar   em  conta  a  apropriação,  a  criação  e  a  reflexão    tanto  do  professor  como  do  aluno.  Só   assim   ela   terá   sentido.   Sentido   é   aquela   direção   que   transcende   o  espaço  físico.  Indica  o  além  a  partir  do  aqui  e  agora.  Aproveite  bem  sua  atividade.    

   

Rosane Almeida é atriz, dançarina, educadora e fundadora - juntamente com Antonio Nóbrega - do Instituto Brincante.