Uma escola com valor(es)

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Uma escola com valor(es) Biblioteca Escolar Agrupamento de Escolas de Rio de Mouro Padre Alberto Neto

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Seleccção de poesia a ser declamada pelos alunos do dia do patrono, a 11 de Fevereiro de 2010

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Biblioteca Escolar Agrupamento de Escolas de Rio de Mouro Padre Alberto Neto

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Uma escola com valor(es)

Título: Uma escola com valor(es). Colectânea de poesia inspirada no Padre Alberto Neto Pesquisa e selecção: Carlos Pinheiro Edição: Biblioteca Escolar 1.ª Edição, Janeiro de 2010 Agrupamento de Escolas de Rio de Mouro Padre Alberto Neto Av. Pedro Nunes, 3 2635 – 317 RIO DE MOURO Email: [email protected]

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Índice CANTARES SANTOMENSES ....................................................................... 3 Caetano da Costa Alegre TROVA DO VENTO QUE PASSA .................................................................. 5 Manuel Alegre DE MÃOS DADAS .................................................................................. 0 Carlos Drummond de Andrade URGENTEMENTE .................................................................................. 0 Eugénio de Andrade OS DIREITOS DA CRIANÇA ....................................................................... 0 Matilde Rosa Araújo BONS AMIGOS ..................................................................................... 0 Machado de Assis A INDIFERENÇA.................................................................................... 0 Bertolt Brecht PAÍS NATAL ........................................................................................ 0 António Baticã Ferreira MÃE NEGRA...................................................................................... 18 Aguinaldo Fonseca À DESCOBERTA DO AMOR ..................................................................... 19 Mahatma Gandhi LÁGRIMA DE PRETA ............................................................................ 20 António Gedeão PRELÚDIO .......................................................................................... 0 Alda Lara PROFESSOR, DIZ-ME PORQUÊ? .................................................................. 0 Cecília Meireles A COR QUE SE TEM ............................................................................. 26 Maria Cândida Mendonça O MENINO DE SUA MÃE ........................................................................ 27 Fernando Pessoa CÂNTICO NEGRO................................................................................ 29 José Régio SONETO DOS VENCIDOS........................................................................ 31 José Régio FALA DO VELHO DO RESTELO AO ASTRONAUTA ............................................. 0 José Saramago NEGRA.............................................................................................. 0 Noémia de Sousa O MENINO NEGRO .............................................................................. 35 Geraldo Bessa Victor

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CANTARES SANTOMENSES Caetano da Costa Alegre

[1864-1890] Caetano da Costa Alegre (26 de Abril de 1864- 18 de Abril de 1890) foi um poeta lusófono, nascido no seio de uma família crioula de cabo-verdiana, na então colónia portuguesa de São Tomé. Em 1882 se mudou-se para Portugal, e frequentou a faculdade de Medicina em Lisboa, para se formar como médico naval, porém morreu de tuberculose antes de poder cumprir tal objectivo. A sua obra, escrita em estilo romântico, popular na época, foi um êxito imediato pela forma como celebra suas origens africanas, a expressão de nostalgia do estilo de vida de São Tomé, e a descrição do sentimento de alienação em se encontrava sua raça.

Caetano da Costa Alegre 

Branca a espuma e negra a rocha,

Qual mais constante há-de ser,

A espuma indo e voltando,

A rocha sem se mexer?

Não creias que em teu jazigo

Alguém parta o coração,

No mundo quem morre, morre,

Quem cá fica come pão.

Não me dizem quanto tempo

Tenho ainda que viver,

Ficava ao menos sabendo

Quando finda o meu sofrer.

Se eu me casasse contigo,

Fazia um voto de ferro,

De deixar-te unicamente

No dia do meu enterro.

Todos me dizem: “esquece

Essa paixão, que te abrasa”.

Que serve fechar a porta

Ao fogo que tenho em casa?

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Não havia tanta cara

De asno, de tolo e pedante,

Se falasse, quem censura,

Com um espelho adiante.

Brotam espinhos da rosa,

O incêndio brota do lume.

A traição brota das juras,

Brota do amor o ciúme.

Numa loja conhecida

O que é cem custa duzentos,

Levam dinheiro em fazendas

E o tempo nos cumprimentos.

Macaco, chamaste tolo

Ao meu pequeno sagüi.

Também queria que ouvisses

O que ele disse de ti.

Por teu desdém não me mato,

Não faço tamanha asneira,

Se o meu amor tu não queres,

Há muita gente que o queira.

Quem pode num campo vasto

O joio apartar dos trigos?

Quem conhece dentre os falsos

Os verdadeiros amigos?

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Manuel Alegre [1936-…]

Manuel Alegre nasceu em Águeda em 1936. Frequentou a Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, onde desde muito cedo se empenhou em lutas académicas e na resistência ao regime político da época. Enviado para Angola em 1961, incentivou uma revolta militar contra a guerra colonial, acabando por se exilar em Argel no verão de 1964. Durante o exílio, foi dirigente da FPLN e participou altivamente na Rádio Voz da Liberdade, tendo regressado a Portugal depois da revolução de 25 de Abril de 1974. A partir de então, dedicou-se à actividade política partidária, continuando, porém, a obra literária iniciada com o livro Praça da Canção (1965). Além da actividade literária, destacam-se, no plano político, os cargos exercidos como vice-presidente da Assembleia da República e membro do Conselho de Estado.

TROVA DO VENTO QUE PASSA 

Manuel Alegre 

Pergunto ao vento que passa

notícias do meu país

e o vento cala a desgraça

o vento nada me diz.

Pergunto aos rios que levam

tanto sonho à flor das águas

e os rios não me sossegam

levam sonhos deixam mágoas.

Levam sonhos deixam mágoas

ai rios do meu país

minha pátria à flor das águas

para onde vais? Ninguém diz.

Se o verde trevo desfolhas

pede notícias e diz

ao trevo de quatro folhas

que morro por meu país.

Pergunto à gente que passa

por que vai de olhos no chão.

Silêncio – é tudo o que tem

quem vive na servidão.

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Vi florir os verdes ramos

direitos e ao céu voltados.

E a quem gosta de ter amos

vi sempre os ombros curvados.

E o vento não me diz nada

ninguém diz nada de novo.

Vi minha pátria pregada

nos braços em cruz do povo.

Vi minha pátria na margem

dos rios que vão pró mar

como quem ama a viagem

mas tem sempre de ficar.

Vi navios a partir

(minha pátria à flor das águas)

vi minha pátria florir

(verdes folhas verdes mágoas).

Há quem te queira ignorada

e fale pátria em teu nome.

Eu vi-te crucificada

nos braços negros da fome.

E o vento não me diz nada

só o silêncio persiste.

Vi minha pátria parada

à beira de um rio triste.

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Ninguém diz nada de novo

se notícias vou pedindo

nas mãos vazias do povo

vi minha pátria florindo.

E a noite cresce por dentro

dos homens do meu país.

Peço notícias ao vento

e o vento nada me diz.

Quatro folhas tem o trevo

liberdade quatro sílabas.

Não sabem ler é verdade

aqueles pra quem eu escrevo.

Mas há sempre uma candeia

dentro da própria desgraça

há sempre alguém que semeia

canções no vento que passa.

Mesmo na noite mais triste

em tempo de sevidão

há sempre alguém que resiste

há sempre alguém que diz não.

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DE MÃOS DADAS   Carlos Drummond de Andrade [1902-1987]

Nasceu em Minas Gerais, Brasil, numa cidade cuja memória viria a permear parte de sua obra, Itabira. Posteriormente, foi estudar em Belo Horizonte e Nova Friburgo com os Jesuítas no colégio Anchieta. Formado em farmácia, com Emílio Moura e outros companheiros, fundou "A Revista", para divulgar o modernismo no Brasil. Durante a maior parte da vida foi funcionário público, embora tenha começado a escrever cedo e prosseguido até seu falecimento, que se deu em 1987 no Rio de Janeiro, doze dias após a morte de sua única filha, a escritora Maria Julieta Drummond de Andrade. Além de poesia, produziu livros infantis, contos e crónicas.

Carlos Drummond de Andrade 

Não serei o poeta de um mundo caduco.

Também não cantarei o mundo futuro.

Estou preso à vida e olho meus companheiros.

Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.

Entre eles, considero a enorme realidade.

O presente é tão grande, não nos afastemos,

Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.

Não serei o cantor de uma mulher, de uma história,

não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela,

não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida,

não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins.

O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens

[presentes,

a vida presente.

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URGENTEMENTE  Eugénio de Andrade [1923-2005]

Poeta português, nasceu em 19 de Janeiro de 1923 em Póvoa de Atalaia, Fundão, no seio de uma família de camponeses. A sua infância foi passada com a mãe, na sua aldeia natal. Mais tarde, prosseguindo os estudos, foi para Castelo Branco, Lisboa e Coimbra, onde residiu entre 1939 e 1945. Abandonou a ideia de um curso de Filosofia para se dedicar à poesia e à escrita, actividades pelas quais demonstrou desde cedo profundo interesse, O tema central da sua poesia é a figuração do Homem, não apenas do eu individual, integrado num colectivo, com o qual se harmoniza (terra, campo, natureza – lugar de encontro) ou luta (cidade – lugar de opressão, de conflito, de morte, contra os quais se levanta a escrita combativa). Faleceu a 13 de Junho de 2005, no Porto.

Eugénio de Andrade 

É urgente o Amor,

É urgente um barco no mar.

É urgente destruir certas palavras

ódio, solidão e crueldade,

alguns lamentos,

muitas espadas.

É urgente inventar alegria,

multiplicar os beijos, as searas,

é urgente descobrir rosas e rios

e manhãs claras.

Cai o silêncio nos ombros,

e a luz impura até doer.

É urgente o amor,

É urgente permanecer.

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OS DIREITOS DA CRIANÇA  Matilde Rosa Araújo

[1921-…]

Matilde Rosa Araújo nasceu em Lisboa em 1921. Licenciou-se em Filologia Românica pela Faculdade de Letra da Universidade Clássica de Lisboa. Foi professora do Ensino Técnico Profissional em Lisboa e noutras cidades do País, assim como professora do primeiro Curso de Literatura para a Infância, que teve lugar na Escola do Magistério Primário de Lisboa. Autora de livros de contos e poesia para o mundo adulto e de mais de duas dezenas de livros de contos e poesia para crianças, a sua temática centra-se em torno de três grandes eixos de orientação: a infância dourada, a infância agredida e a infância como projecto. Tem-se dedicado, ao longo da sua vida, aos problemas da criança e à defesa dos seus direitos.

Matilde Rosa Araújo 

A criança

Toda a criança.

Seja de que raça for

Seja negra, branca, vermelha ou amarela,

Seja rapariga ou rapaz.

Fale a língua que falar,

Acredite no que acreditar,

Pense o que pensar,

Tenha nascido seja onde for,

Ela tem direito…

…A ser para o homem a

Razão primeira da sua luta.

O homem vai proteger a criança

Com leis, ternura, cuidados

Que a tornem livre, feliz,

Pois só é livre, feliz

Quem pode deixar crescer

Um corpo são,

Quem pode deixar descobrir

Livremente

O coração

E o pensamento.

Este nascer e crescer e viver assim

Chama-se dignidade.

E em dignidade vamos

Querer que a criança

Nasça

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Cresça,

Viva…

E a criança nasce

E deve ter um nome

Que seja o sinal dessa dignidade.

Ao sol chamamos Sol

E à vida chamamos Vida

Uma criança terá o seu nome também.

E ela nasce numa terra determinada

Que a deve proteger.

Chamemos-lhe Pátria a essa aterra,

Mas chamemos-lhe antes Mundo…

…E nesse mundo ela vai crescer:

Já a sua mãe teve o direito

A toda a assistência que assegura um nascer perfeito.

E, depois, a criança nascida,

Depois da hora radial do parto,

A criança deverá receber

Amor,

Alimentação

Casa,

Cuidados médicos,

O amor sereno de mãe e pai.

Rir,

Brincar,

Crescer,

Aprender a ser feliz…

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…Mas há crianças que nascem diferentes

E tudo devemos fazer para que isto não aconteça.

Vamos dar a essas crianças um amor maior ainda.

E a criança nasceu

E a desabrochar como

Uma flor

Uma árvore,

Um pássaro,

E

Uma flor,

Uma árvore,

Um pássaro

Precisam de amor – a seiva da terra, a luz do sol.

De quanto amor a criança não precisará?

De quanto amor a criança não precisara?

De quanta segurança?

Os pais e todo o mundo que rodeia a criança

Vão participar na aventura

De uma vida que nasceu.

Maravilhosa aventura!

Mas se a criança não tem família?

Ela tê-la-á sempre: numa sociedade justa

Todos serão sua família.

Nunca mais haverá uma criança só

Infância nunca será solidão.

E a criança vai aprender a crescer.

Todos temos de ajudar!

Todos!

Os pais, a escola, todos nós!

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E vamos ajudá-la a descobrir-se a si própria

E aos outros.

Descobrir o seu mundo,

A sua força,

O seu amor,

Ela vai aprender a viver

Com ela própria

E com os outros:

Vai aprender a fraternidade,

A fazer fraternidade

Isto chama-se educar:

Saber isto é aprender a ensinar.

Em situação de perigo

A criança, mais do que nunca,

Está sempre em primeiro lugar…

Será o sol que não se apaga

Com o nosso medo,

Com a nossa indiferença:

A criança apaga, por si só,

Medo e indiferença das nossas frontes…

A criança é um mundo

Precioso

Raro

Que ninguém a roube,

A negoceie,

A explore

Sob qualquer pretexto.

Que ninguém se aproveite

Do trabalho da criança

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Para seu próprio proveito.

São livres e frágeis as suas mãos,

Hoje:

Se as não magoarmos

Elas poderão continuar

Livres

E ser a força do mundo

Mesmo que frágeis continuem…

A criança deve ser respeitada

Em suma,

Na dignidade do seu nascer,

Do seu crescer,

Sado seu viver.

Quem amar verdadeiramente a criança

Não poder

Á deixar de ser fraterno:

Uma criança não conhece fronteiras,

Nem raças

Nem classes sociais:

Ela é o sinal mais vivo do amor,

Embora, por vezes, nos possa parecer cruel.

Frágil e forte, ao mesmo tempo,

Ela é sempre a mão da própria vida

Que se nos estende, nos segura

E nos diz:

Sê digno de viver!

Olha em frente!

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BONS AMIGOS Machado de Assis

[1839-1908]

Joaquim Maria Machado de Assis (Rio de Janeiro, 21 de Junho de 1839 — Rio de Janeiro, 29 de Setembro de 1908) foi um poeta, romancista, dramaturgo, contista, jornalista, cronista e teatrólogo brasileiro, considerado como o maior nome da literatura brasileira pela maior parte dos estudiosos da área. A sua extensa obra é constituída por nove romances e nove peças teatrais, 200 contos, cinco colectâneas de poemas e sonetos, e mais de 600 crónicas.

Machado de Assis 

Abençoados os que possuem amigos, os que os têm

[sem pedir.

Porque amigo não se pede, não se compra, nem se vende.

Amigo a gente sente!

Benditos os que sofrem por amigos, os que falam com

[o olhar.

Porque amigo não se cala, não questiona, nem se rende.

Amigo a gente entende!

Benditos os que guardam amigos, os que entregam o

[ombro pra chorar.

Porque amigo sofre e chora.

Amigo não tem hora pra consolar!

Benditos sejam os amigos que acreditam na tua verdade

[ou te apontam a realidade.

Porque amigo é a direcção.

Amigo é a base quando falta o chão!

Benditos sejam todos os amigos de raízes, verdadeiros.

Porque amigos são herdeiros da real sagacidade.

Ter amigos é a melhor cumplicidade!

Há pessoas que choram por saber que as rosas têm espinhos,

Há outras que sorriem por saber que os espinhos têm rosas!

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A INDIFERENÇA  Bertolt Brecht [1898-1956]

Eugen Berthold Friedrich Brecht (Augsburg, 10 de Fevereiro de 1898 — Berlim, 14 de Agosto de 1956) foi um destacado dramaturgo, poeta e encenador alemão do século XX. Os seus trabalhos artísticos e teóricos influenciaram profundamente o teatro contemporâneo, tornando-o mundialmente conhecido a partir das apresentações de sua companhia o Berliner Ensemble realizadas em Paris durante os anos 1954 e 1955.

Bertolt Brecht 

Primeiro levaram os comunistas,

Mas eu não me importei

Porque não era nada comigo.

Em seguida levaram alguns operários,

Mas a mim não me afectou

Porque eu não sou operário.

Depois prenderam os sindicalistas,

Mas eu não me incomodei

Porque nunca fui sindicalista.

Logo a seguir chegou a vez

De alguns padres, mas como

Nunca fui religioso, também não liguei.

Agora levaram-me a mim

E quando percebi,

Já era tarde.

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PAÍS NATAL António Baticã Ferreira

[1939- _]

António Baticã Ferreira nasceu em Canchungo, Guiné-Bissau, em 1939. Frequentou o liceu em Paris e formou-se em Medicina, na Suíça. Exerceu a profissão de médico no Hospital de Santa Maria, em Lisboa. Colaborou com poemas seus em diversas publicações francesas: La Tribune Internacional des Poètes, L\'Afrique Nouvelle e La Croix e portuguesas: Poesia & Ficção, Diário Popular e Debate.

António Baticã Ferreira 

Um sentimento de amor pátrio sobe no meu coração,

Em espírito demando o meu país natal,

E lembro aquela floresta africana,

Cheia de caça e de verdura;

Lembro as suas imensas árvores gigantes,

A folhagem verde ou amarela

Que nos perfuma.

Revejo a minha infância,

Toda cheia de alegrias:

Eu corria pelo mato,

Espiava os animais selvagens,

Sem medo;

E olhava os lavradores nos campos,

E, no mar, os pescadores,

Que lutavam contra o vento, para agarrar o peixe,

E que eu, atento, seguia com o olhar:

Como gostava de os ver no oceano

Domar as vagas, que lhes queriam virar as barcas!

(Ah!, bem me lembro, bem me lembro do meu pais natal!)

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Aguinaldo Fonseca

Aguinaldo Fonseca é um poeta cabo-verdiano nascido em 1922. A novidade de Aguinaldo Fonseca está em ter sido ele o primeiro a utilizar a «África» como substância poética cabo-verdiana. Um dos seus poemas mais conhecidos e divulgados é «Mãe Negra».

MÃE NEGRA 

Aguinaldo Fonseca 

A mãe negra embala o filho.

Canta a remota canção

Que seus avós já cantavam

Em noites sem madrugada.

Canta, canta para o céu

Tão estrelado e festivo.

É para o céu que ela canta,

Que o céu

Às vezes também é negro.

No céu

Tão estrelado e festivo

Não há branco, não há preto,

Não há vermelho e amarelo.

- Todos são anjos e santos

Guardados por mãos divinas.

A mãe negra não tem casa

Nem carinhos de ninguém...

A mãe negra é triste, triste,

E tem um filho nos braços...

Mas olha o céu estrelado

E de repente sorri.

Parece-lhe que cada estrela

É uma mão acenando

Com simpatia e saudade...

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À DESCOBERTA DO AMOR  

Mahatma Gandhi [1869-1948]

Mohandas Karamchand Gandhi (Devanagari mais conhecido popularmente por Mahatma Gandhi ("Mahatma", do sânscrito "A Grande Alma") (Porbandar, 2 de Outubro de 1869 — Nova Deli, 30 de Janeiro de 1948) foi um dos idealizadores e fundadores do moderno estado indiano e um influente defensor do Satyagraha (princípio da não-agressão, forma não-violenta de protesto) como um meio de revolução. O seu exemplo e as suas teses pacifistas têm um enorme sucesso em todo o mundo.

Mahatma Gandhi 

Ensaia um sorriso

e oferece-o a quem não teve nenhum.

Agarra um raio de sol

e desprende-o onde houver noite.

Descobre uma nascente

e nela limpa quem vive na lama.

Toma uma lágrima

e pousa-a em quem nunca chorou.

Ganha coragem

e dá-a a quem não sabe lutar.

Inventa a vida

e conta-a a quem nada compreende.

Enche-te de esperança

e vive á sua luz.

Enriquece-te de bondade

e oferece-a a quem não sabe dar.

Vive com amor

e fá-lo conhecer ao Mundo.

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LÁGRIMA DE PRETA 

António Gedeão

[1906-1997]

António Gedeão, pseudónimo de Rómulo Vasco da Gama de Carvalho, nasceu e faleceu em Lisboa. Além de poeta, foi professor de Ciências Físico-Químicas, poeta, investigador, historiador, escritor, fotógrafo, pintor e ilustrador, aliando a ciência à literatura. Obras poéticas: Movimento Perpétuo (1956), Teatro do Mundo (1958), Máquina de Fogo (1961), Poema para Galileu (1964), Linhas de Força (1967), Poesias Completas (1975), Poemas Póstumos (1983), Novos Poemas Póstumos (1990). Ficção: A Poltrona e Outras Novelas (1973). Teatro: RTX 78/24 (1963). Estudos: História da Fundação do Colégio Real dos Nobres (1959).

António Gedeão 

Lágrima de preta

Encontrei uma preta

que estava a chorar,

pedi-lhe uma lágrima

para a analisar.

Recolhi a lágrima

com todo o cuidado

num tubo de ensaio

bem esterilizado.

Olhei-a de um lado,

do outro e de frente:

tinha um ar de gota

muito transparente.

Mandei vir os ácidos,

as bases e os sais,

as drogas usadas

em casos que tais.

Ensaiei a frio,

experimentei ao lume,

de todas as vezes

deu-me o que é costume:

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nem sinais de negro,

nem vestígios de ódio.

Água (quase tudo)

e cloreto de sódio.

 

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PRELÚDIO  Alda Lara

[1930-1962]

Alda Lara, seu nome completo, Alda Ferreira Pires Barreto de Lara Albuquerque, nasceu em Benguela, Angola, a 9 de Junho de 1930 e faleceu em Cambambe a 30 de Janeiro de 1962. Era casada com o escritor Orlando Albuquerque. Ainda muito nova vai para Lisboa onde concluiu o 7.º ano do Liceu. Frequentou as Faculdades de Medicina de Lisboa e Coimbra, licenciando-se por esta última. Em Lisboa esteve ligada a algumas das actividades da Casa dos Estudantes do Império. Declamadora, chamou a atenção para os poetas africanos. Depois da sua morte, a Câmara Municipal de Sá da Bandeira, actual Lubango, instituiu o Prémio Alda Lara para poesia. Orlando Albuquerque propôs-se editar-lhe postumamente toda a obra, tendo reunido e publicado um volume de poesias e um caderno de contos.

Alda Lara  Pela estrada desce a noite

Mãe-Negra, desce com ela...

Nem buganvílias vermelhas,

nem vestidinhos de folhos,

nem brincadeiras de guisos,

nas suas mãos apertadas.

Só duas lágrimas grossas,

em duas faces cansadas.

Mãe-Negra tem voz de vento,

voz de silêncio batendo

nas folhas do cajueiro...

Tem voz de noite, descendo,

de mansinho, pela estrada...

Que é feito desses meninos

que gostava de embalar?...

Que é feito desses meninos

que ela ajudou a criar?...

Quem ouve agora as histórias

que costumava contar?...

Mãe-Negra não sabe nada...

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Mas ai de quem sabe tudo,

como eu sei tudo

Mãe-Negra!...

Os teus meninos cresceram,

e esqueceram as histórias

que costumavas contar...

Muitos partiram p'ra longe,

quem sabe se hão-de voltar!...

Só tu ficaste esperando,

mãos cruzadas no regaço,

bem quieta bem calada.

É a tua a voz deste vento,

desta saudade descendo,

de mansinho pela estrada.

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PROFESSOR, DIZ­ME PORQUÊ?  Cecília Meireles

[1901-1964]

Cecília Benevides de Carvalho Meireles, poetisa, pintora, professora e jornalista brasileira, nasceu no Rio de Janeiro no 7 de Novembro de 1901, descendente de portugueses. Casou-se, em 1922, com o pintor português Fernando Correia Dias, com quem tem três filhas. Faleceu no Rio de Janeiro no dia 9 de Novembro de 1964, sendo-lhe prestadas grandes homenagens públicas. Na opinião do crítico Paulo Rónai poesia de Cecília Meireles «é uma das mais puras, belas e válidas manifestações da literatura contemporânea».

Cecília Meireles 

 Professor diz-me porquê?

Por que roda o meu pião?

Ele não tem roda

e roda, gira, rodopia

e cai morto no chão...

Tenho nove anos, professor

e há tanto mistério à minha roda

que eu queria desvendar

Por que é que o carro é azul?

Por que é que marulha o mar?

Porquê?

Tantos porquês que eu...

eu queria saber!

E tu que não me queres responder!

Tu falas, falas professor daquilo que te interessa.

Tu obrigas-me a ouvir

quando eu quero falar,

se eu vou descobrir

faz-me decorar!

É a luta professor

a luta em vez do amor....

mas,

enquanto tua voz zangada ralha

tu sabes, professor,

eu fecho-me por dentro,

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faço uma cara resignada

e finjo que não penso em nada,

mas penso...

Penso em como era engraçada

aquela rã

que esta manhã ouvi coaxar...

Que graça que tinha

aquela andorinha

que ontem à tarde vi passar.

E quando tu podei vens definir

o que são conjuntos e preposições,

quando me fazes repetir

que os corações

tem duas aurículas e dois ventrículos

e tantas

tantas mais definições...

Meu coração, o meu coração

Que não sei como é feito

E nem quero saber...

Cresce dentro do peito

A querer saltar pra fora, professor

E ver se tu assim compreenderias

E me farias mais belos os dias!

 

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A COR QUE SE TEM 

Maria Cândida Mendonça 

Quando for crescida

hei-de inventar

um perfume de encantar.

Quem o cheirar

há-de ficar

com cor de pele

que mais gostar.

Branco ou amarelo

se preferir

preto ou vermelho

é só decidir.

Para alegrar

até estou a pensar

outras cores acrescentar.

Cor de rosa

verde ou lilás

são cores bonitas

e tanto faz.

E assim

há-de chegar

o dia de acreditar

que o valor

de alguém

não se pode avaliar

pela cor que tem

e então

tudo estará bem.

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O MENINO DE SUA MÃE 

Fernando Pessoa

[1888-1935]

E um considerado um dos maiores poetas portugueses de sempre e autor de intensa actividade literária. Em 1915, com Mário de Sá-Carneiro, Almada Negreiros e outros, esforçou-se por renovar a literatura portuguesa através da criação da revista Orpheu, veículo de novas ideias e novas estéticas. Devido à sua capacidade de criar novos «eus» desdobrou-se por vários heterónimos (Alberto Caeiro, Álvaro de Campos, Ricardo Reis, Bernardo Soares, etc.), assinando as suas obras de acordo com a personalidade de cada heterónimo. Colaborou em várias revistas, publicou em livro os seus poemas escritos em inglês e, em 1934, ganhou o concurso literário promovido pelo SPN, com a obra Mensagem.

Fernando Pessoa 

No plaino abandonado

Que a morna brisa aquece,

De balas trespassado

Duas, de lado a lado,

Jaz morto, e arrefece

Raia-lhe a farda o sangue

De braços estendidos,

Alvo, louro, exangue,

Fita com olhar langue

E cego os céus perdidos

Tão jovem! Que jovem era!

(agora que idade tem?)

Filho único, a mãe lhe dera

Um nome e o mantivera:

“O menino de sua mãe”.

Caiu-lhe da algibeira

A cigarreira breve

Dera-lha a mãe. Está inteira a cigarreira.

Ele é que já não serve.

De outra algibeira, alada

Ponta a roçar o solo,

A brancura embainhada

De um lenço … deu-lho a criada

Velha que o trouxe ao colo.

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Uma escola com valor(es)

Lá longe, em casa, há a prece:

“Que volte cedo, e bem!”

(Malhas que o Império tece”)

Jaz morto, e apodrece,

O menino de sua mãe.

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Uma escola com valor(es)

CÂNTICO NEGRO 

José Régio [1901-1969]

José Régio, pseudónimo literário de José Maria dos Reis Pereira, nasceu em Vila do Conde em 1901. Licenciado em Letras em Coimbra, ensinou durante mais de 30 anos no Liceu de Portalegre. Com Branquinho da Fonseca e João Gaspar Simões fundou, em 1927, a revista Presença (cujo primeiro número saiu a 10 de Março, vindo a publicar-se, embora sem regularidade, durante treze anos), que marcou o segundo modernismo português e de que Régio foi o principal impulsionador e ideólogo. Como escritor, José Régio dedicou-se ao romance, ao teatro, à poesia e ao ensaio. Centrais, na sua obra, são as problemáticas do conflito entre Deus e o Homem, o indivíduo e a sociedade, numa análise crítica das relações humanas e da solidão, do dilaceramento interior perante a relação entre o espírito e a carne e a ânsia humana do absoluto. É considerado, por alguns, como um dos vultos mais significativos da moderna literatura portuguesa. Recebeu, postumamente, em 1970, o Prémio Nacional de Poesia, pelo conjunto da sua obra poética. As suas casas de Vila do Conde e de Portalegre são hoje museus.

José Régio 

"Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces

Estendendo-me os braços, e seguros

De que seria bom que eu os ouvisse

Quando me dizem: "vem por aqui!"

Eu olho-os com olhos lassos,

(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)

E cruzo os braços,

E nunca vou por ali...

A minha glória é esta:

Criar desumanidades!

Não acompanhar ninguém.

— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade

Com que rasguei o ventre à minha mãe

Não, não vou por aí! Só vou por onde

Me levam meus próprios passos...

Se ao que busco saber nenhum de vós responde

Por que me repetis: "vem por aqui!"?

Prefiro escorregar nos becos lamacentos,

Redemoinhar aos ventos,

Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,

A ir por aí...

Se vim ao mundo, foi

Só para desflorar florestas virgens,

E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!

O mais que faço não vale nada.

Como, pois, sereis vós

Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem

Para eu derrubar os meus obstáculos?...

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Uma escola com valor(es)

Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,

E vós amais o que é fácil!

Eu amo o Longe e a Miragem,

Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! Tendes estradas,

Tendes jardins, tendes canteiros,

Tendes pátria, tendes tetos,

E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...

Eu tenho a minha Loucura !

Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,

E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...

Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém!

Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;

Mas eu, que nunca principio nem acabo,

Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,

Ninguém me peça definições!

Ninguém me diga: "vem por aqui"!

A minha vida é um vendaval que se soltou,

É uma onda que se alevantou,

É um átomo a mais que se animou...

Não sei por onde vou,

Não sei para onde vou

Sei que não vou por aí!

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Uma escola com valor(es)

SONETO DOS VENCIDOS 

José Régio 

Quando subi a serra, alguns troçaram,

Enquanto a multidão, em volta, ria...

E troças e risadas arranharam

Tudo o que em mim sentia e se doía.

Todos os mais, depois, me detestaram,

Por eu não ser igual à maioria.

E, fortes, contra um, cem abusaram,

Enquanto a multidão, em volta, ria.

Fartar, vilões, que estou cansado!

Eis-me – Ecce-Homo! – Nu, prostrado e atado.

Podeis lançar-me à cara os vossos lodos!

Mas eu, quanto mais sofro mais me prezo:

Só o meu orgulho iguala o meu desprezo...

E vingo-me em ter pena de vós todos

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Uma escola com valor(es)

FALA DO VELHO DO RESTELO AO ASTRONAUTA José Saramago [1922- ]

José Saramago nasceu na Azinhaga, concelho da Golegã. Trabalhou como jornalista em vários jornais, entre eles o Diário de Notícias, de que foi director. Actualmente vive na ilha de Lanzarote, arquipélago das Canárias. É um dos escritores portugueses mais lidos e traduzidos no estrangeiro. Em 1991 ganhou o Grande Prémio APE, com o romance O Evangelho Segundo Jesus Cristo, e o Prémio Camões em 1996 por toda a obra. Em 1998 ganhou o Prémio Nobel da Literatura.

José Saramago 

Aqui, na terra, a fome continua,

A miséria, o luto, e outra vez a fome.

Acendemos cigarros em fogos de napalme

E dizemos amor sem saber o que seja.

Mas fizemos de ti a prova da riqueza

Ou talvez da pobreza, e da fome outra vez,

E pusemos em ti nem eu sei que desejo

De mais alto que nós, e melhor, e mais puro.

No jornal soletramos, de olhos tensos,

Maravilhas de espaço e de vertigem:

Salgados oceanos que circundam

Ilhas mortas de sede, onde não chove.

Mas o mundo, astronauta, é boa mesa

(E as bombas de napalme são brinquedos),

Onde come, brincando, só a fome,

Só a fome, astronauta, só a fome.

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Uma escola com valor(es)

NEGRA Noémia de Sousa

[1926-2002]

Escritora moçambicana, Carolina Noémia Abranches de Sousa Soares nasceu a 20 de Setembro de 1926, em Lourenço Marques (hoje Maputo), Moçambique, e faleceu a 4 de Dezembro de 2002, em Cascais, Portugal. Poetiza que, numa espécie de postura predestinada, desembaraçando-se das normas tradicionais europeias, de 1949 a 1952 escreve dezenas de poemas, estando muitos deles dispersos pela imprensa moçambicana e estrangeira. A sua poesia desde muito cedo se mostrou "cheia" da "certeza radiosa" de uma esperança, a esperança dos humilhados, que é sempre a da sua libertação. Toda a sua produção é marcada pela presença constante das raízes profundamente africanas, abrindo os caminhos da exaltação da Mãe-África, da glorificação dos valores africanos, do protesto e da denúncia.

Noémia de Sousa 

Gentes estranhas com seus olhos cheios doutros mundos

quiseram cantar teus encantos

para elas só de mistérios profundos,

de delírios e feitiçarias...

Teus encantos profundos de Africa.

Mas não puderam.

Em seus formais e rendilhados cantos,

ausentes de emoção e sinceridade,

quedas-te longínqua, inatingível,

virgem de contactos mais fundos.

E te mascararam de esfinge de ébano, amante sensual,

jarra etrusca, exotismo tropical,

demência, atracção, crueldade,

animalidade, magia...

e não sabemos quantas outras palavras vistosas e vazias.

Em seus formais cantos rendilhados

foste tudo, negra...

menos tu.

E ainda bem.

Ainda bem que nos deixaram a nós,

do mesmo sangue, mesmos nervos, carne, alma,

sofrimento,

a glória única e sentida de te cantar

com emoção verdadeira e radical,

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Uma escola com valor(es)

a glória comovida de te cantar, toda amassada,

moldada, vazada nesta sílaba imensa e luminosa: MÃE

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Uma escola com valor(es)

Geraldo Bessa Victor [1917-1990]

Geraldo Bessa Victor, poeta e contista, nasceu em 1917 em Luanda e faleceu no ano de 1990, Lisboa, sua segunda Pátria. É autor dos livros “Ecos dispersos”, 1941; “Ao som das marimbas”, 1943; “Debaixo do céu”, 1949, “A restauração de Angola”, 1951; “Cubata abandonada”, 1958, “Mucanda”, 1964; “Monandengue”, 1973. Para Manuel Bandeira que prefaciou o livro “Cubata abandonada” (1958), sem qualquer dúvida, considera que: “Geraldo Bessa Victor recolheu o melhor das mais autênticas vozes de África. Vozes que ele terá ouvido junto às Pedras Negras de Pungo Andongo, conversando com os ventos, os montes, os rios, as velhas mulembas, que lhe falavam de histórias do Quinjango e da Rainha Ginga.”.

O MENINO NEGRO 

Geraldo Bessa Victor 

O menino negro não entrou na roda

das crianças brancas - as crianças brancas

que brincavam todas numa roda viva

de canções festivas, gargalhadas francas...

O menino negro não entrou na roda.

E chegou o vento junto das crianças

- e bailou com elas e cantou com elas

as canções e danças das suaves brisas,

as canções e danças das brutais procelas.

O menino negro não entrou na roda.

Pássaros, em bando, voaram chilreando

sobre as cabecinhas lindas dos meninos

e pousaram todos em redor. Por fim,

bailaram seus voos, cantando seus hinos ...

O menino negro não entrou na roda.

"Venha cá, pretinho, venha cá brincar"

- disse um dos meninos com seu ar feliz.

A mamã, zelosa, logo fez reparo;

o menino branco já não quis, não quis ...

o menino negro não entrou na roda.

O menino negro não entrou na roda

das crianças brancas. Desolado, absorto,

ficou só, parado com olhar cego,

ficou só, calado com voz de morto.

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