Uma Igreja em saída”: a provocação do Papa...

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Curso anual dos bispos do Brasil - 2017 - 1 - 2017 Uma Igreja em saída”: a provocação do Papa Francisco D. Rino Fisichella Presidente do Pontifício Conselho para a Promoção da Nova Evangelização Estamos vivendo um pontificado muito intenso do ponto de vista dos sinais que o Papa Francisco coloca diante dos nossos olhos quase diariamente. Falar de uma “Igreja em saídaengloba uma reflexão sobre quem é a Igreja, a sua natureza missionária; para onde devemos ir, depois de ter passado a fronteira; e como voltar a ser uma comunidade que celebra a eucaristia como memória viva e eficaz da pessoa de Cristo na nossa história e na vida pessoal de cada um. Para entrar no cerne desta questão, podemos considerar três aspetos que me parecem determinantes no magistério do Papa Francisco. Antes de mais, o chamado à fé; depois, o ensinamento que emerge da Evangelii gaudium e, por fim, o tema da misericórdia como o coração pulsante da nova evangelização. A fé vem do amor Não creio que esteja enganado, se procurar reler estes anos de pontificado do Papa Francisco à luz do amor. Tanto a sua primeira encíclica, Lumen fidei, como a Evangelii gaudium fazem emergir o tema do amor. Não podia ser de outro modo. O coração da fé é o amor trinitário de Deus que se revela em Jesus Cristo, aquele que está na origem da fé e que a leva ao seu cumprimento (cf. Hb 12,2). De fato, o ensinamento do Papa Francisco parece que progride em torno de uma impressionante circularidade: o amor que gera a fé e a fé que sustenta o amor. Do mesmo modo que existe a “luz da fé”, somos colocados também diante da “luz do amor” (LF 34). Parece que o Papa Francisco nos diz que, para entrar com coerência no conhecimento dos 2

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Uma Igreja em “saída”:

a provocação do Papa Francisco

D. Rino Fisichella

Presidente do Pontifício Conselho para a Promoção da Nova Evangelização

Estamos vivendo um pontificado muito intenso do ponto de vista dos sinais que o

Papa Francisco coloca diante dos nossos olhos quase diariamente. Falar de uma “Igreja em saída”

engloba uma reflexão sobre quem é a Igreja, a sua natureza missionária; para onde devemos ir,

depois de ter passado a fronteira; e como voltar a ser uma comunidade que celebra a eucaristia

como memória viva e eficaz da pessoa de Cristo na nossa história e na vida pessoal de cada um.

Para entrar no cerne desta questão, podemos considerar três aspetos que me parecem

determinantes no magistério do Papa Francisco. Antes de mais, o chamado à fé; depois, o

ensinamento que emerge da Evangelii gaudium e, por fim, o tema da misericórdia como o

coração pulsante da nova evangelização.

A fé vem do amor

Não creio que esteja enganado, se procurar reler estes anos de pontificado do Papa

Francisco à luz do amor. Tanto a sua primeira encíclica, Lumen fidei, como a Evangelii gaudium

fazem emergir o tema do amor. Não podia ser de outro modo. O coração da fé é o amor trinitário

de Deus que se revela em Jesus Cristo, aquele que está na origem da fé e que a leva ao seu

cumprimento (cf. Hb 12,2). De fato, o ensinamento do Papa Francisco parece que progride em

torno de uma impressionante circularidade: o amor que gera a fé e a fé que sustenta o amor. Do

mesmo modo que existe a “luz da fé”, somos colocados também diante da “luz do amor” (LF

34). Parece que o Papa Francisco nos diz que, para entrar com coerência no conhecimento dos

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conteúdos da fé e dar testemunho, é preciso armar-se com as “razões do coração”. Estas permitem

que se entre na complexa temática teológica do conhecimento mediante a fé que, para o Papa

Francisco, se relê à luz do conhecimento mediante o amor. É o amor o fundamento que consente

que os crentes construam a sua vida sobre a rocha e não sobre a instabilidade da areia. Quem

acredita é aquele que é amado! O amor abre a um conhecimento de uma verdade primeira,

inesperada e imprevista, mas que se torna real e visível. É o amor que permite reconhecer as

necessidades dos outros, não enquanto realidade estranha, mas como irmãos que sofrem e estão

em necessidade. O mistério da Encarnação do Filho de Deus oferece um horizonte de sentido

completo a esta perspetiva, porque a partilha da nossa natureza humana por parte de Jesus Cristo,

permite que o amor de Deus se revele em toda a sua novidade e originalidade. É profundamente

verdadeiro o que o Papa escreve a este respeito: “Só assim, através da encarnação, através da

partilha da nossa humanidade, podia chegar à plenitude o conhecimento próprio do amor” (LF

31). Na mesma linha, quase fazendo eco destas palavras, encontramos na Evangelii gaudium:

“Somente graças a este encontro – ou reencontro – com o amor de Deus, que se converte em

amizade feliz, é que somos resgatados da nossa consciência isolada e da autorreferencialidade.

Chegamos a ser plenamente humanos, quando somos mais do que humanos, quando permitimos

a Deus que nos conduza para além de nós mesmos a fim de alcançarmos o nosso ser mais

verdadeiro. Aqui está a fonte da ação evangelizadora. Porque, se alguém acolheu este amor que

lhe devolve o sentido da vida, como é que pode conter o desejo de o comunicar aos outros?” (EG

8). Enfim, parafraseando, poderia dizer-se com o Beato J.H. Newman: cor ad cor loquitur, o

coração fala ao coração para se tornar um único coração.

“Tocar com o coração, isto é crer” (LF 31), afirma o Santo Padre citando Santo

Agostinho. Não se poderia encontrar uma expressão mais plástica do que esta para descrever a

gênese da fé. É a graça que transforma o coração e dá início à fede: gratia facit fidem. Isto

significa que o primeiro movimento provém sempre de Deus que chama a si e se deixa ver e

tocar. Neste movimento, a graça permite que se possa reconhecer a presença de Deus. É por isso

que “toca” o coração, porque o abre de par em par para um conhecimento mais profundo. Numa

palavra, o coração tocado pelo Espírito permite que se reconheça Jesus como o Cristo, o Filho

de Deus e o Senhor. Este tema é recorrente no Papa Francisco. Na Evangelii gaudium, detém-se

de forma mais direta neste aspecto, quando escreve: “Primeirear – desculpai o neologismo –,

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tomar a iniciativa! A comunidade missionária experimenta que o Senhor tomou a iniciativa,

precedeu-a no amor (cf. 1Jo 4,10), e, por isso, ela sabe ir à frente, sabe tomar a iniciativa sem

medo, ir ao encontro, procurar os afastados e chegar às encruzilhadas dos caminhos para convidar

os excluídos” (EG 24).

Além disso, reler a fé em relação ao amor permite que o Papa evidencie a própria

natureza da verdade a que se abandonam os que creem. A verdade iluminada pelo amor torna

seguro o caminho. Sem esta verdade, estaria sempre alerta a crítica de acreditar numa “linda

fábula” ou de ceder à “projeção dos nossos desejos” (LF 24). É a mesma dimensão que está

presente na Evangelii gaudium, em que o Papa Francisco evidencia os limites de uma pastoral

que, não brotando do amor, apenas se torna um narcisismo autorreferencial. É o tema da “acédia

pastoral” (EG 82) que cai na tentação de “excesso de atividades”, já privadas de espiritualidade

que dá força e fundamento. A fé gerada pelo amor, pelo contrário, procura a verdade e a deseja

enquanto expressão de um conhecimento mais profundo e mais genuíno. A referência da Lumen

fidei a um autor como Guilherme de Saint Thierry, permite que o Papa evidencie a unidade

profunda entre crer, amar e evangelizar, e leva a assumir uma nova lógica para o nosso

conhecimento: “Estes dois olhos são a razão crente e o amor, que se tornam um único olhar para

chegar à contemplação de Deus” (LF 27).

O primado da contemplação

Pode-se partir justamente desta consideração para recuperar um conteúdo

importante do ensinamento do Papa Francisco na evangelização. A contemplação ocupa o

primeiro lugar. Encontra-se um primeiro aceno a esta perspectiva na Homilia que o Papa

pronunciou durante o Ano da Fé, no seu encontro com os seminaristas e as noviças. Nessa

ocasião, disse: “A evangelização faz-se de joelhos”. É assim mesmo. O Papa Francisco está

convencido do primado da contemplação sobre a ação. Por várias vezes, exprime esta dimensão

na Evangelii gaudium. Para não “correr em vão” (Gl 2,2) na via da evangelização, é necessário

fixar-se no essencial, deter o olhar no rosto de Cristo. É esta a verdadeira contemplação e é este

o “primeiro anúncio” que cada cristão é chamado a fazer. Viver de Cristo para saber comunicá-

lo e fazer com que os outros tomem parte nele. É verdade o que se lê na Evangelii gaudium:

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“Colocados diante dele com o coração aberto, deixando que Ele nos olhe, reconhecemos aquele

olhar de amor que descobriu Natanael no dia em que Jesus se fez presente e lhe disse: «Eu te vi,

quando estavas debaixo da figueira!» (Jo 1,48). Como é doce permanecer diante de um crucifixo

ou de joelhos diante do Santíssimo Sacramento, e fazê-lo simplesmente para estar à frente dos

seus olhos! Como nos faz bem deixar que Ele volte a tocar a nossa vida e nos envie para

comunicar a sua vida nova! Sucede então que, em última análise, «o que nós vimos e ouvimos,

isso anunciamos» (1Jo 1,3). A melhor motivação para se decidir a comunicar o Evangelho é

contemplá-lo com amor, é deter-se nas suas páginas e lê-lo com o coração. Se o abordamos desta

maneira, a sua beleza nos deslumbra, volta a nos cativar constantemente. Por isso, é urgente

recuperar um espírito contemplativo, que nos permita redescobrir, cada dia, que somos

depositários de um bem que humaniza, que ajuda a levar uma vida nova. Não há nada de melhor

para transmitir aos outros” (EG 264).

Por isso, só na medida em que se vive desta força que vem do alto, é que se torna

possível realizar aquilo que o Papa Francisco chama a “mística da fraternidade”. Não uma

fraternidade generalizada, privada de referências a Deus, que nos deixaria num estado de mero

compromisso social imanente, mas uma fraternidade que ganha força a partir do fundamento

encontrado em Cristo e na sua solidariedade com toda a humanidade. Uma fraternidade, então,

que é transformada pela mística e que se orienta pelo exemplo de Jesus Cristo: “Neste tempo em

que as redes e demais instrumentos da comunicação humana alcançaram progressos inauditos,

sentimos o desafio de descobrir e transmitir a «mística» de viver juntos, misturar-nos, encontrar-

nos, dar o braço, apoiar-nos, participar nesta maré um pouco caótica que pode transformar-se

numa verdadeira experiência de fraternidade, numa caravana solidária, numa peregrinação

sagrada” (EG 87). E de maneira ainda mais direta: “Quando vivemos a mística de nos aproximar

dos outros com a intenção de procurar o seu bem, ampliamos o nosso interior para receber os

mais belos dons do Senhor. Cada vez que nos encontramos com um ser humano no amor, ficamos

capazes de descobrir algo de novo sobre Deus” (EG 272).

A via da contemplação do rosto de Cristo, que nos permite fixar-nos no próprio

rosto de Deus, não nos desvia para caminhos solitários, mas nos impõe uma contemplação do

irmão. O Papa Francisco é provocador, mas aponta o dedo para aquilo que, não raro, fica

esquecido: “A contemplação que deixa de fora os outros é uma farsa” (EG 281). A contemplação

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é, portanto, um comportamento global. Ela incide sobre o crente em toda a sua existência, sem

permitir qualquer esquizofrenia. “Contemplativos da Palavra e contemplativos do povo de

Deus”. Enfim, o verdadeiro evangelizador é aquele que sabe colher os sinais da presença de

Deus na história, no lugar onde vive cada um, para saber discernir e para poder transformar o

mundo à luz do Evangelho.

A memória viva

Um outro tema qualificante parece-me que seja o da transmissão da fé. Uma

problemática muito sentida nos nossos dias e que envolve de modo direto cada cristão e a sua

pertença à Igreja. A transmissão da fé é, provavelmente, o compromisso que somos chamados a

fazer com profunda responsabilidade como forma de nova evangelização.

Entra-se, assim, no grande capítulo do compromisso do cristão no mundo. A fé

obriga o crente, efetivamente, a assumir a sua responsabilidade de transformar o mundo. Não

podemos esquecer o primeiro discurso de Francisco, apenas eleito Papa. A indicação que deu à

Igreja naquele dia 14 de março foi desde logo muito clara. A síntese encontra-se nos três verbos:

caminhar, construir, confessar. A identidade do crente está em caminhar no mundo, fazendo

companhia aos nossos contemporâneos; não está em ficar encerrados nas nossas paróquias,

sentados à secretária: “A Igreja «em saída» é uma Igreja com as portas abertas. Sair em direção

aos outros para chegar às periferias humanas não significa correr pelo mundo sem direção nem

sentido. Muitas vezes é melhor diminuir o ritmo, pôr à parte a ansiedade para olhar nos olhos e

escutar, ou renunciar às urgências para acompanhar quem ficou caído à beira do caminho. Às

vezes, é como o pai do filho pródigo, que continua com as portas abertas para, quando este voltar,

poder entrar sem dificuldade” (EG 46). Por isso, a nossa pastoral tende a transformar as nossas

comunidades numa Igreja chamada a “sair” de si mesma para ir ao encontro dos outros. Aquilo

que o Papa nos pede neste momento histórico é “a dinâmica do êxodo e do dom, de sair de si

mesmo, de caminhar e de semear sempre de novo, sempre mais além” (EG 21). Enfim, a Igreja

que deve fazer sua “a intimidade de Jesus que é uma intimidade itinerante” (EG 23). Ela não se

encontra num beco sem saída, mas caminha sobre as mesmas pisadas de Cristo (cf. 1Pd 2,21);

por isso, tem a certeza do caminho a fazer e da meta a alcançar. Isto não lhe amedronta; ela sabe

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que deve “ir ao encontro, procurar os afastados e chegar às encruzilhadas dos caminhos para

convidar os excluídos” (EG 24). Para que isto aconteça, o Papa Francisco repropõe com força a

exigência da “conversão pastoral”, que significa passar de uma visão burocrática, estática e

administrativa da pastoral para uma perspectiva missionária; mais, uma pastoral em permanente

estado de missão (EG 25). Tal como, de fato, há estruturas que facilitam e apoiam a pastoral

missionária, infelizmente também “há estruturas eclesiais que podem chegar a condicionar um

dinamismo evangelizador” (EG 26). A presença de práticas pastorais retrógradas e antiquadas

obriga, portanto, à audácia de ser criativos para repensar a evangelização.

A caraterística seguinte para a identidade do cristão será determinada pelo segundo

verbo, “construir” para dar ao anúncio do Evangelho um rosto digno de fé. A palavra é, então,

acompanhada pelo sinal que a concretiza. Como se vê, estamos plenamente na lógica evangélica:

a Revelação que acontece por meio de “ações e palavras intimamente relacionadas entre si” (DV

2), exige de quem a transmite que assuma a mesma metodologia. O anúncio do Evangelho precisa

ser acompanhado por sinais que mostrem a sua visibilidade. Enfim, uma Igreja “em saída” é uma

comunidade que participa na construção de uma “cidade fiável” (LF 50). Somos chamados, antes

de mais nada, a criar aquelas relações interpessoais que favorecem a percepção verdadeira da

mensagem, colocando-nos ao serviço “da justiça, do direito e da paz” (LF 51). É a partir daqui

que se compreende a ação pastoral que o Papa Francisco quer transmitir aos cristãos: o Evangelho

é certamente um anúncio dirigido a todos, mas “«os pobres são os destinatários privilegiados do

Evangelho», e a evangelização dirigida gratuitamente a eles é sinal do Reino que Jesus veio

trazer” (EG 48). Construir implica, portanto, uma reflexão sobre a dimensão social da

evangelização. É um tema caro ao Papa Francisco, porque “se esta dimensão não for devidamente

explicitada, corre-se sempre o risco de desfigurar o sentido autêntico e integral da missão

evangelizadora” (EG 176). É o grande tema dos laços entre o anúncio do Evangelho e a promoção

da vida humana em todas as suas expressões. Uma promoção integral de cada pessoa que não

permite que a religião fique encerrada como se fosse um fato privado, sem qualquer incidência

na vida social e pública. Uma “fé autêntica comporta sempre um profundo desejo de mudar o

mundo” (EG 183). O Papa fala frequentemente disso com particular paixão evangélica,

consciente de que é aqui que se joga o futuro da humanidade: “a inclusão social dos pobres”.

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A nova evangelização impele a Igreja a assumir como sua missão “cooperar para

resolver as causas estruturais da pobreza e promover o desenvolvimento integral dos pobres”,

como também a de “gestos mais simples e diários de solidariedade para com as misérias muito

concretas” que, todos os dias, estão diante dos nossos olhos (cf. EG 188). É necessário, então,

reconhecer a “força salvífica” que os pobres possuem e que deve ser colocada no centro da vida

da Igreja com uma nova ação pastoral (cf. EG 198). Contudo, isto significa levar, antes de tudo

os cristãos, a redescobrir a urgência e a consciência desta temática. Ainda antes de qualquer

experiência concreta, é necessária uma nova sensibilidade e uma nova mentalidade. Não só. A

opção fundamental pelos pobres que é urgente pôr em prática, atesta o Papa Francisco, é antes

de mais nada a de uma “atenção espiritual” e “religiosa”; essa atenção tem prioridade sobre

qualquer outra forma (cf. EG 200). Sobre estes temas, a palavra do Papa é franca, dita com

parresia e sem devagações. Um “Pastor de uma Igreja sem fronteiras” (EG 210) não se pode

permitir a si mesmo de dirigir o seu olhar para outro lado. É por isso que, enquanto pede com

força para ter em conta o tema dos migrantes, denuncia com tanto mais clareza as novas formas

de escravidão: “Onde está aquele que estás matando cada dia na pequena fábrica clandestina, na

rede da prostituição, nas crianças usadas para a mendicidade, naquele que tem de trabalhar às

escondidas porque não foi regularizado? Não nos façamos de distraídos! Há muita

cumplicidade...” (EG 211). Foi justamente neste contexto que, enquanto se fechava a Porta Santa

em todas as catedrais do mundo, o Papa, em São Pedro, circundado por milhares de pessoas

socialmente excluídas, teve a intuição de lançar a Jornada Mundial dos Pobres. Não é mais uma

iniciativa, mas uma provocação à Igreja, para que dê voz aos pobres. Estamos estudando as

modalidades de atuação; mas a decisão do Papa de que será o Pontifício Conselho para a

Promoção da Nova Evangelização que se ocupará desta jornada indica já que ela é uma

verdadeira ação evangelizadora, para que se reconheça que no centro do Evangelho estão os

pobres.

Neste contexto, ganha espaço o terceiro verbo que exprime a identidade do batizado:

“confessar”. Antes de confessar a doutrina, parece dizer o Papa Francisco, é preciso professar o

amor misericordioso de Deus com a vida. A misericórdia se torna a palavra que carateriza o

pontificado do Papa Francisco e a nota caraterística da sua pregação. Somos chamados a dar

sinais de misericórdia, de modo a tornar evidente a credibilidade da nossa fé. Uma misericórdia

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que se estende às diversas situações de vida, da pessoal à comunitária, da familiar à social. Enfim,

é o amor de Deus que nunca se cansa de perdoar os que se aproximam dele e a ele recorrem para

ter o conforto do seu amor. A Igreja “Vive um desejo inexaurível de oferecer misericórdia, fruto

de ter experimentado a misericórdia infinita do Pai e a sua força difusiva” (EG 24).

A misericórdia, coração da evangelização

Transmitir a fé no contexto atual parte do fato de viver a experiência da misericórdia

como um encontro pessoal com o Senhor Jesus que chama à conversão. A misericórdia definida

pelo Papa Francisco, desde o início do seu pontificado, como a “arquitrave da vida da Igreja”,

esteve no centro do Ano Santo que acabamos de celebrar. Todo o intenso caminho deste Jubileu,

realmente extraordinário, é sintetizado pelo Papa Francisco nas duas palavras que deram título à

sua Carta Apostólica pós-jubilar: Misericordia et misera. Com estes dois termos, Agostinho pinta

a imagem final do encontro de Jesus com a mulher apanhada em flagrante adultério; depois de

Jesus ter respondido à insistente solicitação dos seus interlocutores com as palavras: “Aquele que

dentre vós está sem pecado seja o primeiro que lhe atire uma pedra” (Jo 8,7), todos foram embora

e ficaram só eles dois: a mísera e a misericordia. Nesta cena a misericórdia de Jesus prevaleceu

sobre tudo e sobre todos!

Com este ícone, o Papa Francisco deixa a todos uma forte provocação acerca do

comportamento a ter diante do pecador de todos os tempos: Deus acompanha sempre os que

sentem necessidade da sua proximidade e do seu amor. Nas palavras de Jesus não está presente

o julgamento de condenação, mas antes a profunda experiência da misericórdia que salva e

restitui uma nova vida.

Na Misericordia et misera não está presente uma abstração sobre o pecado, nem uma

teoria da misericórdia; mas é fornecida uma imagem concreta do pecador e de Cristo com a sua

Igreja. A pecadora não tem nome, e identifica-se, justamente por isso, com cada um de nós; o

rosto bom e a voz pacata e convincente de Cristo, tal como salta do relato evangélico, são as

mesmas características que cada sacerdote é chamado a fazer suas, para que o encontro no

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sacramento da reconciliação possa ser percebido concretamente como um momento palpável de

misericórdia gratuita.

O apelo do Papa Francisco é forte: “A Igreja vive um desejo inexaurível de oferecer

misericórdia”, para que a misericórdia não se fique por um “parêntesis na vida da Igreja”, mas

constitua a sua própria existência, que torna visível e palpável a verdade profunda do Evangelho

(cf. MM 1).

Viver a misericórdia mostra-se, por isso, um verdadeiro desafio diante das sempre

novas pobrezas, que equivale a colher a inexaurível expressividade da misericórdia que, com os

seus múltiplos rostos, permite que qualquer pessoa sinta a proximidade e a consolação de Deus.

Um desafio para restituir dignidade àqueles que dela foram privados, tornando-os nus e sós,

privados do necessário para viver e viver uma existência humana digna deste nome. É o “carácter

social” da misericórdia que torna possível um compromisso na Igreja e no mundo, para

transformar e realizar tudo em vista da renovação final.

A riqueza do Ano Santo permitiu que, em todas as comunidades, se reencontrasse o

entusiasmo e, com razão, a misericórdia voltou a ficar no centro. A vontade do Papa Francisco

que a misericórdia afaste a tristeza e encha de alegria é mais que um desejo; é uma exortação de

compromisso dirigida aos crentes, para que sejam testemunhas coerentes dos frutos realizados

pela presença do Espírito Santo: “Não entristeçamos o Espírito que indica sempre novas sendas

a percorrer para levar a todos o Evangelho da salvação” (MM 5). Enfim, a misericórdia como

um estilo de vida do dia-a-dia.

Compreende-se porque, neste contexto, o Papa convide a Igreja a refletir seriamente

sobre o tema da família, que é tido como central. Entre as tantas crises em curso, está sem dúvida

também a da família, à qual deve chegar, da nossa parte, uma palavra de consolação e de

encorajamento (cf. Amoris laetitia 33-35). Diante das tantas problemáticas de hoje, o Papa

Francisco sustenta que se afirme que “A alegria do amor que se vive nas famílias é também o

júbilo da Igreja” (Amoris laetitia 1). A Misericordia et misera faz eco da Amoris laetitia (cfr Al

291-300) quando define a família como o “o lugar privilegiado onde se vive a misericórdia”

comprometendo, assim, “a comunidade cristã e toda a atividade pastoral para pôr em realce o

grande valor propositivo da família” (MM 14). Além disso, o Papa Francisco lembra “a riqueza

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e o peso da sua própria história” (MM 14). Trata-se de uma observação que impõe que sobretudo

o sacerdote realize um profundo discernimento, para que ninguém se sinta excluído da

comunidade cristã.

O compromisso na formação é de igual forma fundamental para a transmissão da fé

que vê cada crente recuperar a sua identidade e redescobrir a importância da pertença a uma

comunidade, e à Igreja. Lembra o Papa Francisco que: “quem crê nunca está sozinho”, porque

“é impossível crer sozinhos” (LF 39). Uma pastoral que se compromete a levar a redescobrir a

beleza da evangelização é uma pastoral que sabe olhar para os vários momentos da formação

como espaço para a missão. A importância do catecumenato (cf. LF 45), a redescoberta da

catequese kerigmática e mistagógica (cf. EG 163-166), a exigência do acompanhamento pessoal

para superar o anonimato que se alastra (cf. EG 169-173), a redescoberta das diversas formas

que exprimem a beleza sagrada (cf. EG 167), são expressões concretas com as quais a

comunidade cristã pode se comprometer, para tornar fecunda a sua pastoral. Na Amoris laetitia,

recorda-se como justamente a formação dos namorados, em vista do matrimônio, é uma tarefa

de toda a comunidade cristã: “A complexa realidade social e os desafios, que a família é chamada

a enfrentar atualmente, exigem um empenhamento maior de toda a comunidade cristã na

preparação dos noivos para o matrimônio” (AL 206). Depois, do mesmo modo, novamente à

comunidade cristã é confiada a proximidade aos divorciados que voltaram a casar: “Quanto às

pessoas divorciadas que vivem numa nova união, é importante fazer-lhes sentir que fazem parte

da Igreja, que «não estão excomungadas» nem são tratadas como tais, porque sempre integram

a comunhão eclesial. … Cuidar delas não é, para a comunidade cristã, um enfraquecimento da

sua fé e do seu testemunho sobre a indissolubilidade do matrimônio; antes, ela exprime

precisamente neste cuidado a sua caridade” (AL 243). Tal como àqueles que perderam

prematuramente o cônjuge: “Aqueles que já não podem contar com a presença de familiares a

quem se dedicar e de quem receber carinho e proximidade, a comunidade cristã deve sustentá-

los com particular atenção e disponibilidade, sobretudo se vivem em condições de indigência”

(AL 254).

É por esta mesma razão, lembra o Papa Francisco, que é necessário superar as

tentações fáceis que ameaçam a nova evangelização na sua base. Em primeiro lugar, na

recuperação da própria identidade é bom que se abandone os vários complexos de inferioridade

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que levam, depois, a “esconder a sua identidade cristã e as suas convicções… que acabam por

sufocar a alegria da missão numa espécie de obsessão por serem como todos os outros e terem o

que os outros possuem” (EG 79). Com efeito, este comportamento leva os cristãos a cair num

“relativismo ainda mais perigoso que o doutrinal” (EG 80), porque corrompe diretamente o seu

estilo de vida. Também no que se refere à temática da família, o Papa Francisco lembra que “a

Igreja não deve, de modo algum, renunciar a propor o ideal pleno do matrimônio, o projeto de

Deus em toda a sua grandeza… A tibieza, qualquer forma de relativismo ou um excessivo

respeito na hora de propor o sacramento seriam uma falta de fidelidade ao Evangelho e também

uma falta de amor da Igreja pelos próprios jovens. A compreensão pelas situações excepcionais

não implica jamais esconder a luz do ideal mais pleno, nem propor menos de quanto Jesus oferece

ao ser humano. Hoje, mais importante do que uma pastoral dos fracassos é o esforço pastoral

para consolidar os matrimônios e assim evitar as rupturas” (AL 307).

Ora, deste modo, acontece que, em muitas expressões da nossa pastoral, as iniciativas

se ressentem do peso, porque se coloca em primeiro lugar a atividade e não a pessoa. Afirma o

Papa que a tentação de uma “despersonalização da pessoa”, para se favorecer a organização, é

real e comum na pastoral. Na mesma linha, os desafios na evangelização deveriam ser acolhidos

mais como uma chance de crescer do que como um motivo para cair em depressão. É, então,

proibida a “sensação de derrota” (EG 85). É importante recuperar a relação interpessoal, para

que esta tenha primado sobre a tecnologia do encontro feito de telecomando na mão, para

estabelecer como, onde, quando e durante quanto tempo encontrar-se com os outros partindo das

próprias preferências (cf. EG 88). Entre estes desafios, contudo, para além dos habituais e mais

difundidos, é preciso escolher aqueles que têm um valor mais direto para a vida. O sentido da

“precariedade do dia-a-dia, com funestas consequências”, as várias formas de “disparidade

social”, o “fetichismo do dinheiro e a ditadura de uma economia sem rosto”, a “exasperação do

consumo” e o “consumismo desenfreado”... enfim, estamos diante de uma “globalização da

indiferença” e de um “desprezo sarcástico” em relação à ética, com uma tentativa constante de

marginalizar qualquer chamada de atenção crítica em relação ao predomínio do mercado sobre a

real possibilidade de se estar a favor dos pobres (cf. EG 52-64). Se, hoje, a Igreja ainda goza de

uma forte credibilidade em tantos países do mundo, mesmo nos lugares onde é uma minoria, isso

se deve à sua obra de caridade e de solidariedade (cf. EG 65). O risco de uma “Igreja mundana

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sob vestes espirituais ou pastorais” (EG 96), não é recôndito, mas real. É, por isso, necessário

não sucumbir diante destas tentações, mas dar o “testemunho de comunhão fraterna, que se torne

fascinante e resplandecente” (EG 99). Numa palavra: “Peçamos ao Senhor que nos faça

compreender a lei do amor” (EG 101). E este ensinamento se concretiza no rosto das muitas

pessoas que temos perto de nós, de modo particular naquelas que se encontram em necessidade,

e para quem somos chamados a tornar-nos “artífices de misericórdia”. Por isso mesmo não nos

serve uma “teoria da misericórdia”, mas sobretudo recuperar as obras de misericórdia enquanto

projeto de vida que cada um deve assumir para colocar em prática uma verdadeira “revolução

cultural” (cf. MM 20).

Conclusão

Prolongando o ensinamento da Evangelii nuntiandi de Paulo VI, o Papa Francisco

pede que se volte a colocar no centro a pessoa de Jesus Cristo, o primo evangelizador. Lembra-

nos que a Igreja existe para evangelizar e que cada batizado é chamado a participar na obra da

salvação. Cada Igreja particular, conhecendo em primeira mão os desafios e as oportunidades do

seu próprio contexto cultural, saberá propor os aspectos peculiares da nova evangelização no seu

próprio país. Depois, em comunhão com toda a Igreja, somos convidados a não nos isolarmos,

mas a perceber a importância de caminhar juntos, para exprimir da melhor forma a vocação à

unidade. É, por isso, necessário “concentrar-se no essencial” (EG 35) e saber que somente uma

dimensão unitária, progressiva e proporcional da evangelização pode verdadeiramente servir de

ajuda. Isso implica voltar a dar o centro da nossa pastoral ao amor. Fora desta perspectiva, “o

edifício moral da Igreja corre o risco de se tornar um castelo de cartas, sendo este o nosso pior

perigo” (EG 39). É, portanto, importante trazer de volta a misericórdia para o centro da nossa

vida. Isso implica uma “cultura de misericórdia, com base na redescoberta do encontro com os

outros: uma cultura na qual ninguém olhe para o outro com indiferença, nem vire a cara quando

vê o sofrimento dos irmãos” (Misericordia et misera 20).

“Não deixemos que nos roubem a alegria da evangelização!” (EG 83). É clara,

imediata, sem retórica nem subentendidos, esta linguagem com que o Papa Francisco nos fala,

transportando-nos até ao cerne dos problemas que o homem de hoje vive e que, da parte da Igreja,

Curso anual dos bispos do Brasil - 2017

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requerem muito mais do que uma simples presença. O que se pede à Igreja é uma práxis pastoral

renovada, que evidencie o seu compromisso a favor da evangelização. O Evangelho precisa

chegar a todos, sem qualquer tipo de exclusão. A palavra do Evangelho é uma palavra de

esperança para todas as pessoas: “Não fujamos da ressurreição de Jesus; nunca nos demos por

vencidos, suceda o que suceder” (EG 3). A Igreja que o Papa Francisco nos indica é, afinal, uma

Igreja que se faz companheira daqueles que, entre os nossos contemporâneos, estão à procura de

Deus com o desejo de o ver.