Jauss, Robert Hans - A história da literatura como provocação a teoria literária
Uma Igreja em saída”: a provocação do Papa...
Transcript of Uma Igreja em saída”: a provocação do Papa...
Curso anual dos bispos do Brasil - 2017
- 1 -
2017
Uma Igreja em “saída”:
a provocação do Papa Francisco
D. Rino Fisichella
Presidente do Pontifício Conselho para a Promoção da Nova Evangelização
Estamos vivendo um pontificado muito intenso do ponto de vista dos sinais que o
Papa Francisco coloca diante dos nossos olhos quase diariamente. Falar de uma “Igreja em saída”
engloba uma reflexão sobre quem é a Igreja, a sua natureza missionária; para onde devemos ir,
depois de ter passado a fronteira; e como voltar a ser uma comunidade que celebra a eucaristia
como memória viva e eficaz da pessoa de Cristo na nossa história e na vida pessoal de cada um.
Para entrar no cerne desta questão, podemos considerar três aspetos que me parecem
determinantes no magistério do Papa Francisco. Antes de mais, o chamado à fé; depois, o
ensinamento que emerge da Evangelii gaudium e, por fim, o tema da misericórdia como o
coração pulsante da nova evangelização.
A fé vem do amor
Não creio que esteja enganado, se procurar reler estes anos de pontificado do Papa
Francisco à luz do amor. Tanto a sua primeira encíclica, Lumen fidei, como a Evangelii gaudium
fazem emergir o tema do amor. Não podia ser de outro modo. O coração da fé é o amor trinitário
de Deus que se revela em Jesus Cristo, aquele que está na origem da fé e que a leva ao seu
cumprimento (cf. Hb 12,2). De fato, o ensinamento do Papa Francisco parece que progride em
torno de uma impressionante circularidade: o amor que gera a fé e a fé que sustenta o amor. Do
mesmo modo que existe a “luz da fé”, somos colocados também diante da “luz do amor” (LF
34). Parece que o Papa Francisco nos diz que, para entrar com coerência no conhecimento dos
2
Curso anual dos bispos do Brasil - 2017
- 2 -
conteúdos da fé e dar testemunho, é preciso armar-se com as “razões do coração”. Estas permitem
que se entre na complexa temática teológica do conhecimento mediante a fé que, para o Papa
Francisco, se relê à luz do conhecimento mediante o amor. É o amor o fundamento que consente
que os crentes construam a sua vida sobre a rocha e não sobre a instabilidade da areia. Quem
acredita é aquele que é amado! O amor abre a um conhecimento de uma verdade primeira,
inesperada e imprevista, mas que se torna real e visível. É o amor que permite reconhecer as
necessidades dos outros, não enquanto realidade estranha, mas como irmãos que sofrem e estão
em necessidade. O mistério da Encarnação do Filho de Deus oferece um horizonte de sentido
completo a esta perspetiva, porque a partilha da nossa natureza humana por parte de Jesus Cristo,
permite que o amor de Deus se revele em toda a sua novidade e originalidade. É profundamente
verdadeiro o que o Papa escreve a este respeito: “Só assim, através da encarnação, através da
partilha da nossa humanidade, podia chegar à plenitude o conhecimento próprio do amor” (LF
31). Na mesma linha, quase fazendo eco destas palavras, encontramos na Evangelii gaudium:
“Somente graças a este encontro – ou reencontro – com o amor de Deus, que se converte em
amizade feliz, é que somos resgatados da nossa consciência isolada e da autorreferencialidade.
Chegamos a ser plenamente humanos, quando somos mais do que humanos, quando permitimos
a Deus que nos conduza para além de nós mesmos a fim de alcançarmos o nosso ser mais
verdadeiro. Aqui está a fonte da ação evangelizadora. Porque, se alguém acolheu este amor que
lhe devolve o sentido da vida, como é que pode conter o desejo de o comunicar aos outros?” (EG
8). Enfim, parafraseando, poderia dizer-se com o Beato J.H. Newman: cor ad cor loquitur, o
coração fala ao coração para se tornar um único coração.
“Tocar com o coração, isto é crer” (LF 31), afirma o Santo Padre citando Santo
Agostinho. Não se poderia encontrar uma expressão mais plástica do que esta para descrever a
gênese da fé. É a graça que transforma o coração e dá início à fede: gratia facit fidem. Isto
significa que o primeiro movimento provém sempre de Deus que chama a si e se deixa ver e
tocar. Neste movimento, a graça permite que se possa reconhecer a presença de Deus. É por isso
que “toca” o coração, porque o abre de par em par para um conhecimento mais profundo. Numa
palavra, o coração tocado pelo Espírito permite que se reconheça Jesus como o Cristo, o Filho
de Deus e o Senhor. Este tema é recorrente no Papa Francisco. Na Evangelii gaudium, detém-se
de forma mais direta neste aspecto, quando escreve: “Primeirear – desculpai o neologismo –,
Curso anual dos bispos do Brasil - 2017
- 3 -
tomar a iniciativa! A comunidade missionária experimenta que o Senhor tomou a iniciativa,
precedeu-a no amor (cf. 1Jo 4,10), e, por isso, ela sabe ir à frente, sabe tomar a iniciativa sem
medo, ir ao encontro, procurar os afastados e chegar às encruzilhadas dos caminhos para convidar
os excluídos” (EG 24).
Além disso, reler a fé em relação ao amor permite que o Papa evidencie a própria
natureza da verdade a que se abandonam os que creem. A verdade iluminada pelo amor torna
seguro o caminho. Sem esta verdade, estaria sempre alerta a crítica de acreditar numa “linda
fábula” ou de ceder à “projeção dos nossos desejos” (LF 24). É a mesma dimensão que está
presente na Evangelii gaudium, em que o Papa Francisco evidencia os limites de uma pastoral
que, não brotando do amor, apenas se torna um narcisismo autorreferencial. É o tema da “acédia
pastoral” (EG 82) que cai na tentação de “excesso de atividades”, já privadas de espiritualidade
que dá força e fundamento. A fé gerada pelo amor, pelo contrário, procura a verdade e a deseja
enquanto expressão de um conhecimento mais profundo e mais genuíno. A referência da Lumen
fidei a um autor como Guilherme de Saint Thierry, permite que o Papa evidencie a unidade
profunda entre crer, amar e evangelizar, e leva a assumir uma nova lógica para o nosso
conhecimento: “Estes dois olhos são a razão crente e o amor, que se tornam um único olhar para
chegar à contemplação de Deus” (LF 27).
O primado da contemplação
Pode-se partir justamente desta consideração para recuperar um conteúdo
importante do ensinamento do Papa Francisco na evangelização. A contemplação ocupa o
primeiro lugar. Encontra-se um primeiro aceno a esta perspectiva na Homilia que o Papa
pronunciou durante o Ano da Fé, no seu encontro com os seminaristas e as noviças. Nessa
ocasião, disse: “A evangelização faz-se de joelhos”. É assim mesmo. O Papa Francisco está
convencido do primado da contemplação sobre a ação. Por várias vezes, exprime esta dimensão
na Evangelii gaudium. Para não “correr em vão” (Gl 2,2) na via da evangelização, é necessário
fixar-se no essencial, deter o olhar no rosto de Cristo. É esta a verdadeira contemplação e é este
o “primeiro anúncio” que cada cristão é chamado a fazer. Viver de Cristo para saber comunicá-
lo e fazer com que os outros tomem parte nele. É verdade o que se lê na Evangelii gaudium:
Curso anual dos bispos do Brasil - 2017
- 4 -
“Colocados diante dele com o coração aberto, deixando que Ele nos olhe, reconhecemos aquele
olhar de amor que descobriu Natanael no dia em que Jesus se fez presente e lhe disse: «Eu te vi,
quando estavas debaixo da figueira!» (Jo 1,48). Como é doce permanecer diante de um crucifixo
ou de joelhos diante do Santíssimo Sacramento, e fazê-lo simplesmente para estar à frente dos
seus olhos! Como nos faz bem deixar que Ele volte a tocar a nossa vida e nos envie para
comunicar a sua vida nova! Sucede então que, em última análise, «o que nós vimos e ouvimos,
isso anunciamos» (1Jo 1,3). A melhor motivação para se decidir a comunicar o Evangelho é
contemplá-lo com amor, é deter-se nas suas páginas e lê-lo com o coração. Se o abordamos desta
maneira, a sua beleza nos deslumbra, volta a nos cativar constantemente. Por isso, é urgente
recuperar um espírito contemplativo, que nos permita redescobrir, cada dia, que somos
depositários de um bem que humaniza, que ajuda a levar uma vida nova. Não há nada de melhor
para transmitir aos outros” (EG 264).
Por isso, só na medida em que se vive desta força que vem do alto, é que se torna
possível realizar aquilo que o Papa Francisco chama a “mística da fraternidade”. Não uma
fraternidade generalizada, privada de referências a Deus, que nos deixaria num estado de mero
compromisso social imanente, mas uma fraternidade que ganha força a partir do fundamento
encontrado em Cristo e na sua solidariedade com toda a humanidade. Uma fraternidade, então,
que é transformada pela mística e que se orienta pelo exemplo de Jesus Cristo: “Neste tempo em
que as redes e demais instrumentos da comunicação humana alcançaram progressos inauditos,
sentimos o desafio de descobrir e transmitir a «mística» de viver juntos, misturar-nos, encontrar-
nos, dar o braço, apoiar-nos, participar nesta maré um pouco caótica que pode transformar-se
numa verdadeira experiência de fraternidade, numa caravana solidária, numa peregrinação
sagrada” (EG 87). E de maneira ainda mais direta: “Quando vivemos a mística de nos aproximar
dos outros com a intenção de procurar o seu bem, ampliamos o nosso interior para receber os
mais belos dons do Senhor. Cada vez que nos encontramos com um ser humano no amor, ficamos
capazes de descobrir algo de novo sobre Deus” (EG 272).
A via da contemplação do rosto de Cristo, que nos permite fixar-nos no próprio
rosto de Deus, não nos desvia para caminhos solitários, mas nos impõe uma contemplação do
irmão. O Papa Francisco é provocador, mas aponta o dedo para aquilo que, não raro, fica
esquecido: “A contemplação que deixa de fora os outros é uma farsa” (EG 281). A contemplação
Curso anual dos bispos do Brasil - 2017
- 5 -
é, portanto, um comportamento global. Ela incide sobre o crente em toda a sua existência, sem
permitir qualquer esquizofrenia. “Contemplativos da Palavra e contemplativos do povo de
Deus”. Enfim, o verdadeiro evangelizador é aquele que sabe colher os sinais da presença de
Deus na história, no lugar onde vive cada um, para saber discernir e para poder transformar o
mundo à luz do Evangelho.
A memória viva
Um outro tema qualificante parece-me que seja o da transmissão da fé. Uma
problemática muito sentida nos nossos dias e que envolve de modo direto cada cristão e a sua
pertença à Igreja. A transmissão da fé é, provavelmente, o compromisso que somos chamados a
fazer com profunda responsabilidade como forma de nova evangelização.
Entra-se, assim, no grande capítulo do compromisso do cristão no mundo. A fé
obriga o crente, efetivamente, a assumir a sua responsabilidade de transformar o mundo. Não
podemos esquecer o primeiro discurso de Francisco, apenas eleito Papa. A indicação que deu à
Igreja naquele dia 14 de março foi desde logo muito clara. A síntese encontra-se nos três verbos:
caminhar, construir, confessar. A identidade do crente está em caminhar no mundo, fazendo
companhia aos nossos contemporâneos; não está em ficar encerrados nas nossas paróquias,
sentados à secretária: “A Igreja «em saída» é uma Igreja com as portas abertas. Sair em direção
aos outros para chegar às periferias humanas não significa correr pelo mundo sem direção nem
sentido. Muitas vezes é melhor diminuir o ritmo, pôr à parte a ansiedade para olhar nos olhos e
escutar, ou renunciar às urgências para acompanhar quem ficou caído à beira do caminho. Às
vezes, é como o pai do filho pródigo, que continua com as portas abertas para, quando este voltar,
poder entrar sem dificuldade” (EG 46). Por isso, a nossa pastoral tende a transformar as nossas
comunidades numa Igreja chamada a “sair” de si mesma para ir ao encontro dos outros. Aquilo
que o Papa nos pede neste momento histórico é “a dinâmica do êxodo e do dom, de sair de si
mesmo, de caminhar e de semear sempre de novo, sempre mais além” (EG 21). Enfim, a Igreja
que deve fazer sua “a intimidade de Jesus que é uma intimidade itinerante” (EG 23). Ela não se
encontra num beco sem saída, mas caminha sobre as mesmas pisadas de Cristo (cf. 1Pd 2,21);
por isso, tem a certeza do caminho a fazer e da meta a alcançar. Isto não lhe amedronta; ela sabe
Curso anual dos bispos do Brasil - 2017
- 6 -
que deve “ir ao encontro, procurar os afastados e chegar às encruzilhadas dos caminhos para
convidar os excluídos” (EG 24). Para que isto aconteça, o Papa Francisco repropõe com força a
exigência da “conversão pastoral”, que significa passar de uma visão burocrática, estática e
administrativa da pastoral para uma perspectiva missionária; mais, uma pastoral em permanente
estado de missão (EG 25). Tal como, de fato, há estruturas que facilitam e apoiam a pastoral
missionária, infelizmente também “há estruturas eclesiais que podem chegar a condicionar um
dinamismo evangelizador” (EG 26). A presença de práticas pastorais retrógradas e antiquadas
obriga, portanto, à audácia de ser criativos para repensar a evangelização.
A caraterística seguinte para a identidade do cristão será determinada pelo segundo
verbo, “construir” para dar ao anúncio do Evangelho um rosto digno de fé. A palavra é, então,
acompanhada pelo sinal que a concretiza. Como se vê, estamos plenamente na lógica evangélica:
a Revelação que acontece por meio de “ações e palavras intimamente relacionadas entre si” (DV
2), exige de quem a transmite que assuma a mesma metodologia. O anúncio do Evangelho precisa
ser acompanhado por sinais que mostrem a sua visibilidade. Enfim, uma Igreja “em saída” é uma
comunidade que participa na construção de uma “cidade fiável” (LF 50). Somos chamados, antes
de mais nada, a criar aquelas relações interpessoais que favorecem a percepção verdadeira da
mensagem, colocando-nos ao serviço “da justiça, do direito e da paz” (LF 51). É a partir daqui
que se compreende a ação pastoral que o Papa Francisco quer transmitir aos cristãos: o Evangelho
é certamente um anúncio dirigido a todos, mas “«os pobres são os destinatários privilegiados do
Evangelho», e a evangelização dirigida gratuitamente a eles é sinal do Reino que Jesus veio
trazer” (EG 48). Construir implica, portanto, uma reflexão sobre a dimensão social da
evangelização. É um tema caro ao Papa Francisco, porque “se esta dimensão não for devidamente
explicitada, corre-se sempre o risco de desfigurar o sentido autêntico e integral da missão
evangelizadora” (EG 176). É o grande tema dos laços entre o anúncio do Evangelho e a promoção
da vida humana em todas as suas expressões. Uma promoção integral de cada pessoa que não
permite que a religião fique encerrada como se fosse um fato privado, sem qualquer incidência
na vida social e pública. Uma “fé autêntica comporta sempre um profundo desejo de mudar o
mundo” (EG 183). O Papa fala frequentemente disso com particular paixão evangélica,
consciente de que é aqui que se joga o futuro da humanidade: “a inclusão social dos pobres”.
Curso anual dos bispos do Brasil - 2017
- 7 -
A nova evangelização impele a Igreja a assumir como sua missão “cooperar para
resolver as causas estruturais da pobreza e promover o desenvolvimento integral dos pobres”,
como também a de “gestos mais simples e diários de solidariedade para com as misérias muito
concretas” que, todos os dias, estão diante dos nossos olhos (cf. EG 188). É necessário, então,
reconhecer a “força salvífica” que os pobres possuem e que deve ser colocada no centro da vida
da Igreja com uma nova ação pastoral (cf. EG 198). Contudo, isto significa levar, antes de tudo
os cristãos, a redescobrir a urgência e a consciência desta temática. Ainda antes de qualquer
experiência concreta, é necessária uma nova sensibilidade e uma nova mentalidade. Não só. A
opção fundamental pelos pobres que é urgente pôr em prática, atesta o Papa Francisco, é antes
de mais nada a de uma “atenção espiritual” e “religiosa”; essa atenção tem prioridade sobre
qualquer outra forma (cf. EG 200). Sobre estes temas, a palavra do Papa é franca, dita com
parresia e sem devagações. Um “Pastor de uma Igreja sem fronteiras” (EG 210) não se pode
permitir a si mesmo de dirigir o seu olhar para outro lado. É por isso que, enquanto pede com
força para ter em conta o tema dos migrantes, denuncia com tanto mais clareza as novas formas
de escravidão: “Onde está aquele que estás matando cada dia na pequena fábrica clandestina, na
rede da prostituição, nas crianças usadas para a mendicidade, naquele que tem de trabalhar às
escondidas porque não foi regularizado? Não nos façamos de distraídos! Há muita
cumplicidade...” (EG 211). Foi justamente neste contexto que, enquanto se fechava a Porta Santa
em todas as catedrais do mundo, o Papa, em São Pedro, circundado por milhares de pessoas
socialmente excluídas, teve a intuição de lançar a Jornada Mundial dos Pobres. Não é mais uma
iniciativa, mas uma provocação à Igreja, para que dê voz aos pobres. Estamos estudando as
modalidades de atuação; mas a decisão do Papa de que será o Pontifício Conselho para a
Promoção da Nova Evangelização que se ocupará desta jornada indica já que ela é uma
verdadeira ação evangelizadora, para que se reconheça que no centro do Evangelho estão os
pobres.
Neste contexto, ganha espaço o terceiro verbo que exprime a identidade do batizado:
“confessar”. Antes de confessar a doutrina, parece dizer o Papa Francisco, é preciso professar o
amor misericordioso de Deus com a vida. A misericórdia se torna a palavra que carateriza o
pontificado do Papa Francisco e a nota caraterística da sua pregação. Somos chamados a dar
sinais de misericórdia, de modo a tornar evidente a credibilidade da nossa fé. Uma misericórdia
Curso anual dos bispos do Brasil - 2017
- 8 -
que se estende às diversas situações de vida, da pessoal à comunitária, da familiar à social. Enfim,
é o amor de Deus que nunca se cansa de perdoar os que se aproximam dele e a ele recorrem para
ter o conforto do seu amor. A Igreja “Vive um desejo inexaurível de oferecer misericórdia, fruto
de ter experimentado a misericórdia infinita do Pai e a sua força difusiva” (EG 24).
A misericórdia, coração da evangelização
Transmitir a fé no contexto atual parte do fato de viver a experiência da misericórdia
como um encontro pessoal com o Senhor Jesus que chama à conversão. A misericórdia definida
pelo Papa Francisco, desde o início do seu pontificado, como a “arquitrave da vida da Igreja”,
esteve no centro do Ano Santo que acabamos de celebrar. Todo o intenso caminho deste Jubileu,
realmente extraordinário, é sintetizado pelo Papa Francisco nas duas palavras que deram título à
sua Carta Apostólica pós-jubilar: Misericordia et misera. Com estes dois termos, Agostinho pinta
a imagem final do encontro de Jesus com a mulher apanhada em flagrante adultério; depois de
Jesus ter respondido à insistente solicitação dos seus interlocutores com as palavras: “Aquele que
dentre vós está sem pecado seja o primeiro que lhe atire uma pedra” (Jo 8,7), todos foram embora
e ficaram só eles dois: a mísera e a misericordia. Nesta cena a misericórdia de Jesus prevaleceu
sobre tudo e sobre todos!
Com este ícone, o Papa Francisco deixa a todos uma forte provocação acerca do
comportamento a ter diante do pecador de todos os tempos: Deus acompanha sempre os que
sentem necessidade da sua proximidade e do seu amor. Nas palavras de Jesus não está presente
o julgamento de condenação, mas antes a profunda experiência da misericórdia que salva e
restitui uma nova vida.
Na Misericordia et misera não está presente uma abstração sobre o pecado, nem uma
teoria da misericórdia; mas é fornecida uma imagem concreta do pecador e de Cristo com a sua
Igreja. A pecadora não tem nome, e identifica-se, justamente por isso, com cada um de nós; o
rosto bom e a voz pacata e convincente de Cristo, tal como salta do relato evangélico, são as
mesmas características que cada sacerdote é chamado a fazer suas, para que o encontro no
Curso anual dos bispos do Brasil - 2017
- 9 -
sacramento da reconciliação possa ser percebido concretamente como um momento palpável de
misericórdia gratuita.
O apelo do Papa Francisco é forte: “A Igreja vive um desejo inexaurível de oferecer
misericórdia”, para que a misericórdia não se fique por um “parêntesis na vida da Igreja”, mas
constitua a sua própria existência, que torna visível e palpável a verdade profunda do Evangelho
(cf. MM 1).
Viver a misericórdia mostra-se, por isso, um verdadeiro desafio diante das sempre
novas pobrezas, que equivale a colher a inexaurível expressividade da misericórdia que, com os
seus múltiplos rostos, permite que qualquer pessoa sinta a proximidade e a consolação de Deus.
Um desafio para restituir dignidade àqueles que dela foram privados, tornando-os nus e sós,
privados do necessário para viver e viver uma existência humana digna deste nome. É o “carácter
social” da misericórdia que torna possível um compromisso na Igreja e no mundo, para
transformar e realizar tudo em vista da renovação final.
A riqueza do Ano Santo permitiu que, em todas as comunidades, se reencontrasse o
entusiasmo e, com razão, a misericórdia voltou a ficar no centro. A vontade do Papa Francisco
que a misericórdia afaste a tristeza e encha de alegria é mais que um desejo; é uma exortação de
compromisso dirigida aos crentes, para que sejam testemunhas coerentes dos frutos realizados
pela presença do Espírito Santo: “Não entristeçamos o Espírito que indica sempre novas sendas
a percorrer para levar a todos o Evangelho da salvação” (MM 5). Enfim, a misericórdia como
um estilo de vida do dia-a-dia.
Compreende-se porque, neste contexto, o Papa convide a Igreja a refletir seriamente
sobre o tema da família, que é tido como central. Entre as tantas crises em curso, está sem dúvida
também a da família, à qual deve chegar, da nossa parte, uma palavra de consolação e de
encorajamento (cf. Amoris laetitia 33-35). Diante das tantas problemáticas de hoje, o Papa
Francisco sustenta que se afirme que “A alegria do amor que se vive nas famílias é também o
júbilo da Igreja” (Amoris laetitia 1). A Misericordia et misera faz eco da Amoris laetitia (cfr Al
291-300) quando define a família como o “o lugar privilegiado onde se vive a misericórdia”
comprometendo, assim, “a comunidade cristã e toda a atividade pastoral para pôr em realce o
grande valor propositivo da família” (MM 14). Além disso, o Papa Francisco lembra “a riqueza
Curso anual dos bispos do Brasil - 2017
- 10 -
e o peso da sua própria história” (MM 14). Trata-se de uma observação que impõe que sobretudo
o sacerdote realize um profundo discernimento, para que ninguém se sinta excluído da
comunidade cristã.
O compromisso na formação é de igual forma fundamental para a transmissão da fé
que vê cada crente recuperar a sua identidade e redescobrir a importância da pertença a uma
comunidade, e à Igreja. Lembra o Papa Francisco que: “quem crê nunca está sozinho”, porque
“é impossível crer sozinhos” (LF 39). Uma pastoral que se compromete a levar a redescobrir a
beleza da evangelização é uma pastoral que sabe olhar para os vários momentos da formação
como espaço para a missão. A importância do catecumenato (cf. LF 45), a redescoberta da
catequese kerigmática e mistagógica (cf. EG 163-166), a exigência do acompanhamento pessoal
para superar o anonimato que se alastra (cf. EG 169-173), a redescoberta das diversas formas
que exprimem a beleza sagrada (cf. EG 167), são expressões concretas com as quais a
comunidade cristã pode se comprometer, para tornar fecunda a sua pastoral. Na Amoris laetitia,
recorda-se como justamente a formação dos namorados, em vista do matrimônio, é uma tarefa
de toda a comunidade cristã: “A complexa realidade social e os desafios, que a família é chamada
a enfrentar atualmente, exigem um empenhamento maior de toda a comunidade cristã na
preparação dos noivos para o matrimônio” (AL 206). Depois, do mesmo modo, novamente à
comunidade cristã é confiada a proximidade aos divorciados que voltaram a casar: “Quanto às
pessoas divorciadas que vivem numa nova união, é importante fazer-lhes sentir que fazem parte
da Igreja, que «não estão excomungadas» nem são tratadas como tais, porque sempre integram
a comunhão eclesial. … Cuidar delas não é, para a comunidade cristã, um enfraquecimento da
sua fé e do seu testemunho sobre a indissolubilidade do matrimônio; antes, ela exprime
precisamente neste cuidado a sua caridade” (AL 243). Tal como àqueles que perderam
prematuramente o cônjuge: “Aqueles que já não podem contar com a presença de familiares a
quem se dedicar e de quem receber carinho e proximidade, a comunidade cristã deve sustentá-
los com particular atenção e disponibilidade, sobretudo se vivem em condições de indigência”
(AL 254).
É por esta mesma razão, lembra o Papa Francisco, que é necessário superar as
tentações fáceis que ameaçam a nova evangelização na sua base. Em primeiro lugar, na
recuperação da própria identidade é bom que se abandone os vários complexos de inferioridade
Curso anual dos bispos do Brasil - 2017
- 11 -
que levam, depois, a “esconder a sua identidade cristã e as suas convicções… que acabam por
sufocar a alegria da missão numa espécie de obsessão por serem como todos os outros e terem o
que os outros possuem” (EG 79). Com efeito, este comportamento leva os cristãos a cair num
“relativismo ainda mais perigoso que o doutrinal” (EG 80), porque corrompe diretamente o seu
estilo de vida. Também no que se refere à temática da família, o Papa Francisco lembra que “a
Igreja não deve, de modo algum, renunciar a propor o ideal pleno do matrimônio, o projeto de
Deus em toda a sua grandeza… A tibieza, qualquer forma de relativismo ou um excessivo
respeito na hora de propor o sacramento seriam uma falta de fidelidade ao Evangelho e também
uma falta de amor da Igreja pelos próprios jovens. A compreensão pelas situações excepcionais
não implica jamais esconder a luz do ideal mais pleno, nem propor menos de quanto Jesus oferece
ao ser humano. Hoje, mais importante do que uma pastoral dos fracassos é o esforço pastoral
para consolidar os matrimônios e assim evitar as rupturas” (AL 307).
Ora, deste modo, acontece que, em muitas expressões da nossa pastoral, as iniciativas
se ressentem do peso, porque se coloca em primeiro lugar a atividade e não a pessoa. Afirma o
Papa que a tentação de uma “despersonalização da pessoa”, para se favorecer a organização, é
real e comum na pastoral. Na mesma linha, os desafios na evangelização deveriam ser acolhidos
mais como uma chance de crescer do que como um motivo para cair em depressão. É, então,
proibida a “sensação de derrota” (EG 85). É importante recuperar a relação interpessoal, para
que esta tenha primado sobre a tecnologia do encontro feito de telecomando na mão, para
estabelecer como, onde, quando e durante quanto tempo encontrar-se com os outros partindo das
próprias preferências (cf. EG 88). Entre estes desafios, contudo, para além dos habituais e mais
difundidos, é preciso escolher aqueles que têm um valor mais direto para a vida. O sentido da
“precariedade do dia-a-dia, com funestas consequências”, as várias formas de “disparidade
social”, o “fetichismo do dinheiro e a ditadura de uma economia sem rosto”, a “exasperação do
consumo” e o “consumismo desenfreado”... enfim, estamos diante de uma “globalização da
indiferença” e de um “desprezo sarcástico” em relação à ética, com uma tentativa constante de
marginalizar qualquer chamada de atenção crítica em relação ao predomínio do mercado sobre a
real possibilidade de se estar a favor dos pobres (cf. EG 52-64). Se, hoje, a Igreja ainda goza de
uma forte credibilidade em tantos países do mundo, mesmo nos lugares onde é uma minoria, isso
se deve à sua obra de caridade e de solidariedade (cf. EG 65). O risco de uma “Igreja mundana
Curso anual dos bispos do Brasil - 2017
- 12 -
sob vestes espirituais ou pastorais” (EG 96), não é recôndito, mas real. É, por isso, necessário
não sucumbir diante destas tentações, mas dar o “testemunho de comunhão fraterna, que se torne
fascinante e resplandecente” (EG 99). Numa palavra: “Peçamos ao Senhor que nos faça
compreender a lei do amor” (EG 101). E este ensinamento se concretiza no rosto das muitas
pessoas que temos perto de nós, de modo particular naquelas que se encontram em necessidade,
e para quem somos chamados a tornar-nos “artífices de misericórdia”. Por isso mesmo não nos
serve uma “teoria da misericórdia”, mas sobretudo recuperar as obras de misericórdia enquanto
projeto de vida que cada um deve assumir para colocar em prática uma verdadeira “revolução
cultural” (cf. MM 20).
Conclusão
Prolongando o ensinamento da Evangelii nuntiandi de Paulo VI, o Papa Francisco
pede que se volte a colocar no centro a pessoa de Jesus Cristo, o primo evangelizador. Lembra-
nos que a Igreja existe para evangelizar e que cada batizado é chamado a participar na obra da
salvação. Cada Igreja particular, conhecendo em primeira mão os desafios e as oportunidades do
seu próprio contexto cultural, saberá propor os aspectos peculiares da nova evangelização no seu
próprio país. Depois, em comunhão com toda a Igreja, somos convidados a não nos isolarmos,
mas a perceber a importância de caminhar juntos, para exprimir da melhor forma a vocação à
unidade. É, por isso, necessário “concentrar-se no essencial” (EG 35) e saber que somente uma
dimensão unitária, progressiva e proporcional da evangelização pode verdadeiramente servir de
ajuda. Isso implica voltar a dar o centro da nossa pastoral ao amor. Fora desta perspectiva, “o
edifício moral da Igreja corre o risco de se tornar um castelo de cartas, sendo este o nosso pior
perigo” (EG 39). É, portanto, importante trazer de volta a misericórdia para o centro da nossa
vida. Isso implica uma “cultura de misericórdia, com base na redescoberta do encontro com os
outros: uma cultura na qual ninguém olhe para o outro com indiferença, nem vire a cara quando
vê o sofrimento dos irmãos” (Misericordia et misera 20).
“Não deixemos que nos roubem a alegria da evangelização!” (EG 83). É clara,
imediata, sem retórica nem subentendidos, esta linguagem com que o Papa Francisco nos fala,
transportando-nos até ao cerne dos problemas que o homem de hoje vive e que, da parte da Igreja,
Curso anual dos bispos do Brasil - 2017
- 13 -
requerem muito mais do que uma simples presença. O que se pede à Igreja é uma práxis pastoral
renovada, que evidencie o seu compromisso a favor da evangelização. O Evangelho precisa
chegar a todos, sem qualquer tipo de exclusão. A palavra do Evangelho é uma palavra de
esperança para todas as pessoas: “Não fujamos da ressurreição de Jesus; nunca nos demos por
vencidos, suceda o que suceder” (EG 3). A Igreja que o Papa Francisco nos indica é, afinal, uma
Igreja que se faz companheira daqueles que, entre os nossos contemporâneos, estão à procura de
Deus com o desejo de o ver.