UMA INTERPRETAÇÃO DO POEMA DE PARMÊNIDES A PARTIR DA FILOSOFIA ITÁLICA E DA TRADIÇÃO MÍTICA...

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UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA THIAGO RODRIGO DE OLIVEIRA COSTA UMA INTERPRETAÇÃO DO POEMA DE PARMÊNIDES A PARTIR DA FILOSOFIA ITÁLICA E DA TRADIÇÃO MÍTICA ARCAICA BRASÍLIA 2013

Transcript of UMA INTERPRETAÇÃO DO POEMA DE PARMÊNIDES A PARTIR DA FILOSOFIA ITÁLICA E DA TRADIÇÃO MÍTICA...

  • UNIVERSIDADE DE BRASLIA

    INSTITUTO DE CINCIAS HUMANAS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM FILOSOFIA

    THIAGO RODRIGO DE OLIVEIRA COSTA

    UMA INTERPRETAO DO POEMA DE PARMNIDES A PARTIR DA

    FILOSOFIA ITLICA E DA TRADIO MTICA ARCAICA

    BRASLIA

    2013

  • Thiago Rodrigo de Oliveira Costa

    UMA INTERPRETAO DO POEMA DE PARMNIDES A PARTIR DA

    FILOSOFIA ITLICA E DA TRADIO MTICA ARCAICA

    Texto para defesa de Dissertao de

    Mestrado, apresentada ao programa de

    Ps-Graduao em Filosofia do

    Departamento de Filosofia da

    Universidade de Braslia, como requisito

    parcial para a obteno do ttulo de

    Mestre em Filosofia.

    Orientador: Prof. Dr. Gabriele Cornelli.

    BRASLIA

    2013

  • Oliveira Costa, Thiago Rodrigo de.

    Uma interpretao do poema de parmnides a partir da

    filosofia itlica e da tradio mtica arcaica. / Thiago Rodrigo de

    Oliveira Costa. Braslia, 2013. p.

    Orientador: Prof. Dr. Gabriele Cornelli

    Dissertao (Mestrado em Filosofia) Universidade de

    Braslia (UnB).

    1. Parmnides; 2. Ontologia; 3. Lgica; 4. Fsica; 5.

    Teologia;

    I. Ttulo.

  • UNIVERSIDADE DE BRASLIA

    INSTITUTO DE CINCIAS HUMANAS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM FILOSOFIA

    Dissertao de autoria de Thiago Rodrigo de Oliveira Costa, intitulada Uma

    interpretao do poema de parmnides a partir da filosofia itlica e da tradio mtica

    arcaica, apresentada como requisito parcial para a obteno do grau de Mestre em

    Filosofia pela Universidade de Braslia, em _____ de ___________ de 2013, defendida

    e aprovada pela comisso julgadora abaixo assinada.

    _________________________________________________________________

    Prof. Dr. Gabriele Cornelli

    Orientador (Presidente UnB)

    _________________________________________________________________

    Prof. Dr. Marcelo Pimenta Marques (UFMG)

    _________________________________________________________________

    Prof. Dr. Dennys Garcia Xavier (UFU)

    Braslia

    2013

  • RESUMO

    O corao desta dissertao consiste na defesa de que o discurso sobre o en de

    Parmnides (sua ontologia) fora construdo a partir das reflexes anteriores (i) sobre o

    thes (a teologia de Homero, de Hesodo, de Pitgoras e de Xenfanes) e (ii) sobre a

    natureza (a fsica dos primeiros filsofos). Defendemos que Parmnides dividiu a sua

    reflexo sobre a realidade em dois domnios discursivos: o domnio lgico, abstrato e

    dedutivo do lgos; e o domnio especulativo, emprico e indutivo da dxa. E

    defendemos que estes domnios coincidem com os domnios cosmolgicos da sua the

    que buscaremos mostrar ser Thea, a Viso, quais sejam: o domnio da contemplao e o

    domnio da observao.

    PALAVRAS-CHAVE: ONTOLOGIA, TEOLOGIA, LGICA, FSICA,

    PARMNIDES.

  • ABSTRACT:

    The core of this dissertation consists on the defense that the discourse on the Eon of

    Parmenides (its ontology) was built from the foregoing reflections (i) on theos (the

    theology of Homer, Hesiod, Pythagoras and Xenophanes) and (ii) on the nature (physics

    of the early philosophers). We argue that Parmenides split his reflections on the reality

    in two discursive domains: the logic, deductive and abstract domain of the logos, and

    the speculative, empirical and inductive domain of the doxa. And we argue that these

    domains coincide with the areas of its cosmological thea, which we'll endevour to show

    it to be theia, the Vision, which are: the domain of contemplation and the domain of

    observation.

    KEYWORDS: ONTOLOGY, THEOLOGY, LOGIC, PHYSICS, PARMENIDES.

  • para a Aa (Vnia)

    pela koinona.

  • AGRADECIMENTOS

    Agradeo, primeiramente, ao meu orientador Gabriele Cornelli da Universidade

    de Braslia pela diligente ateno e cuidados que tem dedicado ao meu trabalho desde a

    primeira pesquisa de iniciao cientfica na graduao at aqui. Agradeo ao professor

    Giovanni Casertano da Universit Degli Studi di Napoli pelo carinho, gentileza e

    receptividade com que acolheu os meus esforos. Agradeo ao professor Marcelo

    Pimenta Marques da Universidade Federal de Minas Gerais pela atenciosidade e zelo

    mpar que tem tido com o meu trabalho. Agradeo ao professor Dennys Garcia Xavier

    da Universidade Federal de Uberlndia pelos conselhos e sugestes de trabalho que,

    com gosto, buscarei compreender e assimilar.

    Agradeo, tambm, aos meus familiares, minha me Rosngela de Ftima

    Oliveira pela mxima dedicao e esforos que dedicou minha formao enquanto

    pessoa, ao meu irmo Odlcio Costa Borges, que me foi o melhor irmo que se poderia

    esperar ter, queria ter sido para ti to bom quanto foi para mim, ao meu tio Rogrio

    Ancelmo de Oliveira por ter sido o meu maior mestre, eu sinto por no ter sido um to

    bom discpulo.

    Agradeo, tambm, aos meus amigos epistricos, ao Antnio Marques,

    visionrio a frente dos demais, ao Guilherme Moura, infatigvel mente impenetrvel

    tamanha a densidade, dupla invensvel quando unida; agradeo s minhas amigas

    epistricas Mariana Souza, de sensibilidade infinita, Thas Rocha, uma graa de mente

    multi-atenciosa, Dayane Augusta, alegre, centrada e diligente de imbatvel

    determinao e vontade, Luana Weyl de multi-radiante energia e graa, Mariana

    Lima que com mil braos combate as injustias, fora e vigor inigualveis em seu ser,

    uma doce presena.

    Agradeo, tambm, aos meus amigos do RPG, os quais me desculparo a todos

    eu no nomear, dentre os antigos inevitveis so os nomes de Meyrelles Francisco

    Borges, Marcelo Falkir, Eduardo Pereira Rodrigues, Carlos Daniel Galbier e Thiago

    Resende, entre os mais recentes Mauricio Camargo, Rafael Ribas (grande Bolfur),

    Eduardo Fernandes de Oliveira, Rodrigo Colts (mestre e conselheiro precioso), Lincoln

    Lee e Mrio Marco Corra Sales Machado.

    Agradeo, tambm, aos amigos do Archai Edrisi Fernandes, multi-versado nas

    profundas guas do saber, Walter Neto, Angelo Balbino, Eryc Leo, Jonatas Rafael

    Alvares, mago do virtual, e ao Luciano Coutinho.

    Agradeo, finalmente, aos meus amigos-irmos Ewerton Rocha Vieira, Marcos

    Jos Pereira Alves, Gilmar Rocha, Geraldo Jnior. E a todos os demais amigos e amigas

    presentes no meu corao: muito obrigado.

  • Sumrio

    RESUMO ...................................................................................................................................... 5

    INTRODUO .......................................................................................................................... 11

    Objetivo ................................................................................................................................... 11

    Apresentao da Hiptese Hermenutica ............................................................................ 11

    Apresentao da Dissertao ............................................................................................... 13

    Motivao ................................................................................................................................ 15

    Metodologia ............................................................................................................................ 16

    As Ferramentas da Anlise .................................................................................................. 17

    Sobre o Anacronismo .......................................................................................................... 23

    Algumas Consideraes Iniciais Sobre a Histria de Parmnides .......................................... 25

    CAPTULO 1: PARMNIDES E A TRADIO MTICA ARCAICA. .................................. 30

    Alguns Elementos da Dimenso Formal do Estudo do Poema de Parmnides ....................... 30

    Parmnides e a Poesia pica ................................................................................................... 36

    A Jornada pica .................................................................................................................. 37

    A Investigao e a Revelao .............................................................................................. 38

    Dia e Noite .......................................................................................................................... 39

    A Natureza dos Deuses ....................................................................................................... 45

    Parmnides e o Orfismo .......................................................................................................... 53

    A Jornada Mistrica ............................................................................................................ 54

    Iniciao e Revelao Mistricas ........................................................................................ 57

    Dia e Noite .......................................................................................................................... 61

    A Natureza das Divindades ................................................................................................. 67

    Concluso ................................................................................................................................ 70

    Os Nomes das Divindades....................................................................................................... 71

    CAPTULO 2: PARMNIDES E O PROTOPITAGORISMO. ................................................. 73

    A Misteriologia Protopitagrica .............................................................................................. 74

    A Imagem Mistrica do Protopitagorismo. ............................................................................. 76

    A Religio, a Seita, o Culto e o Mistrio............................................................................. 78

    A Luz do Dia e A Escurido da Noite. .................................................................................... 96

    A Astronomia e a Matemtica na Reforma da Cosmologia Tradicional ............................... 104

    O Cosmos, o Cu e a Terra so Esfricos. ........................................................................ 104

    CAPTULO 3: A MITOLOGIA CRTICA DE XENFANES E A ONTOLOGIA DE

    PARMNIDES ......................................................................................................................... 119

  • O nascimento da Mitologia e da Teologia. ........................................................................ 119

    Contra os simulacros dos antigos................................................................................... 121

    A Investigao Humana nos Domnios das Concepes. .................................................. 123

    A Primeira Crtica: Sobre o Antropocentrismo, o Etnocentrismo e os Vcios. ................. 123

    Segunda Crtica: Sobre o perspectivismo. ......................................................................... 125

    As Descobertas Falseveis: Nobres e Falveis Investigaes Humanas. ................... 128

    Ao Corao da Verdade .................................................................................................... 130

    As divindades e A Divindade. ............................................................................................... 143

    O Corao da Verdade .......................................................................................................... 144

    Gaa e En. ........................................................................................................................ 145

    En e tomos. ................................................................................................................... 155

    CONCLUSO .......................................................................................................................... 169

    BIBLIOGRAFIA ....................................................................................................................... 171

  • INTRODUO

    Objetivo

    Apresentao da Hiptese Hermenutica

    Nesta dissertao apresentaremos uma hiptese de interpretao do poema de

    Parmnides que, acreditamos, consegue resolver de maneira satisfatria as seguintes

    questes:

    (i) Em que consiste a filosofia de Parmnides?

    (ii) H alguma conexo entre as partes do poema e, em caso afirmativo, qual a

    conexo?1

    (iii) Qual(is) (so) a(s) tese(s) central(is) do poema de Parmnides?

    Para a primeira questo ns construmos a seguinte hiptese: a filosofia de

    Parmnides consiste em um duplo discurso sobre o en2 associado a uma dupla

    investigao sobre a realidade. Por um lado, trata-se da investigao da realidade por

    meio da contemplao racional dedutiva e, por outro lado, trata-se da investigao da

    realidade por meio da observao especulativa indutiva. Em ambos os casos, o discurso

    sobre o en um discurso sobre a natureza divina do que existe.3

    Para a segunda questo ns construmos a seguinte hiptese: H uma conexo

    entre as partes do poema que consiste na diviso do domnio cosmolgico da deusa em

    contemplao e observao. Buscaremos subsidiar a hiptese segundo a qual a the

    de Parmnides Thea, a deusa da Viso, a primeira filha de Gaia e de Urano segundo a

    Teogonia de Hesodo,4 e que o domnio cosmolgico dessa deusa duplo como o

    domnio da investigao filosfica proposta por Parmnides. Grosso modo, a Viso ,

    por um lado, uma forma de apreenso da mente, que estamos traduzindo por

    contemplao e, por outro lado, a Viso uma forma de apreenso dos olhos, a

    observao. A contemplao da realidade possibilita o discurso lgico5 dedutivo

    1 As partes do poema so (i) o promio (fr. 1), (ii) as vias de investigao (fragmentos de 2 a 7), (iii) o

    corao da verdade (fr. 8) e (iv) as especulaes dos mortais (fragmentos de 8 a 19). 2 Chamaremos de ontologia ao discurso sobre o en.

    3 Chamaremos de teologia ao discurso sobre o divino (thes).

    4 Hesodo. Teogonia: 135.

    5 preciso observar que o termo lgica ambguo e possui, ao menos, trs acepes que gostaramos

    de precisar: ) de imediato, lgica designa uma disciplina que se ocupa com a linguagem, tal como a

  • sobre o que (e est estabelecida sobre os mesmos pressupostos lgicos da

    argumentao de Zeno,6 que so (i) os postulados da no contradio e do terceiro

    excludo;7 e (ii) os conectivos lgicos clssicos: 'no' (), 'e' (), 'ou' () e o 'se isso,

    ento aquilo' (),8 que satisfazem cada um a uma atribuio de valores conhecida como

    booleana.9). A observao da realidade possibilita o discurso especulativo indutivo

    gramtica. Apenas nos dois ltimos sculos, com o estabelecimento das linguagens formais (especialmente, da lgebra de Boole, e da lgica matemtica com Frege) que o termo lgica adquiriu, tambm, a acepo especializada de uma disciplina que se ocupa com uma linguagem formal. ) o termo lgica designa, tambm, o objeto da disciplina por ele, mesmo, nomeada. Nesta acepo, a lgica no deve ser entendida, meramente, como a linguagem. Muitas so as disciplinas que se ocupam da

    linguagem; mais precisamente, que se ocupam com algum aspecto e/ou elemento da linguagem. Neste

    caso, o termo lgica, como objeto da disciplina de mesmo nome, indica a estrutura, subjacente linguagem, de articulao do prprio pensamento, o que intuitivamente chamamos de a lgica do discurso, ou o que a modernidade nomeou de a razo. Essa estrutura pode ser depreendida de expresses intuitivas como: lgico que uma proposio, ou verdadeira, ou no verdadeira (postulado da Bivalncia), e semelhantes. Um discurso no lgico seria, nesta acepo, por exemplo, o que atribusse a uma divindade uma determinada caracterstica, e tambm, negasse a essa, mesma,

    divindade essa, mesma, caracterstica, sem qualquer variao de aspecto envolvida. A lgica ento, nesta segunda acepo, uma propriedade do discurso, ou melhor, do prprio pensamento discursivo, mas

    que pode estar, ou no, presente nele. Daqui por diante, indicaremos a primeira acepo com um subscrito (Ex.: lgica), a segunda com um subscrito (Ex.: lgica), e a terceira acepo com um subscrito (Ex.: lgica). ). O termo lgica possui uma terceira acepo: o produto da lgica. Isto , a lgica uma linguagem, na qual est presente e bem caracterizada a sua lgica. uma linguagem racional, para usar mais uma expresso corrente, que pode ser empregada para outros fins quaisquer. Em sntese, temos que o termo 'lgica' indica: () uma disciplina; () a razo; e () uma linguagem. preciso dizer que com o advento das linguagens formais e o destacamento objetivo da dimenso

    metalingustica, relativamente a essas linguagens, a lgica enquanto uma disciplina passou a se ocupar,

    tambm, com as propriedades das suas linguagens 'objeto', bem como com as propriedades

    metalingusticas das linguagens objeto, que so, neste caso, propriedades formais. A ambiguidade, ainda

    assim, mantida: () lgica = disciplina/ () lgica = objeto/ () lgica = produto = linguagem formal objeto e/ou estudo das propriedades da linguagem objeto ou das propriedades metalingusticas da

    linguagem objeto. Nossa argumentao est fundamentada, em boa parte, no estudo de Haack (2002), as

    nossas concluses, no entanto, so independentes. 6Que chamaremos de dialtica.

    7O postulado da No Contradio estabelece que: dadas uma proposio e a sua negao no o caso que: (i) ambas sejam verdadeiras, ou que (ii) ambas sejam falsas. O postulado do Terceiro Excludo (Tertium non datur) estabelece que: dadas uma proposio e a sua negao ou: (i) a primeira verdadeira

    e a segunda falsa, ou (ii) a primeira falsa e a segunda verdadeira (i..: uma delas verdadeira e a

    outra falsa). No havendo uma terceira possibilidade (Tertium non datur). Sobre o emprego deste ltimo

    postulado em Parmnides cf.: Cordero (2009: 15-25).

    8Em particular, este conectivo largamente empregado por Zeno. No fr. 1 empregado trs vezes, no fr.

    2 trs vezes, no fr. 3 quatro vezes, no fr. 4 uma vez (totalizando 11 usos em apenas quatro fragmentos). O

    que faz com que os raciocnios de Zeno sejam fundamentalmente hipotticos, caracterstica essa que

    passou despercebida por muitas das suas interpretaes. 9Evidentemente, termos como substantivo, adjetivo, advrbio, radical, poder ontofnico, valorao booleana etc., bem como os que acabamos de empregar, pertencem gramtica, etimologia, teoria literria, e lgica, respectivamente, sendo elas modalidades de reflexo e anlise da linguagem;

    disciplinas que s vieram a se desenvolver muitos sculos depois do VI a.C. Todavia, no deixamos de

    empreg-los em nossas anlises, a despeito do aparente anacronismo, justamente por se tratarem de

    categorias analticas, isto , categorias teis para a anlise. A todo o momento recorremos disciplinas

    como a gramtica e a etimologia, desconhecidas dos nossos nativos, para aclarar algum ponto em exame. E aqui vamos recorrer, tambm, lgica para dissipar algumas dvidas, relativamente ao que

    chamamos, comumente, de pensamento racional e positivo entre os Gregos, notadamente com Parmnides. No devemos confundir, portanto, um termo analtico (que empregado como um

    instrumento na anlise), com um termo objeto (aquele que analisado). As disciplinas possuem os seus

  • sobre as coisas que so. Esse duplo domnio da viso faz da deusa Viso (de Thea) a

    deusa mais apropriada para a exposio do corao da verdade e das especulaes dos

    mortais feita no poema. Desse modo, os dois discursos esto conectados entre si como

    os dois domnios da deusa da Viso e como a dupla atividade investigativa da filosofia

    para Parmnides.10

    Para a terceira questo ns construmos a seguinte hiptese: as teses centrais do

    poema so: (a) o lgos, ou a teoria dedutiva, (i) verdadeiramente crvel em razo da

    sua natureza abstrata e dedutiva, e (ii) depende da contemplao (iii) para a deduo das

    caractersticas do que ; (b) a dxa, ou especulao indutiva, (i) no verdadeiramente

    crvel em razo da sua natureza emprica e indutiva, e (ii) depende da observao (iii)

    para a formulao hipottica do que ; e (c) o lgos um discurso sobre a natureza de

    uma perspectiva terica e a dxa um discurso sobre a natureza de uma perspectiva

    emprica.

    Apresentao da Dissertao

    No primeiro captulo faremos uma rpida apresentao do contexto histrico e

    cultural no qual se inserem Parmnides e o seu poema. Investigaremos quais so as

    divindades que aparecem no poema, bem como quais so as suas funes cosmolgicas

    na tradio mtica arcaica com o objetivo de inferir as suas possveis funes no poema,

    com nfase na personagem da The.

    No segundo captulo examinaremos a relao de Parmnides com o

    protopitagorismo tanto no nvel formal quanto no nvel dos contedos filosficos, dando

    especial ateno ao vnculo do protopitagorismo com os discursos dos mortais.

    objetos, e suas ferramentas de trabalho (como os termos analticos) com as quais realizam as suas

    anlises. Protopitagorismo, por exemplo, um termo analtico da historiografia cunhado por Cornelli (2011: 24) para indicar o primeiro pitagorismo, o dos primeiros pitagricos, o que separa o pitagorismo

    em dois momentos: o primeiro momento e o que no o primeiro momento, e nomeia um deles (no um

    termo objeto que se possa encontrar nas fontes), cf.: Cornelli (2011: 24). Esta confuso foi feita, por

    exemplo, por Huffman que mistura filosofia da matemtica (Cornelli 2011: 81) com o emprego da matemtica em outras disciplinas, como para resolver problemas filosficos (Huffman, 1988: 2). A filosofia da matemtica toma a matemtica como objeto, o que totalmente diferente do emprego de conceitos matemticos na anlise de problemas de outras reas, como fazem os fsicos, ou como teria

    feito, segundo ele, Filolau. Com efeito, os fsicos no tm uma fsica da matemtica porque a empregam como instrumento nas suas anlises da natureza (o seu objeto); o conceito adequado o de

    matemtica aplicada fsica, e no caso de Filolau, se Huffman estiver correto, o de matemtica aplicada filosofia. 10

    Essa hiptese ser desenvolvida, em pormenor, no primeiro captulo da dissertao.

  • No terceiro captulo investigaremos: (i) a natureza do en; (ii) a sua relao com

    o discurso mtico e fisiolgico; (iii) a sua relao com a 1 via de investigao; (iv) a sua

    caracterizao no fragmento 8; e (v) algumas possveis respostas para a questo: o que

    t en? Neste captulo compararemos a filosofia de Parmnides com a de Xenfanes.

    Buscaremos, tambm, mostrar que a querela lgico-matemtica discutida por Zeno

    associada s hipteses do continuum (do espao e do tempo), da divisibilidade ao

    infinito (pressuposto da descoberta dos nmeros racionais) e ao postulado que

    nomearemos de Material11

    nos permite obter uma traduo do en no tomos (o

    indivisvel) de Leucipo e Demcrito.

    Em sntese as proposies centrais que defenderemos nesta dissertao so:

    1. Parmnides participou do movimento de transformao da tradio mtica

    arcaica levado a cabo pelos primeiros filsofos gregos e produzido por fatores

    diversos como: (i) o desenvolvimento da astronomia, importada dos caldeus,

    egpcios e fencios; (ii) o aparecimento de um distanciamento epistemolgico

    relativamente ao saber tradicional, impulsionado pelo aparecimento de discursos

    cosmognicos, cosmolgicos e teolgicos relativamente independentes da

    tradio; (iii) o desenvolvimento de uma mentalidade ctica que pouco a pouco

    foi se desfazendo das amarras dos discursos de autoridade; dentre outros.

    2. A deusa (the) do poema de Parmnides a deusa Viso, Thea, a me do Sol.

    3. A filosofia protopitagrica influencia a filosofia de Parmnides de uma maneira

    direta com os princpios e de uma maneira indireta com as

    ferramentas da matemtica e da lgica (ainda em processo de autonomizao)

    com as quais Parmnides determinar as caractersticas do en.

    4. Parmnides d continuidade ao projeto de unificao dos princpios iniciado

    por Xenfanes, o qual havia postulado que Gaia era a origem e o fim de todas as

    coisas.

    5. O en o modelo primeiro do tomo. Todo o atomismo um desenvolvimento a

    partir da ontologia de Parmnides, com a qual se estabelece uma

    11

    Que diz que: o en nem gensthai (ser surgido) medens (do nada, fr. 8, v. 10 = ek m entos: do que no est sendo, do que no ; fr. 8, v. 7) nem llusthai (ser aniquilado, ser destrudo completamente). Que poderamos dizer, tambm, da seguinte maneira: O que est sendo no surgiu do nada nem pode ser desfeito em nada, ou, ainda, do nada nenhuma coisa que existe se cria, e em nada nenhuma coisa que existe se desfaz. Apesar do nome que estamos dando ao postulado sugerir que o seu objeto seja apenas a matria, rigorosamente cremos que este postulado parmenideano se aplique a tudo o que h, a tudo o que existe.

  • correspondncia entre o en e o cheio (o tomo) e entre o m n e o vazio, este

    ltimo aceito pelos atomistas, mas no por Parmnides.

    Motivao

    H duas motivaes de ordens distintas que nos levaram a realizao deste

    trabalho. Em primeiro lugar, no tempo, a motivao historiogrfica. Quando

    estudvamos a filosofia de Epicuro12

    nos ocorreu que deveramos levar a cabo uma

    reviso da genealogia do atomismo. O vnculo de Epicuro com Demcrito,13

    por meio

    de Nausfanes,14

    era claro, mas no era clara a conexo de Demcrito e de Leucipo com

    a tradio anterior. Os princpios anteriormente levantados, gua, fogo, ar, terra e o

    indeterminado (ou ilimitado, ou ainda, infinito) no se assemelhavam em nada aos

    tomos e ao vazio dos atomistas. Contudo, havia uma indicao nas fontes antigas, j

    em Aristteles, de uma relao de Leucipo e Demcrito com os eleatas Parmnides e

    Zeno. Foram esses indcios, em busca da genealogia do atomismo, que nos trouxeram

    ao presente trabalho, com o qual esperamos mostrar a pertinncia das evidncias antigas

    que fazem dos atomistas os continuadores, ao seu modo, da filosofia eleata.

    A segunda motivao, filosfica, consiste na nossa perplexidade diante das

    proposies de Parmnides e de Zeno sobre a indivisibilidade do en. Por que

    Parmnides precisou dizer que o en no divisvel? Uma resposta rpida, para se livrar

    do embarao da questo, consistiria em no tomar a diviso na acepo fsica da

    palavra, o que implicaria, forosamente, em afastar Parmnides de Zeno, mesmo

    quando as fontes mais antigas afirmam que as suas obras estavam intimamente

    conectadas.15

    Contudo, um exame menos preconceituoso das fontes mostra com clareza

    12

    Oliveira Costa: 2009: 101-119. 13

    Digenes Larcio. Vidas e Doutrinas dos Filsofos Ilustres: X, 2. Daqui por diante: DL. 14

    DL: X, 13-14. A afirmao de que Epicuro foi discpulo de Nausfanes foi feita por Apolodoros na sua obra Crnica e por Arston em sua Vida de Epicuro; citadas por Digenes Larcio. O mais provvel,

    acreditamos, que Epicuro tenha lido a Trpode de Nausfanes, mas no que tenha sido seu discpulo

    direto. Todavia, esta uma questo em aberto. 15

    Plato. Parmnides: 128 a-c. Estou percebendo, Parmnides, disse Scrates, que Zeno aqui presente quer ligar-se intimamente a ti no somente pela amizade, mas tambm pelo texto. que ele

    escreveu, de certa maneira, a mesma coisa que tu, s que, fazendo uma alterao, tenta enganar-nos,

    fazendo-nos crer que diz algo diferente. Pois tu, em teus versos, afirmas o todo ser um, e disso apresenta

    belas e boas provas. Ele, por sua vez, afirma no ser mltiplas coisas, e tambm ele apresenta provas

    numerosas e de muito peso, e seguintes. A traduo de Iglsias e de Rodrigues (2003: 25). Os termos em itlico um e mltiplas coisas traduzem hn e poll (hn phis enai, ou poll phesin enai), todavia as tradues no so adequadas, pois no capturam o sentido especfico, diramos tcnico,

  • uma conexo ntima entre Parmnides, Zeno e os atomistas Leucipo e Demcrito.

    Segundo Acio (I.16,2: DK 68 A 48) [por Demcrito] os tomos foram postulados

    (hstasthai) como indivisveis (t amer), e ainda, no ser (m enai) ao infinito (eis

    peiron) a diviso (tn tomn). Pois exatamente da diviso ao infinito que o livro de

    Zeno trata (se se quiser das infinitas partes obtidas pela diviso ao infinito), a qual

    chamada poll.16

    A conexo fica evidente quando percebemos que h duas

    consequncias possveis para a diviso ao infinito: (i) ela segue ao infinito sem jamais

    reduzir a grandeza das partes obtidas no processo a zero, o que acarreta na

    impossibilidade do movimento; ou (ii) a diviso segue ao infinito e atinge o infinito de

    modo que a parte ltima resultante do procedimento de diviso pontual, o que acarreta

    na reduo do en ao m en. Como Zeno e Parmnides querem evitar ambas as

    consequncias, ento poll no deve ser o caso, isto , deve haver um momento no qual

    se se depara com uma parte indivisvel, essa parte indivisvel foi chamada por

    Parmnides e por Zeno de en, e foi chamada por Leucipo e por Demcrito de tomos.

    Esse resultado, se correto, de imensa relevncia para a histria da filosofia, e

    tambm a fonte da nossa perplexidade, que h pouco havamos indicado.

    Metodologia

    Sua nica verdade sagrada [da cincia] que no h verdades

    sagradas. Todas as suposies devem ser examinadas

    criticamente. Os argumentos da autoridade so inteis. O que

    for inconsistente com os fatos, no importa o quanto gostemos,

    deve ser descartado ou revisado. A cincia no perfeita, ela

    frequentemente mal usada, apenas uma ferramenta, mas a

    melhor ferramenta que temos, com correo automtica, sempre

    mudando, aplicvel a tudo. Com esta ferramenta ns

    conquistamos o impossvel. Com os mtodos da cincia ns

    comeamos a explorar o cosmos.

    _Carl Sagan., in: Cosmos (1980).

    dos conceitos, sendo particularmente ruim a traduo de poll por mltiplas coisas do que no trata Zeno no seu escrito. No terceiro captulo analisaremos os pormenores desta questo. 16

    A discusso deste ponto ser feita no terceiro captulo.

  • As Ferramentas da Anlise

    Um mtodo , essencialmente, uma maneira de proceder, de realizar um

    determinado percurso, que no nosso caso um percurso dizsios (de investigao, de

    pesquisa; fr. 2, v. 2). A questo essencial da metodologia , por sua vez, o hpos (como,

    de que maneira, de que modo, fr. 2, v. 3; = hos, fr. 2, v. 5). O modo como procedemos

    numa pesquisa comporta uma dimenso tica, poltica e existencial, bem como uma

    dimenso lgica, epistemolgica e ontolgica. Na primeira temos de lidar com a nossa

    postura tica, poltica e existencial diante do que pesquisado. Na segunda temos de

    lidar com as nossas pr-compreenses lgicas, epistemolgicas e ontolgicas acerca do

    que pesquisado.17

    Quanto postura buscaremos ser compreensivos: a ns interessar saber como

    Parmnides pensa o en, as divindades, etc., e no o que pensamos ns a esse

    respeito. No importa o quanto gostemos dessa ou daquela hiptese hermenutica, se

    ela no estiver em conformidade com o texto ns deveremos descart-la e adotar a

    17

    Nem sempre os termos 'epistemologia' e 'ontologia' so bem distinguidos e empregados. Ambos, so

    disciplinas reflexivas, e como tais tm por produto um tipo discurso. Os objetos so, contudo, bastante,

    distintos. A primeira tem por objeto o conhecimento, enquanto a segunda tem por objeto o en (aquilo que est sento, em acepo processual, ou aquilo que , o ente, em acepo pontual). Desde Parmnides a ontologia se subdivide em uma dimenso fsica (o que tematizado no mbito das

    concepes dos mortais, cujas questes de investigao so: 1: o como ; e 2: o como no ), e em uma dimenso metafsica (o que tematizado no mbito do corao da verdade, cujas questes so: 1: como deve ser, ou como no pode no ser; e 2: como deve no ser), ambas recorrem tanto experincia quanto

    abstrao, mas de maneiras bastante distintas. A fsica recorre abstrao para a elaborao da teoria

    fsica, e recorre a experincia para a prova fsica de suas proposies. A metafsica, inverte o quadro, a

    prova no dada pela experincia, mas pela necessidade lgica, contudo, os objetos e suas propriedades

    so dados pela experincia. Dos dados da experincia a metafsica extrai os seus objetos e abstrai as suas propriedades, mas a sua teoria no responder as questes fsicas como , e como no , mas as questes metafsicas: como necessrio que seja, e como necessrio que no seja. Em ambos os casos se encontram presentes a experincia e o pensamento abstrato, ambas trabalham com os objetos

    extrados da primeira e processados na segunda, mas diferem pela natureza das suas questes, e pelo

    domnio no qual apresentam as suas provas. H como que um grande receio com a metafsica no ocidente,

    mas este deve-se mais s posturas dogmticas e autoritrias de uma metafsica de extrao teolgica, que

    disciplina ela mesma. Reconhecemos aqui a pertinncia da crtica de Hegel Epicuro, nas Lies sobre

    a Histria da Filosofia (1977: 379-395), no seguinte aspecto: se consideramos Epicuro um fsico,

    devemos tambm reconhecer que o seu objeto central, o tomo, est longe de ser um objeto emprico. O

    tomo (no quadro da fsica antiga) um conceito, muito elaborado, e com um grau bastante elevado de

    abstrao, no um objeto emprico, ainda que seja empregado para dar sentido aos fenmenos

    empricos, e que ele prprio seja concebido como um objeto fsico material. Contudo, no pertinente a

    crtica de Hegel na medida em que Epicuro reconhecia esse carter no emprico do tomo, razo pela

    qual defendia que no deveria haver uma espcie de tomo visvel. E, tambm, no pertinente a crtica

    de Hegel na medida em que os entes postulados pela fsica o so para tornar inteligvel, sempre, uma

    ordem de fenmenos empricos, e, esto sempre sujeitos queda, dado o carter contingente (no necessrio) do conhecimento fsico, no que concordamos com Casertano (cf.: 2011: 85, 86, 89; e 2009:

    66).

  • hiptese mais plausvel, a que melhor se acomodar ao texto. Vamos buscar respeitar a

    concepo de Parmnides, estejamos ou no de acordo com ela.18

    Concebemos quatro tipos de princpios do discurso: (i) as noes primitivas; (ii)

    os axiomas, que so proposies cuja verdade se pretende auto-evidente; (iii) os

    postulados, que so proposies cuja verdade se pede que seja aceita; e (iv) os dogmas,

    que so proposies cuja verdade estabelecida pela f, uma forma de pstis

    (confiana).

    Para, talvez, a maior parte das pessoas, tanto hoje quanto na Grcia dos sculos

    VI e V a.E.C., os dogmas so vividos como se fossem axiomas, as noes primitivas

    como se fossem noes comuns (essas que circulam com o significado ordinrio das

    palavras), e, no raramente, proposies que precisariam ser demonstradas, provadas,

    so tratadas na mesma conta do auto-evidente.19 Quando no sexto sculo a.E.C.

    Xenfanes agrupou a totalidade das proposies humanas no conjunto das dxai

    (opinies, concepes) afirmando que a concepo tem feito todas as coisas,20 ele se

    contraps, justamente, a uma certa atitude, a um certo modo de encarar o que demanda

    uma demonstrao, uma prova, como se fosse auto-evidente, ou digno de crena com

    base unicamente na autoridade da tradio.21

    Mais que isso, se contraps a uma postura

    dogmtica que no admite, de modo algum, a possibilidade de se encontrar em erro, o

    que torna infrutfera qualquer tentativa de dilogo. Preferiu ele desestabilizar tudo sobre

    o que se apoiava arriscar ser encantado e iludido, quanto ao que fosse seguro, pelo

    thos polpeiron (hbito muito experimentado).22

    Ns assumimos que a avaliao de Xenfanes vlida, ao menos, como postura

    inicial no curso do trabalho investigativo, que no nosso caso consiste na interpretao

    que buscaremos subsidiar acerca do poema de Parmnides. No queremos, de modo

    algum, que qualquer proposio do nosso trabalho seja tomada como um dogma, ou

    18Devemos buscar evitar com que interesses redacionais (Cornelli, 2009: 288-9) nossos (de quaisquer ordens), controlem, organizem, selecionem, apaguem ou reescrevam a doutrina de Parmnides. E isso,

    buscaremos fazer por meio de uma exposio clara dos nossos pressupostos, e por meio do exerccio do

    respeito ao pensamento de Parmnides, esteja ele, ou no, de acordo com o nosso modo de pensar. Isso

    dar ao nosso trabalho um maior grau de liberdade para transitar entre as acepes vrias e variadas que concorrem sua interpretao. Se nos fosse permitido estabelecer um postulado tico metodolgico ele

    seria o seguinte: a dignidade hermenutica a mesma para todas as leituras, que devem, portanto, ser

    respeitadas, o que, contudo, no significa que no devam ser questionadas, muito ao contrrio. 19

    As noes primitivas so estabelecidas recorrendo-se s noes comuns e/ou s outras noes

    primitivas. 20

    Cf.: DK 21 B 34. 21Herclito, nos parece, tem a mesma concepo (opinio, ou pensamento). Pois, muitos no sabem estas coisas, to numerosas as encontrem, nem tendo sido ensinadas aprendem, mas (), de si mesmos, pensam [saber] (): DK 22 B 17. 22

    Cf.: DK 28 B 7. Ver tambm: DK 21 B 35.

  • como se sobre um dogma implcito se apoiasse. No dispomos dessa riqueza. Contudo,

    muitas vezes, precisaremos postular como verdadeiras certas proposies que no

    poderemos subsidiar, seja por no dispormos da competncia necessria, seja porque

    isso nos afastaria da nossa meta.23

    Gostaramos, ainda, que fossem apreendidos, na

    condio de falseveis, todos os nossos pressupostos implcitos e explicitados, bem

    como tudo o que sobre eles se assenta. Postulados no so dogmas, mas um ponto de

    partida do qual no se pode escapar e um convite ao debate e ao questionamento.

    Exceto, e aqui nos afastamos um pouco de Xenfanes e nos aproximamos mais de

    Parmnides, quando se tratarem de verdades lgicas para as quais toda a histria da

    filosofia e da cincia no apresentou um nico questionamento que as comprometesse.

    Sabemos que toda sorte de autoridade falvel e que se apoiar seja nas posies

    mais largamente aceitas (Argumentum ad Populum), seja nas que trazem consigo o peso

    de uma grande autoridade (Argumentum ad Verecundiam), cair em falcia. bastante

    lamentvel, mas a experincia nos tem mostrado que uma parcela significativa da nossa

    comunidade de historiadores da filosofia tem adotado uma postura assaz dogmtica.

    Essa postura inviabiliza o dilogo ou, no mximo, o artificializa inviabilizando, de todo

    modo, a transformao e o avano do entendimento coletivo. A cincia um

    empreendimento coletivo. Queremos postular, no nvel metafilosfico, que: 'uma das

    caractersticas essenciais da filosofia a sua capacidade de transformar aqueles que a

    praticam, no exerccio mesmo da sua realizao dialgica', transformando-se a si

    mesma. E isso nos faz conceber a postura dogmtica como, essencialmente,

    antifilosfica. A crtica sempre foi uma forma de denncia da adika (injustia), que no

    nosso caso cometida, pela postura dogmtica, prpria filosofia. No queremos que a

    parresa (liberdade de falar com franqueza) nos seja retirada em favor das autoridades.

    Queremos poder falar com liberdade sobre todos os assuntos, defender com toda a

    liberdade as nossas posies e os nossos pensamentos. Mas sempre na morada do lgos

    (discurso argumentativo), bem distantes da morada de Krtos (Fora) e de Ba

    (Violncia), os guardies da soberania.24

    No queremos nenhuma soberania outra, na

    23

    No pedimos que se os aceitem acriticamente. No somos uma autoridade, nem a aceitamos. Este um

    trabalho que tem por meta discutir Parmnides com os pares, bem como ser discutido, problematizado e

    questionado pelos mesmos. Nossa morada a da polmica, do debate aberto e sem reservas, preservando,

    claro, o respeito e a dignidade que, por direito ( : Thmis te Dke te: tanto de Thmis quanto de Dke, tanto da Justia da Terra, filha, quanto da Justia estabelecida pelo acordo comum), se

    deve dar a todos e a todas. 24Estige pariu Fora e Violncia longe deles no h morada de Zeus nem pouso nem percurso por onde o Deus no os guie mas sempre perto de Zeus gravitroante repousam (Hesodo Teogonia, vv. 385-388, traduo de: Torrano, 1995: 127). A soberania, nos ensinou Hesodo, seguida de perto pela fora e pela

  • morada da filosofia, que no seja a de Thmis (A Lei, fr. 1, v. 28) e Dke (A Justia, fr. 1,

    v. 28). Tambm, a presena da Mataites (Vaidade) pode nos levar postura dogmtica

    (na defesa das nossas prprias concepes) e, portanto, tambm dela deveremos, tanto

    quanto possvel, nos apartar.

    Outro cuidado que buscaremos ter : no traduzir a alteridade nos termos da

    nossa identidade cultural. Por vezes pode ocorrer que, devido s diferenas dos sistemas

    de pensamento, nos seja necessrio um considervel esforo intelectual para alcanar

    (ou pelo menos aproximar) o sentido emprestado aos conceitos empregados por

    Parmnides (grego, cidado de Eleia, do sculo VI a.E.C.). E, por vezes, em razo das

    nossas limitaes, pode ocorrer que simplifiquemos ou reduzamos os conceitos

    estudados a outros semelhantes mais simples e acessveis a nossa cultura mental

    (devemos nos esforar para evitar essas simplificaes). Isso muito comum nas

    relaes que se estabelecem com o Outro (que pode ser desde aquele que se dedica a

    uma disciplina outra, quele que pertence a uma outra cultura, ou a um outro contexto

    histrico).

    Quanto s nossas pr-compreenses do poema gostaramos de dizer que h duas

    maneiras de encar-lo, mutuamente, contraditrias: (i) tom-lo como sendo uma

    narrativa de iniciao e de revelao de um mistrio; e (ii) tom-lo como no sendo uma

    narrativa de iniciao e de revelao de um mistrio. No primeiro caso a interpretao

    pode optar pela literalidade e pela no-literalidade (a metfora), como chaves de leitura.

    No segundo, a interpretao tem de adotar a no-literalidade das metforas como chave

    nica (as guas no so guas, de fato; nem os prticos so, efetivamente, prticos

    que separam as moradas do Dia e da Noite; e etc.). A metfora, na acepo que

    aqui empregamos como uma chave de leitura da no-literalidade, pode se especializar

    em um molho bastante rico. Uma chave de leitura, ou chave hermenutica, uma

    funo (na acepo algbrica) que associa um signo, ou um conjunto deles, a uma

    funo (na acepo comum) que pode ser: (i) alegrica; ou (ii) simblica; ou (iii)

    representativa; ou (iv) referencial; ou (v) analgica; ou (vi) alusiva; etc. Um signo cuja

    funo hermenutica seja alegrica chamado de alegoria; um signo cuja funo

    hermenutica seja simblica chamado de smbolo; um signo cuja funo hermenutica

    seja representativa chamado de representao, etc.25

    Nenhuma das nossas chaves de

    violncia. 25Ns vamos trabalhar apenas com essas categorias, mas o molho pode ser bem mais especializado e nuanado.

  • leitura visam decifrar a significao oculta do texto (exista ou no): aquela que animaria

    o discurso de Parmnides, mas que lhe teria passado, por alguma razo, despercebida.

    No visamos o desvelamento do sentido profundo do poema de Parmnides, ao

    contrrio gostaramos de historiciz-lo, confront-lo com outros textos e elementos do

    seu prprio contexto histrico e cultural buscando, tanto quanto nos seja possvel,

    aclarar o possvel sentido que lhe tenha sido emprestado por Parmnides. Sempre que o

    confrontarmos com conceitos externos ao seu contexto histrico no ser para atribuir

    qualquer espcie de continuidade secreta, ou de desenvolvimento oculto, que viria

    tona mais tarde, neste ou naquele filsofo posterior. No partiremos com a

    pressuposio de uma ordem teleolgica, qualquer que seja ela, subterrnea ao curso

    visvel da histria, e aparentemente no teleolgico. Nos manteremos na superfcie

    (em oposio ao seu sentido profundo) dos textos e da histria no porque neguemos

    a possibilidade de uma ordem mais profunda e invisvel, mas simplesmente porque a

    investigao dessa ordem subterrnea no a que temos proposto.

    Se por um lado devemos evitar uma interpretao etnocntrica, por outro

    devemos evitar uma interpretao anacrnica, apesar de o anacronismo no estar para a

    historiografia tal como o etnocentrismo est para a etnografia, e isso porque o

    anacronismo consiste fundamentalmente em um problema de carter epistemolgico,

    enquanto que o etnocentrismo consiste fundamentalmente em um problema de carter

    tico-poltico, com base epistemolgica. H algumas sutilezas acerca do problema do

    anacronismo que gostaramos de comentar.

    Cordero argumenta que um Parmnides platonizado to absurdo e anacrnico

    como um Aristteles tomista.26 Mas ser que podemos colocar a questo do

    anacronismo dessa maneira? Uma interpretao sempre uma traduo, em sentido

    lato. Uma traduo, em sentido lato, pode ocorrer (i) na passagem de uma lngua a outra

    (sentido estrito), mas tambm na passagem de uma linguagem a outra no interior de

    uma mesma lngua. Sempre que um discurso em uma dada linguagem traduzido em

    outro discurso em outra linguagem, seja na mesma lngua, seja em outra lngua, h

    interpretao. O que a interpretao? uma relao, complexa, de correspondncia

    entre dois discursos que busca reestabelecer o campo semntico do primeiro discurso no

    segundo. O trabalho que visa a recuperao do campo semntico de um discurso

    chamado de hermenutica. E a historiografia uma disciplina que se serve da

    26

    Cordero: 2011: xiii.

  • hermenutica, mas que no redutvel a ela. Plato no nem um historiador, nem um

    hermeneuta, apesar de ser um intrprete. So atividades ordinrias no dia a dia o salto, a

    corrida, mas isso no faz das pessoas, que saltam e correm no dia a dia, atletas dessas

    disciplinas. Da mesma maneira, na filosofia a interpretao de textos incontornvel, e

    pode ser mais ou menos requerida a depender da rea de pesquisa do filsofo, contudo

    isso no faz dos filsofos, necessariamente, hermeneutas. A atividade hermenutica

    uma atividade que exige dedicao e disciplina, e geralmente requerida na histria da

    filosofia. Plato e Aristteles interpretam os filsofos anteriores, mas essa no a sua

    ocupao filosfica principal. Em poucas pginas, no livro A de sua Metafsica,

    Aristteles apresenta a sua interpretao de toda a filosofia anterior a ele. Mas, no

    vemos nessas pginas uma discusso pormenorizada do sentido de cada conceito e tese

    filosfica interpretada. Ele saltou, mas no como um atleta do salto, ele um intrprete,

    mas no um hermeneuta.

    Acreditamos que a interpretao de Plato, ou a de Aristteles, sobre os pr-

    socrticos no o resultado de uma investigao hermenutica demorada, cuidadosa,

    pormenorizada e crtica. Por outro lado, no so interpretaes absurdas, nem

    anacrnicas como parece afirmar Cordeiro. Se a interpretao feita por Plato de

    Parmnides anacrnica, as interpretaes dos historiadores da filosofia

    contemporneos seriam ainda mais anacrnicas. No podemos interpretar Parmnides

    seno a partir da nossa linguagem, no interior da nossa lngua, cultura e tempo. Plato

    tem muito mais legitimidade cultural e histrica para interpretar Parmnides que

    qualquer historiador da filosofia contemporneo distante de Parmnides pelo menos

    dois milnios e meio. Todavia, essa legitimidade cultural e histrica de Plato no

    garante que a sua interpretao esteja correta.

    Ento vamos organizar as variveis do problema:

    1. As tradues ocorrem:

    a. De uma linguagem a outra, em uma mesma lngua; ou

    b. De uma linguagem a outra, entre lnguas distintas.

    2. Uma interpretao uma traduo que consiste no estabelecimento de uma

    relao de correspondncia que visa ao reestabelecimento do campo semntico

    do discurso fonte no discurso de destino (tambm nomeado de

    interpretao).

  • 3. Observao: a palavra interpretao nomeia o processo de traduo, bem como o

    texto produto que traduz o texto fonte. Daqui por diante: interpretao processo

    e interpretao produto, ou texto.

    Sobre o Anacronismo

    Na passagem de um conceito , em uma linguagem e lngua especfica, para um

    conceito , em outra linguagem e lngua, devemos considerar a transposio do campo

    semntico associado a para determinar se h, ou no, anacronismo. O campo

    semntico de evidentemente diferente do campo semntico de (a razo que

    pertence a uma linguagem e lngua diferentes),27

    mas pode ser semelhante e/ou

    equivalente. Quando associamos a varivel tempo aos conceitos e , e quando a

    diferena cronolgica afeta os campos semnticos de maneira visvel, e a traduo no

    capaz de recuperar (por semelhana, ou equivalncia) o campo semntico de (no

    tempo t0) no campo semntico de (no tempo tx, com x o), ento houve anacronismo na

    traduo/interpretao.

    Consideremos o seguinte exemplo: vamos supor que o poema de Parmnides

    tenha sido escrito no incio do sculo V a.E.C., e que o Parmnides de Plato tenha sido

    escrito na primeira metade do sculo IV a.E.C. Ambos os autores usam o termo dxa em

    seus trabalhos.28

    Agora, vamos supor que o termo dxa no incio do sculo V (t0) possua

    o campo semntico Dc0 e que Parmnides o empregue com o campo semntico Dp0, com p

    c. Dc0 o campo semntico comum (ou ordinrio) do termo dxa no tempo t0 (incio do

    sculo V), e Dp0 o campo semntico do termo dxa induzido pelo contexto do poema

    de Parmnides em t0. Os contextos textuais modificam os campos semnticos dos

    termos que neles aparecem. Como esses contextos so produzidos, isto , escritos

    segundo a inteno do autor, ento falamos de induo dos campos semnticos. Agora

    consideremos que o termo dxa na primeira metade do sculo IV possua o campo

    semntico Dcx e que Plato o empregue com o campo semntico Dpx, com p c. H

    anacronismo, se e somente se, Dc0 for diferente (no havendo semelhana nem

    equivalncia) de Dcx. E diremos que Plato interpretou anacronicamente Parmnides se

    27

    So conhecidos conceitos de linguagens e lnguas distintas com campos semnticos semelhantes, mas

    no h evidncias de conceitos de linguagens e lnguas distintas com campos semnticos idnticos. 28

    Em Parmnides o termo aparece j no primeiro fragmento, no verso 30; e no Parmnides de Plato o

    termo aparece, dentre outros, em 164b1 e 166a4 associado ao jogo semntico que ser realizado entre os

    verbos doken e phavesthai.

  • e somente se em sendo Dc0 Dcx Plato no tiver induzido em Dpx a diferena de Dc0 e

    Dcx. No caso em que os campos semnticos do termo dxa em Dp0 e em Dpx sejam

    diferentes (nem semelhantes, nem equivalentes) e Dc0 no seja semelhante, ou

    equivalente a Dcx, ento diremos que a traduo errnea.

    Sintetizando o que foi dito at aqui, temos que: o anacronismo ocorre apenas

    quando h uma diferena semntica de dois contextos histricos distintos, caso

    contrrio pode haver erro de interpretao, mas no anacronismo. Observemos que nem

    todo erro de interpretao deve-se ao anacronismo. pouco provvel que haja diferena

    semntica relevante do incio do sculo V a.E.C. primeira metade do sculo IV a.E.C.,

    e, portanto bem pouco provvel que Plato tenha sido anacrnico na sua interpretao

    de Parmnides, contudo necessria uma investigao semntica especfica para

    determinar se h ou no uma diferena semntica relevante entre esses dois contextos

    histricos. Mesmo sendo pouco provvel, pode haver. O mais provvel que Plato

    caso tenha se equivocado na sua interpretao o tenha feito por outras razes, como por

    exemplo, ele pode ter imputado ao campo semntico do termo dxa usado por

    Parmnides o campo semntico por ele induzido no termo dxa. Esse um erro muito

    comum de interpretao, e pode ser o caso no qual Plato tenha errado a, se que

    errou.29

    O caso de Aristteles e de Toms de Aquino muito distinto, no apenas por

    que filosofaram em lnguas distintas, mas tambm, e fundamentalmente, porque o

    fazem de contextos histricos e culturais j muito diferentes. Aqui sim h uma boa

    probabilidade de haver anacronismo.

    Dois importantes conceitos que merecem o nosso destaque so: (i) as condies

    que se fazem necessrias s demonstraes (chamadas de condies necessrias); e (ii)

    as condies que se fazem suficientes para as demonstraes (chamadas de condies

    suficientes). Postos os pressupostos conceituais metodolgicos, passemos aos

    procedimentos concretos e a algumas observaes de carter prtico.

    O nosso mtodo de trabalho consiste: (i) na apresentao/formulao das

    questes a serem respondidas; (ii) na apresentao/formulao das hipteses para a

    resoluo das questes propostas; e (iii) na anlise e avaliao das hipteses com base

    nas evidncias textuais e na compatibilidade das hipteses com os textos, procedendo

    29

    Como j havamos dito antes, Plato no um hermeneuta. E tendo em vista os seus dilogos, ele no

    parece fazer questo de s-lo. Plato costuma jogar com os conceitos com alguma liberdade potico-filosfica. Ao que tudo indica, o seu interesse fundamental muito mais dialtico que hermenutico. Ele

    parece se ocupar muito mais com o desenvolvimento dialtico dos conceitos e problemas que coloca em

    jogo, do que com a exegese hermenutica dos conceitos dos filsofos com os quais, acreditamos, joga.

  • por comparaes. As hipteses apresentadas so oriundas da literatura secundria (as

    formuladas so nossas), as evidncias textuais so oriundas da literatura primria e a

    avaliao da compatibilidade das hipteses com os textos de carter lgico,

    hermenutico e historiogrfico.

    Para o poema de Parmnides estamos utilizando a edio estabelecida por

    Cordero (2011) em Sendo, se . As tradues so na maior parte dos casos nossas,

    quando elas no forem nossas haver uma indicao dos tradutores.

    Algumas Consideraes Iniciais Sobre a Histria de Parmnides

    Em meados do sculo VI a.E.C. os focenses se estabeleceram no sul da Itlia na

    cidade, por eles chamada, de Eleia (provavelmente j habitada pelos Entrios conforme

    o que nos diz Herdoto)30

    . Pouco tempo depois, nesta cidade, ainda na segunda metade

    do sexto sculo a.E.C.,31

    nasceu o filsofo, legislador, mdico e fsico Parmnides.

    Nem todas as fontes atestam a atuao de Parmnides em todas essas reas. Com

    a exceo da sua atividade filosfica (largamente reconhecida), as fontes fornecem

    evidncias sobre a atuao de Parmnides ora em uma, ora em outra dessas atividades.

    A sua atuao como legislador atestada por Plutarco (Adv. Col. 32, p. 1126 A), por

    Estrabo (VI, 1, 1) e por Digenes (IX, 23).32

    A evidncia, a princpio nica, de que ele

    tenha sido mdico se encontra em um pedestal de uma esttua que traz a seguinte

    inscrio: Parmnides, filho de Pyres, mdico filsofo.33 As evidncias de que tenha

    se ocupado com a fsica antiga consistem das afirmaes de Aristteles (Metafsica A5

    986 b8 = DK 28 A 24),34

    de Jmblico (Vida de Pitgoras 166 [da Nicomaco] = DK 28

    A 4), de Eusbio (Crnicas. HIERON. [anno di Abramo 1561; ARM. ol. 81, 1 = 456] =

    DK 28 A 11) e de Simplcio (In Aristotelis Physicorum Libros Commentaria 9, 38, 20 =

    DK 28 A 34).

    30

    Cf. Herdoto I. 167 e Estrabo VI, 1, 1 = 252. 31

    Cf. DL. IX. 23 e Plato. Parmnides: 128b-c. Estamos abreviando Digenes Lercio (Vitae Philosophorum) com DL. 32

    A fonte de Digenes, neste caso, o livro Dos Filsofos de Espeusipo. 33

    Cf. Cordero, 2011: 10. 34

    Aristteles no afirma diretamente que Parmnides foi um filsofo fsico, mas ele se refere s teses de

    Parmnides no contexto em que trata das teses dos physiolgon.

  • As nossas fontes nos informam, ainda, que Parmnides foi um discpulo do

    pitagrico Amnias35

    e do poeta e filsofo Xenfanes. Parmnides, defenderemos,

    conservou na sua filosofia tanto elementos da filosofia pitagrica quanto da de

    Xenfanes, mas com uma tendncia para a primeira. A referncia a Amnias, que

    nica, oriunda de Sotio, um informante de Digenes Larcio, e traz consigo quatro

    importantes informaes. As referncias a Xenfanes so mais numerosas e oriundas de

    fontes variadas. Elas contradizem a afirmao de Cordero (2011: 11) segundo a qual

    nenhuma fonte antiga foi capaz de estabelecer a mais remota conexo entre ele

    [Xenfanes] e Parmnides.36 Comecemos pela referncia a Amnias.

    Digenes Larcio nos informa que (i) de acordo com Sotio Parmnides teria

    tambm convivido [ekoinnese: DL.IX.21.4] com o pitagrico Amnias. E que (ii)

    Amnias teria sido responsvel pela sua iniciao; literalmente, ele converteu

    [Parmnides] para o silncio (eis hesychan proetrpe: DL.IX.21.8). Inferimos que

    se trata de uma iniciao porque sabemos, por outras fontes, que os discpulos de

    Pitgoras eram submetidos ao silncio no perodo de sua iniciao. Por exemplo,

    Jmblico na sua Vida Pitagrica afirma que Pitgoras impunha aos aspirantes um

    silncio [siopn] de cinco anos, para testar a sua continncia (17.72.5-6).37 As duas

    outras informaes referem-se (iii) indicao de que Parmnides foi feito aclito (isto

    , discpulo) de Amnias [ekolothese: DL.IX.21.6] e (iv) ao assentamento de um altar

    heroico dedicado a Amnias [herion hidrysato: DL.IX.21.7]. Avaliando em conjunto

    as informaes acima mencionadas podemos inferir, com alguma segurana, que Sotio

    e Digenes situam Parmnides em um contexto propriamente pitagrico seja (i) pela

    referncia koinona de Parmnides com Amnias, seja (ii) pela referncia akoloutha

    de Parmnides em relao Amnias, seja (iii) pela converso ao silncio, ou ainda (iv)

    pelo assentamento do altar dedicado ao pitagrico. Estas informaes sugerem um

    contexto pedaggico semelhante ao do primeiro pitagorismo tal como descrito por

    Cornelli (2011) e endossado pelas fontes que nos chegaram. Se as quatro informaes

    forem verdadeiras, ento podemos consider-las em conjunto como condio suficiente

    para a incluso de Parmnides na tradio pitagrica, como sugere Cornelli (2005).

    35

    DL. IX. 21. 36

    O destaque em itlico nosso. 37

    A traduo de Cornelli (2011: 112). Para mais informaes e referncias sobre o tema do silncio no

    pitagorismo cf. Cornelli (2011: 123-125). Veja-se, tambm, Digenes Larcio (Vitae: 8.10.8), Iscrates

    (Busiris: 29.7 = DK 14 A 4) e DK 58 E 1 = II 370 Kock. H, tambm, uma passagem muito interessante

    de Digenes (Vitae: 8.33.4-5) na qual so relacionadas a prescrio do silncio com o culto aos deuses:

    mas, aos deuses sempre com o silncio sagrado solicitar as honras (all theos mn ae met euphemas tims ... den nomzein).

  • Todavia, h na passagem que exploramos de Digenes um mas e um tambm [d

    ka: DL.IX.21.4].

    Digenes nos diz que Parmnides escutou com ateno/ouviu como discpulo

    (dikouse: DL.IX.21.1) Xenfanes (tendo, portanto, convivido com ele) contudo,

    apesar disso, ainda que tenha ouvido em silncio (akosas [de ako]) Xenfanes no

    se deixou dirigir por ele. Mas, [Parmnides] tambm conviveu com o pitagrico

    Amnias (IX.21.1-5). Dentre os significados do verbo diakoo esto os seguintes: (i)

    escutar at o fim; (ii) escutar com ateno; (iii) ser discpulo de; e (iv) ouvir como

    discpulo. Ao examinamos com mais cuidado a passagem percebemos que o prprio

    Digenes Larcio, apesar de afirmar explicitamente que Parmnides seguiu Amnias,

    tambm afirma que Parmnides foi, no mnimo, um ouvinte atento de Xenfanes, ou

    talvez at, num primeiro momento, um discpulo que, posteriormente, no o seguiu.

    Com apenas essa referncia j demonstramos (i) que h pelo menos uma conexo entre

    Xenfanes e Parmnides estabelecida pelas fontes antigas, e (ii) que no uma conexo

    remota, pois, ter convivido com Xenfanes e t-lo ouvido atentamente ou ter sido seu

    discpulo (mesmo que dissidente) no pouca coisa. Mas Digenes Larcio no a

    nica fonte antiga a relacionar Xenfanes a Parmnides.

    As fontes antigas que relacionam Xenfanes a Parmnides, segundo o modo de

    relacionamento, so:

    a) Parmnides como ouvinte atento de Xenfanes:

    1. Digenes Larcio (DL.IX.21.1 = DK 28 A 1);

    b) Parmnides como discpulo de Xenfanes ou Xenfanes como mestre de

    Parmnides:

    1. Digenes Larcio (DL.IX.21 = DK 28 A 1) [referncia possvel];

    2. Suda Suidas s.v. (DK 28 A 2);

    3. Aristteles (Metafsica: A 5. 986 b 22 = DK 28 A 6) e (Metafsica: A5. 986 b

    21-23);

    4. Simplicius (In Aristotelis Physicorum Libros Commentaria: 9.22.27-28 = DK 28

    A 7);

    5. Sextus Empiricus (Adversus Mathematicos: VII, 111.1-2 = DK 28 B 1);

    c) Parmnides como companheiro/amigo/amante de Xenfanes:

  • 1. Eusebius Scr. Eccl. et Theol. (Praeparatio Evangelica: 1.8.5.1 = DK 28 A 22)

    [hetaros];

    2. Plutarchus (Strom. 5 = DK 28 A 22) [hetaros];

    d) Relacionados pela comunidade de conceitos filosficos:

    1. Simplicius (In Aristotelis Physicorum Libros Commentaria: 9.28.4-6 = DK 28 A

    7) [Leucipo no seguiu o caminho de Parmnides e de Xenfanes, referindo-se

    filosofia deles];

    2. Plutarchus (Strom. 5 = DK A 22);

    3. Aristteles (Metafsica: A5. 986 b 21-23);

    4. Acio (II 4, 11 [Dox. 332] = DK 28 A 36) e (IV 9, 1 [Dox. 396] = DK 28 A 49);

    5. Plato (Sofista: 242c-e) [referncia comunidade da tese da unidade do en

    entre os eleatas].

    e) Outros:

    1. Alexander (In Aristotelis Metaphysica Commentaria: 31.7 = DK 28 A 7)

    [(relao de ordem cronolgica) ter nascido depois de Xenfanes];

    2. Digenes Larcio (DL.I.15.7) [Xenfanes preceptor de Parmnides na escola

    itlica de filosofia];38

    3. Digenes Larcio (DL.IX.20.6-7) [Xenfanes comps A Colonizao da Eleia

    da Itlia ];

    4. Digenes Larcio (DL.IX.22.11-12) [Parmnides comps em versos como

    Hesodo, Xenfanes e Empdocles];

    As dez fontes que encontramos so: 1. Plato; 2. Aristteles; 3. Digenes Larcio; 4.

    Suda Suidas; 5. Simplicius; 6. Sextus Empiricus; 7. Eusebius; 8. Plutarchus; 9. Acio; e

    10. Alexander. Cinco delas fazem de Parmnides um discpulo de Xenfanes e cinco

    delas os aproximam pelas suas filosofias. Sendo referncias para os dois casos

    Aristteles e Simplcio. Este ltimo muito claro ao dizer que Xenfanes tn

    38

    Digenes no emprega o termo schol na passagem citada, mas sim os verbos kathegomai e diakoo,

    que podem ser traduzidos por ensinar e ouvir como um discpulo, respectivamente. Observemos ainda que o verbo diakoo , exatamente, o mesmo empregado em DL.IX.21.1 quando Digenes nos diz

    que Parmnides ouviu Xenfanes [Xenophnous d dikouse Parmendes]. O que favorece a interpretao/traduo deste verbo como ouviu como discpulo ou, simplesmente, como foi discpulo de.

  • Parmendou didskalon (Phys.: 9.22.27-28), e tambm no do margem para equvoco

    Aristteles, Suda Suidas e Sexto Emprico, todos eles empregam o termo mathets.

    Acreditamos, seja pelo nmero de fontes antigas apresentadas, seja pelo teor das

    conexes por elas estabelecidas entre Xenfanes e Parmnides, que a falsidade da

    proposio posta por Cordeiro esteja demonstrada. H, sim, conexes estabelecidas

    pelas fontes antigas entre Xenfanes e Parmnides, e no so remotas as conexes.39

    Parmnides foi, pelo menos, um ouvinte de Xenfanes, se pelo menos uma das

    fontes (dos tpicos a, b ou c) for verdadeira, contudo, mais provvel, em considerando

    as informaes que as fontes nos apresentam, que ele tenha sido, por algum tempo, um

    discpulo (um ouvinte mais dedicado) de Xenfanes. E pode ter sido tambm um

    discpulo de Amnias se estiver correto Sotio, o informante de Digenes.

    Ter ouvido um poeta e filsofo itinerante como Xenfanes que escreveu sobre a

    fundao da sua cidade natal40

    (ou mesmo ter sido seu discpulo em algum momento e

    por algum tempo) no exclui, nos parece, a possibilidade de Parmnides ter se tornado,

    em outro momento, um discpulo de Amnias, e vice-versa.

    39

    Vamos reunir as evidncias: (i) Xenfanes um poeta itinerante; (ii) Xenfanes escreveu sobre a

    fundao da cidade de Eleia; (iii) Xenfanes esteve na Sicilia (DL.IX.18); e (iv) podemos derivar de sete

    fontes distintas que Xenfanes teve contato direto com Parmnides (Digenes Larcio, Suda Suidas,

    Aristteles, Simplcio, Sexto Emprico, Eusbio e Plutarco, todas j citadas). Diante destas informaes

    plausvel defender que Xenfanes visitou a cidade de Elea na ocasio em que escreveu sobre a sua

    fundao e nesse momento Parmnides teve a oportunidade de ouvi-lo. 40

    Cf. DL.IX.20.6-7. A probabilidade de Xenfanes ter passado por Eleia aumentada se considerarmos

    que Xenfanes escreveu sobre a sua fundao, nessa ocasio Parmnides poderia ter tido a oportunidade

    de t-lo ouvido. Mas, contra as evidncias, ainda h (i) a possibilidade de Parmnides ter ido ao encontro

    de Xenfanes em outra cidade, (ii) a possibilidade de Parmnides ter adquirido os poemas de Xenfanes e

    de t-lo conhecido apenas por esses escritos, e (iii) a possibilidade de estarem erradas todas as fontes

    anteriormente citadas, mas com que evidncias sustentaramos isso? Cordero argumenta que nenhuma fonte antiga foi capaz de estabelecer a mais remota conexo entre ele [Xenfanes] e Parmnides, todavia j demonstramos que essa uma afirmao falsa.

  • CAPTULO 1: PARMNIDES E A TRADIO MTICA ARCAICA.

    O objetivo deste captulo compreender a relao de Parmnides com a tradio

    mtica arcaica. Por tradio mtica arcaica ns estamos nos referindo: (i) poesia

    pica de Homero e de Hesodo; e (ii) religio dos mistrios, em geral, e ao orfismo,

    em particular.

    As questes que motivam aqui a nossa investigao so: por que Parmnides

    escolheu escrever em verso quando a prosa cientfica j havia se estabelecido entre os

    fsicos da Jnia? E, em escrevendo em verso, por que o fez recorrendo ao discurso

    mtico tradicional quando havia a sua disposio um modelo de poesia crtico-

    cientfica?

    Parmnides conheceu as crticas de Xenfanes aos discursos de revelao

    religiosos tradicionais (DK 21B18 e 21B34), mesmo assim apresentou a sua filosofia

    sob a forma da revelao de uma deusa; ele conheceu tambm os resultados

    extraordinrios da investigao da natureza, particularmente no campo da astronomia

    (DK 28B10, 28B14 e 28B15), no obstante reproduziu as representaes

    antropomrficas das Filhas do Sol, bem como todo o juzo religioso e moral acerca de

    Hlios (DK 28B1.9 e 28B10).41

    Como afirmou Fernando Muniz (2009: 95), se

    Parmnides escolheu o hexmetro, escolheu, de certo modo, retroceder. A questo que

    nos envia nesta jornada de investigao : por qu?

    Alguns Elementos da Dimenso Formal do Estudo do Poema de Parmnides

    O Sobre a Natureza de Parmnides foi reconstitudo a partir das citaes que

    dele foram feitas por outros autores ao longo de aproximadamente um milnio.42

    Os

    autores que contriburam, sem sab-lo, para a sobrevivncia do poema foram: Plato

    (B7 e B8), Aristteles (B7, B8, B13 e B16), Sexto Emprico (B1, B7 e B8), Simplcio

    (B1, B2, B6, B7, B8, B9, B11, B12, B13 e B19), Proclo (B2 e B5), Clemente de

    41

    Notemos que o termo kathars (puro, ntegro, limpo, no contaminado), que em B10.2 aplicado ao Sol, pertence fundamentalmente ao campo moral, no ao da astronomia. 42

    Cf. Cordero (2011: 13-16).

  • Alexandria (B3, B4, B7, B8 e B10), Plotino (B3), Plutarco (B10, B13, B14 e B15),

    Schol. Basil (B15a), Galeno (B17) e Cael. Aurelian (B18).43

    O texto original havia sido escrito em versos hexmetros dactlicos que, segundo

    Fernando Muniz (2007: 37), esto na mtrica empregada e apropriada fala das

    Musas e dos orculos. Anteriormente citamos uma fonte antiga que afirmava que

    Parmnides havia escrito ao modo de Hesodo e de Xenfanes.44

    Salvo pela referncia

    Xenfanes, os historiadores da filosofia reconhecem unanimemente a conexo do

    poema de Parmnides com a tradio pica arcaica de Homero e Hesodo, que

    ultrapassa a identidade quanto mtrica e ao gnero literrio.

    Outro elemento formal importante do poema o seu dialeto. O poema foi escrito

    no dialeto jnico antigo, tambm chamado homrico, ou pan-helnico. Antnio Freire

    (2001: 250) observa que o dialeto homrico no constitui propriamente uma lngua

    falada em determinada regio. antes uma linguagem convencional baseada no jnico e

    em certas formas elicas, rcado-cpricas e ticas, de que se utilizou o autor da Ilada

    e da Odisseia, e que influenciou os diversos gneros poticos: lirismo, elegia e

    drama. No o nosso objetivo um estudo sistemtico dos elementos formais do poema,

    mas podemos citar alguns exemplos sobre a varivel dialetal na qual o poema foi

    escrito.

    No primeiro verso do poema temos: hppoi ta (...) (B1.1). ta o

    nominativo feminino plural do artigo no dialeto homrico, portanto as guas.45 No

    stimo verso do segundo fragmento temos: (...) m en (...) (B1.7). en o

    nominativo/acusativo neutro singular do dialeto homrico, no qual ocorre um acrscimo

    do (psiln) a algumas formas do particpio do verbo eim.46 No primeiro verso do

    sexto fragmento temos: (...) en mmenai (...) (B6.1). mmenai uma variao

    comum (por acrscimo da terminao -mevai, ou -men) do infinitivo do verbo

    eim: enai.47 Esses so apenas alguns exemplos de uma srie de outros que

    poderiam ser apresentados, mas que, fogem ao nosso propsito. Para um exame

    43

    As referncias completas podem ser encontradas em DK, inclusivamente as referncias aos fragmentos

    falsos (de B21 a B25) e ao fragmento incerto (B20). Simplcio (In Aristotelis Physicorum Libros

    Commentaria: 9.144.28) uma exceo entre os demais porque a razo pela qual cita os diversos versos

    do poema de Parmnides , tambm, a da escassez (spnis) da obra em sua poca. 44

    DL.IX.22.11-12. 45

    Cf.: Freire (2001: 251). Em Os Pensadores Originrios (1993: 43) Srgio Wrublewski se equivoca ao

    traduzir hppoi ta por os cavalos, o mesmo equvoco cometido por Gerd. A. Bornheim em Os Filsofos Pr-Socrticos (2003: 54). Atualmente, a melhor traduo para a lngua portuguesa do poema

    de Parmnides a do Fernando Santoro (2009). 46

    Freire (2001: 250). 47

    Freire (2001: 253). Em B2.6 temos mmen que igual a enai.

  • detalhado das caractersticas formais do poema (mtrica, composio, vocabulrio,

    fraseologia, etc.) recomendamos o primeiro captulo do livro The Route of Parmenides

    de Mourelatos (2008), bem como um estudo do dialeto homrico.48

    O conjunto de caractersticas apresentado (1. a escolha pela poesia, pelo verso;

    2. a escolha do hexmetro dactlico para a mtrica dos versos; e 3. a escolha do dialeto

    homrico) mostra que, com efeito, ao menos no nvel formal, Parmnides inscreveu o

    seu texto na tradio mtica arcaica.

    O poema est estruturado da seguinte maneira: ele dividido em duas grandes

    partes. A primeira vai de B1.1 at B1.23. A segunda abarca todo o restante do poema.

    Esta ltima, por sua vez, subdividida em duas outras partes: a primeira delas vai de

    B1.24 at B8.52; a segunda vai de B8.53 at o final em B.19.3, isto desconsiderando os

    fragmentos duvidosos e provavelmente falsos de B.20 a B.25. A primeira parte (de

    B1.24 at B8.52) da segunda parte (de B1.24 at o final) , tambm, dividida em duas

    outras partes: sendo a primeira de B1.24 at B8.2; e a segunda de B8.2 at B8.52.

    Estrutura:

    I. Primeira Parte vai de B1.1 at B1.23.

    II. Segunda Parte vai de B1.24 at o final (B19.3).

    a. Primeira Subparte de II vai de B1.24 at B8.52.

    i. Primeira Parte da Primeira Subparte de II vai de B1.24 at B8.2.

    ii. Segunda Parte da Primeira Subparte de II vai de B8.2 at B8.52.

    b. Segunda Subparte de II vai de B8.53 at B19.3.

    A parte I corresponde narrativa do koros, em primeira pessoa, da sua

    viagem at a morada da Deusa (The); mais precisamente, at o momento no qual ela, a

    Deusa, toma a palavra. Observemos que, a rigor, a narrativa permanece na primeira

    pessoa, a voz de todo o poema continua sendo a do jovem que a partir daqui (1.24)

    narra o que a deusa teria lhe dito como se a deusa estivesse falando.

    A parte II corresponde fala da deusa interpretada (posta em cena) pelo

    jovem. Esse discurso ir durar at o final do poema em B19.3. Por essa razo podemos

    dizer que todo o poema consiste na narrativa do jovem de sua viagem e do discurso, por

    48

    Mourelatos (2008: 1-46), trata-se da verso revisada e expandida da original de 1970, nos ocuparemos

    apenas com alguns dos motivos e temas destacados por ele. Para um estudo preliminar do dialeto

    homrico recomendamos Freire (2001: 250-255), Smyth (1984: 1-4B) e E. Ragon (2008: 241-250).

  • ele ouvido, da Deusa. Isso pode ser inferido da morfologia dos verbos do poema. Os

    verbos empregados em 1.23 para introduzir a palavra da Deusa so: (i) prosaudo na

    terceira pessoa do singular do indicativo ativo imperfeito: me que pode ser

    traduzido por [ela] dirigia a palavra a mim; e (ii) phem na terceira pessoa do singular

    do indicativo mdio-passivo imperfeito: pos phto que pode ser traduzido por: o

    discurso era dito; ou o discurso era contado; ou o discurso era narrado; ou o

    discurso era pronunciado; ou, ainda, o conto era dito. Enfim, h muitas

    possibilidades de traduo que querem dizer, grosso modo, que um discurso, ou que

    uma histria, um conto era contado, narrado, anunciado, etc. O tempo no qual a histria

    ocorreu , claramente, o do passado. A histria narrada no poema no consiste em uma

    narrativa ao vivo dos acontecimentos enquanto eles se do, mas sim na interpretao

    cnica dos acontecimentos passados como se eles estivessem se dando no presente (na

    parte II). por essa razo, a da interpretao cnica dos acontecimentos (i., da

    performao da narrativa), que h verbos tanto no tempo presente quanto no tempo

    passado; os verbos no presente so marcaes para a encenao, enquanto que os verbos

    no passado do carter narrativo ao conto. Podemos demonstrar isso pela anlise dos

    verbos em 1.24 e em 1.25:

    1.24.: Oh! jovem companheiro de guias imortais,

    1.25.: guas as que te conduzem, chegando a nossa morada (...)

    kour' athantoisi synoros Henichoisin

    masc masc/fem/neutr masc/fem Masc

    form. indecl. nominativo dativo nominativo Dativo

    singular plural singular Plural

    Hppois Ta se phrousin hiknon hemteron D

    masc/fem feminino 2 pessoa part.masc/neutr

    ind./3a pess.

    part./masc. masc./neutr. neutr.

    dativo nominativo acusativo atv./dat. atv./nom. acus/nom/voc nom/acus/voc

    plural Plural singular pres./plural pres./sing. Singular singular

  • Observemos que hppois e ta no esto no mesmo caso, e que

    athantoisi, henichoisin e hppois concordam em gnero, caso e nmero. Por

    essa razo, pode ser que as imortais guias de 1.24 sejam as guas de 1.25. ta, por

    sua vez, retoma hppois. Essa uma das caractersticas importantes de serem

    destacadas do dialeto homrico: os artigos podem equivaler a pronomes demonstrativos

    ou a pronomes relativos, por isso a traduo de ta por as que; poderamos ainda

    traduzir ta por estas que.

    [1.24] Oh! jovem companheiro de guias imortais, [1.25] guas

    estas que te conduzem, chegando a nossa morada, [1.26]

    bem vindo! (...).

    Argumentvamos que uma anlise de 1.24 e 1.25 nos permitiria observar que a

    histria narrada ocorrida no passado e encenada no presente como se estivesse

    ocorrendo no momento em que contada. Pois, como vimos, os verbos que introduzem

    a fala da Deusa (de 1.24, 1.25, e seguintes) estavam no imperfeito: me e

    pos phto. O jovem, o narrador, nos diz que a Deusa dirigiu a palavra a ele (dirigia

    a palavra a mim) e, ento, o discurso (pos) foi dito (phto) (o discurso era dito).

    Naquela passagem, claramente narrativa, os verbos esto no passado imperfeito, j na

    fala da Deusa (1.24-25), que quela passagem se segue, os verbos esto no presente:

    phrousin e hiknon, o primeiro no indicativo presente, cujo sujeito ta, e o

    segundo no particpio presente cujo sujeito hemteron d. Isto , a histria narrada

    como se a prpria Deusa estivesse, neste momento, falando, quando na verdade ela

    falou ao jovem no passado (o que sabemos por 1.23). Trata-se, portanto, de uma

    interpretao cnica da fala da Deusa por parte do narrador da histria, cuja voz se

    confunde com a do prprio jovem da narrativa.

    Em sntese a estrutura comporta algumas divises e subdivises. Temos a

    narrativa que o jovem faz da sua viagem at a morada da Deusa (Parte I), temos a

    interpretao cnica da fala da Deusa feita pelo jovem como se esta fala, a da Deusa

    (Parte II), estivesse ocorrendo no presente. Ademais, essa fala (pos) comporta, por sua

    vez, outras divises internas.

    A Deusa apresentar ao jovem duas dxai: a dos mortais e a dxa dela prpria

    que consiste no corao da verdade. Antes de iniciar a apresentao das dxai, dela e

    dos mortais, h uma rpida introduo (estamos nos referindo aos versos de B1.24 a

  • B2.2). Na sequncia a Deusa apresentar as vias de investigao fazendo algumas

    observaes e comentrios (de B2.3 a B8.2), depois apresentar o corao da verdade

    (de B8.2 a B8.52) e, finalmente, as dxai dos mortais (de B8.53 a B19.3).

    Estrutura:

    I. (A Narrativa da Viagem do Jovem) de B1.1 at B1.23.

    II. (A fala da Deusa) de B1.24 at o final (B19.3).

    a. (Introduo Investigao + As Vias de Investigao + O Corao da

    Verdade) de B1.24 at B8.52.

    i. (Introduo Investigao + As Vias de Investigao) de B1.24

    at B8.2.

    1. (Introduo Investigao) de B1.24 a B2.2.

    2. (As Vias de Investigao) de B2.3 a B8.2.

    ii. (O Corao da Verdade) de B8.2 at B8.52.

    b. (As Especulaes dos Mortais) de B8.53 at B19.3.

    As partes do poema so, ento, o promio (B1.1 a B1.23), a introduo

    investigao (B1.24 a B2.2) que Mourelatos chama de seo programtica,49 as vias

    de investigao (B2.3 a B8.2), o corao da verdade (B8.2 a B8.52) e as especulaes

    dos mortais (B8.53 a B19.3).

    A histria narrada se passa, na sua maior parte, na morada de The, a Deusa (que

    defenderemos ser, tambm, a morada de Hemra, a deusa Dia), isto porque a maior

    parte do poema consiste no discurso da Deusa, o qual proferido na sua prpria casa. A

    jornada em direo morada de Hemra segue a partir da morada de Nx (a deusa

    Noite). Essa uma indicao de que o trajeto percorrido coincide com o trajeto do carro

    de Hlios (o deus Sol). Essa evidncia apoiada pela presena das Helides (as deusas

    Filhas de Hlios) que podem ser, no menos que, as guias do caminho (confrontar os

    49

    Mourelatos (2008: 4). Mourelatos distingue uma seo programtica para cada uma das partes principais do poema (o corao da verdade e as dxai dos mortais), mas de 1.24 a 2.2 temos muito mais

    uma apresentao do programa de pesquisa geral que uma apresentao de um dos programas de pesquisa

    em particular. Por outro lado, poder-se-ia argumentar que de 8.51 a 8.61 temos a seo programtica referente s dxai, mas o mais correto dizer que temos um comentrio sobre as dxai que serve como

    uma introduo s dxai, e no uma seo programtica como quer Mourelatos.

  • versos B1.5 com B1.9).50

    Nada mais razovel que as Helides como guias do caminho

    de Hlios, isto , aquele que vai da morada de Nx morada de Hemra.

    As personagens centrais do poema so as guas, as Helides, o jovem, a Deusa,

    Thmis e Dke. H muitas outras deusas, e alguns deuses, citadas pela Deusa ou

    presentes nos discursos dos mortais. Observaramos que apenas nos discursos dos

    mortais que aparecem figuras divinas masculinas, como o prprio Hlios. H,

    tambm, divindades cuja presena no poema percebida, mesmo nos momentos nos

    quais elas no so diretamente nomeadas. Esse o caso, por exemplo, de Aithr (o deus

    Luz) cuja presena perceptvel nos portais que separam as moradas de Nx e de

    Hemra (B1.13).

    J sabemos que o poema de Parmnides est conectado tradio mtica anterior

    por razes formais, bem como j tomamos conhecimento das possveis conexes de

    Parmnides com Amnias e Xenfanes os representantes da filosofia de sua poca e

    contexto geogrfico. Agora, passaremos a uma anlise mais pormenorizada dessas

    conexes tambm no nvel dos contedos do poema. Comearemos com a tradio

    mtica arcaica pica e rfica para em seguida passar s suas assimilaes crticas no

    protopitagorismo e na filosofia de Xenfanes.

    Parmnides e a Poesia pica

    A literatura comparada no nos permite negar que no poema de Parmnides

    estejam presentes imagens, palavras, personagens, objetos, em sntese, motivos e

    temas51 da poesia pica da qual Parmnides se serve. Mas que haja tais elementos, ou

    no, no a questo hermenutica fundamental. A questo relevante para a

    interpretao do poema de Parmnides : que sentido esses elementos, oriundos da

    tradio, possuem no poema de Parmnides?52

    50

    H uma interessante possibilidade interpretativa na qual o substantivo, que aqui funciona como um

    adjetivo, korai (de kre; em: B1.5) esteja qualificando as guas (em B1.4), j que concorda com o substantivo hppoi em nmero, gnero e caso. Se assim for, a relevncia das Filhas do Sol no poema reduzida. 51

    Mourelatos (2008: 11). 52

    Muitos intrpretes cometem o erro de assumir uma resposta para essa questo antes da anlise

    comparativa, fazendo da anlise no uma investigao da questo mas to somente um meio pelo qual

    podem buscar subsidiar a sua posio tomada de antemo. Erro esse (Petitio Principii) que devemos

    evitar com o maior cuidado.

  • A apario dos mesmos nomes, por exemplo, no implica na identidade dos seus

    sentidos.53

    Fernando Santoro (2007) observou apropriadamente que a diferena do

    discurso mtico e do discurso fsico no est nos objetos que estes discursos colocam,

    mas no modo como esses objetos so postos. Hlios nomeado no poema de

    Parmnides em B10.2 mas em um contexto no qual o imperativo conhecer a natureza

    de:

    E [tu] conhecers a natureza etrea de todos os sinais no ter,

    tanto da chama do Sol luminoso puro, quanto donde se geraram

    as aes invisveis.

    (10.1) esei d aitheran te phsin t t em aithri pnta (10.2)

    smata ka kathars euagos eeloio (10.3) lampdos rg

    adela ka hoppthen exegnonto.

    Este um contexto de investigao tipicamente astronmica, tal como o aquele

    de Scrates descrito por Aristfanes nas Nuvens (225-227).54

    Se as dxai dos mortais

    so a segunda via de investigao definida por Parmnides, ento essas referncias aos

    deuses da tradio no se fazem, certamente, do mesmo modo e, portanto, possuem j

    um sentido outro relativamente quele da tradio mtica. O nosso objetivo medir,

    com a maior preciso possvel, a que distncia Parmnides est da tradio que lhe

    antecede e da qual ele extrai, sem qualquer dvida, muitos dos elementos que emprega

    na constituio da sua reflexo filosfica.

    A Jornada pica

    Uma das comparaes de maior destaque do poema de Parmnides com a

    tradio pica a da jornada do koros com a jornada de Odisseu. H muitos elementos

    comuns s duas narrativas (como a presena de escoltas, para Odisseu e para o koros,55

    53

    Mourelatos (2008: 6) foi muito cuidadoso ao examinar o problema, mesmo tendo se inclinado por um

    contexto semntico comum. The likelihood is that what came with the Homeric Word was also its semantic context in the epic. 54

    Cf. Santoro (2009: 84ss). 55

    Mourelatos (2008: 18-19).

  • a comparao das naus com os rpidos cavalos,56

    e a presena fundamental das

    divindades que indicam, ou sinalizam, o caminho a ser percorrido57

    ) o que sugere a

    possibilidade de uma equivalncia formal e/ou temtica.58

    Uma equivalncia formal das

    jornadas consistiria na identidade das estruturas textuais formais subjacentes s duas

    narrativas. Enquanto que uma equivalncia temtica consistiria na identidade temtica

    (seja de motivo seja de tema) das duas narrativas, o que bem mais plausvel. Ambas as

    narrativas recorrem a certo nmero de elementos lexicais comuns, como os termos

    hods, kleuthos, pmpo (dentre outros)59

    e consistem, com efeito, na narrativa de uma

    ou mais jornadas. No caso de Odisseu trata-se da jornada, ou viagem, de retorno a sua

    ptria, taca; j no caso do poema de Parmnides h uma primeira jornada do koros

    morada da Deusa e uma segunda jornada do pensamento ao corao da verdade e s

    especulaes dos mortais (confrontar B2.2 com B1.26-32). reconhecvel nas duas

    narrat