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0 Danielle Ka Mey Mo Uma proposta bilíngüe de educação infantil para Surdos Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Faculdade de Educação – Curso de Pedagogia 2007

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Danielle Ka Mey Mo

Uma proposta bilíngüe de educação infantil para Surdos

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

Faculdade de Educação – Curso de Pedagogia

2007

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Danielle Ka Mey Mo

Uma proposta bilíngüe de educação infantil para Surdos

Trabalho apresentado como requisito para

conclusão da Habilitação Educação Infantil

à Comissão de professores responsáveis

pelo curso: Profªs. Dras. Maria Ângela

Barbato Carneiro, Marisa Del Cioppo Elias,

Neide Barbosa Saisi e Neide de Aquino

Noffs, sob orientação da Profa. Dra. Marisa

Del Cioppo Elias

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

Faculdade de Educação – Curso de Pedagogia

2007

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"Quando eu aceito a língua de outra pessoa, eu aceito a pessoa.

Quando eu rejeito a língua, eu rejeitei a pessoa porque a língua é parte de

nós mesmos.

Quando eu aceito a Língua de Sinais, eu aceito o Surdo, e é importante

ter sempre em mente que o Surdo tem o direito de ser Surdo. Nós não

devemos mudá-los, devemos ensiná-los, ajudá-los, mas temos que

permitir-lhes ser Surdo.”

Terje Basilier

psiquiatra Surdo norueguês

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Dedicatória

Dedico este trabalho:

à minha família, que tanto me apoiou durante cada etapa significativa de minha vida.

Pai, Mãe, Su e Taitai, Muito obrigada! Mais uma etapa vencida.

à Comunidade Surda.

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Agradecimentos

Agradeço:

à Professora Maria Inês da Silva Vieira, que com seu profissionalismo e

comprometimento com a luta pelos direitos dos Surdos, encanta-me e me

transformou em uma agente multiplicadora dessa causa, e assim possibilitou que eu

criasse a temática dessa obra. Obrigada pelo apoio incondicional.

à Professora Marisa Del Cioppo Elias, que há tempos me acompanha no trilhar de

meu caminho acadêmico, amparando-me tanto cognitivamente como

emocionalmente.

às demais professoras da habilitação de Educação Infantil e do EDAC.

às colegas da habilitação de EDAC: Ângela de Paula, Carla, Claudia, Daniela,

Eliane, Isabel, Joadenira, Juliana, Larissa, Mariana, Maruzka, que durante todo

esse ano me apoiaram e com as intensas discussões em sala de aula me

propiciaram reflexões belíssimas.

às colegas da habilitação de Educação Infantil pela companhia no decorrer desse

ano. Em especial, agradeço à Ana Maria Costacurta, Paula Schein e Vânia Freixo,

que me muito me apoiaram durante esse ano, encorajando-me a continuar.

Obrigada pela amizade e pelo apoio.

aos amigos que fiz durante o curso de Pedagogia e que mesmo distante me

ajudaram na construção desse trabalho, seja com bibliografia, grupos de estudos,

quanto horas de entretenimento. Agradeço meus amigos: Lívia Esrenko, Renatinho,

André, Carlinhos, Mário Serri, Liane Chu, Letícia Ximenes, Vilma Ferreira, Alexandre

Mourad, Aline Ferro e Rodrigo Brasil. Em especial a: Natali Boyadijian, Mara Ruzza

e Marina Berti

à Débora Schuskel amiga, companheira de trabalho e defensora da causa dos

Surdos junto comigo. Este sonho começou com nossas reflexões e juntas, sei que

chegaremos à nossa utopia.

ao Jônatas Moraes (Tatá), companheiro de trabalho e amigo fiel.

ao Fred pelo intenso apoio e companhia.

aos colegas/amigos de trabalho da Fundap, pela paciência durante o decorrer do

ano, pela cooperação e pelo incentivo: Tania Tavares, Suzanete Coelho, Guilherme

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Azem, Bruno Leote, Christian Nastari, Thiago Utihata, Valéria Moraes, Jorge

Rodrigues, Joselaine Barbosa, Raquel Soares, Ana Silvia Montrezol, Flávio

Camargo, Marcelo Ângelo, Gustavo Tokuno, Elaine Cristina e Márcia Pereira.

aos meu professores de Libras, Daniel Choi, Juscelino e Ricardo Nakasato.

à minha família, por estar ao meu lado desde que nasci. Construímos juntos esse

sonho que ainda não chegou ao final, posso dizer que esse trabalho é apenas um

início.

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Resumo

.

A partir de uma concepção sócio-antropológica da surdez, na qual a surdez é

vista como uma diferença e não uma patologia e considera o Surdo como um

indivíduo pertencente a uma comunidade minoritária, a comunidade surda, com

direito à língua e cultura própria, este trabalho tem como objetivo apresentar uma

proposta bilíngüe de educação infantil para crianças Surdas.

Dessa forma, essa pesquisa foi qualitativa, tendo como base os autores:

Carlos Skiliar, Maria Inês Vieira, Lodenir Karnopp, Maria Cecília Moura e a

observação de uma sala de Educação Infantil numa escola para crianças Surdas da

Prefeitura do Município de São Paulo.

Por meio do estudo da história da educação dos Surdos, relatos de amigos

Surdos e a realidade observada na escola, pude constatar qual seria o modelo ideal

de educação para os Surdos, levando em consideração sua questão orgânica, que o

impede de adquirir naturalmente a língua oral da sociedade, sua identidade e sua

cultura.

Palavras chave: Educação de Surdos, bilingüismo, Libras, Comunidade Surda,

Identidade Surda.

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Sumário

Introdução.....................................................................................................................8

1. As concepções de surdez e de sujeito Surdo........................................................10

1.1. Concepções de surdez.............................................................................10

1.1.2.Concepção clínico-patológica......................................................10

1.1.3.Concepção sócio-antropológica...................................................12

1.2. Comunidade Surda e a Identidade do Surdo...........................................13

1.3. Libras........................................................................................................15

2. As abordagens usadas na educação de Surdos através do tempo.......................17

2.1. Abordagens orais......................................................................................17

2.1.1. Abordagem Uni-sensorial............................................................17

2.1.2. Abordagem Multi-sensorial.........................................................18

2.2. Comunicação total....................................................................................19

2.3. Bilingüismo................................................................................................20

2.3.1. O bilingüismo ao redor do mundo...............................................22

3. Educação Infantil: período critico da aquisição de linguagem para criança

Surda......................................................................................................29

3.1. A importância do brincar na aquisição da linguagem...............................30

4. Caracterização de uma escola da prefeitura para crianças Surdas

de São Paulo: a importância da Língua Brasileira de Sinais no processo de

formação do sujeito Surdo..........................................................................32

Considerações finais..................................................................................................35

Referências bibliográficas..........................................................................................39

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Introdução

Escolhi o curso de Pedagogia, pois sempre tive um apego muito grande com

crianças e o fato de poder auxiliá-las em seu desenvolvimento integral como ser

humano é muito valioso para mim. Lembro-me até hoje de todas as minhas

professoras e gostaria de marcar a vida de todos os meus alunos como essas

fizeram comigo. Desde que ingressei na faculdade, meu plano era me habilitar em

Educação Infantil, entretanto, durante meu percurso acadêmico, dois novos campos

temáticos surgiram: o processo de alfabetização e o trabalho com “pessoas com

necessidades especiais”, mais especificamente, a surdez. Esses dois campos

temáticos me encantaram pois o primeiro foi tema do grupo de pesquisa no qual

participei e pude vivenciar na prática o sucesso de muitos de meus alunos, e o

segundo por conviver com indivíduos Surdos na própria faculdade. Assim, meu

interesse se ampliava e optei por uma formação completa, buscando me habilitar

nessas duas áreas do saber: Educação Infantil e Educação dos Distúrbios da

Audiocomunicação (EDAC).

A temática dessa obra surgiu quando, ao buscar pelo problema de pesquisa,

tentei relacionar minhas duas habilitações. Inicialmente minha proposta era

desenvolver um trabalho voltado para o processo de alfabetização de crianças

Surdas. No entanto, após realizar alguns estudos sobre sua aquisição de linguagem,

constatei que a Língua de Sinais é a língua natural para o Surdo, pois sua condição

orgânica faz com que ele utilize primordialmente sua percepção visual-espacial.

Desse modo, antes que consiga utilizar a língua da sociedade ouvinte, que não é

sua língua natural, é necessário que ele esteja inserido em um ambiente lingüístico

que propicie a aquisição de uma língua visual-espacial, a Língua de Sinais, como

sua primeira língua e, conseqüentemente, esteja imerso em uma cultura direcionada

ao fato de não ouvir.

Meu estudo tem como base uma concepção sócio-antropológica da surdez, a

qual considera o Surdo como um indivíduo pertencente a uma comunidade

minoritária, a comunidade surda, com direito à língua e cultura própria. É no

encontro com os seus iguais que o Surdo tem a possibilidade de adquirir uma língua

acessível a ele, uma língua visual-espacial, a Língua Brasileira de Sinais, e

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compartilhar valores culturais, hábitos, modos de socialização, construindo uma

identidade surda. Essa concepção nega a visão do Surdo como um deficiente que

necessita de cura para poder readaptar-se a sociedade, ou seja, a busca pela

oralização do Surdo (Skliar, 2004).

A partir dessa concepção, bem como por acreditar na formação de educandos

críticos e assim capazes de modificar sua realidade, faz-se necessário questionar a

prática que vem sendo desenvolvida na educação dos Surdos: o porquê, mesmo

com uma vasta bibliografia publicada sobre o fracasso da tentativa de oralizar o

Surdo, essa prática ainda vem sendo desenvolvida. E assim, apresentar uma

proposta bilíngüe de educação para crianças Surdas, na qual a primeira língua será

a Língua de Sinais e a segunda língua, a Língua Portuguesa na modalidade escrita.

A faixa etária de Educação Infantil foi escolhida, pois a infância é um período crítico

para a aquisição de linguagem.

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1. As concepções de surdez e de sujeito Surdo

Segundo Vieira (2000), as concepções de surdez e de sujeito Surdo, tem

variado ao longo do tempo de acordo com a época e com o interesse vigente, seja

pelo prisma de misticismo, pela piedade cristã, pela necessidade de preservação e

perpetuação da nobreza, do poder, pelo desejo de unificação da língua pátria, pelos

avanços da medicina, da ciência, da tecnologia ou pelos interesses políticos. Essas

concepções direcionaram as abordagens usadas na educação de Surdos, como

veremos mais adiante.

Podemos localizar três períodos na história da educação de Surdos, sendo que

no primeiro período, antes de 1760, os estudantes surdos eram educados

particularmente, já no segundo período, entre 1760 e 1880, estabeleceram-se as

escolas para surdos. Nessa época iniciou-se um debate sobre qual dos dois

métodos, “oral” ou “manual”, era o melhor. No Congresso de Milão, em 1880,

venceu o método oral, que marcou a história da educação de Surdos como um

período negro, no qual os Surdos foram destituídos de seus cargos como

advogados, professores, historiadores etc. para sub-empregos como faxineiros,

merendeiros etc. O terceiro período, de 1880 para cá, três principais métodos têm

sido usados: o método oral, o método escrito e o método que utiliza a língua de

sinais porém,o método oral tem predominado (Vieira, 2000)

1.1. As concepções de surdez

1.1.2. Concepção clínico-patológica

Essa concepção, segundo Skliar (2004), também conhecida como medicalização

da surdez, considera a surdez com uma doença, um déficit biológico e busca a cura

do individuo, por meio da correção de defeitos da fala e treinamento de certas

habilidades menores, como a leitura labial e o treinamento da articulação, ou seja: a

busca para tornar a criança surda um adulto ouvinte e desse modo, inseri-lo na

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sociedade majoritária (ouvinte). Atualmente podemos visualizar essa busca pela

cura por meio do Implante Coclear. 1

A organização metodológica institucional dessa concepção, cuja maior

representante é a abordagem oralista, supõe que seja possível ensinar a linguagem

e se baseia na idéia de que existe uma dependência unívoca entre a eficiência ou

eficácia oral e o desenvolvimento cognitivo. Desta forma, a abordagem oralista

afirma que a Língua de Sinais não constitui um verdadeiro sistema lingüístico, pois a

define como um conjunto de gestos carente de estrutura gramatical, um tipo de

pantominia desarticulada, que limita a aprendizagem da língua oral.

Essa concepção de surdez e de sujeito Surdo foca o trabalho no aspecto

negativo da surdez (questão orgânica) e busca sua normalização (oralização). As

questões individuais de identidade e necessidades são deixadas de lado, e assim, o

Surdo fica em uma crise de identidade: por um lado ele vive o estigma de deficiente,

que é a mensagem que lhe é passada; por outro, existe a identidade surda, já que

compartilha atividades com outras crianças e adultos Surdos na escola especial.

Essa dualidade de sentimentos pode levar ao fracasso escolar e exclusão social dos

mesmos.

Desse modo, as escolas deixam de ser espaços educadores e tornam-se clinicas

e/ou hospitais reabilitadores; os alunos se tornam pacientes em busca da cura da

surdez; o educador se transforma em um especialista e assim considera seu

educando/pacientes como indivíduo limitado e planeja as atividades de acordo com

essa representação de incapacidade. Assim, o fracasso escolar é atribuído ao

próprio aluno e ao fato dele ser Surdo, porém, na realidade, o que ocorre é que não

se explora suas potencialidades e sim, somente a recuperação da audição e da fala,

ou daquilo que lhe falta. Os conteúdos escolares e competências dos alunos, ou

seja, a prática pedagógica se baseia no fato de que as crianças surdas não podem

vencer o déficit, isto é, não podem reverter sua própria natureza.

Em uma abordagem oralista que compartilha dessa concepção, “a Língua de

Sinais, especificamente, se transforma em um símbolo de repressão física e

psicológica; qualquer outro objetivo, fosse ou não pedagógico, como a aquisição da

1 O implante coclear é um dispositivo eletrônico de alta tecnologia, também conhecido como

ouvido biônico, que estimula eletricamente as fibras nervosas remanescentes, permitindo a transmissão do sinal elétrico para o nervo auditivo, a fim de ser decodificado pelo córtex cerebral. – disponível em: www.implantecoclear.com.br – acesso em 11/09/2007

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língua escrita, a aprendizagem de conteúdos escolares ou a integração igualitária ao

mundo do trabalho, etc., constituíam um problema de segunda ou terceira ordem, e

se condicionavam a um hipotético futuro educativo, posterior ao saber da língua oral,

um saber tão improvável como impossível.” (Skliar, 2004; 78)

Numerosas pesquisas mostraram o estado de atraso em que se encontravam as

crianças e adolescentes Surdos em relação aos seus companheiros ouvintes. Allen

(In: Skliar, 2004; 80) apontou que o nível médio de leitura dos adolescentes Surdos

americanos era equivalente à de uma terceira ou quarta série e que a atuação em

cálculos matemáticos é inferior à uma sétima série. Podemos também constatar

esse atraso em uma pesquisa realizada por Volterra (In: Skliar, 2004;80) na Itália,

cujos resultados mostraram que mais de 43% dos significados de um certo número

de palavras avaliadas é totalmente desconhecido pelos adolescentes Surdos.

Ao considerar esses dados, Skliar propõe uma série de indagações a respeito

dessa concepção clínico-patológica:

”Pode-se atribuir uma causa natural à dificuldade das crianças e jovens

surdos para aceder aos conhecimentos escolares? É a surdez, a perda

auditiva, a causa original dos limites lingüísticos e cognoscitivos dos surdos?

Este é o único destino imaginável para estas pessoas? Ou ao contrário, é a

pedagogia, sua concepção de sujeito educativo, sua modalidade e objetivos

de funcionamento, a responsável pelos fracassos?” (Skliar, 2004; 80).

Esses questionamentos foram os norteadores para o meu trabalho. Qual é a

função da escola na educação do Surdo? Como deve ser a postura do educador

diante de seus educandos Surdos?

1.1.2. Concepção sócio-antropológica

Nessa concepção, os Surdos deixam de ser vistos como pacientes que

necessitam de cura e são vistos como indivíduos que formam uma comunidade

lingüística minoritária que se caracterizam por compartilhar uma língua, a de Sinais,

valores culturais e hábitos de socialização próprios. O que delineia a identidade

dessa comunidade é a Língua de Sinais, ou seja, os componentes desse grupo

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compartilham e conhecem os usos e normas de uso da mesma língua, pois

interagem cotidianamente em um processo comunicativo eficaz e eficiente e, desse

modo, desenvolvem competências e habilidades lingüísticas e comunicativas.

Dentro dessa comunidade, o grau de perda auditiva não é levado em consideração.

O que se considera é o uso da Língua de Sinais, o sentimento de identidade grupal,

o autoconhecimento e a identificação como Surdo, o reconhecer como diferente e

não como deficiente. “Pode-se dizer, portanto, que existe um projeto Surdo da

surdez”.

Diante desses pressupostos, vale ressaltar que essa comunidade é formada

somente por Surdos, aqueles que se envolvem ideologicamente são chamados de

comunidades de solidariedade, segundo Skliar (2004).

É necessário destacar, que apesar do poder dessa comunidade, ela reflete e

integra as forças do grupo externo: ouvinte, por exemplo, a própria estrutura da

Língua de Sinais mostra interferências lingüísticas por estar em contato com a língua

oral.

A visão sociocultural sobre a surdez está atrelada com os princípios dos

direitos humanos (ONU) regras de Padrões e a Declaração de Salamanca2, acima

de tudo uma concepção sobre o ser humano como uma pessoa igual, mas diferente.

A maioria dos Surdos não se identifica especificamente como um grupo de

deficientes, no sentido pejorativo de incapacidade, portanto sua luta tem sido

objetiva, no intuito de remover os obstáculos no seu ambiente, permitindo-lhes

alcançar direitos iguais como cidadão na sociedade. Dessa forma fica fácil analisar o

conceito da visão de deficiência dos próprios deficientes, pois eles vêem a

“deficiência como uma parte de si mesmos, sendo que os obstáculos que eles

enfrentam residem no ambiente e não na própria pessoa”. (Jokinen, 1999; 109)

1.2. Comunidade surda e Identidade do Surdo

Para Higgins (In: Moura, 2000:70) ser membro da Comunidade de Surdos

significa identificação com os Surdos, ter compartilhado experiências de ser Surdo e

participar das atividades da comunidade. Estas experiências compartilhadas são os

problemas de viver num mundo ouvinte, que sempre são relatadas como 2Disponivel em http://portal.mec.gov.br/seesp/arquivos/pdf/salamanca.pdf - acesso em 02/02/2007.

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experiências frustrantes e embaraçosas. Por outro lado, a comunicação dentro da

Comunidade de Surdos é garantida, fácil e natural: não existe vergonha em ser

Surdo, o Surdo se sente confortável e confiante. É o lugar onde o Surdo encontra,

pelo menos parcialmente, uma resposta para a interação insuficiente no mundo

ouvinte.

Entendo como “comunidade” o lugar onde os Surdos se encontram, onde o

Surdo se sente entre os iguais, seja na escola residencial, clubes de Surdos,

eventos esportivos de Surdos, festas de Surdos, associações, entre outros. Locais

estes nos quais os Surdos compartilham experiências e aprendem a se tornar uma

pessoa Surda, ou seja, eles constroem sua identidade Surda. Para Mottez (In:

Moura, 2000; 71) é por meio desta construção de sujeito que o Surdo vai aprender a

se locomover com dignidade e efetividade, sem estar sempre se representando

como deficiente, no mundo dos ouvintes, pois é nesse ambiente relaxado que ele vai

aprender as regras sociais de inter-relação, por meio de uma linguagem e uma

forma de comunicação a qual lhe é natural e clara. Assim, ele pode esquecer-se

completamente da surdez, que não será uma peça de discriminação, ele não

precisará se esforçar para compreender o que é falado, ele não precisará tentar

parecer igual a todos, ele poderá se sentir humano e completo, não lhe faltando um

pedaço, que ele busca desesperadamente completar.

Em contato com seus pares o Surdo pode aprender muito mais, sem erros ou

confusões e passa a entender melhor o mundo dos ouvintes e a se relacionar

melhor também com este mundo.

Quem é esse sujeito Surdo? Por que “Surdo” e não “surdo”? Padden (In:

Moura, 2000; 71) define como “Surdo”, o indivíduo que, tendo uma perda auditiva,

não está sendo caracterizado pela sua “deficiência”, mas pela sua condição de

pertencer a um grupo minoritário com direito a uma cultura própria e a ser respeitado

na sua diferença. E “surdo” como a condição fisiológica de não ouvir. Nesse

trabalho, considera-se o indivíduo como Surdo, ou seja, acredito no ser integral e

não o classifico como uma patologia que deve ser curada.

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1.3. Libras – Língua Brasileira de Sinais

Segundo o livro A Journey Into the Deaf- World (In: Bezerra, 2006: 29) "os

lingüistas reconhecem agora que a capacidade natural de aprender um idioma e de

passá-lo aos filhos está profundamente enraizada no cérebro." A força da Língua

Brasileira de Sinais, suas ricas características e componentes fazem dela um

poderoso instrumento lingüístico que permite ao indivíduo Surdo ser amplamente

beneficiado com todo o amplo conhecimento humano, inclusive a aquisição de uma

segunda língua, sendo ela na modalidade oral ou escrita.

A Língua Brasileira de Sinais (Libras) é uma língua visual-espacial articulada no

espaço, através das mãos, das expressões faciais e do corpo. É a língua usada pela

comunidade surda brasileira, e reconhecida como meio legal de comunicação, como

sistema lingüístico de natureza viso-motora, com estrutura gramatical própria, pela

Lei 10.436 de 24 de abril de 20023, sancionada pelo então presidente Fernando

Henrique Cardoso. A Lei enfatiza, ainda, a necessidade de que a Língua Brasileira

de Sinais - LIBRAS seja objeto de uso corrente nas Comunidades Surdas; procura

assegurar a presença de profissionais intérpretes nos espaços formais e instituições,

como na administração pública direta e indireta e a inclusão do ensino de LIBRAS

nos cursos de formação de Educação Especial, Fonoaudiologia e Magistério, bem

como profissionais intérpretes, sendo optativo para o aluno e obrigatório para a

instituição de ensino.

Outra medida que garante a Libras como língua de instrução e de comunicação

para o Surdo, bem como o acesso e o direito de atendimento em Libras nas esferas

políticas, educacionais e da saúde, é o Decreto nº 5.626 de 22 de dezembro de

20054 que regulamenta a Lei nº 10.436 de 24 de abril de 2002 e o art. 18 da Lei nº

10.0985, de 19 de dezembro de 2000.

3 Lei nº 10.436 de 24 de abril de 2002 - disponível em

http:// portal.mec.gov.br/seesp/arquivos/pdf/lei10436.pdf - acesso em 30/09/2007. 4 Decreto nº 5.626 de 22 de dezembro de 2005 – disponível em

http://www.planalto.gov.br/CCIVIL/_Ato2004-2006/2005/Decreto/D5626.htm - acesso em 30/09/2007. 5 Art. 18. O Poder Público implementará a formação de profissionais intérpretes de escrita em braile,

Língua de Sinais e de guias-intérpretes, para facilitar qualquer tipo de comunicação direta à pessoa

portadora de deficiência sensorial e com dificuldade de comunicação. - disponível em

http://www.planalto.gov.br/ccivil/LEIS/L10098.htm - acesso em 30/09/2007.

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O Decreto dispõe sobre: a inclusão da Libras como disciplina curricular

obrigatória nos cursos de formação de professores, em nível médio e superior e nos

curso de Fonoaudiologia e cursos de licenciatura, nas diferentes áreas do

conhecimento; a formação do professor e do instrutor de Libras; o uso e a difusão da

Libras e da Língua Portuguesa para o acesso das pessoas surdas à educação. Em

seu capitulo IV, o Art. 14 estabelece que: “As instituições federais de ensino devem

garantir, obrigatoriamente, às pessoas surdas acesso à comunicação, à informação

e à educação nos processos seletivos, nas atividades e nos conteúdos curriculares

desenvolvidos em todos os níveis, etapas e modalidades de educação, desde a

educação infantil até à superior”; e garante a formação do tradutor e intérprete de

Libras - Língua Portuguesa.

Em seu capítulo VI, garante o direito à educação das pessoas Surdas ou com

deficiência auditiva por meio da organização de (escolas e classes de educação

bilíngüe, abertas a alunos Surdos e ouvintes, com professores bilíngües, na

educação infantil e nos anos iniciais do ensino fundamental; de escolas bilíngües ou

escolas comuns da rede regular de ensino, abertas a alunos Surdos e ouvintes, para

os anos finais do ensino fundamental, ensino médio ou educação profissional, com

docentes das diferentes áreas do conhecimento, cientes da singularidade lingüística

dos alunos Surdos, bem como com a presença de tradutores e intérpretes de Libras

- Língua Portuguesa).

O Decreto prevê ainda: a garantia do direito à saúde das pessoas surdas ou com

deficiência auditiva e o papel do Poder Público e das empresas que detêm

concessão ou permissão de serviços públicos, no apoio ao uso e difusão da Libras.

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2. As abordagens usadas para o desenvolvimento da linguagem na

educação de crianças Surdas

Desde os primórdios das civilizações até o final da década de 60, o foco da

educação dos Surdos era a sua reabilitação ou a cura da patologia do Surdo

pautada em uma concepção clínico-patológica. O objetivo era reabilitar a audição do

“deficiente auditivo” e ensinar a fala. A partir do final da década de 60, a Língua de

Sinais tornou-se objeto de estudos lingüísticos e pesquisas comprovavam que filhos

Surdos de pais Surdos obtinham melhores resultados escolares, inclusive no uso da

escrita; também apareceram as reivindicações das comunidades Surdas pelo direito

de usar sua Língua. Esses acontecimentos foram gradativamente trazendo

mudanças para a educação de Surdos.

2.1. Abordagens orais

Essas abordagens são também conhecidas como “métodos orais-aurais” e se

caracterizam pelo enfoque na amplificação do som, ou seja, no aproveitamento dos

resíduos de audição do Surdo e na busca da oralização do mesmo por meio da fala.

Enfatizam a visão da surdez como uma incapacidade, deficiência ou doença que

deve ser curada, ou seja, o enfoque é na reabilitação do individuo para inseri-lo na

sociedade majoritária (ouvinte). As abordagens orais se diferenciam pelo canal que

é priorizado na aquisição da linguagem, sendo divididas em uni-sensorial e multi-

sensorial.

2.1.1. Abordagem Uni-sensorial

Essa abordagem também conhecida como Acupédia, busca desenvolver

apenas a audição e a fala. Foi preconizada nos Estados Unidos, no início do século

XX, por volta da década de 70, por Doreen Pollack, tendo como base o “método

acústico” do Dr. Max Goldstein, que desenvolveu projetos para treinamento de

audição residual: a criança era levada a usar seus resíduos de audição sem que a

face ou as mãos a distraíssem. (Vieira, 2000).

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Desse modo, para que a aquisição de linguagem fosse efetuada com

sucesso, fazia-se necessário que o diagnóstico da surdez fosse precoce, e assim,

desde cedo, a criança começaria a utilizar o aparelho de amplificação sonora. Outro

fator relevante fazia relação aos estímulos que deveriam ser recebidos inicialmente

em casa, nas relações familiares e posteriormente na escola, onde a criança deveria

conviver com crianças ouvintes que propiciassem essa interação com o mundo

ouvinte; devia-se evitar que a criança convivesse com grupos de Surdos, já que a

proposta era que ela fosse preparada para uma vida ‘normal’, isto é, num mundo de

pessoas ouvintes.

Assim que a criança tivesse sido treinada a escutar, iniciava-se um trabalho

de estimulação intensiva da linguagem, tanto a falada quando a interior (expressiva

e receptiva).

Pollack (Vieira, 2000; 66) sugere que os mesmos padrões seguidos durante a

aquisição da linguagem por crianças ouvintes fossem utilizados com crianças

Surdas, pois essas têm a mesma habilidade inata de adquirir linguagem que as

crianças com audição normal.

2.1.2. Abordagem Multi-sensorial

Essa abordagem teve como representante mais importante Derek Sanders,

também nos Estados Unidos, na década de 70. Sua preocupação era desenvolver

ao máximo a habilidade de comunicação, enfatizando os aspectos visuais e

auditivos. Diferentemente da abordagem uni-sensorial, que enfocava a reabilitação

como caráter evolutivo, essa abordagem enfoca um modelo de comunicação, que

visava a fortalecer as áreas de “fraqueza” (audição) por meio do desenvolvimento de

canais compensatórios, como a visão.

Esse modelo também se refere ao treinamento auditivo. Para Sanders,

(Vieria, 2000; 70) a máxima comunicação para o deficiente auditivo ocorre quando

visão e audição atuam juntas.

O treinamento da comunicação visual é um processo sistemático, com o

intuito de aumentar a quantidade de informação. Assim, seguem três objetivos:

primeiramente, o objetivo é familiarizar o paciente quanto ao papel da visão na

comunicação. Segundo, desenvolver um conjunto perceptual, visando aos estímulos

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visuais, ou seja, tornar o aluno mais consciente das pistas visuais. Terceiro, ensinar

a pessoa a distinguir entre amostras de fala, nas quais a redundância de pistas

visuais vá diminuindo progressivamente, ou seja, se a princípio a criança poderia

utilizar-se de seus resíduos auditivos e da leitura oro-facial, progressivamente a pista

visual vai sendo retirada.

2.2. Comunicação total

Nos anos 60 e 70, diversos estudos comparativos (In: Vieira, 2000; 72) foram

realizados entre crianças Surdas, filhas de pais Surdos, e crianças Surdas, filhas de

pais ouvintes. Os resultados mostraram que as crianças Surdas filhas de pais

Surdos obtinham melhores resultados na área acadêmica do que as crianças Surdas

de pais ouvintes, incluindo a leitura e escrita. As pesquisas também mostraram que

as crianças que chegavam à escola com conhecimento em Língua Americana de

Sinais se adaptavam melhor à escola, estavam melhor socializadas e tinham mais

atitudes positivas do que os colegas Surdos, de pais ouvintes.

Esses resultados influenciaram na transformação do sistema educacional dos

Surdos: ao invés do inglês falado usavam-se métodos combinados ou simultâneos,

que tinham como objetivo a oralização.

Além da insatisfação com os resultados do oralismo, as primeiras pesquisas

sobre as línguas de sinais, desenvolvidas por Stokoe, como por exemplo, a “Sign

Language Structure” em relação à Língua de Sinais Americana, tinham como

objetivo atribuir estatuto lingüístico à mesma. (In: Vieira, 2000; 72).

Na década de 70, segundo Moores (In: Vieira, 2000; 73), havia nos Estados

Unidos cerca de quatro métodos de instrução: o método oral - uni e multi-sensorial, o

método Rochester que utilizava uma combinação do método oral mais o alfabeto

digital, e o método Simultâneo, uma combinação entre sinais, método oral e alfabeto

digital.

Para alguns autores (Vieira, 2000; 73), a Comunicação Total é considerada

como uma extensão do método simultâneo, enquanto outros a vêem como uma

filosofia que respeitava as necessidades individuais da criança, primeiramente pelo

uso de símbolos que abrangem todas as modalidades sensoriais (visuais e

auditivas): língua de sinais, alfabeto digital, gestos criados pela criança, amplificação

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da audição residual, fala, leitura labial, leitura e escrita. Dessa forma, cada criança

aprende de acordo com suas necessidades e capacidades, considerando a

especificidade de cada criança.

Embora a Comunicação Total tenha sido idealizada como uma filosofia que

encorajava o uso de todas as formas de linguagem, na prática ela se tornou um

método simultâneo que utiliza a fala e a sinalização simultânea dos vocábulos

relevantes do que era falado, na ordem da língua da comunidade ouvinte. Foi o que

Schlesinger (In: Vieira, 2000; 75) disse se tratar do uso de uma só língua produzida

em duas modalidades, que ela nomeou de bimodalismo.

Dessa forma, quanto posta em prática, a Comunicação Total se transformou

em um método que visa a oralização, a normalização do Surdo, ou seja, trabalha

numa concepção clínico-patológica da surdez que a entende como uma deficiência e

como tal deve ser compensada ou curada. E assim, não propicia a aquisição da

Língua de Sinais, uma vez que são usados apenas alguns sinais como apoio para

acompanhar a estruturação frasal da língua oral majoritária, o que não se constitui

como uma Língua.

2.3. Bilingüismo

Essa abordagem, diferentemente das mencionadas anteriormente, segundo

Vieira (2000), não é uma abordagem educacional e sim uma abordagem de

exposição à língua. Essa abordagem surgiu com a valorização da Língua de Sinais,

a reivindicação da comunidade surda do direito de usá-la, com as pesquisas cada

vez mais aprofundadas quanto à fonologia, morfologia, sintaxe e semântica da

Língua de Sinais, com as críticas formuladas em relação ao uso simultâneo de fala e

sinais, e com o movimento de oposição ao monoculturalismo.

Esse movimento denominado multiculturalismo se caracterizou pela

reivindicação das minorias ao direito a uma cultura própria, direito de ser diferente,

de adotar uma língua, credos, de pertencer a uma raça e denunciavam a

discriminação a que eram submetidos. No caso dos Surdos, as diferenças referem-

se aos aspectos lingüísticos; valores e atitudes que fazem com que a surdez seja

vista como uma diferença e não como uma doença; estilos cognitivos, nos quais a

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diferença está na forma de perceber o mundo pela via visual e de práticas sociais

que se estabelecem pela forma da linguagem.

O bilingüismo propõe que o Surdo seja exposto a duas línguas, sendo a

primeira a Língua de Sinais, e a segunda, a língua majoritária da comunidade

ouvinte. Logo, possui como princípio de base o fato de que as crianças Surdas são

locutoras naturais de uma língua adaptada às suas experiências do mundo e às

suas capacidades de expressão e compreensão: a Língua de Sinais.

Kozlowski (2000; 87) apresenta uma classificação das propostas

educacionais com bilingüismo, considerando a época ou período de apresentação

das línguas e a modalidade da língua majoritária a ser trabalhada como segunda

língua.

Quanto ao período ou época de apresentação das línguas, a autora se refere

a dois modelos: o modelo sucessivo e o simultâneo.

No modelo sucessivo, logo após o diagnóstico da surdez, a criança Surda

passa a ser exposta exclusivamente à Língua de Sinais. Uma segunda língua só

será apresentada após o domínio da primeira.

No modelo simultâneo, as duas línguas, a Língua de Sinais e a da

comunidade ouvinte são apresentadas simultaneamente, em dois momentos

lingüísticos distintos. Neste modelo, não é necessário que a criança adquira

totalmente a Língua de Sinais para adquirir a segunda língua.

Entendendo que dentro de um enfoque bilíngüe é sempre a Língua de Sinais

que será considerada como primeira língua (L1) do Surdo e como a língua mais

importante, pois esta garantirá seu desenvolvimento lingüístico, e a segunda língua

(L2), será a língua da comunidade majoritária (ouvinte), que poderá ser a língua oral

ou a língua escrita, a autora apresenta a seguinte proposta:

• L16 Língua de Sinais, L2 língua escrita, modelo sucessivo.

• L1 Língua de Sinais, L2 língua oral, modelo simultâneo.

(Kozlowski, 2000; 88)

6 Alguns autores como Felipe e Quadros (In: Vieira, 2000; 78) se referem à primeira língua como L1 e a segunda como L2.

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2.3.1. O bilingüismo ao redor do mundo

Neste ano, na disciplina de Princípios e Métodos da Educação dos Distúrbios

da Audiocomunicação, na habilitação de EDAC do Curso de Pedagogia, como

proposta de um trabalho acadêmico buscamos pesquisar o bilingüismo dos Surdos

ao redor do mundo, para traçar uma linha de comparação com os projetos de

bilingüismo existentes aqui no Brasil.

A classe foi separada em grupos e cada qual ficou responsável por um país,

devendo então caracterizar como e quando a proposta de educação bilíngüe foi

implantada no país: Venezuela, Uruguai, Colômbia, Países Nórdicos (Dinamarca,

Noruega, Suécia, Finlândia e Islândia) e Chile.

Na Venezuela, em 1985, um projeto nacional implanta a proposta bilíngüe em

todas as escolas especiais oficiais do país (no total quarenta e três).

O modelo bilíngüe venezuelano foi baseado em uma visão sócio-

antropológica da surdez, ou seja, não vêem o Surdo como alguém que precisa ser

curado, mas o respeita em suas diferenças lingüísticas e culturais.

O currículo das escolas respeita o Surdo, as especificidades de sua

comunidade surda, sua língua, história e cultura. A Língua de Sinais é a primeira

língua e a escrita e/ou oral como segunda. A escola propicia o contato com o adulto

Surdo, como modelo positivo de capacidade e esse participa da construção do

projeto pedagógico.

No Uruguai, a exemplo da Venezuela, em 1987 houve o reconhecimento da

Língua de Sinais como língua “natural” do Surdo e um projeto de implantação do

Bilingüismo na educação de Surdos.

No entanto, durante sua implantação ocorreram alguns problemas que

impossibilitaram a sua efetivação quando do desenvolvimento de um plano piloto.

Os problemas enfrentados no Uruguai foram semelhantes aos que

impossibilitaram a efetivação de uma proposta bilíngüe na Venezuela: a

desigualdade de formação entre professores ouvintes que obrigatoriamente

deveriam ter o título de Mestrado enquanto que para os instrutores Surdos, havia

uma proposta de um curso de formação em tempo reduzido e com exigência de

nível primário completo; a dissociação entre o estudo teórico do professor ouvinte e

sua atuação, pois estes teoricamente aceitavam a língua de sinais e a cultura surda,

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mas na prática, acabavam dedicando quase todo o horário às práticas de oralização

e usando a Comunicação Total; problemas de elaboração de um currículo que

atendesse as necessidades e especificidades do Surdo, sua cultura, história e língua

(estas ocupavam um lugar de inferioridade); a língua espanhola era usada pelos

professores acompanhada de sinais da Língua de Sinais (método da Comunicação

Total) para a transmissão de conhecimento; o ensino da língua escrita foi um

problema sem solução; e dificuldades de aceitação por parte da direção da escola.

A Colômbia, até 1984, ainda trabalhava com o método oralista, ou seja, com

uma visão clínica da surdez, buscando a cura da patologia. No entanto, nesse

mesmo ano, a Federação Nacional de Surdos da Colômbia (FENASCOL) reivindicou

o uso da Língua de Sinais e algumas escolas abriram suas portas para a Língua de

Sinais, na forma de Comunicação Total.

Todavia o reconhecimento da Língua de Sinais como língua só ocorre em

1996. Com essa conquista, em 1997, ocorreu o fortalecimento das associações de

Surdos e participação em projetos educacionais, assim os Surdos tinham o direito a

uma educação bilíngüe e direito à intérprete.

Esses serviços oferecidos são realizados em Centros de Educação Especial

ou reabilitação que, em sua maioria, atendem outras deficiências.

Dentre as mudanças ocorridas, o Surdo é incluído como assistente de sala do

professor ouvinte que tenham conhecimento e bom uso da Língua de Sinais. Esta

proposta fez com que o Instituto Nacional da Pessoa Surda, entrasse em contato

com outros países da América Latina e com a proposta da Suécia de educação

bilíngüe. Dessa forma, em 1999, criaram uma escola bilíngüe para Surdos em Santa

Fé (Bogotá), cujo foco era a criança menor de cinco anos num projeto

bilíngüe/multicultural. Essa escola trabalha com um total de dezessete crianças, três

adultos Surdos e uma professora de pré-escola (atuação conjunta); essa proposta

inclui o ensino de Língua de Sinais aos pais, integração destes e seus filhos com a

comunidade surda, sua cultura e história, modelo positivo de adulto Surdo.

Os Países Nórdicos representados pela Dinamarca, Noruega, Suécia,

Finlândia e Islândia adotaram uma abordagem bilíngüe na educação dos Surdos,

com práticas educacionais, metas, conteúdos de currículos, diferenciadas dos

sistemas predominantemente usados em todo o mundo.

Há nos países nórdicos, os seguintes tipos de escola: pensionatos na

Finlândia (3), na Noruega (6) e Islândia (1). Na Suécia, há cinco escolas particulares,

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no entanto, os alunos não moram na escola. Na Finlândia há 14 escolas locais

municipais sem dormitórios, entretanto, na Dinamarca, há três escolas municipais

que se caracterizam como casa de estudantes. Há, ainda, aquelas escolas públicas

nas quais os Surdos e alunos com dificuldades de audição são separados em

classes especiais: Na Noruega (6), na Dinamarca (7), na Suécia (7) e na Finlândia

(2).

Na Suécia, Noruega e Dinamarca, todas as escolas de Surdos são bilíngües.

A Língua de Sinais é a primeira língua do currículo e usada para instrução, a língua

majoritária é aprendida como uma segunda língua por meio da leitura e escrita. O

treinamento da fala é individual.

Na Finlândia, a educação bilíngüe foi mencionada pela primeira vez, em 1987,

no Basics of the National Curriculum dor the deaf Education.

Na Islândia existe uma proposta para que a Língua de Sinais seja incorporada

no currículo básico, uma vez que para escola que queira adotar o método bilíngüe, o

comitê da Escola Vesturhlidarskoli, representados por volta de 30 alunos, escreverá

um relatório ao Ministério da Educação.

A quantidade de professores Surdos qualificados para trabalhar com alunos

Surdos e com dificuldades auditivas tem crescido consideravelmente, fazendo com

que jovens Surdos se preparem para serem professores.

Traduzindo em números, há na Suécia 40 professores Surdos, 20 na

Dinamarca, 35 na Noruega, 4 na Finlândia e 2 na Islândia. O diretor da escola

Vesturhlidarskoli, na Islândia é Surdo, e os diretores da Folk High Schools of the

Deaf na Dinamarca, Suécia e Finlândia são também Surdos.

Na Noruega, a Língua de Sinais Norueguesa (NSL – Norwegian Sign

Language) é reconhecida na lei das escolas obrigatórias, que compreende a

educação de crianças de 0 a 16 anos. A família tem direito a um curso de 40

semanas na Língua de Sinais Norueguesa.

Na Suécia, existe uma lei que declara que a Língua de Sinais Sueca (SSL –

Swedish Sign Language), como a primeira Língua dos Surdos, dando oportunidade

a todo Surdo tornar-se bilíngüe. Ela foi reconhecida como língua oficial em 1982.

Na Dinamarca, a Língua de Sinais Dinamarquesa (DSL – Danish Sign

Language) é a primeira língua dos Surdos. O currículo é independente para o ensino

dessa disciplina na escola desde o jardim de infância até o 2º grau. O Ministério da

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Educação desse país ordenou que a partir de 1992, o ensino da língua fosse

oficializado em todas as escolas para as crianças surdas e nas escolas públicas.

Na Finlândia, a Língua de Sinais (FinSI – Finnish Sign Language) foi

reconhecida como Língua em 1995, na constituição do país e os direitos do uso da

língua são protegidos por lei, sendo essa língua considerada como uma das línguas

maternas (outras são o finlandês, o sueco, o romeno e o sami) no Currículo Nacional

Básico da Escola.

Foi aprovado no parlamento Islandês, em 2000, a Língua de Sinais como

língua materna dos Surdos. E em 1997, a Língua de Sinais foi reconhecida como

língua. As leis com relação aos direitos do paciente reconhecem a Língua de Sinais

como a língua materna dos Surdos islandeses.

Um experimento bilíngüe realizado em 1982, na Dinamarca, constatou que

uma classe que foi analisada desde o início até o final da escola, atingiu um nível de

graduação igual ou acima de outros alunos Surdos que não estudavam num modelo

bilíngüe.

Um grande estudo na Suécia demonstra que “comparado com os colegas da

mesma idade, treinados oralmente duas décadas antes, os graduandos da

oitava série nos anos 80 mostraram maior nível de resultado teórico. Eles

eram particularmente superiores na compreensão e no uso do sueco

escrito, mas também era evidente a diferença nos testes numéricos e

matemáticos. O nível de conhecimento teórico tinha aumentado

drasticamente nas crianças surdas que tiveram acesso a comunicação

visual e gestual em seus anos na pré-escola nos anos 80, comparado com o

resultado dos colegas da mesma idade treinados oralmente nos anos 60.”

(Jokinen, 1999 ;114)

Na Noruega, planeja-se qualificar estudantes Surdos para que se tornem

professores bilíngües.

Na Finlândia foi criado um programa de mestrado, o qual visa à formação e

qualificação de professores Surdos, na Língua de Sinais como língua materna e o

finlandês como uma segunda língua.

No Chile o atendimento realizado com os Surdos visa apenas a oralização.

Alguns profissionais lutam pelo direito da pessoa Surda e o respeito pela sua cultura,

história e língua, ou seja, uma proposta bilíngüe/bicultural.

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Em 1926, foi fundada Associação de Surdos que trabalha com recreação,

esporte, cultura, mães, terceira idade e cursos de Língua de Sinais. Há também uma

Confederação de Não-Ouvintes do Chile que tem como objetivo principal a defesa

dos direitos do Surdo. Todas as Associações lutam pela melhoria da educação do

Surdo, legalização da Língua de Sinais (que ainda está em Projeto de Lei) e inclusão

no mercado de trabalho. Todavia, essas associações não trabalham integradas.

Os Surdos são considerados pessoas que não podem se expressar e incapazes

de responder juridicamente, necessitando ter um representante legal. Há uma lei

que restringe o direito do Surdo ao casamento, formação de família e disposição

livre de seus bens.

Na década de 70, iniciou-se a inclusão de alunos Surdos nas escolas municipais.

No entanto, no início da década de 80, para que essa inclusão fosse feita, foi

adotado como pré-requisito o uso da língua oral, pois se constatou que somente

com a língua oral, ocorria o insucesso da educação. Então, iniciou-se uma busca de

solução, passando-se a adotar a Abordagem da Comunicação Total. Esse marco

ocorreu com a fusão de duas escolas especiais, que utilizam a educação bimodal.

Em 1999, ocorreu o Congresso Chileno de Educação Bilíngüe-Bicultural, que

centrou esforços para oferecer educação bilíngüe para crianças e jovens adultos

Surdos. Com isso ocorreu a aceitação da Língua de Sinais como língua materna e o

uso do bilingüismo como forma de comunicação e iniciam-se as aulas de Língua de

Sinais para profissionais, pais e alunos Surdos, com professor Surdo da Associação

de Surdos. E então, observou-se bons resultados nos alunos, que passaram a ter

opinião própria, interesse nos estudos, interação entre Surdos e ouvintes.

O objetivo do governo é a inclusão no ensino comum, desconsiderando aspectos

fundamentais para o êxito dessa inclusão, parecendo que o objetivo maior é o

financeiro, uma vez que o aluno Surdo custará 50% menos se estiver incluído.

A inclusão só obtém sucesso quando: o aluno possui elevado QI; boa leitura oro-

facial, leitura de textos; desenvolvimento cognitivo; iniciativa e independência.

O Chile é bastante atrasado no que diz respeito à Educação Especial e inclusão.

Os projetos são desenvolvidos por ouvintes não levam em consideração a opinião

do Surdo.

Há pessoas ouvintes atuando como instrutores de Língua de Sinais em escolas

especiais.

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O uso da Língua de Sinais ocorre apenas em projetos isolados, mas que

conseguem mostrar a importância da adoção da mesma na Educação e na

aprendizagem de segunda língua. Nesse sentido, têm iniciado estudos lingüísticos,

seminários, debates.

A experiência bilíngüe-bicultural no Chile acontece em uma escola particular,

ligada à Universidade Metropolitana que atende 100 crianças surdas.

Contam com 6 profissionais Surdos auxiliando os professores, um professor

Surdo de artes e tecnologia, inspetores Surdos e 3 co-educadores pré-escolares.

Possuem atendimento precoce de 0 a 2 anos, pré-básico de 2 a 7 anos com

ambiente em Língua de Sinais Chilena ; Básico complementar (1a. a 8a.) que conta

com uma pessoa surda para aquisição de Língua de Sinais e Cultura Surda, 2 vezes

por semana em cada sala. Existe um trabalho de atenção auditiva e fala 2 vezes por

semana em atendimento individual ou em dupla; aula de LS para professores e

familiares.

Há dificuldade de aceitação por parte de orientadores profissionais, pois o

oralismo, ainda é presente fortemente e este novo enfoque educacional não é

valorizado ou reconhecido pela maioria dos profissionais.

Assim, foi possível perceber que diferentemente dos países da América do Sul, a

educação de Surdos nos países Nórdicos é bem estruturada e desenvolvida. Todos

os países contam com uma proposta bilíngüe que tem início antes mesmo da

criança ir para a escola, começa em casa, onde os Professores Surdos vão ensinar

a Língua de Sinais para a família e promover a aquisição da mesma pelo bebê.

Desta forma, ao chegar à escola, a criança Surda já tem uma língua adquirida e irá

ampliar seu conhecimento sobre a mesma, sobre o mundo e aprender a língua

majoritária na modalidade escrita. Essa aprendizagem é construída trabalhando o

contraste entre as duas línguas.

Como esse processo começou na década de 80, os Surdos tiveram oportunidade

de acessar o conhecimento, se formarem como Professores, PHDs, Doutores e

atuarem na educação de crianças Surdas, ou seja, construíram um Projeto Surdo

para a surdez. Assim, nos países nórdicos, os Surdos foram, de fato, incluídos no

mundo da comunicação, da linguagem e do conhecimento, o que aponta para a

necessidade urgente de que o Brasil possa entender que o Surdo não é deficiente,

que a Língua de Sinais anula a deficiência lingüística e que o Surdo poderá sonhar

em ser aquilo que desejar ser, basta o deixarmos ser Surdo e olharmos para ele

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como alguém diferente porém, plenamente capaz. A política inclusiva do governo

atual desconsidera a especificidade da surdez, a necessidade de implantarmos o

bilingüismo em todas as escolas de Surdos e assim melhorarmos sua qualidade, e

não fechá-las, pois elas são o espaço onde a criança Surda terá possibilidade de se

encontrar com seus iguais, adquirir sua língua, se constituir como alguém capaz,

ser, de fato, um cidadão e exercer sua cidadania de forma plena.

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3. Educação Infantil: período crítico da aquisição de linguagem para

a criança surda

O ser humano é o único que depende de outro para sobreviver, ou seja,

desde muito cedo o bebê aprende a se comunicar com sua mãe através do choro

para pedir comida, carinho, troca de fralda etc., criando, assim, uma forma de

comunicação – por meio de uma mediação simbólica, passando do ato voluntário ao

intencional, resultante das funções psicológicas superiores.

Dessa forma é com o passar dos anos que a criança, sempre interagindo com

o grupo de sua espécie, descobre e incorpora um sistema simbólico o qual será sua

ligação, integração com o mundo externo, resultando numa língua e cultura.

A partir da base biológica que o indivíduo possui (seu corpo, órgãos internos,

visão, audição, tato, cérebro etc.), ele terá subsídios para interferir, interagir,

integrar-se na sociedade.

A ciência mostra que o período que vai da gestação até o sexto ano de

vida, particularmente de 0 a 3 anos, é o mais importante na preparação

das bases da competência e habilidades no curso da vida humana, pois é

nesse período que se formam 90% das conexões cerebrais , graças a

interação do bebê com os estímulos do ambiente. Acreditava-se que a

organização cerebral era determinada basicamente pela genética, agora

os cientistas comprovaram que ela é altamente dependente das

experiências infantis. (Fontes para a educação infantil, 2003; 17)

Considerando, então, como aquisição de linguagem, o processo que resulta

no conhecimento de uma língua, considerando que tal língua não é ensinada, mas

adquirida naturalmente e que para que uma língua seja adquirida de forma natural, é

necessário que a criança seja exposta a uma língua, ou seja, que haja ambiente

lingüístico, qual seria essa língua para alguém que não ouve? (Karnopp, 2005; 41)

Considerando o exposto, para a criança Surda não é possível adquirir a

língua oral de forma natural, por conta de bloqueio sensorial que a impossibilita de

receber os estímulos sonoros, ou como coloca Karnoopp (2005), o input lingüístico

que o circunda. Embora ela seja capaz de aprender a falar, dificilmente será capaz

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de compreender a fala tão bem como um ouvinte. Por outro lado, a criança Surda

exposta à Língua de Sinais desde o nascimento a adquire naturalmente e começa a

produzir sinais, aproximadamente na mesma idade em que as crianças ouvintes

começam a falar, atravessando os mesmos estágios de desenvolvimento lingüístico,

ou seja, eles inicialmente balbuciam com as mãos, começam então a produzir

enunciados (frases) com um único sinal, enunciados de dois sinais e, em seguida,

combinam sinais, formando frases simples. (Karnopp, 2005; 41)

Pesquisas (apud Karnopp, 2005) sobre a aquisição da linguagem do bebê

Surdo mostram que o input visual (ambiente lingüístico) é necessário para o

aparecimento da produção dos primeiros sinais e para que o bebê adquira e

desenvolva uma Língua de Sinais. Assim, é fundamental o contato visual entre mãe,

(ou outro interlocutor) com o bebê, uso de expressões faciais e atenção visual que o

bebê Surdo coloca no ambiente e no que ocorre ao seu redor.

Por outro lado, as crianças Surdas filhas de pais ouvintes que não têm a

oportunidade de ter contato com a Língua de Sinais precocemente. Faz-se

necessário que ela possa ter esse contato o quanto antes, para que então ela seja

inserida em uma língua.

A língua é parte constituinte da identidade do ser humano, e é nesse período

de entrada na escola, na educação infantil que a identidade da criança Surda

começa a ser constituída, a língua de sinais se configura como fator determinante

para a construção de sua identidade, pois é no contato com seu semelhante que ela

conseguirá se enxergar como diferente, porém, capaz.

É por meio da Língua de Sinais que a criança Surda fará sua leitura de

mundo, tendo esta, papel fundamental na constituição do português, que será

adquirido como segunda língua, preferencialmente na modalidade escrita, pelo fato

de esta não depender da audição.

3.1. A importância do brincar na aquisição da linguagem

Para a criança, o brincar tem um papel muito importante, pois quando ela

brinca incorpora o vocabulário de sua cultura, o que proporciona a aquisição de uma

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língua, primeiramente, muito rudimentar, mas com o passar do tempo, amplia e

melhora o seu vocabulário.

O brincar permite a criança avançar em relação ao conhecimento e a

realidade (zona de desenvolvimento proximal), porque dá funções e significados à

fala (para a criança ouvinte) e aos sinais (para a criança Surda), tornando-a mais

consciente, além de ajudar a concretizar o pensamento, expressar-se, aprender

regras e papéis sociais. O brincar e o brinquedo permitem a aquisição de

significados. Por exemplo, a criança dramatiza vivenciando uma mãe que tem uma

série de responsabilidades com o cuidar dos filhos, da casa, do marido, que precisa

ir para o trabalho, ao mercado e à feira. A brincadeira permite a criança conhecer,

entender o mundo em que vive, vivenciando os papéis sociais desse mundo. Sendo

assim, o brincar e a brincadeira são importantes para as crianças, pois são os meios

que levarão a criança a ser capaz de, como no pensamento adulto, desvincular-se

totalmente das situações concretas, conquistando maior autonomia no seu dia a dia

e entender melhor as relações sociais. (Mo, 2006)

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4. Caracterização de uma escola da prefeitura para crianças Surdas

de São Paulo: a importância da Língua Brasileira de Sinais no

processo de formação do sujeito Surdo

A escola escolhida para a observação é uma escola municipal especial,

localizada na zona sul de São Paulo. A escolha dessa escola foi feita por indicação

de uma professora da habilitação de EDAC, por ser uma escola onde o projeto de

bilingüismo vem sendo desenvolvido com sucesso. A observação e o

acompanhamento das atividades foram feitos de setembro a novembro de 2007, na

turma de Educação Infantil.

Antigamente a escola era uma EMEDA – Escola Municipal de Educação de

Deficientes Auditivos, depois se transformou em uma Escola Especial. Atualmente

recebe não somente crianças Surdas, mas crianças com múltiplas deficiências

ligadas à surdez.

A escola funciona em três períodos. Durante a manhã as turmas atendidas

são as do ensino fundamental I e II; à tarde atende a educação infantil, ensino

fundamental I e II, e no período noturno funcionam classes de EJA.

A escola caminha em direção ao Bilingüismo, ou seja, a abordagem

educacional considera a Língua Brasileira de Sinais como primeira língua e a Língua

Portuguesa na modalidade escrita como segunda língua. O treinamento auditivo ou

da fala não são trabalhos no âmbito escolar.

Em conversa com a coordenadora, pude notar uma grande preocupação da

mesma e dos educadores em propiciar diferentes vivências para as crianças. Por

exemplo, na educação infantil estavam trabalhando um projeto com o tema “fundo

do mar”, as crianças foram visitar uma loja de peixes, onde fizeram uma série de

perguntas ao dono da loja e ao voltarem para a sala de aula fizeram o registro da

visita, mas ainda havia restado uma dúvida: “Quantos olhos o peixe tem?”, havia um

menino que insistia que o peixe tem apenas um olho, pois é como ele havia visto no

aquário que tem na escola, no filme “Procurando Nemo” e em todas as gravuras que

ele via. Assim, a professora decidiu levar a turma para um estudo de meio na feira

que tem perto da escola, para que eles pudessem ver um peixe na realidade

(mesmo que morto) e assim o menino pôde comprovar que o peixe tinha dois olhos.

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A maior parte dos professores é formada em EDAC pela PUC, outros ou pela

FMU, ou pela UNESP de Marília. Há duas professoras surdas e as demais são

ouvintes. Todos os professores e funcionários dominam a Língua de Sinais.

Há Curso de Libras para os pais e familiares das crianças uma vez por

semana.

No aspecto físico, a escola possui uma quadra; sala de leitura; biblioteca que

conta com: tevê, DVD, vídeo-cassete e data-show; sala de informática; parque;

pátio; nove salas de aula; banheiros para as crianças e banheiro para os

professores; sala da direção; sala de professores; sala da coordenação; sala de

reuniões; secretaria; refeitório; e cozinha.

A escola é rica em estímulos visuais: cartazes com configurações de mão,

alfabeto manual, trabalhos dos alunos, notícias sobre a comunidade Surda, fotos,

etc.. Está pronta para receber a todos: os móveis são adaptados, há rampas, as

portas são largas para a passagem de cadeiras de rodas e andadores e a escola

disponibiliza algumas cadeiras e andadores para os alunos usarem dentro da

escola.

A professora da sala de educação infantil é formada em Pedagogia com

habilitação em EDAC pela PUC-SP, é surda oralizada e ministra aulas de Língua de

Sinais no Centro Universitário Nove de Julho (Uninove). Utiliza a Língua de Sinais

para se comunicar com as crianças e a fala com os demais professores. Ela relata

que sofreu muito durante seu período escolar, quando estudava em escola regular,

tanto pela dificuldade por estar aprendendo em uma língua que não era natural a

ela, quanto pelo preconceito que sofria com os colegas. Ela diz que a oportunidade

de trabalhar numa escola de Surdos e constatar como as crianças são mais felizes

em se comunicar pela Língua de Sinais e conseqüentemente como a aprendizagem

se torna mais fácil, rica e prazerosa, é o que a torna uma educadora tão

compromissada. Ela tem uma relação muito boa com as crianças, é extremamente

carinhosa com elas.

A sala possui sete crianças, com idade média entre 6 e 7 anos, com perda

auditiva de severa a profunda. Há duas crianças com paralisia cerebral. Esse é o

primeiro contato que elas têm com a escola, e estão no processo de aquisição da

Língua Brasileira de Sinais, dentro de uma proposta bilíngüe, que inclui o uso de

sinais pela professora e atividades de letramento da língua escrita, tais como contato

com cartazes, placas de nomes, livros, DVDs com histórias contadas em Libras, aula

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de contação de história com uma professora surda, contato com os colegas, entre

outras atividades.

Em parceria com a professora da 1ª. Série, a professora da Educação Infantil

desenvolveu dois projetos. Como muitas das crianças nunca haviam freqüentado

uma escola e algumas não tinham nenhuma língua constituída ao chegar à escola,

mas somente gestos indicativos e/ou linguagem caseira, o primeiro projeto foi um

livro da vida, construindo a identidade dessas crianças e o reconhecimento da

escola, proporcionando-lhes criar um vínculo com a escola.

O segundo projeto refere-se à contação de histórias, que tem como objetivo a

ampliação do vocabulário bem como o uso da língua de sinais e ocorre da seguinte

forma: a professora conta ou passa um DVD com a história em Libras e as crianças

devem recontar ou responder as perguntas feitas pela(s) professora(s).

A observação foi realizada entre os meses de setembro e outubro, momento

no qual a maior parte da classe já havia adquirido a Língua de Sinais. Apenas o

aluno R. ainda não se comunicava por essa língua, utilizando-se apenas de gestos

indicativos e o sinal de “comer”; tudo o que pegava fazia o sinal de comer e colocava

na boca. A professora relatou que ele estava sendo encaminhado a vários médicos

com suspeita de hiperativismo e alguma síndrome, pois ele era muito agitado, não

tem todos os dentes na boca, e apresenta um comprometimento de atenção.

Todavia, R. ao entrar em contato com as outras crianças, com a professora e

com os demais funcionários, imerso na língua em um ambiente riquíssimo em

Libras, tanto com objetos gráficos como pessoas que se utilizam dessa língua, os

sinais para ele começaram a ter um significado. Pude acompanhar o caminhar da

aquisição dessa Língua, ele começou imitando os sinais que faziam para ele, e

agora já começa a se comunicar, por exemplo: pede para ir ao banheiro, beber

água, quando quer alguma coisa faz sinal de quietinho, como que merecedor de

ganhar o que quer, e até avisa quando vai fazer bagunça.

Ao final da observação do cotidiano dessa escola, o foco da minha

observação foi a conduta da professora, bem como dos demais profissionais da

escola, e aquisição da Língua de Sinais pelas crianças. Nesse período pude

evidenciar a coerência da fala dos professores com a busca por uma proposta

educacional que fosse realmente bilíngüe, isto é uma prática que privilegia não

somente a aquisição de uma Língua, mas o respeito à identidade Surda e

atividades que propiciam à participação e o conhecimento da Comunidade Surda.

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Considerações finais

Diante do exposto e acreditando que o período crítico de aquisição de

linguagem é entre 0 e 3 anos de idade, acreditando ainda que para a criança Surda

é a Língua de Sinais que irá possibilitar a aquisição completa de uma língua e

entendendo que em sua grande maioria as crianças surdas nascem em famílias

ouvintes que não dominam a Língua de Sinais, a escola de educação infantil para

Surdos dentro de uma proposta bilíngüe é que irá garantir além da aquisição de sua

primeira língua, um contato com seus iguais, o que irá promover a construção de

uma identidade Surda.

Nesse sentido, a adoção de uma proposta bilíngüe para a Educação Infantil

na escola para Surdos será a possibilidade de fato, de incluirmos a criança Surda no

mundo da comunicação, da linguagem e do conhecimento.

É a Língua de Sinais que irá anular sua deficiência e permitir que ela se

desenvolva como qualquer criança ouvinte. Assim, acredito que antes de qualquer

premissa ou política de inclusão, deve-se respeitar o Surdo como um ser humano

normal, não o classificando de acordo com seu grau de perda auditiva, pois assim se

quebraria o paradigma da cura da surdez. Ao invés de oferecermos tratamento a

esse indivíduo, enfocando sua perda, ofereceríamos subsídios para que esse

desenvolva suas habilidades.

O início da quebra deste paradigma deve iniciar-se logo na sala do médico

e/ou fonoaudiólogo que diagnostica a surdez, com uma orientação aos pais quanto à

diferença dos filhos e ao fato de estes pertencerem a um grupo minoritário com

língua própria. Em seguida, pais e familiares ouvintes e seus filhos Surdos seriam

colocados em contato com a Comunidade Surda, espaço no qual teriam a

oportunidade de entrar em contato com Surdos adultos, aprender a Língua de Sinais

e mediante modelos positivos de adultos Surdos, poderem acreditar que seu filho

Surdo é um sujeito capaz.

Após esse primeiro contato, as crianças seriam encaminhadas a uma escola

de Surdos, onde todos os profissionais usam a Língua de Sinais e onde existiria pelo

menos um professor Surdo (que funcionaria como um modelo e estabeleceria

contato com a criança Surda, transmitindo toda a base lingüística necessária para a

aquisição de outras “línguas”). Este contato precoce Surdo adulto x criança Surda,

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propicia o acesso à Língua de Sinais que o transformará em um sujeito da

linguagem, e, desta forma, estará assegurada a construção de uma identidade e

cultura Surda, que serão transmitidas naturalmente à criança surda. Além de entrar

em contato com a Língua de Sinais, enriquecendo seu conhecimento de mundo, sua

comunicação e linguagem, aos poucos se iniciará seu processo de alfabetização,

baseado na leitura de histórias em Língua de Sinais, vídeos/DVDs em sinais com o

mesmo conto e comentários sobre a Língua. A criança, nesse processo, faz a

análise da língua escrita comparando-a com a estrutura da Língua de Sinais.

A Escola deve ser vista como um espaço pedagógico e não clínico, pois a

verdadeira inclusão do Surdo não está na sua normalização e sim na garantia de

uma educação de qualidade potencializando suas habilidades. Dessa forma, a

escola utilizaria o modelo simultâneo, considerando a Língua de Sinais como

primeira língua (L1) e a Língua Portuguesa na modalidade escrita como segunda

língua (L2).

A fala será considerada uma possibilidade e não como uma necessidade e as

crianças podem ou não usar o Aparelho de Amplificação Sonora Individual ou

qualquer outro tipo de aparelho. O treinamento da fala ou o aproveitamento dos

resíduos de audição devem ser trabalhados fora do ambiente escolar, por

profissionais especializados.

Ao propor um modelo de educação, no qual a Língua de Sinais é considerada

como primeira língua, significa que os conteúdos escolares devem ser trabalhados

por meio dela e a que a língua portuguesa será trabalhada com base em técnicas de

ensino de segunda língua.

A elaboração de um projeto bilíngüe de Surdos inclui a Língua de Sinais

Brasileira, anula a deficiência lingüística e permite que os Surdos se constituam

como uma comunidade lingüística minoritária e diferente, não como um desvio da

normalidade. Esta visão sócio-antropológica da surdez, em oposição à visão clínico-

patológica pressupõe uma atitude diferente frente ao “déficit”. Implica em acreditar

que o Surdo faz parte de uma comunidade lingüística minoritária que compartilha

uma língua, a de sinais, valores culturais, hábitos e modos de socialização próprios.

É necessário que as escolas não encarem a educação bilíngüe como apenas

o domínio, em algum nível, de duas línguas, mas sim como a aquisição de duas

línguas distintas com suas heranças culturais, nas quais devem ser discutidas as

questões de identidade, de poder, de status e de representações que atravessam

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esse processo, com um currículo que contemple as questões culturais, sociais,

históricas e políticas da surdez e não apenas uma tradução do currículo da escola

regular para a Língua de Sinais, num projeto onde o Surdo esteja incluído como

professor e participe do planejamento. Se não o fizermos, estaremos transformando

o bilingüismo para Surdos em mais um “método”, ou seja, um recurso pedagógico

especial no qual a Língua de Sinais é encarada apenas como um meio para se

chegar a Língua Portuguesa.

A proposta bilíngüe não privilegia apenas uma língua, mas quer dar direito e

condições ao individuo Surdo de poder utilizar duas línguas, portanto, não se trata

de negação, mas de respeito; o indivíduo escolherá a língua que irá utilizar em cada

situação lingüística em que se encontrar. Esta proposta deve levar em consideração

as características dos próprios Surdos, incluindo a opinião dos Surdos adultos com

relação ao processo educacional da criança Surda.

Ao final deste trabalho, após ter pesquisado sobre a educação dos Surdos,

bem como tomar conhecimento da história de vida de muitos Surdos adultos e

observar a rotina de uma escola para Surdos, pareceu-me um tanto pretensioso o

objetivo deste trabalho.

Em uma das palestras que fui, tomei conhecimento de uma ONG da África do

Sul, cujo lema é “Nada sobre nós, sem nós”, e me pego refletindo se eu como

ouvinte, tenho o direito de propor um modelo de educação para os Surdos, sendo

que não passo por suas vivências.

Assim, acredito que um projeto bilíngüe de educação para Surdos, deve ser

um Projeto de Surdo para Surdo, porém, a história da educação de Surdos nos

mostra que a Pedagogia se eximiu durante mais de um século de sua educação e,

se dedicou a ensiná-los a falar, seguindo uma concepção médica, o que provocou

um empobrecimento na sua educação. Esse século de prejuízo, onde foi privilegiada

a educação por meio da língua oral, trouxe consigo a dificuldade de acesso do

Surdo ao mundo do conhecimento e da educação, a qual esta sendo retomada aos

poucos por essa Comunidade que, após conquistas legais de liberdade de uso de

sua língua, de direito à intérpretes, vem conquistando formação universitária e agora

vai tendo a oportunidade de fazer ouvir suas mãos e de falar por si mesmo, de fazer

um Projeto Bilíngüe Surdo para a surdez.

O que procurei mostrar neste trabalho foi aquilo que é a vontade dessa

Comunidade, uma vontade que pude vivenciar em sala de aula, onde tive colegas

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Surdos, em depoimentos de Surdos, no aprofundamento por meio da habilitação de

EDAC, nos cursos de LIBRAS que tive com professores Surdos e na minha

convivência com essa Comunidade.

Apesar de acreditar que o Surdo possa falar por si mesmo, não poderia deixar

de, mesmo que de uma forma simples, contribuir para divulgar seus desejos, seus

direitos, sua língua e cultura para uma sociedade que ainda acredita que o Surdo é

Surdo-Mudo, que o Surdo é um deficiente mental e que a Língua de Sinais é

simplesmente uma linguagem, uma mímica universal, subordinada às línguas orais e

sem estrutura própria.

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