Uma Questão Sobre a Tese Do Uso Expressivo Da Linguagem Em Wittgenstein

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    Uma questo sobre a tese do uso expressivo da linguagem em Wittgenstein

    Diogo Gurgel Mestrando em Filosofia - UERJ

    Os argumentos contra a possibilidade de uma linguagem

    privada - tradicionalmente situados entre os pargrafos 243 e 317 das Investigaes Filosficas podem ser vistos como uma consequncia direta da crtica ao referencialismo que Wittgenstein vem desenvolvendo desde o incio da obra. Quando emprego o termo referencialismo, tenho em mente a seguinte definio feita por Robert Fogelin: Referencialismo, como procuro usar essa palavra, a concepo de que o suposto papel das palavras substituir ou referir-se a coisas, e o suposto papel das sentenas afigurar ou representar como as coisas esto umas para as outras. (FOGELIN, R. Wittgensteins Critique of Philosophy, p.37). Enquadram-se nessa postura filosfica tericos da linguagem de perodos muito distintos, como, por exemplo, Santo Agostinho com sua idia de que a linguagem aprendida para dar expresso a pensamentos e o prprio Wittgenstein poca do Tractatus com a pressuposio de um isomorfismo entre linguagem e realidade.

    Tendo negado que o significado seja algo de ordem mental nos pargrafos iniciais das Investigaes, Wittgenstein precisa explicar como podemos aprender a gramtica de certos termos comumente associados a processos e estados mentais. Para tanto, faz-se necessria a apresentao de um argumento que demonstre que mesmo as palavras que compem nosso vocabulrio psicolgico (ou linguagem de sensaes) podem ter seu significado explicado de outra forma que no por atos de introspeco algo da ordem de definies ostensivas internas.

    Penso, a partir dessa linha de raciocnio, que o argumento contra a possibilidade de uma linguagem privada pode ser dividido em duas teses: uma negativa e uma positiva:

    1) negativa: preciso provar ao referencialista que a linguagem de sensaes no se constitui privadamente e afastar definitivamente a possibilidade de uma origem privada do significado. 2) Positiva: no basta objetar a concepo referencialista; preciso demonstrar que a tese de que o significado dos signos que expressam processos mentais tambm se faz no uso concilivel com a tese de que o aprendizado da linguagem se d por

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    treinamento (Abrichten)1 Pretendo examinar, no presente texto, o que chamei acima de tese

    positiva, perguntando-me se, de fato, essa tese de Wittgenstein explica o uso de nossa linguagem de sensaes e se ela concilia inteiramente esse modo de funcionamento da linguagem com a idia de que a base do aprendizado da linguagem se constitui a partir de prticas de treinamento idia fortemente presente nas obras da chamada segunda fase de Wittgenstein. Se essa conciliao ocorre, penso que Wittgenstein teria dado uma resposta definitiva tradicional tese solipsista adotada pelo referencialista - de que a origem da linguagem privada, i.e., funda-se no conhecimento por introspeco. Wittgenstein no s desbancaria a idia de que os significados, em nossa linguagem de sensaes2, so objetos que aparecem ao olho de nossa mente, mas tambm estaria apresentando uma explicao sobre esse uso da linguagem, sobre seu aprendizado. Nessa explicao, entendo que a tese das sentenas expressivas, apresentada entre os pargrafos 244 e 256 das Investigaes, tem um relevante papel, demonstrando como podemos ser treinados no uso de palavras que supostamente designam processos mentais.

    Entretanto, encontro certa dificuldade para validar a tese de que os significados de todas as palavras para processos mentais podem ser evidentemente explicados por um estudo do comportamento que acompanha seu emprego nos jogos de linguagem em que ocorrem. Uma das questes que mais tiraram o sono dos filsofos em estudos de epistemologia e fenomenologia, a saber, a pergunta pelo estatuto da conscincia e suas faculdades, parece ser tomada por Wittgenstein, nas Investigaes, como um mal-entendido sanado por suas teses sobre o aprendizado dos usos descritivo e expressivo da linguagem. Na parte dois das Investigaes, ao examinar um suposto processo mental, Wittgenstein argumenta: 1 A tese de que, num primeiro momento do aprendizado da linguagem, a

    criana ainda no capaz de questionar ou duvidar sobre o que aprendido, segue as regras por repetio e no mediante explicaes. Assumo que a tese do aprendizado da linguagem por treinamento se apresenta como uma tese fundamental para a explicao da natureza do significado (Investigaes Filosficas, 6-7, 208 / Brown Book, p.77 / Zettel , p.318 / On Certainty, 160).

    2 As expresses linguagem de sensaes e vocabulrio psicolgico, em todo texto, devem ser entendidas como palavras para experincias internas expresso usada por P.M.S. Hacker no livro Wittgenstein Meaning and Mind, p.90.

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    Tenho a palavra na ponta da lngua. O que se passa ento na minha conscincia? No se trata disso. O que quer que se tenha passado, no fora suposto com aquela expresso. mais interessante o que se passa nessa ocasio com meu comportamento. (WITTGENSTEIN, L. Investigaes Filosficas, Parte II, p. 212)

    Wittgenstein nos convida a fazer investigaes acerca do

    comportamento lingstico apresentado pelos falantes numa situao em que tenderamos a procurar internamente, ou dentro daquilo que chamamos de conscincia, o sentido da expresso ter a palavra na ponta da lngua. A idia de Wittgenstein de que tal expresso no deve ser tomada como uma etiqueta que nomeia um fenmeno mental e sim como uma ferramenta que desempenha uma determinada funo em nossa prtica lingstica. Mas no me parece assim to evidente que o mesmo convite possa se estender a uma investigao do significado da prpria palavra conscincia, que possamos determinar uma funo especfica para ela a partir desse mtodo, posto que no h nada que possamos chamar de um comportamento tpico de conscincia, como ocorre, por exemplo, com a dor ou o frio.

    I - A tese das Sentenas Expressivas No se h que se discordar que, em muitas obras filosficas

    abordando o tema da mente dentre estas incluo The Principles of Psychology, de William James, a qual teve, notoriamente, grande influncia sobre Wittgenstein , a conscincia e o que comumente denominamos seus estados por exemplo, as sensaes so tomadas como fenmenos mentais passveis de serem observados e descritos. Segundo James, o conhecimento desses processos seria o cerne dos estudos de psicologia. Nas palavras de James:

    Observao introspectiva aquilo por que devemos nos guiar antes, primeira e continuamente. A palavra introspeco tem pouca necessidade de ser definida ela significa, evidentemente, o ato de olhar dentro de nossas prprias mentes e relatar o que ns descobrimos l. (JAMES, W. The Principles of Psychology, p.121). Ora, o que est a pressuposto que esse conhecimento se daria

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    por introspeco, ou, como coloca Wittgenstein, por uma espcie de concentrao da ateno (WITTGENSTEIN, L. Investigaes Filosficas, 258) ou definio ostensiva interna que confere significado s palavras que designam processos mentais como dor ou frio.

    A tese das sentenas expressivas, apresentada por Wittgenstein no pargrafo 244 das Investigaes, defende que o significado de palavras que expressam fenmenos mentais no se d por introspeco e sim por treinamentos semelhantes aos que somos submetidos ao aprendermos a nomear objetos fsicos. Wittgenstein defende que, no aprendizado de sentenas em 1 pessoa envolvendo palavras que designam processos mentais, ocorreria a substituio de uma expresso natural ou pr-lingustica, por exemplo, o choro e o grito, por uma expresso lingstica (Wortausdruck), a enunciao de sentenas como Eu tenho dores. Quando se diz que tal substituio ocorreria a partir do treinamento quer-se dizer: mediante a experincia e a repetio do uso de sentenas em 1 pessoa envolvendo a palavra dor dentro de uma comunidade lingstica.

    Wittgenstein mostra que a fonte de equvocos com relao natureza de nossa linguagem de sensaes se encontra no fato de que sentenas como eu tenho dor, quando enunciadas por outro falante, tm uma funo descritiva, ao passo que, quando so enunciadas na 1 pessoa, tm uma funo expressiva, i.e., no descrevem coisa alguma, so aes no mundo. O equvoco ocorre quando aquele que fala pensa estar descrevendo algo como a sua dor, uma sensao peculiar que lhe ocorre, quando usa a palavra dor. Segundo Wittgenstein, as regras de uso de uma palavra sua gramtica - so aprendidas na insero do falante (treinamento) em prticas onde elas ocorrem. No caso de muitas palavras que designam processos mentais, como dor ou frio, o aprendizado de seu significado parece ocorrer da seguinte maneira: a criana treme de frio ou chora e grita de dor e os adultos procuram educar seu comportamento, treinando-lhe para que ele se expresse linguisticamente.

    Wittgenstein traa uma importante distino entre a gramtica de sentenas expressivas e sentenas descritivas a partir do uso do verbo saber (WITTGENSTEIN, L. Investigaes Filosficas, 256). O uso apropriado do verbo, segundo Wittgenstein, ocorre quando se pode duvidar do que enunciado. A sentena Eu sei que ele tem dores uma sentena descritiva na medida em que afigura um fato passvel de ser verificado e, logo, sobre o qual se pode duvidar. Em suma, uma sentena descritiva na medida em que pode ser posta em termos de verdade e falsidade. J a sentena eu sei que eu tenho dores, embora muito similar em sua estrutura sinttica anterior, no pode ter seu sentido posto em duvida por aquele que a enuncia, e a partcula eu sei pode mesmo ser tomada como destituda de

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    sentido, visto que nada acrescenta expresso eu tenho dores. Usamos eu sei para falar de fatos e eu tenho dores no expressa, como poderia parecer, algo como um fato mental que possa ser verificado por aquele que fala. Aquele que diz no ter dvidas, no procura verificar empiricamente o sentido de sua expresso.

    II A dor dissimulada e a conscincia A tese das sentenas expressivas parece, a princpio, afirmar que

    a gramtica das palavras que designam processos mentais, como dor e frio, aprendida por um treinamento no uso do signo atrelado a um comportamento tpico, como o choro ou o tiritar. Em ltima instncia, o significado dessa classe de palavras s poderia se dar em situaes onde se faz presente um comportamento tpico. Ora, mas isso no nos impediria de explicar o uso significativo de expresses to comuns como esconder a dor ou simular a dor? No pode haver situaes onde uma palavra que supostamente designa um processo mental no se encontra associada a um comportamento tpico?

    Anthony Kenny, no livro Wittgenstein, faz o papel de um possvel objetor que se colocaria da seguinte maneira:

    Obviamente, ns temos vontade de dizer, ns podemos ter dor sem nunca dizer ou demonstrar que ns a temos; e, por outro lado, ns podemos dizer que temos dor sem realmente a termos; a nica conexo entre a dor e a expresso da dor que algumas vezes coincidem. A dor e sua expresso no parecem estar mais conectadas do que a vermelhidade e a doura: algumas vezes o que vermelho doce, e, algumas vezes, no. (KENNY, A. Wittgenstein. p.183). No pargrafo 249 das Investigaes, Wittgenstein mostra estar a

    par dessa objeo sua tese afirmando que mentir um jogo de linguagem que deve ser aprendido como qualquer outro. Tanto aquele que simula quanto aquele que dissimula suas dores teria aprendido a faz-lo a partir de treinamentos. Teriam aprendido as tcnicas requeridas por essas prticas da mesma forma que aprenderam a substituir seu comportamento pr-lingustico por um comportamento lingustico ao exclamar eu tenho dor. A questo Como algum pode aprender a ocultar sua dor? seria muito aparentada com a questo Como algum pode aprender a calcular de cabea?. A resposta de Wittgenstein a ambas uma s: voc s pode aprender o que fazer x mentalmente na medida em que voc aprende o

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    que fazer x (WITTGENSTEIN, L. Investigaes Filosficas, Parte II, p.213).

    Dessa forma, conquanto no haja alguma forma de uso da linguagem de sensaes que no seja contemplada pelos argumentos expostos acima, Wittgenstein demonstra que, mesmo no que diz respeito a nossa linguagem de sensaes, o treinamento a base da apreenso do significado. Wittgenstein teria, portanto, dado uma resposta definitiva ao referencialista e a sua idia de que a base de significao de nossa linguagem dada por introspeco ou, como diz Meredith Williams, a idia de que a unidade semntica de nossa linguagem se enraza em experincias privadas (WILLIAMS, M. Wittgenstein: Mind and Meaning: towards a social concept of mind, p.15).

    Se assim o , o estudo desses dois usos da linguagem, a saber, o descritivo e o expressivo, deve ser suficiente para explicar o sentido das sentenas de nossa linguagem de sensaes. O uso de palavras que expressam processos ou estados mentais em 1 pessoa explicado pela tese das sentenas expressivas e o uso das mesmas em qualquer outra situao explicado a partir do uso descritivo da linguagem se no entrarmos no mrito de ordens e perguntas.

    No entanto, suspeito de que os argumentos aqui examinados no seriam suficientes para explicarmos a gramtica de um termo para o qual no encontrssemos no apenas um comportamento tpico correspondente, mas tambm algo que possamos chamar de uma tcnica mental ou, se for de preferncia, uma tcnica lingstica silenciosa e no gestual como no caso da palavra dor ou do clculo de cabea. Pois esse , ao que tudo indica, o caso de um clssico conceito das tradies epistemolgica e fenomenolgica, o conceito conscincia.

    III - Investigao gramatical da conscincia Talvez possa haver quem afirme ser possvel uma elucidao do

    sentido de sentenas como Eu tenho conscincia a partir da tese das sentenas expressivas. Pode-se levantar a hiptese de que comportamentos como o olhar nos olhos de quem fala, a tendncia imitao e a capacidade de, por assim dizer, executar tcnicas mentalmente sejam comportamentos naturais, pr-lingusticos e que estes so parcialmente substitudos por comportamentos lingusticos envolvendo a palavra conscincia. Digo parcialmente porque ns obviamente continuamos olhando nos olhos de nossos interlocutores, imitando nossos interlocutores e executando tcnicas mentalmente durante toda a vida. Mas, se considerarmos atentamente, continuamos tambm chorando e gritando, ainda que no com a mesma

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    freqncia. De qualquer forma, o que me interessa aqui que essa possvel e no sei se muito plausvel - explicao do uso da palavra conscincia em 1 pessoa, a exemplo da palavra dor, nos remete ao uso da palavra dentro de uma comunidade lingstica. Remete-nos a algo como um comportamento de conscincia a partir do qual se tenha aprendido o uso da palavra inclusive em 1 pessoa. E, se deve existir esse comportamento, somos levados a crer que uma sentena como Ele tem conscincia uma sentena com valor de verdade, uma descrio de um comportamento que pode ou no acontecer. Ora, mas se se trata de uma descrio, ento deveramos poder usar a palavra conscincia, assim como fazemos com as palavras dor e frio, tanto em sentenas que afiguram estados de coisas existentes quanto inexistentes. Vejamos: faz sentido dizermos Ele tem conscincia falsamente de um outro falante? E claro que me refiro aqui a um ser-humano vivo, acordado e so, posto que, suponho, na maioria dos jogos de linguagem, temos falantes nestas condies. O ponto que uma assero de falsidade no parece ter lugar nesse caso.

    O problema que se apresenta para Wittgenstein, colocado de um modo mais amplo, de que nem o uso descritivo e nem o uso expressivo da linguagem explicam suficientemente a gramtica da palavra conscincia. A sentena ele tem conscincia no pode ser expressiva, posto que no est em 1 pessoa e no pode ser descritiva, posto que seu contrrio sem sentido. Deparamo-nos, aparentemente, com uma violao ao princpio estabelecido no pargrafo 124 das Investigaes, a saber, de que a filosofia no deve alterar o uso efetivo da linguagem para alcanar seus desgnios. O ponto que a palavra conscincia tem um uso efetivo em nossa linguagem que no parece ser contemplado pela tese do aprendizado da linguagem por treinamento, a qual aparece reiteradamente na obra de Wittgenstein como uma tese fundamental de onde se derivam todas as outras.

    Do modo como compreendo, no entanto, essa no uma aporia deixada por Wittgenstein aos cuidados de futuros filsofos. Penso que uma considerao das teses expostas nas ltimas anotaes em que trabalhava o filsofo, cuja organizao e publicao convencionou-se chamar de Sobre a Certeza, nos permite elucidar esse ponto deixado em aberto nas Investigaes Filosficas.

    IV - Proposies gramaticais e regras indubitveis: Wittgenstein, j nos primeiros pargrafos do Sobre a Certeza,

    apresenta seu intento de se contrapor a certas teses de G.E. Moore em textos como Proof of an External World e A Defence of Common Sense. Ele

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    procura mostrar que sentenas como Aqui est uma mo e Aquela uma rvore, ainda que tenham a forma de sentenas declarativas, no podem assumir, em geral, a forma Eu sei que p - como em Eu sei que aqui est uma mo - porque no so passveis de dvida dentro do contexto da grande maioria dos jogos da linguagem corrente. A partcula Eu sei e essa uma idia j presente nas Investigaes s adequada a sentenas que podem ser postas em termos de verdade e falsidade e, logo, sentenas cujo sentido pode ser posto em dvida e comprovado.

    H, portanto, no Sobre a Certeza, uma retomada de elucidaes gramaticais acerca do uso do verbo saber (wissen). Wittgenstein procura mostrar que os empregos adequados desse verbo so ligados a fatos - descrio de fatos -, e que qualquer emprego filosfico da palavra para fazer asseres sobre a prpria estrutura da linguagem uma corrupo da mesma:

    Eu sei possui um sentido primitivo semelhante e relacionado a Eu vejo (wissen, videre). E Eu sabia que ele estava na sala, mas ele no estava na sala semelhante a Eu o vi na sala, mas ele no estava l. Eu sei tem a funo de expressar uma relao, no entre mim e o sentido de uma proposio (como Eu acredito), mas entre mim e um fato. (WITTGENSTEIN, L. On Certainty, 90) De acordo com Wittgenstein, sentenas cujo sentido se d na

    compreenso daquilo que, na prpria estrutura da linguagem, nos permite conferir sentido s nossas asseres sobre os fatos no devem ser acompanhadas da expresso Eu sei. Ignorar essa restrio ignorar que h certos usos de nossa linguagem que no permitem e no demandam dos falantes a verificao do sentido dos enunciados e, consequentemente, assumir que a nica funo da linguagem descrever fatos. Moore, ao se utilizar do verbo saber para designar um conhecimento mais elementar da existncia do mundo externo, estaria negligenciando esse fato e, com isso, assumindo uma forma referencialista de concepo de linguagem que Wittgenstein ataca. Para Wittgenstein, no h qualquer sentido em se buscar provar a existncia de um mundo externo, uma vez que os usos que fazemos da linguagem no nos do razes ou nos oferecem recursos para tanto.

    Wittgenstein procura mostrar que o equvoco de Moore tomar como exemplos de proposies descritivas indubitveis aquilo que, na grande maioria dos jogos de linguagem, nem mesmo considerado explicitamente. Trata-se de enunciados que, quando expressos, aparecem a todos no como conhecimento indubitvel, mas como evidncias

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    indubitveis. Moore estaria confundindo o que conhecimento o que se caracteriza como verdadeiro porque comprovado dentro do que exigem as regras em um jogo de linguagem e o que convico ou certeza o que se caracteriza como evidente porque pressuposto pelas regras do jogo, ou ainda, que opera como parte da prpria normatividade do jogo.

    De um modo mais abrangente o que quero mostrar que Wittgenstein faz, no Sobre a Certeza, algumas novas consideraes sobre o modo como as diferentes formas de uso da linguagem se conectam na prtica dos jogos de linguagem. De acordo com ele, para que a descrio de fatos e a assero de seu valor de verdade dessas descries seja possvel, i.e., para que possamos estabelecer definies, hipteses, concluses, em suma, regras passveis de dvida e correo, preciso que haja certas regras que sejam indubitveis para todo aquele que est inserido no jogo.

    Um ponto fundamental da argumentao o de que, ainda que no seja muito usual, ns podemos, em geral, expressar linguisticamente essas regras indubitveis. E, em muitos casos, a forma sinttica desses enunciados idntica forma sinttica de proposies que descrevem fatos e de cujo sentido podemos duvidar. Wittgenstein explica essa identidade sinttica dizendo que no se trata de uma postulao de regras rgidas e sim de regras fluidas: o que convico em um jogo de linguagem pode ser passvel de verificao em outro. A sentena Aquilo uma rvore pode operar como uma descrio a ser verificada para crianas e para filsofos, mas, na grande maioria dos jogos de linguagem, opera como convico, isto , serve de base (Grund) para asseres mais complexas como devemos remover esta rvore para construir o prdio. Certamente ningum nesse jogo de linguagem diria Como voc sabe que aquilo uma rvore?. As convices esto onde, em circunstncias normais do uso da linguagem, nenhum espao para o erro est preparado no jogo: H uma diferena entre um engano para o qual h um lugar preparado no jogo, e uma irregularidade completa que ocorre como uma exceo. (WITTGENSTEIN, L. On Certainty, 647).

    Defendo a idia de que uma tese central no Sobre a Certeza, e que me parece realmente faltar como idia explcita ou consolidada nas Investigaes, a tese de que as regras constitutivas - adoto a terminologia de Michael Kober, no texto Certainties of a world-picture: The epistemological investigations of On Certainty. p.424 - de um jogo de linguagem podem ser expressas na forma de sentenas de carter mitolgico ou de convico - ainda que muita delas sejam aprendidas na prpria prxis e, muitas vezes, sem um estabelecimento formal. Wittgenstein, do modo como compreendo, evidencia um uso da linguagem distinto dos usos expressivo e descritivo trabalhados mais enfaticamente nas Investigaes.

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    Ele fala de um uso da linguagem que descreveria no fatos e sim o sistema de convices que comporia uma imagem ou afigurao de mundo (Weltbild) comum a muitos jogos de linguagem dentro de uma comunidade lingstica:

    As proposies que descrevem essa imagem de mundo (Weltbild) devem fazer parte de um tipo de mitologia. E seu papel o mesmo que o das regras de um jogo; e o jogo pode ser aprendido de modo puramente prtico, dispensando o aprendizado de quaisquer regras explcitas. (WITTGENSTEIN, L. On Certainty, 96)

    Wittgenstein d a entender, portanto, que a filosofia termina por formular pseudo-questes ao confundir sentenas descritivas e sentenas que expressam convices. Em algumas passagens de sua obra, Wittgenstein parece sugerir que essas sentenas que expressam convices podem ser denominadas proposies gramaticais (Por exemplo: On Certainty , 58 / Investigaes Filosficas, 251). a possibilidade de enunciar na forma de proposies gramaticais as convices - as regras constitutivas do prprio jogo em que se est inserido - que confunde os filsofos, levando-os a querer elucidar e procurar o valor de verdade l onde a proposio no algo a ser testado pela experincia e sim regra de testagem (WITTGENSTEIN, L. On Certainty, 98).

    Concluso Posto isso, podemos voltar ao nosso exame da gramtica da

    palavra conscincia com um dado muito esclarecedor: determinadas proposies nas quais se faz presente a palavra conscincia operam como regras indubitveis do jogo de linguagem em que ocorrem. No estou afirmando que a sentena Ele tem conscincia no pode aparecer em diversos jogos de linguagem como sentena declarativa com valor de verdade um mdico pode falar algo do gnero sobre um paciente que acaba de se recuperar de um estado de coma ou do efeito de uma anestesia, por exemplo e sim que, em muitos casos, a sentena Ele tem conscincia funciona como a sentena Ele tem um crebro dita de algum que nunca teve o crnio aberto ou Isto uma porta para algum a quem se pede para fechar uma porta. Wittgenstein diz: falta um terreno para a dvida! Tudo fala em seu favor e nada contra (WITTGENSTEIN, L. On Certainty, 4).

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    O fato que no somos treinados para ver os demais falantes como autmatos. Todos os falantes tm conscincia, eis uma regra que aprendemos antes que possamos nos perguntar pelo significado da palavra regra. A questo sobre o automatismo, portanto, to tematizada por Wittgenstein em diversas passagens de suas obras (Por exemplo: Investigaes Filosficas 420 / Investigaes Filosficas, Parte II, pp.176-177 / Brown Book, p.87), nada mais que uma pseudo-questo que se apresenta quando os filsofos tomam a regra como descrio e procuram elucidar o que no pode ser elucidado, quando duvidam daquilo que, em geral, condio de possibilidade para a dvida: a certeza da conscincia. Referncias Bibliogrficas FOGELIN, R. Wittgensteins Critique of Philosophy in: The Cambridge Companion to Wittgenstein.. Edited by H. Sluga and D. Stern. Cambridge: Cambridge University Press, 1996. HACKER, P.M.S. Wittgenstein: meaning and mind. Oxford: Blackwell, 1993. JAMES, W. The Principles of Psychology in: Great Books of the Western World. Chicago: Encyclopedia Britannica, 1952. KENNY, A. Wittgenstein. London: Penguin Books, 1973. KOBER, M. Certainties of a world-picture: The epistemological investigations of On Certainty in: The Cambridge Companion to Wittgenstein.. Edited by H. Sluga and D. Stern. Cambridge: Cambridge University Press, 1996 MOORE, G.E. A Defence of Common Sense e Proof of an External World in Selected Writings. Edited by Thomas Baldwing. London: Routledge, 1993. (pp. 106-133; pp. 147-170) WILLIAMS, M. Wittgenstein, Mind and Meaning: Towards a Social Conception of Mind. London: Routledge, 1998. WITTGENSTEIN, L. On Certainty. Transl.: Denis Paul and G.E. Ascombe. Harper & Row, publishers, 1972.

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