Umberto Eco [=] Eletrônicos duram 10 anos; livros, 5 séculos

20
7/26/2019 Umberto Eco [=] Eletrônicos duram 10 anos; livros, 5 séculos http://slidepdf.com/reader/full/umberto-eco-eletronicos-duram-10-anos-livros-5-seculos 1/20 Umberto Eco Eletrônicos duram 10 anos; livros 5 séculos Entrevista a Ubiratan Brasil

Transcript of Umberto Eco [=] Eletrônicos duram 10 anos; livros, 5 séculos

Page 1: Umberto Eco [=] Eletrônicos duram 10 anos; livros, 5 séculos

7/26/2019 Umberto Eco [=] Eletrônicos duram 10 anos; livros, 5 séculos

http://slidepdf.com/reader/full/umberto-eco-eletronicos-duram-10-anos-livros-5-seculos 1/20

Umberto Eco

Eletrônicos

dur am 10 anos;

liv r os 5 séculos

Entrevista a Ubiratan Brasil

Page 2: Umberto Eco [=] Eletrônicos duram 10 anos; livros, 5 séculos

7/26/2019 Umberto Eco [=] Eletrônicos duram 10 anos; livros, 5 séculos

http://slidepdf.com/reader/full/umberto-eco-eletronicos-duram-10-anos-livros-5-seculos 2/20

[1]

O bom humor parece ser a principal carac-terística do semiólogo, ensaísta e escritor italia-

no Umberto Eco. Se não, é a mais evidente. Aopasmado visitante, boquiaberto diante de suacoleção de 30 mil volumes guardados em seuescritório/residência em Milão, ele tem duas

respostas prontas quando é indagado se leutoda aquela vastidão de papel.

“Não. Esses livros são apenas os que devoler na semana que vem. Os que já li estão na

universidade” – é a sua preferida. “Não li ne-nhum”, começa a segunda. “Se não, por que osguardaria?”

Na verdade, a coleção é maior, beira os 50

mil volumes, pois os demais estão em outracasa, no interior da Itália. E é justamente talpaixão pela obra em papel que convenceu Ecoa aceitar o convite de um colega francês, Jean-

Phillippe de Tonac, para, ao lado de outro in-corrigível bibliófilo, o escritor e roteirista Jean-Claude Carrière, discutir a perenidade do livro

Page 3: Umberto Eco [=] Eletrônicos duram 10 anos; livros, 5 séculos

7/26/2019 Umberto Eco [=] Eletrônicos duram 10 anos; livros, 5 séculos

http://slidepdf.com/reader/full/umberto-eco-eletronicos-duram-10-anos-livros-5-seculos 3/20

[2]

tradicional. Foram esses encontros (“muito in-formais, à beira da piscina e regados com bons

uísques”, informa Umberto Eco) que resulta-ram em Não contem com o fim do livro , que aeditora Record lança na segunda quinzena deabril.

 A conclusão é óbvia: tal qual a roda, o livroé uma invenção consolidada, a ponto de as re-

 voluções tecnológicas, anunciadas ou temidas,não terem como detê-lo. Qualquer dúvida é

sanada ao se visitar o recanto milanês de Eco,como fez o Estado  na última quarta-feira. Loca-lizado diante do Castelo Sforzesco, o aparta-mento – naquele dia soprado por temperaturas

baixíssimas, a neve pesada insistindo em em-branquecer a formidável paisagem que se avistade sua sacada – encontra-se em um andar ondeantes fora um pequeno hotel. “Se eram pouco

funcionais para os hóspedes, os longos corredo-res são ótimos para mim pois estendo aí mi-nhas estantes”, comenta o escritor, com indis-

Page 4: Umberto Eco [=] Eletrônicos duram 10 anos; livros, 5 séculos

7/26/2019 Umberto Eco [=] Eletrônicos duram 10 anos; livros, 5 séculos

http://slidepdf.com/reader/full/umberto-eco-eletronicos-duram-10-anos-livros-5-seculos 4/20

[3]

farçável prazer, ao apontar uma linha reta deprateleiras repletas que não parecem ter fim.

Os antigos quartos? Transformaram-se em es-critórios, dormitórios, sala de jantar, etc. Omais desejado, no entanto, é fechado a chave,climatizado e com uma janela que veda a luz

solar: lá estão as raridades, obras produzidas háséculos, verdadeiros tesouros. Isso mesmo: te-souros de papel.

Conhecido tanto pela obra acadêmica (é

professor aposentado de semiótica, mas aindapermanece na ativa na Faculdade de Bolonha)como pelos romances (O Nome da Rosa , pu-blicado em 1980, tornou-se um best-seller

mundial), Eco é um colecionador nato; além delivros, gosta também de selos, cartões-postais,rolhas de champanhe. Na sala de seu aparta-mento, estantes de vidro expõem tanto os livros

raros – que, no momento, lideram sua prefe-rência – como conchas, pedras, pedaços demadeira. As paredes expõem quadros que Eco

Page 5: Umberto Eco [=] Eletrônicos duram 10 anos; livros, 5 séculos

7/26/2019 Umberto Eco [=] Eletrônicos duram 10 anos; livros, 5 séculos

http://slidepdf.com/reader/full/umberto-eco-eletronicos-duram-10-anos-livros-5-seculos 5/20

[4]

arrematou nas visitas que fez a vários países ouque simplesmente ganhou de amigos – caso de

Mário Schenberg (1914-1990), físico, político ecrítico de arte brasileiro, de quem o escritorguarda as melhores recordações.

 Aos 78 anos, Eco – que tem relançado no

país Arte e beleza na estética medieval  (Record,368 págs., tradução de Mário Sabino) – exibeuma impressionante vitalidade. Diverte-se comtodo tipo de cinema (ao lado de seu aparelho

de DVD repousa uma cópia da animação Rata- touille ), mantém contato com seus alunos emBolonha, escreve artigos para jornais e revistase aceita convites para organizar exposições,

como a que o transformou, no ano passado, emcurador, no Museu do Louvre, em Paris. Lá, oautor teve o privilégio de passear sozinho peloscorredores do antigo palácio real francês nos

dias em que o museu está fechado. E, como ummoleque levado, aproveitou para alisar o bum-bum da Vênus de Milo. Foi com esse mesmo

Page 6: Umberto Eco [=] Eletrônicos duram 10 anos; livros, 5 séculos

7/26/2019 Umberto Eco [=] Eletrônicos duram 10 anos; livros, 5 séculos

http://slidepdf.com/reader/full/umberto-eco-eletronicos-duram-10-anos-livros-5-seculos 6/20

[5]

espírito bem-humorado que Eco – envergandoum elegante terno azul-marinho, que uma re-

 volta gravata da mesma cor tratava de desali-nhar; o rosto sem a característica barba grisalha(raspada religiosamente a cada 20 anos e, daúltima vez, em 2009, também porque o resis-

tente bigode preto o fazia parecer Gengis Khannas fotos) – conversou com a reportagem doSabático .

Page 7: Umberto Eco [=] Eletrônicos duram 10 anos; livros, 5 séculos

7/26/2019 Umberto Eco [=] Eletrônicos duram 10 anos; livros, 5 séculos

http://slidepdf.com/reader/full/umberto-eco-eletronicos-duram-10-anos-livros-5-seculos 7/20

[6]

O livro não está condenado, como apregoam os

adoradores das novas tecnologias?

O desaparecimento do livro é uma obses-são de jornalistas, que me perguntam isso há15 anos. Mesmo eu tendo escrito um artigosobre o tema, continua o questionamento. O

livro, para mim, é como uma colher, um ma-chado, uma tesoura, esse tipo de objeto que,uma vez inventado, não muda jamais. Conti-nua o mesmo e é difícil de ser substituído. O

livro ainda é o meio mais fácil de transportarinformação. Os eletrônicos chegaram, mas per-cebemos que sua vida útil não passa de dezanos. Afinal, ciência significa fazer novas expe-

riências. Assim, quem poderia afirmar, anosatrás, que não teríamos hoje computadores ca-pazes de ler os antigos disquetes? E que, aocontrário, temos livros que sobrevivem há mais

de cinco séculos? Conversei recentemente como diretor da Biblioteca Nacional de Paris, queme disse ter escaneado praticamente todo o seu

Page 8: Umberto Eco [=] Eletrônicos duram 10 anos; livros, 5 séculos

7/26/2019 Umberto Eco [=] Eletrônicos duram 10 anos; livros, 5 séculos

http://slidepdf.com/reader/full/umberto-eco-eletronicos-duram-10-anos-livros-5-seculos 8/20

[7]

acervo, mas manteve o original em papel, comomedida de segurança.

Qual a diferença entre o conteúdo disponível na

internet e o de uma enorme biblioteca?

 A diferença básica é que uma biblioteca écomo a memória humana, cuja função não éapenas a de conservar, mas também a de filtrar– muito embora Jorge Luis Borges, em seu li-

 vro Ficções , tenha criado um personagem, Fu-nes, cuja capacidade de memória era infinita. Jáa internet é como esse personagem do escritorargentino, incapaz de selecionar o que interessa– é possível encontrar lá tanto a Bíblia comoMein Kampf  , de Hitler. Esse é o problema bá-

sico da internet: depende da capacidade dequem a consulta. Sou capaz de distinguir ossites confiáveis de filosofia, mas não os de físi-ca. Imagine então um estudante fazendo uma

pesquisa sobre a 2.ª Guerra Mundial: será elecapaz de escolher o site correto? É trágico, umproblema para o futuro, pois não existe ainda

Page 9: Umberto Eco [=] Eletrônicos duram 10 anos; livros, 5 séculos

7/26/2019 Umberto Eco [=] Eletrônicos duram 10 anos; livros, 5 séculos

http://slidepdf.com/reader/full/umberto-eco-eletronicos-duram-10-anos-livros-5-seculos 9/20

[8]

uma ciência para resolver isso. Depende apenasda vivência pessoal. Esse será o problema cru-

cial da educação nos próximos anos.Não é possível prever o futuro da internet?

Não para mim. Quando comecei a usá-la,nos anos 1980, eu era obrigado a colocar dis-quetes, rodar programas. Hoje, basta apertarum botão. Eu não imaginava isso naquela épo-ca. Talvez, no futuro, o homem não preciseescrever no computador, apenas falar e seucomando de voz será reconhecido. Ou seja,trocará o teclado pela voz. Mas realmente nãosei.

Como a crescente velocidade de processar dados

de um computador poderá influenciar a forma

como absorvemos informação?

O cérebro humano é adaptável às necessi-

dades. Eu me sinto bem em um carro em alta velocidade, mas meu avô ficava apavorado. Jámeu neto consegue informações com mais faci-

Page 10: Umberto Eco [=] Eletrônicos duram 10 anos; livros, 5 séculos

7/26/2019 Umberto Eco [=] Eletrônicos duram 10 anos; livros, 5 séculos

http://slidepdf.com/reader/full/umberto-eco-eletronicos-duram-10-anos-livros-5-seculos 10/20

[9]

lidade no computador do que eu. Não pode-mos prever até que ponto nosso cérebro terá

capacidade para entender e absorver novas in-formações. Até porque uma evolução físicatambém é necessária. Atualmente, poucos con-seguem viajar longas distâncias – de Paris a

Nova York, por exemplo – sem sentir o des-conforto do jet lag. Mas quem sabe meu netonão poderá fazer esse trajeto no futuro em meiahora e se sentir bem?

É possível existir contracultura na internet?

Sim, com certeza, e ela pode se manifestartanto de forma revolucionária como conserva-dora. Veja o que acontece na China, onde a

internet é um meio pelo qual é possível se ma-nifestar e reagir contra a censura política. En-quanto aqui as pessoas gastam horas batendopapo, na China é a única forma de se manter

contato com o restante do mundo.

Em um determinado trecho de Não contem com

Page 11: Umberto Eco [=] Eletrônicos duram 10 anos; livros, 5 séculos

7/26/2019 Umberto Eco [=] Eletrônicos duram 10 anos; livros, 5 séculos

http://slidepdf.com/reader/full/umberto-eco-eletronicos-duram-10-anos-livros-5-seculos 11/20

[10]

o fim do livro, o senhor e Jean-Claude Carrière

discutem a função e preservação da memória –

que, como se fosse um músculo, precisa serexercitada para não atrofiar.

De fato, é importantíssimo esse tipo deexercício, pois estamos perdendo a memória

histórica. Minha geração sabia tudo sobre opassado. Eu posso detalhar sobre o que se pas-sava na Itália 20 anos antes do meu nascimen-to. Se você perguntar hoje para um aluno, ele

certamente não saberá nada sobre como era opaís duas décadas antes de seu nascimento,pois basta dar um clique no computador paraobter essa informação. Lembro que, na escola,

eu era obrigado a decorar dez versos por dia.Naquele tempo, eu achava uma inutilidade,mas hoje reconheço sua importância. A culturaalfabética cedeu espaço para as fontes visuais,

para os computadores que exigem leitura emalta velocidade. Assim, ao mesmo tempo queaprimora uma habilidade, a evolução põe em

Page 12: Umberto Eco [=] Eletrônicos duram 10 anos; livros, 5 séculos

7/26/2019 Umberto Eco [=] Eletrônicos duram 10 anos; livros, 5 séculos

http://slidepdf.com/reader/full/umberto-eco-eletronicos-duram-10-anos-livros-5-seculos 12/20

[11]

risco outra, como a memória. Lembro-me deuma maravilhosa história de ficção científica

escrita por Isaac Asimov, nos anos 1950. É so-bre uma civilização do futuro em que as má-quinas fazem tudo, inclusive as mais simplescontas de multiplicar. De repente, o mundo

entra em guerra, acontece um tremendo ble-caute e nenhuma máquina funciona mais. Ins-tala-se o caos até que se descobre um homemdo Tennessee que ainda sabe fazer contas de

cabeça. Mas, em vez de representar uma salva-ção, ele se torna uma arma poderosa e é dispu-tado por todos os governos – até ser capturadopelo Pentágono por causa do perigo que repre-

senta (risos ). Não é maravilhoso?No livro, o senhor e Carrière comentam sobre

como a falta de leitura de alguns líderes influen-

ciou suas errôneas decisões.

Sim, escrevi muito sobre informação cultu-ral, algo que vem marcando a atual culturaamericana que parece questionar a validade de

Page 13: Umberto Eco [=] Eletrônicos duram 10 anos; livros, 5 séculos

7/26/2019 Umberto Eco [=] Eletrônicos duram 10 anos; livros, 5 séculos

http://slidepdf.com/reader/full/umberto-eco-eletronicos-duram-10-anos-livros-5-seculos 13/20

[12]

se conhecer o passado. Veja um exemplo: se você ler a história sobre as guerras da Rússia

contra o Afeganistão no século 19, vai desco-brir que já era difícil combater uma civilizaçãoque conhece todos os segredos de se escondernas montanhas. Bem, o presidente George

Bush, o pai, provavelmente não leu nenhumaobra dessa natureza antes de iniciar a guerranos anos 1990. Da mesma forma que Hitlerdevia desconhecer os relatos de Napoleão sobre

a impossibilidade de se viajar para Moscou porterra, vindo da Europa Ocidental, antes da che-gada do inverno. Por outro lado, o tambémpresidente americano Roosevelt, durante a 2.ª

Guerra, encomendou um detalhado estudo so-bre o comportamento dos japoneses para RuthBenedict, que escreveu um brilhante livro deantropologia cultural, O crisântemo e a espada .

De uma certa forma, esse livro ajudou os ame-ricanos a evitar erros imperdoáveis de condutacom os japoneses, antes e depois da guerra.

Page 14: Umberto Eco [=] Eletrônicos duram 10 anos; livros, 5 séculos

7/26/2019 Umberto Eco [=] Eletrônicos duram 10 anos; livros, 5 séculos

http://slidepdf.com/reader/full/umberto-eco-eletronicos-duram-10-anos-livros-5-seculos 14/20

[13]

Conhecer o passado é importante para traçar ofuturo.

Diversos historiadores apontam os ataques ter-

roristas contra os americanos em 11 de setem-

bro de 2001 como definidores de um novo curso

para a humanidade. O senhor pensa da mesma

forma?

Foi algo realmente modificador. Na primei-ra guerra americana contra o Iraque, sob o go-

 verno de Bush pai, havia um confronto direto:a imprensa estava lá e presenciava os combates,as perdas humanas, as conquistas de território.Depois, em setembro de 2001, se percebeu quea guerra perdera a essência de confronto hu-

mano direto – o inimigo transformara-se noterrorismo, que podia se personificar em umanação ou mesmo nos vizinhos do apartamentoao lado. Deixou de ser uma guerra travada por

soldados e passou para as mãos dos agentessecretos. Ao mesmo tempo, a guerra globali-zou-se; todos podem acompanhá-la pela televi-

Page 15: Umberto Eco [=] Eletrônicos duram 10 anos; livros, 5 séculos

7/26/2019 Umberto Eco [=] Eletrônicos duram 10 anos; livros, 5 séculos

http://slidepdf.com/reader/full/umberto-eco-eletronicos-duram-10-anos-livros-5-seculos 15/20

[14]

são, pela internet. Há discussões generalizadassobre o assunto.

Falando agora sobre sua biblioteca, é verdade

que ela conta com 50 mil volumes?

Sim, de uma forma geral. Nesse aparta-mento em Milão, estão apenas 30 mil – o res-tante está no interior da Itália, onde tenho ou-tra casa. Mas sempre me desfaço de algumascentenas, pois, como disse antes, é preciso fazeruma filtragem.

Por que o senhor impediu sua secretária de cata-

logá-los?

Porque a forma como você organiza seus

livros depende da sua necessidade atual. Tenhoum amigo que mantém os seus em ordem alfa-bética de autores, o que é absolutamente estú-pido, pois a obra de um historiador francês vai

estar em uma estante e a de outro em um lugardiferente. Eu tenho aqui literatura contempo-rânea separada por ordem alfabética de países.

Page 16: Umberto Eco [=] Eletrônicos duram 10 anos; livros, 5 séculos

7/26/2019 Umberto Eco [=] Eletrônicos duram 10 anos; livros, 5 séculos

http://slidepdf.com/reader/full/umberto-eco-eletronicos-duram-10-anos-livros-5-seculos 16/20

[15]

 Já a não contemporânea está dividida por sécu-los e pelo tipo de arte. Mas, às vezes, um de-

terminado livro pode tanto ser considerado pormim como filosófico ou de estética da arte; de-pende do motivo da minha pesquisa. Assim,reorganizo minha biblioteca segundo meus cri-

térios e somente eu – e não uma secretária –posso fazer isso. Claro que, com um acervodesse tamanho, não é fácil saber onde está cadalivro. Meu método facilita, eu tenho boa me-

mória, mas, se algum idiota da família   retiraalguma obra de um lugar e a coloca em outro,esse livro está perdido para sempre. É melhorcomprar outro exemplar (risos ).

Um estudioso que também é seu amigo, Mars-hall Blonsky, escreveu certa vez que existe de um

lado Umberto, o famoso romancista, e de outro

Eco, professor de semiótica.

E ambos sou eu (risos ). Quando escrevoromances, procuro não pensar em minhas pes-quisas acadêmicas – por isso, tiro férias. Mes-

Page 17: Umberto Eco [=] Eletrônicos duram 10 anos; livros, 5 séculos

7/26/2019 Umberto Eco [=] Eletrônicos duram 10 anos; livros, 5 séculos

http://slidepdf.com/reader/full/umberto-eco-eletronicos-duram-10-anos-livros-5-seculos 17/20

[16]

mo assim, leitores e críticos traçam diversasconexões, o que não discuto. Lembro de que,

quando escrevia O pêndulo de Foucault , fizdiversas pesquisas sobre ciência oculta até que,em um determinado momento, elas atingiramtal envergadura que temi uma teorização exa-

gerada no romance. Então, transformei todo omaterial em um curso sobre ciência oculta, oque foi muito bem-feito.

Por falar em O pêndulo de Foucault , comenta-se

que o senhor antecipou em muito tempo O códi-

go Da Vinci , de Dan Brown.

Quem leu meu livro sabe que é verdade.Mas, enquanto são os meus personagens que

levam a sério esse ocultismo barato, DanBrown é quem leva isso a sério e tenta conven-cer os leitores de que realmente é um assunto aser considerado. Ou seja, fez uma bela maquia-

gem. Fomos apresentados neste ano em umapremière do Teatro Scala e ele assim se apre-sentou: “O senhor não me admira, mas eu gos-

Page 18: Umberto Eco [=] Eletrônicos duram 10 anos; livros, 5 séculos

7/26/2019 Umberto Eco [=] Eletrônicos duram 10 anos; livros, 5 séculos

http://slidepdf.com/reader/full/umberto-eco-eletronicos-duram-10-anos-livros-5-seculos 18/20

[17]

to de seus livros.” Respondi: Não é que eu nãogoste de você – afinal, eu criei você (risos ).

Em seu mais conhecido romance, O nome da Ro-

sa, há um momento em que se discute se Jesus

chegou a sorrir. É possível pensar em senso de

humor quando se trata de Deus?

De acordo com Baudelaire, é o Diaboquem tem mais senso de humor (risos ). E, seDeus realmente é bem-humorado, é possívelentender por que certos homens poderososagem de determinada maneira. E se ainda a

 vida é como uma história contada por um idio-ta, cheia de som e fúria, como Shakespeareapregoa em Macbeth , é preciso ainda mais sen-

so de humor para entender a trajetória da hu-manidade.

Como foi a exposição no Museu do Louvre, em

Paris, da qual o senhor foi curador, no ano pas-

sado?

Há quatro anos, o museu reserva um mês

Page 19: Umberto Eco [=] Eletrônicos duram 10 anos; livros, 5 séculos

7/26/2019 Umberto Eco [=] Eletrônicos duram 10 anos; livros, 5 séculos

http://slidepdf.com/reader/full/umberto-eco-eletronicos-duram-10-anos-livros-5-seculos 19/20

[18]

para um convidado (Toni Morrison foi escolhi-da certa vez) organizar o que bem entender.

Então, me convidaram e eu respondi que que-ria fazer algo sobre listas. “Por quê?”, pergun-taram. Ora, sempre usei muitas listas em meusromances – até pensei em escrever um ensaio

sobre esse hábito. Bem, quando se fala em lis-tas na cultura, normalmente se pensa em litera-tura. Mas, como se trata de um museu, decidielaborar uma lista visual e musical, essa sugeri-

da pela direção do Louvre. Assim, tive o privi-légio (que não foi oferecido a Dan Brown) de

 visitar o museu vazio, às terças-feiras, quandoestá fechado. E pude tocar a bunda da Vênus

de Milo (risos ) e admirar a Mona Lisa a apenas20 centímetros de distância.

O senhor esteve duas vezes no Brasil, em 1966 e

1979. Que recordações guarda dessas visitas?

Muitas. A primeira, em São Paulo, ondedei algumas aulas na Faculdade de Arquitetura(da USP), que originaram o livro  A estrutura

Page 20: Umberto Eco [=] Eletrônicos duram 10 anos; livros, 5 séculos

7/26/2019 Umberto Eco [=] Eletrônicos duram 10 anos; livros, 5 séculos

http://slidepdf.com/reader/full/umberto-eco-eletronicos-duram-10-anos-livros-5-seculos 20/20

[19]

ausente . Já na segunda fui acompanhado dafamília e viajamos de Manaus a Curitiba. Foi

maravilhoso. Lembro-me de meu editor naépoca pedindo para eu ficar para o carnaval eassistir ao desfile das escolas de samba de ca-marote, o que não pude atender. E também me

recordo de imagens fortes, como a da moça quecai em transe em um terreiro (para o qual fuilevado por Mario Schenberg) e que reproduzoem O pêndulo de Foucault .

O Estado de S. Paulo

26 de maio de 2010