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UM GUIA A MARX - economia e filosofia no mundo social - Fernando Pedrão

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UM GUIA A MARX

- economia e filosofia no mundo social -

Fernando Pedrão

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I. Preliminares

A obra de Marx é gigantesca e sabemos que ainda está sendo desenterrada. Ao longo do tempo foi submetida a diversos desvios bem intencionados, de criticas mordazes e foi atacada de diversos modos, por críticos competentes e por adversários que não a leram, muitas vezes cobrando de Marx suas próprias insatisfações. As distorções e as criticas superficiais vieram a constituir os principais obstáculos de uma visão organicamente construída de seu trabalho. O afã de tornar a obra de Marx compreensível a todos tende a introduzir simplificações que, simplesmente, distorcem o movimento de sua totalidade. Entretanto, a percepção da totalidade social é essencial na obra de Marx na qual, além disso, trata-se de uma totalidade em transformação. Um mundo em que a formação da consciência efetiva é acionada pela produção de valor. O trabalho tem, portanto, um significado ontológico, que transcende o âmbito do trabalho dominado, essencialmente fazendo com que o trabalho esteja além da função de dominar de qualquer capitalista em particular.

O próprio Marx contribuiu para essa busca de acesso generalizado quando, por exemplo, concordou em publicar O capital em fascículos achando que assim seria acessível aos trabalhadores em geral. Sem dúvida, há muito da obra de Marx que pode ser exposto de modo simples, mas não há como negar que se trata de uma obra extremamente densa e complexa cujo domínio não pode ser pensado para o grande público. O mundo social aqui compreende o pensado pensante, o objeto de exploração que ganha a consciência do sistema.

Diante da imensa literatura sobre Marx, grande parte da qual realizada por autores mais competentes e melhor informados, este estudo seria dificilmente justificável, não fosse porque representa um esforço de leitura interpretativa da obra de Marx em função da circunstancia histórica da colonização e de seus rebatimentos no modo como se realiza a modernização no ambiente da desigualdade de hoje. Não temos compromisso algum em refletir a história do pensamento marxista, senão de buscar na leitura do próprio Karl Marx um momento de síntese genial do pensamento sobre o mundo social. Vemos a história como ferramenta interpretativa do atual. Neste sentido, veremos a categoria composição como essencial para uma leitura independente do processo histórico na perspectiva das nações latino-americanas. Entendemos que a história é a abordagem mais adequada para penetrar no significado do trabalho de Marx que nunca deixou de ser filosófico e revela uma terrível continuidade desde sua juventude aos seus últimos dias. Justamente, por esse nervo filosófico, ela jamais constituiu uma ruptura essencial com seus grandes antecessores, que são Aristóteles e Hegel.

Este roteiro de exposições corresponde a uma apresentação sintética da doutrina econômica de Karl Marx, compreendendo material disponível desde os Manuscritos Econômicos e Filosófícos de 1844 1, aos Delineamentos dos Fundamentos da crítica da Economia Política (Grundrisse) (1857-1858) 2, da Contribuição à critica da Economia Política (1859) 3 das Teorias da Mais Valia4 e de O Capital (1867- ). Logicamente é um horizonte imenso de leitura que não pode ser coberto em apresentações de alcance limitado. No entanto enfrenta um problema inescusável, de decidir entre uma apresentação panorâmica e outra seletiva e entre a exposição positiva e a genética. Entendemos que a primeira é contraditória com o próprio espírito do autor, de extrair das contradições o fio condutor da penetração conceitual do processo histórico do capital.

1 Karl Marx, Manuscritos econômico-filosóficos, São Paulo, Boitempo, 2004 2 Karl Marx, Grundrisse, 1857-1858, 2 vols. México, Fondo de Cultura Econômica, 1985

3 Karl Marx, Contribuição à critica da economia política, São Paulo, Martins Fontes, 2003 4 Karl Marx, Teorias da Mais Valia, 2 vols. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1980

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Na realização de um ensaio como este há um problema fundamental de leitura da obra de Marx e de diversos de seus seguidores, que tem que ser decidido com antecedência e refletirá, de qualquer modo, algumas posições teóricas na seleção dos textos e em sua interpretação. Por isto, é preciso dizer que vemos como correto situar Marx nas grandes correntes do pensamento na história em vez de pretender que ele seja uma ruptura com tudo que se fez. Marx deve aos Jônicos, a Aristóteles, a Maimônides, a Spinoza, a Hegel. A força de Marx consiste em ter criado uma síntese que corresponde ao mundo social do capital moderno.

O capital é a suma manifestação do poder econômico socialmente organizado e se apresenta como a representação da vida social, estabelecendo suas regras como orientadoras do papel dos trabalhadores enquanto proprietários de sua força de trabalho. A grande questão que Marx coloca, justamente, é que o capital expropria o controle do trabalhador sobre o trabalho. Assim, a emergência de uma consciência social do trabalho por parte dos trabalhadores é uma determinação da transformação objetiva do mundo do trabalho, bem como um caminho de recomposição do controle do trabalhador sobre sua própria força de trabalho.

A obra de Marx trata desse conflito social em seu enraizamento na formação e institucionalização dos interesses dos participantes da vida econômica. Não é uma proposta de descrição da vida social nem é uma teoria genérica do agir social. O trabalho se reorganiza para recuperar sua capacidade de decidir sobre seu próprio destino, mas é continuamente contrariado em decisões sobre seu futuro. No processo do capital os trabalhadores enfrentam um poder mais abrangente e mais organizado dos detentores do capital, que se articulam em espaços da esfera pública e da esfera privada e que assumem uma variedade de formas técnicas e de organização. Na realidade, a própria noção de futuro se diferencia segundo se trata do futuro dos capitalistas ou do futuro dos trabalhadores, ou do futuro do sistema do capital em seu conjunto.

Tal como seria inevitável, este estudo contém referências à Ideologia Alemã e ao Manifesto Comunista no que chega ao debate sobre o trabalho na economia capitalista de hoje. Uma tese que se desenha gradualmente de acompanhar o processo de formação da obra de Marx é que ela se torna progressivamente complexa e que a contextura de O Capital se torna fractal, isto é, encerra inúmeras possibilidades de desenvolvimento quando vista por qualquer das inúmeras possibilidades de abordagem. Decidisse Marx começar pela mercadoria ou pelo modo de produção, encontraria que o universo é igualmente complexo, seja por uma entrada a nível micro ou por outra a nível macro. Já no livro publicado em 1859 Marx introduz um parágrafo que situa o que se desenvolveria adiante como teoria da instabilidade do sistema capitalista antes que teoria do ciclo, que diz que “em certo estágio de desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes oiu, o que é a sua expressão jurídica, com as relações de propriedade no seio das quais se tinham movido até então”.

Este estudo não está planejado para cobrir a obra de Marx em seu conjunto, mas toma como fio condutor a análise das condições de totalização das atividades sociais que, finalmente, resultam no conceito de totalidade absorvido pelas ciências sociais. No conjunto, sua totalidade, é essencial. Pretende-se, passar uma visão de conjunto da obra econômica com seus fundamentos filosóficos e suas implicações sociais.

As notas de rodapé são colocadas como notas explicativas e os textos em negrito e sublinhados são comentários deste autor aos temas em pauta. As citações de obras de Marx e de outros autores foram reduzidas ao mínimo necessário e colocadas em rodapés.

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2. Enquadramento da doutrina econômica de Karl Marx 5

2.1. Antecedentes filosóficos.

A Economia Política é a economia enquanto ciência social com fundamentos filosóficos, de realização sociológica e de desdobramento no plano da Política. É a economia que faz a ponte entre os fundamentos ontológicos do mundo social e seus desdobramentos sócio- antropológicos 6. Acima de tudo é a ciência social que se reconhece como historia da materialidade da vida social .

Costuma haver controvérsia acerca de se o conteúdo filosófico da obra de Marx se mantém ao longo do desenvolvimento de sua obra, ou se Marx como pensador social deixa de ser filósofo, e não passa de um ricardiano de segunda ordem como em algum momento ditou o economista norte-americano Premio Nobel Paul Samuelson. A questão realmente se coloca nos termos de que Marx não se ajusta aos termos oficializados da academia. Na linha da interpretação dada por Louis Althusser a esse problema, entendemos que a pulsação filosófica da obra de Marx prossegue até o Capital, incorporada no significado ontológico do movimento de materialidade e ideologia. Entendemos que esse porão filosófico da análise econômica desemboca no questionamento da ontologia do ser social 7. Provavelmente a abordagem mais profunda é a de Georg Lúkacs, que é seguida por Istvan Mészaros e que focaliza na ontologia do ser social. Entendemos que esse é um aspecto controverso, dado que há autores que entendem que Marx se distanciou da filosofia enquanto outros entendem que a visão filosófica está subsumida em suas obras de maturidade e fundamenta sua teoria social. Por extensão entendemos que há outros aspectos a ressaltar e que provavelmente entram em linha de colisão com os ativistas, com os que se esforçam por separar Marx dos fluxos de pensamento teórico da sociedade de hoje. É preciso resgatar o enorme potencial filosófico da obra de Marx, por isso, descartar uma suposta separação entre suas obras de juventude e as de maturidade. As da maturidade foram

5 Uma apresentação da doutrina econômica de Marx por Karl Kautsky ( La doctrina económica de Carlos Marx, Buenos Aires, Lautaro, 1946). é muito sintética e apenas oferece uma visão panorâmica. Outros trabalhos com esse perfil a serem citados são os de James Becker, (Economia Política marxista, Rio, Zahar, 1980) No entanto, é preciso fazer justiça à obra de Kautsky por captar o problema de sentido de finalidade embutido no movimento do capital. A apresentação extremamente didática de Becker deve ser valorizada na construção de um debate renovado sobre o capitalismo do imperialismo.

66 A perspectiva ontológica da questão, que é a filosófica por definição, foi explorada por Lukács em sua Ontologia do ser social ( ) e por Herbert Marcuse em Ontologia de Hegel (Martinez Roca, Barcelona, 1971). 7 A contribuição de Althusser é de grande envergadura e merece uma referencia especial. Dentre seus trabalhos destacaremos primeiro A favor de Marx (Rio de janeiro , Zahar, 1979) em que insiste nos aspectos de ruptura do processo histórico das relações sociais embutidas no processo do capital e na separação, organicamente instalada, entre Marx e Hegel. A seguir, os dois volumes de Ler o capital (Rio de Janeiro, Zahar, 1980), que incorporam trabalhos de igual relevância de Jacques Ranciére, de Pierre Macherey e de Etienne Balibar e que nos trazem análises em profundidade do tecido filosófico de O capital. Finalmente, Aparelhos ideológicos do Estado (São Paulo, Graal, 2007) em que se apresenta uma interpretação da identidade e das funções do Estado capitalista moderno. O trabalho de Althusser representa uma linha de interpretação da obra de Marx que se distancia de outros, como Lukács e de Meszáros que consideram relevante uma separação entre as obras de juventude e as de maturidade de Hegel e de Marx. Neste estudo tendemos a considerar que existe uma clara continuidade orgânica na obra desses dois pensadores, bem como entendemos que Marx continua filósofo até o final, simplesmente sem usar o linguajar ex professo dos filósofos acadêmicos e fiel ao esforço de realismo.

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germinadas na juventude e o alcance filosófico ficou subsumido na maturidade e não descartado. É preciso recuperar o antecedente de que a partir de Hegel – e por conta da obra de Hegel – houve uma renovação do interesse pela Grécia, da qual Marx foi parte. Especialmente, trata-se da dialética de Heráclito e dos conceitos de totalidade e necessidade que surgem com Leucipo e Empédocles. De arte da argumentação entre os gregos, a dialética foi transformada por Hegel em chave mestra do processo ontológico de ser, conhecer, agir, que aparece na formação do sujeito e na do conceito. Além disso, entende-se que a influência de Aristóteles na construção da obra de Marx é muito maior que o que geralmente se admite, desde as noções de valor de uso e de valor de troca até a de trabalho abstrato e ao manejo de pares de categorias, desde o plano do concreto ao do abstrato 8.

Há, também, um antecedente a considerar na obra de Spinoza, sobre ética e necessidade que se recupera mediante o significado histórico de necessidade. A crítica do Iluminismo e da revolução burguesa está no centro de uma crítica da racionalidade burguesa que se vê como única. Por sua vez, a obra de Hegel representa uma recuperação da dialética 9, uma teoria da formação da consciência social e da ordem do tempo. No relativo a este último ponto, cabe uma referência ao trabalho de Paulo Arantes10, que projeta uma visão estruturante do sentido de finalidade imerso na ontologia de Hegel. Entendemos que o grande desafio enfrentado por Marx é a ascensão da burguesia como classe, que determina os dois movimentos combinados, do Iluminismo na Europa e de colonização partida da Europa sobre os demais continentes. Esta visão crítica do Iluminismo enquanto visão teórica representativa da ascensão da burguesia é um dos pontos que se defende neste estudo. Para nós é preciso distinguir que o Iluminismo é um movimento europeu que sempre correspondeu historicamente aos projetos de expansão dos mesmos países europeus que o abrigaram.

2. 2. Contexto histórico.

A obra de Marx surge do conjunto de Revolução Francesa e da contra-revolução, interna e externa, que a sucedeu11. A polaridade ideológica corresponde aos processos de poder:

8 Entendemos que a doutrina do trabalho abstrato, que já se encontra na Fenomenologia do Espírito, é uma reformulação da doutrina da substância essencial que está no cerne da Metafísica de Aristóteles. A novidade com Marx consiste em identificar o trabalho abstrato induzido pelo capital como meio de produção da riqueza do capitalismo. 99 A questão da superação com inclusão que é apresentada no prólogo da Fenomenologia do Espírito– o paradigma da superação da flor pelo fruto – e a relação senhor- escravo. Conhecimento como experiência socializada. Neste estudo propomos ver uma polaridade entre alienação e superação que seria o eixo dialético da critica do capitalismo. Desde já, isto significa que vemos a alienação e a superação como processos que se desenvolvem junto com as determinações da sociedade moderna do capital. Não há como pensar em acumulação capitalista sem alienação nem há como separar os processos da alienação das condições específicas de exploração com que o capital mercantil expande seus horizontes de trocas. Por isso, parecem-nos completamente sem propósito as incursões neste tema que não se apóiam em referências concretas de experiência histórica. 1010 Paulo Eduardo Arantes, A ordem do tempo, ( São Paulo, Hucitec, 2000). A análise da potencia do tempo com suas dimensões de espaço-temporalidade e de articulações multiformes do tempo constituem uma entrada poderosa ao movimento interno de desenvolvimento da obra de Hegel, desde as determinações do ser individuo ao ser social.

11 A conceituação de contra-revolução é fundamental. Entende-se contra-revolução como um amplo movimento de classe, mas não necessariamente como um movimento orgânico construído com uma proposta ideológica explícita. Contra-revolução interna, será aquela que

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Bonaparte e os Bourbon; Babeuf e os Justos. Para entender a riqueza multifacética das idéias do período, é preciso distinguir a complexidade da revolução e a da contra-revolução. É o momento da metamorfose dos trabalhadores em classe operária e do movimento anarquista, em suas variantes russa e italiana. É o mesmo momento do Tratado de Viena e articulação dos poderes conservadores para criar o imperialismo. Acentuam-se contradições do processo nacional da Alemanha e há uma tensão entre os desafios sociais e o ensimesmamento da filosofia.

Há um fundamento no desenvolvimento da Economia Política com os antecedentes de Steuart, dos Fisiocratas, de Smith e de Ricardo. O papel das teorias da divisão do trabalho e da renda da terra. Q questão do trabalho produtivo tem um lugar central nessas leituras, onde se pergunta produtivo para que. A necessidade de uma revisão critica da teoria e o projeto das Teorias da Mais Valia: Livro IV ou Livro I? A teoria social teria que se adaptar às transformações do mundo social. A perspectiva crítica envolveria uma teoria da exploração ligada a uma teoria do excedente, que já era uma questão inevitável da teoria desde Destutt de Tracy e os Fisiocratas. As condições sociais da exploração, que resultam em extensão e intensidade da exploração em suas múltiplas formas, seriam necessariamente parte de uma leitura do sistema do capital a partir de suas origens no escravismo e da subordinação pela força de trabalhadores, que vai muito além do que se pode colocar em termos de Europa. O desenvolvimento de uma teoria da exploração mediante captação de mais valia não necessariamente cobre o que acontece na fronteira e do lado de fora da produção capitalista. Este é o problema que teremos que afrontar ao colocar o estudo da Economia Política Crítica de Marx frente aos problemas dos povos colonizados e dominados.

Uma atenção especial deve ser dada ao projeto e à realização da obra de Marx. Sabemos que o projeto original era muito maior que o que Marx efetivamente tentou realizar. Temos as notícias de Rosdolsky e comentários de Negri. As obras do sistema da crítica e as obras polêmicas desde A Miséria da filosofia à Sagrada Família. O que há de mais poderoso e que guia o trabalho de Marx é um conceito imanente de crítica que se opõe ao de Kant. Este aspecto filosófico permeia a teoria social crítica mostrando a economia como um sistema que se torna mais complexo mercê das contradições que desenvolve. A construção de uma abordagem histórica própria12 que se estende em uma reconstrução dos fundamentos ontológicos da filosofia tem que ser considerada como parte de uma resposta teórica a um processo que gera mudança.

se organiza pelas forças políticas situadas no marco institucional do Estado nacional e a externa será aquela que se organiza sobre as forças da internacionalidade do capital e da política. 12 As obras de história de Hegel - Lições de Historia da Filosofia Universal e Historia da Filosofia - não estiveram ao alcance de Marx.

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3. Categorias do processo social moderno na obra de Marx

Exórdio

Começaremos por situar a noção de categoria. Categorias são referências inevitáveis na formulação do discurso. No sentido dado por Aristóteles: espaço, tempo, quantidade, qualidade, extensão são elementos essenciais dos predicamentos do sujeito. No relativo ao campo social trata-se do espaço – tempo histórico. Marx teria que se reportar à doutrina de Aristóteles sobre categorias, que trata de predicamentos necessários do real e jamais à de Kant que trata de categorias do pensar. O problema enfrentado por Marx no relativo a categorias deriva da historicidade de seu objeto – a sociedade burguesa moderna – que não pode ser separada das condições concretas em que se forma e em que se encontra. O problema geral dos efeitos da historicidade do objeto na determinação da análise aparece plenamente quando se percebe como algumas idéias aparecem primeiro em formas simples e adiante em formas mais complexas. Para ler a obra de Marx na perspectiva de nações como o Brasil que se formaram a partir de uma situação de colônia, que foram determinadas pelo colonialismo, a colonização é uma categoria que situa a análise social na historicidade da sociedade pós-colonial e que tem estado pressionada por situações de periferia no contexto do poder econômico e político mundial.

Teremos que ultrapassar a compreensão simples de colonização como de um movimento uniforme, para passar a trabalhar com a colonização à luz daquela outra categoria que revela a principal contradição interna da colonização que é a pluralidade. O colonialismo retirou a pluralidade dos colonizados. Trocou a variedade de sociedades indígenas por uma figura mitológica de o índio e reduziu a pluralidade dos africanos escravizados a uma figura genérica de o negro. A pluralidade é uma contradição do poder imposto que precisa reduzir as identidades dos dominados a um termo comum de massa dominável.

A visão histórica situa os possíveis usos de categorias de análise. Os problemas de dominação aqui aparecem em seus formatos coloniais e nos pós coloniais, quando surgem como supremacia econômica e militar ou como hegemonia no sentido estrito do termo ou ainda, como liderança cultural. Desde a unificação da Alemanha, as grandes potencias coloniais formadas cem anos antes enfrentaram uma concorrência econômica, técnica e cultural que se deslocou com a ascensão do poderio norte-americano e da União Soviética e que volta a se deslocar com o fim da União Soviética e sua substituição pela Rússia, e com a ascensão da China. Esses movimentos do plano político e econômico não anularam as lideranças de França e Alemanha em filosofia e sociologia e história, campos em que nem os norte-americanos nem os russos produziram sinais significativos de liderança. O vezo norte-americano pelo individualismo, uma tendência a supervalorizar o imediatismo prático, representam uma barreira a um pensar historicamente significativo. Com essa manobra a academia e a mídia juntas passaram a representar o bloco de interesses da sociedade burguesa, tanto em sua etapa ascendente ofensiva como em sua etapa descendente defensiva. Junto com o desconforto de reconhecer que o controle social exercido pela mídia – e que funciona como uma cortina de bloqueio da politização da vida social – contribui para manter a alienação causada pela reificação conduzida pelo capital, há uma consciência de que as condições de comunicação no mundo de hoje estão irreversivelmente modificadas.

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3.1. O fundamento da produção capitalista

Para Marx, o questionamento da propriedade privada é o ponto de partida da formação do capital, que permite a alguns criar vantagens de monopólio sobre propriedades fundiárias e outras e comprar o tempo de outros e terem o poder de por preços no trabalho e nos meios de produção. Entendemos que além da propriedade privada estão as condições institucionais que permitem a alguns se apropriarem da propriedade de outros. Com a produção capitalista surge a distinção e articulação de valor de uso e valor de troca, em que o valor de troca supostamente engloba e resume o valor de uso. Adiante, veremos que essa afirmação tem que ser qualificada ou que é apenas uma verdade parcial. A teoria do valor envolve uma explicação dos processos da alienação e dos movimentos de captação de valor 13. Isto significa que se torna necessário desenvolver uma teoria do valor de uso e uma teoria do valor de troca. Noutras palavras, as condições históricas em que o valor de troca=>dinheiro=>dinheiro capital=>moeda=>acumulação.

Neste estudo propomos examinar o fator composição como a categoria fundamental na formação de valor e na transformação do valor de troca em dinheiro e em capital. A categoria composição ocupa um lugar especial nesta leitura da doutrina econômica de Marx, atribuindo-se à composição do capital e à composição do sistema produtivo com o que ele tem de técnica incorporada e com o que carrega de saber incorporado nos trabalhadores que llhes permite usar a maquinaria. Para compreender a proposta de O Capital é preciso internalizar os conceitos de composição do capital e de composição do trabalho. O sistema sócio-produtivo constitui uma composição de técnicas e saberes. A noção de composição orgânica do capital exprime esse sentido progressivo do aperfeiçoamento do trabalho, pelo que se trata de composição orgânica em determinadas condições históricas. A teoria do valor de uso vem a ser explicação da ampliação e do papel do consumo nas transformações do sistema socioprodutivo. O tratamento nos Grundrisse e no Capital desmente a presunção de que Marx não teria uma teoria do consumo. Entendemos que há dois caminhos para uma teoria do consumo, em que o primeiro trabalha com o consumo condicionado pela renda disponível e o segundo vê o consumo como conseqüência de uma iniciativa do capital para sustentar sua taxa de lucro.

3.2. Bases iniciais e sentido de finalidade na obra de Marx.

13 A alienação é o mecanismo que retira do trabalhador a capacidade de decidir sobre os usos de sua força de trabalho e anula sua identidade ideológica.O problema da alienação não pode ser tratado como uma questão literária nem como um problema de dogma – se Marx disse é lei – mas é um problema histórico, como o próprio Marx o trabalha na Ideologia alemã – pelo que é preciso reconhecer condições históricas de alienação, que chegam de diferentes modos para diferentes grupos.É um processo histórico de alienação e não são situações isoladas de alienação. Diremos qe a alienação é parte essencial da falsa identidade dos dominados. Seguindo a linha de interpretação de Mészaros – A teoria da alienação em Marx – entendo que o principio da alienação é, justamente, o que faz a ponte entre a Economia Política e a Filosofia Trabalhar o processo de alienação como um sistema de situações movediças que se projetam para o futuro através de deslocamentos nas relações com o exterior. As condições específicas de alienação estão demarcadas por posições de classe e pela experiência com a modernização. No essencial, ao trabalhar a alienação como processo introduz-se uma separação entre as sociedades estáveis e as que sofrem os efeitos de transformações bruscas. Ao entender que se trata de um processo de alienação que assume diferentes formas e que se desdobra em modalidades institucionalizadas,assume-se a responsabilidade de realizar a ligação entre a análise do plano das relações materializadas de trabalho com o das ideologias.

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Segundo Gunnar Myrdal perdeu seu sentido de finalidade e uma retomada de sua cientificidade depende de reconhecer sua raiz histórica .A obra de Marx se apresenta como uma crítica historicamente significativa que atinge a ciência social em seu conjunto e que é formulada a partir de uma perspectiva da Economia Política e dotada de um significado antropológico: a teoria como derivação do contexto histórico. Representa uma explicação do mundo social como práxis política. Subentende a atividade política como inevitável. O desenvolvimento da atividade política define um novo programa para a Economia Política a partir da crítica da propriedade privada e da construção de uma teoria da alienação 14. Coloca a internacionalidade da economia na base da formação do sistema de poder. Torna as economias nacionais como componentes de um sistema internacional de poder.

Na obra de Marx a influência de Hegel e a critica da filosofia do direito15 ocupam um lugar especial, que entretanto ficou desbalanceado pelo fato de que as observações de Marx não atingem a obra de Hegel em seu conjunto 16. A influência de Hegel é decisiva no desenvolvimento de uma abordagem dialética e na construção de um saber construído a partir da experiência. A crítica de Marx à objetivização do Estado por parte de Hegel e à relação entre Estado e sociedade chega a um impasse, dado pelo fato de que o próprio Marx trabalhou com referencias restritas dos processos do Estado. Entendemos que é preciso reconhecer limitações da leitura de Hegel por Marx, inclusive por uma questão de justiça ao próprio Marx que nunca teve acesso à obra completa de Hegel. Observe-se que a crítica de Marx se faz em relação à filosofia do Direito e não em relação às obras centrais de Hegel. Há uma crítica posterior que contém referencias a teses da Fenomenologia do Espírito mas não há crítica alguma à Ciência da Lógica 17.

14 No quadro dos trabalhos sobre a alienação é preciso ressaltar A teoria da alienação em Marx, de Istvan Mészaros De nossa parte precisamos de uma teoria dos processos de alienação e não de uma teoria de estados de alienação. Quando se consideram processos de colonização e dominação torna-se necessário explicar processos recorrentes de alienação, bem como explicar como eles penetram na sociedade. Temos que ver que há uma colonização tradicional e outra atual, que opera através da mídia e da desnacionalização dos sistemas de educação. 15 Marx nunca deixou de usar a abordagem de Hegel sobre a dialética. Sua ruptura com Hegel deve ser colocada na sua crítica da filosofia do Direito e está na objetivização do Estado por Hegel, portanto na retirada da historicidade do Estado, que fica separado do processo da sociedade.(p.29) e adiante quando diz que Hegel “autonomiza os predicados e logo os transforma de forma mística em seus sujeitos” (p.44). Trata-se, portanto, de uma crítica ontológica e não de uma divergência metodológica.

16 Estranha muito que autores que tinham indiscutível domínio da obra dos dois não se preocupassem em chamar a atenção para assimetria entre o perfil dessa crítica e o objeto a que ela se refere. Surpreende que se construa uma crítica a Hegel sem considerar as interações entre a Fenomenologia e a Ciência da Lógica. A crítica de Marx a Hegel é essencialmente filosófica e aponta aos fundamentos ontológicos da relação entre sociedade civil e Estado sem referência alguma ao fundamento histórico da doutrina do ser nem à suposta relação entre a visão dialética e a formação de abordagens setoriais como sobre estética.Não encontramos crítica alguma de Marx à Ciência da Lógica. 17 Para um estudo mais cuidadoso da obra de Marx é preciso contar com uma visão da obra de Hegel em seu conjunto, que certamente não cabe no escopo deste estudo. Para os objetivos limitados com que se trabalha aqui, classificaremos a obra de Hegel em quatro grandes grupos. O primeiro estará constituído de suas obras formativas de juventude, basicamente, o período de Frankfurt. O segundo grupo compreende a elaboração das obras centrais de seu sistema de pensamento, que são a Fenomenologia do espírito e a Ciência da Lógica. O terceiro período compreende suas demais obras de redação direta, inclusive a Enciclopédia das Ciências do Espírito em compêndio e as Filosofia do Direito. O quarto grupo está integrado de obras coligidas de autas.por estudantes. Parece ser indiscutível que diversos dos elementos

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Os Manuscritos econômicos e filosóficos (1844). É o texto antecipatório da obra de Marx. Destacam-se o capítulo sobre o salário e o ganho do capital. Encontra-se uma primeira formulação da teoria da renda da terra que só seria plenamente desenvolvida em O Capital.. Estranhamento e propriedade privada. Propriedade privada e carências. A contradição inerente à acumulação. Os comentários de Roman Rosdolsky e de Istvan Mészáros, que levam, necessariamente a uma revisão da inter-relação entre as obras iniciais e as da escrita do sistema.

A questão de sentido de finalidade a nosso ver aparece plenamente em As teses sobre Feuerbach e a separação entre economia e política. A crítica a Feuerbach e a definição de uma concepção materialista da história. Algumas citações desse trabalho são oportunas: “Mas a essência humana não é uma abstração do indivíduo singular, em sua realidade ela é o conjunto das relações sociais” (p.28). “O ponto de partida do velho materialismo é a sociedade civil, o do novo é a sociedade humana ou a humanidade social” (p.29).

A construção conceitual do sistema de produção capitalista torna obrigatório trabalhar com um conceito histórico de necessidade18. Os comentários de Raymond Aron19 e de Leszek Kolakowski20 que focalizam na historicidade do movimento do marxismo e em sua diferenciação com o próprio Marx segundo as necessidades práticas da política, tal como se viu com Lenin. O conceito de necessidade na filosofia moderna se identifica com a obra de Spinoza, mas também se encontra na fenomenologia de Hegel, na qual a dialética é um movimento inerente à identificação do ser em sua historicidade. Destacaremos que a passagem da consciência do ser de seu movimento para dentro a seu movimento para fora é um trânsito ao qual ele não tem como se negar. Noutras palavras, ninguém pode evitar de se desenvolver.

essenciais de sua visão crítica da filosofia, como sua crítica a Kant e sua revisão das origens gregas já estavam plenamente trabalhadas antes de aparecerem na História da Filosofia.

18 A conceituação de necessidade está ancorada em Leucipo e Empédocles. O que é necessário para Aristóteles é o que não se pode deixar de pensar e não se pode deixar de fazer. O desenvolvimento do conceito de necessidade é uma das principais pistas de relacionamento com o antecedente em Spinoza.

19 Raymond Aron, O marxismo de Marx, (São Paulo, Arx, 2005). É o texto de um curso longamente amadurecido que focaliza no movimento de desenvolvimento conceitual na obra de Marx. Aron mostra uma reverência cética sobre o papel político de Marx, mas compensa esse ceticismo com uma admiração pelo poder de síntese histórica da análise de Marx do mundo de relacionamentos entre trabalhadores e controladores do capital. 20 Leszek Kolakowski, Las principales corrientes del marxismo, 3 vols. Madrid, Alianza Universidad, 1985.

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4. As obras de Economia Política

4.1. Aspectos gerais

No relativo às obras de economia cabem algumas observações gerais iniciais. São as seguintes.

Primeiro, geralmente se alega que Marx desenvolveu um aparelho de análise derivado das idéias de David Ricardo 21. Argüiremos que na verdade Marx trabalhou praticamente com toda a literatura econômica importante disponível em sua época, que seu enfoque dinâmico deve muito mais aos Fisiocratas que a Ricardo e que, finalmente, sua abordagem sobre a renda da terra bem como sobre as condições operacionais do capital devem mais a Adam Smith e James Steuart. A influência de Ricardo é indiscutível, porém Marx se esforça por negar grande parte da doutrina de Ricardo, especialmente no relativo às noções de mercado, de concorrência e em todo o relativo à formação da renda da terra. A hipótese de que o estudo do mundo social tem que distinguir entre a internacionalidade do capital e a nacionalidade do Estado, separa uma economia burguesa de base nacional de uma economia do capital inevitavelmente internacional.

Segundo, Marx rompe radicalmente com a Economia Política clássica a partir de sua critica da propriedade privada e de suas noções sobre cooperação e sobre a organização social da produção. O miolo da questão é a historicidade do sistema de produção, que leva a pensar que a mudança progressiva do sistema leva a duas conseqüências que são as de que o muda, aperfeiçoando-se ou degradando-se, e que o sistema pode ser substituído por outro.

Terceiro, Marx se dispõe a construir uma teoria dinâmica concreta, isto é, historicamente dinâmica, em que se desenvolvem os elementos de geração e de corrupção da sociedade do capital. A partir da visão de conjunto apresentada em O capital fica em aberto concluir se o capitalismo só pode ser substituído por um movimento interno de transformação e crise ou se suas crises progressivas determinam um movimento de fora para dentro de substituição do sistema. As bases conceituais fundamentais são essencialmente concretas e a análise se refere a situações como diz Sartre e jamais a tipos ideais como quer a análise de Weber. Nada mais longe de Marx que Weber e o interesse por este será sempre um ato intelectual colateral.

Quarto, é uma falsa aparência que o sistema produtivo se desloca por causa da financeirização do capital, como se ela nao passasse através de reformas tecnológicas do sistema produtivo. Para seguir o projeto de análise de Marx é preciso rever o relativo a tecnologia que atinge o sistema através de renovações da produção industrializada. O aumento das necessidades de dinheiro para produzir e mesmo as transformações dos usos do dinheiro acontecem em um sistema de produção que se torna mais complexo, isto é, que se torna diferente de si mesmo.

Quinto. Todo o relativo ao desenvolvimento – ou à transformação – da superestrutura, isto é, o desenvolvimento político do sistema terá que ser estudado como um movimento geral de metamorfose política do capital que envolve todos seus elementos de classe, quando contem necessariamente uma teoria do Estado, ou poderá ser estudado apenas como teoria do Estado. Os que alegam que Marx não desenvolveu uma teoria do Estado nem sempre apontam a esta bifurcação conceitual inerente ao trabalho realizado por Marx. Entendemos que o estudo da metamorfose política do capital constitui um campo temático que abrange as condições atuais e as potencialidades da vida política das classes, de capitalistas e de trabalhadores, com suas respectivas condições de associação em novos cenários de internacionalidade.

21 No volume II dos Grundrisse, p. 304 a 367 Marx parte para uma espécie de acerto de contas com Ricardo em que discorda de quase todas suas idéias principais.

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Sexto. Marx representa uma opção de orientação das pesquisas teóricas e aplicadas no campo social em que a historicidade se traduz na constituição de sujeito s concretos do agir no meio social. Nada em comum com os tipos ideais de Weber nem com o individualismo do neokantismo. A grande dificuldade de dialogo com as abordagens da epistemologia inspirada nas ciências físicas é o conflito com o individualismo.

Sétimo. Os trabalhos de Marx focalizados em economia representam diferentes soluções metodológicas de análise, mesmo quando a sustentação conceitual seja a mesma. Em diversos pontos fundamentais de seu trabalho, tal como na construção do argumento relativo às crises, no Livro III, Marx desenvolve uma análise a partir de uma abordagem microeconômica em aparente contradição com sua análise da produção industrial. Pergunta-se se com tal procedimento a explicação da instabilidade do sistema não fica sobredeterminada.

4.2. Os Grundrisse: Introdução à crítica da Economia Política.

Nossa leitura dos Grundrisse nos diz que aí se encontra um pequeno mas poderoso capítulo sobre método que interessa à obra de Marx em seu conjunto e não a esta obra em particular. Tal capítulo é seguido de um longo capítulo sobre moeda, que, entretanto, não é um capítulo independente senão um texto de encaminhamento do corpo principal da obra que é o capítulo sobre capital. A nosso ver a força dessa obra reside em construir os alicerces conceituais para a construção de O capital. No entanto encontram-se aqui algumas das mais complexas conceituações que apresentam a ambigüidade do capital, no que ele tensiona o sistema de circulação para criar as condições que necessita para se reproduzir, mas realiza sua captação de mais valia no sistema estabelecido.

No relativo a método, além da consabida proposta de começar pela população, cabe destacar a relação entre a identificação de categorias de análise e complexidade do objeto da análise. Ao entender que o sistema socio-produtivo se torna mais complexo resulta que as categorias de analise deverão acompanhar essa tendência.

Esse longo texto é um estudo em profundidade da formação do conceito de capital. Compreende o capítulo do dinheiro, o capítulo do capital (livro I e livro II). Trata-se de uma investigação sobre a transformação do valor de troca em dinheiro e do dinheiro em capital. É onde se encontra a o desenvolvimento da conceituação de capital. O material reunido nesses dois volumes não está completamente contido nas obras posteriores e constitui principalmente um mergulho conceitual. O capítulo sobre o dinheiro começa por apresentar as determinações do sistema bancário na operacionalidade do dinheiro, antecipando uma teoria monetária do sistema produtivo, na qual, entretanto, os próprios bancos são determinados pelo ambiente monetário (p.41). O desenvolvimento do dinheiro representa um desenvolvimento do valor de troca e nao ao contrario. Ao desenvolver-se como mercadoria geral o dinheiro se torna uma mercadoria específica. “Surge uma incongruência do sistema, pelo fato de que o dinheiro que só existe na troca se manifesta como a conversibilidade universal frente à conversibilidade especial das demais mercadorias e a faça desaparecer...” (p.55). A troca e a divisão do trabalho se condicionam mutuamente, revelando o essencial do sistema que é o fato de que todos os participantes são mutuamente dependentes e que o poder econômico consiste no controle dessa dependência.

A troca é o nexo entre o desenvolvimento do dinheiro, com sua conversão em capital e o capítulo do capital propriamente dito. Mas a troca nao é algo genérico senão que ela se realiza de modos mais complexos em sistemas mais complexos. São elencos de trocas que se combinam de diversos modos compondo o que se passa a entender como sistema de circulação. Para realizar-se como capital o dinheiro precisa de um sistema monetário plenamente desenvolvido. Ao constituir-se como capital o dinheiro passa por uma metamorfose que é a de converter-se em capacidade de produção e ter que entrar em relações de produção com o trabalho. Para tornar-se capital o dinheiro-capital mobiliza trabalho, que é modificado para se adequar à composição

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da capacidade instalada de produção. O desenvolvimento pleno do conceito de capital é empreendido através de uma análise das condições de engajamento dos novos capitais em novos empreendimentos.

Em seu movimento geral de conversão da produção de valor em produção de mais valia o capital precisa controlar as possibilidades – e já nao as opções – de formação de valor, pelo que precisa controlar a propriedade da terra (vol.I). é uma linha de argumentação externa à produção rural, que discorda da análise interna de Ricardo e que, curiosamente, nao aparece nos textos sobre a renda da terra em O Capital.

O desenvolvimento do valor de troca gera resultados em termos de desenvolvimento dos meios financeiros que se tornam necessários para a expansão da produção de mercadorias. Esta tese que se desenvolve no volume II aponta a que uma teoria monetária da produção vem a ser uma conseqüência das alterações do sistema produtivo. Porém Marx, diferente do que faria Keynes oitenta anos depois, entende que o desenvolvimento do capital financeiro depende das condições concretas da produção e do dinheiro que ela precisa. Desse modo, para Marx o capital tende a alterar as proporções entre trabalho necessário e suntuário, como primeiro passo para aumentar a extração de mais valia. Esse mecanismo permitirá aos capitalistas ampliar a exploração, combinando a reorganização social da produção com o controle da renovação técnica dos meios de produção. A partir daí Marx concluirá que o objetivo do capitalista é aumentar a extração de mais valia e nao apenas de aumentar a taxa de lucro. Ora, o controle do excedente é o mesmo da acumulação de capital. Como o controle do capital fixo fica seguramente em poder dos capitalistas eles podem escolher as estratégias em médio prazo que orientarão as aplicações futuras de capital.

O desenvolvimento do valor de troca levanta uma questão sobre a organicidade do sistema do capital que é a disjuntiva entre a determinação dos requisitos de financiamento da produção ou a definição do poder da moeda de acionar o sistema produtivo. A teoria se encontraria diante das opções de avançar pela explicação do processo do financiamento, quando se colocaria na perspectiva do Estado, e exploraria as características financeiras do capital, ou de progredir como uma teoria monetária da produção, quando se colocaria na perspectiva do sistema bancário. Marx optou pelo primeiro desses dois caminhos, identificando o significado social do capital fictício, enquanto Keynes mais tarde optaria pelo segundo caminho, colocando-se na perspectiva da lógica e dos interesses dos bancos.

A perspectiva de análise de Marx se define como a da objetividade do sistema, em que a tendência a acumular é inerente ao modo de ser do capital. Nessa perspectiva, o poder de expandir do capital surge da relação entre trabalho necessário e trabalho excedente, que é a fonte da obtenção de mais valia. As possibilidades e os limites da acumulação capitalista se definirão, historicamente, pela possibilidade de controlar essa proporção e de usar o sobretrabalho para converter em mais valia. Esta operação se realiza mediante o controle do financiamento da produção, razão pela qual a análise critica do processo do capital daria lugar a uma análise do financiamento da produção, enquanto a análise da sustentação da posição dos capitalistas, com que Keynes se identifica, procura vislumbrar como a tendência em longo prazo de queda da taxa de lucro poderia ser controlada por meio de uma lógica do controle monetário da produção.

Esta engrenagem depende de repetição dos passos da apropriação do valor do trabalho excedente, isto é, da continuidade da apropriação de valor. Significa que o capital precisa continuar com as formas primitivas de acumular, assim como terá que enfrentar os custos adicionais derivados de transporte e operações correlatas e de custos operacionais, tais como os custos de transações e de corrupção. A partir desse ponto o problema da análise critica será o da continuidade da acumulação.

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O nervo do processo é o desenvolvimento do dinheiro como capital. É a revelação do processo da circulação de valor. A circulação está no centro da produção capitalista e o dinheiro nega seu papel inicial de meio de troca para se converter em representação da riqueza. A acumulação se objetiviza em dnheiro. Opera-se a grande mudança da produção capitalista em que o dinheiro surge como capital. A mágica da produção capitalista é que os movimentos de preservação e ampliação de valor que acontecem na esfera mercantil encontram o modo de gerar capital com novos modos de reproduzir. O modo que o capital tem de se valorizar além da reprodução mercantil é mediante a contratação de trabalho, que lhe permite inovar – produzir novos produtos – e captar mais mais valia. A mágica da produção capitalista é que os movimentos de preservação e ampliação de valor que se dão na esfera mercantil, encontram um modo de gerar capital que cria novos modos de se reproduzir. É o grande movimento da transformação do dinheiro em capital. O modo que o capital tem de se valorizar além da reprodução mercantil é mediante a contratação de trabalho, que lhe permite inovar – produzir novos produtos – e captar mais mais valia. A partir daí o dinheiro opera em circulação e produção capitalista, derivando novas relações entre capital e trabalho. Nesse contexto da produção capitalista definem-se modos de aumento de valor e de acumulação de capital. Esse processo envolve custos crescentes de infra-estrutura em geral, em especial de transportes e energia, levando o capital a procurar ganhos de produtividade e de apropriação. A mecânica desse sistema depende de velocidades na rotação dos capitais que resolvam os problemas técnicos dos processos de reposição. O capital precisa aumentar o componente de trabalho excedente para poder aumentar a captação de mais valia e prosseguir com o processo de acumulação. A produção de trabalho excedente está ligada aos tempos de reprodução do capital pelo que a continuidade do sistema depende de renovação tecnológica.

Na argumentação exposta nos Grundrisse chega-se ao significado social da formação do capital que é o controle da acumulação por parte dos capitalistas. O poder do capital é dado pelo controle da acumulação. Tal controle, diz Marx, se realiza através do aumento da produção de excedente, que surge através de transformações no sistema da circulação do capital, que permite aos capitalistas modificar os modos de usar o dinheiro como capital. Materialmente, esta depende das relações entre os sistemas de gestão e a organização material do capital. Marx avança na análise da composição do capital em fixo e circulante, indicando que o controle dos capitalistas sobre o capital se dá através da relação entre a liquidez e a escolha dos investimentos.

Os estudos de Rosdolsky 22 e de Negri23 mostram que o capítulo sobre o capital abre linhas de questionamento sobre a relação entre o capital e o mercado que ficaram em aberto no desenvolvimento dado por Marx no Livro III. Mas não extraíram as conotações da análise econômica de Marx nos Grundrisse para a construção da análise financeira nem para a teoria da crise. A ênfase na importância das páginas sobre método não deve obscurecer o fato de que nesse trabalho encontra-se o essencial da conceituação de capital.

22 Roman Rosdolsky, ‘Génesis y estructura de El capital de Marx, ( México, Siglo XXI, 1968). Um texto clássico, de construção impecável, que realiza uma exegese dos Grundrisse, entretanto, sem extrapolar sobre as conseqüências inerentes e inevitáveis desse trabalho.

23 Antonio Negri, Marx más allá de Marx, (Madrid, Akal, 1998). É uma leitura analítica dos Grundrisse. Um estudo de menor extensão, entretanto, o mais perspicaz e que incide nas conseqüências temáticas dessa obra no contexto do projeto de Marx. A nosso ver esse é o ponto de partida para um projeto ulterior de análise da metamorfose política do capital, porque situa o processo do capital como tal e como uma expressão viva e nao somente como foi captado pelas determinações históricas dos Grundrisse.

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4.3. A Contribuição à crítica da economia política. Prefácio (substantivo) Livro I De O capital. Versão preliminar da crítica da Economia Política.

Trata-se do volume publicado em 1859 que traz um brilhante prefácio e onde Marx retoma os temas abordados em seu trabalho dos dois anos anteriores de modo sintético mas sem o caráter de sondagem dado aos textos anteriores. É um texto em que Marx desloca o foco dos estudos dos Grundrisse para incorporar noções sobre o dinheiro no contexto do funcionamento do sistema capitalista. É o texto em que se apresentam os elementos conceituais que serão desenvolvidos em O Capital. Encontra-se aqui a primeira versão organizada da doutrina da mercadoria. Não se trata dos aspectos quantitativos da produção de mercadorias, mas do fato de que a produção de mercadorias torna-se determinante dos usos de trabalho no sistema de produção em seu conjunto. Na perspectiva de uma análise histórica do processo do capital o que importa é a capacidade de trabalho capaz de realizar a reprodução do capital incorporado na produção.

Neste livro Marx retoma de modo mais reduzido e linear a argumentação desenvolvida na obra anterior sobre uma teoria da circulação monetária em que distingue a progressão da funcionalidade da moeda segundo se desenvolve o sistema produtivo. As condições de conversão de mercadorias em dinheiro e vice versa são propriedades concretas do sistema, pelo que as condições de circulação estão indiretamente determinadas por requisitos do funcionamento desse mesmo sistema. Define-se aqui uma diferença fundamental com a teoria monetária de Keynes, em que trata da economia monetária possível em um sistema capitalista com um dado grau de desenvolvimento enquanto Keynes aponta a um desenvolvimento do sistema monetário que determina a produção. Não se deveria confundir uma teoria da circulação no capitalismo e uma teoria monetária da produção, que é o objetivo de Keynes. Em Marx o essencial é a interação entre o desenvolvimento do sistema produtivo e o do sistema monetário.

4.4. O Capital.

O planejamento dessa obra, que se depreende do sumário minucioso é o primeiro ponto a focalizar. A construção do livro é um movimento em espiral no interior de uma pirâmide. Os três grandes movimentos que são a produção social de capital, a circulação do capital, a produção capitalista em seu conjunto, são três grandes sínteses, dentro das quais se entrecruzam movimentos com velocidades diferenciadas. Há um movimento do corpo central do livro e diversos movimentos colaterais em derivações teóricas. Pelo modo como a complexidade é tratada, cabe arriscar a dizer que é como uma construção fractal, que pode ser reconstruída a partir de qualquer de seus pontos e que é igualmente complexa em seus aspectos gerais e nos específicos.

Oprimeiro grande movimento relaciona a divisão do trabalho com a produção de mais valia e com a alienação

Entendemos que no desenvolvimento do trabalho de Marx surgem novas pistas de pesquisa teórica, como no relativo à categoria composição, que não estão claramente contempladas no plano da obra. Várias observações sobre as transformações do sistema monetário justificam esta hipótese. A categoria composição qualifica o capital e o trabalho em suas inter-relações historicamente definidas. O Capital é um livro inacabado não só porque Marx deixou texto inconclusos, mas porque contém mais pontos em aberto que os que conclui. A questão do capitalismo dependente e da colonização fica como uma questão a ser

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desenvolvida, além de uma teoria do Estado que acompanhe as repercussões políticas dos movimentos de concentração do capital.

4.5. Teorias da mais valia.

As São notas de leitura que se transformam em uma construção de uma teoria histórica da teoria econômica. Na verdade o material de análise das teorias da mais valia aparece nesses volumes e também se encontra nos Grundrisse e no segundo volume de O Capital. A reconstrução das origens por James Steuart – lucro por alienação de capital - e Adam Smith. Aqui se inicia uma reconsideração da obra de Smith, recuperando seu fundamento crítico e mostrando o mercado aberto como uma conquista da evolução do capitalismo. O tratamento dos Fisiocratas abre espaço para incorporar a teoria do fluxo circular, que se torna necessária para uma teoria econômica dinâmica, capaz de ligar o produto social com sua composição com o capital nacional com sua composição. No segundo volume das Teorias da Mais Valia Marx inclui uma análise da produtividade do capital e do trabalho produtivo e improdutivo que se torna essencial à explicação do processamento social da acumulação.

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5. O Capital

O Capital é a principal obra de Marx que concentra o essencial de suas diversas obras anteriores, mesmo quando não seja de modo explicito e seqüenciado. É uma obra inacabada sobre a qual há diversas interpretações. Neste estudo trata-se O Capital como uma obra minuciosamente planejada, em que estão fundidos elementos das polêmicas levantadas em obras anteriores.

5.1. Aspectos gerais

Há uma questão relativa a como ler O Capital, que foi esquadrinhada por Louis Althusser, principalmente no relativo a trabalhar a relação entre a aparência e o miolo substantivo, assim como entre rupturas com antecessores e rupturas com outros modos de pensar quando o passado continua acontecendo.

Apresentam-se a seguir elementos essenciais da obra O Capital. É importante comentar que ela foi minuciosamente planejada em seu conjunto, mas que foi desigualmente escrita. Marx começou por elaborar elementos do Livro III, escreveu e concluiu o Livro I, deixando elementos incompletos dos livros II e III, que foram reunidos e completados por Engels. Cabe entender que conceitualmente o mais refinado é o Livro II e. que o Livro III contém inúmeros desafios para uma leitura atual.

No modo como está concebido,

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5.2. Gênese e estruturação do capital

O primeiro dos três grandes movimentos constitutivos de O capital está desenvolvido no Livro I e sob o titulo de Produção Social de Capital. Aqui se retoma toda a argumentação apresentada no volume I dos Grundrisse e Marx concentra todo o relativo a produção.

a. A mercadoria. Marx inicia O Capital pela apresentação do conceito de mercadoria, que devemos ver como um conceito síntese de um processo inicial do capitalismo e em última análise, de um sistema pré-capitalista. Entendemos que se trata realmente de uma doutrina da mercadoria, que constitui um ponto de observação do processo econômico em seu conjunto. A mercadoria surge do processo de valorização no mercado 24. A valorização é o processo social de captação de valor criado pelo trabalho para incorporá-lo ao capital. Valor e valorização. O processo de valorização não está previamente garantido e depende da capacidade técnica e das condições institucionais do sistema de absorver o valor criado. Valor de uso e de troca.

O movimento do processo social da criação de valor vai na direção do valor de troca, mas a criação de valor de troca não esgota a etapa de valor de uso. Daí, ser necessário desenvolver uma teoria do valor de uso em contraponto com o desenvolvimento de uma teoria do valor de troca convertido em capital. O desenvolvimento do valor de uso significa simplesmente que a sociedade amplia e aprofunda seus horizontes de consumo de modo diferenciado ao indicado pelos propósitos do capital. Será o fundamento teórico do cooperativismo.

A forma desenvolvida do valor. Mercadoria como representação de trabalho insumido: o fetichismo da mercadoria. Diremos que além do valor insumido, o fetchismo da mercadoria surge de apelos ideológicos. Por exemplo, objetos que evocam consumo socialmente diferenciado. Valor relativo e equivalencial.

b. O processo de trocas, a circulação de mercadorias. M-D-M e D-M-D. O movimento de M=>D=>M presume substituições na composição do “arsenal” de mercadorias, em que há condições específicas de ajuste entre as diferentes mercadorias e onde o valor depende da compatibilidade entre elas. A repetição da troca vem a ser o fundamento da formação do capital e sempre acontece com substituição das mercadorias, portanto com renovação técnica. Para conduzir o processo das trocas os capitalistas precisam controlar as condições sociais das trocas.

c. A transformação do dinheiro em capital, D=>D’. Essa transformação só acontece quando o dinheiro é reintroduzido no sistema, isto é, quando é trabalhado como capital. Para que o dinheiro seja capital ele terá que poder ser usado na compra dos componentes do conjunto das mercadorias mutuamente compatíveis. O dinheiro se reintegra organicamente no sistema mediante a compra de materiais que se ajustam ao perfil técnico da produção.

d. Processos de trabalho e valorização. A formação de valor surge da comparação entre trabalho e meios de produção insumidos na produção e resultados obtidos nela. Os deslocamentos no trabalho socialmente necessário descrevem como os aumentos de eficiência se convertem em valor que adiante é captado pelo capital.

e. A taxa de mais valia. A taxa de mais valia é a medida da exploração que se realiza no conjunto produção- comercialização da produção, sobre as diferenças – quantitativas e qualitativas – entre o que se produz e o que se consume. O aumento de produtividade diminui a

24 A doutrina da mercadoria interdepende de uma doutrina do mercado, já que só há mercadoria onde há mercado e vice versa. O problema consiste em revelar as interdependências entre mercadorias e entre condições de mercado.

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proporção de trabalho necessário e aumenta o trabalho excedente, isto é, aumenta a proporção de mais valia e por extensão aumenta o capital constante. Esse mecanismo sintetiza a acumulação ( Grundrisse, pp. 161 a 165). A taxa de mais valia encobre o problema de composição entre o disponível anterior e o disponível resultante 25.

f. A jornada de trabalho. É o período de trabalho comprado pelo capitalista, que deve ser julgado pelos usos do tempo. Marx distingue entre o plano inicial de uso da jornada de trabalho pelos capitalistas e as condições práticas de aproveitamento do tempo dos trabalhadores que se passa a descobrir na prática da produção. A jornada tem os dois aspectos de extensão e de intensidade, onde o aproveitamento do trabalho individual depende do aproveitamento coletivo. Há um aspecto de normalização da jornada para a estratégia do capital e para a defesa do salário real. Há uma disputa entre os interesses dos capitalistas em ampliar a jornada e eliminar os custos operacionais do trabalho – tal como através de trabalho por contrato – e os interesses dos trabalhadores em reduzir a jornada sem perda salarial.

g. Mais valia absoluta e mais valia relativa. A composição do capital: composição técnica e composição orgânica (composição técnica + composição de valor). A mais valia absoluta é a que se desprende das condições atuais de organização social da produção e que define quais outras oportunidades podem surgir. A mais valia relativa surge do controle da renovação tecnológica. Para o capital trata-se de aumentar a massa total de mais valia e da elevação da taxa de mais valia.

h. A taxa de mais valia é a medida de eficiência do capital em termos de taxa de exploração do trabalho. Surge da relação entre trabalho necessário e trabalho excedente. O aumento de produtividade do trabalho permite maior exploração do trabalhador. A estratégia do capital, de aumentar a taxa de mais valia depende de fatores fora das fábricas. Cabe insistir em que há uma mais valia que se obtem nas fábricas e outra fora das fábricas, pór exemplo, mediante pressões dos capitalistas para despesas públicas que aumentam seus lucros.

i. Com o aumento de produtividade diminui a proporção de trabalho necessário – frente ao trabalho excedente – isto é, aumenta a proporção de mais valia. Por extensão aumenta o capital constante. Esse movimento é o fundamento da exploração que se realiza no interior do sistema produtivo.

h. Cooperação e formas de produção. Manufatura e divisão do trabalho. As diversas instâncias e situações da divisão do trabalho como expressão técnica e como instrumento de controle social. A divisão local e a divisão internacional do trabalho. O conseqüente desenvolvimento das teorias do imperialismo.

j. Divisão do trabalho e manufatura. Começando pela substituição do operário parcial pelo que é plenamente incorporado em trabalho coletivo constante, Marx distingue entre manufatura heterogênea e manufatura orgânica, em que a primeira mostra diversidade e a segunda ponta as interdependências. Contempla a variedade de situações dos trabalhadores e as diferenças de condições para mudarem de situação. Considera o fator qualificação dos trabalhadores. É preciso entender que se trata de um processo de divisão do trabalho – e não de uma situação - , que muda de forma segundo evoluem as condições para extrair mais valia dos trabalhadores. Esta parte culmina com a

25 A questão geral de composição será um dos ângulos mais importantes de uma leitura não européia de Marx, que deve dar uma ênfase especial à categoria colonização, compreendendo seu significado pretérito e sua parte na mecânica do capitalismo globalizado. A composição do capital se situa no plano da dinâmica do sistema produtivo, mas corresponde à essência das relações produtivas, primeiro na forma de uma composição do trabalho e logo na de relações de poder envolvendo as relações de produção.

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distinção entre divisão do terabalho nos estabelecimentos produtivos e divisão do trabalho na sociedade.

k. Maquinaria e grande indústria. A operacionalidade do grande capital toma a forma de grande indústria e funciona com ganhos de escala e controle de tecnologia. A generalização do uso de maquinaria transforma a divisão do trabalho de subjetiva em objetiva. É a “automaticidade” da máquina que reduz o trabalho do operário a automático. Diz Marx que “ a grande indústria não teve mais remédio que produzir máquinas por meio de máquinas” (p.314) 26. A mecanização tem diversos efeitos diretos sobre os trabalhadores, em que o mais importante é a intensificação do trabalho. A grande indústria do grande capital ocupa os espaços de mercado que surgem da inércia do crescimento da demanda e pré-determina os espaços que podem ser ocupados por pequenos capitais. A análise de Marx neste capítulo está polarizada pela predominância da indústria têxtil em seu tempo, porém as observações essenciais são basilares na análise da grande indústria em geral. Nesse sentido a análise de grande indústria antecipa à de Steindl, ou a de Steindl simplesmente segue a pista de Marx na análise da composição dos capitais na indústria.

l. A lei geral da acumulação capitalista. Acumulação capitalista como tal e acumulação primitiva. Acumulação nas formas pré-capitalistas de organização e na produção industrializada. Nos Grundrisse Marx analisa as formas pré-capitalistas de produção. Na análise de economias periféricas como a brasileira, que têm um passado como colônias, é preciso considerar uma variedade de combinações de situações de economias pré-industriais e industriais e de diferentes situações de economias industriais. A conceituação de pré-capitalista terá que ser revisada, devendo-se considerar situações de produção capitalista moderna e produção capitalista subordinada ou duplamente dependente.

26 Este seguramente é o ponto de partida da excursão feita por Piero Sraffa com Production of commodities by means of commodities (Cambridge, 1961) que, entretanto, só tomou o desafio de Marx pela metade. A produção de máquinas por meio de máquinas envolve um uso do conceito de composição e obriga a pensar em termos de que a reprodução do sistema capitalista de produção compreende deslocamentos na direção de situações de maior oomplexidade.

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5.3. O processo de circulação do capital

O processo de circulação do capital e do trabalho é tratado dos Grundrisse apenas como processo e é o tema geral do Livro II de O capital, onde, entretanto, constitui a visão do processo geral do capital na perspectiva da circulação. A circulação é a fonte da formação de capital. Divide-se em duas grandes partes que são os ciclos do capital e sua reprodução simples (reprodução em uma dada situação) e ampliada (em condições de dinâmica). Culmina com a análise da circulação de mais valia.

Neste estudo entendemos ser necessário esclarecer que a circulação do capital deve ser vista como um processo que entranha uma circulação de trabalho que, por sua vez, envolve a circulação de trabalhadores entre atividades e localizações.

Primeira parte: os ciclos do capital

a. As metamorfoses do capital e seu ciclo. Marx distingue TRÊS movimentos inseparáveis: o ciclo do capital dinheiro, o ciclo do capital produtivo e o ciclo do capital mercadoria. O ciclo do capital dinheiro: D->M, função do capital produtivo, M’- D’. O ciclo do capital em seu conjunto.

A. O ciclo do capital dinheiro. Fórmula geral :D – M...P...M’- D’. Descreve como o dinheiro é usado para comprar mercadorias e ganha uma função produtiva e é usado para valorizar as mercadorias no processo de produção.

B. O ciclo do capital produtivo. Apresenta a fórmula P...M”- D-M...P. Representa a função periodicamente renovada do capital produtivo, isto é o processo de produção torna-se um mecanismo de reprodução.

C.. O ciclo do capital mercadorias. M’-D’ – M ...P...M’ . com seus aspectos de composição.”Na forma M’....M’ está implícito o consumo de todo o produto de mercadorias como condição para o desenvolvimento normal de todo o ciclo do capital “(L II, pp.84).

Em seu conjunto esses três ciclos constituem o processo cíclico pelo qual o capital se movimenta e que, em seu conjunto, constitui um tempo de circulação do capital no sistema produtivo.27. O ciclo do capital mercadoria com seus aspectos de composição. O tempo de circulação 28. A circularidade do capital é considerada com diferentes e variantes velocidades enfeixando a questão de uma ordem concreta do tempo na economia. Conclui com as despesas de circulação, em que há despesas de contabilidade, despesas com dinheiro e despesas de conservação, onde estão despesas com armazenagem. Diremos que aí é preciso incluir os custos de perdas nas próprias mercadorias, como sabem os exportadores.

b. As três fórmulas do processo cíclico: tempo de circulação, gastos de circulação, tempo de rotação e número de rotações. Aceleração no processo e como meio de romper com a

27 A análise do fundo de reserva tornou-se essencial na explicação do modo de acumulação na economia brasileira, em que o Estado usa fundos públicos para realizar financiamento indireto da acumulação privada. 28 Assim como se concebe trabalho socialmente necessário como um indicativo das condições de uso de trabalho na produção capitalista, é preciso considerar o tempo socialmente necessário para realizar esse trabalho necessário, distinguindo os custos sociais do tempo para os diversos participantes do processo.

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rigidez do processo 29. No tratamento da circulação Marx utiliza duas acepções de ciclo, onde uma é interna e outra pertence ao movimento do sistema em seu conjunto. É preciso entender que a teoria dos ciclos em Marx surge da circulação, isto é, só se pode pensar em superprodução como um desajuste orgânico entre o planejamento da produção e as condições de circulação.

c. O capital constante se divide em capital fixo e circulante: diferenças de forma e partes integrantes (reguladas pela composição do sistema em seu conjunto). O capital fixo se desgasta com a intensidade do uso que é como ele transfere valor. Isso resulta em uma rotação global do capital que determina a rotação do capital variável, isto é, da participação objetivizada de trabalho na produção.

d. A circulação da mais valia é um aspecto chave na análise de Marx, onde se distinguem os problemas de circulação inerentes à reposição de capital fixo e os que surgem de projetos de expansão, quando os usos de dinheiro mudam em quantidade e perfil. Nas palavras de Marx, “o problema não está em saber de onde vem a mais valia, senão de onde provém o dinheiro em que a mais valia se converte” (L.II,pp.295). A circulação se acelera quando o sistema produtivo se desloca na direção de maior velocidade de rotação, apesar de que a velocidade na rotação não necessariamente se converte em aceleração da circulação. O desenvolvimento do sistema bancário tem um papel essencial nesse movimento.

Segunda parte: as metamorfoses do capital e seu ciclo

Surge daí que o sistema tem que se reproduzir para prosseguir e que há uma reprodução simples (com tecnologia invariante e escala invariante de produção) e uma reprodução ampliada (com expansão da escala de produção combinada com substituição de tecnologia). A rotação do capital variável (corresponde à mobilidade dos trabalhadores) 30.

d. A reprodução simples. A reprodução simples é onde Marx apresenta a engrenagem da produção capitalista na reposição das suas forças. A abordagem da análise passa da microeconomia (produtores individuais) para a macroeconomia (produtores em seu conjunto). Trata-se de saber como se repõe o capital consumido na produção e como essa reposição se entrelaça com o consumo de mais valia. Nessa exposição Marx apresenta o modelo de dois setores da produção industrial – produção de bens de consumo e de bens de capital. Nesse contexto examinam-se as trocas entre os dois setores e dentro de cada setor, descrevendo-se a engrenagem da circulação de capital entre os setores da indústria e definindo-se as margens de liberdade dos trabalhadores para se moverem. Examinam-se as diferenças entre a concentração de capital constante em cada um desses dois setores. Analisam-se as diferenças de condições de reposição do capital fixo em cada um dos dois setores.

É através dessa teoria da reposição que se lançam os fundamentos de uma teoria do ciclo, já que se consideram as condições objetivas para a aceleração do processo produtivo em termos de tempo e de consumo orgânico da mais valia. O significado da aceleração do tempo dentro do

29 Os problemas de aceleração do processo podem ser vistos como uma capacidade inerente a uma situação do sistema produtivo e como uma situação restrita pelas condições ambiente em que o processo do capital transcorre. Na prática isso significa a ligação entre os processos das economias nacionais e a expansão do mercado mundial. 30 Vê-se como é necessária uma análise historicamente referenciada da mobilidade do trabalho e na corporeidade da mobilidade dos trabalhadores. Cabe, portanto, uma referência ao trabalho de Jean Paul de Gaudemar sobre esse tema.

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processo produtivo e na relação entre o processo produtivo e o financiamento. A reprodução simples não significa menor complexidade do sistema e trata de uma situação especial em que é possível a reprodução da capacidade produtiva sem alteração de seus fundamentos tecnológicos. 31

e. A reprodução ampliada e os aspectos de dinâmica interna e de fatores de dinâmica que atingem desigualmente as diversas economias nacionais. A reprodução ampliada é onde se realiza a internacionalidade do capital. Na exposição de O Capital a reprodução ampliada aparece como um movimento geral ilimitado, mas o reconhecimento das condições concretas e diferenciadas dos diversos sistemas nacionais leva a considerar a alternativa de uma acumulação restrita em que se contemplam as dificuldades com que operam os capitais.

f. Reprodução e circulação do capital em seu conjunto. Aqui há dois estudos diferentes. O primeiro é uma revisão de antecessores, que cabe considerar como a parte extraída da Teorias da Mais Valia. O segundo é uma investigação sobre reprodução simples e ampliada que deve ser considerada como uma versão compacta dos argumentos desenvolvidos no Livro III e que merecem um estudo à parte.

31 No limite pode-se considerar que a permanência de modos primitivos de produção na América Latina é uma situação de reprodução simples, em que não há alteração técnica alguma e continuam a trabalhar como antes da implantação do sistema colonial. A renovação tecnológica é própria do sistema do capital, mas não só do capitalismo propriamente dito. O desenvolvimento do capital mercantil se fez sobre bases de renovação tecnológica inclusive planejada, tal como vimos do estudo do projeto português de expansão.

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5.4. O processo da produção capitalista em seu conjunto

No relativo ao Livro III não se pode deixar de referir ao prólogo de Engels, que é um material elaborado para que se perceba a diferença entre os níveis de densidade conceitual com que estão desenvolvidos os três livros. Engels sublinha a dificuldade representada pela seção V, que é onde Marx explora o papel do desenvolvimento do sistema financeiro nas condições da acumulação. É necessário lembrar que esse tema não se resolve sem considerar como as mercadorias são produto do capital. Marx retomou esse tema no Capítulo VI inédito de O Capital. No complemento ao Prólogo Engels refere estes problemas às condições de maior exploração realizada pelo capital nas etapas iniciais da industrialização, ou, diremos, nas economias atuais que operam com condições institucionais análogas àquelas. Qualquer semelhança com as taxas de lucro na economia brasileira não é mera coincidência.

A primeira parte do Livro III contém uma teoria do lucro, que culmina com a explicação de uma taxa média de lucro e com a tendência à queda da taxa de lucro. Compreende a transformação da mais valia em lucro, o lucro em lucro médio e a tendência à queda da taxa de lucro. Observe-se que Marx salta o problema de risco na transformação da mais valia em lucro, que acontece através do sistema de comercialização. No entanto o perfil do risco será o oposto do controle de vantagens de monopólio. É o ponto por onde mais tarde entrou a análise de Kalecki.

A. A transformação da mais valia em lucro e da taxa de mais valia em taxa de lucro. Este problema se trata em três níveis que são os seguintes:

a. Preço de custo, lucro e taxa de lucro e de mais valia. No preço de custo estão incluídos o custo do capital constante (capital) e o do capital variável (trabalho).

b. A economia no emprego de capital constante. Aqui estão as estratégias do capital para poupar seus próprios recursos. Poupança em consumo de energia etc. Aqui está o relativo a reaproveitamento de escoria e sucata – os excrementos da produção industrial nas palavras de Marx – que constituem uma estratégia ambiental do capital.

c. Influência dos preços. Nivelamento da taxa de lucro. É preciso reconhecer que há movimentos gerais de preços que condicionam a participação de capitalistas individuais.

Fundamental perceber que o lucro flui no sistema e que só se mantém e converte em capital mediante a preservação dessa fluidez.32

B. Como se converte o lucro em lucro médio. A taxa de lucro surge da composição orgânica do capital e de sua velocidade de rotação. Composição orgânica e massa de meios de produção dão a capacidade produtiva do sistema, que será acionada pela velocidade da circulação. Diferentes composições orgânicas do capital dão conseqüente diversidade da taxa de lucro. Mobilidade desigual dos capitais e nivelamento da taxa de lucro. A sustentação da taxa de lucro depende de que aumente a taxa de mais valia e que se expanda o mercado. Temos a comentar que esta

32 Marx cita Aristóteles, que diz que “tanto no terreno econômico como no político o poder impõe a quem o exerce as funções próprias do governo” agregando que “no que ao terreno econômico se refere, a obrigação de saber como se consumirá a força de trabalho...” (pp.368)

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é uma análise interna do problema e que a possibilidade que isso ocorra depende de um fator externo que é o mercado.

C. Lei de tendência decrescente da taxa de lucro e desenvolvimento das contradições da lei. A lei como tal e tendências que se contrapõem à lei. A tendência do sistema à crise. Marx trabalha este tema a partir de uma colocação microeconômica e desenvolve cálculos para provar uma tendência à instabilidade do sistema, diferente do estado estacionário de Ricardo. O ciclo surgirá porque haverá uma convergência entre a superprodução instigada pela concorrência entre capitalistas e a perda relativa de poder aquisitivo dos trabalhadores. 33

D. Como se converte o capital mercadorias e o capital dinheiro em capital mercadorias e capital dinheiro do comércio. O movimento geral de circulação e os movimentos específicos de rotação. O capital dinheiro do comércio surge da rotação, seguindo uma diferenciação das mercadorias, na qual se realiza uma subordinação da produção aos interesses do capital organizado no comércio. O capital aplicado a juros se separa do processo de produção. Marx distingue atos de circulação e atos de produção. O lucro do capital enquanto empresa produtiva se distingue do capital prestamista. Surge daí que a acumulação de capital a juros dá lugar a capital fictício [que se reproduz sobre os sinais de preços do dinheiro no mercado de empréstimos, que não registra as condições operacionais do capital produtivo].

E. Desdobramento do lucro em juros e lucro do empresário em capital a juros. O capital comercial aparece através da combinação de rotação – ou do número de rotações do capital – e da capacidade de intervir no sistema mediante ajustes de preços. O capital a juros requer um modo indireto de uso, quando o capitalista se converte em prestamista. O capital a juros retorna ao seu ponto inicial sem participar do ciclo da produção. A taxa média de juros reflete a necessidade de dinheiro para produzir. O sistema produtivo é uma máquina que requer dinheiro para ser acionada. O prestamista desembolsa dinheiro como capital mas essa qualidade do dinheiro capital só se concretiza se o dinheiro emprestado der resultados não inferiores à taxa média de lucro. O limite máximo do juro é o lucro, pelo que o prestatário estará disposto a pagar pelo dinheiro segundo os lucros que obtenha. O potencial do capital dinheiro se revela com o desenvolvimento do sistema financeiro, quando surgem os juros dos juros. A complexidade do problema se revela com o aparecimento do capital fictício. Torna-se impossível distinguir qual parte das letras de câmbio surge de negócios com mercadorias reais e qual parte provém de operações fictícias. No nosso entender o desenvolvimento do capital financeiro passa por dois períodos claramente distintos, em que o primeiro, resultante da fusão do capital bancário com o capital industrial gerou o capital financeiro estudado por Hilferding. O segundo, a nosso ver, surge da composição do financiamento público com o privado, em torno dos empreendimentos estratégicos de alta tecnologia, compreendendo a indústria bélica em geral. Neste novo contexto, o financiamento se faz mediante composições de capitais públicos e privados e por conta de decisões de grande política. Nela o Estado nacional e o grande capital realizam esforços conjuntos de escala mundial. A segunda invasão do Iraque e a crise mundial desencadeada em 2008 mostraram claramente como há custos globais do sistema de poder que são

33 Cabe recorrer à antologia montada por Lucio Coletti – El marxismo y el “derrumbe” del capitalismo (México, FCE, 1978) – em que o autor alinha as afirmações e as diferenças entre autores marxistas sobre esse tema. Coletti sintetiza: “a atitude de Marx acerca do capitalismo resulta do entrelaçamento de duas perspectivas distintas. A primeira é a perspectiva revolucionaria.. A segunda é a perspectiva científica de quem quer reconstruir o mundo como funciona e desenvolver o sistema.” Adiante, diz que a obra de Marx trata de contradições internas. A nosso ver a observação de Coletti fica pela metade, porque o pleno desenvolvimento deste tema demanda a combinação das contradições internas de cada economia nacional com as contradições do sistema internacionalizado.

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atendidos por meios financeiros que transcendem as regras da administração nacional.

F. Como se converte o lucro extraordinário em renda da terra. As terras se tornam mercadorias já trazendo um elemento de monopólio por sua escassez e pelo papel do controle da água na produção. Nesta parte vê-se como o capital comercial subsumido no desenvolvimento do capital industrial, mantém sua lógica e sua influência no processo da acumulação. Há uma diferença entre as terras reunidas como patrimônio formado no ambiente pré-capitalista da economia colonial e as terras que têm preço.

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6. A renda da terra

Para Marx a renda da terra interessa no que é conseqüência da expansão do capital na produção rural, pelo que trabalha com o pressuposto geral de uma produção capitalista agrícola. Por isso, representa uma simplificação da realidade do mundo rural, onde acontecem sucessivas e cumulativas composições de formas novas e velhas de organização social. É preciso ver a forma atual da renda da terra como resultado de um processo histórico em que os proprietários já tiveram renda na forma de trabalho e na de produtos e em que muitos proprietários passaram a funcionar como prestamistas. A propriedade privada moderna chega à produção capitalista mediante a relação produção – renda – trabalho, salário. Nessa fórmula, o capital se apresenta como terra + benfeitorias [capital fixo] e dinheiro e sementes [capital circulante] e passa a poder instalar um sistema generalizado de exploração. Sobre esse pressuposto colocam-se as condições da exploração capitalista do solo, na qual convergem os dados das diferenças de condições de exploração e as condições de mercado.

Expansão do capital na produção rural como meio de garantir opções para reprodução como indicativo de condições operacionais do capital, bem como no controle da valorização das terras. É um processo que deve ser apreciado nas condições vigentes de mercado.

Marx distingue três situações de formação da renda fundiária, que são: Renda diferencial I, renda diferencial II, renda absoluta. Diferentes condições de renda segundo variações de preços e de espaços de mercado. Os elementos de polêmica sobre a renda da terra aparecem desde o material dos Manuscritos, mas é nos Grundrisse que se coloca sua relação com o fundamento da produtividade industrial. Aqui se faz necessário ressaltar a diferença com as condições da periferia pós-colonial, com a permanência da sobre-exploração das condições pré-industriais com as da esfera industrial antiquada e da avançada. Marx trabalhou com essa diferença tomando a Rússia como paradigma de seus estudos sobre a renda.

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7. Fundamentos e implicações sociais da teoria econômica

A economia política crítica de Marx assenta-se sobre os processos do capital e de suas interações com processos do trabalho. Surge de observações sobre a globalidade do processo social e chega a outras observações que transcendem o marco da estruturação social da economia. Desenvolve um discurso em que se distinguem os modos e os espaços da individualidade e os modos como se organizam os interesses dos capitalistas. As condições sociais da formação da ideologia advertem-se aí. O início desse movimento está registrado nos Manuscritos de 44, mas é preciso acompanhar essa linha de reflexão nas Teorias da Mais valia, quando Marx desenvolve essa abordagem crítica da teoria econômica. De especial interesse é uma leitura comparativa dos capítulos sobre Adam Smith e David Ricardo.

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8. Relações de classes e a lei do capital

O tratamento do problema de classes se diferencia dos antecessores porque é um tratamento da formação de classes e das condições diferenciadas de participação na sociedade de classes, contendo uma teoria do conflito social. O desenvolvimento do sistema capitalista se traduz em um processo de formação de classes em que os trabalhadores em geral são transformados em operários e onde há variadas situações de capitalistas. A versão de três classes nos Grundrisse é superada pelo fato de que os proprietários se convertem em capitalistas ou que são absorvidos pelos processos do capital. A conceituação de estamento em Marx, como etapa na formação das classes diverge de outros autores, como Weber, que vê os estamentos como contemporâneos das classes, sem sentido genético. Absorção e contradições na conversão dos proprietários em capitalistas. A teoria das classes é, igualmente, uma teoria do conflito social, já que as classes denotam os fundamentos dos conflitos de interesse. Para nós, falta um estudo das classes com todos que não são parte imediata delas, os excluídos e os que nunca foram incluídos. O estudo da sociedade de classes precisa reconhecer o que chamaremos de antecedentes ativos, que são os elementos de herança do colonialismo escravista e do autoritarismo pós-colonial. O reconhecimento dos limites do eurocentrismo representa uma responsabilidade.Teremos que desenvolver uma teorização própria sobre os processos conflitivos de nossa sociedade desigual.

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9. Comentários finais

O estudo da obra de Marx é um mergulho de profundidade em um momento síntese das determinações do capitalismo como força transformadora da sociedade e, ao mesmo tempo, de descobrimento de suas contradições. Tanto como o capital se revela plenamente internacional ele se alimenta das realizações das sociedades nacionais, na garantia dada por suas instituições, na força de trabalho qualificada que elas geram, na acumulação de capital social que elas realizam, no de força militar que é mobilizada e mantida pelos Estados nacionais. O controle do Estado é um desiderato inerente do capital que começa com associações de interesses mercantis e de grandes proprietários, que passa aos grandes interesses industriais e aos bancos, compondo diferentes combinações de interesses privados. Os interesses privados procuram obter concessões de terras, minas e água, de modo permanente ou esquivando pagamento de tributos 34. Grande parte das barragens no Nordeste em geral foram feitas beneficiando terras de grandes proprietários, incidentalmente políticos. Em suas formas mais modernas, o capital procura obter contratos de governo, influir na legislação e na ordem jurídica, reunindo os meios necessários para invadir e se apropriar de recursos da esfera pública. Essa foi e ainda é a história da urbanização e da industrialização, em que os capitais privados obtiveram autorização explícita para se apropriarem da acumulação realizada na esfera pública. No desenvolvimento dos processos de industrialização a formação dos Estados nacionais latino-americanos se fez com uma operacionalidade adequada a essas transferências, que foram e são feitas por bancos de desenvolvimento e aplicações de fundos públicos em investimento35. Privatizações e terceirizações têm sido instrumentos de usos efetivos e que são complementados com financiamento de capitais internacionais. Subsídios para formação de empresas novas, como as propaladas incubadoras de empresas encontram-se diante de dados que as empresas incubadas mostram coeficiente de falência maior que as nao incubadas. Esses são mecanismos de modernização tecnológica afinada com a concentração de capital, restando poucas razões para confundir a identificação de setores estratégicos da economia com a formação de grandes grupos que combinam interesses bancários e industriais.

A obra de Marx mostra a engrenagem do sistema do capital em uma visão histórica de processos concretos de produção, circulação e acumulação de capital em que há tendências inerciais a concentração de capital e a crises, resultando em crescente instabilidade do sistema e de sua capacidade para se recuperar de suas próprias crises. Na obra de Marx não há profecias específicas, mas a identificação de leis tendenciais que levam a configurar a mudança como algo inevitável.

A obra de Marx contém uma contradição principal de estudar o trabalho através do capital. Sob a pressão da disputa em mercado há mudanças qualitativas nas formas de concorrência, em que ganham mais espaço o controle da tecnologia e o dos aparelhos de poder do Estado. Se a mola mestra do sistema é a capacidade de captar mais valia, e se ela depende do aumento do trabalho excedente, e ainda, se a concentração do capital restringe a distribuição da renda, é preciso supor que a concentração de capital corresponde a um estreitamento da base da

34 A maior e mais bem sucedida empresa produtora de cana de açúcar na Bahia, a Agrovale, na margem do Rio São Francisco, utiliza copiosas quantidades de água em uma região seca sem pagar tributo algum pela água. Outro caso, ainda mais escandaloso, é o da VERACEL que realiza imensas plantações de eucalipto no sul do estado burlando a legislação vigente e com planos para duplicar sua capacidade de produção. 35 Recentemente, a imprensa noticiou que o Banco do Brasil financiou um empreendimento de uma empresa israelí para construção de uma barragem na Colômbia.

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demanda que inibe essa captação de mais valia. Essa é a grande contradição do sistema. Seria preciso supor que a capacidade para induzir a produção de mais valia diminui, que o bloqueio do sistema não se dá como em Ricardo pela extinção da taxa de lucro, senão pela perda de capacidade de gerar trabalho excedente. Assim, em vez de procurar a explicação do sistema em uma equação macroeconômica, será preciso buscá-la na organização social que sustenta o sistema produtivo. Nesta linha de raciocínio caberá pensar que a obra de Marx aponta aos processos que se realizam alem da esfera econômica, isto é, que apontam à análise da metamorfose política do capital e não só a uma teoria do Estado.