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UNIVERSIDADE CÂNDIDO MENDES PRÓ-REITORIA DE PLANEJAMENTO E DESENVOLVIMENTO INSTITUTO A VEZ DO MESTRE A IMPORTÂNCIA DE LER E CONTAR HISTÓRIAS PARA A CRIANÇA: CONTRIBUIÇÕES PARA A EDUCAÇÃO INFANTIL Por Eleonora de Paiva e Mello Knöller Orientadora: Fabiane Muniz Rio de Janeiro

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UNIVERSIDADE CÂNDIDO MENDES

PRÓ-REITORIA DE PLANEJAMENTO E DESENVOLVIMENTO

INSTITUTO A VEZ DO MESTRE

A IMPORTÂNCIA DE LER E CONTAR HISTÓRIAS PARA A CRIANÇA:

CONTRIBUIÇÕES PARA A EDUCAÇÃO INFANTIL

Por

Eleonora de Paiva e Mello Knöller

Orientadora:

Fabiane Muniz

Rio de Janeiro

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Dezembro de 2006 UNIVERSIDADE CÂNDIDO MENDES

PRÓ-REITORIA DE PLANEJAMENTO E DESENVOLVIMENTO

INSTITUTO A VEZ DO MESTRE

A IMPORTÂNCIA DE LER E CONTAR HISTÓRIAS PARA A CRIANÇA:

CONTRIBUIÇÕES PARA A EDUCAÇÃO INFANTIL

Eleonora de Paiva e Mello Knöller

Trabalho monográfico apresentado como requisito parcial para a obtenção de Pós - Graduação em Educação Infantil

Rio de Janeiro Dezembro de 2006

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AGRADECIMENTOS

A Deus pela oportunidade;

Ao meu marido Elmano pelo apoio,

paciência e carinho;

À amiga Terezinha Rangel pela

colaboração, apoio e troca de

conhecimentos;

À Orientadora Fabiane Muniz por me

orientar com sabedoria, me

proporcionando muitas e novas

reflexões para realizar e concluir o

presente trabalho.

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“Os contadores de história, os cantadores de história, só

podem contar enquanto a neve cai.

A tradição manda que seja assim. Os índios do norte da

América têm muito cuidado com essa questão dos contos.

Dizem que quando os contos soam, as plantas não se

preocupam em crescer. E os pássaros esquecem a

comida de seus filhotes”.

Eduardo Galeano

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RESUMO

O presente trabalho se propõe a refletir sobre a importância do resgate

da narrativa no âmbito da educação infantil, levando em conta o significativo

papel que o contar assume para a criança numa época em que seu cotidiano

vem sendo maciçamente influenciado pela mídia, principalmente a televisiva.

Considerando que a Literatura Infantil, como produção artística e

cultural, traz contribuições para que a criança preencha esse cotidiano com

imaginação e invenção, monografia sugere que os professores incluam a

prática de contar histórias no seu trabalho pedagógico, convidando-os a que se

constituam como narradores e, consequentemente, que auxiliem seus alunos a

constituírem-se como tal. Para tanto, o primeiro capítulo abrange a trajetória

das narrativas orais desde os primórdios da humanidade até a

contemporaneidade. O segundo capítulo, traça um panorama da concepção da

infância, mostrando como a condição de infans, termo latino que significa o que

não fala, tem sido determinante na educação da criança. Enfim, o terceiro

capítulo mostra, através de exemplos extraídos da obra “O menino

maluquinho”, de Ziraldo, como essa condição da criança pode ser subvertida

quando se confere à criança a condição de sujeito social, produtor de cultura e

linguagem. Com isso, o que pretendemos foi convidar professores, e adultos

em geral, a se aproximarem da literatura infantil, usando-a para contar e

encantar as crianças.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO....................................................................................................... CAPÍTULO I – O CONTAR COMO POSSIBILIDADE DO REGATE DA LINGUAGEM E DA EXPERIÊNCIA: NARRATIVAS ORAIS E A EDUCAÇÃO INFANTIL............................................................................................................... 1.1 – O contar e sua trajetória 1.2 – O contar na educação infantil CAPÍTULO II – LITERATURA INFANTIL E CONCEPÇÃO DE INFÂNCIA.............................................................................................................. CAPÍTULO III – APRENDENDO COM A LITERATURA INFANTIL A OLHAR A CRIANÇA COMO SUJEITO QUE PRODUZ HISTÓRIAS: ZIRALDO E O MENINO MALUQUINHO.................................................................................... 3.1 – Ziraldo: vida e obra 3.2 – O menino maluquinho: Contribuições para se superar a idéia da criança como “infans” – aquele que não fala CONSIDERAÇÕES FINAIS........................................................................................ REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS......................................

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INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem por objetivo enfatizar um estudo sobre o papel

da narrativa na educação da criança pequena, por entender o quanto é

importante para as crianças ouvir histórias, podendo, assim, participar de

outros universos, aumentar o seu repertório de conhecimento, dar “asas à

imaginação” transformando-se em sujeito criador que, com fantasia, vira o

mundo do avesso, contribuindo para sua transformação.

É importante lembrar que a criança chega à escola com conhecimentos

que já fazem parte de seu contexto sócio-cultural, sendo vital que o professor/

contador de histórias se aproxime desse contexto, estabelecendo pontes entre

esse contexto e as histórias que serão contadas motivando, desse modo, na

criança o desejo de ouvir, de entrar nas narrativas, através das quais ela

poderá fazer uma releitura do mundo. O interesse pelas histórias pode levar a

criança, desde muito cedo, a transformar-se ela mesmo em narradora, em

alguém que, contrariamente ao que o termo “infans” expressa: aquele que não

fala, não tem o direito e a competência de externar-se pela palavra,

constituindo-se sujeito na e pela linguagem.

É por isso que defende-se neste trabalho que os momentos de contação

ou de leitura de histórias precisa ser explorado ludicamente, sem o caráter

didático que, muitas vezes, está presente na escola e que afasta as crianças

do desejo de ouvir. Nesse sentido, é que propomos que os professores

resgatem os momentos mágicos em que o contar servia de mediação para o

encontro de crianças e adultos. Tais encontros hoje vêm sendo prejudicados

pela falta de tempo, pela invasão da mídia televisiva no cotidiano das pessoas,

pela própria falta de compreensão do papel da narrativa na constituição da

identidade do sujeito.

Essas são algumas das questões que aborda-se nessa monografia,

instigadas pelo papel de professoras de crianças. A função que as histórias

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exerceram em nossas próprias vidas leva-se à necessidade de realizar um

estudo mais sistemático sobre sua importância na constituição da cidadania da

criança. Esse aprofundamento pareceu imprescindível não só para que se

pudesse incluir definitivamente as histórias nas práticas pedagógicas, mas para

que esse saber trouxesse contribuição a outros profissionais, deixando-os

cientes de que, contando, pode-se auxiliar nossos alunos a “soltar o verbo”,

transformando-se, assim, em sujeitos que fazem história.

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CAPÍTULO I

O CONTAR COMO POSSIBILIDADE DO RESGATE DA LINGUAGEM E DA EXPERIÊNCIA: NARRATIVAS

ORAIS E A EDUCAÇÃO INFANTIL

“O gosto de contar é idêntico ao de escrever e os primeiros narradores são os antepassados anônimos de todos os escritores. O gosto de ouvir é como o gosto de ler.” Cecília Meireles

1.1. O contar e sua trajetória

Contar histórias é a mais antiga das artes. Busatto (2003) afirma que

foi através da voz dos contadores de histórias que o conto de literatura oral

propagou-se na História. Pode-se dizer também que a arte de contar histórias

existiu sempre, desde quando o homem começou a falar e articular palavras.

Provavelmente, começou com o homem da caverna ao pé do fogo, contando

seus feitos às mulheres e crianças.

Afinal, qual foi a origem destes contos?

Inúmeras pesquisas foram feitas e as respostas caminhavam para o

Oriente, berço de tantas e tantas histórias mil e uma noites.

Se é certo afirmar que o pensamento mitológico e os conseqüentes significados que ele traz, como dar sentido para a experiência de estar vivo, se localiza nesta época, e que o conto de tradição oral aponta para esta necessidade de fazer leitura do mundo que nos cerca, também é possível se ter uma vaga idéia de quando este conto apareceu para encantar o homem criado pelo próprio homem.(Busatto, 2003, p.21)

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Meditar sobre datas de eventos que foram significativos na História do

homem podem esclarecer a localização do conto através dos tempos.

Considerando o minotauro como um ser mitológico conhecido 5.000

anos antes de Cristo, pode-se concluir que também os contos onde este

personagem era inserido, já era conhecido em torno desta época e que sua

difusão e manutenção acontecia através da oralidade e algumas ciências

relativas à pintura.

Fossem os contos um sistema de crenças, ou uma maneira encontrada para explicar a existência dos elementos da natureza e seus cataclismas, ou um conjunto de ensinamentos, isto constitui o que hoje conhecemos como literatura oral, e que foi se transformando à medida que foi sendo narrada”. (Busatto, 2003, p.22)

A oralidade tornou-se uma categoria literária com direito a pesquisas

mais sistemáticas, e no início do século XX Milmar Parry(1902-1935) divulgou

ao mundo que Ilíada e Odisséia, de Homero, considerados a primeira literatura

escrita do Ocidente, eram, de fato, procedentes de poemas orais gregos, e que

foram transcritos para a escrita, “em algum ponto entre 700 e 550 a.C.”.

(Havelock, 1996, p.163).

Inúmeros registros de contos de fadas, mitos, fábulas e lendas de

várias nacionalidades foram publicados.

Para nós, ocidentais, os mais conhecidos e divulgados são mesmo

contos de fadas, juntamente com a mitologia grega.

O conto de fadas, para o psicanalista Bruno Bettelheim, é uma história,

que por conter um final feliz, reconforta e alivia as pressões internas presentes

na criança.

Os contos de fadas expõe sempre uma questão a ser resolvida pelo

herói ou heroína, na maioria das vezes sem um nome próprio. Os personagens

são simplesmente tratados como a princesa, o rei, a rainha, a mãe, a madrasta,

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a bruxa e assim por diante. Se por ventura é apresentado nome próprio,

genericamente é um nome comum indicando que poderia ser alguma criança a

personagem daquela história. Quaisquer que sejam os obstáculos que o

personagem dos contos de fadas encontram pelo trajeto, no final eles sempre

vencem. Se o personagem já cumpriu com sua função narrativa ele

desaparece da narrativa, ele desaparece da história sem interferir com o

desfecho da história. Estes contos não dificultam as situações, são diretos e

curtos. As disputas entre as forças do bem e do mal são sempre resolvidas e o

vilão, por mais amedrontador e poderoso que possa parecer, sempre tem um

final infeliz.

Segundo Busatto, 2002:

“Os contos que fazem parte do chamado ciclo animal foram bastante explorados pela psicanálise, pois apresentam, metaforicamente, a nossa experiência de conexão com os nossos demônios, pois integrar implica na aceitação do feio, do torto, do escuro”. (p.31)

Amar o belo é fácil. Essas histórias nos falam de seres humanos e

enfeitiçados e transformados em animais, monstros horrorosos, e que somente

serão redimidos quando aceitos e amados pelo que são. Alguns exemplos

destes contos: A bela e a fera, Rei sapo, Rei porco, O palácio dos macacos,

Elza, a mulher selvagem.

O conto de fada contém elementos compreensíveis ao espírito da

criança, capazes de motivar seus afetos.

Os contos de fada se popularizaram na Europa a partir do século XII e

foram registrados por alguns ilustres conhecidos, como o francês Charles

Perrault (1628-1703), que reuniu contos de tradição oral e publicou um livro

intitulado Contos da mãe gansa, atribuindo a autoria ao seu filho, então com 10

anos.

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Na Alemanha, os irmãos Jacob (1785-1863) e Wilhelm Grimm (1786-

1859), popularmente reconhecidos como os Irmãos Grimm, editaram os contos

que foram coletados da boca do povo.

Com o ciclo do Rei Artur e os cavaleiros da Távola Redonda, também

estão presentes magos e fadas, nos romances de cavalaria. Registrado por

volta do século XII por Chrétien de Troyes.

Os três personagens lendários e mítico Artur, um guerreiro, foi chefe

dos bretões, Melim um mago, um druida e Morgana, uma fada, segundo a

lenda, viveram por volta do ano 500 da era Cristã.

Já as lendas, são casos resguardados na tradição popular de fatos que

poderiam Ter acontecido, ou aconteceram muito próximo do narrador, também

eles conservados inicialmente pela oralidade e que explicam coisas que pela

razão não podem ser explicadas. As lendas e histórias fantásticas que nada

têm a ver com a realidade também são organizadas em torno de personagens

históricos e religiosos.

É na classe de lenda que se encontram os tantos contos que falam de

casos triviais do cotidiano de um povo.

Se um clarão apareceu nas trevas e não achou-se uma lógica para

isso, a imaginação humana se incumbe de achar uma explicação, com certeza

fantasiosa e sobrenatural.

Porém, no remoto século VII uma obra destacava-se e suas histórias

maravilhariam o mundo, As mil e uma noites. Seus inumeráveis contos

atravessaram várias épocas sem perder sua característica que faria o seu

encantamento.

Os mil contos narrados por Xerazade ao Rei Xeriar. O período do seu

provável registro escrito é o século XIII, mas foi somente no início do século

XVIII que Antoine Galland(1646-1715) traduziu e apresentou ao Ocidente os

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muitos livros que compõe esta conhecida obra que originou-se das histórias

das tradições orais da Índia, Pérsia e outros locais do longínquo Oriente(Silva,

1994).

Outra obra antiquíssima surgida no Oriente, exatamente na Índia, é

considerada a origem mais remota, já conhecida dos contos populares. Trata-

se de Calila e Dimna, livro que reúne fábulas, cujos principais personagens são

os animais que revelavam as injustiças sociais, as desigualdades e os valores

pouco dignos cultivados pelo homem, como a inveja, a imprudência e a

arrogância.

Recebemos as Fábulas de Esopo, coletânea de contos que foram

traduzidos por La Fontaine. Esopo foi um fabulista grego que pode ter vivido

por volta do século VI a.C., sua vida é cercada por lendas, mas julga-se que ele

seja um dos pioneiros da fábula.

Alguns pesquisadores tentaram desvincular os mitos gregos,

exemplares da literatura oral, de qualquer vestígio de narrativas populares,

como se este complicado sistema mítico fosse resultado exclusivo da

imaginação dos seus autores, os poetas da época tiveram seus registros nos

últimos séculos antes do nascimento de Cristo.

As fábulas falam à realidade externa, têm cunho funcional, dizem como

melhoras as atitudes cotidianas, comportamento e convívio social, a partir de

modelos de outros seres em geral, animais que atuam e falam como seres

humanos.

São chamados também de contos admonitórios, fazem previsões, às

vezes de modo até ameaçador. Elas revelam qual a atitude a ser tomada à

frente de uma situação. Perigam de ficar ultrapassadas, pois muitas vezes

transmitem um preceito e uma advertência datada, referente à sociedade da

época. Atualmente, aquele mesmo conselho pode não ter sentido, estar

obsoleto. É o caso da fábula A cigarra e a formiga, é sabido que o lazer é tão

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importante quanto o trabalho, e assim a moral da história perde o seu propósito

inicial, pois é possível ser, ao mesmo tempo, cigarra e formiga.

A fábula, como categoria, faz uso de uma situação simbólica e, através

de animais, diz o que precisa ser dito, isso faz diferença pois, deste contexto é

que grande parte dos ensinamentos de Buda foram difundidos.

Os contos de ensinamentos, mais que moral, transmitem valores.

Surgem para a importância do resgate e da vivência de sentimentos tais como:

lealdade, amor, compaixão, amizade, solidariedade, integridade, coragem,

alegria, quietude, tolerância, fidelidade, generosidade, e outros tantos,

essenciais para a humanização dos indivíduos.

Segundo Bussatto “O mito é trágico e complexo, fala mais ao espírito

do adulto que já consegue abarcar as suas diferentes dimensões, por conter

uma estrutura psíquica mais elaborada, tal qual é a estrutura simbólica do

mito.”

Através do mito a criança não conseguiria os mesmos retornos que o

conto de fada oferece, pois o mito ativa determinados conteúdos que a criança

ainda não está preparada para lidar. “Um conto de fada é o mito para a criança.

Há mitos certos para cada estágio da vida.” (Campbell, 1999, p.147).

Contrário ao senso comum, é bastante simples perceber os mitos

atuando no cotidiano.

É suficiente examinar a convivência do indivíduo com o poder, o prazer

e o saber. Muitas vezes ele elege um deus ou deusa para acompanhar seu

percurso e esquece os outros tantos.

A palavra mythos, do grego, significa narrativa sobre o aparecimento

dos seres vivos, homens e deuses, elementos da natureza, representação de

fatos ou personagens, etc. Porém, isto não encerra toda a sua complexidade.

Muitas pesquisas foram feitas sobre o mito durante o século XX.

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Claude Lévi-Strauss afirma que o mito “configura-se como um tipo de

linguagem, um recurso para pensar, classificar e organizar a realidade”. Já o

crítico francês Roland Barthes fala dos “mil significados da palavra mito.”, ao

afirmar que: “o mito é uma fala (...)não uma fala qualquer (...) uma mensagem.”

(Barthes 1999, p.131).

O mito aproxima o ser humano daquela parcela divina que é

denominada de espírito, fonte, origem. Ele serve de estrutura para conectar o

deus interior, com as forças internas que movimentam e propulsionam a ir a

diante. Eles têm estar particularidade elevada, capaz de movimentar o ser,

basta estar aberto para isso. É preciso sensibilidade para recebê-lo e perceber

sua atuação.

Dentre as características intrínsecas do mito, podemos indicar a

qualidade do herói mitológico. Ele apresenta um nome próprio, possui uma

origem definida, uma natureza complexa, sujeita a erros e acertos.

O assunto do célebre texto teatral Romeu e Julieta de Shakespeare

(1564-1616) é o mesmo do antigo grego Píramo e Tisbe, de origem oriental

(Calvino, 2000). Este conto foi anotado pelo poeta italiano Ovídio, nascido por

volta de 42 a.C. Outro exemplo da imaginação do povo é a mitologia nórdica

com seus deuses Odim, Frigga, Hel, Thor, Freya, as Valquírias e tantos outros

que, figuram nas histórias fantásticas, trágicas, heróicas e foram registradas

em poemas épicos, Edda Anterior, cerca do ano 1300; em prosa, Edda

Posterior, pelo poeta Snorri Sturluson (1178-1241). É nessa coletânea que

estão inseridos os antigos mitos pagãos nórdicos.

Todo esse acervo da humanidade, agora perpetuado pela escrita e outros recursos, foi transmitido pelo contador de histórias – que recebe nomes diferentes nos diferentes locais por onde passou: rapsodo para os gregos, bardo para os celtas, griot para os africanos que narrava de aldeia em aldeia os ensinamentos ouvidos por seus ancestrais, ou por seus mestres, como fizeram os tantos discípulos de Cristo e Buda. (Busatto, 2003, p.26)

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Sabe-se que muitos contos de tradição oral tiveram o seu início em

ensinamentos religiosos. Cristo foi um exímio contador de histórias e suas

parábolas podem ser conferidas no grande livro do Cristianismo, a Bíblia.

Os temas religiosos estão presentes em vários contos de fadas, e nas

tantas narrativas das andanças de Jesus pela terra.

Na Anthologie Négre os mitos africanos que chegaram até o ocidente

foram coletados por Blaise Andars. De uma oralidade rica dos primitivos

africanos surgem contos populares da África. Ali tudo nasceu e teve seu início

na terra. O sol, a lua e as estrelas viviam na terra antes de subirem ao céu.

Animais geram humanos e humanos são devorados por feras mitológicas.

No Brasil, os registros de contos populares foram realizados por

viajantes, antropólogos e folcloristas. Entre eles Silvio Romero e também

Câmara Cascudo. Eles nos apresentam contos genuinamente brasileiros,

autênticas criações dos povos indígenas que habitavam estas terras quando os

portugueses chegaram com seus mitos e lendas.

Muitos contos registrados por Câmara Cascudo são versões dos

contos de fadas europeus que foram adaptados à realidade brasileira. Tingindo

com cores tropicais os contos de Calila e Dimma, As mil e uma noites, Contos

para crianças e para o lar e II Pentamerone, antogia de contos, escrita por

Giambattista Basile em 1636.

Contos de fadas, mitos, lendas ou fábulas. Não importa quão diferentes

sejam em estrutura ou significado, são todos filhos de um mesmo pai.

Remontam todos a uma única origem, a nossa imaginação. (Busatto, 2003,

p.36).

O conto oral aponta para a necessidade de fazer leituras do mundo que

nos cerca, tornando então possível uma vaga idéia do tempo em que o conto

manifestou-se para encantamento do homem.

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Sobre este assunto, Malba Tahan (1970, p.27) esclarece que “Em

lendas da Antigüidade”, aparece a figura prestigiosa do contador de histórias.

Os antigos monarcas mantinham em suas cortes, além de sábios e dos poetas

prediletos, um homem que exercia as funções de narrador de histórias.

O homem nunca dispensou as histórias para viver. Não há povo sem

narrativa. A narrativa se faz presente em todos os tempos, em todos os

lugares, em todas as sociedades; a narrativa começa com a própria história da

humanidade; não há, em parte alguma, povo sem narrativa.

Exatamente por estar tão ligado à vida, ao imaginário e à linguagem

das pessoas, o ato de narrar, de contar e recontar, tornou-se um impulso

natural do ser humano.

Busatto tem algo mais a dizer sobre a provável origem do contar:

“...Saber da sua provável origem, mostra-se apenas uma curiosidade, porque o conto se molda ao contexto onde ele é narrado e, como um camaleão, vai se adaptando às cores e os tons de cada povo de cada contador que o narrou. Cada voz imprimiu a sonoridade, cada sopro as suas emoções. Ele mudou de nome e de roupa, mas a sua essência continuou inalterada. O conto de tradição oral é um retrato da magia e do encantamento, uma fantástica criação da mente humana.” (Busatto, 2003, p.28)

A vida está diante de todos, basta abrir a janela dos olhos para ver.

Assim, também é o mundo, cheio de histórias que se lê diariamente, e cada ser

é personagem que faz parte deste imenso livro. Podemos ser, às vezes

personagens principais ou coadjuvantes desta história.

Sobre isto, Sisto (1992, p.149) nos afirma que ao abrirmos os olhos

uma história começa a se construir à nossa frente, a história a qual ele se

refere é a realidade de cada um, a vida do dia a dia. Para o autor não há como

escapar desta realidade, porque a vida é uma história a cada instante.

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Perceber uma história como se percebe a batida de um coração e os

estímulos nervosos do cérebro não é apenas decodificá-la, é rechea-la de vida

e humanidade.

Algumas crianças carregam suas histórias tão perto de si que mal conseguem parar de falar; outras carregam suas histórias tão perto de si que mal podem falar. Algumas tornam-se inquietas e impacientes aos escutarem a história do outro, porque suas histórias ainda não são visíveis para seus olhos, nem sempre compreendem o que é uma história e o que ela provoca. (Lewis, 2002, p.144)

Encorajar as crianças a ouvirem e contarem histórias, ajuda-as a

ampliar a imaginação e a conhecer, mesmo que simbolicamente, o mundo em

que vivem. Sabe-se que o ato de contar histórias instiga e estimula as crianças

a se constituírem como produtoras de cultura , tendo em vista que o conto

amplia sua curiosidade, soltando as rédeas da imaginação que, muitas vezes,

se encontra aprisionada pelas condições de vida a que a criança está exposta

hoje, como veremos no próximo capítulo. Diz-se que quem conta um conto

aumenta um ponto. E é essa possibilidade de “aumentar um ponto” que

garante a quem ouve o desejo de continuar, de completar a história. É aí que

entram as asas da imaginação. Caiafa (2000) diz que:

O grande narrador conseguir[a provocar esse desejo de recontar no ouvinte-leitor, inclinação a que ele cederá irresistivelmente. Da parte do ouvinte, a atitude será de ‘esquecer-se de si’. Ou seja, ouvir para recontar – para participar das ressonâncias da obra, para criar – implica entregar-se, ingressar na duração da obra sem esgotá-la. O contrário, portanto, de consumir. (p.27)

O contador de histórias é um artesão que tece fios invisíveis da teia

que é p contar. Cria imagens no ar materializando o verbo e transformando-se

ele próprio nesta matéria fluida que é a palavra. Empresta seu corpo, sua voz e

seus afetos ao que narra, nos faz sonhar porque ele consegue parar o tempo

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nos apresentando um outro tempo. Como o mágico, faz aparecer o inexistente

e nos convence que aquilo existe. Trabalha muito próximo da essência vem a

ser tudo aquilo que não se aprende, se é por isso só.

Para Sisto (2000, p.111) “o contador de histórias é um todo orgânico

que se expressa através da voz, das expressões faciais”. Estes movimentos e

atitudes no ato de contar histórias devem estar ligados ao texto que estiver

sendo utilizado. O contar histórias para ele deve ser incluir momentos de

silêncio, de ritmos, de movimentos que levem o ouvinte a emocionar-se com a

história que está sendo contada, tendo em vista que quem ouve uma história

precisa envolver-se com ela para poder recriá-la e transformar-se através dela.

Mas, para que isso aconteça é necessário que o contador conheça a história

profundamente, para que possa transmiti-la como se a estivesse, de fato,

vivenciando-a, pois só assim será possível envolver o ouvinte.

O autor afirma ainda que é fundamental conhecer a história, mas o que

realmente é mais importante que isso é viver a história e apresentá-la com

sentimento. A intimidade com o texto é que levará o contador a desenvolve-la

de forma a fazer o ouvinte visualizá-la mentalmente. Para isso, é necessário

que nossa forma de contar se adapte à história, não o contrário: “o contador

está a serviço da história que narra!” e será a adaptação que tornará a história

atraente, prazerosa e instigante. Para este autor a história deve ser contada e

completada no ouvinte e afirma “a forma, seja qual for, que o contador emprega

para contar a história, deve funcionar muito mais como um esboço a ser

preenchido pelo ouvinte que um espetáculo pronto e acabado!” (p.112).

Referindo-se a uma pesquisa que teve por objetivo descobrir que

mediadores são responsáveis pelo interesse da criança pela literatura, Oswald

(2003) aponta, a partir das observações efetuadas em uma escola de

educação infantil da rede municipal, que ler histórias como quem conta foi um

dos motivos que levava crianças a mostrarem-se totalmente cativadas pelas

narrativas. Segundo a autora, por mais maravilhosa que seja a história, não

basta lê-la, é preciso vivê-la. Nesse sentido, Oswald (2003) lembra a fala de

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uma professora observada para quem “a chave do sucesso das histórias que

contava para as crianças estava na “sonoplastia” (p.113). Mas, como diz ela,

“ler como quem conta não supõe apenas a “sonoplastia”, supõe também que o

leitor, assim como o contador, esteja aberto à participação do ouvinte,

permitindo que a oralidade se interponha nas entrelinhas do texto.” (Oswald,

2003, p.113).

1.2. O contar na Educação Infantil

A criança quando chega a escola traz consigo uma bagagem de vida,

isto é conhecimentos, hábitos, costumes, linguagens que são construídos dia-

a-dia no meio social e cultural em que está inserida. Tais experiências

precisam ser reconhecidas e respeitadas durante a atividade do conto. É a isso

que Oswald(idem) se refere quando fala que o contador, no caso o professor,

precisa permitir que a oralidade se interponha nas entrelinhas do texto. Falando

sobre a prática de contar, ou ler, histórias dos professores observados na

pesquisa “Mediadores da leitura literária numa proposta de educação infantil da

SME-RJ”, a autora mostra que eles

...não se incomodavam com as constantes interrupções que as crianças impunham às leituras dos livros. Parece que eles entendiam que, ao solicitar esclarecimentos para termos que não compreendiam, ao discordar das atitudes dos personagens, ao conversarem entre si sobre a história, [...], as crianças estavam recriando os textos, fazendo arte, criando cultura (p.114).

O educador deve estar ciente de que, ainda no berço, a criança entra

em contato com as primeiras formas literárias, que lhe chegam através das

canções de ninar. Em seguida, numa seqüência que intuitivamente parece

acompanhar seu desenvolvimento psíquico e lingüístico, o bebê é estimulado a

participar de brincadeiras, envolvendo parlendas (tais como Bate palminha,

Dedo mindinho e Serra, serra, serrador), trava-línguas, adivinhas e canções de

roda. Paralelamente escuta as primeiras narrativas de ficção, historinhas sobre

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animais, “causos” e contos de fadas. Desse modo, quando chega à escola, a

criança já traz consigo uma bagagem literária nada desprezível.

O professor, então, precisa levar em conta essa experiência da criança,

tendo consciência de que não é o detentor do conhecimento sobre as histórias

a serem contadas, devendo valorizar as que já são conhecidas pela criança.

Nesse caso, o professor deve dar oportunidade à criança de contar,

aproveitando esse momento para dar voz a seus alunos e alunas, estimulando

que todos compartilhem suas histórias ouvindo-se uns aos outros.

Segundo o Referencial Curricular Nacional para Educação Infantil

(Vol.3, p.131), o contar histórias é uma das diversas pontes que promovem o

desenvolvimento da expressão oral, já que contar possibilita a participação em

diversas situações de intercâmbio social, levando a criança a contar suas

vivências e a ouvir também as outras pessoas.

Segundo Algebaile (1996) o professor pode utilizar no momento de

contar histórias daquelas que tenham ligação com a vida cotidiana da criança,

para que assim a criança se identifique com as mesmas. Para ela, é importante

que o momento de contar histórias também seja o espaço para que as crianças

das classes menos privilegiadas tragam sua vida para a escola. Sawaya (1995)

também destaca a importância de se criar esse espaço. Relatando os

resultados de uma investigação em que se propôs a conhecer a vida e os

diversos usos da linguagem oral de um grupo de crianças de um bairro da

periferia de São Paulo. Sawaya mostra que, longe de se deparar com o quadro

descrito pelos defensores da Teoria da Deficiência Lingüística, o que ela

encontrou foram relatos ricos, repletos dos sentidos que as crianças imprimiam

às suas experiências de vida.

Ao contar as histórias de vida e dos acontecimentos do bairro vão construindo um sentido: a experiência da precariedade das suas vidas, da provisoriedade dos objetos, da casa, do bairro, da família, a ameaça do estigma. Do preconceito, a idéia de fracasso reunindo todos numa comunidade de destino”, mas também o da

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luz no fim do túnel: trazem o riso, o poético, o lúdico, o lugar da criação do novo, do vir a ser prenhe de possibilidades, uma ruptura da percepção rotineira das experiências cotidianas (p.46).

Sawaya (1995) chama a atenção para a importância dos relatos

infantis, mostrando que, ao fazer do interlocutor o depositário de suas

experiências, a criança busca maneiras de compreender o mundo difícil e

contraditório em que vivem. Estimular que contem suas histórias é, portanto,

uma forma que o professor tem de se construir como este interlocutor.

A experiência permite além do ouvir e do contar, a reflexão que é peça

fundamental na constituição do sujeito, que ao refletir na história do outro,

poderá torná-la também sua e a partir daí elaborará esquemas, experimentará

hipóteses, se questionará, enfim, será marcado por ela, que fará parte de sua

vida, pela experiência coletiva, refletirá o seu viver. Diante disso, cabe a nós

professores, oportunizarmos experiências de fato na escola, permitindo o

contar das crianças, dando vos a elas, já que há alguns anos atrás essa

criança teve a voz reprimida, paralisada, num tempo em que somente o

professor podia falar, e a criança era mera ouvinte.

Um espaço escolar realmente compromissado com a formação integral

do educando, onde a narrativa tenha o seu lugar como momento de troca,

crescimento e validação da voz do outro, da criança. O professor precisa

permear o contar na escola, pois a criança não pode perder o sentido e a

importância do narrar; “já que a narração, não é apenas produto da voz, mas

de tudo que é aprendido na vida social” (Kramer, 2002, p.53). E sua

importância reside, na linguagem oral, no grupo, não isoladamente.

Experienciando que a criança irá se constituir como tal. A narrativa torna-se

indispensável na formação da criança como o alimento para nossas vidas.

Uma escola reflexiva tem que ser vivida no hoje, e isso só acontecerá

se o silêncio for quebrado, se forem retiradas as mordaças e vendas da

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incompreensão e isso só ocorrerá na coletividade, onde todos possam ter a vez

e voz para narrar.

Ouvir, falar, parar, refletir, perguntar, responder...deveriam ser verbos

usados e vividos quotidianamente no espaço escolar, pois o encontro com as

crianças não existe sem esses verbos e outros mais. Porque aprendizado,

memória, cultura e conhecimento só acontecem quando passa pelo estar com

o outro interagindo.

A escola precisa ouvir mais os educandos. Não um “ouvir por ouvir”,

mas descobrir a importância da linguagem oral no desenvolvimento dos

mesmos, enquanto seres sociais, históricos e cidadãos.

O ouvir, falar, olhar outro e também a ser olhado, deverá começar na

Educação Infantil, pois, é primordial na constituição do sujeito. Ou então a

escola correrá o risco de procurar a criança e não encontrá-la, não a entenderá

e ela também não entenderá a escola.

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CAPÍTULO II

LITERATURA INFANTIL E CONCEPÇÃO DE INFÂNCIA

“Somos crianças e queremos o brinquedo, os bichos, outras crianças, o doce, as fantasias. Somos jovens e queremos aventura, a ação, a prova, o desafio, o ato heróico, o primeiro amor, o riso. Somos adultos e queremos tudo. Somos velhos e queremos tudo de novo.” Celso Sisto

O conceito de infância varia historicamente, seja de acordo com a

época, seja de acordo com o contexto social.

Na sociedade medieval, em que eram vistas como mini-adultos, as

crianças não eram respeitadas nas suas individualidades e peculiaridades,

havendo uma linha divisória muito fluida entre o adulto e a criança que, desde

muito cedo, era incorporada à vida dos mais velhos. Isto quando sobrevivia,

pois o alto índice de mortalidade infantil na época, causada principalmente por

fatores de ordem higiênica, era considerado algo natural. Ariés, em seu texto A

Descoberta da Infância, cita as palavras de Montaigne, que confirma esta idéia:

“Perdi dois ou três filhos pequenos, não sem tristeza, mas sem desespero”,

Ariés ainda completa esclarecendo que a opinião comum devia como

Montaigne “não reconhecer nas crianças nem movimento na alma, nem forma

reconhecível no corpo.” (Ariés, 1981, p.57). Ou seja, as crianças pequenas

“não contavam” nesta época.

Sobre este assunto, também Postman(1999) esclarece que:

Até o final do século quatorze as crianças não eram mencionadas em legados e testamentos, um indício de que os adultos não esperavam que elas vivessem muito tempo. De fato, provavelmente por causa disto em algumas partes da Europa, as crianças eram tratadas como se pertencessem ao gênero neutro. Na Itália do

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século quatorze, por exemplo, o sexo de uma criança que tivesse morrido nunca era registrado. (p.32)

Mas, vale ressaltar que a ausência deste “sentimento de infância” não

significava que a criança era necessariamente desamparada ou negligenciada,

na verdade, ela vivia em meio aos adultos, isto é, antes não havia uma

consciência da particularidade infantil, “(...) não havia aquilo que distingue a

criança do adulto e faz com que a criança seja considerada um adulto em

potencial, dotada de capacidade em desenvolvimento.” (Kramer, 1995, p.17)

A partir do século XVII, a infância, passou a ser vista de maneira

diferente do que ocorria na Idade Média. A mudança do modo de produção

feudal para o capitalista e o conseqüente surgimento da família nuclear

determinam a emergência do “sentimento de infância”. Sentimento que

corresponde à concepção moderna de infância e que reflete a maneira como a

criança é encarada: ser irracional, imperfeito e inacabado que precisa ser

educado para “crescer e aparecer” transformando-se em adulto produtivo. Essa

concepção de infância, como fase da humanidade a ser ultrapassada em

direção à maturidade, determina o surgimento da escola, local onde a criança

seria tanto protegida do mal que a sociedade poderia lhe causar, como seria

educada saindo da escuridão de sua ignorância e irracionalidade.

“É para essa criança que é inventada a literatura infantil: uma criança inocente, pura, (assexuada?), ingênua, frágil débil, dependente, irracional, inferior, imperfeita. Criança que precisa ser moldada pelos mais velhos, preparada “adequadamente” para a vida”. (Peres, 1997, p.34)

Pinheiro (2001, In Castro) afirma que até a metade do século XX, três

foram as representações sociais da criança e do adolescente que

prevaleceram até o século XX: objeto de proteção social; objeto de controle de

disciplina; objeto de repressão social. Ainda diz que: “No meu entender,

considerando a simultaneidade de sua circulação e a predominância de

alguma(s), em momentos sócio-históricos determinados, são essas as três

representações sociais mais recorrentes da criança e do adolescente, na vida

social brasileira, até a década de 70.” (p.52)

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A partir dos anos 70 e início dos anos 80, alvo de estudos e debates, a

criança conquista direitos, como os que se manifestam na Constituição de

1988, no Estatuto da Criança e do Adolescente, na Lei de Diretrizes e Bases da

Educação Nacional, passando a ser reconhecida como sujeito social. Diante

desta nova categoria, a sociedade atual enfrenta o desafio de lidar com essa

criança que tem voz e vez.

Se por um lado, a criança adquire estatuto de cidadã de pequena idade,

por outro a contemporaneidade vem trazendo o risco do que Postman (1999)

se refere como o “desaparecimento da infância”, seja pelos interesses da

cultura de consumo, seja pela necessidade do trabalho infantil. Para a

sociedade de consumo, a criança assume o papel de “cliente”, sujeito exigente,

que consome e desde a mais tenra idade é capaz de almejar, escolher aquilo

que lhe é oferecido, como brinquedos, revistas, livros, filmes, etc. Assim como

o adulto, a criança de hoje tem a sede do novo, sede que é alimentada pela

mídia. Segundo Jobim e Souza (2000, p. 92), gasta-se mais com publicidade

do que com educação, por isso a mídia é mais formadora que a escola. Então,

as crianças fica a mercê, no mais das vezes, na mídia e da TV, em particular, e

ainda de outras tecnologias mais sofisticadas. Dessa forma, cada vez mais a

criança se distancia das experiências que promovem seu encontro com o

Outro. A eliminação do diálogo que leva ao desaparecimento do ouvinte

determina a morte da narrativa e, segundo a autora, “sem narradores

recrudesce o individualismo” (p. 94). É em função disso, que Jobim e Souza

(2000) aponta para a necessidade de se educar as novas gerações para serem

capazes de resgatar sentimentos “essenciais” que valorizem o SER e não

apenas TER. E tal resgate, segundo ela, não poderia prescindir da arte.

Pensando nas crianças de nossa sociedade, com os pais cada vez mais

menos presentes em casa, entende-se porque as crianças estão mais e mais

vivendo sem o diálogo que caracterizava as interações familiares de ontem.

Além disso, com a modificação na estrutura familiar contemporânea os avós,

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responsáveis muitas vezes por manter viva a tradição por intermédio das

histórias que contavam, não são mais os mesmos.

A televisão, nos dias de hoje vem substituindo o contador de histórias,

substituindo o contato com a família, os laços de amor e cumplicidade da

família com a criança. A TV passou a “tomar conta” das crianças que

perderam, de algum modo, contato com essa forma aconchegante, afetiva

própria do modo cultural de se relacionar de gerações anteriores.

A arte de narrar está desaparecendo porque a experiência que passava

de pessoa a pessoa não tem mais lugar na vida apressada de hoje.

Entretanto, como ressalta Kramer (2003), um dos modos que se têm de

educar as crianças contra a barbárie é justamente o de voltara oferecer-lhes

relatos e histórias que provoquem pensar e discutir sobre valores hoje

ultrapassados, mas que são responsáveis pela humanização do sujeito. Como

diz a autora:

Experiências de produção cultural que têm uma dimensão artística são importantes porque são capazes de inquietar, de provocar a reflexão para além do momento em que acontecem. Ao falar sobre educação infantil, destaco as experiências de cultura porque podem ensinar a utopia e favorecer o convite à reflexão, a pensar sobre o sentido da vida individual e coletiva.(p. 102)

E se narrar faz parte do nosso estar no mundo, é urgente ouvir e contar

histórias, pois esta troca de experiências, é que faz o ser humano se conhecer

e se reconhecer no outro, unindo-se em comunhão com o outro,

compartilhando as histórias do outro, implicando-se com o outro. É neste

contexto que entra o essencial papel da literatura infantil na formação da

criança pequena.

Contrariamente à função pedagógica ou moralizante que a literatura

dirigida aos pequenos assumiu em seus primórdios, grande parte dos autores

que produzem hoje para a criança conferem a suas obras uma dimensão

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artística e cultural que, longe de ter por objetivo a inculpação de modos de ser

próprios de uma visão da criança como ser incompleto que precisa ser

moldado à imagem do adulto ocidental burguês, se propõe a convidar o

pequeno “leitor” a ler criticamente o mundo e a transforma-lo. Embora a escola

continue a ser a maior responsável por realimentar o comércio dos livros

infantis, a lógica dessa produção não se pauta mais, de uma maneira geral, na

idéia de que caberia aos autores auxiliar a escola em sua tarefa de educar a

criança. Com exceção praticamente de Monteiro Lobato, essa foi a tendência

presente na literatura infantil brasileira desde o final do século XIX – época do

florescimento deste gênero entre nós – até a década de 70 do século XX,

quando

[...] contraditoriamente ao contexto ditatorial em pleno vigor, assiste-se ao nascimento de uma produção que, por dirigir-se à infância, segmento socila historicamente ignorado, foi desprezada pelo regime militar, tendo podido plantar sementes de liberdade, como foi o caso de Ruth Rocha, Ana Maria Machado, Lygia Bojunga, Fernanda Lopes de Almeida, Joel Rufino dos Santos, Bartolomeu Campos de Queiros. [...] Esses autores, entre outros, subverteram o compromisso do livro infantil com os valores autoritários, conservadores e maniqueístas, enchendo as obras das contradições presentes nas relações sociais e culturais. [...] essa produção se desdobra para as décadas de 80 e 90 com seu caráter militante acrescido de doses de irreverência e comicidade, colocando em xeque os papéis sociais do homem e da mulher, como é o caso de Mirna Pinsky e Sylvia Orthof, questionando a imutabilidade dos papéis familiares, como Lia Katz, parodiando os contos de fada, como Chico Buarque, Fernanda Lopes de Almeida, Sylvia Orthof, Eliane Ganen. Assiste-se, também, ao aparecimento de uma conscientização das questões étnicas e culturais, com Luís Galdino e Ciça Fitipaldi, e das questões ecológicas, com Marina Colasanti, Cora Ronaí, Luiz Gouvêa de Paula (Oswald, 2000, p.15).

Essa dimensão artístico-cultural que a literatura infantil vem assumindo

entre nós coincide com uma outra concepção de infância que, superando a

idéia de infância como tempo de faltas a ser superado em direção à

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maturidade, percebe a criança como sujeito social que produz cultura e é

sujeito da história. Uma literatura que tenha por inspiração essa concepção de

infância vai, então, extrair do modo de ser criança, não faltas e carências, mas

humanidade. Carlos Drummond de Andrade (apud Oswald, 2000) explica o que

queremos dizer quando nos referimos à literatura infantil não como gênero

menor – desqualificado pelo termo "infantil", mas como gênero que se dirige à

dimensão humana da criança.

O gênero "literatura. infantil" tem, meu ver, existência duvidosa. Haverá música infantil? Pintura infantil? A partir de que ponto uma obra literária deixa de constituir alimento para o espírito da criança ou do jovem e se dirige ao espírito do adulto? Qual o bom livro para crianças, que não seja lido com interesse pelo homem feito? [...] Será a criança um ser à parte, estranho ao homem, e reclamando uma literatura também à parte? Ou será a literatura infantil algo de mutilado, de reduzido, de desvitalizado -- porque coisa primária, fabricada na persuasão de que a imitação da infância é a própria infância? (p.10)

Essa compreensão da literatura infantil, ao influenciar as obras dos

autores, influencia consequentemente as propostas de educação infantil que,

incluindo tais obras no trabalho pedagógico, acabam por incorporar a

necessidade de

[...] Superar uma concepção de infância em que a criança é sentida e tratada como sujeito passivo, e assumi-la como sujeito ativo, que se estrutura a partir/nas condições sociais objetivas e interfere na realidade produzindo cultura, fazendo história. (Tiriba, 1997, p.19 )

Sendo assim, a literatura infantil pode ajudar a assumir que esta criança

é alguém hoje. Assim, o compromisso da escola e de seus educadores é com

o presente, é com o seu poder de imaginar, criar, fantasiar, é com o que faz,

sente e aprende hoje. O objetivo não é o de preparar para o futuro, mas

investir no aqui e agora, considerando suas necessidades e interesses atuais,

de tal forma que a vida/a vivência da escola lhe possibilite intervir na realidade,

hoje! Para tanto, segundo Leite (1998)

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[...] será necessário assumir as crianças em suas diversidades: de etnia, de classe, de cultura, de sexo. Na diferença está a nossa riqueza, assim é preciso tomar esta diversidade como referência de trabalho com elas, como ponto de partida e de chegada de seu processo de construção de conhecimentos e afetos. (p.39).

Essas são também questões que a literatura infantil aborda. Albergaria

(1996), analisando as obras "O homem que casou com a sereia" e "A moça de

Bambuluá", escritas e ilustradas respectivamente por Ciça Fitipaldi e Ricardo

Azevedo a partir de contos popu1ares compilados por Câmara Cascudo,

mostra como ambos, tanto no texto quanto nas ilustrações, evocam questões

relativas à desconstrução de estereótipos étnicos, religiosos e de gênero.

Segundo o autor, Ciça Fittipaldi transgride a tradição cultural ocidental

presente na história da sereia, apresentando uma sereia negra, não fragilizada

diante do homem Na mesma direção Ricardo Azevedo leva a história da moça

de Bambuluá que, na versão de Cascudo foi recolhida junto ao morador de

uma praia, para o sertão goiano enchendo-a de personagens mestiços

genuinamente brasileiros e conferindo à mulher um papel preponderante no

desfecho da história.

Esses são apenas dois exemplos de obras que, trazendo à tona a

questão da diversidade, conferem à literatura infanto-juvenil uma dimensão

crítica que não se ajusta à idéia da criança como "menor", refletindo, assim, o

desafio que o educador da infância precisa assumir hoje. Como aponta Tiriba

(1997), esse desafio supõe que

As instituições não podem continuar a ser entendidas enquanto simples espaços de transmissão, apropriação de conhecimentos. Elas precisam ser espaços de viver, em que as crianças se desenvolvam integralmente. na sua totalidade, como sujeitos de conhecimento, mas também como sujeitos corporais, sujeitos de afeto, de intuição, de sensibilidade. (p. 46)

É necessário desconstruir a concepção de que a escola é o único

espaço onde se aprende: a escola é um dos espaços de sistematização dos

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conhecimentos do mundo, produzidos por todos nós seres humanos, sujeitos

de cultura, construtores e fazedores de história. Assim, é importante o

cotidiano escolar não estar distante, mas em sintonia com os movimentos do

entorno, da cidade, do país, do planeta, movimentos que a literatura é pródiga

em oferecer.

Com relação ao estímulo por ouvir histórias, ele deve provir tanto da

família, quanto da escola, cabendo inicialmente a familiares e professores

oralizar as histórias de modo a levar a criança ao mundo mágico povoado por

príncipes e princesas, lobos com olhos grandes, patinhos que se acham feios,

bruxas más e outros personagens que enriquecem a imaginação da criança,

levando-a ao desejo de descobrirem por si próprias nesse mundo. Em seguida

o estímulo deve vir das histórias lidas, através das quais a criança vai

entrando em contato com a língua escrita, antes mesmo de aprender a ler.

A introdução das crianças às histórias deve prescindir da tendência

comum aos adultos de "infantilizar" as narrativas. É um grave erro querer

introduzir nas histórias infantis uma abordagem moralista, pois cabe às

crianças preencherem os "vazios" próprios da obra de arte com sua visão

questionadora do mundo. Como diz Bettelheim (1996), "A literatura infantil é

carregada de significados"(p.38), permitindo várias leituras, ou seja, cada vez

que a criança, ouve ou lê uma história ela pode modificar a idéia do autor,

conferindo-lhe outras interpretações que vão depender de suas experiências

de vida.

De acordo com o que foi dito, pensamos que a literatura infantil tem a

vantagem de fornecer subsídios às crianças para que estas possam ensinar

aos adultos a compreender valores como o da fantasia, da arte, do lúdico, da

poesia, do olhar crítico sobre o mundo, do riso espontâneo não reprimido. Pois

é esta repressão, que priva o adulto de usufruir desses sentimentos que

ficaram excluídos do seu cotidiano. O que implica uma perda muito grande.

Um deixar de ser feliz. Em outros termos, o que queremos dizer é que o

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contato com a literatura infantil, ao investir a criança de um papel social

significativo, pode, consequentemente, desprover o adulto de sua condição de

dono da verdade, "baú" das respostas para tudo o que a criança necessita,

levando-o a reconhecer que também a criança tem muito a ensinar.

Assim, ao permitir a troca de experiências, o que o ato de contar

histórias incita é a transformação das relações entre crianças e adultos.

Sendo seres de palavras, constituídos na e pela linguagem a partir dos vínculos narrativos que recebemos ou que recolhemos da experiência, não podemos prescindir das narrativas. Ouvir e contar histórias que nos aconteceram e que aconteceram com o outro, reais ou imaginárias, vai formando a nossa subjetividade. Mesmo parcas ou fragmentadas são elas que dão forma e conteúdo à nossa história, são elas que vão nos fazendo ser o que somos.(Corsino, 2002, p.8)

Cumpre ressaltar que a literatura percorre o caminho da oralidade à

escritura. Assim, a literatura é, ao mesmo tempo, voz e letra. A voz se faz

letra, a letra carrega voz, que convida à leitura, que cativa o leitor. Nesse

percurso, narrador, autor, leitor e ouvinte subvertem a realidade e adentram no

mundo ficcional em que o imaginário é experimentado como forma de

articulação entre o real e o irreal.

As histórias, lidas ou contadas, normalmente, despertam interesse nas

crianças. Isto porque, como afirma Amarílha (1997), "através do processo de

identificação com os personagens, a criança passa a viver o jogo ficcional

projetando-se na trama da narrativa"(p.18). A criança, portanto, passa a ter um

envolvimento emocional e cognitivo com o conteúdo dramático da história.

Quando se inicia a criança no mundo da leitura infantil, está se fortalecendo a

sua visão de criadora de cultura, abrindo-lhe espaço para que ela possa

exercitar o seu imaginário, porque através da boa literatura ela vai encontrar

eco na sua forma de pensar e aprenderá a lidar mais facilmente com a

realidade.

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Reconhecendo as contribuições que a literatura traz à constituição da

subjetividade crítica da criança, e entendendo seu papel de transformar a

concepção de infância que vê a criança como ser incompleto, mostramos no

capítulo a seguir como Ziraldo olha a criança como sujeito que produz cultura

e histórias.

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CAPÍTULO III

APRENDENDO COM A LITERATURA INFANTIL A OLHAR A CRIANÇA COMO SUJEITO QUE PRODUZ HISTÓRIAS: ZIRALDO E O MENINO

MALUQUINHO

Sentaí Pra conversar Vamos bater um papinho Eu hoje acordei assim: com vontade de falar de lembrar coisas antigas falar de velhos amigos falar de idéias malucas mexer na areia do tempo remoer rememorar. Já sei: Você vai dizer que aqui não é o lugar isto é um livro de histórias e a história? quem vai contar? Conto eu -ora se conto!- Ziraldo

3.1 - Ziraldo: vida e obral

Ziraldo Alves Pinto nasceu no dia 24 de Outubro de 1932 em Caratinga,

Minas Gerais. É o mais velho de uma família de sete irmãos.

Seu nome vem da combinação dos nomes de sua mãe Zizinha e de seu

pai Geraldo: assim surgiu o Ziraldo. E quase que uma combinação dele com a

família. Um resumo da sua origem, de sua história.

I Informações retiradas de http/I:www.ziraldo.comlhistorialhome.htm e http://www.ziraldo.com.br

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Passou a infância em Caratinga, onde cursou o Grupo Escolar Princesa

Izabel.

Ziraldo tem paixão pelo desenho desde a mais tenra idade. Desenhava

em todos os lugares: na calçada, nas paredes, na sala de aula Desenhava

muito, e aos seis anos teve seu primeiro desenho publicado na Folha de Minas

(Belo Horizonte) em 1939.

Outra de suas paixões desde a infância é a leitura. Lia tudo que lhe caia

nas mãos: Monteiro Lobato, Viria to Correa, Clemente Luz (O mágico), e todas

as revistas em quadrinhos da época.

Em 1949 vai para o Rio de Janeiro cursar o científico (atual Ensino

Médio). Na MABE (Moderna Associação Brasileira de Ensino); e começa a

carreira como desenhista e criador na revista Coração. Colabora também nas

revistas Vida Infantil, Vida Juvenil e Sesinho.

Em 1952 muda-se para Belo Horizonte para cursar a Faculdade de

Direito da UFMG e começa a colaborar mensalmente na revista infantil Era

uma vez ...

Em 1954, começa a trabalhar no Jornal A Folha de Minas com uma

página de humor. Por coincidência foi esse mesmo jornal que publicou o seu

primeiro desenho em 1939.

Em 1957, terminando a Faculdade de Direito, muda-se para o Rio de

Janeiro e começa a publicar seus trabalhos na revista A Cigarra, e

posteriormente O Cruzeiro. Em 1963 começou a colaborar com o Jornal do

Brasil. Atualmente, publica tira comic no O Globo.

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Entretanto dada a diversidade de sua obra, não é possível limitá-Io. É

um artista de múltiplas atividades: advogado, jornalista, desenhista, escritor

infantil, autor teatral e de cinema, empresário, editor de revista, caricaturista,

cartazista, publicitário, humorista. Ziraldo deixou isto explícito em uma

entrevista concedida há muitos anos: "Eu quero é abraçar o mundo com

as pernas ", enfim, um artista que tem ao longo dos anos desenvolvido várias

facetas de seu talento.

Em 1966, sua produção ultrapassa as fronteiras, e começa a ser

publicada nos Estados Unidos.

Em 1967 da início à série dos Zérois, desmistificando os super-poderes

"gibianos".

Em 1968 , a revista Suíça Graphis publica oito páginas com matéria

sua: no dia seguinte, Ziraldo recebia o Oscar Internacional do Humor em

Brnxelas e também o convite para desenhar o cartaz da Unicef (ONU), tendo

sido o primeiro artista da América Latina, honraria concedida pela primeira vez

a um artista latina.

Embora já em 1949 Ziraldo tenha começado a produzir histórias em

quadrinhos para revistas infantis, pode-se dizer que só a partir de 1959, com a

criação da série O Pererê (Revista O cruzeiro), começa seu verdadeiro

interesse por essa área específica de Literatura e da Linguagem visual para

crianças.

É igualmente no início da década de sessenta, que realizou seu sonho

infantil. transformou-se num autor de comics e lançou a primeira revista

brasileira do gênero feito por um só autor, reunindo uma turma chefiada pelo

Saci-Pererê, figura mais importante do imaginário brasileiro. Os personagens

dessa turma incluíam um pequeno índio e vários animais formadores do

universo folclórico brasileiro tais como a onça, o jabuti, o tatu, o coelho e a

coruja. A Turma do Pererê marcou época na história dos quadrinhos no Brasil.

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Os quadrinhos mostravam e ainda mostram a preocupação do autor

com o Brasil e com a preservação da memória nacional, especialmente a

ligada às lendas.

No ano de 1969 grandes acontecimentos marcaram a vida do artista

ganhou o Oscar Internacional de Humor no 32° Salão Internacional de

Caricaturas de Bruxelas e o prêmio Merghantealler, prêmio máximo da

imprensa livre da América Latina, patrocinado pela Associação Internacional

de Imprensa, recebido em Caracas, Venezuela.

Seu livro Flicts, foi saudado como marco na história da arte brasileira

até as crônicas foram das mais entusiástica Todos os cronistas que o

conheciam escreveram sobre o livro, inclusive Drummond (1969), escreveu a

contracapa do livro.

“ O mundo não é uma coleção de objetos naturais, com suas formas respectivas, testemunhadas pela evidência ou pela ciência; o mundo são cores. A vida não é uma série de funções da substância organizada, desde a mais humilde até à de maior requinte; a vida são cores. Tudo é cor ... ... Aprendo isso, tão tarde! Com Ziraldo. Ou mais propriamente com Flicts ... Quem é Flicts? .. ... Flicts é a iluminação - afinal, brotou a palavra - mais fascinante de um achado: a cor, muito além do fenômeno visual, é estado de ser, e é a própria imagem. Desprende-se da faculdade de simbolizar, e revela-se aquilo em tomo do qual os símbolos circulavam voejavam, volitam, esvoaçam - fly, flit, fling - no desejo de encamar-se. Mas para que símbolos, se captam o coração da cor? Ziraldo realiza a façanha, em seu livro". (Carlos Drummond de Andrade)

É a história de uma cor que não encontrava seu lugar no mundo. Nesse

livro usou o máximo de cores e o mínimo de palavras. O livro fala da difícil, da

árdua , da angustiante caminhada de quem procura um lugar, um amigo e não

é aceito por ser diferente, e é tratado assim pelos demais - por não saber quem

é, por se desconhecer ...

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A Embaixada do Estados Unidos no Brasil presenteou com um exemplar

os astronautas americanos que pisaram na lua pela primeira vez, quando

visitaram o Brasil. Neil Armstrong, um dos astronautas leu o livro e comovido,

escreveu ao autor: The moon is Flicts (A lua é Flicts). O livro também já foi

enredo de uma escola de samba em Juiz de Fora, onde Ziraldo desfilou com

seu filho.

A partir de 1979, Ziraldo passou a dedicar mais tempo à sua antiga

paixão: escrever histórias para crianças. Nesse ano publicou O Planeta

Lilás, um poema de amor ao livro, onde ele mostra que o livro é maior que

o Universo que cabe inteirinho dentro de suas páginas.

Em 1980, recebeu sua maior consagração como autor infantil na Bienal

do Livro em São Paulo, com o lançamento de O Menino Maluquinho. O livro se

transformou no maior sucesso editorial da feira e ganhou o Prêmio Jabuti da

Câmara Brasileira do Livro em São Paulo. Esse foi adaptado para o teatro,

cinema, Internet, vídeo -game e ópera infantil pelo Maestro Ernani Aguiar. O

Menino Maluquinho virou um verdadeiro símbolo do menino Nacional.

Jacob Klintowitz (1980) declara sua opinião sobre o livro e escreve para

a contracapa:

"Era uma vez uma criança sadia, alegre, entusiasmada, amorosa, feliz. Era uma vez um desenhista chamado Ziraldo que amava as crianças felizes. Era uma vez um livro chamado O Menino Maluquinho que amorosamente contou este amor JX1ra todos nós. crianças e adultos."

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3.2 - O menino maluquinho: contribuições para se superar a idéia da criança como "infans" - aquele que não fala

O livro O Menino Maluquinho, narra a vida de um moleque sabido,

irrequieto, sempre em movimento e em ebulição, que corre, brinca, pula é

alegre, vai à escola, se diverte muito com os amigos, se diverte com suas

inúmeras peraltices de menino.

Portando, aparentemente descuidado com os seus objetos pesssoais e

roupas, explosivo em seus comentários, beijoqueiro e encantador com as

namoradas mil, ótimo jogador de futebol, aluno inteligente, mas não

exatamente dos mais disciplinados, ávido de tudo que a vida oferece.

Fanny Abramovich (1980) prestigia Ziraldo escrevendo na contracapa

do livro a seguinte declaração:

Uma delícia das mais deliciosas esse menino maluquinho que o Ziraldo inventou. Este menino que tem cara do irmão que a gente queria ter, do amigo do peito muito do bem escolhido. Porque de maluquinho ele não tem é nada ... é um menino divertido, solto, com um cuca muito saudável. inventor de invenções ótimas, curtidor de tudo que é gostoso, sabedor do que precisa se saber e até poeta. Um menino mesmo, daqueles que a gente conhece e ama de cara; Eu, pelo menos, me apaixonei por ele, de paixão perdida ...

Mas é claro que esse menino também chorava se entristecia também

precisava de seus momentos de solidão, de se trancar no quarto por muito

tempo até ter clareza da situação ou das aflições. Um livro que se refere a uma

criança muito amada contente, que se interessa por muita gente, por muitas

coisas, por muitas atividades ... Que sabe estar consigo e com os outros e que

sobretudo sabe viver ( sem achar que isso significa campo florido, em eterna

primavera onde só acontecem coisa boas, calmas, e onde nada se altera ... )

Não, tudo se altera e, como ele sabe encarar as diferentes situações da vida,

consegue crescer e perceber o quanto tinha sido feliz em sua meninice

estouvada, vibrante e cheia de vida.

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Ziraldo em seus livros, especialmente em O Menino Maluquinho, traz

para o leitor uma criança que não cabe nos limites da concepção moderna de

infância extrapolando a idéia de criança como filhote do homem, como ser que

precisa "crescer para aparecer". Muito pelo contrário, o livro mostra a criança

ativamente implicada na descoberta do mundo, tarefa que o "maluquinho"

enfrenta com alegria, humor, criatividade, sensibilidade, demonstrando que a

criança é um ser que tem lógica e forma próprias de construir conhecimentos e

valores que são bastante diferentes das formas próprias dos adultos e não

inferiores sob o ponto de vista qualitativo. Ziraldo, ao invés de apresentar a

criança sendo preparada para ser adulto no futuro, mostra a criança como "um

ser finito nele mesmo" (Ziraldo, 1997, p.83).

A criança tem que ser observada pelo adulto como um ser acabado, e não um vir-a-ser. Toda relação em que o adulto vê a criança como um vir-a-ser, angustia a criança. A ,frase mais terrível que você pode dizer sobre uma criança é " ... estou preparando me filho para o futuro", O que você está dizendo na realidade é: "Estou neurotizando meu filho", Você tem que preparar seu filho para o dia de hoje, porque o futuro é feito de uma porção de hojes. (Idem, ibidem).

Carlos Drumond de Andrade completa essa idéia dando seu depoimento

para contracapa do livro: "Ziraldo tá com a razão, Infância verdadeira é isso

que ele conta em figura e verso gostosos que nem torta de chocolate. Quem

viveu assim, sabe. E quem não viveu... que pena!”

O Menino Maluquinho traduz o mundo da criança que vai constituindo

sua identidade a partir de suas relações com o Outro - crianças e adultos - e

com os objetos do meio circundante, dos acontecimentos e situações que

vivencia, observa e imagina. É por intermédio dessas relações que ela constrói

seus conhecimentos, significados e valores, o que lhe confere uma identidade

que é, ao mesmo tempo, individual e cultural.

Ziraldo trata infância como uma fase que deve ser bem aproveitada e

muito feliz como mostrou no livro.

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Era uma vez um menino maluquinho Ele tinha o olho maior que a barriga tinha fogo no rabo tinha vento nos pés umas pernas enormes (que davam para abraçar o mundo) e macaquinhos no sótão(embora nem soubesse o que significava macaquinho no sótão) Ele era um menino impossível!! Ele era um menino muito sabido Ele sabia tudo A única coisa que ele não sabia Era como ficar quieto seu canto Seu riso Seu som Nunca estavam onde ele estava, (Ziraldo, 1980, p. 7 a 14)

O menino maluquinho cresceu em uma família onde tinha liberdade para

criar suas próprias descobertas.

Na casa do maluquinho era assim: se tinha chuva, ele queria o sol, pois sabia onde achar o azul e o amarelo; se fazia frio, ele tinha uma transa quentinha para se aquecer; se tinha sombras, ele inventava de criar o riso, pois era cheio de graça; se de repente, ficasse muito vazio ele inventava o abraço, pois sabia onde estavam os braços que queria; se havia o silêncio ele inventava a conversa, pois havia sempre tempo para escutar o que o menino gostava de conversar; se tinha dor ele inventava o beijo aprendido em várias lições. E quando mais deixavam ele criar, mais o menino inventava, vestido de Doutor Silvana com óculos de aro grosso e jeito de maluquinho. (Ziraldo, 1980, p.40 a 47)

Ziraldo (1980, p.49, também trouxe em seu livro a importância de a

família co-participar no crescimento e brincadeira infantis.

E a pipa quem fazia era mesmo o menininho pois ele havia aprendido a amarrar linha e taquara a colar papel de seda e a fazer com polvilho o grude para colar

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a pipa triangular como o papai lhe ensinara do jeito que havia aprendido com o pai e o pai do papai.

E na casa da avó aproveitava mais ainda sua infância "Ele deitava e

rolava, pintava e bordava e se empanturrava de bolo e cocada, E ria com a

boca cheia e dormia cansado no colo da vovó, suspirando de alegria, E a vovó

dizia: "Esse meu neto é tão maluquinho!”

O autor (1980, p.84, 85 e 86) aborda sentimentos e situações que as

Crianças também passam como tristezas, angústias com a separação de seus

pais, mas também fala de como elas são capazes de superar essas difíceis

fases da vida.

E o menino maluquinho Era um menino tão querido Era um menino tão amado que quando deu de acontecer de o papai ir para um lado e a mamãe ir pro outro ele achou de inventar (pois tinha aprendido a criar) a Teoria dos Lados! "Todo lado tem seu lado Eu sou o meu próprio lado E posso viver ao lado Do seu lado, que era meu” Foi uma barra, é verdade. E é verdade, também Que pouca gente e a teoria maluca do menino maluquinho mas ele ria baixinho baixinho quando a saudade apertava pois descobriu que a saudade era o lado de um dos lados da vida que vinha ai.

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Ziraldo (1980, p.77 a 83) falou com simplicidade de como a infância

deveria ser, com tudo que a criança tem direito, peraltices, descobertas,

invenções, alegrias, tristezas, segredos, brincadeiras, curiosidades e mistérios.

Mas, o seu maior mistério todos sabiam de cor era o jeito que o menino tinha de brincar com o tempo . ... seu ponteirinho das horas vai ver era um ponteirão. E sobrava tempo Pra ler os gibis E sobrava tempo Pra colar figurinhas e para anotar nos livros de histórias e aventuras todas aquelas passagens em que ele virava o herói O tempo era assim pra ele: Fazia horas a mais.

Novos desejos e necessidades surgiram; novos desafios são lançados a

cada minuto e estes nos confrontam, o tempo todo, com o caráter de

provisoriedade do mundo contemporâneo.

Na era da globalização, quando o avanço tecnológico afasta mais e

mais os indivíduos, urna literatura que tenha essa concepção de infância vai,

então "privilegiar" o lado espontâneo, intuitivo, analógico e concreto da

natureza humana e ver seu leitor como um ser de desejos e pensamentos

próprios.

As histórias aumentam o horizonte dos ouvintes e leitores, semeando

imaginação, curiosidade e desejo. E para Ziraldo (vídeoVHS, 2002),

curiosidade é inteligência, "A grande palavra é curiosidade. A maioria dos

seres humanos nasce sem surpresas, sem questionamentos em relação ao

mundo ... "

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Para Gaummond (1999):

Ler pode provocar o inesperado. Pode fazer com que o homem crie atalhos para caminhos que devem necessariamente ser longos. Ler pode gerar a invenção. Pode estimular a imaginação de forma a levar o ser humano além do que lhe é devido. (p.7)

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Não é a isso que a leitura de “O menino maluquinho” leva? Ao

conhecimento inesperado de que a criança é sujeito social e cultural, criador e

recriador de história? Essa leitura não nos leva à vontade de reinventar a

concepção de criança que rege a maneira dos adultos se relacionarem com

ela? Ela não estimula nossa imaginação para levarmos a criança – ser humano

que é – para muito além do que essa concepção de infância lhe destinou?

Tudo indica que sim, uma vez que a literatura permite e enseja que os sujeitos

identifiquem sua história com outras histórias. Torna-os capazes de

compreender e aceitar o mundo do outro. E, assim, pode tornar o homem

perigosamente humano.

É por isso que cabe ao professor rever a literatura utilizada na sua

escola, afastando da sua prática a tendência a usar as histórias que tem por

objetivo modelar a criança.

Essas histórias fazem o aluno perceber que devem trabalh, ficar

contentes com o que possuem, ajudar, ser bonzinhos..., contribuindo para

formar crianças passivas, seguidoras de modelos e de normas, uma formação

inadequada para nossa época. Então, se faz necessário, que o professor

introduza na sua prática pedagógica a literatura que contribui para despertar a

imaginação e o poder de criação da criança, incentivando-a a inventar, a ir

além das amarras que lhe são impostas pelas teorias de desenvolvimento e

aprendizagem que restringem seu presente, limitando-o às ações compatíveis

com o seu nível de maturidade. Sobre os livros de cunho pedagogizante,

Ziraldo diz o seguinte: “Eu não faço livro didático, tenho pavor. Criança não

quer essa coisa, ela se sente traída quando o livro tem uma segunda intenção,

ela fica pau da vida”. (Vídeo VHS, 2002)

A literatura pode proporcionar fruição, alegria, encanto, sensibilidade,

pode fertilizar a imaginação e a criatividade. A literatura infantil que leva a isso

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homem, a vida, através da palavra. Manoel de Barros(2003), no fragmento “ O

apanhador de desperdícios”, incluído no livro em que o autor resgata suas

memórias da infância, diz: “Não gosto das palavras fatigadas de informar [...]

porque eu não sou da informática: eu sou da invencionática”.

Tudo indica que o sucesso d’ O menino maluquinho possa vir do fato

de que nele não há “palavras fatigadas de ensinar”, não há receita de como se

prepara uma criança para ser alguém no futuro e, por isso, o livro enseja a

invenção de uma outra concepção de infância, como a que Milton Nascimento

canta nos seguintes versos:

Bola de meia, bola de gude

Milton Nascimento

Há um menino, há um moleque, morando sempre no meu coração toda vez que o adulto balança ele vem pra me dar a mão.

Há um passado no meu presente, o sol bem quente lá no meu quintal toda vez que a bruxa me assombra o menino me dá a mão.

Ele fala de coisas bonitas que eu acredito que não deixarão de existir amizade, palavra, respeito, caráter, bondade, alegria e amor. Pois não posso, não devo, não quero viver como toda essa gente insiste em viver Não posso aceitar sossegado qualquer sacanagem ser coisa normal

Bola de meia, bola de gude, o solidário não quer solidão Toda vez que a tristeza me alcança o menino me dá a mão.

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