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UNIVERSIDADE DE CAXIAS DO SUL MAYARA ZANELLA DA ROSA RENOVAÇÃO DA LINGUAGEM JORNALÍSTICA: UM OLHAR SOBRE A GRANDE-REPORTAGEM EM QUADRINHOS PALESTINA CAXIAS DO SUL 2016

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UNIVERSIDADE DE CAXIAS DO SUL

MAYARA ZANELLA DA ROSA

RENOVAÇÃO DA LINGUAGEM JORNALÍSTICA: UM OLHAR SOBRE A GRANDE-REPORTAGEM EM QUADRINHOS PALESTINA

CAXIAS DO SUL 2016

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MAYARA ZANELLA DA ROSA

RENOVAÇÃO DA LINGUAGEM JORNALÍSTICA: UM OLHAR SOBRE A GRANDE-REPORTAGEM EM QUADRINHOS PALESTINA

Trabalho de conclusão de curso para obtenção do grau de Bacharel em Comunicação Social – Habilitação em Jornalismo da Universidade de Caxias do Sul. Orientadora Profª. Me. Marliva Vanti Gonçalves

CAXIAS DO SUL 2016

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MAYARA ZANELLA DA ROSA

RENOVAÇÃO DA LINGUAGEM JORNALÍSTICA: UM OLHAR SOBRE A GRANDE-REPORTAGEM EM QUADRINHOS PALESTINA

Trabalho de conclusão de curso para obtenção do grau de Bacharel em Comunicação Social – Habilitação em Jornalismo da Universidade de Caxias do Sul. Aprovada em: ____ / ____ / _____.

Banca examinadora ______________________________________________ Profª. Me. Marliva Vanti Gonçalves Universidade de Caxias do Sul ______________________________________________ Profª. Me. Adriana dos Santos Schleder Universidade de Caxias do Sul ______________________________________________ Profª. Dra. Ivana Almeida da Silva Universidade de Caxias do Sul

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Dedico este trabalho a todos os jornalistas que, como Joe Sacco, escolhem opor-se às injustiças e que, acima de tudo, são guiados pela honestidade e pela necessidade de dar voz aos oprimidos.

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AGRADECIMENTOS

Primeiramente, agradeço à pessoa mais importante da minha vida, minha

mãe, que nunca mediu esforços para que eu alcançasse tudo aquilo que desejo.

Absolutamente nada seria possível sem o seu apoio. Portanto, agradeço pelos

exemplos, pelas palavras de alento e incentivo, pelos abraços carinhosos e, acima

de tudo, pelo amor incondicional.

Sou grata ao restante de minha família, meu pai, irmã, avô e avó, pelo

amparo que me deram, cada um à sua maneira, durante esse período e também

pela preocupação que sempre tiveram comigo.

Ao meu namorado, Felipe, pelo amor, pela paciência, pelo companheirismo,

pelo incentivo, pelas “viagens” à biblioteca, por aceitar dividir os finais de semana

com a monografia e por compartilhar esse momento comigo.

Com carinho especial, agradeço à minha orientadora, Marliva Vanti

Gonçalves, pela calma com a qual trabalha, pelas correções minuciosas e também

pelos elogios, pelas palavras de sabedoria, pelos conselhos, pelo incentivo e por ser

a principal “parceira” na construção desse trabalho.

Às minhas amigas, tanto as que me acompanham desde o período de escola

quanto as que encontrei graças ao Jornalismo, especialmente Priscilla e Luciane,

companheiras nessa jornada.

Agradeço também a todos aqueles que, de alguma forma, contribuíram para

que eu chegasse ao final desse processo tendo elaborado algo do qual eu pudesse

me orgulhar. Muito obrigada!

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A arte de Sacco tem o poder de nos prender, de evitar que impacientemente nos afastemos em busca de um bordão ou de um desfecho satisfatório, triunfal e lamentavelmente previsível. E talvez seja esta sua maior realização. Edward Said

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RESUMO

Essa monografia analisa a construção da narrativa jornalístico-literária e quadrinística no livro-reportagem em quadrinhos Palestina, escrito pelo jornalista Joe Sacco e publicado, originalmente, em meados da década de 1990. Por meio da Análise de Conteúdo e da Análise de Discurso, foram exploradas nove páginas da obra, pertencentes às categorias visual, textual e de intersecção entre imagem e texto. A temática das páginas evidenciou o caráter jornalístico e quadrinístico de Palestina, bem como a importância da inserção do autor como personagem da história. Teoricamente, a pesquisa teve como base conceitos das áreas do Jornalismo e das histórias em quadrinhos, além do suporte concedido pelo conhecimento sobre o histórico de conflitos entre Israel e Palestina. Pretende-se, com esse trabalho, apresentar um produto que renovou, à sua maneira, a linguagem jornalística e, também, contribuir para futuras pesquisas nas áreas do Jornalismo e dos quadrinhos. Palavras-chave: Palestina; Jornalismo; histórias em quadrinhos.

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ABSTRACT

This monograph analyzes the structure of the journalistic literary and comic book narrative in the reporting-book Palestine, written by the journalist Joe Sacco and published, originally, in the mid 1990s. Through content and discourse analysis, nine pages were explored. They belong to three categories: visual, textual and intersection between images and text. The analyzed pages themes showed the journalistic and comics characteristics that are present in Palestine, as well as the importance of Sacco’s insertion as character in the story. Theoretically, the research was based on journalism and comic books concepts, and was also supported by the historic knowledge about the Israeli and Palestinian conflicts. With this work, it is intended to present a product that renewed, in its own way, the journalistic language and, also, contribute to future researches in the fields of Journalism and comic books. Key-words: Palestine; Journalism; comics.

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ................................................................................................... 10

2 JORNALISMO ................................................................................................... 23

2.1 ESSÊNCIA E HISTÓRIA ................................................................................. 23

2.1.1 Notícia x Reportagem ................................................................................. 31

2.2 JORNALISMO LITERÁRIO ............................................................................. 37

2.2.1 New Journalism .......................................................................................... 41

2.2.2 Livro-Reportagem ...................................................................................... 44

3 OS QUADRINHOS ............................................................................................. 48

3.1 UM MEIO ESSENCIALMENTE VISUAL ......................................................... 49

3.1.1 Imagem ........................................................................................................ 49

3.1.2 Narrativa Imagética .................................................................................... 53

3.1.3 Criar para os quadrinhos ........................................................................... 58

3.2 LIMIAR ............................................................................................................ 61

3.2.1 Era de ouro ................................................................................................. 70

3.2.2 Reducionismo ............................................................................................. 74

3.2.3 Pós 1960 ...................................................................................................... 76

4 PALESTINA ....................................................................................................... 81

4.1 OS DECENDENTES DE ISMAIL .................................................................... 81

4.2 ISLAMISMO X SIONISMO .............................................................................. 85

4.2.1 Histórico de conflitos ................................................................................. 87

5 METODOLOGIA ................................................................................................ 94

5.1 PESQUISA QUALITATIVA .............................................................................. 94

5.1.1 Pesquisa Bibliográfica ............................................................................... 95

5.1.2 Análise de Conteúdo .................................................................................. 96

5.1.3 Análise de Discurso ................................................................................... 97

5.2. APRESENTAÇÃO DE PALESTINA ............................................................... 98

5.2.1 Objetos da análise ...................................................................................... 99

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5.3 ANÁLISE ......................................................................................................... 110

5.3.1 Análise visual ............................................................................................. 110

5.3.2 Análise textual ............................................................................................ 116

5.3.3 Análise de intersecção entre imagem e texto .......................................... 123

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................... 129

REFERÊNCIAS ..................................................................................................... 134

ANEXO .................................................................................................................. 139

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1 INTRODUÇÃO

“Um garoto de pé na chuva, e o que ele está pensando?”, indaga o narrador.

“E se eu tivesse imaginado antes de chegar aqui e descobrisse, quase sem

surpresa, o que pode acontecer com alguém que pensa ter todo o poder [...] O que

acontece com alguém que acredita não ter poder algum?” (SACCO, 2011, p. 283). O

jornalista e quadrinista Joe Sacco seguiu algumas das premissas básicas do

Jornalismo e decidiu ser testemunha ocular das consequências enfrentadas pelo

povo palestino em decorrência dos conflitos com Israel. Joe Sacco nasceu em Malta

no ano de 1960, mas mudou-se para os Estados Unidos com 12 anos de idade.

Jornalista formado pela Universidade de Oregon – mas que sempre dedicou-se às

histórias em quadrinhos –, Sacco vivenciou o dia a dia da Palestina durante dois

meses, entre os anos de 1991-1992. Sua experiência e impressões revelam dois

lados de uma história que vem sendo contada há muito tempo: o daqueles que

subjugam e o dos subjugados. A “bagagem” conquistada durante a estadia deu

origem a um material jornalístico diferenciado: uma grande-reportagem, que chegou

ao público na forma de um livro-reportagem em quadrinhos, chamado Palestina1.

A obra foi publicada originalmente pela editora norte-americana Fantagraphics

Books, em edições de 24 e 32 páginas entre 1993 e 1995. Considerado como o

trabalho definitivo do autor, o livro rendeu a Sacco o American Book Awards de

19962. A ideia de partir para os territórios ocupados, no Oriente Médio, e conhecer

outros aspectos da realidade local surgiu, de acordo Sacco (2011), de uma espécie

de “obrigação” do repórter para com o “bom Jornalismo”. Vivendo nos Estados

Unidos, o jornalista decepcionou-se com o tratamento unilateral dado pela imprensa

estadunidense ao enfrentamento entre Israel e Palestina, que claramente favorecia

os sionistas3 e “desinformava” o público em relação às intenções dos árabe-

palestinos.

1 Nesta monografia, o nome da obra aparecerá grifado, para que a diferenciação entre o livro e o país

Palestina seja possível. 2 O American Book Awards é um prêmio literário entregue anualmente, que tem como único critério a

contribuição excepcional para a Literatura norte-americana. Fonte: Before Columbus Foundation. Disponível em: <http://www.beforecolumbusfoundation.com/american-book-awards/>. Acesso em: 17/03/2016. 3 O sionismo é um movimento político e religioso que tinha como objetivo a volta dos judeus para a

Terra Santa, na Palestina, lugar do qual acreditavam ser, por direito histórico e religioso, os verdadeiros donos (CHEMERIS, 2002). Disponível em: <http://www.pucrs.br/ffch/neroi/mono_revista.pdf>. Acesso em: 17/03/2016.

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Palestina poderia ser considerada uma típica produção jornalístico-literária,

carregada de subjetividade, revigorante e com ênfase em seus meios de expressão,

não fosse pelo fato que a torna inovadora e também híbrida: a união das narrativas

jornalística e quadrinística. Joe Sacco não contenta-se em escrever sua reportagem,

ele também a desenha. Aliar os quadrinhos às ferramentas do Jornalismo

possibilitou a otimização do material recolhido pelo jornalista durante sua estadia no

território palestino. Além de utilizar o texto para reproduzir a fala dos seus

entrevistados e seu próprio ponto de vista sobre o que estava vivenciando, Sacco

transmite, através das imagens, aspectos – tanto geográficos quanto emocionais –

que não poderiam ser transcritos.

Joe Sacco não foi o primeiro jornalista a escrever sobre o conflito Israel X

Palestina. Desde a divisão do território palestino, que resultou na criação do Estado

de Israel, em 1948, passando pela primeira e segunda Intifada palestina4, em 1987 e

2000, respectivamente, o assunto foi debatido pela mídia mundial sob os mais

diversos pontos de vista. Portanto, a pauta sobre a qual o jornalista decidiu

debruçar-se não era exatamente nova. Mesmo não tendo a novidade como um dos

seus valores-notícia – critérios com base nos quais o repórter decide o que se

tornará notícia –, era possível tornar a história palpitante, afinal, “a novidade nem

sempre é atual e a atualidade nem sempre é nova” (PENA, 2008, 9. 39). Ricardo

Kotscho (1995, p. 18, apud PENA, 2008, p. 39) afirma, em referência a pautas, que

“qualquer assunto serve se pudermos, por meio dele, mostrar algo novo que está

acontecendo, ainda que o tema seja batido”.

A originalidade e o frescor trazidos por Sacco não vieram apenas pela

utilização dos quadrinhos como meio de transmissão, mas também pelo viés dado

ao texto: em uma das poucas vezes na história, o povo palestino ganhou voz em vez

de “representatividade”. De acordo com Edward Said5

O fato é que os “árabes” eram sempre representados, nunca podiam falar por si mesmos; somando esse fato, paradoxalmente, a uma visibilidade política cada vez mais patente, explica-se por que lhes é negado

4 O termo Intifada é usado para referir-se à reação palestina à ocupação israelense de territórios em

Gaza e na Cisjordânia (RIBEIRO, 2003). Disponível em: <http://www.pucminas.br/imagedb/conjuntura/CNO_ARQ_NOTIC20060515152626.pdf/>. Acesso em: 17/03/2016. 5 Edward Said, palestino radicado nos Estados Unidos, foi teórico literário, escritor e professor da

Universidade de Columbia. De acordo com Sacco, seus livros o reeducaram em relação à Palestina. Said também contribuiu com o livro-reportagem, escrevendo o prefácio da edição de 2001. Fonte: Palestina.

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esmagadoramente um lugar decente na realidade – ainda que estejam instalados na terra. Por exemplo, a Organização para a Libertação da Palestina (OLP) é reconhecida por mais de cem países e, é claro, por todos os palestinos como o único representante legítimo do povo palestino; no entanto, nem os Estados Unidos nem Israel admitem que a OLP representa os palestinos. Ao contrário, Camp David atribuiu indevidamente o direito de representação palestina aos Estados Unidos, a Israel e ao Egito. (SAID, 2012, p. 29)

O testemunho do jornalista apresentou ao público uma visão inédita sobre a

região. Uma notícia impressa na página principal de um jornal de grande circulação

e notoriedade não seria capaz de abarcar a pluralidade de vozes do povo palestino

presentes na história, há tanto tempo caladas. Esse fator explica a opção de Sacco

pela reportagem.

Há contrastes básicos entre notícia e reportagem. A primeira é chamada de

“matéria-prima do jornalismo” pelo autor Luiz Amaral (apud PENA, 2008).

Considerada como uma forma de denúncia, a ela cabe o papel de tornar público,

“anunciar determinado fato” (SODRÉ; FERRARI, 1986, p. 17). A construção de uma

notícia segue a estrutura narrativa da Pirâmide Invertida, ou seja, “escala em ordem

decrescente os elementos mais importantes [...] de modo a apresentar inicialmente

os mais atraentes, terminando por aqueles de menor apelo” (PENA, 2008, p. 48).

A reportagem, por sua vez, é um relato ampliado. Muniz Sodré e Maria

Helena Ferrari (1986, p. 9) a consideram a forma mais extensa da narrativa

jornalística. Para os autores, ela é “um gênero jornalístico privilegiado”, no qual são

narradas as peripécias da atualidade. Uma reportagem pode nascer de uma notícia.

Entretanto, existem diferenças entre noticiar e reportar, pois um fato

só ultrapassará o mero registro se envolto em circunstâncias que conduzirão o leitor a um posicionamento crítico, revelando-lhe ângulos insuspeitados, salientando outros apenas entrevistos – enfim, iluminando e ampliando a visão sobre determinado assunto. (SODRÉ; FERRARI, 1986, p. 36)

A reportagem “ganhou força” na década de 1920, nos Estados Unidos, apesar

de já fazer parte do cenário jornalístico desde o século XIX, quando a modernização

da imprensa impôs modificações ao modelo de Jornalismo vigente. Na época, a

superficialidade do material que circulava nos veículos diários, focados na

objetividade das notícias, criou no público uma necessidade de informações de

profundidade, de um “tratamento informativo de maior qualidade” (PEREIRA LIMA,

2008, p. 19). O primeiro repórter a destacar-se no gênero foi o estadunidense Skeets

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Miller6. O jornalista narrava em suas reportagens aspectos específicos provenientes

de sua interação com os principais personagens e com o ambiente dos

acontecimentos, elaborando um material que se enquadra na definição de

reportagem formulada por Marcelo Bulhões (2007, p. 45). Para o autor, ela propõe-

se a detalhar os fatos, estabelecendo suas motivações e consequências, e “constrói-

se com a apuração laboriosa das informações, por meio de entrevistas e da consulta

a diferentes versões”.

Por sua extensão, abrangência e intensidade, algumas de suas principais

características narrativas, a reportagem é mais facilmente encontrada no âmbito do

Jornalismo Literário. No que tange às trajetórias, tanto do Jornalismo quanto da

Literatura, é correto afirmar que uma parece seguir o caminho oposto da outra. Isso

ocorre porque as transformações sofridas pelo Jornalismo ao longo dos séculos

mostram, claramente, uma vontade cada vez maior de firmar um compromisso

manifesto com a objetividade e com a factualidade. Enquanto isso, a Literatura

sempre foi um espaço de criação, no qual o imaginário e a fantasia se sobrepõem à

realidade. Portanto, “se a literatura habita o espaço permissivo da ficcionalidade, o

jornalismo parece ter diante de si o horizonte prescritivo daquilo que é razoável,

crível ou admissível” (BULHÕES, 2007, p. 25-26).

Para Felipe Pena (2006, p. 21) o Jornalismo Literário é um gênero jornalístico.

“Ao juntar os elementos presentes em dois gêneros diferentes, transformo-os

permanentemente em seus domínios específicos, além de formar um terceiro

gênero”. Neste sentido, ele pode ser considerado a junção de técnicas jornalísticas e

expressões literárias. Chamado também de “literatura da realidade”, o gênero

apresenta um texto que permite ao jornalista utilizar uma linguagem elaborada,

capaz de evocar no leitor a emoção não proporcionada pelas notícias factuais.

Apesar de “abraçar” a subjetividade da Literatura, em vez de focar-se na

busca idealizada pela objetividade, o gênero não abandona os recursos do

Jornalismo diário; ele os potencializa. “Os princípios da redação continuam

extremamente importantes, como [...] a apuração rigorosa, a observação atenta, a

abordagem ética e a capacidade de se expressar claramente” (PENA, 2006, p. 14).

6 William Burke “Skeets” Miller foi um repórter estadunidense do Courier Journal, de Louisville,

vencedor do prêmio Pulitzer por sua cobertura da história de Floyd Collins. Fonte: Chicago Tribune. Disponível em: < http://articles.chicagotribune.com/1987-12-14/features/8704020930_1_floyd-collins-sand-cave-rescue>. Acesso em: 21/02/2016.

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O gênero apareceu como uma forma de revigorar os textos “quadrados”

produzidos diariamente, de acordo com a fórmula do lead – ou lide. Esta é uma

estratégia narrativa que surgiu com o intuito de tornar a imprensa mais ágil e

pragmática. O lead indica que a principal informação do texto deve ser a primeira a

aparecer, mas ele também deve apresentar “as circunstâncias de tempo, lugar,

modo, causa, finalidade e instrumento” (LAGE, 2003, p. 18-19).

O conteúdo do Jornalismo Literário, neste caso exemplificado pela

reportagem, demanda mais tempo, pesquisa, gastos e aprofundamento para ser

produzido do que as notícias diárias. Entretanto, quando o acontecimento permite

uma abordagem ainda mais incrementada, há uma ramificação da reportagem que

possibilita um tratamento informativo de maior qualidade: a reportagem ampliada ou,

como é chamada nesta monografia, grande-reportagem. Tratando-se da forma de

construção, a reportagem e a grande-reportagem não diferem substancialmente uma

da outra. Entretanto, a segunda oferece ainda mais amplitude nos relatos do que a

primeira.

O jornalista que adentra o mundo das grandes-reportagens carrega a

responsabilidade de apresentar um material extremamente aprofundado, rico em

fontes e pontos de vista, capaz de transportar as pessoas para os lugares dos quais

fala, fazê-las identificarem-se com os “personagens” da história que está contando e,

além disso, fazê-las entender as origens, motivos e implicações dos fenômenos

narrados, ou seja, trabalhar o contexto. O profissional deve atuar “dentro do fato”,

afinal, “é nadando que melhor poderá informar sobre as ondas” (LIMA, 1990, p. 60).

A prática da grande-reportagem

possibilita um mergulho de fôlego nos fatos e em seu contexto, oferecendo a seu autor [...] uma dose ponderável de liberdade para escapar dos grilhões normalmente impostos pela fórmula convencional do tratamento da notícia. (PEREIRA LIMA, 2004, p. 18)

Ricardo Kotscho (2001, p. 71) vai além e explica que a grande-reportagem

não recebe esse nome apenas pelo espaço que ocupa em uma publicação, mas

também porque “significa um grande investimento, tanto em termos humanos, para o

repórter, como financeiros, para a empresa”. O investimento humano pode ser

traduzido como compromisso e responsabilidade, já que “é um momento em que

você não pode errar, não tem o direito do fracasso” (KOTSCHO, 2001, p. 72).

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Contudo, a mais bela e bem estruturada grande-reportagem está sujeita a

sofrer com fatores como tempo e espaço, capazes de “ditar as regras” em uma

redação de jornal diário e até mesmo de uma revista especializada. Inevitavelmente,

há um prazo para que sejam realizadas e um espaço limitado para sua publicação.

Esses elementos, que nestes casos podem ser chamados de “contratempos”, geram

brechas no conteúdo final. Ou seja, o jornalista não consegue relatar os fatos

minuciosamente ou tecer comentários e levantar argumentos capazes de respaldar

seu ponto de vista e suscitar a reflexão do leitor.

Assim sendo, há uma terceira figura do universo jornalístico capaz de abarcar

a grandiosidade de uma grande-reportagem e toda sua multiplicidade de ângulos,

chamada de livro-reportagem. Para Edvaldo Pereira Lima, ele cumpre

um relevante papel, preenchendo vazios deixados pelo jornal, pela revista, pelas emissoras de rádio, pelos noticiários da televisão, até mesmo pela internet [...] Mais do que isso, avança para o aprofundamento do conhecimento do nosso tempo, eliminando, parcialmente que seja, o aspecto efêmero da mensagem da atualidade praticada pelos canais cotidianos da informação jornalística. (PEREIRA LIMA, 2004, p. 4)

Há pouco mais de um século, esse fruto do “namoro” entre Jornalismo e

Literatura tem sido usado, em diversas partes do mundo, como uma ferramenta para

a reprodução de grandes histórias. Para Maria Helena Ferrari e Muniz Sodré (1986,

p. 94), “o livro-reportagem pode ser a simples compilação de textos já publicados em

jornal ou o trabalho feito para livro, mas concebido e realizado em termos

jornalísticos”. No Brasil, Os Sertões (1902), de Euclides da Cunha, pode ser

considerado um dos primeiros livro-reportagens publicados. Vidas Secas (1938), de

Graciliano Ramos, também é um dos mais bem sucedidos exemplares produzidos

no país. Marcelo Bulhões (2007, p. 133) diz que o livro se configura “pelos embates

tensos e diretos com realidades sociais deterioradas”. E prossegue: “Para

Graciliano, um escritor não pode escrever sobre o que não viveu ou não conheceu

em profundidade”.

Outras notáveis e complexas histórias foram abrigadas em brochuras por

autores do movimento chamado de New Journalism, como Tom Wolfe e Truman

Capote. O “Novo Jornalismo” surgiu nos Estados Unidos, nos anos 1960. De acordo

com Wolfe (2005), responsável por elaborar o manifesto do movimento, o New

Journalism surgiu em decorrência de uma ideia que tomou conta dos repórteres da

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época: o Jornalismo poderia ser escrito para ser lido como um romance. Wolfe

também explica que

os inovadores da imprensa – e logo do livro-reportagem, que vai abrigar com muito mais intensidade a nova produção – descobrem que não há como retratar a realidade senão com cor, vivacidade, presença. Isto é, com mergulho e envolvimento total nos próprios acontecimentos e situações, os jornalistas tentando viver, na pele, as circunstâncias e o clima inerente ao ambiente de seus personagens. (WOLFE, 1973, apud PEREIRA LIMA, 2004, p. 122)

Com as obras do movimento, principalmente as grandes-reportagens em

veículos de imprensa e os livros-reportagens, o Jornalismo “respirou novos ares" e,

mais do que nunca, os repórteres utilizaram-se das práticas literárias em suas

criações. Para Bulhões (2007, p. 145) o New Journalism “afrontou os limites

convencionais do fazer jornalístico, fazendo barulho, quebrando vidraças dos

gabinetes [...] e lançando um legado cujas marcas ainda hoje se reconhecem”. Uma

das principais marcas, capaz de atingir a perenidade – atributo alheio às produções

do Jornalismo diário – foi a obra A Sangue Frio, de Truman Capote. Apesar do

reconhecimento como um dos mais importantes trabalhos do “Novo Jornalismo”,

Capote sempre foi enfático ao afirmar que sua obra tratava-se, na verdade, de um

romance de não-ficção.

A Sangue Frio foi publicado em 1966. O livro conta a história do assassinato

da família Clutter, ocorrido em 15 de novembro de 1959. As quatro vítimas viviam na

cidade de Holcomb, no estado do Kansas, Estados Unidos. O escritor ficou sabendo

do crime por meio de uma pequena notícia no New York Times, que despertou seu

interesse. Capote seguiu até Holcomb, local no qual permaneceu durante muito

tempo, coletando informações sobre a família com amigos, parentes, vizinhos e até

mesmo com os dois assassinos, Dick Hickock e Perry Smith – do qual tornou-se

amigo.

Na produção da obra, o autor esbanjou criatividade e ousadia na captação

dos dados. Durante o tempo em que passou em Holcomb, Capote não utilizou,

sequer uma única vez, um gravador para registrar os diálogos que acabariam sendo

transformados em livro. Sua memória e as relações criadas com as fontes foram os

únicos recursos aos quais recorreu para escrever. A inovação na elaboração desse

livro-reportagem – ou romance de não-ficção – abriu portas para que diversos

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repórteres explorassem, anos após a “explosão” do New Journalism, novas formas

de renovar e revigorar os conteúdos do Jornalismo.

Joe Sacco, para elaborar Palestina, não fez como Capote e abandonou as

formas tradicionais de entrevista, mas sim as “abraçou”. Munido das ferramentas

mais triviais que um repórter pode carregar – um bloco e uma caneta – ele

transcreveu os principais pontos de suas conversas para o papel. Além disso,

carregou consigo, em todos os momentos, uma câmera fotográfica, com a qual

registrou desde revoltas e conflitos, até a arquitetura da cidade. Tanto seu texto

quanto suas fotografias provaram-se fundamentais na criação do livro-reportagem.

Sacco não relata apenas falas marcantes do oprimido povo palestino, mas também

desenha episódios capazes de acrescentar ao entendimento sobre a realidade local.

Tais desenhos são típicos das histórias em quadrinhos. Ao optar pela narrativa

quadrinística, à qual se dedicava desde a época de escola, o jornalista aposta em

uma linguagem conhecida por reproduzir assuntos de menor densidade para retratar

um lado sombrio da humanidade e contar uma história de sofrimento e dor.

Há milênios, aprendeu-se a contar histórias. Desde o início dos tempos,

quando o homem desenvolveu a habilidade de se comunicar, existiram formas de

transmitir e perpetuar acontecimentos, valores e ideais. Nos primórdios da

civilização, antes do surgimento das linguagens oral e escrita, o principal método de

contar histórias era por meio de imagens. As paredes das cavernas pré-históricas

continham desenhos, muitos que até hoje não foram decifrados. Entretanto, todos

eles contam uma história, mesmo os que não se conseguiu traduzir o conteúdo. A

imagem sempre significou para o homem um desejo de perpetuação. Com a

evolução, passou-se a “perpetuar” os acontecimentos de outras formas7. O tempo

fez com que a informação contida nas pedras das cavernas fosse transferida e

multiplicada no papel, nas páginas de livros e, mais tarde, de jornais.

Mesmo contando com a oralidade e com a escrita, o desenho não foi

“abandonado” pelo ser humano. Pode-se dizer que as imagens ainda constituem

uma forma extremamente eficaz de contação de histórias. As histórias em

quadrinhos são um exemplo do desenvolvimento desse meio de comunicação. O

quadrinista Scott McCloud (2005) afirma não ter ideia de quando as histórias em

7 Este conteúdo foi abordado durante aula da disciplina de Artes Visuais do curso de Tecnologia em

Fotografia da Universidade de Caxias do Sul, ministrada pela professora Silvana Boone, no dia 03/03/2016.

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quadrinhos surgiram. Porém, ele destaca um evento igualmente importante para a

palavra escrita e para os quadrinhos: a invenção da imprensa. De acordo com o

autor, o acontecimento democratizou as formas de arte que antes estavam ao

alcance apenas das classes mais abastadas da sociedade. Apesar de não discorrer

sobre a invenção, McCloud (2005, p.9) concebeu uma definição em termos técnicos

para os quadrinhos: “imagens pictóricas e outras justapostas em sequência

deliberada destinadas a transmitir informações e/ou a produzir uma resposta no

espectador”.

Mesmo concordando quanto à importância do advento da imprensa, Will

Eisner, quadrinista essencial para o desenvolvimento das histórias em quadrinhos,

sabe precisar a época de origem da linguagem. Segundo Eisner (2013), os

quadrinhos “nasceram” das tiras dos jornais diários, na primeira metade do século

XX. Alguns anos mais tarde, durante a Segunda Guerra Mundial, tornaram-se

extremamente populares nos Estados Unidos, principalmente entre as crianças, pois

eram um veículo acessível até mesmo às classes sociais mais baixas,

economicamente falando (EISNER, 2013). Como recorda o escritor estadunidense

Christopher Knowles (2007, p. 18), as revistas em quadrinhos transformaram-se em

um dos passatempos preferidos do publico mais jovem, pois eram “baratas e

descartáveis”. Knowles também afirma que, além de ocuparem o tempo livre, os

gibis – como ficaram conhecidas as revistas em quadrinhos – despertavam nas

crianças o amor pela leitura.

Naquela época, os super-heróis e seus contos de ação “reinavam absolutos”.

Entretanto, outros gêneros, como a comédia e o suspense, também apareceram nos

quadrinhos. Os tipos das histórias contadas com a utilização do meio gráfico são

diversos. Por meio de métodos diferentes, pode-se narrar uma história instrutiva, de

vida, simbolista ou até mesmo sem trama. Entretanto, mesmo possuindo um leque

extenso de possibilidades de aplicação e um espaço cativo entre os leitores, os

quadrinhos ainda pleiteiam seu reconhecimento como um veículo legítimo. Eisner

(2013) explica que muitos críticos pensavam que o meio não seria capaz de

desenvolver conteúdos mais “sérios” e relevantes.

Parte do preconceito em relação aos quadrinhos deve-se à predominância

das imagens nas histórias; imagens essas acusadas de desviar o foco do enredo

literário e de inibir a imaginação. O texto imagético surgiu muito antes do texto

escrito e possui como uma de suas principais características o fato de poder ser lido

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universalmente. Por essa razão, as histórias em quadrinhos são classificadas como

“de fácil leitura” e “associadas a uma parcela da população de baixo nível cultural e

capacidade intelectual limitada” (EISNER, 2013 p. 7). Entretanto, essa afirmação

pode ser rebatida com facilidade.

Apesar de tratar-se de uma linguagem predominantemente imagética, os

quadrinhos requerem uma leitura que se dá, ao mesmo tempo, “de forma múltipla e

simultânea” (CIRNE, 2000, p. 25). Além disso, eles exigem do leitor uma capacidade

de preencher lacunas relacionadas ao espaço e ao tempo das histórias. Ao imaginar

tais sequências, o leitor torna-se “participante”. No cinema – outra forma de narrativa

gráfica8, porém já estabelecida e reconhecida artisticamente –, o espectador é

passivo, pois recebe o conteúdo pronto para ser “consumido”.

Diferenças à parte, é correto afirmar que as histórias em quadrinhos

apropriam-se de características de outras linguagens, como o próprio cinema, o

desenho, a fotografia e a literatura. Não obstante, o meio possui natureza e atributos

próprios, tal como a forma de leitura “interativa”. Esses elementos as configuram

como uma linguagem independente e emancipada. O estudioso de quadrinhos

Daniele Barbieri (1998, apud RAMOS, 2009) defende a premissa que as diferentes

formas de linguagem não estão isoladas, mas sim, interconectadas. O que, na

realidade, não diminui a autenticidade de cada uma delas. “Os quadrinhos são os

quadrinhos. E, como tais, gozam de uma linguagem autônoma, que usa

mecanismos próprios para representar os elementos narrativos” (RAMOS, 2009, p.

17).

Mesmo na construção de um produto quadrinístico deve-se levar em conta

outras formas de linguagem, pois elas irão influenciar diretamente na forma de

entendimento da obra. “Nenhum narrador deve ignorar o fato de que o leitor tem

outras experiências de leitura. Os leitores são expostos a outras mídias e cada uma

delas tem seu próprio ritmo” (EISNER, 2013, p. 73). Contudo, mais do que a forma

de construção da narrativa ou a qualidade do traço e da coloração de um quadrinho,

o que mais importa ao leitor, e o que o fará realmente interpretar a obra, é a

capacidade de se identificar com a história. Já dizia Eisner que

8 Nesta monografia será utilizada a definição de narrativa gráfica estabelecida pelo autor Will Eisner

(2013): uma descrição genérica de qualquer narração que usa imagens para transmitir ideias. Os filmes e as histórias em quadrinhos se encaixam na categoria das narrativas gráficas.

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uma audiência está sempre interessada nas experiências de alguém com quem ela é capaz de se relacionar. Há uma coisa muito particular que acontece ao leitor enquanto ele “partilha” a experiência de ator. A palavra chave é “partilhar” porque os sentimentos do protagonista são compreensíveis para o leitor, que teria emoções similares nas mesmas circunstâncias. (EISNER, 2013, p. 90)

Os primeiros heróis a estamparem as páginas dos gibis na primeira metade

do século passado – assim como o Fantasma (1936), de Lee Falk, ou The Spirit

(1940), de Will Eisner –, os membros da família Clutter, “personagens” de A Sangue

Frio, e o garoto palestino hostilizado por guardas israelenses, de Palestina, apesar

das diferenças “gritantes” em seus perfis, são capazes de despertar nos leitores um

mesmo sentimento, inerente a todos os seres humanos: a empatia. Nos três casos,

ela pode ser utilizada como fio condutor da história ou como uma ferramenta para

atrair o leitor. Para Eisner (2013, p. 51) “a habilidade de “sentir” a dor, o medo ou a

alegria de alguém dá ao narrador a capacidade de despertar um contato emocional

com o leitor”. No caso de Palestina, o que permite ao jornalista Joe Sacco despertar

a empatia em sua audiência, mais do que sua habilidade narrativa, é a sua

sensibilidade de repórter. Philippe Gaillard explica que

o repórter é um jornalista enviado a um lugar para ver, ouvir, sentir, anotar e, finalmente, relatar o acontecimento. Mas não bastam os elementos assim colhidos do testemunho: o jornalista deve compreender, tão perfeitamente quanto possível, aquilo de que é testemunha, a fim de que o leitor possa compreender também. (GAILLARD, 1974, p. 50)

Portanto, seu olhar jornalístico permitiu que destacasse os principais aspectos

reveladores dos valores e crenças do povo palestino. Ainda assim, é valido destacar

que o mérito da grande-reportagem está na escolha das fontes, responsáveis por

representar as aflições e desejos dos que não foram ouvidos. “Suas ações vão

mapeando os significados do mundo, descobrindo relações e mostrando os sistemas

de conhecimento e comunicação” (SILVA, 2006, p. 93).

Aliando as principais características das linguagens dos quadrinhos e do

Jornalismo – e também do Jornalismo Literário – Sacco criou uma obra híbrida, um

produto de vanguarda, que representa uma nova faceta do Jornalismo

contemporâneo e uma forma de renovação e oxigenação do meio. Sendo assim,

tendo como base a exploração de novas formas de contação de histórias de cunho

jornalístico a partir dos quadrinhos, surge o questionamento em relação às suas

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formas de produção. Como é construída a narrativa jornalístico-literária no livro-

reportagem em quadrinhos Palestina?

O objetivo geral deste estudo é analisar as narrativas quadrinísticas, com

base em Palestina, enquanto atividade jornalística. Para esse fim, pretende-se

conceituar histórias em quadrinhos e Jornalismo, bem como as características

específicas de cada linguagem; definir Jornalismo Literário e abordar suas

ramificações; caracterizar um Jornalismo híbrido, fruto da junção com o universo das

histórias em quadrinhos; Analisar imagens e textos de Palestina, procurando

evidenciar a importância da imagem e das técnicas jornalísticas na construção do

discurso de Joe Sacco.

Os métodos escolhidos para o estudo de Palestina são a Análise de

Conteúdo, que pode ser definida como “um conjunto de instrumentos metodológicos

[...] que se aplicam a discursos extremamente diversificados” (BARDIN, 2011, p. 9),

e a Análise de Discurso, que refuta a ideia de que o discurso é uma forma de

reflexão neutra e o trata como uma peça essencial na construção da vida social

(BAUER; GASKELL, 2008, p. 247). Além disso, as análises serão fundamentadas

pela Pesquisa Bibliográfica na literatura existente sobre os temas de interesse para

esta monografia.

As seguintes afirmações são apresentadas como hipóteses da pesquisa:

1. A utilização da narrativa em quadrinhos para a construção de uma grande-

reportagem significa uma renovação na linguagem jornalística no âmbito do

Jornalismo Literário;

2. O livro-reportagem em quadrinhos Palestina é um produto jornalístico híbrido,

no sentido de que é o resultado da mistura de diferentes linguagens;

3. As imagens são fundamentais na construção da narrativa jornalístico-literária

de Joe Sacco em Palestina;

4. Os depoimentos descritos no livro-reportagem Palestina permitem ao leitor

um entendimento dos aspectos sociais, religiosos e históricos que influenciam

diretamente nos conflitos entre os palestinos e israelenses;

5. A imersão na situação sobre a qual se está reportando é imprescindível para

a construção de um livro-reportagem, pois para entender as circunstâncias do

acontecimento, o jornalista precisa vivê-las.

Esta monografia está dividida em cinco capítulos. No primeiro deles, são

retratados o Jornalismo e seus produtos mais notáveis, a notícia e a reportagem,

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debruçando-se sobre o Jornalismo Literário e suas especificidades, como as

grandes-reportagens, os livros-reportagens e o movimento New Journalism. O

segundo capítulo aborda as histórias em quadrinhos; descreve suas origens, as

aponta como uma linguagem autônoma, destacando as peculiaridades de sua forma

de narrativa, e elenca trabalhos que mostram que sua abrangência vai além das

estórias de super-heróis.

O terceiro capítulo conta a história da Palestina, explana sobre aspectos

históricos, sociais e religiosos responsáveis pela atual situação do país do Oriente

Médio, bem como resume a história do conflito entre os árabes palestinos e os

sionistas. O quarto capítulo é destinado à metodologia e à análise do objeto de

estudo. Nele, são esmiuçadas as fases da execução da análise, que inclui desde a

pesquisa e revisão do material bibliográfico até a Análise de Conteúdo e de

Discurso, com base nas descrições prévias de Jornalismo, com ênfase no

Jornalismo Literário, e histórias em quadrinhos. No quinto e último capítulo dessa

monografia constam as percepções e considerações finais da pesquisadora.

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2 JORNALISMO

Cidade de Nova Iorque, Estados Unidos, 11 de setembro de 2001. Em

decorrência do atentado às Torres Gêmeas, coube ao Jornalismo inaugurar o século

XXI. Durante a cobertura midiática, veículos de comunicação oriundos de todas as

partes do mundo realizaram as funções pelas quais são conhecidos na

contemporaneidade: “por suas lentes midiáticas, reconstruíram os acontecimentos

diversas vezes, mas ofereceram ao mundo a ideia de que o que estavam vendo era

o espelho da realidade” (PENA, 2008, p. 10). O Jornalismo surgiu com o intuito de

“iluminar”, ou seja, de trazer esclarecimento, tanto político quanto ideológico, de

expor, de acabar com o monopólio do segredo e oferecer ao público a verdade

sobre os fatos (MARCONDES FILHO, 2002).

Contudo, ao longo do tempo, diversos acontecimentos e transformações

moldaram o fazer jornalístico e geraram variadas ramificações. Neste capítulo, o

foco é o Jornalismo. Portanto, aborda-se desde sua origem até o modelo vigente da

profissão; apresentam-se dois “produtos”, os quais são destacados como os

principais do Jornalismo: a notícia e a reportagem. Também discorre-se sobre o

gênero Jornalismo Literário, com ênfase no movimento New Journalism e nos livros-

reportagens. Além disso, a profissão de repórter e as diversas funções que a ele são

atribuídas obtém destaque.

2.1 ESSÊNCIA E HISTÓRIA

Definir Jornalismo, algo específico e ao mesmo tempo tão abrangente, não é

uma tarefa simples. Muitos conceitos foram elaborados, no decorrer dos anos, por

incontáveis estudiosos da área. Geralmente, a “paixão” que move aqueles que o

escolhem como profissão leva a manifestações de cunho mais poético, como esta:

“o Jornalismo é a síntese do espírito moderno: a razão impondo-se diante da

tradição obscurantista, o questionamento de todas as autoridades [...] e a confiança

irrestrita no progresso” (MARCONDES FILHO, 2002, p. 9). Com uma visão mais

abrangente, Nelson Traquina (2004, p. 19) afirma que o Jornalismo “é a vida, tal

como é contada nas notícias de nascimentos e de mortes [...] É a vida em todas as

suas dimensões, como uma enciclopédia”.

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Da vida aos campos de guerra, Clóvis Rossi (1994, p.7), por sua vez, o define

como uma “batalha pela conquista das mentes e corações de seus alvos: leitores,

telespectadores ou ouvintes [...] que usa uma arma de aparência extremamente sutil

e inofensiva: a palavra”. Ainda segundo o autor, a palavra pode, como a história

provou, ser usada como meio de doutrinação, alienação, dominação. Entretanto, o

surgimento do Jornalismo moderno a libertou de suas correntes e fez com que ela

passasse a “alumiar o caminho”, expondo a realidade do mundo com a máxima

verossimilhança. Entretanto, enquanto uns trabalham com definições, outros buscam

escancarar a natureza do ofício. Para Felipe Pena (2008, p. 23) a essência do

Jornalismo está atrelada ao medo. Ele diz que “a simples perspectiva de não ter a

menor ideia do que se passa ao nosso redor, seja qual for o perímetro, nos dá um

frio na barriga e aterroriza nosso imaginário”.

Esse medo inspira nos homens o desejo de estar, em todos os momentos do

dia, atualizados. Ele também gera a necessidade de consumir informação. É por

isso que, “todas as manhãs, as pessoas que querem saber o que está acontecendo

no mundo leem o jornal, escutam a rádio, veem a televisão, ou navegam pela

internet. Esses indivíduos consomem uma mercadoria especial: as notícias”

(ALSINA, 2009, p. 9). A existência das notícias é mais antiga do que a do próprio

Jornalismo. Ao longo do tempo, seus valores básicos se mantiveram constantes.

Isso ocorre porque elas são as responsáveis por satisfazer um dos mais básicos

impulsos humanos: “a necessidade intrínseca de saber o que se passa para além da

sua própria experiência directa” (KOVACH; ROSENSTIEL, 2004, p. 5).

Nesse sentido, ofertando os mais diversos tipos de notícias, o Jornalismo

funciona como uma ponte que liga as pessoas aos acontecimentos da atualidade,

permitindo que fiquem “em dia” com os principais episódios do mundo

contemporâneo, que participem ativamente de grupos sociais e que se sintam

“reasseguradas de que através dos vários produtos do jornalismo não estão a perder

algo” (TRAQUINA, 2004, p. 20). Ao longo do tempo, ele tornou-se fundamental para

a vida em sociedade. Como afirmam os autores Bill Kovach e Tom Rosenstiel (2004,

p. 6), “precisamos de notícias para vivermos, para nos protegermos, para criarmos

laços, para identificarmos amigos e inimigos. O jornalismo é, simplesmente, o

sistema concebido pelas sociedades para fornecer estas notícias”.

Porém, antes do surgimento do Jornalismo, as informações não eram um

“bem comum”. Naquela época – século XVII – o saber, o acesso a informações, a

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documentos e o direito à pesquisa eram restritos à Igreja e às universidades

(MARCONDES FILHO, 2002). Entretanto, a invenção dos tipos móveis, atribuída ao

alemão Johannes Gutemberg9 – que ocorreu no século XVI, porém, passou a ser

amplamente utilizada no século XVIII – deu início a uma revolução na história do

Jornalismo. “Na onda da emergente indústria do livro, surge uma nova, que cresce

entre os restos de papel e as folhas soltas que dão origem a pequenas publicações

periódicas. Nasce a imprensa” (PENA, 2008, p. 28). Ainda que muitos autores

afirmem que o nascimento do Jornalismo ocorreu concomitantemente à Revolução

Francesa, entre 1789 a 1799, há quem aponte que sua emersão se deu nos

primórdios do século XVII, nos pubs – bares – de Londres e também da América.

De acordo Tom Rosenstiel e Tom Kovach (2004, p. 20) os proprietários dos

locais pediam que os viajantes contassem histórias de suas viagens e, até mesmo,

escrevessem o que haviam visto ou ouvido em um livro que era deixado no balcão

do bar. Os primeiros jornais surgiram, por volta de 1609, inspirados no que era

relatado nesses bares. “Os tipógrafos empreendedores começaram a recolher nos

botequins as informações sobre transportes marítimos, mexericos e debates

políticos e a imprimi-los em papel”. Segundo os autores, aqueles ligam o surgimento

do Jornalismo ao período da insurreição que ocorreu na França, o fazem porque

com a queda do poder da monarquia e da aristocracia, a população conquistou o

direito à informação. Portanto,

todo o saber acumulado e reservado aos sábios passa agora a circular de forma mais ou menos livre. E são os jornalistas que irão abastecer esse mercado; sua atividade será a de procurar, explorar, escavar, vasculhar, virar tudo de pernas para o ar, até mesmo profanar, no interesse na notícia. (MARCONDES FILHO, 2002, p. 10-11)

Dito isso, o autor Ciro Marcondes Filho (2002) elaborou um quadro evolutivo

no qual propõe uma divisão em quatro fases, as quais são chamadas de primeiro

(1789 a 1830), segundo (1830 a 1900), terceiro (1900 a 1960) e quarto jornalismo

(1960 em diante). A primeira fase tem início no mesmo ano da Revolução, ou seja,

1789. Essa época marca a efervescência do Jornalismo político-literário e a

profissionalização do ofício, bem como a aparição dos primeiros jornais e redações.

“Os jornais eram sobretudo armas na luta política, estreitamente identificados com

9 Apesar da atribuição a Gutemberg, seus verdadeiros criadores foram os chineses. O primeiro livro

impresso conhecido é do ano de 868 e a invenção do tipo móvel foi aproximadamente em 1040. Ambos em território chinês. (PENA, 2008, p. 27)

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causas políticas” (TRAQUINA, 2004, p. 34). Hans-Eckehard Bahr (1968, apud

MARCONDES FILHO, 2002, p. 16, grifo do autor) explica que os primeiros jornais,

constituídos de apenas três ou quatro páginas, também davam espaço àquilo que

era considerado novo. Figuravam entre as novidades notícias de desastres,

nascimentos e mortes, “aberrações”, entre outras, “às quais se associavam,

conforme o caso, advertências morais de bom comportamento e devoção dos

cidadãos, uma espécie de “contrapublicidade disciplinadora””.

No entanto, com o tempo, as discussões político-literárias e as opiniões

passaram a dar espaço à produção de notícias, inclusive aquelas de cunho popular

e sensacionalista, que visavam o lucro dos veículos. Dessa forma, os jornais

passaram a se constituir como grandes empresas capitalistas. (MARCONDES

FILHO, 2002). Foi sob essa nova constituição que surgiu a chamada penny press.

Segundo Traquina (2004, p. 50), o nome é oriundo do preço dessa nova imprensa,

que era de um centavo. Durante o período, entre 1830 e 1840, houve o

aparecimento de novos veículos, como o estadunidense The Sun. Assim, entra-se

no segundo jornalismo. Nessa fase, os avanços tecnológicos obrigam as empresas

a adquirirem a capacidade de autossustentação, forçando-as, então, a venderem

mais. Nessa altura, e diante da responsabilidade de multiplicar a renda, a venda de

espaços publicitários nos periódicos tornou-se comum – e necessária. Segundo

Leonor O’Boyle,

só uma sociedade economicamente avançada podia produzir uma imprensa que se auto-financiasse completamente a partir das vendas a um público leitor de massas e de anúncios pagos. Sem tal base econômica a imprensa ou não subsistia ou tinha que se apoiar em subsídios políticos. (O’BOYLE, 1968, p. 209, apud TRAQUINA, 2004, p. 36)

Essa imprensa livre das amarras políticas atraiu investidores e outros

“endinheirados” dispostos a publicar jornais com o único intuito de lucrar e expandir

a circulação. Traquina (2004, p. 37) também observa que “os armazéns, em

conjunto com os medicamentos, eram a base de sustento das colunas de

publicidade nos jornais”. Jean K. Chalaby (1997, p. 631, apud TRAQUINA, 2004, p.

37) afirma que “o jornal The Times obtinha em 1870 em publicidade o dobro da

receita obtida em vendas”. Não só a demanda por espaços publicitários aumentou,

mas por notícias também. Assim, para dar conta de atendê-la, mais pessoas foram

empregadas nesse setor.

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De acordo com Traquina (2004), no século XIX ocorreu o desenvolvimento da

reportagem e o início da utilização de testemunhas oculares nos relatos. Naquele

período, o crescimento dos jornais também foi impulsionado pelos avanços

tecnológicos, como as melhoras na impressão e o aumento na rapidez de

transmissão de informações, que ocorreu por meio do telégrafo. Com a possibilidade

de transmitir notícias a lugares cada vez mais longínquos, surgiram as agências de

notícias. Reuters (Reino Unido), Havas (França) e Wolff (Alemanha) foram algumas

das primeiras a enviar informações de um continente a outro. Com essa rapidez,

novas formas de escrita foram impostas à notícia: ela deveria ser rápida, breve e

homogeneizada.

Naquela etapa da história do Jornalismo também houve a aparição do

daguerreótipo10 e, consequentemente, de imagens fotográficas. Esse realismo

imagético impôs-se, de certa forma, sobre o fazer jornalístico. Ou seja, o público

passou a exigir maior realidade e fidelidade na reprodução dos fatos, considerados

praticamente sacros. De acordo com Traquina (2004, p. 52), um texto escrito em

1855 dizia que “um repórter deve ser uma mera máquina que repete, apesar de uma

orientação editorial”. Assim, passou-se a cobrar do jornalista uma exatidão tão

grande quanto possível no relato dos fatos.

A ascensão do Jornalismo aconteceu juntamente com o progresso da

democracia. Nesse âmbito, no qual a liberdade de imprensa era cada vez mais

valorizada, ele servia como um elo entre o governo e a opinião pública. Para

Traquina (2004, p. 48), os jornalistas ocupariam o papel de porta-vozes do povo,

“dando expressão às diferentes vozes no interior da sociedade que deveriam ser

tidas em conta pelos governos, e como vigilantes do poder político que protege os

cidadãos contra os abusos dos governantes”.

Essas delineações fizeram com que a nova imprensa, chamada de mass

midia – imprensa de massa –, mantivesse as características originais da atividade

jornalística: “a busca da notícia, o “furo11”, o caráter de atualidade, a aparência de

10

O daguerreotipo, invenção de Louis Jacques Mandé Daguerre, teve a técnica reconhecida cientificamente em 1839 e possibilitou a gravação de imagens sem a possibilidade de reprodução (CORRÊA, 2009). Disponível em: <http://www.com.ufv.br/pdfs/tccs/2012/JulianaCorr%C3%AAa.pdf />. Acesso em: 15/03/2016. 11

No Jornalismo, a palavra 'furo', ou 'scoop' em inglês, designa a notícia dada em primeira mão, com exclusividade, por um jornal ou revista (OLIVEIRA, 2013). Disponível em: <http://www.ufrgs.br/alcar/encontros-nacionais-1/9o-encontro-2013/artigos/gt-historia-do-jornalismo/a-natureza-do-furo-de-reportagem-da-perspectiva-historica-para-uma-construcao-teorica>. Acesso em: 03/04/2016.

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neutralidade, em suma, o “caráter libertário e independente”” (MARCONDES FILHO,

2002, p. 14, grifo do autor). Entretanto, não se pode esquecer que tratava-se de um

negócio, fundado nos moldes do capitalismo12, no qual o lucro importava mais do

que a própria informação. Portanto, muitas de suas características serviam como

uma “fachada” para esconder possíveis supressões da liberdade de imprensa.

“Desaparece a liberdade e em contrapartida se obtém mais entretenimento”

(MARCONDES FILHO, 2002, p. 14).

Como observa Teixeira Coelho (1980, p. 10), a imprensa de massa surgiu

como função do fenômeno da industrialização. Ou seja, ela utiliza-se dos mesmos

critérios de produção da indústria em geral. São eles “o uso crescente de máquina e

a submissão do ritmo humano de trabalho ao ritmo da máquina; a exploração do

trabalhador; a divisão do trabalho”. Ainda conforme o autor, a imprensa de massa

integra a Indústria Cultural. Tal termo foi cunhado, na década de 1940, pelos

filósofos Theodor Adorno e Max Horkheimer.

Coelho (1980, p. 23) afirma que a Indústria Cultural surgiu para agradar o

“gosto médio” da população, reforçando normas sociais exauridas. Outra função é a

promoção do “conformismo social”. Para o autor,

a indústria cultural fabrica produtos cuja finalidade é a de serem trocados por moeda; promove a deturpação e a degradação do gosto popular; simplifica ao máximo seus produtos, de modo a obter uma atitude sempre passiva do consumidor. (COELHO, 1980, p. 23-24)

Com a imprensa de massa, a notícia também tornou-se mercadoria. De

acordo com Marcondes Filho (2002, p. 24), o produto jornalístico foi recebendo

“cada vez mais investimento para melhorar sua aparência e sua vendabilidade:

criam-se as manchetes, os destaques, as reportagens”. Cremilda Medina (1988, p.

73) constata a afirmação de Marcondes Filho, relatando que “a mensagem

jornalística resulta da articulação de um conjunto de elementos estruturais

característicos do processo de informação”. Para a autora, a grande maioria das

mensagens é angulada, primeiramente pela empresa jornalística na qual será

veiculada e, em segundo lugar, pelas massas, que se sobrepõem inclusive aos

grupos políticos e econômicos ligados ao veículo. Segundo Medina,

12

O capitalismo é um sistema econômico no qual ocorre a mercantilização do trabalho (CHANG, 2012). Disponível em: <file:///C:/Users/Mayara/Downloads/a_economiamundo_capitalista__magda_1334342038.pdf>. Acesso em: 03/04/2016.

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29

Nota-se especialmente na formulação dos textos, nos apelos visuais e

linguísticos, na seleção das fotos, a preocupação em corresponder a um

“gosto médio” ou, em outros termos, em embalar a informação com

ingredientes certos de consumo. (MEDINA, 1988, p. 75)

O crescimento considerável das empresas de comunicação resultou na

constituição de monopólios e, dessa forma, do terceiro jornalismo. Naquela época,

surgiu também a indústria publicitária e de relações públicas, que competem com o

Jornalismo. A terceira fase, que ocorreu do início do século XX até a década de

1960, é especificada por dar-se em uma época fraca e decadente. “A transformação

ou a descaracterização da atividade tem a ver com a crise da cultura ocidental”

(MARCONDES FILHO, 2002, p. 26). A essa altura, a sociedade passava por uma

fase de “desencanto”, devido à instalação da pós-história, ao avanço de técnicas

modernas e às crises ideológicas.

À população também faltavam embates, convicção em relação à religião e à

política e perspectiva de um futuro melhor, além de haver a impossibilidade de se

“lutar contra” algo. “Só existe um arrastar-se para frente, um empurrar com a barriga,

uma ação sem convicção nem vontade, um “desejo do nada”” (MARCONDES

FILHO, 2002, p. 27). Ainda durante o período do terceiro jornalismo, a indústria

jornalística, graças à tecnologia, se beneficia de duas marcantes invenções e

adiciona importantes veículos à sua “coleção”: o rádio e a televisão. Ambos os

recursos de telecomunicações foram os responsáveis por grande parte das

mudanças na imprensa impressa.

Posteriormente a essas mudanças, o Jornalismo atingiu um novo estágio,

assim como a indústria cultural como um todo. Essa fase, que ocorre de 1960 em

diante e é chamada por Marcondes Filho (2002) de quarto jornalismo, é

caracterizada pela introdução de novos recursos tecnológicos e interativos nas

redações – como a rede mundial de computadores –, bem como pela “ampla [...]

mudança das funções do jornalista, muita velocidade na transmissão de

informações, valorização do visual e crise da imprensa escrita.” (PENA, 2008, p. 32-

33). Os novos meios obrigaram o Jornalismo a abandonar práticas antigas e

históricas e a cultivar novos hábitos e padrões. Para Marcondes Filho (2002), esse é

o Jornalismo da era tecnológica. De acordo com ele, houve dois processos

fundamentais nas mudanças. O primeiro foi

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30

a expansão da indústria da consciência no plano das estratégias de comunicação e persuasão dentro do noticiário e da informação. É a inflação de comunicadores e de materiais de imprensa, que passam a ser fornecidos aos jornais por agentes empresariais públicos (assessorias de imprensa) e que se misturam e se confundem com a informação jornalística (vinda da reportagem principalmente), “depreciando-a pela overdose”. (MARCONDES FILHO, 2002, p. 30)

O segundo é a substituição do jornalista, como agente de produção de

notícias, por formas alternativas de elaboração e difusão de conteúdo. Há muita

informação produzida e distribuída diretamente nas redes, e isso influi no papel do

profissional do Jornalismo, que busca contar histórias e explicar acontecimentos por

meio de seu trabalho. De acordo com Kovach e Rosenstiel (2004, p. 11), corre-se “o

risco de ver a informação independente ser substituída por interesses comerciais

próprios, camuflados de notícias”.

As diversas “fontes de conhecimento” disponíveis ao público colocaram o

jornalista em descrédito e deixaram seu trabalho, já descaracterizado, ainda mais

difícil. Além disso, as mudanças tornaram necessário o estabelecimento de novas

definições em relação à ética e relações de trabalho, ao perfil do jornalista e

modificaram drasticamente o funcionamento das redações. “Os terminais de vídeo

substituem as máquinas de escrever [...] a diagramação deixa de ser manual para

ser eletrônica, o texto passa a ser virtual” (MARCONDES FILHO, 2002, p. 35).

Como o jornalista não é mais o mesmo, o conteúdo produzido também não o

é. A produção jornalística sofre as consequências de transformações impostas à

atividade e perde a densidade e a capacidade de análise que outrora lhe era

inerente. Notas, notícias, reportagens, editoriais e todos os outros produtos do

Jornalismo são elaborados às pressas para adequar-se a um projeto gráfico

específico e a um horário de fechamento “apertado”. Marcondes Filho (2002, p. 37)

observa que “a produção informatizada diária e contínua de um jornal tende a triturar

os fatos [...] transformando-os em um produto – apesar da aparência atraente,

inodoro, incolor, insosso”.

O Jornalismo deixa, de certa forma, de cumprir algumas de suas funções,

como garantir notícias abrangentes, servir de fórum para crítica e lutar para tornar

interessante e relevante aquilo que é significativo (KOVACH; ROSENSTIEL, 2004).

Com um fluxo intenso de informações circulando por todos os meios e a todo o

momento, torna-se cada vez mais complicada e extenuante a missão do jornalista

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31

de definir quais informações são relevantes o suficiente para serem divulgadas ao

público e qual tratamento essas informações merecem. Elas serão publicadas como

notícias ou são expressivas o suficiente para converterem-se em reportagens?

2.1.1 Notícia X Reportagem

A complexidade e a amplitude da definição do que é notícia podem ser

sintetizadas em uma única frase: “notícia é a mola mestra do jornalismo, atrás da

qual corre o jornalista” (TRAVANCAS, 1992, p. 32). O jornalista “persegue” a notícia

porque ela é o seu “ganha-pão”. Produto essencialmente jornalístico, dela depende

o trabalho do repórter, bem como o dos veículos de comunicação. Sem notícia, não

há Jornalismo. Luiz Amaral, além de tratá-la como matéria-prima da profissão –

conforme citado na introdução – a caracteriza como “informação atual, verdadeira,

carregada de interesse humano e capaz de despertar a atenção e a curiosidade de

grande número de pessoas” (AMARAL, 1969, p. 60, apud LAGE, 2001, p. 53).

Mesmo antes do nascimento do Jornalismo moderno, havia meios de

transmitir informações, de emitir notícias. Bill Kovach e Tom Rosenstiel (2004, p. 5)

explicam que, ao comparar hábitos das poucas culturas primitivas que habitavam a

Terra, antropólogos descobriram algo surpreendente: “das sociedades tribais mais

isoladas de África até as mais remotas ilhas do Pacífico, as pessoas partilhavam

essencialmente a mesma definição do que é notícia”. Traquina (2004, p. 54, grifo do

autor) corrobora o pensamento de que as notícias oferecidas pelo Jornalismo

contam com uma “receita” ancestral. Há 2.000 anos, em Roma, apesar de não haver

jornais, o filósofo Cícero, durante suas longas ausências da cidade, “recebia

“notícias” sob a forma de cartas do seu amigo Caelius”. Em uma das cartas, Caelius

contou a Cícero uma série dessas “notícias”, que eram, na verdade, acontecimentos

envolvendo indivíduos proeminentes da sociedade romana.

Porém, com o aperfeiçoamento das técnicas jornalísticas, séculos mais tarde,

a função de definir o que é notícia deixou de ser executada por pessoas comuns,

assim como Caelius, e passou a ser uma das incumbências do repórter. “A notícia é

o que os jornalistas acham que interessa aos leitores, portanto, a notícia é o que

interessa aos jornalistas” (HERRAIZ, 1996, p. 19, apud ALSINA, 2009, p. 295). O

repórter, figura central do Jornalismo, tem a capacidade de influir diretamente na

construção da realidade social, uma vez que, segundo Traquina (2004), ao

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32

comunicar os fatos, tal profissional é o responsável por estabelecer, em última

análise, o que será compartilhado com o público. Esse trabalho de “filtragem” dos

acontecimentos que podem, potencialmente, tornarem-se notícia, exercido pelos

jornalistas, é de extrema importância social. Isso ocorre porque, conforme Alsina

(2009), o ser humano não é capaz de processar um volume tão vasto de informação,

portanto, é impossível considerar tudo o que há em volta como algo significativo.

Contudo, a decisão do jornalista em relação ao que é ou não é notícia tem

como base parâmetros pré-estabelecidos, que servem como “atalhos” na filtragem

dos acontecimentos de maior relevância social. Pena (2008, p. 71), explica que tais

parâmetros integram uma “cultura própria” da profissão. De acordo com o autor, os

jornalistas “têm critérios próprios, que consideram óbvios, quase instintivos”. Em

uma tentativa de reduzir a complexidade do processo pelo qual os acontecimentos

passam até tornarem-se notícia, Mauro Wolf (1995) reuniu os critérios observados

pelos jornalistas durante a seleção dos fatos e os chamou de “noticiabilidade”. O

autor explica que

a noticiabilidade é constituída pelo conjunto de requisitos que se exigem dos acontecimentos – do ponto de vista da estrutura do trabalho nos orgãos de informação e do ponto de vista do profissionalismo dos jornalistas – para adquirirem a existência pública de notícias. (WOLF, 1995, p. 170)

Ou seja, quanto maior o grau de noticiabilidade, maior a capacidade de um

assunto virar notícia e propagar-se pelos meios de comunicação. (PENA, 2008). Os

critérios de noticiabilidade podem ser explicitados de uma forma mais contundente

por meio dos valores/notícia, descritos como “uma série de fatores que determinam

a seleção das notícias” (ALSINA, 2009. p. 157). A listagem elaborada por Johan

Galtung e Mari Holmboe Ruge aponta frequência, limiar (o acontecimento tem mais

chances de ser percebido quando seu limiar de intensidade é muito alto ou quando

seu nível de significação aumenta repentinamente), ausência de ambiguidade,

significação, consonância (analisam-se quais os reais interesses do público e quais

os interesses provocados pela imprensa), imprevisibilidade, continuidade,

composição (observa-se o equilíbrio do conjunto de notícias) e valores socioculturais

como aspectos levados em conta pelos jornalistas durante a seleção dos

acontecimentos que serão veiculados. Contudo, Alsina ressalta que a aplicação de

tais critérios não é mecânica e que, quando um fato agrega mais de um dos fatores

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33

citados, a possibilidade de converter-se em notícia a ser consumida pelo público é

maior.

Selecionados os fatos que serão transmitidos ao público, basta estruturá-los

para que possam ser devidamente noticiados. Os métodos e processos de seleção

são descritos em duas teorias do Jornalismo: gatekeeper e agenda-setting. Com o

tempo, estudiosos se conscientizaram de que “as comunicações não intervêm

directamente no comportamento explícito; tendem, isso sim, a influenciar o modo

como o destinatário organiza sua imagem do ambiente” (ROBERTS, 1972, p. 361,

apud WOLF, 1995, p. 126, grifo do autor). Dito isso, a hipótese da agenda-setting

defende que a pauta estabelecida pelos meios de comunicação de massa será

seguida pelo público, que dará importância àqueles assuntos que estiverem sendo

abordados pelos veículos. “As pessoas têm tendência para incluir ou excluir dos

seus próprios conhecimentos aquilo que os mass media incluem ou excluem do seu

próprio conteúdo” (SHAU, 1979, p. 96, apud WOLF, 1995, p. 130).

A partir da agenda-setting, supõe-se que o entendimento do público em

relação à realidade social é fornecido, em grande parte, pela mídia. Como afirma

Bernar Cohen (1963, apud WOLF, 1995), por mais que a imprensa não diga sempre

às pessoas o que pensar, ela tem, certamente, a capacidade de lhes dizer sobre

quais temas elas devem pensar. Assim sendo, a hierarquização dos fatos, por parte

de um sujeito qualquer, será semelhante à dos meios de comunicação de massa

(WOLF, 1995).

A teoria da agenda-setting se assemelha, de diversas formas, aos estudos

sobre os gatekeepers. O termo, nesse contexto, significa “selecionador”. Nos meios

de comunicação, cabe a um indivíduo, ou a um grupo, a decisão de deixar passar ou

de bloquear uma informação (LEWIN, 1947, apud WOLF, 1995). As decisões do

gatekeeper também têm como base uma série de critérios. Porém, leva-se mais em

conta quesitos organizacionais, como a eficiência, a produção de notícias e a

rapidez, do que a “avaliação individual da noticiabilidade” (ROBINSON, 1981, p. 97,

apud WOLF, 1995, p. 163). Além da simples seleção do que será divulgado ou

bloqueado, os gatekeepers têm total controle da informação, desde o que diz

respeito à codificação e composição, à exclusão de componentes, chegando até a

sua difusão. (DONOHUE; TICHENOR; OLIEN, 1972, apud WOLF, 1995).

O que pode ser salientado em relação às pesquisas sobre os gatekeepers, é

que a seleção é mais influenciada pelo grupo de colegas e ambiente redacional do

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34

que pelo público em si. Conforme Warren Breed (1955, p. 335, apud WOLFE, 1995,

p. 164), esse comportamento é adquirido pelo jornalista em um processo de

“osmose”. O profissional, no dia a dia, “em vez de aderir a ideais sociais e

profissionais, redefine seus próprios valores ao nível mais pragmático do grupo

redactorial”.

No decorrer da história do Jornalismo, o formato das notícias sofreu

transformações. Enquanto passavam a ser enquadradas na categoria de produto

pelas grandes empresas midiáticas, “uma forma nascente de “empacotamento”

apareceu” (TRAQUINA, 2004, p. 59, grifo do autor). Isso quer dizer que o relato

noticioso foi padronizado e passou a ser construído de acordo com a estrutura da

Pirâmide Invertida. Com a Pirâmide Invertida como base, os jornalistas hierarquizam

os fatos: inicialmente apresentam os mais importantes, que são seguidos pelos

menos “atraentes” ao público.

Há relatos, por parte de autores, de que a estratégia surgiu no século XIX,

mais especificamente em 1861, em um jornal de Nova Iorque (PENA, 2008).

Utilizada pelas agências de notícias, espalhou-se rapidamente por diversos países,

devido à sua objetividade, praticidade e ao seu preço. “Assim, dependendo do

interesse do cliente da agência, o primeiro ou o segundo parágrafos já seriam

suficientes para atender à demanda do veículo assinante” (PENA, 2008, p. 48-49).

Por via de regra, o parágrafo de abertura da Pirâmide Invertida segue a

fórmula do lead – ou lide, como é chamado no Brasil. O lide também pode ser

classificado como uma estratégia narrativa, um relato sintético do acontecimento que

indica que o início da notícia deve responder a seis perguntas: Quem? O que?

Como? Onde? Quando? E por quê? (PENA, 2006). Uma particularidade do lead é o

fato que “os dados são apresentados numa articulação tal que ao leitor resta ir até o

fim, sem qualquer convite à pausa. Ele funciona como uma espécie de “rede” que

envolve e segura o receptor daquela informação” (PENA, 2008, p. 43, grifo do autor).

Dito isso, viu-se como ocorre a construção das notícias. Entretanto, há certos

acontecimentos que permitem, ou até mesmo clamam, por uma abordagem que fuja

à objetividade do dia a dia jornalístico. Nesses casos, o jornalista geralmente recorre

a outro produto do Jornalismo, que também, ao longo dos anos, conquistou seu

espaço nas redações: a reportagem. Conceituando-a de uma maneira simples, a

reportagem – como citado na introdução – é a forma mais extensa da narrativa

jornalística (SODRÉ; FERRARI, 1986). Marques de Melo explica que a distinção

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entre notícia e reportagem está na progressão dos acontecimentos. “A notícia é o

relato integral de um fato que já eclodiu no organismo social. A reportagem é o relato

ampliado de um acontecimento que já repercutiu no organismo social” (MELO, SD

apud PENA, 2008, p. 69).

Presente na televisão, no rádio e nas mídias impressas, a reportagem é o

exemplo do poder denunciante e narrativo do Jornalismo. Muniz Sodré e Maria

Helena Ferrari (1986, p. 9) a descrevem como uma narrativa, “com personagens,

ação dramática e descrições de ambiente”. Além disso, há outras características

intrínsecas desse produto jornalístico. A reportagem trabalha com enfoque e

interpretação, convertendo fatos em assuntos e trazendo seus desdobramentos de

forma aprofundada; é um produto que surge da intenção de passar uma visão

interpretativa, que procura seduzir o receptor por meio da criatividade (PENA, 2008).

A reportagem também é algo paradoxal, por ser, ao mesmo tempo, algo fácil e difícil

de ser produzido. Clóvis Rossi, no prefácio do livro A aventura da reportagem, de

Gilberto Dimenstein e Ricardo Kotscho (1990), explica essa relação contraditória. De

acordo com Rossi, é

fácil porque, no fundo, reportagem é apenas a técnica de contar boas histórias. [...] Difícil porque o repórter persegue esse ser chamado verdade, quase sempre inatingível ou inexistente ou tão repleto de rostos diferentes que se corre permanentemente o risco de não conseguir captá-los todos e passá-los para o leitor/ouvinte/telespectador. (DIMENSTEIN; KOTSCHO, 1990, p. 10)

Apesar da notoriedade que conquistou ao longo do tempo, a reportagem nem

sempre foi figura presente no Jornalismo. Mais precisamente, como atividade, ela

“não existiu ou era irrelevante em 200 dos quase 400 anos da história da imprensa”

(LAGE, 2003, p. 9). Seu surgimento se deu juntamente com a modernização e a

mecanização da imprensa, quando os veículos viram-se obrigados a mudar o estilo

dos textos publicados. Nilson Lage (2003) explica que, na época, decorrer do século

XIX, as páginas dos jornais eram ocupadas por notícias, folhetins, desenhos

alegóricos ou satíricos e outras novidades que poderiam interessar ao público.

Era preciso entreter os leitores e o modelo de entretenimento da época era a

literatura novelesca. “A realidade deveria ser tão fascinante quando a ficção e, se

não fosse, era preciso fazê-la” (LAGE, 2003, p. 15) Esse foi o paradigma para o

nascimento da reportagem. Por meio de seus textos, os repórteres começaram a

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expor situações que anteriormente não eram discutidas em público, como problemas

sociais, financeiros e éticos. Contudo, mesmo com a expansão e o aprimoramento

no século XIX, foi na primeira metade do século XX, chamado de “século do

jornalismo-testemunho” por Nilson Lage (2003), que a reportagem passou a ser

realmente explorada.

Estados Unidos, 1925. Naquele ano, o prêmio Pulitzer13 foi entregue ao

jornalista Skeets Miller, de 22 anos, graças a uma série de reportagens publicadas

no Courier Journal. De acordo com Sodré e Ferrari (1986), o fato que deu origem

aos seus textos ocorreu no dia 30 de janeiro do mesmo ano. Às dez horas da

manhã, um camponês do estado do Kentucky, chamado Floyd Collins, entrou na

Sand Cave, uma gruta repleta de pedras instáveis. Um acidente em uma passagem

estreita imobilizou seus braços e pernas, trancando-o no local. O desaparecimento

instigou os donos da gruta, que, no dia seguinte, pediram que o filho, de 17 anos,

fosse investigar. A voz enfraquecida de Collins fez com que o rapaz o encontrasse e

chamasse o resgate.

No dia 2 de fevereiro, o camponês ainda estava preso. Skeets Miller chegou

ao local do acidente. Ainda conforme Sodré e Ferrari (1986), buscando informações,

ele resolveu conversar com o irmão de Collins, Homer, que lhe disse: “Se você quer

saber como vão as coisas, o buraco está aí. Vá ver você mesmo”. O repórter aceitou

o “desafio” e, desse dia em diante, participou de todas as operações de salvamento.

O acontecimento, que repercutiu em toda a imprensa estadunidense, se estendeu

até o dia 16 de fevereiro, quando, depois de muito esforço, a equipe de resgate

chegou até Collins. Porém, depois de 11 dias sem água ou alimento, o homem não

havia resistido.

A história de Miller e Collins é um dos exemplos que impulsionou a

reportagem dentro do cenário jornalístico norte-americano. Ao público consumidor

de notícias da época não faltava informação. Porém, a imprensa, atrelada

unicamente aos fatos, “era incapaz de costurar uma ligação entre eles, de modo a

revelar ao leitor o sentido e o rumo dos acontecimentos” (MEDINA; LEANDRO,

1977, apud PEREIRA LIMA, 2004, p. 19). Ciente dessa “deficiência”, o público

passou a esperar informações de maior qualidade, além de uma menor objetividade

13

O Pulitzer é um prêmio norte-americano direcionado a trabalhos jornalísticos, literários e de composição musical. O prêmio foi criado em 1917, por desejo de Joseph Pulitzer. Disponível em: <http://www.pulitzer.org/page/history-pulitzer-prizes>. Acesso em: 21/03/2016.

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e maior subjetividade por parte das notícias. Essa carência abriu as portas para o

aparecimento de novos veículos, revistas, mais especificamente, como a norte-

americana Time (1923), que apostavam no Jornalismo interpretativo. Esse estilo de

Jornalismo busca criar meios para que a audiência possa compreender o seu tempo

e as causas e origens dos fenômenos que presencia (BELTRÃO, 1976, apud

PEREIRA LIMA, 2004). Dessa forma, os veículos encontraram na reportagem uma

forma de preencher a lacuna deixada pelo Jornalismo diário, pois “ela amplia a

cobertura de um fato, assunto ou personalidade, revestindo-os de intensidade, sem

a brevidade da forma-notícia” (SODRÉ; FERRARI, 1986, p. 75).

Entretanto, características narrativas como detalhamento dos fatos,

amplitude, aprofundamento, densidade e capacidade de suscitar críticas e análises

aumentam o tempo que se leva para produzir uma reportagem bem fundamentada.

Por essa razão, textos bem elaborados, com minúcia e atenção, estão cada vez

mais escassos, ao menos no que tange às páginas dos jornais diários. Mesmo não

figurando entre as leituras diárias da população, as reportagens são um dos

principais produtos de um gênero jornalístico específico, que as “adotou”, as

potencializou e lhes concedeu fôlego renovado. Esse gênero é o Jornalismo

Literário.

2.2 JORNALISMO LITERÁRIO

Uma das funções do Jornalismo é contar histórias. Exaltando este lado

“propagador de causos” do ofício, Traquina (2004, p. 21, grifo do autor) tratou-o

como “um conjunto de ‘estórias’, ‘estórias’ de vida, ‘estórias’ das estrelas, ‘estórias’

de triunfo e tragédia”. Entretanto, o conteúdo dos “contos” jornalísticos é única e

exclusivamente baseado em fatos reais. Dessa forma, explica Marcelo Bulhões

(2007), a profissão torna a própria existência do ser humano seu objeto de estudo:

observa-a, comprova-a, sente-a, torna-a um produto a ser vendido, consumido,

porém, digno de credibilidade. Assim sendo, o Jornalismo presta um testemunho do

“real”. Pode-se afirmar que o repórter é uma espécie de ““historiador da vida

contemporânea”, diariamente compartilhada” (BULHÕES, 2007, p. 11, grifo do

autor). Sendo o compromisso do Jornalismo com os fatos, com a objetividade e com

a verdade, sua linguagem funciona como um meio de transmissão de mensagens.

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Enquanto a linguagem serve como meio para a narrativa jornalística, na

Literatura ela tem fim em si mesma; ela é a arte, é por ela que se atrai o leitor. No

poema Isto, Fernando Pessoa induz à reflexão: “dizem que finjo ou minto tudo que

escrevo. Não. Eu simplesmente sinto com a imaginação”. Nesse verso, suas

palavras não tem compromisso com a objetividade, com a clareza; não formam uma

mensagem a ser decifrada, mas sim algo que pretende despertar algum sentimento.

Bulhões (2007, p. 12) explica que “na literatura, a linguagem não é mera figurante,

mas centro das atenções. Nesse sentido, se há algo para comunicar na literatura,

esse algo só existe pelo poder conferido à conduta da própria linguagem”.

Se o Jornalismo trabalha para testemunhar e descrever a realidade, a

Literatura existe para criar novas realidades, ficcionais, fantasiosas, utópicas ou

inspiradas abertamente no vai e vem cotidiano. Apesar das naturezas e funções

evidentemente distintas, Jornalismo e Literatura encontraram uma forma de cruzar

fronteiras, de conectar-se e dar origem a algo novo. Essa junção foi batizada de

Jornalismo Literário. Repórteres entorpecidos pelo dia a dia de redações

pragmáticas, segmentadas, que mais lembram empresas que seguem o sistema

fordista de produção, buscam no gênero jornalístico uma forma de extravasar e

exercitar a “veia literária”. Para Felipe Pena (2006), trabalhar com o Jornalismo

Literário significa

potencializar os recursos do Jornalismo, ultrapassar os limites dos acontecimentos cotidianos, proporcionar visões amplas da realidade, exercer plenamente a cidadania, romper as correntes burocráticas do lead, evitar os definidores primários e, principalmente, garantir perenidade e profundidade aos relatos. No dia seguinte, o texto deve servir para algo mais do que simplesmente embrulhar o peixe na feira. (PENA, 2006, p. 13)

Jornalismo e Literatura trilharam caminhos similares desde o surgimento do

periodismo. Edvaldo Pereira Lima (2004, p. 175) explica que, até os primeiros anos

no século XX, muitos jornais publicavam suplementos literários. “É como se o

veículo jornalístico se transformasse numa indústria periodizadora da literatura da

época”. Um exemplo de maior popularidade dos suplementos literários, que marca a

convergência entre ambas as formas narrativas, é o folhetim – palavra que vem do

termo francês feuilleton.

Esse instrumento apareceu pela primeira vez nos jornais da França, como um

suplemento dedicado à crítica literária e a assuntos diversos. Durante esse período,

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situado na fase do primeiro jornalismo, os folhetins geravam uma espécie de reação

em cadeia: publicá-los aumentava as vendas, o que diminuía os preços, que, por

sua vez, faziam crescer o número de leitores (PENA, 2006). Porém, a partir das

décadas de 1830 e 1840, seu conceito mudou e os folhetins passaram a contar com

narrativas literárias, de linguagem acessível, voltadas a um público vasto, além de

serem publicados em fascículos (PENA, 2006).

Entretanto, após uma parceria duradoura e bem sucedida, o tempo fez com

que a presença da Literatura nos jornais diminuísse gradativamente. Essa

transformação foi consolidada na década de 1950, quando as mudanças gráficas e

estilísticas das publicações fizeram com que a concisão das notícias se

sobrepusesse às extensas narrativas (PEREIRA LIMA, 2004). Apesar dessa

separação “física”, que ocorreu quando ambos deixaram de ocupar o mesmo espaço

nos jornais, as conexões entre Jornalismo e Literatura nunca deixaram de existir.

Segundo Bulhões (2007, p. 40), um dos pontos que os liga é a narratividade.

“Produzir textos narrativos, ou seja, que contam uma sequência de eventos que se

sucedem no tempo, é algo que inclui tanto a vivência literária quanto a jornalística”.

Na Literatura, há narratividade em todos os gêneros, fundamentalmente no

romance e no conto. No Jornalismo, há que se destacar um de seus produtos como

exemplo de narrativa: a reportagem, já descrita neste capítulo. Como mencionado

anteriormente, por suas características, ela é mais facilmente encontrada no gênero

do Jornalismo Literário.

A reportagem, em um contexto geral, objetiva a ampliação dos relatos.

Porém, o jornalista tem mais chances de ser bem sucedido na contextualização dos

acontecimentos e de alçar seu texto a um patamar de maior amplitude quando

recorrer à prática da grande-reportagem. Segundo Pereira Lima (2004, p. 18), a

grande-reportagem “possibilita um mergulho de fôlego nos fatos [...], oferecendo, a

seu autor ou a seus autores, uma dose ponderável de liberdade para escapar aos

grilhões normalmente impostos pela fórmula convencional do tratamento da notícia”.

Ricardo Kotscho (2001, p. 71) observa que talvez pelos grandes investimentos, tanto

humanos quanto financeiros, necessários para a produção de grandes-reportagens,

elas estejam desaparecendo dos jornais. Além disso, ele ressalta que “há cada vez

menos repórteres dispostos a encarar o desafio de entrar de cabeça num assunto,

esquecer de tudo o mais para, no fim, ter o prazer de contar uma boa história”.

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Ao redor do mundo, as grandes-reportagens encontraram solo fértil nas

revistas que apostavam no Jornalismo interpretativo, como a já apontada Times, a

alemã Der Spiegel e a francesa L’Express. No brasil, a revista Realidade, da década

de 1960, foi um dos marcos do desenvolvimento das produções no Brasil. Arrojado,

o veículo foi capaz de documentar as profundas transformações de sua época,

captando o clima tumultuado e vibrante da sociedade. A Realidade “adotou” como

exemplos grandes escritores brasileiros dos anos 1930, como Graciliano Ramos,

Jorge Amado e José Lins do Rego. Ao fazer isso, “estavam recolhendo, por tabela, o

legado da matriz da prosa realista-naturalista do século XIX” (BULHÕES, 2007, p.

135).

O movimento naturalista, que inspirou os escritores brasileiros e, mais tarde,

os repórteres, foi deflagrado pelo escritor francês Émile Zola. O autor propôs uma

forma de Literatura na qual a observação se sobrepusesse à imaginação. De acordo

com Bulhões (2007, p. 67), Zola afirmou “que o escritor precisa se dedicar ao

conhecimento rigoroso da matéria que quer transpor para a representação ficcional,

até mesmo com pesquisa e levantamento de dados”. Dessa forma, o perfil do

escritor naturalista, idealizado por Zola, se assemelha muito ao do repórter. O

francês acreditava que todos os aspectos contidos no romance deviam ser

provenientes de experiências reais, do contato direto com as pessoas. Para construir

um dos seus trabalhos mais significativos, o livro Nana (1980), Zola realmente

adentrou e explorou profundamente o mundo retratado na obra, o da alta

prostituição parisiense. Bulhões conta que o escritor,

munido de lápis e caderninho de notas, caminhava pelo bairro onde viviam as cortesãs sustentadas por seus admiradores, percorria uma quantidade considerável de lugares “suspeitos”, recantos dos prazeres devassos. Para desempenhar seu papel de “romancista científico”, Zola adentrou-se nas casas de “má fama”; frequentou o interior de camarins de teatro e, como um bom bisbilhoteiro, espiou a intimidade de atrizes e prostitutas, escutando suas conversas reveladoras. Desse modo, colheu os subsídios do comportamento de suas personagens. (BULHÕES, 2007, p. 69)

Outro notável escritor que buscou inspiração no Naturalismo de Zola foi

Ernest Hemingway. Pereira Lima (2004, p. 188) observa que, ao mesmo tempo em

que Hemingway tinha como enfoque as fontes do “realismo literário”, ele também

buscou, no Jornalismo, técnicas para captação e lapidação de sua expressão. “No

início, era o jornalismo inspirando-se na literatura. Depois, era a literatura

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alimentando-se do jornalismo”. Sendo assim, por meio de suas renomadas obras e

forma irreverente de encarar o trabalho de escritor, Zola deixou um legado, “plantou

sementes” que seriam colhidas, mais tarde, por escritores pertencentes a outro

movimento que revolucionou a forma de fazer reportagens, responsáveis por

apresentar ao mundo um “Novo Jornalismo”.

2.2.1 New Journalism

Há a notícia pura e simples. Há a reportagem, extensão da notícia. Há

também a grande-reportagem, produto especial do Jornalismo, que por suas

características escapa a ambas as categorias anteriores. As grandes-reportagens

oferecem aos repórteres elementos que fogem às suas realidades diárias: espaço

para escrever e liberdade para criar. Esse criar, observe-se, não trata da construção

de um mundo ficcional, mas da possibilidade de utilizar as ferramentas da Literatura

a serviço do bom Jornalismo. Por essas razões, as grandes-reportagens foram o

nascedouro, nos Estados Unidos da década de 1960, de um movimento

revolucionário no que tange ao âmbito jornalístico-literário, batizado de New

Journalism – o “Novo Jornalismo”. O jornalista e escritor estadunidense Tom Wolfe

(2005), que incumbiu-se de escrever o manifesto do movimento, afirmou não fazer

ideia de quem cunhou ou quando foi cunhada a expressão New Journalism. Porém,

ele sabe relatar o estopim desse “novo Jornalismo” nas redações norte-americanas.

Em 1962, o repórter Gay Talese publicou, pela revista Esquire, a reportagem

Joe Louis: o Rei na meia-idade, que tratava do envelhecimento melancólico do

antigo campeão de box. O texto, a partir do início, descrevia frase a frase, assim

como em um romance, uma conversa entre Louis e sua mulher, no aeroporto.

“Talese constrói seu texto apoiando-se largamente em diálogos intimistas [...]

manejando com habilidade um atraente jogo narrativo-expositivo” (BULHÕES, 2007,

p. 146-147), atributo geralmente peculiar a ficcionistas literários. O trabalho de

Talese gerou repercussão e logo outros repórteres buscaram inspiração na

irreverência e na literariedade que havia na reportagem.

Outros, entretanto, não encaravam o que estava sendo escrito como

Jornalismo e pensavam que os veículos estavam publicando um material oriundo da

imaginação dos repórteres, que pareciam estar vivendo o sonho de serem

romancistas. “Muitos deles, aspirando à produção literária, tentavam fazer o que

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Hemingway fizera: passar pelo jornalismo apenas o tempo suficiente para dominar

seu instrumental, de modo a maturá-lo e adaptá-lo ao fazer literário” (PEREIRA

LIMA, 2004, p. 192-193). O próprio Tom Wolfe recorda que

essa foi precisamente a reação que incontáveis jornalistas e intelectuais da literatura teriam ao longo dos nove anos seguintes, à medida que o Novo Jornalismo ganhava força. Os filhos-da-mãe estão inventando! [...] A reportagem realmente estilosa era algo com que ninguém sabia lidar, uma vez que ninguém costumava pensar que a reportagem tinha uma dimensão estética. (WOLFE, 2005, p. 22, grifo do autor)

Além da apreciação pelos romances e da adoração aos romancistas, o que

moveu os profissionais da época a ousar com o “Novo Jornalismo” foi uma

insatisfação com o trabalho pragmático e focado na objetividade que estavam

desenvolvendo nos jornais diários. Wolfe, que percebeu esse sentimento, logo

lançou críticas a quem, pensava ele, melhor representava esse Jornalismo

“inssosso”: o colunista do Times, Walter Lippmann. Em uma crítica ao seu estilo de

texto, Wolfe o chamou de “vendedor de roncos” (PENA, 2006, p. 54). O jornalista

relata que

os leitores choravam de tédio sem entender por quê. Quando chegavam àquele tom de bege pálido, isso inconscientemente os alertava de que ali estava de novo aquele chato bem conhecido, “o jornalista”, a cabeça prosaica, o espírito fleumático, a personalidade apagada, e não havia como se livrar do pálido anãozinho, senão parando de ler. (WOLFE, 2005, p. 32, grifo do autor)

Portanto, para evitar essa imprensa “pálida”, simbolizada por Lippmann,

jornalistas apostavam nas técnicas literárias para oferecer algo novo ao público e,

com essas criações, preparavam-se para o momento em que seriam lançados ao

“olimpo literário”, pois nem mesmo os pioneiros do New Journalism “duvidavam

sequer por um momento de que o romancista era o artista literário dominante, agora

e sempre. Tudo o que pediam era o privilégio de se vestir como ele...” (WOLFE,

2005, p. 19).

Enquanto as publicações marcadas por essa nova forma de se fazer

Jornalismo aumentava, os Estados Unidos também passavam por um momento de

transformações sociais, “de profunda transgressão de valores, quando já se ouviam

os primeiros hits – dos Beatles, dos Rolling Stones, de Bob Dylan – que embalariam

um período fascinantemente movimentado” (BULHÕES, 2007, p. 146). Entretanto,

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nada que ocorreu foi capaz de “tirar os romancistas de suas cadeiras”. Na opinião de

Wolfe, isso ocorreu porque os escritores haviam se afastado, após a Segunda

Guerra, daquilo que lhes permitia abordar adequadamente todos os fenômenos: o

realismo social (PEREIRA LIMA, 2004).

Contudo, conforme os romancistas afastavam-se da realidade, abriam espaço

para que os jornalistas adentrassem-na. De acordo com Wolfe (2005), seguindo os

passos de Talese, surgiu Jimmy Breslin, outro grande talento dentro do movimento.

Breslin começou a escrever uma coluna no Herald Tribune em 1963. Porém,

preenchia esse espaço com reportagens sobre assuntos que colhia na rua. Ainda

segundo Wolfe (2005), o repórter sempre chegava ao local antes do início dos

eventos, para que pudesse coletar outro tipo de material, “que lhe permitia criar

personagens. Parte de seu modus operandi era colher detalhes “romanescos”, os

anéis, a transpiração, os socos no ombro, e ele fazia isso com mais habilidade que a

maioria dos romancistas” (WOLFE, 2005, p. 26, grifo do autor). Dessa forma,

Breslin, Talese, o próprio Wolfe, dentre outros, iam além dos limites do Jornalismo

convencional. Com o New Journalism, trouxeram “à luz dos holofotes o mesmo

timbre comum de sensualidade, de mergulho completo, corpo e mente, na realidade,

como acontecia em todas as formas de expressão da contracultura” (PEREIRA

LIMA, 2004, p. 195).

O material produzido durante a década de 1960 nos Estados Unidos

conseguiu desafiar tanto os repórteres quanto o público. O tipo de reportagem que

faziam parecia muito mais ambicioso também para eles. As reportagens eram

intensas, cunhadas a partir de muito contato com os “personagens” retratados. Ir

além do “clássico” era uma regra, mesmo que velada, bem como presenciar cenas

dramáticas, captar gestos e diálogos, expressões, detalhes. “A ideia era dar a

descrição objetiva, completa, mais alguma coisa que os leitores sempre tiveram de

procurar em romances e contos: especificamente, a vida subjetiva ou emocional dos

personagens” (WOLFE, 2005, p. 37). Com isso, o texto suscitava algum entusiasmo

no leitor, excitava tanto sua intelectualidade quanto seu lado emocional.

Segundo Wolfe (2005), havia outra barreira em relação à escrita de não-

ficção: a voz no narrador. Conforme o autor, muitos daqueles que “embarcaram” no

New Journalism continuaram, inconscientemente, seguindo a tradição romanesca na

qual o narrador é alguém “neutro”. Contudo, “não há nenhuma lei que diga que o

narrador tem de falar em bege ou mesmo no jornalês” (WOLFE, 2005, p. 33). Dessa

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forma, o autor explica que passou a pensar a ação pelos olhos de alguém que

estava, de fato, envolvido na cena. Essa era uma das características de Wolfe. As

outras eram maneirismos na escrita, como o uso exacerbado de pontos, travessões,

pontos de exclamação, itálico, interjeições, onomatopeias e pleonasmos (WOLFE,

2005).

Com o tempo, os veículos por meio dos quais o New Journalism propagou-se

mudaram, evoluíram. Das colunas dos periódicos passou-se às revistas

independentes até chegar-se àquele que sempre foi o objeto de adoração dos

repórteres: o livro. Mesmo em forma de livro, os jornalistas continuaram a fazer o

que sabiam: escrever sobre a realidade. Foi com o livro-reportagem que alcançaram,

por fim, o estrelato narrativo. O marco inicial da maturidade foi a obra A Sangue Frio,

de Truman Capote.

2.2.2 Livro-reportagem

Um livro-reportagem não é um livro qualquer. Existem características que o

distinguem das demais publicações. Uma delas é o conteúdo, que deve ser

exclusivamente factual, não havendo espaço para a ficcionalidade. Outra

peculiaridade é a linguagem, fundamentalmente jornalística. O terceiro aspecto é

sua função, que atende às necessidades do Jornalismo. Há, contudo, um atributo

próprio aos livros, que é conferido à narrativa jornalística quando essa é publicada

em suas páginas: a perenidade. O jornal carrega o estigma da efemeridade. A partir

do primeiro contato com o leitor, ele está fadado ao esquecimento. Porém, o destino

das obras literárias parece ser o oposto, o da perpetuidade.

Portanto, ao aproximar-se o máximo possível da Literatura, “o jornalismo

parece ensaiar uma tentativa de resistir à possibilidade iminente do perecimento”

(BULHÕES, 2007, p. 191). As obras literárias também não levam em conta a

contemporaneidade ou a factualidade, aspectos dos quais depende uma publicação

diária para sobreviver. Bulhões (2007) explica que um produto próprio da Literatura

“ganha vida” no momento em que é lido, não sendo realmente relevante a época em

que foi escrito. O exemplo usado pelo autor é o romance Moby Dick, de Herman

Melville, publicado no século XIX. Mesmo existindo há mais de um século, a obra se

energiza “no momento em que entram em ação seus componentes expressivos,

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lúdicos e ficcionais, despertando a grande baleia branca que até então repousava na

estante” (BULHÕES, 2007, p. 17-18).

Segundo Edvaldo Pereira Lima (2004, p. 1), autor que propôs-se a conceituar

este tipo de publicação, o livro-reportagem “desempenha um papel específico, de

prestar informação ampliada sobre fatos, situações e ideias de relevância social,

abarcando uma variedade temática expressiva”. O “Jornalismo de livro” está bem

disseminado na cultura ocidental. Presentes em países como Estados Unidos,

Inglaterra, França, Alemanha, entre outros, os livros-reportagens contaram histórias

diversas, abordando a produção de petróleo, um sequestro de avião, a construção

de uma ferrovia e a história de independência da Índia, entre tantas outras

(PEREIRA LIMA, 2004).

No Brasil, como descrito na Introdução, a obra Os Sertões, de Euclides da

Cunha, pode ser considerada como uma das publicações precursoras nesse estilo;

já Vidas Secas, de Graciliano Ramos, é uma das mais bem sucedidas. Além de

Cunha e Ramos, há outros autores que se destacaram no âmbito editorial nos

últimos anos, como Fernando Morais (Olga; Chatô, o Rei do Brasil), Ruy Castro

(Estrela solitária) e Caco Barcellos (Abusado – O Dono do Morro da Dona Marta).

O livro-reportagem é conceituado como um gênero da prática jornalística,

devido “as suas especificidades relacionadas com a função aparente que exerce,

com os elementos operativos de que se utiliza” (PEREIRA LIMA, 2004, p. 62). O

gênero também é entendido como um subsistema híbrido, que engloba os mundos

jornalístico e editorial. Como subsistema do Jornalismo, seu catalisador é a grande-

reportagem. O autor explica que

é visando uma narrativa ampliada que o jornalista se propõe a produzir um livro-reportagem. É na expectativa de encontrar a explicação que o jornal não deu ou de ser informado das ações de bastidores, subjacentes à ocorrência relatada na revista, que o leitor pode motivar-se a um aprofundamento na grande-reportagem que o livro propõe. (PEREIRA LIMA, 2004, p. 39)

Esse aprofundamento capaz de atrair o leitor pode aparecer em assuntos de

diversas naturezas. As temáticas que podem ser abarcadas pelo livro-reportagem

são tantas que Pereira Lima (2004) as classificou por grupos. Portanto, há livros-

reportagens perfil, depoimento, retrato, ciência, ambiente, história, nova consciência,

instantâneo, atualidade, antologia, denúncia, ensaio e viagem.

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Esse gênero jornalístico caracteriza-se por não estar submetido à rotina do

Jornalismo industrial. Por essa razão, muitos jornalistas o veem como um meio para

exercitarem suas habilidades narrativas e, ao mesmo tempo, aproximarem-se da

Literatura. Com afirmado anteriormente, foi por meio dos livros-reportagens que o

New Journalism chegou a um patamar de excelência, à maturidade e, dessa forma,

despertou a atenção dos literatos. Pereira Lima (2004) conta que esse

reconhecimento, mesmo que ainda parcial, é fruto da contribuição de um renomado

ficcionista que decidiu adentrar o mundo do Jornalismo. Seu nome era Truman

Capote e a obra “que provocaria uma sensação espantosa e acabaria fornecendo

munição pesada em favor do New Journalism” (BULHÕES, 2007, p. 148) chamava-

se A Sangue Frio.

A publicação da obra ocorreu no ano de 1966. Porém, o fato que o originou

ocorreu sete anos antes, em 1959. Na pequena cidade de Holcomb, no interior do

Kansas, Estados Unidos, vivia a família Clutter, formada por Herbert, Bonnie, Nancy

e Kenyon. Na noite de 15 de novembro, os quatro foram assassinados brutalmente

por Richard – Dick – Hickock e Perry Smith. Ao saber do ocorrido, Capote seguiu até

a cidade com a intenção de escrever um artigo para a revista The New Yorker,

abordando quais os efeitos do crime misterioso no cotidiano dos moradores. Porém,

mais de um mês após os assassinatos, no dia 30 de dezembro, foi anunciada a

prisão dos dois suspeitos, fato que alteraria os planos de Capote. “A partir daí, ele

começou a ver naquele acontecimento um manancial temático viçoso para exercitar

suas habilidades narrativas em um trabalho de fôlego” (BULHÕES, 2007, p. 150-

151).

Desde sua chegada a Holcomb até o dia em que finalizou A Sangue Frio

foram quase seis anos de trabalho, realizados com muito arrojo, ao estilo do

Naturalismo de Zola. Para descobrir como era a vida que os Clutter levavam e os

motivos que levaram Hickock e Smith a matarem os quatro, Capote utilizou técnicas

jornalísticas e foi além. Conversou com o máximo de moradores possíveis “daquela

assustada cidadezinha – ele as ouvia repetidamente e o fazia sem anotar ou gravar,

procurando deixar seus depoentes à vontade” (BULHÕES, 2007, p. 151). Além de

conversas, o escritor buscou documentos, leu os depoimentos dados à Justiça pelos

acusados e aproximou-se inclusive deles, tornando-se confidente de ambos durante

os anos que passaram na prisão, aguardando o cumprimento da sentença de morte.

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O que pode ser ressaltado em relação à obra de Capote é que em momento

algum o escritor pensou estar criando algo que pertencesse, nem mesmo

remotamente, ao movimento que surgia na época, ou que veria seu nome associado

a essa nova vertente do Jornalismo. Até porque, além do fato de ter começado a

produção da obra antes do advento do New Journalism, Capote sempre afirmou que

o livro não pertencia, efetivamente, ao Jornalismo, “mas a um novo gênero

desbravado exatamente por ele: “o romance de não-ficção”” (BULHÕES, 2007, p.

148).

Apesar da negação, A Sangue Frio marcou época e influenciou, certamente,

os trabalhos do “Novo Jornalismo” que vieram posteriormente. Tanto que, dois anos

depois do lançamento de Capote, Norman Mailer, outro ficcionista renomado,

passou a “integrar o time” do movimento, “denominando seu Os exércitos da noite

de “história como romance, romance enquanto história”” (PEREIRA LIMA, 2004,

197). O livro foi tão bem recebido pela crítica que rendeu a Mailer o Pulitzer de não-

ficção geral de 1968.

Apesar de haver grandes romancistas utilizando técnicas jornalísticas para

compor suas obras literárias, dentro dos padrões do New Journalism, a ligação que

eles possuíam com o Jornalismo não era, de fato, profunda; não era parecida com a

que um repórter tem com sua profissão. A conexão do repórter com o Jornalismo vai

além das palavras; é um vínculo ideológico, quase ilógico, que faz com que os

jornalistas sigam neste ofício pouco prestigiado e, paradoxalmente, de enorme

responsabilidade social.

Neste capítulo, o assunto foi o Jornalismo. Foram abordados seus pontos

mais relevantes, desde sua história, na qual destacaram-se os acontecimentos que

lapidaram o modelo de Jornalismo atual. Também foram conceituados seus

principais produtos, a notícia e a reportagem. Além disso, abordou-se o gênero do

Jornalismo Literário, bem como seus subprodutos, o New Journalism e o livro-

reportagem. Saindo do mundo das letras e adentrando o mundo das imagens, as

histórias em quadrinhos serão o tema do próximo capítulo. Nele, será tratada a

origem dos quadrinhos, suas principais influências e as particularidades que os

configuram como uma linguagem autônoma.

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3 OS QUADRINHOS

Um menino careca, descalço, vestido com um camisolão amarelo conversou

com um papagaio, nas páginas do New York Journal, pela primeira vez, no dia 25 de

outubro de 1896. Foi dessa forma que o americano Richard Fenton Outcault tornou-

se “o pai” das histórias em quadrinhos (CAMPOS, 2015). O menino em questão era

o pequeno irlandês Mickey Dugan, que ficou conhecido como Yellow Kid, o Menino

Amarelo. Sua primeira aparição foi em uma inovadora tira de jornal, de uma história

chamada Hogan’s Alley, da qual era protagonista. Outcault morreu em 1928. Rogério

de Campos (2015, p. 11) conta que, na ocasião da morte do desenhista, o jornal de

sua cidade natal, The Lancaster Daily Eagle, publicou um longo obituário. Na

segunda frase do oitavo parágrafo, o texto afirmava que “ele pode ser chamado de

pai dos suplementos de quadrinhos de jornal, já que foi a ele que o editor deu o

privilégio de produzir um comic de página inteira”.

Ao contrário do que foi afirmado, intitular Outcault, durante décadas, de

inventor dos quadrinhos foi um equívoco, que ocorreu muito provavelmente por uma

leitura errônea dos obituários. Porém, com o tempo, o entendimento em relação às

histórias em quadrinhos mudou. Hoje, há relatos que afirmam que sua origem é

muito mais antiga que a existência do Yellow Kid ou do próprio Outcault e que as

chamadas HQs passaram por diversas transformações no decorrer dos anos. Para

Dan Mazur e Alexander Danner (2014, p. 7), a resolução da questão de quem os

inventou se mostra cada vez menos relevante. O que se deduz, a partir das

discussões, “é que nenhuma cultura ou país pode reivindicar a propriedade dos

quadrinhos. A propensão de contar histórias com figuras, combinando imagem e

texto, parece universal”. Entendeu-se também que, antes de ater-se à discussão de

quem os criou, era necessário defini-los. “Afinal, na ausência do que a coisa é, mais

difícil se torna postular o que a coisa foi” (LINCK, SD, apud CAMPOS, 2015, p. 17).

Contudo, as definições de história em quadrinhos são mutantes: elas variam,

dependendo do viés pelo qual forem observadas. Portanto, o objetivo deste capítulo

é trazer à luz os aspectos mais relevantes da composição e da trajetória dos

quadrinhos. A história das HQs irá de basear, principalmente, em Campos, autor que

lançou, em 2015, o livro Imageria: o nascimento das histórias em quadrinhos. Além

disso, discorre-se sobre suas características narrativas e apontam-se peculiaridades

que conferem às histórias em quadrinhos o título de “linguagem”.

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3.1 UM MEIO ESSENCIALMENTE VISUAL

“O meio a que chamamos histórias em quadrinhos se baseia numa ideia

simples: a [...] de posicionar uma imagem após a outra para ilustrar a passagem do

tempo” (McCLOUD, 2006, p. 1, grifo do autor). Ilustração e prosa combinadas.

Desde que Outcault “preencheu o céu” de suas criações com balões de fala, ainda

no princípio do século passado, os quadrinistas têm trabalhado, em suas obras,

integrando imagens e palavras. Entretanto, mesmo com essa relação direta, que

propicia uma leitura diferenciada das inúmeras produções desta arte sequencial, “as

histórias em quadrinhos são, essencialmente um meio visual composto de imagens”

(EISNER, 2013, p. 5).

Para o autor, apesar de as palavras constituírem-se em um componente vital

das histórias, a dependência mais significativa em relação à descrição, e também à

narração, recai sobre as imagens, essas entendidas de forma universal. Ou seja,

como explica o psiquiatra José A. Gaiarsa (in MOYA, 1977, p. 117), “qualquer

cidadão de qualquer país reconhecerá um gato desenhado – mesmo que mal

desenhado; o mesmo não se poderá dizer da palavra”. Mas, como funciona, de fato,

a relação entre o que é imaginado e o que é transposto para o papel?

3.1.1 Imagem

“Várias vezes escutamos dizer que uma imagem vale mil palavras. Ela seria

infinitamente mais expressiva, mais fiel aos fatos do que o nosso discurso” (NEIVA

JR, 1986, p. 5). A importância histórica da imagem para a comunicação humana,

bem como o “senso de realidade” por ela trazido, podem explicar sua grandiosidade

perante outras formas de representação. Lucia Santaella e Winfried Nöth (2001, p.

13) apontam que desde milênios antes do surgimento do registro da primeira

palavra, quando as pinturas pré-históricas tomavam conta das paredes das

cavernas, “imagens têm sido meios de expressão da cultura humana”.

E. H. Gombrich (1986) corrobora o fato de que as primeiras representações

tiveram como suporte materiais oferecidos pela natureza, como a pedra. Durante

muito tempo, os meios de reprodução das imagens eram escassos. Pode-se dizer

que antes do surgimento de um suporte específico, que permitisse sua multiplicação,

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o mundo imagético estava fortemente restrito ao domínio imaterial, ou seja, à mente.

De acordo com Santaella e Nöth (2001, p. 15), “neste domínio, imagens aparecem

como visões, fantasias, imaginações, esquemas, modelos ou, em geral, como

representações mentais”.

Entretanto, esse cenário sofreu mudanças com o surgimento do papel. “A

folha de papel é um suporte posterior que idealiza a imagem, oferecendo-lhe

possibilidades que a determinarão” (GOMBRICH, 1959, apud NEIVA JR., 1986, p.

23). Uma das possibilidades ofertadas pelo papel é a do desenvolvimento do mundo

das imagens como representações visuais. Santaella e Nöth (2001, p. 15) explicam

que esse, que é outro domínio do mundo imagético, incorpora “desenhos, pinturas,

gravuras, fotografias e as imagens cinematográficas, televisivas, holo e infográficas”.

Apesar da divisão entre os domínios, eles não poderiam existir

separadamente, pois, afinal, “não há imagens como representações visuais que não

tenham surgido de imagens na mente daqueles que as produziram” (SANTAELLA;

NÖTH, 2001, p. 15). O inverso também ocorre, o que quer dizer que toda imagem

mental tem sua origem em algo concreto. Portanto, o conceito de imagem, em um

campo semântico, é determinado por dois polos: o da percepção e o da imaginação.

Thomas Mitchell (1986, apud SANTAELLA; NÖTH, 2001, p. 36), divide as imagens

em cinco tipos: óticas, perceptíveis, mentais, verbais e, por fim, gráficas, que

compreendem desenhos ou pinturas.

Para Santaella e Nöth (2001, p. 37), há duas formas pelas quais as imagens

podem ser observadas. A primeira delas é “em si mesmas, como figuras puras e

abstratas”. A segunda forma de analisá-las é na qualidade de signos que, de acordo

com os autores, “representam aspectos do mundo visível” (SANTAELLA; NÖTH,

2001, p. 37). Os signos, na semiótica de Peirce14, compõem toda a forma de

linguagem, da imagética à verbal. O signo sempre será uma forma de

representação, de significação dos fenômenos e objetos. Peirce divide os signos em

três categorias: ícone, índice e símbolo. Na categoria de ícone, a associação do

signo com o objeto se dá por semelhança (SANTAELLA; NÖTH, 2001). Para Peirce,

os signos icônicos

14

O conteúdo relacionado aos estudos de semiótica (estudo dos signos, ou seja, da significação dos fenômenos), desenvolvidos por Charles Sanders Peirce, é proveniente das aulas de Teorias da Comunicação II, da Universidade de Caxias do Sul, ministradas pela professora Ivana Almeida da Silva, no primeiro semestre do ano de 2013.

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substituem tão completamente seus objetos a ponto de se distinguirem deles com dificuldade. [...] Assim, quando contemplamos uma pintura, há um momento em que perdemos a consciência de que ela não é a coisa, a distinção entre o real e a cópia desaparece. (PEIRCE, SD, apud SANTAELLA; NÖTH, 2001, p, 144)

Portanto, pode-se dizer que as imagens gráficas da tipologia de Mitchell

pertencem à classe dos ícones. Peirce não foi o único a abordar a iconicidade da

imagem. Outros autores também desenvolveram teorias em relação ao tema. A

noção de que as imagens funcionam como signos icônicos, ou seja, que se

assemelham aos objetos de referência, “é não somente senso comum, mas também

foi compartilhada por filósofos desde Platão sem ser questionada por muito tempo”

(GOMBRICH, 1981, p. 11, apud SANTAELLA; NÖTH, 2001, p. 39).

Thomas Gibson abordou as imagens como ícones por meio de outro viés.

Para o autor, “a visão dos objetos ao nosso redor é [...] determinada pela percepção

das chamadas invariantes” (GIBSON, 1979, apud SANTAELLA; NÖTH, 2001, p. 39),

aspectos que permanecem constantes, independentemente da movimentação do

observador ou o objeto. Seguindo o raciocínio de Santaella e Nöth (2001), as

invariantes são os aspectos retratados pelos desenhistas, que representam a

relação de semelhança com os objetos, ou seja, a iconicidade da imagem, que

permitirá que essa seja reconhecida por terceiros. Em relação à recognição, Jaques

Aumont afirma que,

de modo geral o trabalho do reconhecimento aciona não só as propriedades “elementares” do sistema visual, mas também capacidades de codificação já bastante abstratas: reconhecer não é constatar uma similitude ponto a ponto, é achar invariantes da visão, já estruturados, para alguns, como espécies de grandes formas. (AUMONT, 2012, p. 83, grifo do autor)

Dito isso, o mundo representado pelas imagens não pode ser concebido

como real15. Contudo, graças aos aspectos invariantes é possível criar a sensação

de realidade, evocar a semelhança com o que se tem como verdadeiro. Para

Aumont (2012, p. 82) “reconhecer alguma coisa em uma imagem é identificar, pelo

menos em parte, o que nela é visto com alguma coisa que se vê ou se pode ver no

15

Nesta monografia utiliza-se a palavra “real” buscando seu significado mais superficial, buscando criar um contraponto com aquilo que pertence ao mundo imagético, sem a intenção de suscitar uma discussão mais aprofundada sobre o assunto. Nesse sentido, “real” descreve aquilo que existe, de fato, no mundo físico.

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real”. Porém, muito do trabalho de assimilar a imagem ao objeto é delegado ao

espectador.

Para Gombrich, o espectador desempenha um papel profundamente ativo: o

da “construção visual do “reconhecimento”, emprego dos esquemas da

“rememoração”, junção de um com a outra para a construção de uma visão coerente

do conjunto da imagem. [...] é ele (espectador) quem faz a imagem.” (GOMBRICH,

1959, apud AUMONT, 2012, p. 91, grifo da pesquisadora). Gombrich sempre tratou,

em suas teorias, da imagem relacionada diretamente à arte. Em decorrência disso

ele afirma que

o trabalho que o artista confia ao espectador adquire importância cada vez maior: o artista lança o espectador no círculo mágico da criação e lhe oferece uma pequena parcela dessa embriaguez de criar, o que até então era privilégio seu. (GOMBRICH, 1959, apud NEIVA JR, 1986, p. 23)

Viu-se que a compreensão da imagem pelo observador é fundamental. Essa

relação entre criador e espectador é um dos fatores que possibilita que as imagens

sejam utilizadas, há milênios, como um meio de contar histórias. As chamadas

narrativas gráficas, aqui exemplificadas pelas histórias em quadrinhos, são belos

exemplos desse potencial colocado em prática. Para Eisner (2013, p. 11) “o ato de

contar histórias está enraizado no comportamento social dos grupos humanos –

antigos e modernos”.

Ainda de acordo com o autor, as histórias servem para transmitir ou discutir

ideias e valores, para dramatizar relações sociais, propagar determinados

comportamentos e, até mesmo, para satisfazer curiosidades. Conforme Eisner

(2013), palavras (oral e escrita) e imagens são as duas principais formas de contar

histórias. No caso dos quadrinhos, as duas estão combinadas e formam uma nova

linguagem.

Nos quadrinhos, há ferramentas próprias para narrar histórias. A principal

delas, a imagem, já foi abordada. Porém, o simples fato de desenhar aleatoriamente

e mesclar tais desenhos a um texto não irá constituir uma história em quadrinhos.

Para que isso ocorra, efetivamente, há muitos outros aspectos que devem ser

levados em conta antes que a ideia seja, finalmente, transposta para o papel. Para

Eisner (2013), é a aplicação correta de ambos os aspectos que confere aos

quadrinhos a possibilidade de tornarem-se uma forma de narrativa.

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3.1.2 Narrativa imagética

Imagens que se distanciam da abstração têm o poder de evocar a realidade.

Isso ocorre porque o universo visual concede às pessoas incontáveis referências

para que identifiquem o que está sendo representado em um desenho, em uma

pintura, em uma fotografia, na tela do cinema ou da televisão. Imagens são

acessíveis, definitivas, universais. Por essa razão, podem ser utilizadas para contar

histórias. Eisner (2013, p. 19) descreve imagem como “a memória de um objeto ou

experiência gravada pelo narrador fazendo uso de um meio mecânico (fotografia) ou

manual (desenho)”.

Para criar, de fato, uma narrativa por meio de imagens é necessária uma

estruturação. Assim como acontece com a escrita, uma história gráfica é composta

por início, meio e fim, seguindo princípios básicos da narração (EISNER, 2013).

Assim, volta-se à afirmação de McCloud (2006) de que as histórias em quadrinhos

se baseiam na ideia de posicionar uma imagem após a outra. A definição da

linguagem, proposta pelo próprio autor, parte dessa noção básica de continuidade:

“imagens pictóricas e outras justapostas em sequência deliberada destinadas a

transmitir informações e/ou a produzir uma resposta no espectador” (McCLOUD,

2005, p. 9). A definição elaborada por McCloud, englobando apenas imagens, é

similar à descrição de Eisner (2013, p. 10) para arte sequencial: “Uma série de

imagens dispostas em sequência”.

Contudo, quando o autor aborda exclusivamente as histórias em quadrinhos,

ele as descreve como “a disposição impressa de arte e balões em sequência,

particularmente como é feito nas revistas em quadrinhos” (EISNER, 2013, p. 10). Vê-

se então que a palavra surge como item essencial à composição das HQs.

Estudiosos da história dos quadrinhos – que será abordada a seguir –, afirmam que

a linguagem surgiu, verdadeiramente, quando o desenhista Richard Outcault utilizou

balões para representar a fala dos personagens. Segundo McCloud (2005), o balão

é o recurso gráfico mais utilizado dos quadrinhos.

Para Paulo Ramos (2009, p. 34), “os balões talvez sejam o recurso que mais

identifica os quadrinhos como linguagem”, por conferirem originalidade às HQs.

Eisner (1989, apud RAMOS, 2009, p. 32) conceitua balão como o “recipiente do

texto-diálogo proferido pelo emissor”. A ideia do recurso é realmente essa, a de

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representar falas. Para Umberto Eco (1993, apud RAMOS, 2009, p. 33), o balão

pode significar tanto o discurso de expressão quanto o discurso pensado. Esse

elemento é tão conhecido que, de acordo com Ramos (2009, p. 32, grifo do autor),

“os italianos deram o nome de “fumetti” aos quadrinhos, uma alusão ao molde de

“fumacinha” do balão de pensamento”.

Dois elementos essenciais constituem o balão: “o continente (corpo e

rabicho/apêndice) e o conteúdo (linguagem escrita ou imagem)” (ACEVEDO, 1990,

apud RAMOS, 2009). O continente pode apresentar-se em formatos distintos.

Conforme Ramos (2009), a variação da linha que contorna o balão é a chave para o

entendimento dos diferentes significados das falas. Ainda segundo o autor, a linha

contínua indica a fala comum; a linha ondulada configura um pensamento e a linha

pontilhada simboliza um sussurro, entre outras. Esses aspectos salientam o fato de

que, nos quadrinhos, até mesmo a fala é reproduzida visualmente. O que se obtém

por intermédio das palavras é a ideia de som, seja de efeitos sonoros (por meio de

onomatopeias16) ou da voz dos personagens.

O além do corpo do balão, o continente conta com o apêndice. Esse recurso

expressivo, segundo Ramos (2009), também conta com variações que carregam

diferentes significados. Para Cagnin (1975, apud RAMOS, 2009, p. 43), o apêndice

“é a forma de os quadrinhos representarem o discurso direto”. No modelo tradicional

existe apenas um apêndice. Contudo, há casos de balões-uníssonos, nos quais a

fala é pronunciada, simultaneamente, por dois personagens (RAMOS, 2009); e

existem balões sem apêndice. Ainda de acordo com o autor, as mudanças ocorrem

de acordo com a criatividade dos desenhistas.

Apesar da relevância, o balão não é o único recurso utilizado para representar

as vozes que integram os quadrinhos. Essas também podem aparecer em forma de

legenda. Segundo Ramos (2009), as legendas se distinguem dos balões pelo

formato, que é retangular. Autores como Vergueiro (2006, apud RAMOS, 2009, p.

49, grifo do autor), a legenda deve aparecer “no canto superior do quadrinho, antes

da fala dos personagens, para representar “a voz do narrador onisciente””. Contudo,

Ramos (2009) defende que o narrador-personagem também tem direito ao uso do

recurso.

16

Onomatopeia é uma figura de linguagem que tem a função de caracterizar as expressões e significações das imagens (MELO, 2010). Disponível em: <http://dmd2.webfactional.com/media/anais/HISTORIA-E-QUADRINHO-E-MIDIA.pdf>. Acesso em: 02/05/2016.

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Observa-se que tanto os balões quanto as caixas de legenda têm como

objetivo “abarcar” as palavras da narrativa. Para McCloud (2005), a palavra, dentro

da linguagem dos quadrinhos, se enquadra na categoria dos ícones. Contanto,

deve-se salientar que a ideia de “ícone” proposta pelo autor não segue o padrão

semiótico estabelecido por Peirce. McCloud (2005, p. 27) utiliza a palavra para

referir-se a “qualquer imagem que represente uma pessoa, local, coisa ou ideia”. Os

ícones dos comics propostos pelo autor dividem-se, ainda, entre outras categorias.

Os símbolos, usados para representar conceitos – como a suástica, por exemplo –,

constituem-se em uma dessas categorias. Existem também ícones do reino prático,

como letras e números. Por último, há os ícones chamados de figuras. McCloud

(2005, p. 27, grifo do autor) os caracteriza como “imagens criadas para se

assemelharem a seus temas”.

Na categoria das figuras encontram-se imagens de pessoas – ou partes do

corpo, como a cabeça – animais, comidas e outros objetos. Ainda de acordo com o

autor, a variação na semelhança entre o objeto real e a imagem causam mudanças

no conteúdo icônico, fazendo com que algumas figuras tornem-se mais icônicas que

outras, variando entre realistas e abstratas. A fisionomia humana é um belo exemplo

dessa variação entre realismo e abstração. Em grande parte dos quadrinhos,

indivíduos são representados por figuras que pendem para o lado da abstração.

Com o objetivo de simplificar feições, afasta-se do realismo e chega-se ao ícone

chamado cartum. Conforme McCloud (2005), o cartum não significa a eliminação de

detalhes, mas a concentração nos aspectos específicos da fisionomia. Ao simplificar

uma imagem, amplia-se sua significação. “Quanto mais cartunizado é um rosto, mais

pessoas ele pode descrever” (McCLOUD, 2005, p. 31).

Eisner (2013) trata dessa simplificação das imagens em cartuns pelo viés dos

estereótipos. Para o autor, “no dicionário “estereótipo” é definido como uma ideia ou

um personagem que é padronizado numa forma convencional, sem individualidade.

Como adjetivo, “estereotipado” se aplica àquilo que é vulgarizado” (EISNER, 2013,

p. 21, grifo do autor). Mesmo compreendendo o estigma carregado pelo termo,

Eisner (2013) explica que os estereótipos são comuns nos quadrinhos, sendo que o

meio lida com reproduções que precisam ser facilmente reconhecidas. Nas HQs, “os

estereótipos são desenhados a partir de características físicas comumente aceitas”

(EISNER, 2013, p. 22). Dessa maneira, eles se enquadram na definição de ícone,

proposta por McCloud (2005), e tornam-se parte da linguagem quadrinística.

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Enquanto o cartum possui um nível elevado de abstração, “as palavras são a

maior abstração de todas” (McCLOUD, 2005, p. 47). Para o autor, apesar de muitos

tratarem imagem e texto separadamente, as histórias melhor desenvolvidas são

aquelas que trabalham essas diferentes formas de expressão de maneira

harmoniosa. Nos quadrinhos, imagens são informações recebidas, ou seja, não é

necessária uma educação formal para entendê-las. Já a escrita é informação

percebida, o que quer dizer que é preciso determinado conhecimento para

decodificá-la (McCLOUD, 2005). Portanto, é necessário que os quadrinistas pensem

em imagem e texto como uma linguagem só, unificada. Para McCloud, nas histórias

em quadrinhos

as palavras e imagens são como parceiros de dança e cada um assume sua vez conduzindo. [...] Quando as figuras carregam o peso da clareza numa cena, liberam as palavras para explorar uma área mais ampla. [...] Por outro lado, se as palavras se prenderem ao “significado” de uma sequência, então as figuras realmente podem decolar. (McCLOUD, 2005, p. 156-157, grifo do autor)

Dentre todos os ícones que integram o vocabulário das HQs, o de maior

relevância acaba, na maioria das vezes, esquecido. McCloud (2005, p. 98) explica

que, “assim como o maior órgão do nosso corpo – nossa pele – raramente é

considerada um órgão, o quadro em si é negligenciado como o ícone mais

importante dos quadrinhos”. Os quadros são as molduras que recebem os

desenhos. Seu formato padrão é o retângulo. Entretanto, o quadro também pode

aparecer sem contorno, assumindo, dessa forma, uma qualidade atemporal. Ainda

de acordo com o autor, também há “quadros sangrados”, que extrapolam a margem

da página. Nesses casos, “o tempo não é mais contido pelo ícone familiar do quadro

fechado. Ele sofre uma hemorragia e escapa para o espaço infinito” (McCLOUD,

2005, p. 103, grifo do autor). A importância dos quadros para a narrativa é justificada

pelo fato de poderem conter todos os outros ícones pertencentes aos quadrinhos

(McCLOUD, 2005).

As HQs são, para McCloud (2006), um idioma que tem seu cerne no espaço

existente entre um quadro e outro, mais conhecido como “sarjeta”. De acordo com o

autor, é na sarjeta que “a imaginação do leitor dá vida a imagens inertes”

(McCLOUD, 2006, p. 1). Moacy Cirne (2000) utiliza um termo técnico para referir-se

a tal espaço. Diferentemente de McCloud, ele os chama de “cortes gráficos”. Para

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Cirne (2000), são os cortes que agenciam as imagens e impulsionam a narrativa. O

discurso dos autores é reforçado por Ramos (2009, p. 18), que diz que “o tempo da

narrativa avança por meio da comparação entre o quadrinho anterior e o seguinte ou

é condensado em uma única cena”.

Voltando à McCloud (2005, p. 67), entende-se que os quadros “fragmentam o

tempo e o espaço, oferecendo um ritmo recortado de momentos dissociados”.

Porém, ainda segundo o autor, o leitor torna-se participativo e, por meio do poder de

conclusão que lhe é inerente, é capaz de conectar os momentos separados por

cortes espaço-temporais e, assim, criar a ilusão de uma realidade contínua. Dessa

forma, de acordo com Cirne, pode-se dizer que

os quadrinhos, por uma exigência semiótica, impõem uma leitura dinâmica e simultânea. Esta simultaneidade, mesmo nos autores mais clássicos, será uma de suas marcas registradas, com todo o seu radicalismo gráfico e narrativo. (CIRNE, 2000, p. 150)

Dito isso, compreende-se que o leitor é peça fundamental para as HQs e que

há um acordo implícito entre narrador e sua audiência. De acordo com Eisner (2013,

p. 53), presume-se que, nas histórias em quadrinhos, o leitor preencha lacunas

relacionadas ao tempo, espaço, sons e emoções. “Para que isso ocorra, um leitor

deve não apenas se utilizar de reações viscerais, mas também fazer uso de um

acúmulo razoável de experiências” (EISNER, 2005, p. 53). Em decorrência dessa

autonomia, é possível que a mesma sarjeta signifique coisas diferentes para cada

leitor ou, até mesmo, para o leitor, a cada leitura. Conforme McCloud (2005, p. 69),

“matar um homem entre quadros significa condená-lo a milhares de mortes”.

A responsabilidade pela “boa relação” entre criador e público pesa mais sobre

os ombros do narrador do que do leitor. McCloud (2005) explica que esse “pacto”

entre os dois lados depende da arte e da habilidade do quadrinista. É ele quem

decide como irá realizar a transição quadro a quadro da história. Para tanto, o

criador está habilitado a escolher dentre determinadas categorias. São elas:

momento-a-momento, ação-para-ação, tema-para-tema, cena-a-cena, aspecto-para-

aspecto e non-sequitur (que não oferece sequência lógica) (McCLOUD, 2005). Em

uma análise dos quadrinhos do Ocidente, percebe-se uma ocorrência maior da

transição ação-para-ação. Para McCloud (2005, p. 81), isso explica-se pelo fato de a

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cultura ocidental ser orientada pela objetividade. O mesmo não ocorre no Oriente,

onde os artistas “tem uma tradição de obras de arte cíclicas e labirínticas”.

As escolhas feitas pelos quadrinistas têm como objetivo o controle sobre o

leitor. Para Eisner (2013, p. 55), dois estágios separam o narrador do manejo do seu

público: a atenção e a retenção. “A atenção se consegue com imagens provocantes

e atraentes. A retenção é obtida através de uma organização lógica e inteligível das

imagens”. O grande problema enfrentado por criadores é que o quadrinho é uma

mídia impressa. Portanto, basta que o leitor folheie as páginas para descobrir o

desfecho da história. Em razão disso, não basta o bom emprego da técnica se não

houver comprometimento com o conteúdo. “Não é feita nenhuma tentativa de

surpreender o leitor com um impacto gráfico. Deixamos isso para a atuação dos

personagens” (EISNER, 2013, p. 56).

Além da sarjeta, os personagens também são responsáveis pelo avanço da

ação na narrativa. Por meio de suas atuações, busca-se utilizar aspectos com os

quais os leitores possam identificar-se. Sentimentos como a empatia, como afirmou-

se na introdução, constituem-se em um bom fio condutor de uma história (EISNER,

2013). “Há uma coisa muito particular que acontece ao leitor enquanto ele “partilha”

a experiência de ator. [...] os sentimentos do protagonista são compreensíveis para o

leitor, que teria emoções similares nas mesmas circunstâncias” (EISNER, 2013, p.

90, grifo do autor). Obviamente, tais aspectos e as maneiras de captar a atenção do

leitor por meio de uma ligação emocional devem ser levados em conta no momento

da criação de uma HQ.

3.1.3 Criar para os quadrinhos

“A arte sequencial é o ato de urdir um tecido” (EISNER, 1989, p. 122). Com

tantos elementos narrativos à disposição dos quadrinistas, cabe a esses artistas

ordenar cada um deles de forma muito bem pensada e, então, entrelaçá-los,

cuidadosamente, para que formem uma história coesa, consistente. Criar para os

quadrinhos significa desenvolver um conceito que poderá ser traduzido em imagens.

Para Eisner (2013, p. 155), quando trabalha-se com imagem e texto em mente, os

dois elementos “se combinam e emergem como um todo sem emendas”.

Ainda seguindo a linha de raciocínio do autor, em um processo ideal de

criação de uma HQ, as funções de escritor e artista são desenvolvidas pela mesma

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pessoa. Uma obra que parte desse preceito reflete de forma íntima o conceito inicial.

Além disso, no processo se “encurta a distância entre a ideia e sua tradução”

(EISNER, 2013, p. 115). Contudo, o produto final dificilmente será a cópia exata da

ideia do artista. Até porque essa ideia passa por diversas conversões até tomar a

forma da revista em quadrinhos, com a qual os leitores entrarão em contato.

Segundo McCloud (2005, p. 195), “nos quadrinhos a conversão segue da mente

para a mão, para o papel, para o olho, para a mente”, quase como em um ciclo.

Quando a HQ é elaborada por mais de uma mente, mais de um “par de

mãos”, a mensagem é ainda mais “distorcida” até chegar à sua forma definitiva.

Nesses casos, há sempre um escritor e um chamado “tradutor gráfico”. O tradutor

gráfico é o artista, responsável por transformar as descrições feitas pelo escritor, no

roteiro, em imagens. Eisner (2013, p. 116) explica que a ideia é o elemento

dominante do roteiro de uma HQ. Portanto, o tradutor gráfico recebe tal ideia e

“procura devolvê-la num todo unificado” (EISNER, 1989, p. 127). Dessa forma, o

autor explica que “escrever no meio gráfico significa escrever para o artista. O

escritor fornece o conceito, o argumento e o elenco de personagens. Seu diálogo é

endereçado ao leitor, mas a descrição da ação é endereçada ao tradutor gráfico”.

Para Flávio Campos (2007), um roteiro convencional, de cinema ou teatro,

surge de uma massa de estória (conjunto de ideias) que, organizada pelo escritor,

compõe uma narrativa. Em ambos os casos, escreve-se o roteiro para guiar

diretores e artistas, que devem interpretá-lo por meio de ações que, mais tarde,

serão apreciadas e examinadas pelo público. Em uma situação diferente, como a

escrita de um livro, onde trabalha-se apenas com palavras, o texto tem o papel de

dirigir a imaginação do leitor. Já no caso dos quadrinhos, de acordo com Eisner

(1989, p. 122), “imagina-se pelo leitor. Uma vez desenhada, a imagem torna-se um

enunciado preciso que permite pouca ou nenhuma interpretação adicional”.

Ainda segundo o autor, é por isso que o roteiro das HQs traz descrições mais

aprofundadas das cenas, de ações, planos e enquadramentos. Para Ramos (2009,

p. 136), é por meio da percepção visual que se observa a existência de diferentes

planos e ângulos nos quadrinhos. “A referência, em geral, é o corpo do ser humano,

mesmo que seja representado de maneira caricata”. O autor elenca sete diferentes

planos que podem ser observados nas histórias em quadrinhos. São eles: geral ou

panorâmico (vê-se a figura humana por completo; é amplo o bastante para abranger

o cenário); total ou de conjunto (o personagem é visto de maneira mais próxima e o

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cenário é mínimo); americano (personagem é mostrado do joelho para cima); médio

(personagem é mostrado da cintura para cima); primeiro plano (mostra dos ombros

para cima e tem foco nas expressões faciais); close-up (mostra detalhes do rosto ou

de objetos) e perspectiva (soma de diferentes planos).

Para Eco (1993, apud RAMOS, 2009) todos os planos utilizados nos

quadrinhos são oriundos do cinema. Contudo, Cirne (1975, apud RAMOS, 2009),

discorda da afirmação, apontando que os planos surgiram paralelamente às

primeiras HQs. Mesmo sem um consenso quanto à origem, os autores concordam

que esses podem ser vistos por diferentes ângulos. Acevedo (1990, apud RAMOS,

2009, p. 142) define o ângulo de visão como “o ponto a partir do qual a ação é

observada”. Há três principais planos de visão. São eles: médio (a cena ocorre à

altura dos olhos do leitor); plongée (visão de cima para baixo) e contra-plongée

(visão de baixo para cima).

Além dos planos e ângulo, o roteiro dos quadrinhos deve conter nuances

psicológicos dos personagens, na esperança de que esses aspectos se reflitam, de

alguma forma, na arte final. Além disso, o texto quadrinístico deve suprir a ausência

de som e movimento. Conforme Eisner (2013), os quadrinhos são uma mídia

estática, o que implica em restrições que devem ser levadas em conta no roteiro.

Para o autor,

o artista ou o escritor (ou ambos) são desafiados pela necessidade de transmitir o “âmago”. Gestos sutis ou posturas provocativas não são fáceis de se representar sem a movimentação contínua fornecida pelo filme. Nesta mídia, imagens para “contar” a história têm de ser extraídas do fluxo da ação e, então, ser congeladas. (EISNER, 2013, p. 118, grifo do autor)

Vê-se, dessa forma, que “os quadrinhos são menos simples do que

aparentam: questionar o seu espaço criativo exige do crítico um sólido conhecimento

dos mais diversos problemas sociais, culturais e artísticos” (CIRNE, 1972, p. 12). O

potencial dos quadrinhos é ilimitado. É por isso que Cirne (1972, p. 12) afirma que “é

preciso saber ler formalmente os quadrinhos para que consigamos lê-los

ideologicamente”. McCloud (2005, p. 212) acredita que os quadrinhos oferecem

recursos extraordinários, como constância e controle, a roteiristas e desenhistas. O

meio também apresenta “uma gama de versatilidade com toda a fantasia potencial

do cinema e da pintura, além da intimidade da palavra escrita. E só necessário o

desejo de ser ouvido, a vontade de aprender e a habilidade de ver”.

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Todos os elementos apresentados demonstram que os quadrinhos se

emanciparam e “constituíram, há mais de um século, possibilidades próprias de

linguagem” (RAMOS, 2009, p. 18, grifo do autor). Contudo, isso não impede que os

quadrinhos inspirem-se, busquem referências e partilhem características com outras

linguagens. Para Ramos (2009, p. 18), há um diálogo claro das HQs com “recursos

da ilustração, da caricatura, da pintura, da fotografia, da parte gráfica, da música e

da poesia, da narrativa, do teatro e do cinema”.

Porém, Eisner (2013) observa que há um momento em que os caminhos se

convergem e os quadrinhos seguem trilhando sua própria estrada, construída a partir

do que McCloud (2005, p. 206) chama de “grande ato de equilíbrio [...] de tempo e

espaço, [...] visível e invisível, [...] imagens e palavras”, que começou há milhares de

anos. Agora, sabendo o que são os quadrinhos, ainda resta uma pergunta: quem os

inventou?

3.2 LIMIAR

“É possível, nos quadrinhos, materializar literatura e poesia de verdade”

(WAUGH, 1947, p. 353, apud MAZUR; DANNER, 2014, p. 11). Essa declaração

entusiasmada faz parte da obra The Comics17, lançada pelo desenhista e historiador

Coulton Waugh em 1947. Com esse livro, Waugh foi o primeiro a tentar narrar a

história dos quadrinhos. The Comics também foi o responsável por alcunhar Outcault

como o “pai” dos quadrinhos (CAMPOS, 2015). Essa veneração ao criador do Yellow

Kid “cegou” para o restante do trajeto trilhado por diversos outros desenhistas e

ilustradores, predecessores de Outcault. De acordo com The Comics, não há história

a ser contada no período entre a invenção do desenho e o ano de 1896. Porém,

coube a pesquisadores contemporâneos desmentir a versão de Waugh e comprovar

que os quadrinhos constituem um mundo imenso, variado, que abrange uma

multiplicidade de vozes, cores e temas.

Mas o que são, de fato, os quadrinhos? Campos (2015, p. 22) afirma que

“eles têm sido inventados tantas vezes ao longo desses séculos, então por que

duvidar que venham a ser inventados novamente no futuro? Os quadrinhos ainda

17

Tanto o termo comics quanto bande dessinée, fumetti, tebeo e historieta são sinônimos, em diferentes línguas, de histórias em quadrinhos. Fonte: Quadrinhos: história moderna de uma arte global (2014), de Dan Mazur e Alexander Danner.

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estão nascendo”. De fato, a linguagem dos quadrinhos, no formato pelo qual é

conhecida atualmente, é relativamente nova. Os estudos acerca do tema são ainda

mais recentes. Contudo, o limiar da história dos quadrinhos é tão antigo quanto os

habitantes primitivos do planeta Terra.

Comics, nos Estados Unidos; bande dessinée, na França; fumetti, na Itália;

tebeo, na Espanha e historieta, na América Latina. Partindo do princípio em direção

ao passado, em uma trajetória inversa, inúmeros momentos foram citados por

historiadores como referentes do início dos quadrinhos. Cada pesquisador,

estudioso e aficcionado, um após o outro, “voltava no tempo” para constatar novos

dados, adicionar novos contornos à trajetória e redescobrir qual seria, realmente, o

momento da criação das histórias em quadrinhos. Nessa longa viagem, chegou-se

ao interior das escuras cavernas pré-históricas e constatou-se, inclusive por parte de

arqueólogos, que “a arte pré-histórica não é, de maneira nenhuma, uma compilação

aleatória de imagens sem sentido, ela tem uma sintaxe, regras e estrutura” (BAHN,

SD, apud CAMPOS, 2015, p. 10).

Com base em dados como esse, José A. Gaiarsa (in MOYA, 1977) afirma que

os desenhos das cavernas foram a primeira história em quadrinhos que já se fez. O

professor Álvaro de Moya (1977), estudioso dos quadrinhos, complementa esse

pensamento, dizendo que

quando o homem fêz a pintura rupestre, naquela figuração simples, na parede de sua caverna, queria comunicar-se, dizer algo a seus semelhantes, a relação indivíduo/coletividade, a resposta coletiva/individual. A tentativa de se aproximar dos outros. A tentativa de aproximar os outros. (MOYA, 1977, p. 95)

Gaiarsa (in MOYA, 1977) continua seu pensamento, colocando os hieróglifos

egípcios – mesmo sendo uma mistura de letras aos desenhos – como o segundo

tipo de histórias em quadrinhos conhecido pela humanidade. McCloud (2005),

enxerga razoável semelhança entre comics e hieróglifos, porém afirma que os grifos

são representações de sons, tais quais existem no alfabeto. Portanto, para o autor,

as reais descendentes da invenção dos egípcios seriam as palavras. Contudo,

McCloud (2005) situa a pintura egípcia, que possuía, efetivamente, uma sequência,

como possível ancestral dos quadrinhos.

Avançando de onde Gaiarsa parou, Campos (2015) elenca possíveis “pontos

de partida” para essa forma de linguagem. Depois dos egípcios, os chineses criaram

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desenhos semelhantes aos quadrinhos. Segundo o historiador Patrick Destenay

(SD, apud, CAMPOS, 2015, p. 10), tais representações contavam com

“justaposições de imagens, variações de forma a criar um certo ritmo e balões

saindo da boca dos personagens para expressar suas palavras ou ideias”.

Saindo da Ásia, chega-se à Europa, onde, no ano 113, foi construída em

Roma a Coluna de Trajano, que retrata, por meio de uma série de desenhos feitos

diretamente no mármore, uma campanha militar do imperador. “Tal historieta

começa lá em cima e vem, enrolada qual um pergaminho, descendo até o pé”

(MOYA, 1977, p. 28). Mais tarde, no século XI, criou-se a tapeçaria de Bayeux, que

descrevia a conquista da Inglaterra pelo Duque da Normandia, Guilherme, o

Bastardo (CAMPOS, 2015). Um século depois, novamente no Ocidente, os

japoneses elaboraram o os emakimono18, rolos de pintura que descreviam eventos

históricos.

Campos (2015) prossegue com sua lista e acrescenta outras duas obras

predecessoras dos quadrinhos: as Cantigas de Santa Maria, do século XIII, e o livro

Très Riches Heures du Duc de Berry, dos irmãos Limbourg – que, para o autor,

figura entre as primeiras graphic novels19. Dessa forma, analisando os materiais que

foram produzidos séculos atrás, como as iluminuras20 da Idade Média, que

continham balões e onomatopeias, a historiadora Danièle Alexandre-Bidon chegou à

conclusão de que “são poucas as chamadas técnicas modernas que já não tinham

sido descobertas antes por artistas medievais” (BIDON, SD, apud CAMPOS, 2015,

p. 10).

Entre a Idade Média e o aparecimento de quadrinhos em formatos

semelhantes aos que se produzem atualmente, houve uma invenção que

transformou tanto a história do jornalismo quanto dos comics: a prensa de tipos

18

O vínculo do Japão com os quadrinhos é bastante grande. De acordo com Campos (2015), a “terra do sol nascente” também trouxe ao mundo, além dos emakimono, os mangás. O primeiro volume das histórias, produzido por Katsushika Hokusai, foi publicado em 1814. Porém, apesar do nome, “os mangás de Hokusai eram uma espécie de manuais de desenho” (CAMPOS, 2015, p. 10). 19

O conceito de graphic novel surgiu nos Estados Unidos como um artifício para os quadrinhos serem aceitos nas cadeias de comércio de livros. A ideia partiu de Will Eisner que denominou de graphic novel sua HQ Um contrato com Deus, de 1978, que por possuir um conteúdo mais elaborado, complexo e volumoso, foi impressa em forma de livro (BARROS, 2012). Disponível em: <http://educonse.com.br/2012/eixo_12/PDF/13.pdf>. Acesso em: 09/04/2016. 20

Iluminuras são as imagens que ilustram as páginas dos livros da Idade Média. Era comum que os reis ou nobres muito ricos fizessem encomendas desses livros no local onde eram produzidos: os Scriptoriums (SILVA, 2012). Disponível em: <http://www.encontro2012.rj.anpuh.org/resources/anais/15/1337980767_ARQUIVO_Aartedasiluminurasanpuh.pdf>. Acesso em: 09/04/2016.

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móveis, criada por Gutemberg em 1455. Como afirmado no capítulo anterior, apesar

de a criação ter ocorrido no século XVI, a prensa tornou-se altamente difundida do

século XVIII. A impressão, além de alavancar o Jornalismo, foi um ganho

imensurável para a escrita e também para as ilustrações. Naquela época, segundo

Álvaro de Moya (1977, p. 35), os folhetins eram vendidos de porta em porta e os

crimes assustadores viravam posters, que eram comercializados nas feiras

populares, “como a literatura de cordel do nordeste brasileiro”.

Foi durante esse período de ascensão que muitos ilustradores destacaram-

se. Um deles, fundamental para a história dos quadrinhos, foi o inglês William

Hogarth. Em 1732, Hogarth publicou A Harlot’s Progress, uma série de seis pinturas

e gravuras que contavam a história de M. Hackabout, uma jovem que chega a

Londres, vinda do interior da Inglaterra, e torna-se uma prostituta (CAMPOS, 2015).

É correto afirmar que o ilustrador “retratou sua época política com grande minúcia de

costumes, em crítica violenta” (MOYA, 1977, p. 35).

O impacto do trabalho de Hogarth não foi sentido apenas em seu país de

origem, mas em toda a Europa, conta Campos (2015). Como todo bom precursor, o

desenhista influenciou outros “quadrinistas” pioneiros. Dois deles são os suíços

Rodolphe Töpffer e François Aimé Louis Dumoulin. Enquanto Dumoulin produziu, em

1805, uma série de gravuras inspiradas na jornada de Robinson Crusoé, Töpffer

criou as obras Les Amours de Mr. Vieux Bois, destinada ao publico adulto,

desenhada em 1827 e publicada dez anos depois, e Histoire de Monsieur Jabot, de

1833. Segundo Campos (2015, p. 90), o próprio artista descreveu sua obra, em uma

resenha anônima sobre Monsieur Jabot para a revista Bibliothèque Universelle em

1837 – da qual também era editor –, como “uma série de desenhos impressos

manualmente por autografia”. A resenha seguia, dizendo que

cada um desses desenhos é acompanhado de uma ou duas linhas de texto. Os desenhos, sem esse texto, não teriam mais que um significado obscuro. O texto, sem os desenhos, não significaria nada. O conjunto forma uma espécie de novela, tão original que não se parece uma novela. (CAMPOS, 2015, p. 90)

Antes mesmo da publicação de Monsieur Jabot, Töpffer havia sido elogiado

até mesmo pelo autor Johann Wolfgang von Goethe, grande personalidade da

literatura europeia. Porém, o desenhista – que também era “um importante crítico de

arte, membro da Academia de Genebra, professor de Letras na universidade, [...] pai

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de quatro filhos e genro de um dos mais ricos fabricantes de relógios da Suíça”

(CAMPOS, 2015, p. 90) –, temia que a obra pudesse prejudicar sua reputação. O

autor explica que outro motivo para a relutância era seu espirito conservador.

Töpffer era um “antimoderno” que, mesmo sem querer, por meio da

publicação de suas HQs, inaugurou a modernidade, já que Monsieur Jabot atingiu

um nível estrondoso de popularidade na Europa. Mesmo receoso, Töpffer publicou,

em 1845, um panfleto sobre fisionomia que repercutiu no trabalho de desenhistas

que vieram séculos depois. Graças a essa publicação, Gombrich (1986, p. 294)

afirma que é correto creditar Töpffer pela “invenção e difusão da história figurada,

isto é, em quadrinhos”. No panfleto, Gombrich (1986) conta que o desenhista

afirmou haver duas formas de se escrever uma história. A primeira delas era por

capítulos, linhas e palavras e chamava-se literatura; a segunda era por uma

sucessão de ilustrações, a qual dava-se o nome de história ilustrada. Töpffer seguiu

declarando que

a história ilustrada à qual a crítica de arte não dá atenção e que raramente preocupa os letrados [...] sempre exerceu grande atração. Mais, na verdade, que a própria literatura, pois além do fato de que há mais gente capaz de ver do que de ler, agrada às crianças e às massas [...] Com a dupla vantagem de apresentar concisão e clareza, a história ilustrada, em condições de igualdade, acabará por suplantar a outra, por dirigir-se com maior agilidade a um maior número de mentes. (TÖPFFER, 1845, apud GOMBRICH, 1986, p. 296)

Assim como o inovador Töpffer se inspirou no trabalho de Hogarth, suas

ilustrações também fascinaram o francês Gustave Doré, que publicou seu primeiro

álbum de quadrinhos, Les Travaux d’Herdcule, em 1847 (CAMPOS, 2015). Depois

de Doré, ainda seguindo a linha do tempo estabelecida por Campos (2015),

continua-se na França, contudo, no ano seguinte. Foi lá que o fotógrafo Félix Nadar

“desenhou” seu caminho até a história dos comics. Em 1848, Nadar foi o autor de

uma tira semanal de quadrinhos, chamada Vie Priveé et Publique de Monsieur Réac,

“publicada no periódico humorístico La Revue Comique à l’Usage des Gens Sérieux”

(CAMPOS, 2015, p. 9).

Anos depois, as histórias impressas se assemelhavam ainda mais ao modelo

conhecido dos quadrinhos. Em 1867, o mundo conheceu o cachaceiro Ally Sloper.

Criação de Marie Duval – “pseudônimo da desenhista e atriz francesa Émilie de

Tessier” (CAMPOS, 2015, p. 9) –, Sloper foi o primeiro personagem a ganhar fama.

Tanto que, segundo Campos (2015), virou objeto de licenciamento, estampando

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diversos tipos de produtos comercializados na época. Contudo, outras duas figuras

importantes para o desenvolvimento da banda desenhada são Max e Moritz. Os dois

são “filhos em formato de desenho do alemão Wilhelm Busch” (CAMPOS, 2015, p.

9).

Os garotos de Busch poderiam ter sido os primeiros personagens de sucesso,

pois sua história foi publicada em 1865, dois anos antes da aparição de Sloper.

Porém, a série de Max e Moritz demorou a ser reconhecida. Contudo, o livro acabou

tornando-se “um dos maiores best-sellers da literatura infantil mundial até o início do

século XX” (CAMPOS, 2015, p. 183). A obra com as aventuras de Max e Moritz

chegou até mesmo ao Brasil, onde foi traduzida por Olavo Bilac e ganhou o nome de

Juca e Chico.

De acordo com Campos (2015), mesmo com o sucesso, Busch colecionou

inimizades pelo fato de ser um admirador de Charles Darwin. Ainda segundo

Campos (2015), muitos seguidores de Outcault argumentam que as criações do

desenhista não podem ser consideradas HQs por não contarem com balões e

trazerem os textos separados das imagens. Em sua defesa, há de afirmar-se que “o

texto não explica a imagem, esta é que desmascara as palavras” (CAMPOS, 2015,

p. 183).

No Brasil do século XIX, apesar de menos desenvolvido economicamente que

os países da Europa, América do Norte e Ásia – pioneiros no que concerne aos

quadrinhos –, também há relatos de produção quadrinística. Uma curiosidade

contada por Campos (2015) é que a primeira história em quadrinhos brasileira foi

desenhada pelas mãos de um francês. Em 1855, Sébastien Auguste Sisson criou,

para a revista Brasil Ilustrado, O Namoro, quadros ao vivo, por S... o Cio. Quatorze

anos depois, no dia 30 de janeiro, a Revista Fluminense publicou, pela primeira vez,

As Aventuras de Nhô Quim. (CAMPOS, 2015). A obra era desenhada pelo italiano

Angelo Agostini que, em solo brasileiro, tornou-se amigo do português Raphael

Bordallo Pinheiro. De acordo com Campos (2015), em 1872, Pinheiro fez uma sátira

ao imperador dom Pedro II com a graphic novel chamada de Apontamentos de

Raphael Bordallo Pinheiro sobre a Viagem do Imperador de Rasilb pela Europa.

Assim como no Brasil as obras criadas por estrangeiros ganhavam espaço, as

histórias em quadrinhos “floresciam” cada vez mais em países como Alemanha,

Espanha e França, dentre outros lugares na Europa. Seguindo os passos europeus,

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o magnata do ramo editorial William Randolph Hearst21, dono de uma rede que

chegou a abranger mais de 30 jornais, também “apostou” nos quadrinhos. Em 1892,

o cartunista Jimmy Swinnerton – então com 17 anos – era um dos empregados de

Hearst no jornal San Francisco Examiner. Foi neste ano que Swinnerton criou a série

de HQs The Little Bears. Hearst também era o dono do New York Journal, veículo

que, em 1896, empregava Richard Outcault.

“Se os quadrinhos não tivessem sido inventados antes, Richard Outcault os

teria inventado em algum momento de 1896” (CAMPOS, 2015, p. 293). Foi no dia 25

de outubro desse ano que Mickey Dugan, o Yellow Kid, surpreendido com o fato de

seu novo fonógrafo ser apenas uma caixa com um papagaio dentro, falou pela

primeira vez (CAMPOS, 2015). Esse diálogo, publicado no caderno de humor da

edição dominical do jornal é considerada, ainda hoje, por diversos especialistas,

como, verdadeiramente, a primeira história em quadrinhos. Entretanto, em 1896, o

Menino Amarelo não era um personagem relativamente novo. De acordo com

Campos (2015), ele havia aparecido na revista estadunidense Truth dois anos antes,

já trajado com o camisolão, típico de crianças de famílias em piores condições

financeiras. Em 1895, o personagem saía nas páginas do New York World.

Moya é um dos defensores de Outcault como o “pai” dos quadrinhos.

Inclusive, no dia 30 de outubro de 1989, o professor representou o Brasil na

assinatura de uma declaração que estabelecia o ano de 1896 como o da criação dos

quadrinhos. O documento também foi assinado por outros dez representantes de

diversos países, como Estados Unidos, Itália e Espanha. Além disso, Moya (1977)

também apoia a versão de que o termo yellow journalism, traduzido no Brasil como

jornalismo ou imprensa marrom22, advém do amarelo da roupa do menino. De

acordo com o próprio Moya,

21

William Randolph Hearst foi tão importante para os quadrinhos quanto para o Jornalismo. Nascido em 1863, em São Francisco, na Califórnia, Hearst fundou seu primeiro jornal, o San Francisco Examiner, em 1887. Na metade da década de 1920, o empresário era dono de uma cadeia nacional de jornais, da qual faziam parte o Los Angeles Examiner, o Boston American, o Atlanta Georgian, o Chicago Examiner, o Detroit Times, o Seattle Post-Intelligencer, o Washington Times e Washington Herald. Fonte: New World Encyclopedia. Disponível em: <http://www.newworldencyclopedia.org/entry/William_Randolph_Hearst>. Acesso em: 15/04/2016. 22

Jornalismo ou imprensa marrom é um termo utilizado para se referir às publicações sensacionalistas, negligentes e que não levam fatos em consideração (STROUT, 2003). Disponível em: <http://jdhr.org/publications/media-and-development/Journalism%20and%20Yellow%20Journalism.pdf>. Acesso em: 16/04/2016.

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dizem que, quando o World instalou uma impressora em côres, [...] um dos técnicos do jornal, Benjamin Ben-day, se encaminhou à prancheta do ilustrador e pediu para testar a côr amarela naquele camisolão. Nesse momento histórico, nasciam duas coisas importantes: os comics como os concebemos hoje, com personagens periódicos e seriados; e o termo “jornalismo amarelo” para designar a imprensa sensacionalista. (MOYA, 1977, p. 36, grifo do autor)

Moya (1977) prossegue, explicando que o Yellow Kid seguia o estilo das

charges de cunho político, trazendo em sua camisola frases planfletárias ou

cômicas. “Seus amigos viviam em Hogan’s Alley, típica favela (slum) nova-iorquina.

A anarquia do comportamento do Menino e sua turma era contra o establishment”

(MOYA, 1977, p. 37, grifo do autor). É justamente por abusar do estilo “chargístico”

que Campos (2015) afirma ser difícil encontrar uma história em quadrinhos no

trabalho de Outcault. O desenhista não separa as cenas por quadros, mas

apresenta todas de uma vez só. Ele também não oferece uma direção de leitura ao

seu público, que escolhe em qual dos personagens quer se focar a cada olhar. O

“elenco” de suas histórias não tem um personagem principal; todos “são

protagonistas e ao mesmo tempo coadjuvantes. E ninguém é mais coadjuvante que

aquele menino irlandês careca [...] Mickey Dugan não fala, ele gosta mesmo é de

observar a atividade do povo” (CAMPOS, 2015, p. 293).

O discurso de Moya (1977) segue a linha apresentada em The Comics, de

Waugh. Porém, Campos (2015), compilando versões de diversos outros

especialistas, contesta a interpretação do pioneirismo de Yellow Kid e Outcault

apresentada no livro. Um desses autores é Brian Walker (1945, apud CAMPOS,

2015, p. 12) que, na obra The Comics Before 1945, declarou que “praticamente

todos os detalhes da história de Waugh são mitos”. Em relação à origem da

expressão “yellow journalism”, Campos (2015, p. 12) explica que a mesma não foi

cunhada graças ao Yellow Kid, mas sim a uma campanha publicitária elaborada por

Hearst, “que envolvia ciclistas com uniformes amarelos”.

Inventor ou não dos quadrinhos, é inegável que Outcault contribuiu

imensamente com as HQs. Yellow Kid rendeu inúmeros estudos, teorias e também

atenção para essa forma de linguagem. Ela pode não ter sido a primeira, mas

certamente significou avanços. Para Peter Maresca (2013, apud CAMPOS, 2015, p.

342), Yellow Kid “representa o nascimento da cultura popular moderna”.

Entretanto, o Menino Amarelo não foi a única história de Outcault a render

frutos. No início do século XX, em 1902, o quadrinista apresentou sua nova série,

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publicada no New York Herold (e a partir de 1906 no New York World) intitulada de

Buster Brown. Chamado de Chiquinho no Brasil, o personagem era o retrato da

típica criança burguesa da época, “com sua roupinha e chapéu, durante décadas

representando o menino que ganhou o terninho de marinheiro no fim do ano, pelo

seu comportamento exemplar” (MOYA, 1977, p. 37). Foi com Buster Brown que

Outcault chegou mais perto do modelo usual das HQs, por meio da introdução de

balões na narrativa. A série “se transformou no maior sucesso dos comics até então”

(CAMPOS, 2015, p. 293).

Na virada do século, as páginas dos jornais norte-americanos estavam

repletas de diferentes histórias em quadrinhos. Naquela época, depois de Outcault,

o nome de maior prestígio dentro do universo quadrinístico era Winsor McCay. Um

dos maiores sucessos do quadrinista é a história infantil Little Nemo in Slumberland

(1905). Segundo Moya (1993, p. 28), a premissa era simples: “todas as noites, o

pequeno Nemo sonhava com Slumberland e todas as manhãs era acordado para a

realidade”. A HQ serviu de inspiração para artistas mais jovens, como o criador de

Calvin e Haroldo, Bill Watterson.

Este, certa vez, escreveu que “a iconografia de Little Nemo continua ainda

chocante [...] cada página é uma maravilha de construção e detalhe, McCay inventa

sem parar, deforma tudo com ironia, suas cores são surpreendentes”

(WATTERSON, SD, apud CAMPOS, 2015, p. 321). Segundo Moya (1977, p. 39),

com Little Nemo, o artista alcançou uma qualidade de desenho e arquitetura tão

elevada, “que chegou a antever o uso de lentes de grande abertura [...] coisa que só

atualmente a técnica mais avançada da fotografia e do cinema conseguiu alcançar”.

Apesar do espaço que tinha em grandes jornais, McCay aventurava-se em

turnês, “se apresentando em espetáculos de vaudeville. Seu show consistia em

desenhar conforme contava as histórias” (CAMPOS, 2015, p. 321). Em sua

trajetória, foi grande parceiro do ilusionista Harry Houdini. Com suas apresentações,

o desenhista ganhou muito dinheiro. De acordo com Campos (2015, p. 322), sua

fortuna foi gasta com o desenvolvimento de desenhos animados. McCay “atingiu um

ponto que só será alcançado pela indústria cinematográfica depois de décadas”.

Com o foco no público adulto, McCay também lançou, em 1904, Dreams of Rarebit

Fiend, sua série mais longa.

Segundo Moya (1977), nos anos subsequentes, houve outros artistas que

seguiram os passos de Hogarth, Töpffer, Outcault e McCay. Um deles foi George

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Harriman, autor de Krazy Kat (1911). Outro exemplo é Walt Disney, que tinha

inúmeras criações sob sua marca, lideradas por Mickey Mouse. Naquela época, as

HQs estavam em ascensão. Com produção contínua, os comics atingiram o seu

auge duas décadas mais tarde, quando descobriu-se seu grande potencial

econômico, quando a aventura tornou-se tema recorrente e quando entraram em

cena os super-humanos. Esse período ficou conhecido na história como a “era de

ouro” dos quadrinhos.

3.2.1 Era de ouro

“É um pássaro? É um avião? Não! É o Super-homem”. Talvez não haja quem

não conheça a célebre frase, dita sempre por terráqueos curiosos quando o

Superman entrava em cena, cortando o céu, repentinamente, para livrar o planeta

das garras de vilões ameaçadores. A criação do alienígena, que curiosamente foi

chamado de Super-Homem, significou um marco na história dos quadrinhos. Ele foi

o primeiro grande herói a estampar as páginas das HQs. Porém, antes do

surgimento de Kal-El – nome de batismo de Clark Kent (alterego do Super-Homem)

– havia outros personagens que dedicavam-se, à sua maneira, a combater os males

que invadiam as cidades.

Os quadrinhos da década de 1930 ofereceram ao público, pela primeira vez,

novas temáticas nas tiras diárias dos jornais, como a aventura. De acordo com

Eisner (2013, p. 129), “naquela época, havia uma competição selvagem nas bancas,

e os quadrinhos, principalmente as tiras seriadas, mantinham a lealdade dos leitores.

Isso exigia habilidade narrativa”. Dito isso, o gênero aventureiro foi inaugurado

dentro dos comics pelo homem-macaco mais afamado de todos os tempos: Tarzan

(MOYA, 1977).

Criação de Edgar Rice Borroughs, Tarzan foi adaptado por Hal Foster para as

HQs em 1929. O personagem tratava-se, na verdade, de lorde Greystoke, herdeiro

de uma família de aristocratas, que se perdeu na selva após um motim no mar e

acabou sendo adotado por uma gorila chamada Kala (KNOWLES, 2008). Depois do

sucesso de Tarzan, Foster partiu para uma criação própria e lançou a tira Príncipe

Valente, que conta “a história de um jovem cavaleiro na época do Rei Arthur e traz

personagens tirados das lendas e dos livros de Sir Walter Scott” (EISNER, 2013, p.

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139). Entretanto, de acordo com Moya (1977) Tarzan foi um dos personagens a

produzir a revolução que deu início à Golden Age, a Era de Ouro dos quadrinhos.

Estados Unidos, década de 1930. Foi nesse período em que surgiram alguns

dos principais personagens dos quadrinhos, responsáveis pela massificação das

HQs. Os protagonistas da época eram personificações do “bem”, portanto

adaptaram-se a diversos públicos e culturas. Naquela época, o King Features

Syndicate (KFS)23 realizou um concurso para revelar um artista capaz de criar

personagens para concorrer com os grandes nomes da época, como Buck Rogers,

anti-Tracy e, obviamente, Tarzan.

De acordo com Moya (1977), foi assim que o nome Alex Raymond entrou em

cena. Raymond, que era funcionário da KFS, venceu três certames do concurso com

as histórias Flash Gordon, Jungle Jim e Bill, o agente secreto X-9. Contudo, Flash

Gordon, publicado pela primeira vez em 1934, foi sua maior obra. Moya (1977, p. 47)

exalta seu estilo, afirmando que “seu desenho é o mais belo já visto. Se os gregos

fizessem quadrinhos em vez de estátuas, teriam a pureza clássica de sua linha. [...]

Era helênico”.

No mesmo ano da publicação de Flash Gordon, de Alex Raymond, outro

roteirista ganhou fama: Lee Falk. Para Moya (1977, p. 49), Falk “é considerado o

melhor roteirista original dos quadrinhos”. Segundo Knowles (2008, p. 134)

Mandrake, o Mágico, personagem criado pelo artista em 1924, “costuma ser

considerado o primeiro super-herói dos quadrinhos”. Porém, apesar de ser “filho” da

década de 1920, Mandrake só apareceu nas tiras dez anos depois (KNOWLES,

2008). De acordo com Moya (1993, p. 95, grifo do autor), Falk “se inspirou no livro A

Mandrágora” para batizar seu personagem. Mandrake era a fusão de todos os

mágicos de vaudeville que alegraram a meninice do autor no Missouri, Saint Louis.

Falk também concebeu outro personagem de grande sucesso. Em 17 de fevereiro

de 1936, o quadrinista apresentou o Fantasma. O herói abarcava “a lenda da

imortalidade, o juramento da caveira, a herança da luta contra a pirataria de pai para

filho” (MOYA, 1977, p. 50).

1934 foi um grande ano para os quadrinhos. Além das criações, houve o

surgimento dos primeiros comic books, conhecidos no Brasil como gibis (MOYA,

23

A King Features Syndicate, criada em 1915, é uma das principais distribuidoras de quadrinhos do mundo. A KFS distribui, aproximadamente milhares de tiras, artigos, charges, palavras cruzadas e outros jogos a centenas de jornais diariamente. Disponível em: <http://kingfeatures.com/about-us/about-king-features-syndicate/>. Acesso em: 17/04/2016.

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1977). Nos anos subsequentes, a lista de novos artistas e personagens cresceu

demasiadamente. Milton Caniff elaborou Terry e os Piratas e Steve Canyon; Al Capp

criou Lil’Abner. Porém, a “explosão” das HQs e dos super-heróis aconteceu em

1938. Nesse ano, “o Super-Homem estreou em Action Comics nº 1” (KNOWLES,

2008, p. 140, grifo do autor). A criação de Superman deve-se a dois jovens de

Cleveland, Ohio. Jerome “Jerry” Siegel escreveu a história e pediu que seu amigo,

Joe Shuster, a desenhasse. “Durante cinco anos, ofereceram o personagem a todos

os syndicates” (MOYA, 1977, p. 62, grifo do autor). Moya (1977) explica que, por ser

considerada fantástica demais, a história não despertava o interesse dos editores.

Contudo, os dois nunca desistiram da tão sonhada publicação até encontrar

alguém que confiasse em seu trabalho. Segundo Moya (1977, p. 62) essa pessoa foi

“J. S. Liebowitz, um dos líderes das revistas mensais completas”. Contudo, de

acordo com Knowles (2008, p. 140), foi o editor da DC, Harry Donenfeld, que

“comprou o personagem por 200 dólares”. De qualquer maneira, o sucesso

alcançado é inegável. As histórias de Kal-El, último filho de Krypton, que aterrissa na

cidade de Smallville e é adotado pelos Kent, agradou o público de forma geral. Tanto

que, no ano seguinte à primeira publicação, “o Superman Quarterly Magazine atingiu

a tiragem de 1.400.000” (MOYA, 1977, p. 63, grifo do autor).

A disseminação e o sucesso do Superman foram tão estrondosos que não é

incorreto afirmar que, de inúmeras formas, “todo super-herói de revistas em

quadrinhos surgido posteriormente é, na verdade, uma variação do Super-Homem”

(KNOWLES, 2008, p. 140). Logo em seguida ao aparecimento de Clark Kent, Bob

Kane introduziu a figura do homem-morcego no mundo das HQs. As primeiras

aventuras de Batman e Robin foram publicadas em abril de 1940. Nesse mesmo

ano, a Whiz Comics colocou no mercado um concorrente à altura do Superman,

chamado de Capitão Marvel (KNOWLES, 2008). Outro personagem de notoriedade

criado naquela época foi Capitão América. Escrito inicialmente por Joe Simon, em

1941 – e mais tarde passado para Stan Lee – o Capitão era desenhado por Jack

Kirby. Para Moya (1977, p. 66), o personagem refletia “o clima americano da

Segunda Guerra Mundial, lutando contra o Caveira, líder dos nazistas”.

A Segunda Guerra, com toda a destruição que causou, foi um período de

crescimento para os quadrinhos e, principalmente, para os paladinos da Justiça. “Os

americanos estavam com medo, e os super-heróis proporcionavam conforto e certa

fuga da realidade”. Entretanto, mesmo com o fim do combate, a lista de novos

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semideuses continuou a crescer. Dentre eles estavam Hulk, Thor, Homem de Ferro,

Tocha Humana, Sheena e muitos outros. Todavia, há um quadrinista e,

consequentemente, um personagem, que sintetizam o auge da arte nos quadrinhos:

Will Eisner e sua maior criação, O Espírito. Knowles conta que, quando Eisner

criou The Spirit em 1940, recebeu um telefonema do editor perguntando se o novo herói usava – e usou um termo em inglês – “costume”. [...] Eisner disse que sim e desenhou uma máscara, como ele mesmo confessou, ridícula para o detetive redivivo. (KNOWLES, 2008, p. 13, grifo do autor)

O Espírito era Danny Colt, um jovem criminologista dado como morto na sua

batalha contra o crime, que foi enterrado em um estado de animação suspensa.

Despertado, ele decidiu continuar sua batalha com uma nova identidade. Em 1940,

The Spirit circulava em um suplemento dominical de diversos jornais dos Estados

Unidos. Colt não tinha superpoderes ou sequer andava armado. Sua única arma era

a inteligência24. Com essa HQ, Eisner alcançou novos patamares artísticos. De

acordo com Moya (1977, p. 68), “o tom levemente humorístico das histórias tinha um

equivalente no traço sempre pronto a inovações e quebrando regras clássicas

quanto à perspectiva”. A ambientação também era uma das preocupações de

Eisner. Segundo seu biografista, Michael Schumacher, o quadrinista

importava-se muito em situar suas histórias num ambiente com que os leitores pudessem se identificar. Havia poças d’água nas ruas, papel e lixo nas calçadas, pistas elevadas e vagões de metrô representando o movimento constante da cidade e pessoas por todos os lados, todas com a aparência de que sua maior conquista era sobreviver um dia após o outro. (SCHUMACHER, 2013, p. 85)

Eisner criava obras – The Spirit não foi a única renomada. Entre elas, também

havia Um Contrato com Deus e a graphic novel autobiográfica Ao coração da

tempestade – abusando de recursos cinematográficos, como o travelling (passeio da

câmera, que acompanha o personagem ou outro objeto em movimento), os cortes

(passagem de um plano a outro), os close ups (enquadramento extremamente

fechado, ressaltando detalhes do rosto), a ligação das sequências quase sem fusão

(passagem de uma imagem para a outra) ou sobreposição (MOYA, 1977). Além do

24

A sinopse do personagem, bem como a informação referente à circulação da história, consta na HQ The Spirit: as novas aventuras, publicada no Brasil pela editora Devir, de São Paulo, em dezembro de 2010.

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grafismo, seu texto também era excelente, contendo influências diretas, assim como

humor, amargura e ironia, de grandes nomes da literatura, como Tchekov (MOYA,

1977).

Assim como Eisner, os autores da época de ouro tratavam de diversos

assuntos em suas HQs. A fase das histórias cômicas, com humor infantil – ou quase

infantil – havia passado. The Spirit, Superman, Batman, Capitão América e todos os

outros personagens conhecidos atraíram legiões de fãs, não mais tão jovens, para

os quadrinhos. Segundo Mazur e Danner (2014, p.14), uma pesquisa realizada em

1950 apontou que “54 por cento dos leitores de quadrinhos tinham mais de 20 anos,

sendo 48 por cento do sexo feminino”. Esse fanatismo causou preocupação por

parte de governantes, médicos e pais, e fez com se iniciasse uma espécie de “caça

às bruxas” direcionada aos comics.

3.2.2 Reducionismo

Durante muito tempo, as HQ “sofreram com os comentários dos críticos

literários, que achavam problemático decidir se os quadrinhos seriam capazes de

desenvolver corretamente os chamados temas sérios” (EISNER, 2013, p. 8). Isso, de

certa forma, ocorreu porque a princípio, quem contou a história dos quadrinhos

foram aqueles que os desprezavam. Um exemplo disso é a postura adotada pelo

psiquiatra Fredric Wertham, que publicou, em 1954, a obra Seduction of the Innocent

(Sedução dos Inocentes). Segundo Campos (2015), o livro significou o início de uma

campanha de censura aos gibis, pois Wertham afirmava que as histórias em

quadrinhos eram as responsáveis por transformar crianças comportadas em jovens

delinquentes. Nessa época, os comics passaram por seu momento mais difícil, no

qual foram fortemente combatidos. Ainda segundo Campos (2015), os quadrinhos

foram responsabilizados por ser a

causa da delinquência juvenil, armas da subversão esquerdista, instrumentos de lavagem cerebral imperialista norte-americana, inimigos da educação, uma desgraça nacional, empecilho para a alfabetização das crianças, refugo da indústria cultural, “marijuana intelectual”, porta de entrada para todos os vícios, [...] sementes da perversão sexual e, como costuma acontecer nesses momentos de histeria social no ocidente, parte da conspiração comunista-judaica. (CAMPOS, 2015, p. 13)

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De acordo com Moya (1977), os efeitos causados pelo livro de Wertham e

pela perseguição podem ser sentidos ainda hoje. Campos (2015, p. 13) conta que,

graças à reação à publicação de “Sedução dos Inocentes”, as HQs tornaram-se

“alvo de uma Comissão de Investigação no Senado dos Estados Unidos”. Em

decorrência disso, editoras fecharam as portas, desenhistas e roteiristas

abandonaram o ofício, os super-heróis converteram-se em figuras ingênuas e os

gibis perderam muitos leitores adultos. Dito isso, Mazur e Danner (2014, p.14)

afirmam que “a indústria norte-americana de revistas em quadrinhos instituiu seu

organismo de autorregulação, o Comics Code Authority”. Campos (2015) explica que

o código de autocensura foi usado como referência em outros países. No Brasil, ele

foi chamado de Código de Ética.

Naquela época, frente à censura e a inúmeras dificuldades, os quadrinhos

pareciam entregues “à própria fé”. Contudo, no momento em que ansiavam por

respeitabilidade, foram novamente elevados a um patamar mais alto da indústria

cultural em razão do aparecimento dos “superfãs militantes” (CAMPOS, 2015).

Foram eles que organizaram convenções, montaram exposições e escreveram

artigos em defesa das histórias em quadrinhos. Esses “defensores lutavam para que

os quadrinhos fossem considerados dignos de atenção, dignos de estudo, que

fossem considerados arte, ainda que no final da fila: a “nona arte”” (CAMPOS, 2015,

p. 13, grifo do autor).

Constatando que ainda havia fãs dispostos a defender os quadrinhos “com

unhas e dentes”, no final da década de 1950, a editora DC Comics, que publicava

super-heróis remanescentes, apostou em novas versões de personagens da década

de 1940, como Super-Homem, Batman e Mulher-Maravilha. O público dos

quadrinhos começou a amadurecer e esse amadurecimento teve reflexos não só no

mercado norte-americano. De acordo com Mazur e Danner (2014), em 1959 a

Europa, que teve um grande centro criativo na Bélgica e na França, se reequilibrou.

O início da mudança se deu com a criação da revista Pilote, que concedeu “um tom

mais adulto para a bande desinée [...] ajudada pela popularidade de Astérix le

Gaulois [Astérix, o gaulês], de 1959, de Uderzo e de Goscinny” (MAZUR; DANNER,

2014, p. 16).

Com o fim da perseguição ferrenha aos quadrinhos, a década 1960 trouxe

novas possibilidades para quadrinistas dos Estados Unidos (com os heróis da DC),

Europa (com o epicentro na Bélgica e na França, mas também com grandes

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produtores na Itália e na Inglaterra), Japão (que nunca deixou de produzir mangás) e

também da América Latina. Naquele período, as HQs passaram a ser “encaradas

com outros olhos”. “Se ainda não totalmente aceita, já se admitia a ideia de que os

quadrinhos poderiam ser importante meio de comunicação, até mesmo uma forma

de arte” (MAZUR; DANNER, 2014, p. 14). Dessa forma, “abriram-se as portas” para

que novos grandes quadrinistas mostrassem ao mundo todo seu potencial criativo.

3.2.3 Pós 1960

O mundo finalmente cedeu à febre dos quadrinhos na década de 1960. As

HQs começaram a ganhar espaço e apoio. “Livros, revistas, artigos, reuniões,

conferências, adesões importantes, nomes que abriram notícias de jornais no mundo

todo como Resnais, Fellini, Zavattini, Lelouch, Eco, McLuhan, Marcuse, Morin,

Damiani” (MOYA, 1977, p. 86) foram algumas das conquistas das HQs durante o

período. Naquela época, outra editora lançou sua própria série de títulos, para fazer

frente à DC. De acordo com Mazur e Danner (2014, p. 18) à Marvel Comics “faltava

o estilo elegante da DC, mas isso era compensado pelos desenhos e leiautes

explosivamente dinâmicos de Jack Kirby”. Kirby, grande desenhista da Marvel,

participou da criação de Quarteto Fantástico, Surfista Prateado, O Poderoso Thor.

Outro gênio dos quadrinhos, Stan Lee, ovacionado até os dias atuais, também

envolveu-se fortemente nos roteiros dos principais heróis. Por sua orientação,

““problemas da vida real” foram adicionados ao arquétipo do super-herói” (MAZUR;

DANNER, 2014, p. 18, grifo do autor).

Segundo Moya (1977, p. 87, grifo do autor), “o mundo todo arregala os olhos

com mais de um século de atraso, compreendendo a importância dos comics no

mundo atual”. Juntamente com o entendimento do público e dos estudiosos em

relação ao potencial dos quadrinhos, os próprios realizadores romperam barreiras e

começaram a arriscar-se em novos gêneros, fugindo ao “heroísmo” predominante

nas décadas passadas. Foi dessa forma que surgiu o gênero underground, liderado

por Robert Crumb. Segundo Mazur e Danner (2014) Crumb não foi o precursor do

underground25, mas sim quem o incorporou totalmente. Ainda de acordo com os

autores, o artista

25

O termo underground refere-se às produções culturais que fogem aos padrões comerciais. Um produto underground é quase sempre definido como “obra autêntica” (FILHO; JÚNIOR, 2006).

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usou iconografia associada a piadas sem graça e pastelão inocente para expressar o desespero, a alienação, a frustração. Pela primeira vez, os quadrinhos se tornaram um meio de traduzir o que parecia a personalidade do criador por inteiro [...] Essa combinação de um sentimento natural pelo meio com uma vontade de desabafar de verdade a raiva via humor reafirmou a importância e os prazeres dos quadrinhos para uma nova geração. (MAZUR; DANNER, 2014, p. 24)

Com a ascensão do underground muitos artistas foram atraídos pelos

quadrinhos. Além disso, a cena quadrinística mainstream26 também ganhou novo

fôlego. Em 1970, Jack Kirby trocou a Marvel pela DC. Na nova “casa”, lhe foi dada a

oportunidade de criar um novo universo de personagens (MAZUR; DANNER, 2014).

Com a DC, ele apostou na luta entre o bem e o mal na criação da série The Fourth

World. Para Mazur e Danner (2014, p. 47), o novo trabalho expôs seus pontos fortes

e fracos: enquanto “sua arte chegou a um patamar de design visionário”, seus

personagens eram inconsistentes e superficiais. Além de Kirby, os artistas Neal

Adams e Joe Kubert também foram grandes produtores de quadrinhos mainstream,

abordando temas como guerras e ficção científica.

Eisner (2013, p. 31) relata que as histórias ilustradas atraíram o interesse de

desenhistas, escritores e editores durante os anos 1970, graças aos “avanços na

tecnologia de impressão e reprodução”. De acordo com o quadrinista, as HQs eram

um veículo compatível ao talento e sofisticação de muitos profissionais. Um desses

grandes artistas renasceu nesse período sob um pseudônimo: Moebius.

Anteriormente ao nascimento de Moebius, o quadrinista, conhecido pela série

Tenente Blueberry, publicada na revista francesa Pilote (a mesma de Astérix),

assinava seus trabalhos como Jean Giraud.

A persona original seguia o modelo tradicional, criando aquilo que o público

formal esperava. Moebius, por sua vez, carregava a vontade de experimentar, de

ousar; era outra identidade (MAZUR; DANNER, 2014). Moebius deixou de lado o

antigo “eu” e adentrou totalmente um mundo de ficção científica e fantasia, “repleto

de gigantes, bárbaros e radiação nuclear” (MAZUR; DANNER, 2014, p. 114). Em

Disponível em: <http://www.midiaemusica.ufba.br/arquivos/artigos/JEDER4.pdf>. Acesso em 29/04/2016. 26

Mainstream é o antônimo de underground. O termo refere-se às produções direcionadas às massas, o que implica em uma circulação associada a meios de comunicação de massa, como a TV, o cinema ou mesmo a Internet (FILHO; JÚNIOR, 2006). Disponível em: <http://www.midiaemusica.ufba.br/arquivos/artigos/JEDER4.pdf>. Acesso em 29/04/2016.

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uma de suas obras mais conhecidas, Arzach (1975), a narrativa visual se sobrepõe

ao texto, algo incomum para os trabalhos da época.

Na década seguinte, fugindo das temáticas heroicas e científicas, outros

autores focaram-se em temas políticos, trazendo às páginas boas doses de

violência. Talvez aquele que melhor sintetize o espírito dos quadrinhos dos anos

1980 seja Alan Moore. Sob sua assinatura estão as séries V de Vingança (1982) e

Watchmen (1986). Ambas as produções caracterizam-se pela presença de anti-

heróis. De acordo com Mazur e Danner (2014), em Watchmen, Moore apresenta seu

grupo de vigilantes, os Homens Minuto, como criaturas humanizadas, ou seja,

repletas de defeitos. Ainda conforme os autores, o escritor também

combinou aspectos de histórias em quadrinhos de super-heróis com o mistério de assassinato, suspense psicológico e comentários sobre a natureza da própria autoridade. Precisamente estruturados em camadas de imagens simbólicas, todos encenados por arquétipos de super-heróis levados a seus extremos lógicos: o homem-deus sem emoções, o acadêmico/atleta, a encarnação da perfeição humana, o vigilante urbano hipócrita e perigoso, o tímido e indeciso benfeitor. (MAZUR; DANNER, 2014, p. 176)

A publicação de Watchmen ocorreu no mesmo ano em que Frank Miller

reviveu um clássico dos anos 1940. Pelo selo da DC, Miller tirou Batman da

aposentadoria com The Dark Knight Returns (1986). Sombria e violenta, a história é

a epítome das séries de super-heróis desenvolvidas para o público adulto. Mazur e

Danner (2014, p. 174) descrevem O Cavaleiro das Trevas como “um livro caótico,

refletindo um mundo caótico, onde a criminalidade de rua cresceu a extremos

inéditos nos dez anos desde a aposentadoria de Batman”.

Assim como 1934 significou mudanças importantíssimas para as histórias em

quadrinhos, 1986 foi um ano de grandes produções, que mudaram a maneira como

as HQs eram encaradas pelo grande público e também pelos críticos. Além de

Moore e Miller, Art Spielgman e Françoise Mouly lançaram RAW, focada em

quadrinhos de vanguarda (MAZUR; DANNER, 2014). Foi em RAW que o drama dos

campos de concentração nazistas foi retratado, pela primeira vez, em forma de

narrativa visual.

Em Maus, Spielgman contou a história de seu pai, um imigrante judeu

polonês que sobreviveu à Auschwitz. McCloud (2006, p. 33) explica que o

quadrinista “decidiu representar os judeus como ratos e os alemães como gatos ao

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adaptar as experiências do seu pai no holocausto”. Eisner (2013, p. 160) explica

que, graças ao protagonista, o estilo usado em Maus contava uma história. “O visual,

acima de tudo, transmitia de maneira bastante apropriada a impressão de que a arte

havia sido criada num campo de concentração. Isso é narrativa gráfica”. O resultado

da publicação foi tão positivo que o autor recebeu um Prêmio Pulitzer especial em

1992. Para Mazur e Danner (2014, p. 187) “o papel de Maus na expansão do público

dos quadrinhos dificilmente será superado. Ele abriu caminho para que as histórias

em quadrinhos entrassem nos reinos de discussão literária séria”.

Na década de 1990, o tão falado público adulto das HQs foi reconhecido pela

DC por meio da criação de uma nova marca, a Vertigo. Trabalhos mais antigos que

se encaixavam nos padrões foram transferidos para o novo selo, como Monstro do

Pântano (1985), de Alan Moore. Publicações recentes, como a aclamada Sandman,

de Neil Gaiman, também continham o novo selo. A Vertigo dava “liberdade aos

criadores para tratar de conteúdo e imagens que tinham permanecido proibidos por

lei nos quadrinhos mainstream por quase quatro décadas” (MAZUR; DANNER, p.

218).

De acordo com Mazur e Danner (2014), os próprios quadrinhos mainstream

sofreram durante esse período pelo “excesso” de seus criadores. Rob Liefeld,

criador da Marvel, é o principal exemplo. Homens e mulheres “estereotipadamente”

malhados, abuso de recursos de design, a invenção de ícones de colecionador,

entre outros, levaram a um “boom” especulador. HQs com um conteúdo fraco

venderam muito, todas produzidas em demasia. Contudo, os autores explicam que,

quando “a explosão especuladora chegou, derrubou uma boa parcela das lojas de

mercado direto, e a própria Marvel pediu falência em 1996” (MAZUR; DANNER,

2014, p. 221).

Apesar do fracasso da Marvel, outra editora obteve sucesso naquela época.

Segundo Mazur e Danner (2014), a Dark Horse trouxe artistas conhecidos para

trabalhar em séries originais, matérias que provavelmente não seriam publicadas por

outro selo. Frank Miller presenteou o público com Sin City (1991-2001); Mike Mignola

lançou Hellboy; o artista Doug Mahnke criou O Máscara (1991-2000). Após a virada

do século, os quadrinhos também ganharam grandes títulos como The Walking

Dead (2003) e Scott Pilgrim (2006). Além disso, nesse meio tempo, a DC e uma

reestruturada Marvel continuaram criando versões de seus clássicos, consumidas

pela sempre fiel base de fãs.

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Além de trabalhos renomados, tanto no mainstream quanto no underground, a

primeira década do século XXI foi marcada pela transição dos quadrinhos para o

universo cinematográfico e pela popularização de produtos relacionados às histórias.

Batman, Superman, X-Men, Watchmen, V de Vingança, Homem de Ferro, Capitão

América, dentre tantos outros heróis ganharam adaptações no cinema. Na televisão,

os personagens também fizeram-se presentes. Gerações de leitores, de diferentes

idades, compreendem o poder dos quadrinhos.

Nesse capítulo, discorreu-se sobre as especificidades das histórias em

quadrinhos. Passou-se pela definição de imagem relacionada a um contexto gráfico;

discorreu-se sobre as características que emanciparam os quadrinhos das demais

formas de expressão e, por fim, voltou-se à pré-história para contar como surgiram e

evoluíram, no decorrer dos anos, as histórias em quadrinhos. No próximo capítulo,

deixa-se de lado o contexto artístico para embarcar em um cenário geográfico. O

assunto a ser abordado é o território palestino. A história do país do Oriente Médio

será revisitada, bem como a origem dos conflitos entre Palestina e Israel, que

geraram pretexto para a criação do objeto de estudo desta monografia.

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4 PALESTINA

“Hoje, a Palestina não existe, exceto como uma reminiscência ou, mais

fundamentalmente, como uma ideia, uma experiência política e humana e um ato de

persistente vontade popular” (SAID, 2012, p. 5). Assim como a erosão corroeu

rochas, moldando-as em diferentes formas, desgastando-as, os infortúnios do tempo

corroeram o solo que antes abrigava a Palestina. Em um caso atípico, os árabes que

lá viviam viram que as vontades de grandes potências mundiais falam mais alto do

que a voz de milhões de indignados. Segundo Said (2012), a criação do Estado de

Israel dentro do território palestino, que ocorreu em 1948, foi um divisor de águas na

história do povo árabe. Por uma imposição, a população tornou-se estrangeira

dentro de seu próprio país. Os que não se resignaram, refugiaram-se em países

vizinhos.

A história da Palestina – e também dos conflitos travados com os judeus –

começa antes do nascimento de Cristo, quando os árabes já se movimentavam

rumo às terras localizadas a leste do Egito (SOARES, 1989). Contudo, como

observa Sacco (2011), os dramas do povo nunca ganharam destaque midiático.

Para o resto do mundo, era como se esses sofressem em silêncio. Como afirma

Sacco (2011, p. 8) “se os palestinos têm afundado por décadas, se têm sido

expulsos, bombardeados [...], mesmo quando isso chegou ao jornal, eu nunca soube

de um nome ou me lembrei de um rosto”.

Pouco se sabe sobre o país ou sobre as mudanças na vida daqueles que

enfrentaram a ocupação Israelense. Portanto, neste capítulo, o foco é a Palestina.

Em um primeiro momento, aborda-se a formação do Estado palestino, o avanço do

sionismo e o período anterior à criação de Israel. Em um segundo momento,

discorre-se sobre a perda do território e as revoltas pela presença dos judeus. O livro

Israel X Palestina: as raízes do ódio, de Jurandir Soares, é a principal fonte utilizada

na abordagem desses conteúdos.

4.1 OS DESCENDENTES DE ISMAIL

Conforme o dicionário Delta Larousse, o verbete Palestina significa “país dos

filisteus. Região do Oriente Próximo, entre o deserto da Síria, o Líbano e o

Mediterrâneo. Também chamada Terra Santa” (SOARES, 1989, p. 16). Desde o

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período bíblico, o território que serviu de cenário para a história de Jesus Cristo foi

habitado por diversos povos, dentre os quais estão os amalequitas, edomitas e

cananeus. Contudo, os mais significantes, historicamente, são os filisteus e os

hebreus. Como explica Soares (1989), para entender a origem desses dois povos, é

necessário retroceder aos tempos de Noé, que era pai de Sem que, por sua vez, era

pai de Abraão. Sem teve dois netos: Isaac e Ismail. Cada um dos filhos de Abraão

formou uma tribo. Do lado de Isaac originaram-se os hebreus – também chamados

de judeus ou israelenses; da tribo de Ismail surgiram os filisteus – ou palestinos

(SOARES, 1989).

Abraão e seus dois filhos viviam em um local chamado Ur, na Caldéia – em

terras que, atualmente, compõem o território iraquiano (SOARES, 1989). As tribos

ocuparam o local enquanto o solo era fértil. Entretanto, quando a fome chegou à

região – por volta do ano 2.300 a.C. –, os irmãos partiram, com seus respectivos

grupos, em direção do Ocidente. Enquanto os hebreus seguiram para o Egito, os

filisteus fixaram-se “na parte oeste da Terra de Canaã, junto ao Mediterrâneo, até

então desabitada” (SOARES, 1989, p. 17).

Ainda conforme o autor, o capítulo seguinte da história dos hebreus é

bastante conhecido. As esperanças de Isaac em relação à avançada civilização

egípcia foi frustrada quando seu povo foi escravizado. Sob tais condições, judeus

permaneceram no Egito até 1.500 a.C.. Durante esse período, Moisés deu início às

movimentações rumo ao êxodo, que foi concluído por Josué. As palavras decisivas

para a partida em massa foram proferidas por Deus, assim como consta no antigo

testamento das escrituras sagradas.

O episódio em questão está descrito no Livro de Josué. Depois da morte de

Moisés, Javé27 ordenou que Josué – servo de Moisés – atravessasse o rio Jordão,

liderando o povo escolhido – os hebreus – para a terra que Ele havia lhes prometido.

“Todo lugar que a planta dos pés de vocês pisar, eu o dei a vocês [...] O território de

vocês irá desde o deserto até o Líbano, e desde o grande rio Eufrates até o mar

Mediterrâneo, no ocidente” (BÍBLIA (Josué, 1: 3), 1989, p. 242). A área “destinada”

por Javé aos hebreus era a mesma ocupada pelos filisteus há sete séculos.

Já fora do Egito, Soares (1989, p. 17) explica que a população hebraica

rumou às terras do povo de Ismail. “Para ali se estabelecer, [...] tiveram que lutar

27

Na Bíblia, Deus é chamado de Javé nas passagens que tratam do êxodo do Egito e da criação dos Dez Mandamentos. Fonte: Bíblia Sagrada.

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com os filisteus e com os cananeus”, até alicerçarem-se na Galileia. Contudo,

naquela época, o domínio ainda era filisteu. O autor relata que a situação mudou em

1025 a.C., quando Saul, o então líder dos hebreus, libertou-os das amarras dos

filisteus, tornando-se o primeiro rei da Terra de Israel.

O reinado de Saul foi sucedido pelo de Davi. Segundo Soares (1989), no

século X a.C. as linhas que demarcavam o território hebraico estendiam-se dos rios

Nilo ao Eufrates. Além disso, foi durante esse período que Jerusalém se tornou a

capital do reino. Contudo, apesar da liderança de Davi, foi sob o domínio de seu

filho, Salomão, que a Terra de Israel transformou-se “numa das maiores potências

do Oriente Médio” (SOARES, 1989, p. 18).

Seguindo a linha do tempo proposta pelo autor, em 930 a.C., Salomão

padeceu e deixou como legado o primeiro templo de Jerusalém. As tribos por ele

comandadas, contudo, não concordaram quanto ao seu sucessor. As divergências

culminaram na divisão do reino em dois: “Israel, com capital na Samaria, e Judá,

com capital em Jerusalém” (SOARES, 1989, p. 18). Durante 200 anos, os povos

guerrearam diversas vezes. Enfraquecidos pelos conflitos, foram dominados. Em

733 a.C, os assírios conquistaram Israel; em 701 a.C., tomaram posse de Judá.

Conforme Soares (1989, p. 18), dois séculos depois, os babilônios

apossaram-se dos reinos. Sob seu controle, Jerusalém foi destruída. Com o

desmantelamento, principalmente de Judá, “grande parte da população foi exilada

para a Babilônia (atual Iraque), enquanto que outros fugiram para o Egito”. Porém,

assim como das outras vezes, o êxito dos babilônios dissipou-se quando Ciro, rei da

Pérsia, conquistou a Babilônia. O autor conta que uma de suas principais ações foi

ordenar a reconstrução, tanto de Judá quanto do templo.

Na história de dominadores e dominados, o triunfo seguinte pertenceu a

Alexandre, o Grande28, que, em 331 a.C, tomou para si o império Persa. Com sua

morte, nove anos depois, “estabeleceu-se o domínio helênico, para, em 63 a.C.

ocorrer a incorporação à Roma” (SOARES, 1989, p. 18). Quem reinou durante o

período romano foi Herodes. Sob seu comando, a região testemunhou o nascimento

de Jesus Cristo.

28

Alexandre foi um importante rei da Macedônia, que viveu no século 4 a.C. Em apenas 33 anos de vida, conseguiu formar um enorme império, que ia do sudeste da Europa até a Índia. Por isso, ele é considerado o maior líder militar da Antiguidade. Fonte: Revista Mundo Estranho. Disponível em: <http://mundoestranho.abril.com.br/materia/quem-foi-alexandre-o-grande>. Acesso em: 01/06/2016.

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Trinta e três anos após a crucificação do Messias, Soares (1989) relata que

houve uma revolta judaica contra seus dominadores. Os conflitos culminaram na

segunda destruição de Jerusalém. Uma segunda rebelião ocorreu depois de um

século. Contudo, os judeus foram derrotados por Adriano29. “Estava consumada a

diáspora judaica. Desterrados, os judeus espalham-se pela bacia do Mediterrâneo e

pela Europa, por onde surgiram várias comunidades judaicas” (SOARES, 1989, p.

18).

Dito isso, constata-se que, entre os anos 1025 a.C a 135 d.C, o território

palestino foi ocupado pelos hebreus. De acordo com o autor, três séculos após a

diáspora, a população da Palestina era predominantemente cristã, pois o local

passou a integrar o Império Bizantino, durante o qual foi construída “a Igreja da

Ressurreição, em Jerusalém, e a da Natividade, em Belém” (SOARES, 1989, p. 19).

Todavia, o Cristianismo não foi a última religião a nascer naquelas terras. A

Palestina também presenciou o crescimento do Islamismo.

O Islã manifestou-se, pela primeira vez, em Meca30. Os árabes não foram

diferentes de todos os outros povos que por lá haviam passado no sentido de

reconhecer a importância da região para sua expansão. Segundo Soares (1989, p.

19), a pretensão dos muçulmanos era ampliar a abrangência de sua religião e

domínio, tanto a leste quanto a oeste. Em 637, Omar liderou os árabes na conquista

na Palestina. Após derrotar os cristãos, o califa “determinou a construção de uma

mesquita sobre um rochedo, que viria a ser conhecida como Domo da Rocha,

tornando-se o marco maior da presença islâmica”.

O surgimento do Islã parecia significar o fim de uma era de conflitos.

Entretanto, cristãos e árabes lutaram novamente pelo território em 974. Um século

mais tarde, no período das cruzadas, a Palestina esteve dominada por latinos. Na

sequência, egípcios e otomanos mandaram na região até a ocupação inglesa, em

1918. Soares (1989, p. 20) ressalta que, no decorrer dos séculos de dominação, um

29

Públio Élio Trajano Adriano, conhecido apenas como Adriano, foi imperador de Roma do ano de 117 a 138. Pertenceu à dinastia dos Antoninos e foi o primeiro imperador a viajar por todo o seu domínio de ponto a ponto (QUARANTA, SD). Disponível em: <http://www4.pucsp.br/revistacordis/downloads/numero1/artigos/adriano_imita_alexandre.pdf>. Acesso em: 19/06/2016. 30

Situada na atual Arábia Saudita, Meca é a cidade natal do profeta Maomé, fundador do Islamismo. Lá está situado o santuário de Kabah, construído no segundo milênio antes de Cristo. Segundo a tradição islamita, Kabah é o único local da Terra tocado pelas forças celestes. Fonte: Revista Mundo Estranho. Disponível em: <http://mundoestranho.abril.com.br/materia/por-que-meca-eimportante-para-o-islamismo>. Acesso em: 01/06/2016.

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povo nunca resignou-se ou abdicou de seu espaço: o palestino. Mesmo sem contar

com a proeminência sobre os demais, os palestinos permaneceram em suas terras,

“plantando, colhendo, dançando e vivendo a sua vida”. Apesar de ter vivenciado

tantos conflitos, a história da Palestina ganhou contornos trágicos no século XX,

quando o país voltou a enfrentar seu inimigo mais antigo, o povo hebreu.

4.2 ISLAMISMO X SIONISMO

Após a diáspora, os judeus pareciam ter deixado a Palestina no passado e

encontrado o pedaço de terra prometida em algum outro canto do mundo. Contudo,

entre o final do século XIX e o início do século XX, o surgimento de um movimento

batizado de sionismo fez com que a promessa bíblica fosse ressuscitada. O termo,

criado em 1886 por Nathan Birnbaun, advém da ideia de “reagrupamento em torno

do monte Sion” (SOARES, 1989, p. 21). Ainda conforme o autor, o movimento teve

dois principais âmbitos: o religioso e o político. O primeiro deles pode ser encarado

sob um viés benéfico, pois reascendeu, nos judeus, o amor pelo Judaísmo. Graças a

ele, houve promoção de atividades sociais e culturais ligadas à religião.

O sionismo político, por sua vez, angariou seguidores ao afirmar que os

judeus eram desprezados por não terem uma pátria. A partir disso, entrou em pauta

a proposta da ocupação da Palestina para o estabelecimento da pátria judaica. De

acordo com Eliyahu Biletzky (1982, p. 37), o sionismo é nutrido pela sobrevivência,

ou seja, pelo “desejo do povo judeu de viver de acordo com novas circunstâncias

históricas”. Os ativistas sionistas da época tratavam o movimento como sinônimo de

preservação da raça. Um deles, chamado Max Nordau (SD, apud BILETZKY, 1982,

p. 37), afirmava que “somente o Sionismo pode dar ao povo judeu uma garantia de

segurança para um futuro infinitamente remoto. Sem o Sionismo, sua destruição

seria apenas questão de tempo”.

A disseminação do sionismo ocorreu, principalmente, na Europa. Um dos

responsáveis pela concretização do movimento foi Theodor Herzl. Judeu húngaro,

ele acreditava fortemente que a criação de um Estado judeu poderia interromper a

crescente onda antissemítica europeia (SOARES, 1989). Em 1917, os ingleses

colaboraram imensamente para o que viria a acontecer em 1948. Nesse ano, foi

promulgada a Declaração de Balfour. O documento dizia, basicamente, que o

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governo britânico era favorável ao estabelecimento de um lar nacional, para o povo

judeu, na Palestina (SAID, 2012).

Porém, os sionistas não reconheciam, em momento algum, a existência da

comunidade palestina. Na própria Declaração de Balfour, os palestinos foram

designados apenas como “não-judeus”. Como Soares (1989, p. 25, grifo do autor)

aponta, eles “nunca foram mencionados como habitantes da região, dotados de

especificidade quanto aos costumes, tradições, leis, ocupação de solo, modus

vivendi – em lugar de serem palestinos, eram simplesmente não-judeus”. Porém, os

únicos prejudicados com esse desprezo e desrespeito foram os próprios palestinos.

Como afirma Said (2012, p. 64), “discute-se muito pouco o que o sionismo

causou para aos não judeus que por acaso se depararam com ele”. Para o autor, os

debates sobre o movimento esbarram em uma realidade histórica. “Quando

tentamos tratar daquilo que o sionismo suprimiu do povo palestino, desembocamos

[...] no desastroso problema do antissemitismo” (SAID, 2012, p. 66). Inconformados

com a presença dos judeus – que em 1928 já formavam uma população de 102 mil

(SOARES, 1989) – os palestinos tornaram-se agressivos. O autor conta que,

enquanto os árabes reagiam com violência às tentativas judaicas de criar

assentamentos, os judeus reagiam da mesma forma para afastar os palestinos dos

lugares onde pretendiam fixar residência.

A hostilidade dominava as relações entre os povos. Muitos conflitos

ocorreram durante as décadas de 1920 e 1930, nos quais palestinos e judeus

perderam a vida. Em decorrência da ação de três grupos terroristas judeus em solo

árabe – o Haganah, o Irgun e o Stern – “cada vez mais o povo palestino se via na

contingência de ter que abrir mão de suas terras e tornar-se refugiado em seu

próprio território para dar lugar a outro povo” (SOARES, 1989, p. 43). Nada era

capaz de desviar os sionistas de sua missão: a conversão da Palestina em um

Estado judeu. Como explica Said (2012, p. 24), os protestos nativos não eram

levados a sério. “Os sionistas eram capazes de difundir suas visões e sua realidade

em detrimento da visão e da realidade dos árabe-palestinos”.

Para propagar suas crenças, os sionistas buscavam o apoio de diversos

países fora do Oriente. Said (2012, p. 26) salienta que os apelos judeus eram todos

internacionais. “Até 1948, e mesmo depois, a luta teve de ser travada, alimentada e

suprida, na maioria das vezes, nas grandes capitais do Ocidente”. Contudo, as

revoltas e solicitações eram tantas que a Inglaterra, país mais envolvido na questão

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da ocupação, decidiu “entregar o problema” para a Organização das Nações Unidas

(ONU). Para resolver a situação, a ONU criou um comitê de investigação.

A partir das análises, o comitê decidiu, em 1947, “pela partilha da Palestina

em dois Estados, um judeu e outro árabe, ficando Jerusalém sob tutela

internacional” (SOARES, 1989, p. 44). Tal proposta foi aprovada pela Assembleia

Geral das Nações Unidas. Com a divisão da área, Soares (1989) explica que apenas

43% do território ficou sob domínio palestino, enquanto 56% foi destinado aos

judeus, embora esses representassem apenas 35% da população total do país.

A decisão da ONU não retirou, instantaneamente, as responsabilidades da

Inglaterra, que ainda era mandatária da região. Contudo, o país havia fixado uma

data para sua saída definitiva do território: 15 de maio de 1948. Passados quinze

dias dessa data, os sionistas puderam, enfim, declarar a independência do Estado

de Israel. O autor afirma que os árabes – não só palestinos – há tempos não

estavam de acordo com a ocupação judaica. A saída da Inglaterra foi o estopim para

uma série de conflitos entre os dois povos.

4.2.1 Histórico de conflitos

A ocupação havia sido legitimada e os sionistas continuavam tentando vender

ao resto do mundo, a ideia da inexistência da resistência palestina. Porém, como

Said faz questão de relembrar,

por centenas de anos, existiu na terra chamada Palestina um povo essencialmente pastoril e, no entanto, social, cultural, política e economicamente identificável, cuja língua e religião eram (em grande parte) árabe e islâmica, respectivamente. Esse povo – ou, para aqueles que desejam lhe negar qualquer concepção moderna de si próprio como povo, esse grupo de pessoas – criou uma identidade com a terra que ele cultivou e em que viveu (na pobreza ou não, isso é irrelevante), que se tornou ainda mais forte depois que se tomou uma decisão quase exclusivamente europeia de restabelecer, reconstituir, recuperar essa terra para os judeus que deveriam ser levados para lá de algum outro lugar. (SAID, 2012, p. 9, grifo do autor)

Dois dias. Esse foi o tempo que os árabes levaram para reagir após a

emancipação israelense. No dia 32 de maio de 1948, aviões egípcios

bombardearam a cidade de Tel Aviv, “iniciando o ataque, por terra, de unidades

militares do próprio Egito, do Líbano, Síria, Jordânia e Iraque” (SOARES, 1989, p.

48). O autor prossegue, comentando que esse grupo de países pensava que suas

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forças e armamentos seriam suficientes para derrotar os israelenses. Entretanto, a

ajuda internacional – principalmente de países como os Estados Unidos e a

Inglaterra – fez com que a capacidade bélica judaica aumentasse

consideravelmente.

Em 1956 árabes e israelenses guerrearam pela segunda vez. Soares (1989)

conta que Israel, França e Inglaterra atacaram, simultaneamente, o Egito por

motivos políticos. O cessar-fogo foi determinado em Assembleia da ONU. Porém, o

então comandante egípcio, Gamal Abdel Nasser, tinha uma ideia de união do mundo

árabe que se propagou, de certa forma. Em meados da década de 1960 foi lançada,

sob a liderança de Yasser Arafat, a Organização pela Libertação da Palestina (OLP).

Seu objetivo era representar o povo palestino e derrubar o Estado de Israel

(SOARES, 1989).

De acordo com Said (2012, p. 29) a OLP “é reconhecida por mais de cem

países [...] como o único representante legítimo do povo palestino; no entanto, nem

os Estados Unidos nem Israel admitem que a OLP representa os palestinos”. O

autor conta que, como organização, a OLP também tinha seu braço armado,

conhecido como Al Fatah. O Fatah também era liderado por Arafat. Contudo, além

do Fatah, a OLP garantia proteção a sete outros grupos de guerrilheiros, dentre os

quais destacava-se a Frente Popular de Libertação da Palestina.

Os ataques continuaram. Se Israel realizava uma investida contra os

palestinos, havia retaliação. O inverso também ocorria. Pequenos confrontos

culminaram em mais uma guerra. Segundo Soares (1989, p. 58-59), na edição do

dia 10 de agosto de 1967 do jornal The Jerusalem Post foi publicada uma entrevista

com o general judeu Moshe Dayan, na qual ele abordava a importância de

determinadas regiões para Israel. Dayan afirmou que “quem tem o livro da Bíblia e o

povo da Bíblia, então deve ter também a terra da Bíblia”.

A “terra da Bíblia” por ele citada foi conquistada pelo exército israelense

durante a Guerra dos Seis Dias. Entre cinco e 11 de junho, Israel derrotou tropas

egípcias, jordanianas e sírias e tomou “as colinas de Goian, a Faixa de Gaza e toda

a península do Sinai, do Egito” (SOARES, 1989, p. 58). Os 21 mil km² que

integravam o Estado judaico haviam triplicado. De acordo com Said (2012, p. 44),

em decorrência dessa expansão, “uma população de 1 milhão de árabes teve de se

amontoar. Ninguém, muito menos os israelenses, podia se esquivar do problema

que essa nova realidade palestina representava”.

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Entretanto, e ainda segundo o autor, o problema não parecia afetar a todos e

os israelenses não eram os únicos a comemorar as vitórias. O país representava

interesses – relacionados ao petróleo que há na região – dos Estados Unidos e de

outras nações da Europa Ocidental no Oriente Médio. Como explica Said (2012), a

causa sionista é praticamente inviolável para os americanos. Ele observa que

a fundação de Israel em 1948 é discutida no mesmo tom sussurrado e no mesmo alto nível que o Plano Marshall

31. Parte da comunidade intelectual e

acadêmica – sem falar da indústria inteira da comunicação – observa os rituais de Israel e tudo que lhe diz respeito em um nível que não se compara a nenhuma outra causa. (SAID, 2012, p. 47-48)

Para Said (2012, p. 30), o sionismo e o Ocidente comungavam linguagem e

ideologia. Os árabes, por sua vez, nunca integraram esse grupo. “Em larga medida,

essa comunidade depende de uma notável tradição ocidental de inimizade em

relação ao Islã em particular e ao Oriente em geral”. Com isso, a causa palestina

continuava ignorada. Poucos países opuseram-se à ocupação. Os que o fizeram,

assim como o Egito, tinham seus interesses que constituíam-se em algo mais

relevante do que o bem-estar do povo palestino. A Jordânia também auxiliou os

árabes da Palestina. Durante a Guerra dos Seis Dias, incontáveis famílias

refugiaram-se no país vizinho. De acordo com Adriana Mabilia (2013), os palestinos

são equivalentes a 56% da população da Jordânia. Durante a viagem da autora à

Palestina, ela conheceu uma das inúmeras refugiadas, a relações públicas Majeda

M.

No livro de Mabilia, Majeda relata que sua família fugiu em 1967 e nunca mais

voltou. De acordo com a refugiada, o exército israelense destruía as casas dos

árabe-palestinos. “Eles não deixavam muita opção, senão fugir. [...] os refugiados

não podem voltar para a própria terra. Somos proibidos, inclusive, de visitar a

Palestina e nossos parentes” (MABILIA, 2013, p. 131). Contudo, em 1970, o rei

Hussein, da Jordânia, ordenou que suas tropas expulsassem os palestinos.

Empregando artilharia pesada, as tropas mataram, segundo números do Al Fatah,

aproximadamente 20 mil pessoas (SOARES, 1989).

31

O Plano Marshall foi um projeto de empréstimos e doações financeiras realizado pelos Estados Unidos da América aos países europeus devastados pela Segunda Guerra Mundial. O Plano recebeu esse nome graças a seu idealizador, o general George Catlett Marshall, antigo Chefe do Estado-Maior do Exército dos EUA. Fonte: História do Mundo. Disponível em: <http://historiadomundo.uol.com.br/idade-contemporanea/plano-marshall.htm>. Acesso em 02/06/2016.

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A vitória da Guerra dos Seis Dias significou muito para Israel, que ainda não

havia sofrido grandes perdas. Os judeus só conheceram a derrota anos mais tarde.

Em seis de outubro de 1973, durante o Yon Kippur – o Dia do Perdão – o Egito

lançou uma ofensiva contra os israelenses. De acordo com Soares (1989, p. 64),

esse ataque significou a primeira vitória árabe e “as maiores perdas – em termos de

soldados e armamentos”, da história de Israel. Entretanto, as desavenças entre as

duas nações chegou ao fim algum tempo depois.

Durante a guerra do Yon Kippur, o então presidente egípcio Anuar Sadat

havia tentado firmar acordos com os Estados Unidos, forçando uma aproximação. O

mesmo ocorreu em relação a Israel, que ainda dominava territórios estratégicos do

Egito. Naquela época, Jimmy Carter havia recém assumido a presidência americana.

Foi ele que, segundo Soares (1989), auxiliou na aproximação entre Egito e Israel e

na assinatura do Acordo de Camp David, tratado no qual ambos os países

comprometeram-se conviver em paz. Como conta Said,

enquanto se reuniam em Washington em 26 de março de 1979, as mãos dadas em júbilo, prontos para uma paz que supostamente pressagiava o fim dos problemas no Oriente Médio, Jimmy Carter, Anuar Sadat e Manachem Begin pareciam apagar naquele instante a terrível e tortuosa história que os pusera tão triunfantes no centro do palco do mundo. (SAID, 2012, p. 225-226)

Para Soares (1989), o Acordo de Camp David marcou o isolamento do Egito

no mundo árabe. Para os israelenses, o tratado significou a eliminação de seu mais

poderoso inimigo e o incremento de seu poder sobre a região. No entanto, apesar de

apaziguar as relações com o Egito, a rivalidade com os palestinos perdurava e

continuava resultando em mortes. Em 1982, depois da tentativa de assassinato do

embaixador israelense em Londres, Shlomo Argov, as tropas judaicas revidaram.

Ainda de acordo com o autor, com o auxilio de um negociador americano, Israel

conseguiu retirar todos os guerrilheiros palestinos do Líbano, deixando os civis

desprotegidos. Foi então que ocorreu o massacre de Sabra e Chilata, dois campos

de refugiados, localizados próximos a Beirute. “Milhares de civis palestinos foram

massacrados, num episódio que provocou profunda indignação, inclusive dentro de

Israel” (SOARES, 1989, p. 75).

Durante a década de 1980, o exército judeu dominava os territórios de Gaza e

da Cisjordânia. Insatisfeitos com a ocupação militar, os palestinos iniciaram, em

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91

1987, uma revolta popular que ficou conhecida como Intifada, que significa “o

despertar da nação” (SOARES, 1989). Sem o auxílio de grandes potências mundiais

– vindo em forma de armamentos –, os árabes lutavam com pedras e paus, hábito

que perdura até hoje. Como Sacco (2011) relata, enquanto os soldados utilizam-se

de armas automáticas, os jovens palestinos correm, em meio às balas, atirando

pedras nos ônibus.

A revolta foi a primeira a contar com a participação das mulheres palestinas.

Mabilia (2013, p. 34) conta que, “muitas vezes, as jovens saíam de casa dizendo que

iam visitar as amigas. [...] Com a ajuda dos irmãos, elas seguiam para o campo de

batalha, o foro universitário, a enfermaria da linha de frente”. Com homens e

mulheres na linha de frente, a Intifada significou ganhos e perdas para a Palestina.

Ao mesmo tempo em que foi a maior vitória política dos árabe-palestinos, custou

milhares de vidas.

Ainda conforme a autora, depois da Intifada, a movimentação dos palestinos

foi dificultada pelos israelenses. Naquela época, foi implantado pelo governo judeu

um sistema de permissão de acesso a Jerusalém. Em 1988, foi proibida a viagem de

Gaza à Cisjordânia. “Isso até hoje só é possível em datas e casos especiais, com

autorização” (MABILIA, 2013, p. 108). Mesmo com tais restrições, o povo parecia ter

se unido. O próprio Yasser Arafat relata que “crianças, advogados, estudantes,

médicos, enfim, todos reagem contra a ocupação da terra palestina” (ARAFAT, SD,

apud SOARES, 1989, p. 78).

Arafat também relembra a resolução nº 181 da ONU, que resultou na divisão

do território e na criação de ambos os Estados. Para o líder da OLP, a resolução é

indivisível. Porém, o grande obstáculo é o fato de os israelenses se oporem a deixar

os territórios ocupados, o que propiciaria à Palestina a chance de reconstruir-se.

“Com isto, Israel aceita apenas parte da resolução que lhe convém – o que não é

possível. Israel é o único Estado criado através de resolução da ONU, o que torna

esta recusa em aceitar a Palestina ainda mais inadmissível” (ARAFAT, SD, apud

SOARES, 1989, p. 78-79).

Os palestinos seguiram vivendo nos assentamentos – que hoje são

aproximadamente 200 – espalhados pelo território, inclusive em áreas israelenses.

Ao final da Guerra do Golfo, que ocorreu em março de 1991, os Estados Unidos

decidiram realizar uma conferência de paz no Oriente Médio. Segundo Said (2012),

em 30 de outubro do mesmo ano, Israel, Jordânia, Síria e Egito e os palestinos

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participaram do evento, em Madri, na Espanha. Dias antes do acontecimento, um

representante americano esteve na região, negociando termos com os participantes.

Ainda de acordo com o autor, enquanto todas as demandas dos judeus foram

atendidas, a participação da OLP foi barrada e ficou decidido que a delegação

palestina deveria integrar o grupo jordaniano.

Said (2012) segue, afirmando que os Estados Unidos “desviaram os olhos” à

medida que Israel aumentava seus abusos contra os direitos palestinos. Ele conta

que os EUA

não fizeram nenhuma menção em Madri aos 17 mil presos políticos que eram mantidos nas prisões israelenses, nem às 2 mil casas demolidas, nem às 120 mil árvores arrancadas, nem às universidades e escolas fechadas, nem aos toques de recolher, nem aos impostos, aos cartões de passagem e às leis punitivas, nem às centenas de livros censurados, nem às mais de mil mortes de palestinos causadas pela violência militar israelense desde o início da intifada, no final de 1987. (SAID, 2012, p. 275)

As falas e ações de ambos os países simplesmente ignoravam as mais de 60

resoluções aprovadas pelo Conselho de Segurança da ONU em favor dos

palestinos. O autor também revela que o foco da mídia durante o evento reiterava

uma nova imagem, irreal, de uma Palestina em busca de paz e reconciliação. Uma

das razões para a distorção das notícias era o acordo existente entre Estados

Unidos e Israel, que garantia – e ainda garante – cinco bilhões de dólares,

anualmente, em subsídios para o país do Oriente Médio.

Dito isso, é relevante reiterar que a Palestina estava – e ainda está –, sim, em

busca de paz e reconciliação. Porém, o povo que lutou durante tantos anos por seu

espaço não estava disposto a se deixar subjugar frente a tantos ultrajes. Said (2012)

destaca que os palestinos estão à espera de gestos que demonstrem que essa

busca também existe por parte do povo de Israel.

Entretanto, até o início do século XX, pouco havia mudado nesse cenário.

Tanto que, em 2000, aconteceu o que ficou conhecida como a segunda Intifada.

Dessa vez, como conta Mabilia (2013, p. 109), a retaliação judaica veio, dois anos

depois, com a construção do Muro de Israel. A autora relata que “os palestinos

dizem que vivem em uma prisão a céu aberto”. O muro foi pensado para que, do

lado árabe, só restasse terra seca e árida. Do lado Israelense, o cinza da construção

foi revestido por decorações e conta com a sombra de oliveiras.

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A saga de sofrimento ainda persiste e a característica de resistência dos

palestinos se acentua cada vez mais. Said aponta que

os palestinos continuam sendo um povo tão singular que servem essencialmente como sinônimo de problema – um problema desenraizado, irracional e gratuito. Eles não vão embora como deveriam, não aceitam o destino de outros refugiados (que aparentemente se resignaram a ser refugiados e estão satisfeitos desse modo) e causam problemas. (SAID, 2012, p. 8)

Como Said (2012) observa, parece não haver solução para a questão da

Palestina. A comunidade mundial vira as costas, a ONU é impotente e o país mais

poderoso do mundo tem vínculos fortíssimos com Israel. Contudo, Mabilia (2013, p.

166) lembra que “a história mostra que não há império que resista para sempre.

Então, resta na repetição da história uma esperança”. Por enquanto, o que se repete

é o lado brutal do passado. Como Sacco (2011, p. 285) observou enquanto partia da

Palestina, “de longe, dava para ver as crianças se escondendo dos dois lados da

estrada. Se continuássemos naquela direção seríamos apedrejados”.

O objetivo desse capítulo foi contar a história do Estado palestino e

rememorar o histórico de confrontos entre os árabes e o povo de Israel. Foram

abordados os principais acontecimentos desde a era bíblica até os dias atuais. No

próximo capítulo, que abordará a metodologia, também se fará a análise do livro-

reportagem em quadrinhos Palestina, objeto de estudo dessa monografia.

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5 METODOLOGIA

Linguagens aparentemente antagônicas, mas unidas para a criação de um

produto de vanguarda. A junção pouco usual de Jornalismo e histórias em

quadrinhos torna necessária uma análise aprofundada da construção de Palestina, o

livro-reportagem elaborado por Joe Sacco, que serve de objeto de estudo para essa

monografia. Poucas vezes um jornalista foi capaz de desconstruir paradigmas com a

mesma intensidade de Sacco. Após despir-se de conceitos jornalísticos engessados

por anos de aplicação, o repórter foi capaz de apresentar um universo onde não há

espaço para eufemismos, enfeites ou representações costumeiramente divulgadas

pela mídia tradicional. Há, em vez desses aspectos, o olhar de alguém que partiu

para a Palestina com a intenção de conhecer, observar e vivenciar a realidade do

povo que lá vive para, então, retratá-la com a maior fidelidade possível.

5.1 PESQUISA QUALITATIVA

O diferencial de Palestina, em relação a outras obras do gênero, é o

ineditismo, tanto da abordagem quanto da perspectiva escolhida para tratar do

assunto. A maior conquista de Sacco, em sua grande-reportagem em quadrinhos, é

dar voz – e rosto – ao povo palestino. Para expor diferentes facetas da vida na

região por meio da narrativa quadrinística, o autor buscou alicerces nas ferramentas

do Jornalismo e nas nuances do Jornalismo Literário. Portanto, com a intenção de

explorar o objeto de estudo e de determinar como se deu a construção dessa

narrativa quadrinística enquanto atividade jornalístico-literária, os procedimentos

utilizados nessa pesquisa serão qualitativos.

A subjetividade da grande-reportagem em questão – bem como das

linguagens por meio das quais é construída – exclui, automaticamente, a

possibilidade da realização de uma pesquisa quantitativa, que tem como

característica a utilização de números e modelos estatísticos para interpretar dados.

A pesquisa qualitativa, por sua vez, constitui-se na melhor alternativa para essa

monografia, pois é reconhecida por lidar com “interpretações das realidades sociais”

(BAUER; GASKELL, 2008, p. 23).

A pesquisa qualitativa, na visão de A. L. George (1959, apud BARDIN, 2011,

p. 27) leva em conta a presença ou a ausência de determinada característica, ou de

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um conjunto delas, nos trechos que serão submetidos à análise. Para Patton (1986,

apud ALVES-MAZZOTTI; GEWANDSZNAJDER, 1999, p. 127, grifo do autor), tais

pesquisas “seguem a tradição “compreensiva” ou interpretativa”. Complementando o

pensamento do autor, Alda Judith Alves-Mazzotti e Fernando Gewandsznajder

ressaltam que

isto significa que essas pesquisas partem do pressuposto de que as pessoas agem em função de suas crenças, percepções, sentimentos e valores e que seu comportamento tem sempre um sentido, um significado que não se dá a conhecer de modo imediato, precisando ser desvelado. (ALVES-MAZZOTTI; GEWANDSZNAJDER, 1999, p. 127)

Para desvendar o real sentido da narrativa quadrinística Palestina, enquanto

produto do Jornalismo, será necessário relacioná-la a ambas as linguagens –

jornalística e quadrinística – para, então, observar quais características são

predominantes na sua composição. Dito isso, os métodos necessários para a

obtenção aos resultados pretendidos são a Análise de Conteúdo e a Análise de

Discurso. O procedimento metodológico escolhido é a Pesquisa Bibliográfica.

5.1.1 Pesquisa Bibliográfica

Para elaborar um conceito claro em relação à concepção e à organização do

objeto de estudo foi necessário recorrer ao trabalho de autores versados nos

assuntos centrais dessa monografia. Antes de esmiuçar a criação do jornalista Joe

Sacco, tornou-se indispensável a exploração dos principais conteúdos referentes à

obra. Dessa forma, viu-se o que é o Jornalismo, sua história e suas principais

funções dentro da sociedade; abordou-se o papel do Jornalismo Literário dentro do

campo jornalístico e, além disso, discorreu-se sobre as histórias em quadrinhos.

Com isso, prova-se que a pesquisa bibliográfica é fundamental para a

construção desse trabalho. Para Ida Regina Stumpf (2010), esse procedimento

metodológico é formado por

um conjunto de procedimentos que visa identificar informações bibliográficas, selecionar os documentos pertinentes ao tema estudado e proceder à respectiva anotação ou fichamento das referências e dos dados dos documentos para que sejam posteriormente utilizados na redação de um trabalho acadêmico. (STUMPF, 2010, p. 51)

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Antonio Carlos Gil (2002, p. 44) afirma que os materiais que compõe,

prioritariamente, a pesquisa bibliográfica, são livros e artigos científicos. O autor

destaca como uma das vantagens deste tipo de pesquisa o fato de “permitir ao

investigador a cobertura de uma gama de fenômenos muito mais ampla do que

aquela que poderia pesquisar diretamente” (GIL, 2002, p. 45). Dessa forma, o

“abarcamento” conceitual do objeto de estudo só foi possível por consequência do

uso contínuo da pesquisa bibliográfica.

5.1.2 Análise de Conteúdo

Por tratar-se de um “conjunto de instrumentos metodológicos [...] que se

aplicam a discursos extremamente diversificados” (BARDIN, 2011, p. 15), a Análise

de Conteúdo é pertinente à proposta dessa monografia. Tais características fazem

com que o método possa ser empregado à exploração de uma grande-reportagem

como Palestina, na qual o discurso aparece sob diferentes formas. Nela, além do

texto escrito há a onipresença do texto imagético, cuidadosamente elaborado pelo

autor para conferir credibilidade à obra.

Apesar de, durante muito tempo, ter sido empregada apenas no âmbito das

ciências empíricas, atualmente, a Análise de Conteúdo faz-se presente, também, em

pesquisas qualitativas, assim como essa.

Embora a maior parte das análises clássicas de conteúdo culminem em descrições numéricas de algumas características do corpus do texto, considerável atenção está sendo dada aos "tipos", "qualidades", e "distinções" no texto, antes que qualquer quantificação seja feita. Deste modo, a análise de texto faz uma ponte entre um formalismo estatístico e a análise qualitativa dos materiais. (BAUER; GASKELL, 2008, p. 190)

A Análise de Conteúdo é dividida por Laurence Bardin (2011) em três

diferentes fases: pré-análise; exploração do material; tratamento dos resultados, a

inferência e a interpretação. Para a autora, a pré-análise “é a fase de organização

propriamente dita” (BARDIN, 2011, p. 124). Nessa primeira fase, o pesquisador deve

sistematizar as ideias iniciais e os materiais, bem como criar o esquema no qual

desenvolverá a análise.

Ainda de acordo com a autora, a pré-análise traz três missões: “a escolha dos

documentos a serem submetidos à análise, a formulação das hipóteses e dos

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objetivos e a elaboração de indicadores que fundamentem a interpretação final”

(BARDIN, 2011, p. 124). Contudo, as etapas que compõem a primeira fase da

análise não devem, necessariamente, seguir a ordem na qual foram apresentadas.

No segundo estágio, o da exploração do material, coloca-se em prática,

sistematicamente, todas as decisões tomadas durante a primeira fase. “Esta fase [...]

consiste essencialmente em operações de codificação, desconto ou enumeração”

(BARDIN, 2011, p. 131). Depois da organização e estudo dos textos, cabe ao

pesquisador escolher os recortes do material com os quais deseja trabalhar. Com

isso, ocorre uma divisão por categorias.

Nesta monografia, a análise está dividida por assuntos, agrupados em três

categorias: uma delas ligada à parte visual; outra, à textual e uma terceira, à

intersecção entre ambas. Na primeira delas, que explora os conteúdos visuais,

encaixam-se os seguintes temas: imagem nos quadrinhos; estilo de desenho e

planos e enquadramentos. Na segunda categoria, na qual estão os elementos

textuais, constam os seguintes conteúdos: texto jornalístico-literário e texto nos

quadrinhos.

Na terceira e última, a abordagem recai sobre a construção das personagens

– tanto visual quanto textual – e sobre a inserção do jornalista/personagem na

história, que traz aspectos que interpenetram-se e que, para não perderem seu valor

como características intrínsecas ao objeto de estudo, não podem ser analisadas

separadamente.

Na terceira e ultima fase da Análise de Conteúdo ocorre a análise dos

resultados. De acordo com Bardin (2011, p. 131), nesse momento o pesquisador

pode “propor inferências e adiantar interpretações a propósito dos objetivos previstos

- ou que digam respeito a outras descobertas inesperadas”.

5.1.3 Análise de Discurso

“A análise de discurso não é um enfoque que pode ser pego simplesmente da

prateleira, como o substituto de uma forma mais tradicional de análise - por exemplo,

analise de conteúdo ou analise estatística de dados de questionários” (BAUER;

GASKELL, 2008, p. 251). Esse método de análise refuta a ideia de que o discurso é

uma forma de reflexão neutra e o trata como uma peça essencial na construção da

vida social.

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Para Bauer e Gaskell (2008, p. 251), os analistas de discurso estão

interessados no texto em si mesmo. Para os autores,

é proveitoso pensar a análise de discurso como tendo quatro temas principais: uma preocupação com o discurso em si mesmo; uma visão da linguagem como uma forma de ação; e uma convicção na organização retórica do discurso. Em primeiro lugar, então, ela toma o próprio discurso como seu tópico. O termo “discurso” é empregado para se referir a todas as formas de fala e textos. (BAUER; GASKELL, 2008, p. 247)

Ou seja, o texto escrito – como no caso do objeto de estudo – também pode

ser considerado um discurso. Além disso, ainda segundo Bauer e Gaskell, os

analistas de discurso não o veem como um caminho que leva à outra realidade. Seu

interesse repousa somente sobre o seu conteúdo e organização.

5.2 APRESENTAÇÃO DE PALESTINA

“Em sua maioria, as histórias em quadrinhos que lemos terminam com a

vitória de alguém [...] Já na Palestina de Joe Sacco, nada disso acontece. Os

indivíduos entre os quais ele viveu são os derrotados da História” (SACCO, 2011, p.

XI). No prefácio da edição especial do livro-reportagem em quadrinhos Palestina,

escrito em 2001, o professor universitário e teórico literário Edward Said, palestino

radicado nos Estados Unidos, faz uma bela síntese do que será apresentado aos

leitores nas páginas posteriores. Autor de obras como Orientalismo e A Questão

Palestina, Said enaltece o trabalho desenvolvido pelo jornalista/quadrinista. De

acordo com o autor, “em nenhum outro lugar Sacco conseguiu chegar mais próximo

da realidade vivida pelo palestino médio do que quando retrata a vida em Gaza”

(SACCO, 2011, p. XI).

Contudo, a fidedignidade de Sacco em relação à realidade palestina se

estende pelas 285 páginas de quadrinhos em preto e branco do livro-reportagem.

Como foi afirmado no capítulo 1, a obra foi publicada, originalmente, pela editora

estadunidense Fantagraphics Books, em nove edições de 24 e 32 páginas, entre

1993 e 1995. Porém, o objeto de estudo dessa monografia é a edição especial,

lançada pela editora brasileira Conrad, no ano de 2011, que reúne os nove capítulos

da obra. Assim como relatado no parágrafo anterior, o livro conta com um prefácio

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escrito por Edward Said e outro, de autoria do jornalista e escritor brasileiro José

Arbex Jr.

Essa edição também conta com um texto do próprio autor, escrito em 2007,

chamado de “Algumas reflexões sobre Palestina”. Além disso, há diversas notas

sobre o “trabalho de campo” de Sacco. Dentre essa informações estão imagens dos

cadernos de entrevista do jornalista, nos quais ele escrevia e também desenhava

esboços para referência futura. As notas também contam com impressões sobre

situações pelas quais Sacco passou no país, quadros prontos que foram

substituídos na obra final e fotografias que foram adaptadas para os quadrinhos. Na

edição especial, cada uma das nove edições tornou-se um capítulo. Os capítulos,

por sua vez, contam com subcapítulos.

5.2.1 Objetos da análise

A seguir, serão apresentadas as páginas de Palestina selecionadas para a

análise. Cada uma delas foi escolhida, levando em consideração aspectos que

condizem com os assuntos pertencentes às categorias da análise – visual, textual e

de intersecção. Optou-se por analisar três páginas por categoria. Devido à sua

extensão, não serão analisados capítulos inteiros. O material está em inglês, pois

não foi possível encontrar o arquivo em pdf em português. Portanto, as páginas virão

acompanhadas da tradução da edição impressa.

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Figura 1 – primeira página selecionada para análise visual

32

Fonte: SACCO, 2011, p. 217.

32

Tradução: Peregrinação. As notícias não são boas... Sameh quer continuar mesmo assim... Eu não insisto... Poderíamos pular o próximo item da minha agenda... mas o Sameh está decidido a continuar... Conseguimos uma carona... uma carroça de burro... outra autêntica experiência de campo de refugiados... Bom para o gibi, quem sabe uma ilustração de página inteira... Esse é o meu quarto dia em Jabalia. Sameh passou a maior parte da vida aqui... .

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101

Figura 2 – segunda página selecionada para análise visual

33

Fonte: SACCO, 2011, p. 123.

33

Tradução: Os jipes não passarão por esse caminho, o trânsito está trancado na intersecção... a lixeira e os pneus queimando não irão impedir os jipes de virem por aqui, mas agora um ônibus reforça e bloqueia o caminho... as crianças foram até o meio, estão vagando, esperando... Fogo automático! Soldados! As crianças estão correndo, atirando pedras sobre os ônibus. Rat-tat-tat-tat. Agora estão correndo de volta, fugindo. Jesus, essa foi rápida.

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Figura 3 – terceira página selecionada para análise visual

34

Fonte: SACCO, 2011, p. 111.

34

Tradução: Ele bateu o ombro em mim... então me chacoalhou... e me jogou de volta na cadeira. “Agora você vai ter um ataque cardíaco!”. “Não encontramos nenhum novo documento, excelência... mas teremos provas se nos der mais 15 dias”. “Excelência, não existem provas. A corte deveria libertar meu cliente imediatamente”. O juiz concordou com mais sete dias. Os advogados saíram. “Você tem algo a dizer para a corte?”. “Não”. “Não quero colocá-lo nesta cela... você é um homem trabalhador... mas não está colaborando”. Era uma cela pequena e escura, de 1,2 metro quadrado, cheia de urina. Decidi que não me sentaria na urina. Tive alucinações de que estava numa grande cela. Começava a andar e batia na parede depois de um passo. Decidi que era melhor sentar. Havia uma pequena área seca no degrau. “Algo para nos contar? Se não, você vai ter que ficar aqui”. “Minha filha morreu”. Depois de um dia ou um dia e meio me devolveram às cadeiras. Fazia muito, muito frio. No 12º dia, a noite da tempestade de 4 de fevereiro, me levaram para outro lugar.

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Figura 4 – primeira página selecionada para análise textual

35

Fonte: SACCO, 2011, p. 15.

35

Tradução: Semanas depois, no campo de refugiados de Jabalia, conheci um velho palestino que me contou do lar que deixou em 1948, depois que Israel declarou independência e os exércitos árabes invadiram... “Os judeus vieram e ocuparam o vilarejo e prenderam todos que ficaram para trás, inclusive meu pai, que era velho e não conseguia locomover-se... andei por quatro dias com minha mulher, que estava grávida... o exército egípcio recusava-se a nos carregar em caminhões... os judeus nos bombardeavam... até as formigas corriam atrás de nós... Foi um dia negro quando deixei minha terra”. Ele voltou alguns anos depois. Conseguiu permissão das autoridades israelenses. Por algumas horas podia deixar Gaza... Podia ir até onde seu vilarejo estava antes de se tornar parte de Israel... “Levei minha família para ver minha terra... onde estavam minha casa e minha escola... algumas pessoas ficam paralisadas depois que têm uma chance de voltar para ver. Eles destruíram tudo. Não há sinal de que vivemos lá um dia”.

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104

Figura 5 – segunda página selecionada para análise textual

36

Fonte: SACCO, 2011, p. 102.

36

Tradução: “Pressão moderada”, parte 2. Não se engane, em qualquer lugar aonde você vá, não só em gibis da Marvel, existem universos paralelos. Aqui? Na superfície, as ruas: o trânsito, casais apaixonados, falafel para viagem, turistas em roupas de cooper lambendo selos para cartões-postais... E atrás do muro, além de portas fechadas: outras coisas – pessoas amarradas em cadeiras, impedidas de dormir, o cheiro de mijo... outras coisas acontecendo por “razões de segurança nacional”... por “razões de segurança”... para combater “atividades terroristas”... essas coisas estavam acontecendo com Ghassan há uma semana e meia, ele me mostra suas costas e sua cintura, as cicatrizes ainda estão ali... é um caso fresquinho... acabou de sair da masmorra... Agora ele está de volta a sua sala de classe média, no lado leste de Jerusalém, oferecendo chá e gostosuras a um convidado... Há quatro semanas era um suspeito, preso no mesmo pente-fino que pegou Mustafa Akkawi – lembra-se dele? –, o cara que acabamos de enterrar... Ghassan conta-me sua história, enquanto seus filhos escalam seu colo. E logo a filhinha cai no sono... Provavelmente jovem demais para entender, ou vai ver já ouviu isso antes... enfim, ela dorme... E é dormindo que começa a história de Ghassan... onde histórias como essa sempre começam... quando todos estão dormindo... E então a porta é arrombada... .

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Figura 6 – terceira página selecionada para análise textual

37

Fonte: SACCO, 2011, p. 42.

37

Tradução: Naturalmente, é mais confortável considerar os refugiados uma consequência lamentável da guerra, mas livrar-se dos palestinos tem sido a ideia desde que Theodor Herzl formulou o sionismo moderno no fim do século XIX. “Teremos que encaminhar a população pobre para o outro lado da fronteira”, escreveu ele, “gerando empregos para ela nos países vizinhos e negando emprego no nosso próprio país”. Afinal, argumentavam alguns sionistas, os palestinos eram menos apegados a sua terra natal ancestral do que judeus que não viviam lá há séculos. De acordo com Bem-Gurion, o primeiro-ministro pioneiro de Israel, um palestino “sente-se à vontade do mesmo modo na Jordânia, no Líbano e em mais uma porção de lugares”. Com a iminência da guerra, Bem-Gurion não tinha ilusões quanto a “encaminhar” ou induzir os palestinos a ir embora. “Em cada ataque”, escreveu ele, “uma ofensiva considerável deve ser conduzida, resultando na destruição de lares e na expulsão da população”. Quando conseguiram isso, disse a um assessor: “Agora, os árabes palestinos só têm uma coisa a fazer: fugir”. (continua na próxima página)

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106

Continuação da tradução: Mas, mesmo que 1948 não seja um segredo, é assunto

encerrado, ignorado completamente pela primeira-ministra Golda Meir: “Não é como

se houvesse um povo palestino que se considerasse um povo palestino e nós

chegamos, expulsamos e tomamos seu país. Eles não existiam”. Mas eles existiam,

sim, e existem ainda, aqui estão eles... e seus filhos, e os filhos dos seus filhos... e

eles ainda são refugiados... fracos, pode ser, de acordo com o ponto de vista da

imprensa, mas ainda refugiados... o que, eu acho, quer dizer que estão esperando

para voltar... Mas voltar para o quê? Perto de 400 vilarejos palestinos foram

destruídos pelos israelenses durante e depois da guerra de 1948... Palestinos que

fugiram foram declarados “ausentes”... suas casas e suas terras, declaradas

“abandonadas” e “não cultivadas” e então expropriadas para assentamento de

judeus. Quando se fala em campo de refugiados você imagina tendas, pessoas

deitadas em macas... mas, em algum momento, os moradores de Balata

perceberam que ficariam aqui um bom tempo, e o campo tornou-se permanente... As

pessoas vivem aqui, assistem à TV, fazem compras, criam suas famílias... À

primeira vista, o que diferencia Balata é a lama. A neve derreteu e a estrada está

cheia de lama. Em toda parte, lama. Viemos aqui para encontrar um amigo de

Saburo, mas ele foi a um casamento e não volta hoje. E agora? Estou congelando e

me pergunto quanto tempo teremos que caminhar no frio. Felizmente, alguém

lembra-se de Saburo da última vez em que ele esteve aqui e nos convida a entrar

em sua loja para um chá... ah, chá... segurar uma xícara de chá me satisfaz, por

enquanto... Estou distraído com ela enquanto Saburo arranja um lugar para

passarmos a noite. Enquanto isso, o boato deve ter se espalhado, porque pequenos

grupos de shebab estão indo para lá e para cá, observando-nos. A maioria fica

alguns minutos e então vai embora. Estrangeiros? Jornalistas? Grande coisa! Não

somos os primeiros e não seremos os últimos a procurar histórias embaixo de suas

saias... Mas um deles, talvez tenha 16 ou 18 anos, parece que foi com a minha cara.

Deve ser porque eu sorrio muito. O inglês dele é uma merda, mas isso não é

obstáculo para um cara como ele. Ele deixa claro que se meteu em encrenca com a

FID, a Força de Defesa Israelense. Mostra seu cartão de identidade para provar.

Todo palestino com mais de 16 anos tem que carregar um, e o dele é verde, o que

quer dizer que esteve na prisão recentemente.

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107

Figura 7 – primeira página selecionada para análise de intersecção entre imagem e

texto

38

Fonte: SACCO, 2011, p. 1.

38

Tradução: Cairo. Trânsito? Estou engolindo fumaça e o meu catarro está preto. Barulho? As buzinas de carro são o home theather dos egípcios! Que cidade! Uma loucura! 15 milhões de cabeças com suas galinhas cortadas! E entre pirâmides e meninos faraós, estou tonto! Estou girando! TÁXI! Tire-me daqui! Puxo uma cadeira. Tiro um peso dos meus pés. Estou de papo com os recepcionistas do hotel. Está bem mais calmo agora, e a conversa está ficando filosófica. “Existem muçulmanos e muçulmanos”. E Shreef é um muçulmano apaixonado! Violinos, por favor! Uma mulher de Praga! Um encontro de dois dias! Luz de velas e cruzeiros pelo Nilo! Subindo a Torre do Cairo sabe-se lá por que preço! Em dois dias ele torrou 500 libras egípcias! E o melhor: eles nem transaram! Taha está se divertindo com a matemática! “600% do seu salário! O pagamento de um semestre em dois dias!” “Eu amo ela!” “Você está bebendo para esquecer!” “Ela disse que deixará o marido por mim! Os filhos!” “Agora ela diz que ama você! 500 libras!”

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108

Figura 8 – segunda página selecionada para análise de intersecção entre imagem e

texto

39

Fonte: SACCO, 2011, p. 177.

39

Tradução: Sacco: Água quente. Quente. Nunca vou me esquecer do banho no apartamento do Larry, naquela noite na cidade de Gaza... nem da refeição quente ou do aquecedor que o Larry pôs na minha frente...”. Larry: “Nunca consigo passar mais de dois dias lá. Aquele lugar me deprime de verdade. Sabe aquele caso de honra familiar que aquele advogado estava defendendo? Aquilo mexeu comigo. O que você achou? A ideia de luta armada me incomoda. Acho errado tirar a vida dos outros em qualquer circunstância. Matar uma pessoa é negar o indivíduo”. Sacco: “Depois que o Larry foi dormir, dou uma fuçada os livros dele e pego o Orientalismo, do Edward Said... A conversa com o Larry aguçou meus sentidos, e consigo ler umas 20 páginas da prosa densa de Said... Gosto do Edward Said... Ele é um palestino-americano, professor na Universidade de Columbia... O livro dele The Question of Palestine, é uma das razões de eu estar aqui... Amanhã vou a outro campo, Jabalia... Preferia não ir... Preferia sentar perto de um aquecedor com pessoas como o Larry e ler Edward Said... .

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109

Figura 9 – terceira página selecionada para análise de intersecção entre imagem e

texto

40

Fonte: SACCO, 2011, p. 117.

40

Tradução: Ramallah: Uma corrida de táxi / voltando para Jerusalém via Ramallah / no subúrbio, duas dúzias de colonos judeus / armados e rezando / com crianças, uma coisa de família / talvez estejam prestes a invadir Ramallah, destruir fachadas de lojas como fizeram no mês passado / Não é problema nosso, passamos direto / estamos saindo às pressas de Ramallah / São quase cinco da tarde / às cinco tem o toque de recolher em Ramallah / até amanhã de manhã / não são nem cinco ainda e Ramallah está vazia / quieta / Ramallah, não tão quieta / sábado de manhã / o mercado, pessoas fazendo compras / De repente/ ali na esquina / EXPLOSÕES! / Palestinos em movimento / fechando suas lojas / BLAM! / uma manobra / soldados pulando para fora dos jipes / tomando posição.

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110

5.3 ANÁLISE

A partir de agora, serão analisadas as nove páginas de Palestina,

anteriormente apresentadas. Com a aplicação da Análise de Conteúdo, bem como

da Análise de Discurso, haverá a tentativa de identificar, nos trechos da obra de Joe

Sacco, as características e conceitos do Jornalismo e das histórias em quadrinhos

apresentados nos capítulos 2 e 3. Além de estabelecer a relação entre Palestina e

as linguagens jornalística e quadrinística, serão apontadas particularidades do objeto

de estudo, responsáveis por fazer com que constitua-se, de fato, em um produto de

vanguarda dos universos dentre os quais figura. A grande maioria dos autores e

conceitos utilizados na análise foi citada no decorrer dos capítulos do referencial

teórico.

A análise será dividida nas três categorias previamente indicadas.

Primeiramente, será analisado o conteúdo visual. Durante a exploração das três

páginas escolhidas para esta categoria serão aplicados os conceitos das histórias

em quadrinhos, abordados no capítulo 3. O mesmo ocorrerá com a categoria textual.

Para a análise da parte escrita, se recorrerá ao conteúdo do capítulo 2, que trouxe a

definição e a história do Jornalismo. Para compreender os pontos de intersecção

entre imagem e texto, será necessário relacionar as páginas a ambas as temáticas.

Além disso, para compreender a função de Joe Sacco como “personagem” da

história, serão empregados conceitos advindos da ficção.

5.3.1 Análise visual

As imagens que compõem o discurso visual de Joe Sacco em Palestina são

tão ou mais impactantes que as palavras com as quais essas imagens mesclam-se

no decorrer das páginas. Dialogando com o público das histórias em quadrinhos,

linguagem essencialmente visual – como afirmado no capítulo 3 – o jornalista

apresenta, por meio de suas ilustrações, um retrato fiel da Palestina conhecida por

ele entre os anos de 1991 e 1992. No capítulo 4, relatou-se que, naquela época, o

país passava por um período conturbado e ainda recuperava-se da primeira Intifada

que ocorreu em 1987 e, conforme Soares (1989), significou a perda de muitas vidas.

Uma das grandes conquistas de Sacco é criar uma identificação entre os

leitores e os “personagens” que retrata. Isso ocorre graças ao seu estilo de desenho.

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111

O cartunista aposta em um traço caricatural, embora não deixe de salientar detalhes

importantes da fisionomia do povo palestino. Observou-se, no capítulo dedicado aos

quadrinhos, que McCloud (2005) enquadra o desenho de pessoas na categoria das

figuras. Estas, por sua vez, pertencem à categoria dos ícones. Tais ícones podem

variar entre realistas e abstratos. Pendendo para a abstração, encontra-se o cartum.

Apesar da aparente “estereotipação” motivada pelos desenhos cartunescos –

algo comum aos quadrinhos, como visto –, a simplificação no traço faz com que o

público de outro país, ao entrar em contato com a obra, possa enxergar-se nos

árabe-palestinos, encontrar características em comum com um povo de costumes e

tradições tão diferentes. Mesmo tendo afirmado, no texto introdutório “Algumas

reflexões sobre Palestina”, no qual fala sobre a obra, que este sempre foi seu estilo

de desenho, a utilização do cartum pode ser entendida como uma tentativa de

aproximar seu trabalho do público.

Por meio de sua habilidade de quadrinista, Sacco constrói uma narrativa

visual densa o suficiente para expressar os aspectos fundamentais da realidade

palestina. Contudo, toda a gravidade dos problemas desvelados é “descomplicada”

pelas linhas cartunescas, que possibilitam que os quadrinhos sejam “lidos” pelo

maior número de pessoas possível e, ainda por cima, despertem empatia. Como

esclarecido por Eisner (2013) no capítulo 3, a empatia serve como um “fio condutor”

da história, capaz de atrair o leitor. Neste caso, além da prática com o desenho, a

conexão estabelecida com o leitor decorre da sensibilidade de repórter, inerente ao

quadrinista.

O preto e branco dos quadrinhos de Sacco faz com que o olhar do leitor

“passeie” pela página, em busca de todos os aspectos contidos no desenho; cada

um deles relevante à sua maneira. Essa característica é demonstrada na primeira

imagem escolhida para análise visual. A página 217 de Palestina é a primeira do

capítulo 8. Nela, o jornalista e Sameh, seu guia em Jabalia, um campo de refugiados

palestino, pegam carona em uma carroça de burro. A cena retratada é descrita como

“uma autêntica experiência de campo de refugiados”. No próprio quadro, o autor

revela que o acontecimento seria “bom para os quadrinhos”. Isso demonstra que,

enquanto Sacco cruzava Jabalia, o aspecto visual do livro estava sendo pensado.

A passagem é uma bela introdução ao capítulo. À primeira vista, nota-se que

o quadrinista optou por um quadro sangrado, conforme descrito por McCloud (2005)

no capítulo 3. Ignorando as margens das páginas – como ocorre em diversos outros

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112

momentos da obra – e, dessa forma, criando a ideia de infinidade, Sacco quis

transportar os leitores para dentro da história, apresentando-lhes Jabalia da mesma

forma que o campo havia se apresentado a ele. Não há exageros; o autor não

enaltece nem deprecia, apenas descreve o que viu. No desenho, é possível

observar os aspectos aos quais se refere nas páginas seguintes: o frio intenso; o

tempo fechado e o vento cortante; o esgoto a céu aberto; as estradas de chão, em

péssimas condições; as crianças correndo pelas ruas; as casas simples, feitas com

blocos de concreto, sem pintura; as caixas d’água sobre as construções e as poucas

árvores colorindo o ambiente acinzentado.

A viagem de carroça demonstra que, mesmo estando no local na condição de

jornalista, não houve regalias quanto às suas experiências na Palestina. Se

atravessasse Jabalia de carro, sua visão sobre o campo não seria a mesma dos

moradores e, consequentemente, não haveria precisão e fidelidade em seu relato.

Isso comprova que, em seu discurso, Sacco abordou temas sobre os quais estava,

realmente, inteirado. Suas considerações não advêm de observações superficiais,

mas, sim, de suas vivências e da “bagagem” adquirida durante a viagem, oriunda do

contado direto com os cidadãos.

Não há balões na página 217. Em vez disso, Sacco insere suas falas em

caixas de legenda. Conforme afirmado no capítulo 3, há autores que defendem que

a legenda deve aparecer no canto superior do quadro, representando a voz do

narrador onisciente. Entretanto, como justificado por Ramos (2009), a legenda

também pode ser utilizada pelo narrador-personagem. Em Palestina, esse é o caso.

O quadrinista também é um dos personagens da história – como será abordado a

seguir. Portanto, a grande maioria de suas falas, observações e descrições

aparecem na forma de legendas. A renúncia aos balões para representar seu

discurso indica a intenção de manter um tom jornalístico no texto. Caso tivesse

optado por inserir todos os diálogos em balões, a obra não seria uma grande-

reportagem.

O cartunista também sente-se à vontade para quebrar regras relativas à

localização das caixas de legenda. Em vez de colocá-las no canto superior do

quadro – ou da página, neste caso – ele as espalha pelo desenho, preenchendo

espaços que, de outra forma, ficariam vazios. Na imagem analisada, ele as

posiciona paralelamente aos fios de luz, com restos de barbantes – provavelmente

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113

oriundos de pipas. Assim, cria a impressão de que as legendas são pequenas notas

de papel, resistindo ao forte vento palestino. Há poesia em seu desenho.

A forma pouco convencional da utilização da caixa de legenda por Sacco

também pode ser observada na página 123 – a segunda escolhida para a análise do

conteúdo visual –, que retrata um conflito entre civis palestinos e soldados

israelenses. Dividida em 16 quadros, a página é um ótimo exemplo da utilização do

espaço por parte do quadrinista. Os quadros estão dispostos tal qual um mural

fotográfico. Diferentemente do que se vê, normalmente, nesse trecho, o autor não

constrói os quadros de forma simétrica. Cada um deles tem um formato diferente do

outro, mesmo que minimamente. Além disso, todos estão inclinados, tanto para a

direita quando para a esquerda, o que resulta em uma sobreposição dos quadros.

A escolha por essas características evoca a sensação de movimento. Pode-

se dizer que Sacco quis passar aos leitores a mesma rapidez da cena que

presenciou. Isso fica explícito pela afirmação feita pelo autor na própria página:

“Jesus, essa foi rápida” (SACCO, 2011, p. 123). O dinamismo das imagens é visto

também no texto. Falas curtas, que “entram e saem de cena” tão rapidamente

quanto os jovens atacam os jipes israelenses e “batem em retirada”. A página, como

um todo, evidencia a capacidade do cartunista de captar a essência das ações e de,

então, transpassá-las para o papel.

A forma escolhida pelo jornalista para posicionar os quadros altera, de certa

forma, a concepção de sarjeta – ou corte gráfico – formulada por McCloud (2006),

apresentada no capítulo 3. A sarjeta é o espaço existente entre um quadro e outro.

Quando existe simetria, a sarjeta tende a constituir-se em uma linha reta, vertical ou

horizontal. Contudo, no caso da página 123, a sobreposição dos quadros resulta em

sarjetas de formatos diferentes, o que modifica a percepção do leitor.

Para Cirne (2000), conforme relatado no capítulo dedicado aos quadrinhos, a

sarjeta tem como função o agenciamento das imagens e a impulsão da narrativa.

Esse espaço entre um quadro e outro, que significa o avanço da história no tempo,

deve ser preenchido pela imaginação do leitor. Por isso, segundo McCloud (2005), o

leitor dos quadrinhos é participante. Quando os quadros estão arranjados

paralelamente, a leitura se torna mais fácil e a conclusão é voluntária. Todavia, na

página 123, a fragmentação dos quadros imposta por Sacco intrinca a leitura,

exigindo ainda mais para que o leitor consiga colocá-los em sequência. Contudo, a

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organização não significa um problema, mas denota o desejo de impor uma leitura

veloz, como afirmado anteriormente.

Enquanto a assimetria dá o tom da construção da página 123, a terceira

página submetida à análise visual chama atenção pelo equilíbrio e pela harmonia

dos quadros. A 111 demonstra a versatilidade quadrinística de Sacco. Essa página

integra uma sequência do capítulo 4, chamado de Ansar III. Na série de imagens

que compõe o subcapítulo “Pressão Moderada” – parte 2, o autor retrata uma

sessão de tortura sofrida por um palestino chamado Ghassan. Devido ao conteúdo

abordado, Sacco aposta em páginas com muitos quadros. Na 111, são 20 deles.

A chegada aos 20 quadros acontece de forma gradativa. De seis, o autor vai

a nove, depois a 12, então a 16 e, finalmente, chega às duas dezenas. Os quadros

multiplicam-se de acordo com a gravidade das cenas. Quanto mais intensa torna-se

a tortura, mais atenção ela recebe por parte do autor. A abundância dos quadros

também revela o esforço de Sacco para retratar a passagem da melhor forma

possível. Havia muito a ser dito e apenas um quadro, mesmo que sangrado, não

seria capaz de desvelar todas as minúcias do acontecimento.

Nos 20 momentos retratados na página, é possível observar, claramente, a

escolha do cartunista em relação à transição quadro a quadro. Como afirmado no

capítulo 3, por McCloud (2005), a escolha da transição depende totalmente do

quadrinista, que tem, à sua disposição, determinadas categorias. Assim como

demais artistas ocidentais – guiados pela objetividade, como observado no terceiro

capítulo –, Sacco optou pela transição ação-para-ação. No capítulo 3, viu-se que

Eisner (2013) afirma que a escolha do artista – neste caso, por mais quadros e pelo

estilo da passagem das cenas – tem como finalidade o controle sobre o leitor. A

impressão que se tem é que, além da forma de transição, a reprodução das cenas

em quadros cada vez menores atrai e prende o leitor, puxando-o para perto da obra.

Ainda de acordo com as definições do autor, o narrador, primeiro, precisa

conquistar a atenção do leitor para, então, retê-la. No caso da página 111, Sacco

captura a atenção por meio das imagens, que retratam algo obscuro, alheio à

realidade da ampla maioria dos leitores. Então, ele a retém com a organização da

sequência e com a construção das cenas. O jornalista aposta no contraste entre

claro e escuro, para reproduzir o ambiente hostil no qual a tortura foi realizada.

Nos 20 quadros, também há notável variação nos planos e ângulos de visão.

Como observado no capítulo 3, por Ramos (2009), a referência para os diferentes

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planos é a figura humana. Nesse caso, a referência é o personagem Ghassan.

Sacco inicia a página com um quadro em plano médio, no qual Ghassan leva uma

ombrada de seu torturador. Então, afasta o leitor da ação, variando para um plano

americano. A visão distancia-se ainda mais quando há a alternação para um plano

total. No quarto quadro, o plano americano volta à cena. O emprego desses planos

se repete até o 12º quadro, no qual o autor aposta em um close-up dos pés de

Sameh em um chão molhado. Também nota-se o uso dos planos panorâmico e

primeiro plano. Além disso, os ângulos variam entre de visão médio (primeiros

quadros), plongée (nos quadros 11, 12, 15, 17 e 18) e contra-plongée (quadro 16).

A grande variação de planos e ângulos de visão é decorrente de uma

necessidade de retratar a história da forma mais abrangente possível. Cada uma

das cenas é diferente da outra e, portanto, merece uma abordagem única. Caso

houvesse uma constância no uso dos planos, a página se tornaria monótona e

previsível, não ofereceria ao público a possibilidade de participar, efetivamente, da

leitura e, por conseguinte, o faria perder o interesse. Sacco utiliza-se das

ferramentas dos quadrinhos, que estão ao seu dispor, para criar um produto capaz

de despertar, graficamente, o fascínio dos leitores.

Além disso, na página 111 é possível notar o uso de balões de fala. Como

visto no capítulo 3, o balão é o recipiente da fala – ou do texto-diálogo – emitida

pelos personagens. Para Ramos (2009) o balão é o recurso responsável por dar aos

quadrinhos o título de linguagem. Como observou-se, também, Eco (1993, apud

RAMOS, 2009), explica que o recurso é utilizado tanto em casos de discurso de

expressão quanto em casos de discurso pensado. Em Palestina, Sacco utiliza os

balões apenas para discursos de expressão, como pode ser constatado na página

111. Há, também, raros momentos em que o quadrinista utiliza balões sem

apêndice. Portanto, nota-se que todo o texto do livro-reportagem está fragmentado

entre balões de expressão e caixas de legenda.

O que reforça a ideia de que o objeto de estudo é, de fato, uma grande-

reportagem em quadrinhos, é a ausência de onomatopeias. Conforme indicado no

capítulo 3, a função das onomatopeias é representar, visualmente, os efeitos

sonoros das narrativas. Entretanto, mesmo em momentos nos quais fala do barulho

existente nas cidades pelas quais passou, ou em situações pertinentes ao uso do

recurso, o autor abdica do emprego dessas figuras de linguagem. Isso corrobora a

predominância do texto e do estilo jornalísticos, sem a utilização demasiada de

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recursos quadrinísticos. Entretanto, a escolha pelos quadrinhos possibilitou que o

autor dissesse, por meio de imagens, tudo aquilo que não poderia ser dito de outra

forma. Um exemplo disso é a expressão de desalento que o autor faz questão de

incorporar à face das pessoas retratadas na obra, assim como o guia Sameh, que

aparece, constantemente, fisicamente abatido. Esses aspectos demonstram que o

esforço requerido para manter-se firme em meio a todas as disputas que

desenrolam-se na Palestina é visível “na pele” dos moradores.

Até o momento, foi explorado o conteúdo visual, apresentado por Joe Sacco

aos leitores, construído a partir de conceitos das histórias em quadrinhos. Porém, a

partir de agora o foco será a questão textual. O objetivo será identificar o máximo de

características do texto jornalístico e jornalístico-literário presentes em Palestina, por

meio de conceitos abordados no capítulo 2, dedicado ao Jornalismo.

5.3.2 Análise textual

Ao apresentar Palestina, em um texto introdutório que integra a edição

especial do livro-reportagem, Joe Sacco (2011, p. XVIII) afirma: “não é uma obra

objetiva, se por objetividade tomarmos a ideia ocidental de deixar cada lado contar

sua versão, sem se importar que a verdade seja revelada”. As palavras do autor, em

um primeiro momento, afastam a ideia de que a obra seja uma produção jornalística

conceitual. Conforme afirmado no capítulo 2, o Jornalismo tem demonstrado, ao

longo dos séculos, uma vontade de firmar um compromisso manifesto com a

objetividade e com a factualidade.

Há que se destacar que objetividade não é sinônimo de imparcialidade.

Foram exemplos do Jornalismo “tradicional” que instigaram Sacco a viajar até a

Palestina. Como o próprio autor relata, o tratamento unilateral dado ao assunto pela

mídia estadunidense não só deixava a desejar, mas era vergonhoso. “Sentia que

não me informava em absoluto [...] eu não fazia ideia de quem eram os palestinos ou

o que almejavam em sua luta. Na verdade [...] eu associava os palestinos ao

terrorismo” (SACCO, 2011, p. XIX).

A declaração de Wolf (1995) sobre a teoria da agenda-setting, presente no

capítulo 2, corrobora as observações do jornalista quanto à imprensa dos Estados

Unidos e sua visão sobre o país. Como afirmado, a partir dessa teoria, presume-se

que o entendimento do público em relação à realidade social é oferecido,

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majoritariamente, pela mídia. Portanto, de acordo com a agenda-setting, é correto

alegar que a visão que os leitores e telespectadores norte-americanos tinham do

povo palestino foi forjada pela imprensa local.

Por ser um jornalista, Sacco começou a questionar a abordagem escolhida

pela imprensa no que se referia à Palestina e a Israel. A procura por outras fontes de

informação, que não fossem os jornais estadunidenses, despertaram nele uma

vontade ainda maior de conhecer a história do país. Até que ele decidiu partir para

os territórios ocupados. No momento em que Sacco optou por relatar suas

experiências, transformar sua viagem em um produto jornalístico e divulgá-lo ao

grande público, o autor adentrou o universo dos gatekeepers.

Como descrito no segundo capítulo, os estudos sobre os gatekeepers, ou

selecionadores, apontam que cabe a um indivíduo a decisão de divulgar ou bloquear

uma informação. Segundo Donohue, Tichenor e Olien (1972, apud WOLF, 1995), os

gatekeepers têm total controle sobre a informação, desde a composição até a

difusão. Livre de amarras editoriais ou organizacionais, todas as decisões foram

tomadas exclusivamente por Sacco. Conscientemente, o jornalista optou por criar

uma obra subjetiva, contrariando alguns dos conceitos básicos da profissão.

Contudo, a falta de objetividade não reduz o caráter jornalístico de Palestina. Pelo

contrário, sua subjetividade realça aspectos do formato escolhido para a construção

da obra – o da grande-reportagem – e do estilo seguido pelo autor – o do Jornalismo

Literário.

Como afirmado no capítulo 2, algumas das principais características da

reportagem, um dos mais importantes produtos do Jornalismo, são o

aprofundamento e a densidade da narrativa. Não há como dizer que Sacco não

adentrou o mundo dos Palestinos e não vivenciou a realidade relatada na obra. Seu

envolvimento foi tão intenso que não houve como desvincular o jornalista da história;

ele tornou-se personagem do próprio relato – como será abordado adiante. A

densidade também se faz presente em cada página do livro, como observa-se neste

relato: “andei por quatro dias com minha mulher, que estava grávida... o exército

egípcio recusava-se a nos carregar em caminhões... os judeus nos

bombardeavam... até as formigas corriam atrás de nós...” (SACCO, 2011, p. 15).

Contudo, a densidade é atenuada, em diversos momentos, pelos toques de

humor dados por Sacco. Em determinadas partes, o cartunista acrescenta pitadas

de ironia ao seu texto. Uma amostra dessa característica está no subcapítulo Uma

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piada palestina, da página 96. Vale ressaltar que a piada, em si, não é criação do

autor, mas ele a utilizou para, de forma sarcástica, criticar o tratamento dado por

Israel ao povo palestino. Além do humor, o que também abranda o conteúdo

dramático de Palestina é a própria linguagem quadrinística, que traz um “frescor” à

história. Como visto no capítulo dedicado aos quadrinhos, por muito tempo os

quadrinhos foram associados ao público infantil, até mesmo por seus conteúdos

humorísticos e “leves”. Como relatado por Eisner (2013), por essa razão, bem como

pelo fato de ser um meio prioritariamente visual, eram considerados “de fácil leitura”

e incapazes de desenvolver assuntos sérios. Palestina contraria tais afirmações e

prova que as HQs são capazes de desenvolver temas densos, porém, mantendo a

leveza que as torna interessantes para os jovens.

Sodré e Ferrari (1986), presentes no capítulo 2, conceituam a reportagem

como a forma mais extensa da narrativa jornalística. Para os autores, assim como

na ficção, a reportagem deve contar com personagens, ação dramática e descrições

de ambiente. Na página 15 de Palestina, a primeira escolhida para análise textual,

Sacco apresenta as características às quais Sodré e Ferrari se referiam. O destaque

da página é dado a um senhor, ao qual o jornalista refere-se apenas como “um velho

palestino”. O senhor em questão fugiu de suas terras em 1948, quando Israel

declarou independência e ocupou vilarejos palestinos.

Ao optar por não revelar o nome do “velho palestino” da página 15, Sacco dá

a entender que existem milhares de outros homens como esse, espalhados por

diversos pontos do país. A ação dramática e a descrição de ambiente também

integram a página. A ação ocorre no terceiro quadro, momento em que o “velho” faz

uma visita, juntamente com sua família, às terras das quais partiu há mais de 50

anos. A descrição do cenário, neste caso, pode ser observada tanto nas falas do

personagem quanto na construção visual. Ao desenhar os cenários, o peso dessa

descrição é retirado da fala e recai sobre a imagem.

Devido à força do relato do “velho palestino”, Sacco abstém-se de

comentários e deixa que sua “fonte” pronuncie-se. Seu papel, nesta página, é

“costurar” as falas do entrevistado, algo que pode ser visto em qualquer reportagem,

mesmo nas mais simples. Dessa forma, percebe-se que, nesse momento, o

quadrinista assume a mesma postura que um repórter convencional assumiria.

Para Pena (2008), segundo afirmação que consta no capítulo dedicado ao

Jornalismo, a reportagem busca o aprofundamento e é um produto que surge da

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119

intenção de passar uma visão interpretativa, procurando seduzir o leitor por meio da

criatividade. Apresentar uma grande-reportagem em quadrinhos, por si só, evidencia

a criatividade do jornalista. Obviamente, a adaptação do texto jornalístico para uma

HQ resultou em algumas mudanças estilísticas.

Primeiramente, na página 15, há uma clara separação entre narrador e

personagens. Essa segmentação é visual. Como afirmado anteriormente, Sacco

varia entre o uso de balões e caixas de legenda. O discurso das legendas é

composto somente pela narração e pelas observações do autor. Os balões, por sua

vez, contêm as falas dos personagens, ou seja, as “aspas” que aparecem em um

texto convencional. O que ocorre em Palestina é uma desconstrução da narrativa

jornalística. Outra diferença observada é que o espaço concedido às falas dos

palestinos é superior ao reservado aos personagens em uma reportagem totalmente

escrita. Esse fato pode ser explicado pela vontade, relatada pelo próprio autor, de

dar voz aos árabes dos territórios ocupados.

Para “cumprir sua missão” de relatar a versão palestina da história de

conflitos, Sacco não pôde contar com produtos do Jornalismo diário, como a notícia.

Conforme visto no capítulo 2, a notícia é um relato um tanto ou quanto superficial,

que não requer muito tempo e esforço para ser construído. A contação de uma

história, contudo, roga por intensidade, pela ampliação dos fatos, pela ausência de

brevidade. Como indicado anteriormente, o gênero que oferece tais opções ao

repórter contador de histórias é o Jornalismo Literário.

Sacco é mais um daqueles jornalistas insatisfeitos com o pragmatismo e com

o estilo “engessado” das redações. No capítulo destinado ao Jornalismo, afirmou-se

que profissionais com esse perfil buscam, nesse gênero, uma forma de exercitar a

literariedade. Esse exercício pode ser contemplado em diversas passagens de

Palestina, como esta: “Alguns dos buracos mais negros do mundo estão a céu

aberto, para qualquer um ver” (SACCO, 2011, p. 145). O autor utiliza essa metáfora,

que é um recurso literário, de uma forma um tanto irônica, para referir-se aos

campos de refugiados da Faixa de Gaza.

O criador de Palestina exerceu sua literariedade e também foi além: decidiu

aliar seu texto literário à sua veia quadrinística. Dessa forma, Sacco potencializou os

recursos da profissão, quebrou correntes burocráticas e, além disso, garantiu

perenidade aos seus relatos. Para Pena (2006), essas são características

intrínsecas do Jornalismo Literário.

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Aspectos ligados ao gênero jornalístico podem ser percebidos na página 102.

Nela, o autor apresenta Ghassan, palestino torturado por israelenses, além dos

filhos e da casa do personagem. No topo da página, há o nome do subcapítulo que,

neste caso, é entendido como um intertítulo da grande-reportagem: “Pressão

Moderada” – parte 2. As aspas, utilizadas por Sacco, concedem um tom sarcástico

ao título, sendo que o capítulo tem, como tema principal, a tortura. O estilo do texto

também enquadra-se no Jornalismo Literário.

Na primeira frase já é possível perceber a subjetividade: “Não se engane, em

qualquer lugar aonde você vá, não só em gibis da Marvel, existem universos

paralelos” (SACCO, 2001, p. 102). A associação feita entre a realidade

desconhecida da Palestina e os universos paralelos não seria encontrada em uma

notícia, que é relato não aprofundado de um acontecimento. Além disso, o autor cita

os gibis da Marvel, referências dentro do universo dos quadrinhos, para trazer a

ideia de uma realidade fantasiosa. Isso contrasta com o próprio trabalho

desenvolvido por Sacco. Ambas as figuras, apesar de coabitarem no mesmo

universo, evocam realidades totalmente distintas, o que evidencia a pluralidade e a

possibilidade de criação existentes nos quadrinhos.

A narrativa detalhada, que começa nesta página e se estende pelo restante

do subcapítulo, também é produto jornalístico-literário. Lembrando que, neste caso,

a descrição também ocorre visualmente. O trecho citado acima – assim como este:

“E logo a filhinha cai no sono... Provavelmente jovem demais para entender, ou vai

ver já ouviu isso antes... enfim, ela dorme...” (SACCO, 2011, p. 102) – pode ser

comparado à proposta do movimento naturalista. No capítulo 2, discorreu-se sobre a

ideia de Literatura do francês Émile Zola, na qual a observação se sobrepõe à

imaginação. Viu-se que Zola acreditava que os aspectos do romance deveriam ser

provenientes de experiências e observações reais.

Apesar de não tratar-se de um romance, os personagens de Palestina são tão

reais quanto as histórias por eles contadas. A prosa do autor, por vezes, também

parece ficção. Este é um exemplo: “ele me mostra suas costas e sua cintura, as

cicatrizes ainda estão ali... é um caso fresquinho... acabou de sair da masmorra...”

(SACCO, 2001, p. 102). Sacco segue o preceito destacado por Lage (2003) quanto

à reportagem, de que a realidade deve fascinar tanto quanto a ficção. Nesse

exemplo, especificamente, o cartunista aborda um relato extremamente grave e

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inquietante – o de uma tortura – e, com toques de humor, torna-o “digerível”,

“suportável” para o grande público.

Como é possível observar no trecho acima, retirado do primeiro quadro da

página 102, o autor utiliza muitas reticências em suas frases. Além delas, o texto de

Palestina também conta com diversos pontos de exclamação. No capítulo 2, viu-se

que tais características apareciam nos textos que pertenciam ao New Journalism.

Tom Wolfe (2005), autor que escreveu o manifesto do movimento, era um dos que

mais apoiava-se nesses maneirismos – conforme relatado anteriormente – por

entender que, por meio deles, era possível quebrar padrões do Jornalismo e da

Literatura tradicionais.

Durante a abordagem do New Journalism, afirmou-se que os jornalistas que

aderiram ao movimento buscavam a liberdade para criar, utilizando as ferramentas

da Literatura a serviço do Jornalismo. Essa liberdade e também o espaço pelo qual

ansiavam surgiu na forma das grandes-reportagens. Se fosse um repórter vivendo

nos Estados Unidos da década de 1960, certamente Sacco integraria o time de

repórteres que deflagraram o movimento. Tal qual evidenciado por Wolfe (2005), os

profissionais estavam sempre em busca de detalhes romanescos para adicionar às

suas matérias. Para Pereira Lima (2004, p. 195), o New Journalism nada mais é do

que um “mergulho completo, corpo e mente, na realidade”.

Não há como caracterizar o trabalho de Saco em Palestina de outra forma, a

não ser como “um mergulho completo, corpo e mente”. Somente doando-se por

completo à sua “pauta” foi capaz de captar os detalhes aos quais Wolfe refere-se.

Na grande-reportagem, eles aparecem também nas imagens. Na página 102, há

detalhes descritos textualmente, como a criança adormecendo no colo do pai. Há

outros, entretanto, que são unicamente visuais, como os brinquedos espalhados

pelo chão da sala de Ghassan. Todos eles, contudo, são imprescindíveis. Pelos

pormenores adicionados por Sacco à narrativa, a Palestina – bem como o seu povo

– dá-se a conhecer.

Nessa página, o equilíbrio entre texto e imagem é perceptível. Dessa forma,

entende-se que a descrição depende tanto da linguagem jornalística quanto da

quadrinística. Entretanto, essa proporção não repete-se na página 42, a terceira

escolhida para análise textual. O trecho integra o subcapítulo Lembre-se de mim.

Neste ponto do livro-reportagem, o texto de sobrepõe às imagens. Durante dez

páginas, Sacco discorre sobre assuntos como a criação do sionismo, a ocupação

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dos territórios palestinos, campos de refugiados, além de trazer dados sobre

vilarejos destruídos e relatar histórias de moradores.

Sua habilidade narrativa lhe permite transitar de um assunto ao outro

rapidamente, sem deixar o texto pesado ou maçante. Sacco consegue ser, ao

mesmo tempo, objetivo nas informações e subjetivo nas observações, elaborando

uma passagem capaz de conquistar a atenção do leitor de quadrinhos, mesmo

deixando as imagens em segundo plano. Dessa forma, aproxima-se, mais uma vez,

do que buscavam os repórteres do New Journalism: oferecer descrições objetivas,

porém completas, além da vida subjetiva dos personagens, com ênfase na

dramaticidade. Tal equilíbrio pode ser observado nessa passagem: “Eles ainda são

refugiados... fracos, pode ser, de acordo com o ponto de vista da imprensa, mas

ainda refugiados... o que, eu acho, quer dizer que estão esperando para voltar...”

(SACCO, 2011, p. 42).

Para dar destaque ao texto, nesta sequência, Sacco dispensa o uso tanto de

balões quanto de caixas de legenda, criando um espaço dedicado somente ao

Jornalismo. Ao fazer isso, o cartunista afasta-se da narrativa quadrinística. As

páginas, como vê-se no exemplo, são construídas tais quais laudas de jornais. O

texto é fragmentado em três colunas e os desenhos são posicionados como

fotografias o seriam em uma matéria impressa. Essa é uma clara demonstração de

sua ligação com o jornalismo escrito, área na qual começou sua carreira, mas da

qual afastou-se, pois, segundo ele, não lhe trazia tanta satisfação. Talvez por isso o

autor a tenha aliado aos quadrinhos. Pelos resultados obtidos com suas obras, nota-

se que a união de ambas as linguagens lhe é satisfatória.

Obviamente, não seria possível criar uma passagem com a extensão de

Lembre-se de mim para uma reportagem veiculada em um jornal impresso, ou

mesmo em uma revista especializada. A publicação de Palestina, no formato de uma

grande-reportagem, foi possível graças a um produto essencialmente jornalístico.

Uma obra tão ambiciosa e consistente quanto essa só poderia ser abarcada, com

todas suas nuances, por um livro-reportagem. Como abordado no segundo capitulo,

uma das peculiaridades do livro-reportagem é a linguagem, fundamentalmente

jornalística. No caso da obra de Sacco, a narrativa não é, obviamente, puramente

jornalística. Contudo, seus objetivos o são.

Outro atributo conferido às obras publicadas em brochuras, alheio às

produções do Jornalismo – principalmente o diário – é a perenidade. Caso tivesse

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sido publicada em um jornal de uma cidade qualquer, provavelmente Palestina não

seria o objeto de estudo dessa monografia. Muito pelo contrário, a obra teria caído

no esquecimento. O formato escolhido por Sacco fez com que, 20 anos após a

publicação, o livro ainda estivesse nas prateleiras de livrarias mundo afora.

Anteriormente, destacou-se, segundo Pereira Lima (2004), que não há

restrição quanto às temáticas que podem ser abordadas em um livro reportagem. As

possibilidades são tantas que o autor as classificou por grupos. Observando o

fichamento do autor, percebe-se que Palestina se enquadra em mais de uma

categoria. A obra pode ser classificada como livro-reportagem-atualidade (porque

capta um tema de maior magnitude e perenidade no tempo, cujos desdobramentos

finais não são conhecidos); livro-reportagem-denúncia (porque possui propósito

investigativo de identificar injustiças e abusos); livro-reportagem-ensaio (porque

caracteriza-se pela presença do autor, que opina, constantemente, sobre o tema)

ou, ainda, livro-reportagem-viagem (na medida em que a viagem a um lugar

específico serve como pretexto para a abordagem de aspectos sociológicos,

culturais e históricos).

Até o momento, foram analisados os conteúdos visual e textual. A seguir, o

viés da exploração será a intersecção entre as duas categorias. O objetivo será

identificar o papel desempenhado por Joe Sacco como personagem na própria

narrativa.

5.3.3 Análise da intersecção entre imagem e texto

Logo na primeira página de Palestina, a construção visual de Sacco faz com

que o leitor consiga ouvir o barulho e respirar a poeira das ruas do Cairo. Objetos,

personagens, balões e caixas de legenda “saltam aos olhos”. A página serve de

exemplo do uso das linguagens jornalística e quadrinística para um bem comum:

transportar o leitor para dentro da história. Contudo, em meio à essa aparente

desordem, ocupando uma posição central, está ele: Joe Sacco. Não há introduções.

Desde o início, o jornalista deixa claro que o que virá a seguir é fruto de suas

experiências e do seu ponto de vista.

Na criação da obra, Sacco desempenha três papéis. O primeiro é o de

jornalista, que garimpa fontes, observa e absorve todos os aspectos possíveis da

cultura local. Tudo isso para poder fazer descrições como esta: “O frio, os homens, o

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chá... Essa é a essência de qualquer uma das salas que eu vi lá” (SACCO, 2011, p.

152). Ele pinta, visual e textualmente, a imagem do dia a dia palestino. Seu segundo

papel é o de quadrinista, responsável por transpor todo o material coletado para as

páginas da HQ.

O terceiro papel é o de personagem: o jornalista que viajou à Palestina para

escrever uma reportagem. Embora não pareça, o papel de personagem pode ser

mais trabalhoso do que o de repórter. Como Beth Brait (1999, p. 13) expõe, “não é

fácil construir a própria imagem para fazer de conta que se é exatamente aquilo”.

Porém, antes de qualquer apontamento, é necessário estabelecer o que é uma

personagem. O Dicionário enciclopédico das ciências da linguagem trata da

diferença entre personagem e pessoa. De acordo com a definição,

uma leitura ingênua dos livros de ficção confunde personagens e pessoas. Chegaram mesmo a escrever “biografias” de personagens, explorando partes de sua vida ausente do livro. [...] Esquece-se que o problema da personagem é antes de tudo linguístico, que não existe fora das palavras, que a personagem é “um ser de papel”. Entretanto, recusar toda a relação entre personagem e pessoa seria absurdo. (DUCROT; TODOROV, 1972, p. 286, apud BRAIT, 1999, p. 10)

Há uma premissa que diz que a personagem é um ser que habita a realidade

ficcional, diferente daqueles que habitam o espaço dos seres humanos (BRAIT,

1999). Contudo, a linha entre ficção e realidade é tênue. Isso pode ser comprovado

pelo processo de criação das personagens, que se dá com base em pessoas e

características reais. Se o relacionamento entre os dois polos é tão íntimo, a

dificuldade em distinguir o Joe Sacco jornalista/repórter do Joe Sacco personagem é

ainda maior.

Aquele que chegou à Palestina no final de 1992 era o jornalista. Curioso,

ávido por conhecer pessoas, ouvir histórias e livrar-se, de vez, da ignorância

perpetuada pelos meios de comunicação estadunidenses. A personagem, por sua

vez, é o resultado das experiências vividas por ele nos territórios árabes. Para ser

transposto para o papel, Sacco precisou reconstruir-se por meio do livro-reportagem.

A criação da personagem ocorreu, de fato, quando o cartunista desenhou-se

pela primeira vez. Cabelo curto e escuro, óculos de grau, lábios avantajados, uma

calça jeans, um suéter, uma jaqueta, manta e luvas. Estas são as características

visuais da personagem. Mas, a inserção na história – como ocorre desde o início – é

consequência de uma análise do seu papel na narrativa. Sacco poderia ter escolhido

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ser um narrador onisciente neutro. Contudo, ele optou por relatar os fatos em

primeira pessoa. Como explicado no capítulo 1, o jornalista que adentra o mundo

das grandes-reportagens carrega a responsabilidade de apresentar um material

aprofundado, rico em fontes e pontos de vista, capaz de transportar as pessoas para

os lugares dos quais fala e fazê-las identificarem-se com os personagens da história

sendo contada.

Para fazer com que seus leitores ocidentais pudessem se identificar com a

vida dos árabes do Oriente Médio, Sacco introduziu-se na narrativa. Em Palestina,

ele é o elo entre o público e o povo retratado. A obra também ganha em

credibilidade com a presença – não só textual, mas também visual – do autor, pois

ele deixa claro que adentrou aquele lugar “de corpo e alma” para poder testemunhar

o que viu.

Sacco também serve de conexão entre os dois mundos porque, como

personagem, coloca-se no papel do “estrangeiro”. Todos os aparentes incômodos

que uma viagem a um país como a Palestina pode causar são retratados, desde a

estranheza com o chá demasiadamente doce até o transtorno em observar

ferimentos causados pela guerra ou pela tortura. Na primeira página, mesmo ainda

sem estar na Palestina, o cartunista deixa clara sua inquietação, sua não

familiarização com os hábitos do local. Como ele mesmo diz: “Entre pirâmides e

meninos faraós, estou tonto! Estou girando! TÁXI! Tire-me daqui!” (SACCO, 2011, p.

1).

De forma sutil, o autor começa a apresentar o Oriente Médio. Nas páginas

seguintes, ele coloca-se em destaque na história para mostrar o início de sua

adaptação. Visualmente, ele está em todos os quadros. Por meio do texto, ele

destaca peculiaridades do povo árabe. Uma das idiossincrasias dos palestinos é o

fato de questionarem os estrangeiros sobre seu posicionamento em relação à

ocupação israelense. Outra característica é a vontade – ou necessidade – de

compartilhar histórias, principalmente de natureza desoladora. O leitor “vive” esses

momentos através dos olhos de Sacco.

A sensação de que a autêntica experiência palestina proporcionada pelo livro

é consequência, unicamente, das vivências de Sacco não advém apenas do texto ou

das imagens dos palestinos – cabisbaixos, de olhar distante e cheio de mágoas,

como o senhor da página 62, obrigado por guardas israelenses a derrubar as

próprias oliveiras. Vê-lo lidando com as situações que apresentaram-se durante a

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viagem torna a história ainda mais crível. Como relatado anteriormente, é possível

colocar-se, como leitor, no lugar do jornalista. Essa noção se intensifica na página

148.

De van, o cartunista adentra a Faixa de Gaza. A página é dividida,

horizontalmente, entre três quadros, aproximadamente do mesmo tamanho. Nesses

quadros, os planos utilizados variam entre panorâmico, médio e americano. O ponto

de vista foi pensado a partir do interior do carro. No canto esquerdo, dentro do

veículo, há uma sombra. Sacco coloca-se na cena, de perfil. Na parte clara da

imagem, vê-se o olhar desconfiado com o qual os palestinos fitam o estrangeiro. A

impressão que se tem é que os olhares são direcionados ao próprio leitor. Dessa

forma, o quadrinista partilha sua experiência. Como afirmado por Eisner (2013), no

terceiro capítulo, os sentimentos do protagonista são compreensíveis para o leitor,

que teria emoções similares nas mesmas circunstâncias.

Como viu-se, a linha entre jornalista e personagem é tênue. Porém, no caso

de Palestina, a distinção foi facilitada pelo outro papel desempenhado por Sacco: o

de quadrinista. No capítulo 3, relatou-se que Eisner (2013, p. 122) descreve a

criação para os quadrinhos como “o ato de urdir um tecido”. Essa construção

enfrenta desafios quando o escritor e o artista são pessoas diferentes. Nesses

casos, pode haver problemas com a tradução do texto para as imagens.

Contudo, ainda de acordo com o autor, quando o cartunista trabalha com o

texto e as imagens em mente, o resultado é um todo sem emendas. Por esse

aspecto, pode-se afirmar que Palestina é o resultado de um processo de criação

quadrinística ideal. Como ambas as partes foram elaboradas por Sacco, não houve

distância entre a ideia e a tradução. Segundo McCloud, como consta no terceiro

capítulo, a conversão nos quadrinhos vai da mente para a mão, depois para o papel,

em seguida para o olho e, então, para a mente.

Tudo o que Sacco observou, bem como as entrevistas que fez, foram, de

início, passadas para o papel. Entretanto, em forma de texto e não de imagens.

Havia, porém, alguns esboços nos cadernos de anotação do autor. Tais cadernos

podem ser considerados como o roteiro inicial de Palestina. As anotações compõem

o que é chamado por Campos (2007) – presente no capítulo 3 – de massas de

estórias que, organizadas pelo escritor, compõe a narrativa.

Na página 117, vê-se a organização – visual e textual – dessa massa de

histórias. Nesse trecho, o peso da descrição das cenas incide tanto sobre as

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imagens quanto sobre o texto. A página retrata as “metamorfoses” e os absurdos

observados durante uma passagem pela cidade de Ramallah. No primeiro quadro,

nota-se que o autor está dentro de um carro. Na rua, pela janela do veículo,

observa-se um grupo de colonos judeus armados, rezando, “com crianças, uma

coisa de família” (SACCO, 2011, p. 117). No quadro seguinte, enquanto Sacco cruza

pelas ruas da cidade, vem o toque de recolher. Da metade da página em diante, o

cartunista ressalta os contrastes do local, onde compras no mercado são

interrompidas por explosões e soldados portando fuzis.

Os contrapontos representados na página 117 funcionam tão bem, visual e

textualmente, pois foram concebidos pela mesma pessoa. O que torna a página

dinâmica, rica em conteúdos capazes de chocar e gerar reflexão por parte dos

leitores, é o fato de ter sido elaborada por alguém que presenciou tais

acontecimentos e pôde, mais tarde, descrevê-los com propriedade.

Todavia, algumas passagens da obra parecem decorrer de pensamentos do

autor, e não de informações jornalísticas, como é observado na página 177. Se

Sacco não fosse um personagem da história, momentos como esse não seriam

possíveis. Trata-se de um subcapítulo de uma página chamado Edward Said. Nele,

o autor conta como foi a noite na casa de seu amigo Larry. É a descrição de uma

noite ideal na Palestina. Ele pôde, enfim, tomar um banho quente, conversar sobre

assuntos interessantes e, também, ler Orientalismo, obra de Said.

Há seis quadros na página e Sacco está em todos eles. Nesse momento, a

diferenciação feita por ele entre balões e caixas de legenda também fica clara.

Apesar da importância das imagens, é no texto que o cartunista deixa transparecer

sua intenção com o subcapítulo. Além de servir como um “respiro”, uma trégua dos

assuntos densos, o trecho é uma autorreflexão. O autor afirma que no dia seguinte,

irá novamente para Jabalia. Contudo, ele diz preferir ficar lendo Edward Said.

A autorreflexão funciona, assim como diversos outros momentos da obra,

para criar identificação com o leitor. Pondera-se que grande parte deles também iria

preferir o conforto de um lugar quente e um bom livro à triste realidade das ruas dos

campos de refugiados da Faixa de Gaza. Contudo, para compreender essa

realidade, na maioria das vezes, é necessário sair da zona de conforto, deixar o

lugar comum e permitir-se viver, mesmo que por pouco tempo, uma vida totalmente

diferente. Espera-se que esse entendimento quanto às imprescindibilidades da

profissão não falte à essa geração de jovens jornalistas.

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Neste capítulo foi apresentada a metodologia e realizada a análise do livro-

reportagem Palestina, nas categorias visual, textual e de intersecção entre ambas.

Foi possível destacar os principais aspectos da construção da obra, ligando-os a

conceitos tanto da linguagem jornalística quanto da quadrinística, ressaltando que o

objeto de pesquisa constitui-se em um produto diferenciado.

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6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Essa monografia explorou a construção da narrativa jornalístico-literária no

livro-reportagem em quadrinhos Palestina, escrito pelo premiado jornalista e

cartunista Joe Sacco. A obra em questão objetiva expor o drama vivido pelos

palestinos em decorrência dos conflitos com Israel. Ao longo da grande-reportagem,

são abordados aspectos históricos, sociais, culturais e religiosos que circundam o

dia a dia nos territórios ocupados. Após análise dos conteúdos visuais, textuais e de

pontos de convergência entre ambos, é possível fazer algumas considerações.

Em um primeiro olhar, estão presentes, em um mesmo produto, duas

linguagens com propósitos fundamentalmente distintos: o Jornalismo, que busca

informar; e as histórias em quadrinhos, que têm como principal objetivo o

entretenimento do leitor. Desde seu surgimento, o Jornalismo tem caminhado, lado a

lado, com a factualidade e a objetividade; tem firmado seu compromisso de ser os

olhos e os ouvidos do público. Por outro lado, os quadrinhos não têm

responsabilidade alguma para com a realidade; a expectativa do público que folheia

as páginas de HQs é de encontrar boas histórias, geralmente fantasiosas, que os

livrem, mesmo que por poucos minutos, da fatigante rotina diária.

É por essas razões que a junção de Jornalismo e histórias em quadrinhos soa

tão inovadora e interessante. Por essas razões Palestina chamou a atenção da

pesquisadora e, consequentemente, o livro-reportagem foi escolhido como o objeto

de estudo dessa monografia. Contudo, para entender o que faz dele uma obra

vanguardista, foi necessário, primeiramente, desvelar os conceitos das linguagens

das quais é composto. Foi traçado um objetivo geral para esse estudo, que era o de

analisar as narrativas em quadrinhos enquanto atividade jornalística. Para alcançá-

lo, foi empregada a Análise de Conteúdo, bem como a Análise de Discurso.

Com base nos resultados da exploração do material, constatou-se que a

primeira hipótese, que afirma que a utilização da narrativa em quadrinhos para a

construção de uma grande-reportagem significa uma renovação na linguagem

jornalística no âmbito do Jornalismo Literário, foi comprovada. Os meios para a

reprodução de grandes-reportagens, normalmente, limitam-se aos jornais, revistas e

livros. Contudo, nesses casos, as produções são apenas textuais, o que diminui,

consideravelmente, as possibilidades de inovação.

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A renovação, tratando-se de Palestina, é fruto da inserção do vocabulário

quadrinístico em um produto essencialmente jornalístico. Sacco utilizou-se de

imagens e de outras características dos quadrinhos para enriquecer sua narrativa

jornalística e para trazer à luz determinados aspectos que não poderiam ser

descritos textualmente. Com ferramentas de ambas as linguagens em mãos, pôde

exercer uma das principais funções do Jornalismo Literário, que é a de contar

histórias com mais profundidade, permitindo imersão do jornalista na narrativa.

No que refere-se ao hibridismo de Palestina, segunda hipótese levantada pela

pesquisadora, também houve uma confirmação. Durante toda a análise foi possível

perceber que Sacco não privou-se daquilo que estava à sua disposição, em termos

de instrumentos narrativos. Há, claramente, a presença tanto de aspectos

intrínsecos ao Jornalismo quanto de elementos específicos das histórias em

quadrinhos na construção do livro-reportagem, sem que uma linguagem se

sobressaia, fortemente, à outra. Isso resultou em um produto único, trabalhado,

simultaneamente, sob dois conceitos distintos.

A terceira hipótese, que indicava a imprescindibilidade das imagens na

construção da obra, também foi corroborada. Palestina é uma obra tão visual quanto

jornalística, levando em conta os aspectos observados na análise, que apontam

para o “peso” descritivo carregado pelas imagens no trabalho de Joe Sacco. Viu-se

que imagens, tais quais as apresentadas pelo cartunista, têm a capacidade de

evocar a realidade. Além disso, sua universalidade faz com que sejam acessíveis a

um público muito mais vasto e plural do que o formado por leitores de jornais. Nessa

grande-reportagem em quadrinhos, os desenhos não só recriam a atmosfera dos

territórios ocupados, mas servem para aproximar os leitores das pessoas, dos

lugares e das histórias retratadas.

Assim como as demais, a quarta hipótese, que trata da importância dos

depoimentos dos palestinos para o entendimento dos aspectos que compõem a

realidade local, foi corroborada. É notável que as entrevistas que integram Palestina

contextualizam a situação do país, além de propiciarem, aos leitores, informações

necessárias para que se inteirem das questões retratadas – sociais, religiosas e

históricas – eu influenciam o dia a dia dos árabe-palestinos e, também, os conflitos

com os ocupantes. Contudo, se comparada às demais, essa hipótese poderia ser

trabalhada mais fortemente por meio de uma análise de recepção.

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Houve comprovação, também, quanto à quinta hipótese, que referia-se à

necessidade da imersão do jornalista no ambiente sobre o qual se está reportando.

Como averiguou-se, o aprofundamento dos relatos e o entendimento das

circunstâncias de fatos retratados em grandes-reportagens, como essa, são fruto de

experiências reais do repórter. Não há como criar, quadrinística ou literariamente, a

ideia de uma proximidade que nunca existiu. A superficialidade não condiz com a

prática do Jornalismo Literário.

Em relação aos objetivos, pode-se dizer que o resultado obtido foi positivo. O

objetivo geral, como relembrado anteriormente, era analisar as narrativas em

quadrinhos enquanto atividade jornalística. Especificamente, o primeiro propósito

dessa monografia era investigar quais as contribuições da narrativa quadrinística ao

Jornalismo Literário, meta que foi alcançada. Foi possível, em diferentes momentos

da análise, apontar a partir de quais formas Sacco introduziu características

específicas dos quadrinhos em sua produção literária. A de maior destaque é a

imagem, obviamente. Observou-se que os desenhos, no caso de Palestina,

contribuíram imensamente para a construção da obra, no sentido de agregarem

muito ao entendimento da realidade local por parte dos leitores. Na grande-

reportagem, as imagens corroboram e intensificam o discurso textual do autor.

Outra intenção desse estudo era descobrir quais as mudanças sofridas pela

narrativa jornalístico-literária na adaptação aos quadrinhos. Nesse caso, o objetivo

foi alcançado. As próprias contribuições, identificadas acima, são a causa das

mudanças no texto literário. Grande parte da escrita precisou ser transformada em

imagens. Consequentemente, o conteúdo textual foi reduzido. É importante salientar

que tais alterações, além de necessárias, em decorrência do formato escolhido para

a publicação, não significam uma perda na literariedade. Contrariando o senso

comum, a combinação de imagem e texto presente na obra é extremamente poética.

Apresentar os quadrinhos como uma forma de linguagem autônoma era o

terceiro objetivo específico, que também foi atingido. No decorrer do trabalho, em

diversos momentos, foi possível destacar peculiaridades que demonstram,

claramente, que as histórias em quadrinhos são uma linguagem emancipada.

Constatou-se que alguns dos elementos inerentes das HQs são os balões, os

quadros, a leitura participativa e a própria forma de tecer a narrativa com a

combinação entre texto e imagens estáticas. Apesar de semelhanças com outras

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132

formas de expressão, como o cinema e a fotografia, os quadrinhos contam com uma

definição própria.

Assim como na terceira hipótese, que envolvia a parte gráfica, o quarto

objetivo era evidenciar a importância da imagem na construção do discurso de

Sacco em Palestina. Tal meta foi cumprida em diferentes momentos da elaboração

da monografia. Constatou-se, tanto durante o terceiro capítulo quanto na análise,

que não há quadrinhos sem imagem. É desse elemento próprio das HQs que Sacco

tira grande parte de sua força descritiva. O detalhamento de seu texto literário é

imagético; é nas imagens que ele apoia-se para dizer o que suas palavras não

podem. Com a incorporação dos desenhos, essa narrativa diferencia-se das demais,

ganha “corpo” e é isso que faz de Palestina uma obra tão relevante.

O quinto objetivo, que era o de analisar qual a influência dos aspectos sociais,

religiosos e históricos da região da Palestina na narrativa do jornalista, não foi

alcançado integralmente. Isso ocorreu porque o foco principal foi observar a

preponderância de aspectos ligados ao Jornalismo e às histórias em quadrinhos na

construção da narrativa. Contudo, foi possível verificar que houve uma forte

interferência de tais questões em todo o processo de criação do livro-reportagem,

pois foi sobre esses assuntos que Sacco debruçou-se enquanto esteve nos

territórios ocupados. Todos os questionamentos do cartunista – e consequentes

respostas obtidas – eram oriundos de temas sociais, religiosos, políticos ou

históricos.

Em relação à análise da importância do aprofundamento dos processos

jornalísticos na construção desta grande-reportagem, que constitui-se no sexto e

último objetivo levantado, obteve-se êxito. Durante toda a construção do trabalho,

ficou claro que as ferramentas do Jornalismo que estavam à disposição do autor

foram fundamentais para que Palestina deixasse de ser uma ideia e se tornasse um

trabalho premiado. É o Jornalismo – de entrevista e do texto literário – que agrega

densidade e profundidade à narrativa.

Considerando a análise como um todo, julga-se ter sido respondida a questão

norteadora. Ficou clara a intenção de destrinchar, por meio da divisão por

categorias, a grande-reportagem Palestina para entender o processo de criação do

jornalista do Joe Sacco. Ao final desse trabalho, é importante destacar que a noção

inicial, de que o Sacco representava o perfil do profissional a ser seguido, manteve-

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133

se inalterada. A admiração pelo trabalho e pelo caráter do cartunista aumentou

conforme o andamento do estudo.

Na posição de futura jornalista, a pesquisadora acredita que, caso houvesse

mais profissionais como Sacco, guiados pela inquietude e pela curiosidade, que tem

o faro jornalístico aguçado por injustiças e que estejam dispostos a sair de sua zona

de conforto para criar, de fato, produtos que contribuam para o entendimento de

diferentes realidades, o Jornalismo teria muito mais a oferecer à população.

Obviamente, pelo impacto social causado por Sacco, tanto em Palestina quanto em

outras obras, o trabalho do autor é merecedor de uma análise ainda mais

aprofundada.

Contudo, espera-se, por meio dessa monografia, que os estudos sobre

produtos híbridos, construídos pela união de linguagens distintas, como o Jornalismo

e as histórias em quadrinhos, sejam enriquecidos. Almeja-se, também, contribuir

com o trabalho de futuros pesquisadores, do Jornalismo e das histórias em

quadrinhos, no sentido de agregar conhecimento e de despertar a curiosidade por

produções tão originais quanto essa.

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134

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ANEXO – PROJETO DE MONOGRAFIA

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UNIVERSIDADE DE CAXIAS DO SUL

MAYARA ZANELLA DA ROSA

RENOVAÇÃO JORNALÍSTICA: UM OLHAR SOBRE A GRANDE-REPORTAGEM EM QUADRINHOS PALESTINA

CAXIAS DO SUL 2015

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141

UNIVERSIDADE DE CAXIAS DO SUL CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS

CURSO DE COMUNICAÇÃO SOCIAL HABILITAÇÃO EM JORNALISMO

MAYARA ZANELLA DA ROSA

RENOVAÇÃO JORNALÍSTICA: UM OLHAR SOBRE A GRANDE-REPORTAGEM EM QUADRINHOS PALESTINA

Projeto de Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como requisito para aprovação na disciplina de Monografia I. Orientador(a): Marliva Vanti Gonçalves

CAXIAS DO SUL 2015

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ................................................................................................... 04 2 TEMA ................................................................................................................. 16 2.1 DELIMITAÇÃO DO TEMA ............................................................................... 16 3 JUSTIFICATIVA .................................................................................................. 17 4 QUESTÃO NORTEADORA ............................................................................... 22 5. HIPÓTESES ...................................................................................................... 23 6. OBJETIVOS ...................................................................................................... 24 6.1 OBJETIVO GERAL ......................................................................................... 24 6.2 OBJETIVOS ESPECÍFICOS ........................................................................... 24 7. METODOLOGIA ............................................................................................... 25 7.1 PESQUISA BIBLIOGRÁFICA .......................... ................................................ 26 7.2 ANÁLISE DE CONTÚDO ......... ...................................................................... 26 7.3 ANÁLISE DE DISCURSO ................................................................................ 28 8. REVISÃO BIBLIOGRÁFICA ............................................................................. 29 8.1 JORNALISMO .................................................................................................. 29 8.1.2 Jornalismo Literário .................................................................................... 29 8.2 HISTÓRIAS EM QUADRINHOS ...................................................................... 30 8.3 METODOLOGIA ............................................................................................. 30 9. ROTEIRO DOS CAPÍTULOS ............................................................................ 32 10. CRONOGRAMA ............................................................................................. 33 REFERÊNCIAS ..................................................................................................... 34

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1 INTRODUÇÃO

“Todas as manhãs, as pessoas que querem saber o que está acontecendo no

mundo leem o jornal, escutam a rádio, veem a televisão, ou navegam pela internet.

Esses indivíduos consomem uma mercadoria especial: as notícias.” (ALSINA, 2009,

p. 9). Atualmente, os indivíduos, rodeados por uma infinidade de ferramentas que

ampliam o acesso a todo e qualquer tipo de informação, vivem sedentos por

notícias, por relatos de novos fatos. O principal meio de transmissão de tais notícias,

assim como apontado pelo autor Miquel Rodrigo Alsina (2009), que ao mesmo

tempo cria e mantém atualizadas as informações, é o Jornalismo.

O desejo de manter-se atualizado, de acordo com Nelson Traquina (2004), é

secular. Para tanto, as pessoas utilizam os veículos jornalísticos para ficarem “em

dia” com os acontecimentos. Estarem inteiradas dos fatos lhes permite participar

ativamente de grupos sociais. Os meios de comunicação também servem para que

se sintam “reasseguradas de que através dos vários produtos do jornalismo não

estão a perder algo, ou para serem fascinadas pelas alegrias ou tragédias da vida”

(TRAQUINA, 2004, p. 20).

Clóvis Rossi define o Jornalismo como uma “batalha pela conquista das

mentes e corações de seus alvos: leitores, telespectadores ou ouvintes [...] que usa

uma arma de aparência extremamente sutil e inofensiva: a palavra” (ROSSI, 1994,

p. 7). Por meio da palavra, os jornalistas influem diretamente na construção da

realidade social, pois, de acordo com Traquina (2004), os profissionais, quando

comunicam fatos, são os responsáveis por definir, em última análise, o que é notícia.

O trabalho dos jornalistas na filtragem dos acontecimentos com potencial para

tornarem-se notícia é extremamente fundamental socialmente. Segundo Alsina

(2009), não é possível considerar tudo que há em volta como algo significativo, pois

o ser humano não é capaz de processar tanta informação.

O filtro jornalístico tem como base uma série fatores, que influenciam a seleção

das notícias. De acordo com Alsina (2009) a lista de valores/notícia, elencada por

Galtung e Ruge (1980, p. 120), aponta que a frequência, o limiar, a ausência de

ambiguidade, a significação, a consonância, a imprevisibilidade, a continuidade, a

composição e os valores socioculturais dos acontecimentos são aspectos levados

em conta pelos jornalistas durante a seleção dos acontecimentos que serão

veiculados. Alsina (2009) também ressalta que a aplicação de tais critérios não é

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mecânica e que, quando um fato agrega mais que um dos fatores citados, maior é a

possibilidade de se tornar notícia a ser consumida pelo público.

Diante dos acontecimentos, guiado pelos valores/notícia, o jornalista está

habilitado a selecionar quais acontecimentos deseja divulgar e de qual forma irá

narrar os fatos. Para tanto, há diversas opções de gênero, basta eleger qual o

melhor para transmitir a mensagem desejada. Alguns exemplos são a nota, o artigo,

o editorial, a crônica e a reportagem. A última caracteriza-se por ser, nas palavras de

Muniz Sodré e Maria Helena Ferrari (1986), uma extensão da notícia.

O desdobramento das clássicas perguntas a que a notícia pretende responder (quem, o quê, como, quando, onde, por quê) constituirá de pleno direito uma narrativa, não mais regida pelo imaginário, como na literatura de ficção, mas pela realidade factual do dia a dia, pelos pontos rítmicos do cotidiano que, discursivamente trabalhados, tornam-se reportagem. (SODRÉ, FERRARI, 1986, p. 11)

No que concerne à narrativa jornalística, a reportagem é sua forma mais

extensa. Descrita por Sodré e Ferrari (1986, p.9) como “um gênero jornalístico

privilegiado”, onde se narram as peripécias da atualidade, a reportagem ganhou

impulso durante a década de 1920 – mais especificamente em 1925, com o repórter

Skeets Miller41 –, nos Estados Unidos. Para Sodré e Ferrari (1986, p 14), o “quem” e

o “que” são dois dos seus elementos fundamentais. Os autores afirmam que eles

“têm de existir, mas têm, sobretudo, de despertar interesse humano – ou não serão

suficientes para sustentar a problemática narrativa”.

Os textos de Miller sobre o acidente de Floyd Collins, por exemplo, traziam um

olhar único sobre os fatos. O repórter, enviado ao local pelo Courier Journal,

aprofundou-se nos acontecimentos, conversou diretamente com o homem, enquanto

este esteve preso na gruta, e até mesmo participou de tentativas de resgate. Cada

um dos aspectos narrados, provenientes da sua interação com o acontecimento,

além de sustentar a história, despertavam o interesse e prendiam a atenção de um

público carente de informações substanciais devido às lacunas deixadas pelo

jornalismo factual e que ansiava por novidades.

Miller exercia com maestria, por meio de suas reportagens, o papel do

jornalista contador de “estórias”. Para Nelson Traquina (2004, p.21), “o jornalismo é

41

William Burke “Skeets” Miller foi um repórter norte-americano vencedor do prêmio Pulitzer por sua cobertura da história de Floyd Collins, um homem que permaneceu durante 18 dias preso em uma gruta. Fonte: Wikipédia. Disponível em <https://en.wikipedia.org/wiki/William_Burke_Miller>. Acesso em 19/10/2015.

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um conjunto de ‘estórias’, ‘estórias’ de vida, ‘estórias’ das estrelas, ‘estórias’ de

triunfo e tragédia”. Portanto, a reportagem é um meio de narrar tais “estórias” de

forma ampliada e abrangente. “No jornalismo [...] a reportagem amplia a cobertura

de um fato, assunto ou personalidade, revestindo-os de intensidade, sem a

brevidade da forma-notícia” (SODRÉ; FERRARI, 1986, p. 75).

Por suas características narrativas, a reportagem (principalmente a estendida,

também chamada nessa monografia de grande-reportagem) é mais facilmente

encontrada no âmbito do Jornalismo Literário. Felipe Pena (2006, p. 21) define o

Jornalismo Literário como um gênero. “Ao juntar os elementos presentes em dois

gêneros diferentes (jornalismo e literatura), transformo-os permanentemente em

seus domínios específicos, além de formar um terceiro gênero”. Chamado também

de literatura da realidade, o gênero apresenta um texto que assume os traços

literários, pois permite que o jornalista utilize uma linguagem elaborada, capaz de

evocar no leitor a emoção não proporcionada pelas notícias factuais.

Para Alceu Amoroso Lima (1990. p.38), “o jornalismo só é literatura, enquanto

empregar a expressão verbal com ênfase nos meios de expressão”. O jornalista

deve trabalhar dentro do fato, pois, como declara Lima (1990, p. 60), “é nadando que

melhor poderá informar sobre as ondas”. Nota-se, portanto, que o jornalismo

superficial esta à margem do próprio jornalismo e, consequentemente, afastado da

literatura.

De acordo com Lima (1990, p. 23) “os jornais se aproximam hoje das revistas,

como as revistas dos livros. E com isso se transformam, cada vez mais, em

instrumentos de em (sic) autêntico gênero literário. O Jornalismo Literário pode ser

considerado a junção de técnicas jornalísticas e expressões literárias. O gênero

apareceu como uma forma de revigorar os textos “quadrados” produzidos

diariamente de acordo com a fórmula do lead. Esta é uma estratégia narrativa

inventada por jornalistas americanos na primeira metade do século XX, com o intuito

de tornar a imprensa mais objetiva. O lead indica que o primeiro parágrafo das

reportagens deve responder a seis questões: Quem? O quê? Como? Onde?

Quando? Por quê? (PENA, 2006).

No Jornalismo Literário o leitor encontra informações diferenciadas, com fôlego,

provenientes de investigação esmiuçada. Para Pena (2006), o gênero não se desfaz

dos recursos do jornalismo diário, mas os potencializa. De acordo Pena (2006, p. 14)

“os princípios da redação continuam extremamente importantes, como [...] a

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apuração rigorosa, a observação atenta, a abordagem ética e a capacidade de se

expressar claramente”.

O conteúdo do Jornalismo Literário, que aparece principalmente na forma de

reportagens, demanda mais tempo, pesquisa, gastos e aprofundamento para ser

produzido do que as notícias diárias. Entretanto, quando o acontecimento permite

uma abordagem ainda mais aprofundada, há uma ramificação da reportagem que

permite um tratamento informativo de maior qualidade: a grande-reportagem.

Tratando-se da forma de construção, a reportagem e a grande-reportagem não

diferem substancialmente uma da outra. Entretanto, a segunda oferece ainda mais

amplitude nos relatos do que a primeira. Para Edvaldo Pereira Lima, a prática da

grande-reportagem

possibilita um mergulho de fôlego nos fatos e em seu contexto, oferecendo a seu autor [...] uma dose ponderável de liberdade para escapar dos grilhões normalmente impostos pela fórmula convencional do tratamento da notícia. (PEREIRA LIMA, 2004, p. 18)

O jornalista que adentra o mundo das grandes-reportagens carrega a

responsabilidade de apresentar um material extremamente aprofundado, rico em

fontes, detalhes e pontos de vista, capaz de transportar as pessoas para lugares dos

quais fala, fazê-las identificarem-se com os “personagens” da história que está

contando e, além disso, fazê-las entender as origens, motivos e consequências dos

fenômenos narrados.

Contudo, até mesmo as grandes-reportagens sofrem com fatores como tempo

e espaço. Há um prazo para que sejam realizadas e um espaço limitado para sua

publicação. Esses “empecilhos” geram brechas no conteúdo apresentado. Ou seja, o

jornalista não consegue relatar os fatos minuciosamente, tecer comentários e

levantar argumentos capazes de respaldar seu ponto de vista e suscitar a reflexão

do leitor. Entretanto, há uma figura do universo jornalístico contemporâneo que,

segundo Pereira Lima (2004, p.15), “exerce um papel extensor do jornalismo

impresso cotidiano” e também do jornalismo literário chamada de livro-reportagem.

O livro-reportagem cumpre um relevante papel, preenchendo vazios deixados pelo jornal, pela revista, pelas emissoras de rádio, pelos noticiários da televisão, até mesmo pela internet quando utilizada jornalisticamente nos mesmos moldes das normas vigentes na prática impressa convencional. Mais do que isso, avança para o aprofundamento do conhecimento do nosso tempo, eliminando, parcialmente que seja, o aspecto efêmero da mensagem da atualidade praticada pelos canais cotidianos da informação jornalística. (LIMA, 2004, p. 4)

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Segundo Maria Helena Ferrari e Muniz Sodré (1986) a obra Os sertões, de

Euclides da Cunha, publicada em 1902, talvez seja primeiro livro-reportagem

brasileiro. Mesmo com publicações que perpassam um século, esse formato

jornalístico, mais suscetível a expor o âmago dos acontecimentos, não encontrou no

Brasil um solo fértil para sua proliferação. Contudo, há bastante tempo, em outras

partes do mundo, o livro-reportagem tem sido usado como uma ferramenta para a

reprodução de grandes histórias.

Para Pereira Lima (2004, p. 106) “o livro-reportagem, em muitos casos, tem-se

revelado um produto de vanguarda na renovação da prática jornalística.” A obra A

Sangue Frio, de Truman Capote42, é um exemplo da ousadia na captação das

informações. No livro, Capote investiga o assassinato de uma família no interior dos

Estados Unidos. Para coletar os dados, o escritor passou um ano no vilarejo onde,

mesmo sem um gravador, conversou com familiares, amigos e conviveu com os

assassinos.

O jornalista e escritor Tom Wolfe (1973), juntamente com Capote, foi um dos

precursores do gênero nos Estados Unidos. Segundo Wolfe,

os inovadores da imprensa – e logo do livro-reportagem, que vai abrigar com muito mais intensidade a nova produção – descobrem que não há como retratar a realidade senão com cor, vivacidade, presença. Isto é, com mergulho e envolvimento total nos próprios acontecimentos e situações, os jornalistas tentando viver, na pele, as circunstâncias e o clima inerente ao ambiente de seus personagens. (WOLFE (1973), apud LIMA, 2004, p. 122)

Essa modalidade do ofício jornalístico, enquanto busca seu alicerce nas

ferramentas do Jornalismo diário, oferece ao repórter diversas outras possibilidades

de inovar criativamente, em relação à pauta, à coleta de informações, às entrevistas,

entre outros aspectos da reportagem. Para Pereira Lima (2004, p. 106), por não

estar atrelado aos veículos diários, o livro-reportagem está livre da objetividade

técnica da imprensa regular. Ele pode “experimentar novas formas de consulta, criar

novas maneiras de interação entre o repórter e seus entrevistados, munir-se de

instrumentos inovadores na observação do real em suas múltiplas complexidades”.

Foi por sentir a necessidade de preencher as lacunas deixadas pela grande

mídia – principalmente a dos Estados Unidos – na cobertura dos conflitos entre

42

Truman Capote foi um escritor, roteirista e dramaturgo norte-americano, autor de vários contos, romances e peças teatrais. Mesmo não sendo jornalista por formação, é considerado um dos precursores do jornalismo-literário. Fonte: Wikipédia. Disponível em <https://pt.wikipedia.org/wiki/Truman_Capote>. Acesso em 19/10/2015.

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Israel e Palestina com um produto jornalístico mais aprofundado, que o jornalista Joe

Sacco43 decidiu inteirar-se dos acontecimentos e contá-los, sob seu ponto de vista,

de uma maneira inovadora, inusitada e que mescla duas formas distintas de

narrativas: o Jornalismo Literário e as histórias em quadrinhos.

Sacco (2011) revela que, ao compreender a opressão a que eram sujeitos os

palestinos, sentiu uma grande necessidade de agir. Guiado pelo desejo de conhecer

melhor os aspectos que circundavam a brutal ocupação israelense do território

palestino, o jornalista viajou a Israel e aos territórios ocupados. Os dois meses que

Joe Sacco passou no local entre os anos de 1991-1992, deram origem ao objeto de

estudo desta monografia: o livro-reportagem em quadrinhos Palestina44.

O livro é um relato quadrinizado dos dias passados pelo autor na Palestina. A

escolha da forma de narrativa deve-se ao “amor” de Sacco pelos quadrinhos, aos

quais se dedicava antes mesmo de partir em sua aventura jornalística. O livro,

considerado por muitos críticos como o trabalho definitivo do autor – que rendeu-lhe

até mesmo o American Book Award de 199645 –, foi publicado originalmente pela

editora norte-americana Fantagraphics Books, em edições de 24 e 32 páginas, entre

o início de 1993 e o final de 1995. Para o presente trabalho será considerada a

edição especial, lançada pela editora brasileira Conrad, no ano de 2011, que reúne

os nove capítulos da obra.

Em Palestina, Joe Sacco não contenta-se em escrever sua reportagem, ele

também a desenha. A escolha pela narrativa em quadrinhos permitiu que o jornalista

explorasse ao máximo o potencial do material recolhido durante os dois meses que

passou no território Palestino. Além de utilizar o texto para reproduzir a fala dos seus

entrevistados e seu próprio ponto de vista sobre o que estava vivenciando, Sacco

transmite, através das imagens, aspectos – tanto geográficos quanto emocionais –

que não poderiam ser transcritos. O leitor desta grande-reportagem em quadrinhos

não conta apenas com falas marcantes do oprimido povo palestino, mas também

43

Joe Sacco nasceu em Malta no ano de 1960, mas mudou-se para os Estados Unidos com 12 anos de idade. Jornalista formado pela Universidade de Oregon, sempre dedicou-se às histórias em quadrinhos. Fonte: Palestina. 44

Nesta monografia, o nome da obra aparecerá grifado, para que a diferenciação entre o livro e o

país Palestina seja possível. 45

O American Book Award é um prêmio literário norte-americano entregue anualmente. Fonte:

Wikipédia. Disponível em <https://en.wikipedia.org/wiki/American_Book_Awards>. Acesso em 19/10/2015.

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149

com desenhos, que perpassam levemente a linha dos cartuns46, mas ainda assim

são verossímeis e capazes de acrescentar detalhamento ao entendimento sobre a

realidade do local.

O ato de contar histórias é milenar. Desde o início dos tempos, quando o

homem aprendeu a se comunicar, existiram formas de transmitir e perpetuar

acontecimentos, valores e ideias. Antes do surgimento da linguagem – tanto verbal

quanto escrita –, as informações essenciais eram difundidas por meio de desenhos

nas paredes das cavernas. Portanto, há muito tempo as imagens constituíram-se em

uma forma extremamente eficiente de contar histórias. A partir daí, pode-se dizer

que quadrinhos são uma forma elaborada da contação de histórias através de

imagens. McCloud (2005) afirma não ter ideia de quando as histórias em quadrinhos

surgiram. Porém, ele destaca um evento igualmente importante para a palavra

escrita e para os quadrinhos: a invenção da imprensa. De acordo com o autor, o

acontecimento democratizou as formas de artes que antes estavam ao alcance

apenas das classes mais abastadas da sociedade.

Mesmo concordando quanto à importância do advento da imprensa, Will Eisner

(2013) é mais preciso que McCloud em relação ao período de surgimento das

histórias em quadrinhos. Segundo o autor, os quadrinhos se originaram na forma

das tiras dos jornais diários, na primeira metade do século XX. Alguns anos mais

tarde, durante a 2ª Guerra Mundial, sabe-se que tornaram-se extremamente

populares nos Estados Unidos, pois eram um veículo acessível até mesmo às

classes sociais mais baixas, economicamente falando.

Uma definição técnica das histórias em quadrinhos foi concebida por McCloud

(2005, p. 9). O autor as estabelece como “imagens pictóricas e outras justapostas

em sequência deliberada destinadas a transmitir informações e/ou a produzir uma

resposta no espectador.” As imagens que compõem os quadrinhos são, geralmente,

por uma necessidade de serem facilmente reconhecidas, estereotipadas. Eisner

(2013) descreve os estereótipos como ideias padronizadas, generalizadas, sem

individualidade, sobre comportamentos ou características de determinados grupos.

Eisner (2013, p. 22) explica que, “nos quadrinhos, os estereótipos são desenhados a

partir de características físicas comumente aceitas e associadas a uma ocupação.

46

Para o autor Scott McCloud (1993), o cartum é uma forma de desenho na qual o artista elimina detalhes gerais e concentra-se em detalhes específicos, comuns a todos. Por meio da utilização do cartum é possível criar uma identificação maior com o leitor.

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Eles se tornam ícones e são usados como parte da linguagem na narrativa gráfica”.

Apesar da importância vital da imagem para os quadrinhos, acredita-se que essas

não devam se sobrepor ao texto, controlando a escrita. É a junção de ambas as

partes, quando bem executadas, que resulta em uma história rica, capaz de

sobreviver ao tempo. A história, por sua vez, é considerada por Will Eisner (2013, p.

6) como “o componente crítico de uma revista em quadrinhos”.

Os tipos das histórias contadas com a utilização do meio gráfico são diversos.

Por exemplo, por meio de métodos diferentes, pode-se narrar uma história instrutiva,

de vida, simbolista ou até mesmo sem trama. Porém, mesmo possuindo um leque

extenso de possibilidades de aplicação e estando presente como um meio popular

entre leitores há mais de meio século, os quadrinhos ainda buscam o

reconhecimento como um veículo legítimo. Enquanto o cinema – outra forma de

narrativa gráfica47 – já estabeleceu sua reputação, os quadrinhos ainda lutam para

conquistar seu espaço. Will Eisner (2013, p. 8) afirma que o meio sofreu “com os

comentários dos críticos literários, que achavam problemático decidir se os

quadrinhos seriam capazes de desenvolver corretamente os chamados “temas

sérios””.

Isso ocorre porque as histórias são compostas predominantemente por

imagens que, muitas vezes, chamam mais a atenção do leitor do que o conteúdo

literário da história; imagens essas “acusadas” de inibir a imaginação. Sabe-se que,

diferentemente do texto escrito, as imagens podem ser lidas universalmente. A

sobrepujança das imagens nos quadrinhos faz com que sejam classificados como

“de fácil leitura”, e isso, muitas vezes, é encarado como característica negativa.

Eisner (2013, p. 7) explica que a utilidade das histórias em quadrinhos “vem sendo

associada a uma parcela da população de baixo nível cultural e capacidade

intelectual limitada”. Tal afirmação pode ser considerada parcialmente verídica,

devido ao montante de histórias criadas simplesmente como uma forma de

“entretenimento barato”.

Entretanto, as histórias em quadrinhos, mesmo apropriando-se de

características de outras linguagens, como o desenho, a fotografia, o cinema e a

literatura, têm elementos próprios – assim como a forma de leitura –, que permitem

47

Nesta monografia será utilizada a definição de narrativa gráfica estabelecida pelo autor Will Eisner

(2013): uma descrição genérica de qualquer narração que usa imagens para transmitir ideias. Os filmes e as histórias se encaixam na categoria das narrativas gráficas.

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151

também serem consideradas como uma linguagem. Paulo Ramos (2009) pensa que

as tentativas de enquadrar os quadrinhos no campo de outras manifestações

artísticas socialmente aceitas – como a literatura, por exemplo – é um esforço para

justificar a existência das histórias e de remover o estigma negativo que carregam.

A premissa de Daniele Barbieri (1998, apud RAMOS, 2009), de que as

diferentes formas de linguagem não estão isoladas, mas sim interconectadas, é

defendida por Ramos. O fato, entretanto, não tira a autenticidade de cada uma

delas. “Os quadrinhos são quadrinhos. E, como tais, gozam de uma linguagem

autônoma, que usa mecanismos próprios para representar os elementos narrativos”

(RAMOS, 2009, p. 17).

Recursos de artes gráficas e da escrita fazem parte de uma linguagem

emancipada chamada de quadrinhos. Eisner (2013, p. 10) corrobora a afirmação de

Ramos em relação à autonomia desse tipo de histórias. Para o autor, “quando é

empregada como veículo de ideias e informação, essa linguagem se afasta do

entretenimento visual desprovido de pensamento”. A complexidade dos quadrinhos

é reconhecida também por Moacy Cirne (1972), que os defende como forma artística

e justifica sua inserção na cultura literária.

Os quadrinhos são menos simples do que aparentam: questionar o seu espaço criativo exige do crítico um sólido conhecimento dos mais diversos problemas sociais, culturais e artísticos. [...] É preciso saber ler formalmente os quadrinhos para que consigamos lê-los ideologicamente. (CIRNE, 1972, p. 12)

Nas narrativas em quadrinhos, a palavra – que surge na forma de balões –

aparece como um complemento da imagem. Para Eisner (2004, p.5), “apesar das

palavras serem um componente vital, a maior dependência para descrição e

narração está em imagens entendidas universalmente, moldadas com a intenção de

imitar ou exagerar a realidade”. As imagens nas narrativas quadrinísticas não são

sucessivas, assim como no cinema, mas sofrem cortes que indicam uma mudança

no tempo e no espaço. Os “vazios” causados na história em decorrência dos cortes

espaciotemporais devem ser preenchidos pela imaginação do leitor. Portanto, para

que o ritmo da história flua de forma correta, a precisão nos cortes é extremamente

importante. Os textos – tanto escritos quanto imagéticos – aliados aos cortes

requerem uma forma diferente de leitura. Para Cirne (2000, p. 25), os quadrinhos,

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mais do que o cinema e a televisão, “investem na possibilidade de uma leitura

radical [...] que se dá, ao mesmo tempo, de forma múltipla e simultânea”.

A similaridade mais significativa entre as narrativas gráficas – histórias em

quadrinhos e cinema – é a utilização da imagem como elemento primário. Segundo

Moacy Cirne (1972), ambos podem ser relacionados, pois expressam-se

semiologicamente através de imagens. Eduardo Neiva Jr (1986, p. 5) oferece uma

definição para imagem: “uma síntese que oferece traços, cores e outros elementos

visuais em simultaneidade”. De acordo com o autor, as imagens surgiram

primeiramente nas paredes das cavernas. Apenas mais tarde a folha de papel

tornou-se seu principal suporte e fonte de reprodução, oferecendo-lhe diversas

possibilidades.

A folha de papel é o suporte dos quadrinhos, enquanto a tela projeta as

imagens cinematográficas. Eisner (2013, p. 75) explica que “o cinema usa a

fotografia e uma tecnologia sofisticada a fim de transmitir imagens realistas” e os

quadrinhos estão limitados à impressão para narrar experiências. De acordo com

Cirne (1972), por meio dessa diferença nota-se que, enquanto a imagem

cinematográfica pode ser mais rica, a dos quadrinhos tende a ser mais complexa.

Entretanto, não se pode dizer que a única semelhança entre quadrinhos e cinema é

a utilização da imagem em si. A forma como essa é utilizada nas narrativas

quadrinizadas também sofre interferência direta do cinema. Cirne afirma que

a ilusão dinâmica no cinema será baseada não apenas na modificação dos personagens no espaço do campo visual mas também no modificar da posição da câmera e, nos quadrinhos, no manipular da superfície da imagem. Alguns dos principais movimentos de câmera usados em filmes (panorâmicas, travellings) encontrarão equivalentes nas estórias em quadrinhos. (CIRNE, 1972, p. 24)

Cada quadro, com seu plano e enquadramento – típicos do cinema –, é

cuidadosamente pensado e construído para transmitir ao leitor a ideia exata do que

se quer dizer. Dessa forma, pode-se pensar que a influência entre quadrinhos e

cinema é uma via de mão única, ou seja, que somente os quadrinhos “bebem da

fonte” do cinema. Entretanto, os quadrinhos também servem de inspiração para os

cineastas. Eisner (2013) explica que por não trabalhar com tempo real e movimento,

as histórias em quadrinhos podem inventar e distorcer a realidade por meio do uso

de caricaturas e maquinários que não funcionariam no mundo real. Um dos

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exemplos de liberdade criativa das narrativas quadrinísticas adaptada para o cinema

com sucesso é o uso de heróis uniformizados.

Contudo, a narrativa em sua forma completa apresenta imagens

complementadas por um texto. Uma boa história em quadrinhos, que explore ao

máximo todas as formas de narrar, depende tanto da elaboração de boas imagens

quanto da criação de um bom texto. O desenvolvimento da parte escrita dos

quadrinhos depende de um terceiro elemento, também presente nos universos

cinematográfico e televisivo: o roteiro. Para Eisner (2013, p. 116), “o texto que é

traduzido na dramatização gráfica [...] deve se adaptar à mecânica da forma”. Na

concepção de um roteiro de uma história em quadrinhos o elemento dominante é a

ideia. Portanto, as descrições mais aprofundadas servem para guiar o artista que irá

desenhar.

Eisner (2013, p. 117) também explica que “um roteiro para quadrinhos que

descreve as nuances psicológicas de um personagem faz isso na esperança de que

a arte transmitirá de modo adequado essa internalização”. Portanto, tratando-se da

composição de uma história em quadrinhos, há duas pessoas trabalhando: o

roteirista, responsável por elaborar os diálogos (balões) e as descrições de cena; e o

artista – ou tradutor gráfico –, incumbido de transformar as descrições em imagens.

Entretanto, apesar de a criação de uma história “a quatro mãos” – ou até mais

– ser algo corriqueiro, muitos quadrinistas trabalham sozinhos, atuando tanto na

criação de roteiro quanto no desenvolvimento da arte. O trabalho de Joe Sacco, em

Palestina, condiz com a última descrição. Flávio Campos (2007) afirma que

roteiristas, cineastas e jornalistas percorrem um caminho semelhante na construção

de uma narrativa. Todos se deparam com uma massa de incidentes a partir da qual

irão compor a narrativa.

Contudo, no caso dos jornalistas, os incidentes não são imaginados, mas sim

coletados, e a narrativa será construída em forma de reportagem. Campos (2007)

explica que existe uma forma de facilitar a estruturação da massa de “estórias” em

narrativas que é conhecida e bastante utilizada, tanto pelos roteiristas quanto pelos

profissionais do Jornalismo. Cinco perguntas – ou cinco lacunas – que devem ser

respondidas – ou preenchidas: Quem, o quê, onde, por quê, para quê, quando e

como.

Novamente, a construção do lead se faz necessária na elaboração da narrativa

jornalística e jornalístico-literária. Assim como nas histórias em quadrinhos ordinárias

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deve haver, em um primeiro momento, a elaboração de um roteiro fictício, na

construção do livro-reportagem em quadrinhos Palestina, o jornalista Joe Sacco,

através da coleta de dados – ou massa de “estórias coletadas”, como chamadas por

Campos – elaborou o roteiro que culminou em sua grande-reportagem.

Os principais elementos constituintes da obra Palestina, que caracteriza-se

como um produto elaborado com a utilização de diferentes linguagens, são oriundos

das histórias em quadrinhos, do Jornalismo – e Jornalismo Literário – e do cinema.

Tendo em vista cada um desses fatores e considerando-os separadamente, a

intenção deste trabalho é analisar como as diferentes linguagens comportam-se

quando utilizadas na composição de uma grande-reportagem e, por fim, o objetivo

principal é descobrir como é construída a narrativa jornalístico-literária no livro-

reportagem em quadrinhos Palestina. Espera-se que essa monografia seja de

grande valia para futuras pesquisas da área da Comunicação, com foco no estudo

do Jornalismo Literário e dos quadrinhos.

2 TEMA

Novas formas de narrativa jornalística a partir dos quadrinhos.

2.1 DELIMITAÇÃO DO TEMA

Jornalismo no livro-reportagem em quadrinhos Palestina.

JUSTIFICATIVA

No final do século XIX, o escritor anglo-judeu Israel Zangwill48, líder do

movimento sionista49 britânico, criou o slogan “uma terra sem povo para um povo

sem terra” (SAID, 2012). A terra sem povo à qual Zangwill se referia chama-se

Palestina; o povo sem terra é o de Israel. A pretensão dos judeus em ocupar as

48

Israel Zangwill nasceu em Londres em janeiro de 1864 e morreu em agosto de 1926. Foi um autor judeu que esteve à frente do sionismo cultural durante o século XIX. Fonte: Wikipédia. Disponível em <https://en.wikipedia.org/wiki/Israel_Zangwill>. Acesso em: 21/10/2015. 49

O sionismo foi o movimento que resultou na criação de um Estado independente para os judeus no território palestino. Com a realização do Primeiro Congresso Sionista, em 1897, os sionistas marcaram seu nome na história. O nome do movimento vem de uma colina em Jerusalém chamada Sion. Fonte: InfoEscola. Disponível em: <http://www.infoescola.com/historia/sionismo/>. Acesso em: 22/10/2015.

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terras do território palestino é tão antiga quanto os confrontos entre os dois povos,

que remontam há aproximadamente dois mil anos antes de Cristo. Porém, sempre

que o discurso da ocupação é reverberado, - assim como o fez Zangwill – ignora-se

o fato mais relevante do conflito, que coloca a historia a favor dos árabe-palestinos:

a Palestina nunca foi uma terra sem povo.

Os palestinos, mesmo constituindo um Estado legítimo – possui um território,

uma população e um governo –, não puderam livrar-se da opressão e perseguição

contínua por parte dos sionistas. Para os judeus, os habitantes da Palestina não

consistem um povo, mas resumem-se a um grupo.

na maior parte de sua história, a Palestina e seu povo foram submetidos a negações muito rigorosas. Para mitigar a presença de um grande número de nativos numa terra cobiçada, os sionistas se convenceram de que eles não existiam e, em seguida, admitiram que existiam apenas da maneira mais rarefeita. Primeiro negação, depois obstrução, diminuição,

silenciamento, confinamento. (SAID, 2012, p. 22)

A atitude de Israel em relação à Palestina perdura há tanto tempo devido às

relações entre o país e outras nações que controlam o jogo de poder internacional e

têm interesses na ocupação do território palestino pelos judeus. Os Estados Unidos

é uma das grandes potências que tem auxiliado Israel em seus avanços contra o

país vizinho. Celso Lafer (19.. apud SOARES, 1989) afirma que o poder de veto que

China, Estados Unidos, França, Rússia e Reino Unido detém junto ao Conselho de

Segurança das Nações Unidas tem permitido aos EUA vetar qualquer resolução

contra Israel.

O vínculo entre Israel e Estados Unidos é antigo. O país norte-americano tem

Israel – seu maior beneficiário de assistência militar e econômica –, como um

elemento político essencial no Oriente Médio. Por essas razões, a Palestina

conquistou mais um inimigo, mesmo que implicitamente. Os interesses políticos de

um país podem, muitas vezes, interferir no tratamento dado às notícias pelas

grandes empresas de comunicação. O reflexo disso é a cobertura midiática

americana dos conflitos entre Palestina e Israel.

A abordagem unilateral norte-americana foi um dos motivos levou o jornalista

Joe Sacco a escrever/desenhar o livro-reportagem em quadrinhos Palestina, objeto

de estudo desta monografia. Sacco (2011, p. XIV) relata que o tratamento dado ao

assunto pela mídia estadunidense não só deixava a desejar, mas era vergonhoso.

“Sentia que não me informava em absoluto [...] eu não fazia ideia de quem eram os

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palestinos ou o que almejavam em sua luta. Na verdade [...] eu associava os

palestinos ao terrorismo”.

A sensação resultante da “ignorância” em relação ao que realmente se

passava dentro das fronteiras palestinas conduziu Sacco ao país. Durante os dois

meses que passou na Palestina, o jornalista coletou fatos, conheceu pessoas, ouviu

histórias e enfrentou, mesmo que por pouco tempo, a repressão encarada

diariamente pela população local. Essa imersão profunda nos fatos e no ambiente,

característica das grandes-reportagens, resultou no livro-reportagem Palestina.

O repórter é [...] enviado a um lugar para ver, ouvir, sentir, anotar e, finalmente, relatar o acontecimento. Mas não bastam os elementos assim colhidos do testemunho: o jornalista deve compreender, tão perfeitamente quanto possível, aquilo de que é testemunha, a fim de que o leitor possa compreender também. O seu testemunho não será um entre outros que permitirão ao destinatário fazer uma síntese do acontecimento. Por si só, constituirá a informação servida a todo o seu público sem possibilidades de verificação. Por outras palavras: a reportagem tem de ser um testemunho fiel e completo. (GAILLARD, 1974, p. 50)

O testemunho de Sacco apresentou ao público uma visão inédita sobre a

região, porque o jornalista elaborou sua obra a partir do ponto de vista dos

palestinos. Sacco escolheu a linguagem dos quadrinhos para contar sua grande-

reportagem. Aliando a narrativa jornalístico-literária à quadrinística, o jornalista

ampliou suas possibilidades de explorar o conteúdo. Utilizando o texto e as imagens

inerentes às histórias em quadrinhos – que por si só são um meio que carrega

características de diferentes linguagens – o autor pôde expandir seus relatos e

agregar informações à grande-reportagem.

Sacco não foi o único autor a se interessar pelas histórias ilustradas. De

acordo com Eisner (2013, p. 31), devido aos avanços tecnológicos de impressão e

produção ocorridos durante a década de 1970, os quadrinhos atraíram o interesse

de artistas, escritores e editores. “Nessa forma de narrativa gráfica, o escritor e o

artista preservam sua soberania porque a história vem do texto e é embelezada pela

arte”.

Assim como Sacco, outros escritores/quadrinistas expuseram as dificuldades

da vida no Oriente Médio utilizando-se da narrativa dos quadrinhos e foram muito

bem sucedidos. Porém, nestes casos, diferentemente de Sacco, o trabalho dos

demais autores é autobiográfico. O que há de comum entre as histórias, além da

região geográfica retratada, é o fato de todas apresentarem aos leitores um mundo

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157

pouco conhecido pelo Ocidente, além de desmistificarem aspectos de determinadas

civilizações – com suas culturas e crenças –, estigmatizadas por tantos conflitos.

Uma das obras elaboradas nesse contexto chama-se O Árabe do Futuro:

Uma juventude no Oriente Médio (1978 a 1984), e foi escrita por Riad Sattouf. Filho

de um sírio e uma bretã, o quadrinista parisiense descreve o período da sua infância

durante o qual morou na Líbia de Muamar Kadafi e na Síria de Hafez al-Assad. O

autor relata suas percepções sobre o que o cercava quando ainda era um pequeno

menino loiro, forçado por seu pai a adaptar-se a culturas diferentes da europeia. O

Árabe do Futuro foi publicado pela primeira vez na França, em 2014, pela Allary

Éditions. No Brasil, o livro foi lançado em 2015 pela editora Intrínseca. No segundo

volume da obra, ainda não lançado no Brasil, Sattouf revisita seu passado entre os

anos 1984 e 1985.

A segunda obra que apresenta ao mundo as adversidades e desafios

enfrentados por crianças e adolescentes no Oriente Médio foi escrita pela franco-

iraniana Marjane Satrapi e chama-se Persépolis. A história começa em 1979, ano do

início da Revolução Islâmica, que terminou com o Irã sob o controle Xiita. Na época,

Satrapi tinha dez anos e foi obrigada, pela primeira vez, a usar o véu para frequentar

a escola. “Eu não sabia o que pensar do véu. Eu era bem religiosa, mas, juntos, eu e

meus pais éramos bem modernos e avançados” (SATRAPI, 2014, p. 4).

O episódio do véu, e outros tantos provenientes de imposições religiosas

sofridas pela quadrinista, são narrados na autobiografia em quadrinhos. A história de

Persépolis termina em 1994, ano quem que Satrapi completou 25 anos e partiu

definitivamente do Irã para a França. O obra foi lançada originalmente na França,

em quatro volumes – em 2000, 2001, 2002 e 2003 – pela Editora L'Association. No

Brasil, uma versão completa foi lançada em 2007, pela Companhia das Letras.

Enquanto Sattouf e Satrapi são movidos pela vontade de mostrar parte de sua

vida às pessoas, no sentido de fazê-las entender melhor outras realidades, Sacco

busca o entendimento da realidade alheia. Todos os livros abordam conteúdos

densos e críticos. Em Palestina, por exemplo, o jornalista fala de um povo oprimido,

que convive diariamente com a violência, a humilhação e acredita não ter poder

algum sobre a própria vida.

Portanto, nos três casos, a opção pelos quadrinhos é a acertada, pois a

narrativa quadrinística acrescenta “leveza” às histórias, além de funcionar como uma

“válvula de escape” para fugir da rotina. Christopher Knowles (2008, p. 237-238)

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afirma que “o constante rufar de tambores de guerra e do terrorismo, tornam as

histórias [...] mais relevantes e viscerais, e bem mais reconfortantes e

tranquilizadoras”. Por tratarem-se de histórias em quadrinhos, as obras alcançaram

públicos que possivelmente não se interessariam pelos materiais, caso fossem

divulgados de outra forma.

Deve-se salientar que a narrativa quadrinística não prejudica o conteúdo, que

não perde em seriedade e consistência. Afinal, “é necessário que, no interior da

imagem, haja espaço para a reflexão, para a crítica, para o questionamento”

(CIRNE, 2000, p. 135). Em Palestina, para expor as facetas desconhecidas da

região, levantar questionamentos e fazer críticas fundamentadas, Sacco tem como

alicerce as ferramentas jornalísticas e jornalístico-literárias. Para Marconi Oliveira da

Silva (2006, p. 93), o Jornalismo é o responsável por evidenciar os fatos que

revelam valores e crenças de uma sociedade. Entretanto, Silva ressalta que o mérito

dos fatos jornalísticos está nas fontes, pois “suas ações vão mapeando os

significados do mundo, descobrindo relações e mostrando os sistemas de

conhecimento e comunicação”.

Com Palestina, Joe Sacco construiu um produto híbrido, resultado da reunião

de diferentes linguagens, como a dos quadrinhos, da literatura e do próprio

Jornalismo. Pode-se dizer que esse hibridismo é seu grande diferencial perante

outras obras, tanto no âmbito jornalístico quanto das histórias em quadrinhos.

Construir uma narrativa jornalística por meio dos quadrinhos, por si só, significa uma

forma de renovação e oxigenação do Jornalismo tradicional. Porém, a alternativa

escolhida por Sacco, por razões ideológicas e editoriais das empresas de

comunicação, está longe de tornar-se usual. Por sua ousadia no conteúdo, caráter

inovador e por suas contribuições ao Jornalismo, Palestina constitui-se em um ótimo

objeto de estudo.

4 QUESTÃO NORTEADORA

Como é construída a narrativa jornalístico-literária no livro-reportagem em

quadrinhos Palestina?

5 HIPÓTESES

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6. A utilização da narrativa em quadrinhos para a construção de uma grande

reportagem significa uma renovação na linguagem jornalística no âmbito do

Jornalismo Literário.

7. O livro-reportagem em quadrinhos Palestina é um produto jornalístico híbrido,

no sentido de que é o resultado da mistura de diferentes linguagens.

8. As imagens são fundamentais na construção da narrativa jornalístico-literária

de Joe Sacco em Palestina.

9. Os depoimentos descritos no livro-reportagem Palestina permitem ao leitor

um entendimento dos aspectos sociais, religiosos e históricos que influenciam

diretamente nos conflitos entre os palestinos e israelenses.

10. A imersão na situação sobre a qual se está reportando é imprescindível para

a construção de um livro-reportagem, pois para entender as circunstâncias do

acontecimento, o jornalista precisa vivê-las.

6 OBJETIVOS

6.1 Objetivo geral

Analisar as narrativas em quadrinhos enquanto atividade jornalística.

6.2 Objetivos específicos

1. Analisar quais as contribuições da narrativa quadrinística ao Jornalismo

Literário.

2. Descobrir quais as mudanças sofridas pela narrativa jornalístico-literária na

adaptação aos quadrinhos.

3. Apresentar os quadrinhos como uma forma de linguagem autônoma.

4. Evidenciar a importância da imagem na construção do discurso de Joe Sacco

em Palestina.

5. Analisar qual a influência dos aspectos sociais, religiosos e históricos da

região da Palestina na narrativa jornalística de Joe Sacco.

6. Analisar a importância do aprofundamento dos processos jornalísticos na

construção da grande-reportagem em quadrinhos Palestina.

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160

METODOLOGIA

A relação da pesquisadora com as histórias em quadrinhos começou ainda na

infância, antes mesmo do despertar do interesse pelo Jornalismo. Assim sendo,

Palestina é uma obra que reúne dois aspectos de fascínio. Neste caso, o jornalista

Joe Sacco representa o perfil do profissional a ser seguido. Guiado pela inquietude,

Sacco sai de sua zona de conforto, chega a um lugar diferente, moldado por anos de

conflito, por vezes inóspito – pelo menos para um jornalista ocidental com o intuito

de expor problemas – e consegue elaborar um produto jornalístico de vanguarda.

Durante o período em que permaneceu nos territórios palestinos coletando

dados para a elaboração da grande-reportagem, criou-se um vínculo forte entre o

autor e o país. Prova disso é a obra Notas Sobre Gaza, lançada por Sacco uma

década após seu premiado relato em quadrinhos chegar às livrarias. Porém, por

sua abrangência e qualidade – técnica e jornalística – a análise desta monografia se

restringirá ao seu trabalho mais conhecido: Palestina.

Para explorar a narrativa em quadrinhos enquanto atividade jornalística e

analisar como foi construída a narrativa jornalístico-literária no livro-reportagem

Palestina, considerado nesse trabalho uma grande-reportagem em quadrinhos, a

pesquisa se dará de forma qualitativa. Diferentemente da pesquisa quantitativa, que

trabalha com números e modelos estatísticos, “a pesquisa qualitativa evita números,

lida com interpretações das realidades sociais, e é considerada pesquisa soft”

(BAUER; GASKELL, 2008, p.23).

Para A. L. George (1959, apud BARDIN, 2000, p. 21), o que serve de

informação para a pesquisa qualitativa é a presença ou ausência de determinada

característica de conteúdo – ou um conjunto de características –, no fragmento de

mensagem que está sendo estudado. Esse ramo de pesquisa pode ser considerado

mais intuitivo e maleável do que o relacionado à pesquisa quantitativa.

A análise qualitativa apresenta certas características particulares. É válida, sobretudo, na elaboração de deduções específicas sobre um acontecimento ou uma variável de inferência precisa, e não em inferências gerais [...] Pode-se dizer que o que caracteriza a análise qualitativa é o facto de a inferência – sempre que é realizada – ser fundada na presença do índice (tema, palavra, personagem, etc.), e não sobre a frequência da sua aparição, em cada comunicação individual. (GEORGE, 1959, apud BARDIN, 2000, p. 115-116)

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Os métodos necessários para chegar aos resultados pretendidos, que serão

utilizados neste trabalho, são a Análise de Conteúdo e a Análise de Discurso, tendo

a Pesquisa Bibliográfica como procedimento metodológico.

7.1 PESQUISA BIBLIOGRÁFICA

Para descobrir como é construída a narrativa jornalística literária no livro-

reportagem em quadrinhos Palestina, primeiramente será preciso analisar,

separadamente, os principais conteúdos que compõem a obra. Antes de chegar à

grande-reportagem em si, será preciso esclarecer o que é Jornalismo, qual o papel

do Jornalismo Literário dentro do campo jornalístico; o que são histórias em

quadrinhos e de quais linguagens elas são derivadas. Para elucidar as questões

centrais acerca de tais temas, será necessário buscar referências no trabalho de

autores versados nos assuntos de interesse para essa monografia. Portanto, a

pesquisa bibliográfica é indispensável. Para Ida Regina Stumpf (2010), a pesquisa

bibliográfica

é um conjunto de procedimentos que visa identificar informações bibliográficas, selecionar os documentos pertinentes ao tema estudado e proceder à respectiva anotação ou fichamento das referências e dos dados dos documentos para que sejam posteriormente utilizados na redação de um trabalho acadêmico. (STUMPF, 2010, p. 51)

Para Antonio Carlos Gil (2002, p. 44), “a pesquisa bibliográfica é desenvolvida

com base em material já elaborado, constituído principalmente de livros e artigos

científicos”. Gil explica que a revisão da bibliografia é primordial para praticamente

todos os estudos, embora existam algumas pesquisas desenvolvidas somente a

partir das fontes bibliográficas. “Pesquisas sobre ideologias, bem como aquelas que

se propõem à análise das diversas posições acerca de um problema [...] costumam

ser desenvolvidas quase exclusivamente mediante fontes bibliográficas” (GIL, 2002,

p. 44). A pesquisa bibliográfica será contínua durante a construção da presente

monografia, pois é por meio dela que será possível, conceitualmente, “cercar” o

objeto de estudo.

7.2 ANÁLISE DE CONTEÚDO

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A Análise de Conteúdo é pertinente à proposta desta monografia, pois é “um

conjunto de instrumentos metodológicos [...] que se aplicam a discursos

extremamente diversificados” (BARDIN, 2000, p. 9). O método se aplica, pois o

discurso em Palestina, por tratar-se de uma grande-reportagem em quadrinhos,

aparece sob diferentes formas. Além do texto escrito, concebido pelas falas dos

“personagens” e descrições do autor, há texto imagético, cuidadosamente elaborado

por Joe Sacco para conferir credibilidade ao seu trabalho.

Mesmo sendo empregada primordialmente no âmbito das ciências empíricas,

as pesquisas qualitativas, assim como esta, utilizam-se cada vez mais deste método

de análise.

Embora a maior parte das análises clássicas de conteúdo culminem em descrições numéricas de algumas características do corpus do texto, considerável atenção está sendo dada aos “tipos”, “qualidades”, e “distinções” no texto, antes que qualquer quantificação seja feita. Deste modo, a análise de texto faz uma ponte entre um formalismo estatístico e a análise qualitativa dos materiais. No divisor quantidade/qualidade das ciências sociais, a análise de conteúdo é uma técnica híbrida que pode mediar esta improdutiva discussão sobre virtudes e métodos” (BAUER; GASKELL, 2008, p. 190).

Laurence Bardin (2000) divide Análise de Conteúdo em três diferentes fases:

pré-análise; exploração do material; tratamento dos resultados, a inferência e a

interpretação. A primeira delas trata da organização das ideias iniciais, dos materiais

de estudo e do esquema de análise que será utilizado durante a pesquisa. Bardin

(2000, p. 95) divide a primeira fase em três partes: “a escolha dos documentos a

serem submetidos à análise, a formulação das hipóteses e dos objetivos e a

elaboração de indicadores que fundamentem a interpretação final”. Porém, não há

uma ordem determinada para que elas aconteçam.

Na segunda fase, o pesquisador coloca em prática as decisões tomadas

durante a pré-análise. “Esta fase [...] consiste essencialmente em operações de

codificação, desconto ou enumeração” (BARDIN, 2000, p. 101). Depois da

organização e estudo dos textos, nesta fase o pesquisador pode escolher os

recortes com os quais deseja trabalhar, dividindo o material em categorias. Nesta

monografia, a análise será feita por assuntos, que serão agrupados em três

categorias: uma delas ligada à parte visual, outra à textual e uma terceira à

intersecção de ambas.

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Na primeira delas, que irá explorar os conteúdos visuais, encaixam-se os

seguintes temas: imagem; estilo de desenho; planos e enquadramentos; construção

visual dos personagens; utilização de fotografias na narrativa. Na segunda categoria,

na qual serão estudados os elementos textuais, estão os seguintes conteúdos: texto

jornalístico-literário; texto nos quadrinhos; construção textual dos personagens;

traços do humor no texto do autor. Na terceira e última, serão abordados os

aspectos que se interpenetram e que, para não perderem seu valor como

características intrínsecas ao objeto de estudo, não podem ser analisados

separadamente. São eles: jornalista/personagem;

Na terceira fase descrita por Bardin (2000), ocorre a análise dos resultados

brutos, conquistados durante o restante do processo. Segundo a autora, o

pesquisador, com os resultados disponíveis, pode propor interpretações e

inferências a respeito dos objetivos esperados ou de descobertas imprevistas.

7.3 ANÁLISE DO DISCURSO

De acordo com Laurence Bardin (2000, p 214), todo discurso, ou um conjunto

de discursos, é determinado por condições de produção e por um sistema

linguístico. “Desde que se conheçam as condições de produção e o sistema

linguístico, pode-se descobrir a estrutura organizadora ou processo de produção,

através da análise da superfície semântica e sintáctica [sic] deste discurso”. Para

Martin W. Bauer e George Gaskell

é proveitoso pensar a análise de discurso como tendo quatro temas principais: uma preocupação com o discurso em si mesmo; uma visão da linguagem como uma forma de ação; e uma convicção na organização retórica do discurso. Em primeiro lugar, então, ela toma o próprio discurso como seu tópico. O termo “discurso” é empregado para se referir a todas as formas de fala e textos. (BAUER; GASKELL, 2008, p. 247)

Essa forma de análise refuta a ideia de que o discurso é uma forma de reflexão

neutra e o trata como uma peça essencial na construção da vida social.

8 REVISÃO BIBLIOGRÁFICA

A análise do objeto de estudo desta monografia, a grande-reportagem em

quadrinhos Palestina, será embasada no referencial teórico. É por meio de

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conteúdos elaborados por estudiosos das áreas do Jornalismo e dos quadrinhos que

será possível explorar o livro-reportagem sob seus mais variados aspectos.

8.1 JORNALISMO

No âmbito do jornalismo, o livro Teorias do Jornalismo: Por que as notícias

são como são, de Nelson Traquina (2004), foi fundamental para a construção deste

trabalho. Na obra, o autor discorre, de forma rica, sobre pontos imprescindíveis em

relação ao assunto. Traquina parte de uma definição do que é o Jornalismo para

então adentrar a história deste na Democracia, passando pelo jornalismo como

profissão e por seu polo ideológico, até chegar às principais teorias.

Miquel Rodrigo Alsina (2009), em A Construção da Notícia, guiou o trabalho

no sentido de esclarecer os principais aspectos em relação à construção da notícia,

abordando sua produção, circulação e consumo. Tratando-se de reportagem,

Técnica de reportagem: Notas sobre a narrativa jornalística, de Muniz Sodré e Maria

Helena Ferrari (1986) foi de extrema importância para o presente projeto. Com um

enfoque descritivo sobre o gênero jornalístico e utilizando-se de exemplos extraídos

de jornais e revistas do Brasil, os autores criaram um manual esclarecedor e prático

sobre reportagens.

8.1.2 Jornalismo Literário

A obra Jornalismo Literário, de Felipe Pena (2006), foi importante para o

trabalho no sentido de explicitar o que realmente é o chamado Jornalismo Literário.

Pena explica o conceito do gênero (como o autor define) e como ele potencializa os

recursos do Jornalismo diário, possibilitando relatos com mais profundidade. Dentro

da esfera do Jornalismo Literário, o livro Páginas Ampliadas: O livro-reportagem

como extensão do jornalismo e da literatura, de Edvaldo Pereira Lima (2004), foi

essencial para a construção da pesquisa. Na obra, o autor buscou, além de

evidenciar as principais noções do livro-reportagem, dimensionar seu alcance,

identificar sua diversidade e sistematizar o conhecimento desta figura do universo

jornalístico.

8.2 HISTÓRIAS EM QUADRINHOS

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Will Eisner (2013) e sua obra Narrativas Gráficas: princípios e práticas da

lenda dos quadrinhos, deram o tom deste trabalho, tratando-se de histórias em

quadrinhos. O autor, conhecido e respeitado mestre quadrinista, criou com essa

obra um guia, tanto para estudantes quanto para profissionais da área, que discute

os principais aspectos da narrativa gráfica, ou seja, aquela que une texto e imagem.

Utilizando exemplos reais, Eisner discorre sobre praticamente todas as etapas de

construção de uma história em quadrinhos.

Desvendando os Quadrinhos, de Scott McCloud (2005) também foi de

extrema importância. No mesmo estilo de Eisner, McCloud explica, um a um, os

elementos que compõe uma história em quadrinhos. De forma inusitada, o autor

utiliza os quadrinhos para examinar o próprio meio. Devido à utilização dessa forma

de narrativa, o livro é de fácil leitura e compreensão.

8.3 METODOLOGIA

A autora Laurence Bardin (2000) foi a principal referência, tratando-se de

metodologia. Em seu livro Análise de Conteúdo, Bardin apresenta, detalhadamente,

a análise de conteúdo como uma das possíveis formas de tratamento de dados em

pesquisa. A autora também explica quais suas principais fases e como colocá-la em

prática.

Martin W. Bauer e George Gaskell (2008), com a obra Pesquisa Qualitativa

com Texto, Imagem e Som: um manual prático, elucidaram o trabalho no sentido de

descrever os processos da pesquisa qualitativa, bem como da pesquisa bibliográfica

e da análise de discurso. O livro, escrito de forma clara e didática, está repleto de

informações de grande valia para a monografia.

A partir das noções oferecidas por estes autores em suas obras, foi possível

compreender os mecanismos tanto do Jornalismo – e do Jornalismo Literário –

quanto das histórias em quadrinhos. Além disso, os conceitos possibilitaram um

melhor entendimento do objeto de pesquisa e a identificação dos aspectos

pertencentes a cada uma das áreas estudadas. Analisado sob essas definições, os

benefícios, bem como as dificuldades, de elaborar uma obra como Palestina ficaram

ainda mais claros.

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9 ROTEIRO DOS CAPÍTULOS

1 – INTRODUÇÃO

2 – JORNALISMO

2.1 – A PRODUÇÃO JORNALISTICO-LITERÁRIA E SUAS RAMIFICAÇÕES

2.1 – O JORNALISMO HÍBRIDO

3 – HISTÓRIAS EM QUADRINHOS

3.1 – HISTÓRIA

3.2 – LINGUAGEM E SUAS CARACTERÍSTICAS

3.3 – ALÉM DOS SUPER-HERÓIS

4 – PALESTINA

4.1 – HISTÓRIA

4.2 – CONFLITO PALESTINA X ISRAEL

5 – METODOLOGIA

5.1 – MÉTODOS

5.1.1 – Análise de Conteúdo

5.2.2 – Análise de Discurso

6 – PALESTINA

6.1 – ANÁLISE

7 - CONSIDERAÇÕES FINAIS

10 CRONOGRAMA

Mês Atividade

Janeiro Leituras sobre Jornalismo e Histórias em Quadrinhos e início da produção dos capítulos teóricos

Fevereiro Produção dos capítulos teóricos

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167

Março Produção dos capítulos teóricos

Abril Metodologia

Maio Análise

Junho Análise e Considerações Finais

Julho Correções e entrega da Monografia

REFERÊNCIAS

Livros

BARDIN, Laurence. Análise de Conteúdo. Edições 70, São Paulo. 2000. BAUER, Martin W.; GASKELL, George (Ed.). Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som: um manual prático. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008. CAMPOS, Flavio de. Roteiro de cinema e televisão: a arte e a técnica de imaginar, perceber e narrrar uma estória. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2007. CIRNE, Moacy. Para ler os quadrinhos: da narrativa cinematográfica à narrativa quadrinizada. Petrópolis, RJ: Vozes, 1972. ______. Quadrinhos, sedução e paixão. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000. EISNER, Will. Narrativas gráficas: princípios e práticas da lenda dos quadrinhos. São Paulo: Devir, 2013. GAILLARD, Philippe. O jornalismo. Lisboa: Publicações Europa-América, 1974. 118 p. GIL, Antonio Carlos. Como elaborar projetos de pesquisa. São Paulo: Atlas, 2002. KNOWLES, Christopher. Nossos deuses são super-heróis: A história secreta dos super-heróis das histórias em quadrinhos. São Paulo: Cultrix, 2008. LIMA, Alceu Amoroso. O Jornalismo Como Gênero Literário. Com-Arte, São Paulo, 1990. LIMA, Edvaldo Pereira. Páginas ampliadas: o livro-reportagem como extensão do jornalismo e da literatura. Barueri, SP: Manole, 2004. MCCLOUD, Scott. Desvendando os quadrinhos. São Paulo: M. Books, 2005. PENA, Felipe. Jornalismo literário. São Paulo: Contexto, 2006.

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168

RAMOS, Paulo. A leitura dos quadrinhos. São Paulo: Contexto, 2009. RODRIGO ALSINA, Miquel. A construção da notícia. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009. ROSSI, Clóvis. O que é jornalismo. São Paulo: Brasiliense, 1994. SACCO, Joe. Palestina: edição especial. São Paulo: Conrad, 2011. SAID, Edward W. A questão da Palestina. São Paulo: Unesp, 2012. SATRAPI, Marjane. Persépolis: completo. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. SILVA, Marconi Oliveira da. Imagem e verdade: jornalismo, linguagem e realidade. São Paulo: Annablume, 2006. SOARES, Jurandir. Israel x Palestina: as raízes do ódio. Porto Alegre: Universidade Federal do RGS, 1989. SODRÉ, Muniz; FERRARI, Maria Helena. Técnica de reportagem: notas sobre a narrativa jornalística. São Paulo: Summus, 1986. STUMPF, Ida Regina C. Pesquisa bibliográfica. In DUARTE, Jorge; BARROS, Antonio (org.). Métodos e técnicas de pesquisa em comunicação. (p. 51-61). São Paulo: Atlas, 2010. TRAQUINA, Nelson. Teorias do jornalismo. Florianópolis: Insular, 2004-2005. Sites AMERICAN BOOK AWARDS. In: Wikipédia, a enciclopédia livre. Disponível em: <https://en.wikipedia.org/wiki/American_Book_Awards>. Acesso em: 19 out. 2015. ISRAEL ZANGWILL. In: Wikipédia. Disponível em: <https://en.wikipedia.org/wiki/Israel_Zangwill>. Acesso em: 21 out. 2015. SIONISMO. In: InfoEscola. Disponível em: <http://www.infoescola.com/historia/sionismo/>. Acesso em: 22 out. 2015. TRUMAN CAPOTE. In: Wikipédia. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Truman_Capote>. Acesso em: 19 out. 2015. WILLIAM BURKE MILLER. In: Wikipédia. Disponível em: <https://en.wikipedia.org/wiki/William_Burke_Miller>. Acesso em: 19 out 2015.