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UNIVERSIDADE DE LISBOA
FACULDADE DE DIREITO
ANÁLISE JURÍDICA DO CONCEITO DE DESENVOLVIMENTO
SUSTENTÁVEL
NA JURISPRUDÊNCIA DO TRIBUNAL INTERNACIONAL DE JUSTIÇA
JOSEFA CARLOTA BRITO VICENTE
ORIENTADOR: PROFESSORA DOUTORA RUTE SARAIVA
MESTRADO EM DIREITO E ECONOMIA
2017
Aos meus pais a quem amo de forma incondicional,
à minha irmã Marisa, minha companheira,
à felicidade do meu irmão Miguel
e aos meus sobrinhos, Laura e Tomé,
que preenchem a minha vida de sentido
Agradecimentos
Em primeiro lugar queria agradecer à minha professora e orientadora Rute
Saraiva que pela sua singularidade numa casa como a FDL sempre suscitou a minha
admiração. Ser-lhe-ei sempre grata por me ter ensinado a gostar de economia e por,
mais tarde, me ter dado a conhecer o assunto que é hoje o meu tema de tese.
Um agradecimento aos meus pais porque lhes devo tudo, pelo exemplo e pela
força de carácter que me transmitiram. A ti mãe pelo teu enorme coração e apoio
incondicional e a ti pai, pela integridade e valores que me transmitiste. Sei o quanto
as minhas conquistas são as vossas.
Um agradecimento à minha irmã Marisa e segunda Mãe, uma companheira de
vida e ao meu meu irmão Miguel, que tanto me transmitiu o gosto pelo saber.
Um agradecimento ainda à Maria da Luz, à avó que nunca tive e que sempre
acreditou em mim mais do que eu mesma. Obrigada e abracinho em oração como
sempre responde às minhas mensagens.
Por fim e não menos importante um agradecimento a esta casa que é a faculdade
de direito da Universidade de Lisboa pela dura aprendizagem que foram os anos de
licenciatura. Hoje sei que recebi o melhor ensino que poderia ter recebido.
Resumo
O desenvolvimento sustentável tem sido sistematicamente utilizado no seio da
comunidade internacional. Um conceito que apesar de grandemente acolhido, resta
indeterminado quanto à sua natureza jurídica.
O presente trabalho pretende assim fazer uma análise jurídica deste conceito
apoiando-se na jurisprudência do Tribunal Internacional de justiça. Antes de passar
diretamente para a análise do Direito internacional e das Convenções das Nações
Unidas, onde nasceu este conceito, bem como da sua aplicação pelo TIJ, pareceu-nos
necessário fazer uma resenha sobre os diferentes paradigmas da ciência, que
conformaram todo o pensamento moderno e do qual ainda hoje se sente a sua
influência na forma como é entendida a racionalidade. Pretendemos assim mostrar
como estes paradigmas estiveram na origem da crença no progresso ilimitado e numa
representação errada da relação do homem com a natureza, o que esteve na origem da
degradação ambiental em primeiro lugar.
Depois duma resenha pelos paradigmas da ciências focamo-nos na natureza
jurídica do conceito de desenvolvimento sustentável, nomeadamente na questão de
saber se ele pode ser visto como um princípio geral de direito internacional. O que
impõe não apenas uma análise do direito internacional nesta matéria e da
jurisprudência do TIJ mas requer também uma passagem pelo pensamento jurídico,
nomeadamente um retorno à querela entre positivistas e jusnaturalistas, levando-nos
ao fundamento do direito.
Palavras chaves: Desenvolvimento sustentável, Tribunal Internacional de Justiça, Jurisprudência, Direito Internacional, Princípios gerais de direito, pensamento jurídico
Abstract
The concept of sustainable development has been systematically mentioned
over the years in the international community. A concept endorsed by the
International community as a whole, still lacking a precise legal clarity and a precise
meaning. By the present work we intend to undertake a juridical analysis regarding
this concept, doing so by carrying further research into the International Court of
Justice jurisprudence.
Before analysing the ICJ jurisprudence and the UN Conferences, where the
concept arose, we took the initiative, in the first part, to approach the scientific
paradigms in order to show how they defined modern thinking and plunge their
effects in our thinking until today. With this previous step, we wish to acknowledge
that the mentioned scientific paradigms were at the roots of the belief in unlimited
material progress and of a misrepresentation of the relationships between men and
nature which came to be at the origin of environmental deterioration in the first
place.
Upon doing so, we focus our research in the juridical nature of the concept of
sustainable development, whether it can be a General Principle of Law, which
requires, not only the analysis of the international law on the subject and of the ICJ
Jurisprudence, but simultaneously requires a look at the legal thinking, namely the
doutrinal quarrel between positivists and jus naturalists which leads us to the
foundations of the law.
Key words: Sustainable development, International Court of Justice, Jurisprudence, General Principles of law, International law, Legal thinking
ÍNDICE ABREVIATURAS……………………………………………………………………………………………………………..3
INTRODUÇÃO……………………………………………………………………………………………………………………………………….4
1. ODESENVOLVIMENTOSUSTENTÁVELCOMONOVOPARADIGMA…………………………………………………7
1.1. Osparadigmasdaciência…….………………………………………………………………………………………..………8
1.1.1. Oparadigmamecanicista……………………………………………………………………………….……….…10
1.1.2. OparadigmaTermodiâmico………………………………………………………………………………………..12
1.1.3. Consequênciasdosparadigmasmecanicistaetermodinâmico……………………………………13
1.1.3.1. UmDireitoàimagemesemelhançadohomem………………………………………………..13
1.1.3.2. Asbasesparaoliberalismoestãolançadas……………………………………………….………14
1.1.3.3. Umaanáliseeconómicadosrecursosnaturaisdesprovidadeética……………..……15
1.1.3.4. Comportamentoseconómicos…………………………………………………………………………..18
1.2. Desenvolvimentosustentável-oparadigmaqueaproximaasciênciasdasociedade…………..20
2. ASPECTOSINTERNACIONAISDODESENVOLVIMENTOSUSTENTÁVEL............................................25
2.1. Apenetraçãodoconceitodedesenvolvimentosustentável…………………………………………….…26
2.1.1. AConferênciadeEstocolmo……………………………………………………………………………………….26
2.1.2. RelatórioBrundtland–onascimentodoconceito………………………………………………………29
2.1.3. AConferênciaRio(1992)…………………………………………………………………………………………….30
2.1.4. AConferênciadeJohanesburgo………………………………………………………………………………....32
2.1.5. AConferênciaRio+12………………………………………………………………………………………………….33
2.2. Ausênciadeconcretizaçãoconceptual……………………………………………………………………….........35
2.3. Anaturezajurídicadodesenvolvimentosustentável…………………………………………………………..37
3. AJURISPRUDÊNCIADOTRIBUNALINTERNACIONALDEJUSTIÇA………………………………………………….40
3.1. Casogabcikovo-nagymaros(Hungria/Eslováquia)...................................................................40
3.1.1. Antecedentesdocontencioso.........................................................................................41
3.1.2. AdecisãodoTribunal......................................................................................................42
3.2. CasorelativoàsfábricasdecelulosenoRioUruguai(Argentina/Uruguai)……………………………47
3.2.1. Antecendentesdocontencioso…………………………………………………………………………………..47
3.2.2. CompetênciadoTribunal…………………………………………………………………………………………….48
3.2.3. AinvocaçãopelaArgentinadoprincípiodedesenvolvimentosustentável………………….49
3.2.4. AdecisãodoTribunal………………………………………………………………………………………………….51
3.2.5. Aaplicaçãodoconceitodedesenvolvimentosustentável…………………………………………..53
4.DESENVOLVIMENTOSUSTENTÁVELCOMOPRINCÍPIODEDIREITOINTERNACIONAL.............55
7.1OsprincipaiselementosdoDesenvolvimentoSustentável…………………………………………….55
7.2OsprincípiosgeraisdeDireito……………………………………………………………………………………….56
7.3.OdesenvolvimentosustentávelcomoprincípiogeraldeDireito......................................61
7.4Acrisedodireito:evoluçãooumutaçãonoutracoisa…………………………………………………..65
CONCLUSÃO………………………………………………………………………………………………………………………………………68
BIBLIOGRAFIA……………………………………………………………………………………………………………………………………71
3
ABREVIATURAS
AIA- Avaliação de Impacto Ambiental
ETIJ- Estatuto do Tribunal Internacional de Justiça
ONG- Organizações não governamentais
ONU – Organização das Nações Unidas
OGM- Organismos geneticamente modificados
PNUA - Programa das Nações Unidas para o Ambiente
TIJ – Tribunal Internacional de Justiça
TFUE- Tratado sobre o funcionamento da União Europeia
UNCED- United Nation Conference on Environment and Development (Conferência
das nações unidas sobre desenvolvimento e ambiente – Conferência Rio 1992)
WCED- World Commission on Environment and Development
4
INTRODUÇÃO
O desenvolvimento sustentável é apanágio das sociedades contemporâneas nas
quais a incompatibilidade do desenvolvimento com a sustentabilidade da vida na
Terra impõe-se de forma premente. Tendo surgido, precisamente, como um
compromisso entre o desenvolvimento e a preservação ambiental, os quais,
juntamente com a luta contra a pobreza, constituiriam os seus pilares, este conceito
permanece ainda um conceito polissémico e de geometria variável.
Malgrado a sua imprecisão, assistiu-se nas últimas décadas à sua inclusão em
inúmeros instrumentos jurídicos no seio da comunidade internacional, devendo-se a
esta, e no mais ao papel da Organização das Nações Unidas, a sua grande
disseminação e divulgação. Não faltaram vozes que apontassem a imprecisão deste
conceito como uma fraqueza, surgindo expressões que o definiam como “caixa
vazia”, “mantra”, “oxímoro”, entre outros.
Com efeito, o conceito de desenvolvimento sustentável traduz uma
realidade multidimensional e transversal que pressupõe precisamente que os
ecossistemas e as sociedades humanas são sistemas complexos e abertos. Assim este
conceito não se trata propriamente de uma caixa vazia mas será ele flexível, adaptável
e evolutivo, podendo esta faceta revelar-se não a sua fraqueza mas a sua força. É desta
forma necessário que ele seja peneirado pelo contributo de outras ciências, não sendo
compatível com uma noção positivista de um conhecimento científico infalível, cuja
função seria a de proporcionar um controlo crescente sobre a natureza. Impõe-se, uma
abordagem multidisciplinar, a qual tentamos lograr com este trabalho, contrariamente
às abordagens reducionistas e unilaterais resultantes da hegemonia positivista das
ciências naturais, que estiveram na base da crença do progresso ilimitado e que por
sua vez se encontra na origem da degradação ambiental.
Foi precisamente a percepção do profundo impacto da nossa representação da
natureza e do reducionismo na abordagem das questões ligadas quer ao
desenvolvimento quer ao ambiente assim como a natureza multidisciplinar da
abordagem subjacente ao conceito de desenvolvimento sustentável que suscitaram o
meu interesse neste trabalho.
Certamente o pensamento moderno e as evoluções desencadeadas a partir dele
5
possibilitaram grandes melhoria no plano do desenvolvimento humano para a maior
parte das pessoas na maioria dos países, sendo possível afirmar que no cômputo geral,
a globalização propiciou grandes avanços no desenvolvimento humano, inclusive-
onde esse desenvolvimento se imponha como mais necessário - em muitos países do
Sul. Contudo, é possível constatar um sentimento generalizado de precariedade no
que diz respeito aos meios de subsistência. As fragilidades económicas colocam ainda
uma enorme pressão sobre as populações que se prevêem virem a ser as mais expostas
às potenciais consequências das alterações climáticas, pondo, novamente, em
perspectiva, toda a questão ética subjacente.
Durante muito tempo as respostas aos desafios económicos e sociais, na senda
daquilo que postulava o pensamento neoclássico, iam no sentido do crescimento
económico, que se imponha num primeiro momento num mundo pós colonialista e
posteriormente numa Europa pós segunda guerra mundial.
Os anos 70 trouxeram os ventos da mudança com as suas poluições e
catástrofes naturais que, mediatizadas e com a aquiescência da comunidade científica,
rapidamente encontraram eco numa sociedade anti-regime. Já no fim dos anos 80, o
relatório Brundtland apresenta-nos o conceito de Desenvolvimento Sustentável. Este
conceito apresentou-se então como um compromisso, por excelência, entre o
crescimento económico e a preservação ambiental, sem comprometer as gerações
futuras – foi nesta equidade intergeracional que residiu a inovação desta definição e
muito provavelmente ao qual se deveu o seu “sucesso” por maior que seja a sua
controvérsia.
Adoptou-se então este umbrella term para nunca mais o deixar, um conceito
que tem passado por inúmeras metamorfoses bem ao “estilo kafkaesco”. Apesar da
sua imprecisão ele tem sido sistematicamente utilizado no seio da comunidade
internacional e o direito internacional tem participado largamente à divulgação deste
conceito. Esta adesão à escala internacional foi tanto maior quanto as interpretações e
sentidos que daí resultaram. Levanta-se então a questão de saber qual é o valor
normativo desta conceito? Um conceito, um princípio jurídico?
O juiz internacional contribui para definir o escopo das normas de direito
internacional do ambiente, sendo também o garante da sua execução, no entanto, a
intervenção do juiz foi durante muito tempo marginalizada no domínio do ambiente.
6
Escolheu-se assim a jurisprudência do Tribunal Internacional de Justiça na
qual ele teve a oportunidade de se pronunciar sobre o conceito de desenvolvimento
sustentável como suporte à estas questões.
Dada uma tendência para uma abordagem pragmática desta questão, bem como do
Direito em geral, onde parece já não se questionarem os fundamentos do Direito,
procuramos com este trabalho uma reflexão mais profunda.
O desenvolvimento impõe-se a uma sociedade em plena mutação, não apenas de
ordem económica, social e cultural mas também institucional onde já muito se tem
falado, por exemplo, no declínio do Estado. Com efeito consideramos que o
paradigma apresentado pelo desenvolvimento sustentável diz respeito às escolhas
fundamentais da sociedade pelo que concomitante à reflexão que passa pela
normatividade do conceito é a reflexão sobre a questão que vai também no sentido do
direito, de saber se são as contigências sócio-culturais decorrentes da evolução das
sociedades actuais, onde como sabemos o direito encontra os seus referentes
axiológico e normativo de validade, ainda compatíveis com o sentido universalmente
fundante do direito e a imprescindível e muito particular racionalidade implicada
pela sua normatividade1. Não se fala já, afinal, numa crise do direito moderno, de
uma evolução da racionalidade do direito onde os conceitos evolutivos,
indeterminados e adaptátveis encontram finalmente o seu lugar ao preço da segurança
jurídica? Não estará o desenvolvimento sustentável em linha com esta renovação das
lógicas jurídicas tradicionais.
Este trabalho de investigação não tem a pretensão de dar uma resposta, tout
court, a todas as questões levantas, considera-se, apenas que o debate académico é de
crucial importância em domínios de grande complexidade como é, para nós, o
desenvolvimento sustentável. A procura de soluções ligadas ao direito, não deveria
perder de vista os seus fundamentos e não pode ser feita sem a discussão de questões
de fundo, devendo sempre ser acompanhada por uma reflexão mais intelectualizada. É
nesta linha de raciocínio que uma divagação sobre os paradigmas da ciência nos
pareceu necessária, pela qual começaremos este trabalho, passando posteriormente
1 Esta é já uma questão levantada pelo professor CASTANHEIRA NEVES em “O atual problema metodológico da realização
do direito”. Boletim da faculdade de Direito, Coimbra, n.esp.3 (1991), Estudos em homenagem ao Professor Doutor Antonio de
Arruda Ferrer Correia. p.11-58
7
aos aspectos jurídicos e internacionais do conceito de desenvolvimento sustentável.
1. O Desenvolvimento sustentável como novo paradigma
Repetidas vezes o conceito de desenvolvimento sustentável tem sido referido
como um novo paradigma, esta ideia de ruptura com o sistema, revolucionária ou pelo
menos de ambientalismo reformista (shallow ecology) 2 encontra facilmente eco numa
sociedade como a dos dias de hoje3. O modelo do homem neoliberal, guiado pela
razão e por incentivos económicos, regulado pelo mercado e pelo direito ocidental
globalizado, assim como a felicidade prometida pela aplicação generalizada da
ciência estão em crise. Na busca incessante de soluções para os problemas aos quais
agora se acrescentam os ambientais, este conceito seduz, sobretudo a quem quer ser
portador da boa nova quase em jeito messiânico. Contudo, esta ideia salvírica, como
todas as ideias salvíricas, pode reflectir uma ausência de reflexão 4 . Ora o
desenvolvimento sustentável representa um momento de ruptura e, de facto, do que se
trata é antes de mais da relação fundamental do homem com a natureza5 e de uma
mudança na forma como representamos o mundo e nesse sentido acreditamos também
que ele tem vocação para representar uma ruptura com a ideologia do progresso
ilimitado reposicionando, assim, o lugar da natureza-objecto. Posto isto, não quer
dizer que tenhamos de ir para a outra extremidade da questão, extremidade essa onde
transformamos a natureza em sujeito. Dito de outra forma, uma ruptura com a forma
como temos vindos a representar o mundo e a natureza não impõe que adoptemos
uma visao naturalista, “condenando o homem à imanência absoluta da ecosfera,
recusando-lhe toda a possibilidade de libertação”6 e tornando impensável e impossível
“a expansão da moralidade e do conhecimento que reclamam a ética e o direito por
parte do indivíduo responsável”7. Pois se o perigo é o homem, é também o homem o
que salva.
O “retorno das coisas” que a deep ecology pretende operar não é, portanto, um
2 OST, François. A natureza à margem da lei : A Ecologia à prova do Direito, Lisboa : Instituto Piaget, 1998. 3 GARCIA, Maria da Glória. O lugar do direito na protecção do ambiente. Coimbra: Almedina , 2007. 4 Idem Ibidem. 5 Smouts, Marie Claude. Droit international et développement durable. in prieur M (éd.), les hommes et l’environnement, en hommage à A. Kiss, Paris, Frison Roche. 6 OST, François. A natureza à margem da lei...,cit. 7 OST, François. A natureza à margem da lei...,cit.
8
retorno justo das coisas”8. Um desenvolvimento sustentável não pretende o retorno às
origens nem é, embora, alguns assim o quisessem uma pretensão escondida de
economização do ambiente. É precisamente para evitar a perversão deste conceito,
seja em que sentido dos extremos for, que é indispensável mostrar que as lógicas
contemporâneas (nas quais se incluem as jurídicas) podem permitir pensar o
multidimensional, sem, por enquanto, o reduzir à alternativa binária dominação ou
subjugação.
1.2. Os paradigmas da ciência
Foi Thomas Kuhn quem fez o uso sistemático e consciente do termo
“paradigma” na ciência. Com este conceito Kuhn, pretendia sugerir que certos
exemplos da pesquisa científica reconhecida – como leis, teorias, dispositivos
experimentais – fornecem modelos que por sua vez dão origem a certas tradições
coerentes de pesquisa científica 9 . Cientistas cuja pesquisa é fundamentada em
paradigmas comuns se submetem às mesmas regras e padrões da prática científica.
Este consenso que ele produz, constitui pré-requisito para a ciência normal, isto é, a
pesquisa solidamente fundada numa ou mais descobertas científicas anteriores,
descobertas estas que um dado grupo científico considera como suficientes para
servirem de base a trabalhos posteriores 10 . A força de um paradigma reside,
precisamente, neste consenso de determinada comunidade científica, em certa época e
diz-nos muito sobre a forma como essa mesma comunidade avalia e interpreta os
resultados das suas experiências11. Tal como alguns autores12 consideramos que o
estudo dos paradigmas da ciência permite-nos perceber as relações do homem com o
seu meio ambiente através das diferentes atitudes que resultaram desses paradigmas.
Já que o objectivo último da ciência é o conhecimento e este pressupõe uma
compreensão daquilo que entoura o homem, do mundo e portanto, - da natureza. De 8 Idem Ibidem 9 KUHN, Thomas S. La structure des révolutions scientifiques, Éditions Flammarion, 1970 p. 30. 10 Idem Ibidem,p.28. 11 LEVEQUE, Christian. Recherche et Développement Durable: l’utopie d’une approche systémique? em B. Villaba (éd). Appropriations du développement durable, Émergences, diffusions, traductions, Villeneuve-d’Ascq: Presses Universitaires du Septentrion, 2009. 12 LEVEQUE, Ibidem, F.CAPRA em CAPRA, Fritjjot. Ponto de Mutação, Bantam, 1982; R. PASSET em PASSET, René “L’Économique et le vivant”, 2ª Edição, Paris: Économica, 1996; S. FAUCHEUX e J.F.NOEL em FAUCHEUX, Sylvie e NOEL, Jean- François. Economia dos Recursos Naturais e do Meio Ambiente, Lisboa: Instituto Piaget, 1995;F.Ost em OST, François . A natureza à margem da lei : A Ecologia à prova do Direito”, Lisboa : Instituto Piaget, 1998.
9
facto o homem é o único ser capaz de uma “desvinculação perante o seu mundo
circundante, em ruptura daquela continuidade ou assimilação própria da conduta
animal com o meio e numa específica transcensão – pelo que livre e distante assim
relativamente ao mundo, (...)o homem é “excêntrico ao mundo””13. Podemos ver aqui
a base antropológica para a compreensão geral da existência humana, pelo que não
admira que a noção de ambiente seja ela também antropocêntrica. Sem querer entrar
na questão de saber se a defesa do ambiente deve partir de uma ética antropocêntrica
ou ecocêntrica permitimo-nos apenas aferir que, em nossa opinião, ela é forçosamente
antropocêntrica uma vez que em última análise a Terra manter-se-á ainda que sem
nós, pelo que toda a problemática ambiental visa garantir a sobrevivência da espécie
Humana14. O que não implica que essa visão antropocêntrica não tenha sido levada ao
extremo pelo humanismo moderno15. Desde logo, o direito – produto cultural que
tendo por objecto ordenar o funcionamento da sociedade enquanto sistema social
global, sendo aí um subsistema, é ele mesmo produto da natureza das relações sociais
prevalecentes numa dada época16 - ocidental foi um direito que legitimou, como o
demonstra François Ost17 a relação de domínio do homem sobre a natureza. Um
direito que mesmo quando se destinou a proteger o meio ambiente, não foi capaz de
se libertar da sua lógica de domínio e fê-lo tendo em conta os interesses do homem.
Curiosamente um direito que ao querer redimir-se da sua postura de dominador
atribui direitos à mãe natureza e às espécies que a constituem é também um direito
vítima da lógica do binário (cartesiano) – falso/verdadeiro, proibido/permitido18- de
que a recusa de um postulado científico supõe a apresentação de um outro19.
Consideramos, com François OST, que o problema, é um problema de limite e um
13NEVES, A. Castanheira “Coordenadas de uma reflexão sobre o problema universal do direito : ou as condições da emergência do direito como direito In: Estudos em homenagem à Professora Doutora Isabel de Magalhães Collaço / organizado por Rui Manuel de Moura Ramos.. [et al.] . - Coimbra : Almedina, 2002. - 2.v., p.837-871. 14 FERRER, Gabriel Real Calidad de vida, meio ambiente, sostenibilidad y ciudadanía¿Construimos juntos el futuro?, Revista NEJ - Eletrônica, Vol. 17 - n. 3 - p. 305-326, set-dez 2012 (Disponível em: www.univali.br/periodicos) 15 OST, François, “A natureza ...cit. 16 OST, François apud NEVES, A. Castanheira. O actual problema metodologico da realização do direito, Boletim da Faculdade de Direito, Coimbra, n.esp.3(1991), p.11-58 17 OST. François, “A natureza ...cit. 18 KERCHOVE, Michel Van de, e OST. François. Le systeme juridique entre ordre et desordre, Paris : PUF, 1988, p.15. 19 MENEZES CORDEIRO, António em CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento Sistemático e conceito de sistema na ciência do Direito, introdução e tradução A. MENEZES CORDEIRO 4ºEdição, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2008.
10
problema de vínculo das relações do homem com a natureza20, que como veremos é
uma consequência do discurso da ciência. Faremos então uma resenha pelos
paradigmas 21 para percebermos como os paradigmas da ciências conformaram o
pensamento ocidental, assim como a excessiva ênfase no método científico e no
pensamento racional analítico conduziram a atitudes profundamente antiecológicas.
1.2.1 O paradigma mecanicista
Na idade média a visão do mundo dominante na Europa, assim como na maioria
das outras civilizações, era orgânica. A concepção à qual se pode chamar
naturicista22, atribui um papel preponderante à natureza mas uma natureza de essência
metafísica. A ética, particularmente sob a forma de uma moral natural, estava no
primeiro plano das relações do homem e do universo, uma ética que remonta a
Aristóteles23.
Os fisiocratas iriam retomar esta visão do mundo, tentando dar como
fundamento para a economia a realidade física da natureza, fundando as primeiras
bases do liberalismo24. Desta ideia ressai uma economia como atividade regida por
20 OST, François: “Perdemos o sentido de relação com a natureza. O homem não se reduz à natureza, e que a sua libertação em relação a esta é sinal mais seguro da sua humanidade; mas fizeram mal em esquecer que o limite, se por um lado separa e distingue, é também aquilo que nos liga. O limite é uma “diferença implícita”. Retendo apenas a diferença e ocultando a implicação, os modernos conduziram-nos pela via da ilimitabilidade e da irresponsabilidade” em Natureza..., cit, p. 13. 21 Neste trabalho adoptou-se a divisão dos paradigmas de Sylvie FAUCHEUX e Jean-François NOEL em Economia dos recursos..., cit, como explica Kuhn em La structure des révolutions scientifiques ..., cit, p. 30 os paradigmas não são atribuídos pela ciência, são descritos pelos historiadores, dandos como exemplos de paradigmas a “Astronomia de Ptolomeu” (do francês “astronomie de Ptolémée”) ou “Dinámica aristotélica” (do francês “dynamique aristotélicienne”).O nome que se dá aos paradigmas ainda que refere ao mesmo período difere na doutrina, assim por exemplo para Rene Passet fala em paradigma do relógio (paradigme de l’horloge) para aquele que nós demos o nome de paradigma mecanista e paradigma da máquina a vapor (paradigme de la machine à vapeur) para aquele que nós demos o nome de paradigma termodinâmico ou mecânica newtoniana. François Ost também recorre a outras designações para descrever os paradigmas em A natureza à margem da lei...,cit.22 FAUCHEUX, Sylvie e NOEL, Jean-François. Economia dos recursos ..., cit, pag. 27. 23 A ética, assunto presente tanto em Aristóteles como nos humanistas Sismondi a Schumacher, diz principalmente respeito à equidade intrageracional. A sua importância é, obviamente, inegável na óptica do “desenvolvimento sustentável”, permanecendo porém insuficiente, já que a dimensão intergeracional se encontra aí ausente por falta da integração do factor tempo. Por outra via, de modo bastante paradoxal, a tradição “humanista” pode revelar-se em oposição total, deste ponto de vista, com a visão do mundo oriunda das ciências naturais e da biologia. Assim, a acreditar em Lutz deve reter-se entre os princípios fundamentais da economia humanista “uma epistemologia que rejeita o naturalismo, entendido como a doutrina que sustém que as ciências naturais podem explicar todos os fenómenos deste género”. Idem, Ibidem, p. 28. 24 Idem Ibidem, p. 31.
11
leis naturais, atividade cuja perenidade estava dependente da capacidade de
reprodução do meio ambiente25.
A perspectiva medieval mudou radicalmente nos séculos XVI e XVII. A noção
de um universo orgânico, vivo e espiritual foi substituída pela noção do mundo como
se ele fosse uma máquina, e a máquina do mundo converteu-se na metáfora
dominante da era moderna. Esse desenvolvimento foi ocasionado por mudanças
revolucionárias na física e na astronomia, culminando nas realizações de Copérnico,
Galileu e Newton e que deram origem ao universo mecanicista do qual resulta um
conhecimento racional que abre as portas à ação sem limite do homem sobre o
universo físico26. Esta exigência de racionalidade leva a conceber “um modelo único”,
para a explicação dos fenómenos físicos, dos sistemas vivos e dos fenómenos
económicos e sociais2728.
O método analítico de Descartes consistia em decompor pensamentos e
problemas nas suas partes componentes e em dispô-las de forma lógica29. Esta forma
de pensamento tornou-se característica do pensamento científico moderno e, para
alguns autores, o facto do universo poder ser entendido como uma máquina e a
natureza operar de acordo com leis mecânicas, esteve na origem de uma profunda
alteração na relação do homem com a natureza3031.
No plano epistemológico este reducionismo parte de um princípio simples: o
comportamento do todo pode ser explicado a partir das propriedades dos seus
componentes, tratando-se então de uma perspectiva que se foca na análise dos objetos
25 PASSET, René. L’Economique..., cit. 26 CAPRA, Fritjof. Ponto de Mutação.., cit. afirmando que o conhecimento científico podia ser usado para "nos tornarmos os senhores e dominadores da natureza”. 27 “O direito natural foi um produto do direito natural da modernidade apenas podia ser um Direito natural secularizado e ao mesmo tempo um direito natural iluminista que, de acordo com o modelo de René Descartes e Francis Bacon mas também dos empiristas John Locke e David Hume se limitava ao que é experimental.” KAUFMANN. Arthur. Filosofia do Direito, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkien, 2004. 28 KAUFMANN faz um paralelismo entre a física como os físicos reduziram as propriedades dos gases aos movimentos dos seus atómos Locke tentou reduzir os padrões observados na sociedade ao comportamento dos seus indivíduos então primeiro ele passou a estudar primeiro a natureza do ser humano individual e depois tentou aplicar os princípios da natureza humana aos problemas económicos e políticos. Ibidem29 CAPRA, Fritjof. Ponto de...cit. 30 FAUCHEUX, Sylvie e NOEL. Jean-François. Economia dos recursos, cit, pag. 40. 31 O que segundo OST, François resultou precisamente na dominação da natureza pelo homem. A natureza à margem...cit.
12
em detrimento das relações que se estabelecem entre eles32. No fundo, o reducionismo
refletia a esperança de que por detrás da complexidade da natureza se escondia uma
bela simplicidade33 e que desta forma seria possível compreender o mundo.
Este método científico, ao qual se vêm juntar as descobertas de Newton,
podendo então falar-se numa mecânica newtoniana ou paradigma termodinâmico.
1.1.2 O paradigma termodinâmico
O triunfo da termodinâmica nos séculos XVIII e XIX estabeleceu a física como
o protótipo de uma ciência pela qual todas as outras ciências eram medidas. Essa
tendência para adotar a física newtoniana como modelo para teorias e conceitos
científicos tornou-se evidente nas ciências sociais34. Estas têm sido tradicionalmente
consideradas como “o parente pobre” das ciências, e os cientistas sociais tentaram
aficadamente adquirir a mesma respeitabilidade adotando o paradigma cartesiano e os
métodos da física newtoniana. Trata-se igualmente de compreender o universo a partir
das leis da física, porém estas últimas também mudaram em relação ao caso
precedente: aplicam-se agora a fenómenos (a energia) mal representados pela
mecânica clássica que fazem entrar no campo do quantificável. A explicação proposta
baseia-se fundamentalmente num tempo irreversível. Esta característica (a entropia)
leva a considerar os limites da ação humana sobre o mundo físico preferencialmente à
sua expansão infinita. Entretanto, a representação que daí resulta é tão racionalista e
determinista como a precedente: aplica-se tanto aos fenómenos físicos como à
atividade económica do homem e aos seus resultados
A influência da mecâninca newtoniana sobre a análise económica clássica, e
como não poderia deixar de ser, posteriormente sobre a neoclássica vai conduzir a
uma apreensão “economicista” da natureza35. Estas vão procurar descobrir, sobre o
modelo newtoniano, a lei que governa a economia, tornando assim autónoma a esfera
32 PASSET, René. L’economique...,cit, LEVEQUE, Christian. Recherche et Développement Durable...,cit.;NETO, Benedito Silva e BASSO David. A ciência e o desenvolvimento sustentável: para além do positivismo e da pós-modernidade. Revista Ambiente & Sociedade, Campinas v. XIII, n. 2 , p. 315-329, jul.-dez. 2010 (disponível em http://www.scielo.br/). 33 LEVEQUE, Christian. Recherche et Développement Durable...,cit. 34 MENEZES CORDEIRO “no fundo, afloram aqui duas grandes cepas do pensamento jurídico moderno e contemporâneo: o jusracionalismo, ele próprio manifestação exarcebada do jusnaturalismo tradicional e o cientismo, transposição para as humanísticas das posturas intelectivas desenvolvidas perante as ciências da natureza.” Introdução à Pensamento sistemático..., cit. p.XVI35 FAUCHEUX Sylvie e NOEL, Jean François Economia dos recursos..., cit. p. 41.
13
económica36. A mão invisível de Smith dotou a economia de uma “ordem natural”,
específica separando-se do divino, do político e, inclusive, da natureza. A partir desta
metáfora abriu-se caminho um conjunto de princípios fundamentais reguladores do
comportamento económico.
A mecânica encontra-se, pois, na base da conceptualização da micro e da macro
economia37 38 e é a lei da mecânica que vai reger a natureza mecânica e física dos
fenómenos39. Enquanto que, para os naturicistas a economia devia submeter-se às leis
do universo, com os neoclássicos “a economia vai debruçar-se sobre si mesma e
procurar definir as suas próprias leis sem se preocupar com as do universo
circundante, visto ser evidente que as suas leis são idênticas”40.
Esta transição vai servir de base a visões utilitaristas e antropocêntricas do
meio ambiente.
1.1.3.Consequências dos paradigmas mecanicista e termodinâmico
1.1.3.1 Um direito à imagem e semelhança do homem
O sistema jurídico vai também ele conhecer a sua “revolução copérnica”, que se
traduzirá numa progressiva subjectivação do direito. Opera-se uma substituição da
antiga ordem de privilégios por uma ordem atomizada e dinâmica levada a cabo pelo
direito subjectivo de propriedade -prerrogativa do indivíduo soberano.
“Tal como os físicos reduziram as propriedades dos gases aos movimentos dos
seus atómos Locke tentou reduzir os padrões observados na sociedade ao 36 A mecânica newtoniana conhece um renovamento graças a Hamilton, o qual, desde 1834, tinha completado o trabalho de Lagrange, tendo como resultado uma fórmula de maximização. É esse o momento escolhido pelo pensamento neoclássico para aderir explicitamente e o mais totalmente possível ao paradigma newtoniano. Idem Ibidem. 37 FAUCHEUX Sylvie e NOEL Jean François, Economia dos recursos..., cit. p. 43 38 “A economia é uma ciência social, tendo a pretensão de estudar a conduta humana nas suas interações colectivas, fazendo-o com distanciamento analítico, de um modo sistemático, recorrendo a uma metodologia explícita, com o objetivo de, com essa aproximação ao paradigma formal da ciência evitar, seja o entorpecimento nas suas categorias fáceis do “senso comum” (...)”ARAÚJO, Fernando. Introdução à Economia, Almedina, 3ª Ed. 2005, p. 16 39 “Consideremos a teoria económica clássica. Na sua utilização do conceito de equilíbrio, esta imita a física newtoniana.” SOROS, George, “O novo paradigma dos mercados financeiros: a Crise financeira de 2008 e o seu significado”, 2º Edição, Coimbra: Almedina, 2009, p.98. 40 PASSET, René, apud FAUCHEUX e NOEL. Economia dos recursos ...,cit.
14
comportamento dos seus indivíduos então primeiro ele passou a estudar primeiro a
natureza do ser humano individual e depois tentou aplicar os princípios da natureza
humana aos problemas económicos e políticos. Quando Locke aplicou a sua teoria a
natureza humana aos fenómenos sociais, foi guiado pela crença de que existem leis
da natureza que governam a sociedade humana, leis semelhantes às que governam o
universo físico. Tal como os átomos de um gás estabelecem num “estado de
natureza”41. Assim, a função do governo não seria impor as suas leis às pessoas mas
antes, descobrir e fazer valer as leis naturais que existiam antes de qualquer governo
ter sido formado. Segundo Locke essas leis naturais incluíam a liberdade e a
igualdade entre todos os indivíduos, assim como o direito à propriedade, que
representava os frutos do trabalho de cada um.”. Estes direitos vão tornar-se na base
do sistema de valores do iluminismo e vão favorecer o aparecimento dos mercados
livres e a multiplicação de trocas. Progressivamente procura-se acabar com os
entraves à livre circulação de bens e multiplicar os pequenos proprietários como
forma de acabar com a sociedade desigual do antigo regime. Na concepção de Locke
é do indivíduo, novo átomo social, que é preciso partir para se construir uma
sociedade.
Como bem mostra François Ost42 as novas ficção jurídicas que começam então
a construir-se vão servir de base para que o homem se aproprie do mundo biótico e
abiótico que, pela atribuição de direitos civis e políticos (das liberdades individuais) e
um progressivo desmantelamento aos entraves às trocas vai constituir as bases do
liberalismo e do capitalismo.
1.1.3.2 As bases para o liberalismo estão lançadas
Da economia neoclássica herdou-se a ideia de que a procura do interesse
individual conduz automaticamente ao interesse geral. O mundo seria concebido
como um conjunto atomista de compradores e vendedores, todos do tipo homo
economicus, empenhados num comportamento egoísta com o intuito de melhorar o
seu bem-estar individual, acabando as necessidades individuais por se alinharem ao
objetivo de bem estar-geral. Herdou-se, igualmente, a crença que o desenvolvimento
41 KAUFMANN Arthur, Filosofia do Direito..., cit, p. 55. 42 O direito à margem da lei...,cit.
15
reduz as desigualdades e assegura o bem-estar geral, desenvolvimento este que por
sua vez estaria dependente do cresimento industrial e (posteriormente) tecnológico
geradores do crescimento económico. Os neoliberais defendem que a criação
crescente de riqueza e da prosperidade em toda a economia mundial, para os quais a
pobreza extrema e as desigualdades são vistas como estados transitórios que
desaparecerão com a modernização global conduzida pelo mercado43. Criam-se assim
as condições propícias para a globalização, os Estados procuram novos mercados
como forma de obtenção de riqueza. Assiste-se à proliferação de bloco económicos
regionais e do comércio livre, concomitantemente à emergência de organizações e
organismos internacionais, numa tendência de regulação supranacional das políticas
económicas.
Sem dúvida a globalização propiciou grandes avanços no desenvolvimento
humano, contúdo, existe ainda um sentimento generalizado de vulnerabilidade. Eis
então um dos grandes paradoxos do nosso tempo: de um lado assiste-se à emergência,
incrementação e salvagarda do comérico livre à escala mundial como motor de
crescimento económico, e por outro lado a revelação das vulnerabilidades humanas e
ambientais associadas ao desenvolvimento que implicam, cada vez mais, uma acção a
nível local (o que não implica a coordenação de políticas ambientais ao nível
regional/global).
1.1.3.3 Uma análise económica dos recursos naturais desprovida de ética
É possível constatar que a evolução das relações entre a economia e o ambiente
se inscrevem numa visão positiva do progresso da espécie humana, à qual o
desenvolvimento económico tem estado associado44 como forma de compreensão e de
resolução de questões ambientais e sociais. Um olhar pela análise económica dos
recursos naturais permite constatar a continuação deste paradigma. 43 É possível ver este raciocínio em Carlota PEREZ que explica como as instituições sociais apesar de mais lentas se adaptam a mudanças de paradigmas tecnológicos e tendem para a estabilização em Techonological Revolutions, paradigm shifts and socio-institutional change. Reinert, Erik (ed) Globalization, Economic Development and Inequality: An alternative Perspective, Edward Elgar, Cheltenham, UK ,Northampton, MA, USA, 2004, pp. 217-242 (disponível em http://www.carlotaperez.org/), 44 Neste sentido LEVEQUE, Chistian em Recherche et Développement Durable...,cit;CAPRA, Fritjof em Ponto de Mutação.., cit; PASSET, René em L’economique et le vivant..., cit, Tim Jackson em JACKSON, Tim. Prosperidade sem crescimento: Economia para um planeta finito , Tinta-da-China, 2013.
16
A década de 70 pode ser apontada como a década em que se repensam as
relações entre a economia e o meio ambiente 45 ainda que, em bom rigor, as
consequências indesejáveis do desenvolvimento se faziam já sentir anteriormente. Até
então a economia e a natureza eram dois universos distintos46. Os economistas
interessavam-se pelas regras que governam a optimização e reprodução económica,
ignorando, no entanto, o modo como a natureza assegurava espontaneamente a sua
reprodução 47. A constituição das relações entre estes dois universos “distintos”
ocorreu com o risco de esgotamento dos recursos naturais e com o agravamento dos
danos sofridos pelo meio ambiente, uma vez que essa mesma escassez poria em causa
a própria economia, como bem demonstraram as crises do petróleo na década de 70.
O surgimento do conceito do desenvolvimento sustentável surge assim, num ambiente
cultural, económico e científico48 em plena evolução e apresenta-se como uma
extrapolação ao que até então era objecto da ciência económica.
A economia neoclássica acreditava no papel regulador do mercado com vista a
assegurar o bem-estar49. Para alguns economistas o receio do esgotamento de recursos
naturais desapareceria se se deixasse actuar os mecanismos do mercado. À medida
que os preços aumentassem, as estratégias de exploração e as investigações
tecnológicas seriam simultaneamente estimuladas. Estas últimas permitiriam não só a
substituição entre recursos, como também o aumento da eficiência destes, ou seja,
uma diminuição do seu desperdício. Este ponto de vista gerou uma teoria económica
de exploração óptima de recursos naturais, a qual determina uma trajetória óptima do
esgotamento dos recursos e permite o crescimento económico não obstante esse
potencial esgotamento. Na teoria económica neoclássica considera-se que os
problemas do meio ambiente provêm do facto de muitos bens e serviços ambientais
serem gratuitos. Tradicionalmente estes bens pertenciam à categoria dos bens 45 FAUCHEUX, Sylvie e NOEL, Jean- François. Economia dos recursos naturais...cit.bem como LEVEQUE, Recherche et développement durable...cit, identificam a década de 70 como a década onde se repensam as relações do homem com a natureza muito por conta do Clube de Roma (1968) mas esta consideração pode mudar segundo o autor. 46 Como bem o demonstra o facto de a política ambiental ter sido durante muito tempo confundida com a do domínio da saúde pública e da higiene. LEVEQUE. Recherche et développement durable...,cit(tradução nossa). 47 PASSET, René. Une approche multidisciplinaire de l’environnement, Paris: Économica, 1980. 48 LEVEQUE, Christian. Recherche et développement durable..., cit.49 Rajendra RAMLOGAN explica que para os economistas o bem-estar é definido como a satisfação de preferências, onde maior o nível de satisfação das preferências maior o nível de bem estar. To economists “well-being” is defined as the satisfaction of wants or preferences, where the greater the preference satisfied, the greater the level of well-being experienced, Sustainable development: towards a judicial interpretation Boston Martinus Nijhoff Publishers, 2011,p.8.
17
públicos, são portanto, consumidos “demasiados” serviços ambientais. Se a procura
cresce, ultrapassa a capacidade dos bens e serviços ambientais para a satisfazer.
Ocorrerá uma sobreexploração dos recursos, logo a solução, nesta perspectiva, é
atribuir um preço a este bens e serviços ambientais, permitindo assim uma avaliação
monetária do custo da sobreexploração de certos recursos naturais ou o da poluição.
Baseando-se na teoria neoclássica a análise económica do ambiente
transformou-se numa análise custo-benefício procurando obter um instrumento que
nos forneça os dados de uma comparação entre ganhos e perdas.50 Esta lógica é alheia
a qualquer sentido de equidade porque aqui não importa quem suporta os custos ou
quem benefícia dos lucros assim como também é alheia a qualquer sentido ecológico,
visto que o ambiente é considerado como uma colecção de bens e serviços dotada de
um valor “instrumental” para os homens. Neste sentido o valor de um bem ou serviço
ambiental é obtido em função do uso efetivo que dele é feito pelo indivíduo51. É-nos,
então, possível constatar que a economia convencional do meio ambiente, na senda da
economia clássica, é, em si, utilitarista. Ainda que a análise do custo-benefício nos
permita chegar a uma conclusão de que os custos e benefícios futuros têm um peso
mais fraco que os custos e benefícios presentes, o que por sua vez obsta a uma
consciência ecológica porque justifica a visão tecnocêntrica e optimista a respeito das
possibilidades de progresso técnico de substituição, favorecendo assim uma
interpretação ética do crescimento económico, sendo este último suposto fornecer
benefícios materiais que aumentem a escolha e a satisfação dos consumidores, e como
tal, o bem-estar humano52 - esta é ainda uma ética utilitarista.
Uma interpretação ética nestes termos levaria a que, por exemplo, a poluição do
ar não fosse assim tão preocupante se o ser humano pudesse respirar ar “puro” com
recurso a uma aparelho ou mesmo se os lagos secassem se, em contrapartida,
pudéssemos substituir os serviços que esses recursos naturais nos oferecem. Uma
interpretação ética nestes termos é em nossa opinião sintomática de uma crise de
representação do mundo53. Toda a problemática relacionada com a necessidade de um
50 Idem Ibidem.51 Idem Ibidem;FAUCHEUX, Sylvie e NOEL, Jean-François. Economia dos recursos..., cit. 52 Como nos explica Rute Saraiva na sua tese de doutoramento A Herança de Quioto em Clima de Incerteza: Análise Jurídico-Económica do Mercado de emissões num quadro de desenvolvimento sustentado. Lisboa : FDUL 2008. Tese de doutoramento. 53 A este propósito citamos FAUCHEUX Sylvie e NOEL, Jean-François Economia dos recursos ..., cit. “Logo, basta respeitar a regra de Hartwick a qual estabelece que os rendimentos provenientes da exploração de um recurso natural devem ser investidos em ativos reproduzíveis capazes de se substituir
18
desenvolvimento sustentável levanta questões de várias ordens, entre elas, de ordem
estética54, o que nos parece muitas vezes esquecido. “Que satisfação obteríamos de
uma natureza artificial? A nossa humanidade existe numa relação de
interdependência55 com a natureza, com o vivo. Que sabemos nós da existência
humana sem serviços ecológicos? Uma ética subjacente à substituibilidade técnica
dos recursos naturais é em si desprovida de ética (desde logo pelos limites de uma
mesma substituibilidade). Pensamos que não é preciso ser adepto de um biocentrismo
ou da atribuição de direitos às espécies vegetais e animais para se colocar a questão de
com que direito destruímos as outras espécies.
1.1.3.4 Comportamentos económicos
Como vimos os modelos económicos padrão assumem que os agentes
económicos procuram sempre maximizar os seus ganhos. Já vamos ver que talvez não
seja sempre assim. A ciência económica tem uma visão verdadeiramente “optimista”
sobre as capacidades humanas mas pessoas em geral não são Homo economicus, as
pessoas também tomam decisões bastante erradas- decisões que não tomariam se
tivessem prestado a devida atenção, se estivessem na posse de todas as informações,
se tivessem capacidades cognitivas ilimitadas e se fossem detentores de um
autodomínio perfeito5657. Podemos considerar que a assunção de que os agentes
tendem para a otimização permite fazer razoáveis aproximações do comportamento aos inputs de recursos naturais na função de produção. Nestas condições, o critério último de equidade intra e intergeracional reside na manutenção constante, ao longo do tempo, de um stock global de capital. A questão é saber o que se entende por stock global de capital. Efetivamente, a versão mais frágil da sustentabilidade, como faz notar Turner (1993), considera a constância do conjunto do capital tecnológico, humano e natural, enquanto que uma versão mais forte coloca esta condição unicamente sobre o capital natural. Esta divergência constitui uma importante linha de clivagem suplementar entre as abordagens influenciadas pelo paradigma mecanicista e as outras. As primeiras inclinam-se para a manutenção constante do stock global de capital ao longo do tempo, o que permite conservar uma visão optimista recorrendo às hipóteses de substituibilidade entre elementos constitutivos do stock global de capital e/ou do progresso técnico.” pags. 48 e 49 54 Já dizia Dostoievski “Seguramente não podemos viver sem pão,mas também é impossível existir sem beleza” em seu livro O Idiota. 55 O humanismo moderno quis emanicipar o homem e coloco-o no centro do mundo mas basta colocar-se a questão de saber se poderíamos viver sem electricidade para vermos questionadas as condições e imperativos básicos da nosssa existência que nos leva por sua vez a questionar a nossa verdadeira autonomia enquanto espécie. 56 A behavioral law and economics evidência, nomeadamente, as limitações cognitivas dos agentes económicos. Leia-se, a este propósito, por exemplo, SUNSTEIN, Cass R. & THALER Richard H. Nudge, estímulo, empurrãozinho, toque, Academia do Livro SUNSTEIN, Cass R. Behavioral law and economics, Cambridge University Press, 2000. 57 Idem Ibidem.
19
humano em certos contextos mas não em todos58. Aliás, uma abordagem económica
dos problemas ambientais, quando não acompanhada de uma consciência ecológica,
pode resultar num comportamento que, precisamente por ser um comportamento
racional, revela-se pouco ecológico. Vejamos aquele que não tem contentor de
reciclagem perto de casa, para ele não é racional deslocar-se uns metros quando tem
um contentor normal à porta de casa, se para ele não retira nenhuma vantagem desse
comportamento “ambientalmente correto” porque na verdade está a ter um custo
acrescido. Outro exemplo: uma pessoa que, apesar de ter optado por eletrodomésticos
com poupança energética, vai utilizá-los mais do que seria desejável, uma vez que
aquilo que gasta está dentro das suas possibilidades orçamentais (aquilo que se pode
chamar de rebound effect).
Com certeza, o paradigma mecanicista e a mecânica termodinâmica estão
superados mas o que queremos demonstrar com esta resenha sobre os paradigmas da
ciência é que estes conformaram praticamente todas as áreas do saber, em especial,
naquilo que mais nos interessa salientar, o pensamento económico, de um forma
estrutural e influenciaram fortemente as relações entre o ambiente e natureza.
Muitas das abordagens económicas revelaram-se reducionistas no tratamento de
questões de grande complexidade como as que se encontram relacionadas com o
desenvolvimento. A crise social e ambiental veio questionar as bases que sempre
impulsionaram e legitimaram o desenvolvimento e o crescimento económico, nos
quais a natureza ficava em segundo plano. O desenvolvimento sustentável surge numa
vaga de renovação que marca a reflexão contemporânea sobre o desenvolvimento e
assim como uma ruptura com as abordagens anteriores, forjando uma espécie de novo
paradigma. Os problemas que se abordam num quadro de desenvolvimento
sustentável são os mesmos (ainda que talvez mais num clima mais agravado) a forma
como este conceito leva a posar as questões é que é diferente, novas dimensões são
integradas na noção de desenvolvimento: a ecologia, a equidade e a justiça social.
58 Posner, Eric. “Law and social norms”, Harvard University Press.
20
1.2 Desenvolvimento sustentável – o paradigma que aproxima as
ciências da sociedade
A incursão que acaba de se fazer tem um propósito na nossa análise.
Esbouçou-se, grosso modo, os paradigmas da ciência porque considera-se que o
desenvolvimento sustentável traz consigo antes de mais, como já o expressámos, uma
nova representação antropológica do mundo e todo um questionamento filosófico.
Nesse sentido ele tem a vocação de se impôr como paradigma.
Certamente o método científico é um método altamente bem sucedido no que
diz respeito a adquirir conhecimento59 mas a forma como se procurou obter esse
conhecimento deu origem a uma postura de domínio sobre a natureza. A
hermenêutica pós moderna viria a demonstrar que a compreensão do mundo em que
vivemos é inerentemente imperfeita, pois fazemos parte do mundo que tentamos
compreender 60 . A hermenêutica dirigiu-se contra o conceito objectivista de
conhecimento, ela superou o esquema sujeito/objecto (o sujeito cognoscente
conheceria o objecto na sua pura objectividade sem mistura de elementos subjectivos
– conhecimento como “reprodução” do objecto na consciência) aplicado ao fenómeno
da compreensão. A compreensão é, antes, sempre simultaneamente objectiva e
subjectiva; o intérprete insere-se no “horizonte da compreensão” e não se limita a
representar passivamente o objecto na sua consciência mas antes o conforma”61.
O paradigma proposto pelo desenvolvimento sustentável ao evidenciar que nas
sociedades contemporâneas, o atual padrão dominante de desenvolvimento é
59 “Somos capazes de adquirir alguma perspectiva acerca da realidade, mas quanto mais entendemos, mais existe por compreender. Confrontados com este alvo em movimento, somos susceptíveis de sobrecarregar qualquer conhecimento que tenhamos adquirido ao estendê-lo para áreas onde já não é aplicável. Desta forma até mesmo interpretações válidas da realidade serão certamente interpretações distorcidas. George Lakoff, entre outros, mostrou que a linguagem emprega metáforas em vez de lógica rígida. As metáforas funcionam através da transferência de observações ou atributos de um conjunto de circunstâncias para outro, e é quase inevitável que o processo seja levado demasiado longe. Isto pode ser facilmente visto no caso do método científico. A ciência é um método altamente bem sucedido no que diz respeito a adquirir conhecimento. (...). Mas o processo foi demasiadamente longe.” SOROS,George. O novo paradigma dos mercados financeiros...,cit.p.97. 60 NETO B. e BASSO D. A ciência e o desenvolvimento sustentável…,cit. George Soros, Ibidem, pags 66 e 67, descreve como o cérebro humano não é capaz de assimilar a realidade directamente mas apenas a informação que deriva dela, recorrendo, no processamento dessa informação a generalizações, comparações, hábitos, etc. Aquilo a que THALER e SUNSTEIN, obra citada, descrevem como heurísticas no processo de gestão e organização de informação no cérebro, como por exemplo a ancoragem, a disponibilidade e a relatividade. A este propósito também Rute Saraiva, obra citada, pags 42 e ss e 972 e ss. 61 KAUFMANN, Filosofia...,cit p. 68
21
incompatível com aquela representação do mundo e com um conhecimento científico
infalível, cuja função seria a de proporcionar um controlo crescente sobre a natureza
apresenta-se, assim, como a emergência de um novo campo interdisciplinar que
aproxima a ciência da sociedade. De um lado fá-lo pela real aproximação da
comunidade dos cientistas à sociedade civil, precisamente por uma democratização do
conhecimento em virtude também do desenvolvimento da internet e dos suportes
digitais. O que aliás possibilita uma maior acessibilidade em tempo útil a esse
conhecimento científico, sendo, muitas vezes inclusive, os próprios cientistas que se
recorrem das plataformas virtuais para partilhar os frutos das suas investigações. Fá-lo
por outro lado, e directamente ligada com a primeira, porque os cientistas desçem
agora do seu pedestal de únicos detentores do conhecimento e a sociedade acaba por
desempenhar um papel de “escrutínio” das novas descobertas. Pense-se, por exemplo,
na oposição social que os OGM enfrent(ar)am sob a égide de algumas ONG. De uma
forma geral, a sociedade civil tem vindo cada vez mais a desempenhar um papel
muito importante no quadro de um desenvolvimento sustentável- podendo falar-se
inclusivamente numa democracia ambiental que não só é representativa como
também participativa62.
Certamente não somos ainda todos cientistas e nesse sentido temos de confiar
em estudos científicos63. Isto é, a “identificação da questão ambiental” cabe em
primeiro lugar aos cientistas64, assim como qualquer tomada de decisão deve ser
cientificamente fundada. A premissa de um conhecimento cientificamente fundado65
procura obter uma maior segurança e certeza dos riscos que enfrentamos mas, como
62 A participação ambiental desdobra-se no acesso à informação ambiental, à participação nas decisões públicas e no acesso à justiça, como decorre da Convenção Arhus. Embora esta Convenção seja de aplicação limitada na prática, ela foi um importante passo em matéria ambiental estabelecendo uma relação estreita entre direitos ambientais e direitos humanos. O autor Jorge Viñuales propõe um modelo de environnemental gouvernance que assenta sobre participação, diferenciação, descarbonização e inovação e difusão tecnológica. Dentro destes ele destaca o papel da participação. VIÑUALES, Jorge. E. The Rise and fall of sustainable development, Review of European Community & International environnemental Law, 22 (1), 2013. 63 SARAIVA, Rute. A herança...,cit: “qualquer trabalho sobre a economia do carbono pressupõe a aceitação de uma condição de base: um aquecimento global real ou potencial responsável por alterações no padrão climático terrestre conhecido, sustentado por vários estudos científicos.”, p. 42. 64 GARCIA, Maria da Glória. O lugar do direito na protecção do ambiente..., cit. 65 Atente-se na redação do art. 191º/3 do TFUE : “Na elaboração da sua política no domínio do ambiente, a união terá em conta:
- os dados científicos e técnicos disponíveis, - as condições do ambiente nas diversas regiões da União, - as vantagens que podem resultar da actuação ou da ausência da ausência de actuação, - o desenvolvimento económico e social da União no seu conjunto e o desenvolvimento
equilibrado das suas regiões.
22
bem ilutra a professora Rute Saraiva66, a recolha de dados científicos pode revelar-se,
ela própria, problemática. As dificuldades prendem-se, desde logo, pelo facto de o
cientista não ser imune a pré-juízos e enviusamentos cognitivos que transporta para o
seu trabalho67 68. As pesquisas podem, também como identificado pela professora
Rute Saraiva, estar enviusadas à partida pela pretensão do cientista de chegar a um
determinado resultado.
Um outro problema é um problema de independência, a investigação depende
de financiamento de entidades terceiras que faz com que a pesquisa não vá
propriamente ao encontro da “verdade científica” mas dos interesses daqueles que a
financiam e que a pesquisa sirva, por exemplo, propósitos políticos69. Rute Saraiva
explica ainda como a heurística do medo, pela apresentação de cenários extremos
apelando à emoção, é mais eficaz a mudar a opinião pública, o que pode contribuir
para uma mais rápida consciencialização ecológica mas pode também servir os
objectivos de regulação dos ecologistas mais conservadores ou mesmo a procura de
receita pela comunicação social70.
A este propósito parece-nos interessante invocar algumas ideias que decorrem
da teoria desenvolvida por Boaventura de SOUSA SANTOS71, na sua obra um
“Discurso sobre a ciência”, na qual para além de identificar um paradigma dominante
e um paradigma emergente, enuncia os quatro postulados sobre os quais se assentaria
o conhecimento científico pós moderno: 1) todo o conhecimento científico-natural é
científico-social, 2) todo o conhecimento é local e total, 3) todo o conhecimento é
autoconhecimento, 4) todo o conhecimento científico visa constituir-se em senso
comum72. Alguns aspectos desta teoria vão ao encontro do que se disse. Do primeiro
postulado decorre a ideia de que a diferença dicotómica entre ciências naturais e
ciências sociais perdeu sentido e utilidade e nesse sentido o paradigma emergente
66 SARAIVA, Rute. A herança...,cit, pags 42 e ss. 67 Idem Ibidem. 68 Ver nota 55. 69 Rute SARAIVA dá o exemplo do Climategate o caso da descoberta de manipulações nos dados armazenados na Unidade de Investigação sobre o Clima da Universidade de East Anglia no Reino Unido. Obra citada p.40. 70 Para uma indagação mais profunda sobre os obstáculos à verdade científica em matéria ambiental consultar SARAIVA, Rute. A herança...,cit, pags 42 e ss. 71 Apud MOTTA LOSS, Mariana. MOTA LOSS, Marianna. Sustentabilidade a face oculta da solidariedade. Revista do instituto de Direito Brasileiro. Ano 3. 2014 nº 10 pags. 7960 72 Idem Ibidem
23
tende a ser complexo e não dualista como o paradigma dominante73. Deste ponto
decorreria a concepção de que ao invés de serem trazidos conceitos das ciências
naturais para explicar o funcionamento das ciências sociais, são as ciências sociais
que explicam ou atribuem características próprias às ciências naturais. No entender
deste autor todo o conhecimento é então autoconhecimento o que seria o terceiro
postulado da ciência pós-moderna. Assim a explicação científica dos fenómenos é um
juízo de valor, é a autojustificação da ciência. O conhecimento como
autoconhecimento revela que o objeto é uma extensão do sujeito. Esta postulado
exprime aquilo que também já referimos neste trabalho, a ideia de que os valores e as
crenças ultrapassam o investigador e são transpostos no objecto investigado. Segundo
a teoria deste autor haveria ainda um quarto postulado o de que todo o conhecimento
científico visa constituir-se em senso comum. Desta forma, enquanto a ciência
moderna salta qualitativamente do conhecimento do senso comum para o
conhecimento científico, a ciência pós-moderna parte do conhecimento científico para
o senso comum, como o reconhecimento de virtualidades que podem completar a
relação da pessoa com o mundo.
Esta representação (teórica) é tanto mais interessante quanto mais ela é
acompanhada da compreensão das complexidades e interrelacionamento de
fenómenos e seus condicionamentos, o que aumenta drasticamente a incerteza do que
cientificamente se conhece e a failibilidade dos instrumentos e metodologias de que
tecnicamente se dispõe 74 . Se a pessoa humana foi colocada no centro do
conhecimento pelo Humanismo, hoje, no paradigma emergente, a natureza é posta no
centro da pessoa na medida em que se reconhece que o homem pertence à natureza e
faz parte dela. Esta recolocação do papel das ciências sociais/humanas e a conquista
de que o homem faz parte do objecto que tenta compreender é um dos pontos fulcrais
deste novo paradigma : não sendo o conhecimento científico (sempre) seguro e nem a
técnica infalível, só o questionamento filosófico poderá sustentar as soluções
encontradas, na sua incerteza e falibilidade75.
Este novo paradigma apresenta-se assim como uma espécie de reintrodução da
dúvida (metódica) mas desta vez em prol de uma abordagem holística, ligando aquilo
que o método postulado pela ciência separou, a começar pelo homem da natureza. Um 73 Idem Ibidem p. 7961 74 GARCIA, Maria da Glória. O lugar do direito na protecção do ambiente...cit. 75 Idem Ibidem
24
paradigma que é o das interdependências da relação que o homem estabelece com o
seu mundo76.
Segue-se então a necessidade de mobilizar o pensamento para ultrapassar as
contradições e a complexidade. Cabe aos juristas a apreensão de novos fenómenos e
de novas lógicas jurídicas, como bem ilustra por exemplo o princípio de precaução
que desafia as lógicas jurídicas tradicionais77, o qual vive, também ele, de constantes
ponderações. Perante a evolução do mundo ficamos em alerta, acometidos ao papel de
reavaliar os princípios, os conceitos e as ferramentas do direito moderno já bem
nossos conhecidos e solidificados, pensavámos nós. Esses conceitos manifestam cada
vez mais os limites da sua pertinência e da sua capacidade de capturer o objecto e a
lhe fazer compreender. Somos então obrigados a repensar as classificações e as
categorias mas essa é uma tarefa de gigante que nos leva a repensar a normatividade
ou mesmo o Direito.
A primeira dificuldade é, desde logo, a confusão conceptual que marca os
nossos tempos, da qual o conceito de desenvolvimento sustentável é provavelmente o
supra-sumo dos exemplos. Já dizia Levy Strauss “a tarefa essencial de quem consacra
a sua vida às ciências humanas é de se lancer naquilo que parece o mais arbitrário, o
mais anárquico e mais incoerente e tentar encontrar uma ordem subjacente ou, pelo
menos, ver se existe uma ordem subjacente”78
76 Emilie GUILLARD: passa-se de um humanism de separação para um humanism das interdepências em GUILLARD,Emilie. Vers un nouvel humanisme? Entre un humanisme de séparation et un humanisme d’interdependance, transnational et transtemporel (générations futures). In DELMAS-MARTY, Mirelle L’environnement et ses métamorphoses. Edition Hermann, Paris 2015, pag. 227 77 Onde as lógicas jurídicas tradicionais requerem uma certitude absoluta de perigo o princípio de precaução impõe uma dever de vigilância. Idem Ibidem p. 227 78 Citação retirada de FRYDMAN, Benoît. Comment penser le droit global? Working Papers du Centre Perelman de Philosophie du Droit, 2012/01 p. 4 (tradução livre)
25
2. Aspectos internacionais do desenvolvimento sustentável
A comunidade internacional de 1945 foi uma comunidade marcada não apenas
pela guerra fria como também pela pelos objectivos, manifestados na Carta das
Nações Unidas, de afirmação dos valores fundadores do direito internacional, assim
como de afirmação da solidariedade entre Estados e entre os povos das nações
unidas79.
Tradicionalmente o direito internacional é aquele que tende a regular as relações
entre os seus sujeitos, isto é, entre os Estados que foram durante muito tempo os
únicos aos quais essa qualidade fora reconhecida. Esse direito internacional clássico80
era baseado sobretudo no voluntarismo : toda a regra de direito nas relações
internacionais derivavam única e exclusivamente da vontade dos Estados. Esta forma
de pensar, que predominava até à aparição das Organizações Internacionais, tinha
como seus princípios fundamentais a soberania e a independência dos Estados e nas
relações entre estes, a reciprocidade81
Depois da segunda guerra mundial a exceção feita ao princípio da reciprocidade
alargou-se, assistindo-se ao aumento progressivo de compromissos assumidos pelos
Estados sem reciprocidade, procurando servir um objectivo comum : prevenir as
tensões internacionais que constituíam uma ameaça para a paz. A devastação causada
pela segunda guerra mundial deixou certezas: perante uma guerra todos perdem;
tornando assim a manutenção da segurança um objectivo comum, e por conseguinte, a
sua realização terá de ser também ela, necessariamente colectiva.
O desenvolvimento a que se assistiu pós segunda guerra mundial evidencia um
crescimento económico desigual vindo juntar um eixo Norte/Sul ao já existente
Este/Oeste82. A estas tensões junta-se, na década de 70 o alarmismo por parte dos
cientistas e da opinião pública sobre os riscos, dificilmente reversíveis, que corria a
biosfera83. Destacam-se, nomeadamente, o naufrágio do petroleiro “Torrey-Canyon”
que resultou na poluição das costas inglesa, francesa e belga, dando assim uma
79 DUPUY, Pierre-Marie. Droit International Public. 12e éd. Paris,Dalloz, 2014. 80 Jorge Miranda refere que em sentido latíssimo, a história do Direito Internacional interpenetra-se com a história do Estado e nesse sentido aos diversos tipos históricos de Estado correspondem, naturalmente, diversos tipos de Direito Internacional mas é apenas com a extensão do moderno Estado de tipo europeu que se pode falar num direito internacional à escala do mundo, pelo que nos referimos ao Direito clássico considerando apenas o moderno Direito Internacional em Curso de Direito Internacional Público, 3º ed. Cascais, Principia, 2007. 81 BEURIER, Jean-Pierre e Kiss, Alexandre.Droit International de l’environnement, 4e éd. Paris, A.Pedone, 2010. 82 DUPUY, Pierre-Marie. Droit International Public...cit. 83 BEURIER e KISS, Droit International...,cit.
26
imagem à degradação ambiental, bem como a entrada em cena das primeiras
poluições que se podem qualificar de globais: a diminuição da camada de ozono
estratosférico ou o aumento do efeito de estufa84.
Doravante os desafios que se apresentam cada vez mais à escala global obrigam
os Estados mais do que a coexistir – a cooperar85.
2.1 A penetração do conceito do Desenvolvimento Sustentável
Findos os anos 60 e no seguimento dos desastres ambientais sucedidos na
década de 7086, o alarmismo lançado pela comunidade científica encontra voz numa
sociedade civil em mutação87, desde logo porque este “movimento ecologista”, que se
desenrolava à margem de qualquer ação governamental, correspondia a uma nova
concepção do mundo comportando novos valores sociais e individuais88.
Aquela que pode ser entendida como a “história do conceito do
desenvolvimento sustentável” é concomitante com a do direito internacional do
ambiente, pois é também na década de 70 que se verifica a multiplicação de textos
que lançam as bases da cooperação internacional assim como os próprios
fundamentos do direito internacional do ambiente moderno89. Cabe então fazer uma
passagem pelos instrumentos internacionais de maior relevância que permitiram o
aparecimento e difusão deste conceito.
2.1.1 Conferência de Estocolmo
A conferência de Estocolmo, conferência das Nações Unidas sobre o meio
ambiente Humano, realizou-se em junho de 1972 em Estocolmo e foi
maioritariamente uma conferência sobre ambiente, como bem se pode depreender da
sua introdução: « atenta à necessidade de um critério e de princípios comuns que
84 Até então estas poluições tinham emissores e vítimas bastante bem identificados S. FAUCHEUX, J.F. NOEL, Economia dos recursos..., cit. 85 FITZMAURICE,Gerald. Some Problems Regarding the Formal Sources. In KOSKENNIEMI,Martti. Sources of International law. Coleção The library of essays in international law The Library of essays in international law, Aldershot, 2000. 86 BEURIER e KISS, Droit International...,cit. 87 SARAIVA, Rute Herança de Quioto...,cit. 88 BEURIER e KISS. Droit International de l’environnement...,cit. 89 Idem Ibidem.
27
ofereçam aos povos do mundo inspiração e guia para preservar e melhorar o meio
ambiente humano”90. Não se fala ainda de desenvolvimento sustentável mas surge o
conceito de ecodevelopment, pelas mãos de Maurice Strong, Secretário Geral da
conferência, no qual se pretende expressar, precisamente, uma intenção conciliadora
entre o meio ambiente e o desenvolvimento económico91.
As tensões da época e o profundo atraso em que alguns países, em especial
algumas antigas colónias, se encontravam não permitiram a penetração de um
conceito como o desenvolvimento sustentável. Com efeito, a deterioração do
ambiente estava muito associada ainda às poluições indústriais e os países em
desenvolvimento queriam ver reunidas as condições para que eles também pudessem
ter acesso ao desenvolvimento e industrialização que estiveram, em primeiro lugar, na
origem dessa deterioração, como o comprova o princípio 11 da declaração que
resultou desta conferência: “As políticas ambientais de todos os Estados deveriam
estar encaminhadas para aumentar o potencial de crescimento atual ou futuro dos
países em desenvolvimento e não deveriam restringir esse potencial nem colocar
obstáculos à conquista de melhores condições de vida para todos (…)” 92 . A
Declaração de Estocolmo foi, assim, muito vocacionada para as questões raciais como
o apartheid e o desenvolvimento económico e social, condições vistas como
essenciais à proteção do ambiente. O princípio 23 da declaração prevê precisamente
uma diferenciação necessária na aplicação das normas ambientais segundo o estado
de desenvolvimento dos diferentes países.
Contudo, certo é que, se o desenvolvimento e a proteção ambiental são vistos,
até aqui, como antagónicos, esta conferência marca uma certa ruptura com a visão de
crescimento ininterrupto 93 . Procurando a harmonização entre o crescimento
económico e o meio ambiente, esta conferência marcou-se pela integração entre os
dois, como resulta nomeadamente dos princípios 4 e 13, dispondo este último que:
“Com o fim de se conseguir um ordenamento mais racional dos recursos e melhorar 90 Tradução do inglês : having considered the need for a common outlook and for common principles to inspire and guide the peoples of the world in the preservation and enhancement of the human environment. 91 91 LANFRANCHI, Marie-Pierre. Développement Durable et Droit International Public, Jurisclasseur Environnement et Dévelopment Durable, fasc. 2015, 2010. 92 Tradução nossa do inglês: “ The environmental policies of all States should enhance and not adversely affect the present or future development potential of developing countries, nor should they hamper the attainment of better living conditions for all, and appropriate steps should be taken by States and international organizations with a view to reaching agreement on meeting the possible national and international economic consequences resulting from the application of environmental measures.”. 93 MALJEAN-DUBOIS, Sandrine. L’emergence du développement durable comme paradigme et sa traduction juridique sur la scène internationale. B. Villaba (éd). Appropriations du développement durables, Émergences, diffusions, traductions, Villeneuve-d’Ascq: Presses Universitaires du Septentrion, 2009, P. 67-105.
28
assim as condições ambientais, os Estados deveriam adotar um enfoque integrado e
coordenado de planejamento do seu desenvolvimento, de modo a que fique
assegurada a compatibilidade entre o desenvolvimento e a necessidade de proteger e
melhorar o meio ambiente humano em benefício de sua população”94.
Vale apenas destacar a vontade política de integrar a planificação e a execução
das políticas sócio-économicas, que em conjunto com os princípios 1 e 2 compunham
já as bases daquilo que viria a revestir o conceito de desenvolvimento sustentável,
nestes últimos já quanto ao aspecto intergeracional do desenvolvimento sustentável,
ao afirmar-se a importância da preservação dos recursos naturais não apenas face às
gerações do presente como às gerações futuras.
O princípio 21, visto como uma das disposições fundamentais da declaração
reafirma a soberania dos estados no que concerne à exploração dos seus próprios
recursos impondo um dever de cautela de não causar danos transfronteiriços ao
ambiente 95 . Como veremos adiante este princípio de não causar danos
transfronteiriços, também presente na declaração Rio resulta de uma jurisprudência
internacional que remonta a 194996 e que foi considerado pelo Tribinal Internacional
de Justiça como parte do corpus juris do direito internacional, é ainda hoje um
princípio largamente utilizado pelo TIJ nesta matéria – em detrimento de aplicação e
afirmação de outros princípios.
Esta conferência foi marcada pela sua natureza essencialmente de compromisso
face aos confronto entre os países do sul e do norte - donde o princípio 18 da
declaração que “renvia” a resolução dos problemas ambientais para o progresso
tecnológico. A prova disto é o PNUMA, que representa uma inversão completa da
lógica da Declaração, no qual o ambiente é remetido a um papel de subordinação.
Esta instituição vai acordar uma atenção particular às necessidades dos países em
desenvolvimento contribuindo a um deslizamento da reflexão em torno do conceito de
desenvolvimento sustentável97.
94 Tradução nossa do inglês : “In order to achieve a more rational management of resources and thus to improve the environment, States should adopt an integrated and coordinated approach to their development planning so as to ensure that development is compatible with the need to protect and improve environment for the benefit of their population.” 95 LANFRANCHI, Marie-Pierre. Développement Durable et Droit International Public...,cit. 96 C.I.J, Détroit de Corfou (United Kingdom c. Albania), 9 April de 1949 97 MALJEAN-DUBOIS, Sandrine. L’emergence du développement durable ..., cit.
29
2.1.2 O relatório Brundtland – nascimento do conceito.
É com a conferência Rio em 1992 que o conceito de Desenvolvimento
Sustentável vai propagar-se. A definição do desenvolvimento sustentável tinha já
emergido no relatório Brundtland. O relatório da comissão mundial sobre o ambiente
e o desenvolvimento, intitulado Our common future, apresenta a célebre definição do
conceito de desenvolvimento sustentável “desenvolvimento que responde as
necessidades do presente sem comprometer as capacidade das gerações futuras de
responder às suas”98 . Comanditado em dezembro de 1983, pela Secretária geral da
ONU J. Perez de Cuellar, o relatório da primeira ministra norueguesa, Gro Harlem
Brundtland, recebeu um grande acolhimento e aceitação por parte da ONU que
considerou inclusive que o desenvolvimento sustentável deveria tornar-se um
princípio director fundamental para as Nações Unidas, para os Estados assim como
para as Instituições, organizações e empresas privadas99.
Este relatório apoia-se na constatação das interdependências que ligam agora
todos os sectores da actividade humana. As catástrofes ecológicas, os problemas do
desenvolvimento e as crises do sector energético não são isoladas mas interligam-se.
Posto esta interdependência de causas e efeitos dos problemas ligados ao
desenvolvimento o tratamento não poderia ser outro que – transversal. Neste sentido,
de acordo com este relatório, o desenvolvimento sustentável oferece um quadro que
permete integrar políticas ambientais com as estratégias de desenvolvimento. Temos
aqui uma característica essencial deste conceito, a sua vocação integradora, e embora
em momento algum este relatório defina a natureza jurídica deste conceito atribui-lhe
todavia um carácter de objectivo (sobretudo dos países industrializados, nas palavras
do relatório). Este relatório aponta dois conceitos como intrínsecos à noção de
desenvolvimento sustentável, o conceito de necessidades, em especial, as
necessidades dos mais desporvidos e a ideia de limitações que o estado da nossa
tecnologia e da nossa organização social impõem sobre a capacidade do ambiente de
responder às necessidades actuais e futuras.
Assim definida, a noção articula-se em torno do imperativo da equidade
intergeracional, aquele que é um traço essencial deste conceito. Contudo esta noção 98 Tradução do inglês:“that it meets the needs of the present without compromising the ability of future generations to meet their own needs.” 99 Resolução 42/187, 11 décembre 1987
30
de equidade estende-se também ao interior de um mesma geração, sendo também
intrageracional. Englobante esta noção combina as dimensões económica, ambiental e
social e impõe então um modo de desenvolvimento que preserve os recursos naturais
e os ecosistemas, que permita a transmissão da capacidade produtiva das sociedades
actuais às futuras (temos assim as dimensões ambientais e económicas)100, o que
implica salvaguardar a coesão da sociedade e fazer com que o tecido social
futuramente herdado não seja um tecido rasgado por politicas ambientais e
económicas que não tenham em conta as necessidades do mais desprovidos, donde
resulta então a importância da equidade intrageracional.
Noção conciliadora, característica que esteve na origem do seu sucesso, faz
igualmente objecto de crítica pois é difícil de cerner o seu alcance.
Veja-se por exemplo que a resolução da ONU de 11 de dezembro de 1987101 na
qual afirma que o desenvolvimento sustentável, na definição proposta pelo relatório
Brundtland deveria tornar-se um princípio director fundamental para as nações
unidas, para os governos assim como para as instituições, organizações e empresas
privadas. Note-se que aqui ele é considerado como princípio, mas que nunca veio, até
aos de hoje, a ser acolhido como tal. Pelo menos não de forma expressa.
2.1.3 Conferência Rio (1992)
O desenvolvimento sustentável tornou-se assim a palavra de ordem desta
conferência. Nesta a articulação entre ambiente, desenvolvimento e equidade não é
apenas reafirmada como é lhe é dado maior enfâse do que na conferência precedente.
Desde logo no seu princípio 3 proclama-se o direito ao desenvolvimento, omitindo-se
a palavra sustentável para logo de seguida, no princípio 4, relembrar a necessidade da
integração entre desenvolvimento e protecção do ambiente. Uma das maiores
preocupações desta conferência será o combate à pobreza, condição indispensável
para atingir um desenvolvimento sustentável, princípio 5. Nesta declaração temos
também uma responsabilidade diferenciada na aplicação de normas ambientais,
nomeadamente no princípio 11 e princípio 7 no qual os países desenvolvidos se 100 Programme for the Further Implementation of Agenda 21 (UNGA Resolution S/19-2, 28 June 1997), Annex, paragraph 3 (‘We areconvinced that the achievement of sustainable development requires the integration of its economic, environmental and socialcomponents’). 101 (A/RES/42/187)
31
declaram, de certa forma, promotores do desenvolvimento sustentável em virtude da
sua maior contribuição para a situação ambiental e em virtude também das condições
économicas de que dispõem. O princípio 9 vai ainda mais longe referindo-se à
necessidade de promover ao reforço das capacidades endógenas de atingir um
desenvolvimento sustentável (capacidades que os países desenvolvidos já disponham
lêia-se) nomeadamente pela transferência de tecnologia. O que mostra uma ideia de
desenvolvimento sustentável a duas velocidades.
A destacar nesta conferência é a referência ao papel das mulheres, dos jovens,
das comunidades autóctones e das organizações não governamentais na prossecução
do desenvolvimento sustentável (princípios 20, 21 e 22) o que é sintomático de uma
mudança de mentalidade102. Os príncipios 15103, 16 vêm estabelecer dois princípios do
desenvolvimento sustentável, o princípio da precaução e o princípio poluidor-
pagador. O princípio 17 vem estabelecer a obrigagão de proceder à AIA104 que
também como veremos mais adiantes são muito importantes num quadro de
desenvolvimento sustentável. Contudo a menção ao princípio do poluidor-pagador
não foi feita sem que seja especificado que a aplicação deste princípio deverá ser feita
sem interferir com o comércio internacional105. Se na declaração de Estocolmo as
preocupações dos países em desenvolvimento operavam num contexto ecológico na
declaração Rio à alusão às politicas de desenvolvimento parecem constituir un
contrapeso na questão106. Há quem veja nesta conferência um recuo na reflexão do
desenvolvimento sustentável pois se a declaração de Estocolmo foi uma declaração
sobre ambiente, a declaração Rio foi uma conferência sobre ambiente e
desenvolvimento107 108.
102 BEURIER, Jean-Pierre. Droit International de l’environnement...,cit. parágrafo 50. 103 Princípio 15 mostra um retrocesso na fé do progresso científico, pela introdução do princípio da precaução. 104 SANDS, Phillipe refere-se aos AIA como novas ferramentas legais em detrimento das técnicas tradicionais de command and control em Principles of international environmental law. 2nd edition, Cambridge University Press, 2004. 105“National authorities should endeavour to promote the internalization of environmental costs and the use of economic instruments, taking into account the approach that the polluter should, in principle, bear the cost of pollution, with due regard to the public interest and without distorting international trade and investment”(A/CONF.151/26). 106 LANFRANCHI, Marie-Pierre. Développement Durable et Droit International Public...,cit. 107 MALJEAN-DUBOIS, Sandrine. Environnement, développement durable et droit international. De Rio à Johannesburg: et au-delà? In Annuaire français de droit international, volume 48, 2002 P. 592-623 (disponível em http://www.persee.fr/doc/afdi_0066-3085_2002_num_48_1_3718) 108 Parece haver aqui uma certa legitimação do crescimento económico como condição prévia do desenvolvimento dito sustentável, uma das críticas que tem sido muitas vezes apontado a este conceito, LANFRANCHI, Marie-Pierre. Développement Durable et Droit International Public...,cit.
32
Nesta conferência, grosso modo, reforça-se as bases do conceito : protecção
ambiental, desenvolvimento économico como forma de obtenção da equidade
intrageracional e ainda equidade intergeracional. O desenvolvimento sustentável
apresenta-se então como um novo paradigma, que corresponde a uma nova concepção
do mundo portadora de novos valores individuais e sociais face à degradação
ambiental109 mas a conferência permanece evasiva quanto à sua concretização.
2.1.4. Conferência de Joanesburgo
Em 2002 o sommet mundial pelo desenvolvimento sustentável não traz um
novo quadro conceptual para o desenvolvimento sustentável em vez disso ela
destinou-se a fornecer um quadro de execução dos compromissos assumidos na
conferência Rio, que esta conferência confirma e aprofunda. Destinou-se também a
verificar que progressos tinham sido levado a cabo depois da conferência Rio. Esta
conferência destinou-se sobretudo a tomar medidas concretas para a execução das
medidas tomadas em 1992 e em reforçar a cooperação internacional no quadro dos
principio de Rio, redobrando os esforço. Podemos considerar que a declaração Rio de 1992 fez do conceito de
desenvolvimento sustentável uma referência incontornável da comunidade
internacional110, contudo numa assembleia geral das nações unidas – Rio+5 constata-
se com uma profunda inquietude que naquilo que diz respeito ao Desenvolvimento
sustentável as perspectivas são mais desanimadoras que em 1992 111
Num clima que parece ser o de uma maior degradação ambiental 112 a
declaração de Johansburgo nada refere quanto a este aspecto. O conteúdo do pilar
ambiental do desenvolvimento sustentável é muito pouco desenvolvindo ficando-se
pela afirmação da necessidade de modificação dos modos de consumação e produção
não viáveis. É também consagrado um capítulo à gestão dos recusos naturais o que
demonstra que este conceito acaba por ser penetrado essencialmente por uma lógica
de gestão do ambiente. O capítulo sobre a mundialização mostra a frivolidade da
implementação deste conceito, inclusive até um certo deslizamento em detrimento de
109 DUPUY, Marie-Pierre. Droit International Public...cit. 110 DUPUY. Droit International Public...cit. p.11. 111 Doc A/S-19/29, 27 juin 1997, programme relatif à la poursuite de la mise en oeuvre d’action 21. 112 MALJEAN-DUBOIS, Sandrine, De Rio à Johannesburg: et au-delà?..., cit.
33
políticas comerciais113. O plano de acção é muito centrado para a questão do
desenvolvimento e verifica-se uma lacuna em matéria ambiental. As referências ao
desenvolvimento sustentável são vagas o que não é de admirar dado o contexto
économico e o peso dos objectivos do milénio dirigidos à redução de pobreza que
fizeram, dessa forma, com que esta declaração se tenha concentrado em afirmar a
importância de um clima économico propício à promoção do desenvolvimento
sustentável. Clima esse que seria alcançado através de um crescimento económico por
sua vez fruto da liberalização do comércio. Este ponto marca um certo afastamento
do pilar ambiental, podendo mesmo falar numa economização do ambiente. O
comércio internacional como motor de crescimento e de desenvolvimento renvia a
questão para os mecanismos do mercado, em vez de fazer depender o
desenvolvimento de ajudas públicas. Neste sentido a conferência apela também a uma
cooperação entre os governos e o sector privado, constatando-se que os governos não
podem agir sozinhos. A relação do poder público com o sector privado não é tanto
uma relação hierárquica, via regulação, por exemplo, mas uma relação de parceria114.
Nenhuma definição de desenvolvimento é proposta, consolida-se apenas a ideia
de que esta noção concretiza-se nos três pilares subjacentes.
2.1.5 Conferência Rio+20
À semelhança da conferência anterior as nações unidas convocam uma nova
conferência mundial sobre desenvolvimento sustentável com o objetivo de garantir
um compromisso renovado em nome do desenvolvimento sustentável, avaliando o
progresso obtido até o presente e as lacunas remanescentes (resolução 64/236 de 24
de Dezembro de 2009). O foco da Conferência destinava-se a discutir a economia
verde no contexto do desenvolvimento sustentável e erradicação da pobreza, bem
como um quadro institucional para o desenvolvimento sustentável. Mais uma vez o
objectivo não é a definição conceptual deste conceito e mais uma vez o foco é
colocado sobre a redução da pobreza, parte integrante do pilar social do
113 Idem Ibidem. 114 Sandrine maljean-dubois a este propósito fala em compromissos de tipo 2 (que se distinguem dos compromissos dos clássicos compromissos assumidos pelos Estados –tipo 1), uma espécie de parcerias público-privadas, enquadradas por linhas directivas em environnement, développement durable et droit international. De rio à Johannesburg: et au- delà?
34
desenvolvimento sustentável. A menção a uma economia verde fazia já entrever, à
semelhança do que aconteceu na conferência anterior, um deslize na perspectiva
priorizando o aspecto económico115.
No seguimento da constatação de um quadro institucional extremamente
fragmentado na matéria esta conferência procurou proceder a uma reforma
institucional e racionalização das estruturas existentes. Algumas das medidas neste
sentido previam o reforço do papel do PNUA, assim como a criação de uma nova
organização internacional com vista a melhorar a integração do desenvolvimento
sustentável no trabalho das instituições que se ocupam das questões económicas,
sociais e ambientais. A Comissão do Desenvolvimento Sustentável das Nações
Unidas recebe a missão de impulsionar a cooperação internacional os órgão
intergovernamentais no que diz respeito a tomadas de decisões e de aplicação da
Agenda 21116.
De resto, existem inúmeros outros instrumentos internacionais, de conteúdo
específico, guardando portanto a sua aplicação, que de uma maneira ou de outra
procuram concretizar um desenvolvimento sustentável e executar os compromissos
assumidos (de uma forma genérica) nestas convenções. A Convenção quadro das
nações unidas sobre as alterações climáticas (1992), Convenção sobre biodiversidade
(1992) e a Convenção das nações unidas para o combate à desertificação, constituem
alguns exemplos (1994). Assiste-se inclusivamente a uma proliferação de textos na
matéria, de órgãos e de instituições, com a consequente sobreposição de “regulação”
de matérias e uma estrutura institucional fragmentada, densa e complexa117. Por
definição, as convenções internacionais são poucos númerosas mas em matéria
ambiental os acordos internacionais são demasiados, onde a não vinculatividade
115 Trata-se de uma visão reformista baseada no business as usual e, por isso, populista porque menos dolorosa. e fracturante. Racional e tecnocêntrica procura, através de um planeamento e gestão mais cuidados, avaliar melhor os impactos socio ambientais do desenvolvimento e ponderar de forma mais correcta a relação custo-benefício. No fundo, resume-se a um esverdear do statu quo, das políticas e dos programas existentes, traduzindo uma lógica comodista de mudança na continuidade. Aceita-se o modelo do capitalismo industrial e o desenvolvimentalismo, propondo uma reabilitação dos instrumentos disponíveis, posição muito criticada pelos verdes radicais. SARAIVA, Rute. “A herança …, cit. 116 MALJEAN-DUBOIS, Sandrine. De rio à Johannesburg: et au- delà?..., cit,p. 608. 117 SANDS, Philippe, Principles of international environmental law. 2nd edition, Cambridge University Press, 2004
35
parece ser o denominador comum e onde as disposições (gerais) sobre o
desenvolvimento sustentável leva ao cúmulo do soft118.
2.2. Ausência de concretização conceptual
Da análises das confêrências das nações unidas não é possível retitrar uma
concretização conceptual. À medida que abordamos as grandes conferências sobre o
desenvolvimento sustentável fomos também adiantando que em termos conceituais
elas não trouxeram grandes novidades119, nem lograram proceder à concretização da
noção nascida no relatório Brundtland de que “O desenvolvimento sustentado é o
desenvolvimento que permite dar resposta às necessidades do presente, sem comprometer a
possibilidade de as gerações futuras responderem às suas”. A elas deve-se o inegável mérito da
grande disseminação desta noção e sua penetração nas agendas políticas, seja a nível
nacional, regional ou internacional tornando-o num adquirido da comunidade
internacional120. Todavia, são muitos os aspectos que justificam as evasivas na
determinação deste conceito para que dele fosse possível extrair os elementos da sua
jurisdicidade. Desde logo, também como fomos referindo, da análise destas
conferências é possível perceber que embora haja de facto uma vontade política de
integrar os desafios ambientais na prossecução de políticas socais e económicas,
parece-nos que esse objectivo acaba por sucumbir a uma economização do ambiente,
pelo que nos parece pertinente trazer à colação as reflexões da professora Rute
Saraiva sobre a sedimentação de ideias que resultam destas conferências : “Trata-se
de uma visão reformista baseada no business as usual e, por isso, populista porque
menos dolorosa e fracturante. Racional e tecnocêntrica procura, através de um
planeamento e gestão mais cuidados, avaliar melhor os impactos socio ambientais do
desenvolvimento e ponderar de forma mais correcta a relação custo-benefício. No
fundo, resume-se a um esverdear do statu quo, das políticas e dos programas
existentes, traduzindo uma lógica comodista de mudança na continuidade. Aceita-se
118 MALJEAN-DUBOIS, Sandrine. De rio à Johannesburg: et au- delà?..., cit,p.559.119 Aquilo que ainda hoje é entendido como desenvolvimento sustentável resulta praticamente da declaração rio e os documentos que dela resultaram a convenções sobre a as alterações climáticas e biodiversidade e ainda a agenda 21 P. BIRNIE A. BOYLE and C. REDDGWELL, International Law and the environment...,cit.p. 84. 120 Nomeadamente OMC, OMS, FAO, Banco Mundial, OMI passaram adoptaram programas ambientais. MALJEAN-DUBOIS, Sandrine. De rio à Johannesburg: et au- delà?..., cit,; P. Birnie A. Boyle and C. Reddgwell, International Law and the environment..., cit.p. 84
36
o modelo do capitalismo industrial e o desenvolvimentalismo, propondo uma
reabilitação dos instrumentos”.
É já conhecida a dificuldade de em direito internacional de se falar, por um
lado, em normas 121, dada a ausência de uma entidade suprema investida com
autoridade, e por outro de alcançar o consenso necessário entre Estados para que se
possa estabelecer novas regras por tratado dada a diversidade cultural, política ou
ainda religiosa da sociedade contemporânea internacional. Estas dificuldades são
particularmente sensíveis no que diz respeito ao desenvolvimento sustentável, pois ele
afecta directamente as políticas económicas dos Estados. Isto explica o recurso a
preceitos gerais, com vocação pedagógica, como os preceitos destas declarações que
mais parecem preceito morais do que regras jurídicas122. Facilita-se assim a adesão
dos Estados aos instrumentos internacionais neste domínio. A estes preceitos a
doutrina anglo-saxónica tem vindo a chamar de soft law, pois destinam-se ter algum
conteúdo normativo embora não vinculativos123. Ainda que esta designação de soft
law (ou mesmo o recurso a este tipo de instrumentos), aparentemente crescente, seja
também objecto de discussão é consensual que ele destina-se a conformar a actuação
dos Estados, mediante o estabelecimento de padrões mínimos de conduta, evitando-se
assim a imposição de uma cultura sobre as outras124, um problema, que aliás, é
transversal ao direito internacional. Apesar de não vinculativas estas “obrigações” ou
o estabelecimento destes padrões criam um “código de conduta” e dão a sensação de
que a não observância destas regras equivalem ao não cumprimento de um tratado ou
de uma regra consuetudinária125. Isto é, gera nos Estados a consciência que estes não
estão a agir de acordo com os padrões estabelecidos pela comunidade internacional, o
que, não deixa de ser gradual e progressivo mas permite o desenvolvimento do direito
internacional à longo termo.
À fraqueza dos conteúdo vem juntar-se um quadro institucional fragmentado e
denso, com a proliferação de acordos, textos, organizações e instituições a intervirem
no processo. Sabemos que o direito enquanto intencionalidade a cumprir mediante a
121 falando-se frequentemente em fontes e obrigações dos Estados, MIRANDA, Jorge. Curso de Direito Internacional Público...,cit. sources of international law 122 fala-se a este propósito de declarações de princípios, P. BIRNIE A. BOYLE and C. REDDGWELL, International Law and the environment...,cit.p. 25. 123 P. BIRNIE A. BOYLE and C. REDDGWELL, International Law and the environment...,cit.p. 84 124 Philippe Sands P. BIRNIE, A. BOYLE e C. REDDGWELL, International Law and the environment...,cit.p. 26 125 P. BIRNIE A. BOYLE and C. REDDGWELL, International Law and the environment...,cit.p. 26
37
sua realização está dependente de um quadro institucional o qual pressupõe um
controlo jurisdicional. Também aqui esta matéria carece de um controlo jurisdicional
adequado, verifica-se, desde logo, uma hesitação dos Estados em recorrer aos
tribunais internacionais no que diz respeito a matéria ambiental, o que, por sua vez,
resulta do facto desta matéria ser caracterizada por preceitos vagos126. Para além disso
o controlo não jurisdicional da ilicitude tem vindo a crescer nas convenções em
matéria ambiental, optando-se por formas mais flexíveis de efectuar esse controlo127.
Estes novos meios de controlo não resultam numa condenação dos estados
incumpridores, contrariamente, procuram dar assistência à implementação de
medidas, seja assistência financeira, técnica, jurídica ou outra. A cooperação substitui
assim a sanção e a reparação (pois também alguns destes mecanismos são
preventivos). O mais importante é promover o cumprimento das obrigações que de
sancionar o incumprimento o que evidência então uma tendência para o afastamento
dos meios jurisdicionais tradicionais128.
2.3 Natureza jurídica do desenvolvimento sustentável Poderia-se, desde logo, considerar, como aliás é um argumento muito utilizado,
que perante as dificuldade de balizar e concretizar o conceito, conclui-se pela
ausência de carácter normativo. Tanto assim é que perante esta dificuldade em balizar
o alcance de um princípio de desenvolvimento sustentável “as considerações jurídicas
são deixadas ao Grupo de Peritos em Direito do Ambiente da WCED”129, uma
intenção já manifestada no princípio 27 da Declaração Rio de uma necessidade de
proceder a um desenvolvimento no direito internacional no campo do
desenvolvimento sustentável130. Do relatório do grupo de peritos na identificação de
princípios do direito internacional pelo desenvolvimento sustentável resultaram
dezanove princípios e conceitos com o objectivo de orientar a interpretação das
obrigações jurídicas existentes como também de servir de apoio ao desenvolvimento 126 Ver infra ponto 6. 127 MALJEAN-DUBOIS dá como exemplo o sistema de non compliance introduzido pelo Protocol de Montreal que foi posteriormente adaptado noutras convenções internacionais, MALJEAN-DUBOIS, Sandrine. De rio à Johannesburg: et au- delà?...,cit, p.615 128 Idem Ibidem p.616 129 SARAIVA, Rute obra cit. p. 296 130 BIRNIE, Patricia, BOYLE, Alan and REDDGWELL, Catherine. International Law and the environment...,cit.p. 84
38
de novos instrumentos jurídicos com vista ao objectivo do desenvolvimento
sustentável131. Dentre os princípios enunciados ressaiem obrigações procedimentais
como as de informação, participação e acesso à justiça assim como princípios mais
gerais, nomeadamente, o princípio das responsabilidades comuns mas
diferenciadas132. Em 2002 a International Law Association formula sete princípios de
desenvolvimento sustentável133 e embora o conceito de desenvolvimento sustentável
seja formulado enquanto tal e não como um princípio admite-se que o recurso ao
conceito de desenvolvimento sustentável em direito internacional pode, com o tempo,
reflectir a sua maturação num princípio de direito internacional134135. Esta conclusão
não deveria ser negligênciada. Com efeito, se as confêrencias das nações unidas não
conseguiram balizar um princípio de desenvolvimento sustentável, delas resultam
várias princípios cuja a observância visa a integração do ambiente na prossecução de
objectivos económicos. Levando alguns autores a falar em princípios de chaves do
desenvolvimento sustentável, como o faz por exemplo Sandrine MALJEAN-
DUBOIS136, referindo assim os princípios de precaução, participação e prevenção.
Outros autores acabam por tentar identificar aquilo que consideram os elementos
constitutivos do desenvolvimento sustentável, discernindo entre elementos
substantivos (p. ex: o princípio de integração tal como previsto no princípio 4º da
Conferência Rio) e procedimentais137.
Não acompanhamos a visão de alguns autores que falam num novo corpus juris
de direito internacional aglutinador de normas provindas do direito internacional
económico, ambiental e social138. O conceito de desenvolvimento sustentável vai
continuar a ter um uso polissémico, a sua faceta transversal e multidisciplinar
131 LANFRANCHI, Marie-Pierre. Développement Durable et Droit International Public...,cit p. 16 132 Idem Ibidem 133 ILa resolution 3/2002 annexed to UN Doc. A/57/329 134 “Recourse to the concept of ‘sustainable development’ in international case law may, over time, reflect a maturing of the concept into a principle of international law, despite a continued and genuine reluctance to formalise a distinctive legal status;” ILa resolution 3/2002 annexed to UN Doc. A/57/329 135 Na declaração de Nova Deli o princípio de desenvolvimento sustentável surge identificado com sete princípios : i) obrigação de os Estados assegurarem um uso sustentável dos recursos naturais; ii) imperativo de equidade e de erradicação da pobreza; iii) princíop das responsabilidades comuns mas diferenciadas; iv) princípio da precaução; v) princípios do acesso à informação, participação e acesso à justiça em sede ambiental; vi) princípio da good governance; e vii) princípio da integração (dos direitos do Homem com os objetivos sociais, económicos e ambientais). 136 MALJEAN-DUBOIS, Sandrine. De rio à Johannesburg: et au- delà?...,cit,p.600. 137 de onde resultam a cooperação dos Estados obrigação de fazer a AIA e a participação do público. . P. BIRNIE A. BOYLE and C. REDDGWELL, International Law and the environmen...,cit. 138 Cordonier Segger, Sustainable development in international law...,cit.
39
possibilita a sua invocação em outras áreas do Direito Internacional, e embora ele se
concretize também pela ponderação de outros princípios, não consideramos muito
prudente falar num Direito Internacional do desenvolvimento sustentável como um
corpus juris de Direito Internacional. A atribuir-lhe um valor normative
Por sua vez, a ideia de que o princípio de desenvolvimento sustentável se
concretiza pela ponderação de outros princípios não preclude, em nossa opinião, a
possibilidade deste conceito traduzir em si um princípio de Direito Internacional139.
Grande parte da doutrina internacional é muito reticente a atribuir efeitos
jurídicos a este conceito ou a ver aqui um princípio de direito internacional140, desde
logo, em razão precisamente da indeterminação do seu contéudo. Certo é que o
conceito de desenvolvimento sustentado, tem sido repetido sistematicamente e com as
devidas abstrações todos sabemos do que se trata, tornou-se um adquirido da
comunidade internacional. Nenhum ordenamento jurídico o ignora. Isto deve-se como
se viu às grandes conferências das Nações Unidas, a criação de uma consciência
comum em torno desta ideia. Contudo, a sua natureza juridical ainda é muito
controversa daí a importância de que o TIJ se pronunciasse sobre a existência ou não
de um princípio jurídico. O TIJ teve entre mãos dois casos que lhe permitiam estatuir
sobre a naturza jurídica, clarificando o seu alcance e os seus contornos e contribuindo
assim para a progressão do direito internacional contemporâneo. Vamos então agora
ver como é o TIJ aplicou este conceito, focando-nos para isso nas suas duas decisões
paradigmáticas na matéria.
139 VOIGT, Christina. The Principle of Sustainable Development...,cit. Juiz CANÇADO TRINDADE separated opinion...,cit; Weeramantry Project Gabcikovo-Nagymaros, separated opinion p. 163 140 Veja-se nesse sentido MALJEAN-DUBOIS, Sandrine. De rio à Johannesburg: et au- delà?...,cit;PERRUSO, Camila, La contribuition du juge au faconnement de la Democratie environnemental in CANAL-FORGUES, Eric, Démocratie et diplomatie environnementales: acteurs et processos en droit international. Editions A. Pedone, Paris,2015, SANDS, Philippe. Principles of international environmental law...,cit. VIÑUALES, Jorge. E. The Rise and fall of sustainable development...,cit.
40
3. Jurisprudência do Tribunal Internacional de Justiça
A intervenção do juiz internacional foi durante muito tempo marginalizada no
domínio do ambiente141. Isto explica-se, nomeadamente, por uma certa desconfiança,
por parte dos Estados, em relação aos mecanismos jurisdicionais internacionais de
uma forma geral, procurando-se na maioria das vezes mecanismos diplomáticos na
resolução de conflitos142, sendo apenas mais evidente no domínio ambiental uma vez
que as obrigações definidas são vagas e, muitas das vezes, os bens em causa não têm
um valor de mercado desencorajando o recurso ao juiz internacional 143 . A
jurisprudência que invoca o conceito do desenvolvimento sustentável é escassa, cinje-
se a duas decisões paradigmáticas na matéria- o Caso Gabcikovo Nagymaros e, mais
recentemente o caso das Caso relativo às fábricas de celulose no Rio Uruguai
(Argentina/Uruguai).
3.1 Caso Gabcikovo- Nagymaros
Este caso ilustra o que se disse anteriormente sobre o facto de haver uma certa
desconfiança por parte dos Estados em recorrer a mecanismos jurisdicionais
internacionais, posto que as Democracias populares da Europa Central e de Leste
eram hostis à submissão do conflito ao TIJ144. Aliás isso explica também que a
competência do TIJ quanto ao conflito tenha resultado de uma reunião mediada pela
comissão europeia em que as Partes acabam por concordar que o conflito seria
submetido ao TIJ.
Este caso constitui o primeiro caso que a questão ambiental é o ponto central no
desacordo entre as Partes. Pela primeira vez o TIJ teve a oportunidade de estatuir
sobre o valor jurídico do conceito de desenvolvimento sustentável assim como o
reconhecimento de princípios internacionais do ambiente.
141 PERRUSO, Camila. La contribuition du juge au faconnement de la Democratie...cit. 142 Idem Ibidem. 143 MALJEAN-DUBOIS, Sandrine. De rio à Johannesburg: et au- delà?...,cit, p. 612. 144 Juiz BEDJAOUI «Mythes et réalités d'une relance du règlement judiciaire des différends internationaux», apud MALJEAN – Dubois, Sandrine. L'arrêt rendu par la Cour internationale de Justice le 25 septembre 1997 en l'affaire relative au projet Gabcikovo-Nagymaros (Hongrie c./ Slovaquie). In: Annuaire français de droit international, volume 43, 1997. pp. 286-332;
41
Trata-se de um tratado assinado entre a Hungria e Checoslováquia em 1977
(“Tratado”) com vista à utilização dos recursos naturais da parte do Rio Danúbio entre
Bratislava e Budapeste para o desenvolvimento dos recursos energéticos hidráulicos,
transporte e agricultura bem como outros sectores da economia nacional das Partes
Contratantes145. A Hungria decidiu suspender os trabalhos de construção do projeto
que previa a construção de um conjunto de barragens para produzir energia elétrica
com base no impacto ambiental deste projeto. A Checoslováquia optou pela
construção parcial do projeto de forma unilateral, o que levou a Hungria a resolver o
Tratado unilateralmente, pois esta actuação constituía aos olhos da Hungria numa
violação do mesmo. Passados vários anos sem um entendimento entre as partes fosse
possível este conflito chegou ao TIJ.
3.1.1 Antecedentes do contencioso
A Républica Popular da Hungria e a Républica Socialista da Checoslováquia
assinaram em 1997 um tratado relativo à construção e funcionamento do sistema de
barragens de Gabcíkovo-Nagymaros146. Em razão das alterações geopolíticas que se
verificam posteriormente este países foram denominados, respectivamente, Hungria e
Tchecoslováquia (em 1993 e Eslováquia tornou-se um Estado independente, ao qual,
por acordo entre estes Estados viria a aplica-se o Tratado de 1997).
Este tratado tinha como objectivo a produção de energia hidroelétrica, a
melhoria das condições de navegação e proteção das zonas ribeirinhas de
inundações147. As Partes comprometiam-se também a garantir que a qualidade das
águas não seria comprometida em resultado das actividades do projecto bem como a
cumprir com as obrigações de protecção da natureza que pudesse surgir em conexão
com a construção e funcionamento do sistema de barragens. Os trabalhos deram início
em 1978 em 1983 por iniciativa da Hungria as Partes concordaram em abrandar e
adiar os trabalhos. Em Fevereiro de 1989 as Partes acordaram o avanço dos trabalhos. 145 "the broad utilization of the natural resources of the Bratislava Budapest section of the Danube river for the development of water resources, energy, transport, agriculture and other sector of the national economy of the contracting parties (tradução livre). 146 “concerning the construction and operation of the Gabcikovo-Nagymaros system of Locks” parágrafo 15. 147 Parágrafo 16.
42
Na sequência de grande contestação social a que este projeto deu origem na
Hungria, o Governo Húngaro decidiu em Maio de 1989 suspender os trabalhos na
pendência de estudos que as autoridades competente deveriam terminar até 31 de
Julho de 1989148.
Por seu turno a Checoslováquia começou a estudar soluções alternativas,
nomeadamente a “Variant C” que consistia na mudança unilateral do curso do Rio
Danúbio.
Em 23 de Julho de 1991, o governo eslovaco decidiu começar as construções da
“Variant C”. As Partes nunca chegaram a um entendimento e a Hungria comunicou
ao governo Checoesvolaco o fim do Tratado de 1997 com efeitos à partir de 1993.
3.1.2 A decisão do Tribunal
A Hungria justificou a sua actuação de suspensão dos trabalhos em Dunakiliti e
em Nagymaros com base nos danos ambientais que poderiam ter sido causados por
aquela. Invocando para tal, entre outros, o risco de eutrofização das águas, assim
como o risco de extinção da fauna e flora fluviais. A Hungria manifestou ainda a
preocupação da qualidade da águas abastecidas pelo Rio ficar comprometida,
comprometendo igualmente o fornecimento de água naquelas regiões, bem como pela
diminuição significativa do caudal do Rio149. Para o Estado Húngaro em virtude
destes impactos ambientais a Hungria encontrava-se então em Estado de
necessidade150 em 1989.
O TIJ analisou então a questão se saber se a Hungria poderia ter suspendido e
posteriormente abandonado os trabalhos do projecto Nagymaros que incumbiam a
este Estado Parte. O Tribunal considerou que a atitude da Hungria apenas pode ser
interpretada como um incumprimento dos preceitos do Tratado de
1977(nomeadamente artigo 2º do Tratado) assim como do protocolo de 1989.
O TIJ passou em seguida à questão de saber se o estado de necessidade alegado pela
Hungria poderia excluir a ilicitude da sua conduta. Após interpretação do conceito de
estado de necessidade à luz dos critérios da comissão de direito internacional do
artigo 33º da responsabilidade internacional dos Estados. De acordo com esses
critérios este estado de necessidade teria de ter sido ocasionado por um “interesse 148 Parágrafo 22.149 Parágrafo 40. 150 "state of ecological necessity", ibidem.
43
essencial”151 do estado, conflictuante com a obrigação internacional que estaria assim
ameaçado por um perigo grave e iminente152 e que a actuação do Estado fosse o único
meio de acautelar esse interesse. O TIJ reconhece que as preocupações manifestadas
pela Hungria relativamente ao ambiente nas zonas afectadas pelo Projecto Gabtikovo-
Nagymaros dizem respeito a um interesse essencial do Estado nos termos do artigo
mencionado artigo 33º. Contudo o Tribunal considera que por mais sérias que as
incertezas do impacto ambiental do projecto fossem, elas não podem consubstanciar a
existência de um perigo objectivo não preenchendo assim um elemento essencial para
a determinação de um Estado de necessidade. O Tribunal esclarece ainda que
“perigo” invoque a ideia de risco, de outro modo estaríamos perante um dano
material já concretizado mas , segundo o TIJ, não pode haver um estado de
necessidade sem um perigo devidamente estabelecido, não basta a existência de um
qualquer perigo. O argumento da Hungria não conveceu assim o tribunal, pois não
conseguiu demonstar que em 1989 a Hungria estava perante um perigo real grave e
iminente e que as medidas tomadas pela Hungria, a saber a suspensão dos trabalhos
do projecto, teriam sido o único meio de acautelar os interesses em causa. Embora a
ideia de perigo iminente invoque o aspecto temporal o Tribunal considera que o
carácter irreversível ainda que a longo prazo teria constituído fundamento para um
eventual estado de necessidade mas o qual a Hungria também não logrou provar.
Aqui reside um ponto importante da decisão do Tribunal, que consiste no
reconhecimento de um estado de necessidade ecológico, ao considerar que o carácter
de irreversibilidade pode constituir um perigo objectivo e iminente. No entanto no
caso em análise não considerou provada a seriedade do risco153. Podemos então
considerar com o juiz HERCZEGH que o TIJ concedeu um lugar muito modesto às
considerações ambientais.
O Tribunal realça o papel das negociações que estavam em curso entre os
Estado como meio para viabilizar outras soluções154. Vejamos a importância que tem
para o TIJ a cooperação entre Estados.
151 "essential interest" parágrafo 53 152 by a "grave and imminent peril" parágrafo 53. 153 O perigo era grave e iminente posto que seria muito provavelmente concretizado se o sistema de barragens tal como previsto em 1989 tivesse sido construído. MALJEAN-DUBOIS, Sandrine. L'arrêt rendu par la Cour internationale …, cit. p300154 Parágrafo 57.
44
Da decisão do Tribunal constam outras pretensões materais tanto por parte da
Hungria como por parte da Eslováquia mas vamos agora passar à resposta do TIJ
relativa à pretensão da Hungria de a sua resolução do tratado de 1977 teria por base
as novas exigências do Direito Internacional relativa à proteção ambiental, as quais
precludiam a execução do Tratado.
O Tribunal considerou, com efeito, que deu-se a emergência de novas normas
peremptórias em direito do ambiente desde a data em que foi assinado o tradado-
1977.
A consciência da vulnerabilidade do ambiente e o reconhecimento de que os
riscos ambientais têm de ser avaliados continuamente tornaram-se mais fortes nestes
últimos anos155. Repara-se pela utilização das palavras do tribunal que ele não
considerou ainda que a avaliação de impacto ambiental se tratasse de uma obrigação.
A Hungria pretendia igualmente que o Tratado se desse por terminado pelo
incumprimento recíproco das obrigações. O tribunal apesar de considerar que, de
facto, houveram incumprimentos da parte de ambas as Partes mas não considerou que
isso levaria ao término do Tratado.
O Tribunal considerou assim que o tratado de 1977 ainda estava em vigor entre
as Partes e que ainda havia um vínculo legal entre Estas mas reconhece que o que
teria sido uma correcta aplicação do Tratado em 1989 seria agora um erro, ciente de
que alguns dos objectivos do Tratado então, não se verificavam em 1997, em especial
naquilo que diz respeito à produção de energia. Ainda assim, existiam outros
objectivos que as partes deviam negociar para que a implementação do projeto
inicialmente previsto fosse feito com as devidas adaptações consideradas pelas partes.
É nesta linha que o TIJ torna-se para a questão do impacto ambiental. O TIJ
considerou que o impacto ambiental do projeto e as suas implicações são um
problema chave neste conflito, frisando que os riscos ambientais devem ser avaliados
tendo em conta a prática actual à data da decisão do TIJ que como referimos
anteriormente evoluíram desde 1977. O TIJ considera que isto estava de acordo com
as preocupações ambientais das partes manifestadas pelas partes mas afirmando que
no que diz respeito à proteção ambiental, vigilância e prevenção são requeridas tendo
155 Parágrafo 111.
45
em conta o carácter muitas vezes irreversível dos danos ambientais e as limitações
intrínsecas ao mecanismo de reparação deste tipo de danos156.
Neste sentido o tribunal considerou que:
Decorrente de novos entendimentos científicos e de uma crescente percepção
do risco para a humanidade – para as gerações presentes e futuras – da
continuidade de tais intervenções a uma velocidade cada vez mais acelerada e
irreflectida, foram desenvolvidos novas normas e padrões, explicitadas em um
grande número de instrumentos durante as últimas duas décadas. Tais normas devem
ser levadas em consideração e os novos padrões devem receber a importância
apropriada, não apenas quando os Estados consideram novas atividades, mas
também na continuação de atividades iniciadas no passado. Esta necessidade de
reconciliar o desenvolvimento econômico com a proteção do ambiente está
adequadamente expressa no conceito de desenvolvimento sustentado.157
Esta enfâse aqui colocada parece reconhecer a emergência de novas normas em
direito internacional contemporâneo ficando-se contúdo pela referência. O TIJ não
explícita quais seriam estas normas não contribuindo, assim, para mais
desenvolvimentos neste campo. Se o TIJ considera que o desenvolvimento traduz a
necessidade de reconciliar o desenvolvimento económico com a protecção do
ambiente, o reduz à função de conceito não sendo claro se pretende dar algum valor
jurídico a este conceito. Parece que o TIJ utiliza este conceito como uma forma de
contrabalançar e ponderar os interesses, de um lado, ligados ao desenvolvimento e, do
outro, ligados à protecção ambiental, descartando-se a hipótese de princípio jurídico.
156 Traduzido do ingês:“The Court is mindful that, in the field of environmental protection, vigilance and prevention are required on account of the often irreversible character of damage to the environment and of the limitations inherentin the very mechanism of reparation of this type of damage”. Paragráfo 140. 157 Traduzido do inglês: Throughout the ages, mankind has, for economic and other reasons, constantly interfered with nature. In the past, this was often done without consideration of the effects upon the environment. Owing to new scientific insights and to a growing awareness of the risks for mankind -for present and future generations - of pursuit of such interventions at an unconsidered and unabated pace, new norms and standards have been developed, set forth in a great number of instruments during the last two decades. Such new norms have to be taken into consideration, and such new standards given proper weight, not only when States contemplate new activities but also when continuing with activities begun in the past. This need to reconcile economic development with protection of the environment is aptly expressed in the concept of sustainable development. Parágrafo 140.
46
Este entendimento vai ser posteriormente largamente reproduzido, falando-se
num princípio de integração. Este é um caso paradigmático de uma contraposição
desses interesses. Por um lado, o projecto Gabcikovo Nagymaros destinava-se à
produção de energia eléctrica para o fornecimento de electricidade às populações bem
como melhorar a navegação no Rio Danúbio e controlar as inundações, tudo isto
visaria melhorar a qualidade de vida da população, e, por outro, a sua construção
afectaria o ambiente, afectando também a população. A acção do homem tem
necessariamente impacto sobre a natureza, e como bem reconhece o TIJ neste acórdão
assim tem acontecido por muitos anos. Esta teria sido uma óptima oportunidade para
o Tribunal discorrer sobre este assunto à luz desta ponderação de interesses, ou seja à
luz de um princípio de desenvolvimento sustentável, de forma autónoma, ao invés de
se ater à letra do tratado. Consideramos com o juiz WEERAMANTRY158 que o
princípio de desenvolvimento sustentável se manifesta na ponderação dos interesses
em causa, a saber, o desenvolvimento económico da Eslováquia e a protecção
ambiental por parte da Hungria. É inclusive o princípio de desenvolvimento
sustentável que impõe a tomada em consideração dos princípios que se destinam a
proteger o ambiente e desse forma a fazer uma interpretação actualizada do Tratado
de 1977. Um reconhecimento por parte do TIJ imponha-se necessário para estabelecer
um tal princípio jurídico. O Tribunal não quis abrir um precedente sobre possibilidade
de os interesses ambientais puderem precludir o cumprimento de obrigações
decorrentes de Tratados.
Contudo sendo esta uma primeira decisão em que se aborda o conceito do
desenvolvimento sustentável seria de esperar que em outras ocasiões o TIJ pudesse ir
mais longe sobre a natureza jurídica deste conceito e concretizar emergência destas
novas normas de direito internacional que aqui se referem.
158 How does one handle these considerations? Does one abandon the Project altogether for fear that the latter consequences might emerge? Does one proceed with the scheme because of the national benefits it brings, regardless of the suggested environmental damage? Or does one steer a course between, with due regard to both considerations, but ensuring always a continuing vigilance in respect of environmental harm? Weeramantry Project Gabcikovo-Nagymaros, separated opinion p. 89
47
3.2 Caso relativo às fábricas de celulose no Rio Uruguai
(Argentina/Uruguai)
O caso relativo às fábricas de celulose no Rio Uruguai trata-se de um litígio em
que a Argentina suscita a intervenção do TIJ contra o Uruguai quanto à construção de
duas fábricas nas margem do Rio Uruguai. Segundo a Argentina não apenas a
construção das fábricas ponha em causa o equilíbrio écologico do Rio como também a
Républica do Uruguai teria violado as obrigações procedimentais e substantivas
previstas no estatuto de 1975 convencionado pelas duas partes.
A Républica Argentina e a Républica Oriental do Uruguai assinaram um tratado
em 1961 em montevideu com o fim de estabelecer um regime de utilização do rio. O
artigo 7º do tratado previa que as partes estabelecessem um regime para o uso do
rio159, o que viria a ser concretizado pelo establecimento do Estatuto de 1975
(Estatuto). O Estatuto destinava-se então segundo o artigo 1º do Estatuto estabelece a
criação dos mecanismos comuns necessários para a racionalização e optimização do
aproveitamento do Rio Uruguai160.
3.2.1 Antecedentes do contencioso
A empresa espanhola ENCE S.A. (ENCE) e a finlandesa Oy Metsä-Botnia Ab
(Botnia) foram autorizadas a iniciar a construção de dois projetos de fábricas de
celulose: “Celulosas de M’Bopicuá (CMB)” e “Orion”, em outubro de 2003 e
fevereiro de 2005, respectivamente.
Entretanto, estas fábricas serão implantadas às margens do Rio Uruguai, cujas
águas são geridas conjuntamente por Argentina e Uruguai, no âmbito da Comissão
Administradora do Rio Uruguai(CARU), nos termos do Estatuto do Rio Uruguai,
assinado 1975. No referido documento, consta a obrigação das partes de estabelecer
comunicação prévia acerca da realização de eventuais obras que possam prejudicar a
navegação, o regime ou a qualidade das águas. Ocorre que, ao receber a AIA das
referidas fábricas, o governo uruguaio procedeu à autorização da sua instalação, sem
159 Tradução do inglês: “régime for the use of the river” parágrafo 6. 160 Article 1 of the statute parties adopted it “in order to establish the joint machinery necessary for the optimum and rational utilization of the river Uruguai, in the strict observance of the rights and obligations arising from treaties and other international agreements in force for each of the parties.
48
respeitar o procedimento previsto pelo Estatuto, como resulta, aliás, da argumentação
argentina161.
3.2.2 Competência do Tribunal
O TIJ tem uma compêtencia geral e a sua intervenção pode ser suscitada à título
consultivo ou contencioso (artigo 36º do estatuto do TIJ), nomeadamente por via de
uma cláusula facultativa de jurisdição obrigatória do TIJ. Apesar dos Estados partes
concordarem que a competência do tribunal resultaria do artigo 60º, paragrafo 1º do
Estatuto de 1975162, o Uruguai considera que as pretensões da Argentina caem fora da
competência do TIJ. Relembramos que o estatuto foi criado com o intuito de
estabelecer mecanismos comuns necessários para a racionalização e optimização do
aproveitamento do Rio Uruguai (art. 1.º do Estatuto). No entender do Uruguai, as
objeções da Argentina quanto à poluição do ar, sonora e visual assim como o impacto
no sector do turismo, alegadamente causadas pela fábrica de Orion (Botnia), na
medida em que não afecta a qualidade das águas do rio, não dizem respeito à
interpretação e aplicação do Estatuto e nessa medida, TIJ não seria competente163.
Por sua parte a Argentina considera que interpretação avançada pelo Uruguai
seria uma intrerpretação restrita posto que o Estatuto visaria não apenas a qualidade
das águas do rio mas mais genericamente o seu regime e as zonas afectadas por ele,
invocando o artigo 36 do Estatuto164. O TIJ acabou por dar razão ao Uruguai ao
considerar que as pretensões da Argentina quanto à poluição visual e sonora caem
fora da ratione materiae do TIJ.
161 Parágrafos 33 e 39. 162 “Any dispute concerning the interpretation or application of the treaty and the Statute which cannot be settled by direct negotiations may be submitted by either party to the international court of justice.” parágrafo 48. 163 Parágrafos 49 e 50 164 the parties shall co-ordinate, through the commission, the necessary measures to avoid any change in the ecological balance and to control pests and other harmful factos in the river and the areas affected by it”
49
3.2.3 A invocação pela Argentina dos princípios de desenvolvimento
sustentável
A Argentina avança outra linha de argumentação que é particularmente
interessante ao objecto em estudo. Este Estado parte considera que em virtude dos
artigos 1º e 41º do Estatuto o TIJ teria competência para analisar se o Uruguai teria
violado as suas obrigações à luz de certas convenções internacionais posto que os
referidos artigos incorporariam no Estatuto as obrigações resultantes do direito
internacional geral assim como obrigações resultantes de convenções internacionais
com respeito à proteção do ambiente. Assim o comportamento do Uruguai teria de
ser avaliado não apenas à luz do Estatuto per se mas à luz do direito internacional e de
obrigações assumidas pelas partes em outros acordos multilaterais internacionais, que,
como refere a Argentina, fariam parte integrante do Estatuto por via das cláusulas 1º e
41º deste.
Ainda que reconheça o Estatuto como a base legal aplicável ao diferendo em
causa, a Argentina considera que ele tem de ser interpretado à luz do costume
internacional e das obrigações assumidas pelas partes em outros tratados. Para esse
efeito ela invoca o artigo 31 paragrafo 3 alínea c) da convenção de Viena sobre
interpretação de tratados, pelo que a interpretação do Estatuto teria de ser
complementada com os princípios do direito internacional de protecção e utilização
dos cursos de água transfonteiriças e os princípios de direito internacional que
asseguram a protecção do ambiente. Aproximamo-nos da visão da Argentina quando
esta refere que só uma interpretação que tem em conta todas as normas internacionais
aplicáveis ao caso concreto permitiria uma interpretação actualista, evolutiva e
dinâmica do Estatudo, de acordo com as mudanças nos padrões de protecção do
ambiente165. O que é interessante para o presente estudo é que entre os princípios
invocados pela Argentina, que segundo ela nos deveríamos ater na interpretação do
estatuto, são, aquilo que esta Parte designa de princípios de desenvolvimento
sustentável, a saber: princípio da prevenção, princípio de precaução e a obrigação de
proceder à AIA.
165 Parágrafo 55.
50
O TIJ considerou que o artigo 41º do estatuto não tem por efeito incorporar no
próprio estatuto as obrigações provenientes de convenções internacionais mas sim de
remeter para as Partes o dever de conformar o seu direito interno com as obrigações
assumidas naquelas166. Neste sentido o TIJ considerou improcedentes as alegações das
Argentina com respeito às poluições das águas, à luz de outras convenções às quais as
partes estariam submetidas167.
O TIJ posteriormente destina-se a avaliar as alegações da Argentina por via de
um incumprimento por parte do Uruguai das obrigações procedimentais previstas no
artigo 7º do Estatuto. Observe-se que estas obrigações vão ao encontro dos
desenvolvimentos que têm conhecido, nestes últimos anos, o princípio de prevenção e
precaução, que exigem assim que as partes não procedam a actividades que
comportem riscos irreversíveis, ou actividades onde haja incerteza sobre esses riscos,
para o ambiente e, uma vez que estamos no âmbito internacional, para as jurisdições
vizinhas. De uma abordagem preventiva pode decorrer a obrigação de proceder a um
estudo de impacto ou estabelecimento de obrigações de carácter procedimental, como
as estabelecidas no artigo 7º do Estatuto, que imponha uma obrigação de
comunicação, notificação e negociação com a outra parte assim como ao Uruguai pelo
Comissão Administradora do Rio Uruguai (CARU)168169. Isto demonstra o carácter
extremamente inovador de um Estatudo que data de 1975, dado que estes princípios e
respectivas obrigações embora tenham conhecido uma evolução podemos considerar
que ainda hoje se encontram numa fase embrionária do seu desenvolvimento no
Direito Internacional, pois os seus contornos, ao contrário do que acontece na
jurisprudência europeia, não têm sido suficientemente estabelecidos. Isso explica por
exemplo a posição deste tribunal nesta decisão, que apesar de atribuir ao princípio de
precaução a natureza de costume internacional 170 , não faz uma análise destas
obrigações a luz deste princípio apoiando-se unicamente no Estatuto para aferir de um
166 Parágrafo 62. 167 invocadas por esta no parágrafo 56. 168 Essa foi inclusive a posição do TIJ que se recusa a dar um estatuto autónomo e substancial a estas obrigações contrariamente à opinião do Juiz CANÇADO TRINDADE separated opinion.., cit. 169 No sentido de coordenar o aproveitamento do Rio Uruguai, foi criada a Comissão Administradora do Rio Uruguai (CARU). Trata-se de uma entidade que goza de personalidade jurídica (art. 50.º do Estatuto) e por intermédio da qual se coordenam, designadamente, as medidas a adoptar com vista a evitar alterações do equilíbrio ecológico e a controlar pragas e outros factores nocivos no Rio Uruguai e nas suas áreas de influência (art. 36.º do Estatuto). 170 Na esteira do tribunal internacional do mar que num parecer consultivo do 1 de Fevereiro de 2011 integrou este princípio no direito internacional costumeiro.
51
incumprimento pelo Uruguai das obrigações procedimentais previstas no artigo 7º do
estatuto, a saber, obrigações de informação, notificação e negociação171, limitando-se,
como veremos, a uma mera declaração de violação destas obrigações, posto que ele
não teria violado nenhuma obrigação material, como foi o entendimento do tribunal.
Para o Tribunal estas obrigações visam assim um mecanismo de cooperação entre os
Estados com vista a atingir o objectivo estabelecido no artigo 1º do Estatuto172, de
uma utilização óptima e racional do Rio, o que estaria em harmonia com o postulado
do desenvolvimento sustentável enquanto necessidade de conciliar desenvolvimento
económico com a protecção do ambiente173. Estamos de acodo com a enfâse dada pelo
Tribunal na cooperação174 entre os Estados como meio para atingir uma “utilização
durável” do Rio mas somos críticos quanto ao facto dele negligenciar o papel das
referidas obrigações no quadro de um ação que se quer preventiva, aspecto que é para
nós também indispensável no quadro do desenvolvimento sustentável. Lamentamos
igualmente, que o tribunal não tenha aproveitando o presente caso para trazer algumas
luzes ao princípio de precaução contribuindo assim para o seu desenvolvimento
doutrinal em matéria internacional175.
3.2.4 A Decisão do Tribunal
Já quanto às obrigações materiais o tribunal declarou que a Argentina não
conseguiu demonstrar as consequências ambientais subjacentes às suas alegações, e
concluíu que o Uruguai cumpriu com as obrigações materiais que sobre ele
171 Parágrafos 111 e 158. 172 75. The court notes that the object and purpose of the 1975 statute set forth in art 1 is for the parties to achieve “the optimum and rational utilization of the river Uruguay” by means of the “joint machinery” for co-operation, which consists of both CARU and the procedural provisions contained in arts 7 to 12 of the statute. The court had observed in this respect, in its order od 13 July 2006, account of “the need to safeguard the continued conservation of the river environment and the rights of economic development of the riparian states 173 Apoiando.se para tal na posição do TIJ no caso 76. In the Gabcikovo-Nagymaros case, the court, after recalling that “this need to reconcilie economic development with protection of the environment is aptly expressed in the concept of sustainable development”, added that is it for the parties themselves to find an agreed solution that takes account of the objectives of the treaty. (parágrafos 140-141 da decisão). 174 Parágrafo 77. “The court observes that it is by co-operating that the States concerned can jointly manage the risks of damage to the environnement that might be created by the plans initiated by one or other of them, so as to prevent the damage in question, through the performance of both the procedural and the substantive obligations laid down by the 1975 statute”. 175 “In the view of the court the obligations to inform CARU allows for the initiation of co-operation between the parties which is necessary in order to fulfill the obligation of prevention.” Parágrafo 102.
52
recaíam176. O que confirma o que dizíamos quanto à declaração de incumprimento das
obrigações procedimentais ser meramente declaratório, posto que, daí não advêm
consequências. O Tribunal considerou que as obrigações procedimentais ainda que
ligadas com as obrigações materiais das partes, pertecem a categorias distinas e o não
cumprimento das primeiras não gera automaticamente incumprimento das segundas.
A implantação de uma fábrica de celulose, cujo funcionamento implica a realização
de descargas para as águas do Rio Uruguai, é um aproveitamento do Rio que não
deveria ter sido determinado unilateralmente, mas esse não foi o entendimento do
tribunal numa decisão que se compreende mal seja aos olhos do Estatuto, seja numa
lógica de prevenção de riscos transfronteiriços. Com efeito, do estatuto resulta que as
Partes não podem autorizar obras localizadas nas margens do Rio Uruguai sem
cumprir um procedimento prévio. O Uruguai não informou a CARU do projecto, não
notificou nem consultou a Argentina pelo que o projeto foi feito à margem das
obrigações de informar, notificar e negociar obstando à cooperação entre as partes.
Uma interpretação que nos parece pouco compatível com a linha de argumentação do
tribunal no sentido de realçar a importância da cooperação entre as partes,
inclusivamente, como o meio mais adequado à prevenção de riscos ambientais, o que
constituiu também um dos objectivos do Estatuto177.
Como referimos, seria de esperar que nesta decisão o Tribunal fosse mais longe
no reconhecimento, concretização e extensão dos princípio emergentes relativos ao
desenvolvimento sustentável, contribuindo assim para o desenvolvimento do direito
internacional nesta matéria. O tribunal limitou-se a reconhecer o princípio da
precaução como princípio consuetudinário178 e embora reconheça a obrigação de
efectuar a AIA179, fá-lo sem grande concretização, pois como vimos não advieram
consequências na realização da AIA havendo ainda uma reticência por parte do
Tribunal em lhe atribuir um regime autónomo, onde a não observância resultaria na
violação de uma norma de direito Internacional.
176 Parágrafo 189. 177 “The court observes that it is by co-operating that the States concerned can jointly manage the risks of damage to the environnement that might be created by the plans initiated by one or other of them, so as to prevent the damage in question, through the performance of both the procedural and the substantive obligations laid down by the 1975 statute.” Parágrafo 77. 178 Parágrafo 101. 179 Parágrafo 203.
53
3.2.5 A aplicação pelo Tribunal do conceito de desenvolvimento sustentável
O TIJ veio reiterar a posição Gabcikovo-Nagymaros aplicando-o enquanto
conceito. Assim o Tribunal considerou que o objectivo do Estatuto de 1975 que ,
como vimos, visava a criação dos mecanismos comuns necessários para a
racionalização e optimização do aproveitamento do Rio Uruguay, incluindo os
mecanismos de cooperação como a crianção da CARU e das medidas procedimentais
dos arts.7º a 12º do Estatudo do Rio Uruguai preconizava uma utilização do mesmo
de acordo com o desenvolvimento sustentável. O TIJ faz então uma adaptação do
conceito ao caso concreto entendendo que ele se traduzia nestes termos:
“the need to safeguard the continued conservation of the river environment and
the rights of economic development of the riparian States”180
Para logo de seguida, à semelhança do que o fez no caso Gabcikovo-
Nagymaros, frisar a importância da cooperação entre os Estados para a concretização
dos objectivos do Tratado. Reforça também que é através da cooperação que os
Estados Partes podem gerir os riscos que tenham sido gerados pela actuação dos
Estados e juntos procurar prevenir os eventuais danos, donde a importância das
obrigações materais e procedimentais estipuladas no Estatuto181.
O TIJ volta ainda a fazer referência ao desenvolvimento sustentável mas apenas
para afirmar que o artigo 27 do Estatuto incorpora a ligação entre uso razoável e
equitável dos recursos partilhados e o equilíbrio entre desenvolvimento económico e
proteção ambiental que estão na essência do desenvolvimento sustentável182. Aqui
parece que o Tribunal interpreta este conceito como uma balança que contrapõe os
interesses em causas mas não lhe dá nenhuma aplicação autónoma, usando-o como
um instrumento de interpretação do tratado.
180 (Pulp Mills on the River Uruguay (Argentina v. Uruguay), Provisional Measures, Order of 13 July 2006, I.C.J. Reports 2006, p. 133, para. 80), reafirmado no acórdão no parágrafo 75. 181 Parágrafo 77. 182 parágrafo 177.
54
Ao termo do estudo desta jurisprudência do tribunal internacional de justiça três
conclusões se impõem. A primeira é que, como também já fomos referindo, o tribunal
não aproveitou a ocasião em que a sua competência foi desencadeada para dissertar
sobre os princípios de desenvolvimento sustentável, como os de precaução, prevenção
e ou a obrigação de AIA, e em especial sobre o estatuto jurídico que o conceito de
desenvolvimento. Não contribuindo assim para o desenvolvimento do direito
internacional contemporâneo. A segunda, relacionada com a primeira é que para o TIJ
o desenvolvimento sustentável não é um princípio jurídico internacional, não sendo
muito clara a posição do Tribunal quanto à questão de saber se pretende atribuir
efeitos jurídicos a este conceito, nomeadamente como um instrumento hermenêutico
de interpretação. A terceira é a constatação de que a protecção do ambiente pelo TIJ é
feita sobretudo com recurso ao princípio da utilização durável e equitativa dos
recursos naturais e pelo princípio de cooperação183. Como vimos na argumentação do
Tribunal é notório a ênfase dada na necessidade da cooperação entre as partes como o
melhor forma de melhor alcançar uma protecção preventiva. O princípio da utilização
sustentável e equitativa dos recursos naturais corresponde a uma evolução
jurisprudencial do princípio da obrigação de não causar danos transfronteiriços. Este
princípio que como já vimos remonta à jurisprudência do caso Détroit de Corfou
entrou para o corpus Juris pela jurisprudência do caso das tentativas nucleares (Nova
Zelândia c. França) 1974184. Pela evolução do princípio da obrigação para os Estados
de não causar danos transfronteiriços, a invocação da utilização sustentável e
equitativa dos recursos naturais tem sido uma constante na argumentação do TIJ
quando está em causa a protecção do ambiente185, em detrimento da aplicação de
outros princípios.
Uma última conclusão se impõe é que a formação de princípios internacionais é
muito demorada, o que se deve também ao facto de, por conta de um certo
voluntarismo legalista na actuação deste Tribunal ele ser muito reticente no
reconhecimento e aplicação de princípios emergentes de forma autónoma.
183 Expresso na Declaração de Rio, princípio 7. 184 GUILLAUME, Gilbert. Le role des juges et des arbitres internationaux, In DELMAS-MARTY, Mirelle L’environnement et ses métamorphoses. Edition Hermann, Paris 2015 185 PERRUSO, Camila. La contribuition du juge au faconnement de la Democratie environnemental cit.p.259
55
4. O Desenvolvimento Sustentável como princípio de Direito
Internacional
4.1 Os principais elementos do desenvolvimento sustentável
Se o juiz internacional agia já em favor da proteção do ambiente, fá-lo agora
sob a consideração de interesses dípares, fazendo emergir o princípio de integração. O
entendimento do TIJ no caso Projecto Gabcikovo-Nagymaros : “Esta necessidade de
reconciliar o desenvolvimento económico com a proteção do ambiente está
adequadamente expressa no conceito de desenvolvimento sustentado”186, obteve um
grande eco e apesar da multiciplidade de abordagens categorizando os elementos do
desenvolvimento sustentável, o princípio de integração permanece o mais
operante187188. Na verdade este princípio constava já da Declaração Rio, artigo 4º, o
qual disponha que para atingir o desenvolvimento sustentável, a protecção ambiental
deve constituir parte integrante dos processos de desenvolvimento e não pode ser
isolado desses mesmos processos.
Com efeito consideramos189 que apesar abertura deste conceito, do qual é assim
possível extrair muita coisa, enquanto princípio de direito internacional ele tem um
núcleo duro. Esse núcleo é então a necessidade de proteger e conservar os sistemas de
vida naturais, tais como os recursos naturais e a biodiversidade (fauna e flora). Pelo
que o princípio de integração ao funcionar como uma ponderação de interesses teria
de priorirar o mais possível as necessidades destes sistemas de vida em detrimento de
outros interesses. A integração é de facto uma dimensão do desenvolvimento
sustentável e como vimos um dos expedientes mais operantes a colocar em prática a
dialética subjacente ao desenvolvimento sustentável.
Contúdo ele não esgota o sentido do desenvolvimento sustentável, desde logo,
porque ainda que a equidade intergeracional vá implicada no princípio de integração,
uma vez que ao termos em conta as necessidades ambientais, visamos de igual forma
186 Ver ponto 3.2.1. 187 Com Christina VOIGT The Principle of Sustainable Development...,cit. 188 Para a comissão de direito internacional e desenvolvimento sustentável da International Law Association, o princípio de integração consitui um princípio chave do desenvolvimento sustentável, PERRUSO, Camila. La contribuition du juge au faconnement de la Democratie environnemental cit. 189 C.VOIGT The Principle of Sustainable Development...,cit.
56
a sua perpetuação no tempo e assim as gerações futuras, esta a dimensão
intergeracional traduz-se em princípios como os de prevenção e precaução. E esta
dimensão intergeracional não diz respeito apenas à protecção ambiental per se mas
também à questão do legado190, à questão do património e de uma herança não apenas
natural bem como cultural e espiritual (basta pensarmos no modos vivendi das
comunidades autoctónes). Pelo que a equidade intergeracional é uma dimensão chave
deste conceito, à qual as tradicionais lógicas jurídicas terão de abrir espaço para
integrar também as gerações futuras.
À equidade intergeracional as preocupações ligadas à redução de pobreza e
diminuição das desigualdades que, como vimos estiveram bem presentes na UNCED,
vieram acrescentar uma dimensão intrageracional. Esta dimensão veio colocar a
questão ética subjacente em perspectiva e por isso tornou-se assim uma dimensão
também essencial deste conceito.
Como veremos em seguida o desenvolvimento é, na nossa opinião um princípio
geral de direito e como tal aberto pelo que quanto à sua indeterminação, diga-se
apenas que a classificação de um princípio jurídico pressupõe sempre um grau de
inderminação, para além de que este nunca será um conceito acabado, desde logo
como o não o são os princípios da democracia ou da igualdade.
4.2 Os princípio gerais de direito
Qualificar o desenvolvimento sustentável como um princípio jurídico, levam-
nos inelutavelmente à questão da sua indeterminação e ambiguidade, indeterminação
esta que aliás é transversal a toda a matéria dos princípios enquanto fonte de direito
internacional, desde logo, quanto à questão de saber quando é que estamos perante um
princípio de Direito Internacional. Em bom rigor, a dificuldade de identificação de
normas jurídicas, já para não falar do problema da vinculatividade dessas normas, é
bem conhecida do Direito Internacional, sendo, até, intrínseca a este ramo do Direito.
Como bem sabemos no Direito Internacional não existe aquilo que nas jurisdições
nacionais corresponde, soi-disant, à fonte formal do Direito par excellence :
legislação191, abrindo um espaço de controvérsia, ambiguidade, indeterminação que
190 CANÇADO TRINDADE, Separated opinion, cit. 191 FITZMAURICE,Gerald. Some Problems Regarding the Formal Sources...,cit pag. 64
57
como referi é endógena ao Direito Internacional. A juntar a isto, a crescente mutação
do Direito Internacional, nomeadamente, pelo papel preponderante que têm vindo a
desempenhar as organizações internacionais - o que leva alguns autores a falar numa
nova estrutura da comunidade internacional192 - e as futuras mutações que se podem
desde já adivinhar numa tendência crescente de regulação de matérias ao nível
internacional193, não permitem, uma enumeração exaustiva e taxativa de formas de
produção e de revelação de normas jurídicas194 195.
Por um lado a crescente “permeabilidade” do Estado-Nação resultou numa
diminuição das barreiras entre as matérias que dizem respeito à jurisdição
internacional e aquelas que dizem respeito às jurisdições nacionais o que justifica um
aumento de tratados e acordos internacionais196. Por outro, a expansão da ciência e da
tecnologia com impacto internacional levou a formas menos formais de entendimento
entre os Estado, pelo que em bom rigor aumentam os compromissos assumidos pelos
estados sob a forma de obrigações que formalmente não cabem na acepção do artigo
38º do Estatuto do Tribunal Internacional de Justiça (ETIJ) 197.
Por isso mesmo poder-se-á constatar que a redação do artigo 38º do ETIJ não é,
de resto, isento a críticas198, parecendo confundir modos de produção ou de revelação
do direito (convenções199 e costume) e normas jurídicas (princípios)200. Contudo e
especialmente no que concerne aos princípios gerais de Direito tendemos a concordar
com a doutrina que vê nos mesmos uma fonte formal autónoma de Direito201. Certos
192 DUPUY. Droit International Public...cit. 193 R. SARAIVA, A Herança de quioto...,cit; FITZMAURICE,Gerald. Some Problems Regarding the Formal Sources...,cit. 194 MIRANDA, Jorge. em Curso de Direito Internacional Público...,cit. 195 FITZMAURICE,Gerald. Some Problems Regarding the Formal Sources...,cit. p. 65. 196 Os tratados são mais solenes do que os acordos internacionais, os primeiros exigem ratificação e os segundos a mera aprovação segundo o professor Jorge Miranda. Este professor faz uma distinção entre convenções, tratados e acordos internacionais nos termos da terminologia portuguesa em Curso de Direito Internacional Público...,cit.p. 94. 197 FITZMAURICE,Gerald. Some Problems Regarding the Formal Sources...,cit. 198 Idem Ibidem 199 Como bem refere fitzmaurice as convenções são, em bom rigor, fontes de obrigações mais do que fontes de Direito, podemos contúdo sê-lo quando resultam numa transcrição dos princípios de Direito , tendo um sentido declarativo e não constitutivo, ou também podem constituir evidência da formação de um costume, mas que também como se sabe os tratados não são constitutivos do costume pelo que , em bom rigor, a verdadeira fonte seria o costume. Em FITZMAURICE,Gerald. Some Problems Regarding the Formal Sources...,cit p. 66. 200 Jorge Miranda, na opinião do autor importaria sim distinguir entre fontes de direito e normas de Direito, Curso de Direito Internacional Público...,cit p. 42. 201 Neste sentido CANÇADOO TRINDADE. Pulp Mills on the river Uruguay, separated opinion; C. VOIGT The Principle of Sustainable Development...,cit;FITZMAURICE,Gerald. Some Problems Regarding the Formal…,cit.
58
princípios pela sua inerente validade, não estão sujeitos a um posterior
reconhecimento ou aceitação pelos sujeitos de Direito Internacional, operando assim
como uma fonte formal. São inclusive estes princípios, que pela sua validade e força
intrínsecas estarão na origem de todo e qualquer sistema legal202 203.
A redacção do artigo 38º do ETIJ quanto à inclusão dos princípios gerais
resultou de um compromisso entre as posições positivista, encabeçada pelo juíz Root,
e jusnaturalista, encabeçada por Descamps, na comissão para elaboração do Estatuto
da Corte Permanente de Justiça Internacional204.
Com a menção aos princípios gerais de Direito viabilizava-se a possibilidade de
o tribunal poder ainda resolver juridicamente qualquer caso mesmo na falta ou
deficiência de preceito que o preveja205 206. A querela que esteve na origem da sua
consagração (pelo artigo 38º do ETIJ) encerra em si uma controvérsia que há muito
divide opiniões sobre as fontes do Direito Internacional, entre uma perspectiva
positivista e uma perspectiva jusnaturalista.
A posição positivista, fazia depender a apreciação do tribunal ao
reconhecimento pelos Estados das regras de direito internacional e enfrentou a
oposição de Descamps, Laprelle e Francis, segundo os quais na ausência dessas regras
não seria possível ao tribunal decidir levando a um situação de “non-liquet” numa
denegação de Justiça, por sua vez, inadmissível207.
Descamps, na sua clara posição jusnaturalista208, não apenas não aceitava uma
situação de non liquet, como ainda defendia que a justiça objectiva é o princípio
natural a ser aplicado pelo juiz, admitindo, também, a título mediato, a consciência
das nações civilizadas (status conscientiae)209. Para Descamps, toda a aplicação do
Direito tem observar um princípio fundamental de Justiça. Raul Fernandes também no
seu contributo para a comissão considerou que as sentenças dadas com base nos
202 FITZMAURICE, Ibidem. 203 Juiz CANÇADO TRINDADE, “But even if such invocations or references did not exist, general principles would still be there, at the origins and foundations of any legal system; in my perception, there cannot be any legal system without them.” Separated opinion (..) parágrafo 18. 204 CANÇADO TRINDADE separated opinion (...)p. 130. 205 Jorge Miranda Curso de Direito Internacional Público...,cit p. 122 e CANÇADO TRINDADE separated opinion. 206 Cristina p. 148 e CANÇADO TRINDADE separated opinion (...),parágrafo 17.207 CANÇADO TRINDADE separated opinion (...),p.130.208 “it is no longer true when it concerns the fundamental law of justice and injustice deeply engraved on the heart of every human being and which is given its highest and most authoritative expression in the legal conscience of civilised nations.” CANÇADO TRINDADE separated opinion ..., cit. 209 Ibidem p. 130
59
princípios gerais de direito seriam de uma forma geral mais justas porque os
princípios são sempre baseados em justiça, enquanto que a lei em sentido estrito parte
destes princípios.
Como explica o juiz Fitzmaurice os positivistas até podem admitir o ius naturae
como fonte de inspiração legal mas não se torna fonte de direito até que os Estados
reconheçam esse princípio como um princípio de direito pelo que ,em bom rigor, a
fonte formal de direito internacional seria o reconhecimento dos Estados, o mesmo se
aplicando em relação aos tratados210. Para os positivistas não podemos prescindir de
uma regra de reconhecimento mas o consentimento não pode ser o fundamento da
obrigatoriedade da lei. Vê-se assim o positivismo voluntarista entrar numa espécie de
espiral regressiva infinita pois se o reconhecimento é necessário para o
estabelecimento de qualquer regra jurídica, então esta regra por sua vez não tem
validade intrínseca, pelo que pela sua própria consagração ela não é capaz de explicar
a sua validade. Esta regra a existir, ela tem na sua base uma outra regra jurídica, à
qual ela não se aplica em si mesmo, que retira o seu valor lógico pois defendendo-se a
existência de uma regra jurídica independente de consentimento, inviabilizamos a
regra do reconhecimento numa espécie de paradoxo do mentiroso211. Para este juíz
têm de haver regras jurídicas de validade instrínseca, sendo estas regras, que pela sua
validade e força estarão na origem de todo e qualquer sistema legal, dando como
exemplo o princípio de pacta sunt servanda212.
A querela entre positivistas e jusnaturalistas dividiu a doutrina até aos dias de
hoje e se, apesar disso, podemos hoje dizer que os princípios gerais de direito são
aceites como fonte de regras jurídicas213 com as respectivas divergências quanto à
justificação que lhes subjaz, esta questão ganha um novo alento quando se trata de
saber quando é que estamos perante um princípio geral de direito internacional. A
prática do TIJ no domínio do direito do ambiente tem sido no sentido de elevar a
princípio geral de direito os princípios que parecem revestirem-se de um carácter
consuetudinário segundo a prática dos estados.
210 FITZMAURICE,Gerald. Some Problems Regarding the Formal Sources...,cit. p. 66 211 Idem Ibidem p. 68; no mesmo sentido CANÇADO TRINDADE separated opinion...,cit. quanto aos princípios gerais de direito internacional 212 Em sentido contrário, JENNINGS, Robert Y. What is international law. In KOSKENNIEMI,Martti. Sources of Internationa law. Coleção The Library of essays in international law, Aldershot, 2000. P.39 213 C.VOIGT. The Principle of Sustainable Development...,cit
60
Quando o artigo 38º do ETIJ foi adoptado dentro do comissão como vimos
haviam duas perspectivas, de um lado os juízes que identificavam os princípios gerais
de direito internacional com os princípios comuns aos Estados no foro domestico e do
outro aqueles que defendiam a existência de princípio gerais específicos do âmbito
internacional. Como explica o juíz Cansado Trindade, a primeira atitude pode ser
compreendida tendo em conta que foi efectivamente no foro domestico que os
princípios gerais do direito encontraram antes de mais expressão214. Para este juiz
dado o extraordinário desenvolvimento do direito internacional contemporâneo
podemos falar em princípios gerais de direito comuns ao foro domestico como
também em princípios gerais de direito internacional. No seu parecer de voto no caso
da Argentina contra o Uruguai, ele defende que os princípios gerais de direito são a
base de qualquer sistema jurídico e ainda que possam encontrar expressão noutras
fontes formais, eles mantêm a sua autonomia enquanto fonte de direito215. No mesmo
sentido o Juiz Tanaka dá o exemplo da proibição de segregação racial (apartheid)
como constituindo um princípio geral de direito, não porque seja um princípio comum
aos diversos ordenamentos jurídicos nacionais mas porque é uma regra de jus
naturale, válida para todas as sociedades humanas e derivando do conceito de homem
como pessoa. A validade desta regra reside num carácter supra nacional e supra
positivo216217. Isto a significar que o desenvolvimento sustentável sendo um princípio
geral do direito internacional não estaria dependente do consentimento dos Estados ou
de uma regra de direito consuetudinário para ser invocado pelo tribunal.
Os princípios gerais de direito são princípios orientadores de conteúdo geral,
transcendem o direito positivo. Como pilares do sistema jurídico internacional (ou de
qualquer outro sistema legal218) esse princípios são a expressão da “idée du droit”219
emanando da consciência da humanidade e consequentemente são também a 214 Parágrafo 26 215 FITZMAURICE,Gerald. Some Problems Regarding the Formal Sources...,cit. 216 Idem Ibidem 217 No mesmo sentido C. VOIGT defende igualmente que apenas uma visão redutora permitiria ter em conta apenas as regras e princípios que são comuns à maioria dos sistemas jurídicos. Para esta autora não apenas os princípios gerais têm uma natureza substantiva eles têm sido largamente aplicados pelos tribunais internacionais e de forma autónoma, sem derivar dos ordenamentos jurídicos nacionais, pelo que podemos falar em princípio gerais exclusivos de direito internacional. The Principle of Sustainable Development...,cit p. 154 P. BIRNIE A. BOYLE and C. REDDGWELL, International Law and the environment...,cit. têm uma posição mais mitigada mas parecem admitir a existência de princíos jurídicos do direito internacional. 218 No mesmo sentido CANARIS. Pensamento Sistemático e conceito de sistema na ciência do...,cit. 219 “Idée du droit” emanating from human conscience paves the way for a universal jus gentium” Juíz CANÇADO TRINDADE separated opinion ...,cit páragrafo
61
expressão da ideia de justiça. Sem estes as regras poderiam servir quaisquer
objectivos.
4..3 O Desenvolvimento Sustentável como princípio geral de Direito Internacional
Sendo os princípio gerais de direito a expressão da consciência jurídica da
comunidade internacional e nesse sentido a expressão da ideia de justiça,
consideramos, chegando assim ao ponto essencial deste trabalho, que o
desenvolvimento sustentável é um princípio geral de direito na medida que procura
atribuir uma validade material ao direito e conformar a prática humana-social que a
comunidade reconhece como o sentido dessa prática. Como tal não vemos como não
considerar o desenvolvimento sustentável um princípio orientador e fundamentante de
toda a actividade humana que visa desenvolver-se.
E aqui podemos incluir a comunidade internacional. Sem pretensão de
universalismos, podemos afirmar que a pertença a um escossistema é inerente à nossa
condição humana e que por mais que a nossa separação dele seja também prova da
nossa humanidade220 a relação que aí se deverá estabelecer será uma relação de
interdependências e não de dominação. Não se trata-se, assim propriamente de uma
escolha. O desenvolvimento sustentável seria na nossa opinião um dos princípios que
mais se aproximaria a uma imposição do direito natural. Claro que depois da
superação ontológica de Kant, não podemos mais pensar na teleologia ontológica
aristotélica de uma ordem virtualmente definida e perfeita, fechando o Direito num
sistema autopoiético e por isso insensível à dinâmica da vida221. Superação que
implicou decerto a substituição da ordem natural-transcedente pela dialéctica humana
da intersubjectividade e obrigou a repensar em outros termos a acção e a reconhecer a
natureza cultural do direito. A acção passou a ser intencional e o problema histórico-
cultural do direito começou por receber no pensamento moderno, e nos seus
posteriores desenvolvimentos positivista e sistémico, uma solução exterior ou de
exterioridade, a solução quer da pura racionalização formal, quer do poder 222 ,
culminando na mera legalidade, com o consequente fetichismo da regra jurídica no 220 OST, François. A natureza à margem da lei...,cit. 221 CASTANHEIRA NEVES. O actual problema metodologico da realização do direito; KAUFMANN 222 Idem Ibidem
62
qual se apoiou o Estado de direito em que a forma, seria garantia suprema da
racionalidade do direito e assim garantia da segurança jurídica223224.
Para nós a consideração do desenvolvimento sustentável enquanto princípio
prendre-se com os fundamentos do direito que será assim um princípio fundamentante
da sistema jurídico, ou seja, como validade axiological-material do direito.
A questão colocada neste termos vai implicada na perspectiva metodológica
que se tem do direito e com racionalidade que dela resulta. O professor Castanheira
Neves refere duas perspectivas metodológicas, a saber o sistema jurídico como
sistema axiológico e como sistema regulamentar225, com as respectivas racionalidade
normativas e racionalidade lógico-subsuntiva226, que resumem como o Direito era
então perspectivado pelo menos até ao advento da sociedade post-industrial227. Não se
tratam de escolhas mas sim de uma sequência pois a primeira na procura da sua
validade axiológica material acaba por se fechar num sistema de regras e de abstractas
prescrições legais onde o direito aí subsistia, dando origem à segunda.
A nossa referência a uma validade axiológica do direito e a menção ao Direito
natural não procura portanto um retorno a um sistema axiológico normativo do
mesmo. Como mostra Kaufmann228 a busca por um “indisponível” no Direito, acabou
por conduzir a um desencanto, resultado de um conhecimento objectivista do Direito,
e conduziu, apesar da superação do modelo normativo-legalista-positivista, a um
regresso às teorias formalistas, nomeadamente às teorias analíticas do direito.
Considera-se apenas que esta validade implicada num princípio de desenvolvimento
sustentável pode na verdade constituir uma resposta ética às mudanças dos tempos de
hoje.
Parece, como o diz Castanheira Neves, “que a consciência do direito deixou de
se compreender, depois da crítica iluminista- ético-religiosamente fundada para passar
a ver as relações jurídicas tão-só sob o ponto de vista dos interesses sociais, que o
223 MENEZES CORDEIRO “ Num paradoxo aparente em que as humanísiticas são pródigas: o formalismo e o positivismo, tantas vezes preconizados em nome da segurança do Direito acabam por surgir como importantes factores de insegurança. 224 le présupposé d’une rationalité juridique autorize la confiance dans le droit. Plus encore de confiance, il est permis de parler de culte qui “se traduit concrètement dans le discours de l’Etat de droit par la coupure établie entre le champ du droit et le champ de la politique (...) l’objectivation d’une règle de droit, épurée de toute dimension politique, devient la garantie de sa puissance normative” Em Pensamento Sistemático e conceito de sistema na ciência do Direito, cit. p. XXXIV 225 CASTANHEIRA NEVES. O actual problema metodologico da realização do direito,cit, p.18 226 Idem Ibidem p.19 227 Idem Ibidem p.18 228 KAUFMANN, Filosofia do direito...,cit
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direito se converteu nas atuais sociedades altamente industrializadas (mesmo
sociedades post-industriais, científico-tecnocráticas e burocratizadas) num mero
princípio coativo da organização, deixando assim de ser um principio de instituição da
paz e justiça, (...)”, onde precisamente vai implicada a sua racionalidade que
abandonou a razão objectivo-material para assimilar a razão funcionalmente
instrumental.”. Segundo este autor isto estaria de acordo com as exigências politico-
sociais e com as mutações culturais que parecem ir na evolução das sociedades
actuais, com a consequente radical mutação dos referentes axiológicos e culturais do
Direito. O direito torna-se então instrumento normativo – pois continua a ver nas
regras a legítima objectivação do programa político social – programático e
regulamentar.229 A este direito estratégico, se abandona os valores, nuclearmente
determinantes no direito como sistema axiológico e se lhe prefere os fins, também não
se limita a aplicar hipotético-formalmente um esquema ou critério prescrito e menos
ainda se submete à vinculação de uma conclusão determinada por fundamentos a
priori, procura antes, em termos consequenciais, a constitutiva intervenção e
transformação através dos efeitos com que que se propõe fazer lograr na situação a
estratégia do seu plano finalístico.230
A esta realização do direito, esboçada apenas em algumas linhas231, que para
Castanheira Neves não seria já realização mas conformação e o pensamento jurídico
subjacente seria tecnológico,232 ele faz a crítica de uma instrumentalização do direito
aos fins, ao invès de uma relação valoradora ou normativa, que com a sua técnica da
manipulação dos elementos do sistema de forma eficiente ocuparia o lugar da ética
Com efeito, com aquela que parece ser a a crise do direito moderno, crise pois
ele revela-se agora normativamente inadequado e institucionalmente ineficiente233 é a
racionalidade que é redefinida. Não devem então as normas ter em conta o longo
termo e nesse sentido adaptar-se com flexibilidade aos eventos aos quais elas se
destinam a regular? Para Mireille Delmas-Marty a lógica jurídica evolui e à
incertitude, do objecto a regular, uma incertitude que é a do nosso tempo, sobretudo
229 CASTANHEIRA NEVES.O actual problema metodologico da realização do direito...cit, 230 Idem Ibidem 231 para mais desenvolvimentos CASTANHEIRA NEVES O actual problema metodologico da realização do direito...,cit. 232 Idem Ibidem 233 Idem.O direito hoje e com que sentido? O problema atual da autonomia do Direito..,cit.p.10
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nas questões ambientais234, corresponde a flexibilidade e abertura dos conceitos e
princípios jurídicos235. Esta autora considera que as novas lógicas jurídicas se relevam
por vezes mais eficazes do que a lógica clássica precisamente porque mais flexíveis e
portanto mais adaptáveis à realidade, pelos menos quando a realidade atinge uma tal
grau de complexidade, onde as lógicas clássicas são inadaptadas 236 . Isto é
particularmente sensível na questão ambiental onde a utilização de outros
instrumentos que não propriamente jurídicos têm-se revelado mais eficazes na
orientação de comportamentos com vista ao fim pretendido. Como vimos também, há
uma tendência para a introdução de mecanismos não jurisdicionais de controlo nas
convenções internacionais, ou a introdução de regras flexíveis no tempo, regras que
permitem uma flexibilização dos objectivos nas medidas impostas, ou ainda normas
que variam consoante os objectivos atinigidos237 238. Pelo que de facto haveria de se
reconhecer que novas lógicas jurídicas, nas quais como vimos se recorre a conceitos
flexíveis e evolutivos, como o é o próprio conceito de desenvolvimento sustentável.
Perante isto pode-se colocar a questão como o faz Castanheira Neves, “até que ponto
a evolução sera possível sem limites ou se para além de certos limites postulados pelo
sentido universal que constitutivamente funda, a evolução não sera já antes mutação
de algo em outro?”239, para logo depois questionar: “O actual entendimento da praxis
social e a diferente racionalidade que daí parece inferir-se são ainda compatíveis
com o sentido universalmente fundante do direito e a imprescindível e muito
particular racionalidade implicada pela sua normatividade?”240.
234 DELMAS-MARTY, Mireille. Pour un Droit Commun. Editions du seuil, 2004, Embora a autora aqui não se refira especificamente ao domínio do ambiente. 235 Idem Ibidem 236 DELMAS-MARTY, Mireille. Pour un Droit Commun...,cit, p. 26 237 O desenvolvimento de normas deve ter em conta as possibilidades de evolução seja das situações em causa ou do estado dos nossos conhecimentos A.KISS apud MALJEAN-DUBOIS, Sandrine. De rio à Johannesburg: et au- delà?...,,cit,p.603 (tradução nossa). 238 Pelo preço de uma certa insegurança juridica a regra estabelecida não é fixa mas evolutiva e perfectível em função do estado dos conhecimentos científicos ou mesmo do diminuição da gravidade dos atentados à meio natural. A regra é, como os instrumentos “cinéticos” MALJEAN-DUBOIS Ibidem, p,603 (tradução nossa) 239 NEVES, A. Castanheira. O actual problema metodologico da realização do direito...,cit, p. 13 240 Idem Ibidem
65
4.3.1 A crise do direito moderno: evolução ou mutação noutra coisa?
Com esta pergunta o autor pretende questionar se uma interpretação de acordo com
estas novas lógicas jurídicas, bem dos nossos tempos, seria ainda direito. Este autor
questiona assim a própria subsistência do Direito, enquanto sistema axiológico-
normativo autónomo. Efectivamente a natureza cultural do direito e a necessidade
dele ser objectivado num sistema de regras que se traduzam em decisões “científicas”,
já fez correr muitos rios de tinta não sendo, portanto, um problema de hoje241. Da
nossa parte consideramos que dado a revolução tecnológica da qual ainda estamos a
integrar os efeitos, a aceleração dos ritmos de vida, a complexificação e intensificação
das interações sociais e o enfraquecimento do poder dos Estados face ao mercado e
aos discursos de poder da tecnologia resultam num contexto histórico-social e numa
racionalidade que dificilmente serão compatíveis “com o sentido universalmente
fundante do direito e a imprescindível e muito particular racionalidade implicada
pela sua normatividade”.
Neste sentido consideramos que a consideração de um princípio de
desenvolvimento sustentável, ainda que também ele inacabado, pode constituir um
fundamento axiológico do direito, o pano de fundo de toda a acção para fazer face aos
actuais desafios ambientais, económicos e sociais. Onde não se procura a mera
satisfação do fins e não apenas só a eficácia dos meios mas também os fundamentos e
que portanto mesmo perante novas lógicas jurídicas, elas encontram ainda o seu
fundamentos nos princípios.
Por isto, a importância que os princípios gerais de direito parecem ocupar em
tempos de crises ou se preferirmos num período de transição, é a possibilidade de
quando nos “perdemos” no caminho, nos podermos nortear por eles. Pois se em
virtude de uma tal abstração e abertura tudo cabe dentro deste conceito, ao ponto de
até as soluções mais inócuas se verem justificadas por ele, é também nele que
reencontramos outra via, numa constante dialéctica.
241 MENEZES CORDEIRO: “A natureza cultural do Direito e a estruturação científica das suas decisões apresentam-se, assim, como os dois pólos de uma realidade destrinçada apenas pelas necessidades de estudo. A permanente tensão existente nessa realidade, entre um conjunto de elementos pré-dados, que o intérprete aplicador intenta conhecer e as necessidades de soluções cientificamente elaboradas é, no entanto, bem conhecida pelos juristas”. Em Pensamento Sistemático e conceito de sistema na ciência do Direito, cit.
66
Não podemos também esquecer que perante novos referentes histórico-
culturais, muitas das soluções são, mesmo sem o pretenderam, experimentais e que
nenhum processo de mudança e adaptação, ainda que tido por uma é linear.
Permitimo-nos por enquanto, enquanto o direito não é a sua mutação noutra
coisa, dizer que este ocupa um categoria ética que postula uma ordem justa e tem
haver com o universo espirtual do sentido242. Pelo que o reconhecimento de princípios
fundamentantes implicando a renovação da sua axiológica validade do dever-ser
podem apresentar-se como uma oportunidade de redenção do direito. O
desenvolvimento sustentável pode ter um papel relevante a desempenhar neste
sentido, pela constante recolocação da questão ética.
E isto dizemo-lo sem pretensões de uma ideologização do direito pois não o
dizemos sem que se admita que ele também tem de evoluir, para colocar no seu centro
não apenas o homem de hoje mas também o homem de amanhã243. O humanismo
colocou o homem no centro do mundo e fez um direito à sua imagem e semelhança,
ao qual, posteriormente as democracias liberais vieram contribuir para a crescente
subjectivação dos interesses dos indivíduos das sociedades democráticas. Criam-se
assim sociedades liberais onde, pela redefinição das instituições que outroura os
ligavam e lhes davam um sentido de pertença ao grupo, a sociedade corresponde cada
vez mais a um grupo de indivíduos244. Ora como mostrou Tocqueville numa sociedade
des indivíduos, o homem democrático é animado por um desejo de procura do bem
estar material245. E como explica Yves Charles Zackra é este desejo do bem estar
material que parece constituir o fundamento antropológico da tendência para a
acumulação de bens que caracteriza as sociedades de consumo ou mesmo de
sobreconsumo.
Por tudo isto a afirmação do desenvolvimento sustentável como princípio geral
de direito internacional, cientes de que o paradigma que vem com ele estende-se a
vários aspectos da sociedade, como conceito holístico que é, levantando questões de
ordem não só ambiental, como social, económica, cultural, ética indo até ao próprio
242 NEVES, A. Castanheira. O actual problema metodologico da realização do direito, p. 57 243 GUILLARD, Emilie. Vers un nouvel humanisme? Entre un humanisme de séparation et un humanisme ….cit. 244 ZARKA, Yves Charles. Le changement climatique: risque global, droit international et Democratie. In CANAL-FORGUES, Eric, Démocratie et diplomatie environnementales: acteurs et processos en droit international. Editions A. Pedone, Paris,2015. 245 Idem Ibidem
67
estatuto da Democracia. A sua afirmação impõe-se como fonte de princípios e
obrigações na actuação dos Estados e sobretudo pelo seu papel de consciencialização.
68
CONCLUSÃO
No plano dos efeitos resta-nos concluir que apesar de largamente difundido na
comunidade internacional, quase toda a matéria relativa ao desenvolvimento
sustentável, no plano jurídico, é essencialmente do soft law, deixando ainda na
dependência da boa vontade dos Estados a observância dos compromissos assumidos.
Sabemos que as dificuldades de implementação de políticas e de regulação à
escala global é já bem conhecida do direito internacional, sendo apenas, mais evidente
neste domínio em virtude também do facto dos riscos não serem precepcionados da
mesma forma, bem como, a distribuição dos efeitos não serem partilhados na mesma
medida, o que justifica por exemplo que se observe um “desenvolvimento sustentável
a duas velocidades”.
Houve de facto uma vontade política de elevar o conceito de desenvolvimento
sustentável tal como resultava do relatório Brundtland (“desenvolvimento que
responde às necessidades do presente sem comprometer as capacidade das gerações
futuras de responder às suas”) a princípio director das nações unidas, mas isso nunca
veio a acontecer e, nos entretantos, o direito internacional do ambiente conheceu um
desenvolvimento fragmentário, com multiplicação (e sobreposição) de textos,
convenções e órgãos que apesar de contribuírem para (a lenta) construção de um
quadro institucional falham em criar um sistema eficiente que imponha o
cumprimento de obrigações.
As preocupações dos países do sul resultaram numa progressiva introdução de
soluções económicas com vista à implementação das políticas ligadas ao
desenvolvimento sustentável, evidênciando um afastamento da reflexão incial.
É então neste contexto que o TIJ, quando confrontado com um caso
paradigmático de contraposição ambiente e desenvolvimento, onde estavam de um
lado as necessidade das populações de prover à satisfação de necessidades básicas e
do outro, o impacto ambiental decorrente da satisfação dessas necessidades, vai
considerar que o desenvolvimento sustentável é um conceito que traduz a necessidade
de reconciliar o desenvolvimento económico com a proteção do ambiente, sem
contudo se clarificar com que extensão o faz.
Mais tarde no caso das fábricas de celulose parece que TIJ utiliza este conceito
como instrumento de interpretação de tratado mas sem que se clarifique que
69
consequência resultariam da incoformidade de uma disposição do tratado com o
conceito de desenvolvimento sustentável. Passados dez anos seria de esperar que o
TIJ se demorasse um pouco mais nas suas considerações a propósito deste conceito.
Contudo nem tudo está perdido, as constantes referências ao desenvolvimento
sustentável no seio da comunidade internacional deixam já adivinhar a sua
consagração como princípio por força da opinio juris que estas refêrencias
sistemáticas parecem refletir. O que se enquadra na prática do TIJ de reconhecer
princípios quando crê tratarem-se de normas consuetudinárias. É então por conta de
um certo voluntarismo legalista que caracteriza a actuação do Tribunal nesta matéria,
que ele não aproveitou a ocasião para reconhecer o desenvolvimento sustentável
como princípio, nomeadamente por força do seu reconhecimento enquanto princípio
geral de direito. Mesmo tendo já em 1997 mencionado a emergência de novos
princípios no direito internacional não elaborou mais a questão,e tendo em conta as
progressivas e profundas alterações da comunidade internacional considera-se que
teria sido profícuo trazer novas luzes quanto aos princípios gerais de direito
internacional, nomeadamente quanto ao seu papel. O desenvolvimento sustentável
não tem assim um estatuto jurídico autónomo sendo aplicado por via de outros
princípios, nomeadamente pelo princípio da gestão racional e sustentável dos recursos
naturais, pelo princípio da precaução, pelo o princípio da integração, e pelo princípio
da cooperação, entre outros. Também nesta matéra assiste-se progressivamente ao uso
de mecanismos e instrumentos que não implicam propriamente um controlo à posteri
e a responsabilização do estado mas que se destinam a orientar e incentivar o
comportamento dos estados.
Já no plano dos fundamentos a consideração de um princípio geral de direito
de desenvolvimento sustentável apresenta-se como um fundamento axiológico de
validade material do sistema jurídico. Fundamento já como uma ruptura com a crença
no progresso ilimitado e de uma representação perversa da relação do homem com a
natureza. Já como princípio orientador de novas lógicas jurídicas que se impõe de
uma forma geral dada à crescente inadaptibilidade das lógicas tradicionais, o que é
especialmente evidente no domínio do desenvolvimento sustentável, às alterações
sócio-culturais e económica das sociedades actuais. Estas alterações nos referentes
axiológico normativos do direito se traduzem por uma racionalidade metodológica de
preterição dos fundamentos pelos fins e com a eficiência a ocupar o lugar da ética
70
pelo que também aqui a consideração e afirmação de um princípio como o direito
sustentável é ainda a preservação do Direito como categoria ética.
Finalizamos assim com uma citação da professora Maria da Glóra Garcia:
“Porque o respeito pelo ambiente e pela vida que sustenta exige uma ação que, em
simultâneo, seja cientificamente fundada, tecnicamente adequada, eticamente
responsável, economicamente eficiente, politicamente legitimada e juridicamente
realizada. Uma ação que por ser assim, é, em si mesma, do homem e para o homem
e, logo, uma ação que co-envolve a sua realização.
Lutar pela defesa do ambiente é, pois, lutar pela vida e pela assunção na
existência humana do seu sentido mais profundo, o sentido da dignidade de sujeito
ético, da dignidade de pessoa. E se esse respeito convoca a realização do direito,
então do que se trata, afinal, é de, (...), lutar pelo Direito.”246.
246 GARCIA, Maria da Glória. O lugar do direito na protecção do ambiente..,cit, p. 14.
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