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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE LETRAS ORIENTAIS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LITERATURA E CULTURA RUSSAS ELENA VASILEVICH A composição da novela “Uma novela enfadonha” de Antón Tchékhov São Paulo 2018

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS

DEPARTAMENTO DE LETRAS ORIENTAIS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LITERATURA E CULTURA RUSSAS

ELENA VASILEVICH

A composição da novela “Uma novela enfadonha” de Antón Tchékhov

São Paulo

2018

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS

DEPARTAMENTO DE LETRAS ORIENTAIS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LITERATURA E CULTURA RUSSAS

ELENA VASILEVICH

A composição da novela “Uma novela enfadonha” de Antón Tchékhov

Tese apresentada ao Programa de Literatura

e Cultura Russa do Departamento de Letras

Orientais da Faculdade de Filosofia, Letras e

Ciências Humanas da Universidade de São

Paulo para a obtenção do título de

Doutora em Letras

Orientador: Prof. Dr. Noé Silva de Oliveira

Queiroz Policarpo Polli

São Paulo

2018

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Nome: VASILEVICH, Elena

Título: A composição da novela “Uma novela enfadonha” de Antón

Tchékhov.

Tese apresentada ao Programa de Literaura e

Cultura Russa do Departamento de Letras

Orientais da Faculdade de Filosofia, Letras e

Ciências Humanas da Universidade de São

Paulo para a obtenção do título de Doutora

em Letras

Aprovada em:

Banca Examinadora

Prof. Dr. Noé Silva de Oliveira

Queiroz Policarpo Polli

Julgamento:

___________________________

Instituição: DLO – FFLCH - USP

Assinatura:

___________________________

Profa. Dra. _Elena Vássina_

Julgamento:

___________________________

Instituição: DLO – FFLCH - USP

Assinatura:

___________________________

Profa. Dra. _Maria Glushkova

Julgamento:

___________________________

Instituição: __FFLCH -USP

Assinatura:

___________________________

Prof. Dr. __Euro de Barros Couto

Júnior

Julgamento:

___________________________

Instituição: _EMASP (Escola municipal

de administração de São Paulo)

Assinatura:

___________________________

Profa. Dra. Natalia Cristina Quintero Erasso

Julgamento:

___________________________

Instituição: _Externo_

Assinatura:

___________________________

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AGRADECIMENTOS

Agradeço especialmente a meu orientador, Prof. Dr. Noé Silva de Oliveira

Queiroz Policarpo Polli pela orientação, paciência, revisões, ajuda na

tradução do texto, e pela amizade.

Aos Professores Dra. Elena Vássina e Mário Ramos, que participaram da

minha banca de qualificação, pelo incentivo e pelas sugestões que

enriqueceram tanto este trabalho.

A cada um dos membros da banca examinadora, Profa., Dra. Elena

Vássina, Dra. Maria Glushkova, Dra. Natalia Cristina Quintero Erasso, Dr.

Euro de Barros Couto Júnior, pela sua generosa disposição em participar

da avaliação de meu trabalho.

À minha família: aos meus pais, Vyacheslav e Era Mileniny, por sempre

estarem ao meu lado, apesar das distâncias geográficas.

A todos os meus queridos amigos russos e brasileiros, pela paciência,

inspiração e pelo apoio.

À CAPES, pela concessão da bolsa de doutorado e pelo apoio financeiro

para a realização desta pesquisa.

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RESUMO

Vasilevich. E. A composição da novela “Uma novela enfadonha” de

Antón Tchékhov. 2017. 205 f. Tese (Doutorado) – Faculdade de Filosofia

Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 2017.

O presente trabalho tem por objeto a análise da composição da obra “Uma

novela enfadonha” de Antón Tchékhov.

O protagonista da novela é único dentro da criação tchekhoviana. Trata-se

de um cientista de renome mundial que, ao enfrentar pela primeira vez a dúvida acerca da significância de sua própria existência, tenta resolver

esse problema, tão doloroso para ele próprio, por meio de reflexões lógicas registradas em seu diário. Contudo, sofre um fracasso absoluto.

Redigida em primeira pessoa, nesta obra, como em toda a criação

tchekhoviana, é característico um método de escrita objetivo, de tal forma que a opinião das personagens é, de fato, a opinião delas, e não

representa o parecer do autor. É possível compreender a posição de Tchékhov na novela, onde não há uma única palavra direta do autor,

apenas pela observação de certos sinais expressos no subtexto. A partir

disso, analisamos aqueles sinais que constituem os elementos estilísticos básicos da composição – partes do enredo que incluem o tempo presente

e as recordações, o léxico, os temas da morte, a natureza, os animais, a música, além dos detalhes, símbolos, ritmo, a caracterização das

personagens e o cronótopo. Mostramos como todos esses elementos, ao se entrelaçarem e realçarem uns aos outros, conformam o subtexto da

obra, e contribuem para a realização da ideia central do autor: mostrar a situação psicológica da pessoa quando sua vida se aproxima do fim,

quando é levantada a questão do sentido último e concreto da vida humana, no pano de fundo do processo histórico infinito.

Além disso, examinamos a história da criação da novela, observando esse processo por meio da análise das cartas do autor. Também ponderamos

os trabalhos da crítica dedicados a “Uma história enfadonha” em diversos momentos históricos de estudo da obra.

Palavras-chave: 1. Literatura russa 2. Antón Tchékhov 3. Composição 4.

Subtexto 5. Simbologia

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ABSTRACT

VASILEVICH. E. The Composition of the Short Story “A Dreary

Story” by Anton Chekhov. 2017. 205 pag. Thesis (PhD) – Faculty of

Philosophy, Languages, Literature, and Human Sciences (FFLCH), São

Paulo University, 2017.

The purpose of this work is to study the composition of the Chekhov's

novel "A Dreary Story". The main character of this novel is unique for

Chekhov since he is a World known scientist. Being in doubt for the first

time about the meaning of his life he is trying to resolve this painful

problem with the help of logical reflections in his diary - but fails. The

novel has the form of a narrative of the main character. In Chekhovs'

writings the opinion of the character never reflect the opinion of the

author. Therefore, to understand the Chekhov point of view in a novel that

does not contain single word directly from the author, one has to be

attentive to special signs in the subtext. We analyze these signs, that are

main stylistic elements of the composition such as the plot, the narrative

in the present and in recollections, the lexis, the themes of death, of

nature, of animals, musics, as well as the details, symbols, the rhythm,

the characters and the chronotop. We show that all these factors interact

and clarify each other to compose the subtext of the novel. They conspire

to underline the main idea of the author to show the psychology a man

when his life is coming to an end and then he is concerned with the

meaning of his particular finite life at the background of an infinite historic

process. Besides, we consider the history of creation of "A Dreary Story"

by looking at the author's correspondence and analyzing the critics

dedicated to the novel.

Keywords: 1. Russian Literature 2. Anton Chekhov. 3. Composition 4.

Subtext 5. Symbols

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Аннотация

Василевич Е. Композиция повести А. Чехова «Скучная история». 2017.

205 f. Диссертация на соискание ученой степени кандидата

филологических наук – Факультет Философии, Филологии и

Гуманитарных Наук Университета Сан-Пауло. 2017.

Целью представленной работы является исследование композиции

повести А. Чехова "Скучная история". Персонаж этой повести уникален для творчества Чехова - это ученый с

мировым именем. Столкнувшись впервые с сомнением в значимости собственной прожитой жизни, он пытается разрешить эту болезненную

для себя проблему с помощью логических размышлений в своем дневнике, однако, терпит полный крах. Повесть написана от 1-го

лица, а так как для всего творчества Чехова характерен объективный метод письма, когда мнение героя является только его мнением и не

выражает авторскую точку зрения, чеховскую позицию в повести, где

нет ни одного прямого авторского слова, возможно понять только обращая внимание на особые знаки, выраженные в подтексте.

Исходя из этого мы анализируем эти знаки - основные стилистические элементы композиции, такие, как сюжетные линии, включающие

линию настоящего времени и воспоминаний, лексику, темы смерти, природы, животных, музыки, а также детали, символы, ритм,

характеристику персонажей и хронотоп и показываем, как все они, сплетаясь и подчеркивая друг друга, составляют подтекст

произведения и работают на основную мысль автора - показать психологическое состояние человека в тот момент, когда его жизнь

подходит к концу, когда встает вопрос о смысле конечной, конкретной человеческой жизни на фоне бесконечного исторического процесса.

Кроме этого, мы рассматриваем историю создания повести, прослеживая этот процесс по письмам писателя и анализируем

критику, посвященную "Скучной истории" в различные исторические

периоды ее изучения.

Ключевые слова: 1. Русская литература 2. А. П. Чехов 3. Композиция

4. Подтекст 5. Символика

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Índice 1. Introdução ............................................................................... 9

2. História da criação da novela (cartas 1888 – 1889) .......................... 13

3. Crítica ........................................................................................ 29

4. Elementos da composição da novela .............................................. 41

4.1 Conceito geral de composição duma obra literária ....................... 41

4.2 Título, subtítulo ....................................................................... 43

4.3 A composição dos apontamentos – desenvolvimento das reflexões e

estado da personagem .................................................................. 51

4.4 Simbologia ............................................................................. 95

4.5 Música ................................................................................. 109

4.6 A composição das recordações ................................................ 118

4.7 Pormenor ............................................................................. 139

4.8 personagens ......................................................................... 142

4.9 Cronótopo ............................................................................ 181

5. Conclusão ................................................................................. 194

6. Bibliografia ............................................................................... 195

6.1 Obras de A. P. Tchékhov ........................................................ 195

6.2 Obras gerais ......................................................................... 196

7. Anexo .............................................. Erro! Indicador não definido.

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1. Introdução

O trabalho inclui uma breve exposição da história da escrita da novela,

com base em cartas do autor, escritas em 1889, um exame da crítica,

composta de três partes (crítica anterior à Revolução de Outubro,

soviética e do nosso período contemporâneo de estudo da obra do escritor

e, concretamente, de “Uma História Enfadonha”) e uma análise nossa da

composição da novela, dedicada a questões de estilística, a símbolos, às

personagens e às suas particularidades espaciais e temporais.

A maneira artística, elaborada por Tchékhov por volta do fim dos anos

1880, foi um descobrimento para todos e determinou em muito a

orientação da literatura mundial do século vinte. Os meios artísticos, que

auxiliam o leitor a compreender mais profundamente o pensamento do

autor, começam a desempenhar novos papéis nos textos de Tchékhov. A

partir da metade do decénio de oitenta do século 19, Tchékhov faz uso de

vários procedimentos, escondendo, no fundo do texto, os seus juízos, os

verdadeiros sentimentos das personagens, o estado psicológico delas e as

relações de umas com as outras. A posição do autor, assim, é quase

imperceptível, o que é notado sobretudo na sua dramaturgia. As suas

rubricas, pausas, diálogos semelhantes a monólogos que permitem

comunicar os mínimos matizes dos sentimentos e pensamentos das

personagens e, muitas vezes, não estão ligados entre si nem com a ação,

como que vão para segundo plano, sobre o fundo do crescente papel dos

sons e silêncios, da iluminação, da mudança da hora do dia ou da estação

do ano, da cor da roupa etc. As palavras perdem o significado próprio,

rompem os seus nexos lógicos e são percebidas como enganadoras pelo

leitor ou espectador. Ao mesmo tempo, o meio que circunda as

personagens, com todos os seus atributos — luz, cheiro, sons familiares

ou inesperados, como o duma corda rompida ou o crepitar de fogo, a

mímica involuntária das personagens, um verso de canção ou poema que

se repita cá e lá etc. — agora, ao contrário, torna-se a única realidade

artística, a “corrente subterrânea”, o subtexto que permite compreender a

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ideia e intenção do autor.

É sabido que a determinação da posição do autor, nas obras de Tchékhov, em

geral, é difícil e suscita muita discordância entre os estudiosos. É particularmente

difícil fazê-lo nas suas peças, nas quais, de acordo com o género dramático,

inexiste uma genuína narrativa do autor. Os pesquisadores têm, com ressalvas,

de recorrer a uma aproximação da posição do escritor à posição duma

personagem ou outra, isto é, buscar algum tipo de indivíduo filosofador. Toda a

tentativa dessas, até aquela baseda em coincidências textuais com declarações

do escritor, tem sob si uma base muito precária. Deve dar-se atenção não

apenas a este ou àquele dito da personagem, senão também ao modo como o

autor o encara.1

Os estudiosos dedicaram-se muito menos ao tema do subtexto

tchekhoviano na sua prosa, e esse campo permanece pouco estudado até

hoje, embora represente um material riquíssimo. O autor está como que

dissolvido no texto, e até nos contos e novelas, em que se tem um

patente texto autoral, é impossível identificá-lo com a posição do próprio

Tchékhov; o narrador está presente mais como mais uma personagem.

“Uma História Enfadonha” pertence àquelas obras tchekhovianas, em que

enxergar a posição do autor é ainda mais complicado do que na

dramaturgia, uma vez que foram escritas em nome duma personagem;

nelas, não há nem rubricas do autor. Tanto mais importante e interessante

é analisar como o “subtexto” revela a profundidade do conteúdo, o modo

do autor de encarar a personagem, a situação e os temas tratados na

novela, o papel desempenhado pelos pormenores “fortuitos”, a

composição, as digressões da linha composicional básica, as recordações,

o léxico, a estilística, o espaço e o tempo na novela, e, tendo feito isso,

examinar como todos esses meios, reunindo-se em um sistema artístico

uno, levam à decifração do subtexto tchekhoviano.

No nosso trabalho, nós nos basearemos em estudos clássicos e novos

(A.Tchudakov, I.Sukhih, V.Katáev e outros).

1 S. KUZNETSOV , Russkaja literatura, 1985, № 1,p.146

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No início dos anos 1880, em substituição ao conhecido autor de contos

humorísticos, Antocha Tchekhonté2 de seu nome, vem o já famoso Antón

Tchékhov com uma estilística já constituída e uma nova maneira de

encarar a prosa e a dramaturgia, as quais, inicialmente, não foram

compreendidas e valorizadas pelos contemporâneos e ainda constituem

objeto de muitos estudos. Uma das principais dificuldades da

compreensão de Tchékhov consiste no seu modo peculiar de encarar o

papel do autor na obra. À diferença dos seus grandes predecessores e

contemporâneos (Tolstói, Dostoiévski, Turgueniev), ele não declara as

suas opiniões e não coloca o seu modo de ver a vida, as pessoas e os

problemas mais importantes do seu tempo nos lábios das suas

personagens. O que estas dizem ou pensam, os juízos que emitem, as

suas ilusões, falsidade, inclusive a involuntária, tudo isso pertence

somente a elas.

... o mundo representado passa inteiramente pelo prisma da

percepção da personagem principal. Desenha-se apenas o que ele

sente, vê e sabe. O microcosmo de um tal conto torna-se o

mundo percebido pelas personagens. Essa capacidade da

narrativa tchekhoviana de transformar-se em personagem foi

notada já pelos contemporâneos do escritor.3

Tchékhov defendeu essa sua posição em cartas tanto a Suvórin, quanto

a jovens literatos, considerando-a uma questão de princípios.

Como compreender o famoso e misterioso “subtexto” tchekhoviano?

Por que sinais se pode extrair informação dele?

O objeto do nosso estudo é a novela “Uma História Enfadonha”, de

1889. A escolha de precisamente essa obra foi ditada pelos seguintes

fatores:

1) a época da sua escrita;

2 O pseudónimo mais difundido de A. Tchékhov no período inicial da sua obra

3 A.TCHUDAKOV, M.,1971, p.48

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2) os meios artísticos, empregados na novela, foram pouco estudados;

3) ela foi escrita em primeira pessoa.

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2. História da criação da novela (cartas 1888 – 1889)

“Uma História Enfadonha” (“Скучная история”) foi primeiramente

publicada em 1889, na edição de Novembro da revista O Mensageiro do

Norte (Северный вестник), e em 1890 foi incluída na coletânea “Gente

Carrancuda” ("Хмурые люди"). A essa altura, Tchékhov não apenas era já

um famoso e apreciado autor de contos humorísticos, como também dera

mostras de ser um escritor profundo, um dos mais lidos na Rússia de

então. Da sua pena haviam já saído obras expressivas, entre as quais os

contos "Егерь", "Злоумышленник","Тоска", "Каштанка", "Спать

хочется", "Огни", a peça “Иванов” e a novela “Степь”. Muitas questões e

temas, evidenciados em “Uma História Enfadonha”, haviam já sido

aventados, duma forma ou outra, nessas obras anteriores, mas a maneira

particular de ver os acontecimentos representados, a posição de Tchékhov

em relação a eles e às personagens, incomum para a literatura do seu

tempo, o estilo de Tchékhov e a especial maneira “objetiva” de escrita,

podemos dizê-lo, estavam já formados, constituídos. Isso foi notado,

embora nem sempre corretamente compreendido, ainda ao tempo de

Tchékhov e permitiu aos críticos de então definir o período 1889-1890

como de viragem na estilística tchekhoviana. Lugar central, no referido

período, é ocupado por “Uma História Enfadonha”.

Um dos mais importantes fatos biográficos, que serviram de base

para a escrita da novela, talvez tenha sido a formação médica, obtida por

Tchékhov na Universidade de Moscou, não apenas por a personagem

principal ser um catedrático de Medicina e à universidade serem dedicadas

muitas páginas das suas memórias, senão também porque a formação

recebida despertou no jovem literato o interesse pela psiquiatria e

psicologia do seu tempo (principalmente no que se refere ao tema da

relação entre os sexos), pela filosofia antiga e da época, pelos

descobrimentos no campo das Ciências Naturais e, principalmente, pelo

“tratamento científico” da criação artística, o qual se manifesta de modo

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particularmente expressivo em “Uma História Enfadonha”. Tudo isso não

somente se refletiu na novela, como também determinou em muito a

representação das situações e do mundo interior das personagens, a qual

é psicologicamente exata tanto sob a ótica dum escritor, quanto sob a

ótica dum cientista médico. Tchékhov teve, como professores na

universidade, os fundadores da psiquiatria russa: Zakhárin, Babúkhin e

Sklifossóvskii. Ele próprio considerava a sua formação médica como o

fator decisivo para a sua decisão de tornar-se escritor.

Em 1900, em breve autobiografia, ele escreve:

“Não tenho dúvidas, o exercício das ciências médicas tiveram

séria influência na minha atividade literária; ele ampliou

significativamente o campo das minhas observações e enriqueceu

os meus conhecimentos, cujo verdadeiro valor para mim como

escritor só poderá entender quem também for médico; ele teve,

também, uma influência definidora de rumos, e, provavelmente,

graças à minha proximidade à Medicina, eu consegui evitar muitos

erros. O conhecimento das ciências naturais sempre me manteve

alerta, e eu esforcei-me, onde fosse possível, por proceder

conforme os dados científicos e, onde era impossível, preferia

simplesmente não escrever. Direi, a propósito, que as condições

da criação artística nem sempre permitem inteira harmonia com

os dados científicos; não se pode representar, no palco, a morte

por envenenamento tal qual ela ocorre na realidade. Mas deve

sentir-se harmonia com os dados científicos também nessa

convencionalidade, ou seja, é preciso que ao leitor ou espectador

fique claro que isso é apenas uma convencionalidade e que ele

está diante dum escritor entendido. Aos literatos que encarem a

ciência negativamente, eu não pertenço; e àqueles que a tudo

cheguem pela própria razão, eu não gostaria de pertencer.4

4 A.TCHÉKHOV, Moscou, 1979, p.271

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Tendo resolvido dedicar a P. I. Tchaikovskyi a coletânea de contos “Gente

Carrancuda”, na qual o lugar central cabe a “Uma História Enfadonha”,

Tchékhov escreve ao compositor, mencionando “elementos médicos”:

“Neste mês, eu pretendo começar a publicar um novo livro de

contos; eles são tediosos e maçadores, como o Outono,

monótonos pelo tom, e elementos artísticos, neles, estão

densamente misturados com médicos, mas isso, apesar de tudo,

não me tira a ousadia de dirigir-me ao senhor com um pedido

encarecido: permita-me dedicar-lhe este livro.” 5

No estudo da novela, nós não deixaremos de levar tal aspecto em

conta.

Claro está, entre as premissas mais importantes de muitos temas,

nela tratados, também estão as obras literárias, às quais o autor remete o

leitor muito discretamente. Entre elas, os críticos costumar citar “A Morte

de Ivan Ilitch”, de Tolstói, “O Aluno”, de Bourget (Paul Charles Joseph

Bourget foi um romancista e crítico literário francês, autor de romances

psicológicos. Bourget exerceu grande influência nas letras francesas no

período que antecedeu o naturalismo, o qual combateu.), e “Fausto”, de

Goethe. No texto, há muitas referências a outros autores, sobretudo

Shakespeare e Marco Aurélio, o que também foi assinalado pela crítica.

Bem como muitas reminiscências, o que, com outros meios artísticos, nos

permite procurar uma chave para o “subtexto” tchekhoviano. Basta

enumerar os nomes de cientistas, escritores, personagens literárias,

filósofos e músicos, mencionados na novela (com a concisão da escrita de

Tchékhov, embora!) para falarmos da necessidade dum estudo esmerado

desse material (Shakespeare, Marco Aurélio, Epíteto, Pascal, Pirogov,

Nekrássov, Skóblev, Perov, Hekuba, Bach, Bhrams e outros).

Infelizmente, esse interessantíssimo tema está pouco estudado.

5 P. TCHAIKOVSKY 12 .10 1889 г. Disponivel em:http://chehov.niv.ru/chehov/letters/1888-

1889/letter-696.htm

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A nosso ver, são importantes não somente os aspectos históricos,

filosóficos ou literários da menção a tais nomes, senão também outros,

igualmente importantes.

Nós tentaremos mostrar que, na novela, as reminiscências estão

intimamente ligadas às noções de tempo e espaço e determinaram em

muito a composição da obra.

É difícil falar de quando a Tchékhov veio a ideia de escrever “Uma

História Enfadonha”, mas, em algumas cartas de 1888-1889, encontram-

se menções a ideias usadas nela. A primeira menção concreta acerca da

futura obra está em carta a A. Evréinova, de 10 de Março de 1889. A ideia

era de que seria um conto.

“Eu tenho um enredo para um conto não muito grande. Tentarei

fazê-lo para o livro de Maio ou Junho. “6

É sabido que, em Março de 1889, realiza uma viagem a Khárkov, e

essa cidade tornar-se-ia um dos lugares da ação da novela. Precisamente

nesse período, a Primavera de 1889, ele lê o livro “Meditações”, do estóico

Marco Aurélio, e faz notas à margem. O referido livro conserva-se na

casa-museu de Ialta, e nós tivemos a oportunidade de manuseá-lo em

1983. Na obra subsequente do escritor, o tema do estoicismo aparecerá

mais de uma vez, especialmente em “Enfermaria № 6”.

Se examinarmos as cartas de Tchékhov, escritas no período que vai

dos fins de 1888 aos de 1889, poderemos notar como mudaram o seu

estado de espírito e a sua percepção do mundo.

Do fim de 1888 ao início de 1889, ele está feliz, agitado e cheio de

idéias de criação e constrói planos. Recebera, pouco tempo antes, o

prémio Púchkin e estava, bem como os seus parentes e amigos, muito

comovido e orgulhoso do fato. Em Peterburgo, é encenado “Ivánov”, com

a sua ativa participação nos ensaios. Para além disso, ele está a escrever

6 А. IEVREÍNOVA 10 .03 1889 г. Москва. Disponivel em:http://chehov.niv.ru/chehov/letters/1888-

1889/letter-619.htm

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um romance, que nunca seria concluído, mas cuja idéia o arrebatara

naquele período, fato testemunhado por cartas (muito seria usado em

outras obras, entre as quais “Uma História Enfadonha”).

A partir de Março de 1889, a situação começa a mudar, com o

adoecimento do seu irmão Nikolai; o que, incialmente, não parecia muito

grave (febre tifóide), transforma-se em tísica com desfecho fatal em

Junho. Em quase todo o período de doença do irmão, Tchékhov tem-no

consigo; depois, toda a família vai para a datcha de Súmy, e o falecimento

do jovem pintor ocorre durante uma breve ausência do escritor.

A.Tchékhov N.Tchékhov

À medida do desenrolar dos trágicos acontecimentos, as cartas vão

tornando-se, a cada vez, mais desassossegadas, e sente-se a depressão

mais claramente; surge a palavra "скучно" (“é tedioso”), precisamente no

sentido, em que será usada no título da novela. Às vezes, melhorava o

estado de Nikolai e surgia, então, a esperança, e o tom das cartas

novamente mudava. Aparecem, nelas, referências a Marco Aurélio,

Epíteto, Salomão, Goethe, Fausto e Bourget. Encontram-se reflexões

acerca de psicologia, materialismo, filosofia e indiferença, entre outras

coisas, e a maioria desses temas encontraria reflexo na futura novela. Ao

meio de Maio, fica claro que Nikolai não teria cura.

Escreve Tchékhov a Suvórin, em 14 de Maio:

O meu pintor nunca recobrará a saúde. Ele está com tísica. A

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questão está colocada assim: quanto durará a doença?7

A Léikin, em 22 de Maio:

... nos meus braços, tenho Nikolai, doente de tísica e consumido

por ela. É péssimo, o seu estado, e péssimo, também o meu, e o

senhor pode imaginar a minha situação. Não vou estender-me. 8

Nikolai morreria em 17 de Junho.

Escreve Tchékhov a Plechtchéev, em 26 de Junho:

“O pobre pintor morreu. (...) Era impossível dizer quando

Nikolai morreria, mas que isso seria logo, para mim estava claro.

O desfecho ocorreu nas seguintes circunstâncias. Na minha casa

estava hospedado o Svobódin. Aproveitando a vinda do meu irmão

mais velho, que poderia substituir-me, eu quis descansar, respirar

outro ar durante uns cinco dias; convenci Svobódin e os Lintarióv

e fui com eles à província de Poltava, à casa dos Smáguinin. Como

castigo pela minha partida, no caminho todo soprou um vento tão

frio e esteve o céu tão carregado, que parecia bem a tundra. Na

metade do caminho, começou a chover. Chegamos de noite à casa

dos Smáginins, molhados e com frio, deitámo-nos em camas frias

e adormecemos com o barulho da chuva. De manhã, o mesmo

tempo revoltante de Vólogda; a vida inteira, eu não conseguirei

esquecer nem a estrada lamacenta, nem o céu cinzento, nem as

lágrimas nas árvores; digo — não conseguirei, porque de manhã

veio de Mírgorod um mujique baixote, trazendo um telegrama

molhado:

“Kólia morreu”. Pode imaginar o meu estado de espírito. Foi

preciso galopar de volta à estação, tomar a ferrovia e gastar oito

horas em espera nas estações... Em Rómny, eu esperei das 7

7 А. SUVORIN 14.03 1898 disponivel em: http://chehov-lit.ru/chehov/letters/1888-1889/letter-

653.htm

8 Н.LÉIKIN 22.05 1889 disponivel em: http://chehov-lit.ru/chehov/letters/1888-1889/letter-

656.htm

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horas da noite até às duas da madrugada. De tédio [grifo meu – E.

V.] fui vadiar pela cidade. Lembro-me: sento-me num jardim,

escuridão, um frio de lascar, um tédio monstruoso [Idem], e, atrás

da parede castanho-acizentada, perto da qual eu estava sentado,

artistas ensaiavam um melodrama.

Em casa, encontrei o sofrimento. A nossa casa até então não

conhecera a morte, e vimos um caixão pela primeira vez”.9

Em 2 de Julho, comunica a Suvórin:

“O pobre Nikolai morreu. Eu estupidifiquei-me e estou baço.

Um tédio dos infernos, nem um nadinha de poesia na vida,

ausência total de desejos etc. etc.” 10

A 18 de Julho, à irmã Macha:

“Um tédio dos infernos, e talvez eu parta daqui amanhã ou depois

de amanhã”. 11

E a 3 de Agosto a Plechtchéev:

“Partindo, deixei em casa o tédio desalentado e o medo”. 12

Já pelas cartas vê-se que o conceito de “tédio” ("скука") está, para

Tchékhov, intimamente ligado com o estado de desespero e tristeza

("скука аспидская" – tédio monstruoso; "скука адская", tédio dos

infernos).

9 А. PLECHTCHEEV 26 .06 1889 disponivel em:http://chehov.niv.ru/chehov/letters/1888-

1889/letter-664.htm

10 А.SUVORIN 2.07 1889 : disponivel em:http://chehov-lit.ru/chehov/letters/1888-1889/letter-

665.htm

11 М. TCHÉKHOVA 18 .07 1889 disponivel em http://chehov.niv.ru/chehov/letters/1888-

1889/letter-668.htm

12 А. PLECHTCHEEV 3 .08 1889 disponivel em http://chehov.niv.ru/chehov/letters/1888-

1889/letter-669.htm

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Tal acontecimento, subentende-se, não apenas atrasou o presumível

término do conto, mas também, e principalmente, influenciou o tom de

espírito da novela e o tema, que a atravessa como motivo dominante — o

tema da morte. Tal como o autor, que acabara de, pela primeira vez,

passar pela tragédia da perda dum ente querido, com ser o médico do

irmão e um observador diário do desenvolvimento da doença, estando ele

próprio acometido da mesma moléstia (a primeira hemoptise ocorrera-lhe

em 1884 e repetira-se no fim de 1888), da mesma forma a personagem

sabe que morrerá logo e, ao verificar os sintomas da doença fatal e a

observar-lhe o desenvolvimento, estabelece o prazo que lhe resta,

provando, simultaneamente, todo o terror de quem tenha tomado

consciência do seu fim próximo.

Precisamente isso constitui o ponto de partida das reflexões da

personagem, que se tornam a linha principal da composição da novela.

A morte próxima está indissociavelmente ligada ao tema do tempo

de que a pessoa não dispõe.

A 16 de Julho, Tchékhov parte para Ialta e do navio escreve ao seu

irmão Ivan:

“Eu vou para Ialta e decididamente não sei para que ali

vou. É preciso ir também ao Tirol, a Constantinopla, a Súmy;

todos os países misturaram-se na minha cabeça, a fantasia

fervilha de cidades, e eu não sei qual escolher...” 13

Comparêmo-lo com a viagem de Nikolai Stepánovitch a Khárkov:

“Se é para ir para Khárkov, que seja para Khárkov. Além do

quê, nos últimos tempos, eu estou tão indiferente a tudo, que

para mim dá no mesmo ir para Khárkov, Paris ou Bérditchev”. 14

13 И.TCHÉCKHOV 16.071889 disponivel

em:https://royallib.com/read/chehov_anton/tom_21_pisma_ 1888_1889.html#778240

14 A.TCHÉKHOV Moscou, 1977, p.304

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O primeiro título da novela era “O meu Nome e eu” ("Мое имя и я"),

o que, à primeira vista, é muito mais consonante com a ideia principal da

narrativa, mas, no entanto, em Setembro de 1889, Tchékhov intitula-a

“Uma História Enfadonha” e, apesar da advertência de Pleschtchéev de

que o novo título poderia provocar a ironia dos detratores, recusou-se

terminantemente a mudá-lo.

No capítulo dedicado ao título e ao subtítulo ("Из записок старого

человека", “Notas de um Velho”), nós tentaremos provar o caráter de

síntese simbólica do título mantido por ele. Alguns pesquisadores

estudaram já a questão do conceito de “tédio” na obra de Tchékhov e,

claro, também em “Uma História Enfadonha”, mas não foi notada a

palavra “história” ("история"), que tem vários significados na língua russa

e, na nossa opinião, adquire o mais amplo sentido no título da novela, o

que está diretamente relacionado com os conceitos de “tempo” e

“espaço”.

Assim, no “mais infame dos estados de espírito”, Tchékhov chega a

Ialta e trabalha na novela, que seria concluída somente no Outono.

Simultaneamente, escreve a peça “O Silvano” ("Леший"), mais tarde

reescrita como “Tio Vánia” (“Дядя Ваня”).

Por alguns testemunhos, é possível falar dum suposto protótipo da

personagem principal (levando em conta, obviamente, a

convencionalidade do conceito de “protótipo”). É Aleksandr Ivánovitch

Babúkhin, catedrático da Universidade de Moscou. Isso foi confirmado

pelo próprio Tchékhov:

É um vulto coletivo, embora muito tenha sido tomado de

Babúkhin. Coincidem alguns traços exteriores: em 1889,

Babúkhin, como Nikolai Stepánovitch, tinha 62 anos; tivera

encontros com Pirogov nos anos 1860, como o professor de “Uma

História Enfadonha”; apesar de defeitos de fala, possuía as

mesmas brilhantes capacidades de orador, sabendo, pelas

palavras dum orador, “desenhar em figuras vivas as coisas mais

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abstratas... e iluminar tudo isso com um humor muito vivo,

entusiástico, e contar coisas com um talento incomparável. 15

No relato da história da criação da novela, não se pode esquecer o

fato de que ela foi escrita com grande dificuldade, do que há muitos

testemunhos nas cartas do período de trabalho nela.

A 3 de Agosto, Tchékhov escreve a Plechtchéev:

“... o conto está quase pronto. Apesar do calor e das

tentações de Ialta, eu escrevo. O que escrevi já dá uns 200

rublos, isto é, uma folha de impressão inteira... Por força do calor

e do meu nojento, melancólico estado de espírito, o conto tem-me

saído um tanto tedioso. Mas o motivo é novo. É bem possível que

o leiam com interesse”. 16

Tchékhov, no entanto, ficaria insatisfeito com o que escrevera e, adiando a

entrega do manuscrito à revista, põe-se a retrabalhá-lo.

A 3 de Setembro, de novo a Plechtchéev:

“Escrevi hoje a Anna Mikháilovna que o conto para o

“Mensageiro do Norte” já está pronto, e pedi-lhe permissão para

retê-lo em casa e não enviá-lo até ao próximo livro. Eu quero polir

e embelezar uma coisa e outra e, principalmente, pensar um

pouco nelas. Eu nunca na vida escrevi algo parecido, os motivos

são completamente novos para mim, e eu temo que a minha

inexperiência me faça quebrar a cara. Mais exatamente, eu temo

escrever alguma asneira”. 17

15

A.TCHÉKHOV, Moscou, 1977, p.671

16 А. N.PLESCHTCHHEEV 3.08

1889https://royallib.com/read/chehov_anton/tom_21_pisma_1888_1889.html#798720

17 А. N.PLESCHTCHEEV 3 09 1889https://royallib.com/read/chehov_anton/tom_21_pisma_1888_

1889.html#819200

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Depois, ele volta a Moscou e a 7 de Setembro escreve a Evréinova

(redatora):

Tendo-lhe enviado a carta, eu acalmei-me e, entregue ao

acabamento do meu conto, escagalhei-o de ponta a ponta e joguei

fora um pedaço do meio e o final inteiro, decidido a substituí-los

por novos. Que fazer agora? Não posso enviar-lhe o que me

parece inacabado e que não me agrada. A coisa por si, pela sua

natureza, é meio tediosa, e, se eu não me ocupar dela

atentamente, então pode ser que, como dizem os franceses, o

Diabo é que sabe o que vai sair... O enredo do conto é novo: a

vida dum velho professor catedrático, conselheiro privado. Está

difícil escrever. Volta e meia, é preciso refazer páginas inteiras,

pois todo o conto está estragado pelo detestável estado de

espírito, de que eu não consegui livrar-me no Verão todo. Ele,

provavelmente, não agradará, mas que ele fará barulho e que o

“Pensamento Russo” vai massacrá-lo, disso eu estou convencido”.

18

A 13 de Setembro, escreve a Tíkhonov:

“Concluí uma extensa novela. É uma coisa pesada, portanto

pode matar alguém. Pesada não pela quantidade de folhas de

impressão, mas pela qualidade. É uma coisa canhestra e

volumosa. Trato um motivo novo”. 19

Ao dia seguinte, ele fala novamente a Pleschtchéev da dificuldade

de escrever:

“... imagine o senhor Tchékhov, que escreve, sua e corrige,

18

А. М. ЕВРЕИНОВОЙ 7 сентября 1889

https://royallib.com/read/chehov_anton/tom_21_pisma _1888_188 9. html#819200

19 В. TIKHONOV 13 .09 1889

https://royallib.com/read/chehov_anton/tom_21_pisma_1888_1889.html#839680

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e vê que, com as mudanças e horrores revolucionários, a novela

sofre sob a sua pena e não fica nem um tiquinho melhor. O que

faço não é escrever, mas promover perturbações. Em tal estado de

espírito, concorde comigo, não é lá adequado apressar-se com a

publicação.

Na minha novela, não há dois estados de espírito, mas quinze

inteiros... tenho a esperança de que o senhor verá nela duas ou

três pessoas novas, interessantes para qualquer leitor inteligente;

verá uma ou duas novas situações... “ 20

A Leóntiev-Chtcheglov, a 18 de Setembro:

“Estou a braços com a novela, e a azáfama está no fim. Daqui a

uns cinco dias, este pesado disparate irá para Peterburgo, para a

tipografia de Demakov. Isso não é uma novela, mas uma tese de

doutorado. Cairá no gosto apenas dos amantes da leitura tediosa

e pesada, e eu faço mal em não mandá-la para a “Revista de

Artilharia” («Артиллерийский журнал»). 21

A novela foi concluída a 24 de Setembro, o que testemunham cartas a

Evréinova e Plechtchéev de 24 de Setembro:

“Envio-lhe o conto, “Uma História Enfadonha (Notas dum

Velho)”. A história é de fato tediosa, e está contada sem arte. Para

escrever notas dum velho, é preciso ser velho, mas tenho lá culpa

de ser jovem?” 22

Nessa mesma carta, Tchékhov escreve também que não lhe importa

se aquilo será uma novela ou um conto.

20

А. N.PLESCHTCHEEV 14 09 1889

https://royallib.com/read/chehov_anton/tom_21 _pisma_1888_1889.html#839680

21 И. Л. LEONT’EV-CHTCHEGLOV 18 09 1889

https://royallib.com/read/chehov_anton/tom_21_pisma_1888_1889.html#860160 22

А. EVREINOVA 24 09 1889

https://royallib.com/read/chehov_anton/tom_21_pisma_1888_1889.html#860160

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É pouco provável que Tchékhov estivesse insatisfeito com a sua

novela, enviando-a a uma revista e a uma coletânea, mas, pelas cartas,

pode notar-se que estava muito inseguro quanto à reação dos leitores. Por

que duvidava um escritor famoso e reconhecido de que o entenderiam?

Por que lhe fora tão difícil o trabalho de escrevê-la, por que lhe dera outra

composição e mudara o título? Por que escreve que o motivo lhe era

completamente novo e que não escrevera algo semelhante “desde que

nascera”, se, em obras anteriores, haviam já sido tratados os seus temas

principais — morte, busca duma concepção do mundo, isolamento e

incompreensão mútua de pessoas próximas? Quais eram os tais quinze

estados de espírito?

Ainda em manuscrito, a novela foi lida por Pleschtchéev e Suvórin, que

encontraram “notas” tchekhovianas nas reflexões do professor. O primeiro

ficou encantado:

“O Sr. não teve nada tão poderoso e profundo, quanto essa

novela... E não falo já da absoluta novidade do motivo”. 23

Tchékhov recebeu com respeito as observações, feitas por Plechtchéev,

e, na carta de resposta, “tira um pouco o véu” à sua personagem e a

alguns aspectos da composição.

Muito obrigado pela carta e pelas indicações, que não deixarei de

aproveitar quando eu ler as provas. Apenas em poucas coisas não

concordo com o senhor. Por exemplo, acho que não convém

mudar o título da novela – os velhacos que, de acordo com suas

previsões, irão caçoar de “Uma História Enfadonha” são tão

desprovidos de espírito, que não há motivo para temê-los; e se

alguém fizer uma piada bem-sucedida, ficarei satisfeito por lhe ter

dado essa opurtunidade. O professor não pode escrever acerca do

marido de Kátia, porque não o conhece, e Kátia não diz nada a

respeito dele; além do mais, o meu herói – e isto constitui um dos

23

A.TCHÉKHOV ,1977, с.672

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seus traços principais – trata com demasiada negligência a vida

interior dos que o rodeiam, e enquanto, ao seu lado, choram,

erram, mentem, ele, com a maior tranquilidade, discorre acerca

de teatro e literatura. Se ele fosse de outro tipo, talvez Lisa e

Kátia não se tivessem perdido.

Realmente, o passado de Kátia saiu longo e enfadonho. Mas

não dá para fazer de outra forma. Se eu tivesse tentado tornar

essa passagem mais interessante, há de concordar que a minha

novela sairia duas vezes mais longa...

Uma novela, como também o palco, impõe suas condições.

Portanto, a intuição diz-me no final duma novela ou dum conto eu

devo concentrar artificialmente no leitor a impressão de toda a

obra e, para isso, ainda que ligeiramente, um bocadinho, devo me

referir àqueles de quem tiver falado antes...24

Suvórin, por sua vez, considerou a novela subjetiva e publicitária, ao

que Tchékhov lhe respondeu com irritação.

Se lhe servem café, não o confunda com cerveja. Se lhe

apresento os pensamentos dum professor, não procure neles os

pensamentos de Tchékhov, e acredite em mim. Fico imensamente

grato. Na novela inteira há apenas um pensamento que eu

compartilho, e ele está na cabeça do genro do professor, o

trapeceiro Hnecker; é o seguinte: “O velho perdeu o juízo!” Todo

o resto é inventado e fabricado... Onde é que você encontrou

literatura jornalistica? Será que você dá tanto valor a opiniões de

qualquer gênero, que vê somente nelas o centro de gravidade, e

não na maneira de expressá-las, nem na origem delas etc.?

Então, o Disciple, de Bourget, é também literatura jornalistica?

Para mim, como autor, essas opiniões, pela sua essência, não têm

nenhum valor. A questâo não está na essência delas, que varia e

não é nova. O fundamental está na natureza dessas opiniões, na

sua submissão às influências externas etc. É preciso examiná-las

como coisas, como sintomas, de modo totalmente objetivo,

24

A.P.Tchékhov: Cartas para uma poética, 1995, p.151

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procurando não concordar com elas, nem contestá-las. Se eu

descrever a dança de São Guido, você não a verá sob a

perspectiva dum coreógrafo. Não é? Deve acontecer o mesmo em

relação às opiniões. Não tive a menor pretensão de lhe causar

espanto com as minhas opiniões surpreendentes acerca de teatro,

literatura etc.; eu só quis aproveitar os meus conhecimentos e

mostrar o círculo vicioso em que caiu um homem bom e

inteligente que, apesar de toda a sua vontade de aceitar de Deus

a vida tal com ela é, e de pensar nos outros de modo cristão,

querendo ou não, queixa-se e resmunga como escravo, insulta as

pessoas, inclusive quando se força a falar bem delas. Ele quer

interceder a favor dos estudantes, mas não consegue nada, a não

ser hipocrisias e insultos à maneira de Jítiel. Bem, tudo isso é uma

longa história... 25

temas da contemporaneidade, nos contos de Tchékhov, não os

houvera até então; da carta vê-se que a “novidade” da novela para o

próprio escritor estava não nas “opiniões e reflexões”, mas no modo de o

professor expressar os seus pensamentos

Bem no início de novembro de 1889, a novela “Uma História

Enfаdonha” foi publicada no № 11 da revista “Mensageiro do Norte”.

Contrariando os temores de Tchékhov, os leitores receberam-na com

entusiasmo.

Escreve Plechtchéev já a 5 de Novembro:

“Apresso-me a alegrá-lo, querido Antón Pávlovitch. Ouço,

de todos os lados elogios, entusiásticos à sua novela, de pessoas

de diferentes opiniões, círculos e campos. Alguns até dizem que

ela é o melhor que o Sr. já escreveu. Outros, que a novela deixa

uma impressão profunda; terceiros, que é algo inteiramente novo;

e, por fim, que é a coisa mais notável do “Mensageiro do Norte”

deste ano inteiro... Eu não conseguiria dizer-lhe quanto isso me é

agradável. Eu, devo confessar-lhe, não esperava de modo nenhum

que ao “público” essa sua última obra fosse agradar... Ela, parecia-

25

A.P. TCHÉKHOV: Cartas para uma poética, 1995, p.155

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me, é mais para conhecedores. Eu pensava que a fossem achar

tediosa. E imagine só — nem um pouquinho! Achar-lhe-ão

defeitos, claro; mas isso não quer dizer nada; que obra não tem

defeitos? Mas todos depositam grandes esperanças no seu talento

e esperam impacientemente por um seu romance... Vêem na sua

novela, não apenas um passo à frente, como também uma

viragem para a seriedade e profundidade de conteúdo”. 26

Falam da novela como um “testemunho de maturidade filosófica” (V.

Tíkhonov)27, uma “coisa inteligente dos diabos” (F. Tchervínskii), como “a

sua novela que, dentre todas, tivera o maior êxito" (К. Golóvin)28.

Liev Tolstói, segundo testemunho de Goldenveiser, durante a leitura

dela, “o tempo todo expressava admiração pela inteligência de Tchékhov”.

Se os leitores receberam “Uma História Enfadonha” com entusiasmo,

dos críticos não se pode dizer o mesmo.

26

A. TCHÉKHOV, Moscou, 1979, p.271

27 -----------------------------------p. 674-675.

28 -----------------------------------p. 674-675.

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3. Crítica

De 2002 a 2016, sob a redação de Ígor Sukhikh, saíram três tomos da

antologia "A. P. Tchékhov: Pro et Contra", nos quais foram reunidos os

principais artigos críticos, dedicados à obra de Tchékhov e publicados nos

períodos, propriamente, de 1887 a 1914, 1914 a 1960 e 1960 a 2010.

A antologia é de valor inestimável para todos os estudiosos da obra de

Tchékhov. Abre-a um artigo do seu redator, intitulado Современники " “Os

que disseram Eh! Os contemporâneos lêem Tchékhov”, em que ele analisa

as principais correntes da crítica. Conclui-a o artigo “Антон Чехов как

зеркало русской критики” (“Antón Tchékhov como espelho da crítica

russa”), de A. Stepánov, que analisa os trabalhos mais interessantes à luz

dos tratamentos contemporâneos da obra do escritor. 29

A crítica de tendência realista, antes de mais nada, estabelecera

critérios ideológicos para a literatura, como a representação da vida social,

e, no entendimento dela, precisamente aos escritores fora dado o direito

sagrado e a obrigação sagrada de mostrar as chagas da sociedade,

explicando as suas causas aos leitores e opinando acerca delas, de

mostrar caminhos e definir ideais, cuja tendência era óbvia: o serviço a

algo “supra-pessoal”, fosse a Humanidade ou fosse deus. As ideias dos

anos de 1860 envelheceram, mas ainda permaneciam dominantes. O

principal crítico do período foi N. Mikhailóvskii.

Ao mesmo tempo, porém, abeirava-se o “século de prata” ("серебрянный

век"), e a obra de Tchékhov, pelos critérios temporais, inscreve-se bem no

início de tal período. Transcorria o desmoronamento das antigas ideias

acerca da vida em todas as esferas — política, ciência, religião. Como

consequência disso, iniciaram-se buscas dum novo sentido e de novas

formas em todos os tipos de arte — pintura, música, teatro, arquitetura,

balé e, claro está, literatura. E, naturalmente, também a crítica literária.

O aspecto comum, que se pode notar nela já de saída, é o tratamento

da obra tchekhoviana pelo prisma da tendência abraçada pelo crítico,

29

A.TCHÉKHOV: Pro et Contra, I.Sukhikh, 2002, p.10, p.976.

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fosse ele o democrata N. Mikhailóvskii, lá dos anos sessenta, o simbolista

Andriéi Biély, o futurista V. Maiakóvskii ou os filósofos L. Chestov e S.

Bulgákov. Quer dizer, o “escapadiço” Tchékhov podia ser examinado de

qualquer posição, e, se ele não se inscrevia na ideologia ou corrente do

crítico-examinador, tal “falha” era declarada um “defeito” do escritor, uma

imaturidade sua, ausência de ideais, falta de ânimo e entusiasmo,

indiferença e outros epítetos semelhantes.

“O mundo universal de Tchékhov demonstrou a capacidade de

entrar em contacto com quase todas, se não com todas, as

doutrinas estéticas do século 20, revelando-se, invariavelmente,

maior do que qualquer uma delas". 30

Por si só, isso não é de admirar; contudo, quando lemos os artigos do

tempo de Tchékhov, verificamos algo muito interessante: muitas

particularidades do seu novo estilo, incompreendidos ou não aceitos pela

crítica, foram intuitivamente assinalados já então, bem lá no início, e são

considerados, pelos tchekhovistas contemporâneos como os elementos

basilares da estilística do escritor.

“A incompreensão do autor-inovador pela crítica contemporânea a

ele pode manifestar-se de duas maneiras: ou atribuem-se-lhe

qualidades que ele não tem, ou a sua inovação é considerada

como defeito. O segundo caso é preferível para os escritores

“fortes”, e, nesse sentido, Tchékhov teve sorte: à voz do “contra”

imediatamente deu o tom um leitor muito refinado, que notara as

particularidades da poética, que depois as vozes do “A favor”

ignorariam. (Stepánov)31

Porquanto a novela “Uma História Enfadonha” foi escrita na forma de

apontamentos em primeira pessoa e contém grande quantidade de

30

A.TCHÉKHOV: Pro et Contra, 2002, p.29.

31 A.TCHÉKHOV: -------------------------p.976.

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reflexões acerca dos mais diversos temas, inclusive o duma “ideia geral”

(общая идея), logo após a publicação da revista com a coletânea “Gente

Carrancuda”, e em seguida dela própria em livro, a crítica quase

unanimemente, tendo reconhecido o indubitável talento do jovem escritor,

resolveu a questão da identidade do autor e da personagem, atribuindo os

pensamentos e dúvidas do velho médico ao próprio Tchékhov. O problema

filosófico da existência duma “ideia geral” na vida duma pessoa é

reconhecido por todos como central. E a novela acabou por ser muito mais

um exemplo adequado para a análise da concepção de mundo do escritor

(mais exatamente, na perspectiva da crítica contemporânea a Tchékhov,

denunciar a falta de tal concepção) do que objeto de estudo em si, como

obra literária. Na maioria dos artigos, cita-se o último diálogo da

personagem com Kátia ou as reflexões de Nikolai Stepánovitch acerca de

não ter uma “ideia geral”, e a isso segue-se a inevitável conclusão de que

o próprio escritor também não tinha uma. Assim, aflige-se o crítico P.

Piértsev com que a impressão da força do talento e do colorido traz,

contudo, a estranha sensação de que “falta algo” (P. Pertsev 183 ).

Praticamente em todos os artigos, encontra-se uma mesma ideia: não

há resposta à pergunta acerca do que é a ideia geral, o deus da pessoa

viva. Tchékhov detém-se no limiar da coisa principal e não o transpõe, “e

fica o leitor um tanto perplexo, diante de portas trancadas” (Аlbov).32

E não fora à toa que Tchékhov temia ironias quanto ao título da novela.

L. Liátskii chama ao diálogo de Tchékhov com o leitor “uma história

tediosa, muito tediosa”.33

A crítica não deixou de atentar também para o título da coletânea

“Gente carrancuda”, e as opiniões acerca da sua correspondência ao

estado de espírito principal do ciclo são as mais diversas. Ovsiánniko-

Kulikóvskii considera que Tchékhov estuda a psicologia da “carrancudez”

32

A.TCHÉKHOV: Pro et Contra, 2002, p.382.

33 ----------------------------------- p..467. A tradução mais correta do título da obra seria

“Uma história tediosa” (não “enfadonha”), segundo o nosso orientador e os membros da

minha banca do Exame de Qualificação.

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32

(Ovsianiko-Kulikovski)34, ao passo que N. Mikhailóvski é de opinião

totalmente oposta, acentuando que o título não corresponde nem um

pouquinho ao conteúdo da obra e fora escolhido aleatoriamente

(Н.Михайловский ).

Para além da falta de concepção de mundo, ideais e uma ideia geral, as

declarações irritadas do professor de sessenta e dois anos contra

praticamente todos os fatos da vida contemporânea a ele, tanto da vida

cotidiana quanto da arte, teatro, literatura e a sua insatisfação com os

estudantes e a universidade foram quase unanimemente atribuídas ao

jovem autor. Convergem os críticos também na consolidação do chavão

acerca do “pessimismo” de Tchékhov (Disterlo, Kign, Protopópov,

Govorukha-Otrok e outros).

A caracterização da personagem principal de “Uma História Enfadonha”

resumia-se, fundamentalmente, a quanto ela era típica da realidade dos

dois últimos decênios daquele século e quão típica era a própria realidade

representada por Tchékhov. Tendo acusado o próprio escritor e as suas

personagens de não possuírem ideais, a maioria dos críticos, seguindo

Mikhailóvski, fazem a mesma acusação à geração “apática”, “desprovida

de ideias” e desiludida dos anos 1880 da época da estagnação cultural e

social , e, a partir daí, Tchékhov torna-se um porta-voz dessas novas

pessoas “supérfluas”. Da posição vantajosa dos nossos contemporâneos

de hoje, podemos notar a quantidade de chavões usados para qualificar

essa pobre geração, muitos representantes da qual logo depois se

tornariam personagens do “século de prata” ou revolucionários e

terminariam a vida tragicamente na Rússia ou no exterior e provariam

sofrimentos tais, que para muitos deles os “tormentos” das personagens

tchekhovianas seriam incompreensíveis, insignificantes, obscuros e até

irritantes. A mudança de épocas ocorrera com tanta rapidez, que a nós, às

vezes, parece que da geração dos anos 1880-1900 não restara ninguém

por volta da revolução russa, embora da publicação de “Uma História

34

A.TCHÉKHOV: Pro et Contra, 2002, p.488.

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33

Enfadonha” até à salva de tiros do cruzador “Aurora” se houvessem

passado apenas vinte e oito anos, e muitos parentes e conhecidos de

Tchékhov, por exemplo, a sua irmã Maria Pávlovna, a sua esposa, Olga

Leonárdovna Knipper, o seu amigo Ivan Búnin, Dmítrii Merejkóvskii e

Zinaída Híppius e outros, isto é, os que conseguiram sobreviver, viveram

até à metade do século vinte.

O fato de que o fim do século 20 e o começo do 21, não somente na

Rússia, seriam chamados de "o tempo de Tchékhov", ninguém,

certamente, poderia ter suposto. É difícil acusar os que escreveram acerca

do escritor de falta de clarividência e incapacidade de prever a sua

incomparável influência na literatura mundial futura. Nos anos 1890, o seu

principal "mérito", segundo a opinião geral, era a representação do estado

de espírito da sua geração.

São muito raras as referências ao estilo, à composição e às

particularidades artísticas da novela, bem como ao retrato psicológico da

personagem, embora os críticos notassem a contenção e o laconismo da

escrita tchekhoviana (Ovsianniko-Kulikóvski35, Neviédomski36).

Levantou-se também a questão das fontes da obra, e foi muito

lembrada “A Morte de Iván Ilitch”, de Tolstói.

“se não tivesse havido “A Morte de Ivan Ilitch”, não teria havido

nem “Uma História Enfadonha”, “Ivánov”, nem outras grandes

obras de Tchékhov" (Chestóv).37

Também houve, no entanto, opinões opostas; I. Búnin e Kign

expressaram dúvidas acerca da forte influência de Tolstói em Tchékhov.

I.Sukhikh considera que, ao fim e ao cabo, Tchékhov não encontrou o

crítico ideal ou, pelo menos, o seu crítico entre os contemporâneos.38

35

A.TCHÉKHOV: Pro et Contra, 2002, p.487.

36 ------------------------------------ p.799.

37 ----------------------------------- p.571.

38 -------------------------------- -p.15.

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34

Citemos o testemunho de Búnin, que está no seu livro de

reminiscências “Acerca de Tchékhov”:

“Ele trabalhou quase 25 anos, e quantos reproches triviais e

rudes ouviu ele nesse tempo todo!

— Leu, Antón Pávlovitch? — dizia-lhe alguém que vira

algures um artigo a respeito dele.

Ele apenas olhava de esguelha, por cima do pincenê, e, de

pescoço esticado, respondia com a sua voz de baixo:

— Ora, muito obrigado! Escrevem mil páginas acerca de

alguma pessoa e acrescentam em baixo: “e existe ainda o escritor

Tchékhov: um choramingas...” E que choramingas sou eu? Que

“pessoa carrancuda” sou eu, que “sangue frio” sou eu, como me

chamam os críticos? Que “pessimista” sou eu? Das minhas obras,

a minha preferida é o conto “Estudante”... E que palavra

asquerosa: “pessimista”... Não, os críticos são piores do que os

atores. Como sabe, em matéria de desenvolvimento, os atores

estão setenta anos atrás do povo russo.

E, às vezes, acrescentava:

— Quando o xingarem por aí, meu caro senhor, lembre-se mais

vezes de nós, pecadores; os críticos batem em nós, como no

seminário, pela menor falta. Um crítico até me profetizou que eu

morrerei na miséria: ele achava-me um rapaz expulso da escola

por bebedeira” (I. Búnin).39

Contudo, havia também artigos merecedores de atenção especial.

Sobretudo, “Acerca de pais e filhos e do Sr. Tchékhov”, de N. Mikhailóvski.

Era precisamente este em primeiro lugar que A. Stepánov tinha em

mente, ao falar dum “crítico suficientemente sensível” . O referido

trabalho de N. Mikhailóvskii teve grande repercussão e foi objeto de

aprovação, discussões, citações e discordâncias.

Ele começa com uma ironia acerca duma acalorada discussão da

publicística dos anos de 1880 acerca de “pais” e “filhos”, isto é, a geração

dos anos sessenta, com as suas ideias sociais, “ideais”, temas e aqueles

39

Putechestvie k Tchékhovu, Moscou, 1996 p.449.

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35

que vivem a realidade e a aceitam, negando quaisquer ideias (faz-se a

divisão não pelo critério etário, mas exclusivamente ideológico).

Mikhailovski não emprega a palavra “niilismo”, embora, sem dúvida, fale

precisamente disso. Os que a si chamam “filhos”, são-lhe desagradáveis,

desprovidos de interesse e ridículos.

Ao passar à critica da coletânea “Gente Carrancuda”, ele assinala

que Tchékhov era, até àquele momento, o único literato talentoso da sua

geração literária, mas, por causa da sua falta de ideologia, não era capaz

de atingir o alto nível dos clássicos da literatura russa:

“E eu não conheço espetáculo mais triste do que esse

talento desperdiçado à toa” (Mikhailóvski).40

Mikhailóvski encanta-se com a capacidade de Tchékhov de animar a

natureza e espiritualizar tudo o que é inanimado, mas, a par disso,

observa que para ele não é importante acerca de que escrever, como se

“passeasse em frente à vida e, nesse passeio, arrancasse algo cá,

outra coisa acolá” (Mikhailóvski).41

e põe-se a escrevinhar com indiferença, com ”sangue frio”. O crítico

também nota a escolha aleatória dos temas, a falta de hierarquia no

sistema artístico do escritor, os promenores fortuitos, sem relação com o

enredo nem com as características das personagens, a falta de um claro

elo lógico, causas e efeitos e explicações — enfim, tudo o que hoje é

reconhecido como a natureza ímpar do estilo tchekhoviano.

Na ótica de Mikhailóvski, tais traços revelam tão-somente a

indiferença e negligência do jovem e talentoso escritor, a sua frieza

emocional. Ele vai lendo os contos da coletânea e parece começar “Uma

40

A.TCHÉKHOV: Pro et Contra, 2002, p.84.

41 ----------------------------------- p.85

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36

História Enfadonha” com decepção, mas aí a sua opinião muda

radicalmente, e ele caracteriza a novela como “a melhor coisa e a mais

valiosa de tudo o que o Sr. Tchékhov escreveu até hoje” . A falta de um

ideal ao professor, para Mikhailóvski, é um testemunho indubitável da

falta de um ideal também ao escritor, mas precisamente no anseio por um

ideal, por “uma ideia geral”, o crítico enxerga algo que os hiilistas de

então não tinham; foi precisamente tal anseio que lhe suscitou uma

impressão tão forte da novela, e era nessa direção que ele via a saída

para o talento “condenado a morrer”. A figura de Tchékhov como “poeta

do anseio por um ideal” e “cantor do crepúsculo” foi levada adiante por

muitas outras vozes.

A tendência principal e a essência do escritor, para o filósofo Chestóv, era

que Tchékhov, na sua criação, matava as esperanças e ideais humanos

com todos os meios possíveis:

“E o próprio Tchékhov empalidecia, murchava e perecia diante dos

nossos olhos — nele não perecia apenas a sua arte admirável de

só com um toque, até um sopro, um olhar, de matar tudo aquilo

de que as pessoas vivem e se orgulham... Nas mãos de Tchékhov,

tudo morria (Chestóv).

É necessário assinalar que tal caracterização de Tchékhov foi feita

com intenção positiva por Chestóv, um filósofo, para quem o mundo é

irracional e quaisquer tentativas de sua explicação e quaisquer respostas a

questões globais da Humanidade não passam de engano.

E, no exemplo de “Uma História Enfadonha”, Chestóv aponta mais

uma caraterística importante da obra de Tchékhov: aversão ao pathos e às

palavras elevadas, inaceitação da reserva de ideias gerais e concepções de

mundo, acumulada pela literatura, e aversão a ela e recusa a todas as

consolações metafísicas e positivas possíveis. Ele achava que Tchékhov

“emancipa-se completamente de todo o tipo de ideias e

concepções de mundo e até perde a ideia da relação entre todos

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37

os acontecimentos da vida”, e apresenta isso como o traço mais

significante e original da sua obra (Shestov).42

A morte do escritor suscitou uma nova vaga de artigos, e durante

ainda muitos anos acerca dele escreveram críticos (V,Vorovski,

Ju.Ajkhenvald, M.Nevedomski, A.Izmailov, A.Dolinin), escritores (A.Belyi,

K.Tchukovskii, V.Majakovskii), filósofos (S.Bulgakov, L.Chestov,

D.Filosofov, V.Rozanov), e até médicos psiquiatras (M.Nikitin, N.Shapir)),

para não falarmos das inúmeras reminiscências de contemporâneos. Mas

em Agosto de 1914, o tempo de Tchékhov acabara, extinguira-se,

qual corda rompida, o século dezenove, cuja duração fora além do

calendário. No “Verdadeiro Século Vinte”, durante algum tempo,

não se estava para discussões literárias nem se queria saber da

própria literatura. Quando, nos anos vinte, de novo se lembraram

de Tchékhov, tudo estava mudado: o mundo, o país, as pessoas,

as questões, as respostas e, parece, até os próprios textos de

Tchékhov” (Sukhih).43

O “Século de Prata”, com raras exceções (A. Biely, A. Blok, V.

Maiakóvski), não aceitou Tchékhov. O que se escreveu acerca dele tem

pouco valor e é, via de regra, de caráter negativo (А. Akhmatova, Z.

Gippius e outros): era outro tempo, não tchekhoviano. Os formalistas

ignoram-no completamente. E, apesar de em 1928 ter aparecido o livro

“O Naturalismo de Tchékhov”, de Leonid Grossman, pode dizer-se que, no

início da era soviética, o interesse pela obra de Tchékhov continuou a

diminuir até que entre os críticos do campo do realismo socialista, entre

os V. Ermílov, alguém não descobrisse um novo Tchékhov, “soviético”, que

desmascarava furiosamente o espírito pequeno-burguês e se erguia em

defesa de todos os “russos simples e trabalhadores” oprimidos, no anseio

42

A.TCHÉKHOV: Pro et Contra, 2002, p.571.

43 --------------------------------------- p.44.

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38

de responder à pergunta “que fazer?”.

“Num tempo difícil, o povo buscador da verdade criou e

educou o seu grande escritor, Antón Pávlovitch Tchékhov, e

encaminhou-o a difíceis buscas”.44

E já dessa nova plataforma ideológica, na novela “Uma História

Enfadonha”, examinam-se temas já tratados pela crítica contemporânea a

ele. Porém, o defeito torna-se qualidade e, à diferença do Tchékhov

anterior, o Tchékhov soviético passa a ter uma firme posição ideológica e

responde às questões do seu tempo “inanimado”, de que era intérprete a

personagem principal da novela. Assim, os sofrimentos de Nikolai

Stepánovitch explicam-se pela falta dum objetivo único na sociedade:

... tudo isso é inevitável numa sociedade dividida em

partezinhas separadas, numa sociedade não inspirada por um

objetivo único, por uma grande ideia geral (...). Tchékhov não

queria ficar na situação da personagem, que à pergunta ´que

fazer?´ respondia com um honesto mas sincero ´não sei´. E

Tchékhov sentia-se obrigado a responder a essa pergunta”. 45

A situação começou gradualmente a mudar na metade do século vinte.

Os pesquisadores, para além de grande atenção à biografia do escritor,

retomam a questão da continuidade das tradições da literatura russa

clássica em Tchékhov, sem deixarem de assinalar a originalidade do seu

estilo. Por exemplo, V. Kulechov, M. Gromov e S. Nikolaeva estudam a

recepção de figuras e motivos de Dostoiévski em obras de Tchékhov; em

trabalhos de G. Biályi, M. Semanova e J. Jalgasbaeva, investiga-se a

tradição turgueneviana; V. Lakchin e A. Kuzitcheva analisam a influência

de L. Tolstói na formação do escritor.

44

Disponivel em:http://az.lib.ru/c/chehow_a_p/text_0490.shtml

45 Disponivel em http://az.lib.ru/c/chehow_a_p/text_0490.shtml

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39

A partir dos anos oitenta, na União Soviética, aparecem significativas

monografias acerca tanto dos vários aspectos do sistema artístico de

Tchékhov, quanto de alguns contos, novelas e peças (А. Tchudakov,

V.Kataev, V.Lincov, I.Sukhikh). A. Tchudakov em «Поэтика Чехова» (A

poética de Tchekhov), de 1971, foi um dos primeiros que apresentaram

métodos exatos de descrição do sistema narrativo do escritor. Com base

numa acurada análise de textos e aproveitamento de extenso material, a

autora estabelece as características comuns a todos os níveis do referido

sistema (narrativas de vários períodos da obra do escritor, enredo e

esfera de ideias), dedica atenção especial ao mundo material e introduz o

conceito de “pormenor fortuito”.O livro Проза Чехова: проблемы

интерпретации (A prosa de Tchékhov, 1979), de V. Katáev, é dedicado a

questões polémicas da interpretação duma série de obras do escritor e a

diversos procedimentos de estudo aplicáveis à análise da sua prosa. O

trabalho contém a interpretação de alguns contos, novelas e peças e

enfatiza a peculiaridade da mentalidade das personagens tchekhovianas, a

qual “os leva a um impasse”, sendo causa de desconcerto e

padecimentos. Na qualidade de princípio artístico original do escritor

Katáev aponta “a individualização de cada acontecimento em

particular”.Na monografia de Ígor Sukhikh, "Проблемы поэтики Чехова"

(Problemas da poética de Tchékhov), de 1987, também se apresenta um

estudo integral do mundo artístico do escritor e do seu lugar no contexto

da literatura russa do século XIX. Analisam-se minuciosamente o primeiro

drama e contos da primeira fase, as novelas “A estepe” e “O monge

negro”, o livro A ilha de Sacalina e o conto “A casa de mezanino”. O autor

debruça-se sobre a polémica questão da filosofia artística e é quem

primeiro a estudar o problema do cronótopo tchekhoviano.

Em outros países, como Alemanha e Estados Unidos, nesse período, o

seu legado tornou-se objeto de estudo para a corrente psicoanalítica nos

estudos literários, a qual dedicava grande atenção à concepção dos

arquétipos mitológicos do inconsciente coletivo, elaborada por K. Jung

(S.Senderóvitch).

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40

Uma nova página nos estudos tchekhovianos veio a ser a série

“Tchekhoviana”, de trabalhos científicos, publicada pelo Conselho

Tchekhoviano de História da Cultura Mundial, da Academia das Ciências da

Rússia. Ela reúne artigos e ensaios de estudiosos contemporâneos, que

revelam um aspecto e outro da obra do escritor. Atualmente, saem

regularmente as coletâneas «Чеховский вестник» (O Mensageiro

Tchekhoviano) e «Молодые исследователи Чехова» (Jovens

Pesquisadores de Tchékhov), nas quais se publicam trabalhos de jovens

tchekhovistas.

Começaram a ser objetos de estudo o cronótopo de Tchékhov, a

dinâmica dos motivos, a simbologia, a interstextualidade e a filosofia do

escritor, mas tais temas permanecem pouco estudados e à luz das novas

pesquisas demandam uma elaboração mais acurada.

Podemos concluir que a novela “Uma História Enfadonha” nunca foi

estudada na totalidade da sua estilística, composição, símbolos,

pormenores, inclusive os “fortuitos”, e ritmos. Quase não se escreveu

acerca das suas personagens e do seu papel nela, com as exceções de

Nikolai Stepánovitch e Kátia (esta, esquematicamente, com as palavras

daquele, sem consideração do subtexto tchekhoviano). Tampouco foram

estudados os temas das recordações, infância, música, animais,

reminiscências e citações, bem como o tempo e o espaço na sua relação

com todos os elementos literários supracitados.

Tentaremos preencher tais lacunas, no nosso trabalho. Cumpre assinalar

que representa certa dificuldade a tarefa de, a par do texto original,

analisarmos também a sua tradução em português, na qual, infelizmente,

apesar do brilhante trabalho de Bóris Schnaiderman, muito se perdeu,

enfraquecendo, com isso, a percepção do subtexto da obra.

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41

4. Elementos da composição da novela

4.1 Conceito geral de composição duma obra literária

O artista deve julgar apenas aquilo que entende, seu

círculo é tão limitado quanto o de qualquer outro

especialista -- é o que repito e no que insisto sempre.

Que em sua esfera não haja questões, mas apenas

respostas, só quem nunca escreveu e não lidou com

imagens é capaz de dizer. O artista observa, escolhe,

adivinha, arranja: essas operações já pressupõem, em

sua origem, um problema. Se o problema não tiver sido

colocado desde o início, não haverá nada por adivinhar

nem por escolher. A fim de ser mais breve, terminarei

através de psiquiatria: se o problema e a intenção

forem negados no ato criativo, será então necessário

admitir que o artista cria sem premeditar e sem um

propósito, sob a influência da emoção; por isso, se um

autor se vangloriasse diante de mim de haver escrito

uma narrativa sem intenção premeditada, apenas por

inspiração, eu o chamaria de louco. (103)46

O modo de construção e organização do texto literário e a

interligação entre os seus elementos, que provêem a sua unidade e

inteireza, isto é, um material selecionado e disposto de determinada

maneira para a obtenção do máximo efeito emocional e semântico sobre o

leitor em conformidade com a ideia do autor, eis o que é a composição da

obra literária.

Esse é um conceito complexo e multiplanar. Daí a grande quantidade de

modos de tratá-lo e a multivariedade de concepções que incluem a

diferença das definições do próprio conceito. Apesar disso, reconhece-se

como base à revelação dos meios, que tornam possível o diálogo entre o

46

TCHÉKHOV, Anton. “O beijo” e outras histórias. São Paulo, 2010, 3a ed. Tradução de Boris

Schnaiderman Aqui e doravante, os números entre parênteses indicam as páginas no texto da novela.

Utilizámos, no nosso trabalho, a tradução de Boris Schnaiderman.

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autor e o leitor (M.Bakhtín, V.Vinogradov, L.Vygódski, G.Gukovski,

V.Zhirmunski ,J.Lótman, B. Uspénski, V. Chklovski, L. Scherba e outros).

Da composição de obras de Tchékhov trataram diretamente L. Lélis e

E. Polótskaia, entre outros.

Em vista da brevidade e concisão e, simultaneamente, saturação

semântica das obras de Tchékhov, o estudo dos seus procedimentos

composicionais afigura-se especialmente complexo e interessante.

No seu trabalho, Tchékhov contava com um leitor talentoso e dotado

de boa intuição, capaz, ademais, de captar matizes, os mínimos

pormenores, o significado oculto no subtexto e expresso por sinais

linguísticos, ou seja, com uma pessoa que, à leitura, entrasse em diálogo

com o autor, individualizando o material recebido com a sua própria

experiência e a sua própria e inconfundível (exclusiva) personalidade.

Quando eu escrevo, confio inteiramente no leitor, supondo que

ele próprio acrescentará os elementos subjetivos que faltem ao conto.47

L. Kaida, no livro Стилистика текста: от теории композиции – к

декодированию (Estilística do texto: da teoria da composição à

decodificação)48, que constitui o mais minucioso estudo dos problemas

contemporâneos da composição, afirma que o leitor é capaz de ler o texto

com uma profundidade inimaginável pelo escritor e enxergar o que este

quisera dizer e, às vezes, até o dito inconscientemente. E tal não por força

dum “feliz lampejo”, senão duma habilidade profissional de juntar todas as

pontas soltas e contextos num todo único.

Na análise da composição de “Uma história enfadonha”, nós nos

ateremos aos seus seguintes elementos:

- Título e subtítulo;

47

A.TCHÉKHOV, Moscou, 1977, p.174.

48 L.KAJDA, Nauka, Flinta, 2005.

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- Lances do enredo;

- O início e o final da novela;

- As personagens;

-Elementos extra-enredo ( temas, motivos, pormenores);

- Ritmo;

-Tempo e espaço.

Atenção especial será dada aos procedimentos de repetição, variação

e contraposição (antíteses), encontrados no texto.

O objetivo do nosso trabalho é mostrar como todos os elementos

supralistados da composição literária, funcionando em prol da ideia do

autor, formam o subtexto da novela, agindo tanto na consciência quanto

no subconsciente do leitor.

Aquilo em que sem dúvida se pode buscar a posição do autor,

principalmente nas obras escritas em nome da pessoa da personagem,

são o título, o subtítulo e a correlação entre os diversos elementos

artísticos independentes e a sua “montagem” por uma determinada figura,

dada pelo autor, isto é, a composição.

4.2 Título, subtítulo

O primeiro título da novela foi “O meu nome e eu”. Antes de mais

nada, observemos que, como pode ver-se, ele é dado pela própria

personagem, à diferença do subtítulo “Dos apontamentos duma pessoa

velha”, dado pelo autor. O mesmo pode encontrar-se em outras obras de

Tchékhov, também escritas na pessoa da personagem, por exemplo,

“Minha vida” (Conto dum provinciano). Em “O meu nome e eu”, já de

saída se indica o tema principal: uma pessoa e o seu famoso nome,

separados um do outro, tanto na vida cotidiana quanto na percepção das

pessoas, e na História. Provavelmente, foi essa a ideia básica da ideia

original da novela (ou, naquele momento, do conto). Premissa para isso

foram, sem dúvida, as reflexões também acerca da própria fama sobre o

fundo da vida cotidiana, mas um impulso especial para a análise desse

tema foi a morte do insigne viajante N. M. Prjeválskii, ocorrida em 20 de

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оutubro de 1888. Seis dias depois, no jornal “Novo Tempo” (Новое

время), saiu um obituário sem título nem assinatura, de autoria de

Tchékhov. O texto estava vazado em um estilo insólito para os leitores do

escritor — exaltado, quase patético, em relação às “pessoas de façanhas”,

e invectivador em relação à sociedade de então. Esse deve ter sido o

único texto do gênero. Para nós ele é importante não apenas sob o

aspecto do surgimento da ideia de representar uma pessoa famosa, uma

pessoa que se tornara lenda, o que se subentende sob o conceito de

“nome” na vida familiar habitual, como também por algumas outras

intersecções com a novela estudada por nós.

“No nosso grande tempo, quando das sociedades europeias

se apoderaram a preguiça, o tédio da vida e a descrença, quando,

em toda a parte, em uma estranha mútua combinação, reinam o

desamor à vida e o medo à morte, quando até as melhores

pessoas ficam de braços cruzados, justificando a sua preguiça e a

sua depravação com a falta de certo objetivo na vida, os

abnegados capazes de proezas são necessários como o Sol”. 49

Tais palavras podem ser diretamente atribuídas tanto à personagem

principal quanto a Kátia, o que confirmam cartas de Tchékhov do tempo

da escrita da novela. Nesta há “tédio da vida”, “preguiça”, “falta de

objetivos”. Também aparece a palavra “Sol” em contexto próximo: “...

...daqui a uns três meses ele , representado por letras douradas

na lápide do túmulo, brilhará como o próprio Sol... (160)

Na perspectiva da sociedade e do processo histórico, Nikolai

Stepánovitch, cientista famoso no mundo todo, compreende que logo

permanecerá na lembrança das pessoas apenas como um nome, herói,

lenda, mas por ora ele, que escreve apontamentos, é simplesmente um

49

A.TCHÉKHOV, Moscou, 1979, p.236.

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moribundo, assustado com a morte próxima, uma pessoa desconcertada,

que vive no seu mundinho exíguo e perdeu a ligação espiritual com as

pessoas mais próximas e com a própria vida. Ele próprio tenta entender

tal contradição.

O tema da antítese “meu nome e eu” atravessa a novela inteira;

“Uma história enfadonha” começa, propriamente, com a apresentação do

“nome” e, só depois, da pessoa, isto é, o leitor nota a separação dos dois

já nas primeiras palavras da novela. E o último capítulo está recheado de

reminiscências da personagem acerca desse tema.

Aparentemente, o título “O meu nome e eu” poderia refletir em

completa medida o tema principal da obra. É possível supor que, com a

conservação do tema “o meu nome e eu”, este deixa, contudo, de ser o

principal.

No título “Uma história enfadonha” e no subtítulo “Dos

apontamentos de uma pessoa velha”, cada palavra é de significado

importante. O fato de que os lexemas “скука/tédio” e “скучный/tedioso”

estejam entre os mais frequentemente usados por Tchékhov tanto nas

suas obras quanto na sua epistolagrafia (como já o assinalámos no

capítulo “Históra da escrita da novela”), foi notado há já muito tempo

pelos leitores e pelos estudiosos.

No dicionário de Uchakov, «скука» (“tédio”) é definido como “ânsia,

angústia, estado penoso de alma gerado pela ociosidade, falta de

ocupações ou falta de interesse por tudo à volta”.50

No de Dal´, “sentimento penoso gerado por um estado de espírito

rotineiro, ocioso e inativo”.51 Porém, nas obras de Tchékhov, a palavra

"скука" (tédio) constitui um conceito muito mais complexo e polissêmico

em comparação com o seu significado corrente e possui muitos matizes,

uma simbólica e sentidos complementares.

Encontra-se a palavra "скука" em quase todas as obras do escritor,

50

Disponivel em: (http://tolkslovar.ru/s6929.html).

51 Disponivel em: (http://tolkslovar.ru/s6929.html)

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principalmente nas da metade dos anos 80 em diante. Aparece inúmeras

vezes até nos títulos ("Скука жизни"/ Tédio da vida). E, da mesma forma

como outros símbolos, passa duma obra a outra, ecoando o que

encontrara antes e aumentando a sua carga semântica. O tédio é um

penoso estado de alma por perda da compreensão das ligações da vida

concreta com a marcha mundial da vida, com a marcha do tempo e da

História, e por perda da compreensão da ligação com a natureza, com os

seus ciclos de nascimento e morte, isto é, com tudo o que existe para

além do homem, mas sem o que a vida de cada indivíduo concreto é

simplesmente impossível. O homem tem a sensação da sua independência

do tempo fugidio e a impossibilidade de detê-lo, mas não vê a si no fluxo

natural, resistindo a este desamparadamente e em vão. É daí que vem o

mais penoso, lancinante e doentio estado de espírito, o tédio

tchekhoviano.

E, porquanto, para Tchékhov, existem conceitos irracionais, não

passíveis de explicação, então a personagem, que tenta restabelecer as

ligações com a ajuda de reflexões lógicas, sempre é vencida. Os capazes

de perceber a vida intuitivamente, pelas sensações, dissolvendo-se

naturalmente nela, na natureza e nos cheiros e cores desta, na mudança

das estações e no movimento do tempo, esses já existem no fluxo geral

da natureza com os mesmos direitos de cada elemento dela e não estão

sujeitos a “tédio”, e deles não se exige uma “idéia geral’. Assim são, no

mundo de Tchékhov, os animais, as crianças e algumas personagens,

como o de “O Duelo” e a própria personagem principal de “Uma história

Enfadonha” até a certo ponto da sua vida.

Assinalemos que, na obra de Tchékhov, a Música, pela sua base

simbólica, é muito próxima dos conceitos de natureza e vida e, apesar de

ser criada por pessoas, é percebida como um fenómeno natural

incompreensível, distante e, principalmente, reconstituidor daquela

mesma ligação perdida. Sob esse prisma, a palavra “história”, no título,

possui duplo sentido, como “História” no seu sentido global, como

transcurso do tempo, e como “história” duma personalidade concreta e a

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interligação das duas.

Passando ao subtítulo da novela estudada ("Из записок старого

человека"/ (Dos apontamentos duma pessoa velha), sublinhamos mais

uma vez que ele é o único texto direto do autor, daí a sua importância

para nós. Dá-se imediatamente uma definição do género da obra —

apontamentos. Antes de mais nada, atentemos para a última palavra

daquele: “человек” (pessoa). À primeira vista, pode parecer que ela, à

diferença de “provinciano” “professor catedrático” etc., não possui

nenhuma carga semântica nem dá nenhuma informação complementar

acerca da personagem, uma vez que apontamentos só podem ser escritos

por uma pessoa. Por que não, então, “из записок старого профессора/

apontamentos de um velho professor catedrático”? Precisamente porque,

a nosso ver, “pessoa”, última palavra do subtítulo, ecoa a última do título e

a antítese surgida, história-pessoa (do que já falámos no parágrafo

anterior), possui carga semântica muito maior do que a caracterização da

personagem e define logo a ideia principal da novela.

Uma caracterização da personagem, no entanto, está presente na

palavra “velho”. E, de novo, pode suscitar-se a perplexidade: por que,

diante de todas as possibilidades, acha o autor de dizer a sua palavra

direta acerca da personagem e escolhe não “famoso”, não “doente”, até

nem “moribundo” e nenhuma outra, mas precisamente a definição “velho”.

Parece-nos que a escolha de “velho”, em comparação com as outras

palavras, foi muito mais determinada pela associação, que surge, com a

vida vivida, ou seja, de novo com o conceito de tempo.

E, finalmente, a enigmática preposição “de”. Parece haver um nítido

começo clássico e um nítido término. No entanto, ao empregar tal

preposição, o autor sublinha que os apontamentos do professor ou haviam

começado antes ou eles têm uma continuação desconhecida do leitor. Por

que utilizou Tchékhov tal procedimento?

Na nossa opinião, em primeiro lugar, o autor, com isso, delimita os

apontamentos da personagem e a sua novela e, em segundo, assinala,

mais uma vez, que aqueles existem não como um texto acabado e solto;

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o leitor não consegue saber ao certo quando começaram e quando

terminarão; esses apontamentos existem no fluxo geral e infinito da vida.

A preposição “de” comunica tal sensação, apesar de que o leitor logo virá

a saber que resta pouco tempo de vida à personagem.

Assim, podemos concluir que, no título e no subtítulo de “Uma

história enfadonha”, Tchékhov dita logo o tema principal da novela — a

vida final duma determinada pessoa no fluxo geral e infinito do tempo, na

história geral, e o trágico estado de espírito decorrente disso.

Muitos estudiosos, inclusive contemporâneos de Tchékhov,

assinalaram que as suas obras não apresentam o início e o fim

tradicionais, como se fossem histórias cuidadosamente recortadas do fluxo

geral da vida, o qual, em resultado, se torna a principal personagem,

ainda que possa parecer apenas tela de fundo para os acontecimentos e

diálogos. O que acontece às pessoas é somente um episódio no tempo

infinito (A. Tchudakov). E, até quando o conto ou peça acaba com a morte

da personagem (“Ivánov”, “A gaivota”), algum conflito psicológico (“Tio

Vánia”) ou algum acontecimento (“O jardim de cerejeiras”), cria-se a

impressão de que a vida continua e nada mudou substancialmente.

À primeira vista, “Uma história enfadonha” foge a tal grupo, já que

nela, aparentemente, se têm o início e o fim tradicionais da literatura

anterior a Tchékhov: a apresentação da personagem, com o seu retrato, e

a despedida das personagens principais, respectivamente. No entanto, a

realidade é outra.

Desde as primeiras linhas, o catedrático separa a si próprio, homem

doente e envelhecido, do seu nome excelso e conhecido no mundo inteiro,

e é precisamente a apresentação desse nome o ponto de partida da

novela.

No decurso de alguns meses, o moribundo professor de Medicina,

ciente da proximidade da morte, escreve apontamentos para si, tentando

compreender os pensamentos e sentimentos novos para ele, fazer um

balanço da vida vivida e uma avaliação dos parentes e conhecidos,

fazendo, de passagem, considerações acerca da sociedade, do teatro e da

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literatura contemporâneos a ele, recordando o passado etc. A sua

confissão é, frequentemente, contraditória, ora duma imperturbabilidade

que beira com a aridez da Medicina, ora repleta de dúvidas (em carta a

Suvórin, Tchékhov chama-lhes “tergiversações”) e emoções. Toda a sua

vida fora construída de modo bem pensado e correto; realizara-se o sonho

da sua juventude, e ele, cientista de talento, perdidamente apaixonado

pela Ciência, pedagogo magnífico, que atingira os píncaros do êxito na sua

atividade, homem dum casamento feliz e pai de filhos, relacionado com

muitas personalidades eminentes do seu tempo e, para além do mais,

pessoa duma atitude sempre tranquila e condescendente para com os

defeitos das pessoas comuns, ele, um médico, sabedor do que é a morte,

parecia disposto a recebê-la com tranquilidade e coragem ou, pelas suas

próprias palavras, “não estragar o final com a sua composição

talentosamente feita”, como ele define a sua vida vivida, de repente

começa a vê-la sob uma luz extremamente negativa, e tudo e todos nela

irritam-no. Algo se passa não do modo como deveria, rompem-se as

ligações, vai-se o controlo sobre os sentimentos e as ideias; a esposa e a

filha parecem pessoas estranhas, os colegas e os alunos parecem-lhe

medíocres, e Kátia, a sua querida pupila, parece-lhe estar a malbaratar a

vida; o trabalho, em lugar do antigo arrebatamento, suscita-lhe um

sentimento de desespero e vergonha, e, no conjunto, a vida apresenta-se-

lhe desprovida de sentido. Nikolai Stepánovitch tenta compreender as

causas do que está a acontecer, e de fugir ao “circulo vicioso” em que

caíra. As suas tentativas de explicação não lhe satisfazem; algo escapa-

lhe, suscitando-lhe novos ataques de medo e desespero, e ele, devastado,

em estado de apatia, forçando-se a voltar àquilo em que vinha pensando

nos meses anteriores, não chega a concluir pela falta, à sua vida, de

algum elo de ligação, a que dá o nome de “ideia geral”; no final, à

despedida com Kátia, supõe que a causa dos sofrimentos dela seja a

mesma que a dos seus: a falta da tal “ideia geral”.

O tema principal da novela é a morte iminente, bem como duas

coisas ligadas a ela: o medo e o sentir-se a personagem na situação em

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50

que o tempo de vida se aproxima do seu termo. E, se olharmos dessa

perspectiva, então os limites da novela são abertos a la Tchékhov; os

apontamentos iniciam-se quando Nikolai Stepánovitch já se fizera um

diagnóstico; vêm-lhe pensamentos angustiantes durante um tempo

desconhecido pelo leitor, a insónia torna-se o seu estado habitual, e um

complexo estado psíquico torna-se patente. Não há nenhum episódio

concreto que haja provocado isso. Tal acontecimento poderia ter sido, por

exemplo, o facto de o professor haver-se descoberto portador duma

doença mortífera, mas como e quando tal se deu, tchekhovianamente,

está fora dos seus apontamentos, fora da obra, muito embora isso é que

tenha sido o grande momento trágico, o ponto de partida de todas as

reflexões de Nikolai Stepánovitch e, possivelmente, o motivo de ele pôr-se

a escrever notas.

Apesar de a espera da morte atravessar toda a novela, não se tem a

própria morte da personagem no final (à diferença, por exemplo, de “A

morte de Ivan Ilitch”, de Tolstói, tão frequentemente comparada com

“Uma história enfadonha”); o leitor fica a saber tão-somente que, tal qual

no início, aquela estava desenganada. A despedida do professor e Kátia

parece definitiva a ele próprio, mas, para o leitor, Nikolai Stepánovitch,

como antes, segue vivo e, consequentemente, apesar do fim dos

apontamentos, a história pode continuar. Assim, nós observamos o

mesmo pedacinho cuidadosamente recortado duma vida “individual” e

uma determinada etapa sua, que começara havia muito antes e ainda não

acabara, sobre o fundo do infinito tempo universal.

A conclusão pela falta duma “ideia geral” por Nikolai Stepánovitch

continua a ser considerada, pela imensa maioria dos estudiosos, como a

ideia principal da própria novela. Mas, como nela não há nenhuma

explicação da própria essência desse conceito, então não há, também, um

único juízo acerca de qual ideia o próprio Tchékhov tinha em mente:

ideológica, social, religiosa, filosófica ou se as reflexões acerca dela são

apenas um sintoma do estado doentio do professor. Não obstante às

divergências, suscitadas por essa questão, o caminho, que leva a

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personagem a refletir acerca dela, costuma considerar-se a linha do

enredo da obra.

Assim, V. Linkov, partindo da heterogeneidade das reflexões da

personagem, assinala dois grupos — as formadoras da dinâmica do

desenvolvimento e as “destrutoras’, perturbadoras do movimento do

sentido (significado) interior, — que a personagem deve descobrir. Às

primeiras ele chama “de essência, substância” (сущностные), e são elas ,

na sua opinião, que constituem a composição; à segundas chama

“sintomáticas”.

No entanto, nos apontamentos do professor, há fragmentos, breves

e desenvolvidos, que com frequência aparecem no texto

inesperadamente, sob a afluência de emoções ou associações repentinas,

dispersas pelo texto, e não integram a cadeia principal de reflexões e são,

nesse sentido, “sintomáticas”. Tais fragmentos formam uma cadeia

cronológica, e o seu tema desenvolve-se segundo uma lógica, o que nos

permite associá-los à segunda linha composicional — as recordações.

Ambas as linhas estão ligadas tanto semanticamente, quanto

estilisticamente, e, com isso, o procedimento básico torna-se a antítese

“antes-agora”. Somente condicionalmente podemos considerá-las de

enredo: na novela, ação, como tal, não há.

4.3 A composição dos apontamentos – desenvolvimento das

reflexões e estado da personagem

No fim dos anos oitenta, Tchékhov pensava na criação dum

romance, que acabou por não ser escrito; o género da novela

correspondia mais aos objetivos do escritor, mas algumas situações, ideias

e personagens tornaram-se a base de obras suas, inclusivamente de “Uma

história enfadonha”. Trata-se dum género mais sucinto, que permite

reproduzir rapidamente as variáveis relações da personagem com a

realidade e, via de regra, explora não a ação, mas o tempo, o fluxo da

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vida, e possibilita acompanharmos a correlação entre o tempo subjetivo

da personagem e o tempo histórico e o universal.

O género, em que a novela está escrita, suscita associações com

famosas confissões filosóficas, como a Confissão, de Santo Agostinho, e as

Meditações, do imperador Marco Aurélio. As ideias de filósofos acerca da

essência da vida, do tempo e de si próprios foram precisamente a

premissa para os apontamentos de Nikolai Stepánovitch. O nome de

Marco Aurélio encontra-se no texto, e é possível acompanharmos a

influência da sua mundividência sobre as opiniões do professor. Tal como

para o imperador e Santo Agostinho, para Nikolai Stepánovitch, ele é

autor e também personagem dos seus apontamentos.

No entanto, na obra literária, ele constitui apenas personagem, e a

forma de escriver é escolhida pelo verdadeiro autor. Com a utilização dos

meios do género, cria-se a possibilidade de mostrar a personagem, o

curso das suas ideias, dos seus sentimentos e desvairios de dentro, sem

avaliação exterior direta. A sós consigo próprio, confessando-se no

processo de escrita das notas, ele tenta desfazer o novelo de

contradições, em que se transformara a sua existência, aparentemente

com a máxima sinceridade pressuposta pelo género. Contudo, ele

permanece uma pessoa com todas as fraquezas e erros inerentes ao ser

humano e até o autoengano, o qual ele não nota, já que, por força das

particularidades da sua personalidade, é incapaz de compreender-se

verdadeiramente, ainda mais que a avaliação deste e daquele

acontecimento, inclusivamente os acontecimentos do passado, é feita da

perspectiva das suas opiniões e objetivos do dia. Tchékhov, ao manter

maximamente a subjetividade da novela, dá ao leitor a possibilidade de

olhar a personagem de fora; destarte, a própria consciência do narrador,

bem como os factos e acontecimentos, são analisados ao mesmo tempo

tanto pela personagem, quanto pelo autor.

O leitor atento, notando as insinuações do escritor, vê uma diferença

substancial entre o que a própria personagem pensa de si, dos parentes e

conhecidos e dos variados acontecimentos da vida, por um lado, e o que a

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opinião objetiva do autor representa, do outro. É possível acompanhar

isso, partindo de particularidades da composição e dos meios estilísticos

do texto, o que é condicionado pela grande quantidade de citações no

nosso trabalho.

A novela tem seis capítulos. O seu desmembramento nessas seis

partes, contudo, não coincide nem com a organização do tempo e do

espaço, que constituem os três fragmentos principais da composição52 --

a vida na cidade, no inverno (40 páginas), a vida na datcha, na primavera

(dois capítulos, 13 páginas), e Khárkov (apenas 1capítulo, 6 páginas). O

tempo como que apressa o seu curso, fortalecendo a impressão de que se

esgota a cada vez mais. Assim, no primeiro fragmento, Nikolai

Stepánovitch dá-se meio ano de vida; no segundo, três meses; e no

terceiro, ele espera a chegada da morte a qualquer momento.

Os primeiros três capítulos são a descrição dum único dia. Cada qual

inicia-se com um relato acerca de parentes e conhecidos, com

pensamentos, juízos e recordações do professor; a isso segue-se a

descrição de algum acontecimento, diariamente repetido, e termina com

uma doentia explosão histérica, depois da qual vem o capítulo seguinte. A

transição entre eles é uma pausa, que lembra as das suas obras

dramatúrgicas, quando se dá à personagem e ao leitor a possibilidade de

“suspirar” e compreender o transcorrido. A personagem não entende os

seus repentinos ataques de histeria, tendo-se orientado durante a vida

inteira pelo processo mental, e essas fortíssimas sensações físicas e

emocionais são completamente novas para ele, incompreensíveis,

irracionais, e amiúde não se submetem à sua maneira racional de encarar

a vida, uma “composição feita com talento”, e com frequência se

contrapõem a ela. Por costume, ele tenta dar-lhes explicação, envolvê-las

em palavras e acomodá-las na consciência, distribuídas “por

estantezinhas”, mas isso não lhe satisfaz. Elas ficam fora do seu

52

De acordo com V. Vdóvin. Disponível em:.http://samlib.ru/w/wdowin_a_n/chekhov.shtml

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entendimento. Vê-se tal processo nos três primeiros capítulos.

Em carta a Suvórin, na caracterização de outra sua personagem,

Ivánov, Tchékhov explica a causa de tais acessos sob a perspectiva da

Medicina:

O cansaço (o dr. Bertenson também o confirma) não se

manifesta apenas em forma de lamento ou sensaçõ de tédio. A vida dum homem cansado não pode representar-se assim:

Ela não é regular. As pessoas cansadas não perdem a

capacidade de se exaltar intensamente, mas por pouco tempo, e, além do mais, depois de cada exaltação, começa uma

apatia ainda maior. Isso pode ser representado graficamente assim:

A linha descendente, como vocé vê, não segue um plano inclinado, dá-se de outro modo . (102)

Com o auxílio de meios estilísticos, desde o início cria-se a sensação

dum círculo fechado — os mesmos acontecimentos, conversas, pessoas,

nada muda...

No decurso de toda a narrativa, usam-se verbos no Tempo Presente,

do aspecto imperfeito, portanto, e não apenas para designarem ações

iniciadas antes e estendidas até ao momento dado, como em:

Como antes, não falo mal; até hoje, posso prender durante

duas horas a atenção do auditório. (102)

Mas também para designarem acontecimentos que se repetem

diariamente. Nikolai sabe de antemão o que acontecerá e o que lhe dirão:

Em seguida, corre na frente e abre todas as portas no meu caminho. No gabinete, tira-me cautelosamente a peliça e, nesse

ínterim, já consegue comunicar-me alguma noticia da universidade. (107)

E até nos casos em que se descrevem factos isolados:

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Levam a minha excelência para a rua, sentam-na num carro de alugel, transportam-na. Deixo-me levar e, não tendo o que fazer,

leio as inscrições à direita e à esquerda. (142)

Surge uma contradição: a vida fica a trocar de pé no mesmo lugar,

enquanto o tempo passa sem sentido e sem volta. Apenas no final

aparecem dois verbos do Pretérito do aspecto perfeito, o que acentua a

excepcionalidade do acontecimento e comunica um admirável e forte

efeito de tragicidade.

Como já foi mencionado, a novela começa com a apresentação, pelo

professor, do seu “nome” como uma personagem especial, em terceira

pessoa. Cria-se imediatamente a impressão de que o “nome” existe por si

só, tal qual o “nariz” na novela homónima de Gógol, e possui a sua

própria aparência, as suas relações, o seu tempo e espaço. Ele vive à

parte e é capaz de “passear tranquilamente” pela cidade. E o retrato, feito

pelo professor de si próprio em seguida, é percebido em vivo contraste

com o retrato do “nome”. O contraste é acentuado lexicamente: “... o

nome é belo e brilhante, eu sou pessoalmente apagado e disforme”:

Vive na Rússia o emérito Professor Nicolai Stiepánovitch de Tal, conselheiro privado; ele possui tantas condecorações russas e

estrangeiras que, nas ocasiões em que precisa usá-las, os estudantes chamam-no de iconóstase. As suas relações são das

mais aristocráticas; pelo menos, nos últimos vinte e cinco a trinta anos, não existiu na Rússia sábio famoso com quem não mantivesse trato íntimo. Atualmente, não tem com quem

manter amizade, mas, falando-se do passado, a longa lista dos seus gloriosos amigos termina com nomes como Pirogov,

Kaviélin e o poeta Niekrassov, que lhe concederam a sua mais cálida e sincera amizade. É membro de todas as universidades

russas e de três estrangeiras. Etcétera e etcétera. Tudo isso e muito e muito mais que se poderia dizer, constitui o que se chama o meu nome.

Esse meu nome é popular. Na Rússia, ele é conhecido por toda a pessoa alfabetizada, e, no estrangeiro, é citado do alto das

cátedras, com o acréscimo: conhecido e respeitado. Ele pertence ao número dos poucos e felizes nomes a respeito dos quais se considera de mau tom emitir ataques ou proferi-los em vão em

público ou pela imprensa. E assim deve ser. Pois o meu nome está intimamente ligado à noção de homem famoso, ricamente

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dotado e indiscutivelmente útil. Sou trabalhador e resistente como um camelo, e isso é importante, bem talentoso, o que é

mais importante ainda. Ademais, seja dito a propósito, sou educado e modesto, um tipo honrado. Nunca meti o meu nariz em literatura ou política, não busquei popularidade em

polêmicas com ignorantes, não proferi discursos quer em jantares, quer junto à sepultura de colegas... Em geral, o meu

nome científico não tem qualquer mácula, nem do que se queixar. Ele é feliz. O dono desse nome, isto é, eu, representa um homem de

sessenta e dois anos, calvo, com dentadura postiça e tique incurável. Na mesma medida em que o nome é belo e brilhante,

sou pessoalmente apagado e disforme. A cabeça e as mãos tremem-me de fraqueza; o pescoço, a exemplo duma heroína de Turguiêniev, parece um braço de contrabaixo, tenho o peito

caído, os ombros estreitos. Quando falo ou leio, a minha boca entorta-se para o lado; quando sorrio, todo o meu rosto cobre-

se de rugas senis, funéreas. Não há nada de imponente no meu vulto lastimável; a não ser o seguinte: quando uscita provavelmente em cada um que me vê um pensamento severo

e imponente: “Ao que parece, esse homem não tarda a morrer”. (101-102).

Tal divisão atravessa a novela inteira como um leitmotiv, suscitando

à personagem ora ironia, ora uma arrogância próxima do esnobismo, mas,

com mais frequência, irritação, uma vez que a vida dele nem no plano

espiritual, nem no plano da vida corrente, não corresponde ao status

oficial, à patente de general, à pessoa de quem se orgulha o seu país. E

se antes os esforços para a manutenção do brilho exterior eram

percebidos como uma necessidade, uma norma como concessão às

convenções da sociedade, agora Nikolai Stepánovitch reage viva e

doentiamente à menor manifestação do que lhe pareça falso e roubador

dos derradeiros e preciosos momentos de vida. E o brilho da sua glória

parece-lhe um escárnio sobre o fundo do tédio habitual e pungente da sua

existência cotidiana.

A ideia de que o “nome” sobreviverá a ele, não lhe traz alívio; ao

contrário, o professor acha que “foi enganado por ele”:

Parece-me ridícula a ingenuidade com que, quando moço, eu exagerava a importância da fama e da condição excepcional de

que desfrutariam as celebridades. Sou célebre, o meu nome é proferido com veneração, o meu retrato já foi publicado tanto na

Seara como na Ilustração Internacional, li a minha biografia até

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numa revista alemã – mas com que proveito?...Admitamos que seja mil vezes famoso, que seja um herói de quem a minha

pátria se orgulhe; em todos os jornais, publicam-se boletins sobre a minha doença, o correio me traz mensagens de simpatia de colegas, alunos e do público em geral, mas nada disso me

impedirá de morrer numa cama alheia, angustiado e completamente só... Naturalmente, ninguém é culpado disso,

mas pecador que sou, não gosto do meu nome tão popular. Tenho a impressão de que fui enganado por ele (158).

O “nome” é a sua fama mundial, a patente de general, as

condecorações, a amizade com pessoas famosas e interessantes, os

artigos em jornais e revistas, o criado e os requintados almoços com

hóspedes, a sua honorabilidade, o respeito e a admiração dos que o

cercam, todos os atributos duma vida digna. O principal epíteto

“brilhante” repete-se tanto no início dos apontamentos, quanto no fim:

Agora, o meu nome passeia tranquilamente por Khárkov; daqui a uns três meses, gravado em letras de ouro sobre a tumba, ele

há de brilhar como o próprio Sol, e isso quando eu já estiver coberto de musgo. (160)

O “Eu próprio” é a fraqueza, a velhice, a doença letal, o medo, a

decepção, a falta de dinheiro e os sentimentos de solidão, humilhação e

vergonha. Ele está convicto de que a família espera dele apenas dinheiro

e a posição; sob a máscara do respeito, ele nota um desprezo mal oculto

(Hnekker e o doutorando), e os seres mais espontâneos e honestos, as

crianças, riem-se francamente dele, o que a própria personagem encara

com enternecimento, admirando-lhes a sinceridade, já que se julga digno

precisamente de tal tratamento. E o contraste mais vivo: a personagem

sofre, ao passo que o “nome” prova felicidade; ela morrerá logo, enquanto

o “nome” é imortal.

O tempo, em que ambos não estavam separados, é o mundo

anterior, em que o professor se sentia confortável, a existência, com que

ele sonhara desde a juventude e conquistara com o seu próprio esforço;

enfim, a vida anterior, em que a sua fama e ele próprio coincidiam

completamente. Mas o leitor encontra Nikolai Stepánovitch nitidamente

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mudado, e entre o seu mundo de antes e o de agora abriu-se um abismo,

e este não para de aumentar, à medida do desenvolvimento da doença. E

o seu meio — família, colegas, universidades e jornais — permaneceram

os mesmos de antes, ao passo que ele já era outro e o seu diálogo com o

mundo que o cercava, para ele, estava interrompido.

Ele sente que todos os que entraram na esfera da sua vida, tanto os

mais próximos quanto os mais distantes, dirigem-se não a ele, escrevem

não acerca dele e tratam não com ele, pessoa doente e sofredora, mas

com o seu “nome”, com a sua glória e títulos. E o primeiro (e, portanto,

principal) desejo, que lhe vem à mente, quando ele decide examinar-se é:

Quero que as nossas esposas, filhos, amigos, alunos, amem em

nós não o nome, a firma, a etiqueta, mas a pessoa comum. (159)

É um desejo caro também ao próprio Tchékhov:

O caso é o seguinte. O senhor e eu gostamos das pessoas comuns; já os outros gostam de nós pelas pessoas extraordinárias que vêem em nós. A mim, por exemplo,

convidam a tudo que é lugar, em toda a parte dão-me de comer e beber, como a um general num casamento; a minha irmã fica

indignada de a convidarem a todos os lugares só por ela ser irmã dum escritor. Niguém quer gostar das pessoas comuns em nós.53

.

A situação de rompimento da personagem com a sua mundividência

anterior e, em consequência dela, com o seu meio é típica de muitas

outras de Tchékhov, como Ivánov, Voinítskii e outras; já as causas de tal

ruptura podem ser várias.

Assim, no caso de Dmítrii Gúrov (“A dama do cachorrinho”), é um

amor inesperado, que o fizera renascer completamente. Do mesmo modo

como Nikolai Stepánovitch, Gúrov continua a viver no mesmo mundo, que

53 SUVORIN 24 или 25 ноября 1888 г. Москва.

http://royallib.com/read/chehov_anton/tom_21_pisma_ 1888_1889.html#245760

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em tempos fora sangue do seu sangue — familiar, confortável, no qual ele

antes vivia perfeitamente integrado com o seu comportamento, hábitos e

opiniões. O seu círculo consistia em pessoas como ele, que se

compreendiam maravilhosamente e falavam a mesma língua, com a cínica

filosofia de vida, na qual as mulheres são uma raça inferior e na qual

peixe fresco e mulher bonita são coisas da mesma ordem. Mas, tendo-se

apaixonado de verdade, ele de repente é tirado do círculo rotineiro,

começa a ver e a sentir de maneira diferente, deixa de perceber a

linguagem habitual. E quando, certa vez, dominado pelo desejo de contar

a uma pessoa qualquer do seu amor e, não resistindo, enceta a conversa,

o seu interlocutor, capaz de perceber as palavras acerca duma mulher

encantadora somente no contexto dum relato ligeiro acerca do prazer dos

sentidos ou físico, associa isso a outro prazer dos sentidos, da mesma

ordem para ele — comida boa e peixe fresco. E basta o conhecido

continuar o diálogo, normal e natural para ambos antes, no mesmo tom,

para que Gúrov se tome de frustração — a frase do interlocutor parece-lhe

dum ultraje selvagem e suscita-lhe um fluxo inteiro de pensamentos

irados acerca da vida e do espírito tacanho dos que o cercam.

Certa vez, à noite, saindo do clube dos médicos, em companhia de um funcionário, seu parceiro no jogo, não se conteve e disse -Se soubesse que mulher encantadora eu conheci em Ialta!

O funcionário sentou-se no trenó e partiu, mas , de repente, voltou-se e chamou-o:

- Dmítry Dmítritch! - Que é?

- Você tinha razão: o esturjão não estava de todo fresco! Aquelas palavras , tão comuns, deixaram Gurov indignado, sem que soubesse por que, pareceram-lhe humilhantes,

impuras. Que selvagens costumes, que rostos! Que noites estultas, que dias desinteressantes, anódinos! O jogo

desenfreado, a gula, a bebedeira, as imutáveis conversas sobre o mesmo assunto. As ocupações desnecessárias e as conversas invariáveis ocupavam a melhor parte do tempo, as melhores

energias e, por fim, sobrava apenas uma vida absurda, sem asas, uma mixórdia qualquer, da qual não se podia fugir, como

se se estivesse num manicômio ou numa prisão!54

54

A TCHÉKHOV. A Dama do cachorinho, Editora 34, 1999, tradução de B.Shnaiderman, p.325.

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O caso aqui, como o de Nikolai Stepánovitch, é que, sob a ação de

alguma causa séria, o mundo interior da pessoa muda, e o exterior, em

que ela continua a viver, permanece o mesmo.

Fazendo o seu retrato, no início dos apontamentos, o professor detém-se

no decréscimo e enfraquecimento do seu intelecto.

Mas escrevo mal. Aquelle pedacinho do meu cérebro que dirige a capacidade de escritor recusou-se a servir. A minha memória

enfraqueceu, os pensamentos não têm a necessária continuidade, e, quando os exponho no papel, vem-me cada vez a impressão de ter perdido o sentido da sua ligação orgânica, a construção é

monótona, a frase, tímida e avara. Muitas vezes, não escrevo o que quero, quando escrevo o fim, já esqueci o princípio. Frequentemente, esqueço palavras

corriqueiras, e sempre tenho de perder muita energia, para evitar frases supérfluas e incisos desnecessários; ambos os fatos testemunham uma queda de atividade mental. E, o que é de

admirar, quanto mais simples é o escrito, tanto mais torturante a minha tensão. Escrevendo um artigo científico, sinto-me muito

mais livre e inteligente que ao compor uma carta de parabéns ou um ofício. Mais ainda: é mais fácil para mim escrever em alemão ou inglês do que em russo.(102)

No trecho, está diante de nós um médico profissional, que descreve

os sintomas da doença, Historia morbi, em termos secos, exatos e

objetivos. Ele ainda não deu o dagnóstico e está apenas a analisar o curso

da moléstia. Mas, como já assinalámos, para o autor e, portanto, para o

leitor, tal episódio possui um significado complementar — pormenores,

que não podemos deixar de considerar — a falta de nexo nas ideias, o

enfraquecimento da memória (principalmente, já que tem que ver com as

recordações) e o facto de, às vezes, a personagem escrever não o que

quer.

Para além disso, é preciso notar que lhe sai da pena mais fácil e

livremente o que está mais próximo das suas ocupações profissionais, de

determinadas ações padronizadas, do trabalho em idioma estrangeiro e

do que lhe é maximamente alheio. Já aquilo que esteja mais perto da vida

corriqueira, como um cartão de parabéns na língua materna, mete-o em

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certa dificuldade.

No decurso dos três primeiros capítulos de “Uma história

enfadonha”, descreve-se um longo dia de inverno. Basta um único dia

para apresentar-se uma rotina diária, tediosa e esvaziada de sentido. A

personagem fala de si, dos seus horários (noite, manhã, tarde, anoitecer,

noite de novo), da família, dos colegas e da universidade e estende-se

longamente acerca do teatro e mulheres.

Com o léxico desses capítulos enfatizam-se o retardamento, a

insignificância e a monotonia dos acontecimentos e o tédio, que se

instalara na alma do professor: maquinalmente, tempo penoso, enjôo,

obrigo-me, sempre o mesmo, estou frio, andando de um canto a outro do

quarto, sombrio, aborrece, velhice, fuligem, o aspecto merencório,

pessimismo.

Há, é verdade, em tais capítulos, também um léxico diferente pelo

colorido emocional, usado em episódios isolados (por exemplo, em

algumas recordações). Sobressaindo sobre o fundo monótono geral e em

combinação com o ritmo mudado, ele carrega um sentido completamente

diferente e desempenha um papel inteiramente diferente. Nisso ainda nos

deteremos mais adiante.

Tendo apresentado, no início dos apontamentos, o seu “nome”, a si

e as alterações físicas, que a doença lhe trouxera, ele passa a uma

descrição minuciosa do seu dia cotidiano. E começa-a com a noite, uma

vez que a noite, com a insônia que o extenua, se torna o principal fator

atormentador, o ponto de partida de tudo o que é mais terrível,

incompreensível e anormal na sua vida.

A insônia é um estado que lembra a paz eterna, como que suspenso

entre a vida e a morte. Na escuridão e no silêncio, tudo parece mudado, à

cabeça vêm pensamentos novos, nada alegres para um moribundo, e o

único meio de livrar-se deles por um tempo é fazer algo maquinalmente —

contar, ler não importa quê ou andar dum canto a outro. Uma noite insone

é um tempo em que a inelutabilidade do fim próximo se sente de maneira

especialmente real. E a única coisa salvadora, compreensível e querida

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torna-se algum som familiar, ou imagem, ou movimento — o efêmero fio

de ligação com a vida genuína, que se encontra além dos limites da noite

e da insônia. Não à toa, falando de sons que nos chegam aos ouvidos,

Tchékhov usa o verbo "любить" (adorar, amar), emocionalmente mais

forte do que o “gostar”, escolhido pelo tradutor:

Люблю прислушиваться к звукам (254) Gosto de prestar atenção aos sons

Quando ao meu modo de vida atual, devo notar em primeiro lugar a insônia, de que sofro ultimamente. Se me

perguntassem: o que constitui agora o traço principal, básico, da sua existência? - eu responderia: a insônia. Como outrora, seguindo o costume, eu me dispo exatamente à meia-noite e

deito-me no leito. Adormeço depressa, mas acordo depois da uma, com a sensação de não ter dormido absolutamente nada.

Torna-se necessário erguer-me da cama e acender o lampião. Passo uma hora ou duas andando de um canto o outro do quarto e examino quadros e fotografias há muito conhecidos.

Quando enjôo de andar, sento-me à mesa. Permaneço ali imóvel, sem pensar em nada e não sentindo qualquer desejo;

se tenho um livro na frente, aproximo-o maquinalmente de mim e leio-o sem qualquer interesse. Assim, não faz muito tempo, li maquinalmente um romance inteiro, com o estranho

nome: Aquilo sobre o que cantava a andorinha. Ora, procurando ocupar a minha atenção, obrigo-me a contar até

mil, ora imagino o rosto de alguém dos meus amigos e ponho-me a recordar: em que ano e em que circunstâncias ele ingressou no funcionalismo? Gosto de prestar atenção aos

sons. A dois quartos de mim, a minha filha Lisa profere algo rapidamente, delirando, minha mulher atravessa a sala de vela

na mão e invariavelmente deixa cair uma caixa de fósforos, range um armário ressecado ou inesperadamente o pavio da lamparina passa a zunir – e todos esses sons por alguma razão

me perturbaram. Não dormir de noite significa ter consciência, a cada momento,

de ser anormal, e por isso espero com impaciência a manhã e o dia, quando tenho direito de não dormir (103).

Mas eis que, finalmente, põe-se a cantar o galo longamente

esperado, chega a manhã, indiferenciável de todas as precedentes e

enche-se da azáfama corriqueira, e, um após o outro, e um após o outro,

e surgem personagem conhecidas do professor e desconhecidas do leitor

(a esposa, a filha, o filho, que aparece somente na conversa da mãe com

pai e nos pensamentos deste), o vigia Nikolai, o colega Piotr Ignátich e

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alguns estudantes; em seguida, descreve-se o caminho da universidade e

as aulas.

No segundo capítulo (a segunda metade do mesmo dia), o professor

trabalha em casa, e vêm ter com ele alguns colegas de universidade, o

estudante preguiçoso, o doutorando, Kátia e Hnékker e descreve-se o

almoço. E no terceiro capítulo (noite do mesmo dia), uma nova

personagem, Mikhail Fiódorovitch, Kátia e o jantar.

É preciso notar que, de todas as aparições duma personagem após a

outra, apenas Kátia é evidenciada por uma estilística especial.

Eis o quarto, e eu ouço passos conhecidos, um frufru de vestido, uma voz querida... (117)

Embora a aparição dela seja a corriqueira de todos os dias, como,

aliás, de todas as outras personagens, o carinho e a emoção, que de

repente notamos no tom de Nikolai Stepánovitch, prepara-nos para o

facto de que a Kátia fora destinado um papel especial no texto. E

confirma-o o relato, que se segue, acerca da sua vida.

A rotina e monotonia dos acontecimentos diários enfatiza-se, como

já foi assinalado, por verbos do Tempo Presente e frases características:

diz sempre o mesmo Todas as manhãs, é o mesmo

A experiência cotidiana A nossa conversa acaba sempre da mesma maneira Visto-me e sigo pelo caminho que me é conhesido há trinta

anos .

A frase-chave, referente a tudo o que acontecia, é aquela que dirige à

esposa:

Não sou profeta, mas sei de antemão qual será o assunto. Todas as manhãs, é o mesmo. (104)

Nikolai Stepánovitch como que olha com alheamento para o que

outrora lhe fora caro e querido; parece-lhe que mudara não ele, mas o

mundo e as pessoas à sua volta, e essas mudanças suscitam-lhe uma

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crescente irritação.

No primeiro capítulo, no tom da personagem sentem-se uma

irritação por enquanto leve com a esposa e uma queixa contra os filhos. A

esposa passa da “airosa Vária” a “uma balofa velha desajeitada” e

aperreia-o com ninharias da vida, e a filha e o filho não agem do modo

como ele gostaria, e nem de longe lhes ocorre o pensamento de sacrificar

os seus ornamentos, ocupações e trabalhos por ele (afora esses

pensamentos no filho, o professor não torna a recordá-lo). Na verdade, a

fonte da sua indignação é um sentimento de culpa, que o atormenta

insconcientemente. Na sua convicção de que o mundo é ruim, na queixa

contra a esposa, a filha e o filho e na acusação contra eles de mesquinhez

e indiferença, transparecem tentativas de justificação e reabilitação de si e

da sua indiferença por eles. Apesar de não reconhecê-lo, Nikolai

Stepánovitch culpa-se a si por essas ideias “mesquinhas”; a ele, como

antes, o importante é tomar consciência de si da maneira habitual, a única

que ele considera digna:

Somente um homem estreito ou enfurecido pode ocultar em si um sentimento mau contra gente comum, pelo fato de não

serem heróis. (106)

Isso também tem que ver com a ciência. A ele parece que também

naquele momento a ciência era a principal coisa que ocupava os seus

pensamentos, e de jeito nenhum “questões sobre as trevas de além-

túmulo”. Ele esforça-se insistentemente por convercer-se de tal:

Emitindo o suspiro derradeiro, ainda hei de crer que a ciência constitui o mais importante, o mais belo, o mais necessário na vida do homem, que ela sempre foi e será a manifestação mais

elevada do amor, e que somente por meio dela o homem vencerá a natureza e a si mesmo. (113)

No entanto, os apontamentos subsequentes provam o contrário; o

mundo antigo “fizera-se em pedaços”, a ciência já não é para ele o que

preenchia todo o seu ser, bem como as suas ideias e sentimentos,

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levando-o para longe da realidade da existência. O que, agora, constitui a

sua presente vida interior, o que o persegue e atormenta e aquilo a que

são dedicadas as páginas do seu diário, são precisamente as questões

acerca do “objetivo final do cosmo”.

Muda tudo o que antes era o sentido da sua vida, fonte de alegria e

inspiração. Em lugar do “doce langor”, nas aulas ele experimenta

sofrimento (“experimento apenas tortura”). O professor compreende que,

por força do seu estado físico e psíquico, ele já não dá conta da tarefa e

que deveria aposentar-se; sente vergonha, e a consciência atormenta-o,

mas, só de pensar nisso, prova um verdadeiro terror; a reforma

(aposentadoria) é para ele igual à morte. Ocorrem-lhe pensamentos

terríveis, e tem início uma “ruptura” histérica:

Algo estranho comigo, em consequência da insônia e da tensão e luta com a crescente fraqueza. Em meio à aula, lágrimas me vêm de repente à garganta, os olhos começam a comichar, e eu sinto

uma vontade apaixonada, histérica, de estender as mãos para a frente e queixar-me alto. Quero gritar com voz sonora que eu, um homem célebre, fui condenado pelo destino à

pena de morte, e que passado cerca de meio ano, o patrão desta sala já será um outro. Quero gritar que estou envenenado; novos pensamentos, que eu não conhecera antes, envenenaram os

últimos dias da minha vida e continuam a picar-me o cérebro, qual mosquitos. Nessas ocasiões, o meu estado me aparece tão terrível que dá vontade de que todas os meus ouvintes se horrorizem,

ergam-se num salto e, presas de pânico, se lancem com um grito desesperado para a saída. Não é fácil sofrer tais momentos. (113)

Nesse episódio, que fecha o primeiro capítulo, concentram-se alguns

elementos já aparecidos antes. Ele recorda que é famoso, levando-nos de

volta ao início dos apontamentos. Algumas frases repetem-se quase

literalmente:

picar-me o cérebro, qual mosquitos. (113) Estremeço como se uma abelha me picasse (113)

Quero gritar que estou envenenado; novos pensamentos, que eu não conhecera antes, envenenaram os últimos dias da minha vida.

(106) Tais pensamentos sobre os meus filhos me deixam envenenado.

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(113)

Paralelamente às ideias acerca da morte, novamente soa a

palavra “insônia”, fechando, desse modo, o círculo do primeiro capítulo.

Tchékhov sói usar de repetições e variações, que passam de um

texto a outro. Assim, por exemplo, foi notada pelos estudiosos a

semelhança de situação, pormenores e episódios de “Uma história

enfadonha” e o conto “O bispo”, escrito quinze anos depois.

No segundo capítulo, vem para o primeiro plano a aguda sensação

de falsidade, sentida pela personagem.

São de uma falsa cortesia as suas relações com os colegas; com

falsidade age o estudante preguiçoso, tentando justificar a sua ociosidade;

com falsidade age o doutorando, que esconde, sob a máscara de respeito

à celebridade, o desprezo pelo professor; igualmente falsos são Liza, a

esposa e Hnekker.

O léxico escolhido pelo autor agudiza a nossa atenção precisamente

a isso:

Em primeiro lugar, procuramos mostrar um ao outro ...(114) Rimos, embora não tenhamos dito nada de engraçado. (114) não podemos deixar de dourar nossa conversa com chinesices no

gênero... (114) eu finjo...(114) ...o meu rosto continua a sorrir, provavelmente por inércia(114)

O argumento que todos os prequiçosos trazem em seu auxílio é sempre o mesmo: eles se saíram admiravelmente em todas as

matérias e levaram bomba somente na minha, o que é tanto mais surpreendente, pois eles estudaram sempre a minha matéria com grande aplicação e sabem-na muito bem; e a bomba é a

consequência de um equívoco incompreensível. (115)

Este expressa um profundo respeito pelo meu nome famoso, pelo

minha ciência, mas nos seus olhos eu vejo que ele despreza a minha voz, a minha lamentável figura e a gesticulação nervosa.(117)

Eu, por exemplo, não posso de maneira alguma conformar-me com expressão triunfal que aparece em minha mulher sempre que Hnekker está em nossa cas, não posso tambeém conformar-me

com as garafas de Lafitte, vinho do Porto e xerez, postas na mesa unicamente em sua intenção, para que se convença com seus

próprios olhos como vivemos farta e luxuosamente. Não suporto

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também o riso sacudido de Lisa, que ela aprendeu no conservatório, eu seu jeito de entrecerrar os olhos, quando há homens em nossa casa. (128)

O rosto de minha mulher reflete solenidade, uma imponência

postiça e a costumeira preocupação. (127) Hnekker alimenta-se com gravidade, graceja com gravidade

também e ouve com ar condescendente as observações das moças (128)

E até o que antes eram sinais naturais da cortesia e respeito, usados

no seu círculo, são agora percebidos por ele como um espetáculo geral,

em que está obrigado a participar, já não desejando-o.

À medida da piora do seu estado físico, a sua irritação cresce ainda

mais. E sob o efeito do vinho bebido no almoço, começa a parecer-lhe que

o seu “nome” é o que o eleva acima da mesquinhez e o espírito tacanho

da vida que o cerca. No seu tom, sente-se um esnobismo mal disfarçado:

...em presença de gente como Hnekker, os meus méritos parecem-me uma montanha altíssima, cujo cume desaparece

nas nuvens e ao pé da qual se movem uns Hnekker quase imperceptíveis. (129)

Semelhante cena aparece, masi tarde, em “O tio Vánia”, quando o

doutro Ástrov, acalorado pela vodca, profere um monólogo parecido:

Nessas horas tenho meu próprio sistema filosófico e vocês, amigão, todos vocês, não passam de uns pequenos insetos a

meus olhos... uns micróbios. 55

Sobre tal fundo, como contraste aparece um pequeno pormenor.

Recordando Kátia ainda menininha, Nikolai Stepánovitch assinala “a

confiança extraordinária” dela e com que sincero interesse e curiosidade

ela encarava a vida.

Tal como no primeiro capítulo, com os mesmos meios estilísticos — o

ritmo monótono, o tempo presente dos verbos e o léxico — salienta-se a

55

TCHÉKHOV, Anton. Teatro I. A Gaivota, O tio Vania, Veredas, 2009. Tradução de Gabor Aranyi,

p.89

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rotina, que havia muito já o enfadara:

Assim como aconteceu de manhã, sei de antemão o assunto da nossa conversa (129) o soalho sombras conhecidas e que me enjoaram há muito

(130)

Segue-se a contraposição “antes-agora”. Nikolai Stepánovitch

compara os almoços de antes com os do momento presente, a pequena

Kátia com a mulher adulta. E, do mesmo como o primeiro, o segundo

capítulo fecha-se com uma ruptura histérica, e a par de pensamentos na

morte (“tenho medo de morrer de repente”), a personagem recorda a sua

insônia:

já está começando a minha maldida insônia.(130)

O terceiro capítulo é um serão na casa de Kátia. A atmosfera

relaxante, langorosa, e a companhia do ser mais caro predispõem a uma

conversa franca. E Nikolai Stepánovitch conta a Kátia o que estava a

passar-se com ele, expõe-lhe o que representa a sua filosofia de vida e

compartilha com ela as suas torturantes questões e dúvidas e a

incompreensão da causa de a sua mundividência anterior estar a tornar-se

impossível na sua presente situação.

O melhor e mais sagrado direito dos reis é o direito de perdoar. E eu sempre me senti rei, pois usei ilimitadamente esse direito. Nunca julguei os demais, era condescendente, perdoava de bom

grado a todos. Onde outros protestavam e indignavam-se, eu apenas aconselhava e procurava convencer. A vida inteira, esforcei-me apenas para que a minha companhia

fosse tolerável para a família, os estudantes, os colegas, os criados. E essa minha relação com as pessoas, eu sei, educava a todos os que se aproximavam de mim. Mas agora não sou mais

rei. Dentro de mim está acontecendo algo que só é decente para os escravos: pensamentos maus fermentam-me na cabeça dia e

noite, e sentimentos que eu não conhecia trançaram seu ninho em minha alma. Eu odeio, desprezo, indigno-me, fico furioso, temo. Tornei-me desmedidamente severo, exigente, irritado, descortês,

desconfiado. Mesmo aquilo que, em outros tempos, dava-me apenas a oportunidade de dizer mais um trocadilho e rir com bonacheirice desperta-me agora um sentimento penoso. Mudou

em mim também a minha lógica: antes, eu desprezava apenas o

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dinheiro, mas agora tenho um sentimento mau não em relação ao dinheiro, mas ao ricos, como se eles tivessem culpa; antes, eu odiava a coação e o desmando, mas agora odeio os homens que

empregam a coação, como se eles fossem os únicos culpados, e não todos nós que não sabemos educar-nos mutuamente. O que significa isso? Se os pensamentos e sentimentos novos resultaram

da mudança de convicções, de onde pode ter surgido essa mudança? Teria o mundo se tornado pior, e eu melhor, ou antes eu era cego e indiferente? (132)

Mas que é que eram esses princípios de vida, por que Nikolai

Stepánovitch se norteara no decurso de muitos anos?

Os juízos filosóficos de Tchékhov constituem um tema

extremamente discutível nos estudos literários.

Tradicionalmente, encara-se a filosofia em literatura como um

mundo de ideias, porém Tchékhov não tinha ideologia como tal, bem

como não tivera uma educação filosófica (à diferença de L. Tolstói). E,

quando as suas personagens citam argumentos “a favor” e “contra”

alguma ideia, elas expressam não a opinião do autor (como nos romances

de Dostoiévskii), mas a sua própria, e o objetivo da discussão delas, para

o escritor, não está na busca da verdade ideológica, mas, com mais

frequência, na caracterização das personagens e das suas inter-relações.

É sabido, contudo, que a filosofia e autores como A. Schopenhauer,

W. Goethe, Henry Thomas Buckle e H. Spencer, bem como Marco Aurélio,

Epítetoe e Blaise Pascal, citados em “Uma história enfadonha”, durante

muito tempo estiveram na esfera de interesses de Tchékhov.

Em Ialta, na biblioteca da casa-museu do escritor, encontra-se o

livro “Reflexões do imperador Marco Aurélio acerca do que é importante

para a pessoa própria”, em tradução do príncipe L. Urússov e edição de

1882, na cidade de Tula. Nas margens de muitas páginas, pela mão de

Tchékhov, com três tipos diferentes de lápis (dois com grafite de dureza

diferente e um vermelho de ponta mole), foram feitas notas, que refletiam

a temática de parágrafos isolados: “deus”, “vida”, “natureza”, “morte” etc.

Encontram-se muitas citações dos nomes de Marco Aurélio e Epíteto (e

dos estóicos tardios) também nas cartas do escritor, inclusive durante o

período de escrita de “Uma história enfadonha”. Tudo isso e,

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principalmente, as numerosas invocações dos clássicos do estoicismo, nas

obras de Tchékhov atestam o interesse do escritor por essa filosofia.

É possível vermos imediatamente um paralelo tanto nos temas

tratados (vida, morte, tempo etc.) quanto em frases concretas.

Claramente, Nikolai Stepánovitch construía a “composição” da sua vida,

guiando-se pelas posições filosóficas dos estóicos.

Na personagem, com cada vez mais força, inflama-se uma luta

entre o desejo de, como antes, sentir-se um “rei”, ser condescendente e

justo e os novos pensamentos “de escravo”. Com a sensação da própria

hipocrisia, mas sem querer reconhecê-la, e com o desejo irresistível de

criticar a todos e tudo, ele, cego para as próprias contradições, dirige toda

a sua insatisfação e ira contra os que o cercam, acusando-os, indignando-

se com o comportamento da esposa:

e até me calo quando ela emite juízos injustos a respeito das

pessoas... (105)

ou com o cinismo e a maledicência de Kátia e Mikhail Fiódorovitch.

Assim, a sua tentativa de interceder pelos novos estudantes

transforma-se em mais uma crítica a eles, e a repentina queixa contra a

filha contradiz o que ele próprio pensa dela.

Quando alguém não compreende, ele sente dentro de si uma desarmonia e não procura as causas dessa desarmonia dentro

de si próprio, como seria necessário, mas no mundo exterior. (146)

A descrição dos acontecimentos diários entremeia-se de recordações

e digressões-reflexões. As mesmas reflexões acerca do teatro, literatura,

juventude, música, mulheres etc., que a crítica atribuía ao próprio

Tchékhov. Apesar de, em algumas cartas do escritor, realmente podermos

verificar análogas disposições de espírito, o que é substancial, aqui, são

não os temas aventados em si, mas o modo de a personagem encará-los;

é difícil não notarmos que não somente as pessoas, senão também

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quaisquer acontecimentos da vida, da arte ate às ninharias do cotidiano,

tudo se submete a uma ácida crítica por ele.

Precisamente, a incapacidade de superar a contradição entre o próprio

estado e a costumeira posição de vida provoca nova explosão emocional.

O pensamento da personagem vai da acusação de todos e de tudo que o

cerca, “rabugice” (pela definição de Tchékhov, dada numa das suas cartas)

por conta da vida insatisfatória, à compreensão de que a causa está nele

próprio, nos seus novos pensamentos.

No fim do capítulo, ele é inteiramente honesto consigo:

Penso em mim mesmo, na minha mulher, em Lisa, em Hnekker, nos estudantes e nas pessoas em geral; penso de maneira má, mesquina, trapeceio comigo mesmo... (141)

Está claro que os pensamentos novos, araktcheievianos, não

estão estão em mim casualmente, nem são temporários, mas que dominam todo o meu ser. (142)

Exatamente como nos dois primeiros capítulos, no final do terceiro,

paralelamente a pensamentos acerca da morte, aparece a palavra insônia,

só que agora especialmente sublinhada: dum lado, travessão (ausente na

tradução brasileira), do outro, reticências. Mas, o que é o mais

importante, ela encontra-se numa posição forte do texto — num último

parágrafo à parte — e é a última palavra do terceiro capítulo e do primeiro

fragmento da composição. O círculo fecha-se: o longo dia começa e

termina com insônia.

...e penso que em breve a morte há de me levar. (142) Em seguida, a insônia. (142)

А потом – бессоница...56

O quarto capítulo inicia-se com as palavras:

Chega o verão, e a vida se modifica. (142)

56 A. Tchékhov, Moscou,1977, p.291.

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A primeira frase, sublinhada na forma de parágrafo isolado, parece

carregada de esperança. No entanto, podemos logo notar que, como se

em ritmo acelerado, os mesmos acontecimentos desenvolvem-se na

mesma ordem vista nos capítulos anteriores, aparecem as mesmas

personagens, uma após a outra, e soam diálogos paralelos aos primeiros

capítulos. Nikolai Stepánovitch alude de passagem ao seu “nome”, tal

como fizera no primeiro capítulo, na terceira pessoa:

Levam a minha excelência para a rua, sentam-na num carro de

aluguel, transportam-na. (142)

Em seguida, cita a insônia e descreve minuciosamente o seu plano

de atividades para o dia. Seguem-se reflexões em estilo pesado

(тяжеловестные) acerca de literatura e crítica.

Surge Nikolai, porteiro da universidade, depois, Piotr Ignátievitch. E,

novamente, almoço, ao qual, para além da personagem, estarão

presentes a esposa, Liza e Gnekker.

Após a refeição, Nikolai Stepánovitch, como no primeiro capítulo,

fuma cachimbo no seu gabinete, entra a esposa e põe-se a falar de

Hnekker, com referências desagradáveis a Kátia, e após isso sobrevem a

Nikolai Stepánovitch uma crise de histeria. A segunda parte do quarto

capítulo é dedicada a Kátia: a conversa com ela, o aparecimento de

Mikhail Fiódorovitch, o mesmo jantar, como no inverno, com a mesma

comida, com os mesmos baralhos de cartas e com a mesma maledicência.

De volta à primeira frase desse capítulo, ao leitor pode parecer que

ela é irônica: aparentemente, nada mudara, tudo continua o mesmo, e o

quarto capítulo representa o conteúdo sucinto dos três primeiros.

Bem no início dele, há um pequeno episódio:

Deixo-me levar e, não tendo que fazer, leio as inscrições à

direita e à esquerda. A palavra “traktir” transforma-se em “ritkart”. Isso serviria para o sobrenome de baronia: a baronesa de Ritkart. (142)

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As mesmas letras, a mesma palavra, mas ela, lida ao contrário, produz

um significado completamente diferente: a natureza tão terra a terra

duma taberna torna-se o nobre sobrenome duma baronesa (essa

baronesa Ritkart é mencionada de passagem em outro conto, da fase

incial, de Tchékhov — “Uma alminha liberal’ — "Либеральный душка"). O

autor aguça a nossa atenção com os sinais costumeiros: os mesmos

acontecimentos, as mesmas personagens e os mesmos diálogos entre elas

formam um novo sistema e delineia-se um novo quadro; há algo mal

perceptível mas já mudado.

Sobretudo, como já assinalámos, muda o ritmo: a descrição dos

acontecimentos já conhecidos torna-se mais curta, e o seu transcurso

acelera-se, o que é ressaltado com a aparição duas vezes, no texto, duma

viagem — uma com cocheiro, a outra com Kátia num charabã.

E a par de verbos no presente e do léxico, os quais, como antes,

criam a atmosfera de monotonia e repetitividade, surgem sinais

linguísticos, que pressupõem a excepcionalidade dos acontecimentos.

Uma bela manha não vêm todos os dias

Ocorrem agora também equívocos de que antigamente eu tinha noção apenas de outiva. Por mais que me envergonhe,

vou descrever um que aconteceu há dias, depois do jantar.

Exatamente como, nos primeiros capítulos, se observa a antítese

“antes-agora”, mas, no quarto, o “antes” já significa não o passado mais

distante, senão o de pouco tempo atrás, do último inverno:

O nosso jantar decorre de maneira mais cacete que no inverno (147)

Ocorrem mudanças também nas personagens:

Nicolai aparece geralmente nos feriados, como que para tratar

de serviço, mas principalmente para me ver. Vem bastante embriagado, o que nunca lhe acontece no inverno. (145)

Há muito tempo já que Mikhail Fiódorovitch devia ter viajado

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para o estrangeiro, mas ele adia a partida cada semana. Nos últimos tempos, aconteceram com ele certas modificações:

parece mais acobado, passou a embriagar-se com vinho, o que antes nunca lhe acontecera, e as suas sobrancelhas negras estão começando a branquear. (151)

Antes, eu tolerava a sua presença calado, mas agora dirijo-lhe

alfinetadas, que obrigam minha mulher e Lisa a enrubescer. (147)

Se, no segundo capítulo, após conversa com Nikolai Stepánovitch, a

esposa

... aperta um lenço contra os olhos e vai chorar no seu quarto;

130),

então, no quarto:

minha mulher de súbito empalidece e solta um grito alto, com

uma voz desesperada, que igualmente não é sua. (148)

No terceiro, ressalta-se a atenciosidade de Kátia em relação a

Mikhail Fiódorovitch:

Deve ser Mikhail Fiódorovitch... Kátia acompanha com atenção as suas jogadas e ajuda-o mais

com a mímica do que com palavras. (137)

E, já no quarto, ela já não consegue esconder a sua irritação com a

aparição dele:

- De novo este Mikhail Fiódorovitch!- diz Kátia com desagrado.

- Tire-o de perto de mim, por favor! Estou enjoada, ele já se evaporou...Como cansa! (151)

No terceiro, ao conselho de Nikolai Stepánocitch de arranjar um

trabalho, Kátia apenas cala e muda a conversa para outro tema; agora, ao

mesmo conselho, ela “explode”.

A atmosfera geral no quarto claramente torna-se tensa, como se o

estado de nervos de Nikolai Stepánovitch se comunicasse às outras

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personagens.

A principal mudança, contudo, ocorre no próprio professor. Ele já

não esconde de si nem a sua insuportável irritação, nem o ódio que dele

se apodera; as emoções vencem a razão. Paralelamente, têm-se dois

episódios: no segundo capítulo, o desprezo a Hnekker gera um

pensamento acerca dos próprios méritos e da inalcançável altura deles,

enquanto, no quarto, o desprezo chega a tal ponto, que Nikolai

Stepánovitch, com consciência da estupidez do seu comportamento, não

resiste e recita uma citação das fábulas de Ivan Krylov. Em ambos os

casos, figuram imagens do baixo e do elevado; no primeiro episódio, o

cume duma montanha e o seu sopé; no segundo, a águia em vôo

altíssimo e a galinha incapaz de alçar vôo.

-”Sucede às águias descer mais que as galinhas. Mas estas nunca hão de subir às nuvens...” (147)

Nikolai Stepánovitch começa já a tomar consciência da inutilidade

dos conselhos, dados a Kátia, mas o sentimento de dever em relação a

ela, o qual ele entende à maneira antiga, e o hábito de muitos anos

obrigam-no novamente a aventar a questão do futuro dela.

Piora o estado físico do professor; ele sofre já não um simples

colapso nervoso, mas um profundo desmaio, de duas a três horas de

duração.

E mais uma vez de volta à primeira frase do quarto capítulo,

compreendemos que a vida, realmente, mudara, só que tais mudanças

não trazem nenhuma sensação de alegria e novidade.

A personagem conformara-se definitivamente com os seus

“pensamentos de escravo” e adere prazerosamente à tradicional

maledicência de Kátia e Minkhail Fiódorovitch. Isso fecha o capítulo

quatro.

Pela primeira vez, no fim do capítulo, não há nenhum pensamento

na morte, nem a insônia que o acompanha, nem histeria. Por que deixa o

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autor, nesse caso, de usar o mesmo procedimento estilístico, fazendo, no

entanto, o leitor compreender que a atmosfera está tensa até ao máximo?

Em primeiro lugar, com isso aprofunda-se a diferença composicional

em relação aos três primeiros capítulos (primeiro fragmento

composicional), simbolicamente declarada no início do quarto. Em

segundo, e isto é o principal, o penosíssimo estado psicológico, que se

segue, foi destacado para um quinto capítulo à parte, no qual já não há

nem monotonia de acontecimentos, nem reflexões, e a personagem

entrega-se ao poder das suas terríveis e incompreensíveis sensações;

estas parecem existir por si próprias, contagiando a todos em volta e

criando a atmosfera dum medo irracional.

Para além de a ação passar-se à noite, isto é, vermos a insônia da

personagem no sentido físico direto, todo o quinto capítulo concentra o

significado simbólico da insônia — não é simplesmente um pensamento na

morte, mas a duradoura sensação de terror, advinda do facto de que a

morte está ao lado e preenche literalmente o espaço.

A própria palavra “insônia” soa novamente no texto como reflexo

do estado geral de Nikolai Stepánovitch e como resposta à pergunta

acerca do que está a ocorrer:

- O que está fazendo agora? - Nada... Insônia. (155)

Desde o próprio início do capítulo, está claro que se descreve um

acontecimento isolado, e a palavra "uma" e o verbo no tempo passado

acentuam-no:

Há noites terríveis, com trovoada, raios, chuva e vento, e que o povo chama de noites de pardais. Em minha vida pessoal,

aconteceu uma noite de pardais exatamente desse tipo...(152)

A descrição duma noite de pardais, vivida pelo próprio Tchékhov,

encontra-se nas reminiscências do seu irmão Aleksandr.

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Воробьиной ночью в Малороссии называется такая

страшная грозовая ночь, что даже воробьи от испуга вылетают из своих гнезд и мечутся как угорелые по воздуху.

Chama-se “noite de pardais”, na Ucrânia, a uma noite tempestuosa tão terrível, que até os pardais, de pavor, deixam

os ninhos e ficam a voar como doidos. (tradução nossa)57

O primeiro parágrafo do capítulo conclui-se com a pausa dumas

reticências. Ao leitor é dada a possibilidade de sentir profundamente o

texto seguinte em contraste com a frase inicial. “Aquela noite igualzinha”

revela-se completamente outra: não há nenhuma tempestade, nem raios,

nem vnto, nem trovões, nem chuva, nem pardais ensandecidos. A noite,

pelo contrário, é magnífica, sem vento, enluarada, tranquila.

A “tempestade” está é na “vida pessoal” das personagens. E esse

contraste entre a natureza bela, indiferente e eterna, dum lado, e os

sofrimentos humanos e a finitude da nossa vida, cria, sobretudo, o terror

e desconcerto, que repentina e inexplicavelmente se apodera das almas

das pessoas:

Está um tempo magnífico. Cheira a feno e a algo mais, muito

agradável. Vejo o muro ameado, as arvorezinhas sonolentas e esquálidas junto à janela, a estrada, a faixa escura da mata;

no céu, há uma lua tranquila, muito brilhante, e nenhuma nuvem. Quietude, não se move nenhuma folha. Tenho a impressão de que tudo me olha e presta atenção, à espera de

que eu comece a morrer. (152)

A natureza, em Tchékhov, aparece com frequência para lembrar-nos

da morte.

O insuportável terror, experimentado por Nikolai Stepánovitch, é tão

irracional, inexplicável, sem origem conhecida e por alguma razão se

apodera imediatamente de todos, que ao leitor se comunica a atmosfera

maligna, quase mística.

O quinto capítulo contrapõe-se a toda a novela restante tanto pela

posição principal, com que se faz a narrativa, (apenas sensações,

57

Disponivel em: http://www.anton-chehov.info/v-gostyax-u-dedushki-i-babushki.html

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sentimentos), quanto pela disposição de espírito comunicada ao leitor,

para além do ritmo e do léxico.

Seguindo as leis do género místico, a atmosfera de inexplicável

terror aumenta:

Dá medo. Fecho a janela e corro para o leito. Apalpo o pulso e,

não o encontrando no braço, e todas essas minhas partes estão frias, pegajosas de suor. A respiração torna-se cada vez mais

rápida, o corpo me treme, todas as entranhas estão em movimento, no rosto e na calva há uma impressão como se

uma teia de aranha pousasse sobre eles (152)

Sigo a minha mulher, ouço o que ela me diz e, perturbado, não compreendo nada. Nos degraus da escada, pulam as manhãs claras da sua vela, tremem as nossas sombras compridas, as

minhas se enredam nas abas do roupão, sufoco e tenho a impressão de que algo me persegue e quer agarrar-me pelos ombros. “Vou morrer neste instante, aqui na escada”, penso.

“Neste instante”...(153)

Meu deus, que medo! Eu tomaria mais água, mas agora, dá medo

abrir os olhos, e eu temo levantar a cabeça. O meu terror é inconsciente, animal, e não posso de modo nenhum compreender por que me espera uma dor nova, ainda não experimentada?

(153)

Também o léxico é bem característico:

terrível minha alma está opressa por tamanho horror o reflexo sinistro e enorme de um incêndio

Dá medo teia de aranha escondo a cabeça sob o travesseiro

tenho sentimento de que a morte acercar-se-á de mim sem falta por trás, devagarinho meu deus, que medo!

Está gemendo ou rindo algo me persegue e quer agarrar-me pelo ombros um uivar de cão

um pio de coruja os pressentimentos as profecias

range o portão do jardim alguém se esgueira ali as faixas de luar

o rosto pálido, severo e fantástico devido ao luar, como que de mármore

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Os numerosos pronomes indefinidos acrescentam mistério. O

português “alguém” e a pergunta “quem é?”, infelizmente, não

transmitem o caráter entrecortado dos sons da frase russa "не то, не то"

(nie-tó, nie-tó: nem bem, nem bem; para o que contribui a consoante

dura “t”), do repetido pronome "опять...опять" (opiát´... opiát´:

novamente), dos pronomes indefinidos "кто-то, что-то" (któ-to, chtó-to:

alguém, algo, respectivamente; para o que contribuem as consoantes

mudas “k” e “ch”) e da pergunta "кто там?" (quem está aí?), consonante

com eles; esses sons entrecortados suscitam associação com as batidas

aceleradas do coração (que, em português, podem representar-se pela

onomatopéia tuc-tuc) e fazem o leitor experimentar quase fisicamente, no

subconsciente, as mesmas emoções das personagens.

Repete-se com frequência o som “ô”, quase sempre na sílaba da

consoante dura t:

Acima do teto, alguém está gemendo ou rindo... Presto

atenção. Decorrido um tempo, passos ressoam na escada. Alguém vai apressadamente para baixo, depois [vem]

novamente para cima. Pouco depois, os passos tornam a ressoar embaixo; alguém pára junto à minha porta e fica à

escuta. -Quem é? - grito. (153)

No original:

Наверху за потолком кто-то не то стонет, не то смеётся... Прислушиваюсь. Немного погодя на лестнице раздаются шаги. Кто-то торопливо идёт вниз, потом опять наверх.

Через минуту шаги опягь раздаются внизу : кто-то останавливается около моей двери и прислушивается. -- Кто там? -- кричу я.58

Tal qual nos capítulos anteriores, quase todos os verbos, aqui, se

empregam no tempo presente, mas, desta vez, eles acentuam não a

repetitividade do que ocorre, mas um brusco retardamento do tempo,

como se quisessem fixar cada instante. O tempo quase para.

58 A. Tchékhov, Moscou,1977, p.301

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Um silêncio de morte, um silêncio tal que, segundo de expressou certo escritor, até zune nos ouvidos. O tempo passa

devagar, as faixas de luar sobre o parapeito da janela não mudam de posição, como que petrificadas... Ainda falta muito

para o amanhecer. (154)

Silêncio, imobilidade da natureza e do tempo, que lembram a “paz

eterna”, e, em contraste com isso, vêm as palavras:

apressadamente, pulam,

persegue, quer agarrar-me, empurra, de repente,

cada vez mais rápida, o corpo me treme, todas as entranhas estão em movimento.

Cria-se a impressão de que as personagens, tomadas de terror,

tentam, com ajuda da vanidade (суетa), sons e lágrimas, romper essa

imobilidade de morte e apressar o tempo, que fora detido.

Produz-se o ritmo intermitente com as frases curtas dos diálogos e

os numerosos sinais de pontuação (assim, em quatro páginas, as

reticências usam-se 40 vezes, o ponto de exclamação 13, e o de

interrogação 20).

Que fazer? Chamar a família? Não, não é preciso. (152)

-Ah, meu Deus...ah, meu Deus! - balbucia, entrecerrando os

olhos por causa da nossa vela. - Não posso, não posso...(153)

- Mas ajude-a, ajude-a! - implora minha mulher. - Faça alguma coisa! (154)

- Desculpe – diz ela. - De repente, não sei por que, tive um sentimento intoleravelmente penoso... Não pude suportar e

vim para cá... Havia luz na sua janela, e... eu resolvi chamá-lo... Desculpe... Ah, se o senhor soubesse como era penoso o que senti! O que está fazendo agora? (155)

A lógica e a razão tornam-se impotentes, ninguém consegue

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compreender o que se passa com elas, e no texto repetem-se as mesmas

frases:

não sei por que perturbado, não compreendo nada

não compreendo eu não sei

eu não compreendo nada, não sei não sei por que

A incompreensão, que chega até ao pânico, é transmitida pela

quantidade de orações interrogativas:

Por que essa impressão? (152)

Que fazer? Chamar a família?(152)

será porque eu quero viver, ou porque me espera uma dor nova, ainda não experimentada? (153)

Quem é? ...O que você tem?(153)

E, embora Nikolai Stepánovitch, por hábito recorrendo à lógica para

salvação, tente explicar uma coisa ou outra, ele não o consegue, e as

explicações não lhe satisfazem.

Como que de propósito, ressoa de repente em nosso pátio um uivo de cão, a princípio suave e indeciso, depois sonoro, a duas

vozes. Nunca dei importância a tais augúrios como um uivo de cão ou um pio de coruja, mas agora o meu coração comprime-

se numa tortura, e eu procuro explicar a mim mesmo esses uivos. “Bobagem...”, penso eu, “influência de um organismo sobre

outro. A minha acentuada tensão nervosa transmitiu-se à minha mulher, a Lisa, ao cachorro, eis tudo... Essa transmissão

explica os pressentimentos, os profecias...”(154)

À diferença dos capítulos precedentes, aqui não se encontram sinais

de manifestação física da doença, e apenas o silêncio, a imobilidade e a

magnificência da noite enluarada dão à personagem a sensação de que a

morte está próxima.

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Não sei por quê, tenho a impressão de que vou morrer no

mesmo instante. Por que essa impressão? No corpo, não há nenhuma sensação que indique um fim próximo, mas a minha alma está opressa por tamanho horror, como se eu tivesse visto

de repente o reflexo sinistro e enorme de um incêndio. (152)

Como motivos dominantes, que atravessam todo o texto da novela,

os temas principais — morte, medo, doença, tempo — concentram-se

maximamente neste capítulo; no entanto, nós não encontramos, aqui,

nem longas reflexões monótonas, nem os acontecimentos constantemente

repetidos nos capítulos anteriores, os quais suscitam crescente irritação a

Nikolai Stepánovitch: aquilo que lhe parece falsidade, maledicência e

cinismo. Os sentimentos direcionados para o subconsciente vêm ao de

fora. As pessoas vêem-se cara a cara com a própria vida, com uma força

independente delas, e tal força, ao aproximá-las maximamente, obriga-as

a ser maximamente sinceras, a ser elas próprias. E elas, alheias umas às

outras, vivendo cada qual no seu “estojo”, experimentam um estado

comum a todas: o de terror e incompreensão. Advém uma aguda

necessidade uma da outra. Ademais, o que se passa com elas, é tão

próximo da natureza, irracional e independente dos seus pensamentos,

que as aproxima daqueles para quem essa força estranha e

incompreensível é natural: os animais e as crianças. O autor sugere isso

com alguns pormenores: o uivo dum cão ajunta-se às perplexidades

humanas:

Como que de propósito, ressoa de repente em nosso pátio um uivo de ção, a princípio suave e indeciso, depois sonoro, a duas

vozes. (154)

Não à toa, Nikolai Stepánovitch define o seu medo como um “terror

inconsciente, animal”. Tal estado obriga as personagens a

inconscientemente voltarem ao passado, quando o seu amor mútuo era

natural e sincero, àqueles minutos em que os filhos eram pequenos.

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O tempo não somente retarda o seu curso e detém-se, senão

também inicia uma contagem decrescente: Nikolai Stepánovitch, de

repente, vê os seus entes próximos tais quais eles se haviam conservado

na sua memória.

Vendo -me, solta um grito e atira-se ao meu pescoço.

- Meu bondoso papai...- soluça -, meu bom papai... Meu pequenino, meu querido... Não sei o que há comigo... É

penoso! Abraça-me, beija-me e murmura palavras carinhosas, que eu

lhe ouvia quando era ainda criança. (153-154)

Procuro cobri-la, minha mulher dá-lhe de beber, e ambos

ficamos acotovelando-nos junto ao leito; o meu ombro empurra o seu, e nesse momento vem-me à memoria como outrora

demos banho, juntos, aos nossos filhos.(154)

As suas sobrancelhas se levantam, brilham-lhe os olhos de

lágrimas, e todo o seu rosto se ilumina, como que por uma luz, por uma expressão conhecida, há muito não vista, de

confiança. (155)

Liza, dirigindo-se ao pai, chama-lhe "крошечка" (pequerrucho),

como os adultos podem dirigir-se a crianças.

...meu bom papai... Meu pequenino, meu querido (153) Palavras de amor, proximidade, união (meu, nossos) e confiança são

um poderoso contraste com o léxico recém-usado de medo, pânico e

incompreensão. Como se a vida desse às personagens mais uma

possibilidade de compreender, mudar algo e superar o alheamento

espiritual de todas.

Contudo, o instante mágico esvai-se, e tal esperança desaparece;

tudo retorna aos mesmos círculos, e as personagens, como antes, não são

capazes de ouvir umas às outras.

Nikolai Stepánovitch, com dizer "não compreendo nada, não sei, e

só posso balbuciar", pensa se não é o caso de passar uma receita e não o

faz, e simplesmente espera que os gemidos acima do teto silenciem.

Parece-lhe que também Kátia, ao oferecer-lhe uma quantia, não ouve uma

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alusão à morte próxima, quando ele diz que o dinheiro agora é inútil para

ele. E ele “não logra” dizer-lhe “adeus”.

O quinto capítulo, por muitos meios linguísticos, sobressai

claramente de toda a novela. Ele não apenas está construído sobre

contrastes (beleza e medo, sombra e luz, solidão e proximidade, paz e

pânico), como também está fartamente saturado de símbolos, tanto

alguns já encontrados nos capítulos anteriores, quanto outros que

aparecem pela primeira vez.

Esse é, sem dúvida, o centro culminante, e o facto de a culminação

da novela representar a chegada de sensações humanas ao grau máximo

de intensidade, sem nenhuma reflexão racional e sobre o pano de fundo

da paz absoluta e da beleza serena e indiferente da natureza, revela que é

precisamente nessa contradição que se encerra a principal ideia de toda a

obra.

O sexto capítulo, por sua vez, divide-se distintamente em duas

partes. Se a primeira delas toma um atalho de volta e, estilística e

semanticamente, nos devolve ao estado de espírito dos primeiros

capítulos, então a segunda parte, indubitavelmente, leva-nos a uma “noite

de pardais”.

O pano de fundo básico do sexto capítulo é o completo

ensimesmamento espiritual e a indiferença; a monotonia como que tem

como moldura duas cenas emocionais: a tensão anterior do quinto

capítulo e a chegada de Kátia.

Transcorreu fora do texto dos apontamentos algum lapso de tempo,

e de novo mudou o espaço. Se o primeiro centro composicional

compreende a vida costumeira e cotidiana na cidade e o segundo é a vida

na datcha, repetida anualmente, o terceiro (Khárkov), por sua vez, é uma

circunstância completamente nova, que surge pela primeira vez.

Para a personagem, porém, já nenhuma mudança tem sentido e

apenas aprofunda a sua solidão.

Se é para viajar para Khárkov, viajemos. Ademais, abso-

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lutamente tanto faz para onde viajar, para Khárkov, Paris ou Bierditchev. (156)

A viagem a essa cidade é citada no primeiro:

-Em suma, Nicolai Stiepánovitch, você deve sem falta fazer uma viagem a Khárkov.... -Se você quer, vá lá, irei a Khárkov. (130)

E no segundo fragmentos composicionais:

...enquanto o tempo está quente e há tempo livre, viajar até

Khárkov... - Está bem, irei... - concordo. (148)

A viagem, contudo, realiza-se no terceiro; ademais, toda a ação do

capítulo transcorre no quarto dum hotel de Khárkov. O capítulo inicia-se

com uma frase curta:

Estou em Khárkov. (156).

A viagem é feita contra a vontade dele, por razões “formais”, pelo

sentimento de dever e vergonha em relação à família, e vem a ser um

completo malogro — tarde de mais.

A atmosfera é ainda mais penosa e “enfadonha” do que nos

primeiros capítulos; a solidão aprofunda-se e salienta-se pelo epíteto

чужой (estranho, alheio, dos outros), usado mais de uma vez. No texto

original, as frases soam idênticas, reforçando a sensação de tristeza e

solidão:

Сижу я один-одинешенек в чужом городе, на чужой кровати... ...сижу в этом маленьком нумере, на этой кровати с чужим,

серым одеялом...

но все это не помешает мне умереть на чужой кровати, в тоске, в совершенном одиночестве... 59

Na tradução brasileira, com a troca de alheio pelos sinônimos

estranho e que não é meu, tal efeito quase todo se perde:

59 A. Tchékhov, Moscou,1977, p.p.305-306

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Estou sentado sozinho numa cidade estranha, sobre uma

cama estranha... (157)

...mas nada disso impedirá de morrer numa cama alheia,

angustiado e completamente só...(158)

estou sentado neste pequeno quarto de hotel, sobre esta cama, com um cobertor cinzento que não é meu... (157)

Na alma da personagem, há um completo vazio; ela é indiferente

até ao tempo, que passa devagarinho; ela escuta o bater do relógio, que

dá as horas uma após a outra; ela nota o começo da dor na face, mas já

nada a toca; ela espera apenas as manifestações da doença e a morte.

O relógio do corredor bate uma hora, depois duas, três...Os

meses derradeiros da minha vida, enquanto espero a morte, parecem-me bem mais compridos que toda a minha existência

anterior. E, antes, eu nunca soube conformar-me como agora com a lentidão do tempo. Outrora, esperando o trem numa

estação ou sentado fazendo exame, um quarto hora parecia uma eternidade, mas agora sou capaz de passar a noite inteira imóvel na cama e pensar com absoluta indiferença que,

amanha, haverá uma noite igualmente comprida, incolor, e depois de amanhã... No corredor, betem cinco horas, seis, sete... Sobrevém o escuro. (156)

No trecho sobrecitado, a comparação a um passageiro que espera

por um trem faz-nos lembrar a caracterização de Kátia pelo professor no

segundo capítulo:

A expressão atual é fria, indiferente, distraída, como a dos passageiros que precisam esperar muito tempo o trem. (124)

Repetem-se, novamente, alguns motivos já encontrados antes. O

estado de insônia leva-nos de volta ao início do primeiro capítulo. Para

Nikolai Stepánovitch já não tem importância se é noite ou dia. Para ele, a

insônia como tal perde o seu significado principal e as suas coordenadas

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temporais e configuração, uma vez que preenche consigo todo o tempo,

propagando-se e distendendo-se em todas as direções. Esse é o único

capítulo em que não soa a palavra insônia, como se também ela tivesse

perdido o sentido; dão-se somente os seus indícios e sinais

característicos:

Noite igualmente comprida, incolor (157) Quando amanhece, estou sentado na cama, abraçando os

joelhos...(158)

O único acontecimento importante de enredo, em toda a novela —

a fuga de Liza com Hnekker e o seu secreto casamento — permanece “nos

bastidores” e sequer é comentado; Nikolai Stepánovitch, que vem a saber

disso por um telegrama, assusta-se um instante não com o ocorrido, mas

a sua própria indiferença, e profere a si uma sentença:

Dizem que os filósofos e os sábios autênticos são indiferentes. Não é verdade, a indiferença constitui uma paralisia da alma, a morte prematura. (158)

Já não há sentimentos, e ele novamente volta aos seus

pensamentos, a todas aquelas mesmas reflexões, à sua “rabugice”: a

contradição entre o nome famoso e o homem, a filosofia dos estóicos, a

mundividência do bárbaro e do escravo, a insatisfação com as más

condições etc. E, sobre o fundo de tudo isso, é dessas reflexões que vem

a conclusão de que a causa do que acontecera, fora a falta duma ideia

geral na sua vida.

Como já afirmámos, a “ideia geral” é reconhecida por muitos

críticos, tanto da época quanto de hoje, como a ideia principal da novela,

mas, como não foi dito concretamente o que se entendia e se entende por

tal conceito, as opiniões dos estudiosos chegam a divergir completamente

e vêm à baila variantes sociais, ideológicas, filosóficas, religiosas... Há a

opinião de que os pensamentos acerca duma “ideia geral” não passam de

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sintoma do estado doentio da personagem (V. Kataev, M.Smirnov,

Doljenkov).

Para os dois primeiros, o pensamento acerca duma ideia geral é

mais uma “tergiversação” do professor consigo próprio, uma tentativa de

salvar-se do que não consegue penetrar . Tchékhov, salientando mais de

uma vez o modo “individualizado” de a Medicina encarar cada

personalidade humana, simplesmente não podia ter em mente uma ideia

concreta, comum a todos.

Nikolai Stepánovitch sentiu a necessidade de algum dogma salvador

apenas em face da morte, quando a moléstia já o fizera esquecer a ciência

e o trouxera de volta à vida corriqueira do dia a dia. Uma “ideia geral”,

assim, poderia tornar-se uma justificação da vida passada e propiciar um

modo tranquilizador de encarar a morte inelutavelmente cada vez mais

próxima. Ele não nota que já experimentara várias posições diante da vida

— os maus pensamentos do Araktchéiev e a indiferença — refutando

sucessivamente tanto uma como a outra. Para V. Katáev, com isso a

personagem é simpática ao leitor. Ideias gerais do tipo “trabalha” ou

“conhece-te a ti próprio” também se revelam inaceitáveis para ele, bem

como a doutrina populista e o ensinamento tolstoiano lhe são

completamente alheios. A filosofia de Marco Aurélio, sob cuja influência o

professor estivera durante muitos anos, também deixara de satisfazer-lhe.

“Conhece-te a ti mesmo” - eis um belo e útil conselho; dá pena, porém, que os antigos não tenham adivinhado como indicar o meio de utilizá-lo. (158)

Também lhe é alheia a resignação cristã, e "o deus do homem vivo",

para ele, não é o deus de Tolstói. Até a Ciência, que antes fora para ele

mais importante e essencial do que todas as influências externas, cessara

de ser a força salvadora, otimista. E as amarguras, sofrimentos e dúvidas

de pessoa viva acabaram por vencê-lo. Com isso se exauria o círculo das

“ideias gerais”, por que se poderia nortear a personagem de Tchékhov.

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Desse modo, nenhuma “ideia geral”, se por isso entendermos uma filosofia ou crença que muna [a pessoa] com um

programa de comportamento inconsútil e corresponda, em todas as situações da vida, a elevadas exigências intelectuais e morais, não poderia satisfazer ao professor, tal como pintado

por Tchékhov .60

Em polêmica com V. Katáev, V. Linkov escreve que os pensamentos

de Nikolai Stepánovitch acerca duma “ideia geral” não são sintomáticos,

mas da sua essência e não a afastam da sua real situação e, pelo

contrário, nascem das profundezas do seu ser e desvelam-lhe a realidade

na sua verdadeira tragicidade. Esses não são temas, em que se possa

pensar ou não pensar, como, por exemplo, teatro e literatura, mas

gerados pela própria vida.

As amarguras e tristezas dos últimos dias de vida levaram

Nikolai Stepánovitch a eles. Uma “ideia geral” não é um conceito abstrato e lógico, mas expressão duma profunda experiência da personagem.61

Ao citarmos a polêmica acerca dessa questão, salientamos dois

aspectos: em primeiro lugar, que Nikolai Stepánovitch menciona colegas-

filósofos, quando fala duma ideia geral:

Foi somente pouco antes da morte, no ocaso dos meus dias, que notei em mim a ausência daquilo que os meus colegas

filósofos denominam uma idéa geral (161)

Quer dizer, ele tem em mente, apesar de tudo, um conceito lógico e

abstrato.

E, em segundo lugar, o modo como ele próprio caracteriza o seu

estado naquele instante:

Para me ocupar com pensamentos, coloco-me no meu ponto de

60

V.Kataev

61 V.LINKOV, Moscou, 1982, p.67-68.

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vista anterior, quando não era indifirente a tudo...(157)

Torno a deitar-me e começo a conjeturar sobre os pensamentos com que poderia ocupar-me. Pensar em quê? Parece que já pensei em tudo e que não há nada capaz de

suscitar agora o meu pensamento.(158)

Quando amanhece, estou sentado na cama, abraçando os joelhos, e, não tendo o que fazer, procuro conhecer a mim mesmo... Quando, em outros tempos, dava-me na veneta compreender alguém ou a mim mesmo, eu examinava não ações, em que

tudo é convencionado, mas os desejos. Dize-me o que desejas, dir-te-ei quem és. Também agora, faço um exame a mim mesmo: o que eu

quero? (159)

A personagem assume a opinião anterior e por não ter que fazer

começa a examinar-se, e chega à conclusão de que, na sua vida, não há

algo principal, que seria o mais importante. Essa posição anterior é tão-

somente mais uma tentativa de salvar-se com o retorno a vivências

conhecidas. A falta de algo de que Nikolai Stepánovitch tem uma vaga

sensação, não está no campo das ideias. No nível da consciência duma

personagem limitada por ideias rigorosamente científicas acerca da vida,

resolver o problema que se lhe apresenta, é impossível; para tal, para

além de conhecimentos científicos, exigir-se-ia também experiência

humana espiritual.

Se olharmos as inúmeras personagens do mundo tchekhoviano,

poderemos notar que todas as dotadas duma mundividência consolidada e

variadas “ideias gerais”, são tão pouco simpáticas ao escritor e ao leitor,

quanto aquelas, cuja singela mundividência consiste no aproveitamento

tosco do que a vida lhes possa oferecer, na falta de necessidade de vida

espiritual (Hnekker); a posição didática das primeiras frequentemente

revela-se ilusória e sempre desagradável — Lida (“A casa de mezanino”),

doutor Lvov (“Ivánov”), von Koren (“Duelo”) e, em “Uma história

enfadonha”, Piotr Ignátitch. E isso embora a própria ideia possa ser cara

ao escritor, como, por exemplo, a construção de escolas e hospitais para

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pobres, propagandeada por Lida. Já as personagens que procurem,

tenham dúvidas, sofram e, principalmente, as que percebam a vida sem

nenhuma base ideológica, expressa de forma verbal, são espontâneas,

como se nas suas veias circulasse o sangue da natureza, como o diácono

e Samóilenko (“Duelo”), Dýmov (“Ventoinha”) e Míssius “A casa de

mezanino”), e um tanto infantilmente ingénuas e despertam simpatia e

interesse. A falta de explicações da parte do autor para o que

representaria uma ideia geral, está na indefinição e ilusoriedade da

própria existência dela.

E o principal, a nosso ver, é que o pensamento acerca duma

ideia geral não é salientado de nenhum modo, nem pelo estilo, nem

pelo ritmo, nem pelo léxico, nem por símbolos, e não se encontra, nas

posições fortes do texto (início, final e subtítulo), não há os “ganchos’

(pretextos), sinais, sugestões e o subtexto, por meio do qual o autor “se

manifeste”, aguçando a consciência e o subconsciente do leitor para os

aspectos que julgue especialmente importantes. O pensamento acerca

duma ideia geral, expresso verbalmente, existe no fluxo das reflexões

monótonas, “enfadonhas (tediosas!), do professor, que caracterizam só a

ele próprio.

A última cena da novela, aparentemente, repete uma situação do

quinto capítulo: a personagem encontra-se sozinha, o surgimento

inesperado de Kátia, a sua histeria e pedido de ajuda, que lembram a

histeria e o pedido de ajuda de Liza, o alheamento e incompreensão, a

saída de Kátia e a palavra “adeus”. No entanto, fazendo variar uma

situação conhecida, o autor apresenta-a por um ângulo de visão

completamente novo. Com o surgimento de Kátia, mudam

instantaneamente o ritmo e o léxico, levando-nos de volta à “noite de

pardais”. Em lugar de frouxas reflexões em fluxo lento, lê-se:

Apresso-me surpreso de repente ela se ergue num arranco

ofegante, o corpo todo trêmulo Cai sobre uma cadeira e põe-se a soluçar.

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Agarrando-me a mão e beijando-a jogou a cabeça para trás, estrala os dedos, bate os pés

implora

No vocabulário desse trecho, há muito movimento, real e figurado,

desordenado, caótico, destruidor, e ele é salientado pelos verbos "падать"

(cair) e "валиться" (tombar de cansaço; desabar):

caiu do céu cai sobre uma cadeira

caiu-lhe da cabeça que lhe caem dos joelhos

a voz caída

O ritmo é intermitente; no texto, reaparece novamente uma grande

quantidade de sinais de interrogação e de exclamação e reticências-

pausas, que tanto mais lembram os procedimentos dramatúrgicos de

Tchékhov, e a cena é um diálogo mais parecido a diálogos.

Intensificam-se as pausas, expressas pela reticência e pela palavra

"молчание" (silêncio), repetida três vezes em duas páginas.

E da indiferença da personagem não sobra nem vestígio:

Estou perplexo, confuso, comovido por aqueles soluços, e mal me seguro sobre as pernas.(161)

E logo acrescento, a voz caída:

- Em breve, deixarei de existir, Kátia (161)

Kátia não lhe pede uma ajuda real; ela precisa de palavras:

Ao menos uma palavra, ao menos uma palavra! (161)

Já para ele, as palavras perderam já o seu valor, sentido e utilidade,

ele não consegue já dizer hipocrisias. E, em lugar disso, Nikolai

Stepánovitch repete duas vezes uma mesma frase:

- Vamos almoçar , Kátia. (161)

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Ele como que tenta recuperar a simplicidade de antes, as relações

de antes, por meio dum gesto simples, corriqueiro e amigável, o desjejum

a dois, que para ele, naquele momento, se torna mais importante do que

quaisquer ideias e palavras.

O frio exalado por Kátia, a pessoa mais querida dele e que de

repente se tornara uma estranha (чужая), como se se tivesse colocado do

lado dessa cidade estranha (чужой) e da cama de estranhos (чужая), é

um pormenor muito simbólico.

responde ela com frieza, tendo sorrido com frieza tem a mão fria como que alheia

E podemos voltar ao terceiro capítulo, para sentirmos a trágica

diferença existente entre o jantar em família de antes e o desjejum de

agora, que não aconteceu:

A seguir, sentamo-nos na saleta aconchegante e começamos a conversar. A tepidez, o aconchego do ambiente e a presença de uma pessoa simpática. (131)

São paralelos os episódios do final dos capítulos 5 e 6:

incompreensão, alheamento, afastamento de Kátia, o “adeus” não

pronunciado da personagem. Mas, se no final do quinto, o afastamento de

Kátia era temporário, o “adeus” não era necessário e Nikolai Stepánovitch

não tivera tempo de dizê-lo, então agora, no sexto, Kátia afasta-se para

sempre e o mudo e não pronunciado “adeus” adquire um profundo

significado simbólico de síntese. Kátia vai-se, como vai-se a própria vida,

e o professor acompanha-a com os olhos, com a derradeira esperança de

que ela olhe para trás ao menos uma vez. E a esperança é desmentida:

Tenho vontade de perguntar: “Quer dizer que não virá ao meu enterro?” Mas ela não me olha, tem a mão fria, como que

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alheia. Acompanho-a calado até a porta... Ei-la que saiu do meu quarto e caminha pelo corredor comprido, sem olhar para

trás. Sabe que a sigo com os olhos, e, provavelmente, voltar-se-à na curva. Não, não se voltou. O seu vestido negro apareceu pela útima

vez, não se ouviram mais os seus passos... Adeus, meu tesouro!(162)

Com pormenores simbólicos — os passos de Kátia e o seu vestido

— fecha-se o círculo da sua primeira aparição no texto :

eu ouço passos conhecidos, um frufru de vestido, uma voz querida...

(117),

até à despedida final dos dois.

O final da novela impressiona pelo seu saturamento emocional e

simbólico. O estilo é elevado e contido. Nos minutos mais trágicos e de

mais emoção, a mudez das pessoas torna-se a única forma possível de

expressão.

Tem-se o mesmo tempo passado dos verbos, mas, tal qual na noite

de pardais, eles distendem cada instante, como se num desejo impossível

de reter o tempo. E, pela primeira vez, surgem repentinamente verbos do

aspecto perfeito no tempo passado, que repetidas vezes reforçam a

tragicidade — "не оглянулась" (não se voltou), "мелькнуло" (apareceu

pela última vez), "затихли" (não se ouviram) — para sublinharem que

esses tão preciosos minutos já pertenciam ao passado.

A última palavra do texto, "сокровище" (“tesouro”), é inesperada no

vocabulário da personagem. A sua etimologia remonta ao verbo

"скрывать" (“ocultar”). "Сокровище" é algo muito valioso, oculto,

guardado. Pelo conteúdo fonético, associa-se com "кровь" (“sangue”)

movimento, pulsação de vida. E a última frase, a única frase dirigida em

pensamento a Kátia, semelhante à “Míssius, onde estás?”, frase que fecha

o conto “A casa de mezanino”), torna-se também simbólica e de síntese.

Nikolai Stepánovitch despede-se não apenas de Kátia: ele despede-se

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também da vida, com o que possuía de valioso e secreto e com o que

deixara de enxergar ou perdera, com o que Kátia deixara de enxergar ou

perdera.

O mais profundo e complexo não se presta a análise lógica, a

reflexões e conclusões; a natureza dessa tragicidade é inexplicável. E a

força poética desse final é muito mais demolidora e impressionante do que

meditações acerca duma “ideia geral”. É precisamente no final que a voz

da personagem é mais consonante com a voz do autor.

4.4 Simbologia

Antes de passarmos à análise de episódios das recordações, nós nos

deteremos brevemente em particularidades da simbologia tchekhoviana e

no papel da música na novela.

... o sentido, transferido dum objeto a outro,

funde-se a esse segundo objeto de modo tão profundo e multilateral, que se torna já impossível dissociar um do outro. O símbolo,

nesse sentido, é a completa interpretação da figuratividade ideológica da coisa com a própria

coisa.62

Pela primeira vez, falou-se do símbolo em relação a Tchékhov por A.

Biélyi, no artigo “Tchékhov” (1907). Escreve ele que, a par da continuação

da tradição realista, na base da obra do autor de “Uma história

enfadonha” foi “colocada a dinamite do verdadeiro simbolismo”63.

Comparando Tchékhov e M. Meterlink, na coletânea de ensaios “Луг

зеленый" (“Prado verdejante”), Biélyi observa que os símbolos

tchekhovianos são mais sutis, translúcidos e menos premeditados. Eles

personificam-se por inteiro no real, integrando-se completamente à vida.

Tal especificidade da simbologia tchekhoviana é estudada por A.

62

Disponível em: (https://unotices.com/book.php?id=32161&page=11)

63 A.TCHÉKHOV. Pro et contra, 2002, p.831.

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Tchudakov:

... o objeto simbólico de Tchékhov pertence logo a duas

esferas, a “real” e a simbólica, e a nenhuma delas em mais alto grau do que à outra. Ele não brilha com uma luz sempre

igual, mas cintila, ora com a luz simbólica, ora com a “real”...64

A simbólica artística de Tchékhov existe tanto no sistema mundial

quanto no propriamente autoral (tem-se em mente o facto de Tchékhov

haver utilizado símbolos universalmente aceitos e criado os seus

próprios). Muitas imagens, embora pertençam aos símbolos universais da

arte mundial (Lua, Sol, luzes), ao entrarem no mundo artístico dele,

adquirem uma especificidade, determinada pela concepção da obra e do

olhar do autor. Não raramente, os pormenores-símbolos transitam duma

obra a outra ou, então, repetem-se mais de uma vez num texto e, às

vezes, existem como imagens isoladas. No conjunto dessas podem

incluir-se objetos caseiros ou roupas, animais, aves, a natureza, cheiros,

acidentes geográficos, o estado das personagens etc.

Às vezes, os símbolos formam pares de antónimos (quente-frio,

úmido-seco, fresco-abafado) ou grupos de coisas de significado próximo

(secura, abafo, mediocridade, falta de cultura, pó). Nesse caso, pela

interação de diversas figuras semânticas, surgem correspondências

figuradas, que as trasnformam em símbolos. Assim, por exemplo, em

“Uma história enfadonha”, “sapos” são referidos duas vezes e apenas no

contexto dum ar “envenenado” pela maledicência.

Em consequência das falas maldosas, o ar torna-se mais

denso, mais abafado, envenenado agora pela respiração não de duas rãs, como no inverno, mas de todas as três. (151)

Às vezes, o significado dos símbolos varia ou torna-se o oposto;

ocorre, pela definição de P. Doljenkov, o “envelhecimento-apagamento do

64 A.TCHUDAKÓV. Moscou:”Nauka”, 1971. p.172

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signo”. Isso manifesta-se especialmente quando a personagem recorre a

lembranças. Um exemplo disso podem ser as imagens do jardim e das

reuniões à mesa, na comparação do presente e do passado de Nikolai

Stepánovitch.

Nós já nos detivemos nos símbolos mais significativos da novela

(“tédio” e “insônia’), contudo, o autor usa muitos outros. Sobretudo,

devem citar-se figuras/imagens da natureza (céu, Sol, Lua e mar), que

estão relacionadas com a infinitude do espaço-tempo, com a liberdade e

uma força inexplicável, sobre a qual o homem mortal não tem nenhum

poder. Em “Uma história enfadonha”, eles estão quase sempre no contexto

de pensamentos acerca da morte e introduzem o motivo da predestinação

da vida.

Quer o céu esteja coberto de nuvens, quer brilhem nele a lua e as estrelas, sempre olho para ele ao regressar para casa, e penso que em breve a morte há de me levar (141) A natureza me parece bela como sempre, embora o Demônio

me murmure que todos estes abertos e pinheiros, pássaros e nuvens brancas no céu, não notarão a minha ausência daqui a três ou quatro meses, depois que eu morrer. (149)

Em seguida, sigo pelo campo, passando pelo cemitério, que

não me causa absolutamente nenhuma impressão, embora em breve eu me deite nele; passo depois por um bosque e

atravesso novamente o campo. (143)

Nessa mesma série da simbólica natural, podemos examinar

também o motivo do jardim, um dos motivos básicos na obra de

Tchékhov. O jardim é o paraíso terrestre, via de regra perdido, arruinado

(“O jardim das cerejeiras”), e o seu destino sói tornar-se um protótipo da

vida das personagens: a bela floração dura breves instantes, e àquelas

resta apenas recordá-los. Ou, então, personifica o conflito entre o

corriqueiro da vida e o espiritual, e é assim que se examina o paralelo

entre o paraíso terrestre e o celeste na novela “O monge negro”; a

perturbação da harmonia entre eles leva à morte da natureza e das

pessoas.

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Em “Uma história enfadonha”, o jardim do seminário do jovem

Nikolai está ligado com as esperanças, os sonhos dourados e o futuro

aberto para ele. No tempo presente, quando o professor escreve os seus

apontamentos, a figura do jardim, agora já o da universidade, torna-se

um mísero arremedo da anterior. No primeiro fragmento composicional,

ele é apresentado como uma reunião de arvoretas mirradas e de aspecto

desalentador:

E eis o nosso jardim. Parece que não está melhor nem pior

que no meu tempo de estudante. Não gosto dele. Seria muito mais intelligente se, em lugar das tuberculosas tílias, das

acácias amarelas e dos lilases ralos, aparados, crescessem aqui altos pinheiros e bons carvalhos. (107)

no segundo, apenas como um pequno jardim à frente da casa:

Видны мне зубцы палисадника, сонные тощие деревца у

окна.65

Vejo o muro ameado do meu jardim, duas ou três

arvorezinhas esquálidas. (145)

e no terceiro, quando já não restam nenhumas esperanças, não há

referências a nenhum jardim.

A Lua modifica o mundo real e acrescenta-lhe o que é do Além, o

eterno, e a ela está ligado não apenas o elemento natural, senão também

o elemento da alma humana e as manifestações desta, como o amor, o

ódio, o medo e a tristeza (tédio), que frequentemente não têm causa e

são existenciais. A Lua reflete algo imaginário, enganador, próximo à

morte, e não raramente a sua figura entra em correspondência com a de

“cemitério”:

Abro a janela e tenho a impressão de estar vendo um sonho: embaixo, apertada contra a parede, está uma mulher de

negro, fortemente iluminada pelo luar, e dirige para mim os

65 A. Tchékhov, Moscou,1977, p.294.

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olhos grandes. Tem o rosto pálido, severo e fantástico devido ao luar, como que de mármore, treme-lhe o queixo. -Sou eu...- diz ela. - Eu...Kátia! Ao luar, todos os olhos da mulher parecem grandes e negros, as pessoas, mais altas e mais pálidas, e provavelmente por

isso não a reconheci no primeiro instante. (155)

Encontra-se algo semelhante em “Iónytch” e “A gaivota”, bem como

em muitas outras obras:

Nos primeiros tempos, deixara Startsev estupefato o que ele via agora pela primeira vez e que, provavelmente, não lhe

ocorreria já tornar a ver: um mundo não parecido a nada, um mundo em que era tão bonito e suave o luar, como se aqui fosse o seu berço, onde não havia vida, não e não, mas onde

em cada álamo escuro, em cada sepultura, se sentia a presença dum mistério prometedor duma vida serena, bela,

eterna.66 (O pano sobe, sescortina-se a vista sobre o lago; a lua, no

alto do horizonte, se reflete na áqua; sobre uma grande pedra está sentada Nina Zareétchnaia, toda de branco).67

Da mesma forma, as figuras da água, do ar fresco, da janela

aberta e do oásis simbolizam a salvação, reanimação . Opostos a eles,

estão a secura, o abafo, a mediocridade, a falta de cultura, personificação

da ausência de talento, do tédio, do desespero e da rotina.

A atenção se refrescou, e eu posso continuar (112)

Minha boca se resseca, a voz enrouquece, a cabeça

gira...Para ocultar dos alunos o meu estado, a todo momento bebo áqua...(112)

...o meu pobre anfiteatro aparece-me como um oásis cujo

riacho secou... (147) Acendo depressa a luz, tomo áqua diretamente da jarra,

depois dirijo-me apressado para a janela aberta. (152)

66 A.TCHÉKHOV, Moscou, 1977, p.31. 67

A.TCHÉKHOV, A Gaivota, Sõ Paulo, 2009, p.16.

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É característica do sistema de símbolos de Tchékhov também a

recorrência a figuras do mundo animal. Em relação a isso, sobretudo vem

à memória a famosa peça “A gaivota”. Em “Uma história enfadonha”, nos

apontamentos, Nikolai Stepánovitch menciona aves e animais apenas

especulativamente, se não contarmos um episódio-recordação; eles

comparecem somente como símbolos ou soam em provérbios e num

nome ou outro, salientando quão distante o professor, que vive no mundo

dos seus próprios pensamentos, está da vida natural que o cerca:

o livro “Aquilo sobre o que cantava a andorinha” como se uma abelha me picasse é um cavalo de carga ou, como se diz também, um sábio

obtuso ...continuam a picar-me o cérebro, qual mosquitos. È uma cáfila de selvagens... Tem olhos esbugalhados, de lagosta, a gravata lembra pescoço de lagosta … e sentimentos que não conhecia trançaram seu ninho em minha alma queixo cavalar Um enfado terrível, até as moscas morrem. лисья хитрость (um esperteza vulpina) As moscas também não conhecem a ciência ...ficam sentados aí como duas rãs e envenenam o ar com a

sua respiração? Esses seus alemães são uns burros... ...a galinha Hnekker seja muito mais intelligente que o

professor- águia. Noite de pardal.

As aves reais, mencionadas no texto, não estão à vista; ouvem-se

apenas as suas vozes, sempre ao longe: o canto dum galo, o pio duma

coruja, o uivo dum cão.

Já se o canto matinal do galo traz alívio a Nikolai Stepánovitch e

assoacia-se a renascimento, esperança:

Passa um longo período de tempo penoso, antes que um galo cante no pátio. È o meu primeiro anunciador de boas novas.

(103)

o uivo dum cão e o pio da coruja (mencionados duas vezes no texto), por

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sua vez, são símbolos de pressentimentos funestos e desespero:

Nunca dei importância a tais augúrios como um uivar de cão

ou um pio de coruja. (154) ...comece a ver em cada ave uma coruja, e ouça em cada

som um uivar de cães. (159)

Alguns dos exemplos supracitados são recorrentes e podem

encontrar-se numa série de outras obras.

Assim, na peça “Ivánov”, escrita mais ou menos à época de “Uma

história enfadonha”, Anna Petrovna, que se encontra em estado doentio e

de ansiedade, a única dentre todas as personagens, ouve o tempo todo o

pio duma coruja.

«Anna Petrovna (tranquilamente). De novo está a piar... Chábelskii. Quem pia? Anna Petrovna. Uma coruja. Pia todas as noites” (tradução nossa)

No primeiro ato de “A gaivota”, Sórin fala dum cão que uiva e por causa

de quem “a irmã não conseuira a noite toda conciliar o sono”; esse

pormenor sem significado para o enredo, “casual”, intensifica a atmosfera

de tensão.

Como símbolo do aconchego familiar, de paz, afinidade e atmosfera

amistosa (ou, ao contrário, da falta disso) sóem usar-se coisas do mundo

material como casa (“A casa de mezanino”, “Minha vida”), mesa, de

trabalho ou de refeições, samovar e chá (“Tio Vánia”, “As três irmãs”,

“Três anos”). Em “Uma história enfadonha”, a falta de laços entre os

membros da família é dada pelo desalentador ambiente dos almoços

domésticos, à exceção de dois episódios: a recordação das reuniões

familiares à mesa de antes e o ambiente “caloroso’ dum jantar na casa de

Kátia, no capítulo 3, o qual, no final da novela, torna-se uma recordação,

mais um momento perdido/passado da vida. E, quando Nikolai

Stepánovitch propõe desjejuarem ("vamos almoçar") a Kátia, na

realidade, inconscientemente ele quer restaurar as antigas relações, a

“cordialidade” de antes, e dissipar o “alheio” e o “frio”, que agora emanam

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102

da pessoa querida.

Há mais pormenores: Vária, que reprocha a si a memória curta por

causa dum samovar esquecido, e o mercador ruivo:

- Por que estou aqui sentada? - diz, erguendo-se. - Faz muito tempo que o samovar está na mesa. Tornei-me tão

desmemoriada, meu Deus! (105)

...ali está sentado um comerciante ruivo, um homem muito indiferente, que toma chá de uma chaleira de cobre. (107)

A mesa de trabalho (e a figura dos livros, sempre ligada a ela)

permite às personagens retirarem-se para o seu próprio mundo, encontrar

a paz e o equilíbrio espiritual. No entanto, no estado em que se encontra

Nikolai Stepánovitch, as suas ações tornam-se maquinais e dão o

resultado costumeiro; a tentativa permanece inútil, e não se obtém

nenhum conforto interior.

Passo uma hora ou duas andando de um canto a outro do quarto e examino quadros e fotografias há muito

conhecidos.Quando enjôo de andar, sento-me à mesa (сажусь за свой стол). Permaneço ali imóvel, sem pensar em nada e

não sentindo qualquer desejo; se tenho um livro na frente, aproximo-o maquinalmente de mim e leio-o sem qualquer interesse. (103)

Apetrechar um lugar de trabalho no espaço da sua casa para uma

dada pessoa, como o faz Kátia, é sinónimo de especial confiança e

intimidade.

Acompanha-me a uma saleta muito aconchegante e diz, mostrando uma escrivaninha: -Isto aqui... Preparei para o senhor. Vai estudar aqui. Venha

todos os dias e traga o seu trabalho. Pois lá em sua casa somente o atrapalham. Vai trabalhar aqui? Quer?

Para não magoá-la com uma recusa, respondo-lhe que vou trabalhar em sua casa e que o quarto me agrada muito. A seguir, sentamo-nos na saleta aconchegante e começamos a

conversar. A tepidez, o aconchego do ambiente e a presença de uma

pessoa simpática despertam-me agora não mais um sentimento de praser, como outrora...(131)

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Na peça “Tio Vânia”, o doutor Ástrov tem uma tal mesa na

propriedade dos Voinítskie:

Tenho minha própria mesa nesta casa...no quarto de Ivan Petróvitch. Quando estou totalmente exausto e apático largo tudo, corro para cá e me distraio com esta coisa por algumas

horas...Enquanto Ivan Petróvitch e Sofia Aleksándrovna fazem contas com ábaco, fico sentado ao lado deles na mesa,

fazendo meus borrões. O ambiente é tão aconchegante e tranquilo – e o grilo canta.68

Здесь в доме есть мой собственный стол… В комнате у Ивана Петровича. Когда я утомлюсь совершенно, до

полного отупления, то все бросаю и бегу сюда, и вот забавляюсь этой штукой час - другой… Иван Петрович и

Софья Александровна щелкают на счетах, а я сижу подле них за своим столом и мажу - и мне тепло, покойно, и сверчок кричит.69

É característico que, em ambos os exemplos supracitados, a

atmosfera de conforto e paz (уют и покой) é transmitida com auxílio da

palavra "тепло" (relacionada com carinho, calorosidade). Deixando os

Voinítskie por bom tempo, talvez para sempre, Ástrov fala com tristeza

precisamente da mesa, cuja perda associa-se à perda das únicas pessoas

caras a ele e do ambiente, em que na alma, apesar da decepção e do

tédio, ainda assim brotam a paz e a harmonia:

Faz silêncio. Estala a pena, cantam os grilos. É quente e

acolhedor aqui... Não tenho vontade de partir.70

A dissipação leviana da herança paterna por Kátia, as numerosas e

desnecessárias mesinhas da sua casa e o arrendamento duma datcha com

um grande jardim não trazem harmonia e paz à sua vida e são somente

uma tentativa de fugir à solidão.

68 A.TCHÉKHOV, O Tio Vânia, Em cartaz, São Paulo, 2009, p.101.

69 A. TCHÉKHOV, Moscou,1978, p.94.

70A.TCHÉKHOV, O Tio Vania, Em cartaz, São Paulo, 2009, p.121.

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Os símbolos materiais da mesa, livros, refeição à mesa e chá, que

adquirem sinal contrário, ao falarem de desunião e

alheamento/estranhamento, estão presentes em cada capítulo, à exceção

do quinto, da “noite dos pardais”, no qual se dissipa por algum tempo a

desunião das personagens, embora não se crie uma verdadeira

proximidade.

Há outros objetos que adquirem significado simbólico, como o

relógio, os ganchos que caem do cabelo de Kátia, o roupão da

personagem etc.

Bem constante, recorrente, no sistema artístico de Tchékhov, é a

simbólica das cores, apesar de haver, nesse campo, variações dos

significados dos símbolos.

No todo, na novela “Uma história enfadonha”, observa-se uma

paleta uniforme, acromática: negro, branco, cinzento com algumas

incrustações de manchas coloridas.

O cinzento é próximo, pelo significado, das figuras de secura, abafo

e tédio e simboliza o desalento, a despersonalização e o “estojamento” da

vida.

Tudo é cinzento, medíocre, inflando de pretensão. Uma cidade cinzenta.(162)

E, não por acaso, é precisamente Piotr Ignátievitch, tedioso e

limitado, embora de rara capacidade de trabalho, quem recebe epítetos

desse tipo:

o seu chapéu cinzento este pão torrado (сухарь) escreverá muitos relatórios áridos (сухих) È muito possível que, depois da minha morte, ele seja

nomeado para o meu lugar, e o meu pobre anfiteatro aparece-me como um oásis cujo riacho secou (высох)

Nos três últimos exemplos, o tradutor novamente usa sinónimos,

mas o riginal russo traz palavras do mesmo radical: сухой, сухарь e

высох.

A ênfase na cor cinzenta também se faz indiretamente, por meio

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dum léxico criador duma atmosfera de desalento aborrecido:

O portão sombrio o sombrio dos corredores a luz insuficiente

Do mesmo modo como a palavra "скука" (tédio), a mais usada do

léxico de Tchékhov, esse procedimento é usado pelo autor em muitas e

muitas obras. Assim, em “A dama do cachorrinho”, a concentração de

ociosidade de balneário e desespero é transmitida não só pela marcação

cromática “cinzento” (cerca, tapete, coberta, vestido), como também por

símbolos semanticamente próximos, como pó e abafo .

Na descrição do ambiente da casa de Kátia, Nikolai Stepánovitch

assinala cores esmaecidas, pálidas e opacas, associadas a preguiça mental

e medo à vida, e o temor a cores vivas.

O negro quase sempre simboliza a perda de esperança, da vida que

se desperdiça mediocremente, e da falta de futuro. Assim são os olhos de

Kátia na “noite dos pardais”, bem como a cor do seu vestido. Ela poderia

repetir com exatidão as palavras de Macha, ditas no primeiro ato de “A

gaivota”:

MEDVEDENKO Por que a senhora se veste sempre de preto?

MACHA Estou de luto pelo minha vida. Sou infeliz.71

Um pormenor interessante: à medida do amesquinhamento da

figura demoníaca de Mikhail Fiódorovitch, nos olhos de Kátia, as negras

sobrancelhas encanecem (седеют), isto é, vão tornando-se cinzentas

(серыe).

Quanto ao branco, em algumas situações, ele adquire a figura tanto

de pureza, frescor, esperança, florescimento e juventude, quanto da perda

de tudo isso (“O jardim de cerejeiras”). Em “Uma história enfadonha”, com

esse significado, ele aparece somente na figura das nuvens brancas, que

71

A.TCHÉKHOV, A Gaivota, Em cartaz, São Paulo, 2009, p.7.

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lembram à personagem a vida que passa, e das crianças de cabelos muito

claros (беловолосыe), que se riem, trepadas numa cerca; em todos os

outros casos, o branco tem outro significado: é sinal de esnobismo,

pertencimento a determinado meio social.

Apenas uma tradição substiste do infausto passado da

medicina: a gravata branca. (110) ...o jantar é agora servido por Jegor, um tipo obtuso e altivo,

a mão direita com luva branca.(127) alimentam-me agora com uma sopa-creme, em que boiam

certos caramelos brancas. (127)

Sobre o fundo opaco geral, sobressai "золотой" (dourado), que se

encontra mais de uma vez, sempre no contexto do êxito profissional ou da

pretensão a tal:

Não podemos deixar de dourar a nossa conversa com

chinesices...(114)

(не можем не золотить) ...o meu nome...gravado em letras de ouro sobre a

tumba. (160) (золотыми буквами)

A única qualidade de Piótr Ignátievitch, merecedora de respeito, até

de admiração da parte de Nikolai Stepánovitch, é a sua laboriosiedade

profissional. O epíteto "не человек, а золото" (mais ou menos, vale o seu

peso em ouro) soa, em relação a ele, um tanto ironicamente, ressaltando

que, fora da sau especialidade, Piotr Ignátievit é um “estojo” vazio

(пустой "футляр").

Trabalha da manha à noite, lê tremendamente e lembra tudo muito bem; nesse sentido, não é pessoa, mas ouro em pó (109).

Três cores, negro, branco, dourado, reúnem-se simbolicamente na

caracterização duma personagem, o jovem doutorando, pessoa com

pretensão a uma brilhante carreira na Ciência, mas, na opinião do

professor, pela falta de talento e liberdade de pensamento, incapaz de

lográ-la, isto é, destituído de futuro.

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Entra um jovem médico, de terno preto e novo, óculos de ouro, e, naturalmente, gravata branca. (116)

As demais cores são quase indistinguíveis no pano de fundo geral,

mas ao olhar atento revelam que a sua inclusão no conjunto da paleta não

fora fortuito.

No início do capítulo 4, quando soa otimisticamente “Chega o Verão,

e a vida muda” , ficamos a saber que a personagem se instalara num

quartinho muito alegre com papel de parede azul claro e distrai-se com

livros franceses de capa amarela. Em seguida, novamente se anula a

escala cromática, e só no capítulo 5 aparece momentaneamente o chapéu

cinzento de Piotr Ignátievitch.

No contexto dum fundo geral opaco da paleta de cores de Tchékhov,

os magníficos quadros da natureza, encontrados nos seus contos e

novelas, vêm saturados dos mais diversos tons e matizes, da espessura e

diafanidade da gama cromática; em “Uma história enfadonha”, contudo,

não se encontra nada disso (exceção: as nuvens brancas), como se a

natureza, para Nikolai Stepánovitch, fosse desprovida de cores. No texto,

não há o vermelho expressivo, apenas uma tinta no rosto das

personagens nos momentos de confusão e ansiedade e o significado

oblíquo do “clarão sinistro” na noite dos pardais; em compensação,

aparece duas vezes a cor ruiva, aproximando duas personagens

desagradáveis (o mercador ruivo com um samovar cor de cobre, isto é,

ruivo, e Hnekker).

Em relação a isso, vem a memória Solomon, da novela “A estepe”,

ruivo com olhos também ruivos, uma personagem que não agrada ao

pequeno Egóruchka.

A cor ruiva, ademais, por si só é viva e está incluída na única e

desgraciosa mancha colorida que destoa do tom geral (o retrato de

Hnekker), enfatizando a sensação do não pertencimento dessa

personagem a todo o mundo professoral, expressa diretamente por Nikolai

Stepánovitch.

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É um jovem louro, que não tem mais de trinta anos, de estatura média, muito corpulento, de ombros largos, com

suíças ruívas junto às orelhas e bigodinho pintado, que dá ao seu rosto cheio e liso um quê de brinquedo. Veste paletó muito curto, colete colorido e muito estreitos embaixo, e usa

sapatos amarelos, sem salto. (125)

Encontrar-se-á algo semelhante mais tarde, em “As três irmãs”, em

que o cinto verde de Natacha terá precisamente esse significado

simbólico.

A simbólica geográfica é uma das mais estáveis no sistema artístico

de Tchékhov, e os sentidos figurados de alguns nomes vão de obra em

obra (Moscou, Peterburg, Ialta, Khárkov). A ação dos capítulos iniciais de

“Uma história enfadonha”, sem dúvida, transcorre em Moscou, e nós

entendemos isso por características indiretas, como a antiga universidade,

os sobrenomes de professores conhecidos e o status da personagem

principal; no entanto, não aparece o nome da cidade, uma vez que na

composição da novela ela é simplesmente um lugar concreto, no qual a

personagem vive e trabalha, à diferença da simbólica Moscou da peça “As

três irmãs” — um ponto sagrado, um sonho, ilusório e inatingível.

As numerosas referências geográficas, na novela, tais como os

nomes de países, de partes do mundo e cidades, não são símbolos;

desempenham, no texto, outro papel, que examinaremos nos capítulos

seguintes. E apenas Khárkov, tediosa e cinzenta cidade do desespero e

das esperanças desfeitas, é aqui assinalada simbolicamente.

Um dos mais complexos e interessantes símbolos, na base dos quais

foi colocada a noção de eterno e momentâneo, de tempo e espaço, de

estática e dinâmica, é a mútua combinação figurada de “pontos e linhas”

em diferentes contextos. No conto “Luzes” , o entrelaçamento de História

passada, guerras antigas e tempo presente realiza-se por meio das figuras

de luzes rutilantes e faiscantes e da extensão duma estrada de ferro em

construção. Em “Uma história enfadonha”, em que o tema principal é o

breve instante da vida humana sobre o pano de fundo da infinitude do

tempo, essa simbólica também se evidencia na contraposição do breve e

cintilante ao longo, extenso, paralisado e fixo, e de manchas a linhas:

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...pulam as manchas claras da sua vela, tremem as nossas sombras compridas...(153). ...прыгают светлые пятна от ее свечи, дрожат наши длинные тени...72

No último capítulo, é essa noite, que se arrasta interminavelmente

e, por sua vez, se transforma num dia igualmente arrastado, ambos

acompanhados pelo bater regular e preciso do relógio, e pelo soar de cada

hora.

E, no final, imediatamente após as lágrimas, gritos e movimentos

bruscos e a queda de objetos, é o silêncio e o longo corredor, por onde

Kátia se vai para sempre.

4.5 Música

O tema da música, nas obras de Tchékhov, é inesgotável e foi

tratado mais de uma vez por estudiosos da sua literatura, escritores,

diretores de teatro e músicos, quase sempre em relação à sua

dramaturgia, mas há trabalhos dedicados ao assunto também na

sua prosa (I. Eigues, Balabánovitch, Fortunatov, Derman, Gromov).

Eles trazem uma análise tanto do papel da música na biografia do

escritor, inclusive as suas relações com Tchaikovskii e Rakhmáninov,

quanto na sua obra, com um estudo da influência dela no léxico,

temática e composição.

No livro Tchékhov e Tchaikóvskii, Balabánovitch assinala os

seguintes aspectos da musicalidade da obra literária: linguagem,

atenção especial a figuras sonoras, musicalidade da composição,

entonação lírica geral.73 V. Katáev observa que Tchékhov é um

artista-músico e utiliza-se ativamente de procedimentos da

composição musical, como repetições e a extensão do tema a várias

72 A. TCHÉKHOV, Moscou,1977, p.302 73 E. BALABANOVITCH, Moscou, 1973.

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vozes-instrumentos (“A complexidade da simplicidade”). Escreve

André Maurois:

“Qualquer peça de Tchékhov é igual a uma obra musical. Cria-

se a impressão de que ele tentava levar para o seu teatro a

sensação de ternura, leveza vaporosa e beleza melancólica e

frágil”.74

Dmítrii Chostakóvitch considerava que as obras de Tchékhov

eram criadas segundo as leis da Música; assim, por exemplo, a

estrutura de “O monge negro” é de sonata. O compositor assinalou,

no conto, o introito (abertura), a exposição com a parte principal e

as secundárias, o desenvolvimento etc. Não raramente, foi apontada

a semelhança com Tchaikóvskii.

“A sua peça é abstrata, qual sinfonia de Tchaikóvskii. E o

diretor deve apreendê-la antes de tudo com o ouvido”.75

— escreveu Meierkhold a Tchékhov.

Páginas dos contos e peças de Tchékhov estão literalmente

saturadas de nomes de instrumentos, géneros e obras musicais,

bem como de compositores e cantores. A temática musical não

raramente aparece nos títulos (“Contrabaixo e flauta”, “Romance

com um contrabaixo”, “Pífaro”, “O violino de Rotschild”). As

personagens cantam, tocam piano, violino, violoncelo, violão e

harpa, soam sinos, pífaros solitários e grandes orquestras.

Freqüentemente, os sons (por exemplo, o som duma corda rompida

em “O jardim de cerejeiras”) ou instrumentos musicais tornam-se

símbolos e a música não apenas cria uma atmosfera, deixando 74

disponivel em:http://lib.ru/MORUA/portrait.txt

75 V. MEERKHOLD, Moscou:”Iskusstvo” 1968.

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tensas as emoções das personagens e do leitor, senão também

avança paralelamente à ação, enriquecendo a obra com um

significado complementar (“As três irmãs”, “O violino de Rotschild”,

“Iónitch”, “Relato dum desconhecido” e outras).

L. Gromov considera que a musicalidade do escritor é, antes

de tudo, a maneira artística de representar a realidade e a vida com

os seus lados “maior” e “menor”; ele também assinala a ligação da

musicalidade com a composição da obra literária, se todos os

componentes ideológicos estão em harmonia com a figuratividade e

a estilística e em plena concordância com a ideia do autor.

Na vida do próprio Tchékhov, desde a infância, a Música

ocupara lugar importante; o pai tocava violino, ele e os irmãos

cantavam em coro de igreja, e em casa o piano soava

constantemente e organizavam-se saraus musicais. A música não o

acompanhara simplesmente durante toda a vida: ela foi para ele

inspiração, a mais alta manifestação do espírito e, às vezes, até a

força dotada da maior capacidade de representação e transmissão

dos mais profundos elementos felizes ou trágicos, em comparação

com a linguagem.

Naquela petrificação geral, na postura da mãe, na indiferença do semblante do medico, havia algo atraente, comovedor, aquela beleza sutil, apenas perceptível, da aflição humana, 'que ainda se

tardará a compreender e descrever e que somente a música, ao que parece, sabe transmitir . (Inimigos)76

Sabe-se que Tchékhov conhecia muitos compositores, mas o seu

preferido era invariavelmente P. Tchaikóvskii, cuja música ele escutava

ainda em Taganrog.

Em 1887, deparou-se ao compositor um jornal com o conto “Миряне”

(cujo título seria mudado, mais tarde, para “Письмо” — “Carta”). O conto

76

A.TCHÉKHOV A Dama do cachorinho, Editora 34, 1999, p.189

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agradou-lhe tanto, que foi lido duas vezes seguidas, e Tchaikóvskii, sob a

sua forte impressão, enviou a Tchékhov uma carta entusiástica, que,

infelizmente, não chegou ao destinatário. O encontro pessoal dos dois

ocorreu em Dezembro de 1888 em Peterburgo, na casa do compositor

Modest Iliitch.

Foi precisamente ali que a Tchékhov ocorreu a ideia de dedicar o seu

novo livro ao compositor. Na primavera de 1890, saiu a coletânea de

contos «Хмурые люди» (“Gente Carrancuda”), na qual “Uma história

enfadonha” ocupa o lugar central. Aberto o livro, o leitor viu na primeira

página as palavras “Dedicado a Piotr Iliitch Tchaikovskii”. As circunstâncias

impediram o músico de responder-lhe imediatamente, mas, pouco mais

tarde, em 1891, ele escreveria do seu grande orgulho da dedicatória.

Durante algum tempo, eles planejaram um trabalho conjunto, em que

Tchékhov deveria escrever um libreto para uma futura ópera de

Tchaikóvskii, “Bella”, baseado em motivos de “Um herói do nosso tempo”,

de Liérmontov, mas os planos estavam fadados a não realizarem-se. No

exemplar presenteado ao compositor, este assinalou um trecho, que o

encantara com as suas imagens sonoras (conto "Почта" — “Correio”):

Колокольчик что-то прозвякал бубенчикам, бубенчики ласково ответили ему. Тарантас взвизгнул, тронулся, колокольчик заплакал, бубенчики засмеялись.77 A sineta retiniu algo aos guizos, e os guizos responderam a ele carinhosamente. A caleça soltou um guincho, moveu-se, a sineta chorou, e os guizos riram-se. (tradução nossa)

A própria dedicatória da coletânea ao compositor já nos obriga a

olhar mais detidamente para o subtexto musical dos contos nela incluídos.

Os pesquisadores quase não se dedicaram ao estudo do tema da

música na novela “Uma história enfadonha”. Citaremos apenas um trecho

do livro de P. Gromov. Não se pode concordar com tudo o que está ali

exposto, mas o autor assinalou os dois aspectos mais importantes, a

nosso ver: em primeiro lugar, ao ter definido o termo musical

77

disponivel em:http://dslov.ru/txt/pe1/tpe1_346.htm

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“contraponto”, que soa no texto, como um conceito genérico, simbólico —

o conflito de contradições na vida da personagem (inclusivamente “o meu

nome e eu”), — e, em segundo, na opinião dele, Brahms, citado duas

vezes, alude a que Tchékhov, na novela, mais precisamente no seu final,

criou o seu réquiem, estando sob a impressão dos réquiens do compositor.

Indubitavelmente, podemos dizer que o princípio musical se reflete, no

todo, na própria composição de “Uma história enfadonha” — no ritmo,

estilo, na melodia da linguagem, na especial atenção às imagens sonoras,

no conjunto de sons, na criação das figuras das personagens, na sua

caracterização e na atmosfera lírica de alguns fragmentos, — e elementos

desse princípio musical tornam-se os mesmos sinais que agem no

subconsciente e intuição do leitor, isto é, criam o subtexto da obra.

Duas linhas, que soam alternadamente — o tempo presente, o “modo

menor” (tema da morte) e as recordações, o “modo maior” (tema da vida)

— e se cruzam no relato da vida de Kátia; as inúmeras repetições e

retornos de situações, diálogos e imagens, interpretados de modo novo a

cada vez; a culminação, a tensão emocional máxima na “noite dos

pardais”, o capítulo final, no qual se concentram os motivos de todo o

texto precedente, o último acorde, que é o trágico final; a mudança de

ritmo, ora mais lento, ora mais rápido; o contraste entre silêncio e sons —

passos, o riscar de fósforos, batidas de relógio, objetos que caem, pausas,

o fremir das emoções e o léxico correspondente — ou seja, o que

analisámos nos capítulos precedentes do nosso trabalho, tudo isso é que

produz a estrutura musical da novela.

Para além da própria construção, os elementos musicais estão

presentes também em outros níveis; a menção à Música torna-se meio de

representação e encontra reflexo no léxico usado em sentido próprio e em

sentido figurado na forma de imagens, epítetos e comparações.

O pescoço, a exemplo de uma heroína de Turguiênev, parece um braço de contrabaixo... (102)

os defeitos da minha voz, que é seca, abrupta e cantante como a de um beato (102)

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...entra a minha Lisa e carregando notas de música, pronta para ir ao conservatório (105) ...a Patti podia cantar-lhe bem junto ao ouvido (109)

Ela não descrevia, mas cantava o Volga, a natureza...(121) ..as atrizes dramáticas rebaixavam-se a entoar canções de

bulevar; os

trágicos cantavam quadras... (122) Estamos cantando óperas diferentes. (122) diz com um baixo aveludado(135) (бархатным басом)

É uma canção que já foi cantada. (137) ...baixando a voz toda uma oitava. (156)

Em alguns casos, na tradução, o léxico musical é substituído por

sinónimos; assim, por exemplo, a frase “давайте сначала споемся

относительно того, что такое диссертация" (“vamos, para começo,

afinar-nos em relação ao que é uma tese de doutorado”) aparece como

“vamos acertar os relógios sobre o que é uma tese”.

A atitude em relação à Música torna-se importante meio de

caracterização das personagens. E a formalidade profissional de Liza (o

tema da conversa repete-se a cada vez e versa sobre os aspectos técnicos

da execução e grandes nomes), a falsa e grave praticidade de Hnekker, a

mal oculta incompreensão dela por parte da sua esposa Vária e o

desprezo de Piotr Ignátievitch a ela iluminam vivamente, qual facho de

luz, as qualidades básicas dessas pessoas, ressaltando-as, e, com outros

pormenores, permitem a criação de figuras integrais.

As moças e Hnekker falam de fugas, contrapontos, cantores e

pianistas, de Bach e Brahms, e minha mulher, temerosa de que suspeitem nela ignorância musical, sorri-lhes com simpatia, murmurando: “Isso é encantador...Será possível? Diga-me...”

(128) Se Hnekker e Lisa iniciam em sua presença uma conversa sobre

fugas e contrapontos, sobre Brahms e Bach, ele baixa modestamente os olhos e fica encabulado; envergonha-se de

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que se fale de tais vulgaridades na presença de gente tão séria como eu e ele. (146)

Não toca nem canta, mas tem não sei que relação com música e canto, vende em alguma parte pianos de não sei quem, frequenta muito o conservatório, conhece todas as celebridades

e dá ordens nos concertos; emite juízos sobre música, com grande autoridade, e, eu notei, os demais concordam com ele de bom grado... Não sou músico e talvez me engane em relação a

Hnekker, que ademais conheço pouco. Mas parecem-me demasiado suspeitas a autoridade e aquela dignidade com que

ele fica parado junto ao piano de cauda, escutando, quando alguém toca ou canta (126)

E, do mesmo modo como símbolos e alguns temas, a relação

do professor com a Música e a sua apreensão dela podem ir dum

oposto ao outro, a depender de a menção a ela estar nas

recordações ou no tempo presente dos apontamentos. Assim, os

sinos e a harmónica [sanfona], no jardim do seminário, e a figura do

maestro, na recordação da leitura duma conferência, tudo isso é a

personificação da felicidade, da esperança, do êxito e da inspiração:

O vento trazia de algum botequim distante o rechinar de uma sanfona e uma canção, ou então uma tróica com guizos passava a toda velocidade junto ao muro do seminário, e isso já bastava

inteiramente para que um sentimento de felicidade me enchesse de súbito não só o peito, mas até o estômago, as pernas, os braços...(134) Um bom regente de orquestra, ao transmitir o pensamento do compositor, executa simultaneamente vinte tarefas: lê a

partitura, agita a batuta, observa o cantor, faz um movimento ora na direção do bombo, ora do corne-inglês etc. O mesmo faço eu,

dando aula. (111)

Nas cenas, em que a personagem principal se encontra sob o

poder duma música real, como no jardim do seminário, ou naqueles

em que, sob a forma duma comparação emocional, como aquando

duma conferência dada por ela, surgem, de modo correspondente, a

natureza real e uma viva imagem sua (o mar), a liberdade, a

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116

infinitude do tempo (o futuro do jovem seminarista) e o poder sobre

ele (o talento de conferencista). Ademais, nessas mesmas cenas, os

sentimentos e pensamentos são transmitidos por meio dum léxico

relacionado também com outros tipos de arte, como se o mundo

circundante desabrochasse e se tornasse vasto e multifacetado.

Assim, o tema da música acopla-se ao tema do tempo-espaço.

Ouvia a sanfona ou os guizos cujo som se perdia, e imaginava-

me já médico, esboçava quadros, um melhor que o outro. (134) (no original: pintava quadros)

...sendo então necessário vigiar com muita perspicácia para que os pensamentos se transmitam não na medida do seu acúmulo, mas numa ordem determinada, indispensável à correta

composição do quadro que eu quero pintar. Em seguida, procuro fazer com que o meu discurso tenha estilo literário... (112)

Já no presente, Nikolai Stepánovitch não sente necessidade de

música e foram-se as emoções e as esperanças, que ela suscitava:

...há música sem qualquer necessidade... (119)

E um pormenor amargamente irónico: a harmónica, que tanto o

inspirava antes, agora lembra-lhe o desagradável riso de Kátia:

Kátia ouvi e ri. Tem um gargalhar estranho: a inspiração alterna-se rápida, rítmica e exatamente com expiração: parece tocar sanfona, e, nessas ocasiões, em seu rosto apenas as narinas dão

risada. (140)

A pesar da perda da sensibilidade musical, Nikolai Stepánovitch

preservara-a para os sons e percebe muitas coisas precisamente por

meio deles: passos, toques de sineta, batidas de relógio, tosse, o

ruge-ruge de vestidos, pios de coruja, uivos de cão etc. Pode dizer-

se que a sua percepção acústica é significativamente mais rica do

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117

que a visual; nós já assinalámos que praticamente não há tintas no

seu mundo, ao passo que os sons ainda permanecem para ele como

um elo com a vida de rápida fuga e constituem um sinal de que ele

ainda está vivo:

Gosto de prestar atenção aos sons. A dois quartos de mim, a minha filha Lisa profere algo rapidamente, delirando, minha

mulher atravessa a sala de vela na mão e invariavelmente deixa cair uma caixa de fósforos, range um armário ressecado ou inesperadamente o pavio da lamparina passa a zunir – e todos

esses sons por alguma razão me perturbam. (103)

E, no último capítulo, quando Nikolai Stepánovitch está

completamente esvaziado, indiferente a tudo, quando o tempo se

esvai gota a gota e o espaço se retrai até à solidão num

desconfortável quarto alheio, de hotel, parece que tudo se enche de

batidas de relógio, as quais, preponderantes, vem para o primeiro

plano, personificando a vitória do tempo sobre o homem.

Não apenas nas cenas de “modo maior”, que já assinalámos

nas recordações do professor, senão também nas de “modo menor”,

em que o “eterno”, mais do que a qualquer outra coisa, se aproxima

do efémero e final, também aumenta a musicalidade do ritmo:

Quer o céu esteja coberto de nuvens, quer brilhem nele a lua e as estrelas, sempre olho para ele ao regressar para casa, e penso que em breve a morte há de me levar. (141).

E, certamente, em relação a isso, é impossível não lembrar as

últimas linhas:

Não, não se voltou. O seu vestido negro apareceu pela última vez, não se ouviram mais os seus passos... Adeus, meu tesouro! (162)

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O aumento da carga musical, em alguns episódios, indica

que o germe da ideia do autor, o sentimento tchekhoviano da vida,

deve ser buscado precisamente nessa esfera emocional, inspirada ou

trágica, na esfera do inexplicável, intuitivo e sujeito às leis gerais da

natureza, do tempo e da História e não no campo de reflexões

abstratas especulativa.

4.6 A composição das recordações

Ele tem um belo passado, como a maioria dos

russos cultos. Não há ou quase não há fidalgo russo ou pessoa com formação universitária que

não se gabe do seu passado. O presente é sempre pior do que o passado.78

As recordações das personagens são significativo elemento

estrutural, e a sua introdução no texto constitui um importantíssimo

procedimento composicional da poética de Tchékhov. Elas estão presentes

em muitas das suas obras, principalmente da fase mais tardia; elas são a

lembrança dos anos idos, de acontecimentos, da infância e do “paraíso

perdido”. Na sua análise, é necessário considerar que, refratando-se na

memória da pessoa, os acontecimentos reais deturpam-se, alteram-se.

Para a grande maioria das personagens tchekhovianas, o passado é

sempre melhor do que o presente, e é precisamente nele que elas

procuram pelo que não encontram na rotina diária.

Quase todos os fragmentos dedicados ao passado estão

semanticamente contrapostos ao texto dos apontamentos por meio da

antítese estabelecida do “antes-agora”, vale dizer, estão contrapostos pelo

ritmo, pelo léxico escolhido e pelo significado dos símbolos escolhidos e de

alguns temas, como a música e os animais. A exceção é o relato da vida

de Kátia, cronologicamente mais tardio, isto é, aproximado do tempo

presente corrente.

78 SUVÓRIN, 30.12.1888

disponivel em: https://royallib.com/read/chehov_anton/tom_21_pisma_1888_1889.html#348160

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No texto da novela estudada por nós, há tanto recordações breves

quanto outras mais minuciosas, as recordações-relatos. Partindo das

sugestões (подсказки), dadas na forma de referências a datas de

acontecimentos históricos e a este ou aquele prazo na vida da

personagem com números concretos, pode reconstituir-se com bastante

completude a biografia do professor. Nessa tentativa, verificámos que, se

extraídas as recordações, caoticamente dispersas pelo texto dos

apontamentos, e colocadas em sequência cronológica, surgirá um quadro

expandido da vida de Nikolai Stepánovitch nas suas etapas principais, mas

por pormenores insignificantes e quase invisíveis acompanha-se a cadeia

das mudanças psicológicas da personagem, até à constituição do caráter,

que observamos nas suas notas, isto é, no último período da sua

existência.

No texto, há uma referência à morte de Skóbelev (que faleceu em

1882), e, a julgar pelo facto de que a própria referência se apresenta no

contexto do acontecimento lembrado, isso ocorrera havia algum tempo

antes. Ademais, o professor Kaviélin, jurista e catedrático da Universidade

de Moscou e da Universidade de Peterburgo, cujo nome ombreia com os

de Pirogov e Nekrássov, falecidos antes de 1882, é citado como a pessoa

com quem a personagem mantivera laços de amizade no passado, e ele

próprio morreu em 1885. O poeta N. Nekrássov morreu em 1877; o

cirurgião N. Pirogov faleceu em 1881. Por isso, é possível supor que o

tempo da ação da novela esteja maximamente aproximado do tempo da

sua escrita: entre 1885 e 1889. Nikolai Stepánovitch, aquando da escrita

dos seus apontamentos, tinha 62 anos. Consequentemente, nascera entre

1823 e 1827, isto é, na metade dos anos 20 daquele século.

Cronologicamente, a recordação mais recuada no tempo é acerca

dum medo infantil no capítulo 4:

Na infância e juventude, tive por alguma razão medo dos

porteiros e criados de teatro em geral, e esse medo conservou-se em mim até hoje. Mesmo agora, eu os temo.

Dizem que nos parece terrível somente o que não se

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compreende. (144)

Essa observação, feita de passagem, pode vir à lembrança do leitor

no capítulo 5 (“noite de pardais”), em que o adulto prova o mesmo pânico

ante o incompreensível.

O advérbio непонятно (incompreensivelmente) une-se

semanticamente ao conceito de страшно (é terrível). Tal fórmula

encontra-se mais de uma vez em variados contextos de obras de

Tchékhov. Assim, no conto “Medos”, lê-se:

“Tolice! — dizia eu comigo. — Esse acontecimento é terrível somente por ser incompreensível... Tudo o que é incompreensível é misterioso e, por isso, terrível”. (tradução

nossa)79

Em outro, de título parecido, “Medo”:

É terrível o que é incompreensível.(tradução nossa)80

Em “A casa de mezanino”, Míssius pergunta ao pintor:

Mas você não sente medo do que lhe é

incompreensível?(tradução nossa)81

A morte, a cada vez mais próxima, priva a vida da personagem dos

seus contornos costumeiros, torna-a desconhecida, inconstante e

incompreensível, e o medo de Nikolai Stepánovitch, no período de escrita

dos apontamentos, adensa-se e concentra-se até ao extremo. As causas

desse sentimento podem ser reais, como a doença mortal, mas também

irracionais, destituídos duma base definida e explicável. Tal sentimento,

79

A.TCHÉKHOV, Moscou,1976, p.188.

80 A.TCHÉKHOV, Moscou,1977, p.130.

81 A.TCHÉKHOV, Moscou,1977, p.180.

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ademais, tem um efeito contagioso e é capaz de comunicar-se duma

pessoa a outra, o que ocorre na “noite dos pardais”.

Desse modo, uma recordação brevezinha acerca dum medo infantil

reflete o mesmo problema psicológico, que enfrenta uma pessoa adulta

num período dificílimo da sua vida.

A referência seguinte (em ordem cronológica) ao passado é o relato

do professor a Kátia acerca do seu período de estudos num seminário. O

jovem seminarista, desejoso de ingressar na universidade, devia ter 17 ou

18 anos, o que coloca o episódio entre 1840 e 1844.

Depois que me queixei, vem-me uma vontade de dar largas a uma outra das minhas fraquezas senis: as reminiscências. Falo a

Káttia do meu passado, e, para minha grande surpresa, comunico-lhe pormenores tais que nem suspeitava existirem íntegros na minha memória. Ela me ouve comovida, orgulhosa, a

respiração suspensa. Gosto particularmente de contar-lhe como estudei num seminário e como então sonhava ingressar na universidade.

- Acontecia-me ficar passeando no jardim do nosso seminário...- conto-lhe. _O vento trazia de algum botequim distante o rechinar de uma sanfona e uma canção, ou então uma tróica com guizos

passava a toda velocidade junto ao muro do seminário, e isso já bastava inteiramente para que um sentimento de felicidade me enchesse de súbito não só o peito, mas até o estômago, as

pernas, as braços...Ouvia a sanfona ou os guizos cujo som se perdia, e imaginava-me já medico, esboçava quadros, um melhor que o outro. (134)

A começar já da primeira frase acerca das “minúcias” (no início dos

apontamentos, ele queixa-se da memória), é lembrada a caracterização,

feita por ele de Nikolai, porteiro da universidade:

Somente quem ama, pode lembrar assim. (108)

Nikolai Stepánovitch rememora não um acontecimento, uma ação

ou atitude, mas uma sua sensação, estado de alma. Estilisticamente, esse

episódio relaciona-se com outros dois — um deles está no contexto das

recordações: a leitura de conferências; o outro, no final da novela.

O trecho citado, pertencente ao capítulo 3, lembra a melodiosidade

dos contos maravilhosos e bylinas russos. A melodiosidade e inspiração

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dessa recordação contrasta enormemente com o ritmo do texto anterior e

do posterior dos apontamentos, como se as suas palavras fossem

pronunciadas por um poeta ou narrador de lendas, não por um cientista,

mais afeito ao estilo dos artigos científicos, e moribundo atormentado por

medos, doença e dúvidas.

Ao leitor apresenta-se uma figura, criada pela imaginação da

personagem e remetida ao passado, uma figura ideal: sadia, talentosa,

dotada dum objetivo na vida, sonhadora, impressionável, cheia das mais

luminosas esperanças e, por fim, um jovem absolutamente feliz. Em todo

o caso, é assim que o professor se recorda, e também assim o percebe

Kátia. De que falta duma ideia geral pode falar-se aqui? A existência do

jovem Nikolai é genuína e harmoniosa; a sensação de felicidade preenche-

lhe não apenas a alma, senão também o corpo. A felicidade é expressão

dessa harmonia interior e da co-participação em tudo o que o cerca, e ela

surge naturalmente, dos passeios pelo jardim do seminário e dos sons de

música que lhe chegam aos ouvidos. A personagem está no limiar duma

vida longa e admirável, na qual se realizarão os mais dourados sonhos. No

trecho, muda não apenas o ritmo, mas também o significado de

elementos simbólicos, como o jardim e a música. O primeiro, aqui, na

lembrança, à diferença do jardim e do jardinzinho à frente da casa nas

páginas do texto restante, é a encarnação da juventude, do sonho, da

vida em flor e das esperanças; a música, por sua vez, liga os sonhos reais

do jovem com a futura profissão a algo elevado, espiritual e

transcendental. Tem-se a sensação geral da harmonia duma pessoa, da

sua alma e do seu corpo com as forças superiores da natureza.

Mais um pormenor interessante nesse trecho: a reação de Kátia.

Semelhante reação da personagem adulta decepcionada, nós não

tornamos a encontrar, a não ser “a expressão de confiança, havia muito

esquecida” ("давно забытого выражения доверчивости") no seu rosto

numa “noite dos pardais”.

Ela me ouve comovida, orgulhosa, a respiração suspensa. (134)

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Do que vem a seguir, ficamos a saber que Nikolai Stepánovitch,

realizando o seu sonho, ingressa na Faculdade de Medicina da

universidade. O período do seu estudo cai, aproximadamente, na segunda

metade do decênio de 1840.

Por censurar os “seus” estudantes:

Deixam-se influenciar facilmente pelos escritores mais recentes, mesmo de segunda classe, mas não são de todo indiferentes a

clássicos como Shakespeare, Marco Aurélio, Epícteto ou Pascal, e nessa incapacidade de distinguir o grande do pequeno é que se manifesta mais que tudo a sua falta de espírito prático. (139)

podemos supor que ele próprio se entusiasmara com tais autores, no seu

tempo de estudante. E, em seguida, construíra a sua vida, seguindo

princípios tão oportunos e convenientes a ele também quando era um

jovem médico e quando se tornara um cientista mundialmente famoso. O

estoicismo, no transcurso de toda a vida, foi a sua ideia geral “feita em

pedaços”.

Com alguns pormenores completa-se o retrato anterior. O jovem

estudante fuma, gosta de frequentar o teatro e sonha com uma futura

fama:

Um judeuzinho, que me vendia fiado cigarros (107)

Na mocidade, eu frequentara muitos vezes o teatro (119)

Parece-me ridícula a ingenuidade com que, quando moço, eu exagerava a importância da fama e da condição excepcional de que desfrutariam as celebridades. (157)

O episódio-recordação seguinte apresenta o jovem cientista

modesto no período de escrita da sua tese de doutoramento. Assim, ele

situa-se no tempo subsequente à conclusão da universidade, mas anterior

ao seu êxito profissional e fama, aproximadamente, na metade dos anos

50. O caminho é-lhe conhecido havia já três decênios, o que significa que

a personagem tem cerca de 30 anos. É quando ele apaixona-se pela

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“fininha Vária” .

Ai está o casarão cinzento com uma farmácia; ai existia outrora

uma casinhola, onde havia uma cervejaria; nessa, eu ficava pensando em minha tese e foi ali que escrevi a prímeira carta de amor a Vária. Escrevi-a a lápis, numa folha com cabeçalho

“Historia morbi. “ (106)

Aquela mesma Vária fininha, que eu amei apoixonadamente pela

sua inteligência lúcida e boa, pela alma pura, pela beleza e, como Otelo a Desdêmona, pela “compaixão” em relação à minha ciência?Será est`a minha esposa, a minha Vária, que um dia deu

à luz o meu filho? (104)

O léxico desses fragmentos transborda a ternura e a ternura e o

orgulho não apenas dum pai apaixonado, mas também jovem, ao

nascimento dum filho, o mesmo que é citado uma única vez, no contexto

da falta de dinheiro, e suscita a Nikolai Stepánovitch, apesar duma longa

separação, somente descontenta-mento e irritação. Sente-se que as

recordações são caras ao narrrador, contudo, há alguns pormenores

indicadores de que, para além de amor, na vida da personagem existe, e

desenvolve-se, outra paixão: a ciência.

escrevi a prímeira carta de amor a Vária. Escrevi-a a lápis, numa

folha com cabeçalho “Historia morbi”

...amei apoixonadamente... pela “compaixão” em relação à minha

ciência. (104)

Ao período seguinte, que abrange as esferas mais importantes da

vida da personagem, quando os sonhos do jovem seminarista já se

realizaram por completo, é destinada a maior quantidade de recordações

com factos e pormenores circunstanciados e episódicos acerca da sua

família, amigos, costumes e trabalho:

os meus sonhos se realizaram. Recebi mais do que ousara sonhar.

Durante trinta anos, fui um professor amado, tive colegas exelentes, desfrutei uma fama honrosa. Amei, casei-me por paixão,

tive filhos. Numa palavra, se olharmos para trás, toda a minha vida me aparece como uma composição bonita, talentosamente

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executada. (134)

O tempo desses acontecimentos situa-se, aproximadamente, nos

anos 60. Por volta desse período, ele já está num matrimônio feliz, com

um filho em crescimento. À essa mesma época, a meio do decênio de 60,

nasce-lhe a filha Liza (está com 22 anos) e, um pouco mais tarde, 18 anos

antes da escrita dos apontamentos (fim dos anos 60), ele adota Kátia, de

sete anos então. As suas recordações das pequenas Kátia e Liza exalam

ternura e enternecimento:

Em criança, gostava muito de sorvete, e eu tinha que levá-la com frequência à confeitaria. O sorvete contituìa para ela a medida de tudo o que era belo. Se queria elogiar-me, dizia: “Você é de

creme, papai”. Chamava um dedinho de pistashe, outro de creme, o terceiro de framboesa, etc. Geralmente, quando ela vinha de manhã dizer-me bom-dia, eu sentava-a nos meus joelhos e,

beijando-lhe os dedinhos, dizia: - De creme...de pistache...de limão...(105)

No dia a dia desinteressante e tedioso irrompe essa breve e viva

recordação, que reproduz o fresco e doce friozinho (холодок) do gelado

(no português europeu; no Brasil: sorvete)82, uma sonora vozinha infantil

e dedinhos de criança.

A corriqueirice, simbolicamente expressa pela paleta negro-branco-

cinzenta, como que floresce com cores variadas e alegres, de creme,

pistache e limão... O jogo de “dedinhos-gelado/sorvete” proporciona

grande prazer a ambos, tendo-se tornado uma tradição diária e

permitindo a expressão do seu mútuo e sincero amor, até tornar-se o seu

oposto, quando a tradição permanece “por um velho hábito” e os

sentimentos já se esvaíram. Nikolai Stepánovitch começa a sentir a

falsidade dessa brincadeira de fim protelado. Se, antes, ele “dizia”

ternamente, agora ele “murmura, e o frio, mais um pormenor simbólico,

lembrador do outrora doce friozinho do gelado/sorvete, no momento

82

A palavra russa para sorvete, "мороженное" (morójennoie), provém de “мороз” (moróz), que é o

frio de temperaturas muito baixas, “de gelar”.

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presente torna-se sinal de alheamento e vergonha.

Estou frio como sorvete e tenho vergonha(106)

A pequena Kátia, que ficara sem os pais e fora adotada pela família

de Nikolai Stepánovitch, é um ser doentio mas muito confiante e curioso,

suscita ao professor carinho, admiração e pena:

A primeira coisa que lembro e amo nessas recordações é a confiança extraordinária com que entrou em minha casa, com que

se deixava tratar pelo médicos, e que sempre luzia em seu rostinho. Acontecia ficar sentada em algum canto, a face com um pano amarrado, invariavelmente olhando algo com atenção; se me

via então escrever e folhear livros, a minha mulher afanar-se, a cozinheira limpar batata na cozinha ou cachorr brincando, os seus olhos expressavam sempre o mesmo: “Tudo o que se faz neste

mundo é belo e inteligente”. Era curiosa e gostava muito de conversar comigo. Acontecia ficar sentada à mesa, na minha frente, acompanhar os meus

movimentos e fazer-me perguntas. Interessava-se pelo que eu lia, que fazia na universidade, se não tinha medo de cadáveres, onde ia parar o meu ordenado... Achava graça em que os estudantes brigassem e eu os mandasse ficar de joelhos, e ria. Era uma criança dócil, paciente, bondosa. Não raro, eu tinnha que ver como lhe tiveram algo, como

castigavam sem motivo ou não satisfaziam a sua curiosidade; nessas ocasiões, a constante expressão de confiança era acrescida

em seu rosto de tristeza, mais nada. Eu nada sabia interceder

por ela; apenas, ao ver aquela tristeza, vinha-me uma vontade de atraí-la para mim, e compadecer-me dela num tom de velha

babá: “Minha órfã querida!” (118)

Quaisquer crianças que se encontrem em numerosos contos de

Tchékhov, felizes e desditosas, bondosas e más, apresentam uma

característica comum e muito importante para o autor: a sinceridade, a

falta de hipocrisia e de camadas superpostas de reflexões, dúvidas e

ideias adultas. Elas estão em harmonia com o (sistema do) universo,

como a próprua natureza, e é-lhes inata uma sabedoria natural em estado

puro:

Дети святы и чисты. Даже у разбойников и крокодилов они состоят в ангельском чине.

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As crianças são santas e puras. Até os bandoleiros e os crocodilos lhes dão a patente de anjos. (tradução nossa)83

A Kátia-criancinha, apesar do destino trágico e da doença,

mencionados mais de uma vez no texto, é confiante, risonha e sábia. A

maneira de encarar o mundo, que Nikolai Stepánovitch nota no seu

rostinho infantil (“Tudo o que se faz neste mundo é belo e inteligente”....)

repetir-se-á, numa forma mais complexa, nos pensamentos de Dmítrii

Gúrov, num dos episódios mais pungentes e simbólicos de “A dama do

cachorrinho”:

Gúrov pensava em como, na realidade, refletindo-se direito sobre

isso, tudo é belo neste mundo, tudo, com exceção do que nós mesmos pensamos e fazemos, quando nos esquecemos dos

objetivos elevados da existência e de nossa própria dignidade

humana. (321)

Cada fragmento das recordações constrói-se segundo o esquema da

contraposição ao tempo presente, e o passado, refratado pela consciência

da personagem, é sempre desmesuradamente melhor do que aquele. Em

Liza e Kátia adultas, não encontramos já os traços tão carinhosamente

lembrados pelo narrador; ficaram, no passado distante, a sinceridade, a

confiança e a espontaneidade das crianças.

No entanto, nesse período passado de vida (fim dos anos 60 e início

dos 70), vemos uma família feliz, uma casa repleta de risos infantis e

jogos, em que participam um cão e um gato, uma casa em que à noite pai

e mãe banham juntos os filhos. E como símbolo desse lar apresenta-se,

qual festa diária, o ruidoso almoço de comida simples mas saborosa, e a

sua álacre atmosfera é lembrada pelo professor em contraposição ao

ambiente penoso e tedioso das reuniões à mesa de agora:

Antes, eu gostava do jantar ou era indiferentea ele... O posto de general e a fama privaram-me para sempre do schtchi, dos

83

A. TCHÉKHOV, 02.01.1889 Disponivel em: https://royallib.com/read/chehov_anton/tom_21_pisma_1888_1889.html#389120

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saborosos bolos de carne, do ganso com maças e da brema com trigo sarraceno. Eles tiraram-me também a criada Agacha,

velhota faladeira e de riso fácil...Não existem a alegria de antes, as conversas desembaraçadas, os gracejos, os risos, não há mais carinhos mútuos nem aquele contentamente que

perturbava as crianças, minha mulher e a mim, quando nos reuníamos na sala de jantar; para mim, homem ocupado, o

jantar era um tempo de descanso e de encontro, e para a mulher e os filhos, uma festa, breve, é verdade, mas luminosa e alegre, quando sabiam que eu, por meia hora não pertencia à

ciência, nem aos estudantes, mas unicamente a eles. Não existe mais a capasidade de se embriagar com um só cálice, não

existem Agacha, nem brema com trigo sarraceno, nem aquele barulho com que sempre se acholhiam os pequenos escândalos do jantar, como uma briga do cachorro e do gato debaixo da

mesa ou a queda do lenço amarrado na face de Kattia para dentro do prato de sopa. (127)

Precisamente aqui, nesse episódio, a mesa (e a reunião à mesa)

aparece no seu significado simbólico direto: personificação da reunião da

família, amigos, do lar e do conforto.

Pode considerar-se um importante pormenor desse fragmento a

presença de animais vivos reais, como já assinalámos; em todos os

demais casos, a eles faz-se referência apenas metafórica ou simbólica.

Para além da família da personagem, há um círculo significativo de

amigos. Ele tinha um amigo, oftalmologista, que lhe era tão chegado, que,

após a sua morte, Nikolai Stepánovitch adotou a sua filha órfã. O seu

talento e glorioso nome, ademais, permite-lhe ter amizade com as

pessoas mais interessantes do seu tempo:b

As suas relações são das mais aristocráticas; pelo menos, nos útimos vinte e cinco a trinta anos, não existiu na Rússia sábio famoso com quem não mantivesse trato íntimo. Atualmente, não

tem com quem manter amizade, mas falando-se do passado, a longa lista dos seus glorios amigos termina com nomes como

Pirogov, Kaviélin e o poeta Niekrrassov, que lhe concederam a sua mais cálida e sincera amizade. (101)

Todos os três, o cientista famoso, o eminente ativista social e o

grande poeta, eram partidários do movimento liberal na Rússia, os

chamados “sessentistas” (“шестидесятники”). Essa recordação deu azo a

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que, ainda em vida de Tchékhov, se discutisse se Nikolai Stepánovitch era

um “sessentista”, de tanto que a sua figura era típica do representante

dos anos sessenta, tempo da ascensão do movimento social e ideológico

na Rússia. A discussão estendeu-se até à crítica soviética. A nosso ver,

para Tchékhov, que examinava “cada caso separado”, tal tipização não

tinha sentido, e nós não nos deteremos na questão.

Nessa etapa da vida, já se consolidara aquilo que Nikolai

Stepánovitch considerava “uma composição feita com talento”. Contudo,

não sem ajuda do autor, às vezes a personagem deixa escapar algumas

coisas . E, no quadro ideal pintado, o leitor nota alguns pormenores que

escapam ao idílio. Muitos problemas do presente começam no passado.

Assim, o marido e pai feliz reserva-se meia hora por dia para estar

com a família. É possível que tenha sido isso o que ensejou o que, mais

tarde, causaria aflição ao velho professor.

Observo-as, e somente agora, durante este jantar, torna-se

absolutamente nítido para mim que a vida interior de ambas já escapou há muito da minha observação. Tenho a impressão de

que um dia vivi em casa, com a família de verdade, e agora estou jantando como visita, em casa de uma esposa que não é

a verdadeira, e vejo uma Lisa também inautêntica. Passou-se em ambas uma mudança brusca, eu não percebi o processo prolongado segundo o qual essa mudança se processou, e não

é de se estranhar que não compreenda nada. Por que se deu essa mudança? Não sei. (128)

Também para a menina órfã não é doce a vida na nova família. Ela

está constantemente doente e necessita de médicos. É característico que

a sua doença seja relacionada com a face (o que se expressa com uma

faixa atada), um sintoma que lembra, posteriormente, o tique na face do

professor adoecido. Os de casa não lhe querem, castigam-na sem razão e

não respondem às suas perguntas, ela não interessa a ninguém, não faz

falta a ninguém, logo a enviam para uma escola e ela aparece somente

nas férias. É bem provável que o “pequeno escândalo”, a queda da faixa

do seu rosto no prato de sopa, tenha suscitado o riso geral precisamente

sobre ela, o que não foi entendido por Nikolai Stepánovitch. Pode-se

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compreender por que ela não tende a ficar na companhia de crianças, que

poderiam tornar-se suas amigas, da mulher que lhe subsituíra a mãe, mas

na da única pessoa que nem intervém por ela à vista das ofensas que lhe

fazem, e sente por ela apenas pena. Já isso lhe basta para torná-lo seu

ídolo.

Não admira que a relação entre as mulheres adultas seja de ódio

mútuo.

Tanto Vária como Lisa odeiam Kátia. Esse ódio me é

incompreensível...(125)

Kátia depreza minha mulher e minha filha com a mesma intensidade com que elas a odeiam...

-Que nulidades!...Nulidades! (133)

Gradualmente, a vida do professor toma a forma duma composição

ideal, com que, na juventude, ele pudera somente sonhar e que “se

desfizera em pedaços”, como ele observa a Kátia com tristeza,

posteriormente. É característico que o episódio que a personifica

maximamente, começa como que no presente, e somente no fim o leitor

fica a saber que tudo o que está dito, ficara no passado: a Nikolai

Stepánovitch dói reconhecer essa principal perda até para si próprio.

Eu sei o que hei de expor, mas não como vou fazê-lo, por onde

começarei e como irei terminar. Na cabeça, não há uma frase pronta sequer. Mas basta-me passar os olhos pelo auditório e proferir e estereotipado: “Na aula passada, paramos no...”, e as

frases voam-me da alma numa longa fieira, e, lá vai matéria! Falo com incoercível rapidez, apaixonado, e, parece, não há

força capaz de interromper a torrente do meu discurso. Para discorrer bem, isto é, de maneira não enfadonha, e com proveito para os ouvintes, é preciso ter, além de talento,

habilidade e experiência, deve-se possuir a noção mais nítida sobre as próprias forças, sobre aqueles a quem se dá a aula e

sobre o objeto do discurso. Ademais, é preciso saber o que se pretende, e vigiar tudo atiladamente, não perdendo por um instante sequer o campo visual. Um bom regente de orquestra, ao transmitir o pensamento do compositor, executa simultaneamente vinte tarefas: lê a

partitura, agita a batuta, observa o cantor, faz um movimento

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ora na direção do bombo, ora do corne-inglês etc. O mesmo faço eu, dando aula. Tenho na frente cento e cinquenta rostos,

que não se parecem entre si, e trezentos olhos que me encaram bem na frente. O meu objetivo é vencer essa hidra de muitas cabeças. Se em cada momento da minha aula tenho

uma noção nítida do grau da sua atenção e da intensidade da sua aprendizagem, ela está em meu poder. O meu outro

inimigo aloja-se em mim mesmo. É a variedade infindável de formas, fenômenos e leis, eu grande número de pensamentos meus e alheios por eles condicionados. A cada momento, devo

ter a agilidade de arrancar desse material imenso o que é mais importante e necessário e, com a mesma velocidade com que

ocorre o meu discurso, revestir o meu pensamento de uma forma que seja acessível à compreensão da hidra e que desperte a sua atenção, sendo então necessário vigiar com

muita perspicácia para que os pensamentos se transmitam não na medida do seu acúmulo, mas numa ordem determinada,

indispensável à correta composição do quadro que eu quero pintar. Em seguida, procuro fazer com que o meu discurso tenha estilo literário, as definições sejam breves e exatas, a

frase, se possível, singela e bonita. A cada momento, devo frear-me e lembrar que tenho à disposição apenas uma hora e

quarenta minutos. Numa palavra, não falta trabalho. Ao mesmo tempo, é preciso fazer de si um cientista, um pedagogo, um orador, e as coisas vão mal se o orador vence o

pedagogo e o cientista, ou vice-versa. Discorre-se um quarto de hora, meio hora, e eis que,

observa-se, os estudantes começam a olhar para o teto, para Piotr Ignátievitch, um apanha o lenço, outro procura sentar-se

mais comodamente, um terceiro sorri aos próprios pensamentos... Isso significa que a atenção está cansada. É preciso tomar medidas. Aproveitando a primeira oportunidade,

digo algum trocadilho. Todos os cento e cinquenta rostos sorriam largamente, os olhas brilham alegres, ouve-se por um

curto tempo o rugir do mar...Rio também. A atenção se refrescou, e eu posso continuar. Nenhuma discussão, nenhum jogo ou divertimento me

proporcionaram jamais o prazer que me dão as minhas aulas. Somente na aula eu podia entregar-me plenamente à paixão e

compreendia que a inspiração não é uma invenção de poetas, mas que existe de fato. E eu penso que Hércules, após a mais picante das suas proezas, não sentia tão doce langor como o

que eu experimentava depois de cada aula (112).

O ritmo dessa recordação é veloz e impetuoso, e o léxico, veemente e

vivo: apaixonado, alma, incoercível, não enfadonha, talento, jogo ou

divertimento, bonita, trocadilho, sorriam, os olhos brilham, rio, refrescou,

a inspiração, doce langor, das suas proezas.

E a pessoa que se ergue diante do leitor, não é apenas um cientista

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genial, como também uma personalidade multifacetada e de vastos

conhecimentos. No seu monólogo, junto com o tema duma conferência,

há referências à História Antiga e a vários tipos de arte (maestro, pintor,

literato, orador, poeta, cantor, quadro, anfiteatro), à música, ao desporto

(na tradução brasileira, em lugar de “спорт”, traduziu-se “споp” –

“discussão”). Trata-se duma pessoa que se encontra no auge dos seus

sentimentos e do seu intelecto e calcula as suas forças, uma pessoa

caracterizada pela perseguição dum objetivo, desejo de vitória,

despotismo, flexibilidade, autoconfiança, uso da experiência própria e da

alheia, atenção concentrada na tarefa por realizar e espirituosidade. Para

além de tudo isso, ela é um pedagogo e psicólogo magnífico,

extremamente atento aos seus ouvintes e consciente da menor reação

deles.

Todo o episódio está impregnado do espírito da Antigüidade, a que

se alude já no relato acerca do porteiro Nikolai e a sua consciência

mitológica. Testemunham-no o auditório, construído em forma de

“anfiteatro”, e a menção a um orador e à hidra, objeto de um dos doze

trabalhos de Hércules. O próprio professor apresenta-se precisamente

qual poderoso herói da Antigüidade.

No léxico, há notas indicadoras dum fundo belicoso:

Não há força capaz de interromper

O meu objetivo é vencer... em meu poder inimigo

A personagem luta e vence.

Nessa recordação, aparece também o elemento erótico, no qual,

para além do léxico (o prazer de entregar-me plenamente à paixão, doce

langor), se faz referência à picante façanha erótica de Hércules e ao mito

da sua potência sexual: numa única noite, deitou-se com as cinquenta

filhas virgens do rei, que visitaram o seu leito uma a uma e depois

tiveram cada qual um filho dele.

Assim como em outras recordações, alguns elementos da

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composição, temas e símbolos apresentam-se, nesse trecho, sob outra

luz, e estabelece-se especialmente um paralelo com o sexto e último

capítulo. Nele, por meio do ambiente limitado e estranho do quarto de

hotel e as batidas do relógio, que marcam impiedosamente a passagem

dos preciosos minutos, transmite-se como o tempo e o espaço

literalmente engolem e dissolvem um homem desamparado diante deles.

No fim das suas notas, Nikolai Stepánovitch, novamente chamando-se

“herói” (sou um herói de quem a minha pátria se orgulha (157), reconhe com

amargura: Estou vencido. (159)

Já na citada recordação, têm-se o mar simbólico simplificado, o

elemento natural, o espaço inabarcável pelo olho e o cálculo exato e bem

sucedido do tempo até ao último minuto, isto é, a completa vitória do

homem sobre o espaço e o tempo.

Em lugar de raciocínios monótonos e tediosos e verdades batidas,

não se têm, agora, frases feitas, mas um discurso baseado na inspiração;

uma alma livre (as frases voam-me da alma numa longa fieira), não o

entorpecimento da alma (paralisia da alma), como no último capítulo.

Encontramos, também, outros símbolos, já citados por nós antes: frescor

em contraposição a secura (a qual se manifesta no parágrafo seguinte à

recordação, assim que Nikolai Stepánovitch passa à descrição do seu

estado e a qual ele tenta superar com ajuda de água) e a imagem de aves

no seu livre vôo, cifrada na palavra “fieira”, à diferença da coruja com o

seu pio sinistro, sobre o fundo do “tédio”, que se repete várias vezes e

“não tediosamente”.

Temos, diante nós, um quadro figurado duma vida consciente feliz

e genuína, que abarca todas as esferas principais. Tal vida começa

inspirada e finda feliz, na nota mais alta.

O único porém que ensombrece o quadro (o que o professor

descreveu) é apenas a magnífica conferência dum estudioso genial. O que

existe além do âmbito do seu trabalho, ou seja, a sua casa, a família e

pessoas próximas, não participam em “tal” vida, e até os estudantes,

pelos quais tudo isso acontece, constituem, para ele, tão-somente uma

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hidra multicéfala, multiocular e informe, com que ele se bate e que

precisa vencer.

E, finalmente, as recordações mais longas, cronologicamente as

últimas — o relato da vida de Kátia.

Ela tem vinte e cinco anos, e a evolução da sua paixão pelo teatro

começara dez anos antes (Nikolai Stepánovitch tem já cinquenta e dois.).

O tempo desse período, assim, é convencional, do início dos anos setenta

ao início do decênio seguinte.

A recordação está construída dum jeito, que o leitor recebe a

informação logo de duas vozes — o relato de Nikolai Stepánovitch e a

carta de Kátia — uma parte dos quais existe na exposição do professor, e

parte é citada por ele.

Na trajetória de vida dele insere-se a trajetória de vida de Kátia,

como se em ritmo rápido repetindo etapas e estados psicológicos

percorridos por ele: paixão, entusiasmo, esperanças, sonho realizado,

profissão prazerosa, felicidade, amor, planos para o futuro, decepção,

naufrágio das esperanças e a tentativa de suicídio (morte simbólica).

Em conformidade com isso, muda a estilística. Todo o espisódio está

impregnado de teatralidade e do léxico cênico (peça, desempenho,

saguão, camarote, monólogo, receitas, ensaios, papéis, palco, público) e,

no todo, lembra uma peça curta — perpassa a vida duma jovem mulher,

esvaziando-a e esmagando-a, tornando decepcionada e cínica uma alma

jovem, ardente e crédula. Com meios mínimos (a personagem conta com

indiferença o que ocorre, e a própria ação passa-se algures, longe), o

autor mostra o processo dessa mudança. Alguns fragmentos da biografia

de Kátia repetir-se-ão na vida de Nina Zariétchina da futura “A gaivota”.

O teatro está presente, aqui, em várias hipóstases, como sonho,

como profissão e como empreendimento comercial:

Kátia passou a escrever-me que seria bom construir em alguma

cidade do Volga um grande teatro, em base de sociedade anónima, e atrair para a empresa comerciantes ricos e

armadores; as receitas seriam enormes, e os atores teriam

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participação nos lucros (121)

E como recinto:

Como outrora, nem nos corredores nem no foyer eu consigo encontrar um copo de água limpa. Como outrora, os criados

me impõem uma multa de vinte copeques pela minha peliça (119)

O caráter ilusório e enganoso da vida teatral e o cruzamento de

paixões falsas com o verdadeiro sofrimento aproximam esse episódio do

estado de espírito reinante no segundo capítulo. E Nikolai Stepánovitch,

conscientizando-se da sua hipocrisia, extrai palavras precisamente do

léxico teatral:

Viajara quase quatro anos, e, todo esse tempo, devo confessar,

desempenhei em relação a ela um papel bastante estranho e pouco invejável.(123)

Mas Kátia, no início do seu caminho, não nota essa dualidade; para

ela, o teatro é a vida. O seu maravilhado monólogo repete quase

textualmente as apaixonadas palavras do professor acerca da Ciência:

Ela me assegurava que o teatro, mesmo na sua forma atual,

estava acima da sala de aulas e dos livros, acima de tudo no mundo. O teatro era a força que reunia em si todas as artes, e os atores, uns missionários. Nenhuma arte e nenhuma ciência,

isoladamente, era capaz de atuar tão forte e radicalmente sobre a alma humana como o teatro, e não era, portanto, em

vão que um ator de importância média desfrutava no país uma popularidade muito superior à do melhor cientista ou pintor. E nenhuma atividade pública podia trazer tão grande prazer e

satisfação como a teatral. (120)

Nenhuma discussão, nenhum jogo ou divertimento me

proporcionaram jamais o prazer que me dão as minhas aulas. Somente na aula eu podia entregar-me plenamente à paixão e compreendia que a inspiração não é uma invenção de poetas, mas que existe de fato. E eu penso que Hércules, após a mais picante das suas proezas, não sentia tão doce langor como o

que eu experimentava depois de cada aula. (112)

Emitindo o suspiro derradeiro, ainda hei de crer que a ciência

constitui o mais importante, o mais belo, o mais necessário na

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vida do homem, que ela sempre foi e será a manifestação mais elevada do amor, e que somente por meio dela o homem

vencerá a natureza e a si mesmo. Essa fé talvez seja ingênua e injusta em seu fundamento, mas eu não tenho culpa se creio assim e não de outra maneira; sou incapaz de vencer em mim

essa fé. (113)

Para além duma quantidade de intersecções, chama a atenção a

mesma adoração da profissão escolhida, que une as personagens; em

ambos os casos, ela torna-se quase um culto religioso. Nikolai

Stepánovitch até fala em crença, e, no caso de Kátia, o autor escolhe

palavras reforçadoras dessa característica: súplice, rezava, missionários,

santa ingenuidade, cantava.

Para Kátia, o teatro é a encarnação da harmonia da vida, e, quando

a realidade cessa de corresponder às suas expectativas, como no caso de

Nikolai Stepánovitch, os culpados são os seus colegas e o ambiente. E

também, como ele, no fim de contas, ela reconhece a sua própria

incapacidade.

Somente as descrições do período, em que Kátia estava enlevada e

feliz, lembram estilisticamente as recordações anteriores. No todo, porém,

nessa descrição dum lapso de tempo, não há já mudança do signo

semântico nos motivos, nem nos símbolos; ao contrário, estabelecem-se

paralelos com o tempo corrente real das notas. Sobretudo, é já conhecido

o ritmo monótono. Assim como nos primeiros capítulos, nós vemos

uma contagem exata do tempo:

Antes de passar meio ano, recebi uma carta altamente eufórica e poética ...(121) Em todo caso, tudo pereceu correr bem um ano e meio ou

dois: Kátia estava amando, acreditava em seu trabalho e era feliz...(121)

Viajara quase quatro anos, (123)

e as reflexões pesadas e didáticas dum velho ranzinza.

Aparece várias vezes a palavra "скучный" (tedioso):

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...A desgraça de ter espírito não é uma peça cacete, sopra

sobre mim do palco aquela mesma rotina, que me enfadava quarenta anos atrás... (120) ... «Горе от ума» не скучная пьеса, то на меня от сцены

веет тою же самой рутиной, которая скучна мне была еще 40 лет назад84

Em resposta, enviei a Kátia uma carta comprida e, devo

confessar, muito enfadonha. (122) В ответ я послал Кате длинное и, признаться, очень скучное письмо.85

...cartas compridas, maçantes, que popodia muito bem ter

deixado de escrever. (123) ...длинные, скучные письма, которых я мог бы совсем не писать.86

Pode notar-se que, nos exemplos supracitados, no texto

tchekhoviano repetem-se скучно e скучный, ao passo que, na tradução

brasileira, empregam-se os sinónimos cacete, enfadonha, maçantes.

O meio de Kátia cometer suicídio — envenenamento — faz eco ao ar

“enve-nenado” (Na tradução brasileira, omitiu-se a frase “Кажется, Катя

пробовала отравиться” — Parece que Kátia tentara envenenar-se.).

“Табун диких лошадей” (Manada de cavalos selvagens) tem o mesmo

matiz negativo que o pio de coruja e o uivo de cão; "зловещий симптом"

(sinistro sintoma) e traz à lembrança "зловещее зарево" (o reflexo

sinistro e enorme dum incêndio) da tempestuosa noite dos pardais, e a

personagem procura "стакан чистой воды", “um copo de água pura”

(salvação simbólica da secura-tédio), como no primeiro capítulo e no

quarto.

É também sintomática a mudança de motivo musical: se o início da

paixão de Kátia se transmite pelo verbo cantava , então, em seguida,

surge um amargo e fantástico “Estamos cantando óperas diferentes”

(122). Para além disso, para Nikolai Stepánovitch, “ ...há musica sem

84 A. TCHÉKHOV, Moscou,1977, p.270 85 -------------------------------- p.272 86 --------------------------------p.273

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qualquer necessidade” (119).

E, pela primeira vez nas recordações, surge o tema principal das

notas, o tema da morte: “Enterrei ontem o meu filho” (123).

Para além das provações de Kátia, como antes, no nosso campo de

visão, está a própria personagem-narrador. De sob o véu do dever e dos

cuidados de tutor, o professor deixa transparecer uma clara indiferença

pelos sofrimentos de alguém do seu círculo mais próximo. Até nos

momentos mais trágicos da vida de Kátia, ele experimenta apenas

confusão, embaraço e estranhamento. As frases incisas "кажется"

(parece), "мог догадаться" (pude perceber) e "надо думать" (é preciso

pensar) expressam inexatidão e indecisão e, no todo, falta de interesse:

...não ter tido tempo e vontade de observar o início e desenvolvimento da paixão...(118)

Ela cansava-nos com as suas conversas contínuas sobre teatro. Minha mulher e meus fillhos não a ouviam. Somente

eu não tinha coragem de recusar-lhe atenção. (119) Nunca partilhei os arrebatamentos teatrais de Kátia. (119)

E um belo dia, Kátia ingressou numa companhia e partiu se

não me engano para Ufá (120)

Mais tarde, por algumas alusões, pude perceber que ocorrera

uma tentativa de suicídio. Parece que estivera depois gravemente doente.(123)

É preciso assinalar que, no presente caso, os próprios pensamentos

acerca do teatro ocupam a personagem-narrador muito mais do que a

doença de Kátia e a morte do filho dela. Temos aqui, diante de nós, o

mesmo caráter formado, o mesmo autor do diário, apenas ainda não

adoecido, não torturado pela insónia e por “pensamentos envenenados”.

O fragmento, tanto pelo tempo quanto pelos caracteres formados,

está maximamente aproximado do tempo corrente das notas.

Testemunha-o a última frase dessa recordação, frase que é uma ponte

entre o passado e o presente:

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Atualmente, Katia vive a meia versta de minha casa. (123)

Havendo distribuído cronologicamente as recordações da

personagem na linha composicional da novela, acompanhadas cada qual

duma análise, nós vimos o professor no transcurso de todas as etapas e

em cada decénio da sua vida; mais do que isso, nós assinalámos como se

processaram nele algumas mudanças graduais: afastamento dos parentes

próximos, substituição de sentimentos e emoções por reflexões, tudo o

que o levou à sensação da perda de “algo importante” na vida, o que ele

próprio, na sua forma habitual, chamou de “idéia geral”. E, se

parafrasearmos a observação perspicaz de Kátia,

Não tem sensibilidade, não tem ouvido para a arte. Esteve ocupado a vida inteira e não teve tempo de adquirir essa

sensibilidade.(150)

poderemos dizer que ele não teve tempo, nem vontade, de adquirir a

capacidade de compreender a vida e apreciá-la.

4.7 Pormenor

É impossível estudar a obra de Tchékhov, sem tratar da

especificidade dos pormenores usados por ele. Precisamente a concisão, o

impressionismo, o simbolismo, a sutilíssima pincelada, capaz de transmitir

tanto uma imagem quanto uma sensação e um estado de espírito e

caracterizar o mundo interior das personagens, especialmente quando tal

contradiz as suas próprias palavras e ideias, tudo isso é uma das

principais características do estilo do escritor. O pormenor usado por

Tchékhov pode ser, ao mesmo tempo, material, trivial e simbólico, isto é,

dotado de significado tanto direto quanto figurado, e constituir

simplesmente uma minudência lírica e um meio do subtexto.

Z. Khainadi, ao analisar a diferença entre o pormenor em Tolstói e

em Dostoiévski, chama a atenção para o facto de que, dada a pouca

extensão das obras de Tchékhov, o pormenor insignificante está

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maximamente concentrado e tem uma carga ideológica significativa,

tornando-se um importante componente da integridade e unidade da

composição87. Nisso reside a dificuldade e variedade da sua interpretação.

Encontram-se também pormenores caracterizadores , simbólicos ou

fortuitos, que migram de texto em texto. Para as obras escritas em

primeira pessoa isso tem um significado especial, porquanto é

simultaneamente opinião tanto da personagem-narrador quanto do autor.

Assim, por exemplo, em “Uma história enfadonha”, Nikolai Stepánovitch

caracteriza os olhos de Hnekker como “de caranguejo”, expressando, com

isso, a sua grande antipatia a ele. Mas “olhos de caranguejo” já

apareceram em textos de Tchékhov, e o que é especialmente importante,

em contos da fase inicial, na qual ainda não surgira um dos princípios

básicos do escritor, a objetividade, e isso significa a atitude do próprio

autor está expressa muito claramente:

Kaléria Ivánovna, comprida e magra morena, de sobrancelhas

pretíssimas e olhos de caranguejo saltados, ia ver Egóruchka

todos os dias. (tradução nossa)88

Lá pandegavam... Sobre a mesa havia garrafas. À mesa

estavam sentados algumas figuras com olhos de caranguejo

saltados (tradução nossa)

Assim, graças a um pormenor-metáfora, que migra dum texto a

outro, pode concluir-se que à opinião do professor se une a do autor,

agindo sobre o leitor e reforçando a impressão negativa geral, causada

por Hnekker. É particularmente polémico o pormenor casual, “fortuito”,

que, à primeira vista, parece não ser meio de expressão dalguma

característica e, pelas leis da literatura “pré-tchekhoviana”, não seria

necessário ao texto ou, pelo menos, não obrigatório. Como já

87 Disponivel em: http://lit.1september.ru/article.php?ID=200203005

88 A.TCHÉKHOV, Moscou,1974, p.418.

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mencionámos no nosso trabalho, tal particularidade do estilo tchekhoviano

foi notada pelos críticos mais talentosos ainda durante a vida do escritor,

porém, não havendo sido compreendida, foi percebida como defeito,

incapacidade ou falta de vontade de selecionar o material e subordiná-lo a

uma ideia (Mikhailóvski). Permanece aberta até hoje e é polémica a

questão de por que Tchékhov, para quem, pelo seu próprio aforismo, “a

concisão é irmã do talento” , introduz minudências aparentemente

desnecessárias em textos harmonicamente construídos, em que cada

elemento se enquadra num sistema determinado. A. P. Tchudakov, em

estudo do mundo dos temas e acontecimentos de Tchékhov, julga que os

pormenores materiais são escolhidos não para ilustração dalguma ideia,

mas para a criação duma ilusão de naturalidade, e precisamente a

“fortuidade” é o princípio organizador do sistema literário tchekhoviano

em todos os níveis; o objeto “insignificante”, desse modo, adquire os

mesmos direitos do caracterizador. E. S. Dóbin, por sua vez, afirma que

o pormenor, em Tchékhov, torna-se um foco semântico, um

condensador da ideia do autor, um meio de compensação do enredo

frouxo89. Com a simplicidade e o ordinário, corriqueiro, a narrativa

de Tchékhov enche-se e alastra-se às custas do papel especial que o

pormenor desempenha no texto.

А. Stepánov90 assinala dois níveis de “fortuito” no mundo artístico

de Tchékhov: o “fortuito” para o leitor, que é incapaz de ligar o fragmento,

o pormenor, com a integralidade do texto, e o “fortuito” para a

personagem. No primeiro caso, o fortuito apresenta-se, vale dizer, é

percebido pelo leitor ou como sinal de imperfeição da forma ou como

presença duma integridade do mundo não selecionada, e a solução da

questão acerca da sua função, no tempo presente, é impossível. Para o

estudioso, o tratamento textual vem a ser importante apenas no caso de

exame do “fortuito” para a personagem, quando desponta o embaraço das

89

E.DÓBIN, Leningrado, 1981.

90 Iz veka XX v vek XXI, Moscou, 2007, p.270.

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personagens ante a inexplicabilidade ou fragmentaridade do mundo, o que

é característico do texto tchekhoviano, uma vez que, no seu sistema

literário, existe um paradoxo: qualquer processo que tenha um objetivo

ou função, não atinge o objetivo e não desempenha nenhuma função.

Nós concordamos com os estudiosos que afirmam que nenhum

elemento do texto tchekhoviano, — pormenor, frase, personagem ou

situação, — é alheio a ele; ao contrário, cada qual deles está ligado com

os outros que formam a composição da obra, e, em conformidade com

isso, pode encontrar-se uma certa lógica, uma explicação ao que, à

primeira vista, é percebido como “fortuito”.

A nossa hipótese é que o pormenor “fortuito” constitui um

importantíssimo meio do subtexto autoral e como tal desempenha

duas funções principais na novela estudada. Ao focalizar em si a

atenção do leitor, ele funciona no nível do subconsciente e da

intuição quase imperceptivelmente, em primeiro lugar, ao traçar

paralelos associatórios entre as situações e as personagens e, com

isso, manifestar, por trás da opinião do professor, a visão do autor

acerca delas, e, em segundo, ao trabalhar para a ampliação do

tempo e do espaço literário, isto é, para a criação do cronótopo da

novela.

4.8 personagens

Em “Uma história enfadonha”, à diferença de muitos outras

obras de Tchékhov, não há descrições da natureza, nem, em geral,

nenhumas descrições (à exceção do interior do apartamento de

Kátia); nelas, os pormenores, a par da estrutura rítmica, costumam

pôr a descoberto a atitude do autor em relação ao que se passa.

Nikolai Stepánovitch, ocupado em escrever apontamentos, está

concentrado no seu mundo interior e nas pessoas do seu convívio, o

que leva a que o pormenor desempenhe o principal papel na

revelação das figuras das personagens, tanto das centrais quanto

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das aparecidas uma única vez mas, apesar disso, merecedoras de

descrição, bem como das episódicas, citadas de passagem nas

recordações. Todas elas, inclusivamente as últimas, estão de certa

maneira incluídas na composição; entre elas, há laços, estendem-se

fios e sublinham-se paralelos, aguçando a atenção não apenas para

a semelhança dos traços dominantes da personalidade, mas, às

vezes, também para a completa disparidade entre eles. É

especialmente importante atentar para pormenores e personagens

casuais, porquanto eles, que não têm importância para o narrador, é

que constituem o meio de expressão do subtexto do autor.

No estudo da novela, em relação às personagens, devemos

começar pelas pessoas mais próximas de Nikolai Stepánovitch, ou

seja, os membros da sua família, representada por três mulheres: a

esposa Vária, a filha Liza e a enteada Kátia (há um filho, citado de

passagem); para tal, é preciso recordar algumas particularidades do

período histórico em que se escreveu a obra.

No final do século 19, novas idéias acerca da questão

feminina (o papel da mulher na família e na sociedade, a

possibilidade de divórcio, educação e trabalho, emancipação etc.)

desencadearam acesas discussões, subentende-se, inclusivamente

em páginais de jornais e revistas e na literatura91. O tema era tão

importante e interessante para Tchékhov, que ele, sendo ainda

estudante do quarto ano de Medicina, se põe a escrever um trabalho

científico, “História da autoridade sexual”, no qual, sob influência de

Darwin, pretendia estudar as relações entre os sexos no processo

histórico; o tratado não foi concluído, mas podem encontrar-se ecos

91

No livro Чехов и проблема идеала (Tchékhov e o problema do ideal), M. Odiésskaia analisa em

minúcia o desenvolvimento desse processo na literatura russa.

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seus em muitas obras do escritor.

A esse candente tema dedicou-se a novela “Sonata a

Kreutzer” (1891), de Tolstói. Obra sintonizada com a época, ela,

embora discutível, causou forte impressão aos leitores,

arregimentando uma enorme quantidade tanto de partidários

quando de adversários das ideias de Tolstói, e ensejou uma nova

vaga de discussões. Iniciada em 1887, concluiu-se em Agosto de

1891. Isto é, a última etapa da sua escrita coincide com o período

de escrita de “Uma história enfadonha”. Crê-se que Tchékhov a haja

lido somente após a sua publicação. No entanto, ainda antes da

conclusão, o manuscrito de Tolstói, por obra da sua esposa, Sófia

Andréevna, e dos seus amigos e à revelia do escritor, foi várias

vezes copiado a mão e chegou até a ser publicado em litografias já

na metade de 1889 e, assim, era já conhecido do público muito

antes de ser levado ao prelo. No mesmo ano de 1889, Tchékhov,

simultaneamente com “Uma história enfadonha”, continuou a

escrever um romance, mas, já pelo beirar do fim do ano, pô-lo de

parte e não o retomou. Muito desse romance, depois, foi para obras

suas, mas algo foi parar às Obras reunidas como inconcluso, como o

conto "Письмо" (“Carta”)92, em que se fala, muito provavelmente,

de não outra coisa que não de “Sonata a Kreuzer”. A data exata do

conto, mais exatamente, desse fragmento de romance não

concluído, é desconhecida, mas, em todo o caso, ele não foi escrito

depois do fim de 1889, isto é, antes da publicação da referida obra

de Tolstói.

Tal facto, a par de outros93, permite-nos supor que também

92

Há três contos com tal título; referimo-nos ao datado de 1889.

93 É difícil imaginar que Tchékhov, que estava sempre a par das novidades literárias e para quem

Tolstói constituía o maior vulto da literatura, pudesse ter deixado passar o manuscrito tolstoiano

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Tchékhov se incluía no número de leitores conhecedores da novela

tolstoiana ainda em manuscrito e precisamente no período em que

estava a escrever “Uma história enfadonha”. A partir dessa

suposição, alguns paralelos entre as duas novelas, em relação ao

tema da mulher e ao do matrimónio, podem ver-se não somente

como tendências do tempo, senão também como referência direta

de Tchékhov à rumorosa obra do seu confrade mais velho. E, apesar

de toda a diferença de tratamento da questão feminina, a

semelhança entre “Sonata a Kreuzer” e “Uma história enfadonha”

manifesta-se não apenas no nível do tema, mas também no da

composição (a forma de confissão, a importância do subtexto

musical) e até em alguns aspectos concretos, relacionados,

sobretudo, com um determinado tipo feminino e convenções sociais

referentes ao casamento e às relações sociais.

Assim, das três mulheres de “Uma história enfadonha”, duas, a

esposa e Liza, apesar da “individualização de cada caso em particular”,

mostram-se como que ilustração do relato de Pósdnychev, personagem de

“Sonata a Kreuzer”. De acordo com as suas ideias, o objetivo vital das

mulheres é estender a rede e atrair homens para a armadilha, o

casamento. Para a consecução disso, empre-ga-se todo um arsenal de

meios, que vai duma roupa e dum comportamento tentadores à

pretensão a interesses comuns com os homens e a um alto nível

espiritual e intelectual.

Experimente dizer a verdade a alguma das mães ou à própria moça, isto é, que elas estão ocupadas unicamente com a caça a

algum noivo.Que ofensa, meu Deus! Mas todas elas só fazem isso, e não têm nada mais por fazer. E o que é terrível, é ver, às vezes, ocupadas com isso moças bem novas e inocentes. E mais uma

vez, se isso ao menos se fizesse abertamente... Mas é tudo um embuste. “Ah, a origem das espécies, como é interessante! Ah, Lisa interessa-se muito pela pintura! O senhor irá à exposição?

Como é instrutivo? E o passeio de troica, e o espetáculo teatral, e a sinfonia? Ah, como é admirável! A minha Lisa é louca por música. Mas por que o senhor não tem essas mesmas convicções?

E andar de barco! ...” E o pensamento é sempre o mesmo: “Toma, toma-me, toma a minha Lisa! Não, a mim! Ora experimenta ao

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menos!...*

Cego, enganado e incapaz de resistir, o homem cai nas bem armadas

“ciladas sexuais”.

Desse modo, realiza-se um casamento por amor, precedido por

uma alegre animação bem torpe.

Durou pouco, o meu noivado. Não posso lembrar agora esse tempo sem um sentimento de vergonha! Que ignomínia!94

Após algum tempo, cai a venda dos olhos do homem, e ele vê

o que lhe parece que a mulher na realidade representa — a sua

infâmia, estreiteza de horizontes e dependência em relação ao

homem. Por mais feliz que um matrimónio tenha começado, com o

tempo torna-se insuportável, os cônjuges começam a sofrer. E

sobretudo a mulher, absorvida pela procriação, pelo dia-a-dia, pelos

inúmeros temores e tribulações inevitáveis, se a família tem filhos:

A maior parte das mães sente justamente isso e, às vezes, dizem-no, sem querer, assim mesmo. Pergunte à maioria das mães do nosso círculo de gente abastada, e elas lhe dirão que,

devido ao medo de que as crianças adoeçam e morram, não querem ter filhos e que não querem amamentar, se já deram à luz (...). O prazer que lhes dá uma criança com o seu encanto, o

encanto dessas mãozinhas, perninhas, de todo o corpinho, o prazer proporcionado por uma criança é menor que o sofrimento experimentado por elas, já não digo em caso de doença ou perda

da criança, mas pelo simples medo dessa possibilidade.95

As analogias com “Uma história enfadonha” são claras. Nikolai

Stepánovitch, outrora ardentemente apaixonado pela bonita, doce

de alma, inteligente e esbelta Vária, “que se comiserava” da ciência

dele, agora fica perplexo, ao olhar para a velha, gorda e desajeitada

mulher de expressão facial embotada. Parece que Vária está a

94 Idem, p. 188.

95 Idem, p. 204.

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repetir-se na bonitinha e jovem Liza; a semelhança das duas é

citada pelo narrador:

Tem vinte e dois anos. Parece mais jovem, é bonita e lembra um

pouco a minha mulher quando moça. (105)

E o caminho de Liza na vida desenvolve-se pelas mesmas

regras com as mesmas convenções adotadas pelo círculo deles, tal

como o da sua mãe e das mulheres referidas pela personagem de

Tolstói:

Você pode ser cem vezes cavalheiro e conselheiro privado, mas, se tem uma filha, nada o garantirá contra o que há de pequeno-burguês naquilo, que o ato de cortejar, de pedir a mão e o

casamento introduzem em sua casa e na sua disposição. Eu, por exemplo, não posso de maneira alguma conformar-me com a expressão triunfal que aparece em minha mulher sempre que

Hnekker está em nossa casa, não posso também conformar-me com as garrafas de Lafitte, vinho do Porto e xerez, postas na mesa unicamente em sua intenção, para que se convença com

seus próprios olhos como vivemos farta e luxuosamente. Não suporto também o riso sacudido de Lisa, que ela aprendeu no conservatório, e o seu jeito de entrecerrar os olhos, quando há

homens em nossa casa... Minha mulher e os criados murmuram misteriosamente que “é o noivo”... (126)

E, admitida a hipótese de Tchékhov haver lido o manuscrito de

Tolstói no período de escrita de “Uma história enfadonha”, tornar-se-

á óbvia a escolha não por acaso do nome “Liza”, se considerarmos o

supracitado trecho de “Sonata a Kreuzer” (”A minha Liza é louca por

música”...) e, principalmente, o facto de a filha adorada por

Pósdnychev também chamar-se Liza.

Segundo a lógica da personagem de Tolstói e deste próprio,

por mais que o casamento se tenha realizado por um amor feliz e

mútuo, a mulher, especialmente sobrecarregada pela criação dos

filhos, que lhe trazem incontáveis sofrimentos, será sempre infeliz. É

infeliz a Vária de Tchékhov, apesar da dignidade, fama e o status de

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general do marido. Toda a sua vida concentra-se na família e

somente nesta, daí o “seu jeito de chamar o meu ordenado de nosso

ordenado, o meu chapéu de nosso chapéu.” É permanente a sua

preocupação com os filhos já crescidos, com o facto de que a

sociedade notará que Liza está pobremente vestida, com a situação

do noivo dela, com o filho, com o oficial militar: “O menino está em

país estranho, o soldo é pequeno...” Esses incessantes pensamentos

e cuidados preenchem-lhe toda a existência, e a sua característica

permanente tornam-se as lágrimas:

Minha mulher se assusta, uma expressão de dor torturante aparece-lhe no rosto. -Pelo amor de Deus, Nicolai Stiepanovitch! - implora-me

soluçando. -Pelo amor de deus, tire de mim este peso! Eu estou sofrendo! ...Ela aperta um lenço contra os olhos e vai chorar no seu quarto(130)

...minha mulher de súbito empalidece e solta um grito alto, com uma voz desesperada, que igualmente não é a sua...ouço por

pouco tempo um choro...148) Abro a porta, descerro valentemente os olhos e vejo minha

mulher. Tem o rosto pálido, os olhos de choro (153)

Dois traços principais caracterizam a sua personalidade; o

primeiro, como já foi dito, é a limitação do seu mundo interior aos

filhos; o segundo, a parcimónia e até avareza. Ambos intensificam-

se por possuírem determinados paralelos no texto. Assim, o primeiro

liga-a com uma personagem, que passa quase despercebida nas

recordações do professor:

Uma mulher gorda, que gostava dos estudantes porque “cada

um deles tem mãe”. (107)

O segundo manifesta-se, se notarmos um pormenor fortuito

no seu vulto. Ao passar brevemente pelo gabinete do professor,

banhada e recendente a água-de-colónia, ela, contudo, está

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“despenteada”. Tal pormenor não acrescenta nada à sua

caracterização, mas obriga-nos a recordar outra personagem, de

penteado negligente, melenas desprendidas dele e ganchos

[grampos] de cabelo que caíam constante-mente: Kátia. Para que

chama o autor a nossa atenção e que é que pode unir mulheres tão

diferentes, tão opostas entre si em todas as suas manifestações? Tal traço

é sua atitude absolutamente anormal de ambas em relação ao dinheiro,

embora também levada a dois polos: a mesquinha avareza da esposa e a

perdularidade de Kátia.

...todas as manhãs, fala meticulosamente...de que o pão, graças a Deus, ficou mais barato, enquanto aaçucar encareceu de dois

copeques...104)

..serqá possível que esta mulher velha, muito corpulenta,

desejaitada, com uma expressão embotada de preocupação mesquinha e de temor pelo pedaço de pão, de olhar embaçado

pelos pensamentos constantes sobre dívidas e pobreza, que sabe falar apenas de despesas e sorrir unicamente aos preços baixos...(104)

E agora, a respeito de Kátia. Ela vem ver-me todos oa dias à tardinha, e naturalmente tanto os vizinhos como os conhecidos

não podem deixar de notá-lo. Vem por um instante e leva-me consigo para passear. Tem cavalo próprio e uma carruagem novinha, comprada este verão. Em geral, ela vive à larga: alugou

um palacete com um grande jardim, e transportou para lá toda a sua mobília da cidade, tem duas criadas, um cocheiro...Pergunto-lhe com frequência:

-Kátia, com o que você vai viver quando esbanjar o dinheiro da herança de seu pai? – Então vamos ver.

– Esse dinheiro, minha amiga, merece ser encarado com mais seriedade. Foi ganho por um homem de bem, por meio de trabalho honesto.

– O senhor já me disse isso. Eu sei. (149)

É preciso, também, assinalar que, não obstante a clara semelhança

entre as posições de vida de mãe e filha, Liza, apesar de tudo, pertence já

a outra geração, e esta absorve novas ideias e é um tanto mais livre das

convenções. Testemunha-o o facto de, sendo carne da carne da sua

mãe, ela, porém, decide-se a um casamento secreto e escandaloso aos

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olhos da sociedade.

No todo, Tchékhov não compartilhava as ideias de Tolstói acerca

questão feminina e não considerava a concupiscência masculina como

causa da ausência de direitos e humilhação da mulher.96

No concernente a Kátia, a figura feminina típica, pintada por

Tolstói, não corresponde a ela.

À diferença das outras personagens, com a exceção, é claro,

de Nikolai Petróvitch, Kátia foi notada pela crítica ainda em vida de

Tchékhov.

A sua figura foi tratada de maneira unânime: ela repete a tragédia

do professor, tal como ele, não consegue encontrar uma “ideia geral”

na vida, recorre a ele, à única pessoa próxima, por conselho, e ele

não sabe quê responder-lhe, com o que sublinha a sua incapacidade.

Ambos os dois, apesar do mútuo apego, não escutam nem

compreendem um ao outro, como o provam a última cena da “noite

dos pardais” e o final. Kátia suscita aos críticos ora irritação, ora

pena, no entanto, é preciso assinalar que eles sempre a examinam

apenas sobre o fundo do vulto de Nikolai Stepá-novitch, como o

reflexo deste ao espelho, como a última, a mais convincente, prova

da vida arruinada do professor. Liátski vê-a como uma mandriã

estouvada e nervosa, não especialmente inteligente, que diz o que

lhe vem à cabeça, pensamentos maus, mais do que tudo, e como

pessoa exasperada pelo vazio e pela inutilidade da sua vida. (p.

444)

96

Em substituição à admiração inicial pela “Sonata a Kreuzer”, veio a decepção. Thcékhov, certa

vez, chegou a dizer que, antes de tratar tal tema, Tolstói deveria ter lido dois ou três livros

especializados.

Nas obras de Tchékhov, a insolubilidade dos problemas existenciais, o que é a pedra de toque do

sofrimento das personagens, afeta ambos os sexos, embora, por força da diferença social,

fisiológica e psicológica, as mulheres enfrentam situações mais complexas, em comparação com os

homens.

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Na opinião de Bitsíli97, o vergonhoso desamparo de Nikolai

Stepánovitch, incapaz de ajudar Kátia, não obstante a sua rica

experiência pedagógica, torna-os estranhos um para o outro a tal

ponto, que não lhes resta mais do que bater a cabeça na parede; a

fenda no diálogo dos dois reflete a total incompreensão mútua, e

Kátia vai-se, amargamente decepcionada com o seu padrasto e

amigo.

Para a análise da figura de Kátia, é preciso deixar de lado as

apreciações do narrador, empregando apenas os factos da vida dela,

referidos por ele, e examinar como os meios artísticos transformam

tais factos. Recordemos brevemente a biografia de Kátia.

Antes de mais nada, a sua vida não repete nem um

pouquinho a “composição talentosamente feita” do professor. Desde

a infância, persegue-a uma série de contínuas perdas do que é o

mais caro que uma pessoa possa ter. Aos sete anos, perde os

genitores, fica órfã e vai para uma família alheia, na qual cresce

como uma criança doentia e não muito feliz, desprovida da atenção

de quase todos. Em outra cidade para os estudos, ela

inesperadamente apaixona-se pelo teatro; em casa, nas férias,

encontra total desinteresse por ela, pela sua vida e pela sua paixão.

Os de casa ignoram-na; apenas o tutor Nikolai Stepánovitch escuta-

a, por pena, na meia hora que lhe dá. Ao término dos estudos, ela

torna-se atriz e vai, com uma companhia teatral, para Ufá. A paixão

pelo teatro, que se apoderara dela, traz à sua vida “tediosa” algo

radiante, inspirado e verdadeiro. Tem início um breve período feliz,

de quatro anos, na sua vida triste. Ela faz aquilo de que gosta, viaja

e constrói planos para a vida.

Em seguida, tudo vem abaixo; Kátia decepciona-se com os

97 A.TCHÉKHOV. Pro et contra, 2010, p.586.

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seus colegas atores, com o seu próprio talento, e perde um amor. E,

por fim, tendo perdido o recém-nascido, tenta o suicídio. É salva.

Sozinha, sem ajuda nem comiseração da parte de outrem, ela volta

para Moscou e aluga apartamento, perto de Nikolai Stepánovitch. O

seu destino repete-se em muito não somente na Nina Zariétchnaia

de “A gaivota” e, de modo surpreendente, numa mulher real, amiga

próxima de Tchékhov, uma beldade que sonhava com o teatro, Lika

Mizínova, que naquele mesmo ano de 1889 entrara na vida dele e se

cartearia com ele por longos anos.

As sua’s relações pessoais não foram simples: a apaixonada

Lika e o ”semi-apaixonado” Tchékhov, brincalhão e irónico, que não

prometia nada. Torturada por essa indefinição, ela parte, em 1894,

para Paris com o conhecido escritor Ignátii Potápenko, cedendo ao

seu amor e promessa de deixar a família. Ele, no entanto, abandona

não a esposa, mas a ela, Lika. Ela dá à luz uma criança, que

morreria logo depois. E do mesmo modo como a Kátia prevista para

ela, Lika vê-se na mais desesperadora situação, e vem-lhe à cabeça

a ideia do suicídio.

O passado de Kátia é trágico, o presente é ainda mais

monótono do que o de Nikolai Stepánovitch, com menos

acontecimentos, obrigações e pessoas, e o futuro é incerto e nem a

preocupa; ela não constrói já nenhuns planos, e nada a interessa. O

vestido negro torna-se, como já assinalámos, um pormenor

simbólico, indicador da falta de futuro (e também dela associador à

personagem-doutoranda, também vestido de preto). O tempo pára

para ela, que parece mergulhar na penosa neblina uniforme da vida

semi-desperta e semi-dormente, diluída com a leitura de romances

amenos e o desperdício irrefletido do dinheiro paterno e de

encontros vespertinos com duas pessoas do seu agrado. O seu

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estado é semelhante à insónia em que vive o professor. A

característica básica e definidora da sua vida é a preguiça:

Atualmente, Kátia vive a meia versta de minha casa. Alugou um

apartamento de cinco peças, instalando-se com bastante conforto

e com o gosto que lhe é inerente. Se alguém se propusesse

representar o ambiente em sua casa, o estado do espírito

dominante no quadro seria a preguiça. Sofás macios e macios

tamboretes para o corpo preguiçoso; tapetes para os pés

preguiçosos; cores esmaecidas, lívidas, foscas, para a vista

preguiçosa; para a alma preguiçosa, abundância nas paredes, de

leques baratos e quadros insignificantes, em que o originalidade

da composição predomina sobre o conteúdo, um excesso de

mesinhas e prateleirinhas, abarrotadas de objetos completamente

desnecessários e sem valor, trapos disformes em lugar de

cortinas...Tudo isso, a par do temor às cores vivas, à simetria a

aos espaços amplos, testemunha, além da preguiça de espírito,

uma deformação do gosto natural. Katia passa dias inteiros

deitada no sofá, lendo livros, na maioria romances e novelas. Sai

de casa apenas uma vez, depois do meio-dia, para me ver. (123)

Essa única e tão minuciosa descrição de objetos no texto é

admirável para o narrador. Já o autor sublinha a enumeração das muitas

coisas e pormenores do interior, baratos e vulgares, e o vazio,

incompletude, da vida interior de Kátia. Vem à lembrança semelhante

interior de outra personagem de Tchékhov, Olga Dýmov, de “Ventoinha” .

Para além disso, ela está liberta das convenções aceitas pela

sociedade, e, à diferença das típicas mulheres do seu tempo, como as

“nulidades” Vária e Liza, o matrimónio não a interessa:

- E você está sempre deitada – digo-lhe, depois de um silência e

tendo descansado um pouco. - Isso faz mal à saúde. Você deveria

ocupar-se de alguma coisa.

- Hein?

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- Digo que deveria arranjar uma ocupação.

-Arranjar o quê? Uma mulher só pode ser operária ou atriz.

-E então? Se não pode ser operária, vá para o teatro.

Cala-se.

-Ou então se case – digo, meio gracejando.

-Não há com quem. E não há motivo.

-Não se pode viver assim.

-Sem marido? Grande coisa! Há homens à vontade, basta querer.

-Isso não é bonito, Kátia.

-O que não é bonito?

-Isso que você acabou de dizer. (131)

Família propriamente dita, ela não tinha, e família não

representava nenhum valor para ela; é por isso que ela dá com tanta

leviandade a Nikolai Stepánovitch o conselho de deixar a esposa e a filha

e partir para algum lugar. Na sua opinião, a raiz dos problemas do

padrasto está precisamente nelas, e é nelas que deita a culpa pela

abalada saúde dele. Vária e Liza, por sua vez, odeiam-na e consideram

“indecente” a relação dela com Nikolai Stepánovitch, por ela ser tão alheia

ao mundo deles e desprezar tão declaradamente a ele e a elas. Preocupa

especialmente a esposa o modo como os encontros dos dois parecerá aos

olhos dos conhecidos. É possível que, sem o reconhecerem para si, elas

sintam certa culpa pelo acontecido a Kátia, e isso vem sugerido por um

pormenor. Na infância, Kátia achava graça no castigo, infligido a pessoas

adultas e estudantes, chamado “pôr de joelhos”. É provável que a ela

própria tenham castigado assim mais de uma vez.

- Os estudantes brigam na universidade? -perguntava ela.

- Brigam, querida.

- E o senhor manda ficarem de joelhos?

- Mando.

Achava graça em que os estudantes brigassem e eu os mandasse

ficar de joelhos, e ria. (118)

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Ofendida com o fato de Kátia ter chegado e não ido dizer os

bons-dias aos de casa, Liza diz:

– Mamãe! - diz Lisa com censura. - Se ela não quer, que vá

com Deus. Não vamos ficar de joelhos. (125)

Se a vida de Kátia houvesse tido outro rumo, ela, possivelmente,

de menina “que gostava muito de falar” e rir, haver-se-ia, com o tempo,

transformado numa “velhota faladeira e de riso fácil (127)), tal qual a

criada Agacha, a quem o professor recorda com carinho. Ela poderia ter

sido uma bela esposa e mãe, com a sua capacidade de diluir-se na pessoa

amada. No príodo de breve felicidade, absorvida pelo amado e pelos

planos deste, ela até lembra uma personagem muito distante dela, a

Ólenka Plemiánnikova de «Queridinha».

As cartas que se seguiram eram igualmente magníficas, mas já

apareciam nelas sinais de pontuação, desapareceram os erros

gramaticais, e começaram a exalar forte cheiro masculino. Kátia

passou a escrever-me que seria bom construir em alguma cidade

do Volga um grande teatro, em base de sociedade anônima, e

atrair para a empresa comerciantes ricos e armadores; as

receitas seriam enormes, os atores teriam participação nos

lucros...É possível que tudo isso seja realmente bom, mas tenho

a impressão de que semelhantes projetos só podem provir duma

cabeça masculina. (121)

No entanto, aos vinte e cinco anos , ela já perdera tudo na

vida. E do mesmo modo como as recordações animam e dão cores à

vida baça e tediosa de Nikolai Stepánovitch, tão-somente um único

fio liga Kátia à vida viva, às emoções vivas, a um “deus do homem

vivo”: o próprio professor, tutor, quase pai, amigo chegado, a única

pessoa no mundo que lhe dava atenção, ainda que só de vez em

quando, ainda que por pena e pelo sentimento de dever, em

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memória dum amigo falecido. A única pessoa que lhe escrevia, ainda

que cartas tediosas, mas escrevia, dava conselhos. A única pessoa

de que Kátia gosta. Nikolai Stepánovitch fora e continua a ser para

ela um herói, quase da escala antiga, semelhante a Hércules, tal

como o professor recorda a si próprio. Kátia não possui mais

ninguém nem nada.

Sem dúvida, como julga a maioria dos críticos, há

determinado paralelo e determinada semelhança entre os dois. Isso

é também apontado por um pormenor “fortuito”:

Lembro-me também, ela gostava de vestir-se bem e de se

perfumar. Nesse sentido, parecia-se comigo. Também eu gosto

de roupas bonitas e de bons perfumes (118)

Um mesmo caminho, na vida, da esperança, inspiração, amor

e do trabalho prazeroso à decepção, ruína e até a morte é percorrido

por ambos; apenas Nikolai Stepánovitch o faz no decorrer de alguns

decênios, e Kátia, impetuosamente, em três ou quatro anos. Nisso

esgota-se, na nossa opinião, a semelhança entre os dois. Eles

representam dois tipos psicológicos diferentes. Ele tem raciocínio

lógico; ela, metafórico. A ela são verdadeiramente incompreensíveis

a “filosofação” dele e a sua “ideia geral”.

E em geral... eu não gosto dessas conversas sobre arte! -

continua nervosa. - Não gosto! E já banalizaram tanto, muito

obrigada!

-Quem a banalizou?

-Uns a banalizaram com a bebedeira, os jornais, com o trato

familiar, as pessoas inteligentes, com a filosofia.

– A filosofia não tem nada a ver com o caso.

– Tem, sim. Se alguém filosofa, isso quer dizer que não

compreende. (150)

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Eles dão um ao outro conselhos verdadeiramente

inexeqüíveis nas condições em que encontram, e não

correspondentes aos seus caracteres: assim, Kátia propõe a Nikolai

Stepánovitch deixar a família e ir-se para algum lugar, e ele, por sua

vez, sugere a ela procurar trabalho ou casar-se. Não se pode,

porém, afirmar com certeza que entre os dois haja uma completa

incompreensão. De vez em quando, eles caracterizam um ao outro

com admirável exatidão:

-Tem um tom e umas maneiras de vítima. Isso não me agrada,

minha amiga. Vocé mesma é culpada. (150)

Não tem sensibilidade, não tem ouvido para a arte. Esteve

ocupado a vida inteira e não teve tempo de adquirir essa

sensibilidade. (150)

Do texto não decorre que a Kátia incomode a falta de sentido

da sua existência; ao contrário, conversas acerca disso aborrecem-

na, e ela simplesmente esquiva-se a conselhos. Apenas numa única

cena nós observamos algo que sugere que ela reflita nesse tema, e

isso de passagem, aliás. Também naquela, o reconhecimento da

falta de talento é-lhe muito mais doloroso:

-Nicolai Stiepánitch, eu sou um fenômeno negativo? Sou?

– É – respondo eu.

– Hum... O que devo fazer? (149)

Discordamos radicalmente da opinião (Katáev, Linkov e

outros), segundo a qual Kátia não compreende a dor do seu amigo e

padrasto e não a sente, nem nota a sua doença. Inúmeros

pormenores, ao contrário, indicam precisamente que ela a sente e

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nota.

Ela visita-o todos os dias e recebe-o em casa todas as

noites. Seguindo-o, ela muda-se para a datcha e aluga casa nas

proximidades; leva-o a passear todos os dias e passa todos os fins

de tarde e começo da noite com ele. Esses são os únicos

acontecimentos na vida dela. Cínica e desiludida, com que

sentimento ela escuta os seus relatos da vida passada!

Ela me ouve comovida, orgulhosa, a respiração suspensa. (134)

Como isso não se parece com aquelas meias horas, em que

ela, outrora, o obrigava a escutá-la! Nós já assinalámos o que

significa um símbolo tão essencial como uma mesa de trabalho, e o

facto de Kátia organizar na sua própria casa, no seu espaço pessoal,

um lugar de trabalho para ele, diz bem da confiança ilimitada que

ele via nos seus olhos infantis.

Ela oferece-lhe todo o seu dinheiro, isto é, em essência, a

única coisa que pode oferecer-lhe. Tal atitude lembra-nos a

decepção, que Nikolai Stepánovitch experimenta em relação aos

próprios filhos, e as suas censuras a eles, que não querem notar a

sua humilhação diante da pobreza. Cria-se a nítida impressão de

que toda a vida de Kátia se encerra em Nikolai Stepánovitch; ela

não consegue passar nem um dia sem ele, os seus pensamentos são

nele, e tudo o que faz, é por ele. Ele é a “ideia geral” dela, o seu

“estojo” .

E a progressiva moléstia do professor é o que não dá sossego

a Kátia, mudando o seu comportamento, estado de espírito e tom da

voz. A primeira cena com Kátia termina com o seguinte diálogo:

Quando a acompanho até a ante-sala, examina-me com

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severidade da cabeça aos pés e diz, magoada:

-Está emagrecendo sempre! Por que não se trata? Vou procurar

Sierguiéi Fiódorovitch e pedir que examine.

– Não precisa, Kátia.

– Não compreendo como a sua família não percebe! Boa

gente, pode-se dizer. (124)

Na cena seguinte (na casa de Kátia), esta estava com

preguiça, a falar mal dos outros e a rir, e, de repente, a conversa

passa à doença de Nikolai Stepánovitch e o estado dela muda

repentinamente . Não podemos deixar de assinalar este pequeno

pormenor:

- O que tem? Está doente?

- Sim, um pouquinho

- E não se trata... - acrescenta Kátia, taciturna. (141)

A doença do professor é o que torna a cínica e a tudo indiferente

Kátia “severa e sombria” e o que é verdadeiramente sério para ela na sua

vida desprovida de objetivos.

Pelo convívio diário com o padrasto e pela sua concentração nele,

ela não pode deixar de notar o desenvolvimento da doença dele. Por que,

então, julga a crítica unanimemente que Kátia não o escuta e não o

compreende?

Kátia não está em condições de compenetrar-se dos sentimentos

e pensamentos do padrasto; é inacessível a ela, a realidade de

outra pessoa. (...) Nikolai Stepánovitch fala duas vezes a ela, a

pessoa mais cara a ele, da sua morte e, em ambas as vezes, não

encontra simpatia. Quando ela lhe oferece dinheiro, ele

responde: “O teu dinheiro, agora, é completamente inútil para

mim”. As palavras “agora, é completamente inútil para mim”,

parece, poderiam pelo menos inquietar Kátia, que sabe da grave

moléstia de Nikolai Stepánovitch. Mas ela não consegue ouvir o

que lhe dizem, e ofende-se, de modo completamente

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despropositado: "Eu compreendo-o... Tomar dinheiro emprestado

duma pessoa como eu... uma atriz retirada...” Kátia emprega a

forma estereotipada “Eu compreendo-o” ("Я вас понимаю"), mas

o facto é que não compreende. Sentimentos “de escravo”

(“pабские") excluem qualquer contacto verdadeiramente

humano.98

Voltemos ao episódio, referido pelo crítico, a chegada inesperada

de Kátia numa noite dos pardais.

Mas eis que range o portão do jardim, alguém se esgueira ali e,

quebrando um ramo de uma das arvorezinhas esquálidas, bate

com ele cautelosamente na janela.

- Nicolai Stipánitch! - ouço um murmúrio. - Nicolai Stiepánitch!

Abro a janela e tenho a impressão de estar vendo um sonho:

embaixo, apertada contra a parede, está uma mulher de negro,

fortemente iluminada pelo luar, e dirige para mim os olhos

grandes. Tem o rosto pálido, severo e fantástico devido ao luar,

como que de mármore, treme-lhe o queixo.

– Sou eu... - diz ela. - Eu... Kátia!

Ao luar, todos os olhos de mulher parecem grandes e negros, as

pessoas, mais altas e mais pálidas, e provavelmente por isso não

a reconheci no primeiro instante.

- O que você quer?

- Desculpe – diz ela. - De repente, não sei por quê, tive um

sentimento intoleravelmente penoso... Não pude suportar e vim

para cá... Havia luz na sua janela, e..., eu resolvi chamá-lo...

Desculpe... Ah, se o senhor soubesse como era penoso o que

senti! O que está fazendo agora?

- Nada... Insônia.

– - Tive não sei que pressentimento. Aliás, é ninharia.

As suas sobrancelhas se levantam, brilham-lhe os olhos de

lágrimas, e todo o seu rosto se ilumina, como que por uma luz,

por uma expressão conhecida, há muito não vista, de confiança.

98

V.LINKOV, Moscou, 1982, p.64.

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– Nicolai Stiepánitch! - diz ela súplice, estendendo para mim

ambas as mãos. - Meu querido, peço-lhe... imploro... Se não

despreza a minha amizade e o meu respeito pelo senhor, aceda

ao meu pedido!

– O que é?

– Aceite dinheiro de mim!

– Ora, o que inventou! Para que preciso do seu dinheiro?

– O senhor vai tratar-se em alguma parte... O senhor

precisa tratar-se. Vai aceitar? Sim? Meu querido, sim?

Fita avidamente o meu rosto e repete:

– Sim? Vai acertar?

– Não, minha amiga, não aceitarei...- digo eu. Obrigado.

Volta-me as costas e baixa a cabeça. Provavelmente,

expressei a minha recusa num tom que não admitia mais

conversas a respeito de dinheiro.

– Vá para casa dormir – digo. - Vamos ver-nos amanhã.

– Desculpe... - diz ela, baixando a voz toda uma oitava. -

Eu compreendo o senhor... Ficar devendo a uma pessoa como

eu... uma atriz aposentada... Bem, adeus...

E ela se afasta com tamanha pressa que não consigo sequer

dizer-lhe também o meu adeus. (155-156)

Na tradução brasileira, infelizmente, omitiu-se um dos elementos mais

importantes, que muda todo o quadro do que está a ocorrer (em letras

gordas):

-- Поезжай домой спать,-- говорю я.-- Завтра увидимся. [Vai

para casa dormir, — digo-lhe eu —. Amanhã nos veremos].

-- Значит, вы не считаете меня своим другом? --

спрашивает она уныло. [Quer dizer que não me considera

sua amiga? — pergunta ela pesarosamente.]

-- Я этого не говорю. Но деньги твои теперь для меня

бесполезны. [Não é isso o que eu digo. Mas o teu

dinheiro, agora, é inútil para mim.]

-- Извините...-- говорит она, понизив голос на целую октаву.

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[Desculpe, — diz ela, baixando... (...).99

À diferença de Nikolai Stepánovitch, que vai para junto de Kátia,

fugindo a uma condição insuportável, para que o escutem e para estar na

companhia duma pessoa simpática a ele, Kátia procura-o por ele próprio e

por maus pressentimentos, para certificar-se de que esteja tudo em

ordem com ele. A inquietação não a abandona. Tendo padecido tantas

perdas, agitada e assustada, ela tenta afugentar o pensamento de que a

espera mais uma, a perda do seu único ente querido. Ela está pálida, e o

queixo treme-lhe. Tendo verificado que ele está vivo, que está tudo em

ordem e que tudo não passa duma insónia, Kátia volta a ser a de antes,

quase feliz como uma criança. E precisamente então:

As suas sobrancelhas se levantam, brilham-lhe os olhos de

lágrimas, e todo o seu rosto se ilumina, como que por uma luz,

por uma expressão conhecida, há muito não vista, de confiança.

(155)

Que acontece em seguida? Kátia oferece dinheiro, Nikolai

Stepánovitch não o aceita e alude a uma morte próxima; Kátia “ofende-

se” e vai-se. Dinheiro é tudo o que poderia oferecer, contanto que isso

pudesse melhorar o mais importante para ela: o estado e a saúde dele; e

ela está disposta a entregar tudo isso e até implora que ele o aceite.

Poderia Kátia pensar seriamente que Nikolai Stepánovitch a despreze

como atriz retirada? Dificilmente.

Em compensação, logo após a alusão de Nikolai Stepánovitch

acerca da inutilidade do dinheiro para ele naquele momento, a voz de

Kátia “baixa uma oitava inteira”. Um importantíssimo pormenor musical

simplesmente “grita”: Kátia compreendera tudo. Ela ouvira precisamente

o que mais temia, e o cérebro recusa-se a aceitá-lo. Tal qual a imensa

maioria das personagens de Tchékhov, incapazes de confessar o mais

99

A.TCHÉKHOV, Moscou,1977, p.303-304.

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importante a si próprias e aos outros, Kátia está aterrorizada e, como se

se defendesse, diz a primeira tolice que lhe vem à cabeça. E foge

precipitadamente. A fuga apresenta-se como uma ilusão de salvamento.

A cena seguinte é em Khárkov.

Uma batida leve na porta. Alguém precisa de mim.

- Quem está aí? Entre!

Abre-se a porta e, surpreso, dou um passo para trás e apresso-

me a juntar as abas do roupão. Quem está diante de mim é

Katía.

- Bom dia – diz ela, respirando pesado, em consequência da

escada. - Não me esperava? Também eu... também eu vim para

cá.

Senta-se e prossegue, gaguejando e sem me olhar:

- Por que não me diz bom-dia? Eu também cheguei...hoje...

Soube que o senhoe estava neste hotel e vim vê-lo.

- Estou muito contente de ver você - digo, dando de ombros - ,

mas estou surpreendido... Você como que caiu do céu. Para que

está aqui?

- Eu? Assim... simplesmente, peguei e vim.

Silêncio. De repente, ela se ergue num arranco e caminha na

minha direção.

- Nicolai Stiepánitch! - diz, empalidecendo e apertando as mãos

sobre o peito – Nicolai Stiepánitch! Não passo mais viver assim!

Não posso! Pelo amor do Deus verdadeiro, diga-me o quanto

antes, já: o que devo fazer?

- O que posso dizer? - fico perplexo. - Não posso nada.

- Mas fale, eu lhe imploro! - continua ela, ofegante, o corpo todo

trêmulo. - Juro-lhe que não posso mais viver assim! Não tenho

mais forças!

Cai sobre uma cadeira e põe-se a soluçar. Jogou a cabeça para

trás, estrala os dedos, bate os pés; o chapeuzinho caiu-lhe da

cabeça e balança-se sobre o elástico, o penteado está desfeito.

- Ajude-me! Ajude-me! - implora. - Eu não posso mais!

Tira da sua bolsinha de viagem um lenço e, com ele, algumas

cartas que lhe caem dos joelhos para o chão. Levanto-as,

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reconheço numa delas a letra de Mikhail Fiòdorovitch e, sem

querrer, leio o fragmento de uma palavra: “apoixonad...”

- Não posso dizer nada a você, Katía.

- Ajude-me! - soluça ela, agarrando-me a mão e beijando-a. - O

senhor é meu pai, o meu único amigo! É inteligente, culto, viveu

muito! Foi professor! Diga-me: o que devo fazer?

- Pela minha consciência, Katia: não sei...

Estou perplexo, confuso, comovido por aqueles soluços, e mal

me seguro sobre as pernas.

- Vamos almoçar, Kátía – digo, sorrindo tenso. - Chega de

chorar!

E logo acrescento, a voz caída:

- Em breve, deixarei de existir, Katía...

- Ao menos uma palavra, ao menos uma palavra! - chora ela,

estendendo-me os braços. - O que fazer?

- Que mulher esquisita, realmente... - balbucio. - Não

compreendo! Tão inteligente, mas num átimo – aí está! - caiu

um pranto...

Segue-se um silêncio. Katía ajeita o penteado, põe o chapéu,

depois amassa as cartas e enfia-as na bolsinha – e tudo isso em

silêncio, sem se apressar. Tem o rosto, o peito e as luvas

molhados de lágrimas, mas a expressão do seu rosto já é seca,

severa... Olhando-a, tenho vergonha de ser mais feliz que ela.

Foi somente pouco antes da morte, no ocaso dos meus dias, que

notei em mim a ausência daquilo que os meus colegas filósofos

denominam uma ideia geral, mas a alma dessa infeliz não

conhece e não há de conhecer abrigo a vida toda, toda!

- Vamos almoçar, Katía – digo.

- Não, obrigada – responde ela com frieza.

Mais um minuto de silêncio.

- Não gosto de Khárkov – digo. - Há muita cor cinza. Uma cidade

cinzenta.

- Sim, realmente... É feia... Vou passar pouco tempo aqui...

Estou de passagem. Partirei hoje mesmo.

- Para onde?

- Para a Criméia...isto é, para o Cáucaso.

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- Bem, por muito tempo?

- Não sei.

Kátía levanta-se e, tendo sorrido com frieza, estende-me a

mão sem me olhar.

Tenho vontade de perguntar: “Quer dizer que não virá ao meu

enterro?” Mas ela não me olha, tem a mão fria, como que alheia.

Acompanho-a calado pelo corredor comprido, sem olhar para

trás. Sabe que a sigo com olhos, e, provavelmente, voltar-se-á

na curva.

Não, não se voltou. O seu vestido negro apareceu pela útima

vez, não se ouviram mais os seus passos... Adeus, meu tesouro!

(161)

Segundo a opinião unânime da crítica, Kátia chega a Khárkov com

a esperança de que Nikolai Stepánovitch lhe ensinará como viver,

porquanto a sua vida se tornara insuportável pela falta de sentido. Mas ele

não tem nada por oferecer-lhe, a não ser um “vamos desjejuar” ("давай

завтракать"). É nisso que consiste o tédio de toda a história (Katáev).

Que acontece, a nosso ver, no último encontro dos dois? Com a

partida de Nikolai Stepánovitch, quando Kátia não tem a possibilidade de

vê-lo diariamente, a angústia dela e os maus pressentimentos aumentam

muito. Parece mais natural que ela, tal como na “noite dos pardais”, se

tenha arrancado do seu lugar e corrido para ele, indo para outra cidade

para dissipar a inquietação, tranqüilizar-se e certificar-se de que com ele

estava tudo certo, e não para obter urgentemente um conselho sobre

como tornar a sua vida consciente, sensata. E que vê ela dessa vez?

Nikolai Stepánovitch, no ambiente estranho dum hotel, conta com

indiferença o tempo que lhe resta; está apático, à espera da morte;

ademais, começa-lhe um tique nervoso na face; ele está a morrer. É nesse

estado que Kátia o encontra.

E então, diante do aspecto dele, é que lhe vem a histeria. As

personagens de Tchékhov raramente dizem o que verdadeiramente

pensam, e Kátia não é exceção. O seu grito é uma súplica de consolo.

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Assim grita uma pessoa de medo, sem saber exatamente o que está a

gritar: “Socorro! Que devo fazer?!” É Nikolai Stepánovitch, cujas reflexões

num balanço da vida Kátia interrompe, que acha que ela sofre do mesmo

que ele: na vida dela, não haveria uma ideia geral. Parece-nos que,

contrariamente à opinião dos críticos, uma “ideia geral” é a última coisa

que a possa preocupar naquele momento. Ela compreende o que se

passa: logo estará cara a cara com a sua inútil vida. E tudo o que ela quer

— que ele a tranquilize e diga que com ele está tudo bem, — eis aí a “uma

palavra” que ela espera dele e a ele implora. No acesso de histeria, ela de

repente ouve claramente, em resposta à sua súplica de ajuda, o que é o

mais horrível de tudo para ela, e já não uma indireta, mas uma afirmação

direta: em breve, ele já não estaria entre os vivos. E como se não

houvesse entendido imediatamente a frase dele, ela ainda grita e estende-

lhe a mão, mas o terrível significado das palavras chega-lhe aos poucos.

Kátia ali chegara com uma frágil esperança, e ele privara-a dela.

E bruscamente, depois da tomada de consciência do irreparável,

tudo muda; sobrevém o silêncio, o tempo para, o rosto torna-se já seco,

grave... Esse é o ápice do sofrimento; ela é já incapaz até de chorar. Tudo

duma vez perde o sentido. Ela não consegue olhar para ele, a conversa

torna-se sem sentido, e depois é só o frio, a mão fria como que dum

desconhecido, o vestido negro. Como se também para Kátia a vida

houvesse acabado.

Katáev, num dos seus livros100, compara “Uma história

enfadonha” com “Fausto”, de Goethe, e traça uma correspondência entre

os pares Fausto-Wagner e Nikolai Stepánovitch-Piotr Ignátievitch.

Kubássov101 foi mais longe, com a observação da semelhança

entre Kátia e Margarita e entre Mikhail Fiódorovitch e Mefistófeles. Tendo

100 KATÁEV, V. B. Literaturnye svjazi Tchekhova (Contactos literários de Tchékhov). Moscou, Ed. da

Univ. Estatal de Moscou,1989.

101 KUBÁSSOV, A. Proza A. P. Tchekhova. Iskusstvo stilizacii (A prosa de A. P. Tchékhova. Arte da

estilização). Ekaterinburg, 1998

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ressaltado que o papel do último no texto permanece obscuro, ele dá a

sua interpretação à figura da personagem. Ele observa, antes de mais

nada, que as iniciais do nome e do patronímico (M. F.) não foram

escolhidas ao acaso, mas apontam para determinado protótipo literário, à

semelhança do nome e do apelido de Dmítri Gúrov “A dama do

cachorrinho”) por analogia como Don Guán (Don Juan, em russo). Uma

semântica complementar provém de características da aparência (cabelos

grisalhos e sobrancelhas negras), que se encontrariam na figura de outro

Mefistófeles, o monge negro de “O monge negro”. Kubássov analisa o

léxico da personagem, no qual são recorrentes algumas réplicas

sugeridoras da origem “infernal”, como, por exemplo, "адски холодно"

(um frio dos infernos) e “к чёрту” (o diabo que o carregue), e acrescenta

que, por ironia, essa personagem se dirige a deus com mais frequência do

que as outras (Ai, meu Deus!, Deus me livre etc ), e assinala o cinismo de

Mikhail Fiódorovitch, principalmente quando se fala de outros membros da

Igreja, o que, na opinião do estudioso, fala duma genealogia literária,

dum oculto parentesco com Mefistófeles.

Nós concordamos em muito com as conclusões de Kubássov, mas

ele deixou escapar dois pormenores substanciais, que não apenas

complementam a figura da personagem, senão também a modificam.

O primeiro é que a personagem não é simplesmente um colega de

universidade, mas um filólogo; mais do que isso:

Pertence a uma antiga e nobre família, bastante feliz e talentosa,

que desempenhou um papel apreciável na historia da nossa

literatura e da nossa instrução. (134)

E isso significa que, desde a infância, Mikhail Fiódorovitch vive

num meio, em que se fala de literatura, e num mundo de personagens

literárias, provando em si as personalidades delas, como quem prove uma

camisa a ver se ela lhe serve.

Ele cita Liérmontov, o seu modo de falar lembra a Nikolai

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Stepánovitch o tom dos coveiros de Shakespeare, e, em relação a isso,

podemos lembrar mais um filólogo de Tchékhov, que também opera com

nomes de escritores e de personagens literárias e prova em si os papéis

delas: Laiévski (“Duelo”).

O segundo pormenor é um daqueles “fortuitos”: barbeado.

E, de fato, um instante, depois, entra meu colega, o filólogo

Mikhail Fiódorovitch, alto, bem proporcionado, de uns cinquenta

anos, com cabelos densos e grisalhos, sobrancelhas negras e

rosto barbeado. (134)

À diferença de outras características exteriores, dadas no seu

retrato, das sobrancelhas negras e dos cabelos grisalhos, o seu “estar

barbeado” não o define de modo nenhum, mas, em compensação, liga-o

diretamente a outra personagem “barbeado”, o ator-amante de Kátia.

Com a carta, vinha a fotografia dum jovem de rosto barbeado...

(121)

Para além de ambos estarem relacionados com Kátia, um estivera

apaixonado por ela no passado, o outro no presente; os dois são pessoas

da mesma têmpera, naturezas artísticas, criativas. Talvez seja

precisamente essa característica o que atrai Kátia. E o paralelo com o ator,

estabelecido pelo pormenor, ressalta que Mikhail Fiódorovitch apenas

desempenha o papel de Mesfistófeles, identificando-se com ele.

A impressão de ele agir como ator e fazer cena para os outros é

reforçada pelo jogo de paciência, a que se dedica. Agradam-lhe tanto o

papel quanto a atenção de Kátia. Pode notar-se que eles se compreendem

maravilhosamente.

Katia acompanha-o, com atenção as suas jogadas e ajuda-o mais

com mímica do que com palavras. (137)

Infunde muito respeito a Kátia o seu cinismo, os seus chistes, a

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elegante dignidade afetada, o artisticismo. No entanto, de tempos em

tempos, por influência do amor, que ele é incapaz de controlar, a máscara

cai-lhe:

Quando ele recebe de Kátia um copo ou ouve uma observação,

ou se acompanha com o olhar, se ela sai por uns instantes do

quarto, a fim de buscar qualquer coisa, noto nos olhos dele algo

humilde e puro, algo que reza. (136)

E, quer-nos parecer, precisamente nos momentos em que ele sai do

papel, ele, do modo mais natural, não na qualidade de ironia, emprega

frases como “Graças a deus!”e assim por diante. E, quanto mais forte se

torna o seu amor a Kátia, tanto menos ele lembra Mefistófeles.

Há muito tempo já que Mikhail Fiódorovitch devia ter viajado

para o estrangeiro, mas ele adia a partida cada semana. Nos

últimos tempos, aconteceram com ele certas modificações:

parece mais acabado, passou a embriagar-se com vinho, o que

antes nunca lhe acontecera, e as suas sobrancelhas negras estão

começando a branquear. Quando a nossa carruagem pára junto

ao portão, ele não esconde sua alegria e impaciência. Agitando-

se, ajuda Kátia e a mim a descer do carro, apressa-se a fazer

perguntas, ri, esfrega as mãos, em que há de humildade, puro,

de reza, que eu já notara apenas em seu olhar, espraia-se agora

por todo o seu rosto. Alegra-se e, ao mesmo tempo, envergonha-

se da sua alegria, envergonha-se desse costume de ir à casa de

Kátia todas as noites, e julga necessário motivar a sua vinda com

algum contrassenso evidente, no gênero de “Estava passando

por aqui, a serviço, e pensei: vamos entrar um instantinho”.

(151)

À medida que a natureza demoníaca com tom permanentemente

brincalhão e mistura de filosofia com chalaça, como no caso dos coveiros

de Shakespeare, vai cedendo o papel ao apaixonado comum, o interesse

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de Kátia diminui. A carta amassada com um pedacinho da palavra

“apaix.”, uma franca confissão em que a chalaça é impossível, é uma clara

derrota de Mikhail Fiódorovitch.

E, se ele nisso se revela apenas um ator no papel do “espírito

impuro”, o Diabo, então outra personagem às ocultas, gradualmente,

passa a personificar esse espírito impuro. É Aleksandr Adólfovitch

Hnekker. Simultaneamente a “Uma história enfadonha”, em 1889,

Tchékhov escrevia a peça “O silvano”, que, posteriormente, seria

reelaborada e se tornaria “Tio Vánia”, cujas personagens, tal como Mikhail

Fiódorovitch, provam, em si e em outras personagens, diversas máscaras

literárias. Assim, o título “Silvano”, para alguma decepção do público, que

esperava ver, no palco, uma figura das lendas do folclore, revela-se tão-

somente a alcunha duma personagem.

Sem entrarmos na análise dos paralelos entre os dois textos, e tais

paralelos existem, queremos assinalar que para nós o importante é o facto

de que, no período de escrita de “Uma história enfadonha”, era grande o

interesse de Tchékhov por mitologia e, principalmente, no presente caso,

pelo folclore e que tal interesse se materializa nas figuras das

personagens e nos papéis desempenhados por elas.

Como escreve M. Odiésskaia, no estudo da peça:

A figura folclórica do silvano é ambivalente: ela, por um lado,

está relacionada com as forças das trevas, infernais e hostis ao

homem e, por outro, o silvano recebeu frequentemente traços

cómicos e constitui uma das personagens dos contos

natalinos.102

Recordemos o retrato de Hnekker:

É um jovem louro, que não tem mais de trinta anos, de estatura

média, muito corpulento, de ombros largos, com suíças ruivas

102

M.ODESSKAJA. Tchékhov i problema ideala, Moscou, 2011, p. 167

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junto às orelhas e bigodinho pintado, que dá ao seu rosto cheio e

liso um quê de brinquedo. Veste paletó muito curto, colete

colorido, calças de xadrez graúdo, muito largas em cima e muito

estreitas embaixo, e usa sapatos amarelos, sem salto. Tem olhos

esbugalhados, de lagosta, a gravata lembra pescoço de lagosta e

até, parece-me, todo esse moco exala um cheiro de sopa de

lagosta. (126)

Nós já assinalámos, no capítulo dedicado à simbologia da gama

cromática da sua aparência e traje, a sua associação, no nível dos

pormenores simbólicos, pela cor ruiva das suas suíças, ao mercador ruivo

e ao samovar de cobre deste, e também o facto de que o colorido do seu

traje simboliza alheamento em relação ao mundo estimado e caro ao

professor, do que este fala sem rodeios, chamando a Hnekker “corpos

estranhas”, um ser sem nada em comum com os outros e até o compara a

um “zulu”. Para além disso, no folclore russo, a cor ruiva frequentemente

associa-se a vigaristas e embusteiros.103 Propp supõe que o epíteto “de

cobre”; (por exemplo, Медный лоб – Fronte de cobre), frequentemente

empregado em relação aos demónios da floresta, como Silvano e Silen,

nos contos de fadas, pode estar relacionado precisamente com a cor ruiva

do cobre104 (o que mais uma vez leva de volta ao mercador e ao seu

samovar).

Um traço característico do silvano, no folclore russo, era a

capacidade de deixar confusa a cabeça às pessoas, depois de que elas

caíam inteiramente no seu poder. Assim sob o poder de Hnekker caem

Liza, Vária e, para a admiração do professor, muitos outros.

103

Por exemplo, no conto recolhido por A. Afanássiev e intitulado "С рыжим, да красным не

связывайся" (Com o ruivo e o vermelho não te metas).

Disponível em: http://hyaenidae.narod.ru/story5/339.html.

104 V. PROPP. Istoricheskie korni volshebnoj skazki, Moscou, Labirint, 2000, p.133.

Disponível em: https://www.e-reading.club/book.php?book=46789

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...emite juízos sobre música, com grande autoridade, e, eu

notei, os demais concordam com ele de bom grado. (126)

E, o que é o mais interessante, em muitos contos de fadas russos,

o silvano rouba a filha da personagem, para com ela casar-se.105

Para além disso, a roupa vistosa, colorida e grotesca suscita

associação com o bufão, que aparece frequentemente na figura dum ser

mesquinho e maldodo (“шут” – bobo, histrião, bufão – é um dos

eufemismos para “Diabo”).

Os demónios assumem, nas crendices, o aspecto de animais do

velho culto: bodes, lobos, cães, corvos, serpentes etc. Julgava-se

que, no todo, eles tivessem aparência antropomorfa, mas com o

acréscimo de alguns fantásticos ou monstruosos. Esses eram,

sobretudo, cornos e rabo ou pernas ou patas de bode; às vezes,

pelagem ou focinho de porco, unhas, asas de morcego e assim

por diante. Embora aos demónios houvesse sido dado o mundo

todo para as suas andanças, eles, ainda assim, tinham os seus

sítios preferidos para domicíklio permanente. De mais bom grado

estabelecem-se em lugares onde bosques espessos sejam

cortados por faixas contínuas de pântanos inacessíveis, nunca

pisados por pés humanos. Ali, nos tremedais ou lagos cobertos

de vegetação, onde ainda se conservam camadas de terra

misturada a raízes de alga entrelaçadas, o pé humano afunda

rapidamente... Não é aqui que oculta a força maligna do diabo?...

Isso refletiu-se nos ditados russos "В тихом омуте черти

водятся" (“No pego calmo escondem-se demónios”, com o

sentido de “Guarda-te do homem que não fala e do cão que não

ladra”), "Было бы болото, а черти будут" (Sempre haverá mãos

ociosas para fazerem o trabalho do diabo. Haja cibo no pombal,

que pombas não faltarão.)106

105

Conto” Silvano”, na redação de A. Afanássiev.

Disponível em: http://hyaenidae.narod.ru/story5/333.html.

106 V.ARTEMOV Mify i predanija slavjan.

Disponível em: https://www.e-reading.club/bookreader.php/1034505/Artemov_-

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Na sua figura, há algo de brinquedo, isto é, artificial, não humano,

e ninguém, no fundo, sabe o que quer que seja dele:

Ninguém de minha família sabe qual a sua origem, onde estudou

e quais os seus meios de vida.(126)

Fazendo um balanço, temos, diante de nós, um ser ruivasco

desagradável, de outro mundo, de que não se sabe nada, que subjuga

pessoas, que possui traços exteriores, associados a um animal

(caranguejo), que exala um cheiro a rio e pântano e rapta a filha duma

personagem para casar-se com ela. Claramente, Hnekker apresenta-se na

figura do espírito impuro do folclore, seja dum silvano, seja dum demónio,

não dotado da pujança diabólica de Mefistófeles, é verdade, mas

semeador do mal e do embuste em torno de si. E não foi por acaso que

Tchékhov lhe deu a nacionalidade alemã.

Pode recordar-se o conto “O sapateiro e o espírito impuro”,

escrito em 1888, um ano antes de “Uma história enfadonha”; nele,

apesar do tom irónico, também se encontram motivos de “Fausto” e

um encomendador de botas, com um apelido alemão difícil de

pronunciar, aparece em sonho a um sapateiro, na forma do Diabo, e

compra a alma da personagem por bens mundanos.

Nas obras de Tchékhov, há muitas personagens alemãs, a começar

dos primeiros, humorísticos, nos quais se aproveitam as particularidades

do caráter nacional e os chavões literários e nos quais se tornam

procedimentos cómicos os apelidos engraçados107, a pronúncia errada de

palavras russas ou a inclusão da fala alemã na russa. Nos contos mais

_Mify_i_predaniya_slavyan.html

107 No conto “Isto e aquilo”, da primeira fase, encontram-se os apelidos Klopson (russo клоп –

“percevejo” + alemão son – “filho”: “filho dum percevejo”) e Verfluchtenschwein (literalmente:

проклятая свинья – “porco maldito”).

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tardios, diminui o efeito cómico, até quase desaparece, mas permanece a

contraposição das particularidades de caráter de alemães e russos, que

leva as personagens à não aceitação um do outro, à incompreensão ou

conflito; dum lado, despreocupação, largueza, espontaneidade,

emotividade; do outro, seriedade e ponderação, concentração, parcimónia

e previdência, falta de autoanálise, estreiteza de vistas (von Koren de

“Duelo”, von Dideritz de “A dama do cachorrinho” e outros).

Precisamente esses traços, “alemães”, encontram-se, em medida

cabal, no chefe do serviço de necropsia de Nikolai Stepánovitch, o russo

Piotr Ignátievitch, pessoa modesta e laboriosa mas limitada e desprovida

de talento, que, em quaisquer situações graves e excepcionais:

...continuando calmamente a olhar em seu microscópio, o olho

entrecerrado. (110)

Pela sua afeição aos cientistas alemães, que tanto irrita o

professor, e a falta de autoanálise estabelece-se, indubitavelmente, um

paralelo com o alemão Hnekker:

Quando ele começa, como de costume, a exaltar os cientistas

alemães, eu não brinco mais bonachão, como antes, mas

balbucio taciturno:

– Esses seus alemães são uns burros...

Isso já se parece com o seguinte: duma feita, o falecido

Professor Nikita Krilov banhava-se em companhia de Pirogov em

Revel e, irritando-se com a água, que estava muito fria, xingou:

“Alemães canalhas”. (147)

Ele vive no seu mundo microscópico, usando a profissão como um

meio de isolar-se de tudo o mais, e é partidário apenas das tradições da

Medicina, tais quais, por exemplo, o uso de gravata branca. Semelhante

personagem ainda se encontrará em páginas de obras de Tchékhov, e

pode recordar-se, sobretudo, o professor Biélikov (“Homem no estojo”),

figura, claro, mais exagerada mas, ainda assim, representativa do mesmo

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tipo humano. Tanto a Piotr Ignátievitch quanto a Biélikov suscita interesse

tão-somente o que estiver relacionado com a sua atividade profissional;

no primeiro caso, a Medicina; no segundo, a língua grega. Em ambos os

casos, há uma alusão a um campo “morto” das suas atividades. Porquanto

Piotr Ignátievitch realiza necropsias, o seu trabalho não está relacionado

apenas com os preparados que ele confecciona, mas também com a

preparação de cadáveres; o idioma grego, que Biélikov ensina, é uma

língua “morta”. A confiança inquebrantável dos dois nos seus princípios e a

negação de quaisquer outros alheios, em Biélikov, suscitam tédio e medo

às outras pessoas e, em Piotr Ignátievitch, “inspiram enfado a todos os

presentes” (146).

Como assinalámos já, este segundo vem acompanhado, no texto,

de epítetos simbólicos, como “cinzento”, “tedioso” e “seco”: chapéu

cinzento, secos relatórios.

...não inventará a pólvora. Para a pólvora, é preciso ter

imaginação, capacidade inventiva, espírito divinatório, e Piotr

Ignátievich não possui nada no gênero. Em suma, não é um

patrão em ciência, mas um operário. (110)

É assim que Nikolai Stepánovitch o caracteriza, repetindo duas

vezes a palavra “pólvora”. A correspondente palavra russa, "порох", está

etimologicamente relacionada com "прах" (cinzas, restos mortais), isto é,

“пыль” (pó, poeira)108, acrescentando mais um matiz à mediocridade

(Recordemos: o relógio de Biélikov fica num estojo de camurça cinzenta.).

Para além disso, nesse fragmento, há uma alusão a um conto de fadas de

Tolstói, “O patrão e o empregado”109, cuja moral é que só se pode

considerar gente aquele que for capaz de pensar e tomar decisões sem

ajuda de ninguém.

Piotr Ignátievitch aparece duas vezes no texto, no primeiro

108

http://www.classes.ru/all-russian/russian-dictionary-Vasmer-term-10082.htm

109 Disponível em: http://hobbitaniya.ru/tolstoyln/tolstoyln50.php

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capítulo, na universidade, e no quarto, na datcha, como que para

contraste, em seguida ao aparecimento do vigia Nikolai, pessoa de

natureza oposta à sua. É impossível não notar que o vigia é um homónimo

da personagem principal, e o próprio narrador aponta tal facto. E que o

nome escolhido, tão caro a Tchékhov, nome dum irmão que acabara de

falecer, tenha sido dado a duas personagens duma só vez, é muito

significativo e obriga-nos a prestar atenção a esse pormenor “fortuito” e

ao paralelo entre os dois, realçado pelo autor. Que pode haver de comum

entre os dois, o vigia Nikolai e o professor mundialmente famoso Nikolai

Stepánovitch, entre um soldado e um general, um simples mujique e um

intelectual?

Nós acreditamos que tal questão está diretamente relacionada com

o tema principal da novela: o tema da existência humana individual no

infinito fluxo geral da vida, da natureza, do tempo e do espaço, isto é, no

cronótopo. E aqui, como no caso de Vária e Kátia, a união baseia-se na

contraposição, nos pólos opostos da concepção de mundo.

Na memória fenomenal do vigia da universidade, retratado com

simpatia irónica, as pessoas e os acontecimentos do passado

transformam-se e adquirem traços heroicos, fantásticos, encontrados nas

bylinas. E o léxico nas páginas, a ele dedicadas, possui precisamente esse

matiz semântico: fantásticas, misteriosa, secreta, guardião, herança,

sábios extraordinários, numerosos mártires, vítimas da ciência, lendas,

fábulas, heróis.

No que conto, o bem sempre triunfa sobre o mal, o fraco vence o

forte, o sábio o estúpido, o modesto o presunçoso, o jovem o

velho. (108)

Portador de consciência histórica e mitológica, ele vive livremente

na fluidez do tempo; o passado, para ele, está indissociavelmente ligado

ao presente e ao futuro, as pessoas reais com as lendárias. E Nikolai

Stepánovitch, para ele, é um dos heróis, de quem logo se teceriam

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lendas. Isso determina a sua veneração e a invariável forma de

tratamento ”Vossa Excelência”. Ele não é inclinado a longas reflexões

lógicas, mas, graças à sua experiência de vida e intuição, quase sempre

acerta nas suas previsões:

...um cientista disfarçado em soldado. (109)

Quase todas as suas réplicas diretas contêm um léxico referente à

natureza, e as descrições, que o caracterizam, referem-se ao amor; ele

gosta do seu trabalho, da universidade, da Ciência, das histórias

lendárias, dos estudantes e dos professores com sinceridade e um

maravilhamento de criança; em suma, ele ama a sua vida:

Deixando-me entrar, funga e diz: - Que frio, Vossa Excelência! (107) Или же, если моя шуба мокрая, то: - Дождик, ваше превосходительство!110 - Que um raio me fulmine aqui mesmo!(145) ...olhando-me com o êxtase de um apaixonado. (145)

Somente quem ama pode lembrar assim. (108) É pouco para a sociedade instruída. Se ela amasse a ciência, os

cientistas e os estudantes como Nicolai os ama, a sua literatura possuiria há muito sobre esse tema verdadeiras epopéias, lendas e hagiológios, que infelizmente ela não tem agora. (108)

Mais um pormenor não destituído de importância: as portas, que

ele abre, são um sinal simbólico da ampliação do espaço:

a porta abre-se de par em par...corre na frente e abre todas as

portas no meu caminho (107)

No nível do subtexto, essa encantadora personagem parece

constituir um guardião místico não apenas de lendas, senão também da

110

Omitido na tradução brasileira: Ou, se a minha peliça está molhada, então: — Uma chuvinha,

Vossa Excelência!

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ligação do homem com as forças da natureza, do tempo e do espaço. Essa

é precisamente a ligação, que em sessenta e dois anos (mais um

importante pormenor: não são apenas homónimos, mas também

coetâneos) um adquiriu e o outro perdeu. Aquela ligação, cuja falta sente

vagamente Nikolai Stepánovitch, tentando compreendê-la, captá-la e

revesti-la dos termos costumeiros e familiares à sua lógica, chamando-lhe

“ideia geral”. No entanto, essa matéria sutil não é suscetível de

pensamento racional, uma vez que se encontra algures no campo dos

sentimentos, pressentimentos, da sabedoria natural e da intuição, enfim,

de tudo o que possui em medida cabal o simples soldado, vigia da

universidade.

Para além das personagens principais, há, na novela, mais três,

que aparecem uma única vez, os que vêm à casa de Nikolai Stepánovitch

visitá-lo: um colega, o doutorando e o estudante preguiçoso. Via de regra,

a sua presença no texto credita-se pelos estudiosos à necessidade de

mostrar o dia-a-dia do professor, um meio informal. A nós, porém, tal

explicação parece insuficiente. Nós achamos que cada qual deles, à sua

maneira, está inserido na estrutura e composição da obra.

O colega de universidade é o único que não recebe nenhuma

característica pessoal; ele funde-se completamente com a personagem

principal, aprofundando a figura desta. Nikolai Stepánovitch, na atmosfera

de cortês hipocrisia aceita, como que se duplica. Como espelhos, que

reflitam um ao outro, Nikolai Stepánovitch e o seu visitante repetem as

mesmas ações. O principal pronome usado no fragmento é “nós”.

Nós já mostrámos como os pormenores cromáticos da roupa

ligam o doutorando duma só vez com três personagens: Piotr Ignátiev, o

criado Egor e Kátia. Mas, no fragmento da sua conversa com o professor,

há mais um paralelo. Nikolai Stepánovitch grita duas vezes a palavra

“venda”:

- Pensam que isto aqui é uma venda? Eu não faço comércio de

temas!...Isto aqui não é venda! (117)

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Essa réplica estende um fio até a uma personagem, que aparece

momentaneamente nas recordações do professor:

Ali está a venda de secos e molhados; antigamente, pertencia a

um judeuzinho, que me vendia cigarros... (107),

Tal fio une essa personagem ao jovem doutorando.

E, por fim, o estudante de Medicina. Não encontramos nenhum

pormenor, que o ligue a outras personagens, nem situação, que lembre

alguma análoga. Por que, então, foi posto na novela? Julga Kubássov que

o protótipo desse jovem preguiçoso, no contexto de “Fausto”, é o

estudante de quem escarnece Mefistófeles.

Na nossa hipótese, analogamente ao professor recordar-se como

seminarista, o próprio autor, com um tanto duma ironia verdadeiramente

tchekhoviana, recorda a si próprio como estudante de Medicina.

Infelizmente, há poucos testemunhos do tempo dos seus estudos na

universidade, tanto nas reminiscências de contemporâneas, quanto nas

suas próprias cartas. É sabido que, em verdade, Tchékhov, em todo o

período universitário, nunca foi reprovado em exames e frequentou

diligentemente todas as aulas e atividades laboratoriais111, contudo, o

estudo nunca lhe foi fácil: a literatura tomava tempo de mais. Por algumas

referências à Medicina em cartas desses anos, pode ver-se como lhe era

difícil combinar a atividade literária com as aulas e os exames:

Eu tenho agora... os exames finais... Repercutem no gato as lagrimazinhas do rato; do mesmo modo repercute em mim, agora, a minha incúria dos anos passados. Ai de mim! Impõe-se

estudar quase tudo desde o começo. Para além dos exames (que, a propósito, ainda estão pela frente), estão às minhas ordens o trabalho em cadáveres, atividades de clínica com as inevitáveis

histórias de morbo, a ida a hospitais... Trabalho e sinto a minha impotência. A memória ficou ruim para decoreba [decoração], fiquei mais velho, a preguiça, a literatura... vós cheirais a vodca

etc. Vontade de descansar, mas ... o verão ainda está tão longe!

111

SUKHIKH, I. Tchékhov v Jizni (Tchékhov na vida). Moscou, Ed. "Vremia”", 2010, p.90

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(112).

No entanto, nesse episódio, o mais importante é outra coisa; nele,

sente-se uma clara nostalgia pelos anos pândegos de estudante, com

festas ruidosas após a meia-noite, bebedeira, a ida regular a teatros,

romances juvenis e, infelizmente, a “dor de cabeça” à véspera de exames.

Tal é a vida, fora do âmbito do trabalho tenso, que o próprio Tchékhov-

estudante vivera (do que se tem, a propósito, uma grande quantidade de

testemunhos), aquela acerca da qual o professor com muito prazer

escutaria falarem.

Segue-se um silêncio. Levanto-me, espero que o visitante se vá, mas ele fica parado, olha para a janela, puxa um pouco a barbicha e pensa.

A voz do sanguíneo é agradável, cheia, os olhos inteligentes, zombeteiros, o rosto bonachão, um pouco amassado pelo uso frequente de cerveja e pelas longas horas deitado no divã, ele

poderia contar-me muito de interessante sobre a ópera, sobre as suas aventuras amorosas, sobre os colegas de que ele gosta, mas infelizmente, não se costuma falar sobre isso. (116)

Nota-se claramente com que simpatia é feito o retrato desse

sanguíneo, em cuja aparência se reconhecem traços do próprio autor: os

olhos inteligentes e zombeteiros, o baixo profundo e a barbicha.113.

Até numa história tão “enfadonha”, encontrou-se lugar para o

suave humor tchekhoviano.

Como pode ver-se, todas as personagens, das principais às

apresentadas só de passagem, a par de outros elementos da composição,

relacionados com o enredo, a semântica e a estilística, duma forma ou de

outra, revelam-se entrelaçadas umas com as outras, e cada qual delas

constitui um fragmento do quadro uno e inconsútil, desenhado por

Tchékhov.

112 Carta ao irmão Aleksandr Tchékhov, entre 15 e 28 de Outubro de 1883.

113 Carta a N. A. Liéikin, de 25 de Dezembro de 1883.

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4.9 Cronótopo

À essencial interligação das relações temporais e espaciais, aproveitadas

artisticamente pela literatura, chamaremos cronótopo (M. Bakhtin

15)

Separando o pessoal, referente à personagem principal e ao seu

nome, e o tempo e o espaço históricos e mitológicos e analisando o

funcionamento da “palavra alheia” (citações, alusões, reminiscências) e

pormenores “fortuitos”, nós acompanhámos a formação do cronótopo da

novela, o qual produz o eixo de toda a composição da obra.

O tempo pessoal de Nikolai Stepánovitch é, em primeiro lugar, a

extensão da escrita dos apontamentos, de três a quatro meses e

facilmente determinada por sinais do texto. Bem no início, mencionam-se

peliças e luvas; consequentemente, a estação do ano é o Inverno; a

personagem diz que não lhe resta mais do que meio ano de vida. Em

seguida, “chega o Verão”, e ela supõe que morrerá dentro de três meses.

Em segundo lugar, a sua vida passada, traçada pelas recordações, das

primeiras, referentes à infância e mocidade, passando pelo período de

formação da personagem, até ao presente, até ao momento em que ela

se põe a escrever a sua confissão, isto é, os sessenta e dois anos vividos.

E, finalmente, o futuro, próximo e distante, que se encontra além dos

limites da sua vida. Nikolai Stepánovitch conjectura se Kátia estará no seu

funeral, qual será a sua sepultura, quem lecionará no seu lugar e o que

será da Ciência.

Mas o mais importante de tudo é a sua sensação interior do

tempo, com a qual ele vive e a qual impregna o estado de espírito do seu

diário: a vida flui monotonamente, sempre igual e desprovida de sentido,

ao passo que os preciosos últimos meses, dias e minutos passam

impetuosamente.

No texto, encontram-se praticamente todas as categorias

temporais existentes: segundo, minuto, quarto de hora, meia hora, hora,

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dia, semana, mês, ano, século, eternidade, toda a vida, passado, futuro

(por exemplo, minuto aparece 20 vezes; hora – 28; ano – 38 e assim por

diante).

Ademais, é preciso saber o que se pretende, e vigiar tudo atiladamente, não perdendo por um instante sequer o campo visual. (111) Кроме того, надо быть человеком себе на уме, следить зорко и ни на одну секунду не терять поля зрения. 114

Não dormir de noite significa ter consciência, a cada momento, de ser anormal...(103) Не спать ночью - значит, каждую минуту сознавать себя

ненормальным... 115

Discorre um quarto de hora, meia hora, e eis que, observa-se, os

estudantes começam a olhar para o teto...(112)

Apenas ele acaba de gritar, já sei que uma hora depois, embaixo, o porteiro há de acordar … (103)

O meu dia começa com a vinda de minha mulher. (103)

Há muito tempo já que Mikhail Fiódorovitch devia ter viajando para estrangeiro, mas ele adia a partida a cada semana. (151)

Pagar dez rublos por mês é muito mais fácil que entregar de uma vez cinquenta. (105)

Antes de passar meio ano, recebi uma carta atualmente eufórica e

poética. (121)

Faz um ano que estamos de relações tensas. (115)

É melhor perder cinco anos … (116)

Há trinta anos já que dá as suas aulas...(133)

...a alma dessa infeliz não conheceu e não há de conhecer abrigo a vida toda, toda! (161)

A ciência, graças a Deus, já viveu o que tinha de viver. (137)

114 A. Tchékhov, Moscou,1977, p.261 115 ------------------------------- p.254

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Наука, слава богу, отжила свой век .116 Com a minha disposição atual, bastam cinco minutos para que ele

me enjoe como se eu o tivesse visto e ouvido durante uma eternidade.

...mas o que ela conserva do passado é apenas o temor pelo minha saúde. (104)

Imagino nitidamente o seu futuro. (110)

Encontram-se, mais de uma vez, a palavra “tempo” e o léxico

semanticamente relacionado a ela:

Passa um longo período de tempo penoso... (103)

Com a graça de Deus, com o tempo, há de se empregar em alguma parte. (129)

Você, minha amiga, tem horas vagas demais. (150)

Ao mesmo tempo, é preciso fazer de si cientista, um pedagogo,

um orador... (112) E, antes, eu nunca soube conformar-me como agora com a

lentidão do tempo. (157)

No sexto e último capítulo, por meio da repetição da própria

palavra "последний" (“último”), acentua-se (o que, infelizmente, nesse

caso, quase se perde na tradução) o facto de que o tempo de vida do

narrador está a terminar:

os últimos dias da minha vida serão inatacáveis mesmo [correto: pelo menos – E. V.] pelo lado formal. (156) последние дни моей жизни будут безупречны хотя с формальной стороны.117

Ademais absolutamente tanto faz para onde viajar, para Khárkov, Paris ou Biérditchev (156) К тому же в последнее время я так оравнодушел ко всему, что

мне положительно всё равно, куда ни ехать, в Харьков, в Париж ли, или в Бердичев.118

Os meses derradeiros da minha vida, enquanto espero a morte, parecem-me bem mais compridos que a toda a minha existência

116 A. Tchékhov, Moscou,1977, p.286 117 ------------------------------- p.304 118 --------------------------------p.304

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anterior (157) Последние месяцы моей жизни, пока я жду смерти, кажутся мне гораздо длиннее всей моей жизни.119 eu ter ensombrecido os meses derradeiros da minha vida com pensamentos e sentimentos dignos dum escravo e bárbaro. (159) последние месяцы своей жизни я омрачил мыслями и чувствами, достойными раба и варвара,120

A tomada de consciência, pela personagem, da sua “existência”

põe-se em correspondência com indicações exatas da hora do dia e da

estação do ano e com quantos minutos, horas e anos se passaram desde

este ou aquele acontecimento.

Indica-se não somente a idade da personagem principal, senão

também a das outras. Nós ficamos a saber que Kátia tem 25 anos; Piotr

Ignátievitch, cerca de 35; Hnekker não tem 30; Mikhail Fiódorovitch, cerca

de 50; e Nikolai, 62. Cria-se a impressão de que, no subconsciente do

professor, se faz um balanço permanente do tempo passado e em

passagem, o que se salienta com ajuda da estilística e do ritmo, o qual ora

diminui a sua marcha, ora a acelera, e com ajuda da antítese”antes-

agora” e do léxico correspondente (outrora; agora; no passado; lembro-

me; desde então).

Nikolai Stepánovitch vive no tempo corrente, que possui começo e

fim e já tende ao seu termo; o professor dirige-se em pensamento, por

um lado, ao futuro e à eternidade e, por outro, ao passado, idealizado, no

qual a vida ainda não tinha perspectivas e não havia necessidade de

meditar no valor de cada instante.

O espaço em que Nikolai Stepánovitch existe, é um bom tanto

fechado: a esfera citadina (universidade, o seu lar, o apartamento de

Kátia), a datcha (a sua e a de Kátia) e Khárkov (o quarto de hotel). Dias e

anos (com a exceção de Khárkov), ele percorre os mesmos caminhos, vai

aos mesmos sítios e convive com as mesmas pessoas. O antigo conforto

psicológico do lar e das paredes de casa torna-se uma rotina insuportável,

119 A. Tchékhov, Moscou,1977, p.305 120 ------------------------------- p.307

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185

e surge a necessidade de alguma mudança, que o impele a uma fuga

constante, dum espaço a outro. Da universidade para casa, de casa para a

de Kátia:

Certa força invisível e incompreensível empurra-me rudemente

para fora de minha casa. (130)

Dali, uma vez que o estreito círculo se mantém fechado,

novamente para casa. A mudança para a datcha revela-se a malograda

esperança de que, com a mudança de espaço, também a vida mudaria. E

em Khárkov, realmente, sítio inteiramente novo para a personagem, ela

apanha-se a pensar na absoluta irremediabilidade do que se passava. A

mudança de espaço é apenas uma mudança de decoração, de cena; onde

quer que esteja, aonde quer que vá, para onde quer que fuja, esteja ela

cercada de gente ou não, ela em toda a parte vê-se sozinha consigo, com

a sua doença, com os seus pensamentos, decepção e medo. E até a

inesperada aparição de Kátia, que, aparentemente, poderia acabar com

aquela surda e desesperada solidão, só agrava a situação e acrescenta

nova dor. Fica claro que Kátia se encontra na mesma situação: a fuga, que

lhe parece salvação, não passa duma tentativa fadada ao malogro.

No entanto, no passado de Nikolai Stepánovitch, se julgarmos

pelas suas recordações, não apenas o tempo, mas também o espaço,

eram sentidos por ele como mais largos e mais abertos. Salienta-se isso

por pormenores como os sons duma harmónica (sanfona) que lhe chegam

de longe, a comparação do auditório estudantil a um mar, a mudança de

cidades na viagem de Kátia.

E o cronótopo do “nome” da personagem principal ultrapassa em

muito os limites do seu tempo e espaço pessoal. Vivo fora dos limites

duma cidade e até do país, ele sobreviverá em muito à vida real da

pessoa:

É membro de todas as universidades russas e de três estrangeiras. … Esse meu nome é popular. Na Rússia, ele é

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conhecido por toda pessoa alfabetizada e, no estrangeiro, é citado do alto das cátedras, com o acréscimo: conhecido e respeitado (101)

...li a minha biografia até numa revista alemã... (157)

Agora o meu nome passeia tranquilamente por Khárkov; daqui a uns três meses, gravado em letras de ouro sobre a tumba, ele há de brilhar como o próprio Sol, e isso quando eu já estiver coberto

de musgo... (160)

Como já mostrámos nos capítulos anteriores do nosso trabalho,

com a indicação de datas concretas, nomes de pessoas reais, do país (já

nos primeiros parágrafos da novela, menciona-se duas vezes a Rússia) e

nomes de cidades, restabelecem-se facilmente o tempo histórico e o

lugar dos acontecimentos: metade dos anos 1880, Moscou (menção a

Gruber e Babúkhin, professores da Universidade de Moscou) e Khárkov. Já

o tempo mitológico cria-se com a referência a heróis do folclore e à

figura de Nikolai, o vigia da universidade.

Os estudiosos têm-se debruçado, nos últimos tempos, com cada

vez mais frequência sobre a questão das relações intertextuais de

Tchékhov, porém o tema é inesgotável e por isso permanece aberto. Os

estudos tratam tanto do conjunto da obra do escritor quanto de obras

isoladas; examinam-se inúmeros paralelos com textos literários famosos,

a polémica com estes, a paródia a eles (feitas principalmente na fase

inicial) e a referência a acontecimentos históricos e culturais e nomes;

citam-se, sobretudo, textos bíblicos e nomes como Púchkin, Tolstói,

Shakespeare e Goethe (V. Katáev, N. Kapústin, V. Kubássov, A.

Sóbennikov e outros).

Não foi exceção “Uma história enfadonha”. Ainda em vida de

Tchékhov, notou-se a sua relação com “A morte de Ivan Ilitch”, de Tolstói,

e “O discípulo”, de Bourget; mais tarde, estudou-se o diálogo com Goethe,

Marco Aurélio e o Eclesiastes.

A atenção, nesses estudos, concentra-se nos aspectos

semânticos e na dialogicidade de ideias, motivos, enredos e personagens.

No entanto, nós acreditamos que as diversas inserções da “palavra alheia”

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no texto tchekhoviano, tais como as citações, as reminiscências e alusões

(claras e ocultas), junto com a menção à História e a pessoas famosas,

desempenham mais um papel: elas ampliam o tempo e o espaço artístico,

formando o cronótopo.

Dispostos os meios supracitados em ordem cronológica (do

mesmo modo como fizemos com as recordações da personagem), tem-se

um quadro de toda a história humana, da remota Antigüidade ao fim do

século XX; reunidos em conjunto os pormenores fortuitos de caráter

geográfico e naional, obtém-se um extenso mapa do mundo. Alguns

exemplos:

Mundo Antigo (século 13 antes da nossa era – século 1 da

nossa era).

Antigo Testamento:

Frequentemente, extasio-me vendo um menino e uma

menina, ambos esfarrapados e de cabelos muito claros,

treparem no muro do jardim e rirem da minha calva. Leio

nos seus olhos brilhantes: “Veja, um careca!” (145)

Antigüidade: (séc. 6 antes da nossa era- séc 4 e 5 da nossa

era).

E eu penso que Hércules, após a mais picante das suas

proezas, não sentiu tão doce langor como o que eu

experimentava depois de cada aula. (112)

Numa palavra, não tem nada a ver com Hécuba. (110)

- Epíteto (anos 50 -138 da n. e.)

- Marco Aurélio (anos 161 - 180 n.e)

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deixam-se influenciar facilmente pelos escritores mais

recentes, mesmo de segunda classe, mas são de todo

indiferentes a clássicos como Shakespeare, Marco Aurélio,

Epícteto ou Pascal...(139)

-Idade Média (séc. 5-14):

A mulher moderna é tão chorosa e rude de coração como

na Idade Média. (125)

A sarcástica frase “a Rússia ser invadida por exércitos chineses...”

suscita uma associação com a invasão da Rússia pelas hordas tártaro-

mongóis no século 13.

Época da Renascença (séc. 15-16):

Shakespeare (1564-1616)

...eu amei apaixonadamente pela sua inteligência lúcida e

boa, pela alma pura, pela beleza e, como Otelo a

Desdêmona, pela “compaixão em relação à minha

ciência... (104)

Modernidade (séc. 16-17):

-Pascal (1623 - 1662)

Século 18:

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-Bach (1685-1750)

As mãos e Hnekker falam de fugas, contrapontos,

cantores e pianistas, de Bach e Brahms...(128)

-Karamzin, "Pobre Lisa" (1792)

- De ninguém tenho tanta pena como da nossa pobre

Lisa. (105)

Século 19:

-Está representado inteirinho por nomes e citações, a começar por

Krylov (fábulas de 1808):

Assim aconteceu um dia, passei muito tempo olhando

Hnekker com desdém e de repente, sem mais nem menos,

soltei:

– “Sucede às águias descer mais que as galinhas.

– Mas estas nunca hão de subir às nuvens...” (147)

- Araktchéev (1769-1834):

...e então a minha visão do mundo pode ser resumida nas

palavras do famoso Araktchéiev numa das suas cartas

íntimas: “Tudo o que há de bom no mundo não pode

existir sem ruim, e há sempre mais coisas ruins que boas”

(142)

- Tchádski “Infelicidade devida ao espírito” (1823-1827):

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...quando ele procura convencer-me a todo custo de que

Tchátzki, que conversava muito com imbecis e amava

uma imbecil, era um homem muito inteligente... (120)

-Turguénev, “Diário dum homem supérfluo” (1849):

A cabeça e as mãos tremem-me de fraqueza; o pescoço,

a exemplo de uma heroína de Turguiêniev... (102)

- Nekrássov (1821-1877)

- Kaviélin (1818 -1885)

- Pirogov (1810-1881)

- Skóbelev (1843-1882)

Século 20:

Não sei o que será daqui a cinquenta ou cem anos...(120)

Gostaria de acordar daqui a uns cem anos e espiar, ao

menos com um olho, o que será da ciência. (159)

Como pode ver-se, um alargamento extraordinário dos limites

temporais: do século 13 antes da nossa era ao fim do século 20 da nossa

era.

Com isso, a palavra história adquire um significado especial no

título da novela.

Na narrativa, está entrelaçada uma grande quantidade de nomes

de países e cidades, reminiscências-associações (Hékuba-Grécia), Marco

Aurélio-Roma, Shakespeare-Inglaterra, Patti-Itália etc.) e pormenores de

caráter geográfico:

Geralmente, ela está lendo, deitada sobre o divã turco

ou o sofá. (131)

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Mas eis que percorremos a escada, depois o corredor

escuro, com uma janela italiana, e entramos no quarto

de Lisa. (153)

e nacionalidades:

Todas essas notícias se parecem e podem ser reduzidas

ao seguinte tipo: um francês fez uma descoberta, outro,

um alemão, pilhou-o em flagrante, demonstrando que

essa descoberta já fora feita em 1870 por certo

americano, e um terceiro, igualmente alemão, foi mais

esperto que ambos, demonstrando-lhes que eles

cometeram uma gafe, confundindo, sob o microscópio,

bolinhas de ar com o pigmento escuro. (146)

Provavelmente, a Patti podia cantar-lhe bem junto ao

ouvido, a Rússia ser invadida por exércitos chineses,

ocorrer um terremoto, e ele não moveria um membro

sequer, continuando calmamente a olhar em seu

microscópio, o olho entrecerrado.(110)

...mas assim mesmo não compreendo a sua presença;

ela desperta em mim a mesma perplexidade que se

fizessem um zulu sentar-se à mesa comigo. (126)

Desse modo, se fizermos um balanço, nas páginas da novela,

encontraremos, claramente ou às ocultas, por associação, a Rússia,

Varsóvia, Khárkov, Ialta, Ufá, a Criméia, o Cáucaso, o Volga, Biérditchev, a

Europa, a Alemanha, a Inglaterra, a França, a Itália, a Grécia, a China, a

América e a África (zulu). Todas essas menções não possuem importância

sob o aspecto do enredo ou dos motivos e são, em essência, “fortuitos”, e

lembram intuitivamente que, para além do lugar principal da ação, no qual

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o professor escreve os seus apontamentos, existe um mundo inteiro.

Costuma-se dizer que o homem precisa só de pouco

mais de dois metros de terra. Mas, ora, esse pouco mais

de dois metros é necessário a um cadáver, não a um

homem. O homem precisa não desse pouco mais de dois

metros de terra, não duma herdade, mas do globo

terrestre inteiro, de toda a natureza, onde, no vasto

espaço livre, ele possa manifestar todos os traços e

peculiaridades do seu espírito livre.121

Nós vemos que o espaço, limitado por Moscou, pela datcha ao pé

dessa cidade e Khárkov, e o tempo, resumido a três-quatro meses e uma

vida humana (pelas recordações), nos apontamentos de Nikolai

Petróvitch, feitos na própria novela (acompanhando a ideia do autor),

alargam-se incomensura-velmente e abarcam quase “todo o globo

terrestre” e toda a história da Humanidade.

Assim, um “acontecimento individualizado” adquire dimensão

global. Tais “histórias enfadonhas” aconteceram e acontecerão sempre,

independente-mente de época, em qualquer ponto da Terra.

Semelhante modo de formação do cronótopo literário é um

procedimento importantíssimo de Tchékhov. Em relação a isso, podemos

lembrar o conhecido mapa da África no gabinete de Voinítski (“Tio Vánia”),

que motiva discussões até hoje no mundo científico, e a enfatizada inter-

relação entre o passado e o presente em “Luzes” e “O estudante” e o

futuro irrealmente distante em “A gaivota” .

Há já milhares de séculos a terra não carrega em sua

superfície nenhuma criatura viva... (“A gaivota”, tradução

nossa).

121

A.TCHÉKHOV, Moscou, 1977, p.58.

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O estudante novamente pensou que, se Vassilissa

chorara e a filha dela ficara desconcertada, então,

claramente, o que ele acabara de contar e que

acontecera dezanove séculos antes, tinha relação com o

presente — com ambas as mulheres e, provavelmente,

com aquela aldeia deserta, com ele próprio, com todas

as pessoas... O passado, pensava ele, está ligado com o

presente por uma corrente ininterrupta de

acontecimentos, decorrentes um do outro. E pareceu a

ele que ele acabara de ver as duas extremidades dessa

corrente: tocara uma, e a outra tremera. (“O estudante”,

tradução nossa).

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5. Conclusão

O princípio da objetividade da narrativa, como basilar para a poética de

Tchékhov do final dos anos de 1880 e começo dos de 1900, exigia um

novo tratamento, uma nova expressão da posição autoral no texto. Da

confissão da personagem transparece uma visão de mundo do próprio

escritor, o qual, propondo de modo não impertinente nem obsessivo uma

multivariedade de tratamentos das suas obras, emprega sutilíssimos

sinais, ocultos nas profundezas do texto, para o diálogo com o leitor,

contando com a intuição, a experiência e o faro literário deste.

A fusão do concreto e tangível com o inconstante e condicional,

do individual com o genérico e do efêmero com o eterno equilibra,

segundo as suas próprias palavras, todos “os prós e contras”, criando um

mundo simbólico com mais de um sentido mas, ao mesmo tempo, real,

reconhecível e irreal.

E, com auxílio duma arquitectónica ordenada, rigorosamente

regulada, Tchékhov consegue uma insuperável harmonia na representação

desse mundo, agindo tanto na consciência, quanto, como a música ou a

poesia, no subconsciente do leitor.

Na novela estudada por nós, ele enfatiza de modo muito claro

precisamente a estrutura, o arranjo, colocando a própria palavra

“composição”, bem como a palavra “final”, nos lábios da persona-gem e

entreabrindo a cortina dum trabalho artístico bem pensado e,

simultaneamente, guiado pela inspiração e pela intuição na cena-

recordação duma conferência ministrada pelo professor.

Cada qual dos elementos do sistema estudado por nós na novela

“Uma história enfadonha” por si só basta a si e possui uma dinâmica e o

seu próprio sentido, e, com isso, como assinalámos, todos eles como que

dialogam entre si, formando um todo uno no nível do subtexto, um novo

campo de sentidos subordinado ao desígnio geral do autor, sobre cuja

base está a antítese “História-indivíduo” , refletida já no título e no

subtítulo, o conflito, o contraponto entre a finitude da vida individual e o

fluxo do tempo e do espaço.

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