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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE LETRAS ORIENTAIS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LITERATURA E CULTURA RUSSAS
ELENA VASILEVICH
A composição da novela “Uma novela enfadonha” de Antón Tchékhov
São Paulo
2018
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE LETRAS ORIENTAIS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LITERATURA E CULTURA RUSSAS
ELENA VASILEVICH
A composição da novela “Uma novela enfadonha” de Antón Tchékhov
Tese apresentada ao Programa de Literatura
e Cultura Russa do Departamento de Letras
Orientais da Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas da Universidade de São
Paulo para a obtenção do título de
Doutora em Letras
Orientador: Prof. Dr. Noé Silva de Oliveira
Queiroz Policarpo Polli
São Paulo
2018
Nome: VASILEVICH, Elena
Título: A composição da novela “Uma novela enfadonha” de Antón
Tchékhov.
Tese apresentada ao Programa de Literaura e
Cultura Russa do Departamento de Letras
Orientais da Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas da Universidade de São
Paulo para a obtenção do título de Doutora
em Letras
Aprovada em:
Banca Examinadora
Prof. Dr. Noé Silva de Oliveira
Queiroz Policarpo Polli
Julgamento:
___________________________
Instituição: DLO – FFLCH - USP
Assinatura:
___________________________
Profa. Dra. _Elena Vássina_
Julgamento:
___________________________
Instituição: DLO – FFLCH - USP
Assinatura:
___________________________
Profa. Dra. _Maria Glushkova
Julgamento:
___________________________
Instituição: __FFLCH -USP
Assinatura:
___________________________
Prof. Dr. __Euro de Barros Couto
Júnior
Julgamento:
___________________________
Instituição: _EMASP (Escola municipal
de administração de São Paulo)
Assinatura:
___________________________
Profa. Dra. Natalia Cristina Quintero Erasso
Julgamento:
___________________________
Instituição: _Externo_
Assinatura:
___________________________
AGRADECIMENTOS
Agradeço especialmente a meu orientador, Prof. Dr. Noé Silva de Oliveira
Queiroz Policarpo Polli pela orientação, paciência, revisões, ajuda na
tradução do texto, e pela amizade.
Aos Professores Dra. Elena Vássina e Mário Ramos, que participaram da
minha banca de qualificação, pelo incentivo e pelas sugestões que
enriqueceram tanto este trabalho.
A cada um dos membros da banca examinadora, Profa., Dra. Elena
Vássina, Dra. Maria Glushkova, Dra. Natalia Cristina Quintero Erasso, Dr.
Euro de Barros Couto Júnior, pela sua generosa disposição em participar
da avaliação de meu trabalho.
À minha família: aos meus pais, Vyacheslav e Era Mileniny, por sempre
estarem ao meu lado, apesar das distâncias geográficas.
A todos os meus queridos amigos russos e brasileiros, pela paciência,
inspiração e pelo apoio.
À CAPES, pela concessão da bolsa de doutorado e pelo apoio financeiro
para a realização desta pesquisa.
RESUMO
Vasilevich. E. A composição da novela “Uma novela enfadonha” de
Antón Tchékhov. 2017. 205 f. Tese (Doutorado) – Faculdade de Filosofia
Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 2017.
O presente trabalho tem por objeto a análise da composição da obra “Uma
novela enfadonha” de Antón Tchékhov.
O protagonista da novela é único dentro da criação tchekhoviana. Trata-se
de um cientista de renome mundial que, ao enfrentar pela primeira vez a dúvida acerca da significância de sua própria existência, tenta resolver
esse problema, tão doloroso para ele próprio, por meio de reflexões lógicas registradas em seu diário. Contudo, sofre um fracasso absoluto.
Redigida em primeira pessoa, nesta obra, como em toda a criação
tchekhoviana, é característico um método de escrita objetivo, de tal forma que a opinião das personagens é, de fato, a opinião delas, e não
representa o parecer do autor. É possível compreender a posição de Tchékhov na novela, onde não há uma única palavra direta do autor,
apenas pela observação de certos sinais expressos no subtexto. A partir
disso, analisamos aqueles sinais que constituem os elementos estilísticos básicos da composição – partes do enredo que incluem o tempo presente
e as recordações, o léxico, os temas da morte, a natureza, os animais, a música, além dos detalhes, símbolos, ritmo, a caracterização das
personagens e o cronótopo. Mostramos como todos esses elementos, ao se entrelaçarem e realçarem uns aos outros, conformam o subtexto da
obra, e contribuem para a realização da ideia central do autor: mostrar a situação psicológica da pessoa quando sua vida se aproxima do fim,
quando é levantada a questão do sentido último e concreto da vida humana, no pano de fundo do processo histórico infinito.
Além disso, examinamos a história da criação da novela, observando esse processo por meio da análise das cartas do autor. Também ponderamos
os trabalhos da crítica dedicados a “Uma história enfadonha” em diversos momentos históricos de estudo da obra.
Palavras-chave: 1. Literatura russa 2. Antón Tchékhov 3. Composição 4.
Subtexto 5. Simbologia
ABSTRACT
VASILEVICH. E. The Composition of the Short Story “A Dreary
Story” by Anton Chekhov. 2017. 205 pag. Thesis (PhD) – Faculty of
Philosophy, Languages, Literature, and Human Sciences (FFLCH), São
Paulo University, 2017.
The purpose of this work is to study the composition of the Chekhov's
novel "A Dreary Story". The main character of this novel is unique for
Chekhov since he is a World known scientist. Being in doubt for the first
time about the meaning of his life he is trying to resolve this painful
problem with the help of logical reflections in his diary - but fails. The
novel has the form of a narrative of the main character. In Chekhovs'
writings the opinion of the character never reflect the opinion of the
author. Therefore, to understand the Chekhov point of view in a novel that
does not contain single word directly from the author, one has to be
attentive to special signs in the subtext. We analyze these signs, that are
main stylistic elements of the composition such as the plot, the narrative
in the present and in recollections, the lexis, the themes of death, of
nature, of animals, musics, as well as the details, symbols, the rhythm,
the characters and the chronotop. We show that all these factors interact
and clarify each other to compose the subtext of the novel. They conspire
to underline the main idea of the author to show the psychology a man
when his life is coming to an end and then he is concerned with the
meaning of his particular finite life at the background of an infinite historic
process. Besides, we consider the history of creation of "A Dreary Story"
by looking at the author's correspondence and analyzing the critics
dedicated to the novel.
Keywords: 1. Russian Literature 2. Anton Chekhov. 3. Composition 4.
Subtext 5. Symbols
Аннотация
Василевич Е. Композиция повести А. Чехова «Скучная история». 2017.
205 f. Диссертация на соискание ученой степени кандидата
филологических наук – Факультет Философии, Филологии и
Гуманитарных Наук Университета Сан-Пауло. 2017.
Целью представленной работы является исследование композиции
повести А. Чехова "Скучная история". Персонаж этой повести уникален для творчества Чехова - это ученый с
мировым именем. Столкнувшись впервые с сомнением в значимости собственной прожитой жизни, он пытается разрешить эту болезненную
для себя проблему с помощью логических размышлений в своем дневнике, однако, терпит полный крах. Повесть написана от 1-го
лица, а так как для всего творчества Чехова характерен объективный метод письма, когда мнение героя является только его мнением и не
выражает авторскую точку зрения, чеховскую позицию в повести, где
нет ни одного прямого авторского слова, возможно понять только обращая внимание на особые знаки, выраженные в подтексте.
Исходя из этого мы анализируем эти знаки - основные стилистические элементы композиции, такие, как сюжетные линии, включающие
линию настоящего времени и воспоминаний, лексику, темы смерти, природы, животных, музыки, а также детали, символы, ритм,
характеристику персонажей и хронотоп и показываем, как все они, сплетаясь и подчеркивая друг друга, составляют подтекст
произведения и работают на основную мысль автора - показать психологическое состояние человека в тот момент, когда его жизнь
подходит к концу, когда встает вопрос о смысле конечной, конкретной человеческой жизни на фоне бесконечного исторического процесса.
Кроме этого, мы рассматриваем историю создания повести, прослеживая этот процесс по письмам писателя и анализируем
критику, посвященную "Скучной истории" в различные исторические
периоды ее изучения.
Ключевые слова: 1. Русская литература 2. А. П. Чехов 3. Композиция
4. Подтекст 5. Символика
Índice 1. Introdução ............................................................................... 9
2. História da criação da novela (cartas 1888 – 1889) .......................... 13
3. Crítica ........................................................................................ 29
4. Elementos da composição da novela .............................................. 41
4.1 Conceito geral de composição duma obra literária ....................... 41
4.2 Título, subtítulo ....................................................................... 43
4.3 A composição dos apontamentos – desenvolvimento das reflexões e
estado da personagem .................................................................. 51
4.4 Simbologia ............................................................................. 95
4.5 Música ................................................................................. 109
4.6 A composição das recordações ................................................ 118
4.7 Pormenor ............................................................................. 139
4.8 personagens ......................................................................... 142
4.9 Cronótopo ............................................................................ 181
5. Conclusão ................................................................................. 194
6. Bibliografia ............................................................................... 195
6.1 Obras de A. P. Tchékhov ........................................................ 195
6.2 Obras gerais ......................................................................... 196
7. Anexo .............................................. Erro! Indicador não definido.
9
1. Introdução
O trabalho inclui uma breve exposição da história da escrita da novela,
com base em cartas do autor, escritas em 1889, um exame da crítica,
composta de três partes (crítica anterior à Revolução de Outubro,
soviética e do nosso período contemporâneo de estudo da obra do escritor
e, concretamente, de “Uma História Enfadonha”) e uma análise nossa da
composição da novela, dedicada a questões de estilística, a símbolos, às
personagens e às suas particularidades espaciais e temporais.
A maneira artística, elaborada por Tchékhov por volta do fim dos anos
1880, foi um descobrimento para todos e determinou em muito a
orientação da literatura mundial do século vinte. Os meios artísticos, que
auxiliam o leitor a compreender mais profundamente o pensamento do
autor, começam a desempenhar novos papéis nos textos de Tchékhov. A
partir da metade do decénio de oitenta do século 19, Tchékhov faz uso de
vários procedimentos, escondendo, no fundo do texto, os seus juízos, os
verdadeiros sentimentos das personagens, o estado psicológico delas e as
relações de umas com as outras. A posição do autor, assim, é quase
imperceptível, o que é notado sobretudo na sua dramaturgia. As suas
rubricas, pausas, diálogos semelhantes a monólogos que permitem
comunicar os mínimos matizes dos sentimentos e pensamentos das
personagens e, muitas vezes, não estão ligados entre si nem com a ação,
como que vão para segundo plano, sobre o fundo do crescente papel dos
sons e silêncios, da iluminação, da mudança da hora do dia ou da estação
do ano, da cor da roupa etc. As palavras perdem o significado próprio,
rompem os seus nexos lógicos e são percebidas como enganadoras pelo
leitor ou espectador. Ao mesmo tempo, o meio que circunda as
personagens, com todos os seus atributos — luz, cheiro, sons familiares
ou inesperados, como o duma corda rompida ou o crepitar de fogo, a
mímica involuntária das personagens, um verso de canção ou poema que
se repita cá e lá etc. — agora, ao contrário, torna-se a única realidade
artística, a “corrente subterrânea”, o subtexto que permite compreender a
10
ideia e intenção do autor.
É sabido que a determinação da posição do autor, nas obras de Tchékhov, em
geral, é difícil e suscita muita discordância entre os estudiosos. É particularmente
difícil fazê-lo nas suas peças, nas quais, de acordo com o género dramático,
inexiste uma genuína narrativa do autor. Os pesquisadores têm, com ressalvas,
de recorrer a uma aproximação da posição do escritor à posição duma
personagem ou outra, isto é, buscar algum tipo de indivíduo filosofador. Toda a
tentativa dessas, até aquela baseda em coincidências textuais com declarações
do escritor, tem sob si uma base muito precária. Deve dar-se atenção não
apenas a este ou àquele dito da personagem, senão também ao modo como o
autor o encara.1
Os estudiosos dedicaram-se muito menos ao tema do subtexto
tchekhoviano na sua prosa, e esse campo permanece pouco estudado até
hoje, embora represente um material riquíssimo. O autor está como que
dissolvido no texto, e até nos contos e novelas, em que se tem um
patente texto autoral, é impossível identificá-lo com a posição do próprio
Tchékhov; o narrador está presente mais como mais uma personagem.
“Uma História Enfadonha” pertence àquelas obras tchekhovianas, em que
enxergar a posição do autor é ainda mais complicado do que na
dramaturgia, uma vez que foram escritas em nome duma personagem;
nelas, não há nem rubricas do autor. Tanto mais importante e interessante
é analisar como o “subtexto” revela a profundidade do conteúdo, o modo
do autor de encarar a personagem, a situação e os temas tratados na
novela, o papel desempenhado pelos pormenores “fortuitos”, a
composição, as digressões da linha composicional básica, as recordações,
o léxico, a estilística, o espaço e o tempo na novela, e, tendo feito isso,
examinar como todos esses meios, reunindo-se em um sistema artístico
uno, levam à decifração do subtexto tchekhoviano.
No nosso trabalho, nós nos basearemos em estudos clássicos e novos
(A.Tchudakov, I.Sukhih, V.Katáev e outros).
1 S. KUZNETSOV , Russkaja literatura, 1985, № 1,p.146
11
No início dos anos 1880, em substituição ao conhecido autor de contos
humorísticos, Antocha Tchekhonté2 de seu nome, vem o já famoso Antón
Tchékhov com uma estilística já constituída e uma nova maneira de
encarar a prosa e a dramaturgia, as quais, inicialmente, não foram
compreendidas e valorizadas pelos contemporâneos e ainda constituem
objeto de muitos estudos. Uma das principais dificuldades da
compreensão de Tchékhov consiste no seu modo peculiar de encarar o
papel do autor na obra. À diferença dos seus grandes predecessores e
contemporâneos (Tolstói, Dostoiévski, Turgueniev), ele não declara as
suas opiniões e não coloca o seu modo de ver a vida, as pessoas e os
problemas mais importantes do seu tempo nos lábios das suas
personagens. O que estas dizem ou pensam, os juízos que emitem, as
suas ilusões, falsidade, inclusive a involuntária, tudo isso pertence
somente a elas.
... o mundo representado passa inteiramente pelo prisma da
percepção da personagem principal. Desenha-se apenas o que ele
sente, vê e sabe. O microcosmo de um tal conto torna-se o
mundo percebido pelas personagens. Essa capacidade da
narrativa tchekhoviana de transformar-se em personagem foi
notada já pelos contemporâneos do escritor.3
Tchékhov defendeu essa sua posição em cartas tanto a Suvórin, quanto
a jovens literatos, considerando-a uma questão de princípios.
Como compreender o famoso e misterioso “subtexto” tchekhoviano?
Por que sinais se pode extrair informação dele?
O objeto do nosso estudo é a novela “Uma História Enfadonha”, de
1889. A escolha de precisamente essa obra foi ditada pelos seguintes
fatores:
1) a época da sua escrita;
2 O pseudónimo mais difundido de A. Tchékhov no período inicial da sua obra
3 A.TCHUDAKOV, M.,1971, p.48
12
2) os meios artísticos, empregados na novela, foram pouco estudados;
3) ela foi escrita em primeira pessoa.
13
2. História da criação da novela (cartas 1888 – 1889)
“Uma História Enfadonha” (“Скучная история”) foi primeiramente
publicada em 1889, na edição de Novembro da revista O Mensageiro do
Norte (Северный вестник), e em 1890 foi incluída na coletânea “Gente
Carrancuda” ("Хмурые люди"). A essa altura, Tchékhov não apenas era já
um famoso e apreciado autor de contos humorísticos, como também dera
mostras de ser um escritor profundo, um dos mais lidos na Rússia de
então. Da sua pena haviam já saído obras expressivas, entre as quais os
contos "Егерь", "Злоумышленник","Тоска", "Каштанка", "Спать
хочется", "Огни", a peça “Иванов” e a novela “Степь”. Muitas questões e
temas, evidenciados em “Uma História Enfadonha”, haviam já sido
aventados, duma forma ou outra, nessas obras anteriores, mas a maneira
particular de ver os acontecimentos representados, a posição de Tchékhov
em relação a eles e às personagens, incomum para a literatura do seu
tempo, o estilo de Tchékhov e a especial maneira “objetiva” de escrita,
podemos dizê-lo, estavam já formados, constituídos. Isso foi notado,
embora nem sempre corretamente compreendido, ainda ao tempo de
Tchékhov e permitiu aos críticos de então definir o período 1889-1890
como de viragem na estilística tchekhoviana. Lugar central, no referido
período, é ocupado por “Uma História Enfadonha”.
Um dos mais importantes fatos biográficos, que serviram de base
para a escrita da novela, talvez tenha sido a formação médica, obtida por
Tchékhov na Universidade de Moscou, não apenas por a personagem
principal ser um catedrático de Medicina e à universidade serem dedicadas
muitas páginas das suas memórias, senão também porque a formação
recebida despertou no jovem literato o interesse pela psiquiatria e
psicologia do seu tempo (principalmente no que se refere ao tema da
relação entre os sexos), pela filosofia antiga e da época, pelos
descobrimentos no campo das Ciências Naturais e, principalmente, pelo
“tratamento científico” da criação artística, o qual se manifesta de modo
14
particularmente expressivo em “Uma História Enfadonha”. Tudo isso não
somente se refletiu na novela, como também determinou em muito a
representação das situações e do mundo interior das personagens, a qual
é psicologicamente exata tanto sob a ótica dum escritor, quanto sob a
ótica dum cientista médico. Tchékhov teve, como professores na
universidade, os fundadores da psiquiatria russa: Zakhárin, Babúkhin e
Sklifossóvskii. Ele próprio considerava a sua formação médica como o
fator decisivo para a sua decisão de tornar-se escritor.
Em 1900, em breve autobiografia, ele escreve:
“Não tenho dúvidas, o exercício das ciências médicas tiveram
séria influência na minha atividade literária; ele ampliou
significativamente o campo das minhas observações e enriqueceu
os meus conhecimentos, cujo verdadeiro valor para mim como
escritor só poderá entender quem também for médico; ele teve,
também, uma influência definidora de rumos, e, provavelmente,
graças à minha proximidade à Medicina, eu consegui evitar muitos
erros. O conhecimento das ciências naturais sempre me manteve
alerta, e eu esforcei-me, onde fosse possível, por proceder
conforme os dados científicos e, onde era impossível, preferia
simplesmente não escrever. Direi, a propósito, que as condições
da criação artística nem sempre permitem inteira harmonia com
os dados científicos; não se pode representar, no palco, a morte
por envenenamento tal qual ela ocorre na realidade. Mas deve
sentir-se harmonia com os dados científicos também nessa
convencionalidade, ou seja, é preciso que ao leitor ou espectador
fique claro que isso é apenas uma convencionalidade e que ele
está diante dum escritor entendido. Aos literatos que encarem a
ciência negativamente, eu não pertenço; e àqueles que a tudo
cheguem pela própria razão, eu não gostaria de pertencer.4
4 A.TCHÉKHOV, Moscou, 1979, p.271
15
Tendo resolvido dedicar a P. I. Tchaikovskyi a coletânea de contos “Gente
Carrancuda”, na qual o lugar central cabe a “Uma História Enfadonha”,
Tchékhov escreve ao compositor, mencionando “elementos médicos”:
“Neste mês, eu pretendo começar a publicar um novo livro de
contos; eles são tediosos e maçadores, como o Outono,
monótonos pelo tom, e elementos artísticos, neles, estão
densamente misturados com médicos, mas isso, apesar de tudo,
não me tira a ousadia de dirigir-me ao senhor com um pedido
encarecido: permita-me dedicar-lhe este livro.” 5
No estudo da novela, nós não deixaremos de levar tal aspecto em
conta.
Claro está, entre as premissas mais importantes de muitos temas,
nela tratados, também estão as obras literárias, às quais o autor remete o
leitor muito discretamente. Entre elas, os críticos costumar citar “A Morte
de Ivan Ilitch”, de Tolstói, “O Aluno”, de Bourget (Paul Charles Joseph
Bourget foi um romancista e crítico literário francês, autor de romances
psicológicos. Bourget exerceu grande influência nas letras francesas no
período que antecedeu o naturalismo, o qual combateu.), e “Fausto”, de
Goethe. No texto, há muitas referências a outros autores, sobretudo
Shakespeare e Marco Aurélio, o que também foi assinalado pela crítica.
Bem como muitas reminiscências, o que, com outros meios artísticos, nos
permite procurar uma chave para o “subtexto” tchekhoviano. Basta
enumerar os nomes de cientistas, escritores, personagens literárias,
filósofos e músicos, mencionados na novela (com a concisão da escrita de
Tchékhov, embora!) para falarmos da necessidade dum estudo esmerado
desse material (Shakespeare, Marco Aurélio, Epíteto, Pascal, Pirogov,
Nekrássov, Skóblev, Perov, Hekuba, Bach, Bhrams e outros).
Infelizmente, esse interessantíssimo tema está pouco estudado.
5 P. TCHAIKOVSKY 12 .10 1889 г. Disponivel em:http://chehov.niv.ru/chehov/letters/1888-
1889/letter-696.htm
16
A nosso ver, são importantes não somente os aspectos históricos,
filosóficos ou literários da menção a tais nomes, senão também outros,
igualmente importantes.
Nós tentaremos mostrar que, na novela, as reminiscências estão
intimamente ligadas às noções de tempo e espaço e determinaram em
muito a composição da obra.
É difícil falar de quando a Tchékhov veio a ideia de escrever “Uma
História Enfadonha”, mas, em algumas cartas de 1888-1889, encontram-
se menções a ideias usadas nela. A primeira menção concreta acerca da
futura obra está em carta a A. Evréinova, de 10 de Março de 1889. A ideia
era de que seria um conto.
“Eu tenho um enredo para um conto não muito grande. Tentarei
fazê-lo para o livro de Maio ou Junho. “6
É sabido que, em Março de 1889, realiza uma viagem a Khárkov, e
essa cidade tornar-se-ia um dos lugares da ação da novela. Precisamente
nesse período, a Primavera de 1889, ele lê o livro “Meditações”, do estóico
Marco Aurélio, e faz notas à margem. O referido livro conserva-se na
casa-museu de Ialta, e nós tivemos a oportunidade de manuseá-lo em
1983. Na obra subsequente do escritor, o tema do estoicismo aparecerá
mais de uma vez, especialmente em “Enfermaria № 6”.
Se examinarmos as cartas de Tchékhov, escritas no período que vai
dos fins de 1888 aos de 1889, poderemos notar como mudaram o seu
estado de espírito e a sua percepção do mundo.
Do fim de 1888 ao início de 1889, ele está feliz, agitado e cheio de
idéias de criação e constrói planos. Recebera, pouco tempo antes, o
prémio Púchkin e estava, bem como os seus parentes e amigos, muito
comovido e orgulhoso do fato. Em Peterburgo, é encenado “Ivánov”, com
a sua ativa participação nos ensaios. Para além disso, ele está a escrever
6 А. IEVREÍNOVA 10 .03 1889 г. Москва. Disponivel em:http://chehov.niv.ru/chehov/letters/1888-
1889/letter-619.htm
17
um romance, que nunca seria concluído, mas cuja idéia o arrebatara
naquele período, fato testemunhado por cartas (muito seria usado em
outras obras, entre as quais “Uma História Enfadonha”).
A partir de Março de 1889, a situação começa a mudar, com o
adoecimento do seu irmão Nikolai; o que, incialmente, não parecia muito
grave (febre tifóide), transforma-se em tísica com desfecho fatal em
Junho. Em quase todo o período de doença do irmão, Tchékhov tem-no
consigo; depois, toda a família vai para a datcha de Súmy, e o falecimento
do jovem pintor ocorre durante uma breve ausência do escritor.
A.Tchékhov N.Tchékhov
À medida do desenrolar dos trágicos acontecimentos, as cartas vão
tornando-se, a cada vez, mais desassossegadas, e sente-se a depressão
mais claramente; surge a palavra "скучно" (“é tedioso”), precisamente no
sentido, em que será usada no título da novela. Às vezes, melhorava o
estado de Nikolai e surgia, então, a esperança, e o tom das cartas
novamente mudava. Aparecem, nelas, referências a Marco Aurélio,
Epíteto, Salomão, Goethe, Fausto e Bourget. Encontram-se reflexões
acerca de psicologia, materialismo, filosofia e indiferença, entre outras
coisas, e a maioria desses temas encontraria reflexo na futura novela. Ao
meio de Maio, fica claro que Nikolai não teria cura.
Escreve Tchékhov a Suvórin, em 14 de Maio:
O meu pintor nunca recobrará a saúde. Ele está com tísica. A
18
questão está colocada assim: quanto durará a doença?7
A Léikin, em 22 de Maio:
... nos meus braços, tenho Nikolai, doente de tísica e consumido
por ela. É péssimo, o seu estado, e péssimo, também o meu, e o
senhor pode imaginar a minha situação. Não vou estender-me. 8
Nikolai morreria em 17 de Junho.
Escreve Tchékhov a Plechtchéev, em 26 de Junho:
“O pobre pintor morreu. (...) Era impossível dizer quando
Nikolai morreria, mas que isso seria logo, para mim estava claro.
O desfecho ocorreu nas seguintes circunstâncias. Na minha casa
estava hospedado o Svobódin. Aproveitando a vinda do meu irmão
mais velho, que poderia substituir-me, eu quis descansar, respirar
outro ar durante uns cinco dias; convenci Svobódin e os Lintarióv
e fui com eles à província de Poltava, à casa dos Smáguinin. Como
castigo pela minha partida, no caminho todo soprou um vento tão
frio e esteve o céu tão carregado, que parecia bem a tundra. Na
metade do caminho, começou a chover. Chegamos de noite à casa
dos Smáginins, molhados e com frio, deitámo-nos em camas frias
e adormecemos com o barulho da chuva. De manhã, o mesmo
tempo revoltante de Vólogda; a vida inteira, eu não conseguirei
esquecer nem a estrada lamacenta, nem o céu cinzento, nem as
lágrimas nas árvores; digo — não conseguirei, porque de manhã
veio de Mírgorod um mujique baixote, trazendo um telegrama
molhado:
“Kólia morreu”. Pode imaginar o meu estado de espírito. Foi
preciso galopar de volta à estação, tomar a ferrovia e gastar oito
horas em espera nas estações... Em Rómny, eu esperei das 7
7 А. SUVORIN 14.03 1898 disponivel em: http://chehov-lit.ru/chehov/letters/1888-1889/letter-
653.htm
8 Н.LÉIKIN 22.05 1889 disponivel em: http://chehov-lit.ru/chehov/letters/1888-1889/letter-
656.htm
19
horas da noite até às duas da madrugada. De tédio [grifo meu – E.
V.] fui vadiar pela cidade. Lembro-me: sento-me num jardim,
escuridão, um frio de lascar, um tédio monstruoso [Idem], e, atrás
da parede castanho-acizentada, perto da qual eu estava sentado,
artistas ensaiavam um melodrama.
Em casa, encontrei o sofrimento. A nossa casa até então não
conhecera a morte, e vimos um caixão pela primeira vez”.9
Em 2 de Julho, comunica a Suvórin:
“O pobre Nikolai morreu. Eu estupidifiquei-me e estou baço.
Um tédio dos infernos, nem um nadinha de poesia na vida,
ausência total de desejos etc. etc.” 10
A 18 de Julho, à irmã Macha:
“Um tédio dos infernos, e talvez eu parta daqui amanhã ou depois
de amanhã”. 11
E a 3 de Agosto a Plechtchéev:
“Partindo, deixei em casa o tédio desalentado e o medo”. 12
Já pelas cartas vê-se que o conceito de “tédio” ("скука") está, para
Tchékhov, intimamente ligado com o estado de desespero e tristeza
("скука аспидская" – tédio monstruoso; "скука адская", tédio dos
infernos).
9 А. PLECHTCHEEV 26 .06 1889 disponivel em:http://chehov.niv.ru/chehov/letters/1888-
1889/letter-664.htm
10 А.SUVORIN 2.07 1889 : disponivel em:http://chehov-lit.ru/chehov/letters/1888-1889/letter-
665.htm
11 М. TCHÉKHOVA 18 .07 1889 disponivel em http://chehov.niv.ru/chehov/letters/1888-
1889/letter-668.htm
12 А. PLECHTCHEEV 3 .08 1889 disponivel em http://chehov.niv.ru/chehov/letters/1888-
1889/letter-669.htm
20
Tal acontecimento, subentende-se, não apenas atrasou o presumível
término do conto, mas também, e principalmente, influenciou o tom de
espírito da novela e o tema, que a atravessa como motivo dominante — o
tema da morte. Tal como o autor, que acabara de, pela primeira vez,
passar pela tragédia da perda dum ente querido, com ser o médico do
irmão e um observador diário do desenvolvimento da doença, estando ele
próprio acometido da mesma moléstia (a primeira hemoptise ocorrera-lhe
em 1884 e repetira-se no fim de 1888), da mesma forma a personagem
sabe que morrerá logo e, ao verificar os sintomas da doença fatal e a
observar-lhe o desenvolvimento, estabelece o prazo que lhe resta,
provando, simultaneamente, todo o terror de quem tenha tomado
consciência do seu fim próximo.
Precisamente isso constitui o ponto de partida das reflexões da
personagem, que se tornam a linha principal da composição da novela.
A morte próxima está indissociavelmente ligada ao tema do tempo
de que a pessoa não dispõe.
A 16 de Julho, Tchékhov parte para Ialta e do navio escreve ao seu
irmão Ivan:
“Eu vou para Ialta e decididamente não sei para que ali
vou. É preciso ir também ao Tirol, a Constantinopla, a Súmy;
todos os países misturaram-se na minha cabeça, a fantasia
fervilha de cidades, e eu não sei qual escolher...” 13
Comparêmo-lo com a viagem de Nikolai Stepánovitch a Khárkov:
“Se é para ir para Khárkov, que seja para Khárkov. Além do
quê, nos últimos tempos, eu estou tão indiferente a tudo, que
para mim dá no mesmo ir para Khárkov, Paris ou Bérditchev”. 14
13 И.TCHÉCKHOV 16.071889 disponivel
em:https://royallib.com/read/chehov_anton/tom_21_pisma_ 1888_1889.html#778240
14 A.TCHÉKHOV Moscou, 1977, p.304
21
O primeiro título da novela era “O meu Nome e eu” ("Мое имя и я"),
o que, à primeira vista, é muito mais consonante com a ideia principal da
narrativa, mas, no entanto, em Setembro de 1889, Tchékhov intitula-a
“Uma História Enfadonha” e, apesar da advertência de Pleschtchéev de
que o novo título poderia provocar a ironia dos detratores, recusou-se
terminantemente a mudá-lo.
No capítulo dedicado ao título e ao subtítulo ("Из записок старого
человека", “Notas de um Velho”), nós tentaremos provar o caráter de
síntese simbólica do título mantido por ele. Alguns pesquisadores
estudaram já a questão do conceito de “tédio” na obra de Tchékhov e,
claro, também em “Uma História Enfadonha”, mas não foi notada a
palavra “história” ("история"), que tem vários significados na língua russa
e, na nossa opinião, adquire o mais amplo sentido no título da novela, o
que está diretamente relacionado com os conceitos de “tempo” e
“espaço”.
Assim, no “mais infame dos estados de espírito”, Tchékhov chega a
Ialta e trabalha na novela, que seria concluída somente no Outono.
Simultaneamente, escreve a peça “O Silvano” ("Леший"), mais tarde
reescrita como “Tio Vánia” (“Дядя Ваня”).
Por alguns testemunhos, é possível falar dum suposto protótipo da
personagem principal (levando em conta, obviamente, a
convencionalidade do conceito de “protótipo”). É Aleksandr Ivánovitch
Babúkhin, catedrático da Universidade de Moscou. Isso foi confirmado
pelo próprio Tchékhov:
É um vulto coletivo, embora muito tenha sido tomado de
Babúkhin. Coincidem alguns traços exteriores: em 1889,
Babúkhin, como Nikolai Stepánovitch, tinha 62 anos; tivera
encontros com Pirogov nos anos 1860, como o professor de “Uma
História Enfadonha”; apesar de defeitos de fala, possuía as
mesmas brilhantes capacidades de orador, sabendo, pelas
palavras dum orador, “desenhar em figuras vivas as coisas mais
22
abstratas... e iluminar tudo isso com um humor muito vivo,
entusiástico, e contar coisas com um talento incomparável. 15
No relato da história da criação da novela, não se pode esquecer o
fato de que ela foi escrita com grande dificuldade, do que há muitos
testemunhos nas cartas do período de trabalho nela.
A 3 de Agosto, Tchékhov escreve a Plechtchéev:
“... o conto está quase pronto. Apesar do calor e das
tentações de Ialta, eu escrevo. O que escrevi já dá uns 200
rublos, isto é, uma folha de impressão inteira... Por força do calor
e do meu nojento, melancólico estado de espírito, o conto tem-me
saído um tanto tedioso. Mas o motivo é novo. É bem possível que
o leiam com interesse”. 16
Tchékhov, no entanto, ficaria insatisfeito com o que escrevera e, adiando a
entrega do manuscrito à revista, põe-se a retrabalhá-lo.
A 3 de Setembro, de novo a Plechtchéev:
“Escrevi hoje a Anna Mikháilovna que o conto para o
“Mensageiro do Norte” já está pronto, e pedi-lhe permissão para
retê-lo em casa e não enviá-lo até ao próximo livro. Eu quero polir
e embelezar uma coisa e outra e, principalmente, pensar um
pouco nelas. Eu nunca na vida escrevi algo parecido, os motivos
são completamente novos para mim, e eu temo que a minha
inexperiência me faça quebrar a cara. Mais exatamente, eu temo
escrever alguma asneira”. 17
15
A.TCHÉKHOV, Moscou, 1977, p.671
16 А. N.PLESCHTCHHEEV 3.08
1889https://royallib.com/read/chehov_anton/tom_21_pisma_1888_1889.html#798720
17 А. N.PLESCHTCHEEV 3 09 1889https://royallib.com/read/chehov_anton/tom_21_pisma_1888_
1889.html#819200
23
Depois, ele volta a Moscou e a 7 de Setembro escreve a Evréinova
(redatora):
Tendo-lhe enviado a carta, eu acalmei-me e, entregue ao
acabamento do meu conto, escagalhei-o de ponta a ponta e joguei
fora um pedaço do meio e o final inteiro, decidido a substituí-los
por novos. Que fazer agora? Não posso enviar-lhe o que me
parece inacabado e que não me agrada. A coisa por si, pela sua
natureza, é meio tediosa, e, se eu não me ocupar dela
atentamente, então pode ser que, como dizem os franceses, o
Diabo é que sabe o que vai sair... O enredo do conto é novo: a
vida dum velho professor catedrático, conselheiro privado. Está
difícil escrever. Volta e meia, é preciso refazer páginas inteiras,
pois todo o conto está estragado pelo detestável estado de
espírito, de que eu não consegui livrar-me no Verão todo. Ele,
provavelmente, não agradará, mas que ele fará barulho e que o
“Pensamento Russo” vai massacrá-lo, disso eu estou convencido”.
18
A 13 de Setembro, escreve a Tíkhonov:
“Concluí uma extensa novela. É uma coisa pesada, portanto
pode matar alguém. Pesada não pela quantidade de folhas de
impressão, mas pela qualidade. É uma coisa canhestra e
volumosa. Trato um motivo novo”. 19
Ao dia seguinte, ele fala novamente a Pleschtchéev da dificuldade
de escrever:
“... imagine o senhor Tchékhov, que escreve, sua e corrige,
18
А. М. ЕВРЕИНОВОЙ 7 сентября 1889
https://royallib.com/read/chehov_anton/tom_21_pisma _1888_188 9. html#819200
19 В. TIKHONOV 13 .09 1889
https://royallib.com/read/chehov_anton/tom_21_pisma_1888_1889.html#839680
24
e vê que, com as mudanças e horrores revolucionários, a novela
sofre sob a sua pena e não fica nem um tiquinho melhor. O que
faço não é escrever, mas promover perturbações. Em tal estado de
espírito, concorde comigo, não é lá adequado apressar-se com a
publicação.
Na minha novela, não há dois estados de espírito, mas quinze
inteiros... tenho a esperança de que o senhor verá nela duas ou
três pessoas novas, interessantes para qualquer leitor inteligente;
verá uma ou duas novas situações... “ 20
A Leóntiev-Chtcheglov, a 18 de Setembro:
“Estou a braços com a novela, e a azáfama está no fim. Daqui a
uns cinco dias, este pesado disparate irá para Peterburgo, para a
tipografia de Demakov. Isso não é uma novela, mas uma tese de
doutorado. Cairá no gosto apenas dos amantes da leitura tediosa
e pesada, e eu faço mal em não mandá-la para a “Revista de
Artilharia” («Артиллерийский журнал»). 21
A novela foi concluída a 24 de Setembro, o que testemunham cartas a
Evréinova e Plechtchéev de 24 de Setembro:
“Envio-lhe o conto, “Uma História Enfadonha (Notas dum
Velho)”. A história é de fato tediosa, e está contada sem arte. Para
escrever notas dum velho, é preciso ser velho, mas tenho lá culpa
de ser jovem?” 22
Nessa mesma carta, Tchékhov escreve também que não lhe importa
se aquilo será uma novela ou um conto.
20
А. N.PLESCHTCHEEV 14 09 1889
https://royallib.com/read/chehov_anton/tom_21 _pisma_1888_1889.html#839680
21 И. Л. LEONT’EV-CHTCHEGLOV 18 09 1889
https://royallib.com/read/chehov_anton/tom_21_pisma_1888_1889.html#860160 22
А. EVREINOVA 24 09 1889
https://royallib.com/read/chehov_anton/tom_21_pisma_1888_1889.html#860160
25
É pouco provável que Tchékhov estivesse insatisfeito com a sua
novela, enviando-a a uma revista e a uma coletânea, mas, pelas cartas,
pode notar-se que estava muito inseguro quanto à reação dos leitores. Por
que duvidava um escritor famoso e reconhecido de que o entenderiam?
Por que lhe fora tão difícil o trabalho de escrevê-la, por que lhe dera outra
composição e mudara o título? Por que escreve que o motivo lhe era
completamente novo e que não escrevera algo semelhante “desde que
nascera”, se, em obras anteriores, haviam já sido tratados os seus temas
principais — morte, busca duma concepção do mundo, isolamento e
incompreensão mútua de pessoas próximas? Quais eram os tais quinze
estados de espírito?
Ainda em manuscrito, a novela foi lida por Pleschtchéev e Suvórin, que
encontraram “notas” tchekhovianas nas reflexões do professor. O primeiro
ficou encantado:
“O Sr. não teve nada tão poderoso e profundo, quanto essa
novela... E não falo já da absoluta novidade do motivo”. 23
Tchékhov recebeu com respeito as observações, feitas por Plechtchéev,
e, na carta de resposta, “tira um pouco o véu” à sua personagem e a
alguns aspectos da composição.
Muito obrigado pela carta e pelas indicações, que não deixarei de
aproveitar quando eu ler as provas. Apenas em poucas coisas não
concordo com o senhor. Por exemplo, acho que não convém
mudar o título da novela – os velhacos que, de acordo com suas
previsões, irão caçoar de “Uma História Enfadonha” são tão
desprovidos de espírito, que não há motivo para temê-los; e se
alguém fizer uma piada bem-sucedida, ficarei satisfeito por lhe ter
dado essa opurtunidade. O professor não pode escrever acerca do
marido de Kátia, porque não o conhece, e Kátia não diz nada a
respeito dele; além do mais, o meu herói – e isto constitui um dos
23
A.TCHÉKHOV ,1977, с.672
26
seus traços principais – trata com demasiada negligência a vida
interior dos que o rodeiam, e enquanto, ao seu lado, choram,
erram, mentem, ele, com a maior tranquilidade, discorre acerca
de teatro e literatura. Se ele fosse de outro tipo, talvez Lisa e
Kátia não se tivessem perdido.
Realmente, o passado de Kátia saiu longo e enfadonho. Mas
não dá para fazer de outra forma. Se eu tivesse tentado tornar
essa passagem mais interessante, há de concordar que a minha
novela sairia duas vezes mais longa...
Uma novela, como também o palco, impõe suas condições.
Portanto, a intuição diz-me no final duma novela ou dum conto eu
devo concentrar artificialmente no leitor a impressão de toda a
obra e, para isso, ainda que ligeiramente, um bocadinho, devo me
referir àqueles de quem tiver falado antes...24
Suvórin, por sua vez, considerou a novela subjetiva e publicitária, ao
que Tchékhov lhe respondeu com irritação.
Se lhe servem café, não o confunda com cerveja. Se lhe
apresento os pensamentos dum professor, não procure neles os
pensamentos de Tchékhov, e acredite em mim. Fico imensamente
grato. Na novela inteira há apenas um pensamento que eu
compartilho, e ele está na cabeça do genro do professor, o
trapeceiro Hnecker; é o seguinte: “O velho perdeu o juízo!” Todo
o resto é inventado e fabricado... Onde é que você encontrou
literatura jornalistica? Será que você dá tanto valor a opiniões de
qualquer gênero, que vê somente nelas o centro de gravidade, e
não na maneira de expressá-las, nem na origem delas etc.?
Então, o Disciple, de Bourget, é também literatura jornalistica?
Para mim, como autor, essas opiniões, pela sua essência, não têm
nenhum valor. A questâo não está na essência delas, que varia e
não é nova. O fundamental está na natureza dessas opiniões, na
sua submissão às influências externas etc. É preciso examiná-las
como coisas, como sintomas, de modo totalmente objetivo,
24
A.P.Tchékhov: Cartas para uma poética, 1995, p.151
27
procurando não concordar com elas, nem contestá-las. Se eu
descrever a dança de São Guido, você não a verá sob a
perspectiva dum coreógrafo. Não é? Deve acontecer o mesmo em
relação às opiniões. Não tive a menor pretensão de lhe causar
espanto com as minhas opiniões surpreendentes acerca de teatro,
literatura etc.; eu só quis aproveitar os meus conhecimentos e
mostrar o círculo vicioso em que caiu um homem bom e
inteligente que, apesar de toda a sua vontade de aceitar de Deus
a vida tal com ela é, e de pensar nos outros de modo cristão,
querendo ou não, queixa-se e resmunga como escravo, insulta as
pessoas, inclusive quando se força a falar bem delas. Ele quer
interceder a favor dos estudantes, mas não consegue nada, a não
ser hipocrisias e insultos à maneira de Jítiel. Bem, tudo isso é uma
longa história... 25
temas da contemporaneidade, nos contos de Tchékhov, não os
houvera até então; da carta vê-se que a “novidade” da novela para o
próprio escritor estava não nas “opiniões e reflexões”, mas no modo de o
professor expressar os seus pensamentos
Bem no início de novembro de 1889, a novela “Uma História
Enfаdonha” foi publicada no № 11 da revista “Mensageiro do Norte”.
Contrariando os temores de Tchékhov, os leitores receberam-na com
entusiasmo.
Escreve Plechtchéev já a 5 de Novembro:
“Apresso-me a alegrá-lo, querido Antón Pávlovitch. Ouço,
de todos os lados elogios, entusiásticos à sua novela, de pessoas
de diferentes opiniões, círculos e campos. Alguns até dizem que
ela é o melhor que o Sr. já escreveu. Outros, que a novela deixa
uma impressão profunda; terceiros, que é algo inteiramente novo;
e, por fim, que é a coisa mais notável do “Mensageiro do Norte”
deste ano inteiro... Eu não conseguiria dizer-lhe quanto isso me é
agradável. Eu, devo confessar-lhe, não esperava de modo nenhum
que ao “público” essa sua última obra fosse agradar... Ela, parecia-
25
A.P. TCHÉKHOV: Cartas para uma poética, 1995, p.155
28
me, é mais para conhecedores. Eu pensava que a fossem achar
tediosa. E imagine só — nem um pouquinho! Achar-lhe-ão
defeitos, claro; mas isso não quer dizer nada; que obra não tem
defeitos? Mas todos depositam grandes esperanças no seu talento
e esperam impacientemente por um seu romance... Vêem na sua
novela, não apenas um passo à frente, como também uma
viragem para a seriedade e profundidade de conteúdo”. 26
Falam da novela como um “testemunho de maturidade filosófica” (V.
Tíkhonov)27, uma “coisa inteligente dos diabos” (F. Tchervínskii), como “a
sua novela que, dentre todas, tivera o maior êxito" (К. Golóvin)28.
Liev Tolstói, segundo testemunho de Goldenveiser, durante a leitura
dela, “o tempo todo expressava admiração pela inteligência de Tchékhov”.
Se os leitores receberam “Uma História Enfadonha” com entusiasmo,
dos críticos não se pode dizer o mesmo.
26
A. TCHÉKHOV, Moscou, 1979, p.271
27 -----------------------------------p. 674-675.
28 -----------------------------------p. 674-675.
29
3. Crítica
De 2002 a 2016, sob a redação de Ígor Sukhikh, saíram três tomos da
antologia "A. P. Tchékhov: Pro et Contra", nos quais foram reunidos os
principais artigos críticos, dedicados à obra de Tchékhov e publicados nos
períodos, propriamente, de 1887 a 1914, 1914 a 1960 e 1960 a 2010.
A antologia é de valor inestimável para todos os estudiosos da obra de
Tchékhov. Abre-a um artigo do seu redator, intitulado Современники " “Os
que disseram Eh! Os contemporâneos lêem Tchékhov”, em que ele analisa
as principais correntes da crítica. Conclui-a o artigo “Антон Чехов как
зеркало русской критики” (“Antón Tchékhov como espelho da crítica
russa”), de A. Stepánov, que analisa os trabalhos mais interessantes à luz
dos tratamentos contemporâneos da obra do escritor. 29
A crítica de tendência realista, antes de mais nada, estabelecera
critérios ideológicos para a literatura, como a representação da vida social,
e, no entendimento dela, precisamente aos escritores fora dado o direito
sagrado e a obrigação sagrada de mostrar as chagas da sociedade,
explicando as suas causas aos leitores e opinando acerca delas, de
mostrar caminhos e definir ideais, cuja tendência era óbvia: o serviço a
algo “supra-pessoal”, fosse a Humanidade ou fosse deus. As ideias dos
anos de 1860 envelheceram, mas ainda permaneciam dominantes. O
principal crítico do período foi N. Mikhailóvskii.
Ao mesmo tempo, porém, abeirava-se o “século de prata” ("серебрянный
век"), e a obra de Tchékhov, pelos critérios temporais, inscreve-se bem no
início de tal período. Transcorria o desmoronamento das antigas ideias
acerca da vida em todas as esferas — política, ciência, religião. Como
consequência disso, iniciaram-se buscas dum novo sentido e de novas
formas em todos os tipos de arte — pintura, música, teatro, arquitetura,
balé e, claro está, literatura. E, naturalmente, também a crítica literária.
O aspecto comum, que se pode notar nela já de saída, é o tratamento
da obra tchekhoviana pelo prisma da tendência abraçada pelo crítico,
29
A.TCHÉKHOV: Pro et Contra, I.Sukhikh, 2002, p.10, p.976.
30
fosse ele o democrata N. Mikhailóvskii, lá dos anos sessenta, o simbolista
Andriéi Biély, o futurista V. Maiakóvskii ou os filósofos L. Chestov e S.
Bulgákov. Quer dizer, o “escapadiço” Tchékhov podia ser examinado de
qualquer posição, e, se ele não se inscrevia na ideologia ou corrente do
crítico-examinador, tal “falha” era declarada um “defeito” do escritor, uma
imaturidade sua, ausência de ideais, falta de ânimo e entusiasmo,
indiferença e outros epítetos semelhantes.
“O mundo universal de Tchékhov demonstrou a capacidade de
entrar em contacto com quase todas, se não com todas, as
doutrinas estéticas do século 20, revelando-se, invariavelmente,
maior do que qualquer uma delas". 30
Por si só, isso não é de admirar; contudo, quando lemos os artigos do
tempo de Tchékhov, verificamos algo muito interessante: muitas
particularidades do seu novo estilo, incompreendidos ou não aceitos pela
crítica, foram intuitivamente assinalados já então, bem lá no início, e são
considerados, pelos tchekhovistas contemporâneos como os elementos
basilares da estilística do escritor.
“A incompreensão do autor-inovador pela crítica contemporânea a
ele pode manifestar-se de duas maneiras: ou atribuem-se-lhe
qualidades que ele não tem, ou a sua inovação é considerada
como defeito. O segundo caso é preferível para os escritores
“fortes”, e, nesse sentido, Tchékhov teve sorte: à voz do “contra”
imediatamente deu o tom um leitor muito refinado, que notara as
particularidades da poética, que depois as vozes do “A favor”
ignorariam. (Stepánov)31
Porquanto a novela “Uma História Enfadonha” foi escrita na forma de
apontamentos em primeira pessoa e contém grande quantidade de
30
A.TCHÉKHOV: Pro et Contra, 2002, p.29.
31 A.TCHÉKHOV: -------------------------p.976.
31
reflexões acerca dos mais diversos temas, inclusive o duma “ideia geral”
(общая идея), logo após a publicação da revista com a coletânea “Gente
Carrancuda”, e em seguida dela própria em livro, a crítica quase
unanimemente, tendo reconhecido o indubitável talento do jovem escritor,
resolveu a questão da identidade do autor e da personagem, atribuindo os
pensamentos e dúvidas do velho médico ao próprio Tchékhov. O problema
filosófico da existência duma “ideia geral” na vida duma pessoa é
reconhecido por todos como central. E a novela acabou por ser muito mais
um exemplo adequado para a análise da concepção de mundo do escritor
(mais exatamente, na perspectiva da crítica contemporânea a Tchékhov,
denunciar a falta de tal concepção) do que objeto de estudo em si, como
obra literária. Na maioria dos artigos, cita-se o último diálogo da
personagem com Kátia ou as reflexões de Nikolai Stepánovitch acerca de
não ter uma “ideia geral”, e a isso segue-se a inevitável conclusão de que
o próprio escritor também não tinha uma. Assim, aflige-se o crítico P.
Piértsev com que a impressão da força do talento e do colorido traz,
contudo, a estranha sensação de que “falta algo” (P. Pertsev 183 ).
Praticamente em todos os artigos, encontra-se uma mesma ideia: não
há resposta à pergunta acerca do que é a ideia geral, o deus da pessoa
viva. Tchékhov detém-se no limiar da coisa principal e não o transpõe, “e
fica o leitor um tanto perplexo, diante de portas trancadas” (Аlbov).32
E não fora à toa que Tchékhov temia ironias quanto ao título da novela.
L. Liátskii chama ao diálogo de Tchékhov com o leitor “uma história
tediosa, muito tediosa”.33
A crítica não deixou de atentar também para o título da coletânea
“Gente carrancuda”, e as opiniões acerca da sua correspondência ao
estado de espírito principal do ciclo são as mais diversas. Ovsiánniko-
Kulikóvskii considera que Tchékhov estuda a psicologia da “carrancudez”
32
A.TCHÉKHOV: Pro et Contra, 2002, p.382.
33 ----------------------------------- p..467. A tradução mais correta do título da obra seria
“Uma história tediosa” (não “enfadonha”), segundo o nosso orientador e os membros da
minha banca do Exame de Qualificação.
32
(Ovsianiko-Kulikovski)34, ao passo que N. Mikhailóvski é de opinião
totalmente oposta, acentuando que o título não corresponde nem um
pouquinho ao conteúdo da obra e fora escolhido aleatoriamente
(Н.Михайловский ).
Para além da falta de concepção de mundo, ideais e uma ideia geral, as
declarações irritadas do professor de sessenta e dois anos contra
praticamente todos os fatos da vida contemporânea a ele, tanto da vida
cotidiana quanto da arte, teatro, literatura e a sua insatisfação com os
estudantes e a universidade foram quase unanimemente atribuídas ao
jovem autor. Convergem os críticos também na consolidação do chavão
acerca do “pessimismo” de Tchékhov (Disterlo, Kign, Protopópov,
Govorukha-Otrok e outros).
A caracterização da personagem principal de “Uma História Enfadonha”
resumia-se, fundamentalmente, a quanto ela era típica da realidade dos
dois últimos decênios daquele século e quão típica era a própria realidade
representada por Tchékhov. Tendo acusado o próprio escritor e as suas
personagens de não possuírem ideais, a maioria dos críticos, seguindo
Mikhailóvski, fazem a mesma acusação à geração “apática”, “desprovida
de ideias” e desiludida dos anos 1880 da época da estagnação cultural e
social , e, a partir daí, Tchékhov torna-se um porta-voz dessas novas
pessoas “supérfluas”. Da posição vantajosa dos nossos contemporâneos
de hoje, podemos notar a quantidade de chavões usados para qualificar
essa pobre geração, muitos representantes da qual logo depois se
tornariam personagens do “século de prata” ou revolucionários e
terminariam a vida tragicamente na Rússia ou no exterior e provariam
sofrimentos tais, que para muitos deles os “tormentos” das personagens
tchekhovianas seriam incompreensíveis, insignificantes, obscuros e até
irritantes. A mudança de épocas ocorrera com tanta rapidez, que a nós, às
vezes, parece que da geração dos anos 1880-1900 não restara ninguém
por volta da revolução russa, embora da publicação de “Uma História
34
A.TCHÉKHOV: Pro et Contra, 2002, p.488.
33
Enfadonha” até à salva de tiros do cruzador “Aurora” se houvessem
passado apenas vinte e oito anos, e muitos parentes e conhecidos de
Tchékhov, por exemplo, a sua irmã Maria Pávlovna, a sua esposa, Olga
Leonárdovna Knipper, o seu amigo Ivan Búnin, Dmítrii Merejkóvskii e
Zinaída Híppius e outros, isto é, os que conseguiram sobreviver, viveram
até à metade do século vinte.
O fato de que o fim do século 20 e o começo do 21, não somente na
Rússia, seriam chamados de "o tempo de Tchékhov", ninguém,
certamente, poderia ter suposto. É difícil acusar os que escreveram acerca
do escritor de falta de clarividência e incapacidade de prever a sua
incomparável influência na literatura mundial futura. Nos anos 1890, o seu
principal "mérito", segundo a opinião geral, era a representação do estado
de espírito da sua geração.
São muito raras as referências ao estilo, à composição e às
particularidades artísticas da novela, bem como ao retrato psicológico da
personagem, embora os críticos notassem a contenção e o laconismo da
escrita tchekhoviana (Ovsianniko-Kulikóvski35, Neviédomski36).
Levantou-se também a questão das fontes da obra, e foi muito
lembrada “A Morte de Iván Ilitch”, de Tolstói.
“se não tivesse havido “A Morte de Ivan Ilitch”, não teria havido
nem “Uma História Enfadonha”, “Ivánov”, nem outras grandes
obras de Tchékhov" (Chestóv).37
Também houve, no entanto, opinões opostas; I. Búnin e Kign
expressaram dúvidas acerca da forte influência de Tolstói em Tchékhov.
I.Sukhikh considera que, ao fim e ao cabo, Tchékhov não encontrou o
crítico ideal ou, pelo menos, o seu crítico entre os contemporâneos.38
35
A.TCHÉKHOV: Pro et Contra, 2002, p.487.
36 ------------------------------------ p.799.
37 ----------------------------------- p.571.
38 -------------------------------- -p.15.
34
Citemos o testemunho de Búnin, que está no seu livro de
reminiscências “Acerca de Tchékhov”:
“Ele trabalhou quase 25 anos, e quantos reproches triviais e
rudes ouviu ele nesse tempo todo!
— Leu, Antón Pávlovitch? — dizia-lhe alguém que vira
algures um artigo a respeito dele.
Ele apenas olhava de esguelha, por cima do pincenê, e, de
pescoço esticado, respondia com a sua voz de baixo:
— Ora, muito obrigado! Escrevem mil páginas acerca de
alguma pessoa e acrescentam em baixo: “e existe ainda o escritor
Tchékhov: um choramingas...” E que choramingas sou eu? Que
“pessoa carrancuda” sou eu, que “sangue frio” sou eu, como me
chamam os críticos? Que “pessimista” sou eu? Das minhas obras,
a minha preferida é o conto “Estudante”... E que palavra
asquerosa: “pessimista”... Não, os críticos são piores do que os
atores. Como sabe, em matéria de desenvolvimento, os atores
estão setenta anos atrás do povo russo.
E, às vezes, acrescentava:
— Quando o xingarem por aí, meu caro senhor, lembre-se mais
vezes de nós, pecadores; os críticos batem em nós, como no
seminário, pela menor falta. Um crítico até me profetizou que eu
morrerei na miséria: ele achava-me um rapaz expulso da escola
por bebedeira” (I. Búnin).39
Contudo, havia também artigos merecedores de atenção especial.
Sobretudo, “Acerca de pais e filhos e do Sr. Tchékhov”, de N. Mikhailóvski.
Era precisamente este em primeiro lugar que A. Stepánov tinha em
mente, ao falar dum “crítico suficientemente sensível” . O referido
trabalho de N. Mikhailóvskii teve grande repercussão e foi objeto de
aprovação, discussões, citações e discordâncias.
Ele começa com uma ironia acerca duma acalorada discussão da
publicística dos anos de 1880 acerca de “pais” e “filhos”, isto é, a geração
dos anos sessenta, com as suas ideias sociais, “ideais”, temas e aqueles
39
Putechestvie k Tchékhovu, Moscou, 1996 p.449.
35
que vivem a realidade e a aceitam, negando quaisquer ideias (faz-se a
divisão não pelo critério etário, mas exclusivamente ideológico).
Mikhailovski não emprega a palavra “niilismo”, embora, sem dúvida, fale
precisamente disso. Os que a si chamam “filhos”, são-lhe desagradáveis,
desprovidos de interesse e ridículos.
Ao passar à critica da coletânea “Gente Carrancuda”, ele assinala
que Tchékhov era, até àquele momento, o único literato talentoso da sua
geração literária, mas, por causa da sua falta de ideologia, não era capaz
de atingir o alto nível dos clássicos da literatura russa:
“E eu não conheço espetáculo mais triste do que esse
talento desperdiçado à toa” (Mikhailóvski).40
Mikhailóvski encanta-se com a capacidade de Tchékhov de animar a
natureza e espiritualizar tudo o que é inanimado, mas, a par disso,
observa que para ele não é importante acerca de que escrever, como se
“passeasse em frente à vida e, nesse passeio, arrancasse algo cá,
outra coisa acolá” (Mikhailóvski).41
e põe-se a escrevinhar com indiferença, com ”sangue frio”. O crítico
também nota a escolha aleatória dos temas, a falta de hierarquia no
sistema artístico do escritor, os promenores fortuitos, sem relação com o
enredo nem com as características das personagens, a falta de um claro
elo lógico, causas e efeitos e explicações — enfim, tudo o que hoje é
reconhecido como a natureza ímpar do estilo tchekhoviano.
Na ótica de Mikhailóvski, tais traços revelam tão-somente a
indiferença e negligência do jovem e talentoso escritor, a sua frieza
emocional. Ele vai lendo os contos da coletânea e parece começar “Uma
40
A.TCHÉKHOV: Pro et Contra, 2002, p.84.
41 ----------------------------------- p.85
36
História Enfadonha” com decepção, mas aí a sua opinião muda
radicalmente, e ele caracteriza a novela como “a melhor coisa e a mais
valiosa de tudo o que o Sr. Tchékhov escreveu até hoje” . A falta de um
ideal ao professor, para Mikhailóvski, é um testemunho indubitável da
falta de um ideal também ao escritor, mas precisamente no anseio por um
ideal, por “uma ideia geral”, o crítico enxerga algo que os hiilistas de
então não tinham; foi precisamente tal anseio que lhe suscitou uma
impressão tão forte da novela, e era nessa direção que ele via a saída
para o talento “condenado a morrer”. A figura de Tchékhov como “poeta
do anseio por um ideal” e “cantor do crepúsculo” foi levada adiante por
muitas outras vozes.
A tendência principal e a essência do escritor, para o filósofo Chestóv, era
que Tchékhov, na sua criação, matava as esperanças e ideais humanos
com todos os meios possíveis:
“E o próprio Tchékhov empalidecia, murchava e perecia diante dos
nossos olhos — nele não perecia apenas a sua arte admirável de
só com um toque, até um sopro, um olhar, de matar tudo aquilo
de que as pessoas vivem e se orgulham... Nas mãos de Tchékhov,
tudo morria (Chestóv).
É necessário assinalar que tal caracterização de Tchékhov foi feita
com intenção positiva por Chestóv, um filósofo, para quem o mundo é
irracional e quaisquer tentativas de sua explicação e quaisquer respostas a
questões globais da Humanidade não passam de engano.
E, no exemplo de “Uma História Enfadonha”, Chestóv aponta mais
uma caraterística importante da obra de Tchékhov: aversão ao pathos e às
palavras elevadas, inaceitação da reserva de ideias gerais e concepções de
mundo, acumulada pela literatura, e aversão a ela e recusa a todas as
consolações metafísicas e positivas possíveis. Ele achava que Tchékhov
“emancipa-se completamente de todo o tipo de ideias e
concepções de mundo e até perde a ideia da relação entre todos
37
os acontecimentos da vida”, e apresenta isso como o traço mais
significante e original da sua obra (Shestov).42
A morte do escritor suscitou uma nova vaga de artigos, e durante
ainda muitos anos acerca dele escreveram críticos (V,Vorovski,
Ju.Ajkhenvald, M.Nevedomski, A.Izmailov, A.Dolinin), escritores (A.Belyi,
K.Tchukovskii, V.Majakovskii), filósofos (S.Bulgakov, L.Chestov,
D.Filosofov, V.Rozanov), e até médicos psiquiatras (M.Nikitin, N.Shapir)),
para não falarmos das inúmeras reminiscências de contemporâneos. Mas
já
em Agosto de 1914, o tempo de Tchékhov acabara, extinguira-se,
qual corda rompida, o século dezenove, cuja duração fora além do
calendário. No “Verdadeiro Século Vinte”, durante algum tempo,
não se estava para discussões literárias nem se queria saber da
própria literatura. Quando, nos anos vinte, de novo se lembraram
de Tchékhov, tudo estava mudado: o mundo, o país, as pessoas,
as questões, as respostas e, parece, até os próprios textos de
Tchékhov” (Sukhih).43
O “Século de Prata”, com raras exceções (A. Biely, A. Blok, V.
Maiakóvski), não aceitou Tchékhov. O que se escreveu acerca dele tem
pouco valor e é, via de regra, de caráter negativo (А. Akhmatova, Z.
Gippius e outros): era outro tempo, não tchekhoviano. Os formalistas
ignoram-no completamente. E, apesar de em 1928 ter aparecido o livro
“O Naturalismo de Tchékhov”, de Leonid Grossman, pode dizer-se que, no
início da era soviética, o interesse pela obra de Tchékhov continuou a
diminuir até que entre os críticos do campo do realismo socialista, entre
os V. Ermílov, alguém não descobrisse um novo Tchékhov, “soviético”, que
desmascarava furiosamente o espírito pequeno-burguês e se erguia em
defesa de todos os “russos simples e trabalhadores” oprimidos, no anseio
42
A.TCHÉKHOV: Pro et Contra, 2002, p.571.
43 --------------------------------------- p.44.
38
de responder à pergunta “que fazer?”.
“Num tempo difícil, o povo buscador da verdade criou e
educou o seu grande escritor, Antón Pávlovitch Tchékhov, e
encaminhou-o a difíceis buscas”.44
E já dessa nova plataforma ideológica, na novela “Uma História
Enfadonha”, examinam-se temas já tratados pela crítica contemporânea a
ele. Porém, o defeito torna-se qualidade e, à diferença do Tchékhov
anterior, o Tchékhov soviético passa a ter uma firme posição ideológica e
responde às questões do seu tempo “inanimado”, de que era intérprete a
personagem principal da novela. Assim, os sofrimentos de Nikolai
Stepánovitch explicam-se pela falta dum objetivo único na sociedade:
... tudo isso é inevitável numa sociedade dividida em
partezinhas separadas, numa sociedade não inspirada por um
objetivo único, por uma grande ideia geral (...). Tchékhov não
queria ficar na situação da personagem, que à pergunta ´que
fazer?´ respondia com um honesto mas sincero ´não sei´. E
Tchékhov sentia-se obrigado a responder a essa pergunta”. 45
A situação começou gradualmente a mudar na metade do século vinte.
Os pesquisadores, para além de grande atenção à biografia do escritor,
retomam a questão da continuidade das tradições da literatura russa
clássica em Tchékhov, sem deixarem de assinalar a originalidade do seu
estilo. Por exemplo, V. Kulechov, M. Gromov e S. Nikolaeva estudam a
recepção de figuras e motivos de Dostoiévski em obras de Tchékhov; em
trabalhos de G. Biályi, M. Semanova e J. Jalgasbaeva, investiga-se a
tradição turgueneviana; V. Lakchin e A. Kuzitcheva analisam a influência
de L. Tolstói na formação do escritor.
44
Disponivel em:http://az.lib.ru/c/chehow_a_p/text_0490.shtml
45 Disponivel em http://az.lib.ru/c/chehow_a_p/text_0490.shtml
39
A partir dos anos oitenta, na União Soviética, aparecem significativas
monografias acerca tanto dos vários aspectos do sistema artístico de
Tchékhov, quanto de alguns contos, novelas e peças (А. Tchudakov,
V.Kataev, V.Lincov, I.Sukhikh). A. Tchudakov em «Поэтика Чехова» (A
poética de Tchekhov), de 1971, foi um dos primeiros que apresentaram
métodos exatos de descrição do sistema narrativo do escritor. Com base
numa acurada análise de textos e aproveitamento de extenso material, a
autora estabelece as características comuns a todos os níveis do referido
sistema (narrativas de vários períodos da obra do escritor, enredo e
esfera de ideias), dedica atenção especial ao mundo material e introduz o
conceito de “pormenor fortuito”.O livro Проза Чехова: проблемы
интерпретации (A prosa de Tchékhov, 1979), de V. Katáev, é dedicado a
questões polémicas da interpretação duma série de obras do escritor e a
diversos procedimentos de estudo aplicáveis à análise da sua prosa. O
trabalho contém a interpretação de alguns contos, novelas e peças e
enfatiza a peculiaridade da mentalidade das personagens tchekhovianas, a
qual “os leva a um impasse”, sendo causa de desconcerto e
padecimentos. Na qualidade de princípio artístico original do escritor
Katáev aponta “a individualização de cada acontecimento em
particular”.Na monografia de Ígor Sukhikh, "Проблемы поэтики Чехова"
(Problemas da poética de Tchékhov), de 1987, também se apresenta um
estudo integral do mundo artístico do escritor e do seu lugar no contexto
da literatura russa do século XIX. Analisam-se minuciosamente o primeiro
drama e contos da primeira fase, as novelas “A estepe” e “O monge
negro”, o livro A ilha de Sacalina e o conto “A casa de mezanino”. O autor
debruça-se sobre a polémica questão da filosofia artística e é quem
primeiro a estudar o problema do cronótopo tchekhoviano.
Em outros países, como Alemanha e Estados Unidos, nesse período, o
seu legado tornou-se objeto de estudo para a corrente psicoanalítica nos
estudos literários, a qual dedicava grande atenção à concepção dos
arquétipos mitológicos do inconsciente coletivo, elaborada por K. Jung
(S.Senderóvitch).
40
Uma nova página nos estudos tchekhovianos veio a ser a série
“Tchekhoviana”, de trabalhos científicos, publicada pelo Conselho
Tchekhoviano de História da Cultura Mundial, da Academia das Ciências da
Rússia. Ela reúne artigos e ensaios de estudiosos contemporâneos, que
revelam um aspecto e outro da obra do escritor. Atualmente, saem
regularmente as coletâneas «Чеховский вестник» (O Mensageiro
Tchekhoviano) e «Молодые исследователи Чехова» (Jovens
Pesquisadores de Tchékhov), nas quais se publicam trabalhos de jovens
tchekhovistas.
Começaram a ser objetos de estudo o cronótopo de Tchékhov, a
dinâmica dos motivos, a simbologia, a interstextualidade e a filosofia do
escritor, mas tais temas permanecem pouco estudados e à luz das novas
pesquisas demandam uma elaboração mais acurada.
Podemos concluir que a novela “Uma História Enfadonha” nunca foi
estudada na totalidade da sua estilística, composição, símbolos,
pormenores, inclusive os “fortuitos”, e ritmos. Quase não se escreveu
acerca das suas personagens e do seu papel nela, com as exceções de
Nikolai Stepánovitch e Kátia (esta, esquematicamente, com as palavras
daquele, sem consideração do subtexto tchekhoviano). Tampouco foram
estudados os temas das recordações, infância, música, animais,
reminiscências e citações, bem como o tempo e o espaço na sua relação
com todos os elementos literários supracitados.
Tentaremos preencher tais lacunas, no nosso trabalho. Cumpre assinalar
que representa certa dificuldade a tarefa de, a par do texto original,
analisarmos também a sua tradução em português, na qual, infelizmente,
apesar do brilhante trabalho de Bóris Schnaiderman, muito se perdeu,
enfraquecendo, com isso, a percepção do subtexto da obra.
41
4. Elementos da composição da novela
4.1 Conceito geral de composição duma obra literária
O artista deve julgar apenas aquilo que entende, seu
círculo é tão limitado quanto o de qualquer outro
especialista -- é o que repito e no que insisto sempre.
Que em sua esfera não haja questões, mas apenas
respostas, só quem nunca escreveu e não lidou com
imagens é capaz de dizer. O artista observa, escolhe,
adivinha, arranja: essas operações já pressupõem, em
sua origem, um problema. Se o problema não tiver sido
colocado desde o início, não haverá nada por adivinhar
nem por escolher. A fim de ser mais breve, terminarei
através de psiquiatria: se o problema e a intenção
forem negados no ato criativo, será então necessário
admitir que o artista cria sem premeditar e sem um
propósito, sob a influência da emoção; por isso, se um
autor se vangloriasse diante de mim de haver escrito
uma narrativa sem intenção premeditada, apenas por
inspiração, eu o chamaria de louco. (103)46
O modo de construção e organização do texto literário e a
interligação entre os seus elementos, que provêem a sua unidade e
inteireza, isto é, um material selecionado e disposto de determinada
maneira para a obtenção do máximo efeito emocional e semântico sobre o
leitor em conformidade com a ideia do autor, eis o que é a composição da
obra literária.
Esse é um conceito complexo e multiplanar. Daí a grande quantidade de
modos de tratá-lo e a multivariedade de concepções que incluem a
diferença das definições do próprio conceito. Apesar disso, reconhece-se
como base à revelação dos meios, que tornam possível o diálogo entre o
46
TCHÉKHOV, Anton. “O beijo” e outras histórias. São Paulo, 2010, 3a ed. Tradução de Boris
Schnaiderman Aqui e doravante, os números entre parênteses indicam as páginas no texto da novela.
Utilizámos, no nosso trabalho, a tradução de Boris Schnaiderman.
42
autor e o leitor (M.Bakhtín, V.Vinogradov, L.Vygódski, G.Gukovski,
V.Zhirmunski ,J.Lótman, B. Uspénski, V. Chklovski, L. Scherba e outros).
Da composição de obras de Tchékhov trataram diretamente L. Lélis e
E. Polótskaia, entre outros.
Em vista da brevidade e concisão e, simultaneamente, saturação
semântica das obras de Tchékhov, o estudo dos seus procedimentos
composicionais afigura-se especialmente complexo e interessante.
No seu trabalho, Tchékhov contava com um leitor talentoso e dotado
de boa intuição, capaz, ademais, de captar matizes, os mínimos
pormenores, o significado oculto no subtexto e expresso por sinais
linguísticos, ou seja, com uma pessoa que, à leitura, entrasse em diálogo
com o autor, individualizando o material recebido com a sua própria
experiência e a sua própria e inconfundível (exclusiva) personalidade.
Quando eu escrevo, confio inteiramente no leitor, supondo que
ele próprio acrescentará os elementos subjetivos que faltem ao conto.47
L. Kaida, no livro Стилистика текста: от теории композиции – к
декодированию (Estilística do texto: da teoria da composição à
decodificação)48, que constitui o mais minucioso estudo dos problemas
contemporâneos da composição, afirma que o leitor é capaz de ler o texto
com uma profundidade inimaginável pelo escritor e enxergar o que este
quisera dizer e, às vezes, até o dito inconscientemente. E tal não por força
dum “feliz lampejo”, senão duma habilidade profissional de juntar todas as
pontas soltas e contextos num todo único.
Na análise da composição de “Uma história enfadonha”, nós nos
ateremos aos seus seguintes elementos:
- Título e subtítulo;
47
A.TCHÉKHOV, Moscou, 1977, p.174.
48 L.KAJDA, Nauka, Flinta, 2005.
43
- Lances do enredo;
- O início e o final da novela;
- As personagens;
-Elementos extra-enredo ( temas, motivos, pormenores);
- Ritmo;
-Tempo e espaço.
Atenção especial será dada aos procedimentos de repetição, variação
e contraposição (antíteses), encontrados no texto.
O objetivo do nosso trabalho é mostrar como todos os elementos
supralistados da composição literária, funcionando em prol da ideia do
autor, formam o subtexto da novela, agindo tanto na consciência quanto
no subconsciente do leitor.
Aquilo em que sem dúvida se pode buscar a posição do autor,
principalmente nas obras escritas em nome da pessoa da personagem,
são o título, o subtítulo e a correlação entre os diversos elementos
artísticos independentes e a sua “montagem” por uma determinada figura,
dada pelo autor, isto é, a composição.
4.2 Título, subtítulo
O primeiro título da novela foi “O meu nome e eu”. Antes de mais
nada, observemos que, como pode ver-se, ele é dado pela própria
personagem, à diferença do subtítulo “Dos apontamentos duma pessoa
velha”, dado pelo autor. O mesmo pode encontrar-se em outras obras de
Tchékhov, também escritas na pessoa da personagem, por exemplo,
“Minha vida” (Conto dum provinciano). Em “O meu nome e eu”, já de
saída se indica o tema principal: uma pessoa e o seu famoso nome,
separados um do outro, tanto na vida cotidiana quanto na percepção das
pessoas, e na História. Provavelmente, foi essa a ideia básica da ideia
original da novela (ou, naquele momento, do conto). Premissa para isso
foram, sem dúvida, as reflexões também acerca da própria fama sobre o
fundo da vida cotidiana, mas um impulso especial para a análise desse
tema foi a morte do insigne viajante N. M. Prjeválskii, ocorrida em 20 de
44
оutubro de 1888. Seis dias depois, no jornal “Novo Tempo” (Новое
время), saiu um obituário sem título nem assinatura, de autoria de
Tchékhov. O texto estava vazado em um estilo insólito para os leitores do
escritor — exaltado, quase patético, em relação às “pessoas de façanhas”,
e invectivador em relação à sociedade de então. Esse deve ter sido o
único texto do gênero. Para nós ele é importante não apenas sob o
aspecto do surgimento da ideia de representar uma pessoa famosa, uma
pessoa que se tornara lenda, o que se subentende sob o conceito de
“nome” na vida familiar habitual, como também por algumas outras
intersecções com a novela estudada por nós.
“No nosso grande tempo, quando das sociedades europeias
se apoderaram a preguiça, o tédio da vida e a descrença, quando,
em toda a parte, em uma estranha mútua combinação, reinam o
desamor à vida e o medo à morte, quando até as melhores
pessoas ficam de braços cruzados, justificando a sua preguiça e a
sua depravação com a falta de certo objetivo na vida, os
abnegados capazes de proezas são necessários como o Sol”. 49
Tais palavras podem ser diretamente atribuídas tanto à personagem
principal quanto a Kátia, o que confirmam cartas de Tchékhov do tempo
da escrita da novela. Nesta há “tédio da vida”, “preguiça”, “falta de
objetivos”. Também aparece a palavra “Sol” em contexto próximo: “...
...daqui a uns três meses ele , representado por letras douradas
na lápide do túmulo, brilhará como o próprio Sol... (160)
Na perspectiva da sociedade e do processo histórico, Nikolai
Stepánovitch, cientista famoso no mundo todo, compreende que logo
permanecerá na lembrança das pessoas apenas como um nome, herói,
lenda, mas por ora ele, que escreve apontamentos, é simplesmente um
49
A.TCHÉKHOV, Moscou, 1979, p.236.
45
moribundo, assustado com a morte próxima, uma pessoa desconcertada,
que vive no seu mundinho exíguo e perdeu a ligação espiritual com as
pessoas mais próximas e com a própria vida. Ele próprio tenta entender
tal contradição.
O tema da antítese “meu nome e eu” atravessa a novela inteira;
“Uma história enfadonha” começa, propriamente, com a apresentação do
“nome” e, só depois, da pessoa, isto é, o leitor nota a separação dos dois
já nas primeiras palavras da novela. E o último capítulo está recheado de
reminiscências da personagem acerca desse tema.
Aparentemente, o título “O meu nome e eu” poderia refletir em
completa medida o tema principal da obra. É possível supor que, com a
conservação do tema “o meu nome e eu”, este deixa, contudo, de ser o
principal.
No título “Uma história enfadonha” e no subtítulo “Dos
apontamentos de uma pessoa velha”, cada palavra é de significado
importante. O fato de que os lexemas “скука/tédio” e “скучный/tedioso”
estejam entre os mais frequentemente usados por Tchékhov tanto nas
suas obras quanto na sua epistolagrafia (como já o assinalámos no
capítulo “Históra da escrita da novela”), foi notado há já muito tempo
pelos leitores e pelos estudiosos.
No dicionário de Uchakov, «скука» (“tédio”) é definido como “ânsia,
angústia, estado penoso de alma gerado pela ociosidade, falta de
ocupações ou falta de interesse por tudo à volta”.50
No de Dal´, “sentimento penoso gerado por um estado de espírito
rotineiro, ocioso e inativo”.51 Porém, nas obras de Tchékhov, a palavra
"скука" (tédio) constitui um conceito muito mais complexo e polissêmico
em comparação com o seu significado corrente e possui muitos matizes,
uma simbólica e sentidos complementares.
Encontra-se a palavra "скука" em quase todas as obras do escritor,
50
Disponivel em: (http://tolkslovar.ru/s6929.html).
51 Disponivel em: (http://tolkslovar.ru/s6929.html)
46
principalmente nas da metade dos anos 80 em diante. Aparece inúmeras
vezes até nos títulos ("Скука жизни"/ Tédio da vida). E, da mesma forma
como outros símbolos, passa duma obra a outra, ecoando o que
encontrara antes e aumentando a sua carga semântica. O tédio é um
penoso estado de alma por perda da compreensão das ligações da vida
concreta com a marcha mundial da vida, com a marcha do tempo e da
História, e por perda da compreensão da ligação com a natureza, com os
seus ciclos de nascimento e morte, isto é, com tudo o que existe para
além do homem, mas sem o que a vida de cada indivíduo concreto é
simplesmente impossível. O homem tem a sensação da sua independência
do tempo fugidio e a impossibilidade de detê-lo, mas não vê a si no fluxo
natural, resistindo a este desamparadamente e em vão. É daí que vem o
mais penoso, lancinante e doentio estado de espírito, o tédio
tchekhoviano.
E, porquanto, para Tchékhov, existem conceitos irracionais, não
passíveis de explicação, então a personagem, que tenta restabelecer as
ligações com a ajuda de reflexões lógicas, sempre é vencida. Os capazes
de perceber a vida intuitivamente, pelas sensações, dissolvendo-se
naturalmente nela, na natureza e nos cheiros e cores desta, na mudança
das estações e no movimento do tempo, esses já existem no fluxo geral
da natureza com os mesmos direitos de cada elemento dela e não estão
sujeitos a “tédio”, e deles não se exige uma “idéia geral’. Assim são, no
mundo de Tchékhov, os animais, as crianças e algumas personagens,
como o de “O Duelo” e a própria personagem principal de “Uma história
Enfadonha” até a certo ponto da sua vida.
Assinalemos que, na obra de Tchékhov, a Música, pela sua base
simbólica, é muito próxima dos conceitos de natureza e vida e, apesar de
ser criada por pessoas, é percebida como um fenómeno natural
incompreensível, distante e, principalmente, reconstituidor daquela
mesma ligação perdida. Sob esse prisma, a palavra “história”, no título,
possui duplo sentido, como “História” no seu sentido global, como
transcurso do tempo, e como “história” duma personalidade concreta e a
47
interligação das duas.
Passando ao subtítulo da novela estudada ("Из записок старого
человека"/ (Dos apontamentos duma pessoa velha), sublinhamos mais
uma vez que ele é o único texto direto do autor, daí a sua importância
para nós. Dá-se imediatamente uma definição do género da obra —
apontamentos. Antes de mais nada, atentemos para a última palavra
daquele: “человек” (pessoa). À primeira vista, pode parecer que ela, à
diferença de “provinciano” “professor catedrático” etc., não possui
nenhuma carga semântica nem dá nenhuma informação complementar
acerca da personagem, uma vez que apontamentos só podem ser escritos
por uma pessoa. Por que não, então, “из записок старого профессора/
apontamentos de um velho professor catedrático”? Precisamente porque,
a nosso ver, “pessoa”, última palavra do subtítulo, ecoa a última do título e
a antítese surgida, história-pessoa (do que já falámos no parágrafo
anterior), possui carga semântica muito maior do que a caracterização da
personagem e define logo a ideia principal da novela.
Uma caracterização da personagem, no entanto, está presente na
palavra “velho”. E, de novo, pode suscitar-se a perplexidade: por que,
diante de todas as possibilidades, acha o autor de dizer a sua palavra
direta acerca da personagem e escolhe não “famoso”, não “doente”, até
nem “moribundo” e nenhuma outra, mas precisamente a definição “velho”.
Parece-nos que a escolha de “velho”, em comparação com as outras
palavras, foi muito mais determinada pela associação, que surge, com a
vida vivida, ou seja, de novo com o conceito de tempo.
E, finalmente, a enigmática preposição “de”. Parece haver um nítido
começo clássico e um nítido término. No entanto, ao empregar tal
preposição, o autor sublinha que os apontamentos do professor ou haviam
começado antes ou eles têm uma continuação desconhecida do leitor. Por
que utilizou Tchékhov tal procedimento?
Na nossa opinião, em primeiro lugar, o autor, com isso, delimita os
apontamentos da personagem e a sua novela e, em segundo, assinala,
mais uma vez, que aqueles existem não como um texto acabado e solto;
48
o leitor não consegue saber ao certo quando começaram e quando
terminarão; esses apontamentos existem no fluxo geral e infinito da vida.
A preposição “de” comunica tal sensação, apesar de que o leitor logo virá
a saber que resta pouco tempo de vida à personagem.
Assim, podemos concluir que, no título e no subtítulo de “Uma
história enfadonha”, Tchékhov dita logo o tema principal da novela — a
vida final duma determinada pessoa no fluxo geral e infinito do tempo, na
história geral, e o trágico estado de espírito decorrente disso.
Muitos estudiosos, inclusive contemporâneos de Tchékhov,
assinalaram que as suas obras não apresentam o início e o fim
tradicionais, como se fossem histórias cuidadosamente recortadas do fluxo
geral da vida, o qual, em resultado, se torna a principal personagem,
ainda que possa parecer apenas tela de fundo para os acontecimentos e
diálogos. O que acontece às pessoas é somente um episódio no tempo
infinito (A. Tchudakov). E, até quando o conto ou peça acaba com a morte
da personagem (“Ivánov”, “A gaivota”), algum conflito psicológico (“Tio
Vánia”) ou algum acontecimento (“O jardim de cerejeiras”), cria-se a
impressão de que a vida continua e nada mudou substancialmente.
À primeira vista, “Uma história enfadonha” foge a tal grupo, já que
nela, aparentemente, se têm o início e o fim tradicionais da literatura
anterior a Tchékhov: a apresentação da personagem, com o seu retrato, e
a despedida das personagens principais, respectivamente. No entanto, a
realidade é outra.
Desde as primeiras linhas, o catedrático separa a si próprio, homem
doente e envelhecido, do seu nome excelso e conhecido no mundo inteiro,
e é precisamente a apresentação desse nome o ponto de partida da
novela.
No decurso de alguns meses, o moribundo professor de Medicina,
ciente da proximidade da morte, escreve apontamentos para si, tentando
compreender os pensamentos e sentimentos novos para ele, fazer um
balanço da vida vivida e uma avaliação dos parentes e conhecidos,
fazendo, de passagem, considerações acerca da sociedade, do teatro e da
49
literatura contemporâneos a ele, recordando o passado etc. A sua
confissão é, frequentemente, contraditória, ora duma imperturbabilidade
que beira com a aridez da Medicina, ora repleta de dúvidas (em carta a
Suvórin, Tchékhov chama-lhes “tergiversações”) e emoções. Toda a sua
vida fora construída de modo bem pensado e correto; realizara-se o sonho
da sua juventude, e ele, cientista de talento, perdidamente apaixonado
pela Ciência, pedagogo magnífico, que atingira os píncaros do êxito na sua
atividade, homem dum casamento feliz e pai de filhos, relacionado com
muitas personalidades eminentes do seu tempo e, para além do mais,
pessoa duma atitude sempre tranquila e condescendente para com os
defeitos das pessoas comuns, ele, um médico, sabedor do que é a morte,
parecia disposto a recebê-la com tranquilidade e coragem ou, pelas suas
próprias palavras, “não estragar o final com a sua composição
talentosamente feita”, como ele define a sua vida vivida, de repente
começa a vê-la sob uma luz extremamente negativa, e tudo e todos nela
irritam-no. Algo se passa não do modo como deveria, rompem-se as
ligações, vai-se o controlo sobre os sentimentos e as ideias; a esposa e a
filha parecem pessoas estranhas, os colegas e os alunos parecem-lhe
medíocres, e Kátia, a sua querida pupila, parece-lhe estar a malbaratar a
vida; o trabalho, em lugar do antigo arrebatamento, suscita-lhe um
sentimento de desespero e vergonha, e, no conjunto, a vida apresenta-se-
lhe desprovida de sentido. Nikolai Stepánovitch tenta compreender as
causas do que está a acontecer, e de fugir ao “circulo vicioso” em que
caíra. As suas tentativas de explicação não lhe satisfazem; algo escapa-
lhe, suscitando-lhe novos ataques de medo e desespero, e ele, devastado,
em estado de apatia, forçando-se a voltar àquilo em que vinha pensando
nos meses anteriores, não chega a concluir pela falta, à sua vida, de
algum elo de ligação, a que dá o nome de “ideia geral”; no final, à
despedida com Kátia, supõe que a causa dos sofrimentos dela seja a
mesma que a dos seus: a falta da tal “ideia geral”.
O tema principal da novela é a morte iminente, bem como duas
coisas ligadas a ela: o medo e o sentir-se a personagem na situação em
50
que o tempo de vida se aproxima do seu termo. E, se olharmos dessa
perspectiva, então os limites da novela são abertos a la Tchékhov; os
apontamentos iniciam-se quando Nikolai Stepánovitch já se fizera um
diagnóstico; vêm-lhe pensamentos angustiantes durante um tempo
desconhecido pelo leitor, a insónia torna-se o seu estado habitual, e um
complexo estado psíquico torna-se patente. Não há nenhum episódio
concreto que haja provocado isso. Tal acontecimento poderia ter sido, por
exemplo, o facto de o professor haver-se descoberto portador duma
doença mortífera, mas como e quando tal se deu, tchekhovianamente,
está fora dos seus apontamentos, fora da obra, muito embora isso é que
tenha sido o grande momento trágico, o ponto de partida de todas as
reflexões de Nikolai Stepánovitch e, possivelmente, o motivo de ele pôr-se
a escrever notas.
Apesar de a espera da morte atravessar toda a novela, não se tem a
própria morte da personagem no final (à diferença, por exemplo, de “A
morte de Ivan Ilitch”, de Tolstói, tão frequentemente comparada com
“Uma história enfadonha”); o leitor fica a saber tão-somente que, tal qual
no início, aquela estava desenganada. A despedida do professor e Kátia
parece definitiva a ele próprio, mas, para o leitor, Nikolai Stepánovitch,
como antes, segue vivo e, consequentemente, apesar do fim dos
apontamentos, a história pode continuar. Assim, nós observamos o
mesmo pedacinho cuidadosamente recortado duma vida “individual” e
uma determinada etapa sua, que começara havia muito antes e ainda não
acabara, sobre o fundo do infinito tempo universal.
A conclusão pela falta duma “ideia geral” por Nikolai Stepánovitch
continua a ser considerada, pela imensa maioria dos estudiosos, como a
ideia principal da própria novela. Mas, como nela não há nenhuma
explicação da própria essência desse conceito, então não há, também, um
único juízo acerca de qual ideia o próprio Tchékhov tinha em mente:
ideológica, social, religiosa, filosófica ou se as reflexões acerca dela são
apenas um sintoma do estado doentio do professor. Não obstante às
divergências, suscitadas por essa questão, o caminho, que leva a
51
personagem a refletir acerca dela, costuma considerar-se a linha do
enredo da obra.
Assim, V. Linkov, partindo da heterogeneidade das reflexões da
personagem, assinala dois grupos — as formadoras da dinâmica do
desenvolvimento e as “destrutoras’, perturbadoras do movimento do
sentido (significado) interior, — que a personagem deve descobrir. Às
primeiras ele chama “de essência, substância” (сущностные), e são elas ,
na sua opinião, que constituem a composição; à segundas chama
“sintomáticas”.
No entanto, nos apontamentos do professor, há fragmentos, breves
e desenvolvidos, que com frequência aparecem no texto
inesperadamente, sob a afluência de emoções ou associações repentinas,
dispersas pelo texto, e não integram a cadeia principal de reflexões e são,
nesse sentido, “sintomáticas”. Tais fragmentos formam uma cadeia
cronológica, e o seu tema desenvolve-se segundo uma lógica, o que nos
permite associá-los à segunda linha composicional — as recordações.
Ambas as linhas estão ligadas tanto semanticamente, quanto
estilisticamente, e, com isso, o procedimento básico torna-se a antítese
“antes-agora”. Somente condicionalmente podemos considerá-las de
enredo: na novela, ação, como tal, não há.
4.3 A composição dos apontamentos – desenvolvimento das
reflexões e estado da personagem
No fim dos anos oitenta, Tchékhov pensava na criação dum
romance, que acabou por não ser escrito; o género da novela
correspondia mais aos objetivos do escritor, mas algumas situações, ideias
e personagens tornaram-se a base de obras suas, inclusivamente de “Uma
história enfadonha”. Trata-se dum género mais sucinto, que permite
reproduzir rapidamente as variáveis relações da personagem com a
realidade e, via de regra, explora não a ação, mas o tempo, o fluxo da
52
vida, e possibilita acompanharmos a correlação entre o tempo subjetivo
da personagem e o tempo histórico e o universal.
O género, em que a novela está escrita, suscita associações com
famosas confissões filosóficas, como a Confissão, de Santo Agostinho, e as
Meditações, do imperador Marco Aurélio. As ideias de filósofos acerca da
essência da vida, do tempo e de si próprios foram precisamente a
premissa para os apontamentos de Nikolai Stepánovitch. O nome de
Marco Aurélio encontra-se no texto, e é possível acompanharmos a
influência da sua mundividência sobre as opiniões do professor. Tal como
para o imperador e Santo Agostinho, para Nikolai Stepánovitch, ele é
autor e também personagem dos seus apontamentos.
No entanto, na obra literária, ele constitui apenas personagem, e a
forma de escriver é escolhida pelo verdadeiro autor. Com a utilização dos
meios do género, cria-se a possibilidade de mostrar a personagem, o
curso das suas ideias, dos seus sentimentos e desvairios de dentro, sem
avaliação exterior direta. A sós consigo próprio, confessando-se no
processo de escrita das notas, ele tenta desfazer o novelo de
contradições, em que se transformara a sua existência, aparentemente
com a máxima sinceridade pressuposta pelo género. Contudo, ele
permanece uma pessoa com todas as fraquezas e erros inerentes ao ser
humano e até o autoengano, o qual ele não nota, já que, por força das
particularidades da sua personalidade, é incapaz de compreender-se
verdadeiramente, ainda mais que a avaliação deste e daquele
acontecimento, inclusivamente os acontecimentos do passado, é feita da
perspectiva das suas opiniões e objetivos do dia. Tchékhov, ao manter
maximamente a subjetividade da novela, dá ao leitor a possibilidade de
olhar a personagem de fora; destarte, a própria consciência do narrador,
bem como os factos e acontecimentos, são analisados ao mesmo tempo
tanto pela personagem, quanto pelo autor.
O leitor atento, notando as insinuações do escritor, vê uma diferença
substancial entre o que a própria personagem pensa de si, dos parentes e
conhecidos e dos variados acontecimentos da vida, por um lado, e o que a
53
opinião objetiva do autor representa, do outro. É possível acompanhar
isso, partindo de particularidades da composição e dos meios estilísticos
do texto, o que é condicionado pela grande quantidade de citações no
nosso trabalho.
A novela tem seis capítulos. O seu desmembramento nessas seis
partes, contudo, não coincide nem com a organização do tempo e do
espaço, que constituem os três fragmentos principais da composição52 --
a vida na cidade, no inverno (40 páginas), a vida na datcha, na primavera
(dois capítulos, 13 páginas), e Khárkov (apenas 1capítulo, 6 páginas). O
tempo como que apressa o seu curso, fortalecendo a impressão de que se
esgota a cada vez mais. Assim, no primeiro fragmento, Nikolai
Stepánovitch dá-se meio ano de vida; no segundo, três meses; e no
terceiro, ele espera a chegada da morte a qualquer momento.
Os primeiros três capítulos são a descrição dum único dia. Cada qual
inicia-se com um relato acerca de parentes e conhecidos, com
pensamentos, juízos e recordações do professor; a isso segue-se a
descrição de algum acontecimento, diariamente repetido, e termina com
uma doentia explosão histérica, depois da qual vem o capítulo seguinte. A
transição entre eles é uma pausa, que lembra as das suas obras
dramatúrgicas, quando se dá à personagem e ao leitor a possibilidade de
“suspirar” e compreender o transcorrido. A personagem não entende os
seus repentinos ataques de histeria, tendo-se orientado durante a vida
inteira pelo processo mental, e essas fortíssimas sensações físicas e
emocionais são completamente novas para ele, incompreensíveis,
irracionais, e amiúde não se submetem à sua maneira racional de encarar
a vida, uma “composição feita com talento”, e com frequência se
contrapõem a ela. Por costume, ele tenta dar-lhes explicação, envolvê-las
em palavras e acomodá-las na consciência, distribuídas “por
estantezinhas”, mas isso não lhe satisfaz. Elas ficam fora do seu
52
De acordo com V. Vdóvin. Disponível em:.http://samlib.ru/w/wdowin_a_n/chekhov.shtml
54
entendimento. Vê-se tal processo nos três primeiros capítulos.
Em carta a Suvórin, na caracterização de outra sua personagem,
Ivánov, Tchékhov explica a causa de tais acessos sob a perspectiva da
Medicina:
O cansaço (o dr. Bertenson também o confirma) não se
manifesta apenas em forma de lamento ou sensaçõ de tédio. A vida dum homem cansado não pode representar-se assim:
Ela não é regular. As pessoas cansadas não perdem a
capacidade de se exaltar intensamente, mas por pouco tempo, e, além do mais, depois de cada exaltação, começa uma
apatia ainda maior. Isso pode ser representado graficamente assim:
A linha descendente, como vocé vê, não segue um plano inclinado, dá-se de outro modo . (102)
Com o auxílio de meios estilísticos, desde o início cria-se a sensação
dum círculo fechado — os mesmos acontecimentos, conversas, pessoas,
nada muda...
No decurso de toda a narrativa, usam-se verbos no Tempo Presente,
do aspecto imperfeito, portanto, e não apenas para designarem ações
iniciadas antes e estendidas até ao momento dado, como em:
Como antes, não falo mal; até hoje, posso prender durante
duas horas a atenção do auditório. (102)
Mas também para designarem acontecimentos que se repetem
diariamente. Nikolai sabe de antemão o que acontecerá e o que lhe dirão:
Em seguida, corre na frente e abre todas as portas no meu caminho. No gabinete, tira-me cautelosamente a peliça e, nesse
ínterim, já consegue comunicar-me alguma noticia da universidade. (107)
E até nos casos em que se descrevem factos isolados:
55
Levam a minha excelência para a rua, sentam-na num carro de alugel, transportam-na. Deixo-me levar e, não tendo o que fazer,
leio as inscrições à direita e à esquerda. (142)
Surge uma contradição: a vida fica a trocar de pé no mesmo lugar,
enquanto o tempo passa sem sentido e sem volta. Apenas no final
aparecem dois verbos do Pretérito do aspecto perfeito, o que acentua a
excepcionalidade do acontecimento e comunica um admirável e forte
efeito de tragicidade.
Como já foi mencionado, a novela começa com a apresentação, pelo
professor, do seu “nome” como uma personagem especial, em terceira
pessoa. Cria-se imediatamente a impressão de que o “nome” existe por si
só, tal qual o “nariz” na novela homónima de Gógol, e possui a sua
própria aparência, as suas relações, o seu tempo e espaço. Ele vive à
parte e é capaz de “passear tranquilamente” pela cidade. E o retrato, feito
pelo professor de si próprio em seguida, é percebido em vivo contraste
com o retrato do “nome”. O contraste é acentuado lexicamente: “... o
nome é belo e brilhante, eu sou pessoalmente apagado e disforme”:
Vive na Rússia o emérito Professor Nicolai Stiepánovitch de Tal, conselheiro privado; ele possui tantas condecorações russas e
estrangeiras que, nas ocasiões em que precisa usá-las, os estudantes chamam-no de iconóstase. As suas relações são das
mais aristocráticas; pelo menos, nos últimos vinte e cinco a trinta anos, não existiu na Rússia sábio famoso com quem não mantivesse trato íntimo. Atualmente, não tem com quem
manter amizade, mas, falando-se do passado, a longa lista dos seus gloriosos amigos termina com nomes como Pirogov,
Kaviélin e o poeta Niekrassov, que lhe concederam a sua mais cálida e sincera amizade. É membro de todas as universidades
russas e de três estrangeiras. Etcétera e etcétera. Tudo isso e muito e muito mais que se poderia dizer, constitui o que se chama o meu nome.
Esse meu nome é popular. Na Rússia, ele é conhecido por toda a pessoa alfabetizada, e, no estrangeiro, é citado do alto das
cátedras, com o acréscimo: conhecido e respeitado. Ele pertence ao número dos poucos e felizes nomes a respeito dos quais se considera de mau tom emitir ataques ou proferi-los em vão em
público ou pela imprensa. E assim deve ser. Pois o meu nome está intimamente ligado à noção de homem famoso, ricamente
56
dotado e indiscutivelmente útil. Sou trabalhador e resistente como um camelo, e isso é importante, bem talentoso, o que é
mais importante ainda. Ademais, seja dito a propósito, sou educado e modesto, um tipo honrado. Nunca meti o meu nariz em literatura ou política, não busquei popularidade em
polêmicas com ignorantes, não proferi discursos quer em jantares, quer junto à sepultura de colegas... Em geral, o meu
nome científico não tem qualquer mácula, nem do que se queixar. Ele é feliz. O dono desse nome, isto é, eu, representa um homem de
sessenta e dois anos, calvo, com dentadura postiça e tique incurável. Na mesma medida em que o nome é belo e brilhante,
sou pessoalmente apagado e disforme. A cabeça e as mãos tremem-me de fraqueza; o pescoço, a exemplo duma heroína de Turguiêniev, parece um braço de contrabaixo, tenho o peito
caído, os ombros estreitos. Quando falo ou leio, a minha boca entorta-se para o lado; quando sorrio, todo o meu rosto cobre-
se de rugas senis, funéreas. Não há nada de imponente no meu vulto lastimável; a não ser o seguinte: quando uscita provavelmente em cada um que me vê um pensamento severo
e imponente: “Ao que parece, esse homem não tarda a morrer”. (101-102).
Tal divisão atravessa a novela inteira como um leitmotiv, suscitando
à personagem ora ironia, ora uma arrogância próxima do esnobismo, mas,
com mais frequência, irritação, uma vez que a vida dele nem no plano
espiritual, nem no plano da vida corrente, não corresponde ao status
oficial, à patente de general, à pessoa de quem se orgulha o seu país. E
se antes os esforços para a manutenção do brilho exterior eram
percebidos como uma necessidade, uma norma como concessão às
convenções da sociedade, agora Nikolai Stepánovitch reage viva e
doentiamente à menor manifestação do que lhe pareça falso e roubador
dos derradeiros e preciosos momentos de vida. E o brilho da sua glória
parece-lhe um escárnio sobre o fundo do tédio habitual e pungente da sua
existência cotidiana.
A ideia de que o “nome” sobreviverá a ele, não lhe traz alívio; ao
contrário, o professor acha que “foi enganado por ele”:
Parece-me ridícula a ingenuidade com que, quando moço, eu exagerava a importância da fama e da condição excepcional de
que desfrutariam as celebridades. Sou célebre, o meu nome é proferido com veneração, o meu retrato já foi publicado tanto na
Seara como na Ilustração Internacional, li a minha biografia até
57
numa revista alemã – mas com que proveito?...Admitamos que seja mil vezes famoso, que seja um herói de quem a minha
pátria se orgulhe; em todos os jornais, publicam-se boletins sobre a minha doença, o correio me traz mensagens de simpatia de colegas, alunos e do público em geral, mas nada disso me
impedirá de morrer numa cama alheia, angustiado e completamente só... Naturalmente, ninguém é culpado disso,
mas pecador que sou, não gosto do meu nome tão popular. Tenho a impressão de que fui enganado por ele (158).
O “nome” é a sua fama mundial, a patente de general, as
condecorações, a amizade com pessoas famosas e interessantes, os
artigos em jornais e revistas, o criado e os requintados almoços com
hóspedes, a sua honorabilidade, o respeito e a admiração dos que o
cercam, todos os atributos duma vida digna. O principal epíteto
“brilhante” repete-se tanto no início dos apontamentos, quanto no fim:
Agora, o meu nome passeia tranquilamente por Khárkov; daqui a uns três meses, gravado em letras de ouro sobre a tumba, ele
há de brilhar como o próprio Sol, e isso quando eu já estiver coberto de musgo. (160)
O “Eu próprio” é a fraqueza, a velhice, a doença letal, o medo, a
decepção, a falta de dinheiro e os sentimentos de solidão, humilhação e
vergonha. Ele está convicto de que a família espera dele apenas dinheiro
e a posição; sob a máscara do respeito, ele nota um desprezo mal oculto
(Hnekker e o doutorando), e os seres mais espontâneos e honestos, as
crianças, riem-se francamente dele, o que a própria personagem encara
com enternecimento, admirando-lhes a sinceridade, já que se julga digno
precisamente de tal tratamento. E o contraste mais vivo: a personagem
sofre, ao passo que o “nome” prova felicidade; ela morrerá logo, enquanto
o “nome” é imortal.
O tempo, em que ambos não estavam separados, é o mundo
anterior, em que o professor se sentia confortável, a existência, com que
ele sonhara desde a juventude e conquistara com o seu próprio esforço;
enfim, a vida anterior, em que a sua fama e ele próprio coincidiam
completamente. Mas o leitor encontra Nikolai Stepánovitch nitidamente
58
mudado, e entre o seu mundo de antes e o de agora abriu-se um abismo,
e este não para de aumentar, à medida do desenvolvimento da doença. E
o seu meio — família, colegas, universidades e jornais — permaneceram
os mesmos de antes, ao passo que ele já era outro e o seu diálogo com o
mundo que o cercava, para ele, estava interrompido.
Ele sente que todos os que entraram na esfera da sua vida, tanto os
mais próximos quanto os mais distantes, dirigem-se não a ele, escrevem
não acerca dele e tratam não com ele, pessoa doente e sofredora, mas
com o seu “nome”, com a sua glória e títulos. E o primeiro (e, portanto,
principal) desejo, que lhe vem à mente, quando ele decide examinar-se é:
Quero que as nossas esposas, filhos, amigos, alunos, amem em
nós não o nome, a firma, a etiqueta, mas a pessoa comum. (159)
É um desejo caro também ao próprio Tchékhov:
O caso é o seguinte. O senhor e eu gostamos das pessoas comuns; já os outros gostam de nós pelas pessoas extraordinárias que vêem em nós. A mim, por exemplo,
convidam a tudo que é lugar, em toda a parte dão-me de comer e beber, como a um general num casamento; a minha irmã fica
indignada de a convidarem a todos os lugares só por ela ser irmã dum escritor. Niguém quer gostar das pessoas comuns em nós.53
.
A situação de rompimento da personagem com a sua mundividência
anterior e, em consequência dela, com o seu meio é típica de muitas
outras de Tchékhov, como Ivánov, Voinítskii e outras; já as causas de tal
ruptura podem ser várias.
Assim, no caso de Dmítrii Gúrov (“A dama do cachorrinho”), é um
amor inesperado, que o fizera renascer completamente. Do mesmo modo
como Nikolai Stepánovitch, Gúrov continua a viver no mesmo mundo, que
53 SUVORIN 24 или 25 ноября 1888 г. Москва.
http://royallib.com/read/chehov_anton/tom_21_pisma_ 1888_1889.html#245760
59
em tempos fora sangue do seu sangue — familiar, confortável, no qual ele
antes vivia perfeitamente integrado com o seu comportamento, hábitos e
opiniões. O seu círculo consistia em pessoas como ele, que se
compreendiam maravilhosamente e falavam a mesma língua, com a cínica
filosofia de vida, na qual as mulheres são uma raça inferior e na qual
peixe fresco e mulher bonita são coisas da mesma ordem. Mas, tendo-se
apaixonado de verdade, ele de repente é tirado do círculo rotineiro,
começa a ver e a sentir de maneira diferente, deixa de perceber a
linguagem habitual. E quando, certa vez, dominado pelo desejo de contar
a uma pessoa qualquer do seu amor e, não resistindo, enceta a conversa,
o seu interlocutor, capaz de perceber as palavras acerca duma mulher
encantadora somente no contexto dum relato ligeiro acerca do prazer dos
sentidos ou físico, associa isso a outro prazer dos sentidos, da mesma
ordem para ele — comida boa e peixe fresco. E basta o conhecido
continuar o diálogo, normal e natural para ambos antes, no mesmo tom,
para que Gúrov se tome de frustração — a frase do interlocutor parece-lhe
dum ultraje selvagem e suscita-lhe um fluxo inteiro de pensamentos
irados acerca da vida e do espírito tacanho dos que o cercam.
Certa vez, à noite, saindo do clube dos médicos, em companhia de um funcionário, seu parceiro no jogo, não se conteve e disse -Se soubesse que mulher encantadora eu conheci em Ialta!
O funcionário sentou-se no trenó e partiu, mas , de repente, voltou-se e chamou-o:
- Dmítry Dmítritch! - Que é?
- Você tinha razão: o esturjão não estava de todo fresco! Aquelas palavras , tão comuns, deixaram Gurov indignado, sem que soubesse por que, pareceram-lhe humilhantes,
impuras. Que selvagens costumes, que rostos! Que noites estultas, que dias desinteressantes, anódinos! O jogo
desenfreado, a gula, a bebedeira, as imutáveis conversas sobre o mesmo assunto. As ocupações desnecessárias e as conversas invariáveis ocupavam a melhor parte do tempo, as melhores
energias e, por fim, sobrava apenas uma vida absurda, sem asas, uma mixórdia qualquer, da qual não se podia fugir, como
se se estivesse num manicômio ou numa prisão!54
54
A TCHÉKHOV. A Dama do cachorinho, Editora 34, 1999, tradução de B.Shnaiderman, p.325.
60
O caso aqui, como o de Nikolai Stepánovitch, é que, sob a ação de
alguma causa séria, o mundo interior da pessoa muda, e o exterior, em
que ela continua a viver, permanece o mesmo.
Fazendo o seu retrato, no início dos apontamentos, o professor detém-se
no decréscimo e enfraquecimento do seu intelecto.
Mas escrevo mal. Aquelle pedacinho do meu cérebro que dirige a capacidade de escritor recusou-se a servir. A minha memória
enfraqueceu, os pensamentos não têm a necessária continuidade, e, quando os exponho no papel, vem-me cada vez a impressão de ter perdido o sentido da sua ligação orgânica, a construção é
monótona, a frase, tímida e avara. Muitas vezes, não escrevo o que quero, quando escrevo o fim, já esqueci o princípio. Frequentemente, esqueço palavras
corriqueiras, e sempre tenho de perder muita energia, para evitar frases supérfluas e incisos desnecessários; ambos os fatos testemunham uma queda de atividade mental. E, o que é de
admirar, quanto mais simples é o escrito, tanto mais torturante a minha tensão. Escrevendo um artigo científico, sinto-me muito
mais livre e inteligente que ao compor uma carta de parabéns ou um ofício. Mais ainda: é mais fácil para mim escrever em alemão ou inglês do que em russo.(102)
No trecho, está diante de nós um médico profissional, que descreve
os sintomas da doença, Historia morbi, em termos secos, exatos e
objetivos. Ele ainda não deu o dagnóstico e está apenas a analisar o curso
da moléstia. Mas, como já assinalámos, para o autor e, portanto, para o
leitor, tal episódio possui um significado complementar — pormenores,
que não podemos deixar de considerar — a falta de nexo nas ideias, o
enfraquecimento da memória (principalmente, já que tem que ver com as
recordações) e o facto de, às vezes, a personagem escrever não o que
quer.
Para além disso, é preciso notar que lhe sai da pena mais fácil e
livremente o que está mais próximo das suas ocupações profissionais, de
determinadas ações padronizadas, do trabalho em idioma estrangeiro e
do que lhe é maximamente alheio. Já aquilo que esteja mais perto da vida
corriqueira, como um cartão de parabéns na língua materna, mete-o em
61
certa dificuldade.
No decurso dos três primeiros capítulos de “Uma história
enfadonha”, descreve-se um longo dia de inverno. Basta um único dia
para apresentar-se uma rotina diária, tediosa e esvaziada de sentido. A
personagem fala de si, dos seus horários (noite, manhã, tarde, anoitecer,
noite de novo), da família, dos colegas e da universidade e estende-se
longamente acerca do teatro e mulheres.
Com o léxico desses capítulos enfatizam-se o retardamento, a
insignificância e a monotonia dos acontecimentos e o tédio, que se
instalara na alma do professor: maquinalmente, tempo penoso, enjôo,
obrigo-me, sempre o mesmo, estou frio, andando de um canto a outro do
quarto, sombrio, aborrece, velhice, fuligem, o aspecto merencório,
pessimismo.
Há, é verdade, em tais capítulos, também um léxico diferente pelo
colorido emocional, usado em episódios isolados (por exemplo, em
algumas recordações). Sobressaindo sobre o fundo monótono geral e em
combinação com o ritmo mudado, ele carrega um sentido completamente
diferente e desempenha um papel inteiramente diferente. Nisso ainda nos
deteremos mais adiante.
Tendo apresentado, no início dos apontamentos, o seu “nome”, a si
e as alterações físicas, que a doença lhe trouxera, ele passa a uma
descrição minuciosa do seu dia cotidiano. E começa-a com a noite, uma
vez que a noite, com a insônia que o extenua, se torna o principal fator
atormentador, o ponto de partida de tudo o que é mais terrível,
incompreensível e anormal na sua vida.
A insônia é um estado que lembra a paz eterna, como que suspenso
entre a vida e a morte. Na escuridão e no silêncio, tudo parece mudado, à
cabeça vêm pensamentos novos, nada alegres para um moribundo, e o
único meio de livrar-se deles por um tempo é fazer algo maquinalmente —
contar, ler não importa quê ou andar dum canto a outro. Uma noite insone
é um tempo em que a inelutabilidade do fim próximo se sente de maneira
especialmente real. E a única coisa salvadora, compreensível e querida
62
torna-se algum som familiar, ou imagem, ou movimento — o efêmero fio
de ligação com a vida genuína, que se encontra além dos limites da noite
e da insônia. Não à toa, falando de sons que nos chegam aos ouvidos,
Tchékhov usa o verbo "любить" (adorar, amar), emocionalmente mais
forte do que o “gostar”, escolhido pelo tradutor:
Люблю прислушиваться к звукам (254) Gosto de prestar atenção aos sons
Quando ao meu modo de vida atual, devo notar em primeiro lugar a insônia, de que sofro ultimamente. Se me
perguntassem: o que constitui agora o traço principal, básico, da sua existência? - eu responderia: a insônia. Como outrora, seguindo o costume, eu me dispo exatamente à meia-noite e
deito-me no leito. Adormeço depressa, mas acordo depois da uma, com a sensação de não ter dormido absolutamente nada.
Torna-se necessário erguer-me da cama e acender o lampião. Passo uma hora ou duas andando de um canto o outro do quarto e examino quadros e fotografias há muito conhecidos.
Quando enjôo de andar, sento-me à mesa. Permaneço ali imóvel, sem pensar em nada e não sentindo qualquer desejo;
se tenho um livro na frente, aproximo-o maquinalmente de mim e leio-o sem qualquer interesse. Assim, não faz muito tempo, li maquinalmente um romance inteiro, com o estranho
nome: Aquilo sobre o que cantava a andorinha. Ora, procurando ocupar a minha atenção, obrigo-me a contar até
mil, ora imagino o rosto de alguém dos meus amigos e ponho-me a recordar: em que ano e em que circunstâncias ele ingressou no funcionalismo? Gosto de prestar atenção aos
sons. A dois quartos de mim, a minha filha Lisa profere algo rapidamente, delirando, minha mulher atravessa a sala de vela
na mão e invariavelmente deixa cair uma caixa de fósforos, range um armário ressecado ou inesperadamente o pavio da lamparina passa a zunir – e todos esses sons por alguma razão
me perturbaram. Não dormir de noite significa ter consciência, a cada momento,
de ser anormal, e por isso espero com impaciência a manhã e o dia, quando tenho direito de não dormir (103).
Mas eis que, finalmente, põe-se a cantar o galo longamente
esperado, chega a manhã, indiferenciável de todas as precedentes e
enche-se da azáfama corriqueira, e, um após o outro, e um após o outro,
e surgem personagem conhecidas do professor e desconhecidas do leitor
(a esposa, a filha, o filho, que aparece somente na conversa da mãe com
pai e nos pensamentos deste), o vigia Nikolai, o colega Piotr Ignátich e
63
alguns estudantes; em seguida, descreve-se o caminho da universidade e
as aulas.
No segundo capítulo (a segunda metade do mesmo dia), o professor
trabalha em casa, e vêm ter com ele alguns colegas de universidade, o
estudante preguiçoso, o doutorando, Kátia e Hnékker e descreve-se o
almoço. E no terceiro capítulo (noite do mesmo dia), uma nova
personagem, Mikhail Fiódorovitch, Kátia e o jantar.
É preciso notar que, de todas as aparições duma personagem após a
outra, apenas Kátia é evidenciada por uma estilística especial.
Eis o quarto, e eu ouço passos conhecidos, um frufru de vestido, uma voz querida... (117)
Embora a aparição dela seja a corriqueira de todos os dias, como,
aliás, de todas as outras personagens, o carinho e a emoção, que de
repente notamos no tom de Nikolai Stepánovitch, prepara-nos para o
facto de que a Kátia fora destinado um papel especial no texto. E
confirma-o o relato, que se segue, acerca da sua vida.
A rotina e monotonia dos acontecimentos diários enfatiza-se, como
já foi assinalado, por verbos do Tempo Presente e frases características:
diz sempre o mesmo Todas as manhãs, é o mesmo
A experiência cotidiana A nossa conversa acaba sempre da mesma maneira Visto-me e sigo pelo caminho que me é conhesido há trinta
anos .
A frase-chave, referente a tudo o que acontecia, é aquela que dirige à
esposa:
Não sou profeta, mas sei de antemão qual será o assunto. Todas as manhãs, é o mesmo. (104)
Nikolai Stepánovitch como que olha com alheamento para o que
outrora lhe fora caro e querido; parece-lhe que mudara não ele, mas o
mundo e as pessoas à sua volta, e essas mudanças suscitam-lhe uma
64
crescente irritação.
No primeiro capítulo, no tom da personagem sentem-se uma
irritação por enquanto leve com a esposa e uma queixa contra os filhos. A
esposa passa da “airosa Vária” a “uma balofa velha desajeitada” e
aperreia-o com ninharias da vida, e a filha e o filho não agem do modo
como ele gostaria, e nem de longe lhes ocorre o pensamento de sacrificar
os seus ornamentos, ocupações e trabalhos por ele (afora esses
pensamentos no filho, o professor não torna a recordá-lo). Na verdade, a
fonte da sua indignação é um sentimento de culpa, que o atormenta
insconcientemente. Na sua convicção de que o mundo é ruim, na queixa
contra a esposa, a filha e o filho e na acusação contra eles de mesquinhez
e indiferença, transparecem tentativas de justificação e reabilitação de si e
da sua indiferença por eles. Apesar de não reconhecê-lo, Nikolai
Stepánovitch culpa-se a si por essas ideias “mesquinhas”; a ele, como
antes, o importante é tomar consciência de si da maneira habitual, a única
que ele considera digna:
Somente um homem estreito ou enfurecido pode ocultar em si um sentimento mau contra gente comum, pelo fato de não
serem heróis. (106)
Isso também tem que ver com a ciência. A ele parece que também
naquele momento a ciência era a principal coisa que ocupava os seus
pensamentos, e de jeito nenhum “questões sobre as trevas de além-
túmulo”. Ele esforça-se insistentemente por convercer-se de tal:
Emitindo o suspiro derradeiro, ainda hei de crer que a ciência constitui o mais importante, o mais belo, o mais necessário na vida do homem, que ela sempre foi e será a manifestação mais
elevada do amor, e que somente por meio dela o homem vencerá a natureza e a si mesmo. (113)
No entanto, os apontamentos subsequentes provam o contrário; o
mundo antigo “fizera-se em pedaços”, a ciência já não é para ele o que
preenchia todo o seu ser, bem como as suas ideias e sentimentos,
65
levando-o para longe da realidade da existência. O que, agora, constitui a
sua presente vida interior, o que o persegue e atormenta e aquilo a que
são dedicadas as páginas do seu diário, são precisamente as questões
acerca do “objetivo final do cosmo”.
Muda tudo o que antes era o sentido da sua vida, fonte de alegria e
inspiração. Em lugar do “doce langor”, nas aulas ele experimenta
sofrimento (“experimento apenas tortura”). O professor compreende que,
por força do seu estado físico e psíquico, ele já não dá conta da tarefa e
que deveria aposentar-se; sente vergonha, e a consciência atormenta-o,
mas, só de pensar nisso, prova um verdadeiro terror; a reforma
(aposentadoria) é para ele igual à morte. Ocorrem-lhe pensamentos
terríveis, e tem início uma “ruptura” histérica:
Algo estranho comigo, em consequência da insônia e da tensão e luta com a crescente fraqueza. Em meio à aula, lágrimas me vêm de repente à garganta, os olhos começam a comichar, e eu sinto
uma vontade apaixonada, histérica, de estender as mãos para a frente e queixar-me alto. Quero gritar com voz sonora que eu, um homem célebre, fui condenado pelo destino à
pena de morte, e que passado cerca de meio ano, o patrão desta sala já será um outro. Quero gritar que estou envenenado; novos pensamentos, que eu não conhecera antes, envenenaram os
últimos dias da minha vida e continuam a picar-me o cérebro, qual mosquitos. Nessas ocasiões, o meu estado me aparece tão terrível que dá vontade de que todas os meus ouvintes se horrorizem,
ergam-se num salto e, presas de pânico, se lancem com um grito desesperado para a saída. Não é fácil sofrer tais momentos. (113)
Nesse episódio, que fecha o primeiro capítulo, concentram-se alguns
elementos já aparecidos antes. Ele recorda que é famoso, levando-nos de
volta ao início dos apontamentos. Algumas frases repetem-se quase
literalmente:
picar-me o cérebro, qual mosquitos. (113) Estremeço como se uma abelha me picasse (113)
Quero gritar que estou envenenado; novos pensamentos, que eu não conhecera antes, envenenaram os últimos dias da minha vida.
(106) Tais pensamentos sobre os meus filhos me deixam envenenado.
66
(113)
Paralelamente às ideias acerca da morte, novamente soa a
palavra “insônia”, fechando, desse modo, o círculo do primeiro capítulo.
Tchékhov sói usar de repetições e variações, que passam de um
texto a outro. Assim, por exemplo, foi notada pelos estudiosos a
semelhança de situação, pormenores e episódios de “Uma história
enfadonha” e o conto “O bispo”, escrito quinze anos depois.
No segundo capítulo, vem para o primeiro plano a aguda sensação
de falsidade, sentida pela personagem.
São de uma falsa cortesia as suas relações com os colegas; com
falsidade age o estudante preguiçoso, tentando justificar a sua ociosidade;
com falsidade age o doutorando, que esconde, sob a máscara de respeito
à celebridade, o desprezo pelo professor; igualmente falsos são Liza, a
esposa e Hnekker.
O léxico escolhido pelo autor agudiza a nossa atenção precisamente
a isso:
Em primeiro lugar, procuramos mostrar um ao outro ...(114) Rimos, embora não tenhamos dito nada de engraçado. (114) não podemos deixar de dourar nossa conversa com chinesices no
gênero... (114) eu finjo...(114) ...o meu rosto continua a sorrir, provavelmente por inércia(114)
O argumento que todos os prequiçosos trazem em seu auxílio é sempre o mesmo: eles se saíram admiravelmente em todas as
matérias e levaram bomba somente na minha, o que é tanto mais surpreendente, pois eles estudaram sempre a minha matéria com grande aplicação e sabem-na muito bem; e a bomba é a
consequência de um equívoco incompreensível. (115)
Este expressa um profundo respeito pelo meu nome famoso, pelo
minha ciência, mas nos seus olhos eu vejo que ele despreza a minha voz, a minha lamentável figura e a gesticulação nervosa.(117)
Eu, por exemplo, não posso de maneira alguma conformar-me com expressão triunfal que aparece em minha mulher sempre que Hnekker está em nossa cas, não posso tambeém conformar-me
com as garafas de Lafitte, vinho do Porto e xerez, postas na mesa unicamente em sua intenção, para que se convença com seus
próprios olhos como vivemos farta e luxuosamente. Não suporto
67
também o riso sacudido de Lisa, que ela aprendeu no conservatório, eu seu jeito de entrecerrar os olhos, quando há homens em nossa casa. (128)
O rosto de minha mulher reflete solenidade, uma imponência
postiça e a costumeira preocupação. (127) Hnekker alimenta-se com gravidade, graceja com gravidade
também e ouve com ar condescendente as observações das moças (128)
E até o que antes eram sinais naturais da cortesia e respeito, usados
no seu círculo, são agora percebidos por ele como um espetáculo geral,
em que está obrigado a participar, já não desejando-o.
À medida da piora do seu estado físico, a sua irritação cresce ainda
mais. E sob o efeito do vinho bebido no almoço, começa a parecer-lhe que
o seu “nome” é o que o eleva acima da mesquinhez e o espírito tacanho
da vida que o cerca. No seu tom, sente-se um esnobismo mal disfarçado:
...em presença de gente como Hnekker, os meus méritos parecem-me uma montanha altíssima, cujo cume desaparece
nas nuvens e ao pé da qual se movem uns Hnekker quase imperceptíveis. (129)
Semelhante cena aparece, masi tarde, em “O tio Vánia”, quando o
doutro Ástrov, acalorado pela vodca, profere um monólogo parecido:
Nessas horas tenho meu próprio sistema filosófico e vocês, amigão, todos vocês, não passam de uns pequenos insetos a
meus olhos... uns micróbios. 55
Sobre tal fundo, como contraste aparece um pequeno pormenor.
Recordando Kátia ainda menininha, Nikolai Stepánovitch assinala “a
confiança extraordinária” dela e com que sincero interesse e curiosidade
ela encarava a vida.
Tal como no primeiro capítulo, com os mesmos meios estilísticos — o
ritmo monótono, o tempo presente dos verbos e o léxico — salienta-se a
55
TCHÉKHOV, Anton. Teatro I. A Gaivota, O tio Vania, Veredas, 2009. Tradução de Gabor Aranyi,
p.89
68
rotina, que havia muito já o enfadara:
Assim como aconteceu de manhã, sei de antemão o assunto da nossa conversa (129) o soalho sombras conhecidas e que me enjoaram há muito
(130)
Segue-se a contraposição “antes-agora”. Nikolai Stepánovitch
compara os almoços de antes com os do momento presente, a pequena
Kátia com a mulher adulta. E, do mesmo como o primeiro, o segundo
capítulo fecha-se com uma ruptura histérica, e a par de pensamentos na
morte (“tenho medo de morrer de repente”), a personagem recorda a sua
insônia:
já está começando a minha maldida insônia.(130)
O terceiro capítulo é um serão na casa de Kátia. A atmosfera
relaxante, langorosa, e a companhia do ser mais caro predispõem a uma
conversa franca. E Nikolai Stepánovitch conta a Kátia o que estava a
passar-se com ele, expõe-lhe o que representa a sua filosofia de vida e
compartilha com ela as suas torturantes questões e dúvidas e a
incompreensão da causa de a sua mundividência anterior estar a tornar-se
impossível na sua presente situação.
O melhor e mais sagrado direito dos reis é o direito de perdoar. E eu sempre me senti rei, pois usei ilimitadamente esse direito. Nunca julguei os demais, era condescendente, perdoava de bom
grado a todos. Onde outros protestavam e indignavam-se, eu apenas aconselhava e procurava convencer. A vida inteira, esforcei-me apenas para que a minha companhia
fosse tolerável para a família, os estudantes, os colegas, os criados. E essa minha relação com as pessoas, eu sei, educava a todos os que se aproximavam de mim. Mas agora não sou mais
rei. Dentro de mim está acontecendo algo que só é decente para os escravos: pensamentos maus fermentam-me na cabeça dia e
noite, e sentimentos que eu não conhecia trançaram seu ninho em minha alma. Eu odeio, desprezo, indigno-me, fico furioso, temo. Tornei-me desmedidamente severo, exigente, irritado, descortês,
desconfiado. Mesmo aquilo que, em outros tempos, dava-me apenas a oportunidade de dizer mais um trocadilho e rir com bonacheirice desperta-me agora um sentimento penoso. Mudou
em mim também a minha lógica: antes, eu desprezava apenas o
69
dinheiro, mas agora tenho um sentimento mau não em relação ao dinheiro, mas ao ricos, como se eles tivessem culpa; antes, eu odiava a coação e o desmando, mas agora odeio os homens que
empregam a coação, como se eles fossem os únicos culpados, e não todos nós que não sabemos educar-nos mutuamente. O que significa isso? Se os pensamentos e sentimentos novos resultaram
da mudança de convicções, de onde pode ter surgido essa mudança? Teria o mundo se tornado pior, e eu melhor, ou antes eu era cego e indiferente? (132)
Mas que é que eram esses princípios de vida, por que Nikolai
Stepánovitch se norteara no decurso de muitos anos?
Os juízos filosóficos de Tchékhov constituem um tema
extremamente discutível nos estudos literários.
Tradicionalmente, encara-se a filosofia em literatura como um
mundo de ideias, porém Tchékhov não tinha ideologia como tal, bem
como não tivera uma educação filosófica (à diferença de L. Tolstói). E,
quando as suas personagens citam argumentos “a favor” e “contra”
alguma ideia, elas expressam não a opinião do autor (como nos romances
de Dostoiévskii), mas a sua própria, e o objetivo da discussão delas, para
o escritor, não está na busca da verdade ideológica, mas, com mais
frequência, na caracterização das personagens e das suas inter-relações.
É sabido, contudo, que a filosofia e autores como A. Schopenhauer,
W. Goethe, Henry Thomas Buckle e H. Spencer, bem como Marco Aurélio,
Epítetoe e Blaise Pascal, citados em “Uma história enfadonha”, durante
muito tempo estiveram na esfera de interesses de Tchékhov.
Em Ialta, na biblioteca da casa-museu do escritor, encontra-se o
livro “Reflexões do imperador Marco Aurélio acerca do que é importante
para a pessoa própria”, em tradução do príncipe L. Urússov e edição de
1882, na cidade de Tula. Nas margens de muitas páginas, pela mão de
Tchékhov, com três tipos diferentes de lápis (dois com grafite de dureza
diferente e um vermelho de ponta mole), foram feitas notas, que refletiam
a temática de parágrafos isolados: “deus”, “vida”, “natureza”, “morte” etc.
Encontram-se muitas citações dos nomes de Marco Aurélio e Epíteto (e
dos estóicos tardios) também nas cartas do escritor, inclusive durante o
período de escrita de “Uma história enfadonha”. Tudo isso e,
70
principalmente, as numerosas invocações dos clássicos do estoicismo, nas
obras de Tchékhov atestam o interesse do escritor por essa filosofia.
É possível vermos imediatamente um paralelo tanto nos temas
tratados (vida, morte, tempo etc.) quanto em frases concretas.
Claramente, Nikolai Stepánovitch construía a “composição” da sua vida,
guiando-se pelas posições filosóficas dos estóicos.
Na personagem, com cada vez mais força, inflama-se uma luta
entre o desejo de, como antes, sentir-se um “rei”, ser condescendente e
justo e os novos pensamentos “de escravo”. Com a sensação da própria
hipocrisia, mas sem querer reconhecê-la, e com o desejo irresistível de
criticar a todos e tudo, ele, cego para as próprias contradições, dirige toda
a sua insatisfação e ira contra os que o cercam, acusando-os, indignando-
se com o comportamento da esposa:
e até me calo quando ela emite juízos injustos a respeito das
pessoas... (105)
ou com o cinismo e a maledicência de Kátia e Mikhail Fiódorovitch.
Assim, a sua tentativa de interceder pelos novos estudantes
transforma-se em mais uma crítica a eles, e a repentina queixa contra a
filha contradiz o que ele próprio pensa dela.
Quando alguém não compreende, ele sente dentro de si uma desarmonia e não procura as causas dessa desarmonia dentro
de si próprio, como seria necessário, mas no mundo exterior. (146)
A descrição dos acontecimentos diários entremeia-se de recordações
e digressões-reflexões. As mesmas reflexões acerca do teatro, literatura,
juventude, música, mulheres etc., que a crítica atribuía ao próprio
Tchékhov. Apesar de, em algumas cartas do escritor, realmente podermos
verificar análogas disposições de espírito, o que é substancial, aqui, são
não os temas aventados em si, mas o modo de a personagem encará-los;
é difícil não notarmos que não somente as pessoas, senão também
71
quaisquer acontecimentos da vida, da arte ate às ninharias do cotidiano,
tudo se submete a uma ácida crítica por ele.
Precisamente, a incapacidade de superar a contradição entre o próprio
estado e a costumeira posição de vida provoca nova explosão emocional.
O pensamento da personagem vai da acusação de todos e de tudo que o
cerca, “rabugice” (pela definição de Tchékhov, dada numa das suas cartas)
por conta da vida insatisfatória, à compreensão de que a causa está nele
próprio, nos seus novos pensamentos.
No fim do capítulo, ele é inteiramente honesto consigo:
Penso em mim mesmo, na minha mulher, em Lisa, em Hnekker, nos estudantes e nas pessoas em geral; penso de maneira má, mesquina, trapeceio comigo mesmo... (141)
Está claro que os pensamentos novos, araktcheievianos, não
estão estão em mim casualmente, nem são temporários, mas que dominam todo o meu ser. (142)
Exatamente como nos dois primeiros capítulos, no final do terceiro,
paralelamente a pensamentos acerca da morte, aparece a palavra insônia,
só que agora especialmente sublinhada: dum lado, travessão (ausente na
tradução brasileira), do outro, reticências. Mas, o que é o mais
importante, ela encontra-se numa posição forte do texto — num último
parágrafo à parte — e é a última palavra do terceiro capítulo e do primeiro
fragmento da composição. O círculo fecha-se: o longo dia começa e
termina com insônia.
...e penso que em breve a morte há de me levar. (142) Em seguida, a insônia. (142)
А потом – бессоница...56
O quarto capítulo inicia-se com as palavras:
Chega o verão, e a vida se modifica. (142)
56 A. Tchékhov, Moscou,1977, p.291.
72
A primeira frase, sublinhada na forma de parágrafo isolado, parece
carregada de esperança. No entanto, podemos logo notar que, como se
em ritmo acelerado, os mesmos acontecimentos desenvolvem-se na
mesma ordem vista nos capítulos anteriores, aparecem as mesmas
personagens, uma após a outra, e soam diálogos paralelos aos primeiros
capítulos. Nikolai Stepánovitch alude de passagem ao seu “nome”, tal
como fizera no primeiro capítulo, na terceira pessoa:
Levam a minha excelência para a rua, sentam-na num carro de
aluguel, transportam-na. (142)
Em seguida, cita a insônia e descreve minuciosamente o seu plano
de atividades para o dia. Seguem-se reflexões em estilo pesado
(тяжеловестные) acerca de literatura e crítica.
Surge Nikolai, porteiro da universidade, depois, Piotr Ignátievitch. E,
novamente, almoço, ao qual, para além da personagem, estarão
presentes a esposa, Liza e Gnekker.
Após a refeição, Nikolai Stepánovitch, como no primeiro capítulo,
fuma cachimbo no seu gabinete, entra a esposa e põe-se a falar de
Hnekker, com referências desagradáveis a Kátia, e após isso sobrevem a
Nikolai Stepánovitch uma crise de histeria. A segunda parte do quarto
capítulo é dedicada a Kátia: a conversa com ela, o aparecimento de
Mikhail Fiódorovitch, o mesmo jantar, como no inverno, com a mesma
comida, com os mesmos baralhos de cartas e com a mesma maledicência.
De volta à primeira frase desse capítulo, ao leitor pode parecer que
ela é irônica: aparentemente, nada mudara, tudo continua o mesmo, e o
quarto capítulo representa o conteúdo sucinto dos três primeiros.
Bem no início dele, há um pequeno episódio:
Deixo-me levar e, não tendo que fazer, leio as inscrições à
direita e à esquerda. A palavra “traktir” transforma-se em “ritkart”. Isso serviria para o sobrenome de baronia: a baronesa de Ritkart. (142)
73
As mesmas letras, a mesma palavra, mas ela, lida ao contrário, produz
um significado completamente diferente: a natureza tão terra a terra
duma taberna torna-se o nobre sobrenome duma baronesa (essa
baronesa Ritkart é mencionada de passagem em outro conto, da fase
incial, de Tchékhov — “Uma alminha liberal’ — "Либеральный душка"). O
autor aguça a nossa atenção com os sinais costumeiros: os mesmos
acontecimentos, as mesmas personagens e os mesmos diálogos entre elas
formam um novo sistema e delineia-se um novo quadro; há algo mal
perceptível mas já mudado.
Sobretudo, como já assinalámos, muda o ritmo: a descrição dos
acontecimentos já conhecidos torna-se mais curta, e o seu transcurso
acelera-se, o que é ressaltado com a aparição duas vezes, no texto, duma
viagem — uma com cocheiro, a outra com Kátia num charabã.
E a par de verbos no presente e do léxico, os quais, como antes,
criam a atmosfera de monotonia e repetitividade, surgem sinais
linguísticos, que pressupõem a excepcionalidade dos acontecimentos.
Uma bela manha não vêm todos os dias
Ocorrem agora também equívocos de que antigamente eu tinha noção apenas de outiva. Por mais que me envergonhe,
vou descrever um que aconteceu há dias, depois do jantar.
Exatamente como, nos primeiros capítulos, se observa a antítese
“antes-agora”, mas, no quarto, o “antes” já significa não o passado mais
distante, senão o de pouco tempo atrás, do último inverno:
O nosso jantar decorre de maneira mais cacete que no inverno (147)
Ocorrem mudanças também nas personagens:
Nicolai aparece geralmente nos feriados, como que para tratar
de serviço, mas principalmente para me ver. Vem bastante embriagado, o que nunca lhe acontece no inverno. (145)
Há muito tempo já que Mikhail Fiódorovitch devia ter viajado
74
para o estrangeiro, mas ele adia a partida cada semana. Nos últimos tempos, aconteceram com ele certas modificações:
parece mais acobado, passou a embriagar-se com vinho, o que antes nunca lhe acontecera, e as suas sobrancelhas negras estão começando a branquear. (151)
Antes, eu tolerava a sua presença calado, mas agora dirijo-lhe
alfinetadas, que obrigam minha mulher e Lisa a enrubescer. (147)
Se, no segundo capítulo, após conversa com Nikolai Stepánovitch, a
esposa
... aperta um lenço contra os olhos e vai chorar no seu quarto;
130),
então, no quarto:
minha mulher de súbito empalidece e solta um grito alto, com
uma voz desesperada, que igualmente não é sua. (148)
No terceiro, ressalta-se a atenciosidade de Kátia em relação a
Mikhail Fiódorovitch:
Deve ser Mikhail Fiódorovitch... Kátia acompanha com atenção as suas jogadas e ajuda-o mais
com a mímica do que com palavras. (137)
E, já no quarto, ela já não consegue esconder a sua irritação com a
aparição dele:
- De novo este Mikhail Fiódorovitch!- diz Kátia com desagrado.
- Tire-o de perto de mim, por favor! Estou enjoada, ele já se evaporou...Como cansa! (151)
No terceiro, ao conselho de Nikolai Stepánocitch de arranjar um
trabalho, Kátia apenas cala e muda a conversa para outro tema; agora, ao
mesmo conselho, ela “explode”.
A atmosfera geral no quarto claramente torna-se tensa, como se o
estado de nervos de Nikolai Stepánovitch se comunicasse às outras
75
personagens.
A principal mudança, contudo, ocorre no próprio professor. Ele já
não esconde de si nem a sua insuportável irritação, nem o ódio que dele
se apodera; as emoções vencem a razão. Paralelamente, têm-se dois
episódios: no segundo capítulo, o desprezo a Hnekker gera um
pensamento acerca dos próprios méritos e da inalcançável altura deles,
enquanto, no quarto, o desprezo chega a tal ponto, que Nikolai
Stepánovitch, com consciência da estupidez do seu comportamento, não
resiste e recita uma citação das fábulas de Ivan Krylov. Em ambos os
casos, figuram imagens do baixo e do elevado; no primeiro episódio, o
cume duma montanha e o seu sopé; no segundo, a águia em vôo
altíssimo e a galinha incapaz de alçar vôo.
-”Sucede às águias descer mais que as galinhas. Mas estas nunca hão de subir às nuvens...” (147)
Nikolai Stepánovitch começa já a tomar consciência da inutilidade
dos conselhos, dados a Kátia, mas o sentimento de dever em relação a
ela, o qual ele entende à maneira antiga, e o hábito de muitos anos
obrigam-no novamente a aventar a questão do futuro dela.
Piora o estado físico do professor; ele sofre já não um simples
colapso nervoso, mas um profundo desmaio, de duas a três horas de
duração.
E mais uma vez de volta à primeira frase do quarto capítulo,
compreendemos que a vida, realmente, mudara, só que tais mudanças
não trazem nenhuma sensação de alegria e novidade.
A personagem conformara-se definitivamente com os seus
“pensamentos de escravo” e adere prazerosamente à tradicional
maledicência de Kátia e Minkhail Fiódorovitch. Isso fecha o capítulo
quatro.
Pela primeira vez, no fim do capítulo, não há nenhum pensamento
na morte, nem a insônia que o acompanha, nem histeria. Por que deixa o
76
autor, nesse caso, de usar o mesmo procedimento estilístico, fazendo, no
entanto, o leitor compreender que a atmosfera está tensa até ao máximo?
Em primeiro lugar, com isso aprofunda-se a diferença composicional
em relação aos três primeiros capítulos (primeiro fragmento
composicional), simbolicamente declarada no início do quarto. Em
segundo, e isto é o principal, o penosíssimo estado psicológico, que se
segue, foi destacado para um quinto capítulo à parte, no qual já não há
nem monotonia de acontecimentos, nem reflexões, e a personagem
entrega-se ao poder das suas terríveis e incompreensíveis sensações;
estas parecem existir por si próprias, contagiando a todos em volta e
criando a atmosfera dum medo irracional.
Para além de a ação passar-se à noite, isto é, vermos a insônia da
personagem no sentido físico direto, todo o quinto capítulo concentra o
significado simbólico da insônia — não é simplesmente um pensamento na
morte, mas a duradoura sensação de terror, advinda do facto de que a
morte está ao lado e preenche literalmente o espaço.
A própria palavra “insônia” soa novamente no texto como reflexo
do estado geral de Nikolai Stepánovitch e como resposta à pergunta
acerca do que está a ocorrer:
- O que está fazendo agora? - Nada... Insônia. (155)
Desde o próprio início do capítulo, está claro que se descreve um
acontecimento isolado, e a palavra "uma" e o verbo no tempo passado
acentuam-no:
Há noites terríveis, com trovoada, raios, chuva e vento, e que o povo chama de noites de pardais. Em minha vida pessoal,
aconteceu uma noite de pardais exatamente desse tipo...(152)
A descrição duma noite de pardais, vivida pelo próprio Tchékhov,
encontra-se nas reminiscências do seu irmão Aleksandr.
77
Воробьиной ночью в Малороссии называется такая
страшная грозовая ночь, что даже воробьи от испуга вылетают из своих гнезд и мечутся как угорелые по воздуху.
Chama-se “noite de pardais”, na Ucrânia, a uma noite tempestuosa tão terrível, que até os pardais, de pavor, deixam
os ninhos e ficam a voar como doidos. (tradução nossa)57
O primeiro parágrafo do capítulo conclui-se com a pausa dumas
reticências. Ao leitor é dada a possibilidade de sentir profundamente o
texto seguinte em contraste com a frase inicial. “Aquela noite igualzinha”
revela-se completamente outra: não há nenhuma tempestade, nem raios,
nem vnto, nem trovões, nem chuva, nem pardais ensandecidos. A noite,
pelo contrário, é magnífica, sem vento, enluarada, tranquila.
A “tempestade” está é na “vida pessoal” das personagens. E esse
contraste entre a natureza bela, indiferente e eterna, dum lado, e os
sofrimentos humanos e a finitude da nossa vida, cria, sobretudo, o terror
e desconcerto, que repentina e inexplicavelmente se apodera das almas
das pessoas:
Está um tempo magnífico. Cheira a feno e a algo mais, muito
agradável. Vejo o muro ameado, as arvorezinhas sonolentas e esquálidas junto à janela, a estrada, a faixa escura da mata;
no céu, há uma lua tranquila, muito brilhante, e nenhuma nuvem. Quietude, não se move nenhuma folha. Tenho a impressão de que tudo me olha e presta atenção, à espera de
que eu comece a morrer. (152)
A natureza, em Tchékhov, aparece com frequência para lembrar-nos
da morte.
O insuportável terror, experimentado por Nikolai Stepánovitch, é tão
irracional, inexplicável, sem origem conhecida e por alguma razão se
apodera imediatamente de todos, que ao leitor se comunica a atmosfera
maligna, quase mística.
O quinto capítulo contrapõe-se a toda a novela restante tanto pela
posição principal, com que se faz a narrativa, (apenas sensações,
57
Disponivel em: http://www.anton-chehov.info/v-gostyax-u-dedushki-i-babushki.html
78
sentimentos), quanto pela disposição de espírito comunicada ao leitor,
para além do ritmo e do léxico.
Seguindo as leis do género místico, a atmosfera de inexplicável
terror aumenta:
Dá medo. Fecho a janela e corro para o leito. Apalpo o pulso e,
não o encontrando no braço, e todas essas minhas partes estão frias, pegajosas de suor. A respiração torna-se cada vez mais
rápida, o corpo me treme, todas as entranhas estão em movimento, no rosto e na calva há uma impressão como se
uma teia de aranha pousasse sobre eles (152)
Sigo a minha mulher, ouço o que ela me diz e, perturbado, não compreendo nada. Nos degraus da escada, pulam as manhãs claras da sua vela, tremem as nossas sombras compridas, as
minhas se enredam nas abas do roupão, sufoco e tenho a impressão de que algo me persegue e quer agarrar-me pelos ombros. “Vou morrer neste instante, aqui na escada”, penso.
“Neste instante”...(153)
Meu deus, que medo! Eu tomaria mais água, mas agora, dá medo
abrir os olhos, e eu temo levantar a cabeça. O meu terror é inconsciente, animal, e não posso de modo nenhum compreender por que me espera uma dor nova, ainda não experimentada?
(153)
Também o léxico é bem característico:
terrível minha alma está opressa por tamanho horror o reflexo sinistro e enorme de um incêndio
Dá medo teia de aranha escondo a cabeça sob o travesseiro
tenho sentimento de que a morte acercar-se-á de mim sem falta por trás, devagarinho meu deus, que medo!
Está gemendo ou rindo algo me persegue e quer agarrar-me pelo ombros um uivar de cão
um pio de coruja os pressentimentos as profecias
range o portão do jardim alguém se esgueira ali as faixas de luar
o rosto pálido, severo e fantástico devido ao luar, como que de mármore
79
Os numerosos pronomes indefinidos acrescentam mistério. O
português “alguém” e a pergunta “quem é?”, infelizmente, não
transmitem o caráter entrecortado dos sons da frase russa "не то, не то"
(nie-tó, nie-tó: nem bem, nem bem; para o que contribui a consoante
dura “t”), do repetido pronome "опять...опять" (opiát´... opiát´:
novamente), dos pronomes indefinidos "кто-то, что-то" (któ-to, chtó-to:
alguém, algo, respectivamente; para o que contribuem as consoantes
mudas “k” e “ch”) e da pergunta "кто там?" (quem está aí?), consonante
com eles; esses sons entrecortados suscitam associação com as batidas
aceleradas do coração (que, em português, podem representar-se pela
onomatopéia tuc-tuc) e fazem o leitor experimentar quase fisicamente, no
subconsciente, as mesmas emoções das personagens.
Repete-se com frequência o som “ô”, quase sempre na sílaba da
consoante dura t:
Acima do teto, alguém está gemendo ou rindo... Presto
atenção. Decorrido um tempo, passos ressoam na escada. Alguém vai apressadamente para baixo, depois [vem]
novamente para cima. Pouco depois, os passos tornam a ressoar embaixo; alguém pára junto à minha porta e fica à
escuta. -Quem é? - grito. (153)
No original:
Наверху за потолком кто-то не то стонет, не то смеётся... Прислушиваюсь. Немного погодя на лестнице раздаются шаги. Кто-то торопливо идёт вниз, потом опять наверх.
Через минуту шаги опягь раздаются внизу : кто-то останавливается около моей двери и прислушивается. -- Кто там? -- кричу я.58
Tal qual nos capítulos anteriores, quase todos os verbos, aqui, se
empregam no tempo presente, mas, desta vez, eles acentuam não a
repetitividade do que ocorre, mas um brusco retardamento do tempo,
como se quisessem fixar cada instante. O tempo quase para.
58 A. Tchékhov, Moscou,1977, p.301
80
Um silêncio de morte, um silêncio tal que, segundo de expressou certo escritor, até zune nos ouvidos. O tempo passa
devagar, as faixas de luar sobre o parapeito da janela não mudam de posição, como que petrificadas... Ainda falta muito
para o amanhecer. (154)
Silêncio, imobilidade da natureza e do tempo, que lembram a “paz
eterna”, e, em contraste com isso, vêm as palavras:
apressadamente, pulam,
persegue, quer agarrar-me, empurra, de repente,
cada vez mais rápida, o corpo me treme, todas as entranhas estão em movimento.
Cria-se a impressão de que as personagens, tomadas de terror,
tentam, com ajuda da vanidade (суетa), sons e lágrimas, romper essa
imobilidade de morte e apressar o tempo, que fora detido.
Produz-se o ritmo intermitente com as frases curtas dos diálogos e
os numerosos sinais de pontuação (assim, em quatro páginas, as
reticências usam-se 40 vezes, o ponto de exclamação 13, e o de
interrogação 20).
Que fazer? Chamar a família? Não, não é preciso. (152)
-Ah, meu Deus...ah, meu Deus! - balbucia, entrecerrando os
olhos por causa da nossa vela. - Não posso, não posso...(153)
- Mas ajude-a, ajude-a! - implora minha mulher. - Faça alguma coisa! (154)
- Desculpe – diz ela. - De repente, não sei por que, tive um sentimento intoleravelmente penoso... Não pude suportar e
vim para cá... Havia luz na sua janela, e... eu resolvi chamá-lo... Desculpe... Ah, se o senhor soubesse como era penoso o que senti! O que está fazendo agora? (155)
A lógica e a razão tornam-se impotentes, ninguém consegue
81
compreender o que se passa com elas, e no texto repetem-se as mesmas
frases:
não sei por que perturbado, não compreendo nada
não compreendo eu não sei
eu não compreendo nada, não sei não sei por que
A incompreensão, que chega até ao pânico, é transmitida pela
quantidade de orações interrogativas:
Por que essa impressão? (152)
Que fazer? Chamar a família?(152)
será porque eu quero viver, ou porque me espera uma dor nova, ainda não experimentada? (153)
Quem é? ...O que você tem?(153)
E, embora Nikolai Stepánovitch, por hábito recorrendo à lógica para
salvação, tente explicar uma coisa ou outra, ele não o consegue, e as
explicações não lhe satisfazem.
Como que de propósito, ressoa de repente em nosso pátio um uivo de cão, a princípio suave e indeciso, depois sonoro, a duas
vozes. Nunca dei importância a tais augúrios como um uivo de cão ou um pio de coruja, mas agora o meu coração comprime-
se numa tortura, e eu procuro explicar a mim mesmo esses uivos. “Bobagem...”, penso eu, “influência de um organismo sobre
outro. A minha acentuada tensão nervosa transmitiu-se à minha mulher, a Lisa, ao cachorro, eis tudo... Essa transmissão
explica os pressentimentos, os profecias...”(154)
À diferença dos capítulos precedentes, aqui não se encontram sinais
de manifestação física da doença, e apenas o silêncio, a imobilidade e a
magnificência da noite enluarada dão à personagem a sensação de que a
morte está próxima.
82
Não sei por quê, tenho a impressão de que vou morrer no
mesmo instante. Por que essa impressão? No corpo, não há nenhuma sensação que indique um fim próximo, mas a minha alma está opressa por tamanho horror, como se eu tivesse visto
de repente o reflexo sinistro e enorme de um incêndio. (152)
Como motivos dominantes, que atravessam todo o texto da novela,
os temas principais — morte, medo, doença, tempo — concentram-se
maximamente neste capítulo; no entanto, nós não encontramos, aqui,
nem longas reflexões monótonas, nem os acontecimentos constantemente
repetidos nos capítulos anteriores, os quais suscitam crescente irritação a
Nikolai Stepánovitch: aquilo que lhe parece falsidade, maledicência e
cinismo. Os sentimentos direcionados para o subconsciente vêm ao de
fora. As pessoas vêem-se cara a cara com a própria vida, com uma força
independente delas, e tal força, ao aproximá-las maximamente, obriga-as
a ser maximamente sinceras, a ser elas próprias. E elas, alheias umas às
outras, vivendo cada qual no seu “estojo”, experimentam um estado
comum a todas: o de terror e incompreensão. Advém uma aguda
necessidade uma da outra. Ademais, o que se passa com elas, é tão
próximo da natureza, irracional e independente dos seus pensamentos,
que as aproxima daqueles para quem essa força estranha e
incompreensível é natural: os animais e as crianças. O autor sugere isso
com alguns pormenores: o uivo dum cão ajunta-se às perplexidades
humanas:
Como que de propósito, ressoa de repente em nosso pátio um uivo de ção, a princípio suave e indeciso, depois sonoro, a duas
vozes. (154)
Não à toa, Nikolai Stepánovitch define o seu medo como um “terror
inconsciente, animal”. Tal estado obriga as personagens a
inconscientemente voltarem ao passado, quando o seu amor mútuo era
natural e sincero, àqueles minutos em que os filhos eram pequenos.
83
O tempo não somente retarda o seu curso e detém-se, senão
também inicia uma contagem decrescente: Nikolai Stepánovitch, de
repente, vê os seus entes próximos tais quais eles se haviam conservado
na sua memória.
Vendo -me, solta um grito e atira-se ao meu pescoço.
- Meu bondoso papai...- soluça -, meu bom papai... Meu pequenino, meu querido... Não sei o que há comigo... É
penoso! Abraça-me, beija-me e murmura palavras carinhosas, que eu
lhe ouvia quando era ainda criança. (153-154)
Procuro cobri-la, minha mulher dá-lhe de beber, e ambos
ficamos acotovelando-nos junto ao leito; o meu ombro empurra o seu, e nesse momento vem-me à memoria como outrora
demos banho, juntos, aos nossos filhos.(154)
As suas sobrancelhas se levantam, brilham-lhe os olhos de
lágrimas, e todo o seu rosto se ilumina, como que por uma luz, por uma expressão conhecida, há muito não vista, de
confiança. (155)
Liza, dirigindo-se ao pai, chama-lhe "крошечка" (pequerrucho),
como os adultos podem dirigir-se a crianças.
...meu bom papai... Meu pequenino, meu querido (153) Palavras de amor, proximidade, união (meu, nossos) e confiança são
um poderoso contraste com o léxico recém-usado de medo, pânico e
incompreensão. Como se a vida desse às personagens mais uma
possibilidade de compreender, mudar algo e superar o alheamento
espiritual de todas.
Contudo, o instante mágico esvai-se, e tal esperança desaparece;
tudo retorna aos mesmos círculos, e as personagens, como antes, não são
capazes de ouvir umas às outras.
Nikolai Stepánovitch, com dizer "não compreendo nada, não sei, e
só posso balbuciar", pensa se não é o caso de passar uma receita e não o
faz, e simplesmente espera que os gemidos acima do teto silenciem.
Parece-lhe que também Kátia, ao oferecer-lhe uma quantia, não ouve uma
84
alusão à morte próxima, quando ele diz que o dinheiro agora é inútil para
ele. E ele “não logra” dizer-lhe “adeus”.
O quinto capítulo, por muitos meios linguísticos, sobressai
claramente de toda a novela. Ele não apenas está construído sobre
contrastes (beleza e medo, sombra e luz, solidão e proximidade, paz e
pânico), como também está fartamente saturado de símbolos, tanto
alguns já encontrados nos capítulos anteriores, quanto outros que
aparecem pela primeira vez.
Esse é, sem dúvida, o centro culminante, e o facto de a culminação
da novela representar a chegada de sensações humanas ao grau máximo
de intensidade, sem nenhuma reflexão racional e sobre o pano de fundo
da paz absoluta e da beleza serena e indiferente da natureza, revela que é
precisamente nessa contradição que se encerra a principal ideia de toda a
obra.
O sexto capítulo, por sua vez, divide-se distintamente em duas
partes. Se a primeira delas toma um atalho de volta e, estilística e
semanticamente, nos devolve ao estado de espírito dos primeiros
capítulos, então a segunda parte, indubitavelmente, leva-nos a uma “noite
de pardais”.
O pano de fundo básico do sexto capítulo é o completo
ensimesmamento espiritual e a indiferença; a monotonia como que tem
como moldura duas cenas emocionais: a tensão anterior do quinto
capítulo e a chegada de Kátia.
Transcorreu fora do texto dos apontamentos algum lapso de tempo,
e de novo mudou o espaço. Se o primeiro centro composicional
compreende a vida costumeira e cotidiana na cidade e o segundo é a vida
na datcha, repetida anualmente, o terceiro (Khárkov), por sua vez, é uma
circunstância completamente nova, que surge pela primeira vez.
Para a personagem, porém, já nenhuma mudança tem sentido e
apenas aprofunda a sua solidão.
Se é para viajar para Khárkov, viajemos. Ademais, abso-
85
lutamente tanto faz para onde viajar, para Khárkov, Paris ou Bierditchev. (156)
A viagem a essa cidade é citada no primeiro:
-Em suma, Nicolai Stiepánovitch, você deve sem falta fazer uma viagem a Khárkov.... -Se você quer, vá lá, irei a Khárkov. (130)
E no segundo fragmentos composicionais:
...enquanto o tempo está quente e há tempo livre, viajar até
Khárkov... - Está bem, irei... - concordo. (148)
A viagem, contudo, realiza-se no terceiro; ademais, toda a ação do
capítulo transcorre no quarto dum hotel de Khárkov. O capítulo inicia-se
com uma frase curta:
Estou em Khárkov. (156).
A viagem é feita contra a vontade dele, por razões “formais”, pelo
sentimento de dever e vergonha em relação à família, e vem a ser um
completo malogro — tarde de mais.
A atmosfera é ainda mais penosa e “enfadonha” do que nos
primeiros capítulos; a solidão aprofunda-se e salienta-se pelo epíteto
чужой (estranho, alheio, dos outros), usado mais de uma vez. No texto
original, as frases soam idênticas, reforçando a sensação de tristeza e
solidão:
Сижу я один-одинешенек в чужом городе, на чужой кровати... ...сижу в этом маленьком нумере, на этой кровати с чужим,
серым одеялом...
но все это не помешает мне умереть на чужой кровати, в тоске, в совершенном одиночестве... 59
Na tradução brasileira, com a troca de alheio pelos sinônimos
estranho e que não é meu, tal efeito quase todo se perde:
59 A. Tchékhov, Moscou,1977, p.p.305-306
86
Estou sentado sozinho numa cidade estranha, sobre uma
cama estranha... (157)
...mas nada disso impedirá de morrer numa cama alheia,
angustiado e completamente só...(158)
estou sentado neste pequeno quarto de hotel, sobre esta cama, com um cobertor cinzento que não é meu... (157)
Na alma da personagem, há um completo vazio; ela é indiferente
até ao tempo, que passa devagarinho; ela escuta o bater do relógio, que
dá as horas uma após a outra; ela nota o começo da dor na face, mas já
nada a toca; ela espera apenas as manifestações da doença e a morte.
O relógio do corredor bate uma hora, depois duas, três...Os
meses derradeiros da minha vida, enquanto espero a morte, parecem-me bem mais compridos que toda a minha existência
anterior. E, antes, eu nunca soube conformar-me como agora com a lentidão do tempo. Outrora, esperando o trem numa
estação ou sentado fazendo exame, um quarto hora parecia uma eternidade, mas agora sou capaz de passar a noite inteira imóvel na cama e pensar com absoluta indiferença que,
amanha, haverá uma noite igualmente comprida, incolor, e depois de amanhã... No corredor, betem cinco horas, seis, sete... Sobrevém o escuro. (156)
No trecho sobrecitado, a comparação a um passageiro que espera
por um trem faz-nos lembrar a caracterização de Kátia pelo professor no
segundo capítulo:
A expressão atual é fria, indiferente, distraída, como a dos passageiros que precisam esperar muito tempo o trem. (124)
Repetem-se, novamente, alguns motivos já encontrados antes. O
estado de insônia leva-nos de volta ao início do primeiro capítulo. Para
Nikolai Stepánovitch já não tem importância se é noite ou dia. Para ele, a
insônia como tal perde o seu significado principal e as suas coordenadas
87
temporais e configuração, uma vez que preenche consigo todo o tempo,
propagando-se e distendendo-se em todas as direções. Esse é o único
capítulo em que não soa a palavra insônia, como se também ela tivesse
perdido o sentido; dão-se somente os seus indícios e sinais
característicos:
Noite igualmente comprida, incolor (157) Quando amanhece, estou sentado na cama, abraçando os
joelhos...(158)
O único acontecimento importante de enredo, em toda a novela —
a fuga de Liza com Hnekker e o seu secreto casamento — permanece “nos
bastidores” e sequer é comentado; Nikolai Stepánovitch, que vem a saber
disso por um telegrama, assusta-se um instante não com o ocorrido, mas
a sua própria indiferença, e profere a si uma sentença:
Dizem que os filósofos e os sábios autênticos são indiferentes. Não é verdade, a indiferença constitui uma paralisia da alma, a morte prematura. (158)
Já não há sentimentos, e ele novamente volta aos seus
pensamentos, a todas aquelas mesmas reflexões, à sua “rabugice”: a
contradição entre o nome famoso e o homem, a filosofia dos estóicos, a
mundividência do bárbaro e do escravo, a insatisfação com as más
condições etc. E, sobre o fundo de tudo isso, é dessas reflexões que vem
a conclusão de que a causa do que acontecera, fora a falta duma ideia
geral na sua vida.
Como já afirmámos, a “ideia geral” é reconhecida por muitos
críticos, tanto da época quanto de hoje, como a ideia principal da novela,
mas, como não foi dito concretamente o que se entendia e se entende por
tal conceito, as opiniões dos estudiosos chegam a divergir completamente
e vêm à baila variantes sociais, ideológicas, filosóficas, religiosas... Há a
opinião de que os pensamentos acerca duma “ideia geral” não passam de
88
sintoma do estado doentio da personagem (V. Kataev, M.Smirnov,
Doljenkov).
Para os dois primeiros, o pensamento acerca duma ideia geral é
mais uma “tergiversação” do professor consigo próprio, uma tentativa de
salvar-se do que não consegue penetrar . Tchékhov, salientando mais de
uma vez o modo “individualizado” de a Medicina encarar cada
personalidade humana, simplesmente não podia ter em mente uma ideia
concreta, comum a todos.
Nikolai Stepánovitch sentiu a necessidade de algum dogma salvador
apenas em face da morte, quando a moléstia já o fizera esquecer a ciência
e o trouxera de volta à vida corriqueira do dia a dia. Uma “ideia geral”,
assim, poderia tornar-se uma justificação da vida passada e propiciar um
modo tranquilizador de encarar a morte inelutavelmente cada vez mais
próxima. Ele não nota que já experimentara várias posições diante da vida
— os maus pensamentos do Araktchéiev e a indiferença — refutando
sucessivamente tanto uma como a outra. Para V. Katáev, com isso a
personagem é simpática ao leitor. Ideias gerais do tipo “trabalha” ou
“conhece-te a ti próprio” também se revelam inaceitáveis para ele, bem
como a doutrina populista e o ensinamento tolstoiano lhe são
completamente alheios. A filosofia de Marco Aurélio, sob cuja influência o
professor estivera durante muitos anos, também deixara de satisfazer-lhe.
“Conhece-te a ti mesmo” - eis um belo e útil conselho; dá pena, porém, que os antigos não tenham adivinhado como indicar o meio de utilizá-lo. (158)
Também lhe é alheia a resignação cristã, e "o deus do homem vivo",
para ele, não é o deus de Tolstói. Até a Ciência, que antes fora para ele
mais importante e essencial do que todas as influências externas, cessara
de ser a força salvadora, otimista. E as amarguras, sofrimentos e dúvidas
de pessoa viva acabaram por vencê-lo. Com isso se exauria o círculo das
“ideias gerais”, por que se poderia nortear a personagem de Tchékhov.
89
Desse modo, nenhuma “ideia geral”, se por isso entendermos uma filosofia ou crença que muna [a pessoa] com um
programa de comportamento inconsútil e corresponda, em todas as situações da vida, a elevadas exigências intelectuais e morais, não poderia satisfazer ao professor, tal como pintado
por Tchékhov .60
Em polêmica com V. Katáev, V. Linkov escreve que os pensamentos
de Nikolai Stepánovitch acerca duma “ideia geral” não são sintomáticos,
mas da sua essência e não a afastam da sua real situação e, pelo
contrário, nascem das profundezas do seu ser e desvelam-lhe a realidade
na sua verdadeira tragicidade. Esses não são temas, em que se possa
pensar ou não pensar, como, por exemplo, teatro e literatura, mas
gerados pela própria vida.
As amarguras e tristezas dos últimos dias de vida levaram
Nikolai Stepánovitch a eles. Uma “ideia geral” não é um conceito abstrato e lógico, mas expressão duma profunda experiência da personagem.61
Ao citarmos a polêmica acerca dessa questão, salientamos dois
aspectos: em primeiro lugar, que Nikolai Stepánovitch menciona colegas-
filósofos, quando fala duma ideia geral:
Foi somente pouco antes da morte, no ocaso dos meus dias, que notei em mim a ausência daquilo que os meus colegas
filósofos denominam uma idéa geral (161)
Quer dizer, ele tem em mente, apesar de tudo, um conceito lógico e
abstrato.
E, em segundo lugar, o modo como ele próprio caracteriza o seu
estado naquele instante:
Para me ocupar com pensamentos, coloco-me no meu ponto de
60
V.Kataev
61 V.LINKOV, Moscou, 1982, p.67-68.
90
vista anterior, quando não era indifirente a tudo...(157)
Torno a deitar-me e começo a conjeturar sobre os pensamentos com que poderia ocupar-me. Pensar em quê? Parece que já pensei em tudo e que não há nada capaz de
suscitar agora o meu pensamento.(158)
Quando amanhece, estou sentado na cama, abraçando os joelhos, e, não tendo o que fazer, procuro conhecer a mim mesmo... Quando, em outros tempos, dava-me na veneta compreender alguém ou a mim mesmo, eu examinava não ações, em que
tudo é convencionado, mas os desejos. Dize-me o que desejas, dir-te-ei quem és. Também agora, faço um exame a mim mesmo: o que eu
quero? (159)
A personagem assume a opinião anterior e por não ter que fazer
começa a examinar-se, e chega à conclusão de que, na sua vida, não há
algo principal, que seria o mais importante. Essa posição anterior é tão-
somente mais uma tentativa de salvar-se com o retorno a vivências
conhecidas. A falta de algo de que Nikolai Stepánovitch tem uma vaga
sensação, não está no campo das ideias. No nível da consciência duma
personagem limitada por ideias rigorosamente científicas acerca da vida,
resolver o problema que se lhe apresenta, é impossível; para tal, para
além de conhecimentos científicos, exigir-se-ia também experiência
humana espiritual.
Se olharmos as inúmeras personagens do mundo tchekhoviano,
poderemos notar que todas as dotadas duma mundividência consolidada e
variadas “ideias gerais”, são tão pouco simpáticas ao escritor e ao leitor,
quanto aquelas, cuja singela mundividência consiste no aproveitamento
tosco do que a vida lhes possa oferecer, na falta de necessidade de vida
espiritual (Hnekker); a posição didática das primeiras frequentemente
revela-se ilusória e sempre desagradável — Lida (“A casa de mezanino”),
doutor Lvov (“Ivánov”), von Koren (“Duelo”) e, em “Uma história
enfadonha”, Piotr Ignátitch. E isso embora a própria ideia possa ser cara
ao escritor, como, por exemplo, a construção de escolas e hospitais para
91
pobres, propagandeada por Lida. Já as personagens que procurem,
tenham dúvidas, sofram e, principalmente, as que percebam a vida sem
nenhuma base ideológica, expressa de forma verbal, são espontâneas,
como se nas suas veias circulasse o sangue da natureza, como o diácono
e Samóilenko (“Duelo”), Dýmov (“Ventoinha”) e Míssius “A casa de
mezanino”), e um tanto infantilmente ingénuas e despertam simpatia e
interesse. A falta de explicações da parte do autor para o que
representaria uma ideia geral, está na indefinição e ilusoriedade da
própria existência dela.
E o principal, a nosso ver, é que o pensamento acerca duma
ideia geral não é salientado de nenhum modo, nem pelo estilo, nem
pelo ritmo, nem pelo léxico, nem por símbolos, e não se encontra, nas
posições fortes do texto (início, final e subtítulo), não há os “ganchos’
(pretextos), sinais, sugestões e o subtexto, por meio do qual o autor “se
manifeste”, aguçando a consciência e o subconsciente do leitor para os
aspectos que julgue especialmente importantes. O pensamento acerca
duma ideia geral, expresso verbalmente, existe no fluxo das reflexões
monótonas, “enfadonhas (tediosas!), do professor, que caracterizam só a
ele próprio.
A última cena da novela, aparentemente, repete uma situação do
quinto capítulo: a personagem encontra-se sozinha, o surgimento
inesperado de Kátia, a sua histeria e pedido de ajuda, que lembram a
histeria e o pedido de ajuda de Liza, o alheamento e incompreensão, a
saída de Kátia e a palavra “adeus”. No entanto, fazendo variar uma
situação conhecida, o autor apresenta-a por um ângulo de visão
completamente novo. Com o surgimento de Kátia, mudam
instantaneamente o ritmo e o léxico, levando-nos de volta à “noite de
pardais”. Em lugar de frouxas reflexões em fluxo lento, lê-se:
Apresso-me surpreso de repente ela se ergue num arranco
ofegante, o corpo todo trêmulo Cai sobre uma cadeira e põe-se a soluçar.
92
Agarrando-me a mão e beijando-a jogou a cabeça para trás, estrala os dedos, bate os pés
implora
No vocabulário desse trecho, há muito movimento, real e figurado,
desordenado, caótico, destruidor, e ele é salientado pelos verbos "падать"
(cair) e "валиться" (tombar de cansaço; desabar):
caiu do céu cai sobre uma cadeira
caiu-lhe da cabeça que lhe caem dos joelhos
a voz caída
O ritmo é intermitente; no texto, reaparece novamente uma grande
quantidade de sinais de interrogação e de exclamação e reticências-
pausas, que tanto mais lembram os procedimentos dramatúrgicos de
Tchékhov, e a cena é um diálogo mais parecido a diálogos.
Intensificam-se as pausas, expressas pela reticência e pela palavra
"молчание" (silêncio), repetida três vezes em duas páginas.
E da indiferença da personagem não sobra nem vestígio:
Estou perplexo, confuso, comovido por aqueles soluços, e mal me seguro sobre as pernas.(161)
E logo acrescento, a voz caída:
- Em breve, deixarei de existir, Kátia (161)
Kátia não lhe pede uma ajuda real; ela precisa de palavras:
Ao menos uma palavra, ao menos uma palavra! (161)
Já para ele, as palavras perderam já o seu valor, sentido e utilidade,
ele não consegue já dizer hipocrisias. E, em lugar disso, Nikolai
Stepánovitch repete duas vezes uma mesma frase:
- Vamos almoçar , Kátia. (161)
93
Ele como que tenta recuperar a simplicidade de antes, as relações
de antes, por meio dum gesto simples, corriqueiro e amigável, o desjejum
a dois, que para ele, naquele momento, se torna mais importante do que
quaisquer ideias e palavras.
O frio exalado por Kátia, a pessoa mais querida dele e que de
repente se tornara uma estranha (чужая), como se se tivesse colocado do
lado dessa cidade estranha (чужой) e da cama de estranhos (чужая), é
um pormenor muito simbólico.
responde ela com frieza, tendo sorrido com frieza tem a mão fria como que alheia
E podemos voltar ao terceiro capítulo, para sentirmos a trágica
diferença existente entre o jantar em família de antes e o desjejum de
agora, que não aconteceu:
A seguir, sentamo-nos na saleta aconchegante e começamos a conversar. A tepidez, o aconchego do ambiente e a presença de uma pessoa simpática. (131)
São paralelos os episódios do final dos capítulos 5 e 6:
incompreensão, alheamento, afastamento de Kátia, o “adeus” não
pronunciado da personagem. Mas, se no final do quinto, o afastamento de
Kátia era temporário, o “adeus” não era necessário e Nikolai Stepánovitch
não tivera tempo de dizê-lo, então agora, no sexto, Kátia afasta-se para
sempre e o mudo e não pronunciado “adeus” adquire um profundo
significado simbólico de síntese. Kátia vai-se, como vai-se a própria vida,
e o professor acompanha-a com os olhos, com a derradeira esperança de
que ela olhe para trás ao menos uma vez. E a esperança é desmentida:
Tenho vontade de perguntar: “Quer dizer que não virá ao meu enterro?” Mas ela não me olha, tem a mão fria, como que
94
alheia. Acompanho-a calado até a porta... Ei-la que saiu do meu quarto e caminha pelo corredor comprido, sem olhar para
trás. Sabe que a sigo com os olhos, e, provavelmente, voltar-se-à na curva. Não, não se voltou. O seu vestido negro apareceu pela útima
vez, não se ouviram mais os seus passos... Adeus, meu tesouro!(162)
Com pormenores simbólicos — os passos de Kátia e o seu vestido
— fecha-se o círculo da sua primeira aparição no texto :
eu ouço passos conhecidos, um frufru de vestido, uma voz querida...
(117),
até à despedida final dos dois.
O final da novela impressiona pelo seu saturamento emocional e
simbólico. O estilo é elevado e contido. Nos minutos mais trágicos e de
mais emoção, a mudez das pessoas torna-se a única forma possível de
expressão.
Tem-se o mesmo tempo passado dos verbos, mas, tal qual na noite
de pardais, eles distendem cada instante, como se num desejo impossível
de reter o tempo. E, pela primeira vez, surgem repentinamente verbos do
aspecto perfeito no tempo passado, que repetidas vezes reforçam a
tragicidade — "не оглянулась" (não se voltou), "мелькнуло" (apareceu
pela última vez), "затихли" (não se ouviram) — para sublinharem que
esses tão preciosos minutos já pertenciam ao passado.
A última palavra do texto, "сокровище" (“tesouro”), é inesperada no
vocabulário da personagem. A sua etimologia remonta ao verbo
"скрывать" (“ocultar”). "Сокровище" é algo muito valioso, oculto,
guardado. Pelo conteúdo fonético, associa-se com "кровь" (“sangue”)
movimento, pulsação de vida. E a última frase, a única frase dirigida em
pensamento a Kátia, semelhante à “Míssius, onde estás?”, frase que fecha
o conto “A casa de mezanino”), torna-se também simbólica e de síntese.
Nikolai Stepánovitch despede-se não apenas de Kátia: ele despede-se
95
também da vida, com o que possuía de valioso e secreto e com o que
deixara de enxergar ou perdera, com o que Kátia deixara de enxergar ou
perdera.
O mais profundo e complexo não se presta a análise lógica, a
reflexões e conclusões; a natureza dessa tragicidade é inexplicável. E a
força poética desse final é muito mais demolidora e impressionante do que
meditações acerca duma “ideia geral”. É precisamente no final que a voz
da personagem é mais consonante com a voz do autor.
4.4 Simbologia
Antes de passarmos à análise de episódios das recordações, nós nos
deteremos brevemente em particularidades da simbologia tchekhoviana e
no papel da música na novela.
... o sentido, transferido dum objeto a outro,
funde-se a esse segundo objeto de modo tão profundo e multilateral, que se torna já impossível dissociar um do outro. O símbolo,
nesse sentido, é a completa interpretação da figuratividade ideológica da coisa com a própria
coisa.62
Pela primeira vez, falou-se do símbolo em relação a Tchékhov por A.
Biélyi, no artigo “Tchékhov” (1907). Escreve ele que, a par da continuação
da tradição realista, na base da obra do autor de “Uma história
enfadonha” foi “colocada a dinamite do verdadeiro simbolismo”63.
Comparando Tchékhov e M. Meterlink, na coletânea de ensaios “Луг
зеленый" (“Prado verdejante”), Biélyi observa que os símbolos
tchekhovianos são mais sutis, translúcidos e menos premeditados. Eles
personificam-se por inteiro no real, integrando-se completamente à vida.
Tal especificidade da simbologia tchekhoviana é estudada por A.
62
Disponível em: (https://unotices.com/book.php?id=32161&page=11)
63 A.TCHÉKHOV. Pro et contra, 2002, p.831.
96
Tchudakov:
... o objeto simbólico de Tchékhov pertence logo a duas
esferas, a “real” e a simbólica, e a nenhuma delas em mais alto grau do que à outra. Ele não brilha com uma luz sempre
igual, mas cintila, ora com a luz simbólica, ora com a “real”...64
A simbólica artística de Tchékhov existe tanto no sistema mundial
quanto no propriamente autoral (tem-se em mente o facto de Tchékhov
haver utilizado símbolos universalmente aceitos e criado os seus
próprios). Muitas imagens, embora pertençam aos símbolos universais da
arte mundial (Lua, Sol, luzes), ao entrarem no mundo artístico dele,
adquirem uma especificidade, determinada pela concepção da obra e do
olhar do autor. Não raramente, os pormenores-símbolos transitam duma
obra a outra ou, então, repetem-se mais de uma vez num texto e, às
vezes, existem como imagens isoladas. No conjunto dessas podem
incluir-se objetos caseiros ou roupas, animais, aves, a natureza, cheiros,
acidentes geográficos, o estado das personagens etc.
Às vezes, os símbolos formam pares de antónimos (quente-frio,
úmido-seco, fresco-abafado) ou grupos de coisas de significado próximo
(secura, abafo, mediocridade, falta de cultura, pó). Nesse caso, pela
interação de diversas figuras semânticas, surgem correspondências
figuradas, que as trasnformam em símbolos. Assim, por exemplo, em
“Uma história enfadonha”, “sapos” são referidos duas vezes e apenas no
contexto dum ar “envenenado” pela maledicência.
Em consequência das falas maldosas, o ar torna-se mais
denso, mais abafado, envenenado agora pela respiração não de duas rãs, como no inverno, mas de todas as três. (151)
Às vezes, o significado dos símbolos varia ou torna-se o oposto;
ocorre, pela definição de P. Doljenkov, o “envelhecimento-apagamento do
64 A.TCHUDAKÓV. Moscou:”Nauka”, 1971. p.172
97
signo”. Isso manifesta-se especialmente quando a personagem recorre a
lembranças. Um exemplo disso podem ser as imagens do jardim e das
reuniões à mesa, na comparação do presente e do passado de Nikolai
Stepánovitch.
Nós já nos detivemos nos símbolos mais significativos da novela
(“tédio” e “insônia’), contudo, o autor usa muitos outros. Sobretudo,
devem citar-se figuras/imagens da natureza (céu, Sol, Lua e mar), que
estão relacionadas com a infinitude do espaço-tempo, com a liberdade e
uma força inexplicável, sobre a qual o homem mortal não tem nenhum
poder. Em “Uma história enfadonha”, eles estão quase sempre no contexto
de pensamentos acerca da morte e introduzem o motivo da predestinação
da vida.
Quer o céu esteja coberto de nuvens, quer brilhem nele a lua e as estrelas, sempre olho para ele ao regressar para casa, e penso que em breve a morte há de me levar (141) A natureza me parece bela como sempre, embora o Demônio
me murmure que todos estes abertos e pinheiros, pássaros e nuvens brancas no céu, não notarão a minha ausência daqui a três ou quatro meses, depois que eu morrer. (149)
Em seguida, sigo pelo campo, passando pelo cemitério, que
não me causa absolutamente nenhuma impressão, embora em breve eu me deite nele; passo depois por um bosque e
atravesso novamente o campo. (143)
Nessa mesma série da simbólica natural, podemos examinar
também o motivo do jardim, um dos motivos básicos na obra de
Tchékhov. O jardim é o paraíso terrestre, via de regra perdido, arruinado
(“O jardim das cerejeiras”), e o seu destino sói tornar-se um protótipo da
vida das personagens: a bela floração dura breves instantes, e àquelas
resta apenas recordá-los. Ou, então, personifica o conflito entre o
corriqueiro da vida e o espiritual, e é assim que se examina o paralelo
entre o paraíso terrestre e o celeste na novela “O monge negro”; a
perturbação da harmonia entre eles leva à morte da natureza e das
pessoas.
98
Em “Uma história enfadonha”, o jardim do seminário do jovem
Nikolai está ligado com as esperanças, os sonhos dourados e o futuro
aberto para ele. No tempo presente, quando o professor escreve os seus
apontamentos, a figura do jardim, agora já o da universidade, torna-se
um mísero arremedo da anterior. No primeiro fragmento composicional,
ele é apresentado como uma reunião de arvoretas mirradas e de aspecto
desalentador:
E eis o nosso jardim. Parece que não está melhor nem pior
que no meu tempo de estudante. Não gosto dele. Seria muito mais intelligente se, em lugar das tuberculosas tílias, das
acácias amarelas e dos lilases ralos, aparados, crescessem aqui altos pinheiros e bons carvalhos. (107)
no segundo, apenas como um pequno jardim à frente da casa:
Видны мне зубцы палисадника, сонные тощие деревца у
окна.65
Vejo o muro ameado do meu jardim, duas ou três
arvorezinhas esquálidas. (145)
e no terceiro, quando já não restam nenhumas esperanças, não há
referências a nenhum jardim.
A Lua modifica o mundo real e acrescenta-lhe o que é do Além, o
eterno, e a ela está ligado não apenas o elemento natural, senão também
o elemento da alma humana e as manifestações desta, como o amor, o
ódio, o medo e a tristeza (tédio), que frequentemente não têm causa e
são existenciais. A Lua reflete algo imaginário, enganador, próximo à
morte, e não raramente a sua figura entra em correspondência com a de
“cemitério”:
Abro a janela e tenho a impressão de estar vendo um sonho: embaixo, apertada contra a parede, está uma mulher de
negro, fortemente iluminada pelo luar, e dirige para mim os
65 A. Tchékhov, Moscou,1977, p.294.
99
olhos grandes. Tem o rosto pálido, severo e fantástico devido ao luar, como que de mármore, treme-lhe o queixo. -Sou eu...- diz ela. - Eu...Kátia! Ao luar, todos os olhos da mulher parecem grandes e negros, as pessoas, mais altas e mais pálidas, e provavelmente por
isso não a reconheci no primeiro instante. (155)
Encontra-se algo semelhante em “Iónytch” e “A gaivota”, bem como
em muitas outras obras:
Nos primeiros tempos, deixara Startsev estupefato o que ele via agora pela primeira vez e que, provavelmente, não lhe
ocorreria já tornar a ver: um mundo não parecido a nada, um mundo em que era tão bonito e suave o luar, como se aqui fosse o seu berço, onde não havia vida, não e não, mas onde
em cada álamo escuro, em cada sepultura, se sentia a presença dum mistério prometedor duma vida serena, bela,
eterna.66 (O pano sobe, sescortina-se a vista sobre o lago; a lua, no
alto do horizonte, se reflete na áqua; sobre uma grande pedra está sentada Nina Zareétchnaia, toda de branco).67
Da mesma forma, as figuras da água, do ar fresco, da janela
aberta e do oásis simbolizam a salvação, reanimação . Opostos a eles,
estão a secura, o abafo, a mediocridade, a falta de cultura, personificação
da ausência de talento, do tédio, do desespero e da rotina.
A atenção se refrescou, e eu posso continuar (112)
Minha boca se resseca, a voz enrouquece, a cabeça
gira...Para ocultar dos alunos o meu estado, a todo momento bebo áqua...(112)
...o meu pobre anfiteatro aparece-me como um oásis cujo
riacho secou... (147) Acendo depressa a luz, tomo áqua diretamente da jarra,
depois dirijo-me apressado para a janela aberta. (152)
66 A.TCHÉKHOV, Moscou, 1977, p.31. 67
A.TCHÉKHOV, A Gaivota, Sõ Paulo, 2009, p.16.
100
É característica do sistema de símbolos de Tchékhov também a
recorrência a figuras do mundo animal. Em relação a isso, sobretudo vem
à memória a famosa peça “A gaivota”. Em “Uma história enfadonha”, nos
apontamentos, Nikolai Stepánovitch menciona aves e animais apenas
especulativamente, se não contarmos um episódio-recordação; eles
comparecem somente como símbolos ou soam em provérbios e num
nome ou outro, salientando quão distante o professor, que vive no mundo
dos seus próprios pensamentos, está da vida natural que o cerca:
o livro “Aquilo sobre o que cantava a andorinha” como se uma abelha me picasse é um cavalo de carga ou, como se diz também, um sábio
obtuso ...continuam a picar-me o cérebro, qual mosquitos. È uma cáfila de selvagens... Tem olhos esbugalhados, de lagosta, a gravata lembra pescoço de lagosta … e sentimentos que não conhecia trançaram seu ninho em minha alma queixo cavalar Um enfado terrível, até as moscas morrem. лисья хитрость (um esperteza vulpina) As moscas também não conhecem a ciência ...ficam sentados aí como duas rãs e envenenam o ar com a
sua respiração? Esses seus alemães são uns burros... ...a galinha Hnekker seja muito mais intelligente que o
professor- águia. Noite de pardal.
As aves reais, mencionadas no texto, não estão à vista; ouvem-se
apenas as suas vozes, sempre ao longe: o canto dum galo, o pio duma
coruja, o uivo dum cão.
Já se o canto matinal do galo traz alívio a Nikolai Stepánovitch e
assoacia-se a renascimento, esperança:
Passa um longo período de tempo penoso, antes que um galo cante no pátio. È o meu primeiro anunciador de boas novas.
(103)
o uivo dum cão e o pio da coruja (mencionados duas vezes no texto), por
101
sua vez, são símbolos de pressentimentos funestos e desespero:
Nunca dei importância a tais augúrios como um uivar de cão
ou um pio de coruja. (154) ...comece a ver em cada ave uma coruja, e ouça em cada
som um uivar de cães. (159)
Alguns dos exemplos supracitados são recorrentes e podem
encontrar-se numa série de outras obras.
Assim, na peça “Ivánov”, escrita mais ou menos à época de “Uma
história enfadonha”, Anna Petrovna, que se encontra em estado doentio e
de ansiedade, a única dentre todas as personagens, ouve o tempo todo o
pio duma coruja.
«Anna Petrovna (tranquilamente). De novo está a piar... Chábelskii. Quem pia? Anna Petrovna. Uma coruja. Pia todas as noites” (tradução nossa)
No primeiro ato de “A gaivota”, Sórin fala dum cão que uiva e por causa
de quem “a irmã não conseuira a noite toda conciliar o sono”; esse
pormenor sem significado para o enredo, “casual”, intensifica a atmosfera
de tensão.
Como símbolo do aconchego familiar, de paz, afinidade e atmosfera
amistosa (ou, ao contrário, da falta disso) sóem usar-se coisas do mundo
material como casa (“A casa de mezanino”, “Minha vida”), mesa, de
trabalho ou de refeições, samovar e chá (“Tio Vánia”, “As três irmãs”,
“Três anos”). Em “Uma história enfadonha”, a falta de laços entre os
membros da família é dada pelo desalentador ambiente dos almoços
domésticos, à exceção de dois episódios: a recordação das reuniões
familiares à mesa de antes e o ambiente “caloroso’ dum jantar na casa de
Kátia, no capítulo 3, o qual, no final da novela, torna-se uma recordação,
mais um momento perdido/passado da vida. E, quando Nikolai
Stepánovitch propõe desjejuarem ("vamos almoçar") a Kátia, na
realidade, inconscientemente ele quer restaurar as antigas relações, a
“cordialidade” de antes, e dissipar o “alheio” e o “frio”, que agora emanam
102
da pessoa querida.
Há mais pormenores: Vária, que reprocha a si a memória curta por
causa dum samovar esquecido, e o mercador ruivo:
- Por que estou aqui sentada? - diz, erguendo-se. - Faz muito tempo que o samovar está na mesa. Tornei-me tão
desmemoriada, meu Deus! (105)
...ali está sentado um comerciante ruivo, um homem muito indiferente, que toma chá de uma chaleira de cobre. (107)
A mesa de trabalho (e a figura dos livros, sempre ligada a ela)
permite às personagens retirarem-se para o seu próprio mundo, encontrar
a paz e o equilíbrio espiritual. No entanto, no estado em que se encontra
Nikolai Stepánovitch, as suas ações tornam-se maquinais e dão o
resultado costumeiro; a tentativa permanece inútil, e não se obtém
nenhum conforto interior.
Passo uma hora ou duas andando de um canto a outro do quarto e examino quadros e fotografias há muito
conhecidos.Quando enjôo de andar, sento-me à mesa (сажусь за свой стол). Permaneço ali imóvel, sem pensar em nada e
não sentindo qualquer desejo; se tenho um livro na frente, aproximo-o maquinalmente de mim e leio-o sem qualquer interesse. (103)
Apetrechar um lugar de trabalho no espaço da sua casa para uma
dada pessoa, como o faz Kátia, é sinónimo de especial confiança e
intimidade.
Acompanha-me a uma saleta muito aconchegante e diz, mostrando uma escrivaninha: -Isto aqui... Preparei para o senhor. Vai estudar aqui. Venha
todos os dias e traga o seu trabalho. Pois lá em sua casa somente o atrapalham. Vai trabalhar aqui? Quer?
Para não magoá-la com uma recusa, respondo-lhe que vou trabalhar em sua casa e que o quarto me agrada muito. A seguir, sentamo-nos na saleta aconchegante e começamos a
conversar. A tepidez, o aconchego do ambiente e a presença de uma
pessoa simpática despertam-me agora não mais um sentimento de praser, como outrora...(131)
103
Na peça “Tio Vânia”, o doutor Ástrov tem uma tal mesa na
propriedade dos Voinítskie:
Tenho minha própria mesa nesta casa...no quarto de Ivan Petróvitch. Quando estou totalmente exausto e apático largo tudo, corro para cá e me distraio com esta coisa por algumas
horas...Enquanto Ivan Petróvitch e Sofia Aleksándrovna fazem contas com ábaco, fico sentado ao lado deles na mesa,
fazendo meus borrões. O ambiente é tão aconchegante e tranquilo – e o grilo canta.68
Здесь в доме есть мой собственный стол… В комнате у Ивана Петровича. Когда я утомлюсь совершенно, до
полного отупления, то все бросаю и бегу сюда, и вот забавляюсь этой штукой час - другой… Иван Петрович и
Софья Александровна щелкают на счетах, а я сижу подле них за своим столом и мажу - и мне тепло, покойно, и сверчок кричит.69
É característico que, em ambos os exemplos supracitados, a
atmosfera de conforto e paz (уют и покой) é transmitida com auxílio da
palavra "тепло" (relacionada com carinho, calorosidade). Deixando os
Voinítskie por bom tempo, talvez para sempre, Ástrov fala com tristeza
precisamente da mesa, cuja perda associa-se à perda das únicas pessoas
caras a ele e do ambiente, em que na alma, apesar da decepção e do
tédio, ainda assim brotam a paz e a harmonia:
Faz silêncio. Estala a pena, cantam os grilos. É quente e
acolhedor aqui... Não tenho vontade de partir.70
A dissipação leviana da herança paterna por Kátia, as numerosas e
desnecessárias mesinhas da sua casa e o arrendamento duma datcha com
um grande jardim não trazem harmonia e paz à sua vida e são somente
uma tentativa de fugir à solidão.
68 A.TCHÉKHOV, O Tio Vânia, Em cartaz, São Paulo, 2009, p.101.
69 A. TCHÉKHOV, Moscou,1978, p.94.
70A.TCHÉKHOV, O Tio Vania, Em cartaz, São Paulo, 2009, p.121.
104
Os símbolos materiais da mesa, livros, refeição à mesa e chá, que
adquirem sinal contrário, ao falarem de desunião e
alheamento/estranhamento, estão presentes em cada capítulo, à exceção
do quinto, da “noite dos pardais”, no qual se dissipa por algum tempo a
desunião das personagens, embora não se crie uma verdadeira
proximidade.
Há outros objetos que adquirem significado simbólico, como o
relógio, os ganchos que caem do cabelo de Kátia, o roupão da
personagem etc.
Bem constante, recorrente, no sistema artístico de Tchékhov, é a
simbólica das cores, apesar de haver, nesse campo, variações dos
significados dos símbolos.
No todo, na novela “Uma história enfadonha”, observa-se uma
paleta uniforme, acromática: negro, branco, cinzento com algumas
incrustações de manchas coloridas.
O cinzento é próximo, pelo significado, das figuras de secura, abafo
e tédio e simboliza o desalento, a despersonalização e o “estojamento” da
vida.
Tudo é cinzento, medíocre, inflando de pretensão. Uma cidade cinzenta.(162)
E, não por acaso, é precisamente Piotr Ignátievitch, tedioso e
limitado, embora de rara capacidade de trabalho, quem recebe epítetos
desse tipo:
o seu chapéu cinzento este pão torrado (сухарь) escreverá muitos relatórios áridos (сухих) È muito possível que, depois da minha morte, ele seja
nomeado para o meu lugar, e o meu pobre anfiteatro aparece-me como um oásis cujo riacho secou (высох)
Nos três últimos exemplos, o tradutor novamente usa sinónimos,
mas o riginal russo traz palavras do mesmo radical: сухой, сухарь e
высох.
A ênfase na cor cinzenta também se faz indiretamente, por meio
105
dum léxico criador duma atmosfera de desalento aborrecido:
O portão sombrio o sombrio dos corredores a luz insuficiente
Do mesmo modo como a palavra "скука" (tédio), a mais usada do
léxico de Tchékhov, esse procedimento é usado pelo autor em muitas e
muitas obras. Assim, em “A dama do cachorrinho”, a concentração de
ociosidade de balneário e desespero é transmitida não só pela marcação
cromática “cinzento” (cerca, tapete, coberta, vestido), como também por
símbolos semanticamente próximos, como pó e abafo .
Na descrição do ambiente da casa de Kátia, Nikolai Stepánovitch
assinala cores esmaecidas, pálidas e opacas, associadas a preguiça mental
e medo à vida, e o temor a cores vivas.
O negro quase sempre simboliza a perda de esperança, da vida que
se desperdiça mediocremente, e da falta de futuro. Assim são os olhos de
Kátia na “noite dos pardais”, bem como a cor do seu vestido. Ela poderia
repetir com exatidão as palavras de Macha, ditas no primeiro ato de “A
gaivota”:
MEDVEDENKO Por que a senhora se veste sempre de preto?
MACHA Estou de luto pelo minha vida. Sou infeliz.71
Um pormenor interessante: à medida do amesquinhamento da
figura demoníaca de Mikhail Fiódorovitch, nos olhos de Kátia, as negras
sobrancelhas encanecem (седеют), isto é, vão tornando-se cinzentas
(серыe).
Quanto ao branco, em algumas situações, ele adquire a figura tanto
de pureza, frescor, esperança, florescimento e juventude, quanto da perda
de tudo isso (“O jardim de cerejeiras”). Em “Uma história enfadonha”, com
esse significado, ele aparece somente na figura das nuvens brancas, que
71
A.TCHÉKHOV, A Gaivota, Em cartaz, São Paulo, 2009, p.7.
106
lembram à personagem a vida que passa, e das crianças de cabelos muito
claros (беловолосыe), que se riem, trepadas numa cerca; em todos os
outros casos, o branco tem outro significado: é sinal de esnobismo,
pertencimento a determinado meio social.
Apenas uma tradição substiste do infausto passado da
medicina: a gravata branca. (110) ...o jantar é agora servido por Jegor, um tipo obtuso e altivo,
a mão direita com luva branca.(127) alimentam-me agora com uma sopa-creme, em que boiam
certos caramelos brancas. (127)
Sobre o fundo opaco geral, sobressai "золотой" (dourado), que se
encontra mais de uma vez, sempre no contexto do êxito profissional ou da
pretensão a tal:
Não podemos deixar de dourar a nossa conversa com
chinesices...(114)
(не можем не золотить) ...o meu nome...gravado em letras de ouro sobre a
tumba. (160) (золотыми буквами)
A única qualidade de Piótr Ignátievitch, merecedora de respeito, até
de admiração da parte de Nikolai Stepánovitch, é a sua laboriosiedade
profissional. O epíteto "не человек, а золото" (mais ou menos, vale o seu
peso em ouro) soa, em relação a ele, um tanto ironicamente, ressaltando
que, fora da sau especialidade, Piotr Ignátievit é um “estojo” vazio
(пустой "футляр").
Trabalha da manha à noite, lê tremendamente e lembra tudo muito bem; nesse sentido, não é pessoa, mas ouro em pó (109).
Três cores, negro, branco, dourado, reúnem-se simbolicamente na
caracterização duma personagem, o jovem doutorando, pessoa com
pretensão a uma brilhante carreira na Ciência, mas, na opinião do
professor, pela falta de talento e liberdade de pensamento, incapaz de
lográ-la, isto é, destituído de futuro.
107
Entra um jovem médico, de terno preto e novo, óculos de ouro, e, naturalmente, gravata branca. (116)
As demais cores são quase indistinguíveis no pano de fundo geral,
mas ao olhar atento revelam que a sua inclusão no conjunto da paleta não
fora fortuito.
No início do capítulo 4, quando soa otimisticamente “Chega o Verão,
e a vida muda” , ficamos a saber que a personagem se instalara num
quartinho muito alegre com papel de parede azul claro e distrai-se com
livros franceses de capa amarela. Em seguida, novamente se anula a
escala cromática, e só no capítulo 5 aparece momentaneamente o chapéu
cinzento de Piotr Ignátievitch.
No contexto dum fundo geral opaco da paleta de cores de Tchékhov,
os magníficos quadros da natureza, encontrados nos seus contos e
novelas, vêm saturados dos mais diversos tons e matizes, da espessura e
diafanidade da gama cromática; em “Uma história enfadonha”, contudo,
não se encontra nada disso (exceção: as nuvens brancas), como se a
natureza, para Nikolai Stepánovitch, fosse desprovida de cores. No texto,
não há o vermelho expressivo, apenas uma tinta no rosto das
personagens nos momentos de confusão e ansiedade e o significado
oblíquo do “clarão sinistro” na noite dos pardais; em compensação,
aparece duas vezes a cor ruiva, aproximando duas personagens
desagradáveis (o mercador ruivo com um samovar cor de cobre, isto é,
ruivo, e Hnekker).
Em relação a isso, vem a memória Solomon, da novela “A estepe”,
ruivo com olhos também ruivos, uma personagem que não agrada ao
pequeno Egóruchka.
A cor ruiva, ademais, por si só é viva e está incluída na única e
desgraciosa mancha colorida que destoa do tom geral (o retrato de
Hnekker), enfatizando a sensação do não pertencimento dessa
personagem a todo o mundo professoral, expressa diretamente por Nikolai
Stepánovitch.
108
É um jovem louro, que não tem mais de trinta anos, de estatura média, muito corpulento, de ombros largos, com
suíças ruívas junto às orelhas e bigodinho pintado, que dá ao seu rosto cheio e liso um quê de brinquedo. Veste paletó muito curto, colete colorido e muito estreitos embaixo, e usa
sapatos amarelos, sem salto. (125)
Encontrar-se-á algo semelhante mais tarde, em “As três irmãs”, em
que o cinto verde de Natacha terá precisamente esse significado
simbólico.
A simbólica geográfica é uma das mais estáveis no sistema artístico
de Tchékhov, e os sentidos figurados de alguns nomes vão de obra em
obra (Moscou, Peterburg, Ialta, Khárkov). A ação dos capítulos iniciais de
“Uma história enfadonha”, sem dúvida, transcorre em Moscou, e nós
entendemos isso por características indiretas, como a antiga universidade,
os sobrenomes de professores conhecidos e o status da personagem
principal; no entanto, não aparece o nome da cidade, uma vez que na
composição da novela ela é simplesmente um lugar concreto, no qual a
personagem vive e trabalha, à diferença da simbólica Moscou da peça “As
três irmãs” — um ponto sagrado, um sonho, ilusório e inatingível.
As numerosas referências geográficas, na novela, tais como os
nomes de países, de partes do mundo e cidades, não são símbolos;
desempenham, no texto, outro papel, que examinaremos nos capítulos
seguintes. E apenas Khárkov, tediosa e cinzenta cidade do desespero e
das esperanças desfeitas, é aqui assinalada simbolicamente.
Um dos mais complexos e interessantes símbolos, na base dos quais
foi colocada a noção de eterno e momentâneo, de tempo e espaço, de
estática e dinâmica, é a mútua combinação figurada de “pontos e linhas”
em diferentes contextos. No conto “Luzes” , o entrelaçamento de História
passada, guerras antigas e tempo presente realiza-se por meio das figuras
de luzes rutilantes e faiscantes e da extensão duma estrada de ferro em
construção. Em “Uma história enfadonha”, em que o tema principal é o
breve instante da vida humana sobre o pano de fundo da infinitude do
tempo, essa simbólica também se evidencia na contraposição do breve e
cintilante ao longo, extenso, paralisado e fixo, e de manchas a linhas:
109
...pulam as manchas claras da sua vela, tremem as nossas sombras compridas...(153). ...прыгают светлые пятна от ее свечи, дрожат наши длинные тени...72
No último capítulo, é essa noite, que se arrasta interminavelmente
e, por sua vez, se transforma num dia igualmente arrastado, ambos
acompanhados pelo bater regular e preciso do relógio, e pelo soar de cada
hora.
E, no final, imediatamente após as lágrimas, gritos e movimentos
bruscos e a queda de objetos, é o silêncio e o longo corredor, por onde
Kátia se vai para sempre.
4.5 Música
O tema da música, nas obras de Tchékhov, é inesgotável e foi
tratado mais de uma vez por estudiosos da sua literatura, escritores,
diretores de teatro e músicos, quase sempre em relação à sua
dramaturgia, mas há trabalhos dedicados ao assunto também na
sua prosa (I. Eigues, Balabánovitch, Fortunatov, Derman, Gromov).
Eles trazem uma análise tanto do papel da música na biografia do
escritor, inclusive as suas relações com Tchaikovskii e Rakhmáninov,
quanto na sua obra, com um estudo da influência dela no léxico,
temática e composição.
No livro Tchékhov e Tchaikóvskii, Balabánovitch assinala os
seguintes aspectos da musicalidade da obra literária: linguagem,
atenção especial a figuras sonoras, musicalidade da composição,
entonação lírica geral.73 V. Katáev observa que Tchékhov é um
artista-músico e utiliza-se ativamente de procedimentos da
composição musical, como repetições e a extensão do tema a várias
72 A. TCHÉKHOV, Moscou,1977, p.302 73 E. BALABANOVITCH, Moscou, 1973.
110
vozes-instrumentos (“A complexidade da simplicidade”). Escreve
André Maurois:
“Qualquer peça de Tchékhov é igual a uma obra musical. Cria-
se a impressão de que ele tentava levar para o seu teatro a
sensação de ternura, leveza vaporosa e beleza melancólica e
frágil”.74
Dmítrii Chostakóvitch considerava que as obras de Tchékhov
eram criadas segundo as leis da Música; assim, por exemplo, a
estrutura de “O monge negro” é de sonata. O compositor assinalou,
no conto, o introito (abertura), a exposição com a parte principal e
as secundárias, o desenvolvimento etc. Não raramente, foi apontada
a semelhança com Tchaikóvskii.
“A sua peça é abstrata, qual sinfonia de Tchaikóvskii. E o
diretor deve apreendê-la antes de tudo com o ouvido”.75
— escreveu Meierkhold a Tchékhov.
Páginas dos contos e peças de Tchékhov estão literalmente
saturadas de nomes de instrumentos, géneros e obras musicais,
bem como de compositores e cantores. A temática musical não
raramente aparece nos títulos (“Contrabaixo e flauta”, “Romance
com um contrabaixo”, “Pífaro”, “O violino de Rotschild”). As
personagens cantam, tocam piano, violino, violoncelo, violão e
harpa, soam sinos, pífaros solitários e grandes orquestras.
Freqüentemente, os sons (por exemplo, o som duma corda rompida
em “O jardim de cerejeiras”) ou instrumentos musicais tornam-se
símbolos e a música não apenas cria uma atmosfera, deixando 74
disponivel em:http://lib.ru/MORUA/portrait.txt
75 V. MEERKHOLD, Moscou:”Iskusstvo” 1968.
111
tensas as emoções das personagens e do leitor, senão também
avança paralelamente à ação, enriquecendo a obra com um
significado complementar (“As três irmãs”, “O violino de Rotschild”,
“Iónitch”, “Relato dum desconhecido” e outras).
L. Gromov considera que a musicalidade do escritor é, antes
de tudo, a maneira artística de representar a realidade e a vida com
os seus lados “maior” e “menor”; ele também assinala a ligação da
musicalidade com a composição da obra literária, se todos os
componentes ideológicos estão em harmonia com a figuratividade e
a estilística e em plena concordância com a ideia do autor.
Na vida do próprio Tchékhov, desde a infância, a Música
ocupara lugar importante; o pai tocava violino, ele e os irmãos
cantavam em coro de igreja, e em casa o piano soava
constantemente e organizavam-se saraus musicais. A música não o
acompanhara simplesmente durante toda a vida: ela foi para ele
inspiração, a mais alta manifestação do espírito e, às vezes, até a
força dotada da maior capacidade de representação e transmissão
dos mais profundos elementos felizes ou trágicos, em comparação
com a linguagem.
Naquela petrificação geral, na postura da mãe, na indiferença do semblante do medico, havia algo atraente, comovedor, aquela beleza sutil, apenas perceptível, da aflição humana, 'que ainda se
tardará a compreender e descrever e que somente a música, ao que parece, sabe transmitir . (Inimigos)76
Sabe-se que Tchékhov conhecia muitos compositores, mas o seu
preferido era invariavelmente P. Tchaikóvskii, cuja música ele escutava
ainda em Taganrog.
Em 1887, deparou-se ao compositor um jornal com o conto “Миряне”
(cujo título seria mudado, mais tarde, para “Письмо” — “Carta”). O conto
76
A.TCHÉKHOV A Dama do cachorinho, Editora 34, 1999, p.189
112
agradou-lhe tanto, que foi lido duas vezes seguidas, e Tchaikóvskii, sob a
sua forte impressão, enviou a Tchékhov uma carta entusiástica, que,
infelizmente, não chegou ao destinatário. O encontro pessoal dos dois
ocorreu em Dezembro de 1888 em Peterburgo, na casa do compositor
Modest Iliitch.
Foi precisamente ali que a Tchékhov ocorreu a ideia de dedicar o seu
novo livro ao compositor. Na primavera de 1890, saiu a coletânea de
contos «Хмурые люди» (“Gente Carrancuda”), na qual “Uma história
enfadonha” ocupa o lugar central. Aberto o livro, o leitor viu na primeira
página as palavras “Dedicado a Piotr Iliitch Tchaikovskii”. As circunstâncias
impediram o músico de responder-lhe imediatamente, mas, pouco mais
tarde, em 1891, ele escreveria do seu grande orgulho da dedicatória.
Durante algum tempo, eles planejaram um trabalho conjunto, em que
Tchékhov deveria escrever um libreto para uma futura ópera de
Tchaikóvskii, “Bella”, baseado em motivos de “Um herói do nosso tempo”,
de Liérmontov, mas os planos estavam fadados a não realizarem-se. No
exemplar presenteado ao compositor, este assinalou um trecho, que o
encantara com as suas imagens sonoras (conto "Почта" — “Correio”):
Колокольчик что-то прозвякал бубенчикам, бубенчики ласково ответили ему. Тарантас взвизгнул, тронулся, колокольчик заплакал, бубенчики засмеялись.77 A sineta retiniu algo aos guizos, e os guizos responderam a ele carinhosamente. A caleça soltou um guincho, moveu-se, a sineta chorou, e os guizos riram-se. (tradução nossa)
A própria dedicatória da coletânea ao compositor já nos obriga a
olhar mais detidamente para o subtexto musical dos contos nela incluídos.
Os pesquisadores quase não se dedicaram ao estudo do tema da
música na novela “Uma história enfadonha”. Citaremos apenas um trecho
do livro de P. Gromov. Não se pode concordar com tudo o que está ali
exposto, mas o autor assinalou os dois aspectos mais importantes, a
nosso ver: em primeiro lugar, ao ter definido o termo musical
77
disponivel em:http://dslov.ru/txt/pe1/tpe1_346.htm
113
“contraponto”, que soa no texto, como um conceito genérico, simbólico —
o conflito de contradições na vida da personagem (inclusivamente “o meu
nome e eu”), — e, em segundo, na opinião dele, Brahms, citado duas
vezes, alude a que Tchékhov, na novela, mais precisamente no seu final,
criou o seu réquiem, estando sob a impressão dos réquiens do compositor.
Indubitavelmente, podemos dizer que o princípio musical se reflete, no
todo, na própria composição de “Uma história enfadonha” — no ritmo,
estilo, na melodia da linguagem, na especial atenção às imagens sonoras,
no conjunto de sons, na criação das figuras das personagens, na sua
caracterização e na atmosfera lírica de alguns fragmentos, — e elementos
desse princípio musical tornam-se os mesmos sinais que agem no
subconsciente e intuição do leitor, isto é, criam o subtexto da obra.
Duas linhas, que soam alternadamente — o tempo presente, o “modo
menor” (tema da morte) e as recordações, o “modo maior” (tema da vida)
— e se cruzam no relato da vida de Kátia; as inúmeras repetições e
retornos de situações, diálogos e imagens, interpretados de modo novo a
cada vez; a culminação, a tensão emocional máxima na “noite dos
pardais”, o capítulo final, no qual se concentram os motivos de todo o
texto precedente, o último acorde, que é o trágico final; a mudança de
ritmo, ora mais lento, ora mais rápido; o contraste entre silêncio e sons —
passos, o riscar de fósforos, batidas de relógio, objetos que caem, pausas,
o fremir das emoções e o léxico correspondente — ou seja, o que
analisámos nos capítulos precedentes do nosso trabalho, tudo isso é que
produz a estrutura musical da novela.
Para além da própria construção, os elementos musicais estão
presentes também em outros níveis; a menção à Música torna-se meio de
representação e encontra reflexo no léxico usado em sentido próprio e em
sentido figurado na forma de imagens, epítetos e comparações.
O pescoço, a exemplo de uma heroína de Turguiênev, parece um braço de contrabaixo... (102)
os defeitos da minha voz, que é seca, abrupta e cantante como a de um beato (102)
114
...entra a minha Lisa e carregando notas de música, pronta para ir ao conservatório (105) ...a Patti podia cantar-lhe bem junto ao ouvido (109)
Ela não descrevia, mas cantava o Volga, a natureza...(121) ..as atrizes dramáticas rebaixavam-se a entoar canções de
bulevar; os
trágicos cantavam quadras... (122) Estamos cantando óperas diferentes. (122) diz com um baixo aveludado(135) (бархатным басом)
É uma canção que já foi cantada. (137) ...baixando a voz toda uma oitava. (156)
Em alguns casos, na tradução, o léxico musical é substituído por
sinónimos; assim, por exemplo, a frase “давайте сначала споемся
относительно того, что такое диссертация" (“vamos, para começo,
afinar-nos em relação ao que é uma tese de doutorado”) aparece como
“vamos acertar os relógios sobre o que é uma tese”.
A atitude em relação à Música torna-se importante meio de
caracterização das personagens. E a formalidade profissional de Liza (o
tema da conversa repete-se a cada vez e versa sobre os aspectos técnicos
da execução e grandes nomes), a falsa e grave praticidade de Hnekker, a
mal oculta incompreensão dela por parte da sua esposa Vária e o
desprezo de Piotr Ignátievitch a ela iluminam vivamente, qual facho de
luz, as qualidades básicas dessas pessoas, ressaltando-as, e, com outros
pormenores, permitem a criação de figuras integrais.
As moças e Hnekker falam de fugas, contrapontos, cantores e
pianistas, de Bach e Brahms, e minha mulher, temerosa de que suspeitem nela ignorância musical, sorri-lhes com simpatia, murmurando: “Isso é encantador...Será possível? Diga-me...”
(128) Se Hnekker e Lisa iniciam em sua presença uma conversa sobre
fugas e contrapontos, sobre Brahms e Bach, ele baixa modestamente os olhos e fica encabulado; envergonha-se de
115
que se fale de tais vulgaridades na presença de gente tão séria como eu e ele. (146)
Não toca nem canta, mas tem não sei que relação com música e canto, vende em alguma parte pianos de não sei quem, frequenta muito o conservatório, conhece todas as celebridades
e dá ordens nos concertos; emite juízos sobre música, com grande autoridade, e, eu notei, os demais concordam com ele de bom grado... Não sou músico e talvez me engane em relação a
Hnekker, que ademais conheço pouco. Mas parecem-me demasiado suspeitas a autoridade e aquela dignidade com que
ele fica parado junto ao piano de cauda, escutando, quando alguém toca ou canta (126)
E, do mesmo modo como símbolos e alguns temas, a relação
do professor com a Música e a sua apreensão dela podem ir dum
oposto ao outro, a depender de a menção a ela estar nas
recordações ou no tempo presente dos apontamentos. Assim, os
sinos e a harmónica [sanfona], no jardim do seminário, e a figura do
maestro, na recordação da leitura duma conferência, tudo isso é a
personificação da felicidade, da esperança, do êxito e da inspiração:
O vento trazia de algum botequim distante o rechinar de uma sanfona e uma canção, ou então uma tróica com guizos passava a toda velocidade junto ao muro do seminário, e isso já bastava
inteiramente para que um sentimento de felicidade me enchesse de súbito não só o peito, mas até o estômago, as pernas, os braços...(134) Um bom regente de orquestra, ao transmitir o pensamento do compositor, executa simultaneamente vinte tarefas: lê a
partitura, agita a batuta, observa o cantor, faz um movimento ora na direção do bombo, ora do corne-inglês etc. O mesmo faço eu,
dando aula. (111)
Nas cenas, em que a personagem principal se encontra sob o
poder duma música real, como no jardim do seminário, ou naqueles
em que, sob a forma duma comparação emocional, como aquando
duma conferência dada por ela, surgem, de modo correspondente, a
natureza real e uma viva imagem sua (o mar), a liberdade, a
116
infinitude do tempo (o futuro do jovem seminarista) e o poder sobre
ele (o talento de conferencista). Ademais, nessas mesmas cenas, os
sentimentos e pensamentos são transmitidos por meio dum léxico
relacionado também com outros tipos de arte, como se o mundo
circundante desabrochasse e se tornasse vasto e multifacetado.
Assim, o tema da música acopla-se ao tema do tempo-espaço.
Ouvia a sanfona ou os guizos cujo som se perdia, e imaginava-
me já médico, esboçava quadros, um melhor que o outro. (134) (no original: pintava quadros)
...sendo então necessário vigiar com muita perspicácia para que os pensamentos se transmitam não na medida do seu acúmulo, mas numa ordem determinada, indispensável à correta
composição do quadro que eu quero pintar. Em seguida, procuro fazer com que o meu discurso tenha estilo literário... (112)
Já no presente, Nikolai Stepánovitch não sente necessidade de
música e foram-se as emoções e as esperanças, que ela suscitava:
...há música sem qualquer necessidade... (119)
E um pormenor amargamente irónico: a harmónica, que tanto o
inspirava antes, agora lembra-lhe o desagradável riso de Kátia:
Kátia ouvi e ri. Tem um gargalhar estranho: a inspiração alterna-se rápida, rítmica e exatamente com expiração: parece tocar sanfona, e, nessas ocasiões, em seu rosto apenas as narinas dão
risada. (140)
A pesar da perda da sensibilidade musical, Nikolai Stepánovitch
preservara-a para os sons e percebe muitas coisas precisamente por
meio deles: passos, toques de sineta, batidas de relógio, tosse, o
ruge-ruge de vestidos, pios de coruja, uivos de cão etc. Pode dizer-
se que a sua percepção acústica é significativamente mais rica do
117
que a visual; nós já assinalámos que praticamente não há tintas no
seu mundo, ao passo que os sons ainda permanecem para ele como
um elo com a vida de rápida fuga e constituem um sinal de que ele
ainda está vivo:
Gosto de prestar atenção aos sons. A dois quartos de mim, a minha filha Lisa profere algo rapidamente, delirando, minha
mulher atravessa a sala de vela na mão e invariavelmente deixa cair uma caixa de fósforos, range um armário ressecado ou inesperadamente o pavio da lamparina passa a zunir – e todos
esses sons por alguma razão me perturbam. (103)
E, no último capítulo, quando Nikolai Stepánovitch está
completamente esvaziado, indiferente a tudo, quando o tempo se
esvai gota a gota e o espaço se retrai até à solidão num
desconfortável quarto alheio, de hotel, parece que tudo se enche de
batidas de relógio, as quais, preponderantes, vem para o primeiro
plano, personificando a vitória do tempo sobre o homem.
Não apenas nas cenas de “modo maior”, que já assinalámos
nas recordações do professor, senão também nas de “modo menor”,
em que o “eterno”, mais do que a qualquer outra coisa, se aproxima
do efémero e final, também aumenta a musicalidade do ritmo:
Quer o céu esteja coberto de nuvens, quer brilhem nele a lua e as estrelas, sempre olho para ele ao regressar para casa, e penso que em breve a morte há de me levar. (141).
E, certamente, em relação a isso, é impossível não lembrar as
últimas linhas:
Não, não se voltou. O seu vestido negro apareceu pela última vez, não se ouviram mais os seus passos... Adeus, meu tesouro! (162)
118
O aumento da carga musical, em alguns episódios, indica
que o germe da ideia do autor, o sentimento tchekhoviano da vida,
deve ser buscado precisamente nessa esfera emocional, inspirada ou
trágica, na esfera do inexplicável, intuitivo e sujeito às leis gerais da
natureza, do tempo e da História e não no campo de reflexões
abstratas especulativa.
4.6 A composição das recordações
Ele tem um belo passado, como a maioria dos
russos cultos. Não há ou quase não há fidalgo russo ou pessoa com formação universitária que
não se gabe do seu passado. O presente é sempre pior do que o passado.78
As recordações das personagens são significativo elemento
estrutural, e a sua introdução no texto constitui um importantíssimo
procedimento composicional da poética de Tchékhov. Elas estão presentes
em muitas das suas obras, principalmente da fase mais tardia; elas são a
lembrança dos anos idos, de acontecimentos, da infância e do “paraíso
perdido”. Na sua análise, é necessário considerar que, refratando-se na
memória da pessoa, os acontecimentos reais deturpam-se, alteram-se.
Para a grande maioria das personagens tchekhovianas, o passado é
sempre melhor do que o presente, e é precisamente nele que elas
procuram pelo que não encontram na rotina diária.
Quase todos os fragmentos dedicados ao passado estão
semanticamente contrapostos ao texto dos apontamentos por meio da
antítese estabelecida do “antes-agora”, vale dizer, estão contrapostos pelo
ritmo, pelo léxico escolhido e pelo significado dos símbolos escolhidos e de
alguns temas, como a música e os animais. A exceção é o relato da vida
de Kátia, cronologicamente mais tardio, isto é, aproximado do tempo
presente corrente.
78 SUVÓRIN, 30.12.1888
disponivel em: https://royallib.com/read/chehov_anton/tom_21_pisma_1888_1889.html#348160
119
No texto da novela estudada por nós, há tanto recordações breves
quanto outras mais minuciosas, as recordações-relatos. Partindo das
sugestões (подсказки), dadas na forma de referências a datas de
acontecimentos históricos e a este ou aquele prazo na vida da
personagem com números concretos, pode reconstituir-se com bastante
completude a biografia do professor. Nessa tentativa, verificámos que, se
extraídas as recordações, caoticamente dispersas pelo texto dos
apontamentos, e colocadas em sequência cronológica, surgirá um quadro
expandido da vida de Nikolai Stepánovitch nas suas etapas principais, mas
por pormenores insignificantes e quase invisíveis acompanha-se a cadeia
das mudanças psicológicas da personagem, até à constituição do caráter,
que observamos nas suas notas, isto é, no último período da sua
existência.
No texto, há uma referência à morte de Skóbelev (que faleceu em
1882), e, a julgar pelo facto de que a própria referência se apresenta no
contexto do acontecimento lembrado, isso ocorrera havia algum tempo
antes. Ademais, o professor Kaviélin, jurista e catedrático da Universidade
de Moscou e da Universidade de Peterburgo, cujo nome ombreia com os
de Pirogov e Nekrássov, falecidos antes de 1882, é citado como a pessoa
com quem a personagem mantivera laços de amizade no passado, e ele
próprio morreu em 1885. O poeta N. Nekrássov morreu em 1877; o
cirurgião N. Pirogov faleceu em 1881. Por isso, é possível supor que o
tempo da ação da novela esteja maximamente aproximado do tempo da
sua escrita: entre 1885 e 1889. Nikolai Stepánovitch, aquando da escrita
dos seus apontamentos, tinha 62 anos. Consequentemente, nascera entre
1823 e 1827, isto é, na metade dos anos 20 daquele século.
Cronologicamente, a recordação mais recuada no tempo é acerca
dum medo infantil no capítulo 4:
Na infância e juventude, tive por alguma razão medo dos
porteiros e criados de teatro em geral, e esse medo conservou-se em mim até hoje. Mesmo agora, eu os temo.
Dizem que nos parece terrível somente o que não se
120
compreende. (144)
Essa observação, feita de passagem, pode vir à lembrança do leitor
no capítulo 5 (“noite de pardais”), em que o adulto prova o mesmo pânico
ante o incompreensível.
O advérbio непонятно (incompreensivelmente) une-se
semanticamente ao conceito de страшно (é terrível). Tal fórmula
encontra-se mais de uma vez em variados contextos de obras de
Tchékhov. Assim, no conto “Medos”, lê-se:
“Tolice! — dizia eu comigo. — Esse acontecimento é terrível somente por ser incompreensível... Tudo o que é incompreensível é misterioso e, por isso, terrível”. (tradução
nossa)79
Em outro, de título parecido, “Medo”:
É terrível o que é incompreensível.(tradução nossa)80
Em “A casa de mezanino”, Míssius pergunta ao pintor:
Mas você não sente medo do que lhe é
incompreensível?(tradução nossa)81
A morte, a cada vez mais próxima, priva a vida da personagem dos
seus contornos costumeiros, torna-a desconhecida, inconstante e
incompreensível, e o medo de Nikolai Stepánovitch, no período de escrita
dos apontamentos, adensa-se e concentra-se até ao extremo. As causas
desse sentimento podem ser reais, como a doença mortal, mas também
irracionais, destituídos duma base definida e explicável. Tal sentimento,
79
A.TCHÉKHOV, Moscou,1976, p.188.
80 A.TCHÉKHOV, Moscou,1977, p.130.
81 A.TCHÉKHOV, Moscou,1977, p.180.
121
ademais, tem um efeito contagioso e é capaz de comunicar-se duma
pessoa a outra, o que ocorre na “noite dos pardais”.
Desse modo, uma recordação brevezinha acerca dum medo infantil
reflete o mesmo problema psicológico, que enfrenta uma pessoa adulta
num período dificílimo da sua vida.
A referência seguinte (em ordem cronológica) ao passado é o relato
do professor a Kátia acerca do seu período de estudos num seminário. O
jovem seminarista, desejoso de ingressar na universidade, devia ter 17 ou
18 anos, o que coloca o episódio entre 1840 e 1844.
Depois que me queixei, vem-me uma vontade de dar largas a uma outra das minhas fraquezas senis: as reminiscências. Falo a
Káttia do meu passado, e, para minha grande surpresa, comunico-lhe pormenores tais que nem suspeitava existirem íntegros na minha memória. Ela me ouve comovida, orgulhosa, a
respiração suspensa. Gosto particularmente de contar-lhe como estudei num seminário e como então sonhava ingressar na universidade.
- Acontecia-me ficar passeando no jardim do nosso seminário...- conto-lhe. _O vento trazia de algum botequim distante o rechinar de uma sanfona e uma canção, ou então uma tróica com guizos
passava a toda velocidade junto ao muro do seminário, e isso já bastava inteiramente para que um sentimento de felicidade me enchesse de súbito não só o peito, mas até o estômago, as
pernas, as braços...Ouvia a sanfona ou os guizos cujo som se perdia, e imaginava-me já medico, esboçava quadros, um melhor que o outro. (134)
A começar já da primeira frase acerca das “minúcias” (no início dos
apontamentos, ele queixa-se da memória), é lembrada a caracterização,
feita por ele de Nikolai, porteiro da universidade:
Somente quem ama, pode lembrar assim. (108)
Nikolai Stepánovitch rememora não um acontecimento, uma ação
ou atitude, mas uma sua sensação, estado de alma. Estilisticamente, esse
episódio relaciona-se com outros dois — um deles está no contexto das
recordações: a leitura de conferências; o outro, no final da novela.
O trecho citado, pertencente ao capítulo 3, lembra a melodiosidade
dos contos maravilhosos e bylinas russos. A melodiosidade e inspiração
122
dessa recordação contrasta enormemente com o ritmo do texto anterior e
do posterior dos apontamentos, como se as suas palavras fossem
pronunciadas por um poeta ou narrador de lendas, não por um cientista,
mais afeito ao estilo dos artigos científicos, e moribundo atormentado por
medos, doença e dúvidas.
Ao leitor apresenta-se uma figura, criada pela imaginação da
personagem e remetida ao passado, uma figura ideal: sadia, talentosa,
dotada dum objetivo na vida, sonhadora, impressionável, cheia das mais
luminosas esperanças e, por fim, um jovem absolutamente feliz. Em todo
o caso, é assim que o professor se recorda, e também assim o percebe
Kátia. De que falta duma ideia geral pode falar-se aqui? A existência do
jovem Nikolai é genuína e harmoniosa; a sensação de felicidade preenche-
lhe não apenas a alma, senão também o corpo. A felicidade é expressão
dessa harmonia interior e da co-participação em tudo o que o cerca, e ela
surge naturalmente, dos passeios pelo jardim do seminário e dos sons de
música que lhe chegam aos ouvidos. A personagem está no limiar duma
vida longa e admirável, na qual se realizarão os mais dourados sonhos. No
trecho, muda não apenas o ritmo, mas também o significado de
elementos simbólicos, como o jardim e a música. O primeiro, aqui, na
lembrança, à diferença do jardim e do jardinzinho à frente da casa nas
páginas do texto restante, é a encarnação da juventude, do sonho, da
vida em flor e das esperanças; a música, por sua vez, liga os sonhos reais
do jovem com a futura profissão a algo elevado, espiritual e
transcendental. Tem-se a sensação geral da harmonia duma pessoa, da
sua alma e do seu corpo com as forças superiores da natureza.
Mais um pormenor interessante nesse trecho: a reação de Kátia.
Semelhante reação da personagem adulta decepcionada, nós não
tornamos a encontrar, a não ser “a expressão de confiança, havia muito
esquecida” ("давно забытого выражения доверчивости") no seu rosto
numa “noite dos pardais”.
Ela me ouve comovida, orgulhosa, a respiração suspensa. (134)
123
Do que vem a seguir, ficamos a saber que Nikolai Stepánovitch,
realizando o seu sonho, ingressa na Faculdade de Medicina da
universidade. O período do seu estudo cai, aproximadamente, na segunda
metade do decênio de 1840.
Por censurar os “seus” estudantes:
Deixam-se influenciar facilmente pelos escritores mais recentes, mesmo de segunda classe, mas não são de todo indiferentes a
clássicos como Shakespeare, Marco Aurélio, Epícteto ou Pascal, e nessa incapacidade de distinguir o grande do pequeno é que se manifesta mais que tudo a sua falta de espírito prático. (139)
podemos supor que ele próprio se entusiasmara com tais autores, no seu
tempo de estudante. E, em seguida, construíra a sua vida, seguindo
princípios tão oportunos e convenientes a ele também quando era um
jovem médico e quando se tornara um cientista mundialmente famoso. O
estoicismo, no transcurso de toda a vida, foi a sua ideia geral “feita em
pedaços”.
Com alguns pormenores completa-se o retrato anterior. O jovem
estudante fuma, gosta de frequentar o teatro e sonha com uma futura
fama:
Um judeuzinho, que me vendia fiado cigarros (107)
Na mocidade, eu frequentara muitos vezes o teatro (119)
Parece-me ridícula a ingenuidade com que, quando moço, eu exagerava a importância da fama e da condição excepcional de que desfrutariam as celebridades. (157)
O episódio-recordação seguinte apresenta o jovem cientista
modesto no período de escrita da sua tese de doutoramento. Assim, ele
situa-se no tempo subsequente à conclusão da universidade, mas anterior
ao seu êxito profissional e fama, aproximadamente, na metade dos anos
50. O caminho é-lhe conhecido havia já três decênios, o que significa que
a personagem tem cerca de 30 anos. É quando ele apaixona-se pela
124
“fininha Vária” .
Ai está o casarão cinzento com uma farmácia; ai existia outrora
uma casinhola, onde havia uma cervejaria; nessa, eu ficava pensando em minha tese e foi ali que escrevi a prímeira carta de amor a Vária. Escrevi-a a lápis, numa folha com cabeçalho
“Historia morbi. “ (106)
Aquela mesma Vária fininha, que eu amei apoixonadamente pela
sua inteligência lúcida e boa, pela alma pura, pela beleza e, como Otelo a Desdêmona, pela “compaixão” em relação à minha ciência?Será est`a minha esposa, a minha Vária, que um dia deu
à luz o meu filho? (104)
O léxico desses fragmentos transborda a ternura e a ternura e o
orgulho não apenas dum pai apaixonado, mas também jovem, ao
nascimento dum filho, o mesmo que é citado uma única vez, no contexto
da falta de dinheiro, e suscita a Nikolai Stepánovitch, apesar duma longa
separação, somente descontenta-mento e irritação. Sente-se que as
recordações são caras ao narrrador, contudo, há alguns pormenores
indicadores de que, para além de amor, na vida da personagem existe, e
desenvolve-se, outra paixão: a ciência.
escrevi a prímeira carta de amor a Vária. Escrevi-a a lápis, numa
folha com cabeçalho “Historia morbi”
...amei apoixonadamente... pela “compaixão” em relação à minha
ciência. (104)
Ao período seguinte, que abrange as esferas mais importantes da
vida da personagem, quando os sonhos do jovem seminarista já se
realizaram por completo, é destinada a maior quantidade de recordações
com factos e pormenores circunstanciados e episódicos acerca da sua
família, amigos, costumes e trabalho:
os meus sonhos se realizaram. Recebi mais do que ousara sonhar.
Durante trinta anos, fui um professor amado, tive colegas exelentes, desfrutei uma fama honrosa. Amei, casei-me por paixão,
tive filhos. Numa palavra, se olharmos para trás, toda a minha vida me aparece como uma composição bonita, talentosamente
125
executada. (134)
O tempo desses acontecimentos situa-se, aproximadamente, nos
anos 60. Por volta desse período, ele já está num matrimônio feliz, com
um filho em crescimento. À essa mesma época, a meio do decênio de 60,
nasce-lhe a filha Liza (está com 22 anos) e, um pouco mais tarde, 18 anos
antes da escrita dos apontamentos (fim dos anos 60), ele adota Kátia, de
sete anos então. As suas recordações das pequenas Kátia e Liza exalam
ternura e enternecimento:
Em criança, gostava muito de sorvete, e eu tinha que levá-la com frequência à confeitaria. O sorvete contituìa para ela a medida de tudo o que era belo. Se queria elogiar-me, dizia: “Você é de
creme, papai”. Chamava um dedinho de pistashe, outro de creme, o terceiro de framboesa, etc. Geralmente, quando ela vinha de manhã dizer-me bom-dia, eu sentava-a nos meus joelhos e,
beijando-lhe os dedinhos, dizia: - De creme...de pistache...de limão...(105)
No dia a dia desinteressante e tedioso irrompe essa breve e viva
recordação, que reproduz o fresco e doce friozinho (холодок) do gelado
(no português europeu; no Brasil: sorvete)82, uma sonora vozinha infantil
e dedinhos de criança.
A corriqueirice, simbolicamente expressa pela paleta negro-branco-
cinzenta, como que floresce com cores variadas e alegres, de creme,
pistache e limão... O jogo de “dedinhos-gelado/sorvete” proporciona
grande prazer a ambos, tendo-se tornado uma tradição diária e
permitindo a expressão do seu mútuo e sincero amor, até tornar-se o seu
oposto, quando a tradição permanece “por um velho hábito” e os
sentimentos já se esvaíram. Nikolai Stepánovitch começa a sentir a
falsidade dessa brincadeira de fim protelado. Se, antes, ele “dizia”
ternamente, agora ele “murmura, e o frio, mais um pormenor simbólico,
lembrador do outrora doce friozinho do gelado/sorvete, no momento
82
A palavra russa para sorvete, "мороженное" (morójennoie), provém de “мороз” (moróz), que é o
frio de temperaturas muito baixas, “de gelar”.
126
presente torna-se sinal de alheamento e vergonha.
Estou frio como sorvete e tenho vergonha(106)
A pequena Kátia, que ficara sem os pais e fora adotada pela família
de Nikolai Stepánovitch, é um ser doentio mas muito confiante e curioso,
suscita ao professor carinho, admiração e pena:
A primeira coisa que lembro e amo nessas recordações é a confiança extraordinária com que entrou em minha casa, com que
se deixava tratar pelo médicos, e que sempre luzia em seu rostinho. Acontecia ficar sentada em algum canto, a face com um pano amarrado, invariavelmente olhando algo com atenção; se me
via então escrever e folhear livros, a minha mulher afanar-se, a cozinheira limpar batata na cozinha ou cachorr brincando, os seus olhos expressavam sempre o mesmo: “Tudo o que se faz neste
mundo é belo e inteligente”. Era curiosa e gostava muito de conversar comigo. Acontecia ficar sentada à mesa, na minha frente, acompanhar os meus
movimentos e fazer-me perguntas. Interessava-se pelo que eu lia, que fazia na universidade, se não tinha medo de cadáveres, onde ia parar o meu ordenado... Achava graça em que os estudantes brigassem e eu os mandasse ficar de joelhos, e ria. Era uma criança dócil, paciente, bondosa. Não raro, eu tinnha que ver como lhe tiveram algo, como
castigavam sem motivo ou não satisfaziam a sua curiosidade; nessas ocasiões, a constante expressão de confiança era acrescida
em seu rosto de tristeza, mais nada. Eu nada sabia interceder
por ela; apenas, ao ver aquela tristeza, vinha-me uma vontade de atraí-la para mim, e compadecer-me dela num tom de velha
babá: “Minha órfã querida!” (118)
Quaisquer crianças que se encontrem em numerosos contos de
Tchékhov, felizes e desditosas, bondosas e más, apresentam uma
característica comum e muito importante para o autor: a sinceridade, a
falta de hipocrisia e de camadas superpostas de reflexões, dúvidas e
ideias adultas. Elas estão em harmonia com o (sistema do) universo,
como a próprua natureza, e é-lhes inata uma sabedoria natural em estado
puro:
Дети святы и чисты. Даже у разбойников и крокодилов они состоят в ангельском чине.
127
As crianças são santas e puras. Até os bandoleiros e os crocodilos lhes dão a patente de anjos. (tradução nossa)83
A Kátia-criancinha, apesar do destino trágico e da doença,
mencionados mais de uma vez no texto, é confiante, risonha e sábia. A
maneira de encarar o mundo, que Nikolai Stepánovitch nota no seu
rostinho infantil (“Tudo o que se faz neste mundo é belo e inteligente”....)
repetir-se-á, numa forma mais complexa, nos pensamentos de Dmítrii
Gúrov, num dos episódios mais pungentes e simbólicos de “A dama do
cachorrinho”:
Gúrov pensava em como, na realidade, refletindo-se direito sobre
isso, tudo é belo neste mundo, tudo, com exceção do que nós mesmos pensamos e fazemos, quando nos esquecemos dos
objetivos elevados da existência e de nossa própria dignidade
humana. (321)
Cada fragmento das recordações constrói-se segundo o esquema da
contraposição ao tempo presente, e o passado, refratado pela consciência
da personagem, é sempre desmesuradamente melhor do que aquele. Em
Liza e Kátia adultas, não encontramos já os traços tão carinhosamente
lembrados pelo narrador; ficaram, no passado distante, a sinceridade, a
confiança e a espontaneidade das crianças.
No entanto, nesse período passado de vida (fim dos anos 60 e início
dos 70), vemos uma família feliz, uma casa repleta de risos infantis e
jogos, em que participam um cão e um gato, uma casa em que à noite pai
e mãe banham juntos os filhos. E como símbolo desse lar apresenta-se,
qual festa diária, o ruidoso almoço de comida simples mas saborosa, e a
sua álacre atmosfera é lembrada pelo professor em contraposição ao
ambiente penoso e tedioso das reuniões à mesa de agora:
Antes, eu gostava do jantar ou era indiferentea ele... O posto de general e a fama privaram-me para sempre do schtchi, dos
83
A. TCHÉKHOV, 02.01.1889 Disponivel em: https://royallib.com/read/chehov_anton/tom_21_pisma_1888_1889.html#389120
128
saborosos bolos de carne, do ganso com maças e da brema com trigo sarraceno. Eles tiraram-me também a criada Agacha,
velhota faladeira e de riso fácil...Não existem a alegria de antes, as conversas desembaraçadas, os gracejos, os risos, não há mais carinhos mútuos nem aquele contentamente que
perturbava as crianças, minha mulher e a mim, quando nos reuníamos na sala de jantar; para mim, homem ocupado, o
jantar era um tempo de descanso e de encontro, e para a mulher e os filhos, uma festa, breve, é verdade, mas luminosa e alegre, quando sabiam que eu, por meia hora não pertencia à
ciência, nem aos estudantes, mas unicamente a eles. Não existe mais a capasidade de se embriagar com um só cálice, não
existem Agacha, nem brema com trigo sarraceno, nem aquele barulho com que sempre se acholhiam os pequenos escândalos do jantar, como uma briga do cachorro e do gato debaixo da
mesa ou a queda do lenço amarrado na face de Kattia para dentro do prato de sopa. (127)
Precisamente aqui, nesse episódio, a mesa (e a reunião à mesa)
aparece no seu significado simbólico direto: personificação da reunião da
família, amigos, do lar e do conforto.
Pode considerar-se um importante pormenor desse fragmento a
presença de animais vivos reais, como já assinalámos; em todos os
demais casos, a eles faz-se referência apenas metafórica ou simbólica.
Para além da família da personagem, há um círculo significativo de
amigos. Ele tinha um amigo, oftalmologista, que lhe era tão chegado, que,
após a sua morte, Nikolai Stepánovitch adotou a sua filha órfã. O seu
talento e glorioso nome, ademais, permite-lhe ter amizade com as
pessoas mais interessantes do seu tempo:b
As suas relações são das mais aristocráticas; pelo menos, nos útimos vinte e cinco a trinta anos, não existiu na Rússia sábio famoso com quem não mantivesse trato íntimo. Atualmente, não
tem com quem manter amizade, mas falando-se do passado, a longa lista dos seus glorios amigos termina com nomes como
Pirogov, Kaviélin e o poeta Niekrrassov, que lhe concederam a sua mais cálida e sincera amizade. (101)
Todos os três, o cientista famoso, o eminente ativista social e o
grande poeta, eram partidários do movimento liberal na Rússia, os
chamados “sessentistas” (“шестидесятники”). Essa recordação deu azo a
129
que, ainda em vida de Tchékhov, se discutisse se Nikolai Stepánovitch era
um “sessentista”, de tanto que a sua figura era típica do representante
dos anos sessenta, tempo da ascensão do movimento social e ideológico
na Rússia. A discussão estendeu-se até à crítica soviética. A nosso ver,
para Tchékhov, que examinava “cada caso separado”, tal tipização não
tinha sentido, e nós não nos deteremos na questão.
Nessa etapa da vida, já se consolidara aquilo que Nikolai
Stepánovitch considerava “uma composição feita com talento”. Contudo,
não sem ajuda do autor, às vezes a personagem deixa escapar algumas
coisas . E, no quadro ideal pintado, o leitor nota alguns pormenores que
escapam ao idílio. Muitos problemas do presente começam no passado.
Assim, o marido e pai feliz reserva-se meia hora por dia para estar
com a família. É possível que tenha sido isso o que ensejou o que, mais
tarde, causaria aflição ao velho professor.
Observo-as, e somente agora, durante este jantar, torna-se
absolutamente nítido para mim que a vida interior de ambas já escapou há muito da minha observação. Tenho a impressão de
que um dia vivi em casa, com a família de verdade, e agora estou jantando como visita, em casa de uma esposa que não é
a verdadeira, e vejo uma Lisa também inautêntica. Passou-se em ambas uma mudança brusca, eu não percebi o processo prolongado segundo o qual essa mudança se processou, e não
é de se estranhar que não compreenda nada. Por que se deu essa mudança? Não sei. (128)
Também para a menina órfã não é doce a vida na nova família. Ela
está constantemente doente e necessita de médicos. É característico que
a sua doença seja relacionada com a face (o que se expressa com uma
faixa atada), um sintoma que lembra, posteriormente, o tique na face do
professor adoecido. Os de casa não lhe querem, castigam-na sem razão e
não respondem às suas perguntas, ela não interessa a ninguém, não faz
falta a ninguém, logo a enviam para uma escola e ela aparece somente
nas férias. É bem provável que o “pequeno escândalo”, a queda da faixa
do seu rosto no prato de sopa, tenha suscitado o riso geral precisamente
sobre ela, o que não foi entendido por Nikolai Stepánovitch. Pode-se
130
compreender por que ela não tende a ficar na companhia de crianças, que
poderiam tornar-se suas amigas, da mulher que lhe subsituíra a mãe, mas
na da única pessoa que nem intervém por ela à vista das ofensas que lhe
fazem, e sente por ela apenas pena. Já isso lhe basta para torná-lo seu
ídolo.
Não admira que a relação entre as mulheres adultas seja de ódio
mútuo.
Tanto Vária como Lisa odeiam Kátia. Esse ódio me é
incompreensível...(125)
Kátia depreza minha mulher e minha filha com a mesma intensidade com que elas a odeiam...
-Que nulidades!...Nulidades! (133)
Gradualmente, a vida do professor toma a forma duma composição
ideal, com que, na juventude, ele pudera somente sonhar e que “se
desfizera em pedaços”, como ele observa a Kátia com tristeza,
posteriormente. É característico que o episódio que a personifica
maximamente, começa como que no presente, e somente no fim o leitor
fica a saber que tudo o que está dito, ficara no passado: a Nikolai
Stepánovitch dói reconhecer essa principal perda até para si próprio.
Eu sei o que hei de expor, mas não como vou fazê-lo, por onde
começarei e como irei terminar. Na cabeça, não há uma frase pronta sequer. Mas basta-me passar os olhos pelo auditório e proferir e estereotipado: “Na aula passada, paramos no...”, e as
frases voam-me da alma numa longa fieira, e, lá vai matéria! Falo com incoercível rapidez, apaixonado, e, parece, não há
força capaz de interromper a torrente do meu discurso. Para discorrer bem, isto é, de maneira não enfadonha, e com proveito para os ouvintes, é preciso ter, além de talento,
habilidade e experiência, deve-se possuir a noção mais nítida sobre as próprias forças, sobre aqueles a quem se dá a aula e
sobre o objeto do discurso. Ademais, é preciso saber o que se pretende, e vigiar tudo atiladamente, não perdendo por um instante sequer o campo visual. Um bom regente de orquestra, ao transmitir o pensamento do compositor, executa simultaneamente vinte tarefas: lê a
partitura, agita a batuta, observa o cantor, faz um movimento
131
ora na direção do bombo, ora do corne-inglês etc. O mesmo faço eu, dando aula. Tenho na frente cento e cinquenta rostos,
que não se parecem entre si, e trezentos olhos que me encaram bem na frente. O meu objetivo é vencer essa hidra de muitas cabeças. Se em cada momento da minha aula tenho
uma noção nítida do grau da sua atenção e da intensidade da sua aprendizagem, ela está em meu poder. O meu outro
inimigo aloja-se em mim mesmo. É a variedade infindável de formas, fenômenos e leis, eu grande número de pensamentos meus e alheios por eles condicionados. A cada momento, devo
ter a agilidade de arrancar desse material imenso o que é mais importante e necessário e, com a mesma velocidade com que
ocorre o meu discurso, revestir o meu pensamento de uma forma que seja acessível à compreensão da hidra e que desperte a sua atenção, sendo então necessário vigiar com
muita perspicácia para que os pensamentos se transmitam não na medida do seu acúmulo, mas numa ordem determinada,
indispensável à correta composição do quadro que eu quero pintar. Em seguida, procuro fazer com que o meu discurso tenha estilo literário, as definições sejam breves e exatas, a
frase, se possível, singela e bonita. A cada momento, devo frear-me e lembrar que tenho à disposição apenas uma hora e
quarenta minutos. Numa palavra, não falta trabalho. Ao mesmo tempo, é preciso fazer de si um cientista, um pedagogo, um orador, e as coisas vão mal se o orador vence o
pedagogo e o cientista, ou vice-versa. Discorre-se um quarto de hora, meio hora, e eis que,
observa-se, os estudantes começam a olhar para o teto, para Piotr Ignátievitch, um apanha o lenço, outro procura sentar-se
mais comodamente, um terceiro sorri aos próprios pensamentos... Isso significa que a atenção está cansada. É preciso tomar medidas. Aproveitando a primeira oportunidade,
digo algum trocadilho. Todos os cento e cinquenta rostos sorriam largamente, os olhas brilham alegres, ouve-se por um
curto tempo o rugir do mar...Rio também. A atenção se refrescou, e eu posso continuar. Nenhuma discussão, nenhum jogo ou divertimento me
proporcionaram jamais o prazer que me dão as minhas aulas. Somente na aula eu podia entregar-me plenamente à paixão e
compreendia que a inspiração não é uma invenção de poetas, mas que existe de fato. E eu penso que Hércules, após a mais picante das suas proezas, não sentia tão doce langor como o
que eu experimentava depois de cada aula (112).
O ritmo dessa recordação é veloz e impetuoso, e o léxico, veemente e
vivo: apaixonado, alma, incoercível, não enfadonha, talento, jogo ou
divertimento, bonita, trocadilho, sorriam, os olhos brilham, rio, refrescou,
a inspiração, doce langor, das suas proezas.
E a pessoa que se ergue diante do leitor, não é apenas um cientista
132
genial, como também uma personalidade multifacetada e de vastos
conhecimentos. No seu monólogo, junto com o tema duma conferência,
há referências à História Antiga e a vários tipos de arte (maestro, pintor,
literato, orador, poeta, cantor, quadro, anfiteatro), à música, ao desporto
(na tradução brasileira, em lugar de “спорт”, traduziu-se “споp” –
“discussão”). Trata-se duma pessoa que se encontra no auge dos seus
sentimentos e do seu intelecto e calcula as suas forças, uma pessoa
caracterizada pela perseguição dum objetivo, desejo de vitória,
despotismo, flexibilidade, autoconfiança, uso da experiência própria e da
alheia, atenção concentrada na tarefa por realizar e espirituosidade. Para
além de tudo isso, ela é um pedagogo e psicólogo magnífico,
extremamente atento aos seus ouvintes e consciente da menor reação
deles.
Todo o episódio está impregnado do espírito da Antigüidade, a que
se alude já no relato acerca do porteiro Nikolai e a sua consciência
mitológica. Testemunham-no o auditório, construído em forma de
“anfiteatro”, e a menção a um orador e à hidra, objeto de um dos doze
trabalhos de Hércules. O próprio professor apresenta-se precisamente
qual poderoso herói da Antigüidade.
No léxico, há notas indicadoras dum fundo belicoso:
Não há força capaz de interromper
O meu objetivo é vencer... em meu poder inimigo
A personagem luta e vence.
Nessa recordação, aparece também o elemento erótico, no qual,
para além do léxico (o prazer de entregar-me plenamente à paixão, doce
langor), se faz referência à picante façanha erótica de Hércules e ao mito
da sua potência sexual: numa única noite, deitou-se com as cinquenta
filhas virgens do rei, que visitaram o seu leito uma a uma e depois
tiveram cada qual um filho dele.
Assim como em outras recordações, alguns elementos da
133
composição, temas e símbolos apresentam-se, nesse trecho, sob outra
luz, e estabelece-se especialmente um paralelo com o sexto e último
capítulo. Nele, por meio do ambiente limitado e estranho do quarto de
hotel e as batidas do relógio, que marcam impiedosamente a passagem
dos preciosos minutos, transmite-se como o tempo e o espaço
literalmente engolem e dissolvem um homem desamparado diante deles.
No fim das suas notas, Nikolai Stepánovitch, novamente chamando-se
“herói” (sou um herói de quem a minha pátria se orgulha (157), reconhe com
amargura: Estou vencido. (159)
Já na citada recordação, têm-se o mar simbólico simplificado, o
elemento natural, o espaço inabarcável pelo olho e o cálculo exato e bem
sucedido do tempo até ao último minuto, isto é, a completa vitória do
homem sobre o espaço e o tempo.
Em lugar de raciocínios monótonos e tediosos e verdades batidas,
não se têm, agora, frases feitas, mas um discurso baseado na inspiração;
uma alma livre (as frases voam-me da alma numa longa fieira), não o
entorpecimento da alma (paralisia da alma), como no último capítulo.
Encontramos, também, outros símbolos, já citados por nós antes: frescor
em contraposição a secura (a qual se manifesta no parágrafo seguinte à
recordação, assim que Nikolai Stepánovitch passa à descrição do seu
estado e a qual ele tenta superar com ajuda de água) e a imagem de aves
no seu livre vôo, cifrada na palavra “fieira”, à diferença da coruja com o
seu pio sinistro, sobre o fundo do “tédio”, que se repete várias vezes e
“não tediosamente”.
Temos, diante nós, um quadro figurado duma vida consciente feliz
e genuína, que abarca todas as esferas principais. Tal vida começa
inspirada e finda feliz, na nota mais alta.
O único porém que ensombrece o quadro (o que o professor
descreveu) é apenas a magnífica conferência dum estudioso genial. O que
existe além do âmbito do seu trabalho, ou seja, a sua casa, a família e
pessoas próximas, não participam em “tal” vida, e até os estudantes,
pelos quais tudo isso acontece, constituem, para ele, tão-somente uma
134
hidra multicéfala, multiocular e informe, com que ele se bate e que
precisa vencer.
E, finalmente, as recordações mais longas, cronologicamente as
últimas — o relato da vida de Kátia.
Ela tem vinte e cinco anos, e a evolução da sua paixão pelo teatro
começara dez anos antes (Nikolai Stepánovitch tem já cinquenta e dois.).
O tempo desse período, assim, é convencional, do início dos anos setenta
ao início do decênio seguinte.
A recordação está construída dum jeito, que o leitor recebe a
informação logo de duas vozes — o relato de Nikolai Stepánovitch e a
carta de Kátia — uma parte dos quais existe na exposição do professor, e
parte é citada por ele.
Na trajetória de vida dele insere-se a trajetória de vida de Kátia,
como se em ritmo rápido repetindo etapas e estados psicológicos
percorridos por ele: paixão, entusiasmo, esperanças, sonho realizado,
profissão prazerosa, felicidade, amor, planos para o futuro, decepção,
naufrágio das esperanças e a tentativa de suicídio (morte simbólica).
Em conformidade com isso, muda a estilística. Todo o espisódio está
impregnado de teatralidade e do léxico cênico (peça, desempenho,
saguão, camarote, monólogo, receitas, ensaios, papéis, palco, público) e,
no todo, lembra uma peça curta — perpassa a vida duma jovem mulher,
esvaziando-a e esmagando-a, tornando decepcionada e cínica uma alma
jovem, ardente e crédula. Com meios mínimos (a personagem conta com
indiferença o que ocorre, e a própria ação passa-se algures, longe), o
autor mostra o processo dessa mudança. Alguns fragmentos da biografia
de Kátia repetir-se-ão na vida de Nina Zariétchina da futura “A gaivota”.
O teatro está presente, aqui, em várias hipóstases, como sonho,
como profissão e como empreendimento comercial:
Kátia passou a escrever-me que seria bom construir em alguma
cidade do Volga um grande teatro, em base de sociedade anónima, e atrair para a empresa comerciantes ricos e
armadores; as receitas seriam enormes, e os atores teriam
135
participação nos lucros (121)
E como recinto:
Como outrora, nem nos corredores nem no foyer eu consigo encontrar um copo de água limpa. Como outrora, os criados
me impõem uma multa de vinte copeques pela minha peliça (119)
O caráter ilusório e enganoso da vida teatral e o cruzamento de
paixões falsas com o verdadeiro sofrimento aproximam esse episódio do
estado de espírito reinante no segundo capítulo. E Nikolai Stepánovitch,
conscientizando-se da sua hipocrisia, extrai palavras precisamente do
léxico teatral:
Viajara quase quatro anos, e, todo esse tempo, devo confessar,
desempenhei em relação a ela um papel bastante estranho e pouco invejável.(123)
Mas Kátia, no início do seu caminho, não nota essa dualidade; para
ela, o teatro é a vida. O seu maravilhado monólogo repete quase
textualmente as apaixonadas palavras do professor acerca da Ciência:
Ela me assegurava que o teatro, mesmo na sua forma atual,
estava acima da sala de aulas e dos livros, acima de tudo no mundo. O teatro era a força que reunia em si todas as artes, e os atores, uns missionários. Nenhuma arte e nenhuma ciência,
isoladamente, era capaz de atuar tão forte e radicalmente sobre a alma humana como o teatro, e não era, portanto, em
vão que um ator de importância média desfrutava no país uma popularidade muito superior à do melhor cientista ou pintor. E nenhuma atividade pública podia trazer tão grande prazer e
satisfação como a teatral. (120)
Nenhuma discussão, nenhum jogo ou divertimento me
proporcionaram jamais o prazer que me dão as minhas aulas. Somente na aula eu podia entregar-me plenamente à paixão e compreendia que a inspiração não é uma invenção de poetas, mas que existe de fato. E eu penso que Hércules, após a mais picante das suas proezas, não sentia tão doce langor como o
que eu experimentava depois de cada aula. (112)
Emitindo o suspiro derradeiro, ainda hei de crer que a ciência
constitui o mais importante, o mais belo, o mais necessário na
136
vida do homem, que ela sempre foi e será a manifestação mais elevada do amor, e que somente por meio dela o homem
vencerá a natureza e a si mesmo. Essa fé talvez seja ingênua e injusta em seu fundamento, mas eu não tenho culpa se creio assim e não de outra maneira; sou incapaz de vencer em mim
essa fé. (113)
Para além duma quantidade de intersecções, chama a atenção a
mesma adoração da profissão escolhida, que une as personagens; em
ambos os casos, ela torna-se quase um culto religioso. Nikolai
Stepánovitch até fala em crença, e, no caso de Kátia, o autor escolhe
palavras reforçadoras dessa característica: súplice, rezava, missionários,
santa ingenuidade, cantava.
Para Kátia, o teatro é a encarnação da harmonia da vida, e, quando
a realidade cessa de corresponder às suas expectativas, como no caso de
Nikolai Stepánovitch, os culpados são os seus colegas e o ambiente. E
também, como ele, no fim de contas, ela reconhece a sua própria
incapacidade.
Somente as descrições do período, em que Kátia estava enlevada e
feliz, lembram estilisticamente as recordações anteriores. No todo, porém,
nessa descrição dum lapso de tempo, não há já mudança do signo
semântico nos motivos, nem nos símbolos; ao contrário, estabelecem-se
paralelos com o tempo corrente real das notas. Sobretudo, é já conhecido
o ritmo monótono. Assim como nos primeiros capítulos, nós vemos
uma contagem exata do tempo:
Antes de passar meio ano, recebi uma carta altamente eufórica e poética ...(121) Em todo caso, tudo pereceu correr bem um ano e meio ou
dois: Kátia estava amando, acreditava em seu trabalho e era feliz...(121)
Viajara quase quatro anos, (123)
e as reflexões pesadas e didáticas dum velho ranzinza.
Aparece várias vezes a palavra "скучный" (tedioso):
137
...A desgraça de ter espírito não é uma peça cacete, sopra
sobre mim do palco aquela mesma rotina, que me enfadava quarenta anos atrás... (120) ... «Горе от ума» не скучная пьеса, то на меня от сцены
веет тою же самой рутиной, которая скучна мне была еще 40 лет назад84
Em resposta, enviei a Kátia uma carta comprida e, devo
confessar, muito enfadonha. (122) В ответ я послал Кате длинное и, признаться, очень скучное письмо.85
...cartas compridas, maçantes, que popodia muito bem ter
deixado de escrever. (123) ...длинные, скучные письма, которых я мог бы совсем не писать.86
Pode notar-se que, nos exemplos supracitados, no texto
tchekhoviano repetem-se скучно e скучный, ao passo que, na tradução
brasileira, empregam-se os sinónimos cacete, enfadonha, maçantes.
O meio de Kátia cometer suicídio — envenenamento — faz eco ao ar
“enve-nenado” (Na tradução brasileira, omitiu-se a frase “Кажется, Катя
пробовала отравиться” — Parece que Kátia tentara envenenar-se.).
“Табун диких лошадей” (Manada de cavalos selvagens) tem o mesmo
matiz negativo que o pio de coruja e o uivo de cão; "зловещий симптом"
(sinistro sintoma) e traz à lembrança "зловещее зарево" (o reflexo
sinistro e enorme dum incêndio) da tempestuosa noite dos pardais, e a
personagem procura "стакан чистой воды", “um copo de água pura”
(salvação simbólica da secura-tédio), como no primeiro capítulo e no
quarto.
É também sintomática a mudança de motivo musical: se o início da
paixão de Kátia se transmite pelo verbo cantava , então, em seguida,
surge um amargo e fantástico “Estamos cantando óperas diferentes”
(122). Para além disso, para Nikolai Stepánovitch, “ ...há musica sem
84 A. TCHÉKHOV, Moscou,1977, p.270 85 -------------------------------- p.272 86 --------------------------------p.273
138
qualquer necessidade” (119).
E, pela primeira vez nas recordações, surge o tema principal das
notas, o tema da morte: “Enterrei ontem o meu filho” (123).
Para além das provações de Kátia, como antes, no nosso campo de
visão, está a própria personagem-narrador. De sob o véu do dever e dos
cuidados de tutor, o professor deixa transparecer uma clara indiferença
pelos sofrimentos de alguém do seu círculo mais próximo. Até nos
momentos mais trágicos da vida de Kátia, ele experimenta apenas
confusão, embaraço e estranhamento. As frases incisas "кажется"
(parece), "мог догадаться" (pude perceber) e "надо думать" (é preciso
pensar) expressam inexatidão e indecisão e, no todo, falta de interesse:
...não ter tido tempo e vontade de observar o início e desenvolvimento da paixão...(118)
Ela cansava-nos com as suas conversas contínuas sobre teatro. Minha mulher e meus fillhos não a ouviam. Somente
eu não tinha coragem de recusar-lhe atenção. (119) Nunca partilhei os arrebatamentos teatrais de Kátia. (119)
E um belo dia, Kátia ingressou numa companhia e partiu se
não me engano para Ufá (120)
Mais tarde, por algumas alusões, pude perceber que ocorrera
uma tentativa de suicídio. Parece que estivera depois gravemente doente.(123)
É preciso assinalar que, no presente caso, os próprios pensamentos
acerca do teatro ocupam a personagem-narrador muito mais do que a
doença de Kátia e a morte do filho dela. Temos aqui, diante de nós, o
mesmo caráter formado, o mesmo autor do diário, apenas ainda não
adoecido, não torturado pela insónia e por “pensamentos envenenados”.
O fragmento, tanto pelo tempo quanto pelos caracteres formados,
está maximamente aproximado do tempo corrente das notas.
Testemunha-o a última frase dessa recordação, frase que é uma ponte
entre o passado e o presente:
139
Atualmente, Katia vive a meia versta de minha casa. (123)
Havendo distribuído cronologicamente as recordações da
personagem na linha composicional da novela, acompanhadas cada qual
duma análise, nós vimos o professor no transcurso de todas as etapas e
em cada decénio da sua vida; mais do que isso, nós assinalámos como se
processaram nele algumas mudanças graduais: afastamento dos parentes
próximos, substituição de sentimentos e emoções por reflexões, tudo o
que o levou à sensação da perda de “algo importante” na vida, o que ele
próprio, na sua forma habitual, chamou de “idéia geral”. E, se
parafrasearmos a observação perspicaz de Kátia,
Não tem sensibilidade, não tem ouvido para a arte. Esteve ocupado a vida inteira e não teve tempo de adquirir essa
sensibilidade.(150)
poderemos dizer que ele não teve tempo, nem vontade, de adquirir a
capacidade de compreender a vida e apreciá-la.
4.7 Pormenor
É impossível estudar a obra de Tchékhov, sem tratar da
especificidade dos pormenores usados por ele. Precisamente a concisão, o
impressionismo, o simbolismo, a sutilíssima pincelada, capaz de transmitir
tanto uma imagem quanto uma sensação e um estado de espírito e
caracterizar o mundo interior das personagens, especialmente quando tal
contradiz as suas próprias palavras e ideias, tudo isso é uma das
principais características do estilo do escritor. O pormenor usado por
Tchékhov pode ser, ao mesmo tempo, material, trivial e simbólico, isto é,
dotado de significado tanto direto quanto figurado, e constituir
simplesmente uma minudência lírica e um meio do subtexto.
Z. Khainadi, ao analisar a diferença entre o pormenor em Tolstói e
em Dostoiévski, chama a atenção para o facto de que, dada a pouca
extensão das obras de Tchékhov, o pormenor insignificante está
140
maximamente concentrado e tem uma carga ideológica significativa,
tornando-se um importante componente da integridade e unidade da
composição87. Nisso reside a dificuldade e variedade da sua interpretação.
Encontram-se também pormenores caracterizadores , simbólicos ou
fortuitos, que migram de texto em texto. Para as obras escritas em
primeira pessoa isso tem um significado especial, porquanto é
simultaneamente opinião tanto da personagem-narrador quanto do autor.
Assim, por exemplo, em “Uma história enfadonha”, Nikolai Stepánovitch
caracteriza os olhos de Hnekker como “de caranguejo”, expressando, com
isso, a sua grande antipatia a ele. Mas “olhos de caranguejo” já
apareceram em textos de Tchékhov, e o que é especialmente importante,
em contos da fase inicial, na qual ainda não surgira um dos princípios
básicos do escritor, a objetividade, e isso significa a atitude do próprio
autor está expressa muito claramente:
Kaléria Ivánovna, comprida e magra morena, de sobrancelhas
pretíssimas e olhos de caranguejo saltados, ia ver Egóruchka
todos os dias. (tradução nossa)88
Lá pandegavam... Sobre a mesa havia garrafas. À mesa
estavam sentados algumas figuras com olhos de caranguejo
saltados (tradução nossa)
Assim, graças a um pormenor-metáfora, que migra dum texto a
outro, pode concluir-se que à opinião do professor se une a do autor,
agindo sobre o leitor e reforçando a impressão negativa geral, causada
por Hnekker. É particularmente polémico o pormenor casual, “fortuito”,
que, à primeira vista, parece não ser meio de expressão dalguma
característica e, pelas leis da literatura “pré-tchekhoviana”, não seria
necessário ao texto ou, pelo menos, não obrigatório. Como já
87 Disponivel em: http://lit.1september.ru/article.php?ID=200203005
88 A.TCHÉKHOV, Moscou,1974, p.418.
141
mencionámos no nosso trabalho, tal particularidade do estilo tchekhoviano
foi notada pelos críticos mais talentosos ainda durante a vida do escritor,
porém, não havendo sido compreendida, foi percebida como defeito,
incapacidade ou falta de vontade de selecionar o material e subordiná-lo a
uma ideia (Mikhailóvski). Permanece aberta até hoje e é polémica a
questão de por que Tchékhov, para quem, pelo seu próprio aforismo, “a
concisão é irmã do talento” , introduz minudências aparentemente
desnecessárias em textos harmonicamente construídos, em que cada
elemento se enquadra num sistema determinado. A. P. Tchudakov, em
estudo do mundo dos temas e acontecimentos de Tchékhov, julga que os
pormenores materiais são escolhidos não para ilustração dalguma ideia,
mas para a criação duma ilusão de naturalidade, e precisamente a
“fortuidade” é o princípio organizador do sistema literário tchekhoviano
em todos os níveis; o objeto “insignificante”, desse modo, adquire os
mesmos direitos do caracterizador. E. S. Dóbin, por sua vez, afirma que
o pormenor, em Tchékhov, torna-se um foco semântico, um
condensador da ideia do autor, um meio de compensação do enredo
frouxo89. Com a simplicidade e o ordinário, corriqueiro, a narrativa
de Tchékhov enche-se e alastra-se às custas do papel especial que o
pormenor desempenha no texto.
А. Stepánov90 assinala dois níveis de “fortuito” no mundo artístico
de Tchékhov: o “fortuito” para o leitor, que é incapaz de ligar o fragmento,
o pormenor, com a integralidade do texto, e o “fortuito” para a
personagem. No primeiro caso, o fortuito apresenta-se, vale dizer, é
percebido pelo leitor ou como sinal de imperfeição da forma ou como
presença duma integridade do mundo não selecionada, e a solução da
questão acerca da sua função, no tempo presente, é impossível. Para o
estudioso, o tratamento textual vem a ser importante apenas no caso de
exame do “fortuito” para a personagem, quando desponta o embaraço das
89
E.DÓBIN, Leningrado, 1981.
90 Iz veka XX v vek XXI, Moscou, 2007, p.270.
142
personagens ante a inexplicabilidade ou fragmentaridade do mundo, o que
é característico do texto tchekhoviano, uma vez que, no seu sistema
literário, existe um paradoxo: qualquer processo que tenha um objetivo
ou função, não atinge o objetivo e não desempenha nenhuma função.
Nós concordamos com os estudiosos que afirmam que nenhum
elemento do texto tchekhoviano, — pormenor, frase, personagem ou
situação, — é alheio a ele; ao contrário, cada qual deles está ligado com
os outros que formam a composição da obra, e, em conformidade com
isso, pode encontrar-se uma certa lógica, uma explicação ao que, à
primeira vista, é percebido como “fortuito”.
A nossa hipótese é que o pormenor “fortuito” constitui um
importantíssimo meio do subtexto autoral e como tal desempenha
duas funções principais na novela estudada. Ao focalizar em si a
atenção do leitor, ele funciona no nível do subconsciente e da
intuição quase imperceptivelmente, em primeiro lugar, ao traçar
paralelos associatórios entre as situações e as personagens e, com
isso, manifestar, por trás da opinião do professor, a visão do autor
acerca delas, e, em segundo, ao trabalhar para a ampliação do
tempo e do espaço literário, isto é, para a criação do cronótopo da
novela.
4.8 personagens
Em “Uma história enfadonha”, à diferença de muitos outras
obras de Tchékhov, não há descrições da natureza, nem, em geral,
nenhumas descrições (à exceção do interior do apartamento de
Kátia); nelas, os pormenores, a par da estrutura rítmica, costumam
pôr a descoberto a atitude do autor em relação ao que se passa.
Nikolai Stepánovitch, ocupado em escrever apontamentos, está
concentrado no seu mundo interior e nas pessoas do seu convívio, o
que leva a que o pormenor desempenhe o principal papel na
revelação das figuras das personagens, tanto das centrais quanto
143
das aparecidas uma única vez mas, apesar disso, merecedoras de
descrição, bem como das episódicas, citadas de passagem nas
recordações. Todas elas, inclusivamente as últimas, estão de certa
maneira incluídas na composição; entre elas, há laços, estendem-se
fios e sublinham-se paralelos, aguçando a atenção não apenas para
a semelhança dos traços dominantes da personalidade, mas, às
vezes, também para a completa disparidade entre eles. É
especialmente importante atentar para pormenores e personagens
casuais, porquanto eles, que não têm importância para o narrador, é
que constituem o meio de expressão do subtexto do autor.
No estudo da novela, em relação às personagens, devemos
começar pelas pessoas mais próximas de Nikolai Stepánovitch, ou
seja, os membros da sua família, representada por três mulheres: a
esposa Vária, a filha Liza e a enteada Kátia (há um filho, citado de
passagem); para tal, é preciso recordar algumas particularidades do
período histórico em que se escreveu a obra.
No final do século 19, novas idéias acerca da questão
feminina (o papel da mulher na família e na sociedade, a
possibilidade de divórcio, educação e trabalho, emancipação etc.)
desencadearam acesas discussões, subentende-se, inclusivamente
em páginais de jornais e revistas e na literatura91. O tema era tão
importante e interessante para Tchékhov, que ele, sendo ainda
estudante do quarto ano de Medicina, se põe a escrever um trabalho
científico, “História da autoridade sexual”, no qual, sob influência de
Darwin, pretendia estudar as relações entre os sexos no processo
histórico; o tratado não foi concluído, mas podem encontrar-se ecos
91
No livro Чехов и проблема идеала (Tchékhov e o problema do ideal), M. Odiésskaia analisa em
minúcia o desenvolvimento desse processo na literatura russa.
144
seus em muitas obras do escritor.
A esse candente tema dedicou-se a novela “Sonata a
Kreutzer” (1891), de Tolstói. Obra sintonizada com a época, ela,
embora discutível, causou forte impressão aos leitores,
arregimentando uma enorme quantidade tanto de partidários
quando de adversários das ideias de Tolstói, e ensejou uma nova
vaga de discussões. Iniciada em 1887, concluiu-se em Agosto de
1891. Isto é, a última etapa da sua escrita coincide com o período
de escrita de “Uma história enfadonha”. Crê-se que Tchékhov a haja
lido somente após a sua publicação. No entanto, ainda antes da
conclusão, o manuscrito de Tolstói, por obra da sua esposa, Sófia
Andréevna, e dos seus amigos e à revelia do escritor, foi várias
vezes copiado a mão e chegou até a ser publicado em litografias já
na metade de 1889 e, assim, era já conhecido do público muito
antes de ser levado ao prelo. No mesmo ano de 1889, Tchékhov,
simultaneamente com “Uma história enfadonha”, continuou a
escrever um romance, mas, já pelo beirar do fim do ano, pô-lo de
parte e não o retomou. Muito desse romance, depois, foi para obras
suas, mas algo foi parar às Obras reunidas como inconcluso, como o
conto "Письмо" (“Carta”)92, em que se fala, muito provavelmente,
de não outra coisa que não de “Sonata a Kreuzer”. A data exata do
conto, mais exatamente, desse fragmento de romance não
concluído, é desconhecida, mas, em todo o caso, ele não foi escrito
depois do fim de 1889, isto é, antes da publicação da referida obra
de Tolstói.
Tal facto, a par de outros93, permite-nos supor que também
92
Há três contos com tal título; referimo-nos ao datado de 1889.
93 É difícil imaginar que Tchékhov, que estava sempre a par das novidades literárias e para quem
Tolstói constituía o maior vulto da literatura, pudesse ter deixado passar o manuscrito tolstoiano
145
Tchékhov se incluía no número de leitores conhecedores da novela
tolstoiana ainda em manuscrito e precisamente no período em que
estava a escrever “Uma história enfadonha”. A partir dessa
suposição, alguns paralelos entre as duas novelas, em relação ao
tema da mulher e ao do matrimónio, podem ver-se não somente
como tendências do tempo, senão também como referência direta
de Tchékhov à rumorosa obra do seu confrade mais velho. E, apesar
de toda a diferença de tratamento da questão feminina, a
semelhança entre “Sonata a Kreuzer” e “Uma história enfadonha”
manifesta-se não apenas no nível do tema, mas também no da
composição (a forma de confissão, a importância do subtexto
musical) e até em alguns aspectos concretos, relacionados,
sobretudo, com um determinado tipo feminino e convenções sociais
referentes ao casamento e às relações sociais.
Assim, das três mulheres de “Uma história enfadonha”, duas, a
esposa e Liza, apesar da “individualização de cada caso em particular”,
mostram-se como que ilustração do relato de Pósdnychev, personagem de
“Sonata a Kreuzer”. De acordo com as suas ideias, o objetivo vital das
mulheres é estender a rede e atrair homens para a armadilha, o
casamento. Para a consecução disso, empre-ga-se todo um arsenal de
meios, que vai duma roupa e dum comportamento tentadores à
pretensão a interesses comuns com os homens e a um alto nível
espiritual e intelectual.
Experimente dizer a verdade a alguma das mães ou à própria moça, isto é, que elas estão ocupadas unicamente com a caça a
algum noivo.Que ofensa, meu Deus! Mas todas elas só fazem isso, e não têm nada mais por fazer. E o que é terrível, é ver, às vezes, ocupadas com isso moças bem novas e inocentes. E mais uma
vez, se isso ao menos se fizesse abertamente... Mas é tudo um embuste. “Ah, a origem das espécies, como é interessante! Ah, Lisa interessa-se muito pela pintura! O senhor irá à exposição?
Como é instrutivo? E o passeio de troica, e o espetáculo teatral, e a sinfonia? Ah, como é admirável! A minha Lisa é louca por música. Mas por que o senhor não tem essas mesmas convicções?
E andar de barco! ...” E o pensamento é sempre o mesmo: “Toma, toma-me, toma a minha Lisa! Não, a mim! Ora experimenta ao
146
menos!...*
Cego, enganado e incapaz de resistir, o homem cai nas bem armadas
“ciladas sexuais”.
Desse modo, realiza-se um casamento por amor, precedido por
uma alegre animação bem torpe.
Durou pouco, o meu noivado. Não posso lembrar agora esse tempo sem um sentimento de vergonha! Que ignomínia!94
Após algum tempo, cai a venda dos olhos do homem, e ele vê
o que lhe parece que a mulher na realidade representa — a sua
infâmia, estreiteza de horizontes e dependência em relação ao
homem. Por mais feliz que um matrimónio tenha começado, com o
tempo torna-se insuportável, os cônjuges começam a sofrer. E
sobretudo a mulher, absorvida pela procriação, pelo dia-a-dia, pelos
inúmeros temores e tribulações inevitáveis, se a família tem filhos:
A maior parte das mães sente justamente isso e, às vezes, dizem-no, sem querer, assim mesmo. Pergunte à maioria das mães do nosso círculo de gente abastada, e elas lhe dirão que,
devido ao medo de que as crianças adoeçam e morram, não querem ter filhos e que não querem amamentar, se já deram à luz (...). O prazer que lhes dá uma criança com o seu encanto, o
encanto dessas mãozinhas, perninhas, de todo o corpinho, o prazer proporcionado por uma criança é menor que o sofrimento experimentado por elas, já não digo em caso de doença ou perda
da criança, mas pelo simples medo dessa possibilidade.95
As analogias com “Uma história enfadonha” são claras. Nikolai
Stepánovitch, outrora ardentemente apaixonado pela bonita, doce
de alma, inteligente e esbelta Vária, “que se comiserava” da ciência
dele, agora fica perplexo, ao olhar para a velha, gorda e desajeitada
mulher de expressão facial embotada. Parece que Vária está a
94 Idem, p. 188.
95 Idem, p. 204.
147
repetir-se na bonitinha e jovem Liza; a semelhança das duas é
citada pelo narrador:
Tem vinte e dois anos. Parece mais jovem, é bonita e lembra um
pouco a minha mulher quando moça. (105)
E o caminho de Liza na vida desenvolve-se pelas mesmas
regras com as mesmas convenções adotadas pelo círculo deles, tal
como o da sua mãe e das mulheres referidas pela personagem de
Tolstói:
Você pode ser cem vezes cavalheiro e conselheiro privado, mas, se tem uma filha, nada o garantirá contra o que há de pequeno-burguês naquilo, que o ato de cortejar, de pedir a mão e o
casamento introduzem em sua casa e na sua disposição. Eu, por exemplo, não posso de maneira alguma conformar-me com a expressão triunfal que aparece em minha mulher sempre que
Hnekker está em nossa casa, não posso também conformar-me com as garrafas de Lafitte, vinho do Porto e xerez, postas na mesa unicamente em sua intenção, para que se convença com
seus próprios olhos como vivemos farta e luxuosamente. Não suporto também o riso sacudido de Lisa, que ela aprendeu no conservatório, e o seu jeito de entrecerrar os olhos, quando há
homens em nossa casa... Minha mulher e os criados murmuram misteriosamente que “é o noivo”... (126)
E, admitida a hipótese de Tchékhov haver lido o manuscrito de
Tolstói no período de escrita de “Uma história enfadonha”, tornar-se-
á óbvia a escolha não por acaso do nome “Liza”, se considerarmos o
supracitado trecho de “Sonata a Kreuzer” (”A minha Liza é louca por
música”...) e, principalmente, o facto de a filha adorada por
Pósdnychev também chamar-se Liza.
Segundo a lógica da personagem de Tolstói e deste próprio,
por mais que o casamento se tenha realizado por um amor feliz e
mútuo, a mulher, especialmente sobrecarregada pela criação dos
filhos, que lhe trazem incontáveis sofrimentos, será sempre infeliz. É
infeliz a Vária de Tchékhov, apesar da dignidade, fama e o status de
148
general do marido. Toda a sua vida concentra-se na família e
somente nesta, daí o “seu jeito de chamar o meu ordenado de nosso
ordenado, o meu chapéu de nosso chapéu.” É permanente a sua
preocupação com os filhos já crescidos, com o facto de que a
sociedade notará que Liza está pobremente vestida, com a situação
do noivo dela, com o filho, com o oficial militar: “O menino está em
país estranho, o soldo é pequeno...” Esses incessantes pensamentos
e cuidados preenchem-lhe toda a existência, e a sua característica
permanente tornam-se as lágrimas:
Minha mulher se assusta, uma expressão de dor torturante aparece-lhe no rosto. -Pelo amor de Deus, Nicolai Stiepanovitch! - implora-me
soluçando. -Pelo amor de deus, tire de mim este peso! Eu estou sofrendo! ...Ela aperta um lenço contra os olhos e vai chorar no seu quarto(130)
...minha mulher de súbito empalidece e solta um grito alto, com uma voz desesperada, que igualmente não é a sua...ouço por
pouco tempo um choro...148) Abro a porta, descerro valentemente os olhos e vejo minha
mulher. Tem o rosto pálido, os olhos de choro (153)
Dois traços principais caracterizam a sua personalidade; o
primeiro, como já foi dito, é a limitação do seu mundo interior aos
filhos; o segundo, a parcimónia e até avareza. Ambos intensificam-
se por possuírem determinados paralelos no texto. Assim, o primeiro
liga-a com uma personagem, que passa quase despercebida nas
recordações do professor:
Uma mulher gorda, que gostava dos estudantes porque “cada
um deles tem mãe”. (107)
O segundo manifesta-se, se notarmos um pormenor fortuito
no seu vulto. Ao passar brevemente pelo gabinete do professor,
banhada e recendente a água-de-colónia, ela, contudo, está
149
“despenteada”. Tal pormenor não acrescenta nada à sua
caracterização, mas obriga-nos a recordar outra personagem, de
penteado negligente, melenas desprendidas dele e ganchos
[grampos] de cabelo que caíam constante-mente: Kátia. Para que
chama o autor a nossa atenção e que é que pode unir mulheres tão
diferentes, tão opostas entre si em todas as suas manifestações? Tal traço
é sua atitude absolutamente anormal de ambas em relação ao dinheiro,
embora também levada a dois polos: a mesquinha avareza da esposa e a
perdularidade de Kátia.
...todas as manhãs, fala meticulosamente...de que o pão, graças a Deus, ficou mais barato, enquanto aaçucar encareceu de dois
copeques...104)
..serqá possível que esta mulher velha, muito corpulenta,
desejaitada, com uma expressão embotada de preocupação mesquinha e de temor pelo pedaço de pão, de olhar embaçado
pelos pensamentos constantes sobre dívidas e pobreza, que sabe falar apenas de despesas e sorrir unicamente aos preços baixos...(104)
E agora, a respeito de Kátia. Ela vem ver-me todos oa dias à tardinha, e naturalmente tanto os vizinhos como os conhecidos
não podem deixar de notá-lo. Vem por um instante e leva-me consigo para passear. Tem cavalo próprio e uma carruagem novinha, comprada este verão. Em geral, ela vive à larga: alugou
um palacete com um grande jardim, e transportou para lá toda a sua mobília da cidade, tem duas criadas, um cocheiro...Pergunto-lhe com frequência:
-Kátia, com o que você vai viver quando esbanjar o dinheiro da herança de seu pai? – Então vamos ver.
– Esse dinheiro, minha amiga, merece ser encarado com mais seriedade. Foi ganho por um homem de bem, por meio de trabalho honesto.
– O senhor já me disse isso. Eu sei. (149)
É preciso, também, assinalar que, não obstante a clara semelhança
entre as posições de vida de mãe e filha, Liza, apesar de tudo, pertence já
a outra geração, e esta absorve novas ideias e é um tanto mais livre das
convenções. Testemunha-o o facto de, sendo carne da carne da sua
mãe, ela, porém, decide-se a um casamento secreto e escandaloso aos
150
olhos da sociedade.
No todo, Tchékhov não compartilhava as ideias de Tolstói acerca
questão feminina e não considerava a concupiscência masculina como
causa da ausência de direitos e humilhação da mulher.96
No concernente a Kátia, a figura feminina típica, pintada por
Tolstói, não corresponde a ela.
À diferença das outras personagens, com a exceção, é claro,
de Nikolai Petróvitch, Kátia foi notada pela crítica ainda em vida de
Tchékhov.
A sua figura foi tratada de maneira unânime: ela repete a tragédia
do professor, tal como ele, não consegue encontrar uma “ideia geral”
na vida, recorre a ele, à única pessoa próxima, por conselho, e ele
não sabe quê responder-lhe, com o que sublinha a sua incapacidade.
Ambos os dois, apesar do mútuo apego, não escutam nem
compreendem um ao outro, como o provam a última cena da “noite
dos pardais” e o final. Kátia suscita aos críticos ora irritação, ora
pena, no entanto, é preciso assinalar que eles sempre a examinam
apenas sobre o fundo do vulto de Nikolai Stepá-novitch, como o
reflexo deste ao espelho, como a última, a mais convincente, prova
da vida arruinada do professor. Liátski vê-a como uma mandriã
estouvada e nervosa, não especialmente inteligente, que diz o que
lhe vem à cabeça, pensamentos maus, mais do que tudo, e como
pessoa exasperada pelo vazio e pela inutilidade da sua vida. (p.
444)
96
Em substituição à admiração inicial pela “Sonata a Kreuzer”, veio a decepção. Thcékhov, certa
vez, chegou a dizer que, antes de tratar tal tema, Tolstói deveria ter lido dois ou três livros
especializados.
Nas obras de Tchékhov, a insolubilidade dos problemas existenciais, o que é a pedra de toque do
sofrimento das personagens, afeta ambos os sexos, embora, por força da diferença social,
fisiológica e psicológica, as mulheres enfrentam situações mais complexas, em comparação com os
homens.
151
Na opinião de Bitsíli97, o vergonhoso desamparo de Nikolai
Stepánovitch, incapaz de ajudar Kátia, não obstante a sua rica
experiência pedagógica, torna-os estranhos um para o outro a tal
ponto, que não lhes resta mais do que bater a cabeça na parede; a
fenda no diálogo dos dois reflete a total incompreensão mútua, e
Kátia vai-se, amargamente decepcionada com o seu padrasto e
amigo.
Para a análise da figura de Kátia, é preciso deixar de lado as
apreciações do narrador, empregando apenas os factos da vida dela,
referidos por ele, e examinar como os meios artísticos transformam
tais factos. Recordemos brevemente a biografia de Kátia.
Antes de mais nada, a sua vida não repete nem um
pouquinho a “composição talentosamente feita” do professor. Desde
a infância, persegue-a uma série de contínuas perdas do que é o
mais caro que uma pessoa possa ter. Aos sete anos, perde os
genitores, fica órfã e vai para uma família alheia, na qual cresce
como uma criança doentia e não muito feliz, desprovida da atenção
de quase todos. Em outra cidade para os estudos, ela
inesperadamente apaixona-se pelo teatro; em casa, nas férias,
encontra total desinteresse por ela, pela sua vida e pela sua paixão.
Os de casa ignoram-na; apenas o tutor Nikolai Stepánovitch escuta-
a, por pena, na meia hora que lhe dá. Ao término dos estudos, ela
torna-se atriz e vai, com uma companhia teatral, para Ufá. A paixão
pelo teatro, que se apoderara dela, traz à sua vida “tediosa” algo
radiante, inspirado e verdadeiro. Tem início um breve período feliz,
de quatro anos, na sua vida triste. Ela faz aquilo de que gosta, viaja
e constrói planos para a vida.
Em seguida, tudo vem abaixo; Kátia decepciona-se com os
97 A.TCHÉKHOV. Pro et contra, 2010, p.586.
152
seus colegas atores, com o seu próprio talento, e perde um amor. E,
por fim, tendo perdido o recém-nascido, tenta o suicídio. É salva.
Sozinha, sem ajuda nem comiseração da parte de outrem, ela volta
para Moscou e aluga apartamento, perto de Nikolai Stepánovitch. O
seu destino repete-se em muito não somente na Nina Zariétchnaia
de “A gaivota” e, de modo surpreendente, numa mulher real, amiga
próxima de Tchékhov, uma beldade que sonhava com o teatro, Lika
Mizínova, que naquele mesmo ano de 1889 entrara na vida dele e se
cartearia com ele por longos anos.
As sua’s relações pessoais não foram simples: a apaixonada
Lika e o ”semi-apaixonado” Tchékhov, brincalhão e irónico, que não
prometia nada. Torturada por essa indefinição, ela parte, em 1894,
para Paris com o conhecido escritor Ignátii Potápenko, cedendo ao
seu amor e promessa de deixar a família. Ele, no entanto, abandona
não a esposa, mas a ela, Lika. Ela dá à luz uma criança, que
morreria logo depois. E do mesmo modo como a Kátia prevista para
ela, Lika vê-se na mais desesperadora situação, e vem-lhe à cabeça
a ideia do suicídio.
O passado de Kátia é trágico, o presente é ainda mais
monótono do que o de Nikolai Stepánovitch, com menos
acontecimentos, obrigações e pessoas, e o futuro é incerto e nem a
preocupa; ela não constrói já nenhuns planos, e nada a interessa. O
vestido negro torna-se, como já assinalámos, um pormenor
simbólico, indicador da falta de futuro (e também dela associador à
personagem-doutoranda, também vestido de preto). O tempo pára
para ela, que parece mergulhar na penosa neblina uniforme da vida
semi-desperta e semi-dormente, diluída com a leitura de romances
amenos e o desperdício irrefletido do dinheiro paterno e de
encontros vespertinos com duas pessoas do seu agrado. O seu
153
estado é semelhante à insónia em que vive o professor. A
característica básica e definidora da sua vida é a preguiça:
Atualmente, Kátia vive a meia versta de minha casa. Alugou um
apartamento de cinco peças, instalando-se com bastante conforto
e com o gosto que lhe é inerente. Se alguém se propusesse
representar o ambiente em sua casa, o estado do espírito
dominante no quadro seria a preguiça. Sofás macios e macios
tamboretes para o corpo preguiçoso; tapetes para os pés
preguiçosos; cores esmaecidas, lívidas, foscas, para a vista
preguiçosa; para a alma preguiçosa, abundância nas paredes, de
leques baratos e quadros insignificantes, em que o originalidade
da composição predomina sobre o conteúdo, um excesso de
mesinhas e prateleirinhas, abarrotadas de objetos completamente
desnecessários e sem valor, trapos disformes em lugar de
cortinas...Tudo isso, a par do temor às cores vivas, à simetria a
aos espaços amplos, testemunha, além da preguiça de espírito,
uma deformação do gosto natural. Katia passa dias inteiros
deitada no sofá, lendo livros, na maioria romances e novelas. Sai
de casa apenas uma vez, depois do meio-dia, para me ver. (123)
Essa única e tão minuciosa descrição de objetos no texto é
admirável para o narrador. Já o autor sublinha a enumeração das muitas
coisas e pormenores do interior, baratos e vulgares, e o vazio,
incompletude, da vida interior de Kátia. Vem à lembrança semelhante
interior de outra personagem de Tchékhov, Olga Dýmov, de “Ventoinha” .
Para além disso, ela está liberta das convenções aceitas pela
sociedade, e, à diferença das típicas mulheres do seu tempo, como as
“nulidades” Vária e Liza, o matrimónio não a interessa:
- E você está sempre deitada – digo-lhe, depois de um silência e
tendo descansado um pouco. - Isso faz mal à saúde. Você deveria
ocupar-se de alguma coisa.
- Hein?
154
- Digo que deveria arranjar uma ocupação.
-Arranjar o quê? Uma mulher só pode ser operária ou atriz.
-E então? Se não pode ser operária, vá para o teatro.
Cala-se.
-Ou então se case – digo, meio gracejando.
-Não há com quem. E não há motivo.
-Não se pode viver assim.
-Sem marido? Grande coisa! Há homens à vontade, basta querer.
-Isso não é bonito, Kátia.
-O que não é bonito?
-Isso que você acabou de dizer. (131)
Família propriamente dita, ela não tinha, e família não
representava nenhum valor para ela; é por isso que ela dá com tanta
leviandade a Nikolai Stepánovitch o conselho de deixar a esposa e a filha
e partir para algum lugar. Na sua opinião, a raiz dos problemas do
padrasto está precisamente nelas, e é nelas que deita a culpa pela
abalada saúde dele. Vária e Liza, por sua vez, odeiam-na e consideram
“indecente” a relação dela com Nikolai Stepánovitch, por ela ser tão alheia
ao mundo deles e desprezar tão declaradamente a ele e a elas. Preocupa
especialmente a esposa o modo como os encontros dos dois parecerá aos
olhos dos conhecidos. É possível que, sem o reconhecerem para si, elas
sintam certa culpa pelo acontecido a Kátia, e isso vem sugerido por um
pormenor. Na infância, Kátia achava graça no castigo, infligido a pessoas
adultas e estudantes, chamado “pôr de joelhos”. É provável que a ela
própria tenham castigado assim mais de uma vez.
- Os estudantes brigam na universidade? -perguntava ela.
- Brigam, querida.
- E o senhor manda ficarem de joelhos?
- Mando.
Achava graça em que os estudantes brigassem e eu os mandasse
ficar de joelhos, e ria. (118)
155
Ofendida com o fato de Kátia ter chegado e não ido dizer os
bons-dias aos de casa, Liza diz:
– Mamãe! - diz Lisa com censura. - Se ela não quer, que vá
com Deus. Não vamos ficar de joelhos. (125)
Se a vida de Kátia houvesse tido outro rumo, ela, possivelmente,
de menina “que gostava muito de falar” e rir, haver-se-ia, com o tempo,
transformado numa “velhota faladeira e de riso fácil (127)), tal qual a
criada Agacha, a quem o professor recorda com carinho. Ela poderia ter
sido uma bela esposa e mãe, com a sua capacidade de diluir-se na pessoa
amada. No príodo de breve felicidade, absorvida pelo amado e pelos
planos deste, ela até lembra uma personagem muito distante dela, a
Ólenka Plemiánnikova de «Queridinha».
As cartas que se seguiram eram igualmente magníficas, mas já
apareciam nelas sinais de pontuação, desapareceram os erros
gramaticais, e começaram a exalar forte cheiro masculino. Kátia
passou a escrever-me que seria bom construir em alguma cidade
do Volga um grande teatro, em base de sociedade anônima, e
atrair para a empresa comerciantes ricos e armadores; as
receitas seriam enormes, os atores teriam participação nos
lucros...É possível que tudo isso seja realmente bom, mas tenho
a impressão de que semelhantes projetos só podem provir duma
cabeça masculina. (121)
No entanto, aos vinte e cinco anos , ela já perdera tudo na
vida. E do mesmo modo como as recordações animam e dão cores à
vida baça e tediosa de Nikolai Stepánovitch, tão-somente um único
fio liga Kátia à vida viva, às emoções vivas, a um “deus do homem
vivo”: o próprio professor, tutor, quase pai, amigo chegado, a única
pessoa no mundo que lhe dava atenção, ainda que só de vez em
quando, ainda que por pena e pelo sentimento de dever, em
156
memória dum amigo falecido. A única pessoa que lhe escrevia, ainda
que cartas tediosas, mas escrevia, dava conselhos. A única pessoa
de que Kátia gosta. Nikolai Stepánovitch fora e continua a ser para
ela um herói, quase da escala antiga, semelhante a Hércules, tal
como o professor recorda a si próprio. Kátia não possui mais
ninguém nem nada.
Sem dúvida, como julga a maioria dos críticos, há
determinado paralelo e determinada semelhança entre os dois. Isso
é também apontado por um pormenor “fortuito”:
Lembro-me também, ela gostava de vestir-se bem e de se
perfumar. Nesse sentido, parecia-se comigo. Também eu gosto
de roupas bonitas e de bons perfumes (118)
Um mesmo caminho, na vida, da esperança, inspiração, amor
e do trabalho prazeroso à decepção, ruína e até a morte é percorrido
por ambos; apenas Nikolai Stepánovitch o faz no decorrer de alguns
decênios, e Kátia, impetuosamente, em três ou quatro anos. Nisso
esgota-se, na nossa opinião, a semelhança entre os dois. Eles
representam dois tipos psicológicos diferentes. Ele tem raciocínio
lógico; ela, metafórico. A ela são verdadeiramente incompreensíveis
a “filosofação” dele e a sua “ideia geral”.
E em geral... eu não gosto dessas conversas sobre arte! -
continua nervosa. - Não gosto! E já banalizaram tanto, muito
obrigada!
-Quem a banalizou?
-Uns a banalizaram com a bebedeira, os jornais, com o trato
familiar, as pessoas inteligentes, com a filosofia.
– A filosofia não tem nada a ver com o caso.
– Tem, sim. Se alguém filosofa, isso quer dizer que não
compreende. (150)
157
Eles dão um ao outro conselhos verdadeiramente
inexeqüíveis nas condições em que encontram, e não
correspondentes aos seus caracteres: assim, Kátia propõe a Nikolai
Stepánovitch deixar a família e ir-se para algum lugar, e ele, por sua
vez, sugere a ela procurar trabalho ou casar-se. Não se pode,
porém, afirmar com certeza que entre os dois haja uma completa
incompreensão. De vez em quando, eles caracterizam um ao outro
com admirável exatidão:
-Tem um tom e umas maneiras de vítima. Isso não me agrada,
minha amiga. Vocé mesma é culpada. (150)
Não tem sensibilidade, não tem ouvido para a arte. Esteve
ocupado a vida inteira e não teve tempo de adquirir essa
sensibilidade. (150)
Do texto não decorre que a Kátia incomode a falta de sentido
da sua existência; ao contrário, conversas acerca disso aborrecem-
na, e ela simplesmente esquiva-se a conselhos. Apenas numa única
cena nós observamos algo que sugere que ela reflita nesse tema, e
isso de passagem, aliás. Também naquela, o reconhecimento da
falta de talento é-lhe muito mais doloroso:
-Nicolai Stiepánitch, eu sou um fenômeno negativo? Sou?
– É – respondo eu.
– Hum... O que devo fazer? (149)
Discordamos radicalmente da opinião (Katáev, Linkov e
outros), segundo a qual Kátia não compreende a dor do seu amigo e
padrasto e não a sente, nem nota a sua doença. Inúmeros
pormenores, ao contrário, indicam precisamente que ela a sente e
158
nota.
Ela visita-o todos os dias e recebe-o em casa todas as
noites. Seguindo-o, ela muda-se para a datcha e aluga casa nas
proximidades; leva-o a passear todos os dias e passa todos os fins
de tarde e começo da noite com ele. Esses são os únicos
acontecimentos na vida dela. Cínica e desiludida, com que
sentimento ela escuta os seus relatos da vida passada!
Ela me ouve comovida, orgulhosa, a respiração suspensa. (134)
Como isso não se parece com aquelas meias horas, em que
ela, outrora, o obrigava a escutá-la! Nós já assinalámos o que
significa um símbolo tão essencial como uma mesa de trabalho, e o
facto de Kátia organizar na sua própria casa, no seu espaço pessoal,
um lugar de trabalho para ele, diz bem da confiança ilimitada que
ele via nos seus olhos infantis.
Ela oferece-lhe todo o seu dinheiro, isto é, em essência, a
única coisa que pode oferecer-lhe. Tal atitude lembra-nos a
decepção, que Nikolai Stepánovitch experimenta em relação aos
próprios filhos, e as suas censuras a eles, que não querem notar a
sua humilhação diante da pobreza. Cria-se a nítida impressão de
que toda a vida de Kátia se encerra em Nikolai Stepánovitch; ela
não consegue passar nem um dia sem ele, os seus pensamentos são
nele, e tudo o que faz, é por ele. Ele é a “ideia geral” dela, o seu
“estojo” .
E a progressiva moléstia do professor é o que não dá sossego
a Kátia, mudando o seu comportamento, estado de espírito e tom da
voz. A primeira cena com Kátia termina com o seguinte diálogo:
Quando a acompanho até a ante-sala, examina-me com
159
severidade da cabeça aos pés e diz, magoada:
-Está emagrecendo sempre! Por que não se trata? Vou procurar
Sierguiéi Fiódorovitch e pedir que examine.
– Não precisa, Kátia.
– Não compreendo como a sua família não percebe! Boa
gente, pode-se dizer. (124)
Na cena seguinte (na casa de Kátia), esta estava com
preguiça, a falar mal dos outros e a rir, e, de repente, a conversa
passa à doença de Nikolai Stepánovitch e o estado dela muda
repentinamente . Não podemos deixar de assinalar este pequeno
pormenor:
- O que tem? Está doente?
- Sim, um pouquinho
- E não se trata... - acrescenta Kátia, taciturna. (141)
A doença do professor é o que torna a cínica e a tudo indiferente
Kátia “severa e sombria” e o que é verdadeiramente sério para ela na sua
vida desprovida de objetivos.
Pelo convívio diário com o padrasto e pela sua concentração nele,
ela não pode deixar de notar o desenvolvimento da doença dele. Por que,
então, julga a crítica unanimemente que Kátia não o escuta e não o
compreende?
Kátia não está em condições de compenetrar-se dos sentimentos
e pensamentos do padrasto; é inacessível a ela, a realidade de
outra pessoa. (...) Nikolai Stepánovitch fala duas vezes a ela, a
pessoa mais cara a ele, da sua morte e, em ambas as vezes, não
encontra simpatia. Quando ela lhe oferece dinheiro, ele
responde: “O teu dinheiro, agora, é completamente inútil para
mim”. As palavras “agora, é completamente inútil para mim”,
parece, poderiam pelo menos inquietar Kátia, que sabe da grave
moléstia de Nikolai Stepánovitch. Mas ela não consegue ouvir o
que lhe dizem, e ofende-se, de modo completamente
160
despropositado: "Eu compreendo-o... Tomar dinheiro emprestado
duma pessoa como eu... uma atriz retirada...” Kátia emprega a
forma estereotipada “Eu compreendo-o” ("Я вас понимаю"), mas
o facto é que não compreende. Sentimentos “de escravo”
(“pабские") excluem qualquer contacto verdadeiramente
humano.98
Voltemos ao episódio, referido pelo crítico, a chegada inesperada
de Kátia numa noite dos pardais.
Mas eis que range o portão do jardim, alguém se esgueira ali e,
quebrando um ramo de uma das arvorezinhas esquálidas, bate
com ele cautelosamente na janela.
- Nicolai Stipánitch! - ouço um murmúrio. - Nicolai Stiepánitch!
Abro a janela e tenho a impressão de estar vendo um sonho:
embaixo, apertada contra a parede, está uma mulher de negro,
fortemente iluminada pelo luar, e dirige para mim os olhos
grandes. Tem o rosto pálido, severo e fantástico devido ao luar,
como que de mármore, treme-lhe o queixo.
– Sou eu... - diz ela. - Eu... Kátia!
Ao luar, todos os olhos de mulher parecem grandes e negros, as
pessoas, mais altas e mais pálidas, e provavelmente por isso não
a reconheci no primeiro instante.
- O que você quer?
- Desculpe – diz ela. - De repente, não sei por quê, tive um
sentimento intoleravelmente penoso... Não pude suportar e vim
para cá... Havia luz na sua janela, e..., eu resolvi chamá-lo...
Desculpe... Ah, se o senhor soubesse como era penoso o que
senti! O que está fazendo agora?
- Nada... Insônia.
– - Tive não sei que pressentimento. Aliás, é ninharia.
As suas sobrancelhas se levantam, brilham-lhe os olhos de
lágrimas, e todo o seu rosto se ilumina, como que por uma luz,
por uma expressão conhecida, há muito não vista, de confiança.
98
V.LINKOV, Moscou, 1982, p.64.
161
– Nicolai Stiepánitch! - diz ela súplice, estendendo para mim
ambas as mãos. - Meu querido, peço-lhe... imploro... Se não
despreza a minha amizade e o meu respeito pelo senhor, aceda
ao meu pedido!
– O que é?
– Aceite dinheiro de mim!
– Ora, o que inventou! Para que preciso do seu dinheiro?
– O senhor vai tratar-se em alguma parte... O senhor
precisa tratar-se. Vai aceitar? Sim? Meu querido, sim?
Fita avidamente o meu rosto e repete:
– Sim? Vai acertar?
– Não, minha amiga, não aceitarei...- digo eu. Obrigado.
Volta-me as costas e baixa a cabeça. Provavelmente,
expressei a minha recusa num tom que não admitia mais
conversas a respeito de dinheiro.
– Vá para casa dormir – digo. - Vamos ver-nos amanhã.
– Desculpe... - diz ela, baixando a voz toda uma oitava. -
Eu compreendo o senhor... Ficar devendo a uma pessoa como
eu... uma atriz aposentada... Bem, adeus...
E ela se afasta com tamanha pressa que não consigo sequer
dizer-lhe também o meu adeus. (155-156)
Na tradução brasileira, infelizmente, omitiu-se um dos elementos mais
importantes, que muda todo o quadro do que está a ocorrer (em letras
gordas):
-- Поезжай домой спать,-- говорю я.-- Завтра увидимся. [Vai
para casa dormir, — digo-lhe eu —. Amanhã nos veremos].
-- Значит, вы не считаете меня своим другом? --
спрашивает она уныло. [Quer dizer que não me considera
sua amiga? — pergunta ela pesarosamente.]
-- Я этого не говорю. Но деньги твои теперь для меня
бесполезны. [Não é isso o que eu digo. Mas o teu
dinheiro, agora, é inútil para mim.]
-- Извините...-- говорит она, понизив голос на целую октаву.
162
[Desculpe, — diz ela, baixando... (...).99
À diferença de Nikolai Stepánovitch, que vai para junto de Kátia,
fugindo a uma condição insuportável, para que o escutem e para estar na
companhia duma pessoa simpática a ele, Kátia procura-o por ele próprio e
por maus pressentimentos, para certificar-se de que esteja tudo em
ordem com ele. A inquietação não a abandona. Tendo padecido tantas
perdas, agitada e assustada, ela tenta afugentar o pensamento de que a
espera mais uma, a perda do seu único ente querido. Ela está pálida, e o
queixo treme-lhe. Tendo verificado que ele está vivo, que está tudo em
ordem e que tudo não passa duma insónia, Kátia volta a ser a de antes,
quase feliz como uma criança. E precisamente então:
As suas sobrancelhas se levantam, brilham-lhe os olhos de
lágrimas, e todo o seu rosto se ilumina, como que por uma luz,
por uma expressão conhecida, há muito não vista, de confiança.
(155)
Que acontece em seguida? Kátia oferece dinheiro, Nikolai
Stepánovitch não o aceita e alude a uma morte próxima; Kátia “ofende-
se” e vai-se. Dinheiro é tudo o que poderia oferecer, contanto que isso
pudesse melhorar o mais importante para ela: o estado e a saúde dele; e
ela está disposta a entregar tudo isso e até implora que ele o aceite.
Poderia Kátia pensar seriamente que Nikolai Stepánovitch a despreze
como atriz retirada? Dificilmente.
Em compensação, logo após a alusão de Nikolai Stepánovitch
acerca da inutilidade do dinheiro para ele naquele momento, a voz de
Kátia “baixa uma oitava inteira”. Um importantíssimo pormenor musical
simplesmente “grita”: Kátia compreendera tudo. Ela ouvira precisamente
o que mais temia, e o cérebro recusa-se a aceitá-lo. Tal qual a imensa
maioria das personagens de Tchékhov, incapazes de confessar o mais
99
A.TCHÉKHOV, Moscou,1977, p.303-304.
163
importante a si próprias e aos outros, Kátia está aterrorizada e, como se
se defendesse, diz a primeira tolice que lhe vem à cabeça. E foge
precipitadamente. A fuga apresenta-se como uma ilusão de salvamento.
A cena seguinte é em Khárkov.
Uma batida leve na porta. Alguém precisa de mim.
- Quem está aí? Entre!
Abre-se a porta e, surpreso, dou um passo para trás e apresso-
me a juntar as abas do roupão. Quem está diante de mim é
Katía.
- Bom dia – diz ela, respirando pesado, em consequência da
escada. - Não me esperava? Também eu... também eu vim para
cá.
Senta-se e prossegue, gaguejando e sem me olhar:
- Por que não me diz bom-dia? Eu também cheguei...hoje...
Soube que o senhoe estava neste hotel e vim vê-lo.
- Estou muito contente de ver você - digo, dando de ombros - ,
mas estou surpreendido... Você como que caiu do céu. Para que
está aqui?
- Eu? Assim... simplesmente, peguei e vim.
Silêncio. De repente, ela se ergue num arranco e caminha na
minha direção.
- Nicolai Stiepánitch! - diz, empalidecendo e apertando as mãos
sobre o peito – Nicolai Stiepánitch! Não passo mais viver assim!
Não posso! Pelo amor do Deus verdadeiro, diga-me o quanto
antes, já: o que devo fazer?
- O que posso dizer? - fico perplexo. - Não posso nada.
- Mas fale, eu lhe imploro! - continua ela, ofegante, o corpo todo
trêmulo. - Juro-lhe que não posso mais viver assim! Não tenho
mais forças!
Cai sobre uma cadeira e põe-se a soluçar. Jogou a cabeça para
trás, estrala os dedos, bate os pés; o chapeuzinho caiu-lhe da
cabeça e balança-se sobre o elástico, o penteado está desfeito.
- Ajude-me! Ajude-me! - implora. - Eu não posso mais!
Tira da sua bolsinha de viagem um lenço e, com ele, algumas
cartas que lhe caem dos joelhos para o chão. Levanto-as,
164
reconheço numa delas a letra de Mikhail Fiòdorovitch e, sem
querrer, leio o fragmento de uma palavra: “apoixonad...”
- Não posso dizer nada a você, Katía.
- Ajude-me! - soluça ela, agarrando-me a mão e beijando-a. - O
senhor é meu pai, o meu único amigo! É inteligente, culto, viveu
muito! Foi professor! Diga-me: o que devo fazer?
- Pela minha consciência, Katia: não sei...
Estou perplexo, confuso, comovido por aqueles soluços, e mal
me seguro sobre as pernas.
- Vamos almoçar, Kátía – digo, sorrindo tenso. - Chega de
chorar!
E logo acrescento, a voz caída:
- Em breve, deixarei de existir, Katía...
- Ao menos uma palavra, ao menos uma palavra! - chora ela,
estendendo-me os braços. - O que fazer?
- Que mulher esquisita, realmente... - balbucio. - Não
compreendo! Tão inteligente, mas num átimo – aí está! - caiu
um pranto...
Segue-se um silêncio. Katía ajeita o penteado, põe o chapéu,
depois amassa as cartas e enfia-as na bolsinha – e tudo isso em
silêncio, sem se apressar. Tem o rosto, o peito e as luvas
molhados de lágrimas, mas a expressão do seu rosto já é seca,
severa... Olhando-a, tenho vergonha de ser mais feliz que ela.
Foi somente pouco antes da morte, no ocaso dos meus dias, que
notei em mim a ausência daquilo que os meus colegas filósofos
denominam uma ideia geral, mas a alma dessa infeliz não
conhece e não há de conhecer abrigo a vida toda, toda!
- Vamos almoçar, Katía – digo.
- Não, obrigada – responde ela com frieza.
Mais um minuto de silêncio.
- Não gosto de Khárkov – digo. - Há muita cor cinza. Uma cidade
cinzenta.
- Sim, realmente... É feia... Vou passar pouco tempo aqui...
Estou de passagem. Partirei hoje mesmo.
- Para onde?
- Para a Criméia...isto é, para o Cáucaso.
165
- Bem, por muito tempo?
- Não sei.
Kátía levanta-se e, tendo sorrido com frieza, estende-me a
mão sem me olhar.
Tenho vontade de perguntar: “Quer dizer que não virá ao meu
enterro?” Mas ela não me olha, tem a mão fria, como que alheia.
Acompanho-a calado pelo corredor comprido, sem olhar para
trás. Sabe que a sigo com olhos, e, provavelmente, voltar-se-á
na curva.
Não, não se voltou. O seu vestido negro apareceu pela útima
vez, não se ouviram mais os seus passos... Adeus, meu tesouro!
(161)
Segundo a opinião unânime da crítica, Kátia chega a Khárkov com
a esperança de que Nikolai Stepánovitch lhe ensinará como viver,
porquanto a sua vida se tornara insuportável pela falta de sentido. Mas ele
não tem nada por oferecer-lhe, a não ser um “vamos desjejuar” ("давай
завтракать"). É nisso que consiste o tédio de toda a história (Katáev).
Que acontece, a nosso ver, no último encontro dos dois? Com a
partida de Nikolai Stepánovitch, quando Kátia não tem a possibilidade de
vê-lo diariamente, a angústia dela e os maus pressentimentos aumentam
muito. Parece mais natural que ela, tal como na “noite dos pardais”, se
tenha arrancado do seu lugar e corrido para ele, indo para outra cidade
para dissipar a inquietação, tranqüilizar-se e certificar-se de que com ele
estava tudo certo, e não para obter urgentemente um conselho sobre
como tornar a sua vida consciente, sensata. E que vê ela dessa vez?
Nikolai Stepánovitch, no ambiente estranho dum hotel, conta com
indiferença o tempo que lhe resta; está apático, à espera da morte;
ademais, começa-lhe um tique nervoso na face; ele está a morrer. É nesse
estado que Kátia o encontra.
E então, diante do aspecto dele, é que lhe vem a histeria. As
personagens de Tchékhov raramente dizem o que verdadeiramente
pensam, e Kátia não é exceção. O seu grito é uma súplica de consolo.
166
Assim grita uma pessoa de medo, sem saber exatamente o que está a
gritar: “Socorro! Que devo fazer?!” É Nikolai Stepánovitch, cujas reflexões
num balanço da vida Kátia interrompe, que acha que ela sofre do mesmo
que ele: na vida dela, não haveria uma ideia geral. Parece-nos que,
contrariamente à opinião dos críticos, uma “ideia geral” é a última coisa
que a possa preocupar naquele momento. Ela compreende o que se
passa: logo estará cara a cara com a sua inútil vida. E tudo o que ela quer
— que ele a tranquilize e diga que com ele está tudo bem, — eis aí a “uma
palavra” que ela espera dele e a ele implora. No acesso de histeria, ela de
repente ouve claramente, em resposta à sua súplica de ajuda, o que é o
mais horrível de tudo para ela, e já não uma indireta, mas uma afirmação
direta: em breve, ele já não estaria entre os vivos. E como se não
houvesse entendido imediatamente a frase dele, ela ainda grita e estende-
lhe a mão, mas o terrível significado das palavras chega-lhe aos poucos.
Kátia ali chegara com uma frágil esperança, e ele privara-a dela.
E bruscamente, depois da tomada de consciência do irreparável,
tudo muda; sobrevém o silêncio, o tempo para, o rosto torna-se já seco,
grave... Esse é o ápice do sofrimento; ela é já incapaz até de chorar. Tudo
duma vez perde o sentido. Ela não consegue olhar para ele, a conversa
torna-se sem sentido, e depois é só o frio, a mão fria como que dum
desconhecido, o vestido negro. Como se também para Kátia a vida
houvesse acabado.
Katáev, num dos seus livros100, compara “Uma história
enfadonha” com “Fausto”, de Goethe, e traça uma correspondência entre
os pares Fausto-Wagner e Nikolai Stepánovitch-Piotr Ignátievitch.
Kubássov101 foi mais longe, com a observação da semelhança
entre Kátia e Margarita e entre Mikhail Fiódorovitch e Mefistófeles. Tendo
100 KATÁEV, V. B. Literaturnye svjazi Tchekhova (Contactos literários de Tchékhov). Moscou, Ed. da
Univ. Estatal de Moscou,1989.
101 KUBÁSSOV, A. Proza A. P. Tchekhova. Iskusstvo stilizacii (A prosa de A. P. Tchékhova. Arte da
estilização). Ekaterinburg, 1998
167
ressaltado que o papel do último no texto permanece obscuro, ele dá a
sua interpretação à figura da personagem. Ele observa, antes de mais
nada, que as iniciais do nome e do patronímico (M. F.) não foram
escolhidas ao acaso, mas apontam para determinado protótipo literário, à
semelhança do nome e do apelido de Dmítri Gúrov “A dama do
cachorrinho”) por analogia como Don Guán (Don Juan, em russo). Uma
semântica complementar provém de características da aparência (cabelos
grisalhos e sobrancelhas negras), que se encontrariam na figura de outro
Mefistófeles, o monge negro de “O monge negro”. Kubássov analisa o
léxico da personagem, no qual são recorrentes algumas réplicas
sugeridoras da origem “infernal”, como, por exemplo, "адски холодно"
(um frio dos infernos) e “к чёрту” (o diabo que o carregue), e acrescenta
que, por ironia, essa personagem se dirige a deus com mais frequência do
que as outras (Ai, meu Deus!, Deus me livre etc ), e assinala o cinismo de
Mikhail Fiódorovitch, principalmente quando se fala de outros membros da
Igreja, o que, na opinião do estudioso, fala duma genealogia literária,
dum oculto parentesco com Mefistófeles.
Nós concordamos em muito com as conclusões de Kubássov, mas
ele deixou escapar dois pormenores substanciais, que não apenas
complementam a figura da personagem, senão também a modificam.
O primeiro é que a personagem não é simplesmente um colega de
universidade, mas um filólogo; mais do que isso:
Pertence a uma antiga e nobre família, bastante feliz e talentosa,
que desempenhou um papel apreciável na historia da nossa
literatura e da nossa instrução. (134)
E isso significa que, desde a infância, Mikhail Fiódorovitch vive
num meio, em que se fala de literatura, e num mundo de personagens
literárias, provando em si as personalidades delas, como quem prove uma
camisa a ver se ela lhe serve.
Ele cita Liérmontov, o seu modo de falar lembra a Nikolai
168
Stepánovitch o tom dos coveiros de Shakespeare, e, em relação a isso,
podemos lembrar mais um filólogo de Tchékhov, que também opera com
nomes de escritores e de personagens literárias e prova em si os papéis
delas: Laiévski (“Duelo”).
O segundo pormenor é um daqueles “fortuitos”: barbeado.
E, de fato, um instante, depois, entra meu colega, o filólogo
Mikhail Fiódorovitch, alto, bem proporcionado, de uns cinquenta
anos, com cabelos densos e grisalhos, sobrancelhas negras e
rosto barbeado. (134)
À diferença de outras características exteriores, dadas no seu
retrato, das sobrancelhas negras e dos cabelos grisalhos, o seu “estar
barbeado” não o define de modo nenhum, mas, em compensação, liga-o
diretamente a outra personagem “barbeado”, o ator-amante de Kátia.
Com a carta, vinha a fotografia dum jovem de rosto barbeado...
(121)
Para além de ambos estarem relacionados com Kátia, um estivera
apaixonado por ela no passado, o outro no presente; os dois são pessoas
da mesma têmpera, naturezas artísticas, criativas. Talvez seja
precisamente essa característica o que atrai Kátia. E o paralelo com o ator,
estabelecido pelo pormenor, ressalta que Mikhail Fiódorovitch apenas
desempenha o papel de Mesfistófeles, identificando-se com ele.
A impressão de ele agir como ator e fazer cena para os outros é
reforçada pelo jogo de paciência, a que se dedica. Agradam-lhe tanto o
papel quanto a atenção de Kátia. Pode notar-se que eles se compreendem
maravilhosamente.
Katia acompanha-o, com atenção as suas jogadas e ajuda-o mais
com mímica do que com palavras. (137)
Infunde muito respeito a Kátia o seu cinismo, os seus chistes, a
169
elegante dignidade afetada, o artisticismo. No entanto, de tempos em
tempos, por influência do amor, que ele é incapaz de controlar, a máscara
cai-lhe:
Quando ele recebe de Kátia um copo ou ouve uma observação,
ou se acompanha com o olhar, se ela sai por uns instantes do
quarto, a fim de buscar qualquer coisa, noto nos olhos dele algo
humilde e puro, algo que reza. (136)
E, quer-nos parecer, precisamente nos momentos em que ele sai do
papel, ele, do modo mais natural, não na qualidade de ironia, emprega
frases como “Graças a deus!”e assim por diante. E, quanto mais forte se
torna o seu amor a Kátia, tanto menos ele lembra Mefistófeles.
Há muito tempo já que Mikhail Fiódorovitch devia ter viajado
para o estrangeiro, mas ele adia a partida cada semana. Nos
últimos tempos, aconteceram com ele certas modificações:
parece mais acabado, passou a embriagar-se com vinho, o que
antes nunca lhe acontecera, e as suas sobrancelhas negras estão
começando a branquear. Quando a nossa carruagem pára junto
ao portão, ele não esconde sua alegria e impaciência. Agitando-
se, ajuda Kátia e a mim a descer do carro, apressa-se a fazer
perguntas, ri, esfrega as mãos, em que há de humildade, puro,
de reza, que eu já notara apenas em seu olhar, espraia-se agora
por todo o seu rosto. Alegra-se e, ao mesmo tempo, envergonha-
se da sua alegria, envergonha-se desse costume de ir à casa de
Kátia todas as noites, e julga necessário motivar a sua vinda com
algum contrassenso evidente, no gênero de “Estava passando
por aqui, a serviço, e pensei: vamos entrar um instantinho”.
(151)
À medida que a natureza demoníaca com tom permanentemente
brincalhão e mistura de filosofia com chalaça, como no caso dos coveiros
de Shakespeare, vai cedendo o papel ao apaixonado comum, o interesse
170
de Kátia diminui. A carta amassada com um pedacinho da palavra
“apaix.”, uma franca confissão em que a chalaça é impossível, é uma clara
derrota de Mikhail Fiódorovitch.
E, se ele nisso se revela apenas um ator no papel do “espírito
impuro”, o Diabo, então outra personagem às ocultas, gradualmente,
passa a personificar esse espírito impuro. É Aleksandr Adólfovitch
Hnekker. Simultaneamente a “Uma história enfadonha”, em 1889,
Tchékhov escrevia a peça “O silvano”, que, posteriormente, seria
reelaborada e se tornaria “Tio Vánia”, cujas personagens, tal como Mikhail
Fiódorovitch, provam, em si e em outras personagens, diversas máscaras
literárias. Assim, o título “Silvano”, para alguma decepção do público, que
esperava ver, no palco, uma figura das lendas do folclore, revela-se tão-
somente a alcunha duma personagem.
Sem entrarmos na análise dos paralelos entre os dois textos, e tais
paralelos existem, queremos assinalar que para nós o importante é o facto
de que, no período de escrita de “Uma história enfadonha”, era grande o
interesse de Tchékhov por mitologia e, principalmente, no presente caso,
pelo folclore e que tal interesse se materializa nas figuras das
personagens e nos papéis desempenhados por elas.
Como escreve M. Odiésskaia, no estudo da peça:
A figura folclórica do silvano é ambivalente: ela, por um lado,
está relacionada com as forças das trevas, infernais e hostis ao
homem e, por outro, o silvano recebeu frequentemente traços
cómicos e constitui uma das personagens dos contos
natalinos.102
Recordemos o retrato de Hnekker:
É um jovem louro, que não tem mais de trinta anos, de estatura
média, muito corpulento, de ombros largos, com suíças ruivas
102
M.ODESSKAJA. Tchékhov i problema ideala, Moscou, 2011, p. 167
171
junto às orelhas e bigodinho pintado, que dá ao seu rosto cheio e
liso um quê de brinquedo. Veste paletó muito curto, colete
colorido, calças de xadrez graúdo, muito largas em cima e muito
estreitas embaixo, e usa sapatos amarelos, sem salto. Tem olhos
esbugalhados, de lagosta, a gravata lembra pescoço de lagosta e
até, parece-me, todo esse moco exala um cheiro de sopa de
lagosta. (126)
Nós já assinalámos, no capítulo dedicado à simbologia da gama
cromática da sua aparência e traje, a sua associação, no nível dos
pormenores simbólicos, pela cor ruiva das suas suíças, ao mercador ruivo
e ao samovar de cobre deste, e também o facto de que o colorido do seu
traje simboliza alheamento em relação ao mundo estimado e caro ao
professor, do que este fala sem rodeios, chamando a Hnekker “corpos
estranhas”, um ser sem nada em comum com os outros e até o compara a
um “zulu”. Para além disso, no folclore russo, a cor ruiva frequentemente
associa-se a vigaristas e embusteiros.103 Propp supõe que o epíteto “de
cobre”; (por exemplo, Медный лоб – Fronte de cobre), frequentemente
empregado em relação aos demónios da floresta, como Silvano e Silen,
nos contos de fadas, pode estar relacionado precisamente com a cor ruiva
do cobre104 (o que mais uma vez leva de volta ao mercador e ao seu
samovar).
Um traço característico do silvano, no folclore russo, era a
capacidade de deixar confusa a cabeça às pessoas, depois de que elas
caíam inteiramente no seu poder. Assim sob o poder de Hnekker caem
Liza, Vária e, para a admiração do professor, muitos outros.
103
Por exemplo, no conto recolhido por A. Afanássiev e intitulado "С рыжим, да красным не
связывайся" (Com o ruivo e o vermelho não te metas).
Disponível em: http://hyaenidae.narod.ru/story5/339.html.
104 V. PROPP. Istoricheskie korni volshebnoj skazki, Moscou, Labirint, 2000, p.133.
Disponível em: https://www.e-reading.club/book.php?book=46789
172
...emite juízos sobre música, com grande autoridade, e, eu
notei, os demais concordam com ele de bom grado. (126)
E, o que é o mais interessante, em muitos contos de fadas russos,
o silvano rouba a filha da personagem, para com ela casar-se.105
Para além disso, a roupa vistosa, colorida e grotesca suscita
associação com o bufão, que aparece frequentemente na figura dum ser
mesquinho e maldodo (“шут” – bobo, histrião, bufão – é um dos
eufemismos para “Diabo”).
Os demónios assumem, nas crendices, o aspecto de animais do
velho culto: bodes, lobos, cães, corvos, serpentes etc. Julgava-se
que, no todo, eles tivessem aparência antropomorfa, mas com o
acréscimo de alguns fantásticos ou monstruosos. Esses eram,
sobretudo, cornos e rabo ou pernas ou patas de bode; às vezes,
pelagem ou focinho de porco, unhas, asas de morcego e assim
por diante. Embora aos demónios houvesse sido dado o mundo
todo para as suas andanças, eles, ainda assim, tinham os seus
sítios preferidos para domicíklio permanente. De mais bom grado
estabelecem-se em lugares onde bosques espessos sejam
cortados por faixas contínuas de pântanos inacessíveis, nunca
pisados por pés humanos. Ali, nos tremedais ou lagos cobertos
de vegetação, onde ainda se conservam camadas de terra
misturada a raízes de alga entrelaçadas, o pé humano afunda
rapidamente... Não é aqui que oculta a força maligna do diabo?...
Isso refletiu-se nos ditados russos "В тихом омуте черти
водятся" (“No pego calmo escondem-se demónios”, com o
sentido de “Guarda-te do homem que não fala e do cão que não
ladra”), "Было бы болото, а черти будут" (Sempre haverá mãos
ociosas para fazerem o trabalho do diabo. Haja cibo no pombal,
que pombas não faltarão.)106
105
Conto” Silvano”, na redação de A. Afanássiev.
Disponível em: http://hyaenidae.narod.ru/story5/333.html.
106 V.ARTEMOV Mify i predanija slavjan.
Disponível em: https://www.e-reading.club/bookreader.php/1034505/Artemov_-
173
Na sua figura, há algo de brinquedo, isto é, artificial, não humano,
e ninguém, no fundo, sabe o que quer que seja dele:
Ninguém de minha família sabe qual a sua origem, onde estudou
e quais os seus meios de vida.(126)
Fazendo um balanço, temos, diante de nós, um ser ruivasco
desagradável, de outro mundo, de que não se sabe nada, que subjuga
pessoas, que possui traços exteriores, associados a um animal
(caranguejo), que exala um cheiro a rio e pântano e rapta a filha duma
personagem para casar-se com ela. Claramente, Hnekker apresenta-se na
figura do espírito impuro do folclore, seja dum silvano, seja dum demónio,
não dotado da pujança diabólica de Mefistófeles, é verdade, mas
semeador do mal e do embuste em torno de si. E não foi por acaso que
Tchékhov lhe deu a nacionalidade alemã.
Pode recordar-se o conto “O sapateiro e o espírito impuro”,
escrito em 1888, um ano antes de “Uma história enfadonha”; nele,
apesar do tom irónico, também se encontram motivos de “Fausto” e
um encomendador de botas, com um apelido alemão difícil de
pronunciar, aparece em sonho a um sapateiro, na forma do Diabo, e
compra a alma da personagem por bens mundanos.
Nas obras de Tchékhov, há muitas personagens alemãs, a começar
dos primeiros, humorísticos, nos quais se aproveitam as particularidades
do caráter nacional e os chavões literários e nos quais se tornam
procedimentos cómicos os apelidos engraçados107, a pronúncia errada de
palavras russas ou a inclusão da fala alemã na russa. Nos contos mais
_Mify_i_predaniya_slavyan.html
107 No conto “Isto e aquilo”, da primeira fase, encontram-se os apelidos Klopson (russo клоп –
“percevejo” + alemão son – “filho”: “filho dum percevejo”) e Verfluchtenschwein (literalmente:
проклятая свинья – “porco maldito”).
174
tardios, diminui o efeito cómico, até quase desaparece, mas permanece a
contraposição das particularidades de caráter de alemães e russos, que
leva as personagens à não aceitação um do outro, à incompreensão ou
conflito; dum lado, despreocupação, largueza, espontaneidade,
emotividade; do outro, seriedade e ponderação, concentração, parcimónia
e previdência, falta de autoanálise, estreiteza de vistas (von Koren de
“Duelo”, von Dideritz de “A dama do cachorrinho” e outros).
Precisamente esses traços, “alemães”, encontram-se, em medida
cabal, no chefe do serviço de necropsia de Nikolai Stepánovitch, o russo
Piotr Ignátievitch, pessoa modesta e laboriosa mas limitada e desprovida
de talento, que, em quaisquer situações graves e excepcionais:
...continuando calmamente a olhar em seu microscópio, o olho
entrecerrado. (110)
Pela sua afeição aos cientistas alemães, que tanto irrita o
professor, e a falta de autoanálise estabelece-se, indubitavelmente, um
paralelo com o alemão Hnekker:
Quando ele começa, como de costume, a exaltar os cientistas
alemães, eu não brinco mais bonachão, como antes, mas
balbucio taciturno:
– Esses seus alemães são uns burros...
Isso já se parece com o seguinte: duma feita, o falecido
Professor Nikita Krilov banhava-se em companhia de Pirogov em
Revel e, irritando-se com a água, que estava muito fria, xingou:
“Alemães canalhas”. (147)
Ele vive no seu mundo microscópico, usando a profissão como um
meio de isolar-se de tudo o mais, e é partidário apenas das tradições da
Medicina, tais quais, por exemplo, o uso de gravata branca. Semelhante
personagem ainda se encontrará em páginas de obras de Tchékhov, e
pode recordar-se, sobretudo, o professor Biélikov (“Homem no estojo”),
figura, claro, mais exagerada mas, ainda assim, representativa do mesmo
175
tipo humano. Tanto a Piotr Ignátievitch quanto a Biélikov suscita interesse
tão-somente o que estiver relacionado com a sua atividade profissional;
no primeiro caso, a Medicina; no segundo, a língua grega. Em ambos os
casos, há uma alusão a um campo “morto” das suas atividades. Porquanto
Piotr Ignátievitch realiza necropsias, o seu trabalho não está relacionado
apenas com os preparados que ele confecciona, mas também com a
preparação de cadáveres; o idioma grego, que Biélikov ensina, é uma
língua “morta”. A confiança inquebrantável dos dois nos seus princípios e a
negação de quaisquer outros alheios, em Biélikov, suscitam tédio e medo
às outras pessoas e, em Piotr Ignátievitch, “inspiram enfado a todos os
presentes” (146).
Como assinalámos já, este segundo vem acompanhado, no texto,
de epítetos simbólicos, como “cinzento”, “tedioso” e “seco”: chapéu
cinzento, secos relatórios.
...não inventará a pólvora. Para a pólvora, é preciso ter
imaginação, capacidade inventiva, espírito divinatório, e Piotr
Ignátievich não possui nada no gênero. Em suma, não é um
patrão em ciência, mas um operário. (110)
É assim que Nikolai Stepánovitch o caracteriza, repetindo duas
vezes a palavra “pólvora”. A correspondente palavra russa, "порох", está
etimologicamente relacionada com "прах" (cinzas, restos mortais), isto é,
“пыль” (pó, poeira)108, acrescentando mais um matiz à mediocridade
(Recordemos: o relógio de Biélikov fica num estojo de camurça cinzenta.).
Para além disso, nesse fragmento, há uma alusão a um conto de fadas de
Tolstói, “O patrão e o empregado”109, cuja moral é que só se pode
considerar gente aquele que for capaz de pensar e tomar decisões sem
ajuda de ninguém.
Piotr Ignátievitch aparece duas vezes no texto, no primeiro
108
http://www.classes.ru/all-russian/russian-dictionary-Vasmer-term-10082.htm
109 Disponível em: http://hobbitaniya.ru/tolstoyln/tolstoyln50.php
176
capítulo, na universidade, e no quarto, na datcha, como que para
contraste, em seguida ao aparecimento do vigia Nikolai, pessoa de
natureza oposta à sua. É impossível não notar que o vigia é um homónimo
da personagem principal, e o próprio narrador aponta tal facto. E que o
nome escolhido, tão caro a Tchékhov, nome dum irmão que acabara de
falecer, tenha sido dado a duas personagens duma só vez, é muito
significativo e obriga-nos a prestar atenção a esse pormenor “fortuito” e
ao paralelo entre os dois, realçado pelo autor. Que pode haver de comum
entre os dois, o vigia Nikolai e o professor mundialmente famoso Nikolai
Stepánovitch, entre um soldado e um general, um simples mujique e um
intelectual?
Nós acreditamos que tal questão está diretamente relacionada com
o tema principal da novela: o tema da existência humana individual no
infinito fluxo geral da vida, da natureza, do tempo e do espaço, isto é, no
cronótopo. E aqui, como no caso de Vária e Kátia, a união baseia-se na
contraposição, nos pólos opostos da concepção de mundo.
Na memória fenomenal do vigia da universidade, retratado com
simpatia irónica, as pessoas e os acontecimentos do passado
transformam-se e adquirem traços heroicos, fantásticos, encontrados nas
bylinas. E o léxico nas páginas, a ele dedicadas, possui precisamente esse
matiz semântico: fantásticas, misteriosa, secreta, guardião, herança,
sábios extraordinários, numerosos mártires, vítimas da ciência, lendas,
fábulas, heróis.
No que conto, o bem sempre triunfa sobre o mal, o fraco vence o
forte, o sábio o estúpido, o modesto o presunçoso, o jovem o
velho. (108)
Portador de consciência histórica e mitológica, ele vive livremente
na fluidez do tempo; o passado, para ele, está indissociavelmente ligado
ao presente e ao futuro, as pessoas reais com as lendárias. E Nikolai
Stepánovitch, para ele, é um dos heróis, de quem logo se teceriam
177
lendas. Isso determina a sua veneração e a invariável forma de
tratamento ”Vossa Excelência”. Ele não é inclinado a longas reflexões
lógicas, mas, graças à sua experiência de vida e intuição, quase sempre
acerta nas suas previsões:
...um cientista disfarçado em soldado. (109)
Quase todas as suas réplicas diretas contêm um léxico referente à
natureza, e as descrições, que o caracterizam, referem-se ao amor; ele
gosta do seu trabalho, da universidade, da Ciência, das histórias
lendárias, dos estudantes e dos professores com sinceridade e um
maravilhamento de criança; em suma, ele ama a sua vida:
Deixando-me entrar, funga e diz: - Que frio, Vossa Excelência! (107) Или же, если моя шуба мокрая, то: - Дождик, ваше превосходительство!110 - Que um raio me fulmine aqui mesmo!(145) ...olhando-me com o êxtase de um apaixonado. (145)
Somente quem ama pode lembrar assim. (108) É pouco para a sociedade instruída. Se ela amasse a ciência, os
cientistas e os estudantes como Nicolai os ama, a sua literatura possuiria há muito sobre esse tema verdadeiras epopéias, lendas e hagiológios, que infelizmente ela não tem agora. (108)
Mais um pormenor não destituído de importância: as portas, que
ele abre, são um sinal simbólico da ampliação do espaço:
a porta abre-se de par em par...corre na frente e abre todas as
portas no meu caminho (107)
No nível do subtexto, essa encantadora personagem parece
constituir um guardião místico não apenas de lendas, senão também da
110
Omitido na tradução brasileira: Ou, se a minha peliça está molhada, então: — Uma chuvinha,
Vossa Excelência!
178
ligação do homem com as forças da natureza, do tempo e do espaço. Essa
é precisamente a ligação, que em sessenta e dois anos (mais um
importante pormenor: não são apenas homónimos, mas também
coetâneos) um adquiriu e o outro perdeu. Aquela ligação, cuja falta sente
vagamente Nikolai Stepánovitch, tentando compreendê-la, captá-la e
revesti-la dos termos costumeiros e familiares à sua lógica, chamando-lhe
“ideia geral”. No entanto, essa matéria sutil não é suscetível de
pensamento racional, uma vez que se encontra algures no campo dos
sentimentos, pressentimentos, da sabedoria natural e da intuição, enfim,
de tudo o que possui em medida cabal o simples soldado, vigia da
universidade.
Para além das personagens principais, há, na novela, mais três,
que aparecem uma única vez, os que vêm à casa de Nikolai Stepánovitch
visitá-lo: um colega, o doutorando e o estudante preguiçoso. Via de regra,
a sua presença no texto credita-se pelos estudiosos à necessidade de
mostrar o dia-a-dia do professor, um meio informal. A nós, porém, tal
explicação parece insuficiente. Nós achamos que cada qual deles, à sua
maneira, está inserido na estrutura e composição da obra.
O colega de universidade é o único que não recebe nenhuma
característica pessoal; ele funde-se completamente com a personagem
principal, aprofundando a figura desta. Nikolai Stepánovitch, na atmosfera
de cortês hipocrisia aceita, como que se duplica. Como espelhos, que
reflitam um ao outro, Nikolai Stepánovitch e o seu visitante repetem as
mesmas ações. O principal pronome usado no fragmento é “nós”.
Nós já mostrámos como os pormenores cromáticos da roupa
ligam o doutorando duma só vez com três personagens: Piotr Ignátiev, o
criado Egor e Kátia. Mas, no fragmento da sua conversa com o professor,
há mais um paralelo. Nikolai Stepánovitch grita duas vezes a palavra
“venda”:
- Pensam que isto aqui é uma venda? Eu não faço comércio de
temas!...Isto aqui não é venda! (117)
179
Essa réplica estende um fio até a uma personagem, que aparece
momentaneamente nas recordações do professor:
Ali está a venda de secos e molhados; antigamente, pertencia a
um judeuzinho, que me vendia cigarros... (107),
Tal fio une essa personagem ao jovem doutorando.
E, por fim, o estudante de Medicina. Não encontramos nenhum
pormenor, que o ligue a outras personagens, nem situação, que lembre
alguma análoga. Por que, então, foi posto na novela? Julga Kubássov que
o protótipo desse jovem preguiçoso, no contexto de “Fausto”, é o
estudante de quem escarnece Mefistófeles.
Na nossa hipótese, analogamente ao professor recordar-se como
seminarista, o próprio autor, com um tanto duma ironia verdadeiramente
tchekhoviana, recorda a si próprio como estudante de Medicina.
Infelizmente, há poucos testemunhos do tempo dos seus estudos na
universidade, tanto nas reminiscências de contemporâneas, quanto nas
suas próprias cartas. É sabido que, em verdade, Tchékhov, em todo o
período universitário, nunca foi reprovado em exames e frequentou
diligentemente todas as aulas e atividades laboratoriais111, contudo, o
estudo nunca lhe foi fácil: a literatura tomava tempo de mais. Por algumas
referências à Medicina em cartas desses anos, pode ver-se como lhe era
difícil combinar a atividade literária com as aulas e os exames:
Eu tenho agora... os exames finais... Repercutem no gato as lagrimazinhas do rato; do mesmo modo repercute em mim, agora, a minha incúria dos anos passados. Ai de mim! Impõe-se
estudar quase tudo desde o começo. Para além dos exames (que, a propósito, ainda estão pela frente), estão às minhas ordens o trabalho em cadáveres, atividades de clínica com as inevitáveis
histórias de morbo, a ida a hospitais... Trabalho e sinto a minha impotência. A memória ficou ruim para decoreba [decoração], fiquei mais velho, a preguiça, a literatura... vós cheirais a vodca
etc. Vontade de descansar, mas ... o verão ainda está tão longe!
111
SUKHIKH, I. Tchékhov v Jizni (Tchékhov na vida). Moscou, Ed. "Vremia”", 2010, p.90
180
(112).
No entanto, nesse episódio, o mais importante é outra coisa; nele,
sente-se uma clara nostalgia pelos anos pândegos de estudante, com
festas ruidosas após a meia-noite, bebedeira, a ida regular a teatros,
romances juvenis e, infelizmente, a “dor de cabeça” à véspera de exames.
Tal é a vida, fora do âmbito do trabalho tenso, que o próprio Tchékhov-
estudante vivera (do que se tem, a propósito, uma grande quantidade de
testemunhos), aquela acerca da qual o professor com muito prazer
escutaria falarem.
Segue-se um silêncio. Levanto-me, espero que o visitante se vá, mas ele fica parado, olha para a janela, puxa um pouco a barbicha e pensa.
A voz do sanguíneo é agradável, cheia, os olhos inteligentes, zombeteiros, o rosto bonachão, um pouco amassado pelo uso frequente de cerveja e pelas longas horas deitado no divã, ele
poderia contar-me muito de interessante sobre a ópera, sobre as suas aventuras amorosas, sobre os colegas de que ele gosta, mas infelizmente, não se costuma falar sobre isso. (116)
Nota-se claramente com que simpatia é feito o retrato desse
sanguíneo, em cuja aparência se reconhecem traços do próprio autor: os
olhos inteligentes e zombeteiros, o baixo profundo e a barbicha.113.
Até numa história tão “enfadonha”, encontrou-se lugar para o
suave humor tchekhoviano.
Como pode ver-se, todas as personagens, das principais às
apresentadas só de passagem, a par de outros elementos da composição,
relacionados com o enredo, a semântica e a estilística, duma forma ou de
outra, revelam-se entrelaçadas umas com as outras, e cada qual delas
constitui um fragmento do quadro uno e inconsútil, desenhado por
Tchékhov.
112 Carta ao irmão Aleksandr Tchékhov, entre 15 e 28 de Outubro de 1883.
113 Carta a N. A. Liéikin, de 25 de Dezembro de 1883.
181
4.9 Cronótopo
À essencial interligação das relações temporais e espaciais, aproveitadas
artisticamente pela literatura, chamaremos cronótopo (M. Bakhtin
15)
Separando o pessoal, referente à personagem principal e ao seu
nome, e o tempo e o espaço históricos e mitológicos e analisando o
funcionamento da “palavra alheia” (citações, alusões, reminiscências) e
pormenores “fortuitos”, nós acompanhámos a formação do cronótopo da
novela, o qual produz o eixo de toda a composição da obra.
O tempo pessoal de Nikolai Stepánovitch é, em primeiro lugar, a
extensão da escrita dos apontamentos, de três a quatro meses e
facilmente determinada por sinais do texto. Bem no início, mencionam-se
peliças e luvas; consequentemente, a estação do ano é o Inverno; a
personagem diz que não lhe resta mais do que meio ano de vida. Em
seguida, “chega o Verão”, e ela supõe que morrerá dentro de três meses.
Em segundo lugar, a sua vida passada, traçada pelas recordações, das
primeiras, referentes à infância e mocidade, passando pelo período de
formação da personagem, até ao presente, até ao momento em que ela
se põe a escrever a sua confissão, isto é, os sessenta e dois anos vividos.
E, finalmente, o futuro, próximo e distante, que se encontra além dos
limites da sua vida. Nikolai Stepánovitch conjectura se Kátia estará no seu
funeral, qual será a sua sepultura, quem lecionará no seu lugar e o que
será da Ciência.
Mas o mais importante de tudo é a sua sensação interior do
tempo, com a qual ele vive e a qual impregna o estado de espírito do seu
diário: a vida flui monotonamente, sempre igual e desprovida de sentido,
ao passo que os preciosos últimos meses, dias e minutos passam
impetuosamente.
No texto, encontram-se praticamente todas as categorias
temporais existentes: segundo, minuto, quarto de hora, meia hora, hora,
182
dia, semana, mês, ano, século, eternidade, toda a vida, passado, futuro
(por exemplo, minuto aparece 20 vezes; hora – 28; ano – 38 e assim por
diante).
Ademais, é preciso saber o que se pretende, e vigiar tudo atiladamente, não perdendo por um instante sequer o campo visual. (111) Кроме того, надо быть человеком себе на уме, следить зорко и ни на одну секунду не терять поля зрения. 114
Não dormir de noite significa ter consciência, a cada momento, de ser anormal...(103) Не спать ночью - значит, каждую минуту сознавать себя
ненормальным... 115
Discorre um quarto de hora, meia hora, e eis que, observa-se, os
estudantes começam a olhar para o teto...(112)
Apenas ele acaba de gritar, já sei que uma hora depois, embaixo, o porteiro há de acordar … (103)
O meu dia começa com a vinda de minha mulher. (103)
Há muito tempo já que Mikhail Fiódorovitch devia ter viajando para estrangeiro, mas ele adia a partida a cada semana. (151)
Pagar dez rublos por mês é muito mais fácil que entregar de uma vez cinquenta. (105)
Antes de passar meio ano, recebi uma carta atualmente eufórica e
poética. (121)
Faz um ano que estamos de relações tensas. (115)
É melhor perder cinco anos … (116)
Há trinta anos já que dá as suas aulas...(133)
...a alma dessa infeliz não conheceu e não há de conhecer abrigo a vida toda, toda! (161)
A ciência, graças a Deus, já viveu o que tinha de viver. (137)
114 A. Tchékhov, Moscou,1977, p.261 115 ------------------------------- p.254
183
Наука, слава богу, отжила свой век .116 Com a minha disposição atual, bastam cinco minutos para que ele
me enjoe como se eu o tivesse visto e ouvido durante uma eternidade.
...mas o que ela conserva do passado é apenas o temor pelo minha saúde. (104)
Imagino nitidamente o seu futuro. (110)
Encontram-se, mais de uma vez, a palavra “tempo” e o léxico
semanticamente relacionado a ela:
Passa um longo período de tempo penoso... (103)
Com a graça de Deus, com o tempo, há de se empregar em alguma parte. (129)
Você, minha amiga, tem horas vagas demais. (150)
Ao mesmo tempo, é preciso fazer de si cientista, um pedagogo,
um orador... (112) E, antes, eu nunca soube conformar-me como agora com a
lentidão do tempo. (157)
No sexto e último capítulo, por meio da repetição da própria
palavra "последний" (“último”), acentua-se (o que, infelizmente, nesse
caso, quase se perde na tradução) o facto de que o tempo de vida do
narrador está a terminar:
os últimos dias da minha vida serão inatacáveis mesmo [correto: pelo menos – E. V.] pelo lado formal. (156) последние дни моей жизни будут безупречны хотя с формальной стороны.117
Ademais absolutamente tanto faz para onde viajar, para Khárkov, Paris ou Biérditchev (156) К тому же в последнее время я так оравнодушел ко всему, что
мне положительно всё равно, куда ни ехать, в Харьков, в Париж ли, или в Бердичев.118
Os meses derradeiros da minha vida, enquanto espero a morte, parecem-me bem mais compridos que a toda a minha existência
116 A. Tchékhov, Moscou,1977, p.286 117 ------------------------------- p.304 118 --------------------------------p.304
184
anterior (157) Последние месяцы моей жизни, пока я жду смерти, кажутся мне гораздо длиннее всей моей жизни.119 eu ter ensombrecido os meses derradeiros da minha vida com pensamentos e sentimentos dignos dum escravo e bárbaro. (159) последние месяцы своей жизни я омрачил мыслями и чувствами, достойными раба и варвара,120
A tomada de consciência, pela personagem, da sua “existência”
põe-se em correspondência com indicações exatas da hora do dia e da
estação do ano e com quantos minutos, horas e anos se passaram desde
este ou aquele acontecimento.
Indica-se não somente a idade da personagem principal, senão
também a das outras. Nós ficamos a saber que Kátia tem 25 anos; Piotr
Ignátievitch, cerca de 35; Hnekker não tem 30; Mikhail Fiódorovitch, cerca
de 50; e Nikolai, 62. Cria-se a impressão de que, no subconsciente do
professor, se faz um balanço permanente do tempo passado e em
passagem, o que se salienta com ajuda da estilística e do ritmo, o qual ora
diminui a sua marcha, ora a acelera, e com ajuda da antítese”antes-
agora” e do léxico correspondente (outrora; agora; no passado; lembro-
me; desde então).
Nikolai Stepánovitch vive no tempo corrente, que possui começo e
fim e já tende ao seu termo; o professor dirige-se em pensamento, por
um lado, ao futuro e à eternidade e, por outro, ao passado, idealizado, no
qual a vida ainda não tinha perspectivas e não havia necessidade de
meditar no valor de cada instante.
O espaço em que Nikolai Stepánovitch existe, é um bom tanto
fechado: a esfera citadina (universidade, o seu lar, o apartamento de
Kátia), a datcha (a sua e a de Kátia) e Khárkov (o quarto de hotel). Dias e
anos (com a exceção de Khárkov), ele percorre os mesmos caminhos, vai
aos mesmos sítios e convive com as mesmas pessoas. O antigo conforto
psicológico do lar e das paredes de casa torna-se uma rotina insuportável,
119 A. Tchékhov, Moscou,1977, p.305 120 ------------------------------- p.307
185
e surge a necessidade de alguma mudança, que o impele a uma fuga
constante, dum espaço a outro. Da universidade para casa, de casa para a
de Kátia:
Certa força invisível e incompreensível empurra-me rudemente
para fora de minha casa. (130)
Dali, uma vez que o estreito círculo se mantém fechado,
novamente para casa. A mudança para a datcha revela-se a malograda
esperança de que, com a mudança de espaço, também a vida mudaria. E
em Khárkov, realmente, sítio inteiramente novo para a personagem, ela
apanha-se a pensar na absoluta irremediabilidade do que se passava. A
mudança de espaço é apenas uma mudança de decoração, de cena; onde
quer que esteja, aonde quer que vá, para onde quer que fuja, esteja ela
cercada de gente ou não, ela em toda a parte vê-se sozinha consigo, com
a sua doença, com os seus pensamentos, decepção e medo. E até a
inesperada aparição de Kátia, que, aparentemente, poderia acabar com
aquela surda e desesperada solidão, só agrava a situação e acrescenta
nova dor. Fica claro que Kátia se encontra na mesma situação: a fuga, que
lhe parece salvação, não passa duma tentativa fadada ao malogro.
No entanto, no passado de Nikolai Stepánovitch, se julgarmos
pelas suas recordações, não apenas o tempo, mas também o espaço,
eram sentidos por ele como mais largos e mais abertos. Salienta-se isso
por pormenores como os sons duma harmónica (sanfona) que lhe chegam
de longe, a comparação do auditório estudantil a um mar, a mudança de
cidades na viagem de Kátia.
E o cronótopo do “nome” da personagem principal ultrapassa em
muito os limites do seu tempo e espaço pessoal. Vivo fora dos limites
duma cidade e até do país, ele sobreviverá em muito à vida real da
pessoa:
É membro de todas as universidades russas e de três estrangeiras. … Esse meu nome é popular. Na Rússia, ele é
186
conhecido por toda pessoa alfabetizada e, no estrangeiro, é citado do alto das cátedras, com o acréscimo: conhecido e respeitado (101)
...li a minha biografia até numa revista alemã... (157)
Agora o meu nome passeia tranquilamente por Khárkov; daqui a uns três meses, gravado em letras de ouro sobre a tumba, ele há de brilhar como o próprio Sol, e isso quando eu já estiver coberto
de musgo... (160)
Como já mostrámos nos capítulos anteriores do nosso trabalho,
com a indicação de datas concretas, nomes de pessoas reais, do país (já
nos primeiros parágrafos da novela, menciona-se duas vezes a Rússia) e
nomes de cidades, restabelecem-se facilmente o tempo histórico e o
lugar dos acontecimentos: metade dos anos 1880, Moscou (menção a
Gruber e Babúkhin, professores da Universidade de Moscou) e Khárkov. Já
o tempo mitológico cria-se com a referência a heróis do folclore e à
figura de Nikolai, o vigia da universidade.
Os estudiosos têm-se debruçado, nos últimos tempos, com cada
vez mais frequência sobre a questão das relações intertextuais de
Tchékhov, porém o tema é inesgotável e por isso permanece aberto. Os
estudos tratam tanto do conjunto da obra do escritor quanto de obras
isoladas; examinam-se inúmeros paralelos com textos literários famosos,
a polémica com estes, a paródia a eles (feitas principalmente na fase
inicial) e a referência a acontecimentos históricos e culturais e nomes;
citam-se, sobretudo, textos bíblicos e nomes como Púchkin, Tolstói,
Shakespeare e Goethe (V. Katáev, N. Kapústin, V. Kubássov, A.
Sóbennikov e outros).
Não foi exceção “Uma história enfadonha”. Ainda em vida de
Tchékhov, notou-se a sua relação com “A morte de Ivan Ilitch”, de Tolstói,
e “O discípulo”, de Bourget; mais tarde, estudou-se o diálogo com Goethe,
Marco Aurélio e o Eclesiastes.
A atenção, nesses estudos, concentra-se nos aspectos
semânticos e na dialogicidade de ideias, motivos, enredos e personagens.
No entanto, nós acreditamos que as diversas inserções da “palavra alheia”
187
no texto tchekhoviano, tais como as citações, as reminiscências e alusões
(claras e ocultas), junto com a menção à História e a pessoas famosas,
desempenham mais um papel: elas ampliam o tempo e o espaço artístico,
formando o cronótopo.
Dispostos os meios supracitados em ordem cronológica (do
mesmo modo como fizemos com as recordações da personagem), tem-se
um quadro de toda a história humana, da remota Antigüidade ao fim do
século XX; reunidos em conjunto os pormenores fortuitos de caráter
geográfico e naional, obtém-se um extenso mapa do mundo. Alguns
exemplos:
Mundo Antigo (século 13 antes da nossa era – século 1 da
nossa era).
Antigo Testamento:
Frequentemente, extasio-me vendo um menino e uma
menina, ambos esfarrapados e de cabelos muito claros,
treparem no muro do jardim e rirem da minha calva. Leio
nos seus olhos brilhantes: “Veja, um careca!” (145)
Antigüidade: (séc. 6 antes da nossa era- séc 4 e 5 da nossa
era).
E eu penso que Hércules, após a mais picante das suas
proezas, não sentiu tão doce langor como o que eu
experimentava depois de cada aula. (112)
Numa palavra, não tem nada a ver com Hécuba. (110)
- Epíteto (anos 50 -138 da n. e.)
- Marco Aurélio (anos 161 - 180 n.e)
188
deixam-se influenciar facilmente pelos escritores mais
recentes, mesmo de segunda classe, mas são de todo
indiferentes a clássicos como Shakespeare, Marco Aurélio,
Epícteto ou Pascal...(139)
-Idade Média (séc. 5-14):
A mulher moderna é tão chorosa e rude de coração como
na Idade Média. (125)
A sarcástica frase “a Rússia ser invadida por exércitos chineses...”
suscita uma associação com a invasão da Rússia pelas hordas tártaro-
mongóis no século 13.
Época da Renascença (séc. 15-16):
Shakespeare (1564-1616)
...eu amei apaixonadamente pela sua inteligência lúcida e
boa, pela alma pura, pela beleza e, como Otelo a
Desdêmona, pela “compaixão em relação à minha
ciência... (104)
Modernidade (séc. 16-17):
-Pascal (1623 - 1662)
Século 18:
189
-Bach (1685-1750)
As mãos e Hnekker falam de fugas, contrapontos,
cantores e pianistas, de Bach e Brahms...(128)
-Karamzin, "Pobre Lisa" (1792)
- De ninguém tenho tanta pena como da nossa pobre
Lisa. (105)
Século 19:
-Está representado inteirinho por nomes e citações, a começar por
Krylov (fábulas de 1808):
Assim aconteceu um dia, passei muito tempo olhando
Hnekker com desdém e de repente, sem mais nem menos,
soltei:
– “Sucede às águias descer mais que as galinhas.
– Mas estas nunca hão de subir às nuvens...” (147)
- Araktchéev (1769-1834):
...e então a minha visão do mundo pode ser resumida nas
palavras do famoso Araktchéiev numa das suas cartas
íntimas: “Tudo o que há de bom no mundo não pode
existir sem ruim, e há sempre mais coisas ruins que boas”
(142)
- Tchádski “Infelicidade devida ao espírito” (1823-1827):
190
...quando ele procura convencer-me a todo custo de que
Tchátzki, que conversava muito com imbecis e amava
uma imbecil, era um homem muito inteligente... (120)
-Turguénev, “Diário dum homem supérfluo” (1849):
A cabeça e as mãos tremem-me de fraqueza; o pescoço,
a exemplo de uma heroína de Turguiêniev... (102)
- Nekrássov (1821-1877)
- Kaviélin (1818 -1885)
- Pirogov (1810-1881)
- Skóbelev (1843-1882)
Século 20:
Não sei o que será daqui a cinquenta ou cem anos...(120)
Gostaria de acordar daqui a uns cem anos e espiar, ao
menos com um olho, o que será da ciência. (159)
Como pode ver-se, um alargamento extraordinário dos limites
temporais: do século 13 antes da nossa era ao fim do século 20 da nossa
era.
Com isso, a palavra história adquire um significado especial no
título da novela.
Na narrativa, está entrelaçada uma grande quantidade de nomes
de países e cidades, reminiscências-associações (Hékuba-Grécia), Marco
Aurélio-Roma, Shakespeare-Inglaterra, Patti-Itália etc.) e pormenores de
caráter geográfico:
Geralmente, ela está lendo, deitada sobre o divã turco
ou o sofá. (131)
191
Mas eis que percorremos a escada, depois o corredor
escuro, com uma janela italiana, e entramos no quarto
de Lisa. (153)
e nacionalidades:
Todas essas notícias se parecem e podem ser reduzidas
ao seguinte tipo: um francês fez uma descoberta, outro,
um alemão, pilhou-o em flagrante, demonstrando que
essa descoberta já fora feita em 1870 por certo
americano, e um terceiro, igualmente alemão, foi mais
esperto que ambos, demonstrando-lhes que eles
cometeram uma gafe, confundindo, sob o microscópio,
bolinhas de ar com o pigmento escuro. (146)
Provavelmente, a Patti podia cantar-lhe bem junto ao
ouvido, a Rússia ser invadida por exércitos chineses,
ocorrer um terremoto, e ele não moveria um membro
sequer, continuando calmamente a olhar em seu
microscópio, o olho entrecerrado.(110)
...mas assim mesmo não compreendo a sua presença;
ela desperta em mim a mesma perplexidade que se
fizessem um zulu sentar-se à mesa comigo. (126)
Desse modo, se fizermos um balanço, nas páginas da novela,
encontraremos, claramente ou às ocultas, por associação, a Rússia,
Varsóvia, Khárkov, Ialta, Ufá, a Criméia, o Cáucaso, o Volga, Biérditchev, a
Europa, a Alemanha, a Inglaterra, a França, a Itália, a Grécia, a China, a
América e a África (zulu). Todas essas menções não possuem importância
sob o aspecto do enredo ou dos motivos e são, em essência, “fortuitos”, e
lembram intuitivamente que, para além do lugar principal da ação, no qual
192
o professor escreve os seus apontamentos, existe um mundo inteiro.
Costuma-se dizer que o homem precisa só de pouco
mais de dois metros de terra. Mas, ora, esse pouco mais
de dois metros é necessário a um cadáver, não a um
homem. O homem precisa não desse pouco mais de dois
metros de terra, não duma herdade, mas do globo
terrestre inteiro, de toda a natureza, onde, no vasto
espaço livre, ele possa manifestar todos os traços e
peculiaridades do seu espírito livre.121
Nós vemos que o espaço, limitado por Moscou, pela datcha ao pé
dessa cidade e Khárkov, e o tempo, resumido a três-quatro meses e uma
vida humana (pelas recordações), nos apontamentos de Nikolai
Petróvitch, feitos na própria novela (acompanhando a ideia do autor),
alargam-se incomensura-velmente e abarcam quase “todo o globo
terrestre” e toda a história da Humanidade.
Assim, um “acontecimento individualizado” adquire dimensão
global. Tais “histórias enfadonhas” aconteceram e acontecerão sempre,
independente-mente de época, em qualquer ponto da Terra.
Semelhante modo de formação do cronótopo literário é um
procedimento importantíssimo de Tchékhov. Em relação a isso, podemos
lembrar o conhecido mapa da África no gabinete de Voinítski (“Tio Vánia”),
que motiva discussões até hoje no mundo científico, e a enfatizada inter-
relação entre o passado e o presente em “Luzes” e “O estudante” e o
futuro irrealmente distante em “A gaivota” .
Há já milhares de séculos a terra não carrega em sua
superfície nenhuma criatura viva... (“A gaivota”, tradução
nossa).
121
A.TCHÉKHOV, Moscou, 1977, p.58.
193
O estudante novamente pensou que, se Vassilissa
chorara e a filha dela ficara desconcertada, então,
claramente, o que ele acabara de contar e que
acontecera dezanove séculos antes, tinha relação com o
presente — com ambas as mulheres e, provavelmente,
com aquela aldeia deserta, com ele próprio, com todas
as pessoas... O passado, pensava ele, está ligado com o
presente por uma corrente ininterrupta de
acontecimentos, decorrentes um do outro. E pareceu a
ele que ele acabara de ver as duas extremidades dessa
corrente: tocara uma, e a outra tremera. (“O estudante”,
tradução nossa).
194
5. Conclusão
O princípio da objetividade da narrativa, como basilar para a poética de
Tchékhov do final dos anos de 1880 e começo dos de 1900, exigia um
novo tratamento, uma nova expressão da posição autoral no texto. Da
confissão da personagem transparece uma visão de mundo do próprio
escritor, o qual, propondo de modo não impertinente nem obsessivo uma
multivariedade de tratamentos das suas obras, emprega sutilíssimos
sinais, ocultos nas profundezas do texto, para o diálogo com o leitor,
contando com a intuição, a experiência e o faro literário deste.
A fusão do concreto e tangível com o inconstante e condicional,
do individual com o genérico e do efêmero com o eterno equilibra,
segundo as suas próprias palavras, todos “os prós e contras”, criando um
mundo simbólico com mais de um sentido mas, ao mesmo tempo, real,
reconhecível e irreal.
E, com auxílio duma arquitectónica ordenada, rigorosamente
regulada, Tchékhov consegue uma insuperável harmonia na representação
desse mundo, agindo tanto na consciência, quanto, como a música ou a
poesia, no subconsciente do leitor.
Na novela estudada por nós, ele enfatiza de modo muito claro
precisamente a estrutura, o arranjo, colocando a própria palavra
“composição”, bem como a palavra “final”, nos lábios da persona-gem e
entreabrindo a cortina dum trabalho artístico bem pensado e,
simultaneamente, guiado pela inspiração e pela intuição na cena-
recordação duma conferência ministrada pelo professor.
Cada qual dos elementos do sistema estudado por nós na novela
“Uma história enfadonha” por si só basta a si e possui uma dinâmica e o
seu próprio sentido, e, com isso, como assinalámos, todos eles como que
dialogam entre si, formando um todo uno no nível do subtexto, um novo
campo de sentidos subordinado ao desígnio geral do autor, sobre cuja
base está a antítese “História-indivíduo” , refletida já no título e no
subtítulo, o conflito, o contraponto entre a finitude da vida individual e o
fluxo do tempo e do espaço.
195
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