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} UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas - Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada Programa de Pós-Graduação em Teoria Literária e Literatura Comparada Isabel Lopes Coelho A representação da infância na literatura infantojuvenil europeia a partir da segunda metade do século XIX: estudos sobre os romances Sans famille, As aventuras de Pinóquio e Peter e Wendy [versão corrigida] São Paulo 2018

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas - Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada

Programa de Pós-Graduação em Teoria Literária e Literatura Comparada

Isabel Lopes Coelho

A representação da infância na literatura infantojuvenil europeia a partir da segunda

metade do século XIX: estudos sobre os romances Sans famille, As aventuras de Pinóquio

e Peter e Wendy

[versão corrigida]

São Paulo

2018

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas - Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada

Programa de Pós-Graduação em Teoria Literária e Literatura Comparada

A representação da infância na literatura infantojuvenil europeia a partir da segunda metade

do século XIX: estudos sobre os romances Sans famille, As aventuras de Pinóquio e Peter e

Wendy

[versão corrigida]

Isabel Lopes Coelho

Tese apresentada à Banca Examinadora como

exigência parcial para a obtenção do título de

Doutora em Letras pelo Programa de Pós-

Graduação em Teoria Literária e Literatura

Comparada do Departamento de Teoria Literária e

Literatura Comparada da Faculdade de Filosofia,

Letras e Ciências Humanas da Universidade de

São Paulo.

Orientador: Prof. Dr. Marcus Mazzari

São Paulo

2018

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ENTREGA DO EXEMPLAR CORRIGIDO DA

DISSERTAÇÃO/TESE

Termo de Ciência e Concordância do (a) orientador (a)

Nome do (a) aluno (a): _Isabel Lopes Coelho________________

Data da defesa: __07___/__11___/__2018__

Nome do Prof. (a) orientador (a): __Marcus Vinivius Mazzari_

Nos termos da legislação vigente, declaro ESTAR CIENTE do conteúdo

deste EXEMPLAR CORRIGIDO elaborado em atenção às sugestões dos

membros da comissão Julgadora na sessão de defesa do trabalho,

manifestando-me plenamente favorável ao seu encaminhamento e

publicação no Portal Digital de Teses da USP.

São Paulo, __20__/__12___/___2018____

__________

___________________________________________________

(Assinatura do (a)

orientador (a)

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Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio convencional ou

eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.

Catalogação na Publicação Serviço de Biblioteca e Documentação

Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo

C672r

Coelho, Isabel

A representação da infância na literatura infantojuvenil europeia a partir da segunda metade do século XIX: estudos sobre os romances Sans famille, As aventuras de Pinóquio e Peter e Wendy / Isabel Coelho ; orientador Marcus Mazzari. - São Paulo, 2018.

225 f.

Tese (Doutorado)- Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas

da Universidade de São Paulo. Departamento de Teoria Literária e

Literatura Comparada. Área de concentração: Teoria Literária e

Literatura Comparada.

1. Literatura infantojuvenil. 2. As aventuras de Pinóquio. 3. Peter e Wendy. 4.

Sans famille. 5. romance infanto

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Folha de avaliação

___________________________________________________________________________

Nome: COELHO, Isabel Lopes

Título: A representação da infância na literatura infantojuvenil europeia a partir da segunda

metade do século XIX: estudos sobre os romances Sans famille, As aventuras de Pinóquio e

Peter e Wendy

Tese apresentada à Banca Examinadora como

exigência parcial para a obtenção do título de

Doutora em Letras pelo Programa de Pós-

Graduação em Teoria Literária e Literatura

Comparada do Departamento de Teoria Literária e

Literatura Comparada da Faculdade de Filosofia,

Letras e Ciências Humanas da Universidade de

São Paulo, sob a orientação do Prof. Dr. Marcus

Mazzari.

Aprovada em: ____________

Banca Examinadora

Prof (a).

Dr(a).____________________________________________________________________

Instituição:__________________________________

Assinatura:___________________________

Julgamento:_________________________________________________________________

Prof (a).

Dr(a).____________________________________________________________________

Instituição:__________________________________

Assinatura:___________________________

Julgamento:_________________________________________________________________

Prof (a).

Dr(a).____________________________________________________________________

Instituição:__________________________________

Assinatura:___________________________

Julgamento:_________________________________________________________________

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Prof (a).

Dr(a).____________________________________________________________________

Instituição:__________________________________

Assinatura:___________________________

Julgamento:_________________________________________________________________

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Para a Zezé

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Agradecimentos

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Agradeço ao meu orientador, Marcus Mazzari, pelo acompanhamento e orientação durante

esses quatro anos de trabalho, bem como à banca de qualificação composta por Augusto Massi

e João Luís Cardoso Tápias Ceccantini pelos olhares inspiradores. Também deixo uma palavra

de gratidão a Jochen Weber, diretor da International Jugendbibliothek de Munique (Alemanha),

pela bolsa de estudos para mim concedida no ano de 2015, e ao professor Peter Hunt, que não

apenas acompanhou o desenvolvimento deste trabalho como gentilmente concedeu uma

entrevista exclusiva para enriquecer o mesmo. E, finalmente, aos meus pais, que

carinhosamente me proporcionaram os meios para que eu chegasse até aqui.

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Resumo

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COELHO, Isabel Lopes. A representação da infância na literatura infantojuvenil europeia a

partir da segunda metade do século XIX: estudos sobre os romances Sans famille, As aventuras

de Pinóquio e Peter e Wendy. 2018. XX p. Tese (Doutorado em Teoria Literária e Literatura

Comparada) – Faculdade de Letras, Filosofia e Ciências Humanas. São Paulo, 2018.

Este trabalho visa estudar a representação da infância e da criança em romances europeus

escritos entre 1850 e a primeira década do século XX. O corpus analisado compõe-se de três

obras que se inserem na chamada literatura infantojuvenil. A primeira intitula-se Sans famille,

escrita pelo francês Hector Malot e publicada em 1878. A segunda, de autoria do italiano Carlo

Collodi, é o clássico As aventuras de Pinóquio, publicado entre 1881 e 1883. E, finalmente, a

terceira obra, Peter e Wendy, foi escrita por J. M. Barrie e publicada em 1911. A pesquisa leva

em conta alguns fatores decisivos para o desenvolvimento da literatura infantojuvenil europeia.

Um deles é a percepção de que a infância constitui, de fato, uma fase de desenvolvimento

marcadamente distinta da adulta. O mercado editorial, atento às percepções de sua época, passa

a produzir uma quantidade de obras destinadas ao público jovem, algo até então sem

precedente. Tais obras se diferenciam das antecessoras em especial pela linguagem e pelos

temas de interesse específico deste público. Além disso, a própria literatura irá incorporar em

sua narrativa a criança e o jovem como protagonistas, reforçando ainda mais o contato com esse

novo público leitor. Sob a inspiração dos ensaios de Erich Auerbach em sua obra Mimesis,

também neste trabalho foram selecionadas três obras de culturas diferentes e que pudessem

trazer informações sobre a representação ficcional da infância. A narrativa francesa Sans

famille, imbuída dos movimentos sociais do século XIX, traça um retrato da criança

abandonada (enfant trouvé), estigmatizada desde seu nascimento, um fenômeno presente em

toda a Europa. Em As aventuras de Pinóquio, o tema é outro: em uma Itália recém-unificada

pela força, o romance de Pinóquio problematiza a questão educacional, que será a bandeira do

novo governo. Por fim, Peter e Wendy representa crianças autônomas representando a crise de

valores entre as expectativas dos adultos e os desejos das crianças e, assim, acena para a

moderna literatura do século XX. Esta tese defende que tais obras são capitais para o surgimento

de uma nova narrativa destinada ao público infantojuvenil e que seus protagonistas iniciaram

uma nova representação de personagem criança na literatura, especialmente Pinóquio e Peter

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Pan. Ao final, o leitor encontra uma entrevista com o pesquisador inglês Peter Hunt, realizada

exclusivamente para este trabalho.

Palavras-chave: Infância. Representação. Literatura infantojuvenil. Europa. Romance do

Século XIX. Hector Malot. Sans famille. Carlo Collodi. As aventuras de Pinóquio. J. M. Barrie.

Peter e Wendy.

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Abstract

___________________________________________________________________________

COELHO, Isabel Lopes. The representation of childhood in European children's literature from

the second half of the nineteenth century: studies on the novels Sans famille, The Adventures

of Pinocchio and Peter and Wendy, 2018. XX p. Tese (Doutorado em Teoria Literária e

Literatura Comparada) – Faculdade de Letras, Filosofia e Ciências Humanas. São Paulo, 2018.

This work aims to study the representation of childhood and child in European novels written

between 1850 and the first decade of the twentieth century. The corpus analyzed is composed

of three works that belong to the so-called children’s literature. The first is entitled Sans famille,

written by the Frenchman Hector Malot and published in 1878. The second, by the Italian Carlo

Collodi, is the classic The Adventures of Pinocchio, published between 1881 and 1883. And

finally, the third work, Peter and Wendy, was written by J.M. Barrie and published in 1911.

The research takes into account some decisive factors for the development of European

children’s literature. One is the perception that childhood is, in fact, a phase of development

markedly different from that of adulthood. The publishing market, attentive to the perceptions

of its time, begins to produce a quantity of works destined to the young public, something

hitherto unprecedented. Such works differ from the predecessors, especially in the language

and themes of specific interest of this public. In addition, the literature itself will incorporate

the child and the young person as protagonists in their narrative, reinforcing even more the

contact with this new readership. Under the inspiration of Erich Auerbach’s essays in his

work Mimesis, in this work three books of different cultures were also selected bringing

information about the fictional representation of childhood. The French narrative Sans famille,

imbued with the social movements of the nineteenth century, traces a portrait of the abandoned

child (“enfant trouvé”), stigmatized since its birth, a phenomenon present throughout Europe.

In The Adventures of Pinocchio, the theme is different: in a newly unified Italy by force, the

novel problematizes the educational system, which will be the banner of the new government.

Finally, Peter and Wendy depicting autonomous children representing the crisis of values

between the expectations of the adults and the desires of the children and, thus, nods to the

modern literature of the twentieth century. This thesis argues that such works are important for

the emergence of a new narrative aimed at children and young people and that their protagonists

started a new representation of child character in literature, especially Pinocchio and Peter Pan.

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At the end, the reader finds an interview with the English researcher Peter Hunt, made

exclusively for this work.

Keywords: Childhood. Representation. Children’s literature. Europe. XIX century novel.

Hector Malot. Sans famille. Carlo Collodi. As aventuras de Pinóquio. J. M. Barrie. Peter e

Wendy.

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Sumário

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Introdução 21

Capítulo 1 - A representação da infância no romance,

o romance como fabulação da infância 30

1.1 A criança e o jovem ocupam o lugar de protagonistas nos romances 34

1.2 Momento de ruptura: o romance de aventura e

o romance escolar surgem na literatura infantojuvenil 40

1.3 Representação literária da infância: emancipação da criança 48

1.4 Fantasia do inconsciente: evasão da realidade 53

Capítulo 2 – Sans famille e o romance infantojuvenil realista:

a transformação da criança-objeto em sujeito 59

2.1 A criança-objeto do século XIX na literatura francesa: ecos e origens 71

2.2 O quarto estado como tema do romance 83

2.3 Sans famille: um romance pendular de linguagem dramática 88

Capítulo 3 – As transformações de Pinóquio 101

3.1 O romance collodiano e o papel da criança no Risorgimento italiano 117

3.2 Gêneros literários e fontes presentes em As aventuras de Pinóquio 129

3.3 As transformações dos personagens-brinquedos do século XIX 136

3.4 A revolução da linguagem literária em Pinóquio 141

Capítulo 4 – Peter e Wendy: Inversão do faz de conta; a realidade delirante 145

4.1 Peter ou Wendy: problemas na definição do herói 156

4.2 A infância vai ao divã 161

4.3 “Surge Peter” 171

4.4. Crianças sem coração 183

Considerações finais 187

Referências 199

Apêndice: Entrevista com Peter Hunt 216

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Piping down the valleys wild

Piping songs of pleasant glee,

On a cloud I saw a child,

And he laughing said to me:

“Pipe a song about a Lamb!”

So I piped with merry cheer.

“Piper, pipe that song again.”

So I piped, he wept to hear.

“Drop thy pipe thy happy pipe,

Sing thy songs of happy cheer.”

So I sung the same again,

While he wept with joy to hear.

“Piper, sit thee down and write

In a book, that all may read.”

So he vanished from my sight,

And I plucked a hollow reed,

And I made a rural pen,

And I stained the water clear,

And I wrote my happy songs

Every child may joy to hear.

William Blake (1970, p. 3)

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Como se forma o sentido? Como se dá nosso encontro

com um texto? Precisamos entender o que ocorre quando

lemos, e qualificar cada etapa com o que talvez esteja

acontecendo com uma criança.

Por isso, não me proponho a analisar livros como

muitos leitores em países de língua inglesa foram

ensinados a fazer – separando enredo, personagem,

espaço, estilo e assim por diante. Afora a discutível

possibilidade de que tal procedimento possa nos

capacitar a enxergar o livro com maior clareza, nunca

consegui ver qual o sentido disso. Pode ser, apenas, o de

reduzir a experiência do texto a uma série de passos

analíticos. Caso se deseje testar a capacidade analítica das

pessoas, seria melhor usar materiais práticos, não

voláteis. O método também carrega muito peso. Para a

maioria dos leitores, obrigados a fazer esse tipo de

exercício na escola, é provável que destrua qualquer

ganho que uma pessoa possa ter ao se encantar por um

livro.

Peter Hunt (2010, p. 21)

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INTRODUÇÃO

No posfácio de sua obra Mimesis, Erich Auerbach (2004) expõe as preocupações que deram

origem ao problema central de seu livro, bem como a metodologia usada. Por meio de obras

literárias emblemáticas, o crítico formula a seguinte questão: como se deu a representação da

realidade nos textos da literatura ocidental? Para responder a esta pergunta, escolhe vinte épocas

da história do Ocidente. Cada uma dessas partes é representada por uma obra que, por sua vez,

originou um capítulo do livro. Pela maneira magistral como o autor penetra em cada texto,

escolhendo uma cena, um parágrafo, quiçá às vezes um gesto para elaborar o conceito de realidade

de toda uma época, Mimesis tornou-se referência básica para a compreensão não apenas da literatura,

mas da própria história intelectual ocidental. Por mais indubitável que seja a leitura que Auerbach

propõe sobre as obras que aborda, ainda assim há de se entender como vinte obras representam toda

a história da literatura ocidental, da Grécia Antiga ao século XX. A este questionamento Auerbach

(2004, p. 501-502) parece ter uma simples e sincera resposta:

O método da interpretação de textos deixa à discrição do intérprete um certo

campo de ação: pode escolher e dar ênfase como preferir. Contudo, aquilo que

afirma deve ser encontrável no texto. As minhas interpretações são dirigidas,

sem dúvida, por uma intenção determinada; mas esta intenção só ganhou

forma paulatinamente, sempre durante o jogo com o texto, e, durante longos

trechos, deixei-me levar pelo texto. Os textos também são, em sua grande

maioria, escolhidos ao acaso, muito mais graças ao encontro casual e à

inclinação pessoal do que à intenção precisa. Em pesquisas desta espécie, não

se mexe com leis, mas com tendências e correntes que se entrecruzam e

complementam da forma mais variada possível. Não estava, de modo algum,

interessado em oferecer somente aquilo que servisse, no sentido mais estrito,

à minha intenção; pelo contrário, empenhei-me em acomodar os múltiplos

dados e dar a minhas formulações a correspondente elasticidade.

A resposta de Auerbach, portanto, deixa patentes pontos centrais de seu trabalho: o estudo parte

de uma intenção clara (responder a pergunta inicial); todas as conclusões advêm diretamente

do texto e somente dele; a seleção dos textos contou com uma escolha pessoal; a análise das

obras não começaria com uma resposta preconcebida, mas seria formulada à medida que o texto

fosse aparecendo de maneira mais evidente para o leitor.

Essa linha de raciocínio, pela sua lógica eficiente e natural, pela flexibilidade com que olha o

objeto de estudo, com pequenas adaptações necessárias à natureza de cada desafio, parece ser

transponível para outras situações e paradigmas. Foi inspirado nessa metodologia que este

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trabalho surgiu. A primeira grande secção do corpus determinou a literatura infantojuvenil1

como campo de pesquisa. Por tratar do universo da criança e do jovem, porém não

exclusivamente, o problema que se colocou de início foi: como se dá a representação da infância

na literatura infantojuvenil? Sabendo, no entanto, que a pesquisa tem limitações evidentes e óbvias

que não lhe permitem ser comparada com a de Auerbach, foi necessário delimitar o corpus para um

espectro temporal bem mais conciso daquele apresentado em Mimesis. Além do mais, a literatura

infantojuvenil compõe-se de uma variedade de obras muito grande, apresentando, portanto, uma

inicial dificuldade para o desenho de um quadro panorâmico extenso e coeso2.

A pergunta primordial citada acima sempre permeou os escritos para crianças e jovens. Pois a

literatura infantojuvenil é tanto reflexo quanto produtora da imagem da infância. Houve um

momento da história da literatura infantojuvenil em que a criança surgiu como protagonista,

como heroína, guinando a estética dos textos para um caminho de extrema originalidade e, de

fato, criando uma representação da infância mais realista. Esse período pode ser localizado do

século XIX, especialmente a partir de sua segunda metade, ao início do século XX, o qual

tornou-se, de imediato, um corpus rico e atraente para o desenvolvimento de tal pesquisa – mais

precisamente entre 1850 e 19143. Não apenas porque a época é conhecida como a Era de Ouro

da literatura infantojuvenil, por sua criativa produção sem precedentes na história da literatura

ocidental, como também porque parecia um tema inédito para o público leitor brasileiro. O

1 A qualificação “infantojuvenil” demanda explicações de ordem terminológica. Atualmente, convencionou-se

que a natureza das obras literárias para crianças e jovens admite uma distinção para cada um desses dois públicos.

Assim, obras para crianças seriam “infantis” e para jovens, “juvenis”. A opção pelo uso de “infantojuvenil” neste

trabalho advém de uma explicação histórico-temporal. Se hoje “infantojuvenil” parece anacrônico, para o estudo

da literatura no século XIX e no início do século XX parece ser a melhor opção, devido à incipiente separação

entre crianças e jovens no estudo da juventude. Além disso, aos olhares contemporâneos, os romances para

crianças e jovens do século XIX não propunham uma adequação de faixa etária, o que resultava em uma maior

liberdade para escrever longas narrativas com protagonistas ainda crianças. 2 No verbete sobre literatura infantojuvenil escrito por André Bay, na obra Histoire des littératures 3, da coleção

Encyclopédie de la Pléiade, sob direção de Raymond Queneau, localizado na seção de “Literaturas marginais”, a

proposta de definição de literatura infantil segue da seguinte maneira: “A literatura infantil é muito diversa para

que se possa pretender propor um quadro completo, ela é muito confusa para que se possa propor um inventário, mesmo

assim, podemos, por meio dos exemplos que são apresentados, colocar em evidência seus principais registros. Seu

universalismo é também uma característica inevitável. Se o feérico francês é terrestre, se o inglês se passa no ar (com os

elfos e Peter Pan), se o alemão é no subsolo e o russo, nas fontes de águas [roussalky] etc., o feérico enquanto literatura

infantil tem uma tendência de assumir todos os elementos (BAY, 1978, p.1693, tradução nossa). 3 Tal percepção, no entanto, é fruto da construção de uma nova configuração familiar que advém, ao menos na

França, do final do século XVIII. Após a queda da monarquia, com a nova constituição política do país, a família

ganha importância central e a criança, um lugar primordial nos textos, especialmente nos chamados “romances

infantis” (LYNN HUNT, 2017). Tais romances, ainda assim, não tinham como objetivo representar a infância,

mas sim reforçar os valores burgueses da conquista e da transformação. O século XIX, no entanto, abriria espaço

para a criança protagonista tanto em obras para leitores adultos como para crianças e jovens.

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momento haveria de apresentar obras fundamentais para o desenvolvimento da análise, além

de aprofundar os estudos sobre obras europeias que influenciaram toda a história moderna da

literatura infantojuvenil, inclusive a brasileira. O melhor exemplo dessa conexão são as

traduções para o português feitas por Monteiro Lobato (1882-1948), considerado o “pai da

literatura brasileira”4.

Definidos, então, o propósito e o momento, o próximo passo seria encontrar quais culturas da

Europa seriam mais representativas para a seleção das obras. Na melhor influência que

Auerbach pode proporcionar, grande parte da motivação da escolha dessas obras deu-se por

afinidades pessoais e experiências de leitura crítica5, o que não dispensa o argumento científico.

Desde os tempo de La Fontaine (1621-1695) e de Charles Perrault (1628-1703), a França

desenvolveu uma literatura consistente e prolífica, madura o bastante para estabelecer tipos

literários que serviriam de influência para escritores das gerações seguintes. No século XIX, a

grande contribuição das obras francesas foi justamente incorporar a criança como personagem

em romances, sendo o exemplo mais contundente a dupla Cosette e Gavroche de Os miseráveis

(2002), de Victor Hugo (1802-1885), inaugurando no tempo moderno o tipo “criança-vítima”

da sociedade. Na literatura infantojuvenil, o herói mais emblemático desse tipo de literatura é

Rémi, o protagonista da obra Sans famille (2014), de Hector Malot (1830-1907), que

emocionaria uma nação e abriria espaço para toda uma literatura dita “engajada”.

A Itália assim como a Espanha quase não tinham representatividade na literatura infantojuvenil

no século XIX (ESCARPIT, 2008). Porém, mesmo dentro de um contexto onde o livro para

crianças e jovens ainda era incipiente, foi um escritor italiano que escreveu uma das obras mais

icônicas do período, também servindo de influência para a consolidação da literatura

infantojuvenil como um gênero digno de atenção. As aventuras de Pinóquio (2012), de Carlo

Collodi (1826-1890), é um exemplo de obra que revolucionou a linguagem da época – ainda

4 Além de criar uma extensa obra para crianças, absolutamente original, imbuído da missão de proporcionar ao

jovem leitor textos criativos e únicos e que dialogasse com a realidade cultural brasileira, ainda assim Lobato

dedicou boa parte de sua fortuna crítica à tradução de clássicos europeus do século XIX, como Hans Christian

Andersen (1932), Rudyard Kipling (1933), Lewis Carroll (1936), irmãos Grimm (1938), Charles Perrault (1939),

Daniel Defoe (1945), Carlo Collodi (1955), para citar alguns. E, em alguns casos, chegou até a fundir seus

personagens com a obra original, como é o caso de Peter Pan (1930). 5 Tive oportunidade de editar As aventuras de Pinóquio e Peter e Wendy enquanto trabalhava como diretora no

Núcleo Infantojuvenil da editora Cosac Naify. Ambos os processos de edição foram marcantes. O mergulho

vertical durante alguns meses nesses textos revelaram muito mais do que simples histórias para crianças e jovens.

Poderosos e inquietos, seus heróis, ainda hoje atuais, incomodam o adulto que subestima a criança por libertar o

leitor de condutas sociais obrigatórias preconcebidas.

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em formação. Ainda hoje é impossível creditar ao romance6 de Collodi um viés de leitura único,

abrindo espaço para interpretações variadas sobre sua intenção primordial e, por consequência,

sobre a representação da infância no período.

Já a Inglaterra representou a grande cultura a proporcionar as obras da Era de Ouro da literatura

infantojuvenil. Foram os autores ingleses da segunda metade do século XIX que abriram as

portas para uma literatura infantojuvenil criativa o suficiente para inovar no estilo de escrita, na

forma de apresentação (o romance) e se tornar a grande referência do imaginário literário de

crianças e jovens. A variedade de obras inglesas surgidas nesse período tornou a tarefa de

escolha um tanto quanto difícil. Há um livro, porém, já na aurora do XX, cuja linguagem e

cujas motivações estabeleceriam novos padrões de representação da infância, abrindo caminho

para o novo século: Peter e Wendy de James Matthew Barrie (1860-1937), publicado como

romance em 1911. Uma obra controversa que alçaria um olhar preciso ao seu tempo ao trazer

conflitos de ordem estrutural (quem é o herói do romance?) e de público-alvo (para quem o

romance se dirige?), elevando a literatura infantojuvenil a um alto grau de qualidade. Nesta

obra, a representação da infância ganha uma complexidade sem precedentes.

Assim, Sans famille, As aventuras de Pinóquio e Peter e Wendy formam o corpus desta pesquisa

que se propõe a achar evidências em seus textos acerca da representação da infância. Os três

textos fazem parte do panteão de cânones da literatura infantojuvenil.

*********

O estudo da literatura infantojuvenil na academia é, em linhas gerais, uma atividade recente

como pesquisa formal. Datada do final do século XX, ainda hoje são poucas as universidades

que apresentam programas de estudo da literatura infantojuvenil como formação integral,

restringindo-se a disciplinas optativas. Certamente algumas culturas, como a inglesa, a norte-

americana e a francesa, avançaram nesse quesito. Porém, pode-se dizer que o estudo da

literatura infantojuvenil em nível teórico, apesar de prolífico, apresenta uma questão primordial

que ajuda a desorganização da crítica: os livros para crianças podem ser lidos à luz da crítica já

6 Este trabalho considera que as obras Sans famille, As aventuras de Pinóquio e Peter e Wendy podem ser

legitimamente classificadas como romances. Esta leitura não é usual para textos ditos infantojuvenis, sendo uma

outra nomenclatura possível “narrativas juvenis”. Porém, de acordo com a argumentação que será proposta neste

trabalho, tais obras apresentam uma estrutura bastante próxima a do Bildungsroman, o que legitima a

classificação

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25

existente ou trata-se de um objeto singular e que, por isso, merece uma crítica com ferramentas

de análise própria? A resposta para essa questão, infelizmente, reside não exatamente nas

especificidades da literatura infantojuvenil, mas no embate acadêmico que se estabelece quando

esta é julgada inferior à “literatura”. Teria a literatura infantojuvenil estofo e densidade

suficientes para fazer uso das complexas ferramentas da teoria literária? Para os que ainda têm

dúvidas quanto à resposta a essa pergunta, o crítico Aidan Chambers7 (apud HUNT, 2010, p.

26) resume a situação ao dizer:

Muitas vezes tenho me perguntado por que os teóricos da literatura ainda não

perceberam que tudo o que dizem quando falam de fenomenologia,

estruturalismo, desconstrução ou qualquer outra abordagem crítica pode ser

mais claro e facilmente demostrado na literatura infantil. O inverso disso é

imaginar por que muitos de nós que nos ocupamos da literatura infantil temos

sido tão lentos para reunir as duas.

A inquietação de Chambers joga luz em possíveis e variadas abordagens que a literatura

infantojuvenil reúne, e como suas obras, às vezes de poucas páginas, condensam parte das

grandes teorias da cultura literária. Em uma postura um pouco mais defensiva, porém, ainda

assim realista e necessária, Peter Hunt levanta uma segunda constatação acerca da percepção

do estudo da literatura infantojuvenil na academia. Se o corpus já é visto como um material

“pouco nobre”, o pesquisador envolvido muitas vezes também é considerado um outsider da

“verdadeira pesquisa acadêmica”. Nas palavras de Hunt (2010, p. 31),

quem procura desenvolver uma “poética” coerente da literatura infantil terá

de justificar a tarefa tanto para os de fora como para quem atua na área.

Qualquer um que trabalhe de alguma maneira com livros para crianças deve

constantemente se justificar para uma classe de pessoas diferentes, e batalhar

por vários tipos de status.

Para Peter Hunt, portanto, seria absolutamente legítimo desenvolver para o estudo crítico e

teórico da literatura infantojuvenil abordagens que partam do próprio objeto, considerando,

então, que os caminhos percorridos e a chegada serão diferentes daqueles usados pela

bibliografia tradicional. (De fato, Hunt é um dos grandes teóricos da literatura infantojuvenil a

desenvolver uma “poética” crítica para esse objeto tão delicado e intrigante.) Além disso, de

acordo com Hunt, a pesquisa em literatura infantojuvenil necessita de um elemento ainda pouco

abordado pela teoria literária: o leitor. A criança, portanto, não pode ser negligenciada para a

formação do sentido da obra, uma vez que as estratégias narrativas desenvolvidas visam,

primordialmente, ao atendimento desse público.

7 CHAMBERS, A. Introducing Books to Children. Londres: Heinemann, 1973.

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No presente trabalho, aproveitando a disfarçada complexidade das obras denominadas

infantojuvenis, tomou-se a liberdade de misturar uma bibliografia teórica da literatura (diga-se)

tradicional – para as questões formais genéricas – com uma bibliografia especializada em

literatura infantojuvenil – para os elementos próprios das obras para crianças e jovens. Assim,

o estudo do romance, por exemplo, apoia-se em Georg Lukács (2015), E. M. Forster (1998) e

Ian Watt (2010); o estudo do herói, em Joseph Campbell (2007); e o do romance de formação,

em Franco Moretti (2000); em Sigmund Freud (2010), Marthe Robert (2007) e Lynn Hunt

(2017) para a breve relação da pesquisa com o conceito de romance familiar; além, obviamente,

do já citado Auerbach. Para o estudo propriamente dito da literatura infantojuvenil, foi utilizada

uma vasta e variada bibliografia crítica e histórica, atendendo à diversidade de temas suscitados

por cada um dos romances estudados, dentro de seus contextos históricos e sociais8. Vale a

pena citar, no entanto, alguns autores que ocupam um lugar de destaque, por suas colocações

precisas e valiosas acerca da compreensão histórica, sociológica e literária das obras para

crianças e jovens. As ideias do já citado Peter Hunt (2010), de Jack Zipes (2007) e de Seth Lerer

(2009) contribuíram para a orientação teórica e crítica geral do trabalho, não apenas por meio

de suas obras, como também por consultas pontuais ao longo da pesquisa, respondidas por e-

mail9. Com Peter Hunt, por exemplo, a rica troca de mensagens originou uma breve entrevista

exclusiva localizada no apêndice deste trabalho. Obras como as de Ottevaere-Van Praag (1987)

e Chombart de Lauwe (1991) também foram fundamentais para a compreensão histórica da

literatura infantojuvenil e mesmo da posição da criança neste cenário.

8 A maior parte da bibliografia especializada usada neste trabalho foi coletada durante o meu período de fellowship

na Jugendbibliothek em Munique (Alemanha), na qual eu fui bolsista durante dois meses, em agosto e setembro

de 2015, dentro do âmbito da pesquisa deste doutorado. A experiência foi singular, não apenas por testemunhar e

usufruir de uma das maiores e mais completas bibliotecas especializadas em literatura infantojuvenil do mundo,

mas pela descoberta de correntes críticas, tendências e publicações ainda inéditas no Brasil, além de troca de

experiências com colegas de alto nível de graduação, como a teórica russa Marina Balina. Um outro fator que me

aproximou da bibliografia crítica foi, novamente, o trabalho como diretora e editora na Cosac Naify. Com ênfase

para obras acadêmicas e artísticas, a editora proporcionou-me a oportunidade de ajudar a conceber uma linha de

obras críticas e teóricas, paralelamente ao trabalho de publicação de obras para crianças e jovens. Foi nessa ocasião

que tive a oportunidade de entrar em contato com Peter Hunt por meio do livro Crítica, teoria e literatura infantil

(2010), cuja edição brasileira contou com a valiosa colaboração de especialistas, tornando a experiência

enriquecedora. 9 Pela distância cultural e temporal que os objetos de pesquisa impunham para mim, pesquisadora brasileira no

século XXI, vale ressaltar a valiosa contribuição desses acadêmicos para uma melhor compreensão da cultura

europeia, seus contextos históricos e implicações de ordem formal e estilística, tão necessários para a leitura

apurada das obras em análise.

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27

Nesse sentido, ao contrário das orientações de Hunt, este trabalho não incorporou a criança como fator

de análise literária com o intuito de validar expectativas de leitura. Por outro lado, oferece informações

específicas sobre o desenvolvimento do mercado editorial, um dado influente na produção das obras

escolhidas para esse corpus. É a partir das motivações mercadológicas, além de uma nova postura

dos escritores diante de seu próprio reconhecimento como autores de literatura infantojuvenil, que a

literatura aflora com mais autonomia e identidade.

*********

Historicamente, a literatura infantojuvenil tem como vocação a instrução, a formação de caráter.

Reflete tanto as normas do “jogo social” como as do “jogo cultural”10. As fábulas e os contos

maravilhosos, exemplos mais antigos da manifestação literária infantojuvenil, apresentam

universos e personagens fantásticos como metáfora para a instrução do bom comportamento,

além da dose de entretenimento necessária para criar o sentimento de evasão. Essa característica

da literatura infantojuvenil nunca se perdeu. Porém, em algumas épocas, como no século XVIII, a

porção “instrutiva” das histórias infantojuvenis tornou-se o objetivo principal das narrativas, em

detrimento da construção literária propriamente dita. Paul Hazard, em seu livro Les livres, les enfants

et les hommes defende a tese de que os adultos, por meio desse recurso, oprimem os leitores crianças

e lhes oferecem livros chatos, que “paralisam os desejos da alma”11.

A magia que a literatura infantojuvenil do século XIX jogaria sobre os leitores teria uma grande

dose de realidade. A percepção de que a criança e o jovem são seres autônomos e a infância é

uma fase preciosa da vida deslocou as narrativas dos castelos encantados para as ruas sujas das

grandes cidades. A mudança temática das histórias para crianças e jovens necessariamente implicou

uma nova forma de expressão, distanciando-se da estrutura do conto e aproximando-se da forma do

romance. Escarpit (2008, p. 73-4) demonstra essa transição:

Típico das tendências do século XVIII, o conto moral continua a ser oferecido

aos jovens leitores durante todo o século XIX. Mas, pouco a pouco,

particularmente na França, sua estrutura se modifica. A “história”

moralizadora e pedagógica se estende. O récit se divide em unidades de récit

10 “Mais do que o livro genérico, o livro infantojuvenil se situa ao mesmo tempo no jogo social e no jogo cultural.

É um objeto ‘breve’, mas é também um objeto textual, literário. Seu conteúdo é, em diversos graus, um reflexo da

sociedade, das normas e dos valores. Está inscrito no campo da ideologia, em sentido amplo, e é um veículo de

mensagem. Transmite uma experiência, uma visão de mundo e seu funcionamento” (ESCARPIT; VAGNÉ-

LEBAS, 1988, p.13-14). 11 “Os adultos oferecem às crianças livros que suscitam a chatice, capazes de adoecer a sabedoria, para sempre; livros

tolos e livros vazios; livros que paralisaram os poderes espontâneos da alma; livros absurdos, dezenas e centenas, que

caíram como granizo na primavera” (HAZARD, 1932, p. 10, tradução nossa).

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mais curtos para constituir capítulos. Os personagens se multiplicam. A intriga

se complexifica, e um novo elemento surge na literatura infantojuvenil, o suspense.

O conto moral se transforma naquilo que os italianos chamam de nouvelle e que

nós [franceses] chamamos de “pequeno romance” [petit roman].

Considerando os fatores já expostos (contexto de produção, temática e forma), o primeiro

capítulo deste trabalho tentará expor o desenvolvimento histórico da literatura infantojuvenil, a

partir do século XVIII, que converge para uma aproximação ao Bildungsroman (MORETTI,

2000). As crianças e os jovens protagonistas das histórias são expostos a conflitos, situações de

perigo e a outros acontecimentos, configurando experiências reais. A partir desses episódios,

as personagens aprendem valores éticos e morais, a descobrir sua própria individualidade e,

sobretudo, seu propósito de vida. As histórias para crianças e jovens passam não mais a versar

sobre contos de fada mas a se aproximar de uma literatura mais realista, sob a forma de narrativa

do Bildungsroman.

O romance de formação, de acordo com Moretti (2000) é a “forma simbólica da modernidade”,

a reação literária de uma Europa que tenta criar uma “cultura da modernidade” e na qual a

burguesia busca legitimidade. A juventude tornou-se a marca da renovação de uma geração que

ainda precisa de uma transformação rumo ao amadurecimento. Mas o ponto crucial que conecta

o Bildungsroman à presente pesquisa é o conflito básico que o subgênero oferece: a noção

subjetiva da personagem versus a socialização necessária para seu amadurecimento, ou a

relação entre o mundo objetivo e o subjetivo (LUKÁCS, 2015). De acordo com Moretti (2000,

p. 15), a questão pertence à civilização moderna burguesa: “o conflito entre o ideal de

autodeterminação e a demanda igualitária de socialização”.

As obras infantojuvenis do século XIX se aproximam da moderna forma do Bildungsroman

sem abandonar a tradicional estrutura da narrativa do herói, que empreende uma viagem repleta

de desafios em busca de sua identidade e seu amadurecimento. Mesmo distante da teoria

literária, os estudos de Joseph Campell (2007) apresentam certa utilidade para a compreensão

do sentido da viagem, cujo significado

fundamentalmente, é uma passagem para dentro – para as camadas profundas

em que são superadas obscuras resistências e onde forças esquecidas, há muito

perdidas, são revitalizadas, a fim de que se tornem disponíveis para a tarefa de

transfiguração do mundo (CAMPBELL, 2007, p. 35).

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Essa característica conecta as três obras objetos deste trabalho, pois seus protagonistas realizam

uma viagem, saem de seus lugares de origem e se deslocam para outros espaços. Por isso,

também as obras bebem na tradição dos romances de aventura. Ou seja, trata-se aqui de objetos

híbridos, que não podem ser definidos por apenas uma única teoria. Nos capítulos de análise

das obras deste trabalho, que compreendem do segundo ao quarto, selecionou-se um episódio

que simboliza a transformação da personagem em direção à busca da identidade, o conflito

entre o mundo objetivo e subjetivo, e, por consequência sua representação na sociedade. Rémi

enfrenta a morte preso em uma mina inundada por uma explosão; Pinóquio também enfrenta a

morte e vive uma real transformação de boneco em burrico; ambos, Peter Pan e Wendy,

enfrentam escolhas que poderão ressignificar suas vidas e mudar seus futuros.

*********

O jornalista e escritor Jonathan Cott, na introdução de seu delicioso livro Pipers at the Gates of

Dawn, descreve sua aproximação com a literatura infantojuvenil quando adulto. Passeando por

bibliotecas, Cott passou meses imerso em fábulas, contos de fada e nos clássicos do século XX.

Seu principal insight foi captar como a literatura infantojuvenil tem a capacidade de consolar e

ainda versar sobre as questões de seu tempo:

No meio da minha leitura (que foi além, ou voltou, para os livros dos séculos

XIX e XIX), o que eu comecei a descobrir é que a literatura infantojuvenil é

um corpo de obras que não simplesmente consola, como instrui e encanta, e

também claramente apresenta diferentes tipos de atitudes sociais e

comportamentais. E não apenas reflete um tipo específico de cena social, mas

também se transforma em um tipo de lente de aumento focada nas operações e nos

processos da sociedade como um todo (COTT, 1983, p. XVI, tradução nossa).

Este trabalho procura descrever um espírito de época, investigar as ambições literárias de

escritores, descrever a forma estética das obras, sem perder a conexão com o ambiente histórico.

Tenta, ainda, traçar os limites e as confluências entre o mundo objetivo e o ficcional, e como a

construção narrativa é ao mesmo tempo fruto e agente da construção de valores que organizam as

sociedades e as culturas. Mas o que ele visa acima de tudo é contribuir para o debate não apenas

acadêmico, mas de interesse geral tanto da ordem formal como afetiva; como se fosse um convite

para relembrar os lugares perdidos outrora tão importantes da nossa infância.

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30

CAPÍTULO 1. A REPRESENTAÇÃO DA INFÂNCIA NO ROMANCE, O ROMANCE COMO FABULAÇÃO DA

INFÂNCIA

Pois os livros infantis não servem para introduzir os seus

leitores, de maneira imediata, no mundo dos objetos, dos

animais e seres humanos para introduzi-los na chamada vida.

Só aos poucos o seu sentido vai se constituindo no exterior, e

isso apenas na medida em que se estabelece uma

correspondência adequada com o seu interior.

Walter Benjamin (2002, p. 61-62)

Um dos conceitos mais reveladores da obra de Sigmund Freud (1856-1939) é a ideia de

“romance familiar do neurótico”12. Quando a criança se depara com um mundo objetivo que

não atende a seus desejos (“princípio de prazer” e “princípio de realidade”), naturalmente

evade-se dessa “realidade” para construir sua própria utopia, seu próprio mundo possível, com

suas regras definidas e, sobretudo, na qual é a protagonista. A fabulação infantil é um exercício

de construção da identidade, um recurso legítimo que a criança encontra para se tornar um

indivíduo dotado da capacidade de agir, decidir e tentar não se frustrar. É o momento da vida

em que o imaginado acontece no presente, a possibilidade torna-se a opção mais concreta, a

ilusão manifesta-se com ares de real. A criança, em sua própria fábula, conscientemente

abandona as regras do mundo objetivo, as imposições dos adultos e os limites da infância para

criar uma nova moral, na qual pode ser a heroína ou a vilã, salvar ou destruir, num movimento

narcisista sem sofrer julgamentos externos. O ambiente da imaginação infantil é, em essência,

o lugar no qual é permitido mentir sem haver um juízo calcado na moral.

Essa fabulação, contudo, só existe em si mesma num tempo e num espaço determinados. Por

mais referencial que seja em relação ao mundo objetivo – afinal, tal narrativa só existe pela

evasão da realidade, em uma tentativa de recriá-la –, trata-se de uma “ficção elementar”, para

resgatar um termo freudiano. Portanto, resume-se a ser fruto da imaginação de uma criança.

Imaginação essa que se consolida como “verdade” e só será resgatada no adulto, que não mais

tem consciência dessa operação e cristalizou a fabulação como fato. Não por acaso, Freud

batizou esse conceito de “romance”. O processo de elaboração da fábula por uma criança –

ligeiramente visto acima – guarda semelhanças em diversos pontos com a construção de um

12 Freud aborda esse conceito no texto “Romances familiares” (FREUD, 1909[1908]/1996, vol. 9, p. 219-222).

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31

romance literário. Quem esclarece essa conexão é a crítica francesa Marthe Robert (1914-

1996), em sua obra Romance das origens, origens do romance (2007). Dedicada a resgatar as

origens do gênero, Robert assume em sua obra algumas ideias importantes para a compreensão

do romance. Uma delas seria que o romance é um gênero indefinido e por isso torna-se o meio

de expressão mais adequado para representar a imprevisibilidade da vida moderna. Outra seria

que o “romance familiar” varia entre duas “idades”, a da “criança perdida” e a do “bastardo”13.

Qualquer que seja o tipo do “romance familiar”, ambos operam dentro de uma lógica que se

assemelha ao pacto que a criança faz consigo ao chamar de real a sua imaginação:

O romance nunca se contenta em representar, pretendendo muito mais

fornecer, de todas as coisas, um “relatório completo e verídico”, como se

respondesse não à literatura, mas, em virtude de não sei que privilégio ou

magia, diretamente à realidade. Assim, ele trata espontaneamente seus

personagens como personagens, suas palavras como tempo real e suas

imagens como a própria substância dos fatos, o que vai ao encontro não de

uma doutrina saudável da arte – em que a representação é ela própria

assinalada no interior de um tempo e espaço convencionados: palco e cenários

de um teatro, versos de um poema, moldura de um quadro etc. –, mas do

convite ao sonho e à evasão de que o romance faz, por outro lado, sua

especialidade (ROBERT, 2007, p. 49).

O romance, portanto, se faz real dentro de seu próprio contexto, sem perder a perspectiva de

dialogar com o mundo objetivo, mesmo não tendo qualquer elemento que o faça existir como

fato. Para o leitor, resta a evasão, que espelha mas não reflete a realidade do mundo objetivo e

sim aquilo que o escritor considera real em sua ficção.

Se o romance como gênero guarda essa relação intrínseca com a fabulação infantil, a história

de seu desenvolvimento nos mostra que a criança e o jovem como personagens ficaram por

muito tempo à margem da elaboração narrativa ficcional. Foi apenas na segunda metade do

século XIX que surgem como adventos literários – sob as perspectivas formal, temática e

estilística – tipos de textos semelhantes ao romance, dedicados a retratar e a incorporar a figura

do jovem e da criança como protagonistas da ficção, sendo eles também o público leitor. O

período viveu uma proliferação intensa de histórias inéditas – ou seja, que não bebiam

diretamente dos textos tradicionais ou ao menos não faziam referência explícita a eles, como

os contos de fada, as fábulas, os textos clássicos e até os de cunho religioso. A produção do

13 Diz Robert (2007, p. 56-57): “A rigor, há duas formas de se fazer um romance: a do bastardo realista, que apoia

o mundo enquanto o ataca de frente, e a [da] criança perdida que, sem conhecimentos nem meios de ação, esquiva-

se do combate pela fuga ou a irascibilidade”. E, ainda: “O romancista é forçosamente levado seja a se comprometer

com o mundo, sobretudo no caso do bastardo edipiano, seja a criar deliberadamente um ‘outro’ mundo, o que

equivale a desafiar a verdade, se for a criança perdida a falar mais alto nele” (ROBERT, 2007, p. 58).

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século XIX para o público jovem apresenta personagens marcantes, autônomas em suas ações,

inseridas em uma estrutura narrativa que admite um exercício literário mais complexo.

Acrescentem-se a isso elementos da imaginação e da fantasia. Trata-se do momento em que os

escritores de obras destinadas a jovens leitores clamam por voz própria e reconhecimento de

mercado e de público.

Há, porém, uma diferença bastante sintomática entre a construção de um romance destinado

explicitamente ao público infantojuvenil e a do “romance familiar”. Enquanto o “romance

familiar” nasce livre em termos formais (pode abarcar quantos gêneros quiser, além de criar

novas estruturas) e temáticos (os eventos da vida não são suficientes para dar conta da variedade

de temas)14, o romance voltado para o público infantojuvenil nasce com uma vocação: a de

formar cidadãos que possam, no futuro, contribuir com a sociedade em que vivem. As críticas

francesas Denise Escarpit e Mirrelle Vagné-Lebas (1988, p. 209, tradução nossa) elenca os

aspectos, em geral, considerados para a escrita de um romance infantojuvenil:

Formar a criança no âmbito social, quer dizer, dar a ela instrumentos

necessários que lhe permitam compreender a sociedade em que ela vive, bem

como o papel que será exigido que ela desempenhe ou que ela escolherá

desempenhar, se tornou, desde que a criança é considerada um “futuro

adulto”, um outro objetivo da “educação”. Não se trata apenas de formar um

homem “honesto”, mas de modelos políticos e sociais do momento. Trata-se,

de certa maneira, de instrução e educação cívicas! (ESCARPIT; VAGNÉ-

LEBAS, 1988, p. 209).

O comentário das autoras revela como o romance infantojuvenil surge com uma função social,

no sentido de servir de instrumento para que seu leitor compreenda formas de moldar o

pensamento e, por consequência de se comportar. Essa premissa diminui, ou até elimina, o

efeito de “evasão” na leitura do romance, uma vez que a relação do romance com o real deixa

de ser referencial para se tornar complementar. Assim, o romance teria por função representar

14 “Da literatura o romance faz rigorosamente o que quer: nada o impede de utilizar para seus próprios fins a

descrição, a narração, o drama, o ensaio, o comentário, o monólogo, o discurso; nem de ser a seu bel-prazer,

sucessiva ou simultaneamente, fábula, história, apólogo, idílio, crônica, epopeia; nenhuma prescrição, nenhuma

proibição vem limitá-lo na escolha de um tema, um cenário, um tempo, um espaço; nada em absoluto o obriga a

observar o único interdito ao qual se submete em geral, o que determina sua vocação prosaica: ele pode, se julgar

necessário, conter poemas ou simplesmente ‘ser poético’. Quanto ao mundo real com que mantém relações mais

estreitas que qualquer outra forma de arte, permite-se-lhe pintá-lo fielmente, deformá-lo, conservar ou falsear suas

proporções e cores, julgá-lo; pode até mesmo tomar a palavra em seu nome e pretender mudar a vida

exclusivamente pela evocação que faz dela no seio do seu mundo fictício. Se fizer questão, é livre para se sentir

responsável por seu julgamento ou sua descrição, mas nada o obriga a isso: nem a literatura nem a vida lhe pedem

contas da forma como explora seus bens” (ROBERT, 2007, p. 13-14).

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um mundo objetivo cujo juízo de valor atribuído tanto às personagens como aos conflitos

remetem a instruções pedagógicas.

Porém, mesmo sob o pano de fundo da didática, em parte herdado do Romantismo15, o jovem,

na literatura romanesca do século XIX, deixa de ser uma personagem praticamente ausente ou

de importância quase nula quanto ao seu papel de herói e protagonista da história, para ser

caracterizado com profundidade psicológica. Essa ambição narrativa só é atingida seguindo

uma nova orientação estético-formal, que se diferencia de poemas, parlendas e nursery rhymes

outrora recitados às crianças, cujas estruturas não comportam aspectos fundamentais de uma

representação mais realista da criança e da infância.

Conforme os estudos de Ian Watt (2010), são dois os elementos narrativos constitutivos do

romance que aproximam a ficção da realidade: a caracterização da personagem e a apresentação

do ambiente. Em A ascensão do romance, ele destaca tais recursos narrativos como a base para

diferenciar o romance de outros gêneros literários:

O conceito de particularidade realista na literatura é algo geral demais para

que se possa demonstrá-lo concretamente: tal demonstração demanda que

antes se estabeleça a relação entre a particularidade realista e alguns aspectos

específicos da técnica narrativa. Dois desses aspectos são de especial

importância para o romance: a caracterização e a apresentação do ambiente;

certamente o romance se diferencia dos outros gêneros e de formas anteriores de

ficção pelo grau de atenção que dispensa à individualização das personagens e à

detalhada apresentação de seu ambiente (WATT, 2010, p. 18).

O comentário de Watt é precioso ao trazer para a consciência uma leitura mais profunda acerca

do romance e de sua representação do real. A descrição dos ambientes – não apenas cenários,

mas também contextos históricos e sociais – e a maneira como as personagens são construídas

conduzem o leitor a uma situação cotidiana mais próxima de sua realidade objetiva, porém sob

um olhar específico e intencional do autor. A beleza dos romances, sob esse aspecto, reside no

fato de que, ainda que esteja compromissado com o mundo objetivo, será sempre um olhar

subjetivo e ideológico. Dessa maneira, o estudo comparativo entre romances se beneficia com

a identificação não apenas dos elementos que os unem enquanto participantes do mesmo gênero

literário, mas também dos diversos modelos ideológicos que se manifestam nas nada inocentes

páginas de suas histórias. Nesse âmbito, a representação da infância, nos romances do século

XIX, não segue um discurso homogêneo quanto à sua ambientação ou à caracterização das

15 Este assunto será aprofundado no tópico 1.2 deste capítulo.

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personagens. Mas, sim, sob o pano de fundo macro da formação do leitor e, por sua vez, do

cidadão dentro do contexto do mundo objetivo daquele momento, variam em intencionalidade.

Pode-se dizer que, em um extremo, encontram-se obras com viés absolutamente pedagógico e

engajadas em um discurso político-social, enquanto em outro extremo, mais raro, há aquelas

que promovem a pura evasão, chegando a flertar com o fantástico. Portanto, a imagem que se

tem da criança no século XIX, por meio da literatura, varia de país para país, de cultura para

cultura, de momento político para momento político, não obstante se esteja observando o

mesmo intervalo histórico, mais especificamente a partir de 1850. Esse aspecto se torna capital

para a análise da literatura infantojuvenil, à medida que contribui para desmistificar uma ideia

generalizante acerca da infância, trazendo para o particular as diversas infâncias que existiram

e existem, muitas delas representadas na literatura. A força de tais representações está

justamente nos heróis que viverão essas infâncias variadas e se tornarão símbolos de uma época.

1.1 A criança e o jovem ocupam o lugar de protagonistas nos romances

Foi sob os ecos da Revolução Francesa que a criança surgiu com mais evidência como

personagem em romances. Tais livros, porém, não se dirigiam ao público infantojuvenil, nem

as crianças eram protagonistas das histórias, ou ainda a infância era tratada como tema. Mas o

momento, mais precisamente na década de 1790, foi marcado por obras que versavam sobre a

precária instituição familiar, em franca reconstituição pós-Revolução. Foi a partir da queda da

monarquia e a implementação de um novo modelo político que a França viu-se preocupada com

o núcleo familiar, tema extensamente versado por escritores da época. Especialmente as

mulheres viram-se responsáveis pelas crianças no novo papel que exerciam como mães, a partir

dos valores burgueses intensificados após a queda da monarquia. Uma perspectiva bastante

interessante do período é a adotada por Lynn Hunt em sua obra The family romance of the

french revolution (2017). Hunt também aproveita o conceito de “romance familiar” proposto

por Freud, assim como fez Marthe Robert (2007), mas dessa vez para explicar o novo cenário

político pós-Revolução. Para Lynn, a morte do rei Louis XVI significou a substituição do pai,

assim como o neurótico substitui a figura paterna por outra personagem, invocando, assim, suas

aspirações sociais. No novo quadro familiar do começo do século XIX, ainda que frágil e

insipiente, a criança passou a ser objeto de interesse, pois é ela quem, em certa medida, legitima

o conceito de família (pai, mãe, filho), além de ser a representante do avenir, do futuro. As

crianças-personagens dos romances dessa época eram geralmente meninos órfãos, renegados –

ou seja, sem a figura paterna aparente –, mas que, pelo mérito, se tornavam pais de família,

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cumprindo os anseios da nova sociedade burguesa16. Os “romances infantis”, como ficaram

conhecidos na época, tornaram-se muito populares, especialmente entre as mulheres, que

passaram a consumi-los em grande quantidade (HUNT, 2017, p. 171-172), ajudando, inclusive

a popularizar o gênero 17 . Ainda assim, tais obras 18 não propunham exatamente uma

representação da infância, mas apenas uma versão politizada do papel da criança no núcleo

familiar.

O mérito da presença da infância no ambiente narrativo e da criança e do adolescente como

indivíduos nos romances do século XIX pertence a dois autores que também não tinham, em

princípio, intenção de escrever para o público jovem: Victor Hugo e Charles Dickens (1812-

1870). Da segunda geração romântica, eles são considerados historicamente responsáveis pela

inclusão de personagens infantis mais realistas nos enredos dos romances do século XIX. Nos

textos desses autores, as personagens crianças e jovens aparecem como marginalizadas,

excluídas e em condições precárias e injustas. Tais escritores da pós-restauração francesa

(1830) e do período vitoriano inglês (1837-1901) respectivamente procuravam no romance um

espaço para considerar sua era, para dar “o quadro e a atmosfera autêntica da época, o romance

histórico e o romance pessoal, psicológico, individualista, que fixa a vida íntima e a evolução

das personagens” (AUERBACH, 2015, p. 355).

A apresentação do ambiente ficcional nos romances, como apontado por Ian Watt, teria de

considerar o inchaço das cidades em detrimento da vida no campo, o crescimento populacional,

a tecnologia que começava a ganhar espaço, acelerando a transição do conhecimento humano

para a automação, além das mudanças políticas e econômicas que contribuíam para a formação

de um novo cenário social. Por sua vez, as personagens inseridas nessa ambientação eram

retratadas de acordo com sua função social: o empreendedor, o imigrante que se aventurava em

16 “A figura familiar mais notável nas novelas e peças francesas depois de 1794 era o órfão, a criança sem família.

Portanto, a família ainda parecia uma unidade frágil sob a qual se construiria uma nova ordem social e política”

(HUNT, 2017, p. 153). 17 “Não estou dizendo que os ‘romances infantis’ ou peças dominavam inteiramente a produção de novos

romances e dramas, mas os contemporâneos pareciam estar convencidos de que era um elemento brilhante no

cenário literário.

Em certo sentido, o romance infantil no final do 1790 continuou de onde o romance pré-revolucionário

parou. Crianças e seu sofrimento para traçar seus caminhos eram de interesse de ambos. Essas crianças quase

sempre não têm pais: são ilegítimas, abandonadas, órfãs” (HUNT, 2017, p. 175-174). 18 De acordo com a pesquisa de HUNT (2017), as mais emblemáticas obras deste período são: Victor, ou l’enfant

de la forêt (Victor ou a crianças da floresta, 1797) e Coelina ou l’enfant du mystère (Coelina ou a criança do

mistério, 1798), ambos de Françoise Guillaume Ducray-Duminil (1761-1819); L’enfant du carnaval (A criança

do carnaval, 1796), de Pigualt-Lebrun (Charles Pigault de l’Epinoy, 1753-1835).

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um novo país e outras minorias que tentavam se adaptar aos novos tempos, protagonistas de

uma época.

E é nesse contexto de ambientação e de caracterização de personagens que surgem as primeiras

protagonistas crianças nos romances, figuras outrora ignoradas das narrativas. O papel que em

princípio lhes cabe, especialmente às órfãs, é o de marginalizadas em uma sociedade indiferente

às suas condições de abandono afetivo e de miséria. Não por acaso, pois no século XIX ocorreu

um fenômeno, em relação ao tratamento das crianças e dos jovens, que advém de um processo

econômico latente: a pobreza das famílias nos centros urbanos obrigou-as a abandonarem seus filhos.

Qualquer semelhança deste fato do mundo objetivo com os contos de fada não é mera coincidência e

nem este fenômeno é uma característica singular do século XIX.

De fato, as ondas de crises econômicas ao longo da história europeia, desde a Idade Média,

demonstram como abandonar os filhos era uma solução para famílias sem recursos. Tal fato

ilustra como as crianças e os jovens tinham pouco valor afetivo e como a ideia de família

nuclear ainda não tinha se desenvolvido por completo. A literatura para crianças irá refletir essa

prática, acrescentando o elemento fantástico. Os mais conhecidos exemplos de abandonos de

crianças são os contos “João e Maria” e “O pequeno polegar”. Ambos presentes na coletânea

realizada pelos irmãos Grimm (2012), Contos maravilhosos infantis e domésticos, eles

apresentam, sobretudo, a esperteza das crianças diante da miopia dos pais. As duas tramas se

desenvolvem de maneira a mostrar os pequenos heróis se valendo de astúcia e paciência para

criar subterfúgios de sobrevivência além de meios para restaurar a paz, corrigindo a situação

inicial de pobreza.

Já no século XIX, abandonar os filhos em orfanatos era, em princípio, uma prática incentivada

até pela Igreja Católica (BARDET; FARON, 1998), tornando-se um ato “institucionalizado” e

passando a ser um dado de grande importância e relevância para a época. O abandono de bebês

e crianças em hospitais e instituições logo se tornou prática comum, segundo Jean-Pierre Bardet

e Olivier Faron (1998, p. 120):

Apesar de tudo, a maioria dos resultados converge exatamente para validar

uma afirmação simples: durante o século XVIII e ainda mais durante a

primeira metade do século XIX, o crescimento do número de abandonos de

crianças é, por toda a Europa latina, muito superior ao da população. O ponto

de partida deste dramático aumento de exposição das crianças, que pôde variar

de uma região a outra, de país a país, e ainda cidade em cidade, foi, no final

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das contas, bastante universal. Na França, o fenômeno é particularmente

intenso.

A vida dessas crianças, caso elas sobrevivessem aos primeiros anos nos internatos frios e sem

infraestrutura apropriada, seria marcada pelo trabalho fabril, em quantidade de horas

proporcionalmente maior do que a dos adultos e sem direito a estudo. Pouco a pouco, começa-

se a perceber que há uma questão moral envolvida nessa prática. Alguns fóruns de discussão

acolhem o tema de maneira a olhar para a criança sem destino não exatamente como uma força

de trabalho, mas sim como um indivíduo que necessita de direitos e, em especial, de cuidados

e de formação intelectual básica (BARDET; FARON 1998).

Este tipo de reação social, ainda que incipiente no começo do século XIX, porém de

crescimento veloz, inspirou “escritores engajados” a abordar o tema latente em seus romances,

dando à criança de suas histórias ares de vítima quando a narrativa opõe a realidade tal e qual

ao mundo ideal. A importância de Victor Hugo para a construção da imagem infantil na

literatura da segunda metade do século XIX talvez ainda esteja subestimada. Especialistas em

literatura infantojuvenil, porém, já incorporaram esse “feito histórico” hugoano em suas

historiografias. É o caso da crítica suíça Ganna Ottevaere-van Praag. Para essa pesquisadora,

Cosette e Gavroche são idealizados como o retrato da inocência, opondo-se aos adultos, que,

por sua vez, são insensíveis e truculentos:

Victor Hugo introduziu a criança na literatura francesa. […] Cosette e

Gavroche são as primeiras verdadeiras crianças da literatura francesa. São

“tipos” literários, mas também, vítimas da sociedade. Na obra hugoana, a

infância não é somente uma idade da inocência e o reflexo da bondade divina.

O poeta engloba as crianças no seu culto de vítimas da sociedade,

classificando-as entre os fracos e oprimidos. Nas marolas dos grandes poetas

românticos ingleses, a criança é um símbolo da inocência, mas também de

perseguição. A criança hugoana participa de um sistema maniqueísta caro ao

poeta: a criança inocente em oposição ao adulto brutal. Victor Hugo faz nascer

na literatura francesa para jovens uma corrente romanesca idealista e

sentimental, drenando uma quantidade de pequenos deserdados, de sem

famílias criados por saltimbancos ou abandonados por pais gananciosos. [...]

Infelizmente, este tema ainda é pertinente nos dias de hoje. Muitos escritores

“idealistas” retomaram de Victor Hugo uma imagem serena da infância e se

sentem na missão de evocar as deploráveis condições de existência dos jovens,

quase nunca sem aludir aos eventos contemporâneos, com o único objetivo de

mostrar como essas lamentáveis vítimas da sociedade superam as aflições e

corrigem seus defeitos. Quem não se lembra de Rémi, o pequeno abandonado

[do romance] Sans famille, humilde, oprimido e resignado? Os deserdados, no

romance infantil, acabam por se evadir à sua triste condição para recuperar

uma situação outrora privilegiada (OTTEVAERE-VAN PRAAG, 1987, p. 118-

119, tradução nossa).

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Sabe-se que Victor Hugo pertence à segunda geração romântica, mas também flerta com o

Realismo moderno, à medida que ousa tratar da vida ordinária em tom dramático19. Não por

acaso, pela inocência e condição social, Cosette e Gavroche, heróis de Os miseráveis, em muito

se assemelham ao garoto Rémi, do romance Sans famille (1878), de Hector Malot (1830-1907),

publicado dezesseis anos depois da obra hugoana, um dos mais emblemáticos exemplos dessa

nova perspectiva de caracterização da criança na literatura surgida no romance infantojuvenil.

Protagonizado pelo garoto francês Rémi, “l’enfant trouvé”, a opção estético-temática serviu de

antecedente para que autores como Malot propusessem um tom elevado para o tratamento

literário de um novo tipo de protagonista. A ideia de criança, então, entra para a literatura

romanesca em tom dramático, como protagonista, inserida em um tempo definido que só

pertence a ela: a infância. É possível concluir que advenha desse tratamento elevado quanto à

caracterização do herói criança – mesmo que idealizado – a relação direta entre Rémi e Cosette

e Gavroche.

Assim como muitos garotos franceses da época, no romance de Hector Malot publicado em

1878, Rémi é órfão e tem uma vida errante, um destino que não pode controlar ou prever. Na

história, o garoto é doado pelo orfanato a uma dona de casa sem filhos, com a qual ele

desenvolve uma relação de dependência mútua. O marido enciumado e endividado, porém,

vende a criança para um artista de rua, o italiano cantor de ópera Vitalis. Rémi parte, então,

com seu novo dono e a trupe – formada por três cachorros e um macaco –, em uma jornada pela

França em busca de trabalho informal (como apresentações de teatro pelas cidades) e de abrigo

em hospedarias, no limite da mendicância. A situação marginal da criança é apenas um dos

reflexos da condição precária do homem da pós-Revolução Industrial que Hector Malot

explicita em Sans famille20. Essa visão panorâmica da condição social e econômica da França

19 A respeito desta interpretação, Erich Auerbach (2015, p. 368) escreve: “O princípio estético que está na base do

Realismo moderno já tinha sido proclamado por Victor Hugo e seu grupo, por volta de 1830, um pouco antes da

publicação dos primeiros romances realistas: é o princípio da mistura de gêneros, que permite tratar de maneira

séria e mesmo trágica a realidade cotidiana, em toda a extensão de seus problemas humanos, sociais, políticos,

econômicos, psicológicos; princípio que a estética clássica condenava, separando claramente o estilo elevado e o

conceito do trágico de todo contato com a realidade ordinária da vida presente, não admitindo sequer nos gêneros

médios (comédia de pessoas de bem, máximas, caracteres etc.) a pintura da vida cotidiana, a não ser numa forma

limitada pela conveniência, pela generalização e pelo moralismo”. 20 Erich Auerbach (2015, p. 348) demonstra como os escritores românticos idealizaram uma literatura cujo homem

se aproxima do lirismo e da natureza, recompondo um mundo alheio ao racionalismo e pragmatismo, sem porém

perceberem o descompasso histórico da real condição humana do período, de um mundo injusto e degradante:

“[…] Uma profunda decepção, vizinha do desespero, se apoderou das almas delicadas e idealistas quando se viu

que, após tantos horrores e sangue derramado, embora fosse verdade que tudo tivesse mudado, o que saíra de todas

as catástrofes da Revolução e da época napoleônica não era em absoluto um retorno à natureza virtuosa e pura,

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só se faz presente no romance pelo recurso da viagem: é Rémi quem conduz o leitor pelas

diversas regiões francesas, com suas atividades econômicas específicas, suas dificuldades e

injustiças. Já do ponto de vista da construção da subjetividade da personagem, Rémi empreende

uma viagem para a qual não está preparado e na qual será testado, passará por diversas

provações, encontrará pessoas que ora o ajudarão, ora o enganarão, mas viverá uma

transformação e atingirá a maturidade, podendo, então, voltar fortalecido e pronto para assumir

sua vida como homem.

A literatura para crianças e jovens sempre revistará o tema do abandono em seus diferentes

contextos e momentos históricos. Certamente, a condição econômica é uma justificativa

racional, ainda que absurda, para o abandono das crianças por seus pais. Pouco antes de Malot,

como já foi citado, Charles Dickens imortalizou Oliver Twist, o garoto órfão que simbolizaria

todas as crianças de rua que já tiveram que trabalhar em condições desumanas e até mesmo

roubar para sobreviver. Porém, Oliver Twist, ao contrário de Rémi, faz da condição marginal

que foi infligida a ele uma oportunidade de subverter a moral, agindo de maneira a aceitar a sua

situação e, assim, criar subterfúgios também marginais para sua sobrevivência na sociedade.

Por aceitar sua marginalização, Oliver Twist escancara a hipocrisia social e se imortaliza como

o herói de uma geração.

A literatura, no entanto, expande a temática de maneira metafórica. Embutida no argumento da

condição social, a rejeição da criança como ser marginalizado também representava uma

questão socioafetiva. O chamado “impulso de abandono” acomete especialmente mães que não

se sentem preparadas para lidar com os filhos e criam “soluções” para que as crianças não façam

mais parte da vida cotidiana familiar, como estudar em colégios internos distantes ou enviá-las

para morar com parentes em outras cidades. Mas haverá um momento, especificamente no final

do século XIX e no início do século XX, em que a situação se inverterá: o herói adolescente ou

mesmo criança não mais será abandonado pelas suas famílias, mas ele mesmo sairá de casa,

numa clara recusa de viver o modelo familiar tradicional. Personagens emblemáticos ficarão

canonizados por suas rebeldias: Pinóquio, o boneco de madeira que abandona diversas vezes

seu pai Geppetto em busca de uma nova aventura; Huck Finn, que prefere viver a pobreza

mas novamente uma situação inteiramente histórica, bem mais grosseira, mais brutal e mais feia que a que

desaparecera; e, sobretudo, quando essas almas se deram conta de que a grande maioria dos homens a aceitava,

exercendo ou padecendo a injustiça, a violência e a corrupção, como se não tivesse jamais esperado outra coisa”.

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sozinho a participar da hipocrisia da sociedade conservadora sulista norte-americana; Peter Pan,

que abandona a família para nunca mais voltar.

Não foi por acaso que os dois grandes modelos de personagens crianças nos romances do século

XIX – Gavroche e Oliver Twist – tenham surgido na França e na Inglaterra. As duas potências

econômicas e políticas, cada qual com suas intenções e com desenvolvimento histórico

diferente, dominavam culturalmente a Europa Ocidental de então. Países como a Espanha e a

recém-unificada Itália sofriam grandes influências na produção intelectual, especialmente na

literatura para crianças e jovens. Ambos os países possuíam características semelhantes – alto

índice de analfabetismo e uma produção editorial bastante incipiente devido a décadas de

declínio econômico (FERNÁNDEZ-LÓPEZ, 2002; COLIN, 2002a) –, o que ajudou a

proporcionar situações tão semelhantes em relação ao desenvolvimento do romance na literatura

infantojuvenil em suas culturas. Assim, enquanto Espanha e Itália se esforçavam para criar os sistemas

básicos de educação além da implementação de uma política educacional, França e Inglaterra se

valiam dos benefícios da Revolução Industrial para elaborar uma literatura para crianças e jovens que,

além de original, saltava aos olhos por suas soluções gráficas inéditas e atraentes.

1.2 Momento de ruptura: o romance de aventura e o romance escolar surgem na literatura

infantojuvenil

O que poderia ser chamado de “salto quântico” da literatura infantojuvenil europeia tem início

mais precisamente após 1830, período em que surgem novas técnicas de impressão

(especialmente a litografia e a cromolitografia), permitindo a produção de obras mais

interessantes para as crianças e os jovens sob os aspectos visual e gráfico21. Se a aparência dos

21 Apenas para complementar a informação, Allan Powers (2008, p. 13), em sua obra Era uma vez uma capa:

história ilustrada da literatura infantil, comenta os principais editores-impressores e ilustradores que participaram

da quebra de paradigma na produção da literatura infantojuvenil no século XIX: “Os ilustradores começaram a

sair do anonimato na metade do século e, quando Evans [impressor] ‘descobriu’ Walter Crane [ilustrador], os

livros-brinquedos passaram a ser pensados como se fossem obras de arte. A cromolitografia combinou-se à

impressão em blocos de madeira na década de 1880, e muitos editores encomendavam trabalhos da firma bávara

de Ernst Nister [impressor]. As ilustrações de Arthur Rachkam para o livro Ingoldsby legends (As lendas de

Ingoldsby), em 1898, assinalaram um momento significativo, quando a impressão em quadricromia, que permitia

a reprodução fotográfica de um original colorido, foi apresentada como integrante de uma nova fórmula para obter

‘livros-presente’ – ou seja, itens de luxo. Diferentemente dos livros-brinquedos, estes tinham ilustrações montadas

em cartão cinza, separadas do texto e agrupadas no final do volume. Na Inglaterra, Rackham era o principal

ilustrador de livros-presente, enquanto Howard Pyle exercia esse papel nos Estados Unidos”.

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livros demonstrava uma identidade visual para cativar o público infantil e juvenil, as histórias

também passaram a ser escritas com a mesma intenção. A partir de 1850, a representação da

infância no ambiente ficcional se tornou um recurso narrativo – e temático – que encurtou a

distância entre as histórias e seu público, contribuindo para a formação de um repertório

literário que permitisse ao leitor criar laços de reconhecimento com o texto22.

O desenvolvimento da indústria livreira voltada para a literatura infantojuvenil está

intimamente ligada à percepção da criança e do jovem como seres autônomos e também à

incipiente estabilidade e ao crescimento econômico, que permitiam às famílias consumirem

para as crianças23. Estas, por sua vez, com o aumento da oferta de livros, foram alçadas à esfera

de protagonistas nas páginas dos romances. Não por acaso, o enredo das “novas histórias”

pouco a pouco deixa de ser uma “imitação” de contos de fada para se aproximar de um

argumento mais palpável, mais verossímil com a realidade do leitor, mesmo ao se apropriar da

fantasia que, geralmente, aparece nos livros para crianças e jovens como um universo paralelo

ao “mundo real” e objetivo.

Surgem, assim, narrativas cujos heróis são crianças e jovens que se embrenham em aventuras

em busca de uma identidade. Esse fenômeno de fato já havia começado no início do século

XIX, mas a influência religiosa, especialmente na Inglaterra vitoriana, deu uma coloração cristã

excessiva para tais publicações (BRIGGS e BUTTS). Porém, está na primeira metade do século

a origem de romances como os já destacados acima, cujas protagonistas, crianças pobres,

precisam de afeto e de segurança. Além do caráter cristão, a influência vitoriana na educação e

na publicação inglesa perpassava todos os gêneros literários, a exemplo dos contos de fada e

dos livros de fantasia. As histórias de origem alemã (sendo a maior referência do gênero a

coletânea dos irmãos Grimm) ou dinamarquesa (Hans Christian Andersen) sofriam pequenas

22 A pesquisadora francesa Marie-José Chombart de Lauwe, em sua obra Um outro mundo: a infância (1991, p.

7, tradução nossa), reforça essa ideia ao dizer que: “Por volta de 1850, a personagem da criança entra maciçamente

na literatura. Os homens descobrem que não existe apenas uma maneira de ser humano, o adulto perde seu prestígio

de modelo único”. 23 No artigo “The emergence of form”, Julia Briggs e Dennis Butts (1995, p. 130, tradução nossa) afirmam: “O

ano 1850 pode ser visto como uma linha divisória na história mercantil do livro como um todo e dos livros infantis

em particular. Durante a segunda metade do século XIX, os editores competiam para produzir leitura barata para

um mercado em expansão, além de melhorar a qualidade da matéria da leitura popular. O desenvolvimento das

publicações para crianças reflete um crescimento demográfico e econômico, bem como uma sociedade mais sensível e

responsável pelas necessidades das crianças. As crianças de classe média, que ganhavam livros, agora podiam escolher

elas mesmas o que quisessem, e elas tinham uma vasta escolha, uma vez que histórias de aventura, histórias escolares, de

nonsense, fantasia e contos de fada todos ficaram à disposição”.

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modificações em seus enredos no momento da tradução para a língua inglesa, de maneira que

atitudes como desobediência, egoísmo e até mesmo curiosidade fossem suavizadas ou, em

casos extremos, eliminadas (BRIGGS; BUTTS, 1995, p. 138). Obviamente que tal atitude

invariavelmente alterava o conteúdo do texto em detrimento de uma “adequação” das histórias

em relação ao enredo24.

Mas, a partir de 1850, como reforçam Briggs e Butts (1995), a Inglaterra passou a ter uma nova

expectativa quanto às suas crianças, sendo que essa percepção influenciou diretamente o

surgimento de dois novos tipos de narrativas em romances infantojuvenis: os romances de

aventura 25 e os romances escolares 26 . Ambos compartilham uma espécie de genética do

romance de formação, cuja estratégia narrativa implica dar um mergulho vertical em uma única

personagem, inserida dentro de uma ambientação absolutamente específica, de modo que o

conflito “eu versus mundo” atinja o ápice da tensão, forçando a personagem ou a se render ou

a se retirar – em alguns casos mais dramáticos, a recorrer ao suicídio como recurso narrativo27.

Aqui, a função da personagem é obedecer ao seu telos, ou seja, ao seu objetivo, o qual é

predeterminado na narrativa, considerando que a estratégia de escrita é, sobretudo, expor ao

leitor aquilo que não se pode comentar publicamente. Mas a grande beleza do romance de

formação não está na dissolução do conflito, seja pelo apaziguamento seja pela total ruptura. É

24 Denise Escarpit e Mireille Vagnés-Lebas (1988, p. 212, tradução nossa) ressaltam essa problemática nos

romances para crianças e jovens, o que pode até mesmo prejudicar a compreensão da história: “[…] tendência à

‘adocicar’ a história para preservar a sensibilidade dos jovens. Há uma certa dificuldade em respeitar o sentido da

história”. 25 A tradição do romance de aventura na Inglaterra tem como antecessoras obras como Robinson Crusoé (1719),

de Daniel Defoe (1660-1731), e As viagens de Gulliver (1726), de Jonathan Swift (1667-1745). A diferença entre

os autores reside no fato de que Defoe e Swift não escreviam com o intuito de atingir o leitor infantojuvenil. Para

Tadié (1982, p. 7), o romance de aventura depende tanto quanto participa da “fenomenologia da leitura”, ou seja,

estabelece uma relação de codependência com o leitor: é produzido para ele de tal maneira que não se possa

abandonar a leitura, criando um suspense atrás do outro. Por isso, e também pela abertura em flertar com a fruição

da leitura de maneira explícita, tornou-se um gênero amado pelos leitores, inclusive pelos jovens e crianças. 26 Denise Scarpit (2008, p. 241) propõe uma precisa definição sobre o “romance escolar” dentro do contexto da

literatura inglesa: “O ‘romance escolar’ introduz à sua maneira a criança-vítima, intimidada por seus pares,

esquecida por seus professores, que experienciam a escola como uma prisão e deve lidar com os conflitos sozinha.

A Inglaterra é a pátria do gênero: Tom Brown’s School Days (Os dias de escola de Tom Brown, 1857), de Thomas

Hughes, focaliza os valores de formação dos internatos e mantém-se otimista; Eric (1858) é um romance

pessimista e puritano de F. W. Farram; logo depois, Stalky & Co (1889) de Rudyard Kliping manifesta o

anticonformismo contra a instituição escolar”. Mais adiante, na nota 39 deste trabalho, Antonio Faeti descreve o

romance escolar em seu contexto italiano. 27 Uma diferença, no entanto, entre o romance de formação e o de aventura, é exatamente a relação entre vida e

morte. Para Tadié (1982, p. 12, tradução nossa), o romance de aventura proporciona “o diálogo entre a morte e a

liberdade; salvo exceções, um romance de aventura não é trágico: diante da provocação mortal, os homens

acham uma saída”.

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o processo de mudança da personagem, que a aproxima de sentimentos e questionamentos,

colocando à prova suas convicções sobre o mundo e sobre si mesma.

São inúmeros os romances dos séculos XVIII e XIX que utilizaram a estética do romance de

formação para tentar compreender o homem e seus conflitos pessoais face às novas e modernas

sociedades que surgiam. A cultura germânica guarda um dos mais emblemáticos romances do

gênero, Os anos de aprendizado de Whilhelm Meister, de Johann Wolfgang Goethe (2006),

cuja mudança de paradigma na historiografia da literatura gerou até mesmo um termo

referencial em alemão: Bildungsroman28, romance de formação. Quem se debruça tanto sobre

a obra quanto sobre o viés crítico é Marcus Mazzari (1999). Em sua leitura sobre o romance,

ele contribui com a ideia de que o romance de formação utiliza o recurso da viagem para

proporcionar as oportunidades de amadurecimento da personagem. Em suas palavras:

No romance Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, a expansão plena e

harmoniosa das capacidades do herói, a realização efetiva de sua totalidade

humana é projetada no futuro e sua existência apresenta-se assim como um

“estar a caminho” rumo a uma maestria ou sabedoria de vida, a qual é

representada menos como meta a ser efetivamente alcançada do que como

direção ou referência a ser seguida. As possibilidades e limites de tal

realização são refletidos nesse gênero literário, sendo que o ‘telos’ da

totalidade é representado como contraste à imagem do herói ainda não

‘formado’. É também neste ponto que se concentra a tensão dialética inerente

ao romance de formação, entre o real e o potencial ou, como formulado por

Hegel, entre a ‘prosa das relações’ e a ‘poesia do coração’. Enquanto

elementos constitutivos do Bildungsroman, estes dois polos são também

complementares entre si, pois sem se apoiar em sua realidade histórica toda

formulação utópica seria impensável, pois deve estar sempre intimamente

engastada em seu contexto social, político e econômico. O utópico revela-se

assim como uma transcendência imanente, necessita de uma historicidade

para poder afirmar-se (MAZZARI, 1999, p. 73).

A citação deixa claro a importância do “estar a caminho” de um objetivo maior. Para isso, a

personagem se deparará com aquilo que ela deseja ser, em oposição com o que de fato é capaz

28 De acordo com o Dicionário de termos literários de Massaud Moisés (20013, p. 57): “Modalidade de romance

tipicamente alemã, gira em torno das experiências que sofrem as personagens durante os anos de formação ou de

educação, rumo à maturidade, fundada na ideia de que ‘a juventude é a parte mais significativa da vida […], é a

essência da modernidade, o sinal de um mundo que procura o seu significado no futuro, mais do que no passado’

(Moretti). Considera-se o pioneiro nessa matéria o Agathon (1766), de Wieland, e o ponto mais alto, o Wilhelm

Meister (1795-1796), de Goethe, mas a palavra para designar esse gênero de narrativa, Bildungsroman, foi

empregada pela primeira vez em 1820, por Karl Morgenstern e posta em circulação por Wilhelm Diltey em 1870,

na sua Vida de Scheleiermacher”. E ainda, no Dictionary of Literary Terms and Literary Theory, de J. A. Cuddon

(1999, p. 81-82, tradução nossa): “Este é um termo mais ou menos sinônimo de Erziehungsroman - literalmente

romance de ‘formação’ ou ‘educional’. Muito usado pelos críticos alemães, faz referência a romances que tratam

do desenvolvimento da juventude de um ou heroína. O romance descreve o processo pelo qual a maioridade é

atingida por meio de vários pontos altos e baixos da vida”.

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de ser (“entre o real e o potencial”), sendo que o desejo se associa ao campo utópico, enquanto

que a realização possível se encontra no campo histórico.

Tal limite, entre o real e o potencial, deve ser tênue, para que o conflito atinja o ápice da tensão e

provoque uma ruptura. O romance de aventura traz essa possibilidade de viver a utopia, realiza o

desejo dos garotos de, por meio da evasão da leitura, devorar histórias que transcorram em ambientes

exóticos, que apresentem perigos impensáveis na vida urbana tendo como protagonistas personagens

jovens – um desejo natural cultivado pelo sucesso da hegemonia inglesa ultramarina, no mundo

objetivo. Escrevem Briggs e Butts (1995, p. 150-151, tradução nossa):

A primeira e mais importante característica da história de aventura foi a fusão

do extraordinário com o provável, pois, se os eventos em um conto fossem

muito ordinários, falhariam no aspecto da excitação, mas uma sequência de

incidentes completamente extraordinários falharia no aspecto da

credibilidade. Essa noção do provável foi alcançada ao se escolher para o

jovem herói um garoto adolescente normal, o filho de um clérigo ou de um

gerente, por exemplo. Nem muito particularmente esperto, mas também não

estúpido, mas com muita “valentia”, ele geralmente sai de casa no início da

história por causa de uma crise doméstica para procurar a sorte em outro lugar.

Após a morte de seu pai, no início de Sequestrado (1886), de R. L. Stevenson,

por exemplo, o jovem David Balfour decide procurar seus outros familiares.

O cenário é geralmente exótico; o jovem herói sai acompanhado de alguém, e

geralmente leva consigo um presente especial dessa pessoa – um objeto

material como um mapa ou uma arma, ou talvez um utensílio para aprender

uma nova língua ou para disfarçá-lo. Surgem as complicações e as

dificuldades – naufrágio, ataques de canibais, traição – e a narrativa

gradualmente cresce em direção a um grande clímax, o qual geralmente se

traduz por uma batalha feroz contra o poderoso inimigo.

Neste trecho, os autores deixam claro como a ideia do jovem como indivíduo surge com força

nas narrativas de aventuras, focadas não no aprendizado religioso, mas sim em apresentar outras

culturas, outros cenários, abrindo espaço para que o texto trouxesse um aspecto literário mais

refinado. A estrutura da história, no entanto, em muito se assemelha à da viagem do herói e, por

consequência, à do romance de formação: um acontecimento desconecta o jovem de sua família e o

força a empreender uma viagem para um lugar desconhecido, acompanhado de um tutor e de objetos

que podem ajudar o herói a superar obstáculos.

Além do ambiente exótico e longínquo, a aproximação do herói (uma pessoa comum) com o leitor

criava um interesse ainda maior para tal fenômeno editorial. Especialmente na Inglaterra –

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influenciando boa parte da publicação europeia –, a cultura editorial viu surgir obras e mais obras

sobre o tema, que chegavam a vender, em alguns casos, 150 mil exemplares por ano29.

Essas narrativas navegavam por outros mares, sem trazer consigo o peso da obrigação cristã,

porém não menos carregados de moral, especialmente em relação à ideia da hegemonia inglesa

sobre o mundo, algo pelo que o escocês Robert Louis Stevenson (1850-1894), por exemplo,

não se deixou influenciar. Stevenson desponta como um dos autores preferidos dos leitores ao

publicar as obras A Ilha do Tesouro (1883)30 e As minas do rei Salomão (1885), reforçando o

romance de aventura como um dos gêneros mais amados da literatura infantil e juvenil. As obras de

Stevenson proporcionavam ao leitor jovem a ilusão de desbravar o desconhecido, lançar-se aos mares

sem destino certo e, sobretudo, viver a experiência de um adulto:

No limite do que preocupava o público jovem de Stevenson, as histórias

tinham tudo o que os garotos do Romantismo poderiam esperar: tesouros

enterrados, piratas, barulhos estranhos, viagens marítimas, um herói

engenhoso mas passível de erros, e um vilão “suave e formidável” que

atravessou a galeria dos imortais. Por outro lado, também havia quase tudo o

que era proibido para os garotos: muito sangue, rum e aquela mórbida canção

“Quinze homens no peito do homem morto” (DARTON, 1966, p. 300, tradução

nossa).

Stevenson preocupa-se com seu leitor no âmbito estético e temático, ao apresentar obras para

deleite, fruição da leitura, sem abdicar de construir, ou melhor, construindo um padrão narrativo

complexo em termos de enredo e de desenvolvimento das personagens, exigindo um

acompanhamento contínuo e atenção no desenrolar da história. As obras de Stevenson não

trazem a condição precária das crianças órfãs cujo destino é decidido por adultos insensíveis,

como em Sans famille, mas sim a idealização da idade adulta – até mesmo acrescentando

passagens, como descrito no trecho acima, com elementos outrora “proibidos” para os jovens,

como a presença de bebidas alcoólicas e violência.

29 Cf. Briggs e Butts (1995, p. 150). Alguns dos primeiros autores britânicos de romances de aventura na Inglaterra

nunca chegaram ao nosso conhecimento. Mas, no período em que publicavam, faziam muito sucesso. Vale a pena

citar, por exemplo, o capitão F. W. Marryat, o capitão Mayne Reid (The desert home), R. M. Ballantyne (The

Coral Island: a tale of the Pacific Ocean), W. H. G Kingston (Peter the Whaler: his early life and adventures in

the Artic Region) e G. A. Henry (Union Jack Tales: for british boys), a maioria desses escritores com experiências

náuticas ou militares. 30 “Durante os anos 1840 e adiante, garotos exploravam regiões remotas, navegavam altos-mares, escapavam de

canibais como os peles-vermelhas na companhia de heróis que, mesmo sendo crias de diferentes autores,

mantinham uma semelhança entre um e outro e eram, em geral, ganchos nos quais a aventura se pendurava em

detrimento de personagens individuais. No começo dos anos 1880, no entanto, algo de estilo completamente

diferente apareceu, e um novo marco foi estabelecido na escrita para crianças quando A Ilha do Tesouro, de Robert

Louis Stevenson (1850-1894) surgiu em Young Folks em 1881-1882 e depois na forma de livro em 1883”

(MEIGS, 1969, p. 223, tradução nossa).

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Outro autor que se destacou como grande expoente do romance de aventura, influenciando

muitas gerações de escritores, foi o francês Jules Verne (1828-1905), hoje também considerado

um autor do gênero de ficção científica. As aventuras de Verne tinham como grande apelo para

o leitor não se prenderem em apenas um tipo de herói – em sua grande maioria, meninos –, mas

trazendo também, quase como num ato pioneiro, a figura da menina como protagonista. Suas

obras se espalharam rapidamente por toda a Europa, adentrando também o concorrido universo

literário inglês. A conexão com o mundo real nas obras de Verne advém da percepção das

mudanças sociais e econômicas provenientes da revolução científica, impulsionadas pela

Revolução Industrial. O elemento narrativo que proporcionava o “escapismo” ou a evasão nas

histórias de Verne não se fazia presente por meio da magia ou das navegações, mas sim a partir

da exploração do mundo, utilizando a tecnologia como instrumento principal de descoberta.

Verne pertence à tradição de escritores de narrativas de aventura, tendo mesmo declarado uma

preferência pessoal por romances como Robinson Crusoé (1719), mas sua inventividade e

proximidade com o mundo da tecnologia serviram como uma máquina do tempo

impulsionando-o diretamente para o século XX. Cornelia Meigs (1969, p. 233, tradução nossa),

em A Critical history of children’s literature, ressalta a importância de Verne para um novo

posicionamento de mundo que não o vitoriano:

Essas histórias [de Jules Verne] serviam, também, como literatura de evasão

para os vitorianos tardios que se acharam confrontados com o fato de que a

Revolução Industrial e todas as conquistas científicas e tecnológicas do século

não trouxeram o milênio, que as favelas e pobreza e ignorância ainda

floresciam. O herói mais aceito para esses vitorianos era o homem de sucesso

no campo do empreendedorismo, e os heróis de Jules Vernes se encaixavam

de maneira admirável no projeto. Outro desejo, também foi satisfeito por Jules

Verne. Robinson Crusoé, de Defoe, fez com que os homens pensassem em

ilhas desertas e homens engenhosos que dominavam as circunstâncias. Jules

Verne disse que ele mesmo tinha uma paixão por aventuras inspiradas nas de

Robinson Crusoé, que o colocaram na estrada que ele deveria seguir, e sua A

ilha misteriosa (1875) é uma das melhores histórias de ilhas desertas já

escritas.

O romance de aventura, portanto, foi um dos principais exemplos de evasão da imaginação –

talvez o primeiro para a literatura voltada para jovens –, mas com muitos pontos de conexão

com a realidade (contexto histórico, econômico e social), o que criava, ainda mais, a ilusão de

veracidade do romance.

No mesmo movimento de Stevenson e Verne – o de criar uma narrativa mais livre dos aspectos morais

comuns nas obras para crianças e jovens –, Rudyard Kipling (1865-1936) também não sucumbiu ao

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moralismo comum dos romances escolares. Em Stalky & Co (1899), escrito já no final do século XIX,

o romance traz uma leveza pelo seu humor e quase que um certo deboche ao representar a vida dos

meninos em internatos31.

O romance escolar também se originou com as mudanças econômicas na Inglaterra. Na

transição de uma sociedade agrária para urbana e industrial, a próspera classe média ajudou a

fomentar a ideia de que a educação formal era importante para crianças e jovens – talvez a única

obrigação que deveriam ter, uma vez que o trabalho infantil começou a ser questionado. Com

isso, o surgimento de internatos praticamente duplicou entre 1841 e 1900 (BRIGGS; BUTTS,

1995, p. 154). Outro fator que contribuiu com esse movimento foi o Ato de Educação32, em

1870, que garantia educação básica para toda a população. A indústria editorial logo percebeu a

oportunidade e autores, geralmente ex-alunos dos internatos33, começaram a ensaiar os primeiros

romances, invariavelmente explorando suas próprias experiências quando crianças34. Esse gênero

será muito popular por toda a Europa, como será detalhado mais adiante.

Vale, por fim, dizer que tanto o romance de aventura como o romance escolar configuram

subgêneros do romance e, em alguns casos, também estão diretamente associados ao conceito

de Bildungsroman. Esta informação se torna central quando se nota que o romance de formação

tem suas origens na busca da representação da classe burguesa. Os conflitos das narrativas, a

caracterização das personagens, a descrição do ambiente, em sua grande maioria, refletem as

angústias de uma classe que busca com ansiedade legitimação social35. Não por acaso, muitas

das histórias Bildungsroman dirigidas às crianças, mesmo que resvalem em questões sociais

humanitárias – como a obra de Malot –, ainda assim, visam o bem-estar de uma perspectiva do

31 “Em Stalky & Co (1899), Rudyard Kipling criou um humor ácido na escola de um garoto na qual deixa claro

como água que, se o propósito da educação de garotos britânicos era realmente prepará-los para governar o

império, então os pupilos mais bem-sucedidos não necessariamente eram aqueles que jogavam cricket, mas sim

aqueles que subvertiam o sistema” (BRIGGS; BUTTS, 1995, p. 159, tradução nossa). 32 Elementary Education Act 1870. Será melhor detalhado no capítulo 4 deste trabalho. 33 Alguns autores e obras que também não são conhecidos no Brasil, mas foram pioneiros do gênero: Thomas

Hughes (Tom Brown’s schooldays, 1857), Frederic W. Farrar (Eric, or little by little, 1858) e Talbot Baines Reed

(The fifth form at St Dominic’s, 1881). 34 “A aprovação do Ato Educacional de 1870, que previa educação básica para todos, também aumentou o

potencial de número de leitores de ficção escolar e até 1880 os editores começaram a divulgar alguns livros como

sendo ‘histórias escolares’ de fato, porque ambos, editores e leitores, tinham claras expectativas sobre o conteúdo

de tais histórias” (BRIGGS; BUTTS, 1995, p. 157, tradução nossa). 35 De acordo com os estudos de Franco Moretti (2000, p. IX, tradução nossa): “Conjuntura revolucionária posta

de lado, então, o encontro entre burgueses e aristocratas nesses romances tem um bom tempo de explicação: a

burguesia do século XIX deu uma nova função a alguns aspectos do modo de vida aristocrático para sua própria

formação cultural – e o Bildungsroman, por sua vez, foi a forma simbólica que mais rudimentarmente refletia esse

estado de relação”.

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progresso e da autonomia. Neste sentido, um tópico explorado nos romances de formação

infantojuvenis é a importância do estudo e a escola como instituição (originando, assim, o

romance escolar). O que, em alguns casos, provocou o aparecimento de obras cuja ótica de

desenvolvimento humano apoiava-se na educação de valores burgueses, refletindo, assim, uma

nova representação da infância.

1.3 Representação literária da infância: emancipação da criança

Mesmo com todo o moralismo do período tardio vitoriano (na Inglaterra), o surgimento da

criança como herói no romance do século XIX fica ainda mais evidente e pungente quando se

olha para a representação da infância nas obras dos séculos anteriores. John Locke (1632-1704),

um dos maiores pensadores da puericultura do século XVIII, construiu uma base interpretativa

sobre a criança que serviu de modelo para a pedagogia e a literatura da época, cujos resquícios

ainda ecoam em algumas metodologias de ensino e produções literárias. Na visão de Locke, a

criança nasce como um ser vazio, uma página em branco, que deve ser preenchida com

informações educativas para a ajudar a se tornar um indivíduo capaz de compreender o mundo

e a atuar de maneira crítica sobre ele. A literatura, portanto, exerce uma função de suporte para

o discurso pedagógico.

Nesse contexto, a criança nunca poderia protagonizar uma história, pois seu papel restringia-se

a receber conteúdo, não a viver experiências. A estratégia textual praticada pelos escritores em

consonância com as ideias de Locke foi transformar todo e qualquer objeto em um potencial

elemento educativo, que comunicasse a lição, que expressasse uma utilidade para além de sua

função essencial. São dessa época, por exemplo, histórias que têm como protagonistas átomos,

chaleiras, sapatos, cadeiras, todos eles introduzindo, por meio de uma narrativa literária, um

assunto de cunho informativo36.

36 Essa literatura evoluiu para um gênero por muitos chamado de “livros paradidáticos”: aqueles que utilizam o

texto ficcional para abordar um conceito prático, como aprender as letras do alfabeto, a contar, ou mesmo algum

valor social como educação financeira, de trânsito, sendo o texto avaliado não em seu valor formal e estético, mas

sim em sua capacidade de comunicar a aprendizagem.

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Em seu livro Children’s literature: a reader’s history from Aesop to Harry Potter, Seth Lerer estuda

a fundo esse período da literatura infantojuvenil. No capítulo dedicado a John Locke, ele descreve tal

momento literário destacando o caráter instrumentalizador dessas narrativas:

A função da literatura infantil é dar sentido às coisas, e não foi nenhum

acidente quando um dos gêneros que emergiram no despertar dos escritos de

Locke foi a biografia ficcional de objetos inanimados. Tais livros emergiram,

no início de 1800, sob o propósito de sátiras sociais. De The Golden Spy

(1709), por Charles Gildon, passando por Adventures of an Atom (1769), de

Tobia Smollett, e também por Adventure of a Guinea (1760), de Charles

Johnstone, e Adventures of a Bank-note (1770), de Thomas Bridges, além de

outros incontáveis, objetos falantes lotavam as estantes das livrarias de

Londres. Assim como muitos romances da época, esses eram episódicos e

aventurosos, preocupados em expor o trabalho de profissões específicas, negócios

ou artesanato. Era como se os objetos do dia a dia pudessem se tornar eles mesmos

personagens – como se a caneta, a moeda, o brinquedo, o livro, a carroça fossem,

de fato, os verdadeiros agentes da nossa vida, e não nós mesmos (LERER, 2009, p.

107-108, tradução nossa).

A citação deixa claro como o papel da criança retratada nesses textos era o de coadjuvante.

Neles, as questões mais imediatas ligadas ao seu desenvolvimento das crianças como indivíduo,

a seus traços identitários, eram ignoradas. Além das obras de cunho explicitamente pedagógico,

voltadas a um interesse que não a fruição literária, John Locke trouxe uma outra inovação

editorial ao campo do livro para crianças, que perduraria por anos a fio (sendo praticado ainda

hoje): associar textos do cânone literário a um conteúdo informativo, criando uma obra cuja

referência está em si mesma e cuja função está para além dela. O exemplo mais significativo

desse movimento são as fábulas de Esopo editadas pelo próprio Locke (LERER, 2009).

A edição das fábulas de Esopo proposta por Locke traz logo nas primeiras páginas as figuras

dos animais personagens das historietas, bem como seus nomes escritos em tipologias

apropriadas ao processo de alfabetização, de modo a explicitar a relação entre a forma do objeto

e das palavras que o representam. O resultado é uma obra complexa, repleta de aparatos

extratextuais que precedem as fábulas, ficando estas em segundo plano. Com esta lógica de

edição, o livro em si ganha a importância de objeto de referência, recaindo sobre ele a

preocupação quanto à qualidade da impressão e de recursos gráficos que, de maneira geral,

ajudaram a melhorar a qualidade das obras destinadas às crianças, com o prejuízo, no entanto,

de se encarar a literatura como um mero suporte pedagógico (LERER, 2009). Este conceito de

edição da literatura – caso ainda seja pertinente falar em “literatura” – desvincula a fruição da

leitura ficcional da “pintura da vida cotidiana” da criança, para usar as palavras de Auerbach.

Assim, quando escritores introduzem na literatura do século XIX o cenário da vida subjetiva da

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criança, não apenas rompem com o modelo lockiano, mas também abrem um canal direto com

o seu público leitor, como descrito acima em relação aos romances de aventura e escolar.

A literatura como instrumento educativo e, ainda, moralizante, não foi um fenômeno localizado

na Inglaterra, mas sim abarcou toda a Europa. Inegável, nesse aspecto, o diálogo que a obra As

aventuras de Pinóquio promove com o leitor de seu tempo ao questionar esse modelo de

educação (social e escolar) indiferente às vontades da criança. No romance de Carlo Collodi

(2012), o cerne do conflito reside na transformação do boneco de madeira em um menino.

Pinóquio, apesar de querer se transformar em um menino, não concorda com o método: abdicar

de todas as suas paixões, “fazer o bem”, “agir corretamente” (respeitar o pai, não mentir e

estudar). Pinóquio recusa o chamamento da jornada, mas não a vivência da aventura. Ao fazer

isso, ele se transforma no anti-herói, naquele que não é o exemplo. Mas, como Pinóquio vive o

conflito de querer se transformar em menino – só não está disposto a realizar a trajetória

“correta” –, arrepende-se de suas ações impulsivas. Conclui-se, portanto, que Pinóquio não é

uma personagem maniqueísta. Ao contrário do garoto francês Rémi, ele relativiza o “bem” e o

“mal”, reconhecendo em diversas passagens que deveria ter agido de modo diferente, por ter

sido punido depois de desfrutar daquilo que lhe deu prazer.

A criança em As aventura de Pinóquio, portanto, desvincula-se do papel de vítima da sociedade

e propõe o protagonismo em que ela é responsável pelos seus próprios atos. Publicado

originalmente de forma seriada no intervalo dos anos 1881 e 1883, o romance traz, a cada

capítulo, um episódio – estrutura muito parecida com a de Sans famille37. Nesses episódios,

Pinóquio é submetido a escolher entre aquilo que é convencional e racionalmente correto ou a

opção mais aventureira e excitante. Portanto, diferentemente de Rémi, os episódios vividos por

37 Vale notar que a obra de Malot foi amplamente difundida na Itália, publicada na importante coleção Biblioteca

dei Fanciulli (Biblioteca da Infância), editada por Emilio Treves, sendo Avventure di Romain Kalbris em 1875 e

Senza famiglia em 1881. Treves, aliás, foi um dos grandes protagonistas do meio editorial italiano no que diz

respeito à publicação de obras francesas de literatura infantojuvenil. Exilado na França por suas convicções liberais

em 1854, foi neste país que tomou conhecimento de um maquinário moderno, capaz de produzir tiragens altas

com um valor baixo, as chamadas impressoras rotativas. De volta para a Itália, em Milão, onde a cena editorial era

a mais central da Itália recém-unificada, Treves tratou de introduzir não apenas o maquinário novo, mas também

obras importantes da literatura francesa como as da condessa de Ségur e também a coleção criada pelos editores

franceses contemporâneos dele, como Pierre-Jules Hetzel. A inserção massiva de obras traduzidas no mercado

editorial italiano na segunda metade do século XIX foi um evento ambíguo do ponto de vista histórico. Apesar de

significar um diálogo importante entre a Itália e outras culturas europeias, mais avançadas do ponto de vista do

desenvolvimento de uma literatura infantojuvenil madura, esse movimento também foi criticado por sufocar um

possível break through da literatura infantojuvenil italiana de maneira mais autônoma (COLIN, 2002b, p. 513).

Este tema será aprofundado no capítulo 3.

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Pinóquio não têm um desfecho positivo; o boneco nunca consegue desfrutar plenamente de suas

escolhas, é enganado, roubado, até ser morto.

A obra As aventuras de Pinóquio foi escrita sob os ecos do Risorgimento italiano – movimento

de unificação dos Estados, posterior ao das outras nações europeias –, mas se distingue em

vários aspectos da literatura infantojuvenil produzida na época, na Itália e na Europa, mesmo

que tardiamente. Com o intuito de construir uma identidade moral comum a todo o território

italiano, as histórias infantis predominantes nesse período lembram muito as obras editadas por

John Locke, cuja narrativa servia de mero suporte para expressar valores morais ou de

aprendizagem básica. A cultura literária italiana para crianças surge tardiamente em relação à

produzida na França, na Inglaterra e na Alemanha – países protagonistas no florescimento da

literatura infantojuvenil e do mercado livreiro europeu38 – e com o foco na apresentação dos

valores da nação que se formava.

Para se certificar de que a literatura infantojuvenil italiana de fato seguiria esse curso, em 1830,

as histórias deveriam ser previamente selecionadas em concursos promovidos por instituições

educacionais, como a Società Fiorentina dell’Istruzione Elementare (OTTEVAERE-VAN

PRAAG, 1987, p. 122-23). Não por acaso, sendo os educadores também homens religiosos, os

textos vencedores apresentavam um alto grau de moral católica e de cunho educativo. No caso

dessas obras, os autores não eram escritores propriamente ditos, que defendiam a autoria de

seus textos a partir de um estilo ou uma vocação. Tais obras eram escritas por escritori-

pedagogi, que partiam de conceitos predefinidos para “encaixá-los” em um texto narrativo

orquestrado, didático e utilitário. Um exemplo de clássico da literatura infantil italiana desse

perfil é a obra Giannetto (1835)39, de Luigi Alessandro Parravicini (1800-1880), que inspirou

vários escritores ao longo do século XIX – em certo grau, Collodi, cuja obra-prima é

38 Mariella Colin (2002b, p. 509) relembra como alguns países da Europa já entravam na Era de Ouro da literatura

infantojuvenil enquanto a Itália ainda buscava sua identidade como cultura coletiva: “Educação do sentimento

nacional, da moralização, da instrução e da recusa do romanesco e do maravilhoso: estes são os imperativos

pedagógicos de todos os educadores-escritores [scritori-pedagogi], apegados muito mais à obediência religiosa do

que ao positivismo laico. Para além das ideologias particulares, as obras dos autores de livros para crianças da

Itália liberta continuaram a ser determinadas por essas grandes tendências, ao passo que, na Europa, já começava

a surgir aquilo que ficou convencionado de chamar “a Era de Ouro” da literatura para crianças e jovens, uma vez

que a condessa de Ségur publica Os desastres de Sophia (1859), Lewis Carroll Alice no País das Maravilhas

(1865), Jules Verne Viagem ao centro da Terra (1864) e Da terra à lua (1865), sendo que a única obra que poderia

ser considerada um “romance para a infância” é Memorie d’un pulcino [As memórias de um pintinho, 1875], de

Ida Baccini. 39 Reimpresso 68 vezes até 1910, tal número não representava um sucesso editorial, mas, sim, era reflexo da

imposição das escolas como leitura obrigatória.

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considerada um veneno e uma bênção para a cultura italiana, parodia esses “romances

escolares”40. O crítico italiano e especialista em literatura infantojuvenil Antonio Faeti (2009,

p. 141) evoca os tempos pedagógicos do Risorgimento:

A escola, no que tange à leitura, e ao romance, era totalmente destituída de

uma vocação para o prazer de ler, era dominada pelo medo de que a leitura,

se dirigida às burlas exemplares e punitivas de Giannino, se revelasse

portadora da desordem e da transgressão. […]

De imediato é possível dizer que a escola rechaçava os romances quando

eles eram de fato romances, isto é, quando apresentavam uma irreverência

labiríntica, quando escapavam dos limites, das imposições de uma didática e de uma

pedagogia que eram ampla e sistematicamente “antirromanescas”, subdividindo-os

em “livros de leitura e de distinção”, livros de texto e livros de Estado.

Mariella Colin também corrobora a ideia de que o romance era banido das escolas, uma vez

que o gênero era tido como “perigoso” para as crianças, por sua característica de promover a

reflexão e o desenvolvimento intelectual do leitor. Portanto, “em razão de seu perigo intrínseco,

os romances eram rejeitados em massa, tanto pelos educadores católicos como pelos educadores

laicos (COLIN, 2002b, p. 508).

Collodi pertence à primeira geração de escritores italianos a criar uma literatura infantojuvenil

legítima no âmbito artístico, cuja busca por uma voz literária está claramente em primeiro

plano, além de abandonar o maniqueísmo próprio dos livros italianos de até então. De certa

maneira, o momento acelerado de publicações para a literatura infantojuvenil, devido ao

incentivo da política educacional da época, criou as condições sociais ideais para o

aparecimento de Pinóquio, ou seja, para o surgimento de uma literatura mais moderna. A

tiragem de revistas e de jornais aumentava, crescia também o número de bibliotecas públicas

que facilitavam o acesso ao livro, uma vez que ainda se tratava de um produto caro para o

italiano médio (COLIN, 2002b, p. 513).

Mas, se Pinóquio é um acontecimento único para a literatura italiana, a personagem não está

isolada na historiografia da literatura infantojuvenil universal como anti-herói. Assim como o

boneco de madeira flerta com o erro, Tom Swayer (1876) e Huckeblerry Finn (1884),

40 Antonio Faeti, em “Um negócio obscuro: escola e romance na Itália” (2009, p. 142) afirma que o romance

escolar se tornou um gênero específico da literatura infantojuvenil, além de bastante popular. Caracteriza-se por

obras cuja ambientação se dá em escolas, como o próprio nome sugere, em tramas que realçam e estimulam a

interação das crianças entre si, restringindo-se o papel do adulto geralmente ao de educador. Tem uma tendência

altamente moralista e educativa. Antonio Faeti os descreve como “‘antirromances’ autônomos que sinalizam para

a estrutura do próprio romance, mas que tornam estéril sua proposta, pois aprisionam o fluxo narrativo em

escanções didáticas vigorosamente referidas de modo peculiar ao calendário escolar”.

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personagens de Mark Twain (1835-1910), fogem de suas vidas opressoras para desenhar o seu

próprio futuro. Nenhuma dessas personagens age de acordo com códigos morais ou no intuito

de dar exemplos de bom comportamento. Tais textos não incorrem em redundâncias,

pleonasmos, clichês ou temáticas definidas, mas se esmeram em criar situações, cenários e

personagens nunca antes narrados em livros destinados às crianças. Assim, essa literatura contribui,

também, para o surgimento de um novo leitor, mais exigente e comprometido, além de desafiar as

rotulações “adulto” e “infantojuvenil”, forçando sua autonomia como “literatura”.

1.4 Fantasia do inconsciente: evasão da realidade

A literatura infantojuvenil, então, foi alçada a uma nova fase, de maior autonomia em relação

a temáticas, formas de escrita, caracterização de personagens e cenários, desenvolvimento da

narrativa específica para o gênero. A figura do anti-herói, nesse contexto, é historicamente

importante para formar a consciência e a percepção dos escritores de que a criança não

necessariamente é um ser divino, inocente, moldável. Pelo contrário, com o amadurecimento

da ideia de infância como uma fase autônoma do desenvolvimento do ser humano, a criança

ganha, no final de século XIX e começo de século XX, um campo de estudo específico, no qual

se destacam não apenas o direito ao estudo e à saúde, mas também um aprofundamento do

desenvolvimento no âmbito psicológico.

O reflexo dessa nova ideia de infância para a literatura infantojuvenil é perceptível a partir do

surgimento de obras literárias cujo tema é a própria infância. A representação da infância na literatura

foi um tema bastante abordado, por exemplo, na Inglaterra do século XIX (WULLSCHLÄGER,

1995). Lewis Carroll (1832-1898) e Edward Lear (1812-1888) não pouparam esforços e criatividade

ao se dirigirem aos leitores crianças de uma forma absolutamente inovadora e questionadora.

Na primeira fase do período vitoriano, a criança era tida como um perigo, um indivíduo que

precisava ser moldado de acordo com as mais rígidas normas da boa educação e dos bons

costumes. A segunda fase – que já anuncia a chegada do período edwardiano (1901-1920) e,

com ela, a Era de Ouro da literatura infantil, criando para sempre um modelo acerca da literatura

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ideal41 – compreende a criança como um ser emotivo, que necessita de cuidados, além de

representá-la com extrema beleza42.

A pesquisadora Jackie Wullschläger em Inventing wonderland: the lives and fantasies of Lewis

Carroll, Edward Lear, J. M. Barrie, Kenneth Grahame and A. A. Milne, resgata a vida e obra

de cinco dos principais autores da literatura infantojuvenil inglesa. Em seu trabalho, ela

demonstra como essa literatura reforça a ideia da Inglaterra como potência, um discurso

otimista muito presente nos períodos vitoriano e edwardiano, conforme vimos anteriormente43.

Alavancada pelos modernos métodos de impressão, a literatura infantojuvenil dessa época

proliferava em diversidade e oferta de obras, cujas narrativas, em sua maioria, refletiam a

imagem próspera da soberana do país. Para a história da literatura infantojuvenil, tal período é

conhecido como a Era de Ouro44.

41 “De muitas maneiras, a literatura infantil moderna permanece um fenômeno edwardiano. Esse período definiu,

até hoje, a maneira como pensamos os livros infantis e a imaginação da criança. Durante os poucos anos de sua

duração, essa era produziu um cânone de autores e trabalhos que ainda são poderosas influências na área. Ela

forneceu um panorama da imaginação que ainda controla muito a escrita contemporânea. Filtrou obras anteriores

através desse panorama a fim de produzir um cânone moderno” (LERER, 2009, p. 253-54, tradução nossa). 42 “Inocência e uma maneira amorosa e confiante são os atributos-chave do período vitoriano tardio e da criança

ideal edwardiana. E a beleza ganhara grande importância. Para os moralistas georgianos, a beleza é um defeito

positivo em uma criança. O começo do período vitoriano renunciou a comentários, mas seus descendentes a

lisonjeavam – “delicado” era um dos adjetivos favoritos. [...] Mesmo os escritores evangélicos assumiram esse

ideal. A Sociedade de Tratados Religiosos, que, oitenta anos antes, exortara seus leitores crianças a considerarem

a horrível depravação de suas naturezas, publicou nos anos 1900 os prolíficos escritos de Amy le Feuvre, cujos

filhos se convertem tanto pela beleza de seus cabelos dourados e olhos castanhos calmos e confiantes, como por

sua conversa ingênua” (AVERY, 1975, p. 153, tradução nossa). 43 “Os escritores para crianças dos períodos vitorianos e edwardianos tinham estruturas sociais contemporâneas:

a autoconfiança nacional, a suposição de que o status quo continuaria, a crença no futuro, o que fez com que a

criança fosse um ícone natural, e tudo isso está no pano de fundo. Era o clima perfeito para a Era de Ouro dos

livros infantis. Entre 1837, quando a rainha Victoria assumiu o trono, e o começo da Primeira Guerra Mundial, em

1914, quase todos os livros que agora consideramos como clássicos da literatura infantil tinham sido publicados:

As aventuras de Alice no País das Maravilhas e Alice através do espelho, os poemas nonsense de Edward Lear,

as histórias do personagem Bastable e The railway Children [As crianças da estação], de E. E. Nesbit, O pequeno

Lord e O jardim secreto, de Frances Hodgson Burnett, A Ilha do Tesouro, de Stevenson, O vento nos salgueiros,

de Kenneth Grahame, Peter Pan, de J. M. Barrie, os contos de Pedro, o Coelho, de Beatrix Potter, e Stalkey & Co

e Just so Stories [Stalkey & Cia e Apenas histórias], de Kipling” (BRIGGS; BUTTS, 1995, p. 16, tradução nossa). 44 “Muito tem sido estudado sobre as mudanças que esses movimentos sociais e estéticos influenciaram na

literatura infantil da primeira década do século XX. Por um lado, os críticos têm notado há muito tempo a explosão

de autores, romances, peças e poemas. Muitas de nossas obras mais conhecidas da literatura infantil foram escritas

nesse período: Pedro, o Coelho, Peter Pan, O vento nos salgueiros, O jardim secreto, Anne of Green Gables, The

railway Children. A aparência do livro infantil moderno tomou forma neste momento: as ricas capas em relevo de

livros de aventura, os desenhos a traço que adornavam os textos, as gravuras e fotografias que trouxeram lugares

distantes e acontecimentos para o quarto da criança. As tecnologias de produção de livros e jornais combinaram-

se com uma sensibilidade criada nos pré-rafaelitas, o movimento Artes e Ofícios, o Art Nouveau. É como se os

grandes movimentos estéticos do final do século XIX encontrassem sua vida após a morte em livros infantis; como

se John Millais, William Morris e Aubrey Beardsley viessem a transformar-se em ilustradores de livros infantis,

assim como Ernest H. Shepard e Arthur Rackham” (LERER, 2009, p. 257, tradução nossa).

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Porém, algumas obras publicadas nesse período questionam a ideia absoluta de era e de infância

felizes, utilizando o recurso narrativo de criar lugares de escape para as personagens que

buscam uma experiência mais real, mais subjetiva. A ideologia em torno da figura da criança,

nesse começo de século XX, abre mão de interpretá-la como um ser divino, enviado por Deus,

para dar lugar a filhos, irmãos e irmãs, personagens cuja primeira característica é pertencer ao

seio familiar. Este movimento consolida-se pela percepção da infância como etapa da vida –

assim como a adolescência e a idade adulta –, dotando as personagens crianças da noção de

pertença – primeiro na família, depois, no mundo. Por consequência, as obras desse período

trazem, pela primeira vez, a experiência da introspecção em personagens crianças, muitas vezes

em cenários que promovem o “escapismo”, em uma tentativa de ainda manter, no registro da

narração, a conexão com a fantasia.

É visível, também, a guinada na composição do ambiente. Wullschläger (1995, p. 17, tradução

nossa) rememora algumas obras emblemáticas da época que usam esse recurso:

Os cenários dos clássicos para as crianças vitorianas e edwardianas sugerem

o clima de uma era dourada, de um país seguro, próspero e otimista. No

entanto, o País das Maravilhas, a Terra do Nunca de Peter Pan, a margem do

rio em O vento nos salgueiros, o idílio de uma estação rural em The railway

children, o jardim de rosas encantado em O jardim secreto, também

comemoram a fuga, o voo a um mundo dos sonhos irreal.

Um exemplo clássico citado de obras “escapistas” é O jardim secreto (1911), de Frances

Hodgson Burnett (1849-1924). Apelando a um elemento simbólico da literatura clássica

infantil, o jardim, presente em inúmeros textos icônicos como A bela e a fera, ou A Bela

adormecida, O jardim secreto é considerado o primeiro romance do século XX para crianças45.

O jardim é o lugar em que a órfã Mary Lennox, a garota mimada, agressiva e egoísta pouco a

pouco se deixa seduzir pela natureza e, quase como um ato de redenção, torna-se uma pessoa

mais consciente de seu papel como indivíduo. A simbologia da criança no jardim, no romance

de Burnett, não significa apenas o lugar de evasão, mas sim de cura, de reconciliação e de um

outro ponto bastante significativo para a representação da criança no século XX: a distinção

definitiva entre a criança e o adulto46.

45 “O jardim secreto já foi descrito como a versão infantil de Jane Eyre; como a culminação de um século de

ficção para garotas; um manifesto feminista falido; o primeiro livro para crianças genuinamente do século XX –

um livro que atingiu o status de clássico graças ao apelo popular em vez do elogio da crítica” (HUNT, 2011, p.

VII, tradução nossa). 46 “Como a infância passou a ser vista como um estado distinto e potencialmente oposto ao ‘crescido’, tornou-se

conhecida como a ‘outra’, com todas as idealizações, o horror e as projeções que tal status implica” (BRIGGS;

BUTTS, 1995, p. 168, tradução nossa).

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Não por acaso, um dos maiores símbolos da literatura moderna infantojuvenil, Peter Pan surge,

pela primeira vez, em Kensington Gardens, ou seja nos “jardins de Kensington”. No romance

The White Bird, o escocês James Matthew Barrie (1860-1937) apresenta ao leitor o garoto Peter,

que mora no parque, cuja característica principal é não envelhecer. A pedido de seu editor,

Barrie dedica um trabalho exclusivo ao personagem Peter Pan voltado a crianças – até então,

secundário no romance The Little White Bird –, a peça Peter e Wendy, cuja estreia se deu em

dezembro de 1904. O personagem ainda ganharia uma outra obra independente, um curto livro

chamado Peter Pan em Kensington Gardens (1906).

Um toque de magia e fantasia finalmente aparece nos textos destinados aos jovens leitores, uma

fuga do realismo social da primeira fase do período vitoriano. A literatura inglesa, de uma

maneira geral, volta-se para temáticas e formas estéticas próximas do que conhecemos hoje

como “realismo fantástico”. H. G. Wells (1866-1946), Ford Madox (1873-1939), Henry James

(1843-1916), G. K. Chesterton (1874-1936) são exemplos dessa nova perspectiva literária.

Novamente, o professor Seth Lerer ilumina este ponto com sua pesquisa, acrescentando que o

universo fantástico surge na literatura da época com uma clara referência shakespeariana,

especialmente a partir de referências a peças como A tempestade e Sonho de uma noite de verão

(LERER, 2009, p. 256-57, tradução nossa). Não por acaso, o dramaturgo J. M. Barrie irá criar

uma peça para o personagem Peter Pan, em que a alta referência, como Shakespeare, se encontra

com os selvagens, exemplo do exótico que encontra a tradição. O sucesso da peça é ainda

lembrado com grande surpresa (LERER, 2009, p. 259, tradução nossa):

Se Peter Pan de Barrie foi a peça mais bem-sucedida de 1904, boa parte desse

sucesso veio, sem dúvida, da evocação de uma fantasia na natureza, pela

mistura de A tempestade e os tambores indígenas, se apropriando da alta

escola vitoriana e da cultura doméstica até a aparência nostálgica edwardiana.

Peter Pan é uma peça que olha para trás, para uma era perdida de segurança

vitoriana. Ela procura um significado em uma vida fantástica, ao invés de empírica

ou científica. Ela vê a vida como teatral e performática, ao invés de autêntica e

sincera. Ela expõe as convenções da vida social como convenções e, no processo,

chama a atenção para o abismo entre a moral e a propriedade.

A relação entre a criança e o adulto na literatura infantil passaria por um novo paradigma no

início do século XX. Peter e Wendy desafia a tradição da literatura infantojuvenil ao propor

uma obra cuja ambientação, a Terra do Nunca, é um lugar que existe dentro da mente de cada

criança, excluindo, dessa maneira, o adulto do universo infantil.

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Em Peter e Wendy, as crianças são independentes (os garotos perdidos vivem sozinhos, sem a

supervisão ou o cuidado de adultos) e enfrentam situações perigosas, muitas vezes em confronto

com os adultos. Na Terra do Nunca, a ruptura entre adulto e criança é absoluta, evidenciando

que a infância deve ser vivida em sua totalidade, no momento presente, sem a expectativa de

futuro. Essa constante reafirmação do presente, da suspensão da exegese, cria um impasse para

estabelecer quem, dos personagens do romance, teria o papel de herói 47 . Peter Pan é o

protagonista, mas seu papel como herói é incompleto, pois permanece na Terra do Nunca sem

terminar a jornada de volta. Todo o romance é estruturado ao redor da figura de Peter Pan, cuja

função é levar os descendentes de Wendy para os verões na Terra do Nunca, sob a promessa de

viver uma grande aventura. Porém, são os irmãos Darling e os garotos perdidos que, de fato,

completam a jornada, para uma vida londrina absolutamente ordinária. Em vez de perpetuarem

a rebeldia e o espírito aventureiro, rapidamente se inserem dentro do universo adulto

burocrático, do qual inicialmente fugiam.

A peça Peter e Wendy, que logo se tornaria o romance, resgata e aproveita elementos de muitas das

histórias da tradição da literatura infantil e juvenil, criando, assim, uma empatia imediata. Porém,

longe de ser um mélange de histórias, Barrie se apropria de elementos comuns a outras narrativas para

abordar uma questão que ressoará no século XX: diante do que a sociedade se tornou, estaria Peter

correto ao se evadir do mundo objetivo para viver como bem entende no mundo utópico? Barrie, de

certa maneira, mostra a impossibilidade de ser herói, ou ao menos de identificá-lo como tal, nos

moldes dos romances de aventura do final do século XIX.

A diferença fundamental, no entanto, entre tais “mundos irreais e dos sonhos” e a Terra do

Nunca reside no fato de que, enquanto em outros romances, como o já citado O jardim secreto

47 Uma das teorias do estudo do herói é a desenvolvida por Joseph Campbell (2007), exposta na obra O herói de

mil faces, que criou o sistema do Monomito, ainda muito utilizado nas interpretações de textos mitológicos. Em

linhas gerais, esse sistema opera em etapas: o chamado (um fenômeno tira a normalidade do cotidiano, um guia

aparece para indicar a vocação do herói); a recusa (já fora do mundo objetivo, o herói se recusa a aceitar o seu

desígnio); o auxílio sobrenatural (surge um elemento mágico que permite que a viagem prossiga); o primeiro limiar

(o herói deve enfrentar o desconhecido, geralmente, um inimigo); o ventre da baleia (aprisionado, repensa sua

própria condição e o que precisa modificar em si para se libertar); o caminho de provas (sucessivas provações até

a transformação); a transformação (consciência); o retorno (volta com sabedoria para poder liderar). Esse diagrama

formal – apesar de chocar-se com o próprio romance como forma, uma vez que, se o Monomito proposto por

Campbell é uma maneira de universalizar o conceito de herói, o romance é exatamente o oposto, pois olha para o

subjetivo, para aquilo que é doméstico e pontual – serve, até hoje, de guia para os estudos acerca da trajetória do

herói, independentemente do campo de conhecimento. Por isso, é válido citar Campbell como uma das referência

bibliográficas deste trabalho.

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(BURNETT, 2012), tais lugares são acessados por portais no mundo objetivo, em Peter e

Wendy este lugar está presente no inconsciente. Ao criar essa estratégia narrativa, Barrie une a

ambientação do romance à subjetividade de cada personagem – a Terra do Nunca é única para

cada personagem –, fazendo de Peter e Wendy um romance que antecipa a ideia de mal-estar

do mundo real.

Novamente, recuperamos Freud para, agora sim, entrar no século XX. Peter Pan transforma em

ficção o desejo da plenitude da infância nunca realizado no adulto. Aquilo que no consciente

aparece em forma de sonho, em Peter Pan é vivido na própria infância: o desejo de livrar-se do

pai, casar-se com a mãe, além de abdicar de toda e qualquer obrigação que prepara a criança

para o mundo adulto.

Assim, com obras como Peter e Wendy, o romance para o público infantojuvenil deixa de ser

uma manifestação estética que evoca apenas as mazelas sociais, e transforma-se na expressão

do desejo, na ação daquilo que, quando adulto, se tornará apenas um lugar perdido no

inconsciente. Transforma-se, portanto, na fabulação de um discurso verdadeiro.

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CAPÍTULO 2. SANS FAMILLE E O ROMANCE INFANTOJUVENIL REALISTA: A TRANSFORMAÇÃO DA

CRIANÇA-OBJETO EM SUJEITO

Os leitores de Sans famille [Sem família]48 certamente se lembram de um dos mais angustiantes

e extensos episódios do romance no qual o garoto Rémi e cinco trabalhadores ficam presos em

uma mina de carvão na cidade de Varses, localizada na região montanhosa de Cévennes, ao

sudoeste da França49. Confinados já por alguns dias, a uma profundidade de aparentemente

quarenta metros, com o ar comprimido e pesado, além de apenas uma lamparina que servia

como único ponto luminoso na escura mina, o capítulo “Dans la remontée” (No poço cego)50

descreve o auge da tensão da cena. O teste de sobrevivência para Rémi e os trabalhadores não

se restringia à privação de alimentos e de bebidas ou à estafa física, mas cada minuto colocava

em xeque a sobrevivência daquelas pessoas. Com o trecho a seguir é possível ilustrar essa

tensão:

Fez-se silêncio na mina; nenhum ruído chegava agora até nós; ao nível dos

nossos pés, a água era imóvel, sem uma ruga, sem um murmúrio. A mina

enchera-se, como dissera o mestre, e a água, após invadir todas as galerias

desde o solo ao teto, emparedava-nos na prisão da maneira mais sólida, mais

hermética do que um muro de pedra. Esse silêncio pesado, impenetrável, esse

silêncio de morte era ainda mais assustador, mais estupefato que o ruído

terrível que ouvimos no momento da irrupção das águas; estávamos no

túmulo, sepultados vivos, e trinta ou quarenta metros de terra pesavam sobre

nossos corações.

O trabalho ocupa e distrai; o repouso nos dá a sensação de nossa

situação, e conosco, mesmo com o mestre, houve um momento de aniquilação.

Eu tinha medo de água, medo das sombras, medo da morte; o silêncio

me aniquilava; as paredes incertas da rampa me esmagavam como se todo o

seu peso caísse sobre meu corpo. Eu nunca mais verei de novo Lise, nem

Etiennette, nem Alexis, nem Benjamin? Quem os uniria senão eu? Então eu

não veria mais Arthur, ou Madame Milligan, Mattia ou Capi? Poderíam fazer

48 Apesar de existir uma tradução do romance para o português (Sem família, tradução Virginia Lefèvre, 1970,

publicado pela editora Ediouro), trata-se de uma adaptação, ou seja, o texto não é fiel ao original, tendo sido

reduzido e simplificado. Por esse motivo, tal adaptação apresenta uma certa imprecisão na descrição das cenas e

também uma liberdade no uso de termos técnicos, o que torna tal versão distante do texto original. Portanto, tal

tradução não foi considerada neste nosso trabalho para fins de citação, tendo sido utilizadas traduções livres dos

trechos da obra em francês. Este recurso objetivou reproduzir de maneira mais fiel possível os acontecimentos do

romance, bem como as terminologias e a linguagem usadas pelo autor. Vale a pena acrescentar, ainda, que a

tradutora para o português foi uma missionária que fundou, junto com outras pessoas, a Escola para Crianças

Abandonadas. Talvez a intenção de sua tradução tenha sido mais a de disponibilizar o texto para os leitores do que

seguir fielmente o original. 49 Este trabalho dedicar-se-á à análise do trecho do romance que compreende dos capítulos IV a VII da segunda

parte do romance Sans famille (MALOT, 2014), na qual Rémi fica preso em uma mina de carvão com outros cinco

mineradores. 50 “Poço cego” é a expressão usada pelos mineiros para se referir a uma abertura ou passagem, dentro das minas,

no sentido vertical ou fortemente inclinada, feita para conectar um local de trabalho a outro nível mais baixo. Este

lugar dentro da mina será de extrema importância para o trecho descrito neste capítulo.

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Lise entender que eu estava morto por ela? E mamãe Barberin, a pobre mamãe

Barberin! Meus pensamentos se encadeavam assim, um mais lúgubre do que o

outro; e, quando eu olhei para meus camaradas para me distrair e os vi tão abatidos,

tão aniquilado quanto eu, voltei para as minhas reflexões, ainda mais tristes e mais

sombrias. No entanto, eles estavam acostumados com a vida da mina, e por isso não

sofreram falta de ar, de sol, de liberdade; a terra não pesava sobre eles (MALOT,

2014, p. 243-245, tradução nossa).

A passagem demonstra o confronto de Rémi com a morte. L’enfant trouvé, ou o menino

abandonado, e os mineradores se deparam com o ponto final, o momento em que suas vidas se

humanizam, quando deixam de ser apenas operários para se tornarem sobreviventes. Ou então,

vítimas de um desastre, em que suas trajetórias podem, de fato, chegar ao fim. Essa proximidade

com a morte faz com que Rémi relembre suas experiências passadas dotando-o, pela primeira

vez no romance, de uma percepção de indivíduo, de estar presente no mundo com um

significado maior do que o de apenas representar um menino de rua. O garoto, ao se deparar

com o absoluto, encontra sentido em sua jornada.

Rémi, nesta hora, não está acompanhado de seu tutor Vitalis – que morre no final da primeira

parte, um recurso narrativo que prepara Rémi para ganhar sua independência definitiva. O

silêncio da mina permite que o garoto entre em contato profundo com seus medos e com suas

lembranças. Relembra todos aqueles que conheceu durante sua aventura errante pela França. O

garoto se dá conta de que não é mais uma criança sozinha no mundo. Rémi construiu laços de

amizade, crianças como ele, às quais se dedica, com as quais se preocupa. Não por acaso, uma

de suas inquietações é saber quem irá reunir novamente todos eles, caso ele venha a falecer.

Encerrado no caixão de terra e pedra, Rémi faz as contas de todos aqueles a quem deve ou se

propôs ajudar, como se sua própria vida fosse destinada à dedicação para com os outros.

Essa tomada de consciência do “eu” é bastante significativa não apenas para o desenvolvimento

da narrativa, mas para a própria importância de Sans famille na formação da literatura

infantojuvenil francesa. A criança “coisificada” do século XVIII finalmente ganha status de

sujeito. A passagem das minas, para Rémi, simboliza essa transformação, daquilo que é

subjetivo, uma enunciação da personagem como ser autônomo, criando a real distinção com o

“tu”. Mas, ainda assim, representa todas as crianças abandonadas. Por estes motivos, a figura

única de Rémi extrapola sua condição de ficção para tornar-se um símbolo literário, um marco

que perdura até hoje como exemplo de superação no imaginário do leitor. É a experiência

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socializante da subjetividade que o leva para a dimensão do mundo subjetivo, não mais apenas

objetivo51.

Tal foi uma das grandes contribuições de Malot para o desenvolvimento de uma literatura

francesa mais moderna para jovens leitores, próxima aos anseios da juventude, representando

um novo sopro a essa escrita, além de laica e um pouco distante dos romances edificantes

católicos dos séculos XVIII e XIX (PINCET, 2002). Não por acaso, Malot escolhe o gênero

romance como forma para aprofundar questões íntimas das personagens, contrapondo-se às

narrativas épicas, por exemplo, mais preocupadas em descrever as sagas de mitos populares. O

espaço narrativo se reduz consideravelmente de um amplo território para aquilo que é do campo

da experiência pessoal, do âmbito doméstico, do tempo presente52. Trata-se de uma experiência

calcada em uma atitude edificante e corajosa da personagem, dando a ela status de herói.

Nesse sentido, a figura de Rémi representa um novo conceito de herói para a literatura

infantojuvenil francesa da época. Face a inúmeras dificuldades, que muitas vezes vão além da

maturidade da personagem, o herói não se deixa abater e busca ele mesmo o caminho para

seguir a sua jornada. Também corrobora essa teoria o pesquisador francês Yves Pincet, que

dedicou grande parte de seus estudos à obra de Malot. No artigo “Hector Malot, romancier de la

jeunesse active et volontaire” (2002), Pincet enfatiza a característica altiva dos heróis de Malot:

Colocando as jovens personagens em situações excepcionais, mas que podem

corresponder às angústias fundamentais dos jovens leitores, Malot conseguiu

cativar a atenção deles [dos jovens]. Para enfrentar as dificuldades da vida,

que são evocadas com realismo sem cair em miséria excessiva, os jovens

personagens encontram eles mesmos os recursos necessários que lhes

permitem superar as provas: a coragem, a tenacidade, a resistência física, mas

também as esperteza e a amizade são qualidades suscetíveis a ajudar a

enfrentar os obstáculos. Os garotos e as garotas, nos romances de Malot, são

seres disponíveis, capazes de aplicar a força física, a inteligência e de

encontrar, assim, soluções para as situações problemáticas que se apresentam

a eles. Sem dúvida, os infelizes providenciais acasos às vezes fazem parecer

que essas personagens são submetidas a um destino muito exigente, mas,

51 Sobre a separação entre os mundos subjetivos e objetivos no romance, ver Luiz Costa Lima (1995). 52 Para uma ênfase ainda maior sobre a intenção do romance como gênero, vale resgatar a definição proposta por

Wolfgang Kayser (1948, p. 229), em sua obra Fundamentos da interpretação e da análise literária: “A narrativa

do mundo ‘total’ (em tom elevado) chamou-se epopeia; a narrativa do mundo particular num tom particular e feita

um leitor particular chama-se romance. Compreende-se facilmente que, desde sempre, o romance tivesse a

tendência a ir buscar no mundo mais prosaico que descreve, precisamente as áreas e motivos envoltos num clarão

poético, já porque são os poucos comuns, os raros: o ladrão, o criminoso, o cigano, o jesuíta, o milionário, para

certos círculos o nobre ou o artista livre etc. São estes motivos favoritos do romance, e o fértil papel do acaso, que

nos surpreende constantemente, compreende-se bem como tentativa de poetizar o mundo: de tudo isso há no

adjetivo ‘romanesco’”.

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essencialmente, cada romance coloca em evidência os efeitos de uma

disposição que dá sentido à vida. As jovens personagens de Malot são, antes

de tudo, sujeitos que agem para atingir seus fins (PINCET, 2002, p. 481-482,

tradução nossa).

Em Malot, e mais especificamente em Sans famille, os heróis crianças são colocados em

situações de perigo extremo, “excepcionais” como pontua Pincet, o que causa um certo

incômodo ao leitor mais atento pelo texto atingir o limiar que separa o “pacto ficcional”53, ou

seja, o ponto em que autor e leitor aceitam estarem imersos em um universo de regras próprias

e, portanto, não necessariamente fiel ao mundo objetivo, porém sem perder a verossimilhança.

Tais “provas” a que as personagens de Malot são submetidas simbolizam as diversas etapas da

vida que um jovem deve superar para tornar-se um adulto. Essa superação depende

exclusivamente da ação da personagem, dotando-a de um espírito resiliente, corajoso, e,

sobretudo, de inteligência singular. Vem dessa força, de acordo com Pincet, o sentido de sua

jornada e, por consequência, de sua própria existência.

Mas além de “atingir sua finalidade”, como expressa Pincet, o herói é também um indivíduo

social e não pode estar desvinculado do coletivo. Pois, se assim fosse, não poderia servir de

exemplo. O próprio significado da jornada, em seu sentido mais amplo, é integrar o herói à

sociedade após sua ausência durante a vivência da experiência transformadora. Marcus Mazzari

(1999, p. 74), em Romance de formação em perspectiva histórica, ao interpretar a trajetória de

Oskar Matzerath durante a Segunda Guerra Mundial, faz o seguinte comentário acerca do tema:

A consideração dessa outra dimensão do romance leva a uma relativização da

ideia inicial de formação: ela passará a ser entendida então não apenas

enquanto conceito teleológico do desenvolvimento gradativo de inclinações e

predisposições do indivíduo, no sentido de uma enteléquia, mas também

enquanto teoria da socialização, processo complementar ou interação entre o

“eu” e o mundo, o indivíduo particular e a sociedade.

A contribuição de Mazzari nesse comentário reforça a importância do contexto social no qual

o herói se insere, dando a entender que a jornada solitária empobrece a própria experiência do

indivíduo. No romance de Malot, a cena do acidente na mina configura um momento central

do récit justamente por abarcar essa dupla conotação. O herói Rémi tem que confrontar a morte,

uma experiência absolutamente individual, porém, em certo sentido, compartilhada com outros

53 Aqui, toma-se a liberdade de expandir a ideia de “pacto autobiográfico”, especialmente em Philippe Lejeune

(LEJEUNE, 1975, tradução nossa, p. 21) que o considera como: “o engajamento que faz com que um autor conte

diretamente sua vida (ou uma parte dela, ou um aspecto ainda de sua vida) em um espírito de verdade”. Enquanto

o pacto autobiográfico considera autor e leitor, o pacto ficcional consideraria narrador em primeira pessoa e leitor.

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cinco mineradores. O desafio mental e físico imposto ao garoto também significa a superação

do grupo de mineradores presos na mesma condição. Para Rémi, esse momento é capital:

representa sua integração na sociedade; agora ele faz parte do grupo de mineradores, iguala-se

aos adultos, não é mais uma criança estigmatizada pelo abandono.

Tal comportamento mais autônomo e ativo é facilmente identificável em dois trechos do

episódio do acidente nas minas. Preso no poço cego já há alguns dias, o grupo liderado pelo

mestre elabora algumas possíveis maneiras de melhorar a situação coletiva no buraco e até tenta

criar estratégias para uma possível saída. Na falta de comida, o grupo poderia apenas dispor de

água. Mesmo assim, seria necessária uma operação para coletar a água sem cair nas profundezas

da mina. Rémi é escalado pelo mestre para o desafio, que claramente não queria arriscar um de

seus mineiros para a tarefa, que tampouco a realizariam tão bem, por terem corpos maiores.

Rémi não reclama e aceita prontamente a tarefa que lhe é dada. E, ainda por cima, tranquiliza

o mestre, dizendo que não ficasse receoso pois sabia nadar – um dos cuidados de Vitalis com a

educação para a vida –, demonstrando ao grupo que é tão capaz como qualquer outro adulto de

realizar o desafio. O diálogo evidencia esse jogo de força:

Aos tormentos da mente, além disso, agora se juntaram os tormentos do corpo.

A posição em que fomos obrigados a ficar em nosso patamar era mais

cansativa; já não conseguíamos fazer movimentos para engolir, e nossas dores

de cabeça tornaram-se afiadas e desconfortáveis.

“Se nos impedem de comer, nos é permitido beber”, disse Compayrou.

— Para isso, se é tudo o que quer, temos água à vontade.

— Esvazie a galeria.

Pagès queria descer, mas o mestre não lho permitiu.

“Você vai danificar a escavação; Rémi é mais leve e mais esguio, ele

irá descer e nos passará a água.

— Em quê?

— Na minha bota.”

Deram-me uma bota e eu me preparei para deslizar até a água.

“Espere um pouco, disse o mestre, que eu lhe dou a mão.

— Não tenha medo, quando eu cair, não acontecerá nada. Eu sei nadar.

— Eu quero lhe dar a mão” (MALOT, 2014, p. 250, tradução nossa).

O mestre, mesmo colocando o jovem em risco, mas avaliando que era a melhor decisão, não

deixa de ser atencioso e cuidadoso com Rémi. É o garoto que impõe confiança ao adulto. A

cena que se segue coroa o heroísmo de Rémi. Porém, ao segurar a mão dele, o mestre escorrega

e ambos caem no poço de águas escuras e geladas. Sem orientação de sentido e mergulhado por

completo na água, Rémi tem uma espécie de flashback ao relembrar Vitalis ensinando-o a

nadar, quando é submerso novamente pelo mestre, em uma atitude desesperada. Rémi mantém-

se calmo e dá as orientações para o mestre se apoiar nele: “Segure-se firme, mestre, e apoie-se

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com a cabeça para cima, você está salvo” (MALOT, 2014, p. 251, tradução nossa). O garoto

ainda tem tranquilidade para ouvir as vozes do tio Gaspar e seguir em direção ao grupo. Salvos,

o mestre não hesita em reconhecer a bravura de Rémi: “Venha cá – ele me disse –, eu lhe dou

um abraço; você salvou a minha vida” (MALOT, 2014, p. 251, tradução nossa). Esse gesto do

mestre simboliza o reconhecimento de que o aprendiz o superou, que agora ambos estão de

igual para igual. Mas Rémi, em sua humildade e sabedoria, responde que o mestre já tinha

propiciado as condições para eles se salvarem.

O segundo momento em que Rémi demonstra ser “ativo e disponível” está perto do desfecho

do acidente das minas. A água finalmente começa a descer e os mineradores agora conseguem

ouvir, bem ao longe, o socorro chegando. O desafio é fazer com que o salvamento chegue bem

próximo do poço cego onde eles estão presos. Voluntariamente, Rémi se oferece para fazer uma

tentativa de nadar até a outra galeria e, assim, chamar a atenção da equipe de resgate. O mestre

não impede Rémi, pelo contrário, deixa-o à vontade para decidir sobre seu destino, num gesto

de confiança:

Assim, a esperança tinha me reanimado, e o vazio da galeria me inspirava uma

ideia que me atormentava. Eu voltei ao nosso patamar.

“Mestre, tenho uma ideia: como os ratos circulam na galeria, nós

também podemos passar; eu vou nadar até as escadas. Eu poderei chamar, ser

entendido, ajudar assim no nosso salvamento; eles virão nos procurar, será

mais rápido que pela descida.”

O mestre pensa por um momento, depois, segurando em minhas mãos:

“Você tem um coração bom, pequeno, faça como você quiser; creio que seja

impossível essa tentativa sua, mas não é a primeira vez que o impossível vence. Dê-

nos um abraço” (MALOT, 2014, p. 26, tradução nossa).

A fala de Rémi demonstra segurança ao elaborar o plano, ao contrário do mestre, que, mesmo

valorizando o gesto, hesita na resposta. O plano de Rémi, de fato, não encontra sucesso, mas

pouco importa. O garoto é o único entre os mineradores – além do mestre, que lidera o grupo –

a propor alternativas, a pensar em estratégias, a se oferecer voluntariamente ou a aceitar as

tarefas sem hesitar. Além disso, o garoto é capaz de manter o espírito elevado, mesmo com a

privação de comida, de ar, de liberdade, sem conhecer o destino que o espera.

A bem da verdade, Rémi e os leitores talvez não conheçam o destino do garoto. Mas o narrador

de Sans famille, sim. Apresentando-se como “Eu sou uma criança abandonada”54 (MALOT,

2014, p. 11, tradução nossa), logo na primeira frase do romance, o narrador em primeira pessoa

54 “Je suis un enfant trouvé.”

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e no tempo presente cria uma situação ambígua sobre a diegese do romance. Porém, tal dúvida

dissipa-se com a sequência da narrativa e com o contexto da narração, no qual fica claro que

tal narrador rememora sua infância. Assim, a ambiguidade proposital do início pode ser

explicada por um certo estigma do narrador, uma marca que o condiciona a nomeá-lo, para

sempre, uma criança abandonada. Porém, o narrador adulto aplica uma ótica positiva a sua

própria condição de abandonado – um recurso frequente usado por Malot para suavizar as

situações problemáticas da obra. A atitude “ativa e disponível” de Rémi quando criança, essa

que está sendo narrada pela lembrança, não o condiciona a “ser” abandonado e sem família,

mas sim a transformar a sua jornada em aprendizado e mérito.

Essa ambiguidade faz parte da estratégia de narração em Sans famille, constituindo um dos

pontos mais singulares do romance. A primeira frase da história, por exemplo, representa uma

paralipse, ou seja, o narrador afirma ao leitor, no tempo presente da narração, algo que não é

mais verdade no tempo presente do mundo objetivo (LEJEUNE, 1980, p. 15). O narrador de

Sans famille deixa a entender que é uma criança abandonada quando, na verdade, já é um adulto

cuja identidade foi recuperada. Porém, se o narrador revela, de imediato, sua condição atual, diga-se,

restaurada, todo o propósito do romance – narrar a transformação do herói – se desfaz. Dessa maneira,

cria-se um suspense em relação ao destino do herói que sustenta o récit.

Porém, logo na segunda frase do romance (“Mais, jusqu’à huit ans, j’ai cru que, comme tous

les autres enfants, j’avais une mère, car, lorsque je pleurais, il y avait une femme qui me serait

si doucement dans ses bras en me berçant, que mes larmes s’arrêtaient de couler”55 (MALOT,

2014, p. 11), o tempo narrativo muda do presente do indicativo (“je suis”) para o pretérito

perfeito composto (“j’ai cru”) e o imperfeito (“j’avais”, “je pleurais”, “il y avait”, “me serait”

etc.), ambos utilizados para indicar uma história no passado. Assim, o leitor atento percebe que

há uma estratégia para confundi-lo – afinal, o narrador é uma criança falando no presente, ou

um adulto comentando o passado? – sobre qual narrador é o legítimo: a criança que irá viver os

fatos ainda por serem narrados, ignorante dos acontecimentos que virão, ou o adulto onisciente que

exprime suas reflexões a partir da narração? Pelo emprego do discurso direto livre, o narrador se

coloca ora como o herói criança da cena, ora como o adulto experiente e vivido.

55 Para compreender a argumentação da análise, faz-se necessário citar o exemplo na língua original. Em

português, a tradução do trecho ficaria da seguinte maneira: “Mais, aos oito anos, eu acreditava que, como todas

as outras crianças, eu tinha uma mãe, pois, logo que eu chorava, havia uma mulher que me prendia carinhosamente

em seus braços me embalando, que as minhas lágrimas paravam de escorrer”.

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Neste ponto, poder-se-á empregar a denominação proposta por Lejeune (1980) para o narrador

de biografias sobre a infância. Seu estudo aprofundado do tema utiliza como exemplo um

escritor contemporâneo a Malot, Jules Vallès, autor de muitos livros ficcionais sobre a infância,

cujo narrador em primeira pessoa também se confunde com a personagem. Na tentativa de

identificar diversos tipos de narrador e narrativas presentes nos récits com essas características,

Lejeune propõe uma classificação a partir das ambiguidades criadas nos textos. Uma dessas

classificações poderia ser parcialmente aplicada ao romance de Malot: o conceito de narração

em segundo grau – “la narration au second degré” (LEJEUNE, 1980, p. 22). Para Lejeune, nessa

modalidade de narração, o narrador torna-se “narrador-personagem” e a personagem, por sua

vez, narrador, deixando o leitor confuso quanto a quem, naquele momento, domina a palavra.

Essa oscilação ocorre por todo o romance de Malot, sendo facilmente identificável. Porém,

enquanto Lejeune descreve que a narração em segundo grau ocorre no emprego do pretérito

perfeito composto associado ao tempo presente, em Sans famille o récit é narrado, em quase

sua totalidade, no imperfeito. A proposta de classificar a voz do narrador de Sans famille como

de segundo grau, no entanto, se sustenta quando ambos – “narrador-personagem” e personagem

– utilizam o mesmo tempo verbal (no caso, o imperfeito) para expressar tanto a experiência que

está sendo vivida quanto a que foi vivida.

Além do tempo verbal, outro elemento que corrobora esse efeito dúbio é a linguagem utilizada

por ambos (narrador e personagem), que, pela similitude, não pode ser distinguida uma da outra

– a fala da criança, Rémi, torna-se complexa quando não inverossímil, e a fala do narrador

ganha ares infantilizados. No trecho de Sans famille abordado neste trabalho, são inúmeras as

passagens nas quais se pode exemplificar a maneira como o narrador e a personagem se

confundem. No capítulo IV, “A inundação”, a cena em que Rémi percebe que há algum

problema nas minas é descrita da seguinte maneira:

Como eu vinha de empurrar minha caçamba no poço de Saint-Alphonsine pela

terceira vez, ouvi ao lado do poço um barulho formidável, um estrondo

espantoso como jamais tinha ouvido desde que eu trabalhava na mina. Seria

um desmoronamento, um colapso geral? Eu ouvia: o barulho continuava

ecoando por todos os lados. O que aquilo significava? Meu primeiro

sentimento foi assustador, e eu pensei em me salvar molhando as escadas; mas

todos já tiravam sarro de mim com frequência por conta de meus medos, e a

vergonha me fez ficar. Era uma explosão de mina, uma caçamba que caía no

poço; talvez apenas os detritos que desciam pelos corredores (MALOT, 2014,

p. 235, tradução nossa).

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A narrativa é rápida: o suspense é criado e logo dissipado. O trecho começa com o narrador

adulto descrevendo suas sensações ao ter ouvido o grande barulho dentro da mina. Esse

narrador, capaz de voltar ao passado pela memória e resgatar suas sensações, conhece a causa

desse enorme estrondo. Porém, logo na sequência da descrição de suas impressões, vêm as

perguntas: “Era aquilo um desmoronamento, um colapso geral?”, “O que aquilo significava?”.

Esses não são questionamentos do narrador, mas sim da personagem Rémi, do “narrador-

personagem”, que desconhece seu futuro. Por alguns instantes, a narrativa cria um suspense

sobre a causa do barulho. Mas, logo na sequência, o narrador adulto retoma a palavra e explica

que se tratava de uma explosão da mina, fazendo com que uma caçamba caísse no poço. E, uma

outra vez, uma incerteza se instaura pelo uso do “talvez” na última frase (“talvez apenas os

detritos que desciam pelos corredores”). Assim, narrador e narrador-personagem oscilam, em

um espaço narrativo muito curto, na tomada da palavra, criando um rápido movimento de

suspense/dissipação do suspense do episódio narrado.

Em outro momento do mesmo episódio, desta vez no capítulo V “No poço cego”, o mélange

entre narrador e herói fica ainda mais evidente. No episódio já mencionado no qual Rémi é

escalado pelo mestre para pegar água usando uma bota, ambos caem na água escura e perigosa.

Para descrever essa cena de modo a criar uma tensão no leitor, o narrador passa a usar o

infinitivo associado ao pretérito perfeito composto – primeiro indício de sua “transformação”

em “narrador-personagem” – e seus comentários evidenciam que ele desconhece o que está por

vir:

Nas minhas viagens com Vitalis eu aprendi bem a nadar e a mergulhar para

me encontrar tão à vontade na água quanto sobre a terra firme; mas, como se

localizar neste buraco escuro?

Eu não tinha pensado nisso quando eu me deixei deslizar, eu não

pensei que o mestre teria se afogado e, com o instinto de um cachorro terra-

nova, eu estava jogado na água.

Onde procurar? De que lado dar a braçada? Como mergulhar? Era isso

o que eu me perguntava quando senti ser agarrado pelos ombros por uma mão

desesperada e fui forçado a submergir na água. Uma boa pernada me fez voltar

à superfície: a mão não me deixava (MALOT, 2014, p. 251, tradução nossa).

O menino (“narrador-personagem”) se pergunta como deve agir, o que procurar, como sair

dessa situação de perigo. Mas, similar à passagem mencionada anteriormente, logo o adulto

(“narrador”) retoma a narração e descreve como Rémi-criança conseguiu escapar do

afogamento e ainda salvar o mestre. Dessa maneira, o romance de Malot é construído como

uma grande fabulação do adulto Rémi olhando para seu passado. A voz do narrador transporta o leitor

para o tempo de sua infância, apagando o homem para dar existência apenas ao garoto Rémi.

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Nesse passado, o narrador adulto explica sua jornada tentando entender a orfandade, o motivo

do abandono de seus pais biológicos e adotivos. Tenta reconstruir sua família perdida e, talvez

a questão mais importante para o amadurecimento da personagem: Rémi substitui o pai pela

figura de Vitalis. Será a partir dessa problemática que nasce toda a motivação da viagem de

Rémi: reunir-se com seus pais biológicos, resgatar suas origens, recriar seus núcleos de afeto

(considerando seus pais e mère Barberin) dos quais ele foi privado ainda criança. A crítica

inglesa Penny Brown resgata a comoção que Sans famille causou quando publicado, realçando

como a narrativa em primeira pessoa se associa à jornada do herói:

A narrativa de Sans famille em primeira pessoa do enfant trouvé, ou criança

abandonada, chamada Rémi, representa uma das mais completas expressões

do romance “on the road”, mas também toma emprestado da narrativa dita de

jornada, do romance familiar, do romance picaresco e do conto de fada pelo

tratamento que Malot dá para os temas do exílio, da separação de uma

existência peripatética, das lições de autoconfiança e sobrevivência, e da

busca de uma identidade e de integração social. A jornada de Rémi é tanto

literal e metafórica, uma iniciação tanto para a geografia da França quando

para a vida adulta a partir das experiências e dos encontros em diversos

ambientes sociais. Em suma, ele faz várias viagens pela França, Inglaterra e

Suíça, e volta em busca de sua real identidade, família e amor. O ponto de

vista da narrativa é do Rémi adulto recontando sua infância de uma posição

da segurança e do bem-estar da burguesia (apesar de isso ser apenas revelado

no final do romance), mas desde as primeiras palavras (“Je suis un enfant

trouvé”) o leitor é imerso nas experiência da criança, a qual a narrativa revive

intensamente como se fosse no presente. O leitor apenas apreende a verdade

sobre a situação de Rémi quando ele mesmo também a descobre, e o romance é

estruturado em um padrão de expectativas, falsas esperanças e frustrações, apesar

de conter pequenas dicas acerca do final feliz, o que é tanto intrigante quanto

reconfortante (BROWN, 2008, p. 127, tradução nossa).

Em seu comentário, Brown destaca uma série de elementos que caracterizam a obra de Malot56,

dando especial atenção ao romance “on the road”, à jornada “literal e metafórica” que permite

Malot descrever, como pano de fundo, em minúcias, as regiões da França percorridas pelo herói

– tanto do aspecto geográfico quanto em suas características culturais e econômicas. Ao lançar

56 Dentre esses elementos, Brown cita o aspecto de conto de fada do romance de Malot. Apesar do romance tentar

ser realista, a narrativa apresenta algumas passagens que, pode-se dizer, estão no âmbito do universo fantástico.

Além de algumas situações do livro não parecerem tão críveis do ponto de vista de sua resolução, a passagem que

mais se identifica pelo aspecto fantástico é a cura da menina muda Lise. A menina é curada como num passe de

mágica. Por não exigir nem apresentar explicações realistas para o desfecho de alguns episódios, especialistas em

crítica de literatura infantojuvenil consideram Sans famille um romance fantástico. É o caso da russa Marina

Balina, especialista em contos fantásticos, que associa o tema das crianças abandonadas do século XIX aos textos

clássicos do repertório da literatura mundial, especialmente os de origem russa (em depoimento pessoal durante

minha estadia em Munique).

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Rémi em busca de sua identidade burguesa, ou seja, na ascensão social, o garoto evolui de uma

criança abandonada para um indivíduo reconhecido socialmente.

Por esses motivos, Sans famille também pode ser considerado um “romance familiar” dentro

do conceito freudiano do termo e, em especial, sob a interpretação de Marthe Robert (2017).

Pincet também corrobora essa interpretação. Em seu artigo já citado, o pesquisador elabora o

quadro familiar disfuncional da vida de Rémi e as estratégias do narrador em interpretar e

substituir figuras chaves em sua fabulação:

Os diferentes momentos do fantasma descrito por Freud e seus discípulos

aparecem em Sans famille. Rémi é deposto da casa da mamãe Barberin e, mais

tarde, é expulso da família Acquin. O pai adotivo, Barberin, aparece estranho

a Remi, uma vez que ele é rígido, implacável, e os Driscoll, os falsos pais, são

ao mesmo tempo distantes e sem coração. O leitor vê cenas de destituição do

herdeiro antes que o herói faça comparações entre as famílias, entre a madame

Milligan e a mamãe Barberin. O desenlace estabelece uma restauração

dinástica e permite que o herói ofereça de maneira equitativa justiça

distributiva depois que o traidor é confundido na cena de reconhecimento

final. Vitalis, que foi um artista glorioso, é dotado do prestígio que o pai

fictício desfruta na fantasia do “romance familiar”. A rivalidade edipiana

parece decisiva na formação do herói: oferecendo a vaca leiteira à mãe

Barberin, uma vez que o marido mau a obrigou a vender Roussette, ele aparece

como um príncipe e, ao instruir Arthur, Lise e Mattia, ele representa o papel

de pai que Vitalis já representou uma vez, ao ensiná-lo a ler e a representar a

comédia (PINCET, 2002, p. 484-485, tradução nossa).

Pincet retoma a arqueologia das diversas possibilidades de famílias que são expostas a Rémi e

que acompanham a narrativa: a mãe Barberin que se descobre não biológica, o pai que o vende

para Vitalis, que, por sua vez, será a figura paterna – “o pai fictício” – do romance até,

finalmente, Rémi substituir seu pai adotivo no desfecho triunfal – a “rivalidade edipiana” que

Pincet comenta. As estruturas familiares de Rémi tornam-se importantes para a análise crítica

do romance à medida que a dramatização e complexidade da trama familiar acompanham o

amadurecimento de Rémi. Do dia em que o garoto é vendido a Vitalis e sai aos prantos com

“os olhos escurecidos pelas lágrimas não viram ninguém para pedir ajuda: ninguém conhecia a

estrada, ninguém por perto para pedir ajuda – Eu começei a chamar: Mamãe! Mamãe Barberin!”

(MALOT, 2014, p. 39, tradução nossa), ao triunfo final do adulto Rémi, casado e reunido com sua

família biológica inglesa, várias peripécias marcam as passagens do amadurecimento do herói.

Uma delas, analisada aqui, enfatiza a independência emocional de Rémi, um largo passo para

a compreensão de sua identidade. A segunda parte do romance representa essa virada: Rémi se

prepara para ser o mestre de seus colegas, acolhido pelas lembranças de seu tutor Vitalis. O

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começo dessa segunda parte é marcante. O narrador relembra: “O mundo estava diante de mim,

e eu podia mirar meus passos ao Norte ou ao Sul, ao Leste ou ao Oeste, de acordo com a minha

vontade. Eu não passava de uma criança e já era senhor de mim” (MALOT, 2014, p. 201,

tradução nossa). O trecho revela o momento em que o garoto Rémi aceita tanto a sua condição

de órfão quanto viver de maneira errante. A passagem é significativa, pois demonstra o processo

de amadurecimento do menino em sua trajetória, à qual foi submetido à força quando vendido

ao italiano Vitalis. Passados alguns poucos invernos de tal episódio traumático, seguidos de

outras cenas também marcantes, como já vistas, Rémi finalmente aceita que a vida errante pode

significar liberdade. O garoto compreende que seguir o seu próprio destino, guiar-se conforme seu

desejo e, sobretudo, ser “senhor” de si é, de fato, um privilégio para um garoto sem família.

Pois o conceito de família no século XIX já havia amadurecido para uma ideia de núcleo social

afetivo, o primeiro com o qual o indivíduo se depara quando criança. É deste período a

compreensão de que pais e filhos estão ligados por uma relação única e distinta da sociedade,

que se restringe à vida privada. Vale, aqui, retomar o conceito de romance familiar a partir dos

estudos de Lynn Hunt (2017). Desde o começo do século, a ideia de família amadureceu

definindo papéis únicos tanto para o homem, quanto para a mulher e até mesmo para as

crianças:

As mulheres deveriam voltar para a casa e para sua posição na família, ainda

que esses mesmos papéis (como filha e mãe especialmente) estivessem mais

valorizados do que nunca. Os irmãos se tornariam pais que, por sua vez, teriam

seus lugares restaurados por direito como grandes entre iguais. Ainda assim,

esperava-se que os pais fossem mais amáveis, mais carinhosos, “doces” e

menos inclinados a comportamentos despóticos de sua própria vontade

(HUNT, 2017, p. 171).

Tal percepção alterou profundamente a qualidade sentimental entre os “familiares”, tornando,

assim, a família uma instituição valorizada positivamente. Esse novo comportamento diante da

família está intrinsecamente associado, por sua vez, ao surgimento do conceito de infância e da

importância de distinguir a educação e o tratamento entre as crianças e os adultos57.

57 Philippe Ariès (2011, p. 162) esclarece historicamente a transição do conceito de família no século XIX, no

trecho de seu livro História social da criança e da família: “Tendia-se agora a atribuir à afeição dos pais e dos

filhos, sem dúvida tão antiga quanto o próprio mundo, um valor novo: passou-se a basear na afeição toda a

realidade familiar. Os teóricos do início do século XIX, entre os quais Villèle, consideravam essa base demasiado

frágil; eles preferiam a concepção de uma ‘casa’ familiar, uma verdadeira empresa independente dos sentimentos

particulares; haviam compreendido também que o sentimento da infância estava na origem desse novo espírito

familiar, do qual suspeitavam. Por essa razão, tentaram restaurar o direito da primogenitura, derrubando assim

toda a tradição dos moralistas religiosos do Ancien Régime. Observaremos aqui que o sentimento de igualdade

entre as crianças pôde desenvolver-se num novo clima afetivo e moral graças a uma intimidade maior entre pais e

filhos”.

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Nesse sentido, a obra de Malot ganha força ao estampar dura e secamente, já no título, o estado

de “sem família” do protagonista. Para o leitor do século XIX, a informação tem um sentido

muito nítido: o herói inicia o romance segregado de seu primeiro núcleo social, rejeitado por

aqueles que têm obrigação de atribuir-lhe afeto e cuidado. É, portanto, um abandonado, alguém

que não pode ser considerado como indivíduo e, assim, assemelha-se a um objeto. Porém, com

seu “pai” Vitalis morto, Rémi torna-se a figura potencial para exercer tal função de chefe de

família e, por sua vez, cumprir o objetivo primordial da manutenção da instituição familiar.

2.1 A criança-objeto do século XIX na literatura francesa: ecos e origens

Para entender o que de fato significava abordar o surgimento da figura da criança carente como

personagem na literatura do século XIX, é necessário escavar as evidências tanto na literatura

quanto na sociologia. Da perspectiva da literatura, um estudo minucioso que contribui para

iluminar o tema é o da pesquisadora Marina Bethlenfalvay (1979), publicado em forma de livro,

intitulado Les Visages de l’enfant dans la littérature française du XIXe siècle: esquisse d’une

typologie. Sob a premissa de que a criança, durante muito tempo, foi ignorada como

personagem da “alta literatura”, a autora busca as origens das primeiras manifestações literárias

francesas, especialmente em romances, que assumiram crianças como personagens – e, às

vezes, até mesmo como protagonistas. A pesquisadora revela que, se o aparecimento de tais

personagens nas histórias foi tardia em relação ao desenvolvimento da literatura, não foi menos

impactante. De início, Bethlenfalvay (1979, p. 54, tradução nossa) relaciona a aparição da

criança vitimada na literatura romanesca às questões problemáticas da vida em sociedade do

século XIX:

O aparecimento da criança sofredora como personagem literária coincide,

mais ou menos, com o advento da sensibilidade pública às realidades da

miséria de uma grande parte da população. Essa consciência mais aguda das

injustiças sociais é devida, em parte, ao fato de que elas atingem, durante o

século XIX, proporções desconhecidas até agora.

Na sequência do raciocínio, Bethlenfalvay explica que se tratava do momento exato para a

infância surgir nos romances. De acordo com seus estudos, o protagonismo da criança nos

romances advém de uma certa “regressão” à infância por parte dos escritores. Estes, sensíveis

às mudanças de suas épocas, identificavam-se com o sofrimento das crianças por serem

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vulneráveis diante de uma sociedade ambiciosa e instável58. Contra a alienação de uma época

voraz, surgem os “escritores engajados” que irão dominar boa parte do século XIX com suas

narrativas focadas na “exploração” do ser humano em nome do desenvolvimento, na ascensão

da burguesia que traz consigo mudanças econômicas e políticas que, por sua vez, abririam

caminho para o cenário ultrassubjetivo que se apresentaria no século XX. A criança era o

exemplo real da figura explorada nessa nova configuração econômica e social. Assim, ela se

tornou símbolo de uma época.

Mas não se tratava de qualquer criança, e sim de uma categoria que crescia sem precedentes:

l’enfant trouvé, a “criança abandonada”. A ficção, nesse momento, recorre à realidade, como

uma forma de denúncia. Devido à miséria, à escassez de alimentos e às bruscas mudanças

econômicas – que deixaram grande parte da população desamparada –, e também ao aumento

de filhos ilegítimos, as crianças tornam-se indesejadas pelos pais. A consequência dessa

combinação é o abandono – primeiro de bebês e, depois, de crianças de praticamente todas as

idades –, que se torna um dos maiores fenômenos sociais da Europa no século XIX.

Da perspectiva da sociologia, de acordo com a pesquisa de Jean-Pierre Bardet e Oliver Faron

(1998), o acontecimento foi tão impressionante que não faltou material, como registros de

orfanatos e outras entidades, para a criação de um dossiê apurado sobre o tema, um movimento

que começa ainda no século XVIII, se intensifica com o passar das décadas, até atingir toda a

Europa ocidental no século seguinte59 . O ato massificado de deixar bebês e crianças aos

cuidados de outrem tornou-se tão evidente como prática de abandono que a própria sociedade

58 Diz Bethlenfalvay (1979, p. 61, tradução nossa): “Não se entenda ‘regressão’ no sentido pejorativo de

puerilidade ou de fuga diante das responsabilidades da vida adulta. Ela pode ser um retorno momentâneo às fontes,

uma retomada de contato com as origens da personalidade que se tornam necessárias diante de certas situações,

podendo se identificar à criança sofredora: o indivíduo que se sente, mais e mais, ameaçado pelas forças impessoais

da sociedade moderna, pela pressão das ambições, a dissolução de estruturas estáveis, a rapidez das mudanças do mundo,

reconhece na vulnerabilidade da criança uma imagem de seu próprio estado”. A citação da autora demonstra como a

identificação dos escritores com as crianças se dá pelo aspecto da fragilidade, o que demonstra a ideia que se tinha sobre

a infância: um momento frágil que necessita de cuidados. Em outra passagem, a autora completa: “O escritor do século

XIX parece, em certo sentido, se identificar com a criança: ele reconhece ou projeta em si sua própria alienação, como

ela, ele se sente abençoado pela insensibilidade dos ‘homens sérios’, ele recusa uma moral utilitária e prática e, em geral,

se adapta com dificuldade às convenções da sociedade burguesa”. Neste trecho, a autora ressalta a ideia de que as crianças

estão dissociadas do universo do adulto (alienadas), porém, sofrem para poder participar deste mundo criado a partir de

convenções nada ingênuas. 59 “Apesar de tudo, a maior parte dos resultados converge para confirmar uma afirmação simples: durante o século

XVIII e ainda mais na primeira metade do século XIX, o crescimento do número de crianças abandonadas por

toda a Europa latina era bem superior ao da população. O ponto de partida desse aumento dramático da exposição

de crianças pôde variar de uma região a outra, de um país a outro, mesmo de vila em vila, e, finalmente, se tornou

universal. Na França, o fenômeno foi particularmente intenso” (BARDET; FARON, 1998, p. 120, tradução nossa).

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começou a se organizar para acolher essa demanda. Entidades passaram a receber tais crianças

em “hospitais especializados” (les hospices). O maior desses agentes era a Igreja Católica que,

imbuída do espírito de caridade pós-Reforma, tornou-se um dos maiores responsáveis pelo

cuidado das crianças sem casa e sem família.

Mas não demorou para o que era considerado um embrião da filantropia tornar-se

institucionalização do abandono e, por sua vez, um dado social de extrema relevância para a

época, mudando o comportamento da sociedade e, concomitantemente, afetando os escritores

mais sensíveis ou atentos à causa. Os registros pesquisados por Jean-Pierre Bardet e Oliver

Faron, por exemplo, denunciam que as mães abandonavam seus filhos nesses “hospitais” e,

logo em seguida, apresentavam-se como amas de leite para dar de mamar a bebês rejeitados em

outra instituição, recebendo um valor pelo serviço. A Inglaterra viu surgir o fenômeno baby

farming: uma mulher se responsabilizava por amamentar e cuidar do bebê durante alguns

meses, sendo que os custos eram pagos pelos pais que, com frequência, “esqueciam” a criança

com a nova mãe. Para o resgate da família como organização social, foi necessário criar

campanhas para as mães manterem seus bebês e também para incentivá-las ao aleitamento. Todo esse

contexto criou um “mercado do abandono”: o leite materno, as cuidadoras de bebês e outras práticas

de primeiros cuidados tornaram-se produtos cujo valor oscilava de acordo com a oferta e a demanda

(BARDET; FARON, 1998, p. 124-25 e 134-135).

As instituições que acolhiam crianças precisaram se estruturar e organizar tendo em vista o

grande crescimento da demanda. Mas o que parecia uma solução para um problema visível foi,

em realidade, uma maneira de retirar as crianças indesejadas da sociedade de maneira definitiva.

Pois tais lugares podiam acolher as crianças, mas estas sobreviviam poucos anos nas precárias

condições de higiene e cuidados gerais apresentados nas instituições. Quando não morriam –

os dados revelam que, em Rennes, por exemplo, 20% dos bebês morriam até dois anos depois

da entrada no hospital; em Paris, 83% morriam logo depois dos primeiros meses de vida; em

Roma, a morte no primeiro ano era de 70%; em Badjouz, na Espanha, o número chegava aos

80% (BARDET; FARON, 1998, p. 135-136) –, o estigma do abandono perseguiria essas

crianças por toda a vida, como demonstram Bardet e Faron (1998, p. 132, tradução nossa):

A entrada no hospital constitui uma ruptura definitiva, não apenas porque lá

se morre de maneira massiva, como nós ficamos sabendo, mas porque a

instituição é com frequência sinônimo de ser colocado à parte da sociedade; a

criança abandonada se torna, definitivamente, uma criança à parte. Em Peruse,

a partir de 1740, os abandonados recebiam uma marca nos pés e eram tatuados

com uma dupla cruz, impossível de ser reproduzida. Em Siena, tatuavam-os

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com o desenho de uma escada, símbolo do hospital, e também os obrigavam

a usar roupas que continham essa insígnia. Na França, com frequência,

colocavam neles um colar como de presidiários destinados a identificá-los e

evitando o risco de substituição.

Voltando à obra de Malot, logo nas primeiras páginas do romance, Rémi, tendo que escolher

entre ir com Vitalis ou ser entregue a um desses hospitais, narra sua angústia ao pensar na

possibilidade desse ser o seu destino:

Havia na vila duas crianças que chamávamos de “as crianças do hospital”;

elas tinham uma placa de chumbo no pescoço com um número; eram crianças

malvestidas e sujas, tirava-se sarro delas; batia-se nelas. As outras crianças

tinham a maldade de sempre as perseguirem como se persegue um cachorro

perdido para se divertir, e como é um cachorro perdido não há ninguém que o

defenda.

Ah! eu não queria ser como essas crianças; eu não queria ter um número no

pescoço, eu não queria que corressem atrás de mim gritando: “Para o hospital! para

o hospital!” (MALOT, 2014, p. 24-25, tradução nossa).

Marcadas e estigmatizadas, as raras crianças sobreviventes seriam, pouco a pouco, inseridas na

sociedade, não apenas pela obrigação moral, mas também porque se tornaram boas fontes de

exploração de trabalho. O processo de socialização, ou o contrat d’apprentissage, passava pelas

etapas de ensinar noções básicas de leitura e escrita e, finalmente, alguma atividade

profissional, que se resumia a trabalhos manuais e menos lucrativos: serralheria, cutelaria,

carpintaria, alfaiataria, confeitaria (CHASSAGNOL, 1998).

As crianças ainda menos afortunadas eram orientadas, mesmo no período de desenvolvimento

físico, a trabalhar como limpadoras de chaminés – por seu corpinho pequeno – e até mesmo em

fábricas. Sobre esse tema, vale uma atenção especial. O trabalho fabril não apenas fazia parte

do processo de inserção da crianças na vida social e adulta, como também era considerado um

exercício educativo por seu caráter exigente, pelas naturezas disciplinadora e sistemática da

atividade, e por demonstrar às crianças maneiras de subsistência independentemente da ajuda

de outrem60.

60 “Os ‘atiradores’ em chita, os ‘lançadores’ na produção de xales, as ‘crianças’ em vidro, os ‘trammers’ em minas

ou ‘piecers’ em fábricas de fiação e aprender sem insucesso escolar, a requisitos da disciplina de fabricação chegar

(e sair) no momento marcado pelo som do sino, não sair do ateliê sem permissão, executar rapidamente as tarefas

repetitivas sempre impostas pelo ritmo de trabalho do operário-tutor, respeito em palavras e atos à hierarquia dos

contramestres e estar em tudo digno de ser, por sua vez contratado ‘na fábrica’ ou ‘meu’ – agora expressões

impessoais de emprego industrial” (CHASSAGNOL, 1998, p. 236-237, tradução nossa).

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Alguns tipos surgem dessa nova rotina social. Um deles, ao menos na França, é o père-patron,

a pessoa – geralmente uma figura masculina – responsável pelo bom comportamento das

crianças durante o trabalho e também a submissão delas diante à autoridade. Para muitas

crianças, o “pai-patrão” – conforme a sugestão de tradução – foi a figura mais próxima de um

pai que elas puderam ter durante a infância.

Outro detalhe importante da rotina das crianças que empregadas em fábrica eram as horas de

trabalho e o pagamento pelo serviço. Algumas fábricas chegavam a registrar turnos de até vinte

horas, para crianças de seis e sete anos que moravam a uma hora de distância do local do

serviço, com uma hora e meia para as refeições. O “pagamento” pelo trabalho, por sua vez, era

contabilizado com produtos – cujos valores variavam de acordo com a vontade do patrão

(CHASSAGNOL, 2010, p. 238 e 243).

A mão de obra infantil representava um ganho para os setores domésticos e fabris. Porém, os

efeitos maléficos dessa rotina no desenvolvimento das crianças passaram a ser considerados

mais do que descaso. Pouco a pouco, essa humilhante realidade começou a sensibilizar pessoas

– especialmente médicos, preocupados com as condições sanitárias às quais as crianças eram

submetidas –, que levaram essa prática de abuso de poder a uma discussão pública. Algumas

tentativas isoladas foram feitas no sentido de criar um regulamento para o emprego de crianças

em fábricas – como o Factory Act (1833), na Inglaterra, que tentava limitar a carga horária

mínima de nove horas para crianças de nove a treze anos –, no intuito de minimizar a exploração

infantil. Na França, a discussão chegaria ao poder público apenas em 1837, quando se aplicou

uma enquete nacional à câmara de negócios para averiguar se havia entendimentos sobre

regularizar a presença de crianças no ambiente fabril. Com o resultado majoritário positivo em

relação à “proteção” da criança trabalhadora, promulgou-se uma lei em 1841 com regras gerais

para o emprego de menores. Em 1874, promulgou-se uma nova versão da lei, restringindo ainda

mais a participação de crianças na indústria (CHASSAGNOL, 2010, p. 251 e 262).

Esse movimento de sensibilização da condição da criança abandonada pela sociedade captou o

interesse de escritores engajados, que se puseram a escrever sobre a realidade das mesmas em

seus romances. Retomando o trabalho de Marina Bethlenfalvay sobre a imagem da infância no

século XIX, os romances não pouparam o leitor da triste realidade dessas crianças:

Os romances do século XIX são repletos de crianças negligenciadas,

abandonadas por seus pais. Normalmente, elas morrem; se sobrevivem, são

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condenadas a uma infância e vida sem conforto ou esperança, ou, ao menos,

a um arrependimento perpétuo do amor que foi negado a elas. Pensemos em

Berthe Bovary, em Félix Vandenesse, e em todas as crianças deixadas às amas

de leite e esquecidas, porque seus pais tinham outras ocupações. Com

frequência, são crianças de cortesãs: o filho de Nana, de Rosanette também, e

seu cadáver suscita mais interesse do que se estivesse viva 61

(BETHLENFALVAY, 1979, p. 57, tradução nossa).

Rosanette, a mulher da corte em Educação sentimental, e Mme Bovary do romance homônimo,

ambos de Gustave Flaubert, e Félix Vandenesse, do romance A comédia humana, de Honoré

de Balzac, seriam exemplos de “adultos abandonados”, cuja carência afetiva na infância

culminou com uma vida adulta disfuncional, em busca desse amor que lhes foi negado quando

crianças.

Não por acaso, Marina Bethlenfalvay cita em seu trabalho Hector Malot como um dos exemplos

centrais de escritores que se dedicaram a dar voz aos pequenos abandonados, tornando Sans

famille um romance mais do que icônico para o tema. A autora lembra, porém, que não é

invenção do século XIX a manifestação cultural em torno de personagens abandonados ou cujos

destinos estão marcados desde seu nascimento. Essa tradição remonta aos gregos – e, quiçá,

além62. Mas a referência mais marcante na história da literatura infantojuvenil, no que diz

respeito à construção do imaginário do personagem órfão, remonta ao conto maravilhoso e de

fada. Personagens praticamente sem nome – chamados apenas de “príncipes” ou “filhos” –

vivem em um cenário genérico, em um tempo longínquo e impreciso. Na tradição da literatura

francesa, Charles Perrault (1628-1703) introduziu para o grande público órfãos emblemáticos

para a literatura infantojuvenil. Utilizando-se da forma do conte de fée (conto maravilhoso,

popularmente chamado de conto de fada, apesar de sensíveis diferenças entre os dois gêneros),

Perrault cristalizou o Pequeno Polegar (abandonado pelos pais) e Cinderela (órfã de mãe), nos

seus Contos da mamãe gansa (PERRAULT, 2015).

61 A pesquisadora identifica as personagens dos seguintes romances: Madame Bovary, de Gustave Flaubert, Le lys

dans la valleé, de H. de Balzac, e Nana, de Émile Zola. 62 “A história do abandono é, sem contestação, a mais antiga história social quantificada que podemos escrever.

História mensurada, mas também história sensível e ambígua. Cada um se identifica com o Pequeno polegar ou

se reencontra em Rémi de Sans famille. Mitos de origem, mito da rábula rasa. Os personagens fascinam porque

não são do passado e porque parecem ter nascido do futuro. Édipo, Rômulo e Remo, ou mesmo Alembert encontrado nas

escadarias da igreja Saint-Jean-Le-Rond, perto de Notre-Dame de Paris, não deixam de ser citados nas crônicas e nos

romances sobre o abandono” (BETHLENFALVAY, 1979, p. 113-114, tradução nossa).

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Porém, mesmo com diferenças significativas quanto ao formato (conto popular e romance),

caracterização de personagens (anônimos e protagonistas) e ambientação (lugares distantes e

cidades, vilas ou ilhas), as “tarefas” do herói órfão em sua jornada, na maioria dos casos,

mantêm-se sempre as mesmas: definir sua própria identidade, buscar o amor, a segurança e a

felicidade em família, que o tire da solidão e do abandono.

Porém, para as crianças do século XIX, a realidade do mundo objetivo, no entanto, está

calibrada com uma lente um tanto quanto diferente, onde a infância e adolescência são

reduzidas a apenas alguns anos. A emancipação de crianças abandonadas era, para elas, uma

questão de sobrevivência. Nessa condição, são lançadas à força a uma vida independente, sem

a tutoria de adultos. Abandonadas, para sobreviver precisam escolher seus próprios caminhos,

ser suas próprias referências.

Em Sans famille, o estigma da orfandade é maior do que a tolerância e a compaixão. O marido

da mãe de criação de Rémi, quando volta para casa depois de passar um período na prisão, não

se sente na obrigação de sustentá-lo. Com crueldade, cria um estratagema para vender o garoto

escondido de sua esposa. Logo nos primeiros capítulos do romance já se identificam os adultos

de índole ruim agindo de maneira cruel e pessoas de bom coração passando por privações. Essa

lógica seguirá por todo o romance, a não ser por um personagem: Vitalis, o dono da trupe, que

aos poucos ocupa o lugar de mestre de Rémi.

A cena do acidente nas minas não seria a primeira vez que Rémi passaria por uma experiência

perigosa ou traumática para uma criança63. Ela começa pela própria violência de ter sido

vendido por seu padrasto a um artista de rua, o italiano Vitalis. Ou nos dias em que morou em

Paris aos cuidados do também italiano Garofoli, que supostamente acolhia crianças na mesma

condição de Rémi, com a promessa de dar-lhes abrigo e comida, mas, na verdade, abusava dos

garotos, forçando-os a trabalhar exaustivamente, sob pena de maus tratos e privação das

refeições como forma de punição. Ou, ainda, quando Vitalis foi preso por desacato à autoridade

na cidade de Toulouse, deixando Rémi sozinho pela primeira vez, apenas na companhia da

63 Nesta parte do livro, Rémi já é mais velho do que no início do livro, quando tinha oito anos, aproximadamente.

Aqui, nessa segunda parte do livro, supõe-se que o garoto tenha de onze a doze anos.

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trupe, o macaco Joli-Coeur e os cachorros que os acompanhavam nos espetáculos dessa jornada

pela França64.

Em todos esses episódios, os desfechos encaminham para uma dura vivência, mas que contribui

para o amadurecimento emocional de Rémi. Quando o menino ingênuo é separado à força de

sua mãe de criação, a mère Barberin, numa cena tocante, mal sabia ele que seu algoz, o

aparentemente bruto Vitalis, seria a figura responsável por expandir seu universo de

conhecimento. Será Vitalis que lhe apresentará o significado da arte e da cultura para um

desenvolvimento humanístico; lhe ensinará a importância e a dignidade do trabalho para a

independência do indivíduo numa sociedade calcada na desigualdade; lhe apresentará, também,

os códigos de boas maneiras, de justiça e de solidariedade para a convivência coletiva; além do

grande momento em que Rémi conquista um novo estágio sem precedentes: quando Vitalis lhe

ensina a ler e a escrever.

Dessa maneira, pouco a pouco, Vitalis passa de um usurpador de criança para o verdadeiro tutor

de Rémi, propiciando-lhe experiências, vivências e conhecimentos que sua mère Barberi nunca

teria condições de lhe oferecer – por causa de sua falta de preparo intelectual. O que

aparentemente se mostrava como negativo evolui para uma surpresa necessária ao

desenvolvimento do garoto como indivíduo, como cidadão. Dessa maneira se inicia a jornada

de Rémi, com os elementos da tradicional viagem do herói – o chamado para a viagem, o tutor

e os elementos fantásticos (CAMPBELL, 2007).

Em Paris, na terrível condição de escravo de Garofoli, Rémi vive a realidade dos meninos de

rua das grandes cidades. A comparação entre a zona urbana e o campo é cruel: nada se produz,

tudo deve ser conquistado; é explícito o contraste entre as belas casas e os cortiços e até mesmo

entre as ruas imundas de neve suja em comparação com as belas alamedas exibindo as vitrines

das lojas. Mas o que chama mais a atenção de Rémi é a pálida multidão que se submete a aceitar

esse contraste, além das crianças de ruas, que estavam por todos os lugares, testemunhando

adultos bebendo e se prostituindo: “Eu nunca tinha visto rostos tão pálidos como aqueles das

pessoas que compunham aquela multidão; também nunca tinha visto igual dureza para com

aquelas crianças que iam e vinham entre os transeuntes” (MALOT, 2014, p. 114, tradução

64 Tais episódios se localizam, respectivamente, nos capítulos III – “La troupe du signor Vitalis” (A trupe do

signor Vitalis), XVII – “Un padrone de la rue Lourcine” (Um padrone da rua Lourcine) e X – “Devant la Justice”

(De face com a Justiça).

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nossa). Mas o ápice da crueldade está mesmo nos dias em que Rémi terá que enfrentar Garofoli,

o conterrâneo padrone, um artista de rua que se vale das crianças para conseguir dinheiro. Rémi

se depara com vários tipos de abuso infantil sofrido pelas vinte crianças que moram de maneira

precária com o padrone: o garoto cozinheiro faminto Mattias, que não poderá jantar se não

conseguir vender sua cota de sopa por dia e, por isso, tampa a saída de ar para não sentir o

cheiro da comida e, em consequência, ficar com mais fome ainda; as crianças que trabalham

por uma meta, sob pena de serem espancadas com uma vara; ou mesmo os garotos que ficam

doentes e são deixados à morte.

Para Rémi, no entanto, o sofrimento terminaria logo, com o retorno de Vitalis para buscá-lo. E,

quando este vê a real condição das crianças, se sensibiliza: “Sim, é uma vergonha, uma covardia

martirizar dessa maneira as crianças que não podem se defender” (MALOT, 2014, p. 156,

tradução nossa). Esta fala de Vitalis deixa claro como a ideia de criança inocente e vítima de

maus tratos ainda resiste na narrativa de Malot: as crianças não têm como se defender, elas

precisam de adultos que lhes ofereçam o bem-estar e as guiem para um caminho de

acolhimento. Para o leitor do século XIX de Sans famille65, essa parte é altamente significativa

de maneira a sensibilizá-lo sobre a precária condição de crianças de rua. Novamente, Malot usa

a estratégia da empatia com o intuito de evidenciar uma realidade social. E, uma vez mais, a

situação termina de maneira que Rémi possa seguir a sua jornada. O episódio em que Vitalis é

preso levanta uma outra questão do período do século XIX, relevando uma nova forma de abuso

para os menos abastados: a noção de justiça, que parece não servir a absolutamente todos, mas

sim a quem seja conveniente aplicá-la.

Das diversas formas de abuso que Rémi enfrentou (ser abandonado pelos pais, não ter controle

sobre sua vida, precisar trabalhar desde cedo para sobreviver, passar frio, fome, desamparo

afetivo), nenhuma delas deixou tão evidente, quanto a prisão de Vitalis, a maneira como a

sociedade legal se organiza para rechaçar os pobres e manter a segurança dos ricos. As

experiências que Rémi viveu até o episódio da prisão de Vitalis têm um caráter absolutamente

65 Aqui se faz necessário esclarecer que os leitores de Sans famille eram, provavelmente, crianças burguesas, pois

seriam as únicas que de fato saberiam ler e teriam acesso a livros. Importante, também, explicar que, para este

capítulo, foi utilizada a ideia de criança para este leitor de acordo com os valores da época. Ou seja, a pessoa que

ainda não é adulta. O conceito de adolescência – a fase entre a infância e a idade adulta – só será compreendida

no século XX, de acordo com Philippe Ariès (2011, p. 14): “O primeiro adolescente moderno típico foi o Sigfried

de Wagner: a música de Siegfried pela primeira vez exprimiu a mistura de pureza (provisória), de força física, de

naturismo, de espontaneidade e de alegria de viver que faria do adolescente o herói do nosso século XX, o século

da adolescência”.

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maniqueísta, especialmente na separação entre adultos e crianças: as personagens adultas são

geralmente pessoas ruins e de má índole, enquanto as crianças são vítimas de seus maus-tratos.

Aqui, no entanto, fica evidente que houve uma injustiça: as leis aplicadas puras e diretas, sem

considerar a condição do indivíduo, contribuem para a perpetuação da desigualdade. Além de

ter a função de aproximar Rémi de Vitalis, fazendo a narrativa evoluir para algo similar à

relação pai/filho, o episódio coloca Rémi em um dilema: aceitar a justiça ou burlar a lei em prol

de um inocente? O trecho é educativo, pois faz o personagem compreender que a justiça e as leis são

apenas convenções dos homens e relativas a seus valores. Na cidade de Toulouse, ao serem abordados

por um policial, Vitalis demonstra como conhece seus direitos e deveres, mesmo sendo apenas um

treinador de cachorros:

Por mais que ele fosse apenas um treinador de cachorros adestrados pobre e

velho – ao menos atualmente –, ele tinha seu orgulho; além disso, ele também

tinha aquilo que se chama de sentimento de direito, ou seja, e foi dessa maneira

que ele me explicou, a convicção de que tem que ser protegido da mesma

maneira que ele não faria nada de contrário às leis ou regras da polícia

(MALOT, 2014, p. 76-77, tradução nossa).

Com essa argumentação, Vitalis expõe que sua condição social não o faz ser menos ou mais

ignorante das leis, tanto para obecedê-las, quanto para desobedecê-las. Com isso,

implicitamente ele demonstra ao policial que não agiu errado – e disso subentende-se que o

policial está desconfiado apenas porque são pobres. Vitalis é condenado a dois meses de

encarceramento além de uma fiança de cem francos por “injúrias e maneiras de enganar um

agente da força pública” (MALOT, 2014, p. 82, tradução nossa). Uma punição severa demais

e sem sentido para quem estava apenas tentando sobreviver. Este é o segundo momento da

jornada em que o garoto se vê de fato sozinho – o primeiro havia sido a separação de sua mãe

de criação –, tendo ainda que cuidar dos animais da trupe.

Do ponto de vida da trajetória do herói, tal estrutura de Sans famille torna-se absolutamente

compreensível quando se coloca em perspectiva as dificuldades que o herói precisa enfrentar

antes de atingir seu objetivo (CAMPBELL, 2007). Em todos esses episódios, Malot demonstra

ao leitor que a condição de garoto abandonado, ignorante e abusado não é um estigma do enfant

trouvé. O romance se desenvolve para que o herói consiga a ascensão social. Mas, sobretudo,

o texto de Malot reafirma como são importantes os valores sociais e morais aprendidos desde

criança, para se atingir a recompensa de uma vida plena e cheia de conquistas. O que garante,

no entanto, que Sans famille seja um romance do século XIX e não uma versão da épica

modernizada é sua linguagem. Para suprir a lacuna da reflexão interior causada pelo mosaico

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de aventuras – que impõe um ritmo acelerado no desenvolvimento dos episódios e, por

consequência, na leitura –, Malot apela para uma elevada carga melodramática no texto.

Enquanto a épica se propõe ser distante do mundo humano, criando um afastamento entre o

herói e o ouvinte, aqui o objetivo é exatamente o oposto: o leitor precisa ser conquistado,

entretido.

Sans famille, portanto, traz todas a experiência cruel que os enfants trouvés viviam nas ruas das

cidades europeias do século XIX. O registro literário que se apresenta no romance é de

superação. A fabulação que o narrador adulto criou sobre seu passado – para resgatar o termo

freudiano – é sobre uma infância sofrida e exemplar, de sucesso no sentido de driblar as

dificuldades, superar os desafios, mesmo que todas as realidades apontassem para um destino

trágico. Sans famille se propõe ser um romance de aventura, mas ainda é superficial quanto à

percepção de um mundo complexo, não baseado no maniqueísmo. Neste sentido, a

caracterização de Rémi ainda guarda semelhanças com os personagens dos contos tradicionais,

polarizados em seus valores66.

Talvez seja por isso que Sans famille, como romance, evoque mais um sentimento de piedade

do que se preste a ser revolucionário67. No entanto, mesmo com seu apelo sentimental como

intenção primordial, não se invalida o fato de Sans famille alertar para um fenômeno

absolutamente antiético: o fato de os enfants trouvés pertencerem a um sistema estabelecido de

abandono justificado. Ao longo do romance, Rémi repete e verbaliza sua condição de criança

abandonada, ressaltando o estigma de ser um enfant trouvé, além de sofrer maus-tratos por

conta dessa sua condição. Porém, como já foi dito anteriormente, o herói de Malot não é passivo

66 “Mas dado que a polarização domina a mente da criança, também domina os contos de fada. Uma pessoa é boa,

ou má, sem meio-termo. Um irmão é tolo, o outro é esperto. Uma irmã é virtuosa e trabalhadora, as outras são vis

e preguiçosas. Uma é linda, as outras são feias” (BETTELHEIM, 2017, p. 17). 67 Outro romance da segunda metade do século XIX que se propõe descrever a jornada de um herói “abandonado”,

desde sua infância até a idade madura, é Histoire d’un homme du peuple, escrito por Émile Erckmann-Chatrian

(1822-1899) e publicado apenas alguns anos depois de Os miseráveis, de Hugo, em 1865. No romance de

Erckmann-Chatrian, o herói Jean-Pierre Clavel é enviado da pequena cidade de Saverne para grande Paris por seus

pais adotivos a fim de que aprenda uma profissão. Além de o leitor acompanhar a trajetória do menino para se

tornar um homem, testemunha-se também o ingresso do jovem adulto nos movimentos revolucionários que

culminarão com os conflitos de 1848. Apesar de os romances de Erckmann-Chatrian e Malot guardarem algumas

semelhanças – a criança abandonada, a jornada do herói, o trabalho como valor edificante, claramente, Malot não

segue um caminho do homem político no que diz respeito ao destino de seus heróis. A mudança que Malot propõe

está mais associada ao âmbito subjetivo, digamos, burguês – a ascensão do indivíduo na sociedade – do que a uma

ideia de transformação coletiva. Ou seja, diferentemente de Jean-Pierre que luta pela mudança social, Rémi está

em busca de uma oportunidade no mundo burguês.

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diante do cenário que se impõe a ele, estabelecendo uma diferenciação entre aquilo que a

personagem acredita ser o justo e aquilo que lhe é imposto como estigma social por conta de

sua origem. Talvez neste ponto esteja também uma conexão com Gavroche, o menino que adere

à luta armada e morre na batalha em busca de seu ideal de vida68. Nesta luta pela mudança de

vida está a tomada de consciência que será a força motriz para Rémi procurar alternativas de

uma vida melhor em seu momento presente, impulsionado pela busca da verdade de sua real

origem. Não existe, porém, um conflito absoluto instaurado entre o “eu” e a sociedade; muitas

vezes, o herói de Malot resigna-se a essa realidade violenta, como se soubesse que o tempo da

justiça – seja lá qual justiça o irá acolher – chega em boa hora. Em suma, Rémi vislumbra um

futuro mais justo, e isso basta para suportar a realidade do presente. Georg Lukács (2015, p. 120)

contribui com uma reflexão sobre essa a diferenciação entre as realidades interna e externa:

A questão hierárquica do vínculo recíproco de subordinação entre as

realidades interna e externa é o problema ético da utopia: a questão de em que

medida a possibilidade de pensar um mundo melhor justifica-se eticamente,

em que medida é possível construir sobre ele, como ponto de partida da

configuração da vida, uma vida que seja perfeita em si e não apresente, como

diz Hamann, um buraco em vez de um final.

Lukács convida à reflexão sobre em que medida a projeção de um futuro melhor induz a um

comportamento utópico no presente. Essa reflexão só é possível em Sans famille uma vez que

o herói do romance esboça elementos subjetivos elaborados, mesmo que de maneira superficial: tem

uma identidade (nome e origem), acena para uma profundidade psicológica (mesmo que ainda

incipiente), está inserido em um contexto social e histórico, além de apresentar um objetivo muito

claro de ação – achar seus pais biológicos e voltar para sua mãe adotiva.

Rémi torna-se, portanto, uma das personagens mais importantes para a construção da imagem

da infância do século XIX, por se distinguir de seus antecessores idealizados, que chegavam a

possuir poderes e ganhavam a forma física de seres da natureza – uma vez que, na literatura

infantojuvenil do Romantismo, as crianças, quando presentes, eram meros recursos que

permitiam o desenvolvimento da ação, e as narrativas idealizadas pelo adulto escritor

proporcionavam uma literatura mais próximas de um pedagogismo, ainda distante das questões

68 Vale notar que, a sensível diferença entre Gavroche e Rémi é que, enquanto o primeiro questiona a organização

social, o segundo conecta-se ao ideal burguês de ascensão social. Rémi busca a estabilidade da burguesia, enquanto

Gavroche une-se àqueles que se sentem usurpados pela ordem social desigual. Este tema poderia render uma

pesquisa bastante interessante, o dos “meninos revolucionários e suas revoluções”, porém, não caberia neste

trabalho.

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83

sociais e intrínsecas à vida da criança69. Mesmo os autores contemporâneos a Malot, que

também se dedicaram a escrever sobre o fenômeno da infância abandonada – Mémoires d’un orphelin

(1865), de Xavier Marmier, por exemplo – não chegaram a criar uma personagem tão icônica quanto

Rémi. Sans famille ganha, portanto, certo destaque dentro da historiografia da literatura infantojuvenil

francesa pela maneira como Hector Malot propõe a representação da criança – mais engajada

subjetivamente (caracterização da personagem) – conectada ao seu momento histórico (ambientação),

a partir da forma textual do romance.

2.2 O quarto estado como tema do romance

O que de fato esses romances cujos heróis são crianças e jovens como os de Malot e de seus

contemporâneos citados acima sugerem como representação da infância é um momento de

tomada de consciência do subjetivo ou, mais especificamente, da “afirmação da criança como

ser humano completo” (ESCARPIT; VAGNÉ-LEBAS, 1988, p. 25, tradução nossa). A história

da literatura para crianças e jovens na França teve, até os anos 2000, cinco momentos de ruptura.

O primeiro, em 1697, é marcado pela publicação dos contos de Charles Perrault (1628-1703),

que permitiu uma literatura dirigida tanto para adultos quanto para crianças. O segundo

momento de ruptura compreende os anos 1782-1783, quando o primeiro jornal para crianças

foi publicado sob os auspícios do Século das Luzes, o L’Ami des Enfants, editado e criado por

Arnaud Berquim (1747-1791). Já o terceiro grande marco da literatura infantojuvenil francesa

acontece de 1833 até 1880, com uma série de eventos: a lei Guizot, em 1833, que exige a

construção de uma escola por vila. Com a melhora da educação, ou ao menos a presença da

escola por todo o país, é natural que surja um novo público leitor. A consequência, por sua vez,

é o aquecimento do mercado editorial devido ao aumento da demanda leitora, inundado por

69 “Através da literatura oral e dos contos populares, o romantismo dá à literatura juvenil o que lhe faltava e que

impedia de ser uma verdadeira criação: a ficção, o maravilhoso, a aventura, as ações extraordinárias e excitantes,

a natureza, o humor… No entanto, não se deve exigir das obras românticas uma personalização da personagem ou

um realismo preciso da paisagem. Às vezes, os heróis dos contos românticos são apenas as forças da natureza, sem

contornos físicos precisos como Senhor o Vento, Madame a Chuva (Paull de Musset), O Vento do Sudeste, o Rei

do Rio de Ouro em O rei do Rio de Ouro (K. Ruskin). Eles são a psicologia rudimentar dos contos populares.

Mesmo que mostrem dinamismo e iniciativa, eles se limitam aos domínios da evasão. Livros românticos para

jovens não se preocupam com a sociedade contemporânea (salvo Les mésaventures de Jean-Paul Choppart). Os

escritores se dirigem aos pequenos porque procuram encontrar o universo de sua própria infância. Eles evocam o

passado e suas lembranças” (OTTEVAERE-VAN PRAAG, 1987, p. 117, tradução nossa). Faz-se necessário

acrescentar ao comentário acima que a autora admite que o período romântico, especialmente pela evasão da

consciência e pela menção ao plano abstrato, possibilitou uma abordagem mais filosófica aos textos – ainda que

distantes da realidade sociocultural das crianças.

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obras escritas e produzidas na França, com destaque especial para o romance de Louis

Desnoyers, Les mésaventures de Jean-Paul Chopart (1834). Outra figura editorial importante

nesta época é o famoso editor Pierre-Jules Hetzel (1814-1886), que, com suas coleções e

revistas para crianças e pais, impulsionará a literatura infantojuvenil a entrar definitivamente

dentro da casa das famílias. Será este o período mais produtivo do mercado editorial até então,

com um universo vasto de revistas e obras literárias como as da Condessa de Ségur (1799-1874)

e Jules Verne (1828-1905).

O quarto momento de ruptura da literatura para crianças e jovens na França é o mais relevante

para este trabalho. Uma segunda lei sobre a educação francesa acelera, ainda mais, o mercado

editorial: a lei Jules Ferry (1881), que exige que o estado ofereça educação gratuita, obrigatória

e laica. Como o estudo passa a ser de grande acesso, cresce também, de maneira exponencial,

o público leitor infantojuvenil. As pesquisadoras Denise Escarpit e Mireille Vagné-Lebas, que

sistematizaram esses momentos de ruptura, enfatizam o desenvolvimento do campo editorial –

como consequência do estímulo para o estudo – para o surgimento desta literatura romanesca

mais associada às questões subjetivas da infância, com as quais se preocupa Malot. Nas palavras

das pesquisadoras:

O desenvolvimento dos métodos de impressão introduziu um novo tipo de

comunicação com a criança; a relação não era mais apenas didática ou

pedagógica; era também de entretenimento.

Esse período viu também a aparição de romances tendo crianças como

heróis – uma criança que vivesse, seja uma situação excepcional, como Roman

Kalbris, de Hector Malot, seja uma existência normal, mas que se colocavam

problemas de relação com os outros e com eles mesmos, como Poum, de Paul-

Victor Margeritte, ou Mon petit Trott, de André Lichtenberger. O

compartilhamento da experiência, tal qual era o propósito desses romances

que podemos qualificar de iniciáticos, à medida que eles afirmam a criança

como ser humano completo (ESCARPIT; VAGNÉ-LEBAS, 1988, p. 25,

tradução nossa).

A grande ruptura da época de Malot permite que a obra literária atinja o público leitor

diretamente, considerando-o também um “ser humano completo”70. Tal mudança de concepção

ideal da infância e da criança pode, sim, ser considerada uma ruptura. Para os românticos, por

exemplo, a criança frágil e delicada era sinônimo de um despertar para a espiritualidade e a

70 A título de curiosidade, o último momento de ruptura pós-1881 para a literatura infantojuvenil francesa até hoje

se deu em 1968 com a promulgação de mais uma lei para a educação, desta vez baixando a idade obrigatória para

frequentar a escola para três anos de idade. Com isso, o campo editorial responde de maneira rápida com livros

indicativos para faixas etárias específicas, obedecendo o desenvolvimento escolar das crianças e dos jovens

(ESCARPIT; VAGNÉ-LEBAS, 1988, p. 26).

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85

mensageira de um plano divino; seus sucessores também concebiam a criança como inocente e

pura. Porém, esta talvez seja a única semelhança no âmbito da concepção de criança e de infância

entre as duas gerações. Se para os românticos a criança inocente representa uma dádiva, para seus

sucessores a mesma criança insere-se no ambiente mundano: a criança frágil participa das mazelas da

sociedade, da crueldade e indiferença dos homens. Não poucas vezes, mas sim com frequência, a

personagem criança na literatura irá sofrer até morrer.

Reside nessa nova percepção sobre o recente papel da personagem criança na ficção – seja ela

destinada aos adultos ou aos leitores jovens – a principal mudança de registro de escrita da

época em relação à representação da infância na literatura. Pois os românticos não negam a

preferência pela poesia, gênero que permite uma total expressão do lirismo, conectando as

ideias ao etéreo, ao sublime; seus sucessores, no entanto, elegeram o romance como principal

gênero literário para representar uma nova realidade.

Tratava-se não apenas da realidade burguesa, que já despontava desde o século XVIII, mas sim

da abertura para um novo tipo de personagem nessa segunda metade do século XIX: pessoas

das classes mais baixas do extrato social. Sobre essa reflexão, Erich Auerbach (2004) faz uma

precisa análise acerca do surgimento do romance que se dedica ao “quarto estado” em Mimesis,

no capítulo dedicado à obra Germinie Lacerteux, dos irmãos Gongourt (Edmond e Jules). O

autor ressalta o romance como um marco da história da literatura por assumir como protagonista

uma criada e cujo enredo narrava suas aventuras eróticas. A distância temporal faz com que a

sensibilidade da população leitora contemporânea não veja com tanto entusiasmo – ou espanto

– tal enfoque. Mas para 1864 tratava-se de uma ousadia, que revela dados importantes sobre a

evolução do romance como gênero e sua intrínseca relação com a vida social. Auerbach relembra, a

título de comparação, que nos romances dos primeiros escritores realistas – Stendhal, Balzac, Flaubert

– as camadas mais baixas eram apenas coadjuvantes da trama. A função do “quarto estado” nesses

romances é meramente ilustrativa, uma presença insignificante, que apenas compõe o cenário para

torná-lo mais verossimilhante.

Já no romance dos irmãos Goncourt, logo no prefácio da obra, os autores explicam a

necessidade de trazer para as páginas dos livros tipos menos afortunados, tendo em vista as

mudanças políticas e sociais de inclusão, como o sufrágio universal, a democracia e o

liberalismo (AUERBACH, 2004, p. 445). Esse ato abre um precedente sem volta na história do

romance: a possibilidade de se tratar qualquer assunto, do mais baixo ao mais elevado, de

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86

maneira sofisticada em termos de estilo. Se retratar a burguesia e a vida íntima já tinha sido um

primeiro passo para que a literatura criasse um distanciamento necessário dos temas das formas

elevadas (tragédia, drama e as classes nobres) em prol de uma representação mais realista dos

leitores – movimento que é intrínseco ao surgimento do romance como gênero –, a matéria do

romance se volta para uma população muito particular – e que, por sua vez, chamava a atenção

pela sua capacidade de mobilização71. Assim, o dito “romance realista” ganha uma nova matéria

para retratar, em nível elevado, a partir do cenário social que se estruturava na segunda metade

do século XIX.

Mas, ao que tudo indica, o objetivo principal de Auerbach nesse seu ensaio não é apenas

desenhar os novos temas do romance, mas também apontar uma crise na relação entre o escritor

e seu público. Sendo os escritores parte da burguesia e, por consequência, dependentes dela

para sucesso e sobrevivência, a literatura produzida no século XIX nasce com a intenção de

agradar, de satisfazer o seu público leitor – como “distração confortável e calmante”, nas

palavras de Auerbach. A verdadeira matéria dos escritores era o próprio romance, o lapidar do

texto para que a escrita se aproximasse, cada vez mais, de um refinamento digno da arte

admirada pela própria burguesia.

O twist interpretativo de Auerbach está justamente em apontar como mesmo os irmãos

Goncourt em Germine Lacerteux, ao arriscarem uma temática inédita e necessária ao romance,

ainda assim não abrem mão da forma elegante e bela da escrita – para descrever o “feio” –,

criando um tipo de representação do “quarto estado” distante da realidade que o cerca. Pois os

Goncourt são escritores que gozam da boa vida que seu status social permite72.

Ainda assim, o trabalho dos irmãos Goncourt é relevante ao abrir a sensibilidade dos escritores

para essa nova matéria. E seria a geração seguinte que avançaria na tarefa de aproximar o objeto

narrado à sua forma mais adequada. Auerbach elege ninguém menos que Émile Zola (1840-

71 “[…] o realismo devia abranger toda a realidade da cultura contemporânea, na qual, embora predominasse a

burguesia, as massas já começavam a pressionar ameaçadoramente, à medida que se tornavam cada vez mais

conscientes da sua própria função e do seu poder” (AUERBACH, 2004, p. 447). 72 “Levam a vida de burgueses remediados, moram confortavelmente, comem do bom e do melhor e se entregam

ao gozo de todos os deleites da sensibilidade mais elevada, como a sua existência nunca se vê ameaçada por

grandes estremecimentos e perigos, o que surge é, não obstante todo o gênio e toda a insubornabilidade artística,

um quadro de conjunto singularmente mesquinho, o do grão-burguês egocêntrico, preocupado com conforto

estético, nervoso, torturado pelos aborrecimentos, maníaco enfim – só que a sua mania chama-se, no seu caso,

‘literatura’” (AUERBACH, 2004, p. 455).

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1902) como o escritor que de fato criou um invólucro estético para as narrativas que

representassem as camadas mais baixas da sociedade. Seu romance Germinal (1888) não era

apenas um retrato da vida do “quarto estado”, mas uma representação grotesca, suja, imoral e

visceral, causando reações nos leitores que fugiam das tendências burguesas de apreciação do

belo. Nas palavras de Auerbach (2004, p. 459) sobre o estilo narrativo empregado por Émile

Zola,

a arte do estilo renunciou totalmente a procurar efeitos agradáveis, no sentido

tradicional; serve à verdade desagradável, opressiva, desconsolada. Mas esta

verdade serve simultaneamente como incitação para uma ação no sentido da

reforma social. Não mais se trata, como no caso dos Goncourt, do atrativo sensorial

do feio; trata-se, sem qualquer dúvida, do cerne do problema social do tempo, da

luta entre o capital industrial e a classe operária.

Não por acaso, das três fontes que inspiraram Zola para escrever Germinal, uma foi Sans

famille, de Hector Malot73. Foram justamente os capítulos que se passam na cidade mineradora

que incentivaram Zola a criar um dos romances mais emblemáticos da luta da classe

trabalhadora na França. Foi a partir das anotações e pesquisas de Malot que Zola – como ele

descreve na apresentação da obra – representou os travailleurs como transformadores de uma

sociedade injusta e preconceituosa.

Mas a ligação entre Malot e Zola – além do fato de terem sido amigos – se dá apenas neste

âmbito. Dentro dessa perspectiva, Malot aproxima-se muito mais dos irmãos Goncourt do que

de Zola. Sua intenção está em retratar o feio, as injustiças contra as crianças, as condições que

os abandonados vivem dentro de uma sociedade que cresce sem ética. Porém, o faz valorizando

o trabalho, a moral, a educação. Rémi é um garoto exemplar, não se deixa corromper, tem em

si e de maneira inata senso de justiça. Não se deixa abater pelas experiências más que vive e

sofre com dilemas éticos. Completa sua trajetória vivendo o mesmo ciclo: durante a jornada,

seu caminho é coalhado de episódios desafiadores, o que o faz sofrer, mas Rémi persevera até

conseguir retomar sua jornada. Essa insistência em ser justo, bom e correto é demonstração de

maturidade ou de ignorância – ao se deixar submeter tantas vezes a mazelas. A escrita de Malot

não visa chocar, mas sim criar empatia, aproximar-se de seu público apelando para o emocional.

Malot não quer espantar o seu público leitor burguês, pelo contrário, cuida para que este seja

fiel a suas obras.

73 As três fontes de Zola para Germinal, de acordo com Zakarian (1972, p. 6): Sans famille, Le Grisou, de Maurice

Talmeyer (1880), e L’enfer social, de Yves Goyot (1882).

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A própria estrutura do romance em episódios faz com que o leitor seja enlaçado a cada

capítulo74. No romance, Rémi está envolvido em uma trama em espiral: ora o Mal está à frente,

ora o Bem se faz presente. Há uma constante reafirmação entre aquilo que é justo e correto

diante do que é vil e maléfico. Cada capítulo é uma microtrama, na qual Rémi vive pequenos

episódios de forte caráter moral, de situações de extrema pobreza, injustiça e descaso. Porém,

por mais complicada que seja a situação de Rémi, a resolução é sempre positiva, de maneira

que a jornada do herói possa seguir. Esse padrão, essa repetição da estrutura narrativa, constrói

uma expectativa no leitor sobre o desfecho dos microepisódios e do próprio romance: de alguma

maneira, a situação-problema será resolvida e o bem prevalecerá. O lugar-comum se faz presente por

quase todo o romance, deixando poucos elementos para uma leitura que possa se aprofundar em

novos tópicos. Nesse sentido, Sans famille repete uma estrutura binária, própria do romance popular,

que apresenta um mundo familiar ao leitor75.

2.3 Sans famille: um romance pendular de linguagem dramática

O episódio das minas, se considerado desde a chegada do garoto Rémi até a partida do herói,

ocupa cinco dos quarenta e um capítulos do livro: “Une ville noire” (Uma cidade enfarruscada),

“Rouleur” (Caçambeiro), “L’inondation” (A inundação), “Dans la remonté” (No poço cego) e

“Sauvetage” (Libertação). Este é um dos motivos pelos quais a estrutura desse trecho se destaca

dos outros da obra. Por ser um romance narrado em episódios, cada acontecimento ocupa,

quando muito, dois capítulos do todo ou reserva-se a começar e a terminar em si mesmo. Ao

dedicar cinco capítulos à tragédia na mina La Trouyère, Malot sutilmente identifica um

momento-chave da obra, um divisor de águas. O episódio é central no romance por dois

aspectos: por de fato se localizar no centro do livro – no começo da segunda parte, que espelha

74 É válido mencionar, no entanto, que essa interpretação inovadora sobre a obra de Malot não tem consenso de

crítica. Malot é considerado escritor do roman populaire, ou seja, do “romance popular”. O caráter maniqueísta e

o tom exagerado do texto, além dos aspectos frágeis no âmbito psicológico – ainda que destacando-se de seus

antecessores –, lhe impossibilitaram ser considerado um autor – para usar o jargão editorial – de “primeira linha”. 75 “De 1750 a 1850, o livro infantil é mais frequentemente baseado em estruturas estereotipadas. É reduzido a uma

separação rígida e sistemática entre o bem e o mal e se esforça para promover o triunfo do bem através de um

herói cujo valor simbólico supera a força vital. Em suma, por seu esquematismo, este livro [Sans famille] oferece

muito pouco elementos à crítica literária. Mesmo depois de 1850, um número muito grande de histórias infantis

continuam a ser desenvolvidas no modelo anterior, isto é, de acordo com um binariedade esclerosante muito

parecida com o princípio dicotômico escrupulosamente respeitado pela novela popular: de um lado o bem, o belo,

a justiça, do outro o maligno, o feio, a culpa, aqui a criança vítima e fraca, lá, o adulto forte e malvado

(OTTEVAERE-VAN PRAAG, 1987, p. 212).

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com a primeira em quantidade de capítulos, a notar, 21 – e por significar uma mudança

expressiva na função narrativa do garoto Rémi: quando este toma consciência de sua missão

como indivíduo, tanto no âmbito subjetivo (encontrar suas origens) quanto no coletivo (ajudar

os menos favorecidos).

Mesmo no episódio do acidente nas minas, de alguma maneira, o leitor já espera que eles serão

salvos. Até mesmo o narrador antecipa o desfecho no mínimo, duas vezes, durante os quatro

capítulos que narram do acidente ao salvamento. No primeiro deles, o mestre acaba de

distinguir o barulho de uma caçamba descendo no poço, sinal de que uma equipe de salvamento

estaria chegando perto deles. O narrador, dividido entre descrever minuciosamente os detalhes

do salvamento e atingir o desfecho do episódio, acalma sua ansiedade pausando a narrativa para

explicar o acidente, sem antes discretamente revelar ao leitor um possível final: “Mas para

contar esta catástrofe medonha das minas da Truyère, assim como de fato aconteceu, eu preciso

antes te dizer como ela foi produzida, e quais meios os engenheiros empregaram para nos

salvar” (MALOT, 2014, p. 246, tradução e grifo nossos). A afirmação não deixa dúvidas de

que o salvamento de fato aconteceu, cabendo ao leitor paciência para chegar ao final. Um outro

exemplo de antecipação do desfecho se localiza no capítulo seguinte, no qual os indícios de

salvamento já ficam mais evidentes em função do desenrolar da narrativa; o narrador está

ocupado em explicar ao leitor, por meio de conhecimentos científicos, os riscos da operação de

salvamento e aproveita para antecipar como as condições do ambiente se tornaram ideais para

uma possível saída, deixando pistas concretas do desfecho:

Felizmente, à medida que as águas tinham baixado, a pressão atmosférica

tinha diminuído, pois, se elas tivessem permanecido como estavam nas

primeiras horas, nós teríamos certamente morrido de asfixia. Assim, de

qualquer maneira, se nós tivéssemos sido salvos, deveríamos isso à prontidão

com que o resgate foi ordenado e organizado (MALOT, 2014, p. 260, tradução

nossa).

A primeira parte da última frase do trecho foi escrita no pretérito mais-que-perfeito (“se nós

tivéssemos sido salvos”); porém, o restante da frase usa o futuro do pretérito simples. Ou seja,

o narrador cria uma dúvida que imediatamente se dissipa pela afirmação.

Pela característica episódica descrita acima, o romance de Malot em muito se aproxima à

definição de “romance de espaço” referenciada por Wolfgang Kayser (1948). Nessa

terminologia, a estrutura narrativa pode ser associada a um mosaico, um conjunto de

acontecimentos que vão, pouco a pouco, criando o todo. Nessa colagem, cada episódio funciona

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individualmente – apresentam começo, meio e fim, ou seja, o conflito se resolve em si mesmo

–, mas o todo ainda assim garante a unidade da obra, a construção dos tableaux76 . Essa

estratégia faz com que Sans famille tenha um tom monocórdico de ponta a ponta, há sempre

um começo que finaliza em outro começo, dando a sensação de uma narrativa em espiral, que

avança para uma conclusão maior.

A consequência dessa estratégia de escrita no âmbito da leitura é uma constante previsibilidade

dos desfechos: não importa quão perigosa ou intrincada seja a situação de conflito, sabe-se que

o personagem conseguirá escapar dela para seguir a sua jornada e, assim, cumprir o objetivo do

livro. O efeito de Sans famille no leitor restringe-se a uma contínua manutenção do horizonte

de expectativa. Rememorando brevemente os conceitos da estética da recepção em Wolfgang

Iser (2002, p. 107):

Os autores jogam com os leitores e o texto é o campo do jogo. O próprio texto

é o resultado de um ato intencional pelo qual um autor se refere e intervém em

um mundo existente, mas, conquanto o ato seja intencional, visa a algo que

ainda não é acessível à consciência. Assim, o texto é composto por um mundo

que ainda há de ser identificado e que é esboçado de modo a incitar o leitor a

imaginá-lo e, por fim, a interpretá-lo. Essa dupla operação de imaginar e

interpretar faz com que o leitor se empenhe na tarefa de visualizar as muitas formas

possíveis do mundo identificável, de modo que, inevitavelmente, o mundo repetido

no texto começa a sofrer modificações. Ora, como o texto é ficcional,

automaticamente invoca a convenção de um contrato entre autor e leitor, indicador

de que o mundo textual há de ser concebido, não como realidade, mas como se fosse

realidade.

Iser, em seu ensaio, cria uma metáfora para explicar a relação que se dá entre autor, leitor e

texto: um jogo. Para ele, existe um pacto a ser estabelecido entre as duas partes. Esse pacto

consiste em que o autor, por meio do texto, crie um universo que se assemelhe ao mundo

objetivo (no caso dos romances realistas) e que é validado pelo leitor, por meio de sua

imaginação e interpretação. Assim, as regras desse jogo, que regem a construção narrativa do

texto, começam a ser delineadas. Se o texto de fato for bem-sucedido em criar um universo

novo, porém capaz de incutir no leitor a sensação de verossimilhança, o pacto é realizado. Mas

há um comentário fundamental no trecho destacado de Iser, no qual ele diz que “o mundo

76 “Por outras palavras: os três gêneros do romance são o romance de acção, o romance de figura e o romance de

espaço”. E ainda: “O que importa precisamente é a exposição do mundo múltiplo, de todos os lados. O mosaico,

a adição, é o necessário princípio de construção, e a abundância de cenários e figuras novas constitui característica

intrínseca”. E por fim: “O romance de espaço recebe especial colorido e, simultaneamente, uma delimitação por

altura do século XIX. Como finalidade surge afora a representação deste mundo actual, contemporâneo – muitas

vezes só de um setor nitidamente delimitado. O que correntemente se designa por romance de época e romance

de sociedade são apenas tipos especiais do romance de espaço” (KAYSER, 1948, p. 230, 235 e 236).

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repetido no texto começa a sofrer modificações”. A questão em Sans famille é que, uma vez

que o pacto é aceito – que o leitor compreende que Rémi é uma criança órfã e vai passar por

muitas provações –, o romance não muda a sua estrutura narrativa. Há, apenas, uma sucessão

de confirmações acerca dos episódios vividos pela personagem.

Mas isso não quer dizer que o romance não é bem-sucedido. Muito pelo contrário. Sans famille

não quer ser o que não é: dá ao público o que este quer ler. Não se preocupa em transgredir a

linguagem, chocar, deixar uma marca em seu tempo subvertendo a expectativa do leitor. Seu

público espera que o herói saia vencedor, depois de tantas provações.

Certamente, essa estratégia não vem de maneira gratuita. O preço que se paga é uma linguagem,

de alguma maneira, limitada e, em certo sentido, simplória. O autor vale-se do apelo emocional

para descrever as cenas com muitos adjetivos e, com isso, exagerar a ilustração, tornando-a

mais dramática e, em alguns casos, até piegas. No episódio das minas, trechos como “trinta ou

quarenta metros de terra pesavam sobre nossos corações” ajudam a criar o elemento

melodramático. Porém, como o leitor sabe que a personagem irá sobreviver, há uma certa

anestesia desses momentos mais críticos.

Algo a ser considerado é a força deste efeito anestésico no leitor experiente que, certamente,

causa certo desinteresse pela leitura. Mas, para o leitor iniciante77, o público da obra, a repetição

da mesma estrutura em espiral pode causar um efeito contrário: o da segurança. Além do

elemento da segurança, estão em jogo várias estratégias que contribuem para o sentimento de

empatia e para a curiosidade do leitor: o foco da leitura se mantém na solução do episódio, sem

distrações ou narrativas paralelas; os diversos episódios de desafios enfrentados pelo

protagonista vão, pouco a pouco, sensibilizando e conquistando o leitor em defesa do herói; e,

já no desfecho, evita-se a decepção do leitor caso o herói sucumba78.

77 Esta argumentação tenta associar a figura do “leitor experiente” como o adulto que compreende as estratégias

de escrita, e “leitor iniciante” aos jovens que estão em fase de aprimoramento das ferramentas interpretativas

literárias, público ao qual o livro se destina. 78 Outro tema bastante abordado na análise da literatura infantojuvenil é a obrigatoriedade — ou não — do final

feliz, de modo a evitar a decepção no leitor criança, uma maneira de “protegê-la” de “sentimentos ruins”. É sabido

que a literatura infantil mais tradicional almeja o final feliz como uma estratégia de poupá-la de temas polêmicos.

Porém, essa visão tem mudado, especialmente na virada do século XXI, o que torna livros como Sans famille

datados. Para ilustrar o argumento, vale conferir o depoimento de Peter Hunt (2010) acerca da literatura

infantojuvenil contemporânea. O crítico afirma que as obras mais atuais abdicam deste recurso “clichê” para

introduzir ao público infantojuvenil assuntos delicados, como morte e abandono. Certamente, Sans famille também

aborda a morte e o abandono, além de conter passagens que poderiam ser questionadas hoje por seu caráter violento

em relação às personagens crianças. Mas o sacrifício vale pela redenção final.

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A pesquisadora Denise Escarpit (2008, p. 237) reforça a ideia de que os romances destinados

às crianças no século XIX, em sua grande maioria, representavam a criança como vítima da

família, da sociedade e até mesmo da escola, com o intuito de se aproximar do leitor:

Destinados a chamar a atenção para as condições da infância, esses romances

são rapidamente recuperados por jovens que, dependendo do seu problema

pessoal, encontram a oportunidade de se identificar com uma personagem

fictícia. A imagem que é dada à infância é ampliada pelo elemento picaresco

que permite pintar um afresco da miséria do povo em contraposição a uma

burguesia próspera (ESCARPIT, 2008, p. 237, tradução nossa).

Sans famille é um romance cruel com seu herói, mas adocicado em sua linguagem. Malot, como

escritor burguês, escrevendo para leitores da burguesia, presta-se ao trabalho pioneiro de incluir

na literatura uma população renegada pela sociedade. Mas assim o faz para ganhar seu público,

transformando o drama da vida errante, solitária e pobre, em uma aventura pela Europa.

Como muitos romances da época, Sans famille foi publicado de maneira episódica na revista

de literatura para adultos Le Siècle, para apenas em 1878 ser publicado pela editora Dentu, em

dois volumes. Em 1880, o famoso editor Pierre-Jules Hetzel finalmente publica a obra em um

volume, com ilustrações de Émile Bayard (PINCET, 2002, p. 480)79. A estratégia de publicar

a obra inicialmente em uma revista para adultos sinalizava que Malot conhecia os meandros da

divulgação do livro para crianças no mercado editorial: atingir primeiro os adultos que iriam

recomendar o livro para os jovens leitores. Aos olhos desse público, chamado de “mediador de

leitura”, o romance está repleto de ideais educativos, muito próximos de uma herança

rousseauniana. O constante contato com a natureza, o perfil pacato e bondoso dos heróis e o

ritmo moroso dos romances, como se o tempo da história respeitasse o tempo de

amadurecimento da criança em adulto, são indícios dessa estratégia narrativa80.

79 Para efeitos de curiosidade, o historiador Jean de Trigon (1950, p. 124, tradução nossa) informa no capítulo

“L’enfance malheureuse: Malot” que, em uma carta encontrada nos arquivos da editora Hachette, Hetzel pede a

Malot para que escrevesse um romance cuja personagem criança atravessasse a França. Ou seja, dando a entender

que a intenção primeira do romance seria apresentar as regiões da França para os leitores iniciantes, partindo,

então, de um princípio claro do que hoje se chamaria de “encomenda”. 80 “Para além da dimensão iniciática dos romances de Malot, os jovens leitores também podem ser tocados pelas

representações da infância e educação que lá estão: as de jovens próximos da natureza, educados de acordo com

os princípios pedagógicos motivacionais. [...] Criados em ambientes naturais, as personagens jovens de Malot são

fundamentalmente boas. [...] Assim, a representação da infância refletida pelas jovens personagens de Malot é

próxima daquilo que inspirou Rousseau” (PINCET, 2002, p. 486, tradução nossa).

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93

São inúmeros os exemplos do romance em que Rémi tem a oportunidade de aprender sobre o

mundo e as leis da natureza pelo contato direto com as experiências in loco. Não por acaso,

Sans famille é recheado de centenas de personagens transitórios, cada um como representante

de uma classe social ou de uma profissão. O romance nomeia o cidadão. E não apenas: lida

com fatos concretos, prosaicos, reconhecíveis na organização social francesa do século XIX.

No episódio das minas, esse aprendizado é mais do que evidente, em várias passagens, todas

elas regidas pelo mestre das minas, responsável pela segurança dos trabalhadores e também por

manter o espírito elevado em uma situação de crise. Logo que Rémi e os mineradores ficam

presos no poço cego, o mestre toma a liderança e passa as instruções para o grupo. Tais

instruções, no entanto, são feitas após uma minuciosa leitura do ambiente. O primeiro

comentário esperançoso do mestre é assegurar aos companheiros de que não há aparente perigo

nesse espaço onde eles estão. Ao observar que a chama da lamparina estava acesa porém curta,

o mestre profere uma aula de física: a chama curta significa que o ar está pesado, portanto,

comprimido. Dessa maneira, o próprio ar impediria a água de entrar nesse pequeno espaço onde

as seis pessoas se encontravam. Mas, o que poderia parecer um alívio – não ser afogado pelas

águas que inundaram as minas –, também fazia as vezes de um ambiente enclausurado, como

o encarceramento, uma vez que eles também não poderiam sair dali: “Salvos? Eu não disse

isso. Não nos afogaremos, é o que eu lhes prometo. O que nos salva é que, estando a subida

fechada, o ar não pode sair, ele está aprisionado; mas nós também não podemos sair” (MALOT,

2014, p. 239, tradução nossa).

Preocupado com a qualidade do ar, com a falta de comida e se de fato uma brigada de

salvamento estava à procura deles – uma vez que a cidade sofreu um terremoto seguido de

inundação do rio Divone –, o mestre tenta manter a calma e dar as orientações para que o grupo

possa resistir o maior tempo possível: eles cavam um buraco e moldam a pedra de forma que

possam se apoiar e sentar no solo íngreme sem cair na água; apagar as lâmpadas de maneira

que apenas uma fique acesa; além de contar histórias detalhadas de outros acidentes, para

reforçar os espíritos do grupo a fim de que não percam as esperanças, e demonstrando profundo

conhecimento das minas e das diversas situações de perigo às quais estavam submetidos todos

os dias. Sempre atento aos pequenos detalhes, é também o mestre que escuta uma barulho

diferente e consegue distingui-lo da água caindo, dizendo tratar-se de carrinhos para

esvaziamento de detritos – pequenas caçambas – no poço, indicando que o socorro estava

chegando.

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94

A característica rousseauniana também está presente na construção das personagens e na

relação que elas guardam umas com as outras, especialmente entre as crianças bondosas e

generosas. Esse elemento também fica evidente no trecho do acidente das minas. No momento

do salvamento, Rémi é recebido por Mattia emocionado. Reunido com seus amigos, a prova de

amizade e da gratidão fica clara no diálogo:

“Quando pensei que era por minha causa que você estava morto”, disse Alexis,

“isso me derrubou, porque realmente pensei que você estivesse morto”.

— Eu nunca pensei que você estivesse morto – disse Mattia. – Eu não

sabia se você sairia vivo da mina e se iriam chegar a tempo de salvá-lo, mas

eu acreditava que você não tinha se deixado afogar, de modo que, se o trabalho

de resgate fosse rápido o suficiente, encontrariam você em algum lugar. Então,

enquanto Alexis sofria e chorava, eu me sentia febril e dizia: “Ele não estava

morto, mas talvez ele possa vir a morrer”. E perguntava a todos: “Quanto

tempo podemos viver sem comer? Quando a água terá se esgotado? Quando

a galeria será perfurada?”. Mas ninguém me respondeu como eu queria.

Quando perguntaram seus nomes e o engenheiro, depois de Carrory, gritou

Rémi, deixei-me cair no chão chorando, e então caminharam sobre o meu

corpo, mas não senti nada, de tanto que estava feliz.

Fiquei muito orgulhoso ao ver que Mattia tinha tanta confiança em mim

que ele não queria acreditar que eu poderia morrer (MALOT, 2014, p. 267-

268, tradução nossa).

Rémi é um herói resignado, porém ativo. Essas características, associadas à sucessão de eventos

do romance, lembram a estrutura da épica e de suas personagens, que viviam inúmeras e

incansáveis aventuras, por não terem a necessidade de lidar com conflitos internos, ao contrário

dos grandes romances, elaborados, algumas vezes, com vários núcleos narrativos complexos,

explorando as paixões e contradições do humano.

Georg Lukács (2015, p. 102) faz uma bela e didática reflexão sobre a caracterização do

personagem épico, que pode elucidar algumas características de Rémi:

A absoluta ausência de uma problemática internamente vivida transforma a

alma em pura atividade. Como ela repousa intocada por todos em sua

existência essencial, cada um de seus impulsos tem de ser uma ação voltada

para fora. A vida de semelhante homem, portanto, tem de tornar-se uma série

ininterrupta de aventuras escolhidas por ele próprio. Ele se lança sobre elas, pois

para ele a vida só pode ser o mesmo que fazer frente a aventuras. A concentração

problemática de sua interioridade, tida por ele como a essência mediana e trivial do

mundo, obriga-o a convertê-la em ações; quanto a esse aspecto de sua alma, falta-

lhe todo tipo de contemplação, todo pendor e toda aptidão para uma atividade

voltada para dentro. Ele tem de ser aventureiro.

A explanação acima deve ser relativizada para uma comparação mais correta entre a

personagem épica e Rémi. O ponto de contato se restringe ao fato de que o herói aventuresco

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95

vive em função da ação, do movimento, sem necessitar estar em contato com questões internas

do homem, apenas com seus atos, suas manifestações externas. Essa talvez seja a característica

mais marcante de Rémi, ao menos na primeira parte do romance: o tom monocórdico também

gera um personagem estável do ponto de vista de suas ações e reações. Não se espera que Rémi

tenha um rompante, uma atitude rebelde ou mesmo violenta, mas sim que seja resiliente e fiel

às suas convicções.

Rémi, nesse sentido, poderia ser caracterizado como uma personagem limiar entre o “plano” e

o “redondo”, de acordo com a terminologia de Edward M. Forster (1998). Para o autor, de

maneira geral, os escritores podem lançar mão de duas opções para construção das personagens:

os planos, aqueles que “podem ser expressos por uma só frase” e, portanto, têm participações

pontuais na narrativa, sem que haja qualquer transformação da personagem; e os redondos,

geralmente protagonistas das histórias, os que de fato causam empatia no leitor e cujas ações,

pensamentos, inquietações são os motores para o desenvolvimento do romance. Ambos têm

importância na estratégia da escrita, mas, com funções diferentes, criam efeitos de expectativas

muito distintos. Nas palavras de Forster (1998, p. 66), as personagens planas “em sua forma

mais pura são constituídas ao redor de uma única ideia ou qualidade: quando há mais de um

fator, atingimos o início da curva em direção às redondas”.

Em Sans famille, Rémi não é nem a personagem épica nem o herói que simboliza as

contradições humanas. Mas, sim, representa as crianças abandonadas do século XIX sem o

estigma de ser determinado por essa condição. Ou seja, durante a primeira parte do romance,

Rémi se comporta da mesma maneira, com consistência. A partir da cena das minas, o garoto

sofre uma modificação em sua personalidade em prol de uma maior consciência de sua

condição como indivíduo, mas que, ainda assim, não é suficiente para classificá-lo como uma

personagem “esférica”, uma vez que não há ruptura, transgressão.

Nesse sentido, Rémi é muito parecido com Oliver Twist, outro enfant trouvé da literatura do

século XIX. Não por acaso, Forster (1998, p. 69-70) exemplifica a personagem do plano ideal

como sendo tirado dos romances de Dickens:

O caso de Dickens é significativo. As pessoas de Dickens são quase todas

planas (Pip e David Copperfield aproximam-se da redondez, mas tão

timidamente que mais parecem bolhas, em vez de sólidos). Quase cada uma

pode ser resumida numa frase, ainda assim há essa maravilhosa sensação de

profundidade humana. É provável que a imensa vitalidade de Dickens

provoque um pouco de vibração em suas personagens, emprestando-lhes sua

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96

vida, e fazendo parecer que têm vida própria. […] Parte da genialidade de Dickens

está em que ele realmente usa tipos e caricaturas, pessoas a quem reconhecemos tão

logo reapareçam; todavia, consegue efeitos que não são mecânicos, e uma visão da

humanidade que não é superficial. Aqueles que não apreciam Dickens têm um

excelente argumento. Ele deveria ser mau. Em realidade, ele é um dos nossos

grandes escritores, e seu imenso sucesso com tipos sugere que pode existir no plano

algo além do que os críticos mais severos admitem.

Malot não chega a ser “genial” como Dickens, mas tem como mérito representar milhares de

crianças abandonadas do século XIX por meio de uma personagem caricatural que, a partir da

cena do acidente das minas, sofre uma transformação de ânimo, indicando ao leitor que a

condição social não é determinista para o futuro do indivíduo.

A comparação de Malot com Dickens não é gratuita e poderia ser aprofundada. Ambos

marcaram a literatura do século XIX com seus textos denunciatórios voltados especialmente

para os adultos, criticando suas respectivas sociedades: a França do começo da Terceira

República e a Inglaterra vitoriana. É evidente a influência de Dickens na formação de Malot

como escritor. As obras do autor inglês já eram muito difundidas na França (publicadas pelas

editoras Hachette, Michel Lévy e Charles Lahure alcançaram grande sucesso de vendas a partir

de 1855) no momento em que Malot começava a escrever. Além ter em sua coleção particular

várias obras de Dickens, as referências ao escritor inglês em seus romances é facilmente

identificável, como em Les amants (1859), uma citação ao livro David Coperfield pelo

personagem Martel (COJEZ, 2015, p. 2). E, ainda, o “crítico literário” Malot, em sua coluna

sobre literatura no periódico L’Opinion Nationale dedicou um elogioso ensaio sobre várias

obras de Dickens em 1861, artigo que depois foi publicado com o título La vie moderne en

Angleterre (1862).

O ponto de contato entre as obras dos dois escritores não está em apenas eleger crianças em

situação de vulnerabilidade como protagonistas de suas histórias. Ambos os escritores as

conduzem em narrativas que expõem suas condições de vida, criticando a moral e a sociedade

de suas épocas. Tais textos são por alguns críticos chamados de “romances-teses” à medida que

o escritor “estabelece uma convergência entre o caráter do personagem, a ação e o discurso do

narrador por uma crítica ao utilitarismo e suas consequências na vida individual e coletiva”

(COJEZ, 2015, p. 4, tradução nossa). Indubitável, porém, é a diferença de estilo que os dois

escritores guardam entre si. A prolixa e bem-humorada escrita de Dickens se contrapõe à breve

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sobriedade de Malot, características perceptíveis inclusive em suas personalidades 81 . Se

Dickens logrou mais reconhecimento de público, ou se Malot foi mais fiel aos anseios dos

jovens leitores, resta deste estudo comparativo a certeza de que ambos

Seguiram vias concorrentes nas quais romance moral, romance social,

romance sentimental se conjugam. Defensores da infância maltratada, da

pobreza desprezada, eles colocaram em cena personagens vítimas, lutando

contra seres injustos e gananciosos servis da lei e da administração. Para além

de qualquer posição política ou econômica, eles defenderam uma filosofia do

coração, capaz, a seus olhos, de combater a injustiça e estabelecer um

equilíbrio social.

Com essa visão profundamente humana, conquistaram um grande

número de leitores e, sem dúvida, contribuíram para a formação da opinião

pública favorável aos avanços legislativos e sociais em sociedades limitadas

por uma moral rígida e fortes desigualdades econômicas (COJEZ, 2015, p.

8, tradução nossa).

Tal estratégia sentimental e apelativa bem-sucedida é visível pelo êxito de Sans famille,

indubitável no mercado editorial francês e internacional: publicado em inglês e holandês desde

1880 e ainda em catálogo, o romance ganhou edições inclusive na Ásia, onde a primeira edição

em japonês apareceu em 1903 – já são 121 edições neste idioma –, além de traduções para o

russo, húngaro, turco e vietnamita, bem como as adaptações para cinema e teatro (PINCET,

2002, p. 490). Com muita elegância, a pesquisadora Denise Escarpit sintetiza o sucesso do

romance pela Europa levando em consideração suas limitações literárias, talvez elas mesmas

responsáveis pela grande difusão do livro:

Sans famille (1878), com o tema da criança abandonada, será bem-sucedido

em toda a Europa. É uma novela picaresca, discretamente didática na

descrição de ambientes ou de profissões; é um romance de amizade, um

romance de infância e infeliz adolescência, com personagens bem tipificados,

de emoção dramática. A escrita simples e animada ainda mostra um

conhecimento das necessidades da infância e explica que Sans famille serviu de

livro de leitura na escola primária, foi traduzido para muitas línguas e ainda é lida

hoje (ESCARPIT, 2008, p. 240-241, tradução nossa).

Sans famille pode ser considerado, assim, uma obra limiar dentro da história do romance

juvenil, pois avança em questões fundamentais para o desenvolvimento de uma literatura

infantojuvenil autônoma, influenciando não apenas os escritores contemporâneos a Malot –

como é o caso de Zola –, mas também gerações futuras. Em seu delicioso ensaio sobre leituras

de vida, Jean-Paul Sartre revela que Sans famille foi uma de suas grandes descobertas dos

81 A comparação do escritor inglês Dickens também pode ser feita com Alphonse Daudet (1840-1897), pela

maneira como o escritor francês transfere uma escrita poética para a prosa, criando cenários de coloração única e

personagens pitorescos, conectados à vida cotidiana. Trata-se, também, de um caminho interessante para

investigação, porém, sem espaço neste trabalho (DES GRANGES, 1954, p. 948; ESCARPIT, 2008).

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tempos mais remotos de sua vida de leitor, ainda criança: “Surpreenderam-me – ou melhor, fiz

com que me surpreendessem –, gritaram admirados e decidiram que era tempo de me ensinar o

alfabeto. Fui zeloso como um catecúmeno: ia a ponto de dar a mim mesmo aulas particulares:

eu montava na minha cama de armar com o Sem Família de Hector Malot, que conhecia de cor

e, em parte recitando, em parte decifrando, percorri-lhe todas as páginas, uma após outra:

quando a última foi virada, eu sabia ler.” (SARTRE, 1984, p. 36). Certamente, o “saber ler”

expresso por Sartre não se restringe a uma leitura funcional, mas sim à formação de leitor

fluente, que percebe as estratégias narrativas e conecta o enredo à sua realidade ficcional –

ainda que calcado no mundo objetivo.

O romance de Malot não apresenta um enredo complexo, mas foi capaz de ilustrar a realidade,

ainda que de maneira exagerada e maniqueísta, de temas ignorados pela quase totalidade das

obras produzidas anteriormente – e até mesmo contemporâneas: a exploração e a mortalidade

infantis, as condições miseráveis às quais as crianças eram submetidas, especialmente as órfãs,

a exemplo de um outro sucesso editorial da época, como a obra Le tour de France par deux

enfants (1877), escrita por Giordano Bruno (pseudônimo da escritora Augustine Fouillée, 1833-

1923)82. A narrativa de Le tour de France... é absolutamente similar à de Malot no que tange a

um reconhecimento da França, suas diversas regiões e características, além das profissões e

habilidades de trabalho83. A sensível diferença, no entanto, entre os dois romances, reside no

aspecto da intenção dessas informações no récit. Enquanto os dados científicos e as

informações didáticas servem de pano de fundo em Sans famille, uma maneira de colorir a

viagem de Rémi e seus amigos pelo território francês, ainda que com alguma carga informativa

como visto acima, em Le tour de la France par deux enfants faz do pedagogismo sua motivação

principal. No romance de G. Bruno, os também órfãos André e Jullien, de catorze e sete anos,

vítimas da guerra que incorporou a Alsácia-Lorena definitivamente ao território francês, saem

em busca de um tio que estaria morando em Marseille. Nessa jornada, os dois meninos se

comportam como estrangeiros em terras desconhecidas, porém com olhos curiosos para

82 Outras personagens surgiram posteriormente na literatura infantojuvenil a partir da obra de Malot, não apenas

caracterizando a “criança-vítima”, mas, sim, a criança enferma, como explica Escarpit (2008 p. 241): “Sans famille

também apresenta uma outra visão da criança-vítima, aquela da criança doente que será personagem central dos

romances de Mme de Pressensé; em Jean l’innocent (João, o inocente, 1887), Mme Colomb explorou o tema da

criança mentalmente retardada e, em La Fille de Carilés (A filha de Carilés, 1874), o tema da criança educada por

boêmios e que por isso sofrerá na pele; e em Jules Renard, o tema da criança maltratada em Poil de Carotte (O

ruivinho, 1984)”. 83 Vale lembrar que outro romance da época que desenha a sociedade francesa em todo o seu território, acentuando

as nuances de cada região e tentando abarcar a maior gama de tipos sociais possíveis, foi A comédia humana

(1829-1846), de Honoré de Balzac.

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aprenderem sobre essa cultura que se desvendava diante deles. Ciência, geografia, história e

comportamento moral são os temas desenvolvidos na obra, indicando cada atividade comercial,

agrícola e industrial presente na França da época, com detalhes sobre as especialidades de cada

região. Dessa maneira, o senso patriótico ganha força e domina o récit, dando pouco espaço

para o desenvolvimento psíquico-emocional das personagens, que apenas conduzem o leitor,

por meio de peripécias, por uma viagem pelos conteúdos escolares. Não por acaso, a obra

desfrutou de muito sucesso de venda, impulsionado pela obrigatoriedade de sua leitura nos anos

básicos da escola francesa, como “livre de lecture courante” (CARADEC, 1977).

Em oposição, Sans famille assume um discurso inédito ao permitir que o herói conviva e

aprenda com a classe trabalhadora não apenas o métier, mas também se sensibilize pelas

precárias condições de trabalho ou situações de extrema privação de posse. Diferente de Le

Tour de la France par deux enfants que visa ensinar o leitor acerca do espírito francês, o

romance de Malot sensibilizou os leitores da época84, em sua grande maioria da classe burguesa,

distante das adversidades e mazelas que acometiam o país.

O próprio autor reconhece este sucesso de um livro encomendado por seu editor e escrito por

mais de uma década. A partir da encomenda de Hetzel ainda em 1869, Malot escreve uma

primeira versão da obra – mais dramática e cruel que a versão original – na qual o episódio da

mina se encontrava no primeiro volume. Hetzel, editor atento e cauteloso com seu público, pede

a Malot que suavize as “lágrimas de sofrimento” para “lágrimas de piedade” (MALOT,1896) e

que deixe de lado polêmicas de cunho religioso. O comentário do editor fazia referência à

primeira versão do episódio das minas, que apresentava um diálogo entre os mineiros em uma

querela entre católicos e calvinistas. O autor, paralisado por demandas de ordem hors livre,

deixa a escrita de Sans famille para se dedicar a outro livro, Un Miracle. Com o advento da

guerra, a casa de Malot foi atingida e, entre os escombros, o manuscrito de Sans famille foi

perdido, restando apenas o episódio das minas e de maneira incompleto. A reescrita do romance

foi total, pois o próprio autor reconheceu ser mais fácil criar do que acessar à memória

(MALOT, 1896). O resultado, para a época, traduziu-se nas inúmeras tiragens e traduções já

comentadas, de um livro que se propõe a ser uma nova referência para a juventude da época,

84 “Com exceção dos italianos, os escritores de livros para jovens da segunda metade do século XIX se

preocupavam apenas com o jovem burguês” (OTTEVAERE-VAN PRAAG, 1987, p. 215).

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que não mais se identificava com os padrões, na palavra do autor, “fora de moda” de Nouvelle

Héloïse, de Jean-Jacques Rousseau, por exemplo (MALOT, 1896).

Nas últimas páginas do capítulo “Sauvetage”, que encerra o episódio do acidente nas minas,

Rémi narra sua reintegração na vila após o resgate. O narrador-personagem relembra como

algumas pessoas o cumprimentavam emocionados, como se sua presença fosse mérito de um

milagre. Outras “em luto”, diz Rémi, não se conformavam porque um garoto de rua tinha tido

a sorte da sobrevivência, enquanto tantos pais de família tiveram que perecer:

Havia alguns que vieram até mim e apertaram a mão com lágrimas nos olhos.

Havia outros que desviavam a cabeça. Estavam de luto, e se

perguntavam amargamente por que era a criança órfã que tinha sido salva,

enquanto o pai de família, o filho, ainda estavam na mina, cadáveres

miseráveis varridos, jogados pelas águas.

Mas entre aqueles que me paravam na rua, havia alguns que eram

bastante enfadonhos; eles me convidavam para jantar ou a entrar no café.

“Você vai nos contar tudo o que você viveu”, diziam eles.

E eu agradecia sem aceitar, porque não me convinha nada dizer a minha

história àqueles que eram indiferentes, que pensavam em me pagar um jantar

ou um copo de cerveja (MALOT, 2014, p. 267, tradução nossa).

Os tempos de apresentação pública com a trupe acabaram para Rémi. Um prato de comida ou

um copo de cerveja não são mais suficientes para o jovem adulto Rémi, que ainda enfrenta o

preconceito de ser um garoto órfão – bastando isso para ser ofendido gratuitamente –, mas

conquistou uma dignidade interior que não lhe permite aceitar esmolas. Pois, afinal, Rémi e os

tantos outros garotos órfãos e abandonados são “seres humanos completos”.

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CAPÍTULO 3. AS TRANSFORMAÇÕES DE PINÓQUIO

Pinóquio representa na literatura infantil aquilo que

A crítica da razão pura de Kant representa na literatura

filosófica: a conquista da autonomia e da liberdade.

Pietro Mignosi (1924, p. 25-26)

A madeira, na qual Pinóquio foi talhado, é a humanidade.

Benedetto Croce (1937, p. 453)

Quando Pinóquio estava a apenas um dia de se tornar um menino de verdade, é seduzido por

uma tentação que o afasta de seu objetivo: uma viagem inesperada ao País dos Folguedos85.

Não seria a primeira vez que a marionete de madeira sabotaria sua própria trajetória para viver

uma grande aventura. A repetição do fracasso em As aventuras de Pinóquio, de Carlo Collodi,

demonstra uma estrutura bastante regular do romance: o herói se desvia do caminho de se tornar

um menino, por sua própria escolha, a fim de conhecer um mundo fantástico e viver

experiências únicas. Por isso, Pinóquio se encontra no meio de um paradoxo: a marionete

curiosa em conhecer o mundo só conseguirá se tornar um menino – principal objetivo da

narrativa – se seguir as orientações, de certa forma, castradoras, da Fada dos Cabelos

Turquesa86. A marionete de madeira deve se comportar, não mentir, ir à escola, ser bom com

seu pai Geppetto. Mas sua natureza brincalhona o leva a lugares incríveis nos quais conhece

pessoas excepcionais, animando-o a seguir viagem e desviar, cada vez mais, das orientações da

Fada. A decepção acontece, então, pois essa transgressão sempre vem acompanhada de um

twist negativo, que o leva a arrepender-se de suas escolhas.

Desta maneira, a narrativa se constrói a partir de um argumento muito evidente, além de um

ritmo constante, no qual há picos de tensão e de euforia que logo se transformam em decepção.

A tensão existe a partir da oposição entre o comportamento correto que o protagonista é

orientado a seguir confrontado com seus próprios desejos – que, por sua vez, marcam os

85 Esta análise dedicar-se-à ao trecho que vai do capítulo XXIX ao XXXIII do romance As aventura de Pinóquio:

história de um boneco (COLLODI, 2012). 86 Vale notar desde já que a Fada dos Cabelos Turquesa representa uma figura importante para uma série de

questões abordadas neste capítulo. Questões que vão da discussão do gênero “conto de fada” pelo qual o livro de

Collodi é muitas vezes classificado, como pela própria função da Fada na narrativa. Por ora, basta mencionar que,

nos contos de fada tradicionais, as fadas geralmente representam a mãe substituta – especialmente para os heróis

órfãos – como a figura que cria atalhos para o herói em sua jornada, ajudando-o em situações de perigo (JOLLES,

1976).

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momentos de euforia. Para deixar de ser uma marionete de madeira, Pinóquio deve abandonar

aquilo que mais o impulsiona e o excita para a vida. Ou seja, o boneco está exposto a um dilema:

seguir suas paixões ou ser racional?

Esse dilema fica bastante evidente no capítulo XXIX do romance. Após um ano de bom

comportamento e arrependido de suas travessuras, o boneco finalmente recebe o perdão da Fada

dos Cabelos Turquesa e está apto a se tornar um “menino de verdade”:

Pinóquio prometeu e jurou que haveria de estudar e que se comportaria sempre

bem. E manteve a palavra por todo o resto do ano. De fato, nos exames

semestrais, teve a honra de ser o melhor aluno da classe; seu comportamento,

em geral foi considerado tão louvável e satisfatório, que a Fada toda contente

lhe disse:

— Amanhã finalmente o seu desejo será cumprido.

— Ou seja?

— Amanhã vai deixar de ser um boneco de madeira para ser um

menino de bem.

Quem não presenciou a alegria de Pinóquio diante dessa notícia tão

esperada, não poderá jamais imaginar o que foi. Todos os seus amigos e

colegas de escola iriam ser convidados para no dia seguinte virem a um grande

lanche na casa da Fada, a fim de festejarem juntos o belo acontecimento; e a

Fada mandou preparar duzentas xícaras de café com leite e quatrocentas

torradas com manteiga dos dois lados. Aquele dia tinha tudo para ser muito

agradável e alegre, mas…

Infelizmente, na vida dos bonecos, há sempre um mas que estraga

tudo (COLLODI, 2012, p. 255-256).

No trecho acima, pode-se identificar a Fada como a representação de uma figura quase materna,

ponderada, símbolo da ordem no romance, que acompanha o boneco em sua sofrida trajetória

de amadurecimento. Ao longo da história, a Fada acolhe afetivamente o boneco, lhe dá

conselhos e revela a rota para que Pinóquio cumpra sua transformação final – e, desta maneira,

em direção ao sua definitivo estabelecimento na sociedade. Porém, a Fada também desempenha

um papel de corrigir e punir Pinóquio quando este não é obediente; o castigo é a maneira

corretiva de educar o boneco, uma marionete e, como tal, serve-se muito bem da metáfora dos

fios que são manipulados por outrem. Após cada punição, Pinóquio se arrepende de seus atos

e volta a implorar pelo perdão da Fada. Depois de tantas punições – há um episódio específico

em que a Fada oferece ao faminto Pinóquio pão feito de gesso, frango feito de papelão e

damascos feitos de pedra (COLLODI, 2012, p. 255) –, o boneco é vencido pela exaustão do

sofrimento e abandona sua luta contra as regras dos adultos. Passa, então, um ano agindo da

maneira como se espera de um garoto: indo à escola, tirando boas notas, se comportando

exemplarmente. O trecho acima demonstra como esses são os valores – “o melhor aluno da

classe”, comportamento “louvável e satisfatório” – que representam a verdadeira

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transformação: de uma natureza impulsiva e selvagem para um cidadão de compromissos reais;

de um brinquedo a um “menino de bem”.

Dois detalhes do trecho destacado, porém, valem a pena serem analisados com maior

profundidade. O primeiro diz respeito ao breve diálogo entre a Fada e o boneco de madeira.

Pinóquio hesita quando a Fada menciona que seu verdadeiro desejo será “cumprido”. Após um

ano de estudos, Pinóquio já não sabe mais qual é o seu verdadeiro desejo. Em contrapartida, a

marionete de madeira tinha muitos desejos quando não frequentava a escola – ir ao circo,

enriquecer sem ter que trabalhar, brincar constantemente, não ter responsabilidades –, desejos

esses legítimos e cultivados a partir de sua própria experiência de vida. Deixar de ser um boneco

para se tornar um menino certamente é uma das vontades de Pinóquio. Pois, uma vez menino,

finalmente, ele terá a chance de ser um garoto com pai, mãe e crescer para uma vida adulta e

responsável. Porém, seus desejos mais profundos advêm de sua intrínseca característica de

boneco de madeira. Ou seja, sua natureza é de um ser feito para brincar, enquanto que garotos,

na ordem do romance, devem crescer e se tornar homens trabalhadores, acolhidos pela

sociedade. A essência de Pinóquio não condiz com o que se espera de um garoto e a tensão se

instaura neste momento.

Assim, a luta de Pinóquio equipara-se, de certa maneira, a uma batalha quixotesca: seu principal

vilão torna-se ele mesmo; Pinóquio enfrenta suas próprias convicções e paixões para merecer

status de uma figura legítima. Suas vivências pelo mundo, sua natureza curiosa e brincalhona,

as experiências que adquire dessas viagens são afrontas aos valores de respeito, bom

comportamento e até comprometimento com a família e a sociedade. Mas é justamente nessas

aventuras que a marionete também vivencia os piores sentimentos, além de terríveis

experiências, que o fazem desistir de suas conquistas pessoais. Volta, então, a tornar-se um

fracassado arrependido em busca de perdão, para se transformar em algo que não quer ser.

Um outro desdobramento desses atos repetitivos e fracassados de Pinóquio leva a compreender

que, em certo sentido, o boneco não quer se tornar um menino. A vida de um menino em nada

se parece com as possibilidades de aventura experienciadas pela marionete. O que Pinóquio

aprende ao longo da narrativa é que não existe, no mundo dos homens e das “pessoas de bem”,

espaço para diversão e espontaneidade, sem a obrigação e o peso da vida adulta. Um exemplo

de sacrifício personifica-se no próprio Geppetto, cuja função narrativa é, além de outras, ser o

contraponto do homem maduro e generoso, um modelo para o boneco se inspirar.

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O segundo detalhe do trecho destacado que merece maior aprofundamento é a última frase:

“Infelizmente, na vida dos bonecos, há sempre um [dia agradável e alegre] mas que estraga

tudo”. Esse trecho é um exemplo de como o romance tende a ser circular. Em As aventuras de

Pinóquio, ao final de cada episódio, o boneco falha em avançar para atingir o objetivo que lhe

é imposto: resistir às suas paixões e fazer o bem, para ter o direito de se tornar um menino. O

leitor já espera que, no capítulo seguinte ao trecho destacado, ao invés de acontecer a grande

festa prometida pela Fada, Pinóquio cairá em uma nova tentação e se distanciará, mais uma vez,

do dia de sua transformação. E é exatamente no capítulo XXX que Pinóquio tem um dos

diálogos mais desconcertantes e engraçados do romance, com seu colega de escola Pavio – o

menino esguio e “espevitado”. Pavio conta a Pinóquio que irá partir naquela mesma noite para

o País dos Folguedos, onde

não há escolas, nem professores, nem livros. Nesse bendito país não se estuda

nunca. Não há aulas às quintas-feiras e a semana se compõe de seis quintas-feiras e

um domingo. Imagine que as férias de junho começam em primeiro de janeiro e

acabam no último dia de dezembro. Um país que me agrada de fato! Como deviam

ser todos os países civilizados! (COLLODI, 2012, p. 262-263).

A fala de Pavio põe em xeque todo o esforço de Pinóquio durante um ano de bom

comportamento. Afinal de contas, qual o propósito de ser tão disciplinado, de estudar tanto?

Não seria a vida melhor aproveitada se não houvesse obrigações e se as pessoas pudessem

usufruir de seu tempo da maneira como bem quisessem? Não seria esse o verdadeiro processo

civilizatório, em contraposição ao excesso de trabalho mecanicista, repetitivo e, por isso, sem

sentido? 87 Ao dizer que este novo lugar parece “ótimo”, Pinóquio revela sua verdadeira

87 Dessa discussão poderia ser derivada uma outra pesquisa - certamente sem espaço neste trabalho - de

investigação do conceito de brinquedo para crianças na literatura nos “tempos modernos”. De certa maneira,

Collodi também dialogou sobre o tempo do brincar. As crianças do mundo moderno conquistaram status de

“criança” – como visto anteriormente no diálogo com a sociologia infantil do século XIX –, mas devem dedicar

seu tempo de infância aos estudos, em prol de um “futuro”. O tempo presente da infância requer momentos de

pausa para brincadeiras, para exercer o lúdico, para o devido desenvolvimento da criança. Quem discute essa

questão – a relação do lúdico com a infância – com bastante propriedade é Edmir Perrotti (1990). O crítico

argumenta que “a racionalidade capitalista despreza completamente o tempo dos homens. Tempo total, integral,

simultâneo, passado-presente-futuro fundidos em instantes de plenitude. A racionalidade do sistema produtivo

torna o lúdico inviável, pois o tempo do lúdico não é regulável, mensurável, objetivável. Toda tentativa de

subordiná-lo ao tempo da produção provoca sua morte. Por isso ele é banido da vida cotidiana do adulto e permitido

nas esferas discriminadas dos ‘improdutivos’. O lúdico, dentro do mecanismo do sistema, é a sua negação. Em seu

lugar, permite-se ao lazer, o não-trabalho, coisa totalmente diferente do lúdico, que é o jogo, a brincadeira, a

criação contínua, ininterrupta, intrínseca à produção. Ora o tempo do lúdico não pode ser jamais o da produção

capitalista. Daí o lúdico identificar-se com a criança, já que ela não está apta para o sistema de produção em virtude

de o espírito da racionalidade não ter conseguido ainda domá-la” (PERROTTI, 1990, p. 18).

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vontade: a de abandonar a promessa feita à Fada e ir com Pavio. A questão-chave do romance

– a transformação da marionete em um menino – resume-se, quase ao final do livro, em uma

promessa, não uma vontade legítima: “É inútil tentar-me”, diz Pinóquio a Pavio; “agora já

prometi à minha boa Fada que me tornaria um menino de juízo e não quero faltar com a minha

promessa” (COLLODI, 2012, p. 265). Durante todo um ano, Pinóquio apenas suportou a

condição de bom estudante, pois era o preço que tinha de pagar para cumprir a promessa que

fez à Fada. Mas, e se Pinóquio não precisasse se tornar um menino? E se, sendo uma marionete

por toda a vida, pudesse ser feliz?88

O diálogo que transcorre ao logo do capítulo, além de hilário, demostra a maestria de Collodi

em fazer Pinóquio cair em sua própria armadilha mental. No começo, a marionete rejeita o

convite de Pavio para seguir com ele, dizendo que não quer decepcionar a Fada:

— Mas aonde vai com tanta pressa?

— Para casa. A minha boa Fada me pediu que eu voltasse antes do

anoitecer.

— Espere mais dois minutos.

— Estou me atrasando.

— Só mais dois minutos.

— E se a Fada ralhar comigo?

— Deixe-a ralhar. E, depois de ter gritado bastante, acabará se calando

– disse o safado do Pavio (COLLODI, 2012, p. 263-264).

De fato, o “safado do Pavio” faz Pinóquio cair na tentação com um discurso definitivo sobre as

maravilhas do País dos Folguedos, até que o boneco, inconscientemente, reverte ele mesmo a

sua argumentação, desta vez em prol da aventura:

— Então, adeus mesmo; e boa viagem. [Diz Pinóquio.]

— Adeus.

— E quando parte?

— Daqui a pouco.

— Que pena! Se faltasse apenas uma hora para a partida, seria quase

capaz de esperar.

— E a Fada?

88 A título de curiosidade, o editor italiano Renato Bertacchini (1983, p. 229, tradução nossa) propôs cinco

perguntas sobre o romance As aventuras de Pinóquio para 63 escritores italianos. As perguntas eram: “Voltando

um pouco na memória, quando e como aconteceu seu encontro com Pinóquio?”, “O que você acha de Pinóquio

agora que é adulto?”, “O boneco Pinóquio lhe parece um personagem poético, rico e autêntico do ponto de vista

da invenção?”, “Qual seu outro personagem favorito no romance?”, “De acordo com uma afirmação de A. Asor

Rosa, Pinóquio, este ‘boneco-povo-Itália’, amadurecido pela dor e pela infelicidade, representa uma das poucas e

verdadeiras ‘pesquisas de identidade nacional’. Você está de acordo?”. Dentre as inúmeras preciosidades

encontradas no livro, destaque para o depoimento do escritor e designer Bruno Munari (1907-1998): “Pensando

como adulto sobre Pinóquio fiz a seguinte consideração: o homem nasce livre e completo (e não como uma

marionete) e depois, com a educação equivocada, e com os bons conselhos recebidos dos pais para o bem de suas

crianças, com o ensino da religião e assim por diante, esse homem nascido livre se torna uma marionete e cada fio

que a move é manipulado pela sociedade que o condiciona”.

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— Agora já ficou tarde… e voltar para casa uma hora antes ou depois

dá no mesmo.

— Pobre Pinóquio! E se a Fada ralhar com você?

— Paciência! Vou deixá-la gritar. E, quando tiver gritado bastante,

vai se calar (COLLODI, 2012, p. 266).

Impossível o leitor não ter prazer nesta cômica leitura. O comportamento de Pinóquio oscila,

constantemente, entre duas vontades antagônicas, cada uma delas regida por uma moral

diferente. A primeira está associada ao instinto do boneco para brincar. E, a segunda, relaciona

a impressão que o boneco quer causar na Fada e em Geppetto. Esta segunda via precisa ser

domesticada, aprendida. Por isso, Pinóquio passa um ano negando a primeira vontade instintiva,

de modo a reprimi-la. O diálogo, porém, demonstra que ele não foi bem-sucedido em reprimir

seu instinto, mesmo após todas as experiências traumáticas que vivenciou ao longo de sua

jornada.

Neste trecho, poderia se dizer que a narrativa evoca os conceitos freudianos de princípio de

prazer e princípio de realidade, sendo que o primeiro se relaciona àquilo que dá prazer e o

segundo, àquilo que de fato a realidade impõe. Vale a pena resgatar o trecho em que Freud

(2010, p. 166) elucida os conceitos:

É indubitável, porém, que a substituição do princípio do prazer pelo princípio

da realidade pode ser responsável tão somente por uma pequena parte, de

modo algum a mais intensa, das experiências de desprazer. Uma outra fonte

de origem do desprazer, não menos regular, acha-se nos conflitos e cismes

dentro do aparelho psíquico, enquanto o Eu perfaz seu desenvolvimento rumo

a organizações mais complexas. Quase toda a energia que preenche o aparelho

vem dos impulsos instintuais inatos, mas estes não são todos os admitidos nas

mesmas fases de desenvolvimento. No meio do caminho sempre volta a

suceder que determinados instintos ou partes de instintos resultem

incompatíveis, nas suas metas ou exigências, com os restantes, capazes de

unir-se na abrangente unidade do Eu. Então eles são segregados dessa unidade

por meio do processo da repressão, mantidos em graus inferiores do

desenvolvimento psíquico e têm cortadas, de início, as possibilidades de

satisfação.

O que interessa observar da citação de Freud é que o princípio de prazer está associado aos

desejos mais primitivos e instintivos do ser e, portanto, mais imediatos e verdadeiros. À medida

que o Eu “perfaz seu desenvolvimento rumo a organizações mais complexas”, ou seja, ao

madurecer como indivíduo que vive em sociedade, percebe que não consegue atingir seus

desejos a todo momento. De maneira breve, pode-se explicar sucintamente que tais desejos

podem desviá-lo de “suas metas ou exigências” – surgindo, então, o princípio de realidade – e,

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por consequência, devem ser escondidos do intelecto (mesmo que por um momento) para que

o Eu possa se adaptar a uma nova realidade.

Dentro do campo da psicanálise, ou seja, utilizando a terminologia desta área do conhecimento,

pode-se especular que Pinóquio, ao não reprimir seus desejos, entra em conflito com a

realidade, e esse enfrentamento lhe causa dor, após um breve momento de prazer. O boneco

entende que seus desejos são incompatíveis com os valores nutridos pela sociedade: o amor à

família, o trabalho, a recompensa após doação. Mas, até as últimas páginas do romance, o

boneco ainda luta para manter-se legítimo e não se tornar apenas mais um garoto. Vale também

mencionar que Pinóquio não tem passado e, por isso, não tem memória ou mesmo traumas; ele

é o momento presente. Assim, as fissuras traumáticas estão sendo construídas nos episódios do

romance.

É o que se lê no trecho acima (do diálogo com Pavio): mesmo sabendo que era “errado” fugir

com o amigo para o País dos Folguedos, Pinóquio deixa-se convencer de que, ainda assim, ser

uma marionete tem mais sentido do que se esforçar para ser um menino, cuja transformação

apenas acirrará o estado de infelicidade do boneco, em razão do árduo trabalho que ele tem que

realizar. Aliás, a representação do País dos Folguedos89 como símbolo dos prazeres sem limites,

um lugar onde tudo é permitido, nada é reprimido, em que Pinóquio realiza sua utopia por um

breve momento – ser brinquedo para sempre? nunca crescer? –, cuja descrição – “em suma um

tal pandemônio, um tal vozerio, uma tal balbúrdia endiabrada de se meter algodões nos ouvidos

para não se ficar surdo” (COLLODI, 2012, p. 275) – lembra o país da Cocanha, retratado na

pintura A terra da Cocanha, de Pieter Brueguel: estar entre o paraíso e o inferno, entre o bem

e o mal, o certo e o errado e, no meio, todos os prazeres usufruídos sem mesura. A relação entre

o País dos Folguedos e o inferno também é proposta por outros estudiosos. Na obra Luogui

della letteratura italiana (2003) os lugares mais frequentes ou metafóricos da literatura italiana

são analisados de maneira comparativa. Não por acaso, As aventuras de Pinóquio são citadas

no capítulo sobre o inferno, escrito por Claudia Sebastiana Nobili (2003). Nobili reforça como

o País dos Folguedos se transforma, da noite para o dia, de paraíso em inferno:

A verdadeira e original jornada da vida após a morte permanece restrita ao

conto de fada, que é em muitos casos destinada a crianças, mas também pode

ser uma parábola para adultos, fundada sobre o folclore e sobre a origem do

ciclo épico de morte e renascimento. O País dos Folguedos, onde Collodi faz

aportar Pinóquio (1883), é um paraíso que se transforma repentinamente em

89 Oposto aos País das Abelhas Operárias (MANGANELLI, 2002).

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inferno: depois de ter viajado rumo à felicidade durante uma noite cheia de

advertências, sobre a carroça de um personagem diabólico como o melífluo e

seboso Homenzinho, Pinóquio e Pavio viverão meses de felicidade no País dos

Folguedos somente para depois serem transmutados em burricos e vendidos no

mercado pelo sinistro Homenzinho, que mostrará abertamente seu caráter

violento.

A perda das características humanas entra perfeitamente na tradição

das penas infernais (basta pensar no Malebolge dantesco, onde os fraudadores

são frequentemente punidos por meio da perda do corpo, seu desmembramento

ou deformação), e no entanto Pinóquio no final sairá vivo do inferno, voltando

a ser fantoche e depois se tornando menino: o mesmo não acontecerá com seu

amigo Pavio, que morrerá sem ter completado o percurso de iniciação e sem

poder readquirir o aspecto humano. (NOBILI, 2003, 226, tradução nossa).

Talvez essa natureza não reprimida, que ainda quer se manifestar, faça com que Pinóquio se

convença a juntar-se às outras crianças em viagem ao País dos Folguedos, ainda que tenha total

consciência de seus atos. Fica evidente, portanto, que o problema de Pinóquio não se resume a

discernir entre o “certo” e o “errado”, mas sim sucumbir ao seu instinto, vencer a tentação da

desobediência. O trecho do capítulo XXI traz a cena na qual Pinóquio decide ir com as outras

crianças:

— E você, queridinho –, disse o Homenzinho dirigindo-se todo

cerimonioso a Pinóquio –, que pretende fazer? Vir conosco ou ficar aqui?

— Eu fico – respondeu Pinóquio. — Quero voltar para casa, quero

estudar e tirar boas notas na escola, como fazem todos os meninos de bem.

— Que tenha bom proveito!

— Pinóquio! – disse então Pavio. — Ouça o meu conselho: venha

logo conosco e seremos felizes.

— Não, não e não.

— Venha conosco e seremos felizes – gritaram outras quatro vozes de

dentro da carroça.

— Venha conosco e seremos felizes – berraram todas juntas uma

centena de vozes de dentro do carro.

— Mas, se eu for com vocês, o que dirá a minha boa Fada? – disse o

boneco, que começava a amolecer e a faltar à promessa.

— Não encha a cabeça com tantas preocupações. Pense que vamos

para um país onde poderemos fazer algazarras da manhã à noite.

Pinóquio não respondeu, mas soltou um suspiro; depois deu outro

suspiro e mais um terceiro suspiro e finalmente disse:

— Arranje um lugarzinho para mim que eu também quero ir

(COLLODI, 2012, p. 270-271).

Os suspiros de Pinóquio marcam o tempo que ele precisa para se decidir. Salta aos olhos do

leitor a angústia das crianças quanto a serem “felizes”. O coro, repetindo de forma uníssona a

mesma ideia, revela, no mínimo, uma insatisfação das mesmas em relação a suas vidas. O que

poderia ser tão cruel e penoso na vida dessas centenas de crianças para que elas abandonem

suas famílias em busca da promessa de felicidade? Seriam, todas elas, traquinas?

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Eventualmente, a repressão virá, quando Pinóquio terá que pagar um preço alto por essa última

travessura.

A sequência do episódio mostra Pinóquio e as outras crianças amontoadas em uma carroça

bastante peculiar, na qual já se prevê que a diversão do País dos Folguedos não vem

gratuitamente. Os indícios de que algo não vai bem estão por toda parte. A começar pelo fato

de a fuga sorrateira se dar à noite, longe dos olhos de todos, simbolicamente a hora em que os

seres soturnos saem para as ruas. Depois, a carroça sedutora, com seus guizos quebrando o

silêncio da noite, não esconde os burricos de olhar triste que a puxam e, usando botinhas

humanas, choram como crianças. Somado a essa descrição, há a do carroceiro que lembra

personagem da literatura infantil que recolhe crianças perdidas no meio da noite90. Porém, o

carroceiro não seduz Pinóquio. Como visto acima, são as próprias crianças que gritam para o

boneco, a fim de que ele se torne cúmplice desse ato de rebeldia e de pretensa liberdade. Mas

será justamente um burrico que tentará dissuadir Pinóquio de embarcar nessa nova e perigosa

aventura, como tantas outras que a marionete já vivenciou – e às quais não conseguiu resistir.

Ao subir no burrico, uma vozinha longínqua prenuncia a tragédia: “Pobre idiota, quis fazer as

coisas a seu modo, mas vai se arrepender” (COLLODI, 2012, p. 273).

Ao chegar ao País dos Folguedos, Pinóquio e as outras crianças não acreditam na sorte que

tiveram, ao encontrar um lugar em que de fato não havia escolas e o passatempo era brincar

sem limites. O sentimento das crianças é de liberdade – Pavio chega a dizer a Pinóquio: “Se

hoje você se libertou da chatice dos livros e da escola, deve isso a mim, aos meus conselhos, à

minha insistência”, comentário que Pinóquio agradece (COLLODI, 2012, p. 276). É um lugar,

como descreve Manganelli (2002, p. 157), onde “se reúnem e se depositam todos os sonhos

construídos pela desiludida mitomania infantil e pela suicida recusa de morrer do adolescente”

e, em especial, onde não há adultos para impor limites a essa brincadeira de mentira.

Mas, após cinco meses de brincadeiras, Pinóquio começa a sofrer a sua primeira verdadeira

transformação, que servirá de elemento punitivo para todo esse período de rebeldia contra os

90 No Brasil, este personagem seria o Homem do Saco, uma figura medonha que anda com um saco de estopa

nas costas, recolhendo crianças que ficam longe de adultos ou que, até mesmo, são entregues pelos pais por

serem desobedientes. Na Europa, especialmente em Portugal, essa figura é mais conhecida como Homem do

Surrão. Mas pode-se sim dizer que a figura está difundida no imaginário da maioria dos países europeus

(ALVES, 2017.)

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conselhos da Fada: seu aspecto físico modifica-se, lentamente, para o de um burrico. Já com

duas orelhas de burro e com febre asinina, a Marmotinha explica a Pinóquio sua transformação:

— Meu caro – replicou a Marmotinha para consolá-lo –, que está

querendo fazer? Cumpriu-se o destino. Está escrito nos decretos da sabedoria

que todos os meninos preguiçosos que, desprezando os livros, a escola e os

professores, passam os dias em brincadeiras, jogos e diversões, vão acabar

cedo ou mais tarde se transformando em verdadeiros asnos.

— Mas isso é verdade mesmo? – perguntou soluçando o boneco.

— Infelizmente, é. E então não adianta chorar. O certo era ter pensado

antes!

— Mas a culpa nao é minha: a culpa, acredita, Marmotinha, é toda do

Pavio.

— E quem é esse Pavio?

— Um colega de escola. Eu queria voltar para casa, queria ser

obediente, queria continuar a estudar para ser alguém… Mas Pavio me disse

“Por que vai se amolar estudando? Por que ir à escola? Antes venha comigo

ao País dos Folguedos: lá não se estuda mais, lá nós vamos nos divertir da

manhã à noite e seremos sempre felizes”.

— E por que você seguiu o conselho desse falso amigo?

— Por quê?… Porque, Marmotinha minha, porque sou um boneco

sem juízo. Oh, se tivesse um tiquinho de coração jamais teria abandonado

aquela boa Fada que me queria tanto como se fosse minha mãe e que fez tanto

por mim!… E a esta hora eu não seria mais um boneco, mas sim um garoto

educado como há tantos. Mas, se eu encontrar de novo esse Pavio, ai dele!

Vou lhe dizer poucas e boas (COLLODI, 2012, p. 282-283).

A Marmotinha explica a Pinóquio que seu destino precisa ser cumprido e que foi traçado

baseado nas próprias escolhas da marionete. Ao ficar no País dos Folguedos, Pinóquio não sabia

a perversidade do futuro que lhe cabia. Obviamente, a marionete não teve acesso ou não se

preocupou em procurar o decreto da sabedoria que sela o destino das crianças que se entregam

aos prazeres da infância, em detrimento das obrigações que já lhes cabem. A vida dos garotos

que se recusam a estudar é, então, servir de animais de carga, fazendo tarefas braçais e sendo

maltratadas, como burricos. (Nada mais simbólico do que o animal escolhido para a

transformação.) A fala da Marmotinha – “O certo era ter pensado antes” – mais uma vez denota

a lição que Pinóquio deixou de aprender, pois, tomado pelo impulso e absorto pela rotina de

brincadeiras, não levou em consideração o mundo real e suas consequências que seguem regras

(“decreto da sabedoria”) escritas pelos adultos. Pinóquio se mantém no “universo paralelo” em

que a obrigação de estudar para se transformar em um menino não existe. Porém, este país

paralelo, assim duramente descobre Pinóquio, não configura um ambiente independente do

mundo real (“Mas isso existe mesmo?”, diz Pinóquio indignado ao ouvir as palavras da

Marmotinha). Nesse sentido, o País dos Folguedos nada mais é do que a representação temporal

e física do princípio de prazer. Percebendo mais uma vez que caiu em tentação, Pinóquio decide

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culpar o amigo numa tentativa de redimir-se da responsabilidade e, com isso, talvez se livrar

das regras do decreto. O arrependimento se faz presente e mais um ciclo do romance se

completa.

A trajetória de sofrimento do herói com a finalidade de levá-lo ao amadurecimento ou, mais

ainda, a tomada de consciência do herói face às regras sociais que lhe são impostas foram

assuntos capitais para o romance do século XIX. Inúmeras narrativas, voltadas tanto ao público

adulto quanto ao infantil, tentaram dar conta do tema, que representa, em última instância, não

o herói mitológico de Joseph Campbell – que também vive essa trajetória, porém com outro

propósito –, mas sim o homem moderno cuja natureza rebelde não se amolda à sociedade civil.

São romances cujo tema, como bem disse Lukács (2015, p. 138) ao analisar Os anos de

aprendizado de Wilhelm Meister, de Johann Wolfgang von Goethe (2006), “é a reconciliação

do indivíduo problemático, guiado pelo ideal vivenciado, com a realidade social concreta”. Tal

reconciliação, ou seja, o abandono pelo herói de seus valores de conduta pessoais idealizados,

em detrimento de um valor coletivo prático, como temos visto no romance de Collodi, se dá a

partir de um conflito que culmina num árduo aprendizado. Novamente, nas palavras de Lukács

(2015, p. 138), “essa reconciliação não pode nem deve ser uma acomodação ou uma harmonia

existente desde o início; esta conduziria ao tipo já caracterizado do romance humorístico

moderno, exceto que então o mal necessário desempenharia o papel principal”. O romance de

Collodi não descarta o veio humorístico, responsável pelo elemento afetivo de conexão com o

leitor infantil. O absurdo em relação ao mundo objetivo no romance de Collodi permite

explicitar o aprendizado por meio do humor.

O exercício que Collodi propõe ao leitor é a reflexão do universo interior do indivíduo em

relação ao ambiente externo. Até aqui, a imagem que Collodi constrói em As aventuras de

Pinóquio acerca da infância é formada por um mosaico de atitudes de rebeldia, inconformismo

e liberdade. Porém, nenhuma dessas atitudes está acima das regras impostas pelos adultos, o

que as tornam frágeis e efêmeras. Desponta, na narrativa de Collodi, o desejo instintivo e

impulsivo da criança, que culmina com o questionamento das regras que ela deve seguir (“Não

encha a cabeça com tantas preocupações” ou então “Por que vai se amolar estudando?”),

visando ao futuro (“Amanhã vai deixar de ser um boneco de madeira para ser um menino de

bem”), e não ao presente. Esse ímpeto rebelde é conflitante com a noção de aprendizado e

amadurecimento que se espera de Pinóquio. Isso rende ao romance de Collodi interpretações

que oscilam entre o romance de formação – a exemplo da época pela qual a Itália passava – ao

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argumento oposto, o de crítica a uma educação que não valoriza a experiência individual, mas,

sim, a coletiva e, portanto, generalizada91. Se observarmos a intenção “educativa”, típica do

romance de formação, o aprendizado ou amadurecimento do herói culmina com o abandono

das prioridades íntimas em prol da aceitação de estruturas coletivas. Explorando esse conceito

no romance de Collodi, percebe-se um Pinóquio sofrendo ao se ver isolado, sem ajuda,

maltratado e desolado, como consequência de seus atos ditos egoístas. Seu amadurecimento só

será reconhecido – simbolizado na transformação em menino – quando assumir suas

responsabilidades perante o coletivo, e não mais apenas a partir de sua própria vontade.

Novamente, Lukács (2015, p. 139-140) esclarece essa relação entre “eu” e “sociedade”:

Desse modo, porém, ao menos como postulado, a solidão da alma é superada.

Essa eficácia pressupõe uma comunidade íntima e humana, uma compreensão

e uma capacidade de cooperação entre os homens no que respeita ao essencial.

Mas essa comunidade não é nem o enraizamento ingênuo e espontâneo em

vínculos sociais e a consequente solidariedade natural do parentesco (como

nas antigas epopeias), nem uma experiência mística de comunidade que, ante

o lampejo súbito dessa iluminação, esquece e põe de lado a individualidade

solitária como algo efêmero, petrificado, pecaminoso, mas sim, um lapidar-se

e habituar-se mútuos de personalidades antes solitárias e obstinadamente

confinadas em si mesmas, o fruto de uma resignação rica e enriquecedora, o

coroamento de um processo educativo, uma maturidade alcançada e

conquistada.

Neste conceito proposto por Lukács, e preponderante nas narrativas de romance de formação,

o amadurecimento é visto como uma conquista positiva, um “lapidar” de uma alma selvagem

e solitária, que sai de um “confinamento” em direção a experiências “ricas e enriquecedoras”,

por meio de seu próprio mérito, “alcançado e conquistado”. Resta a dúvida, porém, como já foi

mencionado anteriormente, se a intenção de As aventuras de Pinóquio é de fato explicitar o

caminho para essa pseudoliberdade do indivíduo (que sai de seu isolamento), ou se, pelo mesmo

argumento, tal amadurecimento significa o abandono dos reais desejos de viver.

Uma outra ideia evocada por Collodi nesse romance é a valorização da infância como fase

importante para o desenvolvimento do indivíduo. Como já foi citado acima, para os

personagens adultos do romance de Collodi, Pinóquio não é considerado um ser completo, pois

é um boneco de madeira – mesmo tendo profundidade psicológica, personalidade desenvolvida.

Para que Pinóquio se torne um menino de verdade, deve seguir uma série de condutas éticas e

didáticas a fim de merecer a transformação.

91 Essas questões serão aprofundadas no próximo tópico, que discute o contexto histórico-social no qual Collodi

estava inserido.

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Nessa simplificação do romance, Collodi deixa nas entrelinhas a dúvida em relação ao que os

adultos de fato proporcionam para as crianças, a não ser uma infância cheia de obrigações e

afazeres, antecipando a vida adulta. Hoje, um conceito já bastante em voga quando se estudam

questões da infância, porém, algo bastante transgressor para a Itália do XIX, o brincar

representa não apenas um momento de amadurecimento interno, como também um tempo para

a manifestação do “eu”.

Walter Benjamin (2002, p. 85), em Reflexões sobre a criança, o brinquedo e a educação, uma

coletânea de textos produzidos no início do século XX, já propõe essa discussão sobre o brincar

como legítimo momento de introspecção:

Não há dúvida que brincar significa sempre libertação. Rodeadas por um

mundo de gigantes, as crianças criam para si, brincando, o pequeno mundo

próprio; mas o adulto, que se vê acossado por uma realidade ameaçadora, sem

perspectivas de solução, liberta-se dos horrores do real mediante a sua

reprodução miniaturizada.

A citação é reveladora quando aponta para uma interpretação da relação adulto-criança na qual

o adulto inveja a brincadeira da criança por perceber que sua existência não tem sentido. Além

disso, o trecho de Benjamin reforça a importância desse momento do brincar como ato de

liberdade. Ora, Pinóquio é a “encarnação” do espírito livre, que não quer ter amarras, que quer

sair pelo mundo descobrindo novas formas de se divertir.

Uma outra ideia preciosa que Benjamin traz nessa mesma obra trata da expectativa dos adultos

em relação à educação dos meninos e das meninas: um modelo rígido que não observa a

natureza das próprias crianças. Na literatura, livros com características moralistas e pedagógicas

reforçam a antecipação da vida adulta na época da infância. A imagem que se constrói da

infância, portanto, é a de um momento “preparatório” para a vida adulta. Muito da liberdade

associada ao romance de Collodi advém da abordagem cômica que o autor exerce sobre o

assunto, exagerando o comportamento de Pinóquio acerca de sua recusa a frequentar a escola e

da decisão de construir suas próprias experiências, em oposição a todos os esforços dos adultos

para que ele haja contrariamente. Vejamos como Benjamin coloca a questão no artigo

“Experiência”, que, de acordo com o autor, representa uma máscara que os adultos usam como

forma de poder sobre as crianças:

Mas vamos tentar agora levantar essa máscara. O que esse adulto experimentou? O

que ele nos quer provar? Antes de tudo, um fato: também ele foi jovem um dia,

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também ele quis outrora o que agora queremos, também ele não acreditou em seus

pais; mas a vida também lhe ensinou que eles tinham razão. E então, ele sorri com

ares de superioridade, pois o mesmo acontecerá conosco – de antemão ele

desvaloriza os anos que estamos vivendo, converte-os na época das doces asneiras

que se cometem na juventude, ou no êxtase infantil que precede a longa sobriedade

da vida séria. Assim são os bem-intencionados, os esclarecidos. Mas conhecemos

outros pedagogos cuja amargura não nos proporciona nem sequer os curtos anos de

“juventude”; sisudos e cruéis, querem nos empurrar desde já para a escravidão da

vida. Ambos, contudo, desvalorizam, destroem os nossos anos. E, cada vez mais,

somos tomados pelo sentimento de que a nossa juventude não passa de uma curta

noite (vive-a plenamente com êxtase!); depois vem a grande “experiência”, anos de

compromisso, pobreza de ideias, lassidão. Assim é a vida, dizem os adultos, eles já

experimentaram isso (BENJAMIN, 2002, p. 21-22).

Benjamim caracteriza dois tipos de olhar dos adultos em relação à infância. Um vem dos

“esclarecidos”, aqueles que se vangloriam por serem vividos, experientes e, por isso, se sentem

superiores aos jovens. Outro olhar advém daqueles que nem sequer consideram a infância e a

juventude como uma fase de amadurecimento, e solapam esses curtos anos com tarefas e

obrigações, no intuito de já demonstrar como será a vida adulta. Seriam os pedagogos. Ambos,

pedagogos e esclarecidos, ignoram a vivência da infância e juventude, as necessidades

imediatas associadas aos desejos de cada criança.

Voltando ao romance de Collodi com este olhar benjaminiano, a Fada dos Cabelos Turquesa

reúne tanto as características da pessoa bem-intencionada (coloca-se em uma posição de

superioridade em relação à Pinóquio) quanto as do pedagogo (ao exigir que Pinóquio sacrifique

seu tempo indo à escola). Ela ignora as necessidades de Pinóquio de viver outras experiências

que não aquelas proporcionada pela escola, ignora que o amadurecimento de Pinóquio não está

somente no aprendizado dado92 no ambiente institucionalizado, mas sim ao explorar o mundo.

Os eventos do romance, no entanto, são cruéis com Pinóquio. Pois, a todo momento, o boneco

sofre com as experiências “marginais”, que, finalmente, o fazem desistir de abraçar o caminho

da aventura.

Neste episódio do País dos Folguedos, a lição é mais do que cruel. Ao fugir de um modelo de

vida no qual não acreditava, a nova aventura de Pinóquio é, aparentemente, um caminho sem

92 No mesmo livro, Benjamin dedica um artigo à educação didática e à moral/ética, intitulado “O ensino de moral”.

Nele, o autor pondera sobre a diferença entre a educação didática e a moral: “De imediato, impõe-se uma

conclusão: uma vez que o processo de educação ética contradiz, por princípio, toda racionalização e

esquematização, então ele não pode ter nenhuma afinidade com o ensino didático. Pois esse representa, também

por princípio, o instrumento de educação racionalizado”. Ou seja, o “estudar por estudar”, a sistematização do

conhecimento aniquila a oportunidade de o indivíduo refletir sobre sua própria sociedade e conhecimento coletivo

(BENJAMIN, 2002, p. 14).

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volta, o passo definitivo para a não transformação em um menino de bem. A escolha de

Pinóquio do modelo social idílico, a infância perpétua, em oposição ao mundo regrado dos

adultos, resultou em um revés moral que vem solapar a ideia de transgressão da sociedade

tradicional. Quem também discorre sobre este tema é Manganelli (2002, p. 160):

a transformação de Pinóquio coincide com a assunção corporal de uma

metáfora social: ele está “mudando” porque a linguagem da sociedade o

atingiu, o enfeitiçou, e das suas mínimas orelhas fez agora orelhas

monstrificadas. Ao se contemplar, Pinóquio tem três sentimentos: dor, já que

pela primeira vez sabe que sofreu uma ofensa que o torna diferente de si,

estranho a si; vergonha, porque suas orelhas lhe dizem que aquela

metamorfose tem um significado, o escárnio daquela sociedade que ele quer

e de que foge; desespero, enfim, porque experimenta o terror de ter ido longe

demais na sua rejeição do humano.

Manganelli faz uma curiosa associação entre a “metamorfose” de Pinóquio em burrico e a

essência do indivíduo, o pacto para adaptação de um novo universo de regras próprias e

desconhecidas. O boneco único e especial em pouco tempo não passará de um burrico. E o

culpado não é nenhum outro além de Pinóquio, envergonhado de sua natureza inconsequente.

Assim, a primeira transformação de Pinóquio é também uma de suas mortes.

A primeira versão do romance93 dava uma lição na moral italiana – liberdade ou morte –,

estando Collodi longe de ser considerado um scrittore-educatore94. Por outro lado, a versão

final do livro, com o arrependimento e a transformação de Pinóquio, inicia uma nova concepção

de construção de personagem muito importante na literatura infantojuvenil: a personagem que,

em essência, é boa e ruim ao mesmo tempo. Nesse sentido, Pinóquio é uma personagem

esférica, para retomar o conceito de Edward M. Forster (1998). E, por isso, talvez até mais

humanizado do que os personagens humanos do romance, como Geppetto, que é resiliente, tem

compaixão por Pinóquio e nunca o abandona, mesmo depois de todas as travessuras do boneco.

Outras personagens e outros lugares do romance também são apresentados de maneira esférica,

sendo classificados como bons ou ruins, como a Fada, que representa a mãe carinhosa e

punitiva, e o País dos Folguedos, que é, ao mesmo tempo, o símbolo do jardim das delícias,

mas esconde o aprisionamento para toda a vida.

93 A história do boneco de madeira foi inicialmente escrita apenas com os quinze primeiros capítulos, sendo que,

no último, Pinóquio é enforcado em uma árvore e deixado lá para morrer. Esse trecho será mais bem explicado ao

longo do capítulo. 94 Vide Capítulo 1.

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Certamente, tal estrutura também não deixa de ser educativa, mas resulta não de um confronto

entre o certo e o errado, mas sim da experiência. Na obra Pinocchio nella letteratura per

l’infanzia, editada por Carlo Marini, o artigo “Pinocchio gode dell’innocenza della distrazione”

(Pinóquio goza da inocência da distração), de sua própria autoria, traz a ideia de que o

amadurecimento aflora da própria condição vivida pela personagem, em interação com outros

personagens e lugares:

Em Pinóquio, a pedagogia não é abandonada, mas sim resolve-se em si

mesma, revela-se em sua própria condição; a intenção educativa,

exemplificada na moral do Grilo Falante, se funde com o sutil cinismo do País

dos Beócios (MARINI, 2000, p. 120, tradução nossa).

Marini cita um personagem bastante importante para o romance que, assim como a Fada,

interpreta o papel da voz da experiência e da sabedoria, o Grilo Falante, contrapondo-o ao

mundo os vilões e malandros, do País dos Beócios. A contribuição de Marini vem a esclarecer

que o aprendizado de Pinóquio está na própria experiência de vida, uma vez que deve arcar com

as consequências de suas escolhas, um ato bastante maduro para uma criança.

Este caminho nos leva para uma outra questão, também capital no romance de Collodi à luz das

últimas décadas do século XIX. A temática pedagógica associada à representação da infância

no romance de Collodi está intimamente ligada ao universo subjetivo da criança e à própria

ideia de criança. Mas não somente. O fator motivador desse “sentimento de infância” advém,

como já citado anteriormente, de uma visão burguesa da sociedade, na qual a preparação da

criança para o mundo adulto é uma questão estrutural e até estratégica na valorização da família,

da cultura e da própria consolidação da sociedade. Não por acaso, trata-se do “século das

crianças”. Daí a importância da instituição da escola como “a segunda casa” da criança nesse

momento histórico, envolvendo a família no processo educativo.

Collodi, em As aventuras de Pinóquio, cria uma oportunidade para desenvolver tanto o tema

da institucionalização da infância – pela escolarização – como também o tema do percurso

histórico do homem adulto em sentido metafísico (CAMBI, 1985, p. 34). Sua visão de infância,

no entanto, abarca dois sentidos opostos e não excludentes: o realístico e o simbólico. Realístico

ao dialogar com seu tempo de maneira irônica e precisa, e simbólico pelo contato com a tradição

além da renovação da linguagem literária absolutamente inovadora. Não por acaso, o romance

de Collodi é uma obra rica e complexa, suscitando interpretações dúbias e até contraditórias

sobre o tema da infância. Franco Cambi (1985), em sua obra Collodi, De Amicis e Rodari: tre

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immagini d’infanzia, esmiuça a relação desses três autores fundamentais na literatura

infantojuvenil italiana com o tema da infância. Em Collodi, especificamente em As aventuras

de Pinóquio, não há dúvidas de que a criança é um dos temas da obra, dentro desse contexto

tanto simbólico quanto realista, um dos fatores que a torna um clássico da literatura

infantojuvenil. Nas palavras de Cambi (1985, p. 36, tradução nossa),

a infância é, portanto, um tema central no trabalho collodiano e um dos poucos

temas (como o teatro, talvez, e a dominante ironia/comédia) que ele percorre de

cabo a rabo, ocupando um espaço ao mesmo tempo filológico e simbólico,

adequados a permitir uma leitura orgânica e articulada, precisa e matizada ao

mesmo tempo, certamente não superficial nem trivial. Assim, aparentemente, isso

permite penetrar de maneira decisiva na dimensão “alta” e “grande” de Collodi, que

o torna um “clássico” não menor da nossa cultura moderna.

Essa dimensão “alta” e “grande” de Collodi à qual Cambi se refere torna a análise de suas obras,

especialmente Pinóquio, uma tarefa complexa e instigante, que deve percorrer tanto os

caminhos profundos da natureza do “eu” como as forças históricas que movem esse indivíduo.

O desafio de Pinóquio – “amanhã deixo de ser um boneco para me tornar um menino como

você e como todos os outros” (COLLODI, 2012, p. 262) – é, em realidade, o desafio da Itália

recém-unificada: preparar uma sociedade analfabeta e rural (Pinóquio) para um futuro próximo

(“amanhã”) em que todos possam ser iguais uns aos outros dentro de uma sociedade burguesa

(garotos).

3.1 O romance collodiano e o papel da criança no Risorgimento italiano

O desafio de uma Itália igualitária não seria realizada, como no romance de Collodi, em uma

transformação mágica repentina. Se a Itália hoje constitui uma unidade geográfica delimitada,

não se pode dizer que sua identidade cultural tenha essa mesma coesão. A configuração de

nação partiu de um processo quase artificial, forçando partes distintas da península a se

unificarem politicamente. Os reflexos desse movimento impositivo são perceptíveis na própria

formação da língua italiana e em seus desdobramentos literários. Existe um consenso de que a

questão linguística na Itália é reflexo de um problema social: dialetos variados e por todo o

território absorviam os novos termos da vida industrial e de massa95.

95 Ferroni comenta a questão: “Nos primeiros cinquenta anos de unificação, o problema da comunicação linguística

nacional se revelou cada vez mais um problema social e cultural: as imensas dificuldades encontradas pela

educação linguística não derivavam tanto da escolha de modelos a serem usados mas sim das condições muitas

vezes assustadoras de atraso e miséria. O progresso parcial só foi possível pela melhoria das condições de vida. O

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Por conta disso, a escolha de uma língua italiana torna-se capital para que o ensino nacional

pudesse ser padronizado em todas as escolas do país. Dentro deste projeto aparentemente estéril

e impositivo, aviltou-se escolher o italiano fiorentino como modelo de uma língua oficial, em

boa parte graças a um escritor de destaque da época cujas narrativas ressaltavam os feitos

italianos e ajudavam a criar uma sensação de unidade, não apenas territorial, mas também

cultural. Fala-se de Alessandro Manzoni (1785-1873). Seus romances históricos, especialmente

I promessi sposi (1827), têm por mérito uma linguagem absolutamente homogênea,

esquivando-se das tendências de uso dos regionalismos, criando uma espécie de “modelo de

língua escrita e falada da Itália unificada” vulgarmente conhecido como manzoniano e voltado

a angariar um público leitor mais abrangente (GIOANOLA, 2016, p. 47, tradução nossa).

Um dos grandes pensadores da cultura italiana, Antonio Gramsci (1891-1937), em sua obra

Literatura e vida nacional (1968), elenca uma série de questões advindas dessa problemática

pós-Risorgimento96 acerca da formação da cultura italiana moderna – em especial a separação

entre “intelectuais” e “povo”. Entre essas questões está a constatação de que, na Itália, inexiste

uma literatura popular em sentido estrito (romance de folhetim, de aventuras,

científicos, policial etc.) e “popularidade” persistente deste tipo de romance

traduzido de línguas estrangeiras, particularmente do francês; inexistência de

uma literatura para a infância. Na Itália, o romance popular de produção

nacional ou é anticlerical, ou é biografia de bandidos. Não obstante, há um

primado italiano no melodrama, que – em certo sentido – é o romance popular

musicado (GRAMSCI, 1968, p. 63).

confronto entre as várias realidades dialetais teve efeitos profundos no desenvolvimento da língua italiana;

enquanto uma função essencial, na elaboração de uma forma linguística “média”, eram os jornais as primeiras

formas de comunicação de massa. A mais ampla circulação social das formas linguísticas operou nas mais diversas

direções e, entre outras coisas, criou, especialmente no léxico, o novo mundo da tecnologia e dos objetos

industriais; e daí a difusão de uma linguagem suntuosa, áulica e retórica de massa (tão diferente da do classicismo

tradicional)” (FERRONI, 2012, p. 327, tradução nossa). 96 Para explicar a complexidade do significado do evento que representou o Risorgimento e suas implicações no

âmbito cultural, necessitar-se-ia bem mais do que uma simples nota de rodapé. De maneira bem concisa, pode-se

dizer que o Risorgimento foi o movimento político e social de unificação do Reino da Itália como estado moderno,

compreendendo entre os anos de 1815 a 1871. O período foi marcado por diversas batalhas, especialmente com o

intuito de libertação da dominação do Império Austríaco. Mas a verdadeira batalha, que de fato mudou a vida dos

italianos, foi interna. A península compreendia oito estados distintos, cada um com sua cultura, leis e tradições. O

sentimento de unificação crescia e a Itália teve três grandes conflitos que definiram os contornos da unificação,

protagonizados por inúmeras personagens que até hoje vivem de suas famas de heróis, revolucionários ou traidores

ao mesmo tempo, como Guiseppe Mazzini e Giuseppe Garibaldi.

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Nas notas agudas de Gramsci97, lê-se que a literatura italiana se alimentou de obras traduzidas

para compor a sua bibliografia do século XIX, especialmente para o leitor de romances

populares – de grande circulação e de fácil acesso. Nesse processo de unificação tardia – em

comparação a outros países europeus –, as manifestações folclóricas locais foram resgatadas

com o intuito de fomentar o espírito de nação. Criou-se, então, espaço para uma literatura

ufanista, que tendia a dar conta da problemática indivíduo versus nação (GRAMSCI, 1968, p.

64). Não por acaso, muitos escritores dedicaram grande parte de suas obras a esta discussão.

Podem ser citados o filósofo e linguista toscano Niccolò Tommaseo (1802-1874), responsável

pela edição do Dizionario della Lingua Italiana em oito volumes, o poeta satírico Giuseppe

Giusti (1809-1850), que viveu grande parte de sua vida em Florença e ficou conhecido pelos

poemas satíricos contra o Império Austríaco, e Giosuè Carducci (1835-1907), considerado o

“poeta oficial” da Itália moderna responsável por organizar em 1855 uma das obras mais

emblemática do período L’arpa del popolo: scelta di poemi religiosi, morali e patriotici, uma

coletânea de poemas toscanos e versos de Dante (ZAGO, 1988, p. 63). Junte-se nesse contexto

a literatura infantojuvenil que surgirá na Itália na segunda metade do Ottocento com mais ênfase

dentro de um programa educativo nacional – justamente por isso, de tendência pedagógica em

detrimento de uma identidade literária. Daí talvez surja o comentário radical de Gramsci sobre

a inexistência de uma “literatura para a infância”.

De fato, os países que incorporaram literaturas estrangeiras em momentos de definição cultural

e identitária só construíram uma produção literária original, que se podia chamar “nacional”,

tardiamente, como é o caso até do Brasil. O comentário de Gramsci, nesse sentido, é radical –

97 Um comentário apenas a título de registro e como curiosidade. Antonio Gramsci foi um dos mais célebres

intelectuais marxistas da Itália, crítico veemente do fascismo, o que causou sua prisão dos anos 1926 aos 1937.

Durante o período em que ficou preso, escreveu livros e cartas que expressam suas opiniões e revelam suas

reflexões acerca da relação intrínseca entre sociedade, política, arte, filosofia, um pensamento sistemático escrito

nas condições mais adversas, não apenas por se encontrar preso, como também por sua saúde debilitada, ao longo

dos anos. Tais escritos tornaram seu legado mais importante e deram origem a suas obras emblemáticas. Como

Literatura e vida nacional, usada como bibliografia neste trabalho, e Cartas do cárcere, uma coletânea de cartas

endereçadas a familiares e amigos, também de interesse geral. Publicadas primeiramente em 1947 de maneira

parcial, ao longo dos dez anos em que foram escritas, essas cartas constituem um rico material sobre a vida

intelectual e política da Itália fascista. O interesse aqui se volta para a carta do dia 27 de junho de 1932, cujo

destinatário era seu filho Delio, então com sete anos de idade, escrita na penitenciária de Turim. Nessa carta,

Gramsci faz um comentário sobre uma edição ilustrada de As aventuras de Pinóquio por Attilio Mussino: “Uma

edição ilustrada pelo pintor Attilio Musini existe mas, se bem me lembro, as ilustrações não são bem feitas, ou ao

menos não me agradaram tanto. Eu tinha formado, desde menino, uma imagem minha de Pinóquio e ver depois

uma materialização que era diferente daquela fantasia minha me indispunha e me revoltava” (Gramsci, 2015,

tradução nossa). Em uma outra carta, ainda da penitenciária de Turim, em 11 de junho de 1933, Gramsci cita

novamente o romance, desta vez dizendo que está enviando um exemplar “de Pinóquio, além da novela Rikki-

Tikki-Tavi, de Rudyard Kipling” (Gramsci, 2015, tradução nossa). E a última vez que o romance de Collodi foi

mencionado é em uma outra carta endereçada aos filhos perguntando se receberam o exemplar ilustrado do

romance e se gostaram das ilustrações.

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mas não menos verdadeiro – ao dizer que não existia uma literatura infantojuvenil italiana,

quando o que havia era uma produção influenciada por obras estrangeiras e traduções de livros

de outros idiomas. Outro autor que também defende essa linha de pensamento é Giuseppe

Fanciulli (1881-1951), pedagogo e escritor de livro para crianças. Em sua obra Scritori e libri

per l’infanzia, Fanciulli (1960) atribui um fator novo à tendência pedagógica italiana do século

XIX, para além do projeto educativo nacional. De acordo com Fanciulli, a grande enchente de

fábulas, ou “contos morais”, advindas sobretudo da França pelos textos de Charles Perrault,

serviram de inspiração para que os autores italianos pudessem começar suas próprias criações.

Os “racconti morali” italianos do Ottocento teriam, assim, uma origem na immitatio, na

imitação – e não exatamente na identidade da nova nação, corroborando, assim, a opinião de

Gramsci.

Para Fanciulli, o romance de Collodi compreende um segundo estágio da produção literária

italiana para crianças, cujo texto estaria mais comprometido com a arte e não tanto com o

aspecto educativo98. Essa visão bidimensional da questão (arte em oposição à pedagogia) em

As aventuras de Pinóquio, talvez se mostre um pouco redutora e simplista quando aplicada para

a análise do romance. Pois, como citado acima, Collodi aproveita a questão da política

educacional para questionar a representação de infância e, até mesmo, do homem como

cidadão. Por outro lado, a sensibilidade de Fanciulli no que diz respeito a separar em termos

qualitativos o escrito de Collodi em comparação a seus colegas escritores dedicados a produzir

livros voltados à alfabetização não deixa de estar correta.

Usualmente, a produção literária dedicada à cultura escolar tem raízes facilmente identificáveis.

A bibliografia sobre a história da literatura italiana é enfática ao afirmar que o número de

analfabetos da pós-unificação passava da metade da população italiana. Portanto, a reforma

escolar foi um dos programas mais almejados pelo novo Estado. A unificação do país não

estaria completa se não houvesse uma homogeneidade linguística entre os diversos

microcosmos culturais seculares, agora forçados a conviverem sob um denominador comum.

98 Escreve Fanciulli (1960, p. 22-23, tradução nossa): “Entre nós, embora os começos sejam atrasados pelas razões

já mencionadas, a linha de desenvolvimento é semelhante à que se seguiu na Alemanha. Em primeiro lugar, as

traduções e imitações de obras estrangeiras foram impostas, pertencentes aos ‘contos morais’; e então, quando a

produção de livros originais começou, a tendência pedagógica prevaleceu, tanto pelo hábito desses modelos quanto

pela urgência de ter que providenciar a educação renovada dos italianos, tendo em vista os novos tempos”. E,

ainda: “O Collodi (1826-1890), com seu famoso Aventuras de Pinóquio, abre um segundo período, no qual a arte

prevalece. O elemento educacional brilha e funciona apenas através de uma fantasia brincalhona, e às vezes parece

ter perdido tudo”.

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Começou, então, a grande reconstituição do plano educacional público nacional, que afetou

desde a divisão das séries por ano escolar até a grade conteudística99. O historiador Giulio

Ferroni, em sua Storia della letteratura italiana, chega a apontar o número de setenta por

cento100 de analfabetos em 1861:

A unificação do país colocou pela primeira vez em evidência o problema de

uma comunicação nacional: para ser fundado em uma língua comum não

apenas literária, mas praticável por todos os cidadãos, de todas as regiões e de

todas as classes sociais. Os obstáculos foram, no entanto, enormes e vieram

da secular diferenciação regional, da vitalidade dos dialetos (muitas vezes

adotados também na conversa das classes cultas), pelo fato de que o uso do

italiano como língua comum estava limitado quase que exclusivamente à

escrita, com um número muito elevado de analfabetos (que por volta de 1861

constituíam cerca de 70% da população, com concentração nas regiões do

Sul). Foi evidente de imediato para as novas classes dirigentes que a

alfabetização e a obtenção de uma homogeneidade linguística eram condições

essenciais para a construção de uma comunidade civil, assim como fizeram os

países mais modernos da Europa: e a estrutura básica para alcançar essas

condições foi identificada na escola, que, unificada nas formas e nos

programas, devia chegar a todo o território nacional e assegurar a todos os

cidadãos o acesso a ferramentas linguísticas comuns (FERRONI, 2012, p.

325, tradução nossa).

Um detalhe importante salta aos olhos do leitor atento. A citação de Ferroni indica que havia

uma expectativa de que tal unificação linguística pudesse favorecer a transformação da jovem

Itália no país “mais moderno da Europa”, por meio da reforma escolar. Como se a proposta

educacional fosse não apenas responsável por unificar culturalmente o país, mas também pelo

progresso e desenvolvimento, vendo-se a escola como instrumento civil.

A obra As aventuras de Pinóquio, publicada vinte anos depois da estatística descrita acima, é

considerada um dos primeiros romances modernos da literatura italiana. Porém, justamente em

sua narrativa, Collodi resgata a Itália agrária, pobre e, de alguma maneira, frágil, na qual a

infância para crianças nessas condições estava longe de ser uma fase idílica da vida. O boneco

de madeira experimenta a violência do mundo “real” – traição, quase morte (quando é

enforcado) abuso, assédio moral, força bruta, intransigência da autoridade –, reapresentando ao

leitor “pequeno-burguês” de sua época uma Itália que não deve servir de modelo101.

99 Que não fique esquecido o comentário famoso do escritor Massimo d’Azzeglio: “Agora que fizemos a Itália,

precisamos fazer italianos” (ZAGO, 1988, 63, tradução nossa). 100 Mariella Colin (2002a, p. 507) acrescenta que, além da porcentagem de analfabetismo, apenas 600 mil pessoas,

de um total de 26 milhões, eram falantes de “italiano”, sendo os demais falantes de diversos dialetos. 101 “Esta obra-prima parece oferecer à nova Itália o legado fantástico de um mundo arcaico no qual a infância não

era uma ilha feliz, mas um espaço de sofrimento e miséria, de difícil luta pela vida, de primeiro confronto com

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Um dos críticos italianos mais citados em relação ao estudo da obra de Pinóquio, Luigi

Volpicelli (1963), em seu ensaio La veritá su Pinocchio: e saggio sul “Cuore” (1954) propõe

uma interpretação um tanto quanto ousada – e até mesmo duvidável – sobre a representação da

infância pobre na obra-prima de Collodi. Para Volpicelli, Pinóquio representa o “espírito da

pós-unificação”, que compreende o esforço e a dedicação patrióticos para construir algo grande

partindo do nada, em busca de uma “harmonia social”. Nas palavras de Volpicelli:

É com base em uma moral encontrada no fundo da própria alma nacional, com

o apoio dos provérbios, das fábulas, do costume próprio e também da

esperança própria, que se aponta para uma nova sociedade. Em Pinóquio

ressoa o espírito mais característico da Itália do pós-Risorgimento, com sua

“honestidade” e seu “senso para poupar” do “trabalho”, com sua “parcimônia”

e “sobriedade”, com sua dedicação aos filhos, com seu desejo de construir a

partir do nada, daquele nada do qual os primeiros se afastaram e partiram, uma

existência serena de trabalho e harmonia social (VOLPICELLI, 1963, p. 109,

tradução nossa).

Apesar de Collodi ter grande admiração pela cultura italiana e, por isso, todo o interesse em

manifestá-la de modo original, como faz em diversos exemplos de suas obras, ainda está em

discussão, mesmo após tantos anos de estudos dedicados a decifrar o romance, a verdadeira

intenção “patriótica” do autor. A visão de Volpicelli sobre Pinóquio aproxima a obra de Collodi

a um espírito positivo em relação às novas políticas impostas pelo Estado, especialmente para

essa população carente de estudo. Essa interpretação, porém, pode ser refutada a partir da

própria leitura dos acontecimentos do romance, especialmente os trechos dedicados a

demonstrar a relação entre Pinóquio e o estudo.

Assim, a problemática da educação é um dos temas estruturantes do romance picaresco102 As

aventuras de Pinóquio. O objetivo do boneco de madeira é o de se tornar um “menino de bem”,

um “menino de verdade”. Para isso, a regra imposta ao protagonista no universo do romance é

ir à escola e estudar, transformar-se em alguém que possa contribuir com essa Itália que quer

inquietação e terrores: e o livro também deve o seu charme ao fato de que rejeita toda imagem açucarada do mundo

da criança. Seu ritmo narrativo vivo e animado, sua carga comunicativa, presente nos momentos mais visionários,

repousa em uma prosa simples e cordial, em um florentino ágil e concreto, feito de coisas e objetos, longe do

assédio dos modelos ‘manzonianos’” (FERRONI, 2012, p. 419, tradução nossa). 102 De acordo com Massaud Moisés (2013, p. 361), o romance picaresco, ou novela picaresca, advém

etmologicamente de Räuberroman. O termo alude ao tipo de personagem pícaro, aquele que mente, que é

vagabundo e vicioso. De maneira geral, o personagem nasce em uma família pobre e, por uma série de peripécias,

vê-se envolvido com pessoas de má índole e participa de brincadeiras de mau gosto, sempre distante de atitudes

virtuosas como o trabalho. Alguns exemplos da literatura são os titereiros, ciganos, mascates, que promovem jogos

e brincadeiras de azar. A primeira referência literária ao picaresco remonta à Vida de Lazarillo de Tormes (1554).

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se modernizar. Tal é o leitmotiv para a jornada do protagonista. Porém, Pinóquio não é qualquer

herói – ou pelo menos, não o herói ideal – e, como se viu no começo deste capítulo, falha

constantemente em seguir a jornada que o leve linearmente à sua transformação em ser humano.

Ora, há algo de pedagógico 103 nessa estrutura repetitiva. Por outro lado, a personagem

transgride essa expectativa, como que se recusando a ser o modelo do herói bem-sucedido.

Pinóquio, nesse sentido, associa-se ao anti-herói dentro de uma longa tradição do romance

picaresco. O boneco seria um trickster, de acordo com Meletínski (1998)104. A esta tradição

associam-se os bufões e todos aqueles que se desviam do curso nobre da trajetória do herói, até

caírem no ridículo. Porém, aqui não se trata mais de “baixa literatura”, uma vez que o romance

como forma abarca este tema, como já visto nos dois capítulos anteriores. Ainda assim, o

percurso do anti-herói – ou trickster – mantém a característica do epos medieval, uma vez que,

por mais cômico que seja, o percurso final da viagem culmina na transformação do personagem

em herói, momento em que ele se liberta da infantilidade e amadurece105.

Nesse sentido, a situação de inferioridade social ou a situação miserável não apenas de Pinóquio

e Geppetto, mas também das personagens que aparecem ao longo da narrativa – como o

Arlequim, o Gato e a Raposa (no núcleo dos ladrões), o pescador, Pavio (que está sentado no

alpendre da casa de camponeses), o comprador do burrico –, é totalmente justificada. A

pobreza, a fome e a miséria aparecem como pano de fundo em todos os conflitos vividos pelo

boneco. Não por acaso, a palavra “pobre” (em italiano, “povero”), é repetida 139 vezes ao longo

do romance (COLIN, 2002b). Quanto a isso, Meletínski (1998, p. 104) localiza essa estrutura

na tradição literária:

Tanto no romance arcaico quanto no picaresco a fome é impulso da

trapaça, só que, enquanto nos mitos sobre os tricksters e nos contos de animais

103 Ferroni (2012, p. 418, tradução nossa) defende a qualidade de romance de formação de As aventuras de

Pinóquio por meio do exemplo negativo do boneco de madeira: “Orientada no sentido pedagógico, é a mesma

história da marionete de madeira, que transgride continuamente seus deveres para com o ‘papai’ Geppetto, que

não escuta as sábias recomendações do Grilo Falante, que se deixa enganar por maus companheiros, mas depois,

após tantas experiências negativas, se coloca, graças ao conselho da Fada dos Cabelos Turquesa, no difícil caminho

do estudo e do trabalho, para então sair do status de fantoche de madeira e se transformar em uma criança ‘de

verdade’: parece estar diante de um pequeno romance de formação e educação, com o objetivo de mostrar que se

pode encontrar e adquirir uma identidade social positiva, quando se supera a imprudência da marionete que existe

em cada um de nós, comprometendo-se no trabalho e respeito pela ordem e papel social”. 104 “A utilização da astúcia para a realização de ações ‘culturais’ criativas existiu desde o início (devido à

indiferenciação da magia, da astúcia e de outros meios), enquanto os atos notoriamente traquinas, em geral

egoísticos (e que, além disso, parodiam os atos sérios do xamã), teriam surgido mais tarde como uma espécie de

respiradouros, de manifestações ‘carnavalescas’. Na parte oriental da América do Norte o herói cultural digno ou

nobre e o trickster travesso e moleque estão separados” (Meletínski, 1998, p. 94). 105 Em Pinóquio este momento é metaforizado pela transformação do boneco de madeira em menino, na versão

definitiva do romance de 1883.

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a fome motiva ações isoladas, naquele último ela e, em geral, a miséria e a

necessidade tornam-se a motivação material para a formação do caráter do

herói, que vive em um mundo cruel, injusto e desarmonioso. O caminho da

trapaça no romance é, em parte, predeterminado pela própria situação de

inferioridade social do herói.

No romance picaresco, o arquétipo do trickster, reatualizado numa

situação de desagregação dos laços patriarcais, é introduzido no âmbito da

narrativa de costumes autenticamente satírica (e não apenas humorística ou

cômica, tal como era considerada universalmente pela tradição) e ingressa na

grande forma romanesca. Neste sentido, o romance picaresco é também

antípoda do romance de cavalaria; no seu gênero acaba sendo um

antirromance, embora (com exceção de Dom Quixote) não parodie o romance

de cavalaria.

A situação de inferioridade social de Pinóquio é estratégica neste romance picaresco — ou

antirromance – à medida que justifica os sacrifícios de Geppetto e algumas atitudes de Pinóquio

para comer e se vestir e, sobretudo, para representar a necessidade de Pinóquio de frequentar a

escola. Não seria a primeira vez que Collodi se dirige ao seu público acerca da temática escolar.

Giannettino, escrito em 1877, já fazia parte deste que se tornou o subgênero da literatura

infantojuvenil chamado de “romance escolar”. Outros sete livros sobre o menino Giannettino

na literatura de Collodi viriam a ser publicados até o ano 1890. A intenção das obras era

percorrer a Itália em um grande viagem de maneira que Giannettino aprendesse as

particularidades de cada região italiana.

A representação da infância no antirromance As aventuras de Pinóquio, portanto, difere

categoricamente daquela dos anos precedentes da literatura italiana e também da europeia: a do

menino obediente e solícito. E exatamente por seu caráter transgressor e humorístico, faz com

que o leitor se identifique e aprenda pelo riso. Trata-se de um aprendizado pela leitura, porém,

que se manifesta muito mais pelo caráter literário da obra do que por um dogmatismo – que,

em muitos casos afasta o leitor de qualquer idade. Nesse sentido, o romance propõe uma relação

mais livre entre os leitores e a narrativa, que não é pelo aprisionamento, mas sim pela conquista.

Uma conquista cujo exemplo não está na boa ação, mas sim no erro – de onde advém o caráter

tragicômico106. Um bom trecho do romance que exemplifica esse comportamento tragicômico

106 “A verdade de Pinóquio ressoa, sobretudo, e isso é o que mais importa, em sua representação moral. Pinóquio

é um menino que se opõe aos meninos da literatura infantojuvenil anterior, mesmo os melhores, que todos tinham

em si algo de uniforme, um bem necessário, esquemático, obediente a um cânone pedagógico. O caminho para

Pinóquio é aberto por Giannettino; mas se alguém observa como este menino se transforma rapidamente e se

submete à vigilância e aos ensinamentos do professor Dr. Boccadoro, nota-se qualquer coisa tradicional, uma certa

pressa de Collodi para chegar a esse estado de bem que era a ubi consistam da literatura infantojuvenil. Giannettino

é um livro que, antes de tudo, é instrutivo, depois educativo. Pinóquio, em vez disso, é um livro unicamente e

sobretudo educativo. Não pretendia, além disso, ser adotado como um texto subsidiário das escolas; deve ter sido

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de Pinóquio é, ainda no evento da sua estadia no País dos Folguedos, quando o boneco começa

a se transformar em burrico e vai visitar o amigo Pavio para saber se tal sorte também o tinha

acometido. Para a surpresa de Pinóquio, Pavio abre a porta usando também um gorro

supostamente para disfarçar as orelhas de burro. Dá-se, então, o seguinte diálogo:

Finalmente o boneco, com uma vozinha melosa e flautada, disse ao

companheiro:

— Desculpe a curiosidade, meu caro Pavio, mas você já sofreu alguma

vez de dor de ouvido?

— Nunca!… e você?

— Nunca! Porém hoje pela manhã comecei a sentir um dor no ouvido.

— Também senti a mesma coisa.

— Você também?… E qual o ouvido que lhe dói?

— Os dois. E em você?

— Os dois também. Será a mesma doença?

— Tenho medo que seja.

— Quer me fazer um favor, amigo Pavio?

— Claro! Com muito gosto!

— Deixe-me ver seus ouvidos?

— Por que não? Mas, antes, quero ver os seus, meu caro Pinóquio.

— Não: o primeiro deve ser você.

— Não, meu caro! Primeiro você e depois eu.

— Pois bem – disse então o boneco –, vamos fazer um trato como bons

amigos.

— Que espécie de trato?

— Vamos tirar juntos os gorros ao mesmo tempo: topa?

— Topo.

— Então, vamos lá! – E Pinóquio começou a contar em voz alta: —

Um! dois! três!

À palavra três, os dois meninos tiraram os gorros da cabeça e os

atiraram para o ar.

E então ocorreu uma cena que pareceria incrível se não fosse verdade.

Ou seja, ocorreu que Pinóquio e Pavio, quando se viram ambos sofrendo da

mesma moléstia, em vez de ficarem mortificados e lamentosos, começaram a

abanar suas orelhas desmesuradamente crescidas e, depois de mil molecagens,

acabaram por dar uma bela risada (COLLODI, 2012, p. 285-286).

Mesmo nesta horrenda situação, Pinóquio e o amigo não perdem a oportunidade de rirem de si

mesmos, reconhecendo o momento ridículo e patético no qual ambos se encontravam. Da

promessa de se tornar um menino, o destino de Pinóquio acaba no caminho oposto, a

animalização, não sem antes brincar com esse trágico acontecimento, fazendo valer sua

essência de brinquedo. Para o leitor, surge a oportunidade de reconhecer os erros pelo riso,

aliviando a tensão e a seriedade do fracasso, permitindo que também a derrota se manifeste

neste anti-herói.

apenas uma literatura agradável. E Collodi para essa liberdade fez uma obra de arte” (MICHIELI, 1993, p. 94,

tradução nossa).

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Retomando a problemática escolar, a relação que se estabelece, neste caminho interpretativo da

obra, entre o episódio descrito acima e o novo sistema educacional italiano é de sátira. Uma

plausível estratégia de Collodi ao criar o romance-fábula é distanciar-se do projeto nacional

educativo à medida que critica com humor um sistema que encoraja os alunos a decorar

conteúdos, a serem infalíveis, e não permite espaço para brincadeiras107. Mas nem todos os

heróis dos romances escolares são dotados de humor, assim como nem Giannettino nem

Pinóquio foram os únicos a enfrentar o monumento que se tornou a questão da escola para a

infância na Itália. Tantos outros, como Giannetto (1837), de Luigi Alessandro Parravicini,

Memorie di un pulcino (1875), de Ida Baccini – citado no romance no capítulo XXVII –, e, o

mais emblemático de todos, Coração: um livro para jovens (2011), de Edmondo De Amicis,

se tornaram leituras obrigatórias para as crianças e os adolescentes assimilarem o novo “código

moral” que seria esperado deles, ao menos no microespaço social escolar.

Muitos dos autores desses romances escolares eram os denominados scrittori-pedagogi, como

visto no primeiro capítulo deste trabalho: professores ou até mesmo padres contratados para

escreverem histórias sobre a vida escolar das crianças e adolescentes. Como consequência, os

valores que classificavam um bom livro italiano para a infância eram a virtude, a obediência, a

submissão e o sentimento patriótico. Em muitos casos, pelo título já se podia inferir a intenção

da obra: Buon senso e buon cuore (Bom senso e bom coração, 1872) e Racconti aula buona

(Contos para sala de aula, 1888), ambos de Cesare Cantù, além de Esempi di bontà (Exemplos

de bondade, 1844), de Mario Basari. Tais obras reforçavam a ideia do “uomo nuovo”, ou seja,

do “homem novo” do Risorgimento, em um movimento que alguns críticos chegam a classificar

de “propagandístico”108.

O livro mais categórico desse período de final do século XIX, o que melhor representa o

romance escolar como subgênero dentro da proposta de unificação cultural da Itália, é o escrito

por De Amicis, Coração. Aos olhos do leitor de hoje, a narrativa parece que ficou restrita ao

107 Esta interpretação parcial sobre o livro de Collodi não é consenso de crítica. A leitura mais corrente propõe que

Collodi de fato escreveu Pinóquio com um sentimento educativo. Como, por exemplo, Nelly Novaes Coelho

(1998, p. 82) “Pinóquio é transforma o mágico em instrumento do racional e faz do seu livro um excelente e alegre

manual de conduta para os pequenos leitores da sociedade progressista em ascensão”. 108 “Novos homens surgem para a conquista da liberdade. Os escritores desta época são propagandistas da ideia:

da caneta à espada; dos estudos a conspirações. Os filósofos também lidam com a pedagogia: Rosmini,

Lambruschini, Gioberti, Cappino voltam seus pensamentos para a infância. Todo mundo entende que, se a

propaganda entre os adultos atender às necessidades mais urgentes, uma consciência constante e duradoura de uma

nação livre e independente é formada apenas com uma nova educação da juventude” (MICHIELI, 1941, p. 45,

tradução nossa).

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seu tempo, tamanho o seu compromisso com o fato presente e sua linguagem emotiva e

exagerada. Por essa mesma razão, guarda informações preciosas para a compreensão do

Zeitgeist (espírito do tempo). Em Coração, o leitor acompanha a jornada do menino Enrico

pelo que seria denominado na época o “primeiro grau” – entre os nove e treze anos de idade –,

a partir de seu diário escolar. Por meio do livro, compreende-se a divisão das disciplinas, os

horários que regem a rotina das aulas, a arquitetura da escola que espelha sua estrutura

organizacional, as novas responsabilidades que se esperam das crianças nessa fase escolar

(como maior independência dos professores) e também as novas responsabilidades da família

que acompanha o desenvolvimento de seus filhos. Nesse sentido, Coração destaca-se das outras

obras por ser quase um manual da nova escola italiana. No entanto, um dos elementos

estratégicos da narrativa que mais salta aos olhos do leitor é o esforço em dar voz a diversos

personagens advindos de todas as partes da Itália. Com este recurso, o autor demonstra que a

escola é para todos – inclusive para aqueles com poucos recursos –, independentemente de suas

origens. Há o garoto calabrês, o filho do ferreiro, o filho do vendedor de lenha que foi soldado,

o filho do pedreiro, o filho da verdureira. Os personagens ricos e pobres, advindos do Sul ou

do Norte, em Coração, convivem em um mesmo ambiente, aprendem a mesma lição, têm as

mesmas oportunidades dentro da escola. O elemento que os distingue não é a posição social

que cada um ocupa, mas sim seus valores morais, suas capacidades de discernir entre o certo e

o errado. Desta maneira, a distinção entre os alunos e alunas é feita entre os “melhores” e os

“piores”, sendo que os primeiros serão recompensados pelo seu trabalho árduo e comprometido,

enquanto que os outros serão alvo de punições, uma demonstração moral sobre o valor do

trabalho.

Criticado posteriormente de maneira feroz por Umberto Eco e Benedetto Croce, Coração

também não passou incólume pelo crivo da Igreja Católica ou mesmo do Fascismo. A primeira

acusa o autor de não ter incluído nenhuma cena ou momento em que se faz menção ao

Catolicismo109; o segundo, por sua vez, de o autor não ter deixado mais claro o programa

fascista na narrativa. Por outro lado, o livro foi considerado positivo pelos comunistas,

justamente por dar espaço para personagens que representam a classe trabalhadora.

De acordo com Antonio Faeti, no posfácio exclusivo para a edição brasileira de Coração (DE

AMICIS, 2011, p. 335-342), o projeto do autor com esse livro se resumia a duas intenções:

109 “A orientação para a nova escola italiana era, sobretudo, católica. A Igreja participou da reforma do programa

escolar de maneira direta” (FERRONI, 2012, p. 325).

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“Lançar um desafio duro contra um sistema corrupto” e resgatar a áurea do exército italiano –

visível nas inúmeras menções a soldados e outros personagens que representam heróis e

combatentes de guerra, assim como também foi De Amicis. Talvez essa seja uma das maiores

diferenças entre a representação escolar de Pinóquio e Coração: trazer para o público leitor a

gravidade e a seriedade da luta por uma Itália única e para todos. O próprio Faeti (p. 338-339),

ainda no posfácio da edição brasileira, ressalta essa qualidade de Coração em comparação aos

outros romances escolares da época:

Depois do Pulcino, de Baccini, e do Minuzzolo (1877), de Collodi, em

Coração vai se encontrar não mais animaizinhos metafóricos e conhecedores

da grande tradição de Esopo ou os moleques incontroláveis das praças

fiorentinas, mas sim os pequenos pedreiros, os filhos dos marceneiros, garotos

obrigados a ficar na loja quando deveriam estar indo à escola.

Porém, é preciso sublinhar que De Amicis não é um “realista” e

tampouco um “naturalista”, mesmo quando relata, em Primo Maggio

[Primeiro de Maio, 1980] ou no ensaio Lotte civili [Lutas civis, 1901], o

contraste duríssimo que, na Itália recém-unificada, opõe operários a patrões.

Ele não é um seguidor de Zola e sequer absorve a lição de Giovanni Verga.

Possui um modo próprio de contar em que a obra lírica e até o cinema, nos

últimos escritos, desempenham papel fundamental.

Diz mais Faeti (2011, p. 340-341):

[De Amicis] sabe perfeitamente bem ao que se lança, em 1886, ao publicar

um “livro de texto” a ser usado nas escolas, um livro que terá de confrontar os

diabinhos da Condessa de Ségur, as mulherzinhas, Remigio passeando pela

França sem o constrangimento de uma família, o pequeno Lorde, Alice e o

capitão de quinze anos de seu ídolo francês.

As diferenças mais visíveis entre Coração e As aventuras de Pinóquio são, primeiramente, o

caráter fantástico do segundo, em detrimento da descrição realista do primeiro. Porém, a

fantasia em Pinóquio tem a função de criar um contraste entre o universo do boneco e do menino

que ele deseja ser – e que, a todo momento, se confundem. O mundo fantástico, dessa maneira,

representa tanto o caminho que o boneco tem que percorrer para se humanizar quanto a

possibilidade de permanecer no universo das experiências únicas110. A outra diferença entre os

dois romances que se pode levantar advém justamente deste posicionamento. Ao corroborar a

ideia de que Pinóquio é um personagem complexo, atormentado por questões mais próximas

de uma dúvida existencial – permanecer boneco ou tornar-se um menino –, o boneco

110 “A dialética concretude-fantasia das Aventuras como a conclusão que essa prepara no convulsivo e no suspense

da estrutura da história, se desenrola e se resolve na vivência da humanização da marionete que só pode se realizar

quando Pinóquio aceita, mas de forma consciente e pessoal, o mundo exterior natural e social; para dizer isso com

Dewey, quando Pinóquio aprendeu com sua própria experiência, mas também melhorou. Portanto, uma situação

educacional exemplar, esta de Pinóquio, entre adaptação e desenvolvimento” (FAVORINI, 1980, p. 126, tradução

nossa).

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automaticamente se diferencia em muito dos personagens de Coração, que são passivos diante

das circunstâncias e representam uma fotografia do momento presente. Nesse sentido, o aspecto

“realista” do romance de De Amicis causa um maior distanciamento, no leitor, dos “reais”

conflitos da alma humana, enquanto que a fantasia em Collodi cria uma ponte sensível em

direção à conscientização do caráter dúbio da natureza humana111.

3.2 Gêneros literários e fontes presentes em As aventuras de Pinóquio

São inúmeros os “animaizinhos metafóricos” que Faeti menciona estarem presentes em As

aventuras de Pinóquio. Comparado a Coração, o romance de Collodi opta por uma estratégia

menos evidente para traduzir ao leitor o contexto político de construção de uma moral nacional

e coletiva. Com agendas absolutamente diferentes, Collodi cria um romance bricolage, ou seja,

reúne referências de outros gêneros da literatura dita para crianças para sua composição do

quadro geral da narrativa. Não por acaso, As aventuras de Pinóquio em muitos casos também

é considerado conto de fada, fábula e até mesmo conto fantástico112. Os exemplos em Pinóquio

de situações, falas e estruturas que lembram cantigas folclóricas não são raros. No trecho do

romance analisado neste trabalho, pode-se destacar a canção do carroceiro que leva as crianças

para o País dos Folguedos, que versa da seguinte maneira: “Todos dormem à noite / mas eu não

durmo jamais” (COLLODI, 2012, p. 273); é uma referência a tantos personagens folclóricos

que caçam crianças à noite nas ruas, especialmente aquelas que não obedecem a seus pais – a

exemplo do já citado Homem do Saco. Também chamam a atenção os provérbios citados no

romance, especialmente pelos personagens adultos que querem transmitir alguma mensagem

para o boneco de madeira – boa ou ruim. Tais provérbios lembram a moral presente nos contos

111 Novamente podemos recorrer aos escritos de Fanciulli (1960, p. 86, tradução nossa) no que tange à discussão

do duplo caráter de Pinóquio e do romance de maneira geral acerca da função da fantasia no romance: “Essa

mesma rapidez permite uma interpenetração mais fácil do real e do fantástico. Tome para considerar Pinóquio a

partir deste ponto de vista e não será capaz de discernir onde a marionete termina e o menino começa: fusão esta

que é o mais valioso neste tipo de arte. O autor conseguiu construir uma estrutura de realidade leve e ainda sólida,

e por meio dela a fantasia floresce, a fim de apresentar muitos outros personagens misteriosamente ambíguos em

segundo plano e, no entanto, tão claros e firmes em aparência: o Grilo Falante, a Menina dos Cabelos Turquesa, o

Pescador verde, a Raposa e o Gato. E o que é dito para os tipos se aplica à Menina, do País dos Beócios à casa da

Menina, ao País dos Folguedos”. 112 Como para Anna Maria Favorini (1980, p. 17, tradução nossa): “Pinóquio não é um conto de fada como

qualquer outro, tem sua própria natureza singular, precisamente por seu equilíbrio quase perfeito entre o mundo

quimérico da inventividade pura e o da humilde realidade cotidiana, com seus problemas, suas dificuldades. Isso

dá a medida da natureza toscana de Lorenzini e reflete o ambiente histórico-cultural em que se escreveu a fábula,

a segunda metade do século passado, caracterizada pela corrente estético-romântica”.

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de fada, especialmente os de Perrault e La Fontaine. Tal fala com conotação educativa pode ser

notada, por exemplo, no discurso da Fada: “os meninos que não dão ouvidos àqueles que sabem

mais que eles vão sempre ao encontro de alguma desgraça” (COLLODI, 2012, p. 258); ou então

no aviso do burrico que puxava a carroça no qual Pinóquio montou para ir ao País dos

Folguedos: “Lembre-se disso, seu pateta! Os meninos que deixam de estudar e voltam as costas

para os livros, para a escola e os professores, para se entregarem inteiramente aos brinquedos e

[às] diversões, não podem ter senão um fim miserável” (COLLODI, 2012, p. 274).

Outro exemplo de presença da estrutura narrativa folclórica no romance pode ser verificada

quando o narrador solicita a participação do leitor na construção da narrativa, especialmente o

menino, lembrando muito o tom de oralidade dos textos populares, como nos trechos: “E a

surpresa qual foi? Eu lhes direi meus caros e jovens leitores” (COLLODI, 2012, p. 280) e ainda

“Vocês sabem que o boneco, desde que nasceu, tinha umas orelhas muito pequeninas […]”

(COLLODI, 2012, p. 280). Ou ainda, episódios muito semelhantes a textos populares bastante

conhecidos, como quando o cocheiro bate à porta da casa de Pavio para levá-los embora,

bastante similar à fábula de Os três porquinhos113: “Neste momento, bateram à porta, e uma

voz de fora lhes disse: — Abram! Sou o Homenzinho, o cocheiro que os trouxe a este país.

Abram logo, senão vocês vão ver!” (COLLODI, 2012, p. 288).

Tais subgêneros eram familiares a Collodi pelas suas experiências como tradutor. Um dos

primeiros trabalhos que o autor realizou no âmbito da literatura infantil foi a tradução dos contos

de Charles Perrault (1628-1703), Mme d’Aulnoy e Mme Leprince de Beaumont. Esse trabalho

originou-se de um convite de seu amigo e editor Sandro Paggi que, com seu irmão Felice,

possuía uma livraria e uma editora em Florença114. Paggi, atento às demandas de mercado por

livros estrangeiros, especialmente os franceses115 – e aqui vale a pena retomar o comentário

113 O conto dos três porquinhos se popularizou na Europa no começo do século XX com a edição proposta pelo

australiano radicado na Inglaterra Joseph Jacobs. Porém, a história de fato já aparecia em diversas coletâneas de

fábulas. 114 A título de curiosidade, os irmãos Paggi foram responsáveis pela publicação de Memorie d’un pulcino, de Ida

Baccini (1875), considerado um dos poucos romances italianos verdadeiros escritos para as crianças no século

XIX, mas que não acrescenta quase nada para o desenvolvimento intelectual e criativo dos leitores, além de As

aventuras de Pinóquio, que também será publicado pelos mesmos editores em forma de romance (COLIN, 2002a,

p. 509). Dos dois irmãos era Sandro Paggi o editor que reconhecia a importância - e a oportunidade mercadológica

- de fomentar o mercado editorial de livros infantojuvenis com viés escolar. Sua livraria Felice Paggi Librario -

Editore em Florença, era referência para a compra de material didático e escolar, além de obras francesas e alemãs

(SALVIATI e CECCONI, 2007, p. 94) 115 Um pequeno close no mercado editorial italiano da época revela os livros europeus que já eram traduzidos para

o italiano ou, ao menos, tinham versões acessíveis para o leitor, sendo a literatura francesa a mais difundida. Da

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crítico de Gramsci acerca do interesse do público leitor por obras estrangeiras, causando grande

influência na produção literária italiana do século XIX –, encomenda a Collodi, que era exímio

falante do francês, a tradução dos contos de Perrault mais quatro contos de Mme d’Aulnoy e de

dois contos de Mme Leprince Beaumont para uma edição que viria a ser publicada sob o título

Il racconti delle fate, em 1876 (ZAGO, 1988, p. 61 e SALVIATI; CECCONI, 2007, p. 95). Os

contos de fada e as fábulas se tornaram objetos atraentes para o mercado editorial italiano da

época, não apenas pelo interesse do público leitor, mas também pelo caráter moral e de

instrução que esses subgêneros adquiriram, especialmente na França dos séculos XVII e XVIII

que traziam a moralité116. Nesse sentido, tais contos se encaixavam perfeitamente na nova

ordem educacional surgida no Risorgimento: ofereciam textos de qualidade literária, educativos

e de linguagem fácil para a população iletrada.

As traduções das fábulas e dos contos de fada feitas por Collodi trazem aspectos reveladores

para compreender as escolhas linguísticas do autor na construção do romance As aventuras de

Pinóquio. Interessante notar, por exemplo, que a fábula de Perrault Os três desejos ridículos,

que contém uma personagem cujo nariz cresce, foi omitida da seleção de sua tradução, assim

como todas as escritas em verso, com exceção de Pele de asno, que sofreu mudanças

significativas de modo a atenuar o incesto e outras passagens mais violentas que poderiam gerar

desconforto no leitor, dando um caráter mais melodramático ao conto. Neste quesito, é notável

como Collodi alterou não apenas o estilo dos textos originais, como se buscasse sua própria

linguagem de escrita, mas também a ordem da narrativa, a simplificação da trama, criando

suspense e atribuindo um humor irônico às cenas, como estratégias de escrita que não estão

presentes nos textos franceses. A pesquisadora Ester Zago (1988, p. 65, tradução nossa) faz

uma minuciosa comparação entre os textos originais e a tradução de Collodi, constatando que:

Em Pele de asno, mais do que em qualquer outra tradução, Collodi usa

a fórmula da linguagem típica das técnicas narrativas dos contos folclóricos,

literatura francesa, os leitores achavam disponíveis La bblioteca dei fanciulli (versão italiana de Le magasin des

enfants, de Mme Leprince de Beaumont), Il teatro ad uso delle fanciulle (também a versão italiana para a obra

francesa Théâtre à l’usage des jeunes personnes, de Mme de Genlis) e L’amico dei fanciulli (L’Amie des enfats,

Armand Berquin). Das obras pertencentes à língua inglesa, podia-se encontrar Ivanhoe (Ivanhoé, de Walter Scott),

L’ultimo dei mohicani (O último dos moicanos, de Fenimore Cooper), Oliver Twist e Le memorie di David

Copperfield (David Copperfield, de Charles Dickens), além de La capanna dello zio Tomaso ou La schiavitù (A

cabana do pai Tomás, de Harriet Beecher Stowe), além de obras importantes publicadas ao mesmo tempo de seus

países de origem, como L’Isola del Tesoro (A Ilha do Tesouro, 1883) de R. L. Stevenson e Un piccolo lord (Little

Lord Fauntleroy, 1887), de F. Burnett. Essas obras representavam um tipo de publicação distinto daqueles voltados

essencialmente para o universo escolar (COLIN, 2002a, p. 511-512). 116 Importante dizer que Colin (2002a, p. 509) refuta essa ideia. Justamente pela exigência de uma rigidez quanto

à moral do sistema educacional, na visão de Colin, tais textos como contos de fada e folclóricos eram rejeitados

pelas escolas por provocarem a imaginação das crianças. As duas ideias, porém, não necessariamente são

antagônicas, uma vez que se faz necessário considerar dois ambientes: o escolar e o de mercado.

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e com isso acentua a presença do narrador e, como resultado, realça a

oralidade da narrativa. Igualmente, ouvintes e leitores são atraídos para o

texto e convidados a participar do desenvolvimento dos eventos.

De acordo com a argumentação da pesquisadora, as mudanças no texto feitas por Collodi não

tinham como intenção censurar a versão original, mas, sim, aproximá-la de uma intenção de

linguagem mais próxima ao leitor italiano. A pesquisadora vai ainda mais longe ao aprofundar

sua argumentação em relação ao uso das narrativas dos contos folclórios. O uso do dialeto

toscano, na opinião de Zago, justificaria as apropriações de Collodi nas traduções das fábulas e

dos contos de fada, sugerindo que a estratégia do autor era aproximá-las dos contos folclóricos

italianos, ao invés de realizar apenas uma simples tradução do francês:

Se histórias escritas em uma língua estrangeira tivessem que ser

traduzidas para contos “folclóricos”, não bastaria para o tradutor moldar sua

língua face às exigências do gênero com o qual estava trabalhando. Aquela

língua teria que ter o ritmo da fala coloquial e, para Collodi, isso significava

um italiano vestido com as cores toscanas. A poesia de Perrault deveria ser

tingida e domesticada na prosa revelada de Pele de asno; o conto de fada teria

que ser transformado em conto folclórico. Os toques toscanos,

particularmente na forma de provérbios e comparações que Collodi teceu em

sua tradução, evocam “a voz do povo”. E, como resultado dos esforços de

Collodi, essa voz veio à tona (ZAGO, 1988, p. 66, tradução nossa).

A crítica parece corroborar o fato de Collodi “colorir” tanto seus textos quanto as traduções,

em prol de uma linguagem italiana, elegendo o toscano como referência tanto no âmbito

linguístico como no cultural. Quem também segue essa linha de raciocínio – a de que As

aventuras de Pinóquio não é um romance que se propõe a ser educativo – é o crítico norte-

americano Jack Zipes, bastante reconhecido por seus trabalhos no campo das fábulas e dos

contos de fada. A pesquisa de Zipes traz, no entanto, diferenças capitais. No capítulo “Carlo

Collodi’s Pinocchio as tragic-comic fairy tale”, da obra When dreams came true: classical fairy

tales and their tradition (ZIPES, 2007), o autor problematiza a ideia de que Collodi tinha

predileção pela forma do conto de fada por ser o gênero que mais expressava a necessidade de

uma literatura pedagógica, pensamento corrente da época, como já foi mencionado. De fato,

uma primeira leitura do romance poderia indicar que Pinóquio recebe inúmeras chances para

se redimir de seus atos e seguir o caminho do “menino bom”. E, como também já foi citado no

começo deste trabalho, a estrutura narrativa do romance de tendência circular repete a situação

de recusa-aventura-punição-arrependimento-aprendizado diversas vezes. A leitura de Zipes,

porém, desconfia da repetição excessiva em prol de um argumento educativo, dada a complexa

qualidade da prosa de Collodi, que dosa humor, ironia e tragédia. A estratégia de Collodi, na

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visão de Zipes, abre uma discussão da própria estrutura do gênero conto de fada que, em geral,

opta pelo otimismo e pelo final feliz. Neste caminho, poder-se-ia desconfiar que a intenção do

autor de fato residiria em demonstrar como a vida de um garoto do campo na segunda metade

do século XIX era difícil e nem sempre com final feliz. Essa tese é corroborada pelo fato de o

romance ter sido escrito em episódios e em duas partes. A primeira parte, publicada em 1881

na revista semanal Giornale per i bambini, terminava no capítulo XV, quando Pinóquio é

abandonado à morte enforcado em uma árvore117. Tamanho foi o sucesso dos episódios que

Collodi foi convidado a continuar a saga do boneco de madeira, mantendo a estrutura narrativa

onde tudo é possível e nada tem fim com o auxílio da fantasia, desde que o leitor seja fisgado

para continuar a leitura na próxima edição (ZIPES, 2007, p. 180-181). Dessa maneira, Collodi

sutilmente põe em xeque a estrutura das histórias pedagógicas para crianças italianas – as quais

geralmente se apresentam com um tom monocórdico –, por meio da incansável recusa de

Pinóquio em se tornar um “garoto de verdade”. Nas palavras de Zipes (2007, p. 181-182,

tradução nossa):

Dado o caso do assunto inacabado do desenvolvimento de Pinóquio, a

maior e mais frequente questão de Collodi acerca desse romance-conto de fada

de formação é se de fato vale a pena ser “civilizado”. É uma questão que Mark

Twain também fez no mesmo momento em que escrevia As aventuras de

Huckleberry Finn, e, de algumas maneiras, Huck Finn é a versão norte-

americana de Pinóquio, pois ambos os garotos são brutalmente expostos à

hipocrisia da sociedade e, ainda, formados a se adaptar aos valores e padrões

que irão, supostamente, permitir que eles sejam bem-sucedidos. No final,

Huck recusa a civilização, enquanto Pinóquio aparenta ter feito as pazes com

a lei e com a ordem.

Ainda assim, em último caso, Collodi nos convida a considerar como

essa socialização se desenvolveu, e se nós consideramos como esse “inocente”

pedaço de madeira, cujos vícios estão em suas brincadeiras e ingenuidade, é

tratado pelas pessoas e forças sociais ao redor dele, aí sim tem algo “trágico”

na maneira como ele apanha e embarca na submissão.

O comentário de Zipes retoma uma questão já exposta no começo do capítulo, sobre a legítima

vontade de Pinóquio quanto a deixar de ser um boneco de madeira para se tornar um garoto de

verdade. As recorrentes recusas de Pinóquio a avançar na transformação que parece ser a mais

correta – de marionete para menino – abrem essa suspeita de uma intenção subliminar no texto

117 A título de curiosidade, na edição brasileira publicada pela Cosac Naify, na qual tive oportunidade de coordenar

o trabalho editorial, optamos por evidenciar essa quebra temporal no texto, marcando um intervalo entre os

capítulos XV e XVI com uma folha dupla sem texto, apenas com uma ilustração. A intenção editorial com esse

recurso de projeto gráfico era criar, minimamente, a sensação no leitor da morte “real” de Pinóquio, como tiveram

os leitores de 1881. A partir do capítulo XVI, há uma sutil porém evidente mudança de foco na narrativa, tornando-

se mais explícitas as passagens em que aparece um discurso moral. Nesse sentido, apesar de a versão em romance

publicada originalmente ser contínua, trata-se, de fato, de dois textos em uma única publicação.

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de Collodi em prol de sua argumentação oposta. A questão da aceitação do “eu” em face às

obrigações exigidas pela sociedade já mencionadas por Lukács, em Zipes aparece sob o tema

do “ser civilizado”. A educação, símbolo da adequação do indivíduo para a vida em sociedade

marcaria, portanto, esse limiar entre a busca incansável pelo prazer e o abandono do desejo em

prol da convivência em coletividade. A comparação com a obra de Mark Twain feita por Zipes

é fortuita no sentido de que ambas as histórias são marcadas pelo abandono do herói de sua

trajetória natural e previsível em busca de um caminho mais legítimo. A indecisão de Pinóquio

quanto a se juntar ou não à carroça que leva os meninos ao País dos Folguedos é justamente

parte desse conflito: seguir o caminho que o herói deseja ou seguir com a promessa de um dia

vir a ser mais uma pessoa ordinária. O elemento tragicômico desse conflito em Collodi – que

não existe em Huckleberry Finn – advém dessa ingenuidade atribuída por Zipes a Pinóquio,

que faz a personagem acreditar em qualquer promessa que lhe dizem, criando também uma

dicotomia entre o mundo prometido pela Fada e o mundo cruel e ingrato vivido pelo boneco

em suas aventuras.

Como é próprio do romance circular, previsivelmente Pinóquio se arrependerá de ter ido ao

País dos Folguedos e, mais uma vez, convocará a Fada, o Grilo Falante, o Corvo e a Coruja –

representantes do “núcleo educativo” do romance – e pedirá perdão pela sua conduta. Este é o

momento que também Lukács prevê em seus estudos sobre a função da ação no romance de

formação, no qual a reconciliação entre a personagem e o meio em que ela vive é necessária e

inevitável para o amadurecimento, apesar dos sofrimentos infligidos ao herói durante a

narrativa118. A definitiva reconciliação entre Pinóquio e o mundo se dará por meio da magia da

Fada, um dos recursos narrativos que corroboram a classificação que Zipes concede ao livro

como um romance-conto de fada educativo (ou “de formação”).

A beleza do exercício de análise da bibliografia crítica, no entanto, não está em identificar qual

o melhor gênero que define o escrito de Collodi, mas sim em desvendar como cada subgênero

contribui para a estrutura do romance. O trecho que compreende do capítulo XXIX ao XXXIII

de As aventuras de Pinóquio, usado para ilustrar esta análise, apresenta conflitos e situações

típicas do contos de fada e do conto fantástico – que, por sua vez, representam, em si, pontos-

chave das etapas de amadurecimento do indivíduo. A maneira como Pinóquio percebe a Fada

118 “Tipo humano e estrutura da ação, portanto, são condicionados aqui pela necessidade formal de que a

reconciliação entre interioridade e mundo seja problemática mas possível; de que ela tenha de ser buscada em

penosas lutas e descaminhos, mas possa no entanto ser encontrada” (LUKÁCS, 2015, p. 138).

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dos Cabelos Turquesa – a própria presença de uma fada no romance –, por exemplo, é muito

semelhante ao processo de aceitação do indivíduo em suas múltiplas personalidades. A Fada,

para Pinóquio, é tanto a figura da mãe boa, mas também logo se transforma na pessoa que pune

seus atos de rebeldia. Pinóquio compreende que deve agradá-la para ter a recompensa da fada

bondosa, que irá presenteá-lo com uma grande festa no dia de sua própria transformação em

menino. Por outro lado, quando é convencido por Pavio a ir ao País dos Folguedos, Pinóquio

entende que a Fada também é capaz de gritar e ralhar com ele.

Quem explicita mais profundamente esses episódios nos contos de fada é Bruno Bettelheim

(2017), em A psicanálise dos contos de fadas. Apesar de o livro de Bettelheim ter o propósito

de aplicar a simbologia dos contos de fada no desenvolvimento da criança e na sua relação com

os pais, um objetivo bastante diferente deste trabalho, ainda assim, a bibliografia é relevante

para localizar alguns aspectos interessantes que abrem um caminho para a compreensão da

simbologia dos contos de fada. No exemplo que se desenrola aqui, Bettelheim interpreta que a

vovó e o lobo mau no conto A Chapeuzinho Vermelho, por exemplo, são as faces boa e má da

mesma figura, uma maneira de representar os dois humores da mãe: a tolerante e carinhosa, e

a punitiva e agressiva. Em resumo:

A literatura dos contos de fadas não deixa de considerar a natureza

problemática de por vezes se ver a mãe como uma madrasta má; a seu modo,

o conto de fadas nos adverte sobre as consequências de nos deixarmos

arrebatar por sentimentos de raiva. Uma criança se entrega facilmente a sua

irritação com uma pessoa que lhe é querida, ou a sua impaciência por ter que

esperar; tende a abrigar sentimentos coléricos e a embarcar em desejos

furiosos, pouco pensando nas consequências caso estes se tornem realidade.

Muitos contos de fadas retratam o resultado trágico desses anseios irrefletidos,

assumidos porque se deseja excessivamente ou se é incapaz de esperar até que

as coisas ocorram no devido tempo. Esses dois estados mentais são típicos da

criança (BETTLHEIM, 2017, p. 101-102).

A comparação, obviamente, não pode ser feita ipsis litteris. Mas joga uma luz importante no

episódio narrado nos cinco capítulos de Collodi analisados neste trabalho. Pinóquio toma

consciência de que a Fada dos Cabelos Turquesa pode ser tanto boa como má – um elemento

bastante evidente nos contos de fada. Em resposta, como o romance de Collodi não tem a

obrigação de seguir a estrutura das fábulas ou dos contos de fada, o boneco de madeira também

pode se comportar como um bom ou mau indivíduo.

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Mas a associação do romance de Collodi a referências de textos populares é bem mais profunda

do que a descrita acima, vai além do estudo da psicanálise. Com o intuito de resgatar as origens

da literatura italiana e, ainda assim, criar uma nova, que responda aos anseios literários do autor,

Collodi infiltra meticulosamente em As aventuras de Pinóquio elementos da matéria da cultura

italiana, no formato que a população estava acostumada a ler. A própria figura de Pinóquio

como um ser de madeira pode-se inferir que ela advém da novela popular toscana L’omino di

legno, muito lida pelas mães para as crianças toscanas, como bem recorda Benedetto Croce

(1937). O nariz de Pinóquio, que cresce quando o boneco mente e volta ao tamanho normal,

lembra muito o conto popular “I ficho brogiotti”. Ou ainda as novelas do Decameron,

especialmente a quarta novela da nona Giornata cujo título também remete ao episódio do

romance de Collodi em que Geppeto vende seu casaco no inverno para comprar a cartilha para

Pinóquio, que, por sua vez, a vende para ir ao circo, deixando-o em mangas curtas: “Cecco di

messer Fortarrigo giuoca a Buonconvento ogni sua cosa e i denari di Cecco di messer

Angiulieri, e in camicia correndogli dietro e dicendo che rubato l'avea, il fa pigliare a’villani e

i panni di lui si veste e monta sopra il pallafreno, e lui, venendosene, lascia in camicia”, em

tradução livre: Cecco Fortarrigo joga em Buonconvento todas as suas posses e também o

dinheiro de Cecco Angiulieri, seu mestre; depois, se coloca a correr atrás dele afirmando que o

roubou; Fortarrigo faz Angiulieri ser pego por camponeses, veste as roupas dele e monta no

cavalo dele, deixando-o apenas de camisa. E, ainda, do livro do Pentamerone, recolhido por

Giambattista Basile, a novela La bella Caterina no episódio bem específico em que Pinóquio

cai na tentação do gato (VOLPICELLI, 1963)119.

3.3 As transformações dos personagens-brinquedos do século XIX

Uma outra relação interessante que se pode fazer acerca das referências culturais presentes em

As aventuras de Pinóquio é a tradição literária de protagonistas-brinquedos. Porém, não como

o século XVIII, no qual os brinquedos serviam de mero objeto transacional para a criança

aprender bons modos, mas sim como personagens quase esféricos. A associação mais evidente

119 Uma outra pesquisa interessante, porém, sem espaço neste trabalho, seria fazer o caminho inverso: quais

personagens da literatura universal surgiram a partir de Pinóquio. Menciono aqui apenas uma obra, a título de

curiosidade, surgida na Alemanha, no começo do século XX: Zäpfel Kerns Abenteuer (1905), escrita por Otto

Julius Bierbaum (1865-1910) é descaradamente uma adaptação estilizada da obra de Collodi para o universo

germânico. O exemplo demonstra, ainda, como As aventuras de Pinóquio não foi um sucesso editorial restrito à

Itália (WILD, 2008, p. 193).

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é com o conto O Soldadinho de Chumbo, atribuído ao escritor dinamarquês Hans Christian

Andersen (1805-1875), também produzido no século XIX. Neste conto, o Soldadinho apresenta

um defeito de fabricação por ter apenas uma perna. O brinquedo sabe que é diferente de seus

outros vinte e quatro irmãos, todos fabricados ao mesmo tempo. Seu grande desejo, porém, é

casar-se com uma bailarina desenhada em um pedaço de papelão – papelão este que servia de

castelo de brinquedo apoiado sobre a mesa. Na perspectiva do desenho, a posição de balé da

dançarina, apoiada em uma só perna e, portanto, escondendo a outra, faz o Soldadinho crer que

a bailarina também é perneta. Por isso, seria sua esposa ideal:

— Ah, que esposa perfeita seria essa moça! – ficava imaginando o

soldadinho, enquanto contemplava de longe a bailarina. — Mas receio que

ela nem ligue para mim. Não passo de um simples soldadinho de chumbo,

que mora numa caixa com outros vinte e quatro irmãos, ao passo que ela vive

em um castelo. Se eu a tirasse de lá para ser minha esposa, não teria onde

levá-la… Mas isso não impede que venhamos a ser amigos (ANDERSEN,

1996, p. 182).

Nesse trecho, fica evidente como o Soldadinho também constrói mundos imaginários, da

mesma maneira que Pinóquio. O brinquedo vislumbra cenários distintos de sua realidade

presente, nos quais a sua perna faltante não é um defeito mas, sim, uma virtude – um ser

semelhante a uma princesa que também se identificará com ele pelo defeito físico. Porém, ao

invés de perseguir seu desejo – como faz Pinóquio –, o Soldadinho resigna-se a seu defeito

congênito. Sua viagem como herói, no entanto, começa com uma punição: a maldição do

gnomo por ele ter olhado durante muito tempo para a bailarina. O boneco é jogado no lixo,

enfrentará uma forte correnteza num barquinho feito de papel jornal, por bueiros escuros, até

cair no mar e ser engolido por um peixe. Que, por sua vez, foi pescado e levado ao mercado,

onde fora vendido para a cozinheira da casa em que a história começou e, finalmente, viria a

morrer queimado na lareira da mesma casa onde a história começou.

As semelhanças entre as duas obras são inúmeras. Primeiramente, há o problema da aceitação

da matéria física em ambos os brinquedos. No caso de Pinóquio, ser um boneco é um problema

em si, uma questão ontológica, cuja única solução é abandonar a “carcaça” de madeira para

assumir o corpo de um menino de verdade. No caso do Soldadinho, ser desfigurado propicia

uma baixa estima no brinquedo e, por consequência, os indivíduos ao seu redor o rejeitam.

Ambos também partem para uma sofrida e cruel jornada do herói que culminam com

experiências de quase morte, sendo que o episódio mais evidente como ponto de conexão entre

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as duas obras é a passagem em que ambos são engolidos por um peixe – que também marca o

início do desenrolar final de cada texto.

Um outro ponto estrutural que conecta os dois personagens é a iminência da morte a todo

momento. Ambas as aventuras são perigosas, experiências transicionais para outra condição,

não aquela escolhida pelos protagonistas. Pinóquio é enforcado no capítulo XV e deixado para

morrer. E, no trecho analisado neste trabalho, entre os capítulos XXIX e XXXIII, a

transformação em burrico também é uma pseudomorte, não apenas pelo seu aspecto físico, mas

pelo desdobramento da narrativa (quando Pinóquio quase morre afogado). A dolorosa

transformação de Pinóquio em burrico representa o processo de animalização do boneco que,

por sua vez, cumpria até então uma função metafórica humana, de maneira a estabelecer uma

conexão com a criança leitora. Vale ressaltar que o brinquedo para a criança é um objeto

bastante importante para que ela crie mundos paralelos que mimetizem suas angústias, receios

e ansiedades. Ela realiza uma transferência de sua condição real para a ficcional por meio do

objeto-brinquedo. Tanto o Soldadinho de Chumbo quanto Pinóquio são personagens

humanizados. A literatura, por meio da fantasia, promove o encontro dos sentimentos dos

bonecos com as crianças leitoras, facilitando a mediação. No final do capítulo XXII, a

transformação de Pinóquio e Pavio está completa, representando a primeira morte neste

episódio:

— Socorro, Pinóquio, ajude-me!

— Que você tem?

— Ai de mim, não consigo mais manter-me em pé.

— Nem eu tampouco – gritou Pinóquio chorando e vacilando.

E, enquanto diziam isso, puseram-se os dois a engatinhar e, caminhando

com as mãos e os pés, conseguiram mover-se correndo pelo quarto. E, à

medida que corriam, seus braços se tornaram patas, os rostos se alongaram em

formato de focinho e as costas se cobriam de um pelame amarelado claro,

malhado de negro.

Mas o momento mais terrível para os dois coitados, sabem qual foi? O

momento mais terrível e humilhante foi quando sentiram que atrás lhes

cresciam rabos. Arrasados então pela vergonha e pelo sofrimento, tentaram

chorar e lamentar a sorte (COLLODI, 2012, p. 286 e 288).

Evidencia-se, mais uma vez, como a questão do corpo é importante para a percepção do

indivíduo, constituindo um dos pilares da problemática de ambos os personagens. Assim como

a relação com o mundo exterior, que não os aceita ou exige que sua essência seja modificada –

no caso de Pinóquio –, ou completamente descartado – no caso do Soldadinho. Isso pode ser

verificado pelas cenas das mortes, presentes em ambas as obras, cruéis e violentas, com

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absoluto descaso dos agentes que a promovem. Em O Soldadinho de Chumbo, ao voltar para a

casa de origem, o herói se depara com a mesma criança malvada que o jogou pela janela e que,

agora, o atira no fogo, sem dó, pelo prazer de destruir um brinquedo – e matar o protagonista

do conto. Vejamos a narrativa de Andersen (1998, p. 185-186), como ela é construída de

maneira bastante poética, sem poupar o leitor do sofrimento do Soldadinho:

As chamas rodearam o corpo do soldadinho de chumbo. Um calor intenso

invadiu seu peito, mas ele não sabia se seria provocado pelo fogo ou pela

paixão que ardia fundo no seu coração. As cores de seu uniforme, que já

estavam um tanto desbotadas devido a sua aventura, acabaram por

desaparecer. Por entre as chamas, ele ainda conseguiu enxergar a pequena

bailarina, e viu que ela também olhava para ele. Sentiu que seu corpo

começava a derreter, mas continuou firme, como sempre, mantendo o fuzil

junto ao ombro, sem tirar os olhos da porta do castelo e da linda bailarina que

ali estava.

Neste momento, alguém abriu a porta da sala. Uma rajada de vento

entrou, carregou a bailarina, e ela voou como uma sílfide, indo cair bem dentro

da lareira. Num segundo o fogo a consumiu, e ela se transformou em cinzas,

no exato instante em que o soldadinho de chumbo acabava de derreter.

No dia seguinte, quando a criada veio limpar a lareira, encontrou entre

as cinzas os restos carbonizados da lantejoula da bailarina, pretos como

carvão, bem ao lado de uma peça achatada de chumbo, que tinha o formato

exato de um coração.

No melhor estilo Andersen, o final sempre enigmático aponta para um sopro de esperança pós-

morte, como se a realidade da vida fosse inferior à felicidade após a morte. A lentidão com que

o Soldadinho derrete, permitindo-lhe buscar com os olhos a bailarina, omitem a dor da

queimação, mas não a tristeza do momento, que é apaziguada pelo suicídio da bailarina. Assim,

a morte do Soldadinho representa uma segunda transformação, tanto física – uma “peça

achatada de chumbo, que tinha o formato exato de um coração” –, mas também metafórica em

esperança, em amor.

Pinóquio não tem a mesma sorte de uma morte digna e romântica, bastante cristã em certo

sentido, e o caráter cômico mais uma vez toma conta da história e salva o herói de seu triste

destino. Depois de se tornar um burrico de verdade – em oposição ao “menino de verdade” que

deveria ser –, Pinóquio é vendido ao dono de um circo que o explora nos espetáculos e o agride

fisicamente. No auge da dor dos maus-tratos em pleno espetáculo, Pinóquio reconhece

arrependido a Fada na arquibancada, testemunhando, impassível, o destino que o próprio

protagonista infligiu a si, mais um exemplo do lado severo e educativo da Fada. Manco de tanto

apanhar, o burrico é mais uma vez vendido, desta vez para um homem interessado em seu couro.

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A narrativa bem-humorada de Collodi também não poupa o leitor da cruel e interesseira

realidade:

Chegando à praça, encontraram logo um comprador, que perguntou ao

cavalariço:

— Quanto quer por este burrico manco?

— Vinte liras.

— Pois eu lhe dou vinte soldos. Não pense que vou comprá-lo para

servir-me: é unicamente pelo seu couro. Vejo que tem o couro muito duro, e

com ele quero fazer um tambor para a banda de música da minha terra.

Deixo a vocês, meninos, pensarem o pasmo em que o pobre Pinóquio

ficou ao saber que estava destinado a se tornar tambor.

O fato é que o comprador, mal pagou os vinte soldos, conduziu o

burrico para a beira do mar e, atando-lhe uma pedra ao pescoço, amarrou-lhe

uma das patas com a corda que tinha nas mãos, deu-lhe de repente um

empurrão e o atirou dentro da água.

Pinóquio, com aquele pedregulho no pescoço, foi logo ao fundo; e o

comprador, segurando sempre a corda, ficou sentado numa pedra, dando ao

burrico todo o tempo que quisesse para morrer afogado; depois era só tirar-

lhe a pele (COLLODI, 2012, p. 303-304).

O humor está presente logo na negociação entre o cavalariço e o comprador. O preço

estabelecido para a negociação é de vinte liras, a moeda da época. Mas o comprador oferece

como contrapartida apenas vinte soldos. O elemento cômico está, primeiramente, em misturar

duas moedas distintas, o que dificulta a comparação. O valor é o mesmo – vinte quantidades –

, mas o soldo era a moeda do período medieval italiano, que foi paulatinamente substituída pela

lira, entrando em colapso no século XIV, especialmente em Florença, quando valia apenas um

vinte avos de lira. O soldo ainda existia no começo do século XIX, mas com nenhuma

representatividade financeira para os negócios. Assim, pelo breve diálogo, percebe-se que a

venda do burrico-Pinóquio não valia nada, o que é confirmado pela ansiedade do comprador

em matá-lo para tirar o seu couro. Além da maneira bruta e violenta com que Pinóquio enfrenta

mais uma vez a morte, o leitor também fica espantado com a naturalidade com que o comprador

lida com o assassinato. O desconhecido demonstra agilidade para preparar o animal para a

morte, senta-se em uma pedra para dar “ao burrico todo o tempo que quisesse para morrer

afogado” – mais um elemento tragicômico insinuando que Pinóquio teria prazer em viver

aquele momento. Um final bastante diferente daquele acometido pelo Soldadinho de Chumbo,

mas sabemos que, ao contrário do personagem de Andersen e para a alegria do leitor, este não

seria o fim definitivo de Pinóquio120.

120 A comparação entre os dois brinquedos, Pinóquio e o soldadinho de chumbo, poderia se estender ainda mais,

mas causaria um desvio estrutural neste trabalho. No entanto, deve-se admitir que o estudo comparado entre os

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3.4 A revolução da linguagem literária em Pinóquio

A relação do romance As aventuras de Pinóquio com o imaginário dos contos de fada é de

extrema importância para resgatar as origens do escrito de Collodi e as intenções do autor ao

criar esse paralelo no momento contemporâneo a ele. É sabido, também, que Collodi privilegiou

o italiano toscano em seus escritos – a variação da língua de uso mais corrente na época, porém

a mais literária –, um detalhe capital no âmbito político do Risorgimento, de afirmação e

estabelecimento de uma linguagem única para toda a Itália121. No entanto, o romance de Collodi

destaca-se em um aspecto que em nada pode ser comparado aos dos contos tradicionais e

apresenta uma diferença sensível da maioria das obras contemporâneas congêneres: uma

linguagem absolutamente moderna, não apenas para os padrões da literatura infantojuvenil da

época, mas também para a literatura italiana de maneira geral. Mesmo com o grande número

de livros para crianças publicados na segunda metade do século XIX, impulsionados pela

política educacional que tirou o mercado editorial italiano de uma situação praticamente

artesanal para a industrial (COLIN, 2002a, p. 507), foram poucos os textos – para não afirmar

ter sido apenas o de Collodi122 – que se destacaram por seu caráter literário, pela linguagem

protagonistas de As aventuras de Pinóquio e O Soldadinho de Chumbo seria enriquecido com o acréscimo de mais

um herói, antecessor a ambos: o Quebra-nozes e o Rei dos Camundongos (1816), de E. T. A. Hoffmann (1776-

1822). O Quebra-nozes também é um brinquedo que enfrenta um problema com seu corpo – sua mandíbula é

quebrada por um menino travesso –, o conto é repleto de transformações e mundos fantásticos que, desta vez,

desafiam as fronteiras entre o real e o imaginário. 121 A título de curiosidade bibliográfica, registra-se que a pesquisadora Ester Zago se debruça sobre as intenções

de Collodi para com o uso do toscano e chega a uma conclusão polêmica. Para ela, o uso do toscano por Collodi

está associado a um sentimento patriótico de unidade do povo italiano: “O uso que Collodi fez das expressões

toscanas pode ser lido como uma escolha política e não estética. Ele era um florentino; já sabia como explorar a

riqueza do idioma toscano. Mas ele também era um patriota e, para a intelligentsia italiana, o uso do dialeto

toscano, tão próximo do italiano literário, representava a unidade do povo italiano; era o vernáculo que Dante tinha

escolhido para sua Divina comédia” (ZAGO, 1988, p. 66, tradução nossa). Certamente, havia uma intenção política

de afirmação pelo uso do italiano toscano em Collodi, mas também vale a pena lembrar que o autor nasceu na

região e, durante o período de sua formação intelectual, esteve exposto a essa linguagem. Assim, pode-se arriscar

a dizer que, para Collodi, o toscano era sua referência de língua materna. 122 Apesar da longa citação, vale a pena ler as palavras de Benedetto Croce (1937, p. 452, tradução nossa) acerca

do lugar de Pinóquio em meio aos livros publicados no mesmo ano e como o romance de Collodi se destaca: “O

1883, tive ocasião de notar, foi um dos anos mais verdadeiramente férteis da literatura da nova Itália, pois vieram

à tona, todas ao mesmo tempo, algumas das brilhantes obras de Carducci, Verga, Serao, D'Annunzio, Di Giacomo

e de outros. E é daquele ano também o livro mais bonito da literatura infantil italiana, Pinóquio de Collodi. Poder-

se-ia passar em silêncio nesta história literária? Sim, se pertencesse à literatura infantil especial e comum calculada

para as crianças, porque neste caso seria um produto pedagógico ou de outra forma mais ou menos qualificado,

desprovido de vida e valor artístico. Mas Pinóquio, que é tão popular e apreciado pelas crianças, também é

apreciado pelos adultos, e não pela memória do prazer que eles outrora sentiram, ou não só por isso, mas por eles

mesmos. É um livro humano, e encontra os caminhos do coração. O autor começou a escrever aquele bizarro conto

das aventuras de um fantoche de madeira para atrair a curiosidade e a imaginação das crianças e administrar,

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inovadora e pelo trabalho estético. Seria essa a “vitória”123 de Pinóquio e de Collodi sobre o

conservadorismo de todo um período, prestes a entrar no século XX.

Existe, no entanto, um fator extremamente singular que clareia este quadro. Collodi não

escreveu As aventuras de Pinóquio a partir de uma encomenda escolar. Mas, sim, a partir do

convite de seus editores, como já mencionado anteriormente, para ser publicado em uma revista

dedicada às crianças. Ou seja, seu público principal não eram os professores ou adultos

mediadores da leitura, mas sim as próprias crianças que julgariam a qualidade de seu texto a

partir da leitura descompromissada. Sua primeira intenção era entreter um público amplo, algo

em que já tinha experiência pelos seus tempos de jornalista124.

Esta diferença de público e de intenção talvez seja o motor que possa ter permitido a Collodi

ousar na escrita, no sentido da escolha de um léxico menos formal, mais próximo de uma

linguagem de fácil reconhecimento pelos leitores crianças, e também de estruturas gramaticais

novas, contribuindo para o humor e a leveza do texto. A pesquisa que conduz para essa leitura

se apoia nos escritos de Sonia Marx (1987), que investigou as traduções de Pinóquio para o

alemão. Marx aponta de maneira minuciosa alguns elementos linguísticos recorrentes no texto

de Collodi que foram avant-garde para o período, além de contribuirem para o humor e para o

efeito dramático, como as repetições de preposições (muitas vezes elípticas), de verbos nos

indicativo, imperativo e infinitivo, além da repetição de adjetivos, as enumerações, a marcação

do ritmo dos acontecimentos a partir de “módulos narrativos” (MARX, 1987, p. 12).

através desse interesse, observações e admoestações morais: aqui e aí permanecem, de fato, algumas poucas e

pequenas acentuações pedagógicas”. 123 Michieli (1941, p. 54, tradução nossa) faz uma bonita homenagem a Collodi e sua criação, exaltando a “vitória”

de Pinóquio sobre os demais livros da época, especialmente por seu caráter não didático: “Mas, além dos romances

de Morandi, em todos os autores dessa época, a preocupação educacional é muito esmagadora, e a invenção é

muitas vezes deficiente e o estilo é falho. O fervor frequente, as histórias curtas, o meio persuasivo medíocre:

intelectualismo e moralismo matam arte e verdade. A literatura para a infância bem depressa deu passos rápidos,

mas parou na intenção educacional. A fim de progredir, isso deve ser expresso nas formas próprias da criança, as

da imaginação. O livro que marca a renovação e a vitória é Pinóquio de Collodi”. 124 Mais uma vez, Michieli (1941, p. 56-57, tradução nossa) ajuda a compreender essa linha de pensamento:

“Embora, como se acredita, Collodi não propôs na composição uma clara tese de educação moral, e não pode ser

estabelecido quanto um objetivo educacional teve qualquer preponderância sobre o mais contingente e prático para

entreter a numerosa audiência de leitores, certamente era por seu temperamento artístico e por sua sensibilidade

jornalística que a consciência de que tinha que ser um livro para crianças já havia amadurecido nele. Collodi criou

a obra-prima em si e viveu ali como objetivo por meio de outros dois livros infantis: Giannettino e Minuzzolo, que

iniciaram a reação que Pinóquio traz ao máximo de desenvolvimento”.

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Alguns exemplos de repetições de preposições, verbos nos indicativo, imperativo e infinitivo,

além da repetição de adjetivos125: “una vocina sottile sottile” (uma voz muito débil, COLLODI,

2012, p. 8); “due coltellacci lunghi lunghi” (duas facas longas longas, COLLODI, 2012, p.

116); “e s’era adagio adagio arrampicato” (e vai que vai, COLLODI, 2012, p. 227); “lo

guardavano fisso fisso” (olhavam bem fixo para ele, COLLODI, 2012, p. 21); “e via, e via, e

via come anderebbe una palla di fucile” (e lá ia e ia e ia, como se fosse uma bala de fuzil,

COLLODI, 2012, p. 313). E, ainda, nos capítulos escolhidos para esta análise: “Lontano,

lontano, lontano!” (Para longe, muito longe, COLLODI, 2012, p. 259); “No, no, no e poi no”

(Nunca, nunca, jamais, COLLODI, 2012, p. 264 e 265); Che bel paese!… che bel paese!… che

bel paese!… (Que país ótimo, que país ótimo, que país ótimo, COLLODI, 2012, p. 266).

Um outro recurso linguístico inovador de Collodi que acentua o melodramático e o humor é

exprimir um conceito por meio de um sinônimo: “che era d’occhio svelto e ammalizzito” (que

tinha olhos ágeis e matreiros, COLLODI, 2012, p. 227); “io faccio il bighellone e il vagabondo”

(banco o vadio e o vagabundo o ano inteiro, COLLODI, 2012, p. 209); Buone queste triglie /

Buoni queste naselli! / Squisiti questi muggini! / Deliziose queste sogliole! / Prelibati questi

cagnotti / Carine queste acciughe col capo!” (Que bons estes badejos / Saborosas estas tainhas

/ Deliciosos estes linguados / Excelentes essas lantolas, COLLODI, 2012, p. 240). Há também

um outro recurso muito marcante que é o uso do imperativo, do indicativo e do infinitivo para

acentuar uma ideia, dando a impressão de exagero, como: “e cresci, cresci, cresci, diventò in

pochi minuti un nasone che non finiva mai” (e cresceu, cresceu, cresceu tanto que em poucos

minutos se tornou um narigão que não acabava mais, COLLODI, 2012, p. 24) (MARX, 1987,

p. 12).

Um outro procedimento estético narrativo sistemático de Collodi que traz uma vivacidade

ímpar para o texto é a transformação dos fenômenos da natureza em onomatopeias, um recurso

que Marx (1987, p. 13) considera como precursor da história em quadrinhos moderna (“fumeto

moderno”): “o pì-pì-pì e zum zum zum” (pi-pi-pi bum, bum, bum, COLLODI, 2012, p. 62);

“patatunfete!” (tchibum, COLLODI, 2012, p. 112).

125 A tradução usada aqui como referência (COLLODI, 2012) nem sempre obedeceu a esses componentes da

linguagem original. Portanto, o texto fica em italiano com a sugestão de tradução da edição referenciada para

maior compreensão do argumento.

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Com esses recursos, Collodi garante o ineditismo de sua obra-prima sem abandonar a tradição

literária de sua região, especialmente no que diz respeito ao uso do toscano, como já foi

mencionado, mesclando as expressões populares com uma linguagem literária. Novamente,

Marx (1987, p. 13) aborda essa questão sob a ótica do efeito no leitor e também do significado

histórico da leitura de As aventuras de Pinóquio:

Quanto Pinóquio é “obra de um estilo espertíssimo” ou “dono de uma

felicidade natural” comprovam, neste contexto linguístico, as escolhas

lexicais, a sua linguagem fresca – no sentido popular –, o frequente uso de

toscanismos, o modo de dizer do dialeto fiorentino e os resgates da alta

tradição (de evidente descendência dantesca), decididamente no novo sabor.

Ler Pinóquio hoje significa obviamente antes recordar que cem anos não se

passaram sem deixar traços no uso linguístico.

Mais leitores descobrem quais raízes ligam a estrutura narrativa de

Pinóquio à sua estrutura temática, suas conexões a um patrimônio cultural,

literário e antropológico e os relacionamentos que ligam o trabalho aos

caminhos realistas-miméticos da segunda metade do Ottocento, mais as

Aventuras resultam ricas em significado para leitores e tradutores que

pertencem a outros momentos históricos, a outros ambientes culturais com

práticas linguísticas diferentes.

Assim como Marx aponta, parece ser unânime que cem anos não foram suficientes para

envelhecer Pinóquio. E que mais cem anos ainda são necessários para desvendar e compreender

a complexidade desse pedaço de lenha que representa toda a humanidade. O próprio Italo

Calvino, em comemoração ao centenário do romance, declarou sua admiração pelo boneco de

madeira exprimindo que não é possível “imaginar um Pinóquio centenário” ou um “mundo sem

Pinóquio” (COLLODI, 2012, p. 345). Com suas divertidas máximas “queremo us brinquedo”,

“abacho a escola”, “xega de deveris” (COLLODI, 2012, p. 276), Pinóquio e os garotos livres

do romance de Collodi abusam do humor para reverter a lição moral dos adultos em uma grande

zombaria, respondendo à pergunta sobre o significado da infância na segunda metade do século

XIX com exemplos de brincadeiras mil, e não com livros ou cartilhas. Nem que, para isso,

precisem aceitar a punição – num ato vingativo dos adultos por perderem o privilégio de ser

criança – a ponto de tornarem-se todos eles burricos.

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CAPÍTULO 4. PETER E WENDY: INVERSÃO DO FAZ DE CONTA; A REALIDADE DELIRANTE

Então, nós voltamos ao velho mito, e ouvimos o flautista com

pés de cabra fazendo a música que é em si mesma o encanto e

terror das coisas; e quando o estreito vale convida nossos passos

visitantes, fantasia que Pan nos leva muito adiante com um

tremolo gracioso; ou quando nossos corações estremecem com

o trovão da cachoeira, diga a nós mesmos que ele firmou o seu

casco no bosque da noite.

Robert Louis Stevenson (1949, p. 152)

“— Só estava pensando – disse ele, um pouco alarmado. — É só de faz de conta, não é, que eu

sou o pai deles?” (BARRIE, 2012, p. 149). Com esta fala, Peter Pan devolve a sanidade à casa

dos garotos perdidos que, até então, estava tomada pelo delírio coletivo criado por Wendy. No

capítulo “Um lar feliz”126, o décimo de dezessete do romance, a garota Wendy finalmente

parece dominar – ou talvez seria mais acurado dizer “domesticar” – o bando de meninos que

vivia com Peter na casa subterrânea. Dotados da liberdade de viver sem a intervenção de adultos

e sem obrigações, os garotos experienciam com a presença de Wendy a ordem doméstica, no

caso, representada pela figura da mãe. Não apenas a menina organiza o lar e os pertences dos

meninos – ocupa-se de todas as atividades da casa como cozinhar, lavar, arrumar, além de

costurar a roupa deles e fazer curativos quando necessário –, mas também traz para si a

responsabilidade afetiva, zelosa e educativa da maternidade. Porém, falta neste “cenário” criado

por Wendy – e aqui sim, esta é uma palavra adequada para a representação da cena que se

desdobra – um elemento que complete o devaneio: a figura do pai, naturalmente, personificada

em Peter Pan.

O delírio de Wendy está na tentativa de recriar na Terra do Nunca o modelo burguês familiar

da Inglaterra vitoriana construído no século XIX. Na época, conhecida por representar as

crianças como musas, sobressaem duas ideias principais, que constituem o modelo. A primeira

ideia parte do olhar sobre a criança como um ser autônomo, com valores próprios e singulares

– ainda que calcado na ideia de preparação para a vida adulta – como peças ativas de uma

sociedade industrial e próspera a qual a Inglaterra representava. A segunda ideia construída

sobre a infância vitoriana advém do Romantismo e de sua idealização espiritual e inocente,

126 Este quarto capítulo consistirá na análise de dois capítulos do romance Peter e Wendy de J. M. Barrie: “Um lar

feliz” e “A história de Wendy”.

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porém com o toque moralista característico da época vitoriana 127 . Há, então, uma nova

percepção dos adultos em relação às crianças, muito mais consciente de suas obrigações para

com a educação dos filhos – o Ato Educacional (Elementary Educational Act) de 1870128, por

exemplo, garantia escola obrigatória para todos –, alterando também a organização familiar,

para uma relação mais intensa e mais focada na criança (WULLSCHLÄGER, 1995, p. 14-15).

Não por acaso, surge com força um mercado de ofertas inteiramente voltado às necessidades

da criança, como brinquedos, roupas e até mesmo livros de entretenimento –, o que culminou

com um campo extremamente fértil para o aparecimento de uma literatura sofisticada, tanto em

termos narrativos, de linguagem textual, como também de acabamento gráfico. Tamanha foi a

importância deste período que, para a literatura infantojuvenil, ficou conhecido como a Era de

Ouro.

É dentro dessa perspectiva – de um ambiente de valorização da família – que Wendy estabelece

o tom na casa subterrânea, assumindo as tarefas da mãe que se preocupa com o lar e com a

educação das crianças, enquanto o pai (Peter) trabalha durante o dia para só voltar à noite, e os

filhos (garotos perdidos) dividem o tempo entre brincadeiras e aprendizado. A situação

delirante se materializa uma vez que a noção de realidade baseada no mundo objetivo torna-se

ela mesma a brincadeira, o que se explica pela surpresa de Peter na fala mencionada acima, ao

perceber que a atuação tão convincente dos jogadores colocava em xeque a própria ideia do faz

de conta. Por mais que Wendy tenha conseguido impor uma rotina absolutamente ordinária

para qualquer criança londrina na casa dos garotos perdidos, a Terra do Nunca, por excelência,

não admite regras ou ordens advindas do mundo externo. O padrão nesse “universo paralelo”

segue suas próprias leis, que podem ser modificadas ao bel-prazer e a todo momento apenas

por sua entidade máxima Peter Pan129.

127 “Trata-se da história de dois novos modos de se olhar para crianças que se desenvolveram nessa época. O

primeiro era um sentimento do despontar da infância como um estado especial, e não apenas um período de

treinamento para a idade adulta, mas um estágio da vida que tem seus próprios valores. Com isso, a criança veio

a ser um símbolo de uma sociedade próspera e progressista, de esperança e otimismo. O segundo era uma visão

da criança como boa, inocente e, de alguma maneira conectada com espiritualidade e imaginação: uma ideia

herdada do romantismo mas transformada pela moralidade vitoriana, popularizada e sentimentalizada”

(WULLSCHÄGER, 1995, p. 12, tradução nossa). 128 O Elementary Educational Act de 1870 é um documento público e está disponível no site da British Library,

no endereço: <https://www.bl.uk/collection-items/synopsis-of-the-forster-education-act-1870>. Acesso em: 07.

set. 2018. 129 A simbiose entre a Terra do Nunca e Peter Pan é evidente desde o começo da história. No capítulo 5 “A ilha

vira realidade”, porém, a questão fica mais explícita: “Sentindo que Peter estava de volta, a Terra do Nunca tinha

retornado à vida. Devíamos usar o mais-que-perfeito simples e dizer que ela ‘retornara’, mas ‘tinha retornado’ soa

melhor e era o que Peter sempre usava.

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Se Wendy é a representação da criança-modelo do período vitoriano130, Peter Pan não deve

nada ao modelo viril e eternamente jovem da era edwardiana. A ideia do jovem imortal, que

prefere antes a morte a sucumbir ao cotidiano, surge na literatura inglesa já na década de

1880131. Não apenas a literatura destinada às crianças viu nascer personagens que recusavam o

futuro de submissão ao trabalho e à família – como Huckleberry Finn, já mencionado em

capítulos anteriores deste trabalho –, mas a literatura para adultos também cultivou com afinco

esse novo modelo masculino de virilidade (WULLSCHLÄGER, 1995). Walter Pater, por

exemplo, criou o poeta dândi Flavian no romance Marius the epicurean (Marius, o epicurista,

1885) cuja escolha por morrer ao invés de envelhecer parece lógica e natural. Ou então Oscar

Wilde, em seu Retrato de Dorian Gray (1891), cuja personagem, no território da literatura

fantástica, permanece jovem enquanto seu retrato envelhece. E ainda George Moore, com o seu

romance Confessions of a young man (Confissões de um jovem, 1888) cuja personagem teve a

audácia de abraçar as novas tendências artísticas contemporâneas (especialmente dos pintores

expressionistas) que, de certa maneira, se afastavam da ideologia tradicionalista vitoriana.

Na sua ausência, geralmente as coisas ficam tranquilas na ilha. As fadas dormem uma hora a mais toda

manhã, as feras cuidam dos filhotes, os peles-vermelhas comem bastante, seis noites e seis dias seguidos, e quando

os piratas e os meninos perdidos se encontram só trocam caretas e gestos indecentes. Mas com a chegada de Peter,

que detesta pasmaceira, tudo recomeça a acontecer o tempo todo: se você encostar o ouvido no solo, pode escutar

a ilha toda fervilhando” (BARRIE, 2012, p. 70). 130 A tendência da representação da infância nos romances do período vitoriano era a de considerar esse período

da vida como uma passagem para a idade madura, portanto, adulta. Nesse sentido, muitos romances apelavam para

a dicotomia “bem e mal” no intuito de contribuir para a educação moral do leitor criança. Wullschäger (1995, p.

12, tradução nossa) aborda essa questão ao dizer que “os romances vitorianos são moldados pelos temas e estrutura

dos contos de fada. Eles são melodramáticos, regidos por coincidências absurdas e eventos sobrenaturais, além de

um final acolhedor, como o casamento do jovem herói com a heroína. Em sua maioria, têm um tom moralizante,

recompensando o bem e punindo o mal”.

Mais especificamente sobre a figura feminina nos romances vitorianos, as meninas são caracterizadas por

serem subservientes – muitas vezes em relação à figura masculina –, porém, também representam o bastião da

moral e do não conflito disruptivo. Peter Hunt (2011, p. X) comenta o tema: “Livros para meninas naturalmente

refletem a subserviência e muitas vezes o ideal feminino vitoriano do sacrifício, do anjo da casa. […] A

autonegação do feminino era a norma, e onde havia uma rebelião esta era resolvida pelo reestabelecimento da

autoridade (normalmente masculina)”.

Nesse contexto, Wendy contém os atributos para representar tanto a moral educacional esperada pelas

crianças da época, como também a mulher dependente da figura masculina para estabelecer-se como indivíduo,

identificando-se com a construção idealizada da menina do período vitoriano. 131 “A idealização da infância permanece nessa época capital para a cultura inglesa, mas uma mudança é

perceptível perto dos anos 1880, de uma ênfase na criança como um ícone moral, emblema da pureza, para uma

mania pela infância como um herói playboy que adora diversão. A nova imagem, em parte uma reação à repressão

social e moral e do culto pela obsessão com a morte na metade do período vitoriano, foi encorajada pela presença

de Edward, príncipe de Wales, como sendo o irresponsável, o playboy europeu que busca apenas o prazer, e à

época da década edwardiana, a imagem já estava cristalizada. Os homens viris, desbravadores, sempre jovens são

as personalidades dos anos 1890 e 1900, e um senso de que a vida além da juventude não valia a pena ser vivida

contribuiu para o fervor da juventude mártir que se instalou em 1914” (WULLSCHLÄGER, 1995, p. 109, tradução

nossa).

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Outro pesquisador que também corrobora a ideia de que o período edwardiano inspirou

personagens que vivessem plenamente a juventude é Seth Lerer. Para o crítico norte-americano,

tanto a Inglaterra quanto os Estados Unidos eram governados por homens que “nunca tiveram

que crescer” (LERER, 2009 p. 254): Edward II, o príncipe de Wales, e Theodore Roosevelt, o

mais jovem presidente dos Estados Unidos, tornaram-se líderes inspirados por valores calcados

na juventude132. Lerer ainda considera que este Zeitgeist do início do século XX operava em

uma via de mão dupla. Enquanto adultos, como Edward II e Theodore Roosevelt, se

comportavam como adolescentes, as crianças passam a explorar a prática de “jogos

imaginativos”, cuja maior inspiração era a vida adulta. Não por acaso, brincadeiras que

imitavam o comportamento adulto – especialmente as atividades domésticas, como arrumar a

mesa para o chá e assumir papéis de pai e mãe, ou também imitar profissionais como médicos

e banqueiros – tornaram-se cada vez mais frequentes no universo infantil. O período

edwardiano, portanto, iniciava a era da imaginação e do escapismo, tanto nas brincadeiras

quanto na literatura infantil. Nas palavras de Lerer (2009, p. 253-254, tradução nossa),

de muitas maneiras, a literatura infantil moderna permanece um fenômeno

edwardiano. Este período define a maneira que, até hoje, nós pensamos os

livros para crianças e sobre a imaginação das crianças. Durante seus poucos

anos, a época produziu autores canônicos que ainda têm poderosa influência

na área. Ela providenciou um imaginativo panorama que ainda controla muito

da escrita contemporânea. Filtrou esse panorama de trabalhos anteriores de

maneira a produzir um cânone moderno. Nosso modo padrão de infância, se

assim se preferir, reside, mais ou menos, naquela década antes da Primeira Guerra

Mundial: o tempo entre a morte da rainha Vitória em 1901 e o assassinato em

Sarajevo em 1914, tempo este quando escritores olharam para as perdas do passado

e conseguiam apenas antecipar o fim da velha ordem.

Lerer contribui com uma importante informação: a maneira como o período edwardiano

estabeleceu as bases do que seria o modelo de literatura para crianças que perduraria durante

grande parte do século XX133. Essa produção, conforme a pesquisa de Lerer, retomava parte

das referência culturais inglesas revisitadas para os tempos modernos.

132 “Nesses anos, ambos, Inglaterra e Estados Unidos, eram governadas por homens que eram maioritariamente

vistos como eternas crianças. Edward II, o eterno príncipe de Wales, subiu ao trono apenas com quase sessenta

anos, e ainda assim sempre foi pintado como um garoto preso em seus desejos, seus apetites e suas aventuras. Ele

amava o uniforme militar, amava atirar com armas, amava tea parties. Seu duplo norte-americano, Theodore

Roosevelt, o mais jovem homem a se tornar presidente dos Estados Unidos, sempre foi visto como um desejoso,

quase maníaco, e sua Casa Branca vivia lotada de amigos de infância de seu filho mais novo, Quentin (que tinha

nove anos na época em que seu pai se tornou presidente)” (LERER, 2009, p. 254, tradução nossa). 133 Conforme mencionado neste trabalho (cap. 1, Briggs) como os autores canônicos da literatura infantil surgiram

neste período.

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149

Mas ambos os períodos, tanto o vitoriano quanto o edwardiano, mantêm como semelhança entre

si a ideia de que a infância representava um momento idílico cuja criança em sua inocência

significava a via para a prosperidade e para a regeneração da moral. A idealização da infância

e, por consequência, a adoração da criança, em certa medida advêm de resquícios do impacto

que os puritanos tiveram na literatura infantojuvenil, ainda no século XVII. Acreditando que os

livros eram instrumentos principais na educação não apenas das crianças como os fiéis em geral,

os puritanos foram grandes responsáveis pelas publicações para crianças do período. A maioria

dessas publicações ressaltavam a própria importância da leitura e dos estudos, proporcionando

aos livros um caráter utilitário. O maior exemplo deste período é a obra Pilgrim’s Progress

(1678), de John Bunyn, que inaugura na literatura inglesa um tema que seria muito caro para

os romancistas posteriores: a ausência dos pais na jornada do adolescente (LERER, 2009, p.

95). A obra de Bunyn formou grandes romancistas como Defoe e Dickens e se tornou um dos

marcos da jornada do herói na literatura inglesa134. A literatura infantojuvenil do início do

século XIX na Inglaterra, portanto, trazia em suas histórias, em certa medida, a ideia de que o

livro é um instrumento educativo e que a infância é uma fase da vida sensível no que diz respeito

ao recebimento dessa educação.

Surgem, porém, aqui e acolá, exceções na literatura inglesa que se libertam desse excesso de

otimismo de uma sociedade próspera, industrial e economicamente estável, o que, por sua vez,

transmitia segurança para as famílias e, em especial, para a criança. Tais obras propõem o

“escapismo” para um lugar incerto, onde a sombra do idealismo moral vitoriano e edwardiano

pudesse ser deixada de lado, até mesmo para uma melhor compreensão da realidade da criança.

Tais lugares também se tornaram icônicos para a literatura infantojuvenil, marcando uma nova

era na produção literária para crianças, na virada do século XIX para o XX. Para a crítica

Wullschläger, essas obras são sintomas do desejo de uma vida mais natural e simples. Nas

palavras da pesquisadora,

Elas apontam para uma das mais fortes influências vitorianas e edwardianas no

culto da infância e nos livros infantis: o desejo regressivo de um mundo pré-

industrial e rural e a identificação da criança com a pureza, a vida pré-sexual, de

moral simplificada (WULLSCHLÄGER, 1995, p. 17, tradução nossa).

134 Lerer (2009, p. 94, tradução nossa) comenta a importância do romance do Bunyan: “Bunyan sempre veio em

primeiro lugar, não apenas na história da infância como também na história da literatura. Pilgrim’s Progress era,

em todos os sentidos do termo, um livro de formação: que moldou não apenas leitores mas escritores. Era o livro

que podia ser medido com qualquer outro, seja a Bíblia ou Pamela”.

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As obras pioneiras que se destacavam dos clássicos vitorianos e edwardianos traziam como

novidade em suas estratégias narrativas a criação de lugares imaginários – sob a ótica da

realidade objetiva –, porém que combinam fantasia a uma possível compreensão da realidade

infantil, em seus aspectos mais subjetivos. Esses lugares, em vez de espelharem no récit

cenários que imitavam a vida adulta, passam a conduzir a narrativa em lugares nos quais o

adulto praticamente não existe ou, se está presente, em geral é uma influência negativa. Além

disso, a caracterização desses lugares utópicos se distanciaria da ideia de progresso e de trabalho

e, em oposição, ressaltando aspectos como a simplicidade e, até mesmo, um ambiente não

industrializado.

A história de Peter Pan acolhe ambos os temas discutidos até aqui em sua estratégia narrativa:

apresenta uma personagem que se recusa a crescer e a amadurecer como indivíduo, o que

também significa rejeitar uma vida predeterminada por valores baseados em uma moral

puritana, e está ambientada em um lugar fantástico, absolutamente independente da vida

ordinária, cujo impulso para o desenrolar dos fatos reside nas ações das crianças e não nas

ordens ou orientações dos adultos. A diferença, no entanto, entre Peter Pan e as personagens

que cultivam a juventude eterna – especialmente os mencionados anteriormente – é

significativa. Enquanto a literatura viu morrer uma série de jovens em nome da eternidade,

Peter prefere viver uma grande aventura no tempo presente – não só maior do que a própria

morte, que seria, nas palavras do próprio personagem, “morrer vai ser uma aventura e tanto”

(BARRIE, 2012, p. 132). “Eu sou a juventude! Eu sou a alegria! [...] Eu sou um passarinho que

acaba de sair do ovo” (BARRIE, 2012, p. 218), diz Peter ao Capitão Gancho, seu arquirrival.

Peter Pan sente o êxtase de estar vivo e de matar (WULLSCHLÄGER, 1995), repudia a velhice

e, com isso, vive continuamente no tempo presente, sendo o futuro – e até mesmo o passado

em algumas circunstâncias – absolutamente inexistentes135. É dessa maneira, no imediato, que

Peter conduz a liderança dos garotos perdidos, incentivando-os a se esquecerem de suas origens,

de suas famílias e de como foram parar na Terra do Nunca.

135 Não por acaso, a memória de Peter é curta. No final do livro, há um trecho significativo sobre essa característica

de Peter Pan. Os irmãos Darling já tinham voltado para Londres e Peter Pan continuava a visitar Wendy. Esta, por

sua vez, contava as aventuras que viveram juntos na Terra do Nunca, mas Peter já não sabia mais quem eram

Capitão Gancho e Sininho (BARRIE, 2012, p. 244). Não era apenas a memória de Peter que desaparecia, mas com

ela a própria noção elástica temporal. No trecho da página 245, o narrador assim diz: “Wendy ficou triste também

ao ver que o ano passado, para Peter, era como o dia de ontem, quanto para ela aquele mesmo ano de espera tinha

parecido interminável”.

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Mas a figura de Peter Pan não é construída apenas a partir de uma tendência de época, seja a

edwardiana, seja a do escapismo. Peter também representa a rebeldia do modelo

comportamental que se esperava de uma criança após anos de educação vitoriana. Ele é o garoto

selvagem que coloca um limite entre o lugar da infância (lugar este materializado na Terra do

Nunca) e a expectativa do mundo adulto (no caso, a cidade de Londres e a casa da família

Darling). Ignorando este último, Peter nasce para o século XX como um dos mais icônicos

personagens da puericultura. A crítica francesa Nathalie Prince (2010, p. 66-67, tradução

nossa), em seu artigo “Peter Pan, un conte à rebours”, retrata com exatidão essa ideia:

Peter Pan se parece com a criança absoluta, não civilizada, negativa, mal-

educada, o não adulto por excelência, uma espécie de bom selvagem adâmico

absolutamente distante da seriedade.

Alain Montadon sublinhou a primeira dualidade na obra de Barrie,

entre o mundo adulto e a Arcádia infantil. Trata-se especialmente de “uma

separação da sociedade adulta organizada e da infância libertária, seguindo

um princípio de realidade e um princípio de prazer”. Essa oposição, que

sustenta os dogmatismos, corresponde ao antagonismo entre as preocupações

materiais, de um lado, e aquilo que podemos chamar, do outro lado, de um

universo espiritual complexo.

Não civilizado, selvagem, sem educação, antiadulto. Uma espécie de Adão rousseauniano que

age de acordo com seus desejos e impulsos sem se importar com a “sociedade organizada de

acordo com os adultos”. Esta é a linha de conduta que Peter exige de seus “subordinados”, que,

por sua vez, obedecem ao capitão sem questionar.

Não é de se estranhar, portanto, que as ordens de Wendy, mesmo que diretas e claras, nunca

conseguem ser totalmente compreendidas e atendidas, e o fracasso da imposição do comando

da menina se torna, uma vez mais, desordem. Essa situação é facilmente localizada em diversas

cenas do texto, com um atenuante muito presente por todo o romance: tom cômico. Uma delas,

logo no início do décimo capítulo, narra a Noite das Noites. No chá de faz de conta servido na

ocasião, Wendy tenta controlar a algazarra dos meninos ensinando-lhes a noção de turno

conversacional: deveriam levantar a mão e aguardar a permissão para falar algo ou reclamar de

alguém. Mas logo que algum dos meninos aplicava o procedimento aprendido, um outro

subvertia a lição. Como no exemplo a seguir:

A refeição daquela noite, por acaso, era um chá de faz de conta, e todos os

moradores da casa estavam reunidos em volta da tábua com fome e com a

boca cheia d’água. Na verdade, com toda a conversa e as queixas dos meninos,

a barulheira, como disse Wendy, era francamente ensurdecedora. Claro que

ela não se incomodava com o barulho, mas mesmo assim não deixava que os

meninos agarrassem as coisas na mesa de qualquer jeito, desculpando-se

depois com o pretexto de que Assobio tinha esbarrado no braço deles na hora

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de se servirem. A regra geral era que não podia bater de volta durante a

refeição, consultando sempre Wendy sobre a questão em disputa: bastava o

menino envolvido levantar o braço direito com modos, e dizer: “Quero me

queixar de Fulano”. Entretanto, o que acontecia geralmente era que todos se

esqueciam do combinado, ou então começavam a exagerar.

— Silêncio! – gritou Wendy, quando pela vigésima vez teve de dizer

que não podiam falar todos ao mesmo tempo. — A sua xícara está vazia,

querido Levemente?

— Ainda não, mamãe – respondia Levemente, depois de olhar para

uma caneca imaginária (BARRIE, 2012, p. 143-144).

Para Wendy, o momento da refeição significava um dos pilares da constituição familiar e, como

mãe-educadora, exigia que os meninos se portassem de maneira exemplar. Suas naturezas

rebeldes, no entanto, não permitiam a total domesticação, e o fracasso de Wendy se torna

evidente. A autoridade da menina, no entanto, é garantida não apenas pela própria imposição –

como ao gritar para pedir silêncio, uma contradição absolutamente cabível dentro do espectro

de compreensão dos garotos perdidos –, como pelo imediato afago, ao preocupar-se de maneira

afetiva com a alimentação dos meninos (“A sua xícara está vazia, querido Levemente”), cujo

retorno é o reconhecimento por parte dos garotos de sua figura como mãe (“Ainda não,

mamãe”).

Se a garota Wendy representa na Terra do Nunca a mãe dos garotos perdidos, para uma criança

londrina ela representa a eficácia do modelo educacional inglês (REYNOLDS, 1990), baseado

em valores cristãos da família burguesa. Em seu comportamento, Wendy é submissa ao

“esposo”, como na passagem em que os garotos perdidos discordam de Peter e ela, mesmo

compreendendo o ponto de vista dos meninos, ainda prefere não se opor ao “pai de todos”:

Sempre que ele [Peter] dizia “Peter Pan falou”, esperava que todo mundo

parasse de falar e aceitasse o fim da conversa com a maior humildade. Mas os

peles-vermelhas não eram tão respeitosos assim com os outros meninos, e os

tratavam como se fossem simplesmente outros guerreiros da tribo. Para eles,

só cumprimentos comuns; e o que aborrecia os meninos era que Peter dava a

impressão de achar aquilo muito justo.

Por dentro Wendy concordava um pouco com eles, mas era uma dona

de casa leal, e não iria admitir queixas contra o pai de todos.

— Seu pai é quem sabe – ela respondia sempre, independente do que

pensava. Em sua opinião, aliás, ela não devia ser tratada pelos peles-vermelhas

como uma índia da tribo (BARRIE, 2012, p. 142-143).

O trecho evidencia não apenas o comportamento submisso de Wendy na condição de mulher –

ao concordar com a figura masculina de maior poder, mesmo tendo uma opinião pessoal

diferente do tema –, mas também o desejo de receber um tratamento distinto, especial pelos

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selvagens índios peles-vermelhas, justamente por sua posição nessa microssociedade: “esposa”

da figura mais respeitada da Terra do Nunca.

Outro traço comportamental de Wendy absolutamente familiar burguês retratado no romance

se dá quando, após o chá, a menina se senta para costurar meias furadas, as crianças brincando

ao redor, e Peter chega do “trabalho”:

Enquanto ela costurava, os meninos brincavam à sua volta; um grupo tão feliz

de rostos alegres e pernas dançantes, banhado à luz romântica da lareira. A

cena tinha se tornado muito familiar na casa debaixo da terra, mas essa é a

última vez que vamos vê-la.

Ouviu-se um passo acima da casa, e Wendy, podem ter certeza, foi a

primeira a reconhecer:

— Crianças, estou ouvindo os passos do seu pai. Ele vai querer que

vocês estejam esperando por ele na porta (BARRIE, 2012, p. 145-146).

A cena traduz o retrato idealizado da família perfeita: a harmonia na casa, a ansiedade da esposa

que aguarda o marido, a expectativa de reconhecimento das crianças pelo pai. Porém, se a cena

é narrada com tanta naturalidade, o ar residual é o de artificialidade. As ações e reações das

crianças e de Peter no faz de conta de Wendy são regidos pela voz de comando da garota, que

induz os meninos a agirem como se estivessem no “lar feliz” da família burguesa. Não por

acaso, Wendy diz que Peter “vai querer” que os meninos o recebam na porta, uma vontade que

não advém exatamente de Peter, mas sim do delírio de Wendy calcado no modelo ideal burguês

familiar, no qual haveria harmonia entre os membros da família.

Salta aos olhos do leitor, portanto, a espécie de mise en abîme136 que se produz com o faz de

conta no romance. A “brincadeira de casinha” de Wendy está contida dentro da grande

brincadeira que é o próprio viver na Terra do Nunca, onde o chá, a xícara e tudo o mais são

frutos da imaginação das crianças, porém materializados por meio do faz de conta. Nada é de

fato real e a própria “irrealidade” sustenta o estado selvagem de Peter e dos garotos perdidos.

É a crença de que a brincadeira pode ser eterna que faz da Terra do Nunca um lugar desejado

por todas as crianças, a utopia da infância.

136 Termo criado pelo escritor francês André Gide no romance Journal (1893), vale acompanhar o belo comentário

sobre a proposta de Moisés (2013, p. 307): “O sintagma francês ganhou aceitação internacional, fruto de não haver

correspondente à altura. ‘Perspectiva em abismo’, ‘estrutura em abismo’, dentre outras tentativas no gênero, têm

sido empregadas, mas sem alcançar substituí-la, embora assinalem, com nitidez, a função dessa técnica estrutural,

evitando que se lhe atribuam, pelo acento posto na forma, implicações de ordem psicológica ou metafísica”, que

se completa com a sintética definição de Cuddon (1999, p. 513, tradução nossa): “Um recurso literário: cunhado

por André Gide, efeito literário de regressão infinita”.

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Uma outra visão em relação a esse tema é a proposta por Maria Nikolajeva (2003). Em seu

estudo sobre a retórica do herói, a crítica russa estabelece uma relação entre o trabalho

(atividade produtiva) e os heróis dos livros infantis. Nikolajeva observa que o trabalho é um

elemento central para a compreensão da imagem da criança na literatura, especialmente no

século XIX, mesmo que não muito explorado pela crítica. Para ela, apenas poucos romances

voltados para o público infantil de fato tocam no tema do trabalho, e ainda assim ficam restritos

aos chamados “romances sociais”137. Ora, para Nikolajeva, nem mesmo E. M. Forster, um dos

grandes pensadores do romance, considerou o trabalho como um dos elementos centrais na

caracterização dos personagens, pois o ponto de vista do crítico acerca do romance explora o

lado burguês das relações – no qual o trabalho se constitui como uma atividade “ordinária”,

assim como comer, dormir ou ir ao banheiro, que são atos vitais, porém desnecessários no

desenvolvimento e na compreensão das cenas e das ações das personagens. Um dos motivos

para a omissão do trabalho na literatura infantojuvenil, de acordo com Nikolajeva, seria o fato

de que não faz parte do universo da criança preocupar-se com aspectos do mundo adulto, como

por exemplo dinheiro e leis. As “leis” que regem o universo das crianças viriam de uma lógica

calcada na fantasia. Na sequência desse raciocínio, o árduo trabalho de Wendy na casa embaixo

da terra seria apenas parte da brincadeira. Como se Wendy inventasse o seu próprio jogo na

Terra do Nunca, assim como cada uma das crianças cria a sua própria diversão. Nas palavras

de Nikolajeva (2003, p. 207, tradução nossa),

Wendy, em Peter Pan, parece trabalhar duro na Terra do Nunca, e o autor

tenta convencer os leitores de que sua heroína de fato gosta desse chato e

monótono trabalho, simplesmente porque mulheres são feitas dessa maneira.

No entanto, como tudo na Terra do Nunca é falso e faz de conta, os esforços

domésticos de Wendy são simplesmente parte do jogo.

O comentário de Nikolajeva traz consigo um juízo de valor. Ao dizer que o autor acha que “as

mulheres são feitas dessa maneira”, a pesquisadora atribui a Barrie a idealização do papel

137 A exceção que Nikolajeva (2003, p. 206, tradução nossa) reconhece seria justamente Sans famille: “A legítima

probreza nunca força o jovem protagonista a conquistar seu ganha-pão trabalhando em uma fábrica ou em uma

mina. Uma exceção bem conhecida é o clássico francês Sans famille, o qual, entre outras coisas, descreve o

protagonista trabalhando em uma mina de carvão e quase acabando morto em um acidente. Um romance da

escritora alemã Lisa Tetzner, Die schwarzen Brüder [Os irmãos negros], lida com o trabalho infantil na Itália na

década de 1840. Em ambas as histórias, as personagens são eventualmente liberadas do inferno que é o trabalho

manual: Rémi, quando descobre ser filho de uma família aristocrática rica; o pobre limpador de chaminés Giorgio,

quando é adotado por uma família rica e recebe educação adequada. Um grande número de histórias vitorianas

lida com crianças pobres da classe trabalhadora, que são sempre de maneira muito confortável eliminadas pelos

autores, de maneira a proporcionar exemplos de boa moral para os seus leitores de classe média”.

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feminino na narrativa, que, por sua vez, reverbera na construção da personagem Wendy. De

fato, há de se considerar que o autor poderia, ele mesmo, entender que o papel das mulheres se

restringia aos trabalhos domésticos. Porém, trata-se de uma especulação baseada nos costumes

da época. Wendy de fato representa a ordem, a ideia adulta de prosperidade por meio do trabalho

– mais um elemento da sociedade burguesa de bem-estar. Ainda assim, o trabalho de Wendy é apenas

uma camada da brincadeira coletiva, como mencionado acima, a mise en abîme do faz de conta,

mimetizando a expectativa da criança do que ela será quando adulta138.

No entanto, o leitor confronta-se com uma outra situação no mesmo romance: o intempestivo

Peter Pan, cujo deleite é viver – e sobreviver – em sua própria utopia, no senso estrito de “lugar

ideal”. Como Peter vive apenas no presente, ele não formula projetos para o futuro, não quer

ser ninguém diferente dele mesmo, nem pretende ou almeja mudanças em decorrência do passar

do tempo. Nesse sentido, Peter Pan e Wendy são figuras de forças antagônicas que dividem os

papéis de herói e heroína do romance. A constante tensão, no entanto, que se produz do encontro

entre as duas personagens é a força motriz que impulsiona o desenvolvimento narrativo de Peter

e Wendy. Dentro desse contexto, o capítulo “Um lar feliz” é de importância central para o romance,

uma vez que evidencia, por meio da brincadeira de faz de conta, a constatação de que a convivência

entre Peter e Wendy é, na verdade, impossível. Somente a partir desta revelação, a narrativa pode

avançar para o seu final: os irmãos Darling devem voltar para seus verdadeiros lares e Peter finalmente

terá a chance de confrontar seu maior inimigo139.

138 Apenas a título de curiosidade, Maria Tatar na edição anotada de Peter Pan (2011, p. 119) informa que a

cortina do teatro que abrigou a peça em 1909 continha um bordado supostamente “feito por Wendy” com cenas

de Peter Pan, pois contém a assinatura “Wendy Moira Angela Darling / Her Sampler, Age 9 Years” e que o

desenho sugere uma relação entre costurar, contar histórias e escrever, como se fossem atividades similares. 139 O contexto narrativo não deixa dúvidas de que o inimigo de Peter Pan é o Capitão Gancho. Na literatura crítica,

no entanto, alguns pesquisadores afirmam que o maior inimigo de Peter Pan é Wendy, pelas razões descritas no

parágrafo. Kirsten Sterling (2012, p. 17, tradução nossa) defende este raciocínio. Para a pesquisadora, a grande

dicotomia da obra é a caracterização tanto das figuras femininas quanto masculinas. Sendo que as figuras femininas

(especificamente na personagem Wendy) podem ser, ao mesmo tempo, associadas à maternidade e à crueldade.

Nas palavras de Sterling, “o perigo de Peter não é o Gancho, cujo papel ele de fato imita após a derrota do pirata,

obrigando Wendy a lhe fazer um terno com as roupas de Gancho e sentando ‘na cabine, com a piteira de dois

charutos do Capitão Gancho numa das mãos enquanto a outra mão estava fechada em punho, menos o dedo

indicador, que ele mantinha curvado em riste no ar, como um gancho’. Nem é o senhor Darling, que herda o papel

de Peter como líder dos garotos perdidos, sugerindo jogos de esconde-esconde e abrigando sua tribo na sala de

estar imaginária em vez da casa da Terra do Nunca – embora na versão para o teatro o ator que interpreta o senhor

Darling tradicionalmente também interpreta Gancho. Ambos os homens adultos são mais vítimas que os vilões. O

verdadeiro inimigo de Peter é Wendy”.

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4.1 Peter ou Wendy: problemas na definição do herói

Observando com mais cuidado a questão, a identificação do herói no romance é um problema

pertencente ao campo da interpretação literária. Um dos conceitos mais universais sobre o herói,

como já abordado neste trabalho, é o proposto por Campbell a partir da já citada estrutura

circular do Monomito. Do ponto de vista da estrutura clássica, o herói é aquele que, convidado

por forças maiores a partir em viagem, deixa sua casa e embrenha-se em uma jornada na qual

deverá enfrentar desafios – muitas vezes sobrenaturais –, colocará sua própria identidade em

xeque e, com base nessas experiências, amadurecerá para, então, voltar a suas origens e ocupar

o lugar de líder em sua sociedade. Ora, no romance de Barrie, Wendy, e não Peter, completa a

jornada, abandonando a vida na Terra do Nunca quando finalmente percebe que seu verdadeiro

desejo é a realidade e não o faz de conta. Porém, Peter é o personagem que conduz toda a

narrativa, é para ele que a história é dedicada, é sobre ele que o leitor quer saber. Mas o fato é

que a história de Peter nunca tem fim (CARPENTER, 1985, p. 180). Tanto no romance quanto

na peça, o final conduz para o recomeço: Peter, mais uma vez, voltando a Londres no inverno

(quando na Terra do Nunca é primavera) para buscar Wendy, ou sua filha Jane, e até mesmo

sua neta Margaret, gerações e gerações seguintes, em uma narrativa circular que reafirma o

tempo presente da fantasia em oposição à passagem do tempo do mundo objetivo – culminando

com o envelhecimento das personagens enquanto Peter Pan permanece sempre jovem.

O romance, portanto, propõe uma quebra de paradigma na estrutura clássica do herói: como

identificar, de fato, o herói nessa história? A crítica britânica Kirsten Sterling (2012, p. 48,

tradução nossa) debruçou-se sobre essa questão e conclui que

identificar Wendy como a heroína da peça implica ler a história como sendo

uma fantasia à la Bildungsroman de seu crescimento e amadurecimento, cuja

função da Terra do Nunca é um rito de passagem necessário em sua jornada

para a vida adulta. Ler Peter como o herói, por outro lado, requer que

identifiquemos, até certo ponto, sua resistência ao mundo adulto e a Terra do

Nunca como uma fantasia escapista de fuga de responsabilidades.

A fala de Sterling é clara: se admitirmos que Wendy ocupa o lugar de heroína na história, a

obra de Barrie deve ser lida como um romance de formação, cujo final, para Wendy, reforça o

estereótipo da futura mulher dona de casa e dos garotos perdidos como adultos banqueiros,

médicos, empresários, homens de negócios; caso se considere que Peter Pan seja o herói da

história, o romance ganha ares de recusa do mundo objetivo tal qual ele foi construído desde o

século XIX, sob os auspícios da moral e da severa educação do período vitoriano. Porém, apesar

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de Wendy representar a manutenção dos costumes e Peter, a rebeldia, ambos representam entre

si e para o récit figuras complementares, apesar de regidos por forças antagônicas. Não por

acaso, esta primeira versão da história como romance intitula-se Peter e Wendy –

diferentemente das versões subsequentes, que abandonam a palavra “Wendy” para dar lugar

apenas a Peter Pan. A complexidade de Peter e Wendy, portanto, reside em sua própria forma

estrutural, esboçando traços que seriam fundamentais nos romances no século XX: uma

humanidade que não se apresenta mais como dicotômica (certo ou errado, boa ou má), mas

escancara seus conflitos internos, muitas vezes, contraditórios.

Nesse caminho interpretativo, fica também evidente como a ausência da figura adulta é

absolutamente natural para as crianças da Terra do Nunca. Aliás, este tópico é central para a

motivação do romance: não apenas os ideais do mundo adulto são recusados como também os

próprios adultos são banidos da aventura, criando um espaço livre para que as relações entre as

crianças se tornem mais profundas.

Aqui, vale a pena fazer uma pausa para ressaltar que, se a identificação de Wendy com o período

vitoriano é estratégico para criar a conexão com o leitor – e, em especial, com o espectador da

peça –, os personagens do romance revelam características complexas fugindo em parte do

modelo vitoriano da “criança como musa” e símbolo da pureza. Nesse sentido, pode-se dizer

que as personagens do romance estão mais associadas aos esféricos do que aos planos, para

usar a terminologia de E. M. Forster (1998), representando uma transição entre a literatura do

século XIX para a que viria a ser produzida no século XX, mais calcada nas preocupações e

nos anseios do indivíduo do que no coletivo. Não por acaso, é possível encontrar no romance

passagens em que as crianças sentem ciúmes, raiva, desejo de vingança. Especialmente Wendy

é irônica e desdenha Sininho – por causa de sua rivalidade na conquista de Peter Pan. Até mesmo

com o próprio herói (se assim Peter Pan for considerado) tenta usar a maternidade e a feminilidade

para conquistá-lo e demovê-lo de sua liberdade selvagem. A pesquisadora Sterling (2012, p. 169,

tradução nossa) identifica nas personagens crianças de Peter Pan uma maldade advinda de um

sentimento egoísta de satisfação dos desejos que leva a uma certa crueldade:

Devido ao fato de muitos livros de ficção para crianças dependerem da

suposição de que qualquer criança necessariamente deseja se afastar da sem

graça convenção adulta, nós ficamos do lado das crianças, eliminando a

suspeita de que essa família deve ser mais mágica do que a maioria, ou não

teria um cachorro como babá. Mas o narrador introduz uma nova visão da

infância, na qual as crianças não são simplesmente amorais, mas destruidoras

e em que seu encanto depende de sua crueldade.

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Sterling joga luz na relação das crianças do romance com os personagens adultos, que não mais

se baseia em uma relação de poder – dos pais para com os filhos e, por consequência, dos filhos

se espelhando nos pais como referência –, mas, sim, sentimental. E, neste sentimento, as

crianças se permitem serem “cruéis” com os pais à medida que fogem de casa voando pela

janela, deixando-os inconsoláveis. (Wendy, em sua complexidade nada dicotômica, na

brincadeira na Terra do Nunca é a mãe amorosa e atenciosa, vitoriana o suficiente para criar a

família ideal, porém decidida em suas estratégias nem que, para isso, tenha que sair da imagem

da menina boazinha e usar a esperteza e até a crueldade.)

A Terra do Nunca, neste âmbito, além de promover a total separação entre o universo da criança

e o do adulto, representa um novo espaço na literatura infantojuvenil, necessário para o

amadurecimento da criança, para percepção como indivíduo e também do outro. A própria

descrição da Terra do Nunca no começo do livro reforça essa ideia de ser uma ilha, um lugar

“interno” aos personagens, ou seja, está dentro da cabeça de cada um. Em uma das tantas vezes

que o narrador do romance se dirige ao leitor, é colocada a questão se os médicos alguma vez

conseguiram desenhar

o mapa da mente de uma criança, que não só é confusa como vive mudando o tempo

todo. Tem linhas em zigue-zague, como os gráficos de temperatura, e é bem

provável que essas linhas mostrem os caminhos da ilha: porque a Terra do Nunca é

sempre mais ou menos uma ilha […] (BARRIE, 2012, p. 13).

Uma ilha que aparece para cada personagem da maneira como eles a veem, porém todos têm

acesso a ela. A Terra do Nunca ocupa um lugar subjetivo em cada um dos personagens, porém

existe para todas as pessoas, está dentro de cada indivíduo:

Mas no geral, Terras do Nunca são todas parecidas ou da mesma família, e se

um dia pudessem parar uma do lado da outra, daria para você dizer que têm o

nariz parecido e assim por diante. Nessas paragens mágicas, as crianças que

brincam estão sempre ancorando os seus caiaques. Nós também já estivemos

lá; ainda nos lembramos do som das ondas, mas nunca mais desembarcaremos

nessas praias (BARRIE, 2012, p. 14).

O trecho chama atenção pelo seu final singular: “nós também já estivemos lá” implica,

necessariamente, dois questionamentos. O primeiro se refere ao interlocutor do narrador. Quem

é o “nós” ao qual o narrador se dirige? Como o narrador adulto (é sabido que o narrador

rememora a sua infância) se inclui no discurso, eliminamos os leitores crianças. A questão é

ainda mais sensível quando o narrador afirma para esse interlocutor adulto que o espaço lúdico

da Terra do Nunca, apesar de estar dentro de cada um, nunca mais poderá ser acessado por ele

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159

uma vez adulto. Como se a preciosidade da Terra do Nunca fosse preservada para esse momento

mágico que é a infância, no qual as crianças ancoram seus caiaques, não mais acessíveis para

os adultos. Em outro momento do romance também é possível encontrar trechos em que o

narrador se dirige ao leitor admitindo que este pode ser tanto adulto como criança. Trata-se do

capítulo “A história de Wendy”, quando a menina termina a história e o narrador retoma o

discurso, dizendo:

E este era o fim da história, de que os meninos gostavam tanto quanto da

própria bela narradora. Tudo exatamente como devia ser. Nós batemos asas

para o mundo, pessoas sem coração como todas as crianças – mas é tão

interessante, não é mesmo? Aí temos um tempo só para nós e depois, quando

voltamos a precisar de atenção especial, retornamos nobremente à procura

dela, na certeza de que não seremos recebidos a pancadas, e sim com abraços

(BARRIE, 2012, p. 157).

Todo o parágrafo é escrito na primeira pessoa do plural: “nós batemos asas”, “temos um tempo

só para nós”, “voltamos”, “retornamos”, “seremos recebidos”. Esta primeira pessoa do plural é

ambígua. Pode significar que o narrador inclui o leitor na experiência vivida da infância (sendo,

então, o adulto o leitor ideal) ou então, pelo uso do tempo verbal presente, o narrador se dirige

ao leitor criança, na tentativa de criar um laço de cumplicidade140. O trecho citado acima acaba

sendo duplamente interessante para análise ao reforçar a ideia da criança egoísta, distante,

portanto, da imagem clássica da criança vitoriana pura e inocente, como foi dito anteriormente.

Porém, novamente, vale ressaltar que o “batemos asas para o mundo” representa muito mais

um apelo pela independência dessa infância do que uma repulsa aos adultos que tanto amam as

crianças.

O fenômeno descrito acima muito se parece com o conceito desenvolvido apenas recentemente

– final do século XX – pelo campo da crítica em literatura infantojuvenil: a noção de obras com

audiência dual. Sandra Beckett (2009), especialista canadense em histórias de audiência dual,

define o termo como sendo uma obra ficcional que “embaça a linha que tradicionalmente separa

os leitores crianças e adultos”141.

140 Maria Tatar (2011, p. 126) comenta o mesmo trecho em suas notas: “O narrador usa a primeira pessoa do plural,

identificando-se com as crianças (‘nós batemos asas’ e ‘nós temos um tempo só para nós’), ao mesmo tempo em

que produz juízos adultos sobre crianças (‘sem coração’, ‘nobre’)”. Tatar não chega a admitir que o narrador se

dirige a crianças e adultos ao mesmo tempo, mas também considera que o trecho contém uma estrutura peculiar

que não deixa absolutamente claro a quem o texto se destina. 141 “A ficção de audiência dual embaça a linha que tradicionalmente separa dois tipos de leitores: crianças e

adultos. No entanto, os textos duais não necessariamente se dirigem à dupla audiência de crianças e adultos. Alguns

até podem parecer ter como alvo uma única audiência de leitores híbridos, adultos-crianças. Na verdade, a

literatura dual se dirige a um público diversificado e intergeracional, que pode incluir leitores de todas as idades:

crianças, adolescentes e adultos” (BECKETT, 2009, p. 3, tradução nossa).

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160

Seria natural, portanto, que algumas obras causem um certo desconforto ao transcenderem

barreiras tradicionais de classificação pela maneira original e ousada como se apresentam

enquanto linguagem literária. Assim, não deveria ser errado afirmar que Barrie intuitivamente

cria um dos romances duais. O que, em certa medida, não significou exatamente um

pioneirismo, mas sim uma continuidade, visto que a tradição literária britânica já apresentava

casos semelhantes, como em obras de Robert Louis Stevenson e Lewis Carroll:

A literatura infantil inglesa, em particular, tem uma rica tradição de literatura

dual. Até mesmo as palavras cujos títulos especificam o leitor implícito

encontraram seu público adulto. Embora escrito para crianças, O jardim de

versos de Robert Louis Stevenson, publicado em 1885, também era popular

entre os pais. A coleção de poemas inclui os favoritos e mais conhecidos como

“My shadow” (Minha sombra) e “The lamplighter” (O acendedor de

lamparinas). O subtítulo, “Uma história para crianças”, certamente não

desencorajou os leitores adultos de O leão, a feiticeira e o guarda-roupa, o

primeiro volume da famosa série dual de C. S. Lewis, As crônicas de Nárnia.

O objetivo de J. M. Barrie era apelar para adultos e crianças quando ele

escreveu a peça de teatro Peter Pan, ou o garoto que não queria crescer, em

1904 (BECKETT, 2009, p. 88, tradução nossa).

Não por acaso, as obras citadas por Beckett são, hoje, consideradas canônicas para a literatura

universal. Um outro aspecto relevante para essa discussão, que permeia o comentário de

Beckett, conecta-se diretamente com a maturidade da linguagem da obra de Barrie. Em muitos

casos, obras ditas para crianças são consideradas inferiores em relação à literatura, pois sua

linguagem de vocabulário controlado não estaria à altura dos grandes romances (HUNT, 2010).

De fato, algumas obras subestimam a capacidade de abstração e leitura de crianças e jovens,

características de textos mais óbvios e que deixam pouco espaço para que o leitor contribua

com a interpretação. Obras como Peter e Wendy, cuja escrita aberta possibilita caminhos

interpretativos diferentes, quando não antagônicos, recebem inúmeras classificações de gênero

e de público. Pode ser considerado um romance de aventura ou conto de fada (ou ambos ao

mesmo tempo); é visivelmente construído ao redor do universo infantil – os protagonistas são

crianças –, mas o narrador se dirige a adultos. Nesse impasse de classificação – o que não

beneficia em nada à obra, apenas a críticos e estudiosos – essas obras podem cair na “terra de

ninguém”142. Aqui, no entanto, seria errôneo dizer que Peter e Wendy não se consolidou como

142 Sobre o assunto, interessante o comentário de Peter Hunt (2010, p. 130): “Expectativas genéricas,

consequentemente, são autorrealizadoras: os livros para crianças são como são porque os autores supõem, daquilo

que escrevem, que é assim que deve ser. Daí, conforme já vimos, a frequente percepção dos livros para crianças

como dotados, por definição, de qualidade inferior, visto que o estilo é definido principalmente de maneira

inconsciente por texturas de envolvimento internas ao texto – e estas são as mais bem percebidas nos aspectos

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literatura para crianças. Mas as evidências que permitem uma interpretação oposta também

estão presentes, o que deixa a questão em aberto.

Essa linha interpretativa se desdobra para um outro aspecto, relacionado a uma ciência bastante

cara para o final do século XIX e começo do século XX: a psicanálise. O romance de Barrie,

por sua complexidade em termos de caracterização de personagens e ambientação narrativa,

suscitou inúmeras interpretações desse campo do conhecimento, com o objetivo de identificar

e de elucidar momentos do romance. Inúmeros foram os trabalhos que se dedicaram a esse

enfoque, alçando Peter e Wendy como um dos romances infantojuvenis precursores da literatura

moderna por excelência e, ao mesmo tempo, passando-o para o status de cânone literário.

Depois de um século de sua existência, Peter e Wendy continua sendo uma obra representativa

dos anseios da humanidade, pois seu valor não está exatamente no desenvolvimento da trama

de aventura – uma vez que a obra é também considerada um romance de aventura –, mas sim

nas relações que motivam as personagens – complexas e não dicotômicas – a agirem em função

de suas crenças, seus desejos e sua ética própria.

4.2 A infância vai ao divã

Um dos ensaios críticos mais comentados sobre a obra-prima de J. M. Barrie é o de Jacqueline

Rose, livro escrito em 1984, The case of Peter Pan: or the impossibility of children’s fiction.

Na época de sua publicação, o livro de Rose consolidou a ponte entre a interpretação literária

de Peter Pan e seu viés psicanalítico. O ponto-chave da argumentação da autora é discutir a

enunciação da obra de Barrie: para quem o texto se destina e de que maneira? Rose se apoia em

Freud para estabelecer a relação direta entre a memória da infância e o adulto: o adulto

constantemente reelabora a infância de maneira a se satisfazer.

Nas primeiras páginas de Peter e Wendy, o narrador se coloca em primeira pessoa, deixando

claro para o leitor que a história começará com um adulto revisitando sua memória de infância.

Pouco a pouco, esse narrador onisciente vai se transformando em um narrador mais próximo

das personagens, mais próximo de uma criança, e o leitor não mais percebe essa diferenciação,

podendo concentrar-se apenas no desenrolar da narrativa.

estilísticos [...] Os textos que contestam essas premissas geralmente se encontram em ‘terra de ninguém’ entre os

escritos para (os chamados) adultos e os escritos para (as chamadas) crianças”.

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Rose interpretou esta estratégia de escrita como uma falta de coesão entre o narrador adulto e o texto

destinado para o leitor-criança, uma vez que, na interpretação da pesquisadora, a literatura

infantojuvenil traria em sua essência limites e adequações próprias para o seu público:

No caso da ficção para crianças, a questão do nursery [dormitório] se

transforma em uma questão de limites, de irracionalidade e de controle

perdido, de quanto o narrador pode ir antes de perder sua identidade e,

portanto, o direito de falar, ou escrever para uma criança. Escrever para

crianças repousa sobre esse limite, o limite cuja passagem de abertura do texto

de Barrie de 1911 significa efetivamente um trauma no processo. A demanda

por uma escrita melhor e mais coesa na ficção para crianças, descrita no

capítulo anterior, carrega o argumento de que certas barreiras psíquicas não

devem ser perturbadas, a mais importante das quais é a barreira entre adulto e

criança. Quando a ficção para crianças toca nessa barreira, ela não se torna

experimento (o jogo formal de um romance adulto moderno que percorre toda

a gama de pontos de vista de seus personagens), mas molestamento. Assim, o

escritor para crianças deve manter suas mãos narrativas limpas e permanecer

em seu devido lugar (ROSE, 1985, p. 70, tradução nossa).

Na passagem acima, fica evidente como o argumento de Rose preocupa-se em estabelecer

limites específicos para a literatura voltada para crianças e jovens no que tange a separação dos

universos da criança e do adulto na própria escrita. Aparentemente, a crítica considera que a

escrita dual demonstra uma falta de controle do autor-narrador, o que geraria uma incoerência

no récit. Esta discussão é muito apropriada para a literatura infantojuvenil, no âmbito da própria

classificação e definição de literatura infantil e juvenil. A total separação no campo da crítica

literária entre literatura “para crianças” e “para adultos”, historicamente, gerou uma falsa ideia

de que a literatura infantojuvenil seria uma subcategoria literária, algo até de menor valor. Os

esforços contemporâneos em alçar a literatura para crianças e jovens ao seu status de

“literatura” se apoiam justamente no argumento de que “livro não tem faixa etária”, que

qualquer obra pode ser lida por qualquer pessoa.

Voltando a discussão para a obra de Barrie, um outro olhar para esse fenômeno, que o

diferenciaria das conclusões de Rose, seria dizer que a presença do narrador onisciente adulto,

que passo a passo se envolve com as personagens crianças, pode ser considerada um recurso

narrativo proposital de maneira a aproximar o leitor de uma “verdade” que é colocada no

começo do livro (“Todas as crianças crescem, exceto uma”) até o seu reconhecimento, ao entrar

na narrativa e deixar o leitor se envolver totalmente com as personagens. Nesse momento, o

narrador desaparece como aquele que sabe o que se passa na cabeça das personagens para de

fato apenas narrar os fatos.

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Deve-se levar em consideração que essa discussão sobre o fenômeno das obras de audiência

dual, cuja principal característica é serem reconhecidas pelas crianças mas com profundidade

intelectual que permite a apreciação do leitor adulto, talvez seja uma marca “moderna” da

literatura. Demonstra um salto para uma nova concepção do fazer literário para crianças e

jovens, sem subestimá-los em termos da compreensão – ou da capacidade de compreensão –

que podem ter em relação a um texto mais complexo. Essa característica, muito presente em

Peter e Wendy, também revela um compromisso da obra e do escritor com a própria literatura,

não apenas ao destino do livro em termos de seu público leitor.

É por este caminho que o crítico norte-americano Jack Zipes critica o trabalho de Rose e

expande a interpretação de Peter e Wendy para uma literatura que não necessariamente pertence

ao universo da literatura infantil, mas sim permite um diálogo com adultos que queiram

desembarcar uma vez mais naquelas praias:

Embora a argumentação de Rose seja de grande valia, assim como outros

comentários interpretativos em seu livro, ela comete um erro importante ao

considerar Peter e Wendy um romance para crianças, ou seja, ficção infantil.

Embora Barrie empregue múltiplos recursos narrativos e mudanças de

perspectiva, o narrador que “toma conta” dos eventos dirige-se sempre a

outros adultos como leitores implícitos do romance, assim como em Peter Pan

in Kensigton Gardens. E, embora encontremos o que Jacqueline Rose chama

de “deslizamento”, ou seja, embora o narrador seja escorregadio, Barrie, o

autor, não é. Tem um domínio claro de seus personagens, do enredo e do

cenário. Sabe o que quer dizer e não hesita em apresentar uma certa imagem

do que seja a brincadeira imaginativa das crianças.

Existem, claro, muitas maneiras de interpretar Peter e Wendy, e a

interpretação de Jacqueline Rose é uma das mais esclarecedoras. No entanto,

alguns críticos assinalaram perceptivelmente que o romance e a peça teatral

refletem a ansiedade masculina, ao final do século XIX, quando o processo de

modernização trazia grandes mudanças para a família e para o local de

trabalho. Outros examinaram o desejo nostálgico de retornar ao passado

idílico de uma meninice despreocupada, ou a óbvia relação edipiana mal

resolvida representada pelo papel de mãe em Wendy. Nenhum deles via o

romance, porém, como um metacomentário ao comportamento adequado do

papel de pais e mães, ou como um manual para os adultos sobre a maneira

como as brincadeiras imaginativas precisam ser salvaguardadas para as

crianças, de modo que elas possam se transformar em adultos responsáveis

(ZIPES, 2012, p. 279).

Zipes, já à luz do século XXI, manifesta a intenção de colocar um ponto final na discussão

quando propõe que o esforço de Barrie não exatamente reside em comunicar para as crianças

possíveis modelos de comportamento distantes do universo adulto. Mas, ao contrário, a obra de

Barrie seria um convite aos adultos para revisitar o universo infantil de modo que eles se

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164

aproximem de seus filhos e respeitem um período precioso de aprendizagem, que utiliza

brincadeiras, a exemplo do faz de conta, como parte do desenvolvimento pessoal143. Essa leitura

da obra de Barrie leva em conta a nova situação da família na Inglaterra da virada do século XIX

para o XX, quando a combinação da vida “moderna” – fruto da revolução industrial – com a

idealização da criança – resquício do período vitoriano, ainda alimentado no edwardiano – mudou a

relação entre os pais e seus filhos.

Para além de sua leitura, o comentário de Zipes também traz um dado importante sobre as linhas

interpretativas de Peter e Wendy. Por mais diversas que sejam, elas têm em comum admitir que

se trata de uma obra complexa e, portanto, pode abarcar interpretações que flertam com diversos

campos do conhecimento – como a sociologia e a história – e associadas a elementos da

biografia do autor. Tais linhas críticas, para justificar a complexidade narrativa e psicológica

de Peter e Wendy, com frequência transferem momentos da vida do autor para explicar e, até

mesmo, espelhar partes do romance. Nesses casos de interpretação, os pesquisadores utilizam

de maneira superficial ferramentas da psicanálise para calcar e validar seus argumentos acerca

do romance.

O caminho interpretativo não se restringe à análise de Peter e Wendy ou, melhor, das obras de

Barrie, mas a estende a outros escritores do período que possam ser considerados vanguardistas

e que, de alguma maneira, apresentavam comportamentos sociais diferenciados do status quo

– tornando-se eles mesmos personagens em suas próprias vidas –, além de manterem algum

tipo de contato ou amizade com crianças. Este é o caso, por exemplo, da pesquisadora já citada

neste trabalho Jackie Wullschläger. Sua obra Inventing Wonderland: victorian childhood as

seen trough the lives and fantasies of Lewis Carroll, Edward Lear, J. M. Barrie, Kenneth

Grahame, and A. A. Milne (1995) busca justamente traçar a correspondência direta entre as

criações literárias de tais autores e os fatos de suas vidas que os levaram a escrever suas obras-

primas144. Num primeiro momento, Wullschläger (1995, p. 4-5, tradução nossa) admite que tais

143 O crítico e pesquisador inglês F. J. Harvey Darton (1966, p. 107, tradução nossa) corrobora a ideia de que

Peter e Wendy e outros livros do período vitoriano que conquistaram jovens leitores não foram, de início, pensados

para tal público: “Eles não foram escritos para crianças: tecnicamente, suponho, não eram ‘livros para crianças’.

O senso comum diz que agora eles são, e o que quer que os autores intentaram, tais livros são, para crianças,

histórias diretas contadas com tanta facilidade e simplicidade, com tal propriedade do escritor no assunto, que a

mera contação é sua força, o segredo de seu poder sobre mentes jovens”. 144 “Eu escolhi explorar as vidas e as obras dos grandes escritores de fantasia como um grupo, na tentativa de

descobrir os fatores comuns que levaram um punhado de homens, entre 1865 e 1930, a criar uma nova literatura

radical para crianças de tal fascínio e encantamento” (WULLSCHLÄGER, 1995, p. 4, tradução nossa).

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obras tenham uma característica dual – atendem tanto ao público infantil quanto ao adulto – e

são advindas do contato dos autores com crianças:

Houve algum traço comum ou fato biográfico que levou esses escritores a

criarem mitos da infância? O que lhes permitiu, como adultos, ver com os

olhos de uma criança? Nenhum deles planejou ser um escritor de livros para

crianças: Lewis Carroll era matemático e Edward Lear, paisagista; Kenneth

Grahame era banqueiro; J. M. Barrie e A. A. Milne eram dramaturgos. Os

primeiros contaram suas histórias casualmente para entreter crianças, sem

qualquer intenção de publicação: Carroll começou Alice no País das

Maravilhas para divertir Alice Liddell, filha de um decano em Oxford, em um

passeio de barco; Grahame inventou histórias de ninar para seu filho travesso,

sobre um sapo e um rato d’água. É como se cada escritor precisasse de uma

criança como musa para acionar a imaginação do adulto e criar uma fantasia

extraordinária. Uma vez trancado nesse mundo mágico, cada um atraiu em

sua própria peculiaridade uma forte afinidade com a infância.

Wullschläger acredita que tais autores partem de um denominador comum e, por isso, poderiam

ser considerados um grupo, mesmo que alguns sejam de gerações diferentes, cuja principal

característica a uni-los seria terem desenvolvido uma certa obsessão pela infância em

determinado momento de suas vidas criativas. Em Barrie, são dois os eventos de sua vida

ligados a crianças com frequência associados ao desenvolvimento da personagem Peter Pan. O

primeiro seria ainda quando Barrie tinha apenas seis anos por ocasião da morte de seu irmão

mais velho, David, em um acidente de patinação no gelo ao comemorar seu aniversário de

catorze anos. Nos diários de Barrie ecoa um verdadeiro incômodo pela reação dramática de sua

mãe diante da morte do irmão – que viria entraria em um quadro de depressão (CARPENTER, 1985)

–, levando o autor a se sentir preterido. Barrie, então, teria começado a desenvolver uma obsessão

pelo irmão morto, num primeiro momento para confortar sua mãe145 e, num segundo momento, como

inspiração para o personagem Peter, o garoto que nunca cresce146.

145 Dos diários de J. M. Barrie: “Sentei-me muitas vezes em sua cama tentando fazê-la esquecer-se dele, que era

um jeito astuto de bancar o médico […]. No começo, eles dizem que eu era muitas vezes ciumento, tentando

bloquear as lembranças afetuosas dela com o grito ‘Você não se importa nada comigo?’, mas isso não durou muito

tempo; esse lugar foi tomado por um desejo intenso (mais uma vez, acho, minha irmã deve tê-lo respirado em

vida) de me tornar tão parecido com ele que até minha mãe não veria a diferença […]. Ele tinha uma maneira tão

alegre de assobiar, ela havia dito para mim, sempre a animara em suas tarefas ouvi-lo assobiar e, quando ele

assobiava, ficava de pé com as pernas afastadas e as mãos nos bolsos das suas calças curtas. Decidi confiar nisso.

Então, um dia, depois de ter aprendido o assobio dele [...] de meninos que haviam sido seus companheiros, vesti

secretamente uma roupa dele […] e assim disfarçado eu escorreguei, sem ninguém ver, para o quarto da minha

mãe. Estremecendo, oh não duvide, ainda assim tão satisfeito, fiquei parado até que ela me viu, e então – como

deve ter doído para ela! ‘Ouça!’, eu gritei em um repente de triunfo, e estiquei minhas pernas bem separadas e

mergulhei minhas mãos nos bolsos das minhas calças curtas, e comecei a assobiar” (BARRIE, apud

CARPENTER, 1985, p. 171-172, tradução nossa). 146 “Peter é, em certo sentido, composto de muitas pessoas, como o próprio Barrie. Sua origem está, em parte, no

irmão morto de Barrie, David, que permaneceu vivo quando criança na mente de sua mãe – ‘Quando eu me tornei

um homem [...] ele ainda era um garoto de treze anos’, escreveu Barrie” (CARPENTER, 1985, p. 177, tradução

nossa).

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Outro evento que marcou a vida de James Mathew Barrie e está diretamente associado à criação

da história de Peter e Wendy foi a amizade que desenvolveu com os irmãos Llewelyn Davies,

crianças que conheceu em um passeio por Kensigton Gardens. Primeiramente, com os mais

velhos, George and Jack, posteriormente com os mais novos, Peter, Michael e Nicholas. E,

assim como Lewis Carroll criou Alice no País das Maravilhas em um passeio de barco com as

irmãs Liddell, dedicando posteriormente a obra a Alice Liddell, Barrie criou Peter Pan para

George durante as brincadeiras de pirata que o escritor e os irmãos Llewelyn desenvolviam ao

redor do lago e na floresta perto de sua casa de campo em Sussex (WULLSCHLÄGER, 1995,

p. 125). Posteriormente, quando Peter Pan estreou, ficou visível para a família Llewelyn que a

similaridade da peça e de suas vidas com Barrie não se restringia ao uso de seus nomes nas

personagens do romance, mas, sim, viriam a se reconhecer em diversos momentos da peça147.

A relação de Barrie com os garotos se tornaria mais e mais intensa, chegando ao ponto de assumi-

los como família após a morte do senhor e da senhora Llewelyn Davies. Outra inspiração advinda da

vivência do autor com crianças culminou com a origem do nome Wendy supostamente atribuída a

Margaret, filha do amigo próximo e escritor William E. Henley, a qual chamava Barrie de friend

(amigo), porém, como era muito pequena, pronunciava “fwendy” ou “wendy” (CARPENTER, 1985).

Os exemplos acima, ainda que partam da biografia para explicar a obra, baseiam-se em

episódios reais e servem, no mínimo, como anedotas para explicar a origem de elementos

presentes no romance. Há, porém, uma intensificação dessa linha a qual considera que Barrie

espelha Peter Pan em sua própria personalidade. O crítico Humprey Carpenter (1985, 177-178,

tradução nossa) abraça esse caminho interpretativo ressaltando características da personalidade

de Barrie que teriam ressonância na construção da personagem Peter Pan:

O modelo principal para Peter Pan é, obviamente, o próprio Barrie. Peter é

tudo o que Barrie foi e se tornou. Ele não é nem criança nem adulto, e é

totalmente assexuado. Essa maneira assexuada tornou-se ainda mais evidente

quando a peça foi encenada pela primeira vez, em 1904; nesta e em todas as

produções inglesas subsequentes por quase oitenta anos, o papel de Peter foi

interpretado por uma atriz. Mas Barrie não pretendia exatamente isso e,

quando Miles Anderson assumiu o papel-título na produção da Royal

Shakespeare Company de 1982 em Londres, ficou evidente que a

assexualidade, a incapacidade de se envolver em relacionamentos reais, a

suprema solidão, tudo isso está lá no texto de Barrie, seja qual for o gênero

real do artista.

147 “A família, de alguma maneira alarmada, descobriu-se encalacrada na peça Peter Pan, e não se sentiu

confortável nas glórias advindas dela” (CARPENTER, 1985, p. 176, tradução nossa).

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Ou ainda, na comparação invertida, agora de Peter Pan com Barrie:

Peter “é” Barrie em tantos outros aspectos. Ele [Peter] é o manipulador das

emoções de outras pessoas, que as carrega do mundo real que habitam para

um país de sua própria invenção, onde podem atuar em papéis que ele escolhe

para elas nos dramas de sua própria imaginação. Ele também é o estranho, o

observador, que flerta tanto com a mãe quanto com a criança (como Barrie

fez), mas que no final é cortado do relacionamento verdadeiro (CARPENTER,

1985, p. 179).

Carpenter ressalta a questão do não desenvolvimento da sexualidade em Peter Pan, que

espelharia diretamente uma possível dificuldade que Barrie teria em sua vida pessoal – Mary

Ansell, sua ex-mulher, revelou que o casamento nunca foi consumado (CARPENTER, 1985).

Um exemplo muito claro desse comportamento em Peter Pan no romance é a sequência do

diálogo que inicia este capítulo:

— Só estava pensando – disse ele, um pouco alarmado. — É só de faz

de conta, não é, que eu sou o pai deles?

— Oh, claro – disse Wendy muito empertigada.

— Sabe – disse ele, em tom de desculpas –, eu ia me sentir tão velho

se fosse pai deles de verdade.

— Mas eles são nossos filhos, Peter, seus e meus.

— Mas não de verdade, não é, Wendy? – perguntou ele ansioso.

— Se você não quiser, não – respondeu ela.

E ouviu-se claramente o suspiro de alívio do menino.

— Peter – perguntou Wendy, tentando falar com a voz firme –, o que

você sente por mim, exatamente?

— O carinho de um filho muito fiel, Wendy.

— Foi o que eu achei – respondeu ela, e foi sentar-se sozinha na outra

ponta da sala.

— Você é tão diferente – disse ele, francamente intrigado – e Lírio

Selvagem é do mesmo jeito. Ela está sempre querendo ser alguma coisa

minha, mas diz que não é minha mãe.

— Não, na verdade não é – respondeu Wendy exagerando um pouco

no tom. Agora ficamos sabendo por que ela tinha tanta má vontade com os

peles-vermelhas.

— Então o que é?

— Uma dama não pode dizer.

— Ah, deixe estar – disse Peter, um pouco irritado. — Talvez Sininho

me conte.

— Ah, sim, Sininho pode contar – respondeu Wendy ironicamente.

— Coitada, é uma criaturinha tão abandonada!

E aqui Sininho, que estava no seu quartinho arrumado ouvindo a

conversa dos dois, tilintou algum nome feio.

— Ela disse que adora ser uma criaturinha abandonada – traduziu

Peter.

E teve uma ideia repentina:

— Quem sabe Sininho quer ser a minha mãe?

— Seu burro idiota! – gritou Sininho furiosa.

Tinha dito aquilo tantas vezes que Wendy não precisava mais de

tradução (BARRIE, 2012, p. 149-150).

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O trecho explicita bem a má compreensão de Peter Pan em relação às intenções das três figuras

femininas fortes do romance: Wendy, Sininho e Lírio Selvagem, todas elas querendo ocupar o

lugar de par romântico do garoto148 e, por isso, há uma certa tensão entre elas – como se pode

verificar, no final do diálogo, na ironia de Wendy dirigida à Sininho. Porém, para as três, Peter

tem uma única pergunta: quem estaria disposta a ocupar o lugar de mãe dele? Certamente, a

ingenuidade do garoto irrita e decepciona as figuras femininas que, logo mais, perceberão como

é inútil forçar Peter a qualquer situação romântica.

Na visão de Carpenter e também de Wullschläger, a correspondência direta entre Peter Pan e

Barrie residiria nessa dificuldade em se admitirem como homens frente tanto ao par amoroso

quanto às responsabilidades da vida. Wullschläger, por exemplo, atribui esse comportamento

de Barrie ao sentimento coletivo da época, de culto à juventude, e também ao trauma dos

conflitos que afetariam toda uma geração de jovens soldados com a Primeira Guerra

Mundial149. Para Carpenter, a personalidade de Barrie, tanto manipuladora em relação a seus

amigos e conhecidos, quanto dúbia em relação à sua ex-mulher e aos garotos Llewellyn

Davies150, o colocava em um lugar ainda desconhecido para uma sociedade que enxergava a

figura masculina como pai de família e provedor.

148 Sterling (2012, p. 170, tradução nossa) corrobora essa leitura: “Assim como todas as mães são iguais, desde a

senhora Darling até Wendy, passando por Jane e Margaret até o infinito, todas as mulheres querem a mesma coisa:

a maternidade. Pense, Lily e Wendy compreendem instintivamente a sexualidade que nenhum homem

(especialmente Peter) tem e suspeita; assim, as mulheres que vivem na Terra do Nunca estão sempre em guerra,

em vez de formar uma tribo cooperativa como os meninos ou os piratas, já que a secularidade criou inveja. Cada

uma delas quer que Peter seja algo mais que “filho fiel”. E como os piratas finalmente percebem, nenhum navio

pode navegar suavemente com uma mulher a bordo, porque a união masculina não combina com o desejo feminino

de se casar”. 149 “De certo modo, eles [Barrie e Grahame] foram tão vítimas do culto da juventude gloriosa quanto as baixas de

guerra; homens jovens mergulhados num sentido pessoal pelo sonho da infância eterna, meninos para os quais a

idade adulta parecia impossível de ser enfrentada” (WULLSCHLÄGER, 1995, p. 140). Lerer expande o

comentário de Wullschläger ao dizer que a obra Peter Pan criou uma nostalgia da juventude face aos

acontecimentos históricos que estariam por vir. Em suas palavras: “É um clichê afirmar que a Primeira Guerra

Mundial acabou com a infância da era edwardiana. Mas não é um clichê, acho eu, encontrar em Peter Pan um

reconhecimento de antecipação desse fim. Eu não crescerei: a recusa de Peter não oferece apenas a negação da

maturidade; nega a própria história. Ela abre uma porta para a Terra do Nunca que nunca foi (o que é nostalgia, na

verdade, mas um desejo por um passado que nunca aconteceu?)” (LERER, 2009, p. 263). 150 “Ele amava brincar de manipulador, ser Deus para outras pessoas; para moldar suas vidas, organizar suas

amizades, torná-las tão dependentes dele quanto ele pudesse – mas ele se afastou de qualquer compromisso real

com elas mesmas. A infelicidade de seu casamento e a estranha natureza de seu relacionamento posterior com os

meninos que se tornaram seus pupilos e que inspiraram Peter Pan naturalmente sempre suscitaram especulações

sobre sua sexualidade” (CARPENTER, 1985, p. 174).

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169

Torna-se, pois, importante voltar uma vez mais ao contexto da época para que as conclusões

não caiam no equívoco. Por mais sedutor que seja atribuir tal semelhança ao autor e à sua obra,

o sentido literário da escrita permanece aquele que chega para o leitor como única fonte de

conhecimento e interpretação. Ou seja: durante a leitura do romance, nenhuma dessas

informações biográficas influencia a compreensão do romance e a falta desse conhecimento por

parte do leitor também não torna a obra menos interessante. O crítico Jack Zipes é a voz

dissonante dessa linha de análise, ressaltando que identificar o personagem Peter Pan como

Doppelgänger151 do escritor Barrie apenas reduz o potencial interpretativo da obra que, como

já foi colocado, de tão complexa abarca múltiplas interpretações. Nas palavras de Zipes (2012,

p. 259),

Encarados de uma perspectiva biográfica e psicanalítica, as obras que falam

de Peter Pan podem trazer de fato uma carga considerável de questões

polêmicas. Barrie tinha inúmeros complexos e se preocupava claramente com

a conquista e a manutenção do amor de sua mãe, o desenvolvimento de sua

aptidão sexual e a demonstração cabal de que era um homem e escritor

brilhante. Mas seria um erro ler e interpretar suas obras especificamente do

ponto de vista de seus conflitos pessoais. A maioria dos leitores do romance

ou dos espectadores da peça talvez se sinta cativada por Peter Pan, o menino

que nunca cresce e se recusa a integrar-se na sociedade inglesa normal, por

muitos motivos além daqueles ligados às questões da vida de Barrie. Num

nível cultural mais amplo, encontram-se no personagem rebelde de Peter Pan

fortes atrativos que pedem uma atenção mais intensa que os problemas de

Barrie, pois Peter Pan é um ícone cultural que se recusa a ser civilizado.

Zipes volta a atenção do romance para Peter Pan como um símbolo de uma época, uma

personagem altamente reconhecida por seus espectadores e leitores, cuja busca era tão somente

a diversão, reforçando a ideia de que uma interpretação obra versus vida do autor potencializa

informações secundárias à fruição das obras nas quais Peter Pan aparece. Isso não significa, no

entanto, que a psicanálise estaria descartada como campo de conhecimento para aprofundar a

leitura do romance. Porém, sua ajuda torna-se legítima apenas se a única intenção for a de

aprofundar as camadas interpretativas do romance.

Por essa perspectiva, não se pode deixar de comentar o sentimento dúbio que Peter Pan

desenvolve em relação à figura materna. Se no trecho ressaltado acima o feminino é visto única

e exclusivamente como o preenchimento do papel da mãe, o capítulo seguinte, “A história de

151 O termo em alemão é formado pelas palavras Doppel (“duplo”) e Gänger (“aquele que passa” ou”anda”) e

designa “o duplo de uma outra pessoa”. Advindo da cultura popular germânica, o conceito é amplamente usado

na literatura, especialmente a fantástica, como a de E.T.A. Hoffman (Encyclopaedia Britannica). A mitologia em

torno do termo diz que, ao avistar o seu duplo, a pessoa estará fadada à morte. Ainda assim, Zipes usa de maneira

irônica a ideia de Doppelgänger para exemplificar como a associação de Barrie com Peter Pan pode ser exagerada.

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Wendy”, intensifica a questão. Nesse episódio, Wendy narra aos garotos perdidos como é a

casa da família Darling, caracterizando os pais e, em especial, a mãe, como afetivos e saudosos

das crianças que partiram. Os garotos perdidos ficam contentes com o final feliz da história de

Wendy, quando a família se reúne no aconchego da casa. Peter, porém, parece ser o único a não

idolatrar a figura materna:

E tão grande era a fé dos meninos no amor das mães que achavam que

podiam continuar mais algum tempo com um comportamento insensível.

Mas um deles sabia que não; e quando Wendy acabou, ele soltou um

gemido profundo.

— O que foi, Peter? – perguntou a menina, correndo para ele, com medo

de que estivesse passando mal. Apalpou carinhosamente seu peito. — Onde

está doendo, Peter?

— Não é esse tipo de dor – respondeu Peter, em tom sombrio.

— Então de que tipo é?

— Wendy, está errado o que você diz a respeito das mães.

Todos se reuniram assustados à volta de Peter, tão alarmante era a sua

agitação. E com toda a franqueza, ele contou a todos o que até então nunca

tinha revelado.

— Muito tempo atrás – começou ele – eu achava, como vocês, que a

minha mãe ia sempre deixar a janela aberta para mim; então fiquei longe por

muitas e muitas luas, antes de um dia voltar voando. Mas a janela estava

trancada, porque a minha mãe tinha se esquecido totalmente de mim, e um

outro menininho já dormia na minha cama (BARRIE, 2012, p. 157).

Os sentimentos que o trecho provocam no leitor são tanto de piedade quanto de comicidade.

Por trás do feroz e valente Peter Pan esconde-se um menino magoado e irritado pelo nascimento

do irmão mais novo. O sentimento de piedade origina-se da revelação de sua fraqueza ter uma

origem sentimental. E o lado cômico é imaginar como uma criança potencializa pequenos

episódios em nome de suas verdades absolutas.

A origem deste episódio está no romance The Little White Bird. Na história dessa obra, todas

as crianças nascem como passarinhos, até suas mães pesarem seus filhos para, então, tornarem-

se crianças definitivamente. Mas a mãe de Peter esquece de pesá-lo e o bebê se torna meio

passarinho, meio menino, um “Betwixt-and-Between”. Peter então se refugia nos ninhos de

Kensington Gardens e se transforma em um forasteiro. As fadas o ensinam a voar e, de tempos

em tempos, Peter volta para ver sua mãe verdadeira, que chora a falta do filho. Porém, mesmo

sensibilizado pela comoção de sua mãe, Peter não resiste à liberdade do parque e nunca retorna

para casa. Até o fatídico episódio quando percebe que seu posto, seu berço, suas roupas, estão

sendo usadas por outra criança (BIRKIN, 2005, p. 64).

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A cena de The Little White Bird é significativa, pois evoca uma série de detalhes que serão

retomados em Peter e Wendy especificamente. Como, por exemplo, as janelas fechadas com

barras. Nesta noite em que Peter descobre não ser o único filho da casa, as janelas do nursery

(o quarto das crianças das casas inglesas) estão fechadas e com barras, impedindo-o para todo

o sempre de voltar. Peter chega a se arrepender, mas logo aprende que não há segundas chances

na vida (BIRKIN, 2005, p. 64).

Não por acaso, Wendy, na peça e no romance, comenta que as janelas sempre estarão abertas,

na intenção de passar segurança aos garotos perdidos. A raiva e mágoa, portanto, que Peter Pan

demonstra em relação às mães e aos adultos em geral advêm deste simples episódio, no qual

Pan admite ter escolhido a liberdade do parque ao conforto da família.

É desta atitude do bebê-passarinho Peter em The Little White Bird que surge no romance Peter

e Wendy o conceito de que as crianças são cruéis, especialmente para com os adultos, também

comentado por Wendy, como já visto acima. Pois, não haveria nada mais cruel do que deixar

uma mãe sofrendo. A culpa, porém, deste ato voluntário mas não totalmente consciente é

diluída na ideia da criança inocente e impulsiva. E é com essa mensagem que Barrie finaliza a

primeira versão do romance com a história de Peter Pan: com a ideia de que as crianças são

“alegres, inocentes e sem coração” (BARRIE, 2012, p. 254).

4.3 “Surge Peter”

Quando Wendy senta na cadeira após o chá, para costurar meias e vigiar os garotos a brincar,

enquanto espera Peter chegar em casa, reproduz uma cena típica da família edwardiana. O leitor

atento, por sua vez, notará que todo o capítulo e o seguinte se dedicam a imitar a vida doméstica

de uma família inglesa na virada do século XIX para o século XX. Os detalhes das xícaras de

chá imaginárias, os modos de se servir e sentar à mesa, a própria contação de história e os rituais

antes de dormir são costumes da vida cotidiana de qualquer família de classe média, ao menos

londrina, facilmente identificados pelo espectador da peça e pelo leitor do livro. Wendy resgata

o cenário da vida edwardiana para os garotos perdidos e para Peter Pan como um tesouro a ser

preservado. O reconhecimento pelo leitor é imediato, a aproximação entre a fantasia e o mundo

objetivo se dá por meio de um enlace de fios que, quanto maior a costura, mais difícil de determinar

as linhas que separam a ficção do mundo objetivo.

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Frederick J. Harvey Darton expressa de maneira muito elegante esse sentimento inglês advindo do

reconhecimento de tais pequenos detalhes que compõem a identidade de uma nação. Para ele, o

recurso usado por Barrie cativou de imediato o público, que pode ver com admiração a mimesis do

comportamento infantil doméstico – talvez, pela primeira vez na história das artes uma representação

tão fiel da infância. Nas palavras de Darton (1966, p. 319, tradução nossa),

Então, novamente, parte do sentimento inglês era comum; talvez comum até

demais. O ritual de ir dormir, a ansiedade sobre uma gravata, o amor materno

(exceto uma cena deplorável de Beautiful Mothers, que aparecia, acho eu, em

apenas uma temporada anual da peça), a canção dos pássaros ao pôr do sol –

isso já existia em livros, poemas e peças de teatro com muita frequência. Havia

uma pequena certeza de que uma pessoa bem letrada podia estar seguro de

que ele nunca tinha lido, visto ou ouvido antes – por si só. A mudança – uma

cena de transformação, no sentido teatral – trazida por Barrie estava unindo

todos os vislumbres particulares de memória em um brilho universal. Ele fez

os mais velhos jovens quando observavam seus brinquedos: ele fez os jovens

viverem a peça de teatro visivelmente, enquanto eles viviam no segredo de

suas mentes por si mesmos. Não era uma interpretação o que estava

acontecendo para o público: era a realidade conquistadora do mundo da

fantasia, sem um átomo de reflexão posterior ou de seriedade preponderante.

Ao recriar a atmosfera familiar com tanta precisão de dramaticidade, Barrie convida o

espectador a olhar para sua própria vida doméstica, naquilo que Zipes chamou de

“metacomentário” das relações familiares inglesas. Faz-se notar, também, que se trata da

representação de uma vida doméstica absolutamente burguesa: as personagens têm a

preocupação com as vestimentas, a experiência bucólica de proximidade com a natureza,

preservam os ritos do dia a dia afetivo como “colocar as crianças para dormir” (o que pressupõe

tempo para cuidar das crianças e desenvolver uma relação com elas). Em outros momentos da

história, especialmente os primeiros capítulos no quarto das crianças, o famoso nursery, pode-

se notar a disposição dos móveis e dos objetos que evocam uma típica casa vitoriana. A peça é

ainda mais evidente, pois o cenário continha objetos como o relógio, os brinquedos, a cadeira

de balanço e os livros nas estantes, citando especificamente enciclopédias como a Thesaurus

ou o Oxford English Dictionary, familiares aos olhos da plateia. Mas o que de fato atesta que o

público da peça – e, consequentemente, por inferência, também do romance – detém uma

condição social mais privilegiada é o comentário de que uma “pessoa bem letrada” poderia

certamente reconhecer as referências de costumes, de acordo com Darton.

Pouco a pouco, adultos e crianças embarcam nas vidas representadas no palco, que, sutilmente,

transcendem do dia a dia banal para o universo da fantasia. Barrie, nesse sentido, quando

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173

transporta a peça para o formato livro, potencializa o romance em sua forma mais pura: além

de ser bem-sucedido na estratégia da imitação da vida doméstica e privada, cria um ambiente

narrativo com leis próprias, que obedecem apenas às premissas de um novo e utópico universo

(a Terra do Nunca, Peter Pan e os piratas). O elemento “metacomentário” na obra de Barrie,

além de espelhar a vida cotidiana, também tem a função de ambientar o leitor, seja ele adulto ou

criança, em um universo crível para, logo na sequência, introduzir o elemento feérico. Assim, o autor

garante o pacto narrativo entre obra e receptor, e a fantasia naturalmente entra pela janela e se

estabelece sem sustos. Quem comenta sobre essa estratégia é E. M. Forster. Para o crítico, os

romances que assumem a fantasia exigem do leitor que ele “pague algo extra”, no sentido de embarcar

nas leis que regem o texto ficcional. Em suas palavras,

os outros romancistas dizem: “Aqui está alguma coisa que poderia ocorrer em

suas vidas”. O fantasista diz: “Eis algo que não poderia ocorrer. Devo primeiro

pedir-lhes que aceitem meu livro como um todo e, segundo, que aceitem certas

coisas em meu livro” (FORSTER, 1998, p. 101),

O autor ressalta a importância do pacto ficcional entre obra e leitor para que a verdade da obra

se sobreponha a qualquer questionamento que venha a comparar ficção e realidade. Em Peter

e Wendy, tanto na forma da peça quanto no romance, tal pacto torna-se capital para a fruição

estética, uma vez que o teatro é impactado pela representação fiel da condição humana e o

romance é o campo da representação mimética da vida particular.

Barrie não foi o único escritor a criar universos fantásticos dentro dessa estratégia de assumi-

los como parte de uma realidade que apenas não é percebida na vida ordinária. Aliás, o tema da

fantasia, cuja maior inspiração advém dos contos de fada, tanto para o período vitoriano quanto

para o edwardiano, foi decisivo para estabelecer os padrões narrativos da literatura infantil na

segunda metade do século XIX e que viria a se desenvolver no século XX. Para ambos os

períodos, as obras estabeleceriam uma nova concepção de literatura para crianças, não tão

calcada nos aspectos educativos – sem, contudo, abandoná-los –, mas, sim, propondo releituras

modernas dos contos de fada152. O mais emblemático exemplo dessa construção é Alice no País

das Maravilhas, de Lewis Carroll. A garota Alice é levada pela curiosidade até a toca de um

152 “À medida que o gênero amadurecia, os contos de fada se desenvolveram nas décadas de 1850 e 1960 em

fantasias literárias. Estas foram histórias episódicas sustentadas em lugares encantados com paisagens estranhas,

acontecimentos mágicos e criaturas bizarras, e elas se tornaram a forma popular de escrita infantil”

(WULLSCHLÄGER, 1995, p. 102, tradução nossa).

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coelho, cujo acesso revela um mundo de wonders153, ou seja, de questionamentos e surpresas

que testam a resiliência da menina para novos paradigmas. Um romance que claramente dialoga

com o vitoriano154 em seu aspecto fantástico155 guarda, porém, diferenças significativas para

com Peter e Wendy. Enquanto o romance de Carroll propõe um mundo fantástico no qual a

heroína é posta à prova inúmeras vezes até a narrativa levá-la ao limite de sua convivência no

País das Maravilhas e, então, o romance termina colocando em prova a existência deste

universo, uma vez que Alice acorda de um sonho – ou pesadelo –, a Terra do Nunca é um lugar

de conexão da criança com sua fantasia interna, com seu bem-estar, com seus mundos possíveis.

Nesse sentido, outras obras contemporâneas a Peter e Wendy propõem lugares utópicos cuja

função é criar um espaço físico para a infância longe das regras do mundo adulto, de tal maneira

que a criança se reconheça e sane seus conflitos internos. É assim com os irmãos Darling e os

garotos perdidos, como também com Mary Lennox de O jardim secreto (1911), de Frances

Hodgson Burnett, a Toupeira e o Rato de O vento nos salgueiros, de Kenneth Grahame, e até

Dorothy, de O mágico de Oz.

Mary Lennox de O jardim secreto, por exemplo, em nada se parece com as heroínas dos livros

para meninas do século XIX. Órfã, Mary é adotada por uma família disfuncional de classe

média. Mas em vez de desenvolver um sentimento de raiva, rebeldia ou até mesmo de

vitimização, Mary está perdida no mundo por não conseguir acessar a sua própria identidade.

O jardim secreto é considerado um dos primeiros romances psicológicos para crianças, no qual o

conflito da personagem não depende de questões externas a ela, mas, sim, de seu próprio inconsciente.

Dessa maneira, Mary está muito distante das figuras femininas passivas dos contos de fada ou das

garotas obedientes dos romances escolares. Mesmo as referências religiosas presentes no romance

153 O título original em inglês é Alice’s adventures in Wonderlands. 154 A título de curiosidade, durante o processo de edição da obra Alice no País das Maravilhas pela Cosac Naify,

no qual tive o prazer de participar como editora, o tradutor Nicolau Sevcenko agraciava a equipe envolvida no

projeto com miniaulas sobre o romance. Como historiador, a interpretação do romance para Sevcenko, que

orientou sua tradução, baseava-se em uma obra que ironizava o período vitoriano por sua rigidez (marcadamente

representada pela Rainha de Copas) e regras absurdas (metaforizadas no nonsense do País das Maravilhas de uma

maneira geral). Olhando em retrospectiva, a edição do livro peca por não ter registrado em forma de posfácio tal

contribuição para a interpretação dessa obra tão capital para a literatura universal. 155 “Das fantasias vitorianas, os livros de Carroll e Lear foram os mais influentes e duradouros. Os autores tiveram

dois principais efeitos nos livros para crianças. Primeiro, ao estabelecer a fantasia como um elemento-chave na

escrita infantil, eles determinaram a natureza de toda a literatura infantil subsequente. Em segundo lugar, ao

descartar a moral e a pegagocia, e ao fazer do humor e da sátira ingredientes essenciais, eles definiram o tom dessa

literatura em comédia e anarquia. Ambos os elementos passaram a dominar os livros infantis edwardianos. Antes

de Carroll e Lear, o livro para crianças pregava o dever da convenção e criticava a estupidez e os maus modos”

(WULLSCHLÄGER, 1995, p. 103, tradução nossa).

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visam subverter a maneira tradicional de se caracterizar meninas órfãs e boazinhas, jogadas ao fortuito

acaso. Na visão de Peter Hunt, na introdução escrita para a obra,

O jardim secreto pertence ao final de uma longa tradição de textos religiosos

para crianças, mas se preocupa, como muitos dos outros livros de Burnett,

com o individualismo, especificamente com a libertação da criança do

pensamento adulto obsessivo e repressivo (HUNT, 2011, p. VIII, tradução

nossa).

O jardim secreto de Mary – que se conecta com a Terra do Nunca pela sua função no romance

– é justamente o “lugar físico” do romance onde a personagem pode refugiar-se do mundo

objetivo para acessar a sua consciência, sem a presença de adultos e julgamentos

preestabelecidos. Além disso, outra característica da obra de Burnett que se conecta diretamente

ao romance de Barrie é a figura da personagem Dickon, um garoto selvagem, espírito da

natureza, que toca sua flauta e mora no jardim secreto156. Ora, Peter Pan surge em Kensigton

Gardens justamente para proteger as crianças e também para propor brincadeiras para distração.

Aparentemente, o jardim é o espaço que une os romances do começo do século XX dedicados

a propiciar uma leitura mais introspectiva por meio de personagens que vivem conflitos

absolutamente pessoais, mesmo que representando a angústia de uma época. Wullschläger (1995, p.

106, tradução nossa) resume bem ao dizer que

o jardim cheio de crianças, sua ressonância do éden da alma, o lugar de

encantamento da imaginação poética: Frances Hodgson Burnett destilou na

imagem do jardim secreto um sonho que assombrou a segunda geração de

escritores de fantasia infantil, Barrie, Grahame e Milne, e na Terra do Nunca

de Peter Pan, na margem do rio da Arcádia de O vento nos salgueiros e a

aconchegante Bosque dos Cem Acres do Ursinho Pooh, inspiraram realidades

alternativas tão inebriantes quanto o País das Maravilhas.

O comentário de Wullschläger ajuda a recriar a genealogia dos romances vitorianos para crianças. E,

assim como Carroll e Lear foram responsáveis pela mudança de paradigma das histórias para crianças,

Barrie e Grahame são os expoentes da jovem literatura do século XX cuja proposta é a de sofisticar,

ainda mais, a relação do mundo objetivo com as “realidades alternativas”.

Grahame, por sua vez, também flerta em suas obras com a ideia de uma realidade paralela ao

mundo objetivo, especialmente em Golden Age (1895) e em sua obra-prima O vento nos

156 “Provavelmente o elemento menos sutil do livro, Dickon, a quem Mary encontra pela primeira vez em uma

floresta no parque, é o nobre selvagem, o espírito da terra, uma representação benevolente do Pan rural no tamanho

de uma criança, arrastando não apenas nuvens de glória, mas uma variedade de animais e pássaros – além de tocar

sua “flauta de madeira rústica” (HUNT, 2011, p. XV, tradução nossa).

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salgueiros. Em Golden Age já está presente a referência de um lugar utópico acessado pela

imaginação157, mas seria em O vento nos salgueiros que a ideia do “escapismo” viria a dominar

a narrativa, com uma sensível diferença, no entanto, para os romances contemporâneos a

Grahame: em O vento nos salgueiros, o lugar utópico se transforma de um jardim mágico em

um rio verdadeiro. A aventura do escapismo recria-se em uma verdadeira viagem pelas águas

do rio presente no universo do mundo objetivo. Grahame “funde” o mundo objetivo com a

realidade alternativa, ainda que seu livro seja puramente fantástico, ao antropomorfizar os

personagens como nas fábulas. Carpenter (1985, p. 155, tradução nossa) comenta essa

estratégia narrativa marcante na literatura infantil:

De todos os [escritores] vitorianos e edwardianos que tentaram criar a Arcádia

impressa, apenas Grahame realmente conseguiu. Seu capítulo de abertura

oferece um retrato completo e rico do paraíso primordial, expresso em um

símbolo que provavelmente atingirá a todos os leitores e foi particularmente

significativo para sua própria geração: o rio.

A intenção de Grahame, no entanto, com a escrita de O vento nos salgueiros, também levanta

polêmicas muito parecidas com as de Peter e Wendy de Barrie. Visto que, pelas referências

políticas no texto, pela presença de cenas e conflitos de personagens que já atingiram a

maturidade, muitos críticos interpretam a obra como tendo sido escrita para o público adulto.

Na recém-lançada obra The making of The wind in the willows, Peter Hunt retraça as origens

do texto sob o ponto de vista da literatura comparada e afirma que,

assim como outros livros famosos para crianças – como Alice no País das

Maravilhas, O Robbit e A Ilha do Tesouro – inicia a vida como uma história

para uma criança em particular, e isso fica mais claro nos capítulos de

abertura. Como todos esses livros, O vento nos salgueiros cresceu em sua

escrita e acabou sendo algo bem diferente, e algo muito mais complexo do que

uma história para dormir. Porém, enquanto o País das Maravilhas é um livro

infantil que pode ser lido por adultos, o O vento nos salgueiros é um livro para

adultos que pode ser lido por crianças. Isso ocorre porque (o que também

explica sua relativa falta de sucesso internacional) suas paisagens e referências

culturais estão profundamente enraizadas na Inglaterra edwardiana – enquanto

Alice se move em um mundo de fantasia paralelo –, e as muitas referências de

período no livro estão escondidas no pano de fundo (HUNT, 2018, p. 15-16,

tradução nossa).

Novamente, a literatura edwardiana se depara com questões de público-alvo – são obras

destinadas a jovens leitores ou adultos? – e também com referências do mundo objetivo que

justificam a estratégia narrativa, como os pequenos detalhes de cenário em Peter e Wendy,

157 “A noção dominante nesses esboços da era de ouro é a do Bom Lugar, a Cidade Dourada, uma Arcádia que

sempre pode ser alcançada na imaginação, e cujas margens se pode ocasionalmente tocar de fato” (CARPENTER,

1985, p. 123, tradução nossa).

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responsáveis pela “sedução” do espectador-leitor, como já foi tratado anteriormente. Essa breve

imersão em obras contemporâneas a Peter e Wendy revelam como muitos dos recursos

narrativos presentes na obra de Barrie orbitavam a literatura edwardiana, constituindo um

verdadeiro grupo intelectual, ainda que cada escritor e escritora formassem um rico universo de

referências pessoais, trazendo originalidade para as obras citadas. Não por acaso, muitos críticos

apelam para as biografias dos autores na tentativa de justificar estratégias e backgrounds da obra

ficcional, como já mencionado neste trabalho. Esse momento prolífico da produção de livros para

crianças consolidou-se na visão da crítica na Era de Ouro da literatura infantojuvenil.

A estratégia narrativa de Barrie de maneira alguma responde apenas ao tempo presente ao escritor.

Muito pelo contrário, as referências à literatura inglesa clássica compõem um outro nível de leitura

do romance. A herança cultural inglesa ativa (pois ainda se faz no presente), responsável por

provocar a empatia do leitor, vai desde os tradicionais contos de fada que povoam o imaginário

da infância por décadas a fio – como a citação de Cinderela por Wendy no capítulo “A história

de Wendy” – até os romances de aventura que marcaram gerações de leitores, sendo a mais

evidente delas A Ilha do Tesouro, de Robert Louis Stevenson158. Esse resgate pode estar nas

histórias de Wendy, mas também em tantas outras histórias já contadas pela literatura

disfarçadas – ou recontadas – por Barrie e espalhadas na peça e no romance. Inúmeras são as

referências em Peter Pan de outras obras da literatura inglesa.

Mas não apenas: causos de piratas que viraram lendas orais, referências a livros de aventuras

náuticas como Holiday romance, de Charles Dicken, toda a ambientação e cultura literária

indígena inaugurada por Fenimore Cooper, além de outros dois “Peter” presentes na literatura

inglesa: Peter Wilkins – que tem a habilidade de voar – e Peter Schlemihl – que também tem

uma sombra que o acompanha159.

158 “Ato I é um ensaio no conto de fadas. Barrie extraiu trechos de Grimm, Mamãe Ganso e Andersen e os animou.

Há a sombra que Pedro não pode seguir; o beijo estranho, mas poderosamente significativo, que Wendy plantaria

em Peter; a chamada linguagem das fadas; os meninos perdidos. E depois há as histórias que Wendy contaria; ela

relembra explicitamente a história de Cinderela e usa esse breve petisco de conto de fadas para fazer com que Peter

a leve para a Terra do Nunca: ‘Conheço muitas histórias’, ela anuncia. ‘As histórias que eu poderia contar para os

meninos!’” (LERER, 2009, p. 260). 159 “Provavelmente a Never Never Land [primeiro nome da Terra do Nunca], por exemplo – um genuíno nome

australiano – tinha chegado a Barrie e a garotos de muitas estrelas antes dele, de algum livro árido de disputas, ou

mesmo de uma geografia muito comentada da época de 1820, quando a Austrália estava se tornando emocionante.

A ideia de dispersar os lobos, olhando para eles por meio de suas pernas, é um conto de velho viajante. Piratas que

conhecíamos desde que Morgan saqueou o Panamá ou Drake tomou o Cacafuego. As lagoas estavam em livros

como o Coral island de Ballantyne para o qual, em 1913, Barrie escreveu uma introdução de início glorioso:

‘Nascer é ser náufrago em uma ilha’. Peter gritando cançõess é Jim Hawkins em A Ilha do Tesouro ou, mais

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Mas talvez a referência mais alegórica da tradição inglesa presente na obra-prima de Barrie

seja, de fato, a própria peça Peter Pan e sua longínqua porém perceptível relação com trabalhos

de Shakespeare, o que fortalece no espectador o sentimento de estar diante de uma obra

autenticamente inglesa. As duas peças shakesperianas com as quais Peter Pan se relaciona

diretamente são A tempestade e Sonhos de uma noite de verão, trazendo uma espécie de

conforto afetivo para a memória coletiva, em um momento em que o teatro inglês alçava novas

experiências na relação obra versus público, muito mais fundamentada no cenário político e

social, diferentemente dos “melodramas” do teatro vitoriano160 . Fantasia, possibilidade de

mundos alternativos, personagens oriundos de universo e tempo paralelos, a incerteza da

realidade posta à prova em um mundo de sonhos são pontos de contato entre as peças de

Shakespeare – as mais adoradas do final do século XIX justamente por tais características161 –

e a obra de Barrie. O pesquisador Lerer (2009, p. 260) chega a afirmar que partes das obras de

Shakespeare tiveram influência direta na construção do texto de Barrie e identifica, por

exemplo, a entrada de Peter no quarto das crianças com a descrição da imagética em Sonho de

uma noite de verão: “A entrada de Peter lembra imagens de Sonho de uma noite de verão: ‘Na

medida em que ele está vestido em folhas de outono e teias de aranha’. Como uma das fadas de

Oberon (lembre-se, um deles era ‘Teia a de Aranha’), Peter chega para transportar a moral fora

da cotidianidade”. Ou ainda, quando afirma que a brincadeira dos irmãos Darling de imitar o

pai e a mãe, numa espécie de teatrinho improvisado, lembraria a fala do príncipe Hal para

Falstaff na peça Henry VI (“Stand you for my father”). Brincadeira esta que, aliás, se conecta

com a de Wendy na casa subterrânea. A empatia, portanto, da peça de Barrie com o público

muito se deve ao apelo de referências da memória coletiva intelectual da sociedade letrada

inglesa e à construção do tableaux da vida.

artificialmente, Capitão Boldheart em Holiday romance de Dickens. Voar é eminente em Peter Wilkins. A ardilosa

sombra de Peter pode ser encontrada em A história maravilhosa de Peter Schlemihl, bem como em Jardim de

versos: de fato, os poemas de Stevenson contêm quase em si mesmos matéria-prima suficiente para a peça. O

crocodilo pode ser uma lembrança das viagens de Waterton. Os índios vermelhos são de Fenimore Cooper. E

assim por diante. O prefácio de Barrie para a peça impressa mostra os enrolamentos humorísticos de sua mente no

trabalho” (DARTON, 1966, p. 318-319, tradução nossa). 160 “Ao invés dos velhos melodramas do século XIX, os palcos de Londres começaram a montar peças que

comentavam a situação política, social (e até mesmo sexual). A vida da família – suas falhas e tensões, expectativas

e traumas – começou a dominar o palco. [Anton] Tchekhov e [Henrik] Ibsen sofreram grande influência dos

problemas das peças inglesas do começo do século XX. As sátiras sociais de [George Bernard] Shaw redesenharam

a visão da família nas áreas do trabalho e classe social” (LERER, 2009, p. 255-256, tradução nossa). 161 “A tempestade, junto com Sonho de uma noite de verão, foram as peças favoritas de Shakespeare no período

vitoriano tardio, pois abrigavam as palavras mágicas e os espíritos de maneira a alimentar o florescimento da

fantasia edwardianas” (LERER, 2009, p. 257, tradução nossa).

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É necessário apontar, no entanto, que Peter e Wendy em nenhuma hipótese pode ser

considerado como um comentário do tempo passado. A obra de Barrie está no limiar entre o

período edwardiano e o século XX, cujo foco, como dito anteriormente, é representar os anseios

do indivíduo, e não mais sua representação dentro do coletivo. Ao resgatar o passado iminente

para o espectador e para o leitor, Barrie projeta para o futuro uma literatura para crianças

madura e que, se não foi totalmente compreendida pelo seu tempo – não apenas a obra, como

também o seu autor –, até hoje a crítica se deleita tentando preencher lacunas de uma narrativa

que não subestima o leitor, seja ele quem for. Peter Hollindale faz um comentário muito

interessante sob esse ponto de vista, ao dizer que

Barrie é essencialmente um escritor do século XX para crianças. Ele antecipa

desenvolvimentos na literatura infantil que, desde então, alcançaram formas

mais sofisticadas e talvez mais apropriadas. Às vezes, nas histórias de Peter

Pan, sua narrativa desloca-se entre criança e adulto, o que parece envolver um

ato de invasão... em um terreno emocional que deveria ser intocado

(HOLLINDALE, 2008, p. XX).

Hollindale acentua que o estilo e a estratégia narrativa de Barrie pertencem a escritores do

século XX, e não da continuidade de uma tradição do século anterior. A sofisticação de Barrie,

como pontua Hollindale, está mais próxima de uma narrativa complexa, lacunar e inquietante

do que viria a ser desenvolvido nas décadas subsequentes. A própria origem da personagem

Peter Pan já denota, em si mesma, conflitos de um autor consciente na tentativa de um novo

paradigma de escrita.

4.4 Peter Pan nas obras de Barrie

Peter Pan surgiu primeiramente como personagem no romance dirigido para o público adulto

The Little White Bird, escrito por Barrie em 1902. Nessa ficção, o narrador conhece o garoto

David – referência direta ao falecido irmão de Barrie – em Kensington Gardens, um famoso

parque em Londres – onde o escritor encontrou pela primeira vez os irmãos Llewelyn Davies.

Nessa história, Peter Pan era um bebê que mora em Kensington Gardens e cuida das crianças

perdidas no parque depois que seus portões fecham à noite. Na versão, Peter Pan, mesmo sendo

um bebê, guarda mais semelhanças com o deus Pã 162 do que com uma criança humana,

162 De aparência meio humana e meio animal, o deus Pã na mitologia significa tudo o que existe no mundo. Por

isso, é uma figura perturbadora, sempre presente. Tornou-se símbolo do paganismo e originou a palavra “pânico,

esse terror que se espalha em toda a natureza e em todo ser, ao sentir a presença desse deus que perturba o espírito

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perambulando pelo parque montado em uma ovelha e tocando sua flauta. Nessa obra, já se podem

notar vários elementos embrionários de Peter Pan, como o fato de Pan ter uma idade avançada –

apesar de ser um bebê –, sendo conhecido pelas mães e pelas avós, e mesmo antes delas, como mostra

este trecho:

Portanto, não havia cabra quando sua avó era pequena. Isso mostra que, ao

contar a história de Peter Pan, começar com a cabra (como a maioria das

pessoas faz) é uma tolice assim como colocar sua jaqueta antes do colete.

Claro, também mostra que Peter é muito velho, mas ele tem sempre a

mesma idade, então isso não importa nem um pouco. A idade dele é de uma

semana, e embora ele tenha nascido havia muito tempo, nunca teve um

aniversário, não há a menor possibilidade de ele ter um aniversário. A razão é

que ele escapou de ser humano quando tinha sete dias de idade; ele escapou

pela janela e voou de volta para os Jardins de Kensington (BARRIE, 2008, p.

12, tradução nossa).

Mas esta não seria a primeira vez que a ideia de um garoto que não cresce nunca aparecia em

alguma obra escrita de Barrie. A partir de 1896, o escritor e dramaturgo se lança em uma tarefa

de escrever sua autobiografia163, primeiro, de maneira sistematizada, como a obra Margaret

Ogilvy, que, disfarçada de uma biografia de sua mãe, revelava anseios, frustrações e elementos

da vida íntima de Barrie. Na sequência, as obras autobiográficas se tornaram menos focadas em

assumir uma característica de livro de relato, mas mesclavam dados da biografia em uma

ambiente ficcional. Foi o caso de Sentimental Tommy (1896), que continha o personagem de

um garoto sonhador (“The wandering child”) com experiências semelhantes às de Barrie, e sua

sequência Tommie and Grizel (1900) que claramente apresenta a ideia do menino que não

queria crescer, invocada a partir da própria vida de Barrie:

Pobre Tommy! ele ainda era um menino, sempre foi um menino, tentando às

vezes, como agora, ser homem, e sempre quando olhava ao redor, corria de

volta para a infância, como se a visse estendendo os braços para ele e

convidando-o a regressar e brincar. Ele gostava tanto de ser um menino que

não podia crescer... Mas aqui, cinco e vinte jardas depois, é a biografia, com

o título alterado (BARRIE, apud ZIPES, 2007, p. 225, tradução nossa).

e enlouquece os sentidos” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1998, p. 676). Advindo da Arcádia, era cultuado na

Grécia antiga como um ser ágil, rápido, rústico e apreciador da natureza. Aparece citado algumas vezes nas sagas

de Homero como um bebê monstruoso (metade animal, metade criança) que, rejeitado por sua mãe, foi levado por

Hermes a Zeus no Olimpo. Os deuses do Olimpo atribuíram seu nome de Pã por trazer alegria a “todos” (cuja

etnologia em grego aproxima-se de “pã” no alfabeto romano). Porém, de acordo com o Pierre Grimal (2005, p.

345-346), outras filiações são atribuídas a Pã, como ter sido fruto de várias relações sexuais que Penélope teve

durante a ausência de Homero. Peter Pan guardaria semelhanças com esse deus selvagem, meio humano, meio

animal, absolutamente entregue à vida selvagem. 163 A título de curiosidade, outro autor que se propõe escrever sua autobiografia, expondo seu anseios e medos e

relacionando-os com o mundo, foi Hans Christian Andersen.

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Declarações como essa de Barrie, que não são difíceis de serem encontradas em seus cadernos

de anotações, abriram as possibilidades de interpretação de Peter e Wendy – como já foi dito

acima – interpolando vida e obra do autor164. Um ano depois de Tommie and Grizel, Barrie

escreve e edita em versão caseira a história The boys Castaways of Blacklake Island being a

record of the terrible adventures of the brothers Davies in the Summer of 1901, fruto das

histórias de piratas e aventuras que o escritor criava em seus momentos de lazer com as crianças

Llewelyn Davies. A caprichada edição, ainda que impressa em quantidades apenas para o

deleite caseiro, trazia fotos dos meninos Davies brincando com o cachorro do escritor, Porthos.

Se Peter Pan ainda era um embrião nos planos de Barrie, faltava para o escritor a fagulha que

iluminaria de vez o caminho para uma obra dedicada a seu personagem mais famoso. E foi no Natal

de 1902 que Barrie leva os meninos Llewelyn Davis para assistir à peça Bluebell in Fairyland,

considerada a primeira peça comercial destinada para crianças, com efeitos encantadores e inovadores

que serviram para Barrie de moldura para a história de Peter Pan que estava por vir165.

Para o público leitor e para o espectador no teatro, para os quais as referências biográficas são

desconhecidas e, em certo grau, desnecessárias para a compreensão da obra e seus personagens,

Peter Pan fez sua estreia na peça de 1904 entitulada Peter Pan, or the boy who wouldn’t grow

up. O roteiro original escrito e reescrito aproximadamente seis vezes foi imediatamente aceito

pelo produtor e amigo Charles Frohman, que reservou o teatro Duke of York, onde a peça foi

primeiramente exibida no dia 27 de dezembro de 1904. J. M. Barrie já era um dramaturgo e

escritor renomado quando Peter Pan veio a público, mas o sucesso da peça tornou-o ainda mais

conhecido e aclamado, em termos tanto artísticos como financeiros. Não apenas pelas

características de reconhecimento de elementos que fazem parte dessa memória coletiva da

cultura inglesa166, a peça tornou-se um sucesso imediato pela sua forma de apresentação única

164 Ainda, em Carpenter (1985, p. 171, tradução nossa): “Mas Barrie, por esse mesmo ato de escrever tanto sobre

si mesmo, transformou-se em um personagem em sua própria literatura, e devemos ser muito desconfiados em

aceitar sua percepção de si mesmo como a verdade literal”. 165 “Uma das primeiras peças comerciais feitas explicitamente para crianças tratava de uma pequena florista que

vagueia pelo mundo das fadas, onde ela vive aventuras emocionantes, só para entender no final da peça que estava

sonhando. O enredo encantador influenciou a imaginação de Barrie. Mais importante, levou-o a considerar

escrever uma peça de conto de fadas para crianças e adultos, na qual ele pudesse incorporar as muitas anotações

que escrevera sobre Peter Pan” (ZIPES, 2007, p. 228, tradução nossa). 166 “Quando a peça é considerada em detalhes, fica claro que Barrie de fato nos fez lembrar uma centena de

caprichos e escapadas para sonhos e adoradas ilusões tradicionais que a maioria de nós esqueceu, embora para nós

também fossem uma só vida. Há um precedente para quase tudo no romance: um precedente no aconchego da

memória, e não na realidade. O diálogo e os falsos negócios fizeram o velho brilho livre novamente, com uma

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até então. Peter Pan, interpretado pela atriz Nina Boucicault, voava pelo palco em um sistema

de roldanas e cabos, enquanto a plateia, composta por adultos e crianças, se maravilhava pelo

efeito em palco. Ou, ainda, o recurso da pantomima na cena em que Sininho está prestes a

morrer e Peter convoca o público para bater palmas, que seria a maneira de ressuscitar uma fada

(ZIPES, 2007)167. A peça imediatamente ganhou tours pela Europa e pelos Estados Unidos e

tornou-se um símbolo das festividades natalinas de Londres, tendo sido encenada

ininterruptamente todo final de ano até depois da morte de Barrie (BIRKIN, 2005).

Tornou-se evidente, portanto, a necessidade de Peter Pan figurar nas páginas de livros e seu

début no mundo literário se deu em 1906 com a publicação de Peter Pan in Kensington Gardens

(1906), que nada mais era do que trechos extraídos de The White Bird em formato de romance,

com ilustrações de Arthur Rackham. Seria apenas em 1911 que Peter Pan, a Terra do Nunca, os

irmãos Darling e todos os personagens fantásticos criados por Barrie apareceriam em um romance,

cuja ênfase narrativa explora com mais evidência a relação entre Peter Pan e a garota Wendy. Não

por acaso, o primeiro título do romance era, simplesmente, Peter e Wendy168.

O fato de o texto ter sido publicado em forma de peça antes do romance certamente ajudou o

livro a galgar o sucesso de que até hoje a história desfruta. A peça Peter Pan mudou o cenário

mercadológico editorial, ainda que, como roteiro, só tenha sido publicado em 1928. Várias

edições do romance surgiram com ilustrações coloridas ou edições colecionáveis –

impulsionadas pelo avanço da tecnologia de impressão mudando o conceito de um livro barato

para um livro bonito –, além de obras não escritas por Barrie como Peter Pan keepsake e Alice

Woodward, The Peter Pan picture book, de Daniel S. O’Connor (ambos de 1907), e livros

advindos do universo de Peter Pan, como The Peter Pan alphabet book, escrito por O. Henford

em 1909, e ainda uma espécie de “bastidores” do fenômeno na obra Peter Pan, his book, his

pictures, his carrer, his friends (1909), escrito por G. D. Drennan, criando um merchandising

vivacidade sobrenatural que eles nunca tinham possuído quando foram iluminados pela primeira vez” (DARTON,

1966, p. 9, tradução nossa). 167 O recurso da pantomima era até muito comum no teatro inglês, como ressalta Denise Escarpit (2008, p. 55,

tradução nossa): “Um gênero destinado aos adultos, a pantomima, conheceu grande popularidade na Inglaterra”.

O que difere a peça de Barrie das demais, trazendo inovação aos palcos, é combinar o gestual – próprio da

pantomima – com efeitos especiais, causando comoção e maravilhamento no espectador. 168 O fato de as versões subsequentes do romance trazerem apenas o nome de Peter Pan no título acentuam uma

marca de estratégia comercial da obra, uma vez que a figura do herói se tornou maior do que o próprio romance.

A primeira intenção de Barrie, no entanto, estaria em evidenciar o contraste entre dois universos, o choque de

valores e a releitura da infância como momento importante da formação de caráter do indivíduo.

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ao redor do livro que o mercado editorial não tinha visto nem nos desdobramentos de Alice no

País das Maravilhas169. O “fenômeno” Peter Pan atingiu, inclusive, as escolas inglesas que

indicavam para leitura uma versão adaptada da obra retirando trechos como “Eu não quero ir

para a escola e aprender coisas solenes… Eu não quero ser adulto”, em 1915, criando

justamente o efeito contrário ao que Barrie buscava, o de driblar o mainstream com ideias

prontas. Nas palavras de Jack Zipes (2007, p. 238, tradução nossa), que analisa o momento,

Ironicamente, o espírito imaginativo que Barrie criou para se opor à

institucionalização tornou-se institucionalizado e comercializado por todo o

século XX. No entanto, Peter Pan, como seu criador, é uma figura intrusiva e

imprevisível que continua voltando para investigar nossa realidade e afastar

essas pessoas [institucionalizadas], ainda acreditando no poder das fadas.

Como a maioria dos fenômenos midiáticos, a essência complexa de Peter e Wendy foi, pouco

a pouco, se diluindo em adaptações para o teatro, para o cinema e até mesmo em edições da

peça e da obra retrabalhadas por Barrie em vida, transformando-se em um romance de aventura.

Peter Pan é lembrado pelo senso comum como um garoto rebelde, que não gosta de ir à escola,

cujo maior rival é um pirata chamado Capitão Gancho e que proporciona a umas crianças mais

“caretas” – os irmãos Darling – aventuras incríveis em um lugar mágico – a Terra do Nunca.

De fato, como o próprio Peter acreditava, o tempo não foi de todo benéfico, apenas o distanciou

das camadas complexas que sua personagem apresenta, tornando o romance mais palatável para

o público maior, menos exigente e, talvez, menos preocupado em lidar com questões de foro

íntimo. A importância de Peter e Wendy para a quebra de diversos paradigmas da literatura

infantojuvenil permanece, sem dúvida, um dos pontos-chave para a consolidação da obra como

um cânone do século XX, ainda que sua transgressão tenha sido reduzida a um simples conto

de fada.

4.4. Crianças sem coração

169 “A peça de J. M. Barrie, Peter Pan, foi um sucesso desde a sua primeira apresentação, no Teatro Duke of York,

em Londres, em 27 de dezembro de 1904. A reação do público – tanto adultos quanto crianças – foi muito

entusiástica. Depois disso, a peça tornou-se um evento anual em Londres em cada Natal e também percorreu a

Inglaterra durante a maior parte do ano, além de ser realizada de costa a costa nos Estados Unidos. Além disso,

iniciou – ou desempenhou um papel maior do que qualquer outra obra – uma moda de “fadas” para a literatura e

ilustração nos berçários edwardianos, uma moda que durou até 1930. O efeito de Peter Pan foi, em outras palavras,

mais imediato que o de qualquer trabalho anterior de literatura infantil, incluindo Alice no País das Maravilhas”

(CARPENTER, 1985, p. 170, tradução nossa).

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Quando Wendy convence os irmãos e os garotos perdidos a voltarem para Londres, Peter Pan é o

único a resistir à tentação do amor materno. Certo de que sua mãe verdadeira não estaria esperando

por ele, recusa, mais uma vez, voltar ao mundo objetivo e abraçar as responsabilidades da vida

ordinária, mesmo que a perda de Wendy e dos garotos tenha um preço doloroso:

Para demonstrar que a partida dela não lhe causava nenhum efeito, Peter saiu

saltitando de um lado para o outro da casa, enquanto tocava alegremente a sua

flauta. E para tudo ela precisava correr atrás dele, o que não deixava de ser

humilhante.

— Procurar a sua mãe – argumentou ela.

Mas, se Peter ainda tinha mãe, não sentia mais nenhuma falta dela.

Podia passar perfeitamente sem mãe. Já tinha pensado muito no assunto, de

que só via o lado negativo.

— Não, não – disse ele a Wendy em tom decidido. — Talvez ela diga

que eu cresci. Só quero continuar menino para sempre, sem parar de me

divertir (BARRIE, 2012, p. 162).

A insistência de Peter em tantas vezes renegar a vida adulta chega a ser irritante e muito

contrastante com a ideia de evolução pessoal, de amadurecimento e autoconhecimento que

povoavam os romances do século XX, ainda que de maneira incipiente. Peter Pan é a eterna

Criança Perdida do “romance familiar”: constrói seu universo utópico, com regras que apenas

ele pode fazer e desfazer a partir de seu próprio desejo narcisista, preenche a sua solidão com

sua própria imaginação. Com a sensível diferença, no entanto, de que Peter Pan nunca chegará

ao amadurecimento, nunca estará pronto para liderar homens, apenas garotos. Peter Pan, nesse

sentido, é a “evolução” do “romance familiar” para o “romance social ‘edipiado’”, de acordo

com a tipologia de Robert (2007, p. 111), com algumas ressalvas próprias de uma literatura que

se volta para o universo da infância170. A contribuição de Robert para esse tópico torna-se

fundamental para a compreensão mais consistente da figura de Peter Pan em diálogo com a

tradição da literatura inglesa. A interpretação de Robert para a personagem Robinson Crusoé,

por exemplo, em muitos aspectos poderia servir para a leitura crítica de Peter Pan. Veja-se, por

exemplo, o seguinte trecho de sua argumentação:

Ao contrário do adolescente do conto, cuja fuga tem como objetivo melhor

preparar sua reconciliação com o ideal familiar; ao contrário mesmo de

Ulisses, modelo de desbravador dos mares que é também o paladino do

retorno, Robinson rompe de uma vez por todas com aqueles a quem renegou,

nunca mais atravessará seu umbral, nunca mais se preocupará com eles, estão

mortos para ele desde que os abandonou e a volta só lhe será permitida quando

a morte, que ele não deixou de almejar secretamente, for finalmente um fato

consumado. O castigo que irá depois extirpá-lo do mundo dos vivos não passa

170 De acordo com a definição de Robert (2007, p. 111) para “romance familiar”: “Não esqueçamos que é segundo

a regra do ‘romance familiar’ que sugere que alguém se faz rei precisamente quando tal ideia é a mais quimérica

e a imaginação torna-se a única arma contra o desespero”. E, ainda, “quando houver amadurecido o suficiente para

assumir as responsabilidades da vida adulta, poderá, enfim governar realmente sobre uma terra repovoada”.

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da manifestação visível dessa ruptura radical: tendo feito a promessa de não

ser filho de ninguém, ele se torna efetivamente o órfão absoluto, o solitário

absoluto, que se engendra a si mesmo em toda a pureza no reino do deserto

perfeito (ROBERT, 2007, p. 102).

São inúmeros os pontos de conexão entre Robinson Crusoé e Peter Pan a partir da leitura de Robert.

A mais evidente é a rejeição do “ideal familiar”. Ao contrário dos heróis viajantes solitários da

tradição literária, tanto Crusoé quanto Pan partem para nunca mais voltar, para serem reis em seus

próprios reinos desérticos e perfeitos, em suas ilhas longínquas, são “filhos de ninguém” e não têm

remorso de abandonar – e até odiar – aqueles que um dia foram seus familiares171. Há, no entanto,

uma sensível diferença entre os dois heróis. Pois, se Crusoé almeja secretamente a morte, Pan venera

a vida, a aventura, a excitação de estar consciente no tempo presente – e apenas no tempo presente.

A morte, para Pan, é “uma aventura e tanto”, e não um desejo.

A condição de náufrago, portanto, tanto para Crusoé como para Peter Pan, torna-se desafiadora

por um único motivo: aceitar e lidar com a solidão. Para se libertar das responsabilidades, Peter

leva sua crença às últimas consequências, mesmo que isso signifique enfrentar a incompreensão

de seus amigos e, por fim, a solidão. Esse sentimento fica visível quando Peter pune os adultos

diante da decisão de Wendy de voltar para Londres:

Esse medo [de a Ms. Darling achar que seus filhos estivessem mortos]

fez com que Wendy nem levasse em conta os sentimentos de Peter, ainda

assim bem fáceis de adivinhar, quando disse a ele secamente:

— Peter, você toma as providências?

— Se você quiser – respondeu ele, num tom frio, como se ela só

tivesse pedido que ele lhe passasse as nozes.

Nem para dizer que iria sentir saudade dele! Se Wendy não se

incomodava de ir embora, ele ia lhe mostrar uma coisa: também não dava a

mínima.

Mas claro que ligava, e muito. E ficou com tanta raiva dos adultos –

que, como sempre, iam estragar tudo – que assim que entrou na sua árvore

respirou bem depressa de propósito, umas cinco inspirações e expirações por

segundo. E fez isso porque, na Terra do Nunca, todo mundo acredita que

morre um adulto no mundo cada vez que você respira; e Peter por vingança,

estava matando o máximo que podia no mínimo de tempo (BARRIE, 2012, p.

158-159).

171 A tradição robinsoniana é irrefutável para o desenvolvimento da literatura inglesa e universal e parece natural

que Barrie volte a essas raízes para referências, como fez com os romances já citados anteriormente. Curioso, no

entanto, o comentário de Robert (2007, p. 125) acerca da posição do romance de Defoe na historiografia e do que

a autora considera sobre a literatura infantojuvenil em termos comparativos à literatura mundial: “A obra-prima

de Defoe tem direito a um lugar privilegiado nas altas esferas da literatura mundial; sob diversos aspectos é um

livro inaugural, um livro eminentemente fundador, que impulsionou o romance do século seguinte à busca de

espaços desconhecidos influenciando-o no mais íntimo de sua criação, na medida em que, rebaixado precocemente

ao nível de literatura para crianças, tornou-se o guia e instrutor dos futuros romancistas”.

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Esse trecho ressalta a característica complexa da construção da personagem, de acordo com os

conceitos já vistos tanto em Forster quanto em Watt. Peter Pan age com fingimento na frente

de Wendy, com cinismo e falsidade, dando a entender que não se importava com o retorno de

seus amigos – e, por que não, de sua mãe? –, quando, no íntimo, sente raiva e se vinga,

cruelmente, dos adultos que, mais uma vez, o fizeram sofrer. Não seria a primeira vez que Peter

Pan esboça um sentimento de prazer em matar. A violência, contra outros e contra si mesmo, é

a única prova viril de sua masculinidade, mas, ainda assim, um retrato de sua imaturidade. Mais

uma vez, as belas palavras de Robert acerca de Robinson Crusoé podem ser emprestadas para

a compreensão de Pan: “O náufrago que deve castigá-lo é ao mesmo tempo o instrumento de

sua libertação, uma vitória sobre a morte e uma purificação, um renascimento no qual a angústia

do abandono é incessantemente embalada pela embriaguez do recomeço” (ROBERT, 2017, p.

103). Assim como o naufrágio de Crusoé representa seu castigo e sua libertação, a Terra do

Nunca representa, ao mesmo tempo, a liberdade de Peter de uma vida condenada ao trabalho,

como a prisão de uma vida condenada à frivolidade. Não por acaso, Peter Pan só consegue dar

sentido a sua existência quando repete, incessantemente, o ritual de, em todas as primaveras,

buscar Wendy, e por sua vez a filha dela e futuramente sua neta, para continuar, mais uma vez,

as mesmas brincadeiras na Terra do Nunca, num eterno tempo presente. Peter Pan torna-se,

assim, uma figura errante, uma entidade que vagueia pelos céus e que, com o tempo, cai no

esquecimento daqueles que uma vez já desembarcaram nas praias da Terra do Nunca para nunca

mais voltar.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

No já citado epílogo de sua obra, Auerbach (2004) investigou a “interpretação da realidade

através da representação literária ou ‘imitação’” e constatou, entre outras observações, que

Stendhal e Honoré de Balzac

tomaram personagens quaisquer da vida quotidiana no seu condicionamento

às circunstâncias históricas e as transformaram em objetos de representação

séria, problemática e até trágica, quebraram a regra clássica da diferenciação

dos níveis, segundo a qual a realidade quotidiana e prática só poderia ter seu

lugar na literatura no campo de uma espécie estilística baixa ou média, isto é,

só de gorja grotescamente cômica ou como entretenimento agradável, leve

colorido e elegante (AUERBACH, 2004, p. 499-500),

também pode se dizer que a literatura infantojuvenil desenvolvida na Europa a partir da segunda

metade do século XIX beneficiou-se dessa apropriação da vida comum para tratar com ares

sérios e criativos de uma parcela da sociedade ainda ignorada pela literatura: as crianças e os

jovens. Ainda que a literatura infantojuvenil existisse já havia alguns séculos, surge nesse

período um tipo de ficção que incorpora esse público leitor como protagonista nas narrativas.

Por uma série de fatores históricos, econômicos e culturais, a segunda metade do século XIX

presenciou na Europa os primeiros exercícios literários nesse âmbito, proporcionando uma

literatura mais legítima e próxima de crianças e jovens, além de popularizar o gênero a uma

escala sem precedentes (BRIGGS; BUTTS, 1995). O estudo da representação da infância na

literatura infantojuvenil, portanto, tem muito a contribuir para a compreensão histórico-cultural

da criança e do jovem. Foi nesse período, na segunda metade do século XIX, que o conceito de

infância se tornou mais presente em todos os aspectos da sociedade, e a produção literária

influenciou essa onda – e foi por ela influenciada.

Da mesma maneira que as personagens de Stendhal e de Balzac foram alçadas a uma condição

nobre dentro do romance, ainda que representassem o homem comum, também as personagens

crianças e jovens despontaram como protagonistas em obras que viriam a constituir uma quebra

de paradigma na literatura infantojuvenil, a partir de 1850. A primeira diferença mais sensível

na caracterização de tais personagens dos livros para crianças e jovens reside no

empoderamento dos protagonistas, agora tratados como heróis. Esse movimento na narrativa

cria um tipo de personagem que se afasta da representação até então comum da criança do

século XVIII, cuja característica utilitária do livro a relegava a um segundo plano (LERER,

2009; ESCARPIT e VAGNÉ-LEBAS, 1988). Uma outra diferença dessa literatura surgida no

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século XIX é o combate de uma visão excessivamente religiosa e puritana, cuja imagem da

infância pecadora não contribuía para a legitimação da criança como ser autônomo, pensante e

crítico, mas a via, sim, como um mal a ser salvo (LERER, 2009).

As consequências desse evento não passaram incólumes na história da literatura infantojuvenil.

Tal período, por sua importância, ficou conhecido como a Era de Ouro do livro para crianças e

jovens (WULLSCHLÄGER, 1995). O próprio gênero – a literatura infantojuvenil –

consolidou-se no mercado editorial e viria a se tornar um dos mais promissores de toda a

produção editorial. Tal era testemunhou o surgimento das obras fundamentais da literatura

infantojuvenil moderna, contribuindo para a ampliação do cânone dentro do gênero. O legado

de tal produção foi tão intenso que, até hoje, a maior parte do imaginário que se tem sobre livros

para crianças e jovens bebe nas obras publicadas de 1850 a 1930 (CARPENTER, 1985).

Das culturas europeias mais promissoras podem ser destacadas as produções inglesas e

francesas como expoentes desse novo momento da literatura infantojuvenil. Alguns escritores

desses dois países foram responsáveis por movimentar a literatura infantojuvenil a partir de

1850 de maneira singular, e seus heróis até hoje fazem parte da infância da maioria dos leitores

ocidentais (LERER, 2009). Na Inglaterra, Lewis Carroll, Edward Lear, Rudyard Kipling,

Robert Louis Stevenson, J. M. Barrie, Kenneth Grahame, Francis Hodgson Burnett, A. A. Milne

fazem parte do panteão de escritores que ajudaram a criar o imaginário da infância na literatura,

que conhecemos ainda hoje. Na França, Hector Malot, Jules Vallès, Jules Renard, Mme Colomb

voltaram seus escritos para as mazelas das crianças abandonadas, ainda que seu público leitor

permanecesse o burguês, seguindo uma tendência de época da literatura “engajada”. Um

terceiro país deve também destaque não pela sua prolífica produção, que de fato não existia,

mas sim por poucas obras que marcaram tanto quanto. Carlo Collodi e Edmondo De Amicis,

mesmo com intenções muito diferentes, produziram obras absolutamente contemporâneas ao

seu tempo, dialogando com um tema muito sensível em sua cultura: a formação da identidade

italiana.

De uma maneira geral, a literatura infantojuvenil deixa de se apoiar na ideia lockiana de criança

como um “ser vazio” que necessita de instrução para chegar à vida adulta – por meio da

instrumentalização da literatura – e volta sua atenção ao indivíduo e a seus aspectos

socioemocionais (LERER, 2009). A própria escrita se beneficia dessa nova proposta, tornando-

se um exercício mais criativo e legítimo, tanto do ponto de vista da narrativa, quando da própria

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ordem autoral. A literatura passa a reconhecer a criança e o jovem como seres autônomos,

dotados de sentimentos e desejos, um movimento que acompanha as evoluções sociais em prol

de assegurar o direito de crianças e jovens às necessidades básicas de seu desenvolvimento

como cidadãos (OTTEVAERE-VAN PRAAG, 1987). Disso advêm medidas como a restrição

a horas de trabalho, a obrigatoriedade da educação, por meio, por exemplo, do Ato Educacional

inglês de 1870. Quanto aos autores, é perceptível o esforço para criar uma voz própria e legítima

e, com ela, uma literatura mais criativa e esteticamente revolucionária.

As crianças-personagens que surgem nessas obras representam ideias de infância construídas

pelos autores que refletem tanto os fenômenos de seus contextos históricos como suas ambições

e inquietações pessoais. É possível, portanto, localizar nas narrativas produzidas na época

personagens emblemáticas e icônicas que condensam características preciosas para a

compreensão desse momento da literatura infantojuvenil ocidental. Dentre esses protagonistas

podem ser destacados o garoto órfão Rémi, o boneco de madeira Pinóquio e o menino que não

quer crescer Peter Pan. Três heróis símbolos da infância, eles são também o exemplo da

moderna literatura para crianças e jovens: a primazia da criança como protagonista de sua

própria história. Um outro aspecto une esses três personagens de culturas diferentes: o estigma

da orfandade (ESCARPIT, 2008). É por meio desse olhar que a análise dos três romances em

que tais personagens figuram – Sans famille, As aventuras de Pinóquio e Peter e Wendy – é

conduzida. Vale ressaltar, porém, que o tema da orfandade está presente na literatura

infantojuvenil muito antes do período da Era de Ouro, como pode ser verificado nos contos

tradicionais emblemáticos, como “João e Maria” e “O pequeno Polegar”, além da literatura que

aparece no final do século XIX, especialmente na França. Porém, no século XIX, o tema da

orfandade serve de argumento para um novo tópico: o da viagem do herói. Uma vez alçadas a

protagonistas, as crianças e os jovens dos livros do século XIX deixam de ser anônimos, passam

a ser indivíduos da sociedade e a ter desejos e seguir o seu telos.

Essa nova representação da criança, no entanto, ainda precisaria achar a forma mais adequada

para sua manifestação. Parlendas, versos, cantigas e até mesmo os contos maravilhosos e de

fada tão presentes na literatura infantil mostraram ser gêneros incapazes de acolher essa nova

mimetização da infância. Ainda a exemplo de Stendhal e Balzac, a criança outrora renegada a

segundo plano encontrará sua representação mais fiel na forma do romance, gênero literário

que melhor acolhe as evidências do mundo subjetivo (WATT, 2010). Será por meio do romance

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que a representação da criança e do adolescente ocorrerá, calcada, especialmente, em dois

elementos: a caracterização da personagem e a ambientação da narrativa.

Mas apenas a manifestação da criança e do jovem como protagonistas não é suficiente para

caracterizá-los. A mera representação não é suficiente para dar conta da narração ou, melhor,

da fabulação (ROBERT, 2007). A literatura infantojuvenil não abandonará o elemento lúdico

e fantástico, que a definiu por durante muitos séculos. Com isso, mesmo em forma de romance

e ainda que tenha abraçado uma visão mais realista para a construção da narrativa e das

personagens, ainda assim as histórias são ambientadas em cenários que, muitas vezes, desafiam

a separação do mundo objetivo e os “países da fantasia”. A literatura infantojuvenil do século

XIX se entrega ao romance como forma de expressão, pretendendo dar conta de uma criança

cuja representação tenta ser mais próxima da “verdade”, mas sem abandonar a busca pelo lugar

utópico. Advém deste fato uma das principais características dessa nova literatura, que se

consolidará na passagem para o século XX: o conceito de“escapismo”, em que universos

paralelos convivem com o mundo objetivo, e cuja função primordial é a separação do mundo

dos adultos e das crianças, um lugar em que a infância possa ser vivida sem a sombra dos

adultos (CARPENTER, 1985).

A legitimação da criança como heroína passaria por algumas fases, muitas vezes concomitantes

e dependentes do contexto histórico de cada cultura. Além disso, a representação da infância

no século XIX, apesar de um fenômeno perceptível, varia de romance a romance, de cultura a

cultura, dependendo da intenção do autor e de seu contexto histórico. Mesmo no século XIX, a

representação da infância não é homogênea nos vários romances escritos na época. Porém,

pode-se dizer que, de uma maneira geral, a criança e o adolescente aterrissam como

protagonistas imbuídos do sentimento de idealização da criança como ser puro e frágil,

merecedor de cuidados e de atenção. Essa idealização em muito guarda conexões com o período

romântico, tendência em praticamente toda a Europa, que perduraria em boa parte do século

XIX. A idealização da criança e da infância teve dois reflexos bastante singulares na literatura

infantojuvenil. A primeira delas foi considerá-la como musa, intocável, de inspiração

verdadeira para o escritor (WULLSCHLÄGER, 1995). A segunda estava no âmbito da

vitimização da criança, marginalizada pela crueldade da sociedade industrial (OTTEVAERE-

VAN PRAAG, 1987).

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Neste contexto, a literatura vê surgir obras cujas personagens crianças passam de meros

secundários para heróis que sofrem com as mazelas de um mundo mecanicista e repleto de

injustiças sociais, especialmente na França pós-revolução. A primeira grande expressão literária

que demonstra essa construção é a obra Os miseráveis, de Victor Hugo, por meio das

personagens Cosette e Gavroche. Apesar de não ter sido escrita para o público infantojuvenil,

inspirou uma série de escritores imbuídos da intenção de revelar para crianças leitoras – em

geral, da classe média – a realidade de seus países. Impulsionados pela onda de “romances

sociais”, os escritores que destinavam suas obras a crianças e jovens leitores pintaram seus

protagonistas com as cores do abandono, da violência e da injustiça, na tentativa de não ficarem

alheios à cruel realidade que acometia milhares de crianças e jovens por toda a Europa

(OTTEVAERE-VAN PRAAG, 1987). A principal delas é a institucionalização do abandono

de crianças, especialmente pelo crescente número de filhos bastardos e pelas precárias

condições financeiras de muitas famílias pobres, tanto no campo como na cidade

(BETHLENFALVAY, 1979).

A obra mais emblemática dessa representação da infância na literatura francesa é Sans famille,

de Hector Malot. Rémi, “l’enfant trouvé”, é mais um dos milhares de meninos esquecidos pelos

pais e tem sua sorte jogada ao destino dos acontecimentos. Malot humaniza não apenas a

personagem criança, mas também uma classe social desprivilegiada. Sua intenção com a obra,

no entanto, não se restringe a denunciar as precárias condições das crianças abandonadas, mas

ele aproveita o argumento (a viagem de Rémi em busca de seus pais biológicos) para percorrer

com o leitor as regiões da França, suas principais cidades e atividades econômicas. Disfarçado

de um “romance social”, Malot dirige-se a seu público burguês em tom de denúncia da injustiça,

mas não frustra o leitor no desfecho: depois de alguns episódios inclusive de cunho fantástico,

o herói finalmente conquista seu prêmio ao achar sua família biológica e, ainda por cima,

descobrir que tem posses. Sans famille foi concebido sob os ecos da revolução social francesa,

que também inspirou autores “engajados” a não apenas representar o homem comum em seus

romances, mas também a escolher como protagonistas personagens das classes trabalhadoras.

Émile Zola, amigo próximo de Malot, tomou Sans famille como inspiração para seu famoso

Germinal, um dos mais importantes romances sociais de toda a história. A conexão entre as

duas obras dá-se pelo episódio das minas em Sans famille, no qual Rémi, por sua bravura e

coragem, enfrenta uma situação quase de morte ao ficar preso junto com outros mineiros em

um acidente na montanha. Nos capítulos que narram esse episódio, Rémi demonstra uma

maturidade e consciência do perigo que o ajudam a sobreviver aos dias de confinamento até o

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resgate. Tal trecho do romance é também singular e merecedor de análise mais profunda, pois

representa o momento em que Rémi enfrenta seu próprio destino, em que deve provar para si e

para seus companheiros de confinamento o amadurecimento emocional e, com isso, sua

emancipação no mundo adulto. A partir desse episódio, Rémi deixa de ser o aprendiz para

transformar-se em mestre de seus colegas também órfãos ou em condições sociais precárias. É

neste episódio singular que Rémi cumpre um dos estágios de sua transformação como herói

(CAMPBELL, 2007).

Ainda que Malot empreendesse esforços para sensibilizar o leitor quanto às injustiças sociais

sofridas com crianças e jovens – uma delas exemplificada pelo episódio das minas –, o tom

exagerado e melodramático do texto cria um sentimento de dúvida em relação à

verossimilhança. Pois nenhum herói humano pode ser tão resiliente, conformado com as

injustiças e proativo para seguir viagem de maneira tão eficaz e pacífica como o garoto Rémi.

A posição do garoto é a de vencer o estigma da criança abandonada – o outsider da sociedade

– para conquistar o espaço nessa mesma sociedade que o renegou. Seu comportamento, neste

aspecto, não é revolucionário, mas sim conformista. As personagens de Malot não se conectam

com as paixões humanas, mas sim com um ideal da infância sob o olhar moralista do adulto.

Portanto, apresentam atitudes maniqueístas.

Há, também, um outro aspecto que faz de Sans famille um romance limiar: estruturada em

episódios, a trama da história segue uma narrativa linear – salvo raras exceções necessárias para

compreensão de um episódio do passado – muito centrada na personagem Rémi. Nesse sentido,

Sans famille também não atingiu a maturidade do romance, uma vez que este admite núcleos

narrativos paralelos que se engendram uns aos outros à medida que os acontecimentos evoluem.

Malot, apresenta um romance ainda imaturo no que diz respeito à nova representação dessa

infância “verdadeira” e à própria estrutura narrativa. Porém, mesmo com tais fragilidades, seu

romance está no limiar dessa nova concepção da literatura infantojuvenil e constitui um ótimo

exemplo para a historiografia da literatura moderna.

A jornada de Rémi muito se associa ao conceito de Bildungsroman (MORETTI, 2000), o

“romance de formação”, no qual se estabelece o paradigma entre o real e o potencial, muito

presente também no romance de aventura. Tanto o romance de aventura como o romance

escolar foram subgêneros muito usados para as modernas narrativas do século XIX, criando

situações autênticas e, por consequência, contribuindo para a originalidade dos livros para

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crianças e os jovens do período. Um romance que poderia congregar ambas as características –

do romance de aventura e escolar – é As aventuras de Pinóquio, de Carlo Collodi. Romance de

aventura disfarçado de romance escolar, ou vice-versa, o livro de Collodi suscita interpretações

diversas, quando não opostas. Para compreender esse conflito, é necessário adentrar no contexto

histórico italiano.

A Itália vivia um contexto histórico bastante diferente da França na segunda metade do século

XIX. Ainda sob os auspícios do Risorgimento, que unificou o território e configurou a nação

italiana, a literatura infantojuvenil surgiu em meio às influências de uma política nacionalista,

cuja principal bandeira era a educação: por meio da escola, as crianças futuras cidadãs teriam

uma base igual de conhecimento sobre o seu novo país e, especialmente, uma língua unificada.

Com uma literatura infantojuvenil ainda incipiente, em especial comparando-a à francesa e à

inglesa, surgem na Itália obras dedicadas a ensinar a crianças e jovens o respeito pela escola,

pela educação, à família e ao trabalho, os pilares da construção da sociedade italiana

(FANCIULLI, 1960). Grande parte da produção literária infantojuvenil da época no país estava

focada em instruir o jovem leitor nos valores da nova nação. Tratava-se, em muitos casos, de

uma literatura encomendada, sem espontaneidade, atribuída a scritori-pedagogi, cuja margem

para evasão e fruição da leitura restringia-se a um nível muito baixo (FAETI, 2009). Não era

incomum, portanto, que as histórias, em sua maioria, se dedicassem a narrar o contexto escolar

e familiar. Obras como Coração, de Edmondo De Amicis, são o exemplo da exaltação da

estrutura do ensino e da participação da família e da sociedade como um todo na educação de

seus filhos. Essa literatura, caracterizada como “romance escolar”, refletia os anseios dos

adultos em relação à boa educação (FAETI, 2009 e 2011).

Pinóquio, de Carlo Collodi, parece querer mais do que simplesmente ser um menino inteligente

e educado. O boneco de madeira é um outsider, um forasteiro: para conquistar o respeito e ter

as chances na vida como qualquer criança, precisa única e exclusivamente frequentar a escola.

A partir desse conflito surgem as polêmicas interpretações da obra de Collodi, que não

caminham para um consenso: trata-se de uma obra nacionalista ou crítica ao sistema

educacional imposto pelo novo regime político? Caso se opte pela segunda interpretação, o

romance pode também ser caracterizado como um romance picaresco e até antirromance.

Porém, a beleza da multiplicidade de interpretações da obra reside na percepção de que a

caracterização, especialmente de Pinóquio, não se apoia em verdades absolutas – como no caso

do romance de Malot. Pinóquio não é maniqueísta como Rémi. Nesse sentido, surgem as

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primeiras comparações entre as obras de Malot e Collodi. Enquanto Rémi daria tudo para ter

uma escola para frequentar, Pinóquio vende a cartilha que seu pai comprou, com muito custo,

para realizar seus sonhos: ir ao circo, viajar, conhecer lugares fantásticos, não estudar. No

romance de Malot, as personagens são boas ou más; ou aceitam o sistema imposto pelos adultos,

ou se caracterizam pelo mau exemplo. Em Collodi, um lado humano mais verossímil surge para

fazer contraposição a essa idealização da infância. Pinóquio se recusa a seguir as regras do

mundo adulto para ganhar a recompensa (no caso, se tornar um menino e ter uma família e um

lugar na sociedade), atendendo a suas paixões, rebelando-se contra imposições, seguindo seu

próprio destino. As viagens, portanto, de Rémi e Pinóquio, ainda que permitam o

autoconhecimento das duas crianças, não objetivam o mesmo desejo. Enquanto Rémi provoca

as oportunidades de ser um cidadão justo, trabalhador e desfrutar do direito adquirido, Pinóquio

vive um conflito de personalidade: por mais que queira estudar para se tornar um menino (sua

conquista), não quer abdicar de suas verdadeiras paixões. Rémi é o vencedor, seu inimigo é a

sociedade injusta. Pinóquio é o fracasso, seu inimigo é ele mesmo. Mesmo assim, o boneco de

madeira dá uma lição no garoto Rémi: busca a autonomia da infância e não no futuro incerto

prometido pelos adultos. A personagem de Pinóquio representa um grau mais complexo do que

Rémi no que diz respeito à sua caracterização: ao invés de ser maniqueísta, o boneco de madeira

vive conflitos éticos, confronta seus valores com os da sociedade em que vive, raciocina em

prol de sua felicidade. É, nesse sentido e em muitas maneiras, mais humano do que Rémi.

Pinóquio, assim, representa uma infância mais legítima e próxima da criança, onde é permitido

brincar, desfrutar do ócio. Ainda em comparação a Rémi, a viagem de Pinóquio não é pela Itália

para conhecer os ofícios e a natureza de seu povo. Pelo contrário, é para um lugar isolado ao

qual o adulto não tem acesso. Trata-se de um país exclusivo para crianças onde só é permitido

brincar e se divertir, sem preocupações com lições, provas ou notas. Collodi cria um dos

primeiros lugares utópicos da infância da literatura, provocando uma reflexão muito pertinente

sobre o sentido de uma escolarização que não legitima a criança como protagonista de sua

própria vida. Assim, Pinóquio revoluciona a ideia de protagonismo infantil quando se permite

refutar um direito incontestável na sociedade trabalhadora e de bem-estar. Em comparação ao

romance de Malot, a criança em As aventuras de Pinóquio, portanto, desvincula-se do papel de

vítima da sociedade e propõe o protagonismo em que ela é responsável pelos seus próprios atos,

por escolher seus próprios caminhos, seguir suas próprias paixões.

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Pinóquio representa essa criança autônoma, reforçando a ideia de infância como um lugar

próprio e necessário para o seu desenvolvimento, que sofre a contrapartida de responsabilizar-

se por seus atos. A obra de Collodi coloca a personagem frente a frente com seu destino. É

assim um dos episódios mais marcantes e divisor de águas do livro, o momento em que

Pinóquio decide ir para o País dos Folguedos, quebrando, mais uma vez, sua promessa à Fada

dos Cabelos Turquesa de estudar para ser tornar um menino de verdade. O País dos Folguedos

representa o lugar utópico do escapismo, no qual a criança consegue realizar os seus desejos,

eternamente. Porém, é também o lugar em que a criança se depara com as dificuldades, com a

traição e uma iminente morte. A morte, tanto para Rémi quanto para Pinóquio, representa um

novo nascimento. É por meio dessa experiência que as personagens de fato alcançam à

maturidade do romance de formação: enquanto Rémi precisa sobreviver ao confinamento da

mina, Pinóquio, em seu estilo aventureiro e picaresco, precisa livrar-se do corpo de burro em

que foi transformado. O recurso da transformação fantástica de Pinóquio (de boneco de madeira

em burrico e, por sua vez, em criança ao final do romance) pode advir dos primeiros contatos

que Collodi teve com a literatura infantojuvenil, como tradutor dos contos de Charles Perrault.

Influências da tradição dos contos maravilhosos e de fada aparecem em As aventuras de

Pinóquio com uma linguagem absolutamente contemporânea ao leitor de época: o italiano

toscano, uma forma que auxilia a aproximação do leitor ao texto, permitindo uma maior

identificação. Muito do sucesso de Pinóquio deve-se à linguagem utilizada por Collodi em

busca do italiano ideal, a língua que mais representa o “povo” italiano. Talvez este também

tenha sido um dos fatores para o indiscutível e imediato sucesso de Pinóquio entre os leitores

da época: uma obra de fato reconhecível para seu leitor. Publicado inicialmente na revista

Giornale per i bambini em 1881, conquistou as crianças que apelaram para a volta de Pinóquio

após o incidente em que ele morre enforcado em uma árvore, no capítulo XV. Seriam

necessários dois anos para que o romance de fato fosse publicado em sua versão completa, o

que apenas contribuiu para uma maior popularização da obra, tornando-a um valor nacional até

hoje.

Seja por meio da linguagem ou da presença de um protagonista mais autônomo, Pinóquio

representa um passo a frente no romance infantojuvenil no que diz respeito a uma maior

verossimilhança com a criança real. Ainda assim o romance de Collodi apresenta, como

estrutura, mais semelhanças com o de Malot do que com os romances posteriores, de uma fase

mais madura (século XX). Também estruturado em episódios curtos e sequenciais – como a de

Malot –, a obra de Collodi concentra-se na narrativa do protagonista, deixando pouca margem

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para conflitos paralelos e para o surgimento de outras personagens centrais. Um outro ponto de

contato entre os protagonistas de Malot e Collodi é a relativa facilidade com que os conflitos

são resolvidos. Por mais difícil que seja a situação enfrentada pelos protagonistas, eles sempre

conseguem desvencilhar-se do conflito e continuar suas jornadas. A estrutura narrativa em

espiral, para ambos os romances, impulsiona as personagens a seguirem suas jornadas. Além

disso, cria no leitor o sentimento de previsibilidade em relação ao desenrolar dos episódios de

cada capítulo. Mesmo para a morte, o sentimento de perigo é atenuado, restando apenas a

ansiedade pela resolução.

Por seus conflitos, Pinóquio representa, portanto, a necessidade de viver a infância a todo

momento, por tempo indefinido, nem que para isso precise experienciar uma situação quase de

morte. Porém, enquanto o romance de Collodi caminha para o desfecho previsível – o boneco

de madeira finalmente se redime, pede perdão à Fada e se transforma, finalmente, em menino

–, uma outra personagem da literatura infantojuvenil surgirá para reivindicar de maneira mais

contundente seu lugar na infância: Peter Pan, de J. M. Barrie. O livro de Barrie, Peter e Wendy,

revisita os principais tópicos abordados em Sans famille e As aventuras de Pinóquio, porém

com um twist ousado e original. Peter Pan é um garoto órfão que foge de sua família para morar

na Terra do Nunca, uma ilha encantada que contém duas regras básicas: jamais crescer e nunca

parar de brincar. Peter Pan e Pinóquio guardam evidentes semelhanças: ambos não são humanos

e se recusam a passar pela transformação que os levaria à idade adulta; ambos fogem para

mundos fantásticos onde a presença dos adultos é proibida; ambos vivem exclusivamente no

presente, ignorando as consequências de suas ações no futuro. Porém, enquanto Pinóquio ainda

se sente dividido moralmente entre ser um menino obediente e um boneco brincalhão, Peter

Pan é capaz de matar os adultos que eventualmente impeçam sua felicidade, em nome da eterna

juventude.

Peter e Wendy é considerado um dos primeiros romances do século XX cujos personagens

esféricos (WATT, 2010) vivenciam conflitos de ordem subjetiva. A começar pela própria

descrição da Terra do Nunca como um lugar que está, literalmente, dentro da cabeça de todos,

trazendo o lugar utópico e escapista para o âmbito íntimo da personagem. Não por acaso, um

dos estudos literários mais ousados sobre a obra de Barrie se vale da psicanálise para

argumentar que a obra não foi escrita para o público infantojuvenil, tamanha sua complexidade

(ROSE, 1985; ZIPES, 2012). Outros pesquisadores, sob o mesmo argumento, consideram que

o romance de Barrie tem uma característica dual: ainda que aborde temas exclusivos da

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infância, por seu grau de maturidade como obra literária, pode ser apreciado por adultos e

crianças (BECKETT, 2009). Muitas são as linhas de pesquisa que investigam as origens desse

misterioso romance, cujo autor, o dramaturgo escocês J. M. Barrie, é, por si só, uma

personagem à parte. Advém dessa associação (autor e obra), uma das linhas interpretativas de

Peter e Wendy que se vale de informações biográficas do autor para justificar estratégias

narrativas. A origem da personagem Peter Pan remonta a obras anteriores ao romance de 1911

e à peça de 1904 (WULLSCHLÄGER, 1995). Peter Pan surge no romance The White Bird

como um recém-nascido que, por não ter sido batizado por sua mãe, nunca se transformou por

completo em um bebê, sendo meio pássaro, meio humano. Por isso, o garoto refugia-se em

Kensington Gardens, onde aprende a voar com as fadas e protege as crianças perdidas depois

que os portões do parque são fechados à noite. Barrie viria a declarar que Peter surge para

homenagear seu irmão mais velho David, morto quando adolescente (CARPENTER, 1985;

BIRKIN, 2005). A tragédia na família Barrie teria consequências profundas no menino James

Mathew e atingiria, de imediato, a relação com sua mãe. Tais argumentos são utilizados por

uma corrente de pesquisadores para justificar a criação da personagem Peter Pan. Adicione-se

a esse argumento um espírito de época que contribuía para o culto a juventude (LERER, 2009).

Mesmo considerando as diversas linhas de pesquisa, os diversos olhares para o texto, uma

pergunta permanece sem resposta: a quem deve ser creditada a qualificação de herói do

romance, Peter ou Wendy (STERLING, 2012)? Ambos protagonizam os conflitos centrais do

romance e, ao mesmo tempo em que dependem um do outro para a narrativa se realizar, são

forças antagônicas em suas naturezas. Wendy é a representação de tudo o que Peter nega: a

responsabilidade e o cuidado com a casa e a família, a valorização do trabalho e do afeto

maternal, a esperança de uma geração. Ela representa o valor vitoriano de uma Inglaterra

próspera e em ascensão (REYNOLDS, 1990). Portanto, o verdadeiro inimigo de Peter Pan é

Wendy. Ela é o elemento disruptivo que o impede de viver a infância eternamente imutável.

Peter, por sua vez, ao lado de Wendy, torna-se um garoto condenado à frivolidade de uma vida

sem objetivos. Essas questões ficam ainda mais latentes e perceptíveis no episódio narrado

dentro da casa subterrânea, nos capítulos 10 e 11 do romance. Enquanto Peter brinca de faz de

conta matando piratas, a “brincadeira” de Wendy se resume a repetir as tarefas domésticas de

toda mulher de família inglesa: educar as crianças, cuidar de suas roupas, colocá-las para dormir

e reconhecer o “chefe da família”. Ambos se decepcionam, no entanto, quando percebem que

seus anseios são diferentes: Wendy quer voltar para casa e crescer; Peter não quer abandonar a

Terra do Nunca. Assim, pela narrativa, Wendy é a personagem que completa o ciclo do herói

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no clássico diagrama do Monomito (CAMPBELL, 2007). Portanto, a representação da infância

que Barrie propõe em Peter e Wendy não traz respostas para perguntas prontas. Mas, pelo

contrário, questiona conceitos preestabelecidos, abrindo o século XX com uma proposta de

revisão de tais posicionamentos.

As três obras apresentadas neste trabalho sintetizam momentos-chave da literatura

infantojuvenil europeia. Além de expressarem e serem frutos de seu contexto histórico-social,

são ricas fontes para o estudo da representação da infância na literatura voltada para crianças e

jovens. A comparação com outras obras da mesma época, mesmo que de maneira sintética,

ajuda a reconstruir o panorama da literatura infantojuvenil do século XIX. A metodologia usada

– focar em trechos pontuais da narrativa, pinçando o momento em que as evidências ficam mais

latentes – contribui para a ampliação da pesquisa, uma vez que pode ser aplicada a qualquer

corpus. Nesse sentido, o presente estudo pode ser estendido para outras culturas, aprofundando

ainda mais a pesquisa em busca das origens do romance na literatura infantojuvenil.

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215

APÊNDICE

Entrevista com Peter Hunt172

Sabemos que A Era de Ouro da literatura infantojuvenil representa o período em que foi escrita

a maior parte dos livros fundamentais que as crianças e jovens leem até hoje. No seu livro

Introduction to Children’s Literature [HUNT, 1994] você afirma que, nesse período, “a

literatura infantil estava crescendo” e se tornando um “clássico vivo”. Por “clássico vivo” o

senhor quer dizer que a obra e o autor foram reconhecidos imediatamente? Em sua opinião,

quais são as forças que contribuem para que um livro se torne parte de um cânone?

Acredito que agora eu não usaria o termo “clássico vivo” – na verdade, acredito que a ideia de

“clássico” e a de um “cânone literário” devem ser tratadas com grande desconfiança. Muitos

“clássicos” podem estar vivos no sentido de que continuam disponíveis para compra e de que

a maioria das pessoas de uma cultura ouviu falar deles, mas não estão “vivos” no sentido de

ainda serem lidos por muitas pessoas. Alice no País das Maravilhas e O vento nos salgueiros

são bons exemplos. São como as celebridades de hoje, bem conhecidas por serem bem

conhecidas.

As forças que tornam clássico um livro têm, na verdade, pouca relação com o que existe em

suas páginas. Existem clássicos de todos os tamanhos e formas, e com frequência eles têm

pouco ou nada em comum. No Reino Unido e nos Estados Unidos, a ideia de um texto clássico

– que de algum modo é “melhor” do que outros textos – é a de um fenômeno editorial,

produzido pelos editores para manter o livro à venda com o máximo de lucro. Por exemplo, no

Reino Unido, na primeira década do século XX, J. M. Dent começou a série Children’s

172 Peter Hunt é fundador e professor emérito de literatura infantojuvenil da Cardiff University, o primeiro curso

do gênero na Grã-Bretanha. Nascido em 1945, Hunt é um dos críticos contemporâneos mais importantes de

literatura infantojuvenil e obteve reconhecimento internacional que lhe renderam os prêmios: International

Brothers Grimm Award (Japão) e o Distingued Scholarship Award (Estados Unidos). É autor de importantes obras

como An Introduction to Children’s Literature (1994), Children’s Literature: an Illustrated History (1995),

Understanding Children’s Literature (1999), bem como editor de diversos números da Children’s Literature: a

Blackwell Guide, além de assinar as notas e prefácios das edições de obras clássicas da Oxford University Press.

Sua única obra traduzida no Brasil, Crítica, teoria e literatura infantil, foi publicada em 2010 pela editora Cosac

Naify. Tive o prazer de coordenar a edição do volume como editora, que conta com modificações exclusivas para

a edição brasileira, como um capítulo adicional e exemplos mais próximos do leitor brasileiro.

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Illustrated Classics173 [Clássicos Infantis Ilustrados] seguindo o princípio de que a palavra

“clássico” possui uma qualidade misteriosa e de que as pessoas tendem a comprar livros em

séries. Mas esses “clássicos” eram, na maioria, obras do século XIX, cujos autores não

precisariam receber direitos autorais. A primeira série do tipo nos Estados Unidos foi a coleção

Children’s Classics [Clássicos Infantis] publicada pela editora Macmillan, em 1922, com a

mesma motivação. Hoje, “clássico” é um termo usado em demasia, aplicado a qualquer coisa,

de Coca-Cola a qualquer livro que esteja no catálogo de uma editora e cuja reimpressão seja

conveniente.

E tantos livros que foram best-sellers em sua época desapareceram, enquanto outros, não tão

populares, sobreviveram em um tipo de meia-vida como “clássicos” – para serem dados como

prêmio, ou presente, e às vezes utilizados como munição política em discussões educacionais

a respeito do que as crianças devem ler. É muito estranho, por sua vez, que certos estilos de

escrita, personagens e enredos, originados dessa coleção arbitrária de livros, e do período em

que foram escritos, vieram a caracterizar, retrospectivamente, o que define um “clássico”.

E quanto ao “cânone”? Um cânone surge apenas quando necessário, e nos anos 1970, quando

a literatura infantojuvenil se estabelecia como uma disciplina a ser estudada com seriedade nas

universidades – e antes que teoria e “desconstrução” literárias demolissem a ideia de que um

livro pudesse ser cosmicamente “melhor” do que qualquer outro –, foi necessário, como tática

política, estabelecer-se um cânone. E esse cânone precisava ser aceitável pela comunidade

crítica adulta – e, portanto, precisava ser apreciado pelos homens brancos que arbitravam o bom

gosto. Como consequência, os livros que adultos (homens velhos e brancos) gostavam tinham,

em sua maioria, protagonistas homens com nostalgia da inocência da infância, ou eram escritos

por autores adultos “respeitáveis” – em geral, homens: Os livros da selva [KIPLING], O vento

nos salgueiros, A Ilha do Tesouro, Tom Sawyer, O Hobbit e Peter Pan e Wendy. O fato de que

mulheres sempre tiveram uma presença importante na literatura para crianças complicava as

coisas, mas isso não produziu grandes mudanças, não até a década de 1970.

173 Chamados de Dent’s Children’s Illustrated Classics, tal coleção é hoje considerada item de colecionador.

Publicados a partir da década de 1960 pela editora J. M. Dent & Son, na Inglaterra, conta com mais de cinquenta

títulos que vão de uma abrangência das fábulas de Esopo a Beleza negra, de Anna Sewell. Todos os volumes eram

ilustrados, com acabamento de capa dura.

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Então, cuidado com os cânones! Depois que lhe dizem do que você deveria gostar, fica mais

difícil para você entender do que gosta de fato, e por quê.

Ainda com relação à Era de Ouro, muitas obras – pensadas para crianças ou não – usam, como

estratégia narrativa, um lugar especial que os personagens infantis visitam como forma de fuga

do “mundo real”. A crítica da literatura infantojuvenil usa o termo “escapismo” para descrever

essa estratégia. Como esse foi um fenômeno que ocorreu ao mesmo tempo em muitos livros

considerados literatura infantojuvenil, pesquisadores atribuem essa estratégia a uma nova visão

da infância como um lugar pertencente exclusivamente às crianças (para simplificar o conceito).

Você concorda com essa interpretação? Como vê o escapismo?

É verdade que na Era de Ouro o conceito de infância estava mudando, e assim era atraente a

ideia de mundos alternativos para crianças, nos quais estas podiam agir com independência:

País das Maravilhas, Terra do Nunca, o Bosque dos Cem Acres, a Terra Média, a Margem do

Rio. Contudo, embora a infância para crianças tenha sido um conceito que, no Reino Unido,

floresceu na primeira metade do século XX, a ideia de que os mundos alternativos oferecidos

para as crianças na ficção fossem uma forma de escapismo me parece errada.

O problema com escapismo é... escapar do quê, para onde? Em geral, pensamos que escapismo

é fugir de algo ruim para algo bom, ao passo que, quase sem exceção (é difícil lembrar uma

exceção), os mundos para os quais os personagens fogem são estranhos, assustadores ou hostis.

Quem iria querer, de verdade, estar na Terra do Nunca, com índios selvagens e piratas

assassinos, ou no País das Maravilhas, com uma rainha louca – ou mesmo no Bosque dos Cem

Acres, com aquele Coelho desagradável? Na verdade, quase todos esses mundos,

principalmente os que se seguem imediatamente ao livro Alice (como o de Mopsa the Fairy [A

fada Mopsa], ou o de Speaking Likenesses [Retratos que falam]) são moralistas, criados com a

intenção de inculcar princípios religiosos ou éticos nas crianças, frequentemente ameaçando-as

com castigos.

“Escapismo”, em geral, tem conotação pejorativa: pessoas que fogem para mundos fantásticos

não conseguem lidar com o mundo “real”. Mas nos livros infantis, em geral são os escritores e

leitores adultos que tentam fugir.

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Muitos críticos e pesquisadores usam informações biográficas para justificar a análise que

fazem do trabalho intelectual de autores e suas obras. Em algumas situações, exceto quando o

autor declara que foi de fato influenciado por eventos pessoais para criar suas histórias, esse

tipo de análise pode ser frágil e enganosa. Ainda assim, parece que os fatos que permeiam a

vida de Lewis Carroll, J. M. Barrie e A. A. Milne são essenciais para uma leitura mais profunda

de suas obras-primas. Isso se deve em especial ao fato de que as personagens principais dessas

obras eram próximas dos autores ou serviram-lhes de inspiração. O senhor acredita que a leitura

crítica das obras desses autores, especialmente Alice no País das Maravilhas, Peter Pan e

Wendy e O ursinho Pooh, pode ser imune às informações biográficas?

A questão é: “deve a crítica ser imune a esse tipo de informação?”.

Um cínico pode dizer que a única razão para críticos usarem informações biográficas é que eles

não têm mais nada para dizer! E eu concordo plenamente com você que é perigoso empregar

informações biográficas na leitura de textos literários. Mesmo que esses autores declarem ter

escrito para crianças específicas, isso não significa que tomaram o cuidado de levar em conta

as necessidades dessas crianças. Carroll, embora tivesse uma ligação evidente com Alice

Liddell (ele deu para a garota uma versão manuscrita do livro), escreveu, na verdade, para as

muitas garotinhas que conhecia. A narrativa da infância interminável feita por Barrie estava

mais relacionada ao passado dele do que aos seus relacionamentos com crianças reais. Milne

era alheio à agonia que causava no filho ao retratá-lo como “Christopher Robin” nos livros para

crianças.

Por outro lado, parece que os críticos supõem que o público leitor está mais interessado em

saber se Carroll ou Barrie eram pedófilos (pelo menos Milne não é acusado disso, mas apenas

de negligência para com o filho) do que com o conteúdo dos livros (a menos que sirva de

evidência para as preconcepções biográficas dos críticos).

Mas quer usemos informações biográficas “externas”, ou evidências “internas” aos livros, é útil

refletirmos se e por quê deveríamos utilizá-las. Isso depende de vermos um texto como

existindo – no que diz respeito ao leitor primário – por conta própria, ou se existindo em um

contexto – como lido por pesquisadores e críticos... e adultos. Resumindo, depende de estarmos

lendo o livro ou o escritor. Existem muitos argumentos dos dois lados, mas a leitura holística

de um texto, que envolve tudo que se possa saber desse texto, fornece um tipo diferente de

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prazer do que uma leitura descontextualizada. Qual delas é mais apreciada depende de cada um,

embora eu acredite que os melhores leitores consigam ler das duas formas mais ou menos

simultaneamente.

Em sua recente obra The making of The Wind in the Willows [O making of de O vento nos

salgueiros], você afirma que O vento [...] não foi escrito para crianças. Em When Dreams Come

True [Quando os sonhos se tornam realidade], Jack Zipes afirma que Peter e Wendy também

não foi escrito para crianças. Ainda assim, essas duas obras são obrigatórias em qualquer

coleção básica de livros para crianças. Você pode falar um pouco mais sobre esses dois casos?

E por que essas obras nunca foram consideradas “literatura adulta”, se essa é a natureza delas?

A inspiração, ou gatilho, original para esses dois livros pode ter sido o desejo de divertir uma

criança específica, mas nos dois casos (assim como em outros, como O ursinho Pooh ou Mary

Poppins), as preocupações que os autores trouxeram para sua escrita sobrepuseram-se à

intenção original. É uma suposição comum que os livros para crianças devem ser simples, como

se escritos para seres simples (ou mais simples que os livros para adultos). Na verdade, são

obras escritas por adultos que não conseguem evitar incluir seus próprios sentimentos e

opiniões. Os autores podem tentar disfarçá-los, mas o fato de estarem escrevendo para um

público menos experiente pode encorajá-los a “dizer” mais do que fariam se escrevessem para

um público de iguais. C. S. Lewis disse (e eu o parafraseio aqui) que às vezes um livro para

criança é o meio certo para o que você quer dizer. Isso com certeza é verdade para Kingsley em

The Water Babies [Os bebês aquáticos], pois está repleto da filosofia frequentemente

contraditória desse autor. Lewis Carroll também descobriu que podia esconder (ou confessar)

nos livros seus sentimentos pelas pessoas que amava, como em Alice através do espelho. Pode-

se debater se O vento nos salgueiros é na verdade uma sátira delicada da homossexualidade, e

talvez uma declaração disfarçada de Grahame sobre sua própria sexualidade. Peter Pan e

Wendy, do mesmo modo, é uma meditação a respeito da morte, direcionada (principalmente no

fim) aos adultos, e com frequência é dirigida aos adultos sem que as crianças a entendam.

Peter e Wendy nunca foi considerado “literatura adulta” até, talvez, muito recentemente, porque

derivava das peças de muito sucesso de Peter Pan, que foram feitas para crianças. Agora que

sua complexidade foi reconhecida, provavelmente é muito mais lido por adultos do que por

crianças.

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O vento nos salgueiros, por outro lado, era visto como um livro adulto – nem seus editores nem

seu autor afirmavam que fosse outra coisa. Contudo, logo foi adotado como um livro da família,

e quando a editora Methuen lançou uma edição escolar, sua identidade como livro para criança

foi confirmada.

Existe, contudo, uma razão mais simples para que esses livros sejam encontrados nas seções

infantis: tratam-se de obras de fantasias, e não foi até as décadas de 1970 e 1980 que fantasia

se tornou material respeitável de leitura para adultos. Livros como O senhor dos anéis, baseado

no infantil O Hobbit, abriram o caminho, mas, com notáveis exceções, fantasia era para

crianças.

Críticos de literatura infantojuvenil concordam que Peter e Wendy foi um marco histórico,

assim como Alice no País das Maravilhas, algumas décadas antes. As duas obras possuem

tópicos semelhantes: ambas alcançam leitores adultos e crianças; ambas contêm referências à

cultura inglesa; ambas clamam por novos padrões. Mas, ainda assim, são bastante diferentes

em termos estéticos, e cada uma estabelece um novo modelo de escrita para crianças. Você vê

algo que une as duas obras?

Não. Eu penso que são obras cognatas, ou seja, possuem similaridades, mas uma não

influenciou diretamente a outra. São resultados da soma das atitudes individuais dos escritores

mais mudanças culturais, o que deu liberdade a seus autores para usarem o livro para criança

como veículo de suas preocupações.

Assim, embora os dois se dirijam aos dois públicos, Carroll só se dirige aos adultos nos

parágrafos finais de País das Maravilhas e nos poemas que balizam a narrativa. Fora isso, ele

se dirige quase exclusivamente às crianças. Barrie, por outro lado, faz como Kingsley,

misturando textos direcionados às crianças com textos para adultos. Pode-se sugerir, assim, que

Alice no País das Maravilhas foi uma resposta a esse aspecto de The Water Babies que Carroll

não gostava.

Se podemos dizer que algo os une é que ambos têm características de pesadelo, que é o oposto

do que as pessoas pensam que os livros infantis são.

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É evidente que Stevenson e Dickens foram influências importantes nas obras do tempo deles.

Um relaciona-se mais ao “romance social”, enquanto o outro ao “romance de aventura”. Você

acredita que eles continuam sendo, hoje, uma influência para os escritores?

Como esses dois escritores, ou suas obras, são elementos bem estabelecidos da cultura britânica,

eles foram – e são – uma influência direta nos escritores modernos.

O estilo dickensiano passou a significar exagero, caricatura, a utilização do grotesco, de cenas

muito dramáticas – ou melodramáticas, tramas complexas com muitos personagens, clima

carregado, estilo pitoresco, frequentemente manifestando-se contra um mal social. Várias

dessas características atraem autores infantis. Nos anos 1970, Leon Garfield (agora, talvez,

pouco lido) produziu uma longa série de obras ambientadas em uma Londres dickensiana, como

o livro Smith. Um dos últimos escritos de Terry Pratchett foi Dodger, desenvolvimento de um

personagem de Oliver Twist, de Dickens. De fato, a ambientação de muitos dos romances da

série “Discword”, de Pratchett, a cidade de Ankh-Morpork, parece enraizada na sátira e no

exagero dickensianos. Existem, também, elementos dickensianos na obra de Philip Pullman

(coleção Fronteiras do universo) e nos personagens grotescos de Roald Dahl.

Mas eu diria que a influência de Dickens aparece com mais força na moda do steampunk e do

cyberpunk, em escritores como Philip Reeve e Neil Gaiman.

Stevenson é um caso diferente, pois era um escritor muito mais variado, e boa parte de sua obra

reflexiva e de viagem está fora de moda. Em A Ilha do Tesouro, sua tentativa deliberada de

escrever um best-seller, ele não apenas produziu um personagem mais memorável que qualquer

outro – Long John Silver, um anti-herói assassino – como também criou um gênero de histórias

de piratas que tem se mostrado extraordinariamente durável. Em especial, sua maior influência

é na franquia de filmes Piratas do Caribe, e não em livros.

Acima de tudo, porém, o legado de Stevenson é a introdução da ideia de ambiguidade moral e

ética nos livros para criança. Em A Ilha do Tesouro, os personagens evidentemente “bons”,

incluindo Jim Hawkins, o narrador, têm falhas morais sérias. A Ilha do Tesouro é um exemplo

clássico de livro que é mais famoso do que lido; trata-se de uma obra bem sombria, até mesmo

depressiva, com uma visão bastante desanimadora da natureza humana, e ainda assim é

“lembrado” como uma aventura empolgante – e adequada para crianças!

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O seu próximo livro, ainda não lançado, é uma coautoria com Laura Tosi: The Fabulous

Journeys of Alice and Pinnochio [As fabulosas jornadas de Alice e Pinóquio]. Apenas observo

que esse título poderia ser fundamental para esta tese de doutorado, mas independentemente

disso, você poderia, por favor, comentar o livro, citando aspectos interessantes?

Esse livro é resultado de uma série de palestras que eu e a professora Laura Tosi demos quando

eu era professor visitante na Universidade Ca’Foscari, em Veneza. Nós estávamos escrevendo

juntos um livro divertido sobre as diferenças culturais entre ingleses e italianos, que foi

publicado como As Fit as a Fish [Forte como um touro]. Um dos muitos mistérios é como dois

livros tão diferentes como Alice no País das Maravilhas e Pinóquio, escritos por autores tão

diferentes, tornaram-se populares – icônicos – em todo o mundo.

Isso nos conduziu a diversas direções. Uma delas é a extensão da representação das culturas

por meio de livros, e o quanto elas aceitam caricaturas. Assim, pode-se dizer que a personagem

de Alice é quintessencialmente inglesa, porque equilibrada e educada, mas ao mesmo tempo

implacável e arrogante. Da mesma forma, os italianos estão dispostos a aceitar Pinóquio como

a imagem nacional de si mesmos – vibrantes e corajosos, mas também impetuosos, desonestos

e não confiáveis.

O fato de os dois livros não serem o que pareciam foi estabelecido através da biografia

comparada: ambos os escritores usavam pseudônimos, mas um deles era um revolucionário

muito ativo, que arriscou a vida pela causa da unificação da Itália, enquanto o outro era um

acadêmico – com um amplo espectro de interesses. Talvez o livro possa ser melhor explicado

por um trecho da “Introdução”:

Este livro trata sobre a leitura paralela de dois livros. Ou melhor, duas

leituras que cruzam uma com a outra e com as sociedades e nações que

produziram esses livros. Não se trata, apenas, de uma comparação entre as

aventuras de Pinóquio e Alice, ou mesmo de um cotejo ou de uma

justaposição: é a observação de cada livro através da lente do outro. Isso

destaca similaridades e diferenças em termos de fantasia universal e

características nacionais, além de abrir novas perspectivas críticas. Em

1977, Giorgio Manganelli chamou sua obra crítica sobre Pinóquio “um livro

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paralelo”, com a plena consciência de que cada leitura crítica cria nova

percepção de uma obra literária, e portanto cria uma nova obra literária. Em

seu prefácio, ele revela a regra de ouro do “paralelista profissional”: “tudo

arbitrário, tudo bem documentado”.

Escrever um livro crítico paralelo para Alice e Pinóquio é, da mesma forma,

uma empreitada arbitrária e bem documentada, que precisa lidar com a

questão do internacionalismo em relação à literatura infantil. Nós

conseguimos conceber um cânone internacional da literatura infantil

(baseados em traduções)? A atitude da crítica é de desconfiança com relação

a generalizações, e não muito otimista quanto a essa possibilidade. Maria

Nikolajeva, em Children’s literature Comes of Age (A literatura infantil

amadurece – 1996), por exemplo, escreve que, “com pouquíssimas

exceções, a literatura infantojuvenil, em diferentes países, tem pouco em

comum” (p. 43), com os textos sendo, na maioria, coleções de contos

populares ou adaptações de textos adultos, como Robinson Crusoe (embora

ela considere Alice, com muito cuidado, o único exemplo de “livro

infantojuvenil realmente universal” p. 43). Emer O’Sullivan faz um alerta

quanto a tratarmos “clássicos” em sua língua original da mesma forma que

os clássicos traduzidos (e usa Pinóquio em suas traduções para o alemão

como exemplo em seu capítulo “World Literature and Children’s Classics”

[Literatura mundial e clássicos infantis; 2005: p. 130-164]). Sua conclusão

é que um “corpus dos chamados clássicos da literatura infantil internacional

[...] não pode ser equiparado a um cânone da literatura infantil” (p. 148).

Outros autores, como Klingberg (1986: p. 39), argumentam que trocas só

podem ser identificadas dentro de países que pertencem aos mesmo grupos

linguísticos e geográficos, como o grupo de países anglófonos ou o de países

do sul da Europa. Muito antes (e agora de modo muito mais polêmico), Paul

Hazard, em seu Les livres, les enfants e les hommes (Livros, crianças e

homens, 1932), observou, no capítulo “Superioridade do Norte sobre o Sul”,

a literatura infantojuvenil “superior” e mais prolífica (p. 78) dos países do

norte em comparação à dos países meridionais. Nada de interessante,

Hazard afirma, acontece na Espanha, e ele conjectura, por exemplo, por que

as obras-primas italianas Pinóquio e Coração “esperaram séculos para se

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fazerem conhecidas, se datam apenas do Risorgimento” (p. 78). A relação

entre literatura infantojuvenil e identidade nacional é, de fato, crucial.

Também observamos o modo pelo qual os livros foram “transmitidos”: as duas versões Disney

estão entre as melhores produções do estúdio, em termos criativos, mas ambas quase arruinaram

financeiramente a empresa. Alice reteve muitos elementos da cultura inglesa que não foram

bem aceitos em outras culturas, enquanto Pinóquio foi retratado usando traje tirolês – uma

infelicidade, dado que Collodi passou boa parte de sua vida lutando contra os austríacos!

Essa investigação intercultural desenvolveu-se, então, e passou a comparar histórias escolares

– Tom Brown’s Schooldays e Coração – e os romances de aventura de G. A. Henty e Emilio

Salgari.

Para mim, o mais interessante em escrever esse livro foi que nossas leituras não eram restritas

a uma única abordagem crítica. De fato, nós pudemos observar tudo, de biografia à história

cultural e geografia, a cinema e mídia eletrônica – e até mesmo pudemos incluir um encontro

ficcional entre Alice e Pinóquio! O livro é, principalmente, da professora Tosi, e espero que

consiga demonstrar as possibilidades da cooperação internacional.

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