UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA – CAMPUS II · mercadológicas da editora, ... Cereja, mestre em...

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1 UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS CAMPUS I PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDO DE LINGUAGENS VANESSA COSTA DOS SANTOS O “ROMANCE DE 30 DO NORDESTE” VISTO PELA COLEÇÃO PORTUGUÊS: LINGUAGENS Salvador - BA 2013

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA – UNEB

DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS – CAMPUS I PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDO DE LINGUAGENS

VANESSA COSTA DOS SANTOS

O “ROMANCE DE 30 DO NORDESTE” VISTO PELA COLEÇÃO PORTUGUÊS: LINGUAGENS

Salvador - BA 2013

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VANESSA COSTA DOS SANTOS

O “ROMANCE DE 30 DO NORDESTE” VISTO PELA COLEÇÃO PORTUGUÊS: LINGUAGENS

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens da Universidade do Estado da Bahia, no espaço da linha 1 – Leitura, Literatura e Identidades do Departamento de Ciências Humanas, como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Estudo de Linguagens. Orientadora: Profª. Drª. Márcia Rios da Silva.

Salvador - BA 2013

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FICHA CATALOGRÁFICA

Sistema de Bibliotecas da UNEB

Bibliotecária: Jacira Almeida Mendes – CRB: 5/593

Santos, Vanessa Costa dos

O “romance de 30 do nordeste” visto pela coleção português: linguagens / Vanessa Costa

dos Santos . - Salvador, 2013.

82f.

Orientadora: Márcia Rios da Silva

Dissertação (Mestrado) – Universidade do Estado da Bahia. Departamento de Ciências

Humanas. Campus I. 2013.

Contém referências.

1. Literatura (Ensino médio) - Estudo e ensino. 2. Literatura - Estudo e ensino. I. Silva,

Márcia Rios da. II. Universidade do Estado da Bahia, Departamento de Ciências Humanas.

CDD: 809

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VANESSA COSTA DOS SANTOS

O “ROMANCE DE 30 DO NORDESTE” VISTO PELA COLEÇÃO PORTUGUÊS:

LINGUAGENS

Dissertação aprovada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em

Estudo de Linguagens, Universidade do Estado da Bahia, pela seguinte banca

examinadora:

________________________________________________ Profª. Dra. Márcia Rios da Silva (Orientadora)

Universidade do Estado da Bahia - UNEB

________________________________________________ Profª. Dra. Lívia Maria Natália de Souza Santos

Universidade Federal da Bahia - UFBA

________________________________________________ Profª. Dra. Sayonara Amaral de Oliveira

Universidade do Estado da Bahia - UNEB

Salvador, 22 de maio de 2013.

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Para Valdemar, meu pai,

pela constante e silenciosa presença.

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AGRADECIMENTOS

A Deus, pelo auxílio incomparável.

Aos meus pais, pelas incríveis referências de vida.

Aos meus irmãos, Valtênison, Marcos, Vilma, Valdirene, e em especial a Júnior e

Vanderley, que me ensinaram a conviver com as diferenças.

À Profª. Drª Márcia Rios, pela orientação segura e constante.

Aos membros da Banca de Qualificação, pelas valiosas contribuições.

À Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia (FAPESB), que me

concedeu uma bolsa fundamental para a pesquisa que desenvolvi.

À Profª. Drª Verbena Maria Rocha Cordeiro, pela oportunidade de cumprir um

Mestrado-Sanduíche na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.

Aos amigos, pelas palavras de incentivo e colaboração, em especial a Lucélia Reis e

Priscila Vila Flor.

A Eldem Matos, pelo apoio de sempre.

A Isaac Verdú e Arhur Chiochetta Licks, pela acolhida Housing – RS, e à Taíse

Macedo, companheira de estágio.

Aos Professores deste Programa com os quais tive a oportunidade de acrescentar

conhecimentos incondicionais.

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“Lutar pela igualdade sempre que as diferenças nos discriminem; lutar pela diferença sempre

que a igualdade nos descaracterize”.

Boaventura de Souza Santos

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RESUMO

O presente trabalho tem por objetivo analisar na coleção Português: linguagens as abordagens sobre o romance de 30, produzido por escritores do Nordeste, com vistas a entender o modo pelo qual se mantém uma imagem estereotipada sobre essa região do Brasil. São eleitos, nesta investigação, textos verbais e não verbais, referentes às abordagens dessa vertente literária, com a finalidade de apreender o encaminhamento realizado pelos autores da coleção para levar o estudante à compreensão do romance de 30, bem como verificar quais representações são elaboradas sobre essa produção textual. Para a análise destas questões, recorre-se às contribuições teóricas organizadas pelos estudos da transposição didática, como Yves Chevallard, ao trabalho de pesquisadores que tratam da noção de região, a exemplo de Durval Muniz de Albuquerque Júnior e Iná Elias de Castro, e ainda às pesquisas sobre o romance de 30, como Luís Bueno e Fábio Lucas.

Palavras-chave: Literatura ensinada. Livro didático. Romance de 30. Nordeste.

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RÉSUMÉ

Le présent travail a comme l‟objectif analyser dans la collection Portugais : langages les abordages sur le roman de 30 (trente) produit par les écrivains du nord-est, afin de comprendre la façon auquel se fait une image stéréotypée sur cette région brésilienne. Pour faire cette recherche, on a choisit les textes verbaux et non-verbaux, sur le sujet littéraire ci-dessus, dans la perspective de savoir le parcours utilisé par les écrivains de la collection dans le sens de faire l‟étudiant comprendre le roman de 30, ainsi comme vérifier quels répresentations sont elaborées sur cette production textuelle. Pour analyser ces questions, il a fallu étudier les contribuitions téoriques organisées par les études de la transposition didatique, comme Yves Chevallard et d‟autres rechercheurs qui étudient ce sujet, par exemples : Durval Muniz de Albuquerque Júnior e Iná Elias de Castro, aussi comme les recherches sur le roman de 30, comme Luís Bueno e Fábio Lucas.

Mots-Clés : Littérature enseignée. Livre didatique. Roman de 30. Nord-est.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ......................................................................................................... 11

1 APRESENTANDO A COLEÇÃO PORTUGUÊS: LINGUAGENS......................... 23

2 NOVA ROUPAGEM, ANTIGAS LEITURAS ......................................................... 39

2.1 UMA LITERATURA DEPENDENTE.................................................................... 43

2.2 O CARIMBO DO REGIONALISMO .................................................................... 53

2.3 UMA LITERATURA DE DENÚNCIA SOCIAL .................................................... 65

CONSIDERAÇÕES FINAIS ..................................................................................... 75

REFERÊNCIAS ........................................................................................................ 79

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INTRODUÇÃO

Esta pesquisa teve seu início em 2011, ano em que ocorreram as eleições

presidenciais no Brasil, com a vitória da candidata Dilma Roussef. Logo após tal

processo, uma onda de declarações pejorativas circulou na Internet, nas chamadas

redes sociais, acusando os nordestinos de terem eleito uma governante que iria dar

continuidade a uma política de transferência de renda, iniciada pelo governo Luís

Inácio Lula da Silva, em especial com o Programa Bolsa Família, sobre o qual

recaem críticas severas, como a de que estaria estimulando a ociosidade dos pais

dos beneficiados. Os produtores dessas mensagens, muitas vezes identificando-se

como pertencentes às regiões Sul e Sudeste do Brasil, declaravam ainda sua recusa

em trabalhar para sustentar nordestinos. Em meio a essas acusações, torna-se

flagrante uma representação estereotipada, preconceituosa e desqualificadora do

Nordeste e dos nordestinos, concebida por muitos como região pobre, miserável,

supostamente beneficiada por um governo de ideologia de esquerda.

As declarações postadas na rede, muitas sob forma de piadas, partem de um lugar

comum – um enunciado que configura o Nordeste como a região pobre e seca do

Brasil – e se mostram carregadas de clichês, também encontrados em novelas

brasileiras, produções de larga abrangência no país e ainda em filmes nacionais,

com caracterização de personagens, cenas ou situações estereotipadas sobre a

região. Essas declarações chamavam a atenção justo no momento em que

começávamos a analisar imagens sobre o Nordeste, veiculadas nos livros didáticos,

destinados aos estudantes do ensino médio. Como leitores de livros didáticos que

fomos, enquanto estudantes e, hoje, na condição de professores, inquietou uma

representação estereotipada que esse material didático faz do Nordeste, partindo

daquele mesmo enunciado, e privilegiando-o, ao apresentar essa região como o

espaço pobre do país, vitimado pelo flagelo da seca.

O que se constata é que o livro didático, como produção pedagógica elaborada por

sujeitos que têm uma formação intelectual, colabora com a perpetuação de uma

textualidade oriunda de um grupo social dominante, na medida em que transmite um

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conjunto de valores desse grupo, vindo a contribuir, inevitavelmente, com a

formação da visão de mundo dos estudantes.

Todas essas manifestações, discursos, imagens e vozes têm em comum um único

enunciado que remete a uma formação discursiva que inventou o Nordeste.

Segundo Albuquerque Jr. (2009), o Nordeste foi inventado a partir de uma

maquinaria discursiva que, dentre outras estratégias, abarca a estratégia da

estereotipização. Esse discurso se configura por ser assertivo, repetitivo e fixa

rótulos sobre o outro.

Ao tratar do discurso colonial, Homi K. Bhabha (1998) discorre sobre o conceito de

fixidez, que se constitui como elemento importante na construção ideológica de

alteridade. A “fixidez, como signo da diferença cultural/histórica/racial no discurso do

colonialismo, é um modo de representação paradoxal: conota rigidez e ordem

imutável como também desordem, degeneração e repetição demoníaca” (BHABHA,

1998, p. 106). A fixidez encontra, no estereótipo, principal estratégia e forma de

identificação. O estereótipo, por sua vez, se firma por meio de uma repetição que

“[...] produz o colonizado como uma realidade social que é ao mesmo tempo um

outro” (BHABHA, 1998, p. 111).

Em tais discursos, são negadas as representações simbólicas da vida cotidiana dos

sujeitos, bem como se nega a própria alteridade. Tanto o espaço quanto os

habitantes são modelados a partir do discurso que os institui. Acolhidas pelos livros

didáticos, com tom de verdade, cujos leitores são adolescentes e jovens em

formação, essas ideias, dificilmente, serão questionadas ou até alteradas sem uma

intervenção mais direta de um contra discurso. Assim, guiada pela mirada crítica de

Bhabha (1998), esta pesquisa tem por objetivo analisar, na coleção Português:

linguagens, as abordagens sobre o romance de 30, produzido por escritores do

Nordeste, visando entender o modo pelo qual se mantém uma imagem

estereotipada sobre essa região do Brasil.

Portanto, ora partindo da inquietação com determinadas representações sobre essa

região, ora partindo dos questionamentos desses velhos e cruéis valores, buscamos

analisar o modo pelo qual se mantém uma imagem sobre o Nordeste na coleção

Português: linguagens (2010), de autoria de William Cereja e Thereza Cochar

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Magalhães, destinada para estudantes do ensino médio, um material didático que

assume voz ativa e de verdade em sala de aula.1 Visando responder a essa

questão, duas perguntas foram levantadas, para guiar a elaboração das seções da

dissertação: que encaminhamento é feito pelos autores para levar o estudante à

compreensão do romance de 30, produzido pelos escritores do Nordeste? Que

representações são elaboradas sobre essa produção textual?

A escolha dessa coleção como objeto de pesquisa deve-se à constatação de ser o

título mais adotado pelas escolas públicas do Brasil, segundo informação concedida

pela Secretaria de Distribuição do Livro Didático – MEC. Além disso, os livros

didáticos de tal coleção, destinados ao ensino fundamental, são líderes de vendas

no segmento de 6º ao 9º ano, segundo informação de seu site oficial2. O livro

Português: linguagens tem largo alcance certamente pelas estratégias

mercadológicas da editora, que conta com as assinaturas dos autores William

Cereja, mestre em Teoria Literária e Literatura Comparada pela USP e doutor em

Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem, pela PUC/SP, e Thereza Cochar

Magalhães, mestre em Estudos Literários pela UNESP de Araraquara/SP e com

experiência, como professora, na rede pública de ensino de São Paulo3.

Feita a escolha dessa coleção, procedemos a uma análise do Guia de Livros

Didáticos do Programa Nacional do Livro Didático – PNLD/MEC 2012 para o

componente curricular língua portuguesa, o qual traz indicações de livros destinados

ao Ensino Médio para 2012, 2013 e 2014, nas escolas públicas brasileiras4. Nesse

1 Nesta pesquisa foi analisada a edição dessa coleção destinada ao professor.

2 Disponível em: <http://www.editorasaraiva.com.br/portalportugues/default.aspx?mn=6&c=0&s=11>

Acesso em: 20/10/2012. 3 Atualmente, os autores assinam livros de gramática normativa e diferentes coleções de livros

didáticos de ensino fundamental e médio para o ensino de língua portuguesa. Segundo Clecio Bunzen Júnior (2005), tal parceria surgiu com a expansão da Editora Atual, em meados dos anos 1980, quando a empresa convidou alguns professores, que trabalhavam com revisão e leitura crítica de exemplares de outros autores, para desenvolverem propostas didáticas para o ensino médio. Cereja e Magalhães foram apresentados e formaram essa parceria, que já dura mais de dez anos no mercado editorial. Com a crescente utilização dos materiais desenvolvidos pelos autores, ambos abandonaram a docência, vindo a dedicar-se exclusivamente à produção de livros didáticos. 4 O Programa Nacional do Livro Didático - PNLD/MEC avalia e distribui coleções para as escolas

públicas. As avaliações são divulgadas por meio do Guia de Livros Didáticos, que traz resenhas das coleções aprovadas por uma comissão. O processo de escolha obedece a parâmetros referentes às especificidades próprias da etapa do ensino, bem como pelo artigo 35º da Lei de Diretrizes e Bases – LDB, que atribui ao ensino médio as finalidades para a consolidação do conhecimento e preparação para o mercado de trabalho ou a universidade. Realizada a escolha, o guia é elaborado e encaminhado às escolas, que escolhem, entre os títulos disponíveis, aqueles que, supostamente, melhor atendem ao seu projeto político e pedagógico.

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guia são indicadas onze coleções para se trabalhar nesse componente, das quais

analisamos o programa de literatura para os três anos do ensino médio.

As coleções selecionadas e indicadas no Guia de Livros Didáticos apresentam, de

modo semelhante, os chamados movimentos literários, legitimados pelo campo

literário instituído, particularmente pela historiografia e crítica literária. Há uma breve

apresentação desses movimentos, em ordem cronológica, a da periodização

literária, com indicação de autores e obras principais, uma biografia concisa destes,

alguns dados do contexto histórico e um fragmento dos textos mais representativos

do período com fins de leitura pelos estudantes. No terceiro volume dessas

coleções, o Nordeste e alguns romancistas da região ganham espaço sistematizado

de abordagem, como conteúdo, com o estudo da vertente literária denominada

“romance de 30”, que privilegia uma temática regional, também chamada de

neorrealismo, representada por uma parcela relevante de escritores daquela região.

Nas coleções, têm espaço assegurado Rachel de Queiroz, José Lins do Rego,

Graciliano Ramos, Jorge Amado e José Américo de Almeida. Tal denominação não

contempla uma vasta gama de produções textuais, nem os romancistas dessa

região que tenham feito uma prosa aproximada da temática regional ou que dela

tenham se distanciado.

A coleção Português: linguagens incorpora também o conteúdo “o romance de 30 do

Nordeste”, como parte da vulgata do componente curricular língua portuguesa, o

qual é desdobrado em capítulos no livro. Pelo encaminhamento metodológico dado

pelos autores, constata-se que a exposição desse conteúdo está atravessada por

uma visão estereotipada sobre o Nordeste. As abordagens endossam clichês sobre

a região e sobre a narrativa dos anos 1930, de autoria de escritores do Nordeste,

interpretações já cristalizadas, convencionais e convencionalizadas pela

historiografia literária e por uma parcela de críticos, as quais foram se consagrando

como verdades sobre essa prosa de ficção. Ao abordar essa vertente literária,

inevitavelmente, o livro didático apresenta a região nordestina e, ao representá-la, o

faz a partir de ótica excludente, hierarquizada, correspondendo assim ao imaginário

social das elites do país, que coloca o Nordeste em posição de inferioridade.

O volume I da coleção de Cereja e Magalhães, destinado à primeira série, inicia com

uma breve exposição do conceito e das funções da literatura. Em seguida, são

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apresentados, por capítulos, os chamados movimentos ou escolas literárias,

começando pelo Trovadorismo. Por conseguinte, aborda-se o Humanismo,

passando para o Classicismo da Renascença, chegando, finalmente, aos estudos

sobre o Barroco. Alguns livros, no primeiro volume, abrangem o Romantismo. O

volume II parte do século XIX, em capítulos destinados ao Realismo e ao

Naturalismo. Logo após, ganha destaque a poesia, já identificada pelo movimento

literário a que pertenceu o autor: parnasianismo, simbolismo etc., chegando ao

século XX com Os sertões, de Euclides da Cunha ou Macunaíma, de Mário de

Andrade.

O volume III, destinado à terceira e última série, é inaugurado com o pré-

modernismo e, em seguida, apresenta a Semana de Arte de Moderna, na Unidade

1, a qual ganha espaço dentre os conteúdos de literatura. Em seguida, em plano

secundário, está o romance de 30, precisamente, a vertente literária de autoria de

escritores nordestinos. Em seguida, a Unidade traz o gênero lírico, com poesias de

Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira e Cecília Meireles. A prosa dos

modernistas é retomada ao se abordar os romances intimistas de Clarice Lispector,

o regionalismo de Guimarães Rosa e outros escritores concebidos como clássicos

do período a ser estudado.

A Unidade 2, intitulada “A segunda fase do Modernismo. O romance de 30”,

organiza-se com a seção “Abertura” e cinco capítulos dedicados à literatura: em dois

deles, encontra-se o romance de 30, produzido pelos escritores do Nordeste; um

capítulo destina-se a essa produção no sul do país; em dois desses capítulos,

busca-se promover uma espécie de diálogo entre a literatura nacional e as

literaturas norte-americana e africana. Ao inserir o conteúdo literatura africana, os

autores revelam acompanhar as tendências de pesquisas na pós-graduação

brasileira, bem como em alguns cursos de graduação, nos quais os estudos das

literaturas africanas vêm ganhando espaço. A Unidade ainda dedica três capítulos à

produção textual e três aos estudos gramaticais, encerrando com um capítulo que

traz questões de provas, realizadas pelo Exame Nacional do Ensino Médio/ENEM, o

que ocorre em praticamente todas as coleções, que se mostram atualizadas e úteis

aos estudantes que pretendem ingressar no ensino superior. Ressalte-se que esses

capítulos não possuem articulação com o eixo temático da Unidade.

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Para fins dessa pesquisa, serão analisadas a seção “Abertura” da Unidade e os dois

capítulos referentes à prosa de 30, de autoria de escritores nordestinos. Em seu

conjunto, a concepção dos capítulos sobre literatura é guiada pelos pressupostos da

velha historiografia literária, que privilegia uma cronologia e os chamados “grandes

escritores”. Tais capítulos, moldados pelo processo de transposição didática,

simplificam demasiadamente a abordagem dos conteúdos. Assim, o tratamento

dado à produção ficcional de 30, na coleção, conduz o estudante leitor ao

entendimento de que todos os romances da década de 1930, produzidos no

Nordeste ou por autores dessa região, priorizaram a temática do regional ou da

denúncia social, induzindo ainda o leitor ao entendimento de que o Movimento

Regionalista de Recife, defensor de uma suposta tradição do Nordeste, teve

aceitação unânime pelos intelectuais dessa região, e que apenas Rachel de

Queiroz, José Lins do Rego, Graciliano Ramos e Jorge Amado eram os

representantes de tal vertente. Endossando uma visão recorrente no senso comum

acadêmico sobre o romance de 30 do Nordeste, os autores da coleção identificam

essa produção literária a partir de enfoques: é dependente do movimento modernista

de 1922, essencialmente regionalista e de denúncia social.

Nesse livro didático, o romance de 30 é visto em uma relação metonímica com o

Nordeste: é parte da região, ele a representa, e o Nordeste, como um todo, contém

essa vertente literária. Assim, todo o discurso formado em torno da região passa a

compor também a apresentação do romance de 30, no projeto gráfico e visual seja

por meio das ilustrações, da tonalidade das páginas, ou até da diagramação. Do

mesmo modo, ao se examinar a imagem apresentada sobre o romance de 30 no

Nordeste, nesse livro, visualiza-se, consequentemente, a imagem que se constrói

sobre a região nordestina. A escola transmite o ideário dominante, tendo o livro

didático como seu principal instrumento. Para Bárbara Freitag (1989), a ideologia

está implícita, e talvez mais radicalmente, na forma de apresentação do livro, bem

como em seu aspecto físico, suas gravuras, no método de apresentação escolhido,

na forma de programação do texto e do aprendizado, no tom confidencial das

instruções etc. Em seu viés ideologizado, o livro didático contribui para consolidar a

supremacia da classe dominante.

Os textos verbais e não verbais, inseridos nesse capítulo, contribuem para a

permanência de imagens ou representações vinculadas a uma formação discursiva

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anterior sobre o Nordeste, concernente a uma lógica circunstancial de poder, que

pode ser compreendida como um “discurso regionalista de inferioridade”, o mesmo

que configura a região Nordeste como a parte seca e pobre do Brasil. A

representação do romance de 30 do Nordeste e dessa região se prende a uma

estetização do passado e aos elementos constitutivos da própria formação

discursiva sobre a região. Assim, o discurso que configura o Nordeste, assumido

pelos autores do livro didático, sem dúvida, atribui uma posição de inferioridade para

a região nordestina e seus moradores, a partir do qual o Nordeste é apresentado por

meio da repetição do tema da seca, desistoricizado, uma vez que é apresentado

como um flagelo natural. Além disso, tanto a formação discursiva sobre o Nordeste

quanto as representações sobre o romance de 30 e a região nordestina estão

pautadas no separatismo regional e no preconceito social.

Do levantamento realizado no Banco de Teses e Dissertações da CAPES, foram

encontradas algumas pesquisas sobre a coleção Português: linguagens de autoria

de Cereja e Magalhães. As três teses de doutorado tratam do ensino da “língua

literária”, dos “gêneros da ordem da argumentação” e “atuação do professor” e das

“representações sobre Carlos Drummond de Andrade”, como ícone da literatura

nacional. Por sua vez, as dissertações de mestrado versam sobre “gêneros textuais,

digitais e midiáticos”, “gêneros do discurso”, “polifonia”, “oralidade”, “escrita”,

“imagem do adolescente”, “relações com o ensino de língua francesa”, ou tiras em

quadrinhos inseridas na coleção. Merece destaque a dissertação de André Macedo

– De “romancistas do Nordeste” a “2ª fase da prosa modernista” –, defendida em

2010 pela USP, na Faculdade de Educação. O autor analisa o processo histórico de

canonização literário-escolar, em livros didáticos de português, produzidos entre

1944 e 1987, destacando a presença, já nos anos 1940, de Graciliano Ramos, José

Lins do Rego, Jorge Amado, Rachel de Queiroz e José Américo de Almeida. Esse

estudo traz uma contribuição inegável para a pesquisa que desenvolvemos, por

ampliar nosso entendimento acerca da permanência dessas representações sobre o

Nordeste nos livros didáticos, uma região que ganha destaque no Sul e Sudeste do

país nos anos 1930, quando se assiste a uma revolução cultural no Brasil.

Segundo o sociólogo Antonio Cândido (1987), a década de 1930 se constitui como

uma marca indelével no que diz respeito aos movimentos revolucionários que

alteraram de modo significativo algumas esferas da sociedade brasileira,

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particularmente no plano da educação, da literatura, das artes e da religião. De

acordo com o autor, essa década se caracteriza como “um eixo em torno do qual

girou de certo modo a cultura brasileira, catalisando elementos dispersos para dispô-

los numa configuração nova” (CÂNDIDO, 1987, p. 27). Assim, esse movimento

revolucionário gerou uma integração que unificou e projetou em escala nacional o

que antes acontecia no âmbito das regiões. Para Cândido, as condições que

propiciaram tal integração já haviam sido geradas na década de 1920, porém de

modo isolado. Depois de 1930, tornaram-se fatos de cultura, passando por uma

normalização.

No âmbito da educação, as alterações de 1930 propiciaram a extensão das reformas

educacionais para o país. As iniciativas, antes isoladas em São Paulo, no Ceará, em

Minas Gerais e no Distrito Federal e que objetivavam promover uma renovação

pedagógica através da “escola nova”5, foram expandidas para as demais regiões

brasileiras. A religião foi outra esfera modificada pela ebulição dos anos 1930 que,

naquela conjuntura, se tornara “uma fé renovada, um estado de espírito e uma

dimensão estética” (CANDIDO, 1987, p. 31). O espiritualismo católico acabou por

levar os seus adeptos a uma simpatia pela política de direita e, de outro lado, as

correntes de esquerda logravam partidários, o que demarcava uma necessidade, de

certo modo, coletiva de adotar um posicionamento político.

Segundo Cândido (1987), é nesse cenário que o movimento revolucionário de 30

provocou atualizações na literatura e nas artes, que podem ser verificadas pelo

enfraquecimento da literatura acadêmica, pela aceitação das inovações formais e

temáticas e pelo alargamento das literaturas regionais ao âmbito nacional. A

expansão das literaturas regionais a um plano nacional ocasionou a “sua

transformação em modalidades expressivas cujo âmbito e significado se tornaram

nacionais, como se fossem coextensivos à própria literatura brasileira” (CANDIDO,

1987, p. 30). Desse modo, o grupo de autores regionalistas e o conjunto de suas

obras que vêm à tona no período iniciam a vertente literária, denominada romance

5 Segundo Cândido (1987), a “escola nova” representava uma posição avançada no liberalismo

educacional. Configurou-se como um movimento que buscava modernizar os métodos pedagógicos, por meio de propostas, como: a revisão crítica dos meios tradicionais do ensino; a inclusão de fatores históricos e culturais da vida social na formação educacional; a transferência da responsabilidade da ação educadora da família e da Igreja para a Escola; bem como, a responsabilização do Estado pela educação do indivíduo.

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de 30, que se torna “naquela altura pela média da opinião como o romance por

excelência” (CANDIDO, 1987, p. 30; grifo do autor).

De acordo com Gustavo Sorá (2004), o movimento revolucionário dessa década

favoreceu as reedições dos romances dos escritores do Nordeste no Rio de Janeiro,

o que trouxe uma dimensão nacional a uma literatura de origem regionalista. Ao

mesmo tempo, a crise econômica dos anos 1930 vai tornar difícil a importação de

livros do mercado europeu, o que abre a possibilidade de maior oferta de livros

editados no Brasil.

O fundo editorial foi sedimentado por duas linhas provedoras de prestígio cultural: por um lado a coleção “Documentos Brasileiros” (história, ensaio, sociologia, antropologia, biografias, política) [...]. Por outro lado, a edição do romance nordestino (Jorge Amado, Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Rachel de Queiroz, José Américo de Almeida). (SORÁ, 2004, p. 10; aspas do autor).

Nos anos 1940, mais da metade dos livros que circulavam no mercado editorial

brasileiro era nacional. O crescimento foi marcado pelo estabelecimento de

inúmeras casas editoriais. As tarefas relacionadas à composição, impressão e

acabamento ganham autonomia com a formação de setores e profissionais

especializados em cada etapa da confecção do livro. Esse momento, segundo

Sergio Miceli (2001, p.149), proporciona “a formação de um pequeno grupo de

escritores profissionais, os romancistas”. Tais fatores contribuíram decisivamente

para que as obras ficcionais desses escritores ganhassem acesso à mídia e atenção

de uma parte significativa do público leitor.

Tal fato fez com que os romancistas do Nordeste fossem inseridos nos livros

didáticos de português, antes mesmo que se formasse uma fortuna crítica sobre

eles. A inserção, porém, não foi gratuita, uma vez que vai contribuir com uma lógica

discursiva dominante. Segundo Eneida Cunha (2003), o estudo de autores

brasileiros no âmbito escolar tem a função de fabricar nacionalidades.

Não é gratuitamente que a literatura é estudada na escola. Ela não é estudada apenas para que as pessoas aprendam a língua, porque isso poderia ser feito com qualquer texto. O estudo dos autores brasileiros faz parte dessa função, dessa fábrica de nacionalidade que é a escola. (CUNHA, 2003, p.07).

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Essa “fábrica de nacionalidades” é produto dos ideais hegemônicos das elites

brasileiras, transmitidos para as classes dominadas por meio do sistema

educacional que, dirigido e controlado pelo Estado, quase sempre acaba impondo

determinados discursos. Desse modo, o livro didático funciona como agente

mediador para a perpetuação desses ideais. Nesse passo, a escola assume o papel

de reprodutora e mantenedora dos interesses de uma classe hegemônica. Com a

finalidade de instrumentalizar essa direcionalidade da educação para a manutenção

dos sistemas políticos dominantes, o livro didático é patrocinado pelo poder público

e apresenta-se como o meio que ajuda a manter a hegemonia, conduzindo o

processo com muita sutileza, de modo que não haja margens para mudanças.

Assim, o livro didático torna-se um meio de controle que promove o

desconhecimento das condições histórico-sociais concretas em que o indivíduo vive.

A inserção de determinadas ideias se dá como fruto de um processo natural calcado

no senso comum social, resultado da elaboração intelectual sobre a realidade,

descrita a partir da visão da classe dominante sobre determinado espaço e grupo

social. Marilena Chauí (1981) considera que, como grupo pensante, tal classe

domina a consciência social, tem o poder de transmitir as ideias dominantes para

toda a sociedade, através da religião, das artes, da escola, da ciência, da filosofia,

dos costumes, das leis e do direito, moldando, de certo modo, a consciência e

uniformizando o pensamento na sociedade, de modo geral.

Considerando os livros didáticos uma produção textual carregada de valores, o que

contribui para o processo de reconhecimento do outro através das ideias

estabelecidas e negociadas com o discurso, e partindo do princípio de que todo

conhecimento está comprometido com interesses sociais, julgamos que tal produção

visa promover o conhecimento, na medida em que agencia os interesses de uma

pequena parcela da sociedade. Assim, acabamos por ver no social, ou, como no

exemplo, nas redes sociais da internet, resultados diretos e indiretos de um

enunciado endossado pelos livros didáticos.

Tendo em vista a problemática em que se insere este objeto de pesquisa, a

dissertação foi elaborada em duas seções. Na primeira, intitulada Apresentando a

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coleção Português: linguagens, mostramos uma explanação do projeto

pedagógico da coleção, considerando o programa dos conteúdos de literatura,

organização das unidades, capítulos e atividades propostas aos estudantes.

Na segunda seção, intitulada Nova roupagem, antigas leituras, analisamos o

modo pelo qual é apresentado o romance de 30 produzido por escritores do

Nordeste. Torna-se fundamental o diálogo com Albuquerque Jr. (2009), por seu

estudo acerca da maquinaria discursiva sobre essa região. Essa leitura favoreceu a

análise dos textos verbais e não verbais, referentes ao tratamento do romance de 30

no Nordeste, considerando a sequência e a repetição dos discursos. Ainda nessa

seção, procede-se a uma apreciação crítica de três grandes enfoques eleitos por

Cereja e Magalhães na abordagem sobre essa vertente literária: uma literatura

dependente do movimento modernista de 1922, regionalista e de denúncia social.

Os discursos nacionais são integrantes dessa formação discursiva hegemônica. Nas

abordagens acerca dessa produção literária de escritores do Nordeste, constata-se

um conjunto de ideias que pertencem a uma formação discursiva muito bem

elaborada e que foi capaz de, nos termos de Albuquerque Júnior (2009), inventar

uma região. Acrescenta Michel Zaidan Filho (2001, p.12): “Essa astuta operação

produziu curioso resultado: a fabricação e a difusão de uma das mais bem-

sucedidas “identidades culturais” (a chamada „brasilidade nordestina‟)”. O discurso

regionalista é assertivo e repetitivo para produzir efeito de verdade.

Os estereótipos sobre o Nordeste compõem uma caracterização indiscriminada e

repetitiva para obter status de verdade. Para Albuquerque Jr. (2009), o estereótipo é

um olhar e uma fala produtiva, tem dimensão concreta, além de criar uma realidade

sobre determinado espaço. O discurso da estereotipia é assertivo e emblemático,

construído a partir de agentes de produção, tornando-se práticas discursivas que,

pensando nas relações de força e de sentido sinalizadas por Michel Foucault (1996)

e ressaltando seu caráter estratégico, funcionam como dispositivos de

nacionalidades capazes de criar e instituir o real.

Para esse pensador, essas produções, discursos e representações, advindas de

uma lógica circunstancial de poder e de saber, contribuem para a construção dos

espaços e das visões de mundo. Assim, o livro didático, ao reproduzir um discurso

22

mediado pela estratégia da estereotipização acerca do Nordeste, acaba por impor

um discurso que fortalece e mantém uma identidade hegemônica, cuja imposição

revela-se traumática e violenta, fazendo-se necessária uma intervenção direta

acerca de tais abordagens e discursos no livro didático.

Dito isso, este estudo pretende contribuir com as pesquisas que se propõem refletir

sobre o ensino da literatura, ao fazer um movimento que intenciona pôr em

questionamento abordagens inadequadas acerca de uma produção textual de valor

inegável para a história da literatura brasileira, como é o romance de 30 do

Nordeste, cercado por leituras que endossam um olhar estereotipado da região.

Com isso, pretendemos libertar essa produção de interpretações limitadas, fechadas

por uma perspectiva que prioriza o regional. A ausência de uma representação livre

de preconceito acaba por submeter os estudantes a uma violência simbólica. E a

perpetuação desse discurso hegemônico tende a reforçar o privilégio dos grupos

sociais dominantes.

Por esse entendimento, busca-se dar possíveis respostas às questões levantadas

neste estudo, levando-se em conta o estabelecimento das hierarquias, que se

situam no jogo das representações literárias, por vezes tão violentas, quanto

discretas, e que atribui arbitrariamente os devidos lugares, como resultado de um

embate de forças, que envolve, acima de tudo, o poder.

23

1 APRESENTANDO A COLEÇÃO PORTUGUÊS: LINGUAGENS

A Coleção Português: linguagens (2010), de Thereza Cochar Magalhães e William

Roberto Cereja, já apresenta a sétima edição, e desde o lançamento, esteve em

todos os Guias de indicação do Programa Nacional do Livro Didático – PNLD.

Atualmente, é o livro mais adotado para o ensino médio da rede pública para o

componente curricular de língua portuguesa. A coleção conta com uma estrutura de

apoio pedagógico, como um site, contendo sugestões de atividades; textos teóricos

de ajuda ao professor; esquemas de aulas completas; um Serviço de Atendimento

ao Professor/consumidor – SAC, que presta ajuda por telefone, e uma assessoria

pedagógica formada por professores experientes na utilização da coleção em sala

de aula e treinados pelos próprios autores do livro. A assessoria se disponibiliza a

prestar apoio em escolas de todo país que utilizam a coleção, realizando visitas para

consultoria, palestras e oficinas, tudo de acordo com as propostas da Coleção

Português: linguagens. Verifica-se que a estrutura montada em torno da coleção se

faz de modo a torná-la essencial.

Dados da Câmara Brasileira do Livro (CBL) apontam que a parcela do mercado

editorial ocupada pela publicação e comercialização de livros didáticos, em 2003,

correspondeu a 54% do total de exemplares vendidos (OLIVEIRA, 2004). Dados

mais recentes afirmam que, em 2010, as vendas para o Programa Nacional do Livro

Didático – PNLD cresceram 27%6, ou seja, mais da metade da rentabilidade das

editoras vem desse produto. Além disso, mais da metade da compra dos livros

didáticos é realizada pelo governo federal. Tendo em vista essas considerações,

evidencia-se que o livro didático em geral, e essa coleção em particular, possui,

hoje, um status de produto comercial sob o disfarce de um material que se destina

ao ensino-aprendizagem. Ademais, esse lucrativo comércio justifica o esforço da

editora em montar um aparato em torno da referida coleção.

6 Pesquisa: produção do mercado editorial em 2010. In: Estadão, 16/08/2011. Disponível em:

<http://blogs.estadao.com.br/a-biblioteca-de-raquel/2011/08/16/pesquisa-producao-do-mercado-editorial-em-2010/ >Acesso em: 01/07/2012.

24

No Manual do Professor – apêndice inserido na “edição do mestre” com informações

sobre a organização, estrutura, capítulos, atividades e sugestões em torno da obra

didática, com a função de auxiliar o professor na sistematização dos conteúdos

trabalhados –, Cereja e Magalhães (2010, p. 3) afirmam que as edições anteriores

procuravam atender às propostas feitas pela Lei de Diretrizes e Bases (LDB), pelas

Diretrizes Curriculares, pelos Parâmetros Curriculares Nacionais – Ensino Médio

(PCNEM) e pelos Parâmetros Curriculares Nacionais + Ensino Médio (PCN+)7. A

presente edição busca, além dessas diretrizes e parâmetros, incorporar as

discussões sobre leitura e desenvolvimento de competências e habilidades,

motivadas pelas avaliações do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes

– PISA8, do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica – SAEB9 e do

Exame Nacional do Ensino Médio – ENEM e pelas discussões realizadas nas

academias sobre o ensino de língua, de produção de textos e de literatura.

O terceiro dos três volumes da coleção Português: linguagens (2010) para o Ensino

Médio destina-se ao terceiro ano do curso. O volume busca utilizar a linguagem

como suporte para a compreensão do mundo, objetivo explicitado na abertura do

livro em formato de “carta dos autores ao leitor”. Os autores iniciam explicando a

importância da linguagem nas atividades individuais e coletivas, nas diversas

esferas da vida social. Propõem ajudar o estudante na “tarefa de resgatar a cultura

em língua portuguesa, nos seus aspectos artísticos, históricos e sociais, e, ao

mesmo tempo, cruzá-la com outras culturas e artes” (CEREJA; MAGALHÃES, 2010,

p. 3). Nesse sentido, há uma tentativa constante de relacionar diferentes linguagens,

a exemplo de textos literários, roteiros de filmes, peças de teatro ou letras de

música.

A obra é organizada em quatro unidades, cujo fio condutor é a sequência dos estilos

de época na literatura. A divisão se dá em unidades temáticas e cada unidade é

constituída de 4 a 7 capítulos. Os títulos destes estão atrelados aos objetos de

ensino, previstos para o terceiro ano do Ensino Médio e são denominados por:

7 Orientações educacionais complementares aos Parâmetros Curriculares Nacionais - Ensino Médio

(PCNEM). 8 PISA, Programa Internacional de Avaliação de Estudantes é um projeto comparativo de avaliação,

desenvolvido pela OCDE, Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico, destinado à avaliação de estudantes com 15 anos de idade nos domínios de Leitura, Matemática e Ciências. 9 SAEB – Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica, que visa apresentar pesquisa por

amostragem, do ensino fundamental e médio, realizada a cada dois anos.

25

“Língua: uso e reflexão”, “Literatura e Produção de Texto” ou “Interpretação de

Textos”, que correspondem, respectivamente, à gramática, literatura e produção

textual. Os 43 capítulos que compõem tal volume se dividem entre as três áreas

disciplinares, referentes ao estudo da língua portuguesa para o Ensino Médio, da

seguinte maneira: para literatura, 22 capítulos; para os estudos gramaticais, 09

capítulos; e para produção textual, são destinados 12 capítulos.

Essa divisão acompanha a segmentação no ensino de língua materna e que

resultou nas três áreas de estudo para a disciplina de língua portuguesa – literatura,

estudos gramaticais e produção textual. No ensino médio, a divisão procedeu das

alterações ocorridas na grade curricular na área da educação em 1970 que, de

acordo com Nícia de Andrade Verdini Clare (2002), começaram ainda em 1960,

quando se democratiza o acesso à escola, em consequência de um novo modelo

econômico. A partir de 1964, com a ditadura militar, passa-se a buscar o

desenvolvimento do capitalismo em função de um crescimento industrial, o que

atribui à escola o dever de fornecer mão de obra para a nova demanda. Com a

ampliação do acesso da população à escola pública, muda-se o perfil cultural e

econômico tanto do professorado, quanto do alunado. A profissão do professor

começa a perder prestígio, quando deixa de denotar status às moças de classe

média e alta, passando a uma forma de promoção social para as classes mais

carentes da sociedade. E a escola, que antes se destinava aos filhos das elites,

passa a fornecer lugar aos filhos das camadas populares.

A chegada dessas novas classes sociais ao meio escolar gerou uma

heterogeneidade nos letramentos e falares, e a adequação por parte da escola a

esse novo perfil veio acompanhada de uma perda da qualidade do ensino e na

estrutura do livro didático, que aderiu a uma tendência tecnicista. Nesse período, a

difusão da pedagogia tecnicista no sistema educacional brasileiro é inevitável. Com

isso, o livro didático sofreu alterações quanto aos conceitos e à forma de

apresentação de seus conteúdos. Antes, os materiais didáticos desempenhavam o

papel de auxílio nas aulas, quando os compêndios serviam de consulta e subsídio

a uma aula conduzida pelo professor. Depois da década de 1960, esse caráter

auxiliar foi substituído por um papel de destaque. Em consequência das

necessidades econômicas e sociais da industrialização, o ensino deixou de ter uma

preocupação com o aprendizado, tornando a rapidez e a praticidade enfoques

26

principais, levando assim os livros didáticos a uma posição de total direcionamento

e orientação do trabalho escolar. O professor foi relegado a segundo plano,

enquanto o livro passou a ocupar o primeiro lugar em sala de aula. Assim, o

professor se transformou em auxiliar das atividades, favorecendo a leitura e a

realização de exercício dos livros escolares.

Ademais, com as alterações de aspecto socioeconômico dos estudantes, os livros

escolares, que antes eram comprados pelas famílias, passam a ser adquiridos pelo

Estado, tornando-se posse das escolas. Em função disso, os programas nacionais

de distribuição do livro aumentam seu alcance, com a finalidade de prover um

número cada vez maior de estudantes e escolas. Essas transformações curriculares,

econômicas e sociais configuraram o manual didático, dando-lhe a forma que

conhecemos hoje. Os conteúdos inseridos nos materiais passaram a ser tratados de

forma simplificada, tornando-se cada vez mais rasos e enciclopédicos. Nesse

momento, a função do manual escolar deixa de ser o aprovisionamento de um

conhecimento satisfatório e completo, para o rígido cumprimento de um programa

disciplinar.

Como o perfil tecnicista foi assentido em função da expansão industrial, com a

finalidade de gerar mão de obra, dificilmente conhecimentos da área de ciências

humanas teriam um espaço apropriado no livro didático. O que se pretendia era

formar trabalhadores das classes mais populares que agora chegaram à escola, e

não leitores intelectuais. Mostra disso é que, no processo de alteração curricular, em

1971, após a Lei de Diretrizes e Bases/LDB nº 5.692/71, o ensino de literatura perde

um espaço considerável quando passa de uma dicotomização entre língua

portuguesa e literatura – com ênfase na literatura brasileira – para uma organização

dividida em literatura, gramática e produção textual. Por consequência, o tratamento

dado aos assuntos de literatura nos materiais didáticos sofre uma simplificação mais

acentuada, sendo reduzida ao mínimo possível.

Tal divisão repercute na organização dos assuntos de língua portuguesa no livro

didático que estamos trabalhando, de modo que o volume é composto de capítulos

específicos, isolados entre si, para cada um desses três campos do saber. Esse

método de organização, apesar de condizer com uma alteração da LDB, contradiz o

27

exposto nos Parâmetros Curriculares Nacionais – Ensino Médio (PCNEM), sobre o

conhecimento de língua portuguesa:

O estudo da gramática passa a ser uma estratégia para compreensão/interpretação/produção de textos e a literatura integra-se à área de leitura. A interação é o que faz com que a linguagem seja comunicativa. (BRASIL, 1999, p. 38).

O PCNEM de Língua Portuguesa propõe um estudo interdisciplinar entre literatura,

gramática e produção de texto. Nesse sentido, o que está proposto é que os

capítulos não tratem de cada área individualmente, mas que a literatura seja

trabalhada mediante leitura e produção textual, e o estudo da gramática sirva de

subsídio para essas ações. Mesmo diante desse parâmetro sugerido pelo PCNEM, a

obra se estrutura em três partes independentes. Os capítulos são destinados ou à

literatura, ou à gramática, ou à produção textual, sem relações entre si.

No âmbito da literatura, área em que se situa o romance de 30, Cereja e Magalhães

(2010) tomam como fundamentação teórica as ideias de Antonio Candido, quanto às

relações entre literatura e sociedade; Mikhail Bakhtin, em relação ao dialogismo; e

Hans Robert Jauss, quanto às relações entre diacronia e sincronia. Os capítulos são

iniciados sempre com um texto que sintetiza a ideia geral do assunto a ser tratado e

podem versar sobre “A linguagem do movimento literário”, sobre os “autores” e sobre

“Diálogos” da literatura com outras artes.

A seção que trata da linguagem do movimento literário é a primeira de cada unidade

e se propõe a tratar dos aspectos da linguagem do movimento a ser estudado. Ao

final, há um quadro-resumo com as principais características do movimento literário,

considerando a forma e o conteúdo dos textos. Após esse estudo da linguagem, o

capítulo se volta, de modo simplificado, para o contexto histórico-cultural, buscando

estabelecer relações entre o contexto histórico, social e cultural e as transformações

ocorridas na literatura.

Os capítulos que abordam “os autores” apresentam informações acerca dos

escritores e suas obras mais significativas. Além de informações gerais sobre temas,

traços estilísticos, fases e publicações, inclui também uma breve biografia dos

autores e o fragmento de um dos seus textos mais conhecidos. Em “Diálogos”,

28

apresentam relações que a produção literária do período em estudo estabelece ou

estabeleceu. Os diálogos podem se dá com textos nacionais ou estrangeiros, entre

textos literários de épocas distintas ou com outras linguagens, como a pintura, a

música ou o cinema.

Além dos segmentos reservados ao estudo da literatura, temos a seção “Em dia com

o Enem e o vestibular”, que inclui questões do Enem e de vestibulares a partir de

temas específicos para os exames; a seção “Para quem quer mais” com um roteiro

de leitura e atividades acerca do autor ou do período estudado na Unidade; e a

seção “Para quem quer mais na internet” para professores e alunos que desejam ter

acesso a outros textos literários, disponíveis na rede, do período em estudo.

De acordo com Cereja e Magalhães (2010), essas propostas tentam estabelecer o

ensino de literatura através de uma perspectiva dialógica com a inclusão de temas

contemporâneos. Porém, o que se verifica ainda é aquele velho método de estudo

da literatura, que se conduz pelos considerados grandes movimentos literários e, a

partir do estudo destes, abordam-se os autores e as respectivas biografias. Os

conteúdos de literatura e as formas de abordagens permanecem os mesmos, assim

como a postura e o lugar que o professor ocupa mediante o livro didático em sala de

aula.

A Unidade 2, reservada ao romance de 30, compõe-se de uma “abertura” contendo

uma imagem, um texto introdutório, apresentando os assuntos a serem tratados na

unidade, a sugestão de um projeto para ser realizado em sala de aula e a seção

“Fique ligado! Pesquise!” com sugestões de vídeos, livros, músicas, sites e

pesquisas sobre a década e a produção literária dos anos 1930. Sucedendo à

abertura, há dois capítulos sobre o romance de 30 do Nordeste, o primeiro sobre

Raquel de Queiroz e o segundo, sobre Graciliano Ramos, José Lins do Rego e

Jorge Amado. Além destes, há mais três sobre o romance de 30, produzido no sul

do país, a partir das obras de Erico Veríssimo e Dionélio Machado; e os outros dois

sobre a relação entre literatura nacional e a africana. Os capítulos intermediários,

nessa Unidade, tratam de estudos gramaticais e produção textual.

Os dois capítulos reservados à produção do romance de 30 do Nordeste seguem a

mesma estrutura dos conteúdos de literatura do volume. Têm por linha condutora a

29

historiografia literária. Considerando que o livro didático é uma mercadoria que gera

lucros significativos para as editoras, principalmente no caso de países como o

Brasil, com um expressivo público escolar e um mercado garantido pelo Estado na

compra e distribuição de livros para as escolas públicas, imagina-se que esse

material se torna mais uma mercadoria fabricada em série, com a finalidade de obter

lucros. Portanto, destituída da obrigação de contemplar as diferenças. Além disso, o

Estado dá preferência aos materiais didáticos editados no eixo sul-sudeste, mesmo

quando se trata de temas regionais.

Ao lado disso, o aspecto didatizado simplifica demasiadamente os conteúdos,

obliterando as rupturas, descontinuidades e dissensões em torno da década de

1930, que se constitui como um momento de significativas mudanças no cenário

nacional. A literatura, as artes, a educação são algumas das áreas modificadas por

esse período de ebulição. Mas como em todo processo social, os fatos não se dão

de modo organizado, linear, por isso faz-se necessário contemplar as dissensões e

rupturas. O modo como é retratado nos leva a acreditar que todas as mudanças

ocorridas nas décadas de 1920 e de 1930 foram unanimemente aceitas,

principalmente aquelas que se referem diretamente ao romance de 30 do Nordeste.

Ao contrário do que é trazido no livro didático, houve em Pernambuco um

movimento de “contra discurso” – o Movimento Regionalista do Nordeste – que se

opunha ao modernismo paulista. Liderado pelo sociólogo Gilberto Freyre, tal

movimento alegava que o rápido processo de industrialização e a busca exacerbada

por modernização nos grandes centros urbanos do país faziam com que o Brasil

perdesse a sua originalidade e, assim, deixava de valorizar a culinária, as festas, a

produção local, elementos que, para Freyre, eram símbolos da „verdadeira‟ cultura

brasileira. O mestre de Apipucos, como era chamado o sociólogo, acreditava que a

responsabilidade maior dessa perda das referências tradicionais era do Rio de

Janeiro e São Paulo, que buscavam, por meio dos parâmetros da modernidade,

igualar-se à Europa.

O livro didático Português: linguagens (2010) ignora esses processos, não

permitindo que os estudantes tenham acesso ao conhecimento de tais embates e

das lutas por poder. O que é veiculado se restringe a um conhecimento pronto e que

pertence a um lugar de fala, mais uma vez, hierarquizado. Mais da metade dos

30

capítulos que compõem o volume é dedicado aos conteúdos de literatura e

organizado em ordem cronológica, seguindo esse mesmo aspecto simplificado que o

caráter de didático impõe. Baseados em uma perspectiva historiográfica, os autores

seguem uma estrutura básica para o terceiro ano do Ensino Médio e se baseiam em

referências teóricas como Alfredo Bosi (1972), Antonio Candido (1975) e José

Aderaldo Castello (1968).

O programa de literatura, nesse volume, abarca o período que vai do início do séc.

XX até aos textos mais contemporâneos do séc. XXI. O volume é iniciado com o

Pré-Modernismo, a partir de autores como Euclides da Cunha, Lima Barreto,

Monteiro Lobato, Augusto dos Anjos e com propostas de leitura dos seus textos

mais conhecidos. Na abordagem sobre o modernismo de 1922 que, por sua vez,

ganha um espaço relativamente grande dentre os capítulos dedicados aos

conteúdos de literatura no Ensino Médio, se fazem presentes cinco capítulos que

versam sobre “A linguagem do Modernismo”, “as vanguardas”, sob o título

“Vanguardas em ação”, sobre os precursores modernistas Mário e Oswald de

Andrade – “A primeira fase do Modernismo. Os Andrades, Manuel Bandeira e

Alcântara Machado” e um capítulo intitulado “Diálogos”, que busca cruzar a

linguagem do modernismo com a pintura, a literatura africana e o cinema. Na

unidade seguinte, encontra-se o romance de 30 – “A segunda fase do Modernismo.

O romance de 30” – representado pelos autores que tiveram mais repercussão

nessa vertente literária: Raquel de Queiroz, Graciliano Ramos, José Lins do Rego e

Jorge Amado. O Sul do país, representado por Érico Veríssimo e Dionélio Machado,

que entram como conteúdo de literatura, compondo o romance da década de 1930,

em um capítulo específico.

A Unidade seguinte é o momento das poesias, com Carlos Drummond de Andrade,

Murilo Mendes, Jorge de Lima, Cecília Meireles e Vinícius de Morais, completando o

cenário literário da década de 1930, com o título “A segunda fase do Modernismo. A

poesia de 30”. A quarta e última unidade aborda a literatura contemporânea, inicia-

se com Clarice Lispector e prossegue com Guimarães Rosa e João Cabral de Melo

Neto. Produções cinematográficas mais recentes, como Tropa de Elite (2007),

encerram o terceiro volume da coleção Português: linguagens para o Ensino Médio.

31

Como se pode perceber, o programa de literatura não apenas contempla os

movimentos literários considerados canônicos, como só representam os autores da

chamada tradição literária. Não podemos esquecer que Cereja, que escreveu e

elaborou o livro didático, em sua tese de doutorado Ensino de literatura: uma

proposta dialógica para o trabalho com literatura (CEREJA, 2005), parece considerar

inadequado o tratamento da literatura em uma historiografia tradicional:

[...] notamos que a organização dos conteúdos, apoiada na historiografia literária, privilegia o enfoque cronológico de movimentos, gerações e autores, com suas respectivas obras de destaque. Estudar literatura por essa perspectiva quase sempre é o mesmo que conhecer, geralmente de forma passiva, aquilo que os “bons” escritores (com todas as falhas e injustiças que historicamente sempre ocorreram nessa avaliação) escreveram ao longo da história de nossa cultura. Trata-se, pois, de uma concepção conteudista e enciclopédica de ensino de literatura. (CEREJA, 2005, p. 12; grifos do autor).

Não se trata apenas de “uma concepção conteudista e enciclopédica do ensino de

literatura”, verifica-se também que a história literária considerada nesse material

escolar está diretamente ligada a um valor estético e a uma relação das obras com o

contexto histórico-social e cultural de cunho dominante. A historiografia literária

tradicional tende a consolidar modelos de interpretação, segundo interesses

hegemônicos, de modo que toda a interpretação que postule algo diverso do

cânone, como o de uma minoria étnica, de uma periferia, de uma classe social

desprovida de poder, tende a ser excluída.

O ensino da literatura baseado no enfoque cronológico tem, segundo Cereja (2005)

em sua tese de doutorado, raízes no surgimento do cristianismo, quando predomina

uma “concepção teológica de história, de base judaico-cristã” (CEREJA, 2005, p.

127). Essa compreensão atravessa a Idade Média e o Renascimento, sendo

contestada apenas no séc. XVIII pelos iluministas. Essa concepção foi modificada no

séc. XIX, durante o período romântico, quando se passa de uma visão que concebe

a história como realização da vontade divina, para a história como resultado de

ideias e forças sociais. Assim, e de acordo com o autor: “A visão historicista da

realidade que nasceu com o Romantismo se integrou aos estudos do

desenvolvimento dos povos” (CEREJA, 2005, p. 128).

32

Citando Roberto Ventura (1995), Cereja (2005, p. 128) afirma que “o surgimento da

história da literatura no contexto romântico está relacionado com a formação dos

Estados nacionais com a necessidade destes de fortalecerem-se como tal”.

Corroborando essa ideia, Marisa Lajolo (1995) afirma que o nascimento da história

da literatura se associa às instituições do Estado moderno:

A história da literatura parece incrustar-se nas instituições do Estado moderno, vínculo este que, na história da literatura europeia, desemboca e traduz–se no processo de inclusão das literaturas nacionais modernas no currículo escolar. (LAJOLO, 1995, p. 28).

Ao traçar um panorama do modelo de ensino que vigorou no Brasil durante o

período colonial, Roberto Acízelo de Souza (1999) aponta para a predominância de

uma educação que privilegiava os estudos de latim e sua literatura, além de

gramática portuguesa e retórica. Apesar disso, Luiz Eduardo Meneses de Oliveira

(1999) afirma que os projetos de construção da identidade nacional, no século XIX, à

semelhança do que ocorrera na Europa, inauguram um período de consolidação da

história da literatura, conferindo-lhe autonomia em relação ao ensino de retórica.

Trata-se, nesse momento, da necessidade de se construir uma historiografia própria,

pois, no âmbito da literatura, todas as nossas referências ainda eram portuguesas.

Nesse contexto, surge uma proliferação de vários projetos de história da literatura

nacional, viabilizados a partir da consolidação de instituições do Estado, como o

Instituto Histórico e Geográfico, fundado em 1838, a Academia Brasileira de Letras,

de 1897 e o Imperial Colégio Pedro II, fundado em 1837, todos no Rio de Janeiro.

Desde então, o ensino da literatura numa perspectiva historiográfica passou a fazer

parte dos programas curriculares, sendo configurada, nesse momento, uma iniciativa

inovadora e que correspondia aos interesses dos dirigentes.

A abordagem da literatura, ajustada ao ideal de objetividade histórica, descreve o

passado, restringindo-se ao cânone das obras e autores consagrados pela tradição,

excluindo textos divergentes de um determinado modelo de literatura. Esse caráter

historiográfico é verificado ainda hoje, tanto no perfil dos cursos de formação de

professores, quanto na estrutura dos conteúdos de literatura nos livros didáticos de

português. A pesquisa História literária e ensino de literatura brasileira: as

33

armadilhas curriculares, realizada pela professora Vanderléia da Silva Oliveira

(2012), mostra que o estudo da literatura nos cursos de letras de muitas

universidades ainda é realizado a partir de classificações por períodos literários, de

acordo com os critérios propostos pelas divisões da historiografia. Partindo desse

resultado, pode-se inferir que a maioria dos cursos de formação de professores

ainda privilegia tal perspectiva no que diz respeito ao ensino de literatura. Em A literatura em perigo, Tzvetan Todorov (2009) já havia alertado para a

repercussão da formação do professor no ensino de literatura. Para o autor, um dos

motivos que fizeram com que a literatura ensinada desviasse o foco da própria

literatura para colocá-lo na disciplina é esse processo de alteração ocorrida nos

cursos de formação docente. Todorov (2009) afirma que os estudos literários, as

técnicas de compreensão interessam aos professores de literatura que são

profissionais da área, mas esse foco, porém, não deve ser repetido para alunos do

ensino médio, visto que não se trata de um público especialista no assunto. A estes,

deve ser destinada a própria literatura, e não os estudos literários.

No volume, apesar de haver uma tentativa de contemplar textos contemporâneos

com o uso de diversas linguagens, com assuntos atualizados e que dizem respeito

ao universo jovem, ainda assim não é suficiente para abalar a perspectiva

historiográfica que conduz os assuntos de literatura. Ainda que se façam presentes

capítulos sobre interpretação de textos, trabalhados a partir das habilidades

indicadas pelos Parâmetros Curriculares Nacionais – PCN, ou seções centradas em

propostas de projetos didáticos para serem aplicadas pelo professor em sala de

aula, ou ainda, capítulos inteiros destinados a estabelecer relações temáticas entre

literatura, cinema, artes plásticas, música popular e outras manifestações culturais, o

pilar que sustenta os assuntos dedicados aos estudos literários é o da historiografia,

com todos os seus vícios e problemas.

No encarte intitulado Manual do professor, Cereja e Magalhães (2010) tentam

justificar o uso da historiografia literária como fio condutor do tratamento dos

assuntos de literatura do volume a partir das proposições de Jauss, Bakhtin e

Candido:

Tomando como fundamentação teórica as ideias de Antonio Candido quanto às relações entre literatura e sociedade, as de Mikhail Bakhtin

34

quanto ao dialogismo e as de Hans Robert Jauss quanto às relações entre diacronia e sincronia, esta proposta de ensino de literatura opta por uma abordagem que, sem eliminar a história da literatura – fio condutor do trabalho, porém não camisa de força –, cria diferentes cruzamentos, aproximando, por exemplo, autores de diferentes línguas e culturas, ou autores brasileiros de diferentes épocas mas ligados pela mesma tradição, ou aproximando linguagens diferentes, como a literatura e o cinema, ou a literatura e a música popular brasileira. (CEREJA; MAGALHÃES, 2010, p. 5).

Os autores tentam transformar positivamente a concepção sobre historiografia

literária para fundamentar seu uso. Além disso, a tentativa de criar diferentes modos

de cruzamento entre obras e períodos distintos não retifica a estrutura do livro

didático, que permanece cronológica e linear. É pertinente afirmar que o ensino da

literatura a partir da historiografia tradicional é inadequado. Por isso, os autores

buscam justificar o emprego do método, lançando mão de aportes teóricos

importantes e de uma abordagem mais dinâmica:

[...] busca-se abordar a literatura de uma perspectiva a um só tempo diacrônica e sincrônica, que se volta não apenas para as relações da literatura com o seu tempo, mas também para os diálogos que a própria literatura trava dentro dela mesma (...) Aí estaria o verdadeiro sentido de historicidade do texto literário, um sentido de vida, de permanência, que difere do engessamento da historiografia meramente descritiva e classificatória. (CEREJA; MAGALHÃES, 2010, p. 5).

A concepção do ensino de literatura apresentada pelos autores busca romper com a

ideia engessada que a historiografia presume. A historicidade, nesse sentido,

dialoga com o presente e com o passado, abarcando continuidades e rupturas, de

modo que, ao lançarem mão das concepções de Bakhtin, os autores afirmam o

seguinte:

Bakhtin já apontava para os riscos de uma historiografia que despreza esse conceito de historicidade do texto, que torna impermeáveis as séries literárias, como se não houvesse contato, continuidade, atração e repulsão entre elas. (CEREJA; MAGALHÃES, 2010, p. 5).

35

Para Cereja e Magalhães (2010), o diálogo que se mantém entre as obras literárias

de diferentes épocas, numa relação dialógica entre presente e passado, já é

suficiente para evidenciar a historicidade na literatura ensinada. “Abordada desta

perspectiva, a literatura deixa de ser peça de museu, deixa de se assemelhar a

obituário ou álbum velho de fotografias para transformar-se em desafio, em

conquista, em conhecimento significativo” (CEREJA; MAGALHÃES, 2010, p. 5).

A partir de conceitos, como dialogismo, sincronia e diacronia, os argumentos dos

autores tornam-se convincentes, porém, quando confrontados com as posições

defendidas por Tzvetan Todorov (2009), a inconsistência de tais argumentos vem à

tona. Além disso, o cruzamento de linguagens, as relações entre literatura e outras

artes, as ligações entre produções de diversas épocas ou estilos não são suficientes

para modificar a estrutura dessa produção didática, que ainda é baseada numa

historiografia tradicional.

Com base no pensamento de Todorov (2009), a literatura, nessa coleção, ocupa

uma posição periférica e fragmentada. É preciso entrar nos textos, fazer com que os

estudantes tornem-se leitores. Nessa tarefa, uma relação dialógica entre a literatura

e outras artes e entre presente e passado não são suficientes. Torna-se pertinente

levar os estudantes a ler as obras, compreender qual o sentido empreendido, para

que possam tornar-se leitores. Sobre o exercício da leitura de literatura, Cereja e

Magalhães (2010, p.5) afirmam:

Se antes o trabalho com a literatura priorizava a leitura do texto literário, esse novo enfoque tem como meta reforçar ainda mais esse compromisso. Para atingir esse objetivo, esta edição apresenta um número maior de leituras, muitas das quais promovendo estudos comparativos entre textos.

Esse “número maior de leituras” é constituído de fragmentos de obras literárias. Por

mais que se tente promover o hábito de ler nos estudantes por meio das leituras ao

longo dos capítulos, esse exercício de leitura de fragmentos não faz de ninguém um

leitor, além disso, impede o desenvolvimento do “tremor de sentido” que “abala

nosso aparelho de interpretação simbólica, desperta nossa capacidade de

associação” (TODOROV, 2009, p. 78). O leitor de fragmentos deixa de ser

alcançado pela literatura em seu nível mais amplo e, dificilmente, dado ao hábito que

36

se cria de fazer leituras de textos curtos e fragmentados, se tornará um leitor de

obras completas.

A leitura de obras inteiras fica apenas no âmbito das sugestões na seção “Fique

ligado! Pesquise!”. Porém, quando levado em conta o grande número de conteúdos,

textos e atividades contidas nesse volume, torna-se inviável acreditar que os livros

sugeridos são lidos por completo.

Outro aspecto da relação dialógica dos assuntos de literatura, do volume, é o

encontro da literatura nacional e portuguesa com textos literários de outros países.

Essa perspectiva dialógica não cabe nos limites estreitos de uma concepção ufano-nacionalista de ensino, que admita apenas o texto literário nacional ou luso-brasileiro como objeto de ensino. Os diálogos no âmbito da literatura e da cultura transcendem fronteiras geográficas linguísticas. (CEREJA; MAGALHÃES, 2010, p. 6).

Verifica-se a presença de um capítulo inteiro dedicado às literaturas africanas. São

contempladas obras de autores como Agostinho Neto e Maurício Gomes, de Angola;

Mia Couto, de Moçambique; Jorge Barbosa e Onésimo Silveira, de Cabo Verde,

entre outros apenas citados. Os Parâmetros Curriculares Nacionais + Ensino Médio

(PCN+) confirmam a importância de estabelecer o diálogo entre literaturas de

nacionalidades distintas. “A apreciação estética dos bens culturais produzidos no

local, no país ou em outras nações permitem que se ampliem as visões de mundo,

enriquecendo o repertório cultural dos alunos” (BRASIL, 2002, p. 69). Essa

perspectiva dialógica pode, de certo modo, dilatar a visão do estudante quando

posto em contato com outras leituras de mundo. Porém, o pilar fundamental que

estrutura o ensino da literatura do volume ainda é o da historiografia tradicional,

estudo que se dá pela disciplina e não pelos próprios textos literários. Ainda de

acordo com Todorov (2009, p. 27): “Na escola, não aprendemos acerca do que

falam as obras, mas sim do que falam os críticos”. Nesse sentido, faltam as obras,

falta a própria literatura.

Nesse formato, a literatura se restringe a uma apresentação panorâmica dos

movimentos, que segue uma tradição canônica de autores e obras, numa linha

cronológica e bem demarcada. Todorov (2009) sinaliza que a literatura ensinada é

37

um misto de historiografia e teorias literárias, prática que extingue o texto literário

para abordar aspectos puramente técnicos de uma disciplina. O texto literário, em tal

processo, tem um lugar periférico e não consegue, portanto, ser um instrumento de

reflexão sobre o mundo e sobre a própria condição do indivíduo/estudante.

Esse perfil do programa disciplinar de literatura não permite um deleite nas obras,

seja para uma apreciação crítica ou até mesmo para uma leitura por prazer, como

afirma Regina Zilberman (1988):

O livro didático concebe o ensino de literatura apoiado no tripé conceito de leitura-texto-exercício [...] o conceito de leitura e de literatura que a escola adota é de natureza pragmática, aquele só se justifica quando explicita uma finalidade - a de ser aplicado, investido, num efeito qualquer. (ZILBERMAN,1988, p. 111).

Nessa perspectiva, a escola faz com que a literatura perca o sentido, sendo

destituída de sua função mais ampla, que é “nos tornar ainda mais próximos dos

outros seres humanos que nos cercam, nos fazer compreender melhor o mundo e

nos ajudar a viver” (TODOROV, 2009, p. 76). Assim, a finalidade central das aulas

de literatura e dos manuais escolares deve ser o texto literário.

Mas não apenas isso, a mediação realizada pelo livro didático aos textos literários

deve ser menos arbitrária. Como ressalta Regina Dalcastagnè (2012, p. 7):

É difícil pensar a literatura brasileira contemporânea sem movimentar um conjunto de problemas, que pode parecer apaziguado, mas que se revelam em toda a sua extensão cada vez que algo sai de seu lugar. Isso porque todo espaço é um espaço em disputa, seja ele inscrito no mapa social, ou constituído numa narrativa. Daí o estabelecimento das hierarquias, às vezes, tão mais violentas quanto mais discretas consigam parecer [...].

Desse modo, é possível pensar como o romance de 30 produzido por alguns

escritores do Nordeste se situa, nesse livro didático, dentro de um jogo de forças a

partir do modo pelo qual se elaboram as abordagens sobre o movimento modernista

de 1922 e sobre a vertente literária da década de 1930. Essas tensões são muito

bem disfarçadas, assim como os embates que estabelecem os devidos lugares para

cada literatura, de modo que se fazem necessários uma interferência e um olhar

38

específico para tentar desmascarar a forma violenta pela qual esses discursos são

construídos.

39

2 NOVA ROUPAGEM, ANTIGAS LEITURAS

A partir das décadas de 1960 e 1970, as indústrias gráficas no Brasil passaram a se

desenvolver rapidamente. Desde então, foram implantadas máquinas modernas que

possibilitavam a impressão de imagens coloridas com qualidade. O novo padrão

gráfico ficou caracterizado pela grande quantidade de imagens e ilustrações, o qual

utilizava novas técnicas de layout. A coleção Português: linguagens é uma amostra

desse processo de alteração ocorrido nas indústrias de livros didáticos no país. A

aparente preocupação que os autores têm com a suposta atualização de cada

edição nos dá, à primeira vista, a impressão de que estão inovando ao colocarem

um novo projeto gráfico, a cada publicação. As novas edições da coleção valorizam

o acabamento e o aspecto visual (as dimensões, os tipos de papel, os tipos de capa,

contracapas, imagens, variação de cores, desenhos, mapas e boxes).

O terceiro volume está na sétima edição e, como todas as publicações anteriores,

apresenta uma diagramação nova. No entanto, tal forma de apresentação visual e

gráfica não representou nenhuma ruptura nos discursos sobre a apresentação do

romance de 30, produzido pelos escritores do Nordeste. É visível a permanência das

velhas estruturas que conduzem os conteúdos de literatura em grande parte dos

livros didáticos de português, ao longo dos anos.

André Barbosa de Macedo (2010), em sua dissertação De “romancistas do

Nordeste” a “2ª fase da prosa modernista”, traz um panorama das abordagens sobre

as obras literárias de Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Jorge Amado, Rachel

de Queiroz e José Américo de Almeida em livro didáticos de português produzidos

entre 1944 e 1987. A partir de seu estudo foi possível verificar que os discursos

sobre a vertente literária do romance de 30, produzido por escritores do Nordeste,

na referida coleção, são os mesmos, recorrentemente, apresentados em livros

didáticos de português há mais de seis décadas.

Além disso, em análises de materiais escolares, a didatização se constitui elemento

indispensável para a compreensão da passagem do texto, pensado pelo autor, para

40

o material impresso. Tal processo se inicia fora da esfera escolar, a partir das

intervenções de editores, ilustradores, impressores, divulgadores e da máquina

administrativa governamental que institui os conhecimentos a serem inseridos e

como devem ser inseridos.

A passagem do saber científico ao saber escolar pode ser entendida através da

transposição didática. O termo foi cunhado, em 1975, pelo sociólogo Michel Verret e

rediscutido por Yves Chevallard, em 1985, no livro La transposition didactique, no

qual mostra as transposições que um saber sofre quando passa do âmbito científico

para a esfera escolar. Chevallard (1985) conceitua a transposição didática como o

trabalho de fabricar um objeto de ensino, isto é, fazer um objeto de saber, produzido

pelo pesquisador, passar a ser objeto do saber escolar.

Perrenoud (1993) compreende a transposição didática como um mecanismo que

possibilita a transformação do conhecimento científico em saber escolar para ser

ensinado, adquirido e avaliado a partir da "ação de fabricar artesanalmente os

saberes, tornando-os ensináveis, exercitáveis e passíveis de avaliação”

(PERRENOUD, 1993, p. 25). O autor cita algumas transformações que o conteúdo

sofre ao passar pelo processo de didatização. Dentre elas estão: as segmentações,

os cortes e a simplificação.

Tais processos podem incidir em recortes no conteúdo, a partir do que o autor

considera importante, em características ou temas do conteúdo que são mais

enfatizados ou reforçados, em detrimento de outros aspectos que são diminuídos ou

omitidos. Ademais, na organização do conteúdo em uma sequência rígida e

cronológica, sem considerar as descontinuidades e rupturas.

É a partir desses processos da transposição didática que o romance de 30,

produzido pelos escritores do Nordeste, é inserido no livro didático. Esses

procedimentos simplificam demasiadamente a abordagem sobre o romance de 30

no livro didático em estudo, de modo que não foram consideradas as dissensões

intelectuais iniciadas nos anos 1920, nem as complexidades e contradições

referentes à década de 1930 e em torno da vertente literária em questão. Os

acontecimentos decisivos que marcaram as décadas de 1920 e de 1930, em

41

Pernambuco, no Rio de Janeiro e em São Paulo, então centros formadores de uma

discursividade para o país, foram omitidos pelo livro didático.

O contra discurso formado pelo sociólogo Gilberto Freyre, em oposição ao

modernismo paulista, era baseado na naturalização dos traços conservadores da

sociedade nordestina, que insere a ideia de valorização, primeiro, do Nordeste

enquanto berço do Brasil e, depois, enquanto centro de elementos ricos e

originalmente brasileiros, por isso, aptos a formar uma identidade própria. O

movimento modernista, vivenciado em São Paulo, tem orientação oposta, pois

busca, a partir de uma modernização, aos moldes estrangeiros, uma renovação

cultural. E assim se estabelecem, em direções divergentes, as duas grandes

construções discursivas do período.

O movimento regionalista do Nordeste era amplamente divulgado pelos meios de

comunicação da época, em Pernambuco, fazendo com que um grande número de

intelectuais se tornassem adeptos desse movimento. Porém, mesmo em defesa de

sua região, Freyre encontrou opositores que questionavam ferrenhamente seu

contra discurso, como o jornalista pernambucano Joaquim Inojosa que, ao ter

contato com as novas obras dos artistas modernistas de São Paulo, passou a

incentivar o Norte/Nordeste, especialmente Pernambuco, a destruir o passadismo

para seguir, junto ao Rio e São Paulo, o rumo ao modernismo.

De acordo com Neroaldo Pontes de Azevêdo (1984), Faria Neves Sobrinho, político,

escritor e um dos fundadores da Academia Pernambucana de Letras, é quem

oferece a Inojosa a oportunidade de divulgar, em Pernambuco, o que aprendera em

São Paulo acerca da arte nova, mas o impasse ideológico causa desconforto e

dissensões entre os líderes intelectuais do Nordeste. As publicações periódicas, de

jornais e revistas da época, tornam-se palco para a disputa ideológica que entrava

em cena nos anos 1920, em Pernambuco. Dessa forma, se estabeleceu uma

oposição ideológica e política entre “passadistas” e “futuristas”.

Tais acontecimentos revelam que os discursos não fluem de modo pacífico, são

resultados de embates que envolvem, sobretudo, o poder. O caso do discurso

referente ao Nordeste não ganha notoriedade nacional, pois retrata um espaço

desprovido de prestígio social. Em contrapartida, torna-se porta-voz de uma elite

42

nordestina que não luta apenas por um reconhecimento cultural, mas,

principalmente, pela permanência da estrutura oligárquica, que garante acúmulo de

riqueza e poder para a parte dominante do Nordeste. A naturalização dos aspectos

conservadores que se coloca versus a modernidade vivenciada pelo Sul/Sudeste

confirma o status de necessitada do Nordeste e torna-se uma porta aberta para que

a elite nordestina coloque seus interesses políticos e financeiros em cena, como

afirma Iná Elias de Castro (1992) em O mito da necessidade. Assim, o regionalismo

nordestino não apenas defende a cultura de uma região minoritária, mas se torna

uma construção intelectual que depende das elites conservadoras da região e

coopera com elas.

Ao contrário dessas tensões e divergências, o livro didático constrói uma imagem

limitada dos romances da década de 1930, produzidos por escritores do Nordeste.

Segundo o livro didático, eram regionalistas e de denúncia social, o movimento

modernista foi totalmente aceito pelos intelectuais do Nordeste, sem haver

dissensão política ou intelectual alguma acerca dessas novas produções literárias.

Ou ainda, todos os fatos relacionados ao movimento modernista em 1922 ou à

vertente literária do romance de 30 aconteceram continuamente, de modo linear e só

havia Rachel de Queiroz, José Lins do Rego, Graciliano Ramos e Jorge Amado

como escritores representantes. .

Vale mencionar a omissão que essa coleção faz acerca da apresentação sobre o

escritor José Américo de Almeida. Mesmo sendo recorrentemente apresentado

dentre os romancistas do Nordeste, em edições anteriores de livros didáticos de

português, esse escritor só é mencionado uma única vez, a partir de um pequeno

fragmento do romance A bagaceira e como precursor de uma nova fase da ficção

regionalista nordestina, da seguinte forma: “[...] com a publicação de A bagaceira

(1928), de José Américo de Almeida, e, em seguida, O Quinze (1930), de Rachel de

Queiroz, o romance nordestino entrou numa fase nova” (CEREJA; MAGALHÃES,

2010, p. 147). De acordo com Bueno (2006), é consenso apontar o romance A

bagaceira como iniciador do romance de 30. Contudo, não se deve limitar o início

dessa vertente literária apenas a partir dessa produção ficcional, pois, segundo

Bueno (2006), em publicações anteriores já se fazia perceptível a alusão aos

aspectos da produção literária do romance de 30, como o caso do romance Dentro

da Vida, do sergipano Ranulpho Prata, publicado em 1922: “Em Dentro da Vida

43

notam-se precocemente aspectos curiosos, alguns dos quais encontraremos mais

tarde em A Bagaceira” (BUENO, 2006, p. 84).

O processo de didatização retira a complexidade do assunto, tornando-o incompleto

e superficial, a partir da ideia de que disciplina escolar não é conhecimento

científico, apenas parte dele. Além dos problemas acima mencionados, no terceiro

volume da coleção, a abordagem relacionada ao romance de 30 se resume a três

aspectos: primeiro, é uma literatura dependente do movimento modernista; segundo,

é uma literatura regionalista; terceiro, é uma literatura de denúncia social.

2.1 UMA PRODUÇÃO LITERÁRIA DEPENDENTE

A organização dos conteúdos de literatura no livro didático é pautada em uma

perspectiva historiográfica de base positivista. Nesse sentido, é atribuído um espaço

relativamente grande ao movimento modernista, de modo que há capítulos

específicos para temas como “pré-modernismo”, “a linguagem do modernismo”, “as

vanguardas” e o “modernismo como primeira fase”. Em contraponto, o romance de

30 e, consequentemente, o Nordeste surgem como um capítulo à parte.

As ilustrações, os enunciados e a disposição dos conteúdos são divergentes e, em

certa medida, opostas às apresentadas no modernismo de 1922, no sentido de

promover e reforçar uma identidade já cristalizada sobre a região nordestina. Essa

oposição discursiva torna-se uma continuidade, quando o romance de 30, produzido

pelos escritores do Nordeste, ganha status de dependente e devedor do movimento

de 1922: “Herdeiros diretos dos modernistas de 1922, os modernistas da segunda

geração (1930-45) também se voltam para a realidade brasileira [...]” (CEREJA;

MAGALHÃES, 2010, p. 142). A tentativa de conjugação não deseja ser igualitária,

mas busca, a partir da junção de imagens e textos, colocar o modernismo e a região

Sudeste em posição de prestígio, enquanto, o romance de 30, produzido por

escritores do Nordeste, e tal região em um patamar inferior.

Essa dinâmica opositora não é um fenômeno recente. Marcas dessa rivalidade

condizem com um processo histórico, iniciado no final do século XIX. O enfoque

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epistemológico norteador dos estudos sociológicos da época era baseado no

determinismo e no positivismo, que dividia a sociedade em camadas superiores e

inferiores. Categorias como a raça e o meio eram determinantes no estudo

sociológico. A partir dessa tendência, Nina Rodrigues chama a atenção para a

predominância de negros no Norte e de brancos no Sul. Assim, tal colocação

demarca a posição das regiões nortista e sulista, na respectiva hierarquia inferior e

superior, no cenário nacional.

A ideia de que o meio era determinante para a formação de uma região coincide

com a imagem que se queria criar do Norte, legitimada pela grande seca de 1877.

Posteriormente, o Nordeste surge para assumir essa posição. De acordo com

Albuquerque Jr. (2012), o termo Nordeste, que servia apenas para designar a área

de atuação da Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas (IFOCS), criada em

1919, para substituir o IOCS (Inspetoria de Obras Contra as Secas), passa a ser

cada vez mais usado nos discursos das elites políticas da região. O Nordeste se

torna, assim, uma desculpa criada e utilizada pelas elites em declínio para

reivindicarem investimentos por parte do Estado.

Para Albuquerque Jr. (2012), a seca é fundamental para definir o recorte regional do

Nordeste. No início do séc. XX, surge como a região da seca, do semiárido, e não

cessa de ser ampliado de acordo com os interesses políticos das elites regionais do

entorno. O Nordeste nasce e se consolida como um problema, o problema do Norte.

De tal modo, a região se caracteriza, nesse ideário, como a parte problemática do

país, sujeita às estiagens, condenada às hostilidades da natureza e como uma

realidade irrecuperável, estabelecendo uma situação de inferioridade frente ao Sul.

Utilizando-se do discurso das secas, a elite local passa a compor uma imagem

marcada por desolações naturais e abandonada pelos poderes públicos com a

finalidade de se aproximar do poder central e usufruir de benesses. Esse discurso

elaborado pela elite da própria região vai determinar definitivamente um lugar inferior

ao Nordeste. Desde então, as marcas da desolação fariam parte do repertório

discursivo sobre a região em veículos de comunicações, músicas ou romances.

Na década de 1920, já era consensual a ideia de que as regiões Sul e Sudeste eram

lugares do desenvolvimento, que se contrapunham a uma imagem negativa do

45

Nordeste. Albuquerque Jr. (2009) aponta um exemplo categórico desse conflito

discursivo, estabelecido entre o Nordeste e São Paulo. O entrave tinha repercussão

pública em jornais de grande circulação da época, em uma série de reportagens sob

o título “Impressões do nordeste e Impressões de São Paulo”, veiculadas no jornal O

Estado de São Paulo, escrito em 1920, pelo jornalista Lourenço Filho, em viagem a

Juazeiro do Norte, no Ceará:

Um recuo no tempo para os olhos de um filho do Sul, a vida parece desandar, girar ao inverso, vinte anos menos em cada dia de viagem [...]. Povos, hábitos, manifestações estéticas e religiosas, ideias e preconceitos, tudo soa no vazio do eco, com as vozes indefiníveis de alongado pretérito. (LOURENÇO FILHO, 1920 apud ALBUQUERQUE JR., 2009, p. 73).

A estratégia de demonstrar a superioridade paulista é inegável. A imagem de

inferioridade do Nordeste já estava traçada, mas era preciso reforçar os

estereótipos, por meio da repetição para que se tornassem verdades incontestáveis.

No trecho citado, a região nordestina está ligada a um passado, mas não um

passado tradicional, em sentido positivo, mas a um passado primitivo, de atraso e

decadência.

O atraso está categoricamente associado a tal espaço e ao ambiente rural,

explorado no livro didático como uma característica inseparável, como se a região

nordestina fosse composta apenas por ambientes campestres. A oposição

campo/cidade também protagonizou um dos grandes embates políticos no cenário

nacional, formado pela colisão entre as decadentes oligarquias agrárias e as

ascendentes burguesias urbanas.

O meio rural, assim como o Nordeste, foi marcado negativamente e de modo

definitivo. Ser rural significa ser primitivo e atrasado, o que demarca uma posição

inferior ao indivíduo. O sociólogo José de Souza Martins, ao tratar da sociologia

rural, afirma o seguinte:

Nenhum campo da sociologia ficou mais exposto a esse desencantamento do que a sociologia rural. Porque nenhum ficou tão obstinadamente preso à suposição de que as populações rurais são populações retardatárias do desenvolvimento econômico e da História, supostas ilhas de primitivismo no suposto paraíso da modernidade. (MARTINS, 2012, p. 220).

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O acelerado processo de urbanização nas cidades brasileiras acentuou a imagem

do espaço rural como lugar de atraso, de pouco saber e de declínio. Tal processo

trouxe uma redução considerável em sua população, de modo que as taxas de

crescimento populacional do campo passam a diminuir a partir de 1960. A

inferioridade que marca o ruralismo e todas as suas formas de expressão acabou

por reforçar os estereótipos contra o Nordeste e os nordestinos.

Parte dessa oposição rivalista entre Norte e Sul é protagonizada pelo movimento

modernista, ocorrido no Sudeste e pelo Movimento Regionalista do Nordeste.

Seguindo uma perspectiva historiográfica tradicional da literatura, que contribui para

a solidificação de conceitos canônicos alicerçados em moldes hegemônicos,

encontram-se, no livro didático, as representações em torno do movimento

modernista e a prosa do romance de 30 produzida por escritores do Nordeste, com

um sutil aspecto de supremacia do modernismo paulista. Basta folhear o manual

didático para perceber a predominância de um sobre o outro.

A chamada inicial, ou abertura da Unidade que trata do referido movimento, é

traduzida na expressão “A segunda fase do Modernismo. O romance de 30”

(CEREJA; MAGALHÃES, 2010, p. 142). O modernismo paulista se configura como o

ponto de partida para a renovação literária e centro da literatura brasileira

contemporânea. O binarismo Nordeste / Norte versus Sul se encontra aqui

representado pela oposição entre o modernismo e o romance de 30 do Nordeste.

Essa assertiva pode ser comprovada a partir da disposição dos assuntos, do

discurso presente e pelas ilustrações. Logo no início do volume, em um dos

capítulos sobre o modernismo paulista, encontra-se o seguinte:

Após a Semana de Arte Moderna, o Modernismo passou a viver sua “fase heroica”, isto é, a fase de divulgação das ideias modernistas em todo o país e de aprofundamento das questões estéticas lançadas pela Semana [...] os escritores de maior destaque dessa fase defendiam a reconstrução da cultura brasileira sobre bases nacionais, a promoção de uma revisão crítica de nosso passado histórico e de nossas tradições culturais, a eliminação definitiva de nosso complexo de colonizados, apegados a valores estrangeiros. Eram, portanto, defensores de uma visão nacionalista, porém crítica, da realidade brasileira. (CEREJA; MAGALHÃES, 2010, p. 67-68).

47

Esse discurso é categórico e dá a ideia de que o modernismo paulista é um

movimento de repercussão nacional e de revolução cultural. No livro, a tentativa de

marcar o modernismo como um movimento definitivo que transforma profundamente

o curso da tradição literária brasileira perpassa pelos discursos que compõem a

maioria dos capítulos sobre literatura: “Os resultados deixados por esse período de

pesquisas foram a implantação definitiva do movimento modernista e a maturidade e

autonomia de nossa literatura” (CEREJA; MAGALHÃES, 2010, p. 67).

O livro didático apaga, ou não traz à cena, a polêmica da emergência do romance do

Nordeste. Antes, traz apenas afirmativas que tornam consensual uma centralidade

do movimento ocorrido em São Paulo. São suprimidas todas as dissensões em torno

de quase duas décadas, as circulações iniciais do movimento de 1930, iniciadas

ainda nos anos 1920 em Pernambuco, período que se caracterizava como embrião

do Movimento Regionalista do Nordeste, do qual se originou o romance de 30. O

livro didático oblitera todas as divergências, de modo que parece se tratar de um

movimento pacífico, sem tensões ou polêmicas.

O primeiro capítulo dedicado ao estudo da literatura trata do pré-modernismo,

considerado um período de transição: “A esse período de transição, que não chega

a constituir um movimento literário, chamamos Pré-Modernismo” (CEREJA;

MAGALHÃES, 2010, p. 12). Segundo Cereja e Magalhães (2010), o pré-modernismo

não chega a ser um movimento literário, é marcado por várias tendências artísticas

do final do séc. XIX e passa por um processo de ruptura para dar lugar às

vanguardas europeias que iriam impulsionar o movimento modernista. De acordo

com Luís Bueno (2006), um dos frutos da postura que vê a nossa literatura, a partir

do modernismo paulista, é a ideia de pré-modernismo. Nesse sentido, ao conceber o

pré-modernismo como um período literário, o livro didático confirma a centralidade

do movimento modernista:

No início do século XX, a literatura brasileira atravessava um período de transição. De um lado, ainda era forte a influência das tendências artísticas da segunda metade do século XIX; de outro, já começava a ser preparada a grande renovação modernista, cujo marco no Brasil é a Semana de Arte Moderna (1922). A esse período de transição, que não chega a constituir um movimento literário, chamamos Pré-Modernismo. (CEREJA; MAGALHÃES, 2010, p. 12).

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Caracterizado pelo livro por um período de transição, o pré-modernismo forma, com

o romance de 30, uma espécie de “antes” e “depois”, tornando o modernismo

paulista o “centro”, um divisor de águas, e a Semana de Arte Moderna de 1922, um

marco. Para Bueno,

[...] o estabelecimento de um conceito como o de “pré-modernismo”, que não pode existir senão como a manifestação de uma ótica que põe o modernismo no centro de nossa tradição literária, a ponto de poder definir o que há de válido no início do século, numa ação retrospectiva que acaba escrevendo a história das exceções e que tem como subproduto – voluntário ou não – a idéia bastante questionável de que as obras de Lima Barreto ou Euclides da Cunha ganham sentido por suas antecipações de certos aspectos do movimento modernista. (BUENO, 2006, p. 43-44).

Essa “idéia bastante questionável” a que Bueno se refere é o mote que move a

seção sobre o pré-modernismo no livro de Cereja e Magalhães. Com o intento de

definir “o que há de válido”, o que tornava um escritor apto ou não a ser classificado

como pré-modernista eram as “antecipações de certos aspectos do movimento

modernista”. Euclides da Cunha, Lima Barreto, Monteiro Lobato e Augusto dos Anjos

fazem parte do período por adiantar em alguns aspectos que posteriormente serão

tendências do movimento modernista, “novidades essenciais [...], o interesse pela

realidade brasileira; a busca de uma linguagem mais simples e coloquial” (CEREJA;

MAGALHÃES, 2010, p. 13), ou seja, aspectos explorados pelo modernismo e

explicitados pelo livro didático.

Confere-se explicitamente que o que arroga qualidade ou sentido para as obras de

Euclides da Cunha, Lima Barreto, Monteiro Lobato e Augusto dos Anjos é o que eles

têm de modernistas. Novamente, sem justificativa nem problematizações, o conceito

é aplicado, e as produções literárias destes são classificadas de acordo com alguns

de seus aspectos. Com isso, as obras dos escritores considerados pré-modernistas

só são trazidas à tona a partir das tendências que condizem com uma “forma de

antecipação dos aspectos modernistas”.

Além de tratar do pré-modernismo, o que implica numa afirmação da supremacia do

movimento modernista, o livro didático apresenta o romance de 30 como uma

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continuidade, uma segunda geração, não de modo igual, mas em situação de

dependência:

Os romancistas da segunda geração modernista, em sua maioria distantes geograficamente do núcleo paulista – que se caracterizava pelo experimentalismo estético –, aderiram à concepção moderna e modernista de literatura, porém sem o espírito iconoclasta da geração de 1922. Interessavam-lhes principalmente certos aspectos explorados pelo Modernismo, como os temas nacionais e cotidianos e a busca de uma linguagem brasileira. (CEREJA; MAGALHÃES, 2010, p. 144).

Verifica-se a ideia de continuidade expressa pela designação “segunda geração

modernista” e de dependência, quando se afirma que os escritores de 1930

“aderiram à concepção moderna e modernista”. Ou seja, o romance de 30 constitui

apenas um desdobramento do modernismo, e as conquistas que a geração de 1930

logrou já haviam sido alcançadas pelo movimento modernista de 1922. Além disso,

os romancistas aos quais o livro didático se refere, no trecho anterior, não estavam

tão distantes do núcleo paulista, pelo menos os quatro autores eleitos

representantes dessa vertente literária passaram grande parte de suas vidas no Rio

de Janeiro, então capital do país.

Na abordagem do manual didático, tudo parece consensual e linear. São obliteradas

as descontinuidades e as rupturas, de modo que a centralidade conferida ao

modernismo paulista não é um consenso, como apresentado. De acordo com Bueno

(2006), um dos grandes temas da história literária hoje é exatamente a reavaliação

do modernismo. Tal avaliação vem a ser uma reação a essa postura cristalizada de

analisar a literatura brasileira do século XX a partir do movimento modernista:

[...] pouco se tem falado do forte embate que houve entre a geração surgida na década de 30 e os modernistas, e a tendência dominante é ver o romance de 30 como um desdobramento do modernismo de 22, uma segunda fase da literatura surgida na Semana de Arte Moderna. (BUENO, 2006, p. 44).

As proposições defendidas por José Maurício Gomes de Almeida (1999) comungam

com a defesa de uma reavaliação do modernismo, enquanto movimento definidor da

literatura brasileira. Para Almeida, não há dependência entre o movimento

50

modernista de 1922 e a geração de 1930. Ainda que a renovação e a ousadia dos

jovens modernistas do Sudeste tenham estimulado os intelectuais do Nordeste, em

conteúdo e em significado, trata-se de um movimento e uma vertente estética e

essencialmente divergentes que caminham em sentido distinto. O movimento

modernista volta-se para o presente, para os valores éticos e estéticos criados pela

vida moderna e pela civilização industrial que despontava com vigor em São Paulo;

em contrapartida, o romance de 30 volta-se para a revalorização da herança cultural

do passado.

A renovação literária do Nordeste é fruto de um contato direto da arte com a

realidade local. Ao levantar alguns dos pontos divergentes entre os movimentos de

São Paulo e do Nordeste, Almeida afirma que não cabe a exaltação de um em

detrimento de outro, mas deve-se compreendê-los “como respostas específicas e

diferenciadas entre si a problemas socioculturais também peculiares e diversos”

(ALMEIDA, 1999, p. 202).

Quanto aos frutos posteriores, os movimentos também resguardam divergências.

Almeida afirma que o movimento modernista não teve em São Paulo a continuidade

criativa que se poderia esperar: a maior parte de sua produção se deu apenas nos

anos 1920. Já o movimento do Nordeste configurou-se nos anos seguintes como

“uma verdadeira explosão de criação ficcional” (ALMEIDA, 1999, p. 203). Nesse

sentido e ainda sobre o modernismo, temos a posição defendida por Jorge Amado,

em entrevista concedida em 1985, a Alice Raillard:

[...] é um movimento de classe que nasce na órbita dos grandes proprietários do café. Formalmente, o modernismo no Brasil é uma transposição dos movimentos que surgiram na Europa depois da Primeira Guerra. [...] É historicamente limitado, tem um começo e um fim. (AMADO, 1985 apud RAILLARD, 1990, p. 57-58).

De acordo com esse romancista, o modernismo paulista foi patrocinado pela riqueza

do café, inclusive, quem mantinha os ideais do movimento nos jornais burgueses da

época era a própria elite paulista, pessoas que, segundo Amado, desconheciam o

povo. Sendo ainda mais incisivo, o intelectual baiano afirma que o modernismo de

1922 foi uma revolução formal, mas do ponto de vista social não trouxe grande

coisa: “Trouxe uma certa idéia de nacionalismo, um nacionalismo de direita e um

51

nacionalismo de esquerda” (AMADO, 1985 apud RAILLARD, 1990, p. 59). Já em

relação ao romance de 30 do Nordeste, o escritor sinaliza para uma origem

contrária. O romancista afirma que é da revolução de 30 que surge essa literatura, e

não da burguesia, ou seja, surge de uma revolução popular, com o intuito de tratar

dos problemas do povo e de uma escrita baseada na língua falada no Brasil.

Outro crítico que também defende a ideia de uma revisão sobre a supremacia do

movimento modernista e a dependência do romance de 30 ao movimento de 22 é o

professor e crítico literário Fábio Lucas. Ao tratar da dependência do fazer literário

no Brasil, em um artigo intitulado “Angústia da dependência” (1996), afirma:

Questiona-se hoje a validade do movimento modernista, à medida que interrompeu um processo de formação de um projeto literário brasileiro, advindo dos árcades, do romantismo e do realismo, que encontrava em Raul Pompéia, Lima Barreto, Augusto dos Anjos e Gilka Machado traços de modernidade e de avanço que foram desprezados [...]. É a tese sustentada por Heitor Martins, que observa: "A invasão futurista de 1922, de certa maneira, provoca uma implosão da modernidade criada dentro do projeto literário brasileiro tradicional, que vimos descrevendo, substituindo-a pela importação das vanguardas. A modernidade deixa de ser uma resultante do progresso local para ser uma união hipostática com o progresso alheio". (LUCAS, 1996, p.3).

Lucas (1996) mostra que se trata de uma transplantação de modelos estrangeiros e

dominantes para a experimentação local. De acordo com o autor, a transplantação

vem acompanhada de certo desprezo ao que o Brasil já possuía. Em O caráter

social da ficção no Brasil (1985), no capítulo em que trata do romance nordestino e

do quadro social na agricultura, Lucas parte da oposição entre o modernismo e a

prática do romance nordestino. O crítico aponta algumas diferenças que, segundo

ele, enquanto os modernistas tinham inclinação para temas urbanos, o romance

nordestino soube associar “a herança da cultura brasileira, latifundiária e patriarcal,

ao espírito terrivelmente cumulativo do capitalismo, gerador de miséria e

desemprego” (LUCAS, 1985, p.46). Ainda: “Talvez o conjunto de romances do

Nordeste constitua o documento mais enfático da disparidade social do País”

(LUCAS, 1985, p. 46). Além disso, outro referencial distinto e importante do romance

de 30 se dava a partir do seu objetivo em fornecer material para os estudos de

outras ciências humanas com um tom de revolução:

52

[...] a situação geográfica e histórica da região, de uma pobreza heróica e dependente, gerou mais vivamente o sentimento de protesto. Ali foi denunciada a atuação simultânea das forças telúricas e das instituições humanas para o esmagamento do homem e para tornar mais pronunciado o desnível entre as classes. (LUCAS, 1985, p. 46).

Na visão de Fábio Lucas, o romance de 30 ou o romance no Nordeste, como ele

designa, marca, pelo acabamento, pelas qualidades literárias e pela implantação de

um estilo, um momento grandioso na tradição literária brasileira, o qual se distancia

do movimento de 1922. Assim, faz-se mais do que necessário repensar o conceito

que une os dois movimentos numa mesma tradição ou em situação de dependência.

Autores como Mário de Andrade, Oswaldo de Andrade [...] se adensam na pesquisa formal, de cunho experimentalista [...] ficcionistas como Raquel de Queiroz, José Lins do Rego, Jorge Amado e Graciliano Ramos se dispõem a uma pesquisa literária substancialista, que também desvia o curso da tradição. Atacam o cenário do Nordeste sob o ângulo da crise social e da peculiaridade das relações humanas ante as condições ecológicas e políticas desfavoráveis, adotando uma linguagem em que o oralismo e o coloquial elevam ao texto a presença da camada popular. (LUCAS, 2005, p. 69).

Ao trazer o movimento de 22 como dependente de um discurso estrangeiro e

dominante, e, em contrapartida, elevar o romance de 30, a partir de seus pilares

fundamentais, Lucas (1996) ajuda a entender a urgência em se reavaliar os

conceitos que colocam o modernismo no centro da linha de desenvolvimento da

literatura brasileira. Quanto à ideia de sujeição do romance do Nordeste ao

movimento de 22, quando analisados a partir dos aspectos apresentados,

entendemos que algo está fora de lugar.

O ciclo do romance nordestino tem função, tendências temáticas e estilo próprios,

logo, independente do modernismo paulista. O romance de 30 emerge de um

movimento já iniciado na década de 1920. Liderado pelo sociólogo e antropólogo

Gilberto Freyre, o Movimento Regionalista do Nordeste se consolida a partir de uma

construção discursiva que tenta preservar as características oligárquicas e

tradicionalistas e que estetiza o atraso da região. O modernismo paulista tem

53

orientação divergente, pois busca uma renovação cultural a partir da modernização

baseada em padrões estrangeiros.

As abordagens que inserem o romance de 30 no Nordeste em situação de

dependência, no livro didático, nem sempre se estabelecem por textos verbais. A

diagramação da Unidade anterior, que trata do modernismo paulista, apresenta

muitas ilustrações, muitos textos artísticos, traz um tom de desenvolvimento, muitas

cores e páginas. Em seguida, apresenta-se o romance de 30 produzido por

escritores do Nordeste, as escassas ilustrações, bem como as poucas páginas,

predominantemente, em cor marrom, nos reporta a um espaço decadente e

atrasado.

A partir do exposto, notamos que a centralidade conferida ao movimento modernista

e a consequente dependência do romance de 30, apresentado pelo livro didático, é

arbitrária e não consensual. Trata-se, portanto, de uma vertente literária que envolve

descontinuidades, complexidades e algumas reavaliações. De certo não seria

necessário apresentar no livro didático todos os autores, muito menos todas as

teorias em volta da discussão, mas seria pertinente mostrar, ainda que

superficialmente, um ou dois pontos de vista divergentes para que o estudante

possa fazer, pela sua leitura, uma avaliação.

2.2 O CARIMBO DO REGIONALISMO

Em O poder simbólico, Pierre Bourdieu (2011) concebe a região como uma

construção que se dá a partir de jogos de poder ou de um poder simbólico que

estrutura a sociedade. Para o autor, a região, enquanto substrato material e, tal qual

conhecemos, está longe de ser algo natural, inato. Antes, configura-se como um

campo de lutas onde se estabelecem jogos de força e poder. Essa luta simbólica, da

qual resulta a região, caracteriza-se por um processo de formação de imagens,

conjunto de representações, símbolos e aspectos do espaço que são criados e

vividos coletivamente.

54

Assim, para representar a região, deve haver um elemento “performativo” que se

constitua como um diferencial na apresentação da identidade de um determinado

grupo. Como ressalta Bourdieu, “o discurso regionalista é um discurso performativo”

(2011, p. 116; grifo do autor). O discurso performativo é o discurso vivenciado,

estratégico, que se molda a partir dos elementos da própria cultura. Assim,

performance constitui-se como uma categoria de interpretação e atuação dos

sujeitos em seu espaço a fim de lidar com significados sociais, e de negociar

sentidos. É deste modo que os autores do livro didático apresentam a noção de

discurso/literatura regionalista. A literatura regionalista, nesse volume, se caracteriza

por tentar mostrar “um retrato mais objetivo da realidade” (CEREJA E MAGALHÃES,

2010, p. 144). Nessa perspectiva, o romance de 30, produzido pelos escritores do

Nordeste, como uma literatura regionalista é composto pela representação do “povo

nordestino” e de uma identidade nordestina. A composição da abordagem dos dois

capítulos sobre a produção do romance de 30 do Nordeste é formada por textos

verbais e não verbais que fazem menção a uma formação discursiva anteriormente

construída sobre essa região.

Inicialmente, chama a atenção o grande número de imagens – textos não verbais –

referentes a essa formação discursiva. Apesar de não ter muitas ilustrações nos

capítulos em foco, as imagens presentes, exceto as fotografias dos quatro autores,

Rachel de Queiroz, José Lins do Rego, Graciliano Ramos e Jorge Amado,

correspondem a uma ideia negativa da região nordestina. E é também, a partir

dessas imagens identitárias, que o romance de 30 ganha, no livro de Cereja e

Magalhães, nuances regionalistas.

Logo na abertura da referida Unidade é inserida a fotografia de um sertanejo,

composta por elementos predominantemente rurais, o homem na lida do campo,

com a indumentária e o chapéu de couro, a natureza rústica e o sol reforçam, nesse

primeiro contato com o estudante, a ideia de Nordeste, como se pode observar na

seguinte ilustração (Figura 1).

55

Abertura da Unidade 2 do livro Português: linguagens (2010), p. 142.

As ilustrações que seguem versam sobre temáticas ligadas ao sertanejo e ao sertão,

à caatinga, à pobreza, à seca e ao cangaço. Tais imagens mostram o esforço dos

autores do livro didático em ressaltar os estereótipos do Nordeste, reiterando assim

a temática do romance de 30 como uma vertente essencialmente regionalista.

O trabalho com a junção de imagens e textos possui finalidade didática e ideológica.

Didática, porque as imagens exercem a função de auxiliar no processo de fixação do

texto no leitor/aluno e ideológica, porque corrobora a formação de imaginários.

Assim, torna-se pertinente pensar no que Cornelius Castoriadis (1982, p.13) aponta

quando afirma que o imaginário “é criação incessante e essencialmente

indeterminada de figuras/formas/imagens, a partir das quais somente é possível

56

falar-se de alguma coisa”, de modo que, a partir das imagens, formas e textos

apresentados pelo livro didático pode-se construir e reafirmar verdades.

A tentativa de caracterizar o romance de 30 como uma literatura regionalista e

“essencialmente nordestina” se faz presente já na abertura do quarto capítulo, que

traz a reprodução de uma tela da série Retirantes, de 1958, de João Cândido

Portinari, com o seguinte enunciado: “A principal expressão do romance de 30

encontra-se no regionalismo nordestino” (CEREJA; MAGALHÃES, 2010, p. 168).

Abertura do capítulo 4 do livro Português: linguagens (2010), p. 168.

Na tela em questão, no primeiro plano encontram-se figuras humanas esquálidas, de

olhares tristes, demonstrando o horror de viver, o cansaço extremo e uma face de

grande carga expressiva, retratando o sofrimento. A natureza hostil do Nordeste

57

também faz parte do cenário com um chão de terra em tom marrom que dá a ideia

de seca, um céu bastante azul e sem nuvens, acompanhado de um sol expressivo e

escaldante, marcando a ausência de chuvas.

Os quadros de Portinari possuem status de símbolo na configuração da identidade

nacional, sobretudo nas décadas de 1930 e 1940, por darem visibilidade para o

Brasil e suas regiões. Em 1934, Portinari inclui, em suas telas, a temática social com

a obra Despejados. A obra que ilustra o quarto capítulo é de 1958, denominada pela

crítica como a “fase da pintura social”, caracterizada por uma mudança de referente

estético de Portinari:

Ao adotar a preocupação com as condições sociais do país, seu olhar se desloca do interior de São Paulo para o Nordeste, indo buscar nos romancistas nordestinos, da década de trinta, imagens que melhor pudessem expressar os dramas sociais do país. As formas arredondadas cedem lugar a membros duros e ossudos. [...] Os retirantes secos, enrugados, esqueléticos, que a pele mal cobre, fazem a poesia de seus quadros virarem cólera, protesto, dor e miséria. (ALBUQUERQUE JR., 2009, p. 278).

O regionalismo do romance de 30 ganha visibilidade na pintura de Portinari, quando

a temática, na tela reproduzida, se impregna dos enunciados sobre a vertente

literária destacada. “Estas imagens cristalizam uma visibilidade do Nordeste e do

nordestino” (ALBUQUERQUE JR., 2009, p. 280).

A reprodução da tela mencionada, no livro didático, vem cumprir sua função no

sentido de reforçar o romance de 30 como uma literatura regionalista, além de pôr

em evidência, através da imagem, os estereótipos em torno do Nordeste. Ao

analisar as imagens em produções didáticas, Ana Mae Tavares Bastos Barbosa

(2002) afirma o seguinte:

A imagem é, hoje, um componente central da comunicação, com sua multiplicação e ampla difusão, com sua repetitividade infinita, estes dispositivos fazem com que, por intermédio de sua materialidade, uma imagem prolongue sua existência no tempo. (BARBOSA, 2002, p. 75).

58

A imagem passa a ser vista como elemento importante de informação. Nesse caso,

quando explorada com um discurso enfático e marcado pela repetição, a tela e as

abordagens ganham um caráter incontestável.

Portanto, o regionalismo expresso pelo romance de 30 apresenta o Nordeste não

como qualquer outro objeto de discurso, como resultado de uma simples relação

natural e absoluta entre linguagem e mundo, mas como a imagem da realidade

refletida num espelho, segundo teorias essencialistas, como um discurso construído

a partir de padrões hegemônicos, de práticas sociais e culturais. Diante disso, torna-

se válido salientar que essa representação não é necessariamente a verdade, mas

uma construção que remete a um determinado discurso sobre a região. Ou ainda,

como propõe Zaidan Filho (2001):

[...] a região não é uma positividade geográfica, mas, ao contrário, um produto sociocultural das disparidades geográficas no processo de desenvolvimento capitalista [...] obra de publicistas, pensadores, produtores culturais e lideranças políticas na construção simbólico-cultural da “região” ou da “identidade regional”. (ZAIDAN FILHO, 2001, p.43).

Essa “construção simbólico-cultural”, através da formação discursiva já instituída

sobre a região, incide sobre as páginas do livro didático com o peso de uma

totalidade absoluta, de uma verdade incontestável.

A representação homogênea expressa, a partir do regionalismo literário sobre o

romance de 30 no Nordeste, nessa coleção, se ressalta na predominância de um

discurso regionalista dominante sobre a região nordestina: a seca no sertão. Desse

modo, é organizado um conjunto de textos que dão conta do discurso da seca de

forma direta. A subseção “Caminhos da ficção de 30” é sintomática desse enredo:

O romance de 30 trilhou diferentes caminhos, dos quais o regionalismo, especialmente o nordestino, é o mais importante [...] o romance nordestino entrou numa fase nova, de denúncias das agruras da seca e da migração, dos problemas do trabalhador rural, da miséria, da ignorância. (CEREJA; MAGALHÃES, 2010, p. 147; grifo do autor).

59

Nesse sentido, o regionalismo literário nordestino tem a seca como recorte principal,

reforçando a imagem da região como um lugar de pobreza e sofrimento. Além disso,

a seca é apresentada como uma entidade abstrata, por si só responsável pelo

quadro de pobreza na região, da qual advêm os “problemas do trabalhador rural, da

migração, da miséria e da ignorância”. Como exemplo desse caráter representativo

da seca, segue um fragmento de A bagaceira (1928), de José Américo de Almeida,

que descreve a chegada dos retirantes ao engenho Marzagão. O trecho é

elucidativo da condição do imigrante nordestino, cuja causa é determinada pela

seca, quando inicia evocando o seguinte cenário “Era o êxodo da seca de 1898”:

[...] esqueletos redivivos, com o aspecto terroso e o fedor das covas podres. Os fantasmas estropiados como que iam dançando, de tão trôpegos e trêmulos, num passo arrastado de quem leva as pernas, em vez de ser levados por elas [...]. Adelgaçados na magreira cômica, cresciam como se o vento os levantasse. E os braços afinados desciam-lhes aos joelhos, de mãos abanando. Vinham escoteiros. Menos os hidrópicos – doentes da alimentação tóxica – com os fardos das barrigas alarmantes. Não tinham sexo, nem idade, nem condição nenhuma. Eram os retirantes, nada mais. (ALMEIDA, 1928 apud CEREJA E MAGALHÃES, 2010, p. 147).

A transposição desse fragmento expõe a intenção dos autores do livro em ressaltar

a desumanização causada pela aridez da terra, a seca de 1898, que se torna

responsável pela condição aos quais os nordestinos são submetidos. Além de

construir a ideia de que se trata de uma realidade hostil, irrecuperável e intrínseca

ao Nordeste.

O romance de 30 vai sendo traçado, nesse volume, a partir de um regionalismo da

seca tido como um mal natural que aflige e prejudica, diante do qual as populações

nordestinas ficam passivas. Compondo esse discurso da seca, a subseção “A seca

na canção” cita alguns músicos e respectivas composições sobre a temática, tais

como Luís Gonzaga e José Dantas, João do Vale, Djavan. Além desses, a subseção

apresenta um trecho da canção “Segue o seco”, de Carlinhos Brown, cantada por

Marisa Monte no disco Verde Anil Amarelo Cor de Rosa e Carvão (conforme

fragmento da letra da canção nesse livro):

60

Segue o seco sem sacar que o caminho é seco, sem sacar que o espinho é seco, sem sacar que seco é o Ser Sol. Sem sacar que algum espinho seco secará. E a água que sacar será um tiro seco. E secará o seu destino seca. Ô chuva vem me dizer, se posso ir lá em cima pra derramar você. Ó chuva presta atenção, se o povo lá de cima vive na solidão. (BROWN apud CEREJA; MAGALHÂES, 2010, p.148)

A letra da canção de Carlinhos Brown redimensiona o ouvinte para um imaginário já

instituído socialmente em torno da seca do Nordeste. A melodia recorre a uma

produção em que é possível reconhecer sonoridades de instrumentos como

berimbau, sanfona, além de vozes que entoam cânticos regionalistas, acentuando

uma texturização sonora e um apelo regional que, inserido nesse contexto e

associada às ilustrações e às chamadas das abordagens, corroboram a preservação

do discurso da seca como verdade.

O capítulo representado na figura a seguir trata da literatura produzida pela escritora

Rachel de Queiroz como uma entre os quatro romancistas representativos do

romance de 30 do Nordeste. A escritora tem sua produção literária identificada pela

temática do flagelo da seca na região, como pode ser verificado na imagem abaixo:

61

Abertura do capítulo 1 sobre Raquel de Queiroz do livro Português: linguagens (2010), p. 144.

O discurso em torno da produção literária de Rachel de Queiroz, nesse volume, é

construído por elementos que fazem referência à seca. A imagem que abre o

capítulo retrata a caatinga, uma árvore ressequida, a sequidão no solo e, ao redor,

juntamente com uma casa de pau a pique com seu morador à porta – desfigurado –,

complementando, assim, a imagem que se quer desenhar do Nordeste e do

romance que o representa.

A partir das imagens verbais e não verbais, o livro endossa os estereótipos

construídos sobre o Nordeste, através dos quais se potencializam os traços de uma

desolação natural, como uma realidade irrecuperável. As fotografias e demais

ilustrações, ao longo da abordagem, apresentam os elementos constituintes da

62

formação discursiva que traz a ideia de identificação entre o Nordeste brasileiro e o

sofrimento maximizado pela natureza regional.

A abordagem que segue sobre Rachel de Queiroz inclui uma breve biografia da

escritora, desde o nascimento, em 1910 em Fortaleza, no Ceará, até a mudança

para o Rio de Janeiro, em 1917. O que é mencionado acerca da atuação profissional

da romancista diz respeito à atuação como professora primária e colaboradora do

jornal O Ceará. Porém, além deste, Rachel de Queiroz colaborou com outros jornais,

como Correio da Manhã, O Jornal, Diário da Tarde, Diário de Notícias, Última Hora,

Jornal do Comércio e O Estado de São Paulo e na revista O Cruzeiro, como cronista

exclusiva até 1975.

Aos vinte anos de idade, Rachel de Queiroz escreve o romance O Quinze, que só foi

publicado em 1930. Nesse período, no Rio de Janeiro, a romancista conheceu

integrantes do Partido Comunista Brasileiro, ao qual se filiou e ajudou a fundar a

sede cearense do partido. Porém, rompeu com a militância quando quiseram

censurar o seu livro João Miguel (1932).

De acordo como Antônio Fernando de Franceschi (2002), a escritora viveu de sua

profissão, publicando livros, crônicas e colaborando em jornais até 2003, ano de sua

morte. E, por mais de 30 anos, entre as décadas de 40 e 70, trabalhou como

tradutora. Além de não apresentar tais detalhes referentes à vida da escritora, as

únicas produções literárias que ganham uma breve resenha são O Quinze (1930),

João Miguel (1932), Caminho de pedras (1937) e As três Marias (1939).

O fragmento utilizado para a apresentação da produção literária de Rachel de

Queiroz é extraído de um único romance (O Quinze) que retrata apenas as

dificuldades encontradas por Chico Bento e sua família durante o processo de

retirada, do qual fazem parte o drama da fome, a secura da terra e o cansaço

extremo dos personagens retirantes.

A escritora faz parte, nesse livro didático, do conjunto de referências sobre a seca,

que além de ser pautado numa visão negativa, ainda restringe o Nordeste à região

sertaneja. Iná Elias de Castro (2001) salienta que há uma unificação de discursos

sobre a natureza semiárida e a seca. Essa unificação fundamenta um discurso

hegemônico sobre a região, em que se apresenta a dualidade natureza versus

63

sociedade. Nesse discurso, “a natureza semi-árida é o sujeito, e a sociedade, seu

objeto, instituindo a perspectiva de uma sociedade vitimada por seu meio”

(CASTRO, 2001, p. 105).

Os referentes verbais que afirmam ser a literatura regionalista uma representação

fiel da região: “Na década de 1930 [...] nossa prosa de ficção, com renovada força

criadora, nos punha em contato com um Brasil pouco conhecido”, a partir do qual

“desponta um Brasil multifacetado, apresentado em sua diversidade regional e

cultural” (CEREJA; MAGALHÃES, 2010, p. 142) inserem, assim como Rachel de

Queiroz, o escritor José Lins do Rego no âmbito de uma literatura regionalista do

romance de 30, sob o título: “José Lins do Rego: memória e ficção no engenho”.

Sobre a sua obra, os autores do livro didático afirmam:

A decadência da estrutura social e econômica dos latifúndios e engenhos da zona açucareira da Paraíba e de Pernambuco, bem como o início da modernização, com a chegada das usinas, encontra sua maior expressão literária na prosa de José Lins do Rego. (CEREJA; MAGALHÃES, 2010, p. 172).

Como já mencionado, a literatura regionalista, no referido manual didático, se

caracteriza por mostrar as peculiaridades e a identidade de uma região. No caso de

José Lins do Rego, os pontos mais salientados em sua obra são: referência a um

local, Paraíba e Pernambuco, a uma temática, o cangaço, e a um ciclo econômico, o

da cana-de-açúcar. A abordagem sobre o romancista a partir desses três aspectos,

além de serem apresentados em poucas linhas, e de modo superficial, ainda

restringe a produção literária de José Lins do Rego a essas três identificações.

A curta biografia se restringe a dados referentes ao ano e local de nascimento, bem

como informações de sua vida profissional, como a formação em Direito, na cidade

do Recife, em Pernambuco e a sua atuação como promotor na cidade de Maceió,

em Alagoas. Além dessas informações, vale salientar que José Lins foi herdeiro de

uma família de senhores de engenho. E, porque perdera sua mãe muito cedo, pouco

depois de nascer, passou a ser criado na casa grande do Engenho Corredor, por

seu avô materno José Lins Cavalcanti de Albuquerque, grande latifundiário da

região. Até aos nove anos, o romancista viveu no Engenho Corredor, que funcionava

sob o poder patriarcal do seu avô materno. E enquanto estudante de Direito,

64

escreve, a partir de 1920, para a revista Vida Moderna e, em seguida, para o Jornal

do Recife. Em 1923, conhece Gilberto Freyre, que passa a exercer grande influência

em sua formação. A partir de 1936, passou a viver na cidade do Rio de Janeiro até a

sua morte, em 1957.

Além da omissão de dados relevantes para a compreensão da produção literária de

José Lins do Rego, apenas os romances considerados principais pelos autores do

livro didático ganham destaque. A partir de uma concisa apresentação, é extraído

um fragmento do romance Fogo morto (1943), que narra a chegada do cangaceiro

Antônio Silvino e seu bando ao engenho do coronel Lula de Holanda. A invasão é

uma represália ao coronel Lula, ocasionado pela expulsão do Mestre Amaro,

informante dos cangaceiros. Representado dessa forma, fragmentada, a ideia que

perpassa é que a obra de José Lins se resume à temática do cangaço e ao ciclo da

cana-de-açúcar.

Nesse tipo de abordagem, fica claro que os autores do livro didático intencionam

reforçar a vertente literária do romance de 30 como regionalista, porém um

regionalismo supostamente essencialista, que apresenta um retrato do Nordeste.

Tais discursos, agregados às ilustrações e às imagens de filiação excludente,

formam uma representação que, ao ser veiculada e subsidiada pelo livro didático,

inclui-se na formação de imagem sobre a região que condiz ao que Albuquerque Jr.

(2009) chama de “discurso regionalista de inferioridade”. Trata-se de um modo de

dizer/mostrar a região que resulta do embate de forças entre um regionalismo de

superioridade e um regionalismo de inferioridade, numa dualidade evidenciada a

partir da delimitação geopolítica do Nordeste como região.

A escolha de temas que definem, nesse livro didático, a literatura regionalista sobre

o Nordeste também corroboram com o reforço do “discurso regionalista de

inferioridade”: “[...] o romance nordestino entrou numa fase nova, de denúncia das

agruras da seca e da migração, dos problemas do trabalhador rural, da miséria, da

ignorância” (CEREJA; MAGALHÃES, 2010, p. 147); “Abordando temas como a seca,

o coronelismo, o cangaço, a disputa por terras e o fanatismo religioso, entre outros,

essa produção representa um momento de maturidade de nossa ficção” (CEREJA;

MAGALHÃES, 2010, p. 168). As temáticas reforçam o discurso já instituído sobre o

65

Nordeste, correspondendo a um processo de perpetuação dos estereótipos, como

afirma Albuquerque Jr.:

[...] a escolha de elementos como o cangaço, o messianismo, o coronelismo, para temas definidores do Nordeste, se faz em meio a uma multiplicidade de outros fatos [...]. A escolha, porém, não é aleatória. Ela é dirigida por interesses em jogo [...]. A questão da identidade nacional põe, na ordem do dia, a questão das diferentes identidades regionais no país, que deviam ser destruídas para uns e reafirmadas para outros [...]. (ALBUQUERQUE JR., 2009, p. 61-62).

Esses elementos remetem a uma imagem pejorativa do Nordeste e impõem-se

como verdades pela repetição que gera uma homogeneidade nos modos de dizer e

mostrar a região, construindo uma identidade incontestável. Observamos, a partir

disso, como a construção de uma identidade regional para o Nordeste pode se

basear numa prática pejorativa, por se operar através da filiação a um só discurso,

um “discurso de regionalismo de inferioridade”, caracterizado pela regularidade com

que apresenta objeto e conceito discursivos: Nordeste e nordestino são

conceituados como a região da seca e como o povo sofredor e miserável. Baseados

nessa homogeneidade e unicidade, Cereja e Magalhães (2010) não só constroem

um romance de 30 regionalista, mas um regionalismo fundado num só discurso

identitário sobre o Nordeste que repete, assim, velhos clichês sobre a região.

2.3 UMA LITERATURA DE DENÚNCIA SOCIAL

Outro aspecto sobre o romance de 30 posto em relevância pelo livro didático

analisado é o caráter de denúncia e crítica social: “os modernistas da segunda

geração (1930-45) também se voltam para a realidade brasileira, mas agora com

uma intenção clara de denúncia social” (CEREJA; MAGALHÃES, 2010, p. 142); “O

romance brasileiro de então, encontrando no regionalismo uma de suas principais

vertentes, ganha matizes ideológicos e se transforma num importante instrumento

de análise e denúncia da realidade brasileira” (CEREJA; MAGALHÃES, 2010, p.

144). Nesse sentido, a expressão regional que retrata um Nordeste, a partir do

discurso sobre a seca, passa a ser visualizada também como um instrumento de

66

denúncia social. Essas duas tendências atribuídas ao romance de 30 não são

colocadas de modo complementar, mas como diferenças, em certa medida opostas,

que as distinguem ou em uma literatura regionalista, ou em uma literatura de

denúncia social.

Como já é sabido, a década de 1930 se caracteriza por um momento de revolução e

de alterações significativas na sociedade brasileira. Decorrente desse momento

revolucionário,

[...] houve nos anos 30 uma espécie de convívio íntimo entre a literatura e as ideologias políticas e religiosas. Isto, que antes era excepcional no Brasil, se generalizou naquela altura a ponto de haver polarização dos intelectuais nos casos mais definidos e explícitos, a saber, os que optavam pelo comunismo e o fascismo. (CANDIDO, 1987, p. 30-31).

As opções políticas e ideológicas estavam imperativamente postas na sociedade, e

quem assumia uma vida pública, como os escritores, obrigatoriamente, tinham que

defender ou posicionar-se de algum lado. Era o momento dos interesses pela

experiência da União Soviética, pelo anarquismo, marxismo, socialismo e pelos

movimentos operários. É desse momento que procede o posicionamento político e

ideológico acentuado dos romancistas de 1930, sobretudo de Jorge Amado e

Graciliano Ramos.

Assim como os outros aspectos em torno do romance de 30, nesse livro didático, a

análise realizada da literatura produzida por Ramos e Amado se faz de forma

superficial sem alcançar a complexidade em torno da temática e obliterando os fatos

da década de 1930 que foram determinantes para a tomada de posição desses

escritores.

O primeiro contato, proporcionado pelo livro didático, com o romance de 30 é

através de Vidas secas, de Graciliano Ramos: “Você vai tomar contato com a ficção

de 1930 por meio da leitura de um fragmento de uma das mais importantes obras da

época: Vidas secas (1938), de Graciliano Ramos” (CEREJA; MAGALHÃES, 2010, p

145). Trazer o escritor, nesse primeiro contato, não se faz de modo aleatório, visto

que os próprios autores ressaltam a postura ideológica do romancista, ao tratarem

de José Lins do Rego, quando afirmam: “José Lins não tem a envergadura

67

ideológica nem a capacidade de análise e de crítica social de Graciliano Ramos”

(CEREJA; MAGALHÃES, 2010, p. 172). Sem uma análise crítica do romance, o

fragmento serve apenas de base para uma atividade de perguntas e respostas

curtas, objetivas e que não levam à reflexão, nem sobre a obra, nem sobre a

literatura de denúncia social.

O fragmento extraído de Vidas secas faz parte do segundo capítulo, desse romance,

que tem por título “Fabiano”, e trata da chegada da família a uma fazenda

abandonada, cujo dono contrata Fabiano para o cargo de capataz, a estadia da

família é marcada pelas chuvas. A chuva que molhava a terra seca também

alimentava um monólogo interior no protagonista que o fazia devanear entre a

necessidade de ser homem, de ter dignidade e sobre a sua condição sub-humana.

No fragmento, há a recorrência da zoomorfização realizada por Graciliano Ramos,

que expressa a desumanização a que esses personagens são submetidos. A

permanente aproximação que o protagonista fazia entre o fato de ser um homem ou

um bicho era, seguramente, a fórmula mais verdadeira para representar uma

realidade cruel do Nordeste brasileiro:

[...] encolhia-se na presença dos brancos e julgava-se cabra. Olhou em torno, com receio de que, fora os meninos, alguém tivesse percebido a frase imprudente. Corrigiu-a, murmurando: - Você é um bicho, Fabiano [...] Aparecera como um bicho, entocara-se como um bicho [...]. (RAMOS, 1970, p. 53-55 apud CEREJA; MAGALHÃES, 2010, p. 145).

Mas ser bicho para Fabiano tinha um duplo sentido:

[...] - Você é um bicho, Fabiano. Isto para ele era motivo de orgulho. Sim senhor, um bicho, capaz de vencer dificuldades. Chegara naquela situação medonha - e ali estava, forte, até gordo, fumando o seu cigarro de palha [...]. (RAMOS, 1970, p. 53-55 apud CEREJA; MAGALHÃES, 2010, p. 145).

É importante salientar que há nesse trecho uma duplicidade de sentidos. Ser bicho

era também ser forte, resistir às intempéries do meio físico, da seca, às dificuldades

de sobrevivência. O sentido positivo de ser bicho era precisamente o de resistir ao

meio, um homem não resistiria. Mas também ser bicho era negativamente não ser

68

homem, com todos os seus atributos de dignidade. Vale dizer também que essas

inferências, apesar de importantes, não são realizadas pelo livro didático. O

fragmento é inserido como uma simples ilustração, destituída de toda a sua riqueza

literária e social, apresentando-se apenas para compor uma imagem essencialista

do Nordeste e do nordestino.

É a partir da própria estrutura desse romance que os principais problemas são

levantados. Seria precisamente o silêncio o elemento mais expressivo do livro,

segundo Candido (1984). Desse modo, não é uma leitura do fragmento que vai

garantir uma compreensão satisfatória da obra. De acordo com Ana Amélia M. C.

Melo (2005, p.379-380):

Graciliano preocupou-se neste livro em acentuar o estigma da seca através da mais absoluta concisão de palavras. Dentre os seus romances, este seria o que melhor retrataria a obsessão do escritor com a exatidão da linguagem, com a estrutura narrativa como forma de expressão de uma realidade. A escrita seria tão concisa e dura quanto à história descrita, quanto ao modo de ser das criaturas monossilábicas que transitam por esta obra.

Promover esse tipo de reflexão se torna impossível por meio de uma leitura

fragmentada. Além disso, a caracterização de uma literatura de denúncia social,

atribuída pelo livro didático a esse romance, não é justificada, nem discutida.

Verifica-se apenas uma associação ao problema da propriedade rural, presente na

quinta questão da lista de exercícios que visa fazer uma análise do fragmento

extraído do romance: “Que tipo de problema social, amplamente denunciado pelo

Movimento dos Sem-Terra (MST) no Brasil de hoje, se verifica na base da real

condição de Fabiano?” (CEREJA; MAGALHÃES, 2010, p. 146). Nessa questão,

transpõe-se um problema tão recorrente entre os romances sobre o Nordeste

brasileiro do período de 1930 para o Brasil de hoje, o que destitui do romance a sua

crítica social ligada a uma sociedade específica, com seus problemas particulares e

a uma geração que viveu “a atmosfera de fervor que os caracterizou no plano da

cultura, sem falar de outros” (CANDIDO, 1987, p. 27). Não significa, que não haja a

possibilidade de fazer associações, mas é preciso, antes disso, trazer à tona o

contexto e o sentido da obra de modo mais completo e específico.

69

O quarto capítulo da Unidade, intitulado “O Nordeste no romance de 30. Graciliano

Ramos, José Lins do Rego e Jorge Amado”, aborda a obra dos três autores citados

a partir do romance de 30, produzido por escritores do Nordeste. O primeiro é

Graciliano Ramos, inserido pelo subtítulo: “Graciliano Ramos: prosa nua”, que faz

referência a uma postura de denúncia. Considerado o maior romancista da sua

geração, “Graciliano Ramos (1892-1953) é o principal romancista da geração de

1930” (CEREJA; MAGALHÃES, 2010, p. 168). O que será enfocado numa rasa

biografia é seu posicionamento político e combatente, que abrange desde a função

como prefeito de Palmeira dos Índios, do estado da Alagoas, em 1927, passando

pela prisão, durante o governo Vargas, em 1936, e o ingresso no Partido Comunista

Brasileiro, em 1951. Mesmo em poucas linhas, a ênfase em ressaltar a postura

política do escritor corrobora a ideia que os autores do livro didático desejam

imprimir na produção literária desse escritor.

Seguindo a tendência de uma literatura de denúncia social, o romancista baiano

Jorge Amado é inserido sob o título: “Jorge Amado: lirismo e militância na Bahia”, e

sua obra é apresentada como uma produção de crítica e denúncia social. Assim

como Graciliano Ramos, imprime-se na apresentação da obra desse romancista

uma postura de engajamento político, de modo que, no pequeno texto da biografia,

mais da metade é dedicado às suas atividades políticas e militantes:

Politicamente comprometido com as ideias socialistas, participou da Aliança Nacional Libertadora, movimento de frente popular, e foi preso em 1936 [...]. De volta ao Brasil, em 1945, foi eleito deputado federal, mas teve cassado seu mandato político [...]. A maior parte das obras do escritor, principalmente as primeiras que publicou, apresenta preocupação político-social, denunciando, num tom direto, lírico e participante, a miséria e a opressão do trabalhador rural e das classes populares. (CEREJA; MAGALHÃES, 2010, p. 177).

Esse posicionamento político-social refletido em suas obras se torna uma tentativa

dos autores do livro didático em aproximar os dois romancistas citados em uma

única linha da vertente do romance de 30: a literatura de denúncia social. Segundo

Eduardo de Assis Duarte (2005, p. 32),

Jorge Amado e Graciliano Ramos expõem dois casos agudos de aproximação entre literatura e socialismo. Ambos foram, cada um à

70

sua maneira, da consagração pública à prisão e da celebração à censura partidária.

Certamente, trata-se de dois escritores cuja literatura revoluciona a conjuntura

literária no Nordeste da década de 1930. Verifica-se, a partir dessas atribuições, que

se demarca uma divisão que coloca os quatro autores eleitos para representar o

romance de 30 no Nordeste em duas tendências, da literatura regionalista e da

literatura de denúncia e crítica social.

Todavia, não há expressamente no livro didático indicações diretas dessa divisão.

Basta uma leitura, ainda que desatenta, para verificar que se delimita um lugar para

Rachel de Queiroz e José Lins do Rego e outro para Graciliano Ramos e Jorge

Amado. Esses indícios podem ser verificados nos subtítulos que inserem o estudo

dos autores: “Rachel de Queiroz: a saga da seca”; “José Lins do Rego: memória e

ficção no engenho” (CEREJA; MAGALHÃES, 2010, p. 148; 172). Tais expressões

remetem a um lugar e retratam uma região particular, com problemas regionais

específicos e esse perfil é constatado na própria abordagem sobre os autores: “Para

escrever O Quinze, Rachel de Queiroz aproveitou as lembranças da grande seca

que se abateu sobre o Nordeste em 1915” (CEREJA E MAGALHÃES, 2010, p. 149).

Sobre José Lins do Rego, os autores afirmam:

Muito da obra do escritor concilia ficção com as recordações dos tempos de menino e adolescente, quando vivia na fazenda do avô paterno [...]. Em sua primeira obra, Menino de engenho, José Lins do Rego pretendia escrever a biografia de seu avô José Paulino, uma das mais representativas figuras da tradição fundamentada no sistema patriarcalista, escravocrata e latifundiário. (CEREJA; MAGALHÃES, 2010, p. 172-173).

A respeito da produção literária de José Lins do Rego e de Rachel de Queiroz, o

livro didático ressalta a recorrência a um passado para construir uma memória, mas

não especifica que desejo de continuação se deseja imprimir. As abordagens

apenas delegam o lugar da literatura regionalista para esses dois romancistas, sem

abrir margem para uma leitura a partir de outro horizonte.

71

As exposições levantadas por Albuquerque Jr. (2009) afirmam que as obras de

Rachel de Queiroz e José Lins do Rego são fundamentadas a partir de um apego ao

passado, não por motivos puramente poéticos, mas pela busca da preservação de

uma tendência tradicionalista, que “[...] tendem a formar uma visão lírica da

escravidão, ocultando o seu aspecto cruento [...]” (ALBUQUERQUE, 2009, p. 141).

A condição de ambos diz muito sobre o desejo de perpetuação: José Lins, “Filho de

senhor de engenho” (ALBUQUERQUE JR., 2009, p. 148) e Rachel de Queiroz, “filha

de famílias tradicionais dos municípios de Quixadá e Beberibe” (ALBUQUERQUE

JR., 2009, p. 160). Esses romancistas apresentam uma nostalgia dos tempos dos

senhores de engenho, numa tentativa de continuação, de perpetuação do poder e,

assim, tornam-se porta-vozes de um desejo que concorre com os interesses da

parte dominante da sociedade nordestina, que busca manter a permanência da

estrutura oligárquica e que garante acúmulo de riqueza e poder para a elite da

região.

Desse modo, a literatura regionalista, produzida por escritores do Nordeste, não

pretende apenas “apresentar um quadro fiel da região nordestina”, como afirmam

Cereja e Magalhães (2010), mas se torna uma construção intelectual que contribui

com as elites conservadoras e se estabelece como uma forma de manutenção

destas no poder, pois,

[...] tende a valorizar essa sociedade totalmente hierarquizada, em que cada um “ocupa seu devido lugar” e as diferenças sociais são escamoteadas pelos mecanismos paternalistas, de relações diretas, pessoais, por isto vista como mais “quentes”, atravessadas pelo sentimento, mais do que pela racionalidade, sem lugar para a emergência da instância pública e das ideologias políticas racionalizadas, vistas como estabelecedoras da luta entre as classes. (ALBUQUERQUE JR., 2009, p. 140-141; aspas do autor).

De outro lado, Cereja e Magalhães (2010) situam Graciliano Ramos e Jorge Amado

como escritores de uma literatura de denúncia social. Os autores do livro didático

reforçam as posturas políticas de ambos e a influência desse perfil nas obras dos

escritores. Inseridos pelos subtítulos “Graciliano Ramos: a prosa nua” e “Jorge

Amado: lirismo e militância na Bahia” (CEREJA; MAGALHÃES, 2010, p. 168; 177),

72

os dois romancistas protagonizam a literatura de denúncia social, sendo visualizados

a partir desse único ângulo.

Albuquerque Jr. (2009) também considera que há lugares divergentes de fala entre

os quatro romancistas, mas não os fecha em classificações rígidas. Para o autor, é

por meio de Graciliano Ramos e Jorge Amado que se dá

[...] a “descoberta” de outro Nordeste. Um Nordeste que olhava sem saudade para a casa-grande, que sentia o mesmo desconforto com o presente, mas que também virava as costas para o passado, para olhar em direção ao futuro. (ALBUQUERQUE JR., 2009, p. 207).

Não se trata de uma postura de oposição ao chamado movimento regionalista que

ocorreu em Recife, e em defesa do modernismo paulista, também considerado um

movimento financiado pelas elites paulistas e em benefício delas. Ramos e Amado

expõem, em suas narrativas, as misérias e injustiças sociais produzidas pelo Estado

brasileiro, sempre apoiando as elites nacionais. De acordo com Albuquerque Jr.

(2009), os dois escritores iniciam uma “inversão da imagem e do texto tradicional do

Nordeste”:

Graciliano enfatiza o indivíduo e sua perda de identidade diante da nova sociabilidade burguesa, dissecando almas singulares, enquanto Amado constrói tipos que pretendem resumir coletividades, que pretendem ser emblemas de grupos ou classes sociais, e ambos partem da premissa da necessidade de uma reterritorialização revolucionária para o país. (ALBUQUERQUE JR., 2009, p. 234).

As obras de tais escritores apresentam uma postura revolucionária, que não condiz

com o desejo de perpetuação do passado, mas com uma ruptura para o

estabelecimento de uma nova ordem social. A exemplo do romance de Jorge Amado

Seara vermelha, publicado em 1946, que de acordo com Márcia Rios (2010) propõe-

se a levar aos leitores o conhecimento de uma região abandonada pelo Estado,

dominada pelos coronéis, e também lhes propõe agir, fazer a revolução.

Talvez, essa ruptura se refira ao que o livro didático caracteriza como uma literatura

de denúncia social, mas ao fazê-lo, Cereja e Magalhães (2010) destituem toda a

potência crítica e social das narrativas ficcionais de Amado e Ramos. As

73

abordagens, no livro didático, se resumem a afirmar que os dois escritores eram

militantes políticos e denunciavam as injustiças na sociedade, sem maiores

esclarecimentos.

Retomando a noção da transposição didática que se constitui como o processo de

adaptação do saber científico para o saber escolar, podemos compreender que

algumas transformações como: segmentações, cortes, simplificações e rotulações

próprios do procedimento da didatização acaba por simplificar demasiadamente os

conteúdos. É a partir desse processo que o livro de Cereja e Magalhães (2010)

classifica o romance de 30, produzido por escritores do Nordeste, em

caracterizações bem limítrofes. As generalizações acabam por incorrer em

equívocos, pois, na medida em que torna o assunto mais compreensível, torna-o

também mais simplificado e, por vezes, incompleto.

Convém relembrar que o romance de 30, no Nordeste, é uma vertente que se

encontra numa dinâmica e complexa transição, reavaliação e que envolve

descontinuidades, rupturas e transformações críticas. Considerando esse aspecto,

torna-se incoerente fixar limites rígidos aos textos literários. As duas tendências

ressaltadas nas abordagens do assunto são muito tênues, de forma que não dá para

enquadrar as interpretações de tais obras a partir de duas caracterizações bem

restritas. Jorge Amado e Graciliano Ramos fizeram muito mais que uma literatura de

denúncia social; e José Lins do Rego e Rachel de Queiroz não só fizeram literatura

regionalista. Antes de fechar as obras literárias em interpretações rígidas, é

necessário abrir possibilidades para novas leituras.

O processo da didatização incorre numa seleção dos aspectos inerentes aos

assuntos a serem tratados, e essa eleição é realizada pelos autores que incluem ou

excluem determinados pontos. No caso da coleção Português: linguagens, o que

sobressai acerca do romance de 30 é que toda produção literária da década de

1930, assinada por escritores do Nordeste, se encaixava em duas linhas bem

demarcadas: ou eram regionalistas ou eram de denúncia social. Quanto ao

movimento modernista, predomina a ideia de total aceitação pelos intelectuais

nordestinos e que só havia Rachel de Queiroz, José Lins do Rego, Graciliano

Ramos e Jorge Amado como escritores representantes dessa vertente literária no

Nordeste.

74

Ao contrário disso, a linha divisória entre uma literatura regionalista e de

engajamento político é muito tênue, não podendo incidir em uma demarcação rígida.

O movimento modernista foi motivo de dissensões em Pernambuco, desde os anos

1920, havendo intelectuais do Nordeste que defendiam as aspirações do movimento

modernista, como Joaquim Inojosa, e outros, na defesa de uma tradição passadista,

como Gilberto Freyre. Quanto aos romancistas, de certo que não podemos

considerar apenas esses quatro escritores pois, como nas palavras de Jorge

Amado, ao se referir ao grupo de romancistas do Nordeste “[...] não éramos cinco, e

sim trinta ou quarenta!” (AMADO, 1985 apud RAILLARD, 1990, p. 67).

A partir do exposto, torna-se pertinente afirmar que aspectos fundamentais acerca

das abordagens sobre o romance de 30, nesse livro didático, precisam ser

revisitados, de modo que tais reducionismos, rotulações, segmentações e cortes

sejam melhor avaliados. Esse modo de representar o romance de 30, no Nordeste,

condiz com uma caracterização essencialista e há muito tempo ultrapassada. Faz-se

necessário trazer à cena as dissensões, as complexidades em torno da vertente

literária em questão, bem como os movimentos culturais, artísticos, políticos e

literários da década de 1930, imprescindíveis para uma compreensão mais

satisfatória dessa literatura.

75

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Para encerrar, cabe agora, retomar a proposta inicial deste trabalho que se ocupou

de analisar, na coleção Português: linguagens, as abordagens sobre o romance de

30, produzido por escritores do Nordeste, com a finalidade de entender como ainda

são reproduzidas imagens carregadas de estereótipos sobre essa região do Brasil.

Esta análise nos levou a compreender que a recorrência à temática da seca

confirma a associação dos discursos presentes na abordagem a um jogo de forças

que pertence ao que Albuquerque Jr. (2009) chama de lógica da vitimização, a partir

do qual a culpa é sempre posta no outro. Nesse jogo, o outro passa a ser entendido

como a própria natureza, situação inevitável e que retira do poder público qualquer

responsabilidade de intervenção.

Como nos situa Regina Dalcastagnè (2012), torna-se difícil pensar a representação

da literatura brasileira sem movimentar um conjunto de problemas que se situam a

partir do estabelecimento das hierarquias, por vezes cruéis e quase sempre

excludentes. A partir disso, podemos considerar as abordagens de Cereja e

Magalhães (2010) como parte desse conjunto de problemas, principalmente, no que

diz respeito à arbitrária centralidade arrogada ao movimento paulista de 1922, em

detrimento da vertente literária dos anos 1930, produzido por escritores do Nordeste.

Assim como são delegados os devidos lugares para cada uma dessas produções

literárias dentro das abordagens, são concedidas as legitimidades de fala. Nesse

sentido, o romance de 30 não tem voz ativa, porque é dependente do modernismo

paulista, bem como não tem legitimidade, porque corresponde a um lugar pobre e,

portanto, destituído de condições intelectuais.

Os autores do livro didático recorrem a uma construção discursiva que configura o

Nordeste como um espaço de miséria, seca, injustiça social, fanatismo, folclore, sem

abrir margem para mudança. Tal discurso cria um regionalismo que anula as

alteridades, em prol de uma identidade única. Esse olhar, por parte do livro didático,

para essa vertente literária e para o Nordeste, protagoniza alguns problemas, dentre

os quais: primeiro, trata-se de um instrumento educacional dotado de legitimidade;

76

segundo, é destinado a jovens em processo de formação da visão de mundo; e,

terceiro, esse olhar produz, de modo tão dissimulado, quanto cruel, categorias

identitárias que reforçam as desigualdades sociais.

A partir da análise do conjunto dos capítulos de literatura desse volume didático, na

primeira seção deste estudo, foi possível verificar que o eixo metodológico que

estrutura as abordagens dos conteúdos é o da historiografia literária tradicional, cujo

foco contempla apenas os considerados grandes escritores da literatura. A partir

dessa constatação, foi possível concluir que um dos problemas relacionados à

literatura ensinada e à recorrência dessas seleções/exclusões arbitrárias diz respeito

à cultura contemplada pela escola – ao seu ideal de produção intelectual, artístico,

social e estético, proporcionando a produção, manutenção e reforço de uma

identidade hegemônica; segundo, à construção histórica, que se constitui como

resultado de um contínuo processo de formação, tramado ao longo do tempo,

recebendo múltiplas influências, sobretudo, das classes dominantes; e, terceiro, ao

caráter elitista da escolarização, que mesmo após o processo de democratização,

iniciado no começo dos anos de 1970, nota-se ainda a preeminência de valores e

ideais hegemônicos.

Através da análise dos textos verbais e não verbais referentes ao tratamento da

vertente literária dos anos de 1930, no Nordeste, na segunda seção deste estudo, foi

possível identificar a repetição de discursos que pertencem a uma formação que

condiz com o “regionalismo de inferioridade”. Assim, pudemos perceber que o livro

didático não considera as diversidades do Nordeste, o representa em estágio de

atraso e inércia, como se essa região e modernização fossem absolutamente

antagônicas. Torna-se perceptível que a imagem da região nordestina apresentada

no livro didático estudado não abrange as diferentes facetas integrantes do referido

espaço regional. Essa situação reforça as numerosas formas através das quais o

preconceito aflora no sistema educacional. Segundo Jurjo Torres Santomé (1998,

p.131):

Quando analisamos detalhadamente os conteúdos que são objetos de atenção explícita na maioria das instituições escolares e nas propostas curriculares, chama a nossa atenção a presença abusiva das denominadas culturas hegemônicas. As culturas ou as vozes dos grupos sociais minoritários e/ou marginalizados, que não dispõe de estruturas importantes de poder, costumam ser silenciadas, ou

77

mesmo estereotipadas e deformadas para anular suas possibilidades de reação.

A perpetuação desse discurso pelo livro didático tende a reforçar o privilégio dos

grupos sociais dominantes. De acordo com Claude Grignon (2008, p.180), “a ação

específica da escola contribui diretamente para o reforço das características

uniformes e uniformizantes da cultura dominante, e ao enfraquecimento correlativo

dos princípios de diversificação das culturas populares”.

Além disso, foi possível verificar também que o romance de 30, do Nordeste,

apresentado pela ótica de Cereja e Magalhães (2010), pertence ao velho modo de

historicizar, preso às imagens e enunciados de um passado tal como foi

naturalizado. Ao contrário disso,

A história deve deixar de ser apenas um discurso sobre o passado ou sobre o futuro, para se debruçar sobre o presente, descobrindo este presente como multiplicidade espaço-temporal, pensando os vários passados que se encontram em nós, e os vários futuros que se pode construir. (ALBUQUERQUE JR., 2009, p. 347).

Ademais, as abordagens em torno do romance de 30 nesse livro didático são

apoiadas no separatismo regional e no preconceito social. Cereja e Magalhães

(2010) perpetuam esse discurso, ao reproduzirem velhos clichês sobre os escritores

representantes desse período, ao conduzirem a referida vertente literária como uma

literatura dependente de um movimento sulista e, sobretudo, ao representarem o

regionalismo nordestino pelo viés da inferioridade.

Faz-se necessário questionar, problematizar e desnaturalizar tal construção

imagética-cultural mantida por mecanismos de dominação. Todavia, é preciso

pensar a partir de novos paradigmas, não mais fundamentados em moldes

hegemônicos e sim nos vários fatores que estão nas entrelinhas e a partir de outras

participações sociais. Faz-se necessário também reavaliar os estudos sobre o

romance de 30, principalmente, a partir dos parâmetros que o coloca como

dependente do modernismo paulista 1922. É preciso revisar, recolocar e trazer à

78

cena, para que sejam desfeitas todas as contradições intrínsecas a esse jogo de

forças.

79

REFERÊNCIAS

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