UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DEPARTAMENTO DE … · A Logun Edé, meu eledá, “sabido, puxou...
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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA
DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS- CAMPUS I
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDO DE LINGUAGENS
ANTONIO CARLOS MONTEIRO TEIXEIRA SOBRINHO
UM POVO NEGROMESTIÇO OU O QUE HÁ DE SINGULAR NA
MESTIÇAGEM AMADIANA
Salvador
2012
ANTONIO CARLOS MONTEIRO TEIXEIRA SOBRINHO
UM POVO NEGROMESTIÇO OU O QUE HÁ DE SINGULAR NA
MESTIÇAGEM AMADIANA
Salvador
2012
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Estudo de
Linguagens, Leitura, Literatura e Identidades, do Departamento de
Ciências Humanas, Campus I, da Universidade do Estado da Bahia,
como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre.
Orientador: Prof. Dr. Carlos Augusto Magalhães
FICHA CATALOGRÁFICA
Biblioteca Central da UNEB
Teixeira Sobrinho, Antonio Carlos Monteiro
Um povo negromestiço ou o que há de singular na mestiçagem amadiana / Antonio Carlos
Monteiro Teixeira Sobrinho . – Salvador, 2012.
285f.
Orientador : Prof. Dr. Carlos Augusto Magalhães.
Dissertação (Mestrado) – Universidade do Estado da Bahia. Departamento de Ciências
Humanas . Campus I. 2012.
Contém referências .
1. Miscigenação - Brasil. 2. Mestiçagem - Brasil. 3. Negros - Identidade racial. 4. Brasil -
Relações raciais. I. Magalhães, Carlos Augusto. II. Universidade do Estado da Bahia,
Departamento de Ciências Humanas.
CDD: 305.800981
ANTONIO CARLOS MONTEIRO TEIXEIRA SOBRINHO
UM POVO NEGROMESTIÇO OU O QUE HÁ DE SINGULAR NA
MESTIÇAGEM AMADIANA
BANCA EXAMINADORA
Prof. Dr. Carlos Augusto Magalhães (orientador)
Universidade do Estado da Bahia
Profª. Drª. Lícia Soares de Souza
Universidade do Estado da Bahia
___________________________________________________________________________
Prof. Dr. Eduardo de Assis Duarte
Universidade Federal de Minas Gerais
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em
Estudo de Linguagens, Linha 1 – Leitura, Literatura e
Identidades – do Departamento de Ciências Humanas,
Campus I, da Universidade do Estado da Bahia, como
requisito parcial para obtenção do grau de Mestre.
Orientador: Prof. Dr. Carlos Augusto Magalhães
Aos meus pais, Célia (Iyá mi axexe) e Eduardo (Babá mi axexe);
À minha avó, Didi;
A Nerinha, igualmente mãe;
A Bi, afilhada.
Ao silêncio de todas as madrugadas
A Jorge Amado
AGRADECIMENTOS
A Olorum Olodumare,
pela vida e pela família,
por ontem, por hoje e por amanhã;
Aos ancestrais, Babá Olokotun ati Babá Alapalá awon Ilê Asipá,
pela alegria, pela proteção e pelas bênçãos,
por sempre me responderem que eu nunca estaria só;
A Exu,
pelas certezas e
por todos os caminhos abertos;
A Logun Edé, meu eledá,
“sabido, puxou aos pais”,
pelo abebê e pelo ofá;
A Xangô,
pelo oxê e pelo axé;
pelos porquês que só Ele sabe
A Oxum,
pela contramão em Porto Alegre,
“quem tem santo é quem entende”
A todos os Orixás
Ao Ilê Asipá
Em determinado momento da fase de conclusão da graduação, agradeci a meus pais de
forma simples, porém muito sincera e extremamente significativa. Disse-lhes, e registrei por
escrito, que lhes era muito grato por todo o esforço que empreenderam para que eu pudesse
estudar em uma das melhores escolas de Salvador, o Colégio Antônio Vieira. Disse-lhes ainda
que era igualmente muito grato por nunca me terem pedido que fizesse este ou aquele curso,
que fosse médico ou advogado. Sempre que possível renovarei estes agradecimentos; afinal,
não fosse por eles, meus pais, onde eu estaria agora? Mas, dessa vez, quero ser um pouco
mais específico: Ai, se vocês adivinhassem e eu soubesse dizer o quanto são importantes nesta
minha caminhada, nesta minha vida... Agradeço, minha mãe, por um afago que a senhora me
fez em um momento difícil, de quase desistência, mas que me pôs novamente em pé e aqui
estou, tantos anos depois e ainda em pé. Agradeço, meu pai, por um “não” que o senhor me
deu, assim mesmo, sem exclamação alguma, sem qualquer alteração na voz ou na face, em
um momento nosso difícil, e que me fez entender o porquê de tanto esforço para que eu
estudasse. Tudo que eu vier a ser, é pela senhora, minha mãe. Tudo o que eu vier a ser, é pelo
senhor, meu pai. Valeu a pena, minha mãe. Valeu a pena, meu pai. Muito obrigado. Eu os
amo.
Que problemas existem e que são vários, não há pessoa nesse mundo que duvide.
Logo cedo todos nós aprendemos esta nossa lei. Aprendemos também, e isso é o mais
importante, que não há problema nesse mundo que não se supere. Como todo mundo, aprendi
essas duas verdades com a vivência de cada dia. Mas, além destes dois ensinamentos, aprendi
também que a melhor forma de não capitular é rir dos problemas que surgem, independente
de quais sejam. E isso, eu aprendi com minha avó, Didi. Não conheço quem tenha tido mais
motivos de tristeza nesta vida, mas também não conheço quem tenha o riso e a alegria mais
fáceis, quem tenha mais vontade de viver. Minha avó, muito obrigado pelo exemplo de vida
que a senhora oferece aos filhos, netos, bisnetos.
E o que dizer sobre aquelas pessoas que, sem vínculo de sangue nenhum com a gente,
sem nos ter gestado por meses, se transformam também em nossas mães? Que tipo de relação
é essa que escapa, que foge à compreensão exata das coisas, mas que, por certo, o orun
explica e o coração, ai, o coração sente? Quantos mundos outros, além daquele pequenininho
que é o meu, eu pude conhecer e vivenciar somente porque você estava ao meu lado, Nere?
Quantas outras verdades eu ouvi e aprendi porque só você as saberia dizer, porquê só você as
tinha vivido? Olha, Néu, olha o que eu escrevo porque também é por você que eu posso
escrever. Que há de importar o sangue, Néu? Muito obrigado, é seu filho quem agradece.
Sophia, Duda e Bi; prima, irmã e afilhada, uma escadinha. Ai dos momentos mais
tristes e exaustivos, daqueles ante os quais nada resta a fazer senão desistir, esquecer, deitar,
dormir... ai desses momentos se não fosse o riso das crianças. “É a vida, é bonita e é bonita”,
canta Gonzaguinha enquanto as três me abraçam, me livram do cansaço e me convidam a
viver. Eu também Gonzaguinha, eu também “fico com a pureza da resposta das crianças...”.
Muito obrigado, minhas princesas.
“Feitos um pro outro / feitos pra durar / uma luz que não produz... sombra”. Lembra
do começo, lá do beijo sem palavras, nem um “oi”, sequer? Das artimanhas do destino para
que nos conhecêssemos? E já se vão quase seis anos, Dadai. Quanto já vivemos... quantos
momentos difíceis já superamos... e aqui estamos. E o que nos há de separar? Estamos apenas
no começo, lembra? Sempre no começo. E quem diria que um dia eu lhe agradeceria
justamente pela... paciência? Sim! pela paciência por esses últimos dois anos e por, mesmo
quando eu estava longe, lá no outro canto deste país, não ter deixado de estar ao meu lado. É
muito bom ter você em minha vida. Muito obrigado, amor.
Quem me conhece de perto sabe, a despeito do meu ar expansivo, que não sou de
confiar nas pessoas de imediato, que há certa demora até que eu acredite de verdade em
alguém – raras são as vezes em que chego deveras a levar fé. Não que desconfie de tudo e de
todos, mas pelo simples zelo que tenho pela palavra amizade. Não sou do tipo que se pretende
cercado de vinte, trinta pessoas sem que lhes possa confiar um segredo, ou um pedido de
ajuda quando preciso for. Prefiro andar desacompanhado por essas ruas, mas com a certeza de
não estar sozinho na vida, de ter sempre alguém para me sustentar quando minhas duas pernas
falharem. Assim, que palavras há para dizer dos amigos que tenho, com muito orgulho e
amor, há mais de vinte, quinze e dez anos? Esses pastores das noites da Bahia...ai... quantas
cervejas lhes devo, por estes dois anos que quase não bebi? Quantas noites se prolongaram
para além da hora devida porque faltamos ao compromisso de pastoreá-las ao descanso
diurno? Nessa vida, ensina Jorge Amado,“só se vive o tempo da amizade”. De resto, pouco
importam os sucessos, as fortunas, as capas de revista, os prêmios... Que há de ser tudo isso
sem amizade? Sem aquelas pessoas que riem conosco, quando rimos; que choram conosco,
quando choramos; que estão do nosso lado quando nós mesmos não estamos? Antenor, Davi,
Kpenga, Salmão, Ivan, Leonardo, Leopoldo, Zenon, Tiago, Quézia e Velame: vocês não
sabem o quanto eu agradeço. Muito obrigado, meus irmãos.
Prof. Ms. Gildeci de Oliveira Leite, meu amigo, meu irmão de santo, quem tanta vezes
me estendeu a mão, me mostrou caminhos, me deu força e coragem quando esta dissertação
era apenas um projeto, a quem eu tanto devo – Muito obrigado meu irmão, axé!
José Félix dos Santos, Otun Alagbá n‟Ilê Asipá, Mãe Nídia de Iemanjá e Mãe Cida de
Nanã, são tantos os agradecimentos que lhes devo. Gostaria que pudessem saber o que sinto
quando adentro o Ilê Asipá, salvo os orixás, e me ponho a escutar as histórias que circulam, a
conversar as conversas que surgem. Sensação indescritível de um bem que se faz à alma, ao
corpo, sensação de estar em casa. Muito obrigado por tudo, axé!
A Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), que me
concedeu uma bolsa fundamental para as leituras que desenvolvi. Muito obrigado.
Ao meu orientador, Prof. Dr. Carlos Augusto Magalhães, de comentários sempre tão
precisos, de ideias sempre tão certeiras, de indicações sempre tão necessárias. Que seria deste
Mestrado, sem sua orientação? Por acaso eu já teria ultrapassado os limites sufocantes do
primeiro parágrafo? Muito obrigado, Carlos, de coração.
Ao Prof. Dr. João Antônio de Santana Neto e à Prof. Drª Rosa Helena Blanco
Machado, dos quais fui bolsista em meus tempos de graduação e os quais me ensinaram a
fazer pesquisa. Tenham a certeza de que em qualquer das palavras deste texto – e são tantas,
eu bem sei – vocês estão presentes. E continuarão, quaisquer que sejam as palavras que eu
venha a escrever em outras pesquisas, em outros projetos. Muito obrigado, professores.
Da mesma forma, agradeço enormemente ao Prof. Dr. Décio Torres Cruz que aceitou
me orientar em minha primeira investida na pesquisa literária. Que me ensinou algo que
levarei sempre comigo: “O limite daquilo que você pode dizer sobre o texto, é o limite que o
texto lhe permite dizer”. Às vezes, para quem estuda literatura, o óbvio precisa ser ensinado.
Muito obrigado, professor.
À Prof. Drª Verbena Maria Rocha Cordeiro por ter me concedido a oportunidade, via
PROCAD, de uma bolsa para cumprir Mestrado-Sanduíche na Pontifícia Universidade
Católica do Rio Grande do Sul, estágio que se mostrou essencial a esta pesquisa, tantas as
informações que lá obtive. Muito obrigado, professora.
Agradeço imensamente também à Prof. Drª Ana Maria Lisboa de Mello pela recepção
e pelo cuidado que teve comigo e pela orientação em terras gaúchas. Muito obrigado,
professora.
Agradeço também à Secretaria da Pós-graduação em Letras da Pontifícia Universidade
Católica do Rio Grande do Sul, no nome de Mara Rejane Martins Nascimento, sempre tão
prestativa. Aproveito o mesmo parágrafo e agradeço ao pessoal responsável pelo serviço de
comutação da Biblioteca Central da PUCRS, que me disponibilizou textos quase impossíveis
de conseguir: Diego da Silva Machado, Eduardo Bernicker Costa e Joyce Ferrari Pinheiro.
Muito obrigado a todos.
Ao pessoal que me acolheu na HousingRS, em especial Isaac Verdú, Arhur Chiochetta
Licks, Anderson Siqueira Pereira, Eduardo Henrique Spies e Eduardo Weber Carlos. Quase
me sinto em casa, na minha Bahia: faltavam, porém, a Baía de Todos os Santos e o azeite de
dendê – nada pode ser perfeito. Muito obrigado.
Agradeço aos colegas de PPGEL que viram este projeto ainda como um embrião e o
ajudaram a crescer.
Agradeço aos colegas de graduação, dos quais sempre guardo ótimas lembranças.
À secretaria do PPGEL. O que seria possível neste programa sem Camila e Danilo?
Quem responderia tantas vezes – e com tanta paciência – às minhas dúvidas a respeito dos
próximos passos burocráticos a serem dados? Vocês são parte fundamental disso tudo. Muito
obrigado.
A Lourdes de Fátima, ex-professora de Literatura do Colégio Antônio Vieira e ex-
colega da Academia Vieirense de Letras. As “quintas de magia”, quando nos dedicávamos à
literatura e não às enfadonhas regras das Escolas Literárias, se perpetuam ainda hoje, todos os
dias. Muito obrigado, professora.
Aos meus alunos do componente curricular Literatura Brasileira no Século XX,
disciplina que ministrei no Curso de Letras Vernáculas da UNEB – CAMPUS I – em função
do Estágio Tirocínio Docente. Guardarei sempre as lembranças. Em todas as turmas que
venha a lecionar, vocês estarão presentes.
Por fim, um agradecimento especial a todos aqueles que foram meus alunos nos quatro
anos em que fui professor de literatura do Cursinho Universidade Para Todos. Se este projeto
foi pensado, inscrito na disputa por uma vaga no Mestrado, aprovado e agora segue para
defesa, deve-se àqueles meus estudantes que se emocionavam com Pedro Archanjo Ojuobá,
que se viam em Tenda dos milagres. Não fosse por eles, nem sei o que estaria hoje estudando.
Muito obrigado!
Muito obrigado a todos.
Axé!
Nestes meus oitenta e... quase oitenta e dois
anos de vida, a maioria deles dedicada à luta
contra o racismo, eu aprendi que só há uma
maneira possível de terminar com isso. Não é
uma maneira fácil. É na mistura de sangue. Na
mistura de raças. Na mistura de credos, na
mistura de culturas que um dia nós chegaremos.
Disso eu estou inteiramente convencido. É por
isso que eu dou uma importância tão grande ao
que se passa no Brasil como mestiçagem, como
mistura de raças.
Jorge Amado.
RESUMO
A pesquisa que estas páginas encerram aborda a temática da mestiçagem na obra amadiana
para compreender quais sentidos reclama. Isto é, investiga-se o que, de fato, vem a significar a
proposta literária do romancista Jorge Amado acerca da representação de um país mestiço. A
hipótese principal que guia esta investigação concerne às diferenças existentes entre o que
Amado evoca, propõe e representa como um ethos mestiço e as evocações, propostas e
representações pertinentes à perspectiva do antropólogo pernambucano Gilberto Freyre.
Assim, destacando-se o protagonismo negro na literatura de Amado, rejeita-se a opção pelo
luso-tropical gilbertiano e propõe-se que a ficcionalização da mestiçagem pelo romancista
baiano comporta em si uma negromestiçagem. Para atestar a funcionalidade desta designação,
busca-se investigar os lugares do negro na prosa amadiana e a quais emanações de sentido
estes lugares estão associados.
Palavras-chave: Jorge Amado, mestiçagem, negro, candomblé, Gilberto Freyre
ABSTRACT
This research addresses the theme of miscegenation at Amado‟s novels to understand which
way it relates. It investigates what Jorge Amado‟s writing proposal on the representation of a
mixed country really means. The main hypothesis guides into the differences between what
Amado evokes, proposes and represents as a mixed ethos and evocations, proposals and
representations to the perspectives of the anthropologist Gilberto Freyre. Thus, highlighting
the protagonism of black people at Amado‟s work rejects the option by Freyre Portuguse-
tropical‟s thesis and proposes that fictional miscegenation by Amado bears a
“blackmiscigenation”. To demonstrate this designation, we seek the places of black people at
Amado‟s prose and which emanations are associated with these places.
Keywords: Jorge Amado, miscegenation, black people, Candomble, Gilberto Freyre
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 14
PARTE I – DOS PERCURSOS 25
1 UM CONCEITO PARA UM PAÍS 26
1.1 PREÂMBULO OU “MILAGRES DO BRASIL SÃO” 27
1.2 SIM, UMA REVOLUÇÃO. EM TERMOS, PORÉM. 34
1.3 DOIS AUTORES, UM CONCEITO, DOIS OLHARES 75
2 ENTRE O SOCIALISMO E O NEGRO SUJEITO 83
2.1 O PAÍS DO CARNAVAL OU DE JERÔNIMO E DO BRASIL 85
2.2 DAS IMPLICAÇÕES DE UMA GUINADA À ESQUERDA 105
2.3 DE NARRADO A HEROI OU DA ESTIVA E DO SAVEIRO 122
PARTE II – DO POVO NEGROMESTIÇO 156
3 DOS NEGROS SENTIDOS EM OS PASTORES DA NOITE 157
4 TENDA DOS MILAGRES, ROMANCE PARADIGMÁTICO 190
4.1 DOS SENTIDOS DO CANDOMBLÉ 197
4.2 UM “UNIVERSO MESTIÇO”, UM “MUNDO NEGRO” 226
4.3 UMA VERDADE, A DESPEITO DO EMBUSTE 252
EPÍLOGO OU “MILAGRE É ISSO” 264
CONCLUSÃO 266
REFERÊNCIAS 272
14
INTRODUÇÃO
É na mistura de sangues. Na mistura de raças.
Jorge Amado.
A epígrafe matriz, aquela que enceta, abarca e anuncia as páginas vindouras desta
dissertação, remonta às considerações tecidas por Jorge Amado acerca de si e de sua obra para
o filme de João Moreira Salles. O segmento outrora destacado e em parte anteposto
novamente a esta introdução desvela não apenas o autor baiano e seus romances, não só a
propósito de enredos e personagens, mas alude igualmente à feição utópica que reveste e
caracteriza a concepção amadiana de mestiçagem.
Tomem-se em separado, por representativas a esta dissertação, as últimas palavras
acima. O qualificativo “amadiana”, interposto aos vocábulos “concepção” e “mestiçagem”,
restringe o alcance do primeiro termo, circunscrevendo-o aos limites da individualidade. Da
mesma forma, incide também sobre o segundo, diferenciando-o de apropriações outras.
Provém desta sintaxe uma definição precisa, quase matemática: a vinculação adstrita daquilo
sobre o que se discorre a alguém, a quem se refere.
Para além das divagações meramente sintáticas do parágrafo anterior, que resultam
ensimesmadas, quase tautológicas, abre-se a possibilidade de estudar e compreender a
contenção advinda do adjetivo como demarcativa real de singularidade – preocupação
primeira desta pesquisa. Neste plano, importa menos o efeito linguístico conferido ao
substantivo e ao complemento por ação do restritivo, isto é, o de correlacioná-los a outrem, do
que uma questão de ordem estritamente comparativa: considerando-se a literatura de Jorge
Amado a partir dos assentimentos e das dissensões frente a percepções outras de mestiçagem,
subsiste a leitura de uma “concepção amadiana”, como se abalizasse uma especificidade?
Subjacente a esta, uma segunda questão: quais traços de seu universo ficcional viabilizam esta
singularidade, se existente?
Eis as indagações norteadoras dos últimos dois anos, durante os quais foi desenvolvida
a pesquisa a que, por fim, designou-se um povo negromestiço ou o que há de singular na
mestiçagem amadiana. Perguntas cujas respostas, indiciam-nas, de antemão, o título: quanto à
“concepção amadiana de mestiçagem”, sim, é possível atestá-la, o que a convalida
singularmente. Por sua vez, em relação ao que a possibilita e estrutura, a respeito do que a
diferencia e singulariza, conclui-se pelo signo “negromestiço”, de composição aglutinante,
15
denotativo de uma confluência identitária ímpar, posto não implique o apagamento do
primeiro termo; antes o realce e a ele confira proeminência.
Conquanto se reconheça os sacrifícios do estilo e da elegância da escrita decorrentes
da repetição do radical “mestiç”, a escolha do título desta dissertação não se fez ao acaso:
antes, por admitir entrever em si o jogo de perguntas e respostas que norteia a pesquisa aqui
empreendida. Assim, sua primeira parte, “um povo negromestiço”, complementa e responde o
tácito sentido interrogativo da segunda, “o que há de singular na mestiçagem amadiana”. Por
outro lado, a ausência de interrogação, ao fim desta segunda parte, comporta a possibilidade
de uma equivalência afirmativa, a relacionar ambos os segmentos. Neste caso, depreende-se:
“Um povo negromestiço é o que há de singular na mestiçagem amadiana”, substituindo-se
assim a conjunção alternativa pelo enfático verbo de ligação.
A centralidade atribuída à qualificação negromestiça da representação amadiana de um
povo, a partir da qual se verifica sua singularidade, solicita ou mesmo reivindica algumas
linhas que a justifiquem1.
A mestiçagem, como mero substrato biológico que pouco ou nada acrescenta ao
processo de desenvolvimento e identificação dos povos, salvaguardados os seus períodos de
isolamento e impermeabilidade, conforma uma prática universal e atemporal que, a rigor,
nada significa para além do fenótipo. Contudo, ao ser vertida em discurso para afirmar,
distinguir ou rejeitar identidades biológico-culturais, desloca-se do genético ao ontológico e
deste à prática social cotidiana, instância em que, associada à ideia de raça, assume uma
feição política, colonialista e eurocêntrica.
O conceito cientificista de raça, sobrelevado a pedra de toque das potencialidades de
um povo, estabelece uma rígida hierarquia que subdivide a humanidade em grupos estanques,
condicionados por supostas aptidões civilizacionais inatas, ou por sua ausência – o que
secundariza ou mesmo subtrai os fatores históricos, políticos, econômicos e socioculturais.
Decorre desta perspectiva uma humanidade incontornavelmente cindida entre uma minoria
1 A despeito do termo “povo” configurar uma acepção problemática vez que comumente atrelada a discursos
ideológicos e políticos, além de constituir-se em uma abstração semântica de contornos quase sempre
indefiníveis, sua utilização neste trabalho está de acordo com a proposta amadiana, qual seja, a ampla
representação dos excluídos. A despeito das diferenças identitárias no interior deste mosaico a que Amado
designa povo, o romancista baiano o compreende como dotado de uma única e mesma humanidade (TAVARES,
1980, p. 183) – daí a possibilidade do amálgama pretendido pelo escritor grapiúna. Desta forma, Araújo (2008,
p. 76) assevera: “A solidariedade para com os humildes e espoliados social e economicamente tornou Jorge
Amado uma espécie de exegeta folhetinesco dos oprimidos, sejam prostitutas ou demais habitantes da beira do
cais, como os marinheiros, boêmios, bêbados, mestiços, pescadores, conjugados à defesa autoral dos meninos de
rua, mendigos, artistas, capoeiristas, rebeldes em geral, os poetas populares e, especialmente, os cultores do
candomblé, isolados e confundidos na sociedade patriarcal com seus valores ortodoxos de supremacia branca e
religião oficial”.
16
civilizada e superior, porquanto branca, e uma massa não-branca atávica, primitiva,
degenerada e incapaz.
Aceitas tais premissas, a mestiçagem tenderia a ser repudiada vez que resultaria
invariavelmente efeitos negativos. Os teóricos do cientificismo europeu efetivamente a
imaginam a partir de uma relação antonímica com a ideia de pureza racial, que assume, tanto
maior, a feição de um invólucro da superioridade de um povo. Desta forma, porquanto
supostamente conspurque e dilua a almejada “pureza”, a miscigenação entre povos distintos é
revestida de um simbolismo contraproducente e degenerativo que engendra, de forma
inescapável, seres de natureza inferior e deletéria à dos progenitores. Tal perspectiva pode ser
observada em diversos autores brasileiros da virada do século XIX para o XX, mas,
principalmente, em Nina Rodrigues (1977; 2008), cujo pessimismo em relação ao país é
sintomático.
A ação insalubre da mestiçagem seria, por último, tanto mais danosa quanto maior
fosse a diferenciação fenotípica e de cultura entre as populações em contato – o que,
consideradas as premissas de tal pensamento, extremava em antípoda insolúvel a “raça
branca”, convencionada como superior, e a “raça negra”, cuja humanidade não consistia um
parti pris da época.
No que concerne ao Brasil, data da década de 1870 o advento das teorias cientificistas
baseadas na ideia de raça e, do decênio seguinte, sua rápida popularização, alcançada via
literatura naturalista (SÜSSEKIND, 1984).
Não é difícil inferir a quais demandas correspondiam a importação destas teorias, se
observados os dados que seguem: a Lei Eusébio de Queiróz, em 1850, seguida pela Lei do
Ventre Livre, em 1871 e, por último, a Lei dos Sexagenários, em 1885, estatutos que em
conjunto configuravam a política emancipacionista do Segundo Império. Ainda que o fim do
regime escravocrata fosse protelado aos últimos dias da centúria, tais indícios já o mostravam
inevitavelmente próximo (HOFBAUER, 2006). Ora, à substituição do trabalho escravo pelo
livre, seguir-se-ia, em tese, um reordenamento social que, em última análise, a médio ou
longo prazo acarretaria a inserção do ex-cativo na sociedade capitalista, o que estruturaria,
assim, novas esferas de poder. Obviamente, tal perspectiva não agradava às elites
escravocratas, ciosas do poder que detinham e das relações senhoriais de que gozavam. Da
mesma forma, o fim da escravidão não era benquisto por boa parte da população livre
brasileira, cuja imagem arraigada do negro refletia antes a condição servil do que humana
(AZEVEDO, 2004). Neste sentido, as teorias raciais permitiram equacionar as relações
assimétricas de poder, próprias do sistema escravista, para além de sua extinção. Tais
17
distinções passam a ser vistas não mais a partir de um estatuto jurídico do qual resulta o
senhor e o escravizado, mas, sim, a partir do princípio cientificista da divisão imanente da
humanidade que estabelece a dicotomia entre superiores e inferiores, brancos e negros, como
demonstram os estudos de Hofbauer (2006), Schwarcz (1993) e Guimarães (2008).
Apesar de resolvida a querela do lugar destinado ao negro no país de elites brancas,
estas mesmas teorias ocasionaram empecilhos ante o intento de se pensar um projeto de nação
brasileira. Afinal, em um país tão indelevelmente marcado pela mestiçagem, e se esta
significa degeneração, como pensar em futuro? Como legitimar uma civilização brasileira?
Resulta deste problema conceitual a teoria do branqueamento, através da qual a mestiçagem é
positivada, desde quando incida sobre o contato de uma população mestiça e outra branca, de
modo que a segunda aja sobre a primeira “purificando-a”. Justifica-se, deste modo, a
intensificação da política imigrantista após o 13 de Maio, a qual, aliás, já vinha há décadas
sendo testada e aplicada em fazendas do interior de São Paulo (AZEVEDO, 2004). Neste
contexto, a ideologia do branqueamento identifica-se com as propostas de futuro, progresso e
civilização, conceitos pensados como apanágios da raça branca. Tal signo incorpora um
caráter estritamente racial, uma vez que “raça” concentra em si todas as explicações de
sucessos e fracassos.
A partir dos anos 1930, com o crescente descrédito do conceito de raça e a
consequente valorização dos aspectos mestiços de corpo e cultura do povo brasileiro, a
ideologia do branqueamento, sem deixar de existir, passou a operar no sentido de sua
pseudoautonegação. Isto é, a adoção de um discurso oficial pelo Estado e endossado pelas
elites de uma nação mestiça, permeada por zonas de confraternização entre negros e brancos,
ex-senhores e ex-escravos, escamoteia e dissimula as tensões sócio-raciais estruturantes da
exclusão do negro e da afirmação do branco – é o que se percebe, por exemplo, a partir da
leitura da obra de Gilberto Freyre (2000, 2004a, 2004b e 2006). A seguir este discurso, a
despeito das dessemelhantes oportunidades sociais reservadas a negros e brancos, o Brasil não
se conformaria um país racista, até mesmo pela imprecisão em delimitar e separar as “raças”,
amalgamadas secularmente. É neste sentido que Liv Sovik (2009, p. 38) considera que aqui a
exclusão racial “[...] fala em duas vozes: uma, no privado, sobre o valor da branquitude e
outra, pronunciada em alto e bom som, sobre a noção de que cor e raça são de importância
relativa já que a população é mestiça”. A pesquisadora observa:
Em outras palavras, o discurso da mestiçagem não significa que os setores
dominantes se imaginam sempre como não brancos. A adoção do discurso da
mestiçagem é uma antiga concessão, incorporada no decorrer dos anos pelo senso
18
comum, à presença maciça de não brancos em uma sociedade que valoriza a
branquitude e uma antiga e atual forma de resistência ao olhar eurocêntrico. Esse
reconhecimento não desbanca os brancos das classes dominantes. O que um dia foi
uma vitória cultural e política contra a opressão eurocêntrica já foi capturado pelo
conservadorismo reinante e a naturalização de relações sociais racistas. [...] Reiterar
que, por ser um país mestiço, não há ódio racial serve para reforçar esse controle dos
sentidos da vida em sociedade (SOVIK, 2009, p. 39).
Evidentemente, as relações raciais estruturadas ao longo dos séculos no país
perpassam inclusive a produção literária brasileira. Assim, é possível e deveras importante
atentar para as construções feitas a respeito do negro e do mestiço, uma vez que possam
conotar estigmas que se perpetuam ainda hoje através de obras consideradas clássicas, como
O cortiço, por exemplo. O brasilianista Raymond Sayers comenta:
A literatura reflete todos os aspectos da situação racial brasileira: a importância
numérica dos negros; aspectos da cultura africana que sobreviveram a despeito de
barreiras temporais e espaciais; integração em vários níveis e de vários tipos;
relacionamento afetivo e hostil entre as raças; a permanência nos brancos do
sentimento de culpa pela crueldade da escravidão e, mais tarde, da exploração dos
negros pelos brancos; a posição do mulato em relação ao branco e ao negro; as
atitudes raciais refletidas na língua, nos chavões e nos provérbios; e a integração do
negro nos movimentos de luta social. Tudo isto está amplamente documentado em
dúzias de obras literárias de todos os gêneros (SAYERS, 1983, p. 179-180).
Neste sentido, muitas são as imagens que se depreendem da literatura nacional capazes
de conotar exclusão e apagamento do negro; outras, igualmente várias, apontam para a
resistência e afirmação, como evidenciam os estudos de David Brookshaw (1983), Gregory
Rabassa (1965), Domício Proença Filho (2004) e Eduardo de Assis Duarte (2011), entre
outros. De uma forma ou de outra, caso se mire apenas as representações literárias de um
Brasil mestiço, é possível observar, no que concerne à ficcionalização do negro, uma intensa
produção de estigmas ou um silencioso apagamento da identidade étnica.
É precisamente neste ponto que o vocábulo negro, acrescido a mestiço, compõe uma
particularidade amadiana e torna-se relevante nesta pesquisa. De certo modo, é possível
afirmar que a mestiçagem amadiana destoa do discurso fundante do Brasil mestiço justamente
porque quando este se pretende patriarcal, Amado o descreve em uma visada popular, como
destaca Albuquerque Júnior (2011, p. 247). Acrescente-se: quando o país se pretende branco,
Amado o descreve negro.
Compete ressaltar que um estudo sobre a mestiçagem na obra amadiana não se
constitui, a princípio, em uma novidade investigativa. Eis um tema por diversas vezes
explorado, como atestam os estudos de Brookshaw (1983), Ordep Serra (1995), Ilana
Goldstein (2003), Rita Olivieri-Godet (2004), Ana Rosa Ramos (2004), Ana Maria Machado
19
(2006), Humberto Lima de Oliveira (2006) e Cid Seixas (2006). Some-se, ainda, a recente
dissertação de Carolina Fernandes Calixto (2011).
À grande fortuna crítica elencada, vem a se incluir a análise aqui empreendida.
Entretanto, o que se pretende não é simplesmente elucubrar acerca da mestiçagem presente
nos romances amadianos, mas perscrutar o lugar e o sentido do negro. Em outras palavras,
compete abordar aqui as representações das personagens mestiças e das culturas sincréticas
para observá-las à luz do que revelam de personagens e culturas negras uma vez que “[...] a
arte pode escolher tudo quanto a ideologia dominante esquece, evita ou repele” (BOSI, 2002,
p. 122). Nesta direção, esta dissertação dialoga muito proximamente com os trabalhos
desenvolvidos por Maria Luísa Nunes (1973), Jorge Allen-Dixon (2006) e Gildeci de Oliveira
Leite (2006, 2008, 2010 e no prelo2), que revelam sentidos negros nas entrelinhas amadianas,
bem como com Seixas (2006, p. 40), para quem é possível vislumbrar “[...] um virtual projeto
de demolição do eurocentrismo” na obra elaborada por Jorge Amado.
De acordo com Bosi (2002, p. 118), resistência é um “[...] conceito originariamente
ético, e não estético”, entretanto, a “[...] translação de sentido da esfera ética para a estética é
possível [...] quando o narrador se põe a explorar uma força catalisadora de vida em
sociedade: os seus valores” (BOSI, 2002, p. 120. Grifos do autor). Nesta perspectiva, a
literatura pode vir a exprimir a resistência de um grupo oprimido, desde que assuma para si os
valores pertinentes a este grupo.
Ora, quando se revelam, entre as linhas de entrechos amadianos, sentidos concernentes
à mitologia e ao ethos do candomblé, temáticas que vêm a ser predominantes em muitas
narrativas, não equivale a assumir como negros os valores presentes na escrita de Jorge
Amado?
Nesta mesma medida, a literatura amadiana identifica-se com o signo de “literatura
como missão”, de Nicolau Sevcenko (1983), no que se refere ao sentido com que o historiador
aborda a produção dos escritores Euclides da Cunha e Lima Barreto: “[...] como registro
judicioso de uma época e como projetos sociais alternativos para a sua transformação”
(SEVCENKO, 1983, p. 199). Tal conceito corresponde a considerar a literatura para além do
fruir estético3. Isto é, vê-se a literatura concomitantemente como espelho da sociedade na qual
2 O texto referido como “no prelo” foi apresentado pelo Prof. Gildeci de Oliveira Leite no Curso Jorge Amado
2011 – I Colóquio de Literatura Brasileira, realizado na sede da Academia de Letras da Bahia, em 2011.
Encontra-se em vias de publicação em uma coletânea de artigos oriundos do evento e foi gentilmente cedido pelo
autor para este trabalho. 3 Importante ressaltar que, considerar o texto literário “para além do fruir estético” não significa, sobremaneira,
rejeitar os aspectos estéticos da literatura, mas, sem prescindir de analisá-los, observar outros fatores também
presentes.
20
o escritor está inserido, mas, também como uma produção que vislumbra outra sociedade,
produto de um sonho – o mundo idealizado de uma utopia redentora. Neste sentido, Carlos
Augusto Magalhães assevera:
Na verdade, por trás do sentido de falar e mostrar a Bahia, há o forte compromisso
de fazer com que a literatura se empenhe, também, com a propagação da utopia de
mudança do quadro social. Estabelece-se, desta maneira, uma denúncia com
propósitos utópicos. [...]
O sentido de “literatura como missão” faz com que Jorge Amado assuma o papel de
porta voz dos economicamente explorados e deserdados sociais, cujas vozes passam
a ser ouvidas e a ganhar espaço (MAGALHÃES, 2011, p. 162-163).
A leitura empreendida pelo pesquisador faz menção aos termos “utopia”,
“economicamente explorados” e “deserdados sociais”, que se revelam comuns no trato com
os romances amadianos entre 1933 e 1954, período em que o escritor se identifica com o
socialismo. Com efeito, o corpus do pesquisador é o romance Suor, de 1934, texto-mãe de
onde parte, por meio das denúncias de exploração destrutiva do capitalismo, para observar o
desejo utópico de uma cidade idealizada a partir do socialismo. “Eis aí o sentido de um
contundente princípio ético imbricado na categoria „literatura como missão‟”, salienta ainda
Magalhães (2011, p. 153-154). Revelador, pois, que o pesquisador tenha observado e realçado
um “princípio ético” no que se refere à produção literária de Amado. Justifica-se, assim, o uso
da ideia de “resistência”, tal como apontada anteriormente por Bosi, atrelada ao conceito
cunhado por Sevcenko.
Ademais, acredita-se possível estender o conceito de “literatura como missão” para
além do período mais denso da adesão amadiana ao socialismo. Afinal, os romances que se
seguem a Gabriela, cravo e canela, de 1958, não deixam de elaborar uma nova utopia,
atrelada desta vez à rejeição dos estreitos padrões de uma sociedade branca baseada em uma
moral burguesa judaico-cristã. Assim, em substituição à utopia socialista, relacionada com a
defesa dos “economicamente explorados”, em obras como Os pastores da noite e Tenda dos
milagres, por exemplo, infere-se uma “utopia mestiça” ou, como se definirá mais adiante, um
“universo mestiço”. Nesta perspectiva, ganham relevo as personagens negras e mestiças –
negromestiças – bem como os valores culturais e sociais oriundos do candomblé,
religiosidade de matriz africana.
Sintomático, portanto, que Olivieri-Godet (2004, p. 128) identifique como “[...] uma
profissão de fé da escrita amadiana: salvar do esquecimento, recuperar das margens sociais,
culturais, intelectuais ou políticas, todos aqueles que as elites oprimem e condenam ao
silêncio”. É igualmente revelador que a literatura amadiana possa “[...] sugerir que o homem
21
tem o dever de lutar por certos princípios que são essenciais, como a fruição do amor em um
espaço livre de construção político-religiosa” (LOPES, 1993, p. 7-8) – condição que o crítico
considera como a função do escritor4.
Ao abraçar outra proposta de mestiçagem, torna-se possível observar que a literatura
amadiana se coloca também como importante foco de resistência e afirmação. Neste sentido, a
eleição da mestiçagem como motivo de fazer literário se apresenta não só como uma forte
denúncia do racismo eurocêntrico, como também a tudo que lhe é corolário: a intolerância
religiosa e a exclusão social. Eis o motivo pelo qual se caracteriza por negromestiço o alvitre
amadiano.
Apresentando-se como análise de uma representação mestiça supostamente diversa da
que se configura como discurso de apagamento explícito ou dissimulado do negro, o objetivo
principal desta dissertação se constitui em verificar se a hipótese aventada de uma
negromestiçagem amadiana se sustenta.
Para que esta conjectura se confirme, é necessário que tal ficção divirja de forma
substancial do discurso extraliterário que toma do Brasil como um país mestiço, luso-tropical,
sem quaisquer preconceitos de raça; uma “democracia racial”, enfim. Destarte, faz-se
inevitável o cotejo entre as perspectivas enunciadas por Jorge Amado e Gilberto Freyre, que
vem a ser o principal ideólogo da mestiçagem como discurso.
Em decorrência deste primeiro objetivo específico, um segundo ganha relevo: adentrar
os sentidos e valores negros presentes na obra amadiana, demonstrá-los como estruturantes
das narrativas e das personagens, revelá-los presentes na proposta de mestiçagem pretendida
pelo romancista baiano.
Como um adendo, um terceiro objetivo específico se impõe: explicitar que o negro não
é, a princípio, o componente ficcional a ser valorizado por Jorge Amado5. Da mesma forma,
pouco apraz ao romancista baiano a ideia de mestiçagem como temática de seus primeiros
romances. Portanto, o trajeto ascensional das temáticas negras e mestiças revela, à medida que
se projeta, ressignificações da obra amadiana que, por certo, cumpre observar aqui. Assim,
4 “Vale a dire che la funzione dello scrittore, peraltro assunta con passione programmatica, è stata sempre quella
di suggerire che l'uomo ha il dovere di lottare per alcuni principi irrinunciabili, quale la fruizione dell'amore in
uno spazio libero da construzione politico-religiose. In questo senso l'opera di Jorge Amado è attraversata da una
voce onnipresente come un respiro palpitante di affetto; il suo corpus testuale non è altro che il riflesso di
varizioni succesive sulla dignità dell'umana condizione e sulla leggitimità della speranza, in fonde la molla
segreta che fa muovere i personaggi nel grande teatro dell'immaginario amadiano” (Tradução nossa para fins
deste trabalho). 5 Por “negro”, refere-se não apenas ao homem ou mulher negros, mas ao complexo cultural, religioso, ético,
moral, ao sistema de princípios e valores que se depreendem do mundo afro-brasileiro, cuja metonímia original é
o Terreiro de Candomblé.
22
pretende-se atentar não apenas para a diferença entre as perspectivas de Jorge Amado e
Gilberto Freyre, como também para a construção progressiva do tema dentro da sequência da
obra do autor baiano.
Explicitadas, pois, as linhas gerais e os objetivos que estas páginas encerram, compete,
agora, passar em revista a estrutura desta dissertação, isto é, as partes e as seções com que ela
se divide e se apresenta.
O texto que segue fraciona-se em duas partes e quatro seções, distribuídas
igualitariamente. Optou-se por dividir-se esta dissertação em partes não por qualquer laivo de
preciosismo, mas por constatar, uma vez escritas as seções, que elas se agrupavam em torno
de duas dimensões de abordagem distintas: uma, de caráter horizontal; outra, de feição
absolutamente verticalizada.
Assim, a primeira parte comporta duas investigações panorâmicas, horizontais, que,
não obstante tenham objetos diferentes, partilham da intenção de perscrutar as significações e
ressignificações do negro e da mestiçagem. Tais abordagens compõem, portanto, uma unidade
que, não sem motivo, intitula-se “dos percursos”.
A primeira seção, “um conceito para um país”, apresenta-se como a tentativa de
compreender de que maneira a ideia de mestiçagem torna-se indissociável da concepção de
Brasil. Intenta-se, também, explorar os sentidos que são atribuídos ao negro ao longo das
várias transmutações semânticas do conceito de mestiçagem. Para tanto, a seção inicia-se no
século XVII, com a leitura de um poema em que Gregório de Matos se dirige ao vigário
Lourenço Ribeiro, mulato6. Passa-se, então, ao século XIX, momento em que se situam os
movimentos de Independência, de construção da nacionalidade, das lutas antiescravistas, da
Abolição e, no último quartel, do aporto das teorias raciais. Assim, promovem-se as leituras
do indianismo alencariano e do emancipacionismo de Joaquim Manuel de Macedo, bem como
as do plano historiográfico de Von Martius; dos pressupostos e das projeções dos teóricos
raciais.
O arco final deste primeiro percurso empreendido focaliza a obra gilbertiana nos
aspectos revolucionários e conservadores que a compõem. Assim, não obstante se reconheça a
ruptura que constitui em relação às concepções anteriores de mestiçagem, busca-se evidenciar
a continuidade de uma exclusão do negro, ainda que silenciosa. Por último, um cotejo inicial
6 Apesar da grafia “Gregório de Mattos” ser algo corrente, constando inclusive no site oficial da fundação que
leva o seu nome, optou-se em utilizar “Matos” por fidelidade à coletânea organizada por Mendes (1996), que
serviu de suporte às citações deste trabalho.
23
entre Freyre e Amado, abordagem que aponta e aprofunda as possibilidades de dissensões
existentes entre as teses do antropólogo pernambucano e do literato baiano.
A segunda seção, “entre o socialismo e o negro sujeito”, espraia-se pelos cincos
primeiros romances amadianos, a saber: O país do carnaval (1931), Cacau (1933), Suor
(1934), Jubiabá (1935) e Mar morto (1936). Procura-se, desta maneira, observar os
movimentos de interpretação e reinterpretação do escritor baiano acerca do negro e do
mestiço, propostas que evoluem de uma representação negativa em O país do carnaval para
outra positiva, em Mar morto – romance em que se antevê o escritor de Os pastores da noite e
Tenda dos milagres. Para cumprir tal fim, evoca-se o conceito de “autonomia do
representado”, lapidado a partir das leituras de Bastide (1972), Candido (1972) e Machado
(2006), e que diz respeito à representação do povo negro e mestiço sem que os sistemas
culturais e religiosos destas personagens sejam negados em prol da utopia socialista do
escritor. Desta forma, a ideia de “autonomia”, tal como abordada aqui, concerne a uma
relação específica entre o representado, isto é, a personagem, e o romancista, Jorge Amado.
Em complemento à primeira parte, que se caracteriza por uma abordagem horizontal, a
segunda parte desta dissertação se vertizaliza no que concerne à análise aprofundada de dois
romances, Os pastores da noite (1964) e Tenda dos milagres (1969). Da mesma forma que a
anterior, esta parte também se constitui em uma unidade fracionada em duas seções. Busca-se
aqui investigar especificamente o lugar do negro na composição de um discurso mestiço
amadiano, isto é, se há de fato um protagonismo negro ou se o negro se apresenta
escamoteado e obliterado pela mestiçagem idealizada por Jorge Amado. Intitula-se “do povo
negromestiço” e abrange a terceira e a quarta seções desta dissertação.
Em “dos negros sentidos em Os pastores da noite”, terceira seção, investiga-se a
citada narrativa como a expansão de um Terreiro, de uma Casa de Axé. Neste sentido,
procura-se evidenciar como sentidos negros são estruturantes da narrativa, o que, por si, já
denota um protagonismo negro. Retoma-se, pois, o cotejo com o universo gilbertiano e
aponta-se para três importantes divergências amadianas, quais sejam: o tempo da mestiçagem
redentora; a atitude do negro e, por último, o lugar do negro.
Já a quarta seção, “Tenda dos milagres, romance paradigmático”, verticaliza ainda
mais o que foi ensaiado na leitura de Os pastores da noite. Enfim, busca-se penetrar nos
meandros da singular mestiçagem amadiana, isto é, da negromestiçagem. Assim, o estudo
inicia-se com uma abordagem específica acerca dos sentidos dimanados pelo candomblé e
que estruturam a narrativa: um sentido míticoidentitário, que faz de Pedro Archanjo, filho de
Exu, a representação do eleda, orixá pessoal; um sentido socioidentitário, que faz de Archanjo
24
Ojuobá, os Olhos de Xangô, o que significa assumir compromissos e responsabilidades
perante o orixá e o povo de santo; e um sentido metonímico, em que o candomblé representa a
própria resistência e afirmação negras.
Em um segundo momento, discute-se mais detalhadamente a proposta de uma
negromestiçagem amadiana. Para tanto, são criados os conceitos de “mundo negro”, que
representa a resistência e a afirmação dos sentidos e dos valores culturais afro-brasileiros, e de
“universo mestiço”, que vem a ser o vislumbre quimérico e utópico de um universo mestiço
social e identitariamente democrático – de que se conclui que a sociedade mestiça amadiana
diverge amplamente daquela pretendida por Freyre.
É óbvio que, ao longo da argumentação empreendida, discorda-se de um ou outro
crítico, questiona-se uma ou outra assertiva, rejeita-se uma ou outra conclusão – imiscuir-se
em terreno polêmico, como é o da mestiçagem em Amado, não admite nem permite outra
postura. Contudo, não se procede desta maneira com o intuito de invalidar qualquer leitura
que seja, apenas para defender e reforçar o argumento desenvolvido, as conclusões
alcançadas.
25
PARTE I
DOS PERCURSOS
26
1 UM CONCEITO PARA UM PAÍS
Sou um mulato nato
No sentido lato mulato
Democrático do litoral.
Caetano Veloso. Sugar Cane Fields Forever.
A noção de mestiçagem é, de forma concomitante, pedra fundamental e angular da
percepção de uma singularidade brasileira, porquanto se constitua um lastro de ideários
historicamente reincidentes. Do protocasal branco/indígena Diogo Álvares Caramuru e
Catarina Paraguaçu, assinalado já por Frei Vicente do Salvador7, àqueles outros que, no
decurso do último decênio, invariavelmente repetiram-se em novelas televisivas8, o contato
inter-racial conforma-se em uma constante que (re)afirma a inequívoca condição mestiça do
povo brasileiro9.
O amálgama de povos e culturas que se processou nestas terras de além-mar, ao sul do
Equador, fomentou, todavia, sucessivas abordagens díspares. Da crítica à ascensão do mulato,
passando ao pessimismo e ao otimismo, à multiplicidade de olhares enviesados, reticentes e
7 Obviamente, não se afirma aqui que Frei Vicente do Salvador tenha descrito o casal como protótipo de um
povo, mas que o engendramento da mestiçagem como identidade brasileira, ocorrido séculos após o historiador
ter escrito, mitifica o envolvimento entre Caramuru e Paraguaçu, tornando-os simbolicamente protogênese do
povo brasileiro. Segundo Frei Vicente do Salvador (s.d, p. 40-1): “[Catarina Paraguaçu] morreu muito velha, e
viu em sua vida todas suas filhas, e algumas netas casadas com os principais portugueses da terra, e bem o
mereciam também por parte do seu progenitor Diogo Álvares Caramuru [...] pois foi este o que conservou a
posse da terra tantos anos [...] e os fez [aos índios] servir aos brancos, e assim edificou, povoou e fortificou a
cidade, que chamou do Salvador”. Cunha, Bacelar e Alves (2008, p. 17) consideram Diogo Caramuru como
sendo uma figura “[...] de grande relevo para o imaginário da miscigenação”. 8 Está ainda por ser feito um estudo que investigue a recente recorrência inter-racial de casais protagonistas de
algumas das últimas novelas da Rede Globo de Televisão em horário nobre, ou seja, 21 horas. Na novela Duas
Caras, de Aguinaldo Silva, exibida entre 2007 e 2008, Lázaro Ramos e Débora Falabella deram vida ao casal
Evilásio Caó e Júlia Barreto. Já em Viver a Vida, 2009-2010, de Manoel Carlos, Zé Mayer e Taís Araújo
interpretaram o casal Marcos e Helena. Em 2011, na novela Insensato Coração, de Gilberto Braga e Ricardo
Linhares, Lázaro Ramos e Bruna Linzmaeyer, Camila Pitanga e Antonio Fagundes puseram em cena os casais
André e Leila; Raul e Carol. É interessante sugerir que tal recorrência coincide com o alargamento das
discussões sobre políticas afirmativas, o que permite inferir uma estratégia de reafirmação do caráter mestiço do
brasileiro em detrimento da assunção de uma identidade negra. 9 Chauí define “mito fundador” da seguinte forma: “[...] é aquele que não cessa de encontrar novos meios para
exprimir-se, novas linguagens, novos valores e idéias, de tal modo que, quanto mais parece ser outra coisa, tanto
mais é a repetição de si mesmo” (CHAUÍ, 2000, p. 9). Nesta perspectiva, a mestiçagem é, pois, um dos mitos
fundadores do Brasil. Quiçá, o principal.
27
críticos10
, soma-se outra, igualmente ampla, porém mais propensa a pensar a miscigenação
como um fator positivo. As inúmeras ressignificações decorrentes destes vários vieses
interpretativos situam a temática da mestiçagem, embora já algo surrada, como uma dentre as
mais producentes do pensamento social brasileiro. Cumpre, portanto, observar alguns
movimentos de significação e ressignificação da mestiçagem no Brasil.
1.1 PREÂMBULO OU “MILAGRES DO BRASIL SÃO”
A larga tradição de um olhar de esguelha sobre a população mestiça, atitude
redundante de desdém e demarcativa de lugares de mando e poder, ainda mais quando em
face do intercurso entre negros e brancos, não é um ineditismo do século XIX nem tão
somente uma postura decorrente das teorias raciais gestadas a partir de meados desta centúria.
Em verdade, a despeito da pregnância de tais teorias, cujas premissas são ainda hoje
flagrantes em falas e piadas cotidianas, a apreensão negativa da mestiçagem, ao menos em
contexto brasileiro, antecede o debruçar-se da ciência sobre o conceito de raça como elemento
síntese de essências e, portanto, distintivo entre povos11
. A genealogia desta percepção
negativa do processo miscigenatório remonta, pois, a uma rígida noção hierarquizante
nascente a meio termo entre a permanência do discurso cristão medievo e a estrutura
socioeconômica da então colônia portuguesa, instâncias estigmatizantes do negro – fator
preponderante para uma recusa do mestiço.
Embora o século XIX tenha se encarregado da tentativa de demonstrar de forma
supostamente inquestionável, posto que científica, a presumida inferioridade genésica das
populações não-brancas, em especial a dos negros africanos, tal sentido, ainda que não
atrelado à noção de raça, já se encontrava plenamente consolidado no imaginário europeu-
brasileiro de princípios da colonização. Foi sobre esta imagem duplamente negativa do negro
que se compôs e derivou aquela outra acerca da mestiçagem, igualmente reticente.
Referiu-se, logo acima, a uma “imagem duplamente negativa do negro”, bem como,
no parágrafo antecedente a esta expressão, deu-se nota de duas instâncias de estigmatização 10
Sejam os olhares brancos, do século XIX, que viam na mestiçagem fator de degeneração; sejam os olhares
negros do século XX e princípio do XXI, que enxergam no discurso da mestiçagem uma negação da identidade
negra, portanto uma artimanha racista. 11
A respeito do conceito de raça, Seyferth (2007, p. 106) afirma: “O que caracteriza o conceito de raça é sua
imponderabilidade, o fato de ser, antes de tudo, uma construção social que interfere nas relações sociais, informa
comportamentos individuais e coletivos, instrui determinadas práticas discriminatórias na medida em que
fornece signos e símbolos de pertencimento – fatores que interferiram também nos sistemas classificatórios
produzidos no campo científico”.
28
precedentes aos teóricos raciais, quais sejam, o discurso cristão e a estrutura socioeconômica
da Colônia. Estas duas vertentes, embora distintas, configuram entre si um elo comunicativo
de modo a estabelecer e nutrir um processo de retroalimentação capaz de manter, revigorar e
expandir continuamente o imaginário desqualificante a respeito do negro12
.
O pensamento ocidental possibilitou a associação do negro aos sentidos de “mal”,
“inculto”, “bestial” e “demoníaco”, concepções condensadas em torno de referenciais
estéticos, éticos e morais eurocêntricos que justificariam e estruturariam o sistema
escravocrata. Neste sentido, a Igreja recorreu ao ideário já estabelecido sobre os “filhos de
Cam” e retomou uma leitura do mito bíblico – em que pese todo o poder de persuasão da
Bíblia naquele contexto – que condenava o continente africano à eterna servidão13
. Em
consequência, a materialidade da ordem escravocrata ampliava e disseminava o poder e o
alcance de tal interpretação bíblica. Assim, dois estigmas convergem para o negro e compõem
uma imagem única, com carga semântica duplamente negativa14
. Por um lado, sob o prisma
do discurso religioso oficial, o negro é indecoroso e mesmo abjeto por relacionar-se à
profanação do veto à nudez e, por isto, condenado a estar eternamente abaixo de seus irmãos.
No tocante à estrutura socioeconômica, o negro é o escravizado, elemento mais baixo na
organização hierárquica de poder da sociedade brasileira e responsável pelos afazeres
renegados por quaisquer outros que estivessem salvaguardados pela condição de homens
livres e brancos. Neste contexto, sua classificação jurídica era a de um bem semovente (LUZ,
2003, p.199), ou seja, assemelhado a animais.
Estes dois movimentos de sentido produziram e cristalizaram a inferioridade do negro
em um contexto no qual, de acordo com Hofbauer (2006, p.85), o “[...] grande paradigma de
inclusão e exclusão [...] não era a cor da pele, mas a filiação religiosa [...]”, ainda que,
12
“A construção de uma imagem negativa do negro tem marcos históricos importantes, que se iniciam no
contato dos europeus com o continente africano. No último quartel do século XV, como também na segunda
metade do XIX, o Ocidente dirigiu-se várias vezes à África, na sede do ouro, desejo de poder, escravos e
catequese, o que significa dizer “conquistas”, “escravidão”, “colonização” e “conversão”. Além do que, toda a
fantasia da Idade Média estava presente na imaginação dos navegantes e traficantes, pois essa terra era sinônimo
de costumes estranhos, ervas fabulosas, costumes exóticos, fenômenos sobrenaturais e uma infinita variedade de
monstros [...]” (SODRÉ, 2010, p. 31). 13
Hofbauer (2006, p. 47) pontua que houve uma imbricação do crime de Caim e da maldição de Cam nos
discursos teológicos contemporâneos à escravidão, projetando a ambos na figura do negro escravizado.
Guimarães (2008, p. 16) complementa ao salientar que a interpretação dos negros como descendentes de Cam
deriva de inclusões de “[...] passagens talmúdicas ou de midrash [...]” na leitura do mito bíblico. Note-se que
Hofbauer não grafa “Cam” para o filho mais jovem de Noé, mas “Ham”. Já Guimarães anota “Cã”. Em certas
traduções da Bíblia é possível também encontrar um terceiro nome, Cão que, embora pareça mais raro, pode
produzir associações com a figura do Diabo, popularmente alcunhado desta forma. Cf. também Munanga (2005-
2006, p. 55-56). 14
“O nó do preconceito fica inextricável quando a desigualdade produzida pela divisão social se combina com
discriminações de raça ou de credo. Na Colônia, ambos, o opressor e o oprimido, receberam o selo de uma dupla
determinação” (BOSI, 2010, p. 101).
29
novamente segundo o pesquisador, houvesse “[...] mecanismos e expressões por meio dos
quais os portugueses faziam os africanos sentir que não eram aceitos como iguais, mesmo que
estes fossem cristianizados” (HOFBAUER, 2006, p. 87). Primeiramente, há que se destacar a
prevalência de um imaginário mítico-religioso na estruturação desta clivagem para além da
conversão, uma vez observados os aspectos valorativos e morais relacionados opostamente às
cores branca, signo de pureza, e preta, correspondente à mácula, na simbologia ocidental. Já
em momento posterior, a realidade social se impôs como um dado poderoso. A experiência do
contato com o negro foi cotidianamente vivenciada e permeada pela dominação, pelo poder.
Ao negro coube servir e obedecer, ao branco, mandar e ser obedecido. O contínuo e invariável
repetir-se ad infinitum da ordem escravocrata ocasionou a inobservância de sua formação
histórica. Em decorrência deste processo, houve a naturalização de determinados lugares
sociais a serem organizados e distribuídos segundo critérios de raça, antes mesmo deste
conceito ser determinante nos estudos sobre as distinções entre povos.
O olhar de través, originário do contexto acima e referido há poucas páginas, é
recorrente nos primeiros anos da colonização e se expressa vigoroso já no século XVII,
quando presente na poética de Gregório de Matos, autor tido como fonte da história do
período (CAMPOS, 1989)15
. Assim como este crítico, Cunha, Bacelar e Alves (2008, p. 23)
vislumbram no poeta “[...] uma documentação minuciosa e ácida da vida colonial na Bahia
[...]”. Ora, assumir o “Boca do Inferno” como tal implica admitir, em sua poesia de cunho
satírico, a representatividade de uma época não apenas em termos de reprodução do viver
cotidiano mas, também, dos imaginários basilares das estruturas de poder componentes deste
mesmo dia-a-dia16
.
Perspectiva idêntica é proposta por Hansen (1989, p.169) ao afirmar que “[...] a
metaforização barroca se faz como uma ligação aguda de conceitos de uma experiência ou
conhecimento socialmente partilhado por poeta e público contemporâneo”. Esta comunhão de
sentidos, ainda segundo o pesquisador, “[...] [permite] estabelecer os critérios de auto-
representação de um grupo ou ordem e, portanto, constituir o que ele propunha no discurso
15
Como o objetivo desta discussão é possibilitar compreender, ao menos em parte, os sentidos que “negro” e
“mestiço” apresentam no alvorecer do século XIX, optou-se, por economia, em evidenciar alguns aspectos da
poesia de Gregório de Matos. Outros exemplos podem ser conseguidos nos sermões seiscentistas de Pe. Antônio
Vieira. Alguns sermões do jesuíta operavam na manutenção do regime escravocrata condicionando o paraíso à
subordinação dos negros ao trabalho escravo: “[...] o pecado do senhor era a crueldade, o pecado do escravo era
a revolta – uma teologia com óbvias implicações conservadoras” (COSTA, 2010, p. 357). 16
Cunha, Bacelar e Alves (2008, p. 23) consideram que os versos de Gregório “[...] plasmaram e fixaram visões
do passado – cenas da origem – que repercutem até o presente no imaginário baiano e na efetividade da ordem
econômica e das práticas sociais”. Reivindicam assim a importância do poeta barroco para uma história cultural
da Bahia.
30
como o seu outro” (HANSEN, 1989, p. 169). Assim é que, de acordo com Peres (1967, p. 67)
“[...] GM ao descrever [...] tão impiedosamente os defeitos físicos e morais dos negros e
mestiços preparava o terreno para a criação de um comportamento verbal”. Gregório de
Matos torna-se, pois, o porta-voz de uma aristocracia descontente com a ascensão social do
mestiço (PERES, 1967), uma vez que o negro e o mulato “[...] confundiam-se do ponto de
vista social, [...] fazendo parte de um mesmo quadro, de uma mesma „classe‟, a escravaria
[...]” (PERES, 1967, p. 59).
Convém ressalvar que, a despeito da “escravaria” abranger igualmente a negros e
mestiços, há uma “[...] freqüência relativamente baixa, na poesia satírica atribuída a Gregório,
de poemas contra negros escravizados ou índios” (HANSEN, 1989, p. 173). Bosi (2010)
também afirma esta maior ojeriza do poeta por mestiços do que por negros. Hansen atribui
este dado aos critérios de classificação jurídica dos Seiscentos, no que não deixa de ter certa
razão. É correto e importante sugerir que o negro escravizado não se constituiu alvo corrente
do poeta, se comparado ao mestiço, justamente por causa da condição servil que era imposta.
Entretanto, talvez isto se deva menos ao estatuto jurídico, como o interpreta Hansen, do que a
uma rígida organização social baseada na opressão do mando e dos instrumentos de suplício.
Em outras palavras, a considerar a óptica gregoriana, o negro escravizado ocupava o lugar que
lhe era devido, isto é, o de submissão passiva ao branco – o que acastelava a estabilidade
hierárquica entre os habitantes da Colônia.
Noutro plano, o mestiço que ascende e se apodera de posições antes destinadas
invariavelmente aos brancos, superando-os às vezes em educação e posses, pressupõe e
representa a desestruturação, mesmo que parcial, do sistema polarizado senhores x
escravizados. Isto é, afigura-se um terceiro elemento que se interpõe à estrutura dicotômica
preexistente. Este terceiro elemento, o mestiço livre, ausente da equação inicial do sistema
escravocrata, comporta, em larga medida, a reorganização de determinadas esferas de poder
da estrutura social – movimento ascensional que alarma, desagrada e exaspera a aristocracia
baiana, quanto mais a parcela decadente.
Evidenciam-se, assim, as razões pelas quais o negro e o mestiço motivaram
tratamentos poéticos diferenciados, ou melhor, construções literárias em que se percebe uma
maior produção de estigmas sobre o mestiço. Pelo menos no tocante à intensidade da
adjetivação desqualificante que agiu na sedimentação das “[...] peculiares formas do racismo
vigente e persistente da sociedade baiana” (CUNHA; BACELAR E ALVES, 2008, p. 24). Ao
produzir, em termos quantitativos, um número de textos depreciativos do mulato superior
31
àquele que se dirige ao negro, Gregório de Matos deu vazão à inquietude transbordante da
elite decadente, com a qual se identificava17
.
No que tangencia o vocabulário associado a negros e mestiços, Hansen (1989), atento
aos topoi constituintes da poesia satírica de Gregório de Matos, lança luz ao que
anteriormente Peres havia denominado “comportamento verbal” 18
. Para o pesquisador:
[...] o “mulato” [pode ser]: preceituário ético, pelo qual é aristotélicamente (sic)
mau, porque misturado e excessivo; regulamentação jurídica, pelo qual se classifica
na “gente baixa”, quando livre, e fora do corpo político, quando escravo; troca
sexual, pela qual é “puta” e “bestial”; fundamentação teológica, pela qual é
naturalmente escravo, descendente de Cam; classificação hierárquica, no fim do
fim, abaixo dos brancos mais baixos; pragmáticas de precedências, trajes e formas
tratamento (sic), pelas quais é “atrevido”, “vão”, “arrogante”, “desavergonhado”;
referência letrada, pela qual é “ladino” ou “pícaro”; transação econômica, pela qual
é mercadoria e peça; ortodoxia religiosa, pela qual é gentio ou herege, feiticeiro
dado ao calundu, à necromancia, ao sexo nefando, a Satanás etc. (HANSEN, 1989,
p. 164-165. Grifos do autor).
Observa-se, nos topoi elencados por Hansen, a ressonância, mais ou menos explícita,
de sentidos advindos do binômio anteriormente salientado, composto pela tradição do
imaginário cristão medievo e a naturalização das estruturas sociais. Não é, portanto, exagero
afirmar que tais sentidos são estruturantes da sátira gregoriana de forma semelhante a que
organizavam as próprias relações sociais cotidianas da Colônia, marcadas por intensas
clivagens 19
, o que se evidencia, em parte, no poema em que Gregório responde a uma sátira
que lhe haviam feito e que fora publicada em nome do vigário Lourenço Ribeiro20
:
17
A identificação entre Gregório de Matos e esta parcela decadente da elite baiana é sugerida, inclusive, em
outro poema seu: “Triste Bahia! Oh quão dessemelhante / estás e estou do nosso antigo estado! / Pobre te vejo a
ti, tu a mi empenhado / rica te vi eu já, tu a mi abundante” (MENDES, 1996, p. 86). Bosi, em abordagem
específica sobre este poema, escreve em relação ao quarteto transcrito: “Selando o contraste, que separa o
passado e o presente, vem o predicado central: quão dessemelhante. A diferença está radicada no eixo do tempo:
houve um antigo estado, cuja perda é o motivo gerador de todo o discurso. Neste primeiro quarteto, importa
assinalar que a mudança arrastou consigo a Bahia e Gregório, o tu e o eu. É sobre essa identificação profunda de
sujeito e objeto que assenta a liricidade do texto: as contradições da história social falam aqui pela voz do
indivíduo” (BOSI, 2010, p. 95). 18
Hansen define topoi como “[...] elencos de argumentos opináveis e verossímeis poéticos que formam o „caso‟,
tema desenvolvido, para a vituperação e a maledicência” (HANSEN, 1989, p. 164). 19
Esta estreita relação entre a obra satírica de Gregório de Matos e o imaginário coletivo da sociedade que lhe
foi contemporânea é atestado pela própria preservação de seus textos, que circulavam oralmente ou em
transcrições feitas por terceiros. Gregório nunca editou em vida um livro seu. O que poderia facilmente perder-se
no desvanecer contínuo dos tempos e lugares idos, contudo, suplanta o passar dos séculos. Esta preservação,
talvez, só tenha sido possível devido à convergência entre texto e sociedade, sátira e imaginário, promovida pelo
poeta. 20
Utilizou-se o título do poema, tal como consta da coletânea de Mendes (1996), para completar o sentido da
oração construída, por isto a grafia em itálico. Todo o trecho destacado corresponde, assim, ao título.
32
Um branco muito encolhido,
um mulato muito ousado,
um branco todo coitado,
um canaz todo atrevido:
o saber muito abatido,
a ignorância, e ignorante
mui ufano, e mui arfante
sem pena, ou contradição:
milagres do Brasil são.
Que um cão revestido em Padre
por culpa da Santa Sé
seja tão ousado que
contra um branco ousado ladre:
e que esta ousadia quadre
ao Bispo, ao Governador,
ao Cortesão, ao Senhor,
tendo naus no Maranhão:
milagres do Brasil são.
Se a este podengo asneiro
o pai o alvanece já,
a mãe lhe lembre que está
roendo em um tamoeiro:
que importa um branco cueiro,
se o cu é tão denegrido!
Mas se no misto sentido
se lhe esconde a negridão:
milagres do Brasil são.
[...]
Que há de pregar o cachorro,
sendo uma vil criatura,
se não sabe da escritura
mais que aquela que os pôs forro? [...] (MENDES, 1996, p. 180).
O estribilho satírico “milagres do Brasil são”, que encerra cada nona em tom de
censura, com “milagres” assumindo antes um sentido negativo do que positivo, é o ponto
síntese que delimita o olhar de soslaio que o poeta avança sobre a sociedade, porquanto esta
permita a ascensão do mestiço à condição de vigário21
. Nota-se ainda que, ao exercício desta
atividade específica, é atribuída uma ênfase que a reveste de tônica da crítica proposta pelo
poema. Estabelece-se assim um entrelaçamento das restrições oriundas do binômio outrora
21
Ofício, aliás, exercido, mesmo que por pouco tempo, pelo próprio Gregório: “Foi vigário-geral da Sé da Bahia
e seu tesoureiro-mor a partir de 1681 quando ainda gozava do valimento de Dom Gaspar Barata, primeiro titular
daquela arquidiocese” (BOSI, 2010, p. 99). Esta informação corrobora o argumento desenvolvido na medida em
que possibilita sugerir uma repulsa do poeta, expressa nos versos transcritos, ao ver-se igualado a um mestiço,
uma vez ocupassem cargos próximos, ou de vê-lo ocupar uma posição que fora sua. Daí, também, a tentativa de
desqualificá-lo para tal profissão.
33
citado, convergentes na figura do mestiço, e limítrofes de seu alcance social – que não fosse
escravizado, mas se mantivesse subalterno ao branco.
Já a primeira nona, composta inteiramente de oposições, fixa aquela que norteia o
poema: o branco e o mulato. O primeiro encontra-se encolhido e na condição de coitado
enquanto o segundo é descrito como ousado e atrevido. Estas primeiras distinções operam no
sentido de representar um suposto desamparo do homem branco frente à ascensão do mulato.
Evidente, porém, que os termos “encolhido” e “coitado” não consubstanciam qualquer
verossimilhança, uma vez que o “real” é marcado pela escravatura e pela distribuição desigual
de poder entre os homens livres. Isto é, tal instância concentra-se exponencialmente em mãos
brancas. O hiperbólico infundado de tais acepções possibilita entrever, no entanto, a
percepção do poeta acerca do fato que engendrou o poema: o “descabido” de ter sido – ele,
um homem branco – alvo da sátira de um mulato. Estabelecidas as primeiras contraposições,
branco e mulato cumprindo respectivamente os papéis de oprimido e opressor, Gregório de
Matos passa à caracterização destes dois tipos, associando o branco ao saber, embora “muito
abatido” e o mulato, substituído no quarto verso pelo desqualificante “canaz”, à ignorância.
Desta forma, age com o intento de valorizar o sentido de “descabido” que conota à sátira por
ele recebida, posto que escrita por mulato – logo, ignorante – para ridicularizar um branco,
símbolo de saber.
A segunda e a quarta estrofes transcritas recorrem ao imaginário cristão e o
potencializam na medida em que questionam a capacidade do mulato ante a demanda do
desempenho da função de padre. Note-se que, para tanto, o termo “canaz”, da primeira nona,
multiplica-se em “cão” e em “cachorro”, com os quais Gregório referencia e atualiza o
estigma sobre o mulato22
. Ademais, tais sentidos, indissociáveis de uma conotação religiosa
popular com que se nomeia o próprio demônio, reforçam o contrassenso pretendido pelo
poeta e peculiar a um padre mulato – a se considerar a lógica desenvolvida, imagem
semanticamente propícia para se pensar no Diabo a serviço de Deus. Esta interpretação ganha
força ao se perceber que, na última estrofe, a imagem “cachorro” é complementada por “vil
criatura”. Ato contínuo, “escritura” congrega tanto um viés sagrado, quando relacionada à
Bíblia – da qual a “vil criatura” nada sabe –, quanto profano, sendo associada à carta de
alforria – única escritura da qual o mulato teria algum conhecimento.
22
É tentador avançar na hipótese, embora não conclusiva, que “cão”, repetido sete vezes em todo o poema e
reiterado por expressões outras que orbitam o mesmo universo semântico, presentifique, de forma explícita, o
mulato como herdeiro direto de Cam, filho de Noé – haja vista a proximidade fônica entre os dois termos e a
utilização, àquela época, do mito bíblico como justificativa teológica para a escravidão. Caso correta esta
hipótese, o imaginário cristão requisitado pelo poema não seria aquele enevoado, de datações que remontem à
Idade Média, mas o que dialoga diretamente com o contexto vivenciado por Gregório de Matos.
34
A terceira nona transcrita prescinde do arcabouço teológico para desqualificar o
mestiço, utilizando-se para isto de sua ascendência. Os versos “que importa um branco cueiro
/ se o cu é tão denegrido!” enformam o ponto nodal de toda a estrutura do poema. Para
Gregório de Matos, o fato de o vigário Lourenço Ribeiro ser um mestiço, filho de pai branco,
não neutraliza a lembrança materna da negritude, da qual deveria herdar igualmente a
condição servil.
O poema em questão é, pois, representativo do imaginário branco próprio do século
XVII sobre a mestiçagem no Brasil e, salvaguardadas as devidas proporções, possibilita
concluir que tal texto não dista muito daquele que será tecido cientificamente, nos Oitocentos,
sob a noção de raça. A sátira que Gregório de Matos elabora em represália a Lourenço Ribeiro
objetiva unicamente depreciá-lo como mulato, portanto herdeiro das supostas inaptidões de
sua mãe negra. Não seria esta uma imagem usada às largas pelos teóricos raciais, e pela
literatura que a eles se filia, a do sangue negro como agente contrário à “civilização”?
Percebe-se que, mesmo sem um respaldo científico, o pressuposto da degeneração do sangue
negro já era algo corrente e arraigado nas mentalidades dos Seiscentos. Neste aspecto, os
últimos versos da terceira estrofe, tornam-se emblemáticos. Por uma confluência de
imaginários, que subverte a linearidade incontornável do tempo, Gregório antecipa e torna-lhe
coetâneas as discussões a serem travadas cerca de cento e cinquenta anos após sua morte, em
1695. Apenas por volta de 1840, com as demandas para se pensar identitariamente o Brasil
independente e que deseja se inserir na esfera do mundo moderno, a mestiçagem surgirá como
uma questão a ser levada a sério. Passa a ser objeto da ciência, da política, da imprensa, do
teatro e da literatura. Comporta, igualmente, otimismos e pessimismos no que concerne à
“civilização” brasileira, de modo que em qualquer uma destas vertentes oitocentistas infere-se
a censura gregoriana – “Mas se no misto sentido / se lhe esconde a negridão: / milagres do
Brasil são”.
1.2 SIM, UMA REVOLUÇÃO. EM TERMOS, PORÉM
Acaso seja possível afirmar que existam quaisquer méritos literários em As vítimas-
algozes, os maiores elogios devem recair sobre a felicidade do autor em conceber o título a
encabeçar a obra. A considerar o escopo a que se propõem as três narrativas que emolduram
os quadros da escravidão, ou seja, promover o medo acerca da potencialidade vingativa do
35
negro escravizado, nenhuma outra imagem poderia ser mais justa23
do que o efeito de
deslocamento conseguido por Joaquim Manuel de Macedo24
. O movimento transgressor,
empreendido pela representação do escravizado que passa da condição de vítima para a de
algoz, implica o vazio da primeira posição, a ser ocupada ficcionalmente pelo complexo
familiar branco, com o qual, à época, o leitor se identificaria, amedrontado25
. Note-se que, a
despeito do instrumento de suplício ser portado e brandido por mãos alvas, não cabe ao
senhor de escravos o posicionamento primeiro, isto é, o papel de algoz que agisse sobre o
cativo, o que ocasionaria o movimentar-se da engrenagem argumentativa do texto. Tal função
se destinaria antes a uma instituição: a escravatura. Salvo de pecha e redimido de qualquer
violência, o homem branco – personagem ficcional e leitor imiscuídos – configura-se, por
paradoxal que seja à História, como principal vítima do sistema no qual, ele próprio, é força
dominante.
Registre-se que, da mesma forma que a escravidão exime o branco da condição de
carnífice, o autor pretendeu – e, talvez, houvesse sinceridade no intento – que o mesmo
ocorresse com o negro, porquanto tenha negado repetidas vezes que “ingratidão” ou
“perversidade” fossem atributos inatos à raça. Macedo considerava-as, antes, como
inexoráveis derivações da ordem escravocrata. Entretanto, as imagens e os simbolismos
decorrentes das narrativas depõem em contrário e, no titubeio próprio de um talvez que marca
e explicita a exceção, a obra se deixa penetrar pelos sentidos mesmos aos quais denega
credibilidade26
. Na incerteza que se instaura a respeito da ocorrência de “felizes disposições
naturais” em Simeão, impossíveis de investigação devido ao “cortejo” da escravidão já tê-lo
corrompido, flagra-se o instante de inflexão às teorias científicas reinantes na centúria,
princípios com os quais se argumentam e se fundamentam as supostas inferioridade e
criminalidade inerentes ao ser negro – ainda que Macedo não adira a elas completamente.
23
Na acepção de justeza, mas não na de justiça. 24
As três narrativas são: Simeão, o crioulo; Pai-Raiol, o feiticeiro e Lucinda, a mucama. 25
O medo, embora tácito ou disfarçado em preocupações outras, é uma constante em muitos discursos
abolicionistas do século XIX, quando alimentados por crescentes números sobre “crimes” praticados por
escravizados. Note-se, por favor, que as aspas não implicam em relativizar o teor criminal do assassinato ou do
furto que, por ventura, possa ter sido cometido pelos cativos em subversão ao cativeiro; apenas indicam a
imprecisão de tais julgamentos numa ordem social em que a balança da justiça pendia desfavoravelmente ao
negro sem, contudo, pretender que não tenham acontecido. O medo presente entre as elites brancas oitocentistas,
tributário de uma imagem do negro vingador, deita raízes na “[...] sangrenta revolução em São Domingos, onde
os negros não só haviam se rebelado contra a escravidão na última década do século XVIII e proclamado sua
independência em 1804, como também – sob a direção de Toussaint l‟Ouverture – colocaram em prática os
grandes princípios da Revolução Francesa, o que acarretou transtornos fatais para muitos senhores de escravos,
suas famílias e propriedades” (AZEVEDO, 2004, p. 28). 26
“A escravidão já tinha com o seu cortejo lógico e quase sempre infalível de todos os sentimentos ruins, de
todas as paixões ignóbeis, estragado o crioulo que talvez houvesse nascido com felizes disposições naturais”
(MACEDO, 2006, p. 14. Grifos nossos).
36
Proposições que, resultantes da absolutização cientificista do conceito de raça, são
maravilhosamente descritas por Lima Barreto em seu Diário Íntimo, em anotações que
remetem ao ano de 1904: “[...] a capacidade mental dos negros é discutida a priori e a dos
brancos, a posteriori” ou “se a feição, o peso, a forma do crânio nada denota quanto a
inteligência e vigor mental entre indivíduos da raça branca, porque excomungará o negro?”
(BARRETO, s.d. p. 20). Porém, antes que se adentre ao período de eloquência destas
imagens, em especial o quartel último da centúria, faz-se necessário considerar aquele outro
contexto, imerso em silêncio.
A literatura brasileira do século XIX defronta-se, para além das questões estéticas e de
estilo, com inevitáveis demandas políticas decorrentes da Independência, na primeira metade
da centúria, e do iminente fim da ordem escravocrata, em seu último quartel. Assim, se por
um lado a literatura de fins dos anos 1860 em diante é marcada por uma recorrência imagética
de negros; por outro, a literatura romântica indianista de meados dos Oitocentos, responsável
por dar vazão a pensamentos e elaborar imagens que se identificam com a questão da
identidade nacional, notabiliza-se pelo silêncio em torno desta mesma representação.
Conceição Evaristo constata:
Um olhar “ingênuo” ou pouco crítico sobre o discurso literário muitas vezes impede
o reconhecimento de que há formas de representações literárias que funcionam como
mecanismo de exclusão de indivíduos e de grupos. Acompanhando o processo de
formação do discurso literário brasileiro, percebemos que o romantismo despreza a
presença africana e sua descendência no Brasil como elementos fundadores da
nação. Observamos que a ficção romântica é capaz de idealizar uma origem mestiça
para os brasileiros, porém só a imagem indígena servirá de estofo literário para os
autores da época (EVARISTO, 2009, p.22).
Perrone-Moisés (2007) destaca que, diferentemente do europeu, o romantismo latino-
americano tinha por missão criar uma pátria e uma literatura que se distinguissem, ambas, dos
modelos metropolitanos27
. Em se tratando especificamente do romantismo brasileiro, o
movimento inseria-se, desta forma, num amplo esforço de construção de um sentimento de
nação empreendido pelo Império, já que desde “[...] a época da independência, vários
testemunhos registraram a ausência de uma identidade nacional [...]”(PRIORI e VENANCIO,
2010, p. 169), o que acarretava contratempos políticos. Assim, imperativas e urgentes,
27
“Devemos ter em mente que por literatura, na época, não se entendia apenas o poema e o romance escritos
para serem publicados e lidos silenciosamente, mas também as peças oratórias, discursos e sermões, assim como
poemas para serem declamados em igrejas, salões e teatros. A literatura esteve presente nos principais meios de
formação de opinião: nos jornais, nos púlpitos e nas tribunas políticas, e era considerada o principal cimento para
soldar as opiniões na construção da nacionalidade” (RONCARI, 1995, p. 294).
37
nascedouro e essência nacionais eram as principais questões a serem respondidas e plasmadas
por cientistas naturais, historiadores e literatos28
.
Para Figueiredo (2000, p. 98), “[...] o que estava em jogo naquele momento era a
definição do que era digno de ser representado na literatura brasileira, já que esta moldava a
imagem do país”. Assim, o recurso ao índio, de acordo com Perrone-Moisés (2007, p. 38),
[constituía] uma imagem romanesca e poética com múltiplas vantagens: eram [os
índios] aquela origem mítica necessária a toda nação; eram nossa parte original, não
européia; já quase exterminados, prestavam-se a todas as fantasias; serviam de
biombo para os negros, que estavam demasiado próximos e suscitavam a questão
espinhosa da escravidão [...]29
.
Embora correta tal interpretação, a exclusão do negro em prol do índio como opção
formativa da identidade nacional não obedeceu apenas aos espinhos suscitados pela
escravidão, como sugere a pesquisadora. Para além da dimensão histórica30
, tão necessária ao
romantismo, tal efeito subtrativo deitou raízes mais profundas no próprio imaginário nacional
sobre o negro, associado aos mesmos elementos expostos quando da apreciação do poema de
Gregório de Matos. Assim é que, no Brasil, segundo Costa (2010, p. 355-356), “[nunca]
houve dúvida sobre o status do africano: ele havia sido importado para ser escravo. Também
não havia discussão sobre o status de seus descendentes, que nasciam para ser escravos como
seus pais. Ninguém debatia a posição dos negros livres [...]”. Dados os estigmas de
inferioridade e servilismo, aceitos e compartilhados tacitamente, configurou-se uma imagem
do negro como antimodelo de identidade, ou seja, como elemento destoante dos parâmetros
pretendidos pela intelectualidade brasileira, ciosa de sua autorrepresentação. Em outras
palavras, buscava-se uma imagem de país oposta àquela vinculada ao negro; uma nação que
pudesse incitar no povo o orgulho de se imaginar equiparado às grandes nações europeias,
subvertendo simbolicamente a posição secular de colônia – outrora já rompida no plano
político. Para Brookshaw:
28
“A independência política do país, em 1822, com a ruptura dos laços coloniais com Portugal e a organização
de uma nação independente, tinha sido o fato mais decisivo para a emergência de uma consciência nacional. Ela
não vinha, porém, de forma tranquila, pois, antes de tudo, significava para os homens livres do Brasil a perda de
uma identidade segura: a de poderem considerar-se tão portugueses e europeus quanto os da metrópole,
comungando os mesmos valores ocidentais, civilizados e cristãos” (RONCARI, 1995, p. 288). 29
Pereira (1996, p. 104) compartilha da mesma perspectiva: “Enquanto postura ideológica o Romantismo pode
facilmente representar e idealizar o índio, posto que este já estava fundamentalmente afastado da civilização, não
constituindo uma mácula, nem tampouco uma ameaça à ordem vigente. Daí a facilidade com que se louvou o
índio distante e, em contrapartida, o total silêncio em relação ao negro, a ausência de representação (pelo menos,
enquanto contestação à ordem escravocrata) deste inconveniente ser, tão próximo de todos, tão cotidianamente
presente” (Grifos do autor). 30
O negro teria sido introduzido no Brasil após a chegada dos portugueses, enquanto o Romantismo visava
construir uma história pré-cabraliana.
38
Na medida em que o negro apareceu afinal na literatura indianista, foi para
contrastar com o índio. Dessa forma o negro, representando a realidade da raça
colonizada, labutando nas plantações do colonizador, não era páreo para o mítico
índio em termos de atração literária. Se o índio por natureza era corajoso e
profundamente orgulhoso de sua independência, o negro era de índole escrava,
humilde e resignada (BROOKSHAW, 1983, p. 27).
Este panorama intelectual não é restrito apenas aos círculos literários. Fundado em
1838, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) cumpriu importante papel na
afirmação dos devidos lugares do índio e do negro na composição identitária do país.
Segundo Priori e Venancio (2010), já no ano seguinte ao de sua fundação, o IHGB organizou
investigações arqueológicas com o intuito de descobrir vestígios de grandes civilizações que
tivessem habitado terras brasileiras. O próprio Imperador D. Pedro II, ainda conforme os
pesquisadores citados, era entusiasta desta procura uma vez cobrasse respostas urgentes ao
Instituto. Tratava-se, pois, de reconstruir o passado brasileiro deslocando a origem deste povo
para séculos ou milênios que antecedessem o domínio português – destituído de sua função
genésica, caberia a Portugal o papel de dínamo desta “Civilização Brasileira”. Neste sentido,
Figueiredo constata:
Na reconstrução utilitária do passado, surgem, então, dois caminhos até certo ponto
opostos. O primeiro seria construir a proto-história a partir do indígena, como fez,
por exemplo, o México. Nesse país, como observou Octavio Paz, a história oficial
representa uma negação categórica do período colonial, visto como um interregno,
uma etapa de usurpação, uma fase de ilegitimidade histórica. [...] Entretanto, as
características conservadoras do nosso processo de independência política e a
própria tenuidade da presença da cultura indígena entre nós, naquele momento, não
nos permitiu assumir a radicalidade da leitura mexicana. Por isso, quando nos
aproximamos dessa vertente, procuramos amenizá-la, adotando uma solução de
meio termo, que recuperava o passado indígena sem excluir o português, buscando
uma saída pela simbiose, que favorecia o sentido da continuidade (FIGUEIREDO,
2000, p. 95).
Reis (2007, p. 31) confirma a perspectiva traçada por Figueiredo ao afirmar que “[...]
era preciso criar uma idéia de homem brasileiro, de povo brasileiro, no interior de um projeto
de nação brasileira. Sobretudo era preciso perceber a nação como diferença e continuidade
colonial e como continuidade da diferença colonial”. Assim, continua o pesquisador, “[...] o
Brasil não queria ser indígena, negro, republicano, latino-americano e não-católico. O que
significa dizer: o Brasil queria continuar a ser português e para isso não hesitará em recusar
ou reprimir o seu lado brasileiro” (REIS, 2007, p. 31-32).
Especificidade brasileira e continuidade da herança portuguesa compõem o cerne da
monografia de Von Martius, Como se deve escrever a história do Brasil. Vencedora do
39
concurso realizado pelo IHGB e publicada em 1845 na revista do mesmo Instituto, a
monografia enforma um plano de elaboração da história nacional baseado nas três raças aqui
co-habitantes – o que caracterizaria a especificidade – e na prevalência histórica e cultural
branca/portuguesa – continuidade:
Cada uma das particularidades físicas e morais, que distinguem as diversas raças,
oferece a este respeito um motor especial; e tanto maior será a sua influência para o
desenvolvimento comum, quanto maior a energia, número e dignidade da sociedade
de cada uma dessas raças. Disso necessariamente se segue o português, que, como
descobridor, conquistador e senhor, poderosamente influiu naquele
desenvolvimento; o português, que deu as condições e garantias morais e físicas
para um reino independente; que o português se apresenta como o mais poderoso e
essencial motor. Mas também decerto seria um grande erro para todos os princípios
da historiografia pragmática, se se desprezassem as forças dos indígenas e dos
negros importados, forças estas que igualmente concorreram para o
desenvolvimento físico, moral e civil da totalidade da população (MARTIUS, 1982,
p. 87).
Embora considere que as três raças tenham concorrido para a formação da
especificidade brasileira, Martius pouca importância concede aos aportes africanos, de modo
que resume a investigação do historiador a responder se o desenvolvimento do Brasil, caso
não houvesse aqui os escravizados negros, teria transcorrido de forma mais positiva do que de
fato se deu. Para Schwarcz (1993), enquanto Martius reservou ao branco o papel de
civilizador e vislumbrou no índio uma dignidade outrora perdida, mas recuperável, restou ao
negro unicamente o espaço da detração. Com isto, Martius nutriu a incredulidade quanto às
capacidades civilizacionais dos povos negros, de há muito considerados inferiores não só em
relação ao homem branco, como também aos índios.
Quanto aos indígenas, o botânico alemão referiu-se a eles como “ruínas de povos”. A
despeito do teor negativo que se possa conferir a esta expressão na contemporaneidade, no
momento em que cunhada, para além da demarcação de uma inferioridade em face da
civilização portuguesa, outro sentido lhe era mais destacado: o de passado. Isto é, Martius
cultivou a esperança, compartilhada pelo IHGB e também pelo Imperador D. Pedro II, de que
tais povos comportassem uma dimensão histórica profunda, passível de ser afirmada não
obstante, ponto pacífico na época, terem regredido do estágio de civilização:
Segundo tal interpretação, o que faria do Brasil uma sociedade positivamente
diferente da portuguesa não seria propriamente a presença africana [...], mas sim a
indígena. Em relação a este segmento, a posição de Martius foi a de não mencionar
uma contribuição, mas sim indicar que eles eram “ruínas de povos”, ou seja,
descendiam de uma antiga civilização que teria migrado para o Novo Mundo e
entrado em decadência, regredindo ao estágio de selvageria. Ora, essa sutil diferença
em relação aos outros dois povos formadores da nacionalidade brasileira tinha
40
importantes implicações. Se refletirmos um pouco, perceberemos que Martius
transferiu para o futuro a definição do que seria a contribuição indígena; dependendo
dos rumos tomados pelos estudos arqueológicos e linguísticos [...] essa contribuição
poderia ser considerada tão importante quanto a dos portugueses (PRIORI e
VENANCIO, 2010, p. 174) 31
.
De acordo com Schwarcz (1993, p. 113), a partir de então “[...] uma delimitação estrita
vigorará no IHGB. Enquanto sobre os negros recaía a pesada carga da impossibilidade de
adaptação, em relação aos índios imperava a visão romântica [...] que lhes reservava um
espaço sobretudo exemplar”. Não se tratava, porém, de substituir o português pelo indígena32
,
como o México havia feito em relação ao espanhol em uma tentativa de expurgar o passado
colonial. Buscava-se, antes, resolver o conflito entre as instâncias do “Mesmo” e do “Outro”,
pré-condição de qualquer literatura de origem colonial (PERRONE-MOISÉS, 2007). A crise
instaurada por esta identidade cindida e tensionada ampliou-se, assim, na exata medida em
que o escritor romântico tomou para si a demanda de pensar “[...] à imagem e semelhança do
Outro, num lugar desprovido do passado do Outro e destituído do seu próprio passado”
(PERRONE-MOISÉS, 2007, p. 32). Considerada a dimensão histórica como um entrave à
conformação da identidade nacional, fez-se premente a necessidade de contornar esta
ausência de passado, de modo que se pudesse descrever o Brasil independentemente, ainda
que indissociável de Portugal – daí o “espaço sobretudo exemplar” destinado ao índio.
Na perspectiva desta tensão ressaltada por Perrone-Moisés, a assunção de um ideal
ligado ao índio, para Cunha (2006), relaciona-se também às imagens dos primeiros contatos
entre portugueses e nativos, sobretudo aquelas referentes à Primeira Missa, reproduzidas na
“Carta” de Caminha. Segundo a autora:
O ideal e a necessidade que movem a produção textual dos meados do século XIX,
para serem compreendidas em sua amplitude e em sua força, requerem que se
extrapole a consideração das exigências institucionais do jovem Estado e as
31
Para Martius, o fato das expedições arqueológicas promovidas pelo IHGB não terem ainda resultado em
descobertas significativas “[...] certamente não basta para duvidar que também neste país reinava em tempos
muito remotos uma civilização superior, semelhante à dos países que acabo de mencionar [Bolívia,
Cundinamarca e México]. [...] Se considerarmos que em alguns lugares, v.g. em Paupatla, se elevam matas
altíssimas e milenárias sobre as construções de antigos monumentos, não se há de achar inverossímil que o
mesmo se encontra nas florestas do Brasil, tanto mais que até agora elas não são conhecidas nem acessíveis
senão em muito pequena proporção” (MARTIUS, 1982, p. 94). Paralelo às escavações arqueológicas, “[...]
desenvolveu-se na capital do Império uma linguística igualmente fantástica, na qual [...] Francisco Adolfo de
Varnhagen, procurou demonstrar, por meio da comparação de vocábulos indígenas com os de antigas
civilizações, a origem euroasiática dos povos tupis-guaranis” (PRIORI e VENANCIO, 2010, p. 171). 32
“Segundo este desenho de contrastes [nação/colônia, novo/antigo], o esperável seria que o índio ocupasse, no
imaginário pós-colonial, o lugar que lhe competia, o papel de rebelde. [...] Mas não foi precisamente o que se
passou em nossa ficção romântica mais significativa. O índio de Alencar entra em íntima comunhão com o
colonizador. Peri é, literal e voluntariamente, escravo de Ceci, a quem venera como sua Iara, “senhora”, e
vassalo fidelíssimo de dom Antônio” (BOSI, 2010, p. 177).
41
expectativas de auto-reconhecimento da sociedade, para considerar, no primeiro
plano, as compulsões mais íntimas de todos os escritores que, a partir daquele
século, investiram na configuração da nacionalidade. Porque é a si mesmos,
enquanto escritores e herdeiros dos colonizadores, que é preciso legitimar. Nesta
perspectiva, a família original composta por europeu e índia – ou vice-versa – passa
a ser vista prioritariamente como a montagem de uma ascendência ideal,
purificadora e particularizadora, que aplaca a conturbação posta por duas evidências:
a primeira, de que, a rigor, se é intelectualmente [...] europeu [...]; a segunda, de que
a matriz para ser europeu aqui é [...] ser receptivo aos rituais que o imaginário
colonizador produz, contemplá-los mais ou menos a distância, repeti-los
incessantemente, sem inferir na sua lógica própria e já dada (CUNHA, 2006, p.
125).
Assim, a idealização do indígena cumpriria o duplo papel de aparar arestas entre o
“Mesmo” e o “Outro” e de representá-los, a ambos, como uma mesma e inquebrantável
identidade. Pacificadora, a imagem simbólica deste índio guardaria em si a expectativa de
explicitar a singularidade do povo brasileiro em face do português, mas, também e
concomitantemente, a permanência do português em face do brasileiro. A singularidade
justificaria e ratificaria a Independência; já a permanência, por sua vez, tornaria factível a
aspiração do Brasil em constituir-se numa civilização tipicamente europeia, embora situada à
margem da Europa. Especificidade e continuidade, pois.
Noutro plano, o romantismo, como afirma Roncari (1995), possibilita não somente a
afirmação nacional como também a crítica da civilização urbano-burguesa europeia, do que
resulta a valorização e idealização do Novo Mundo. Ainda conforme o autor, o “[...] indígena
americano já não era visto pela cultura européia como o bárbaro selvagem, mas como o
homem natural, puro, ainda não corrompido pelos maus costumes da civilização”
(RONCARI, 1995, p. 290). No entanto, o mesmo tratamento não era dispensado ao negro,
sempre visto sob os estigmas da escravidão e da inferioridade. Neste sentido, conforme
afirmam Priori e Venancio:
Aos índios podia ser atribuído o que, supostamente, faltava ao negro, permitindo-
lhes rivalizar com os brancos. Da ótica do pequeno grupo de intelectuais que, na
época, refletiu a respeito da identidade nacional brasileira, os primeiros habitantes
do Brasil passaram a ser vistos como portadores de valores que até os portugueses
da Época Moderna, marcados pela ânsia do lucro e do acúmulo de bens materiais,
haviam perdido. Para os autores que adotaram este tipo de concepção, o mundo
indígena teria conservado a nobreza, a generosidade e a bravura do mundo antigo,
valores que não existiam mais nas sociedades contemporâneas. A tradição indígena
– ou a invenção desta tradição – fornecia, por assim dizer, os ingredientes que
faltavam para fazer do brasileiro um ser diferente do português, mas nem por isso
inferior (PRIORI e VENANCIO, 2010, p. 175).
Este universo simbólico conservado na figura idealizada do índio, suporte básico do
nacionalismo romântico brasileiro e também das perspectivas históricas nacionais do IHGB,
42
bem como as inquietações decorrentes de uma identidade a meio termo entre o “Mesmo” e o
“Outro”, deságuam na tríade indianista de Alencar, O guarani, Iracema e Ubirajara. Nesta
direção, o romancista cearense procede à criação do ethos nacional alicerçado em conjecturas
de valores tradicionais indígenas, na miscigenação entre brancos e índios e na exclusão do
negro33
.
Excetuando-se, por já comentado nas páginas anteriores, o terceiro componente do
ethos estabelecido por José de Alencar, convém avançar algumas poucas observações sobre os
dois restantes. Em verdade, o que o escritor cearense elege e descreve como tradição indígena,
na qual deveria ancorar-se a raiz mais profunda do brasileiro, não é mais do que a soma de
valores pertencentes ao colonizador, transplantados e projetados na fantasia romântica do
índio. Neste sentido, Pereira (1996, p. 105) é esclarecedora ao afirmar que até “[...] mesmo a
representação do mundo indígena, quando ainda em estado „natural‟ e sem interferência dos
colonizadores (Ubirajara), já reproduz valores e modelos da sociedade do homem branco e
„civilizado‟”. Ainda a este respeito, Bosi (2010, p. 180-181) considera que a “[...] concepção
que Alencar tem do processo colonizador impede que os valores atribuídos romanticamente
ao nosso índio – o heroísmo, a beleza, a naturalidade – brilhem em si e para si; eles se
constelam em torno de um ímã, o conquistador [...]”. Tais considerações evidenciam, ainda
uma vez mais, a confluência do “Mesmo” e do “Outro” na figura ímpar do índio. Este
movimento convergente produz, no entanto, apenas uma imagem aparente do indígena,
espelhada que é nas personagens brancas. Conclui Pereira (1996, p. 105) que da relação “[...]
branco/índio resulta sempre a aculturação dos valores deste em benefício daquele”.
O viés aculturativo do consórcio entre brancos e índios, acima ressaltado por Pereira, é
percebido por Bosi (2010) em termos de um “complexo sacrificial” estruturante da mitologia
romântica alencariana. Segundo o pesquisador, ao comparar-se as tramas coloniais e
indianistas do escritor cearense, percebe-se que suas resoluções se dão “[...] pela imolação
voluntária dos protagonistas: o índio, a índia, a mulher prostituída, a mãe negra. A nobreza
dos fracos só se conquista pelos sacrifícios de suas vidas” (BOSI, 2010, p. 179). A ideia de
sacrifício está também presente na reflexão elaborada por Figueiredo (2000) sobre os mitos
românticos. Para a pesquisadora, a miscigenação proposta pelo ideário romântico indianista 33
Registre-se que a exclusão do negro no plano identitário nacional traçado por José de Alencar era condizente
com sua postura política acerca do tema da abolição, uma vez que o escritor “[...] foi um árduo defensor do
escravismo [...]” (PRIORI e VENANCIO, 2010, p. 207). No campo literário “[o romantismo alencariano]
também mostrou-se receoso de qualquer tipo de mudança social, parecendo esgotar os seus sentimentos de
rebeldia ao jugo colonial nas comoções políticas da Independência. Passado este ciclo, qualquer medida que
avançasse no sentido de alargar a tão estreita margem de liberdade outorgada pela Carta de 23 assumia ares de
subversão. Assim, a reforma eleitoral e a questão servil ficaram bloqueadas [...]” (BOSI, 2010, p. 176. Grifos do
autor)).
43
ocasiona a gestação de um ser de fronteira que orienta “[...] o sacrifício da cultura indígena
em prol da cultura do colonizador” (FIGUEIREDO, 2000, p. 97). Incisivo, Bosi (2010, p.178-
9), assinala que nas “[...] histórias de Peri e de Iracema a entrega do índio ao branco é
incondicional, faz-se de corpo e alma, implicando sacrifício e abandono da sua pertença à
tribo de origem. Uma partida sem retorno”. Ainda Bosi:
O que importa é ver como a figura do índio belo, forte e livre se modelou em
um regime de combinação com a franca apologia do colonizador. Essa
conciliação, dada como espontânea por Alencar, viola abertamente a história
da ocupação portuguesa no primeiro século [...], enfim é pesadamente
ideológica como interpretação do processo colonial (BOSI, 2010, p. 179).
A interpretação mantida por Alencar sobre o então recente passado colonial propõe
que, dos princípios de “especificidade” e “continuidade”, anteriormente abordados como
premissas do processo de autorreconhecimento do Brasil como realidade autônoma, o
segundo prevaleça sobre o primeiro. Assim, enquanto a “especificidade” é meramente
simbólica, relegada à instância da aparência, sem a possibilidade da percepção de sentidos
mais profundos, a “continuidade” se estabelece subjacente à conformação do ethos nacional,
direcionando-o.
A ideia de mestiçagem que brota deste quadro é igualmente “ideológica”. Não apenas
pela evidente exclusão do negro, mas principalmente pela feição amorosa que Alencar lhe
confere, favorecendo o deslocamento do colonizador “[...] de uma perspectiva de oposição à
cultura nativa [para o] status de elemento purificador no cruzamento das raças” (PEREIRA,
1996, p. 105. Grifos do autor)34
.
Cabe, pois, retomar o preâmbulo desta seção para fins comparativos. Atentou-se,
naquele segmento, para o tratamento dispensado por Gregório de Matos ao tema da
mestiçagem e, por extensão, ao negro. A repulsa do poeta barroco ao mulato, dentre outros
motivos, originou-se da simultaneidade de dois processos: a decadência das elites açucareiras
baianas e a ascensão dos mestiços. Para o poeta, portanto, a mestiçagem era um dado concreto
e negativo. Distintos são o contexto e o sentido que designam a mestiçagem na prosa
alencariana. O romancista, contrariamente à perspectiva alentada por Gregório de Matos,
34
É possível que esta exclusão do negro comporte em si a resposta alencariana à indagação de Martius sobre um
melhor desenvolvimento do Brasil sem o elemento negro. Neste caso, o silenciamento do romancista sobre o
negro torna-se tão eloquente quanto as depreciações promovidas a partir da segunda metade do século XIX.
Assim, ganha força o que Nascimento Neto aponta em artigo sobre O guarani. O pesquisador atenta para o
simbolismo das cores, marca de delimitações raciais, a distanciar as representações de Ceci, branca, e Isabel,
morena, e conclui: “é mister que a morte alcance a vida de Isabel numa amostra clara e direta que o mestiço não
se configura como a verdadeira representação do país” (Nascimento Neto, 2006, p. 40). Pelo menos, não o
mestiço de branco e negro.
44
fundamenta uma mestiçagem de ordem unicamente simbólica, porquanto pretenda uma
metáfora, um mito de origem. Em momento algum Alencar lidou ou descreveu um processo
que lhe fosse contemporâneo. Assim, sua mestiçagem não é de natureza real, mas remissiva à
criação de um arcabouço mitológico. Enforma a retomada de um passado longínquo, mítico,
incapaz de atualizar-se devido ao extermínio dos povos indígenas – genocídio sobre o qual
Alencar se calou. É, também, de caráter positivo, pois atua como anulatória das instâncias
diferenciadoras do “Mesmo” e do “Outro”. Ao encobrir e desfazer estas diferenças, bem como
os conflitos que encerram, Alencar promoveu uma convergência do “Mesmo” e do “Outro”
para a representação única do colonizador. Nestes termos, o romancista projetou, em tempos
idos, vislumbres que ansiavam por responder às questões que se lhes apresentavam.
Basicamente, a de como edulcorar uma “especificidade” brasileira, de modo que ela
acarretasse em “continuidade” portuguesa.
Em paralelo às tendências indianistas do século XIX, a extinção oficial do tráfico
negreiro, em 1850, trouxe à baila novas e antigas preocupações35
. O término do regime
escravocrata, até então uma perspectiva longínqua e incerta, com difusas demarcações
temporais futuras, entrevia-se algo próximo, embora não datado – matéria suficiente para
inquietar as elites nacionais dependentes do escravizado. Três questões de naturezas distintas
afiguravam-se no horizonte destas elites: a primeira, de ordem econômica e material, dizia
respeito à substituição do escravizado por trabalhadores livres, bem como denotava uma
preocupação com prejuízos decorrentes da perda da “propriedade” cativa. A segunda, de
feição intimista, relacionava-se ao medo, já referido no início deste tópico. A terceira, de
caráter identitário, notável com mais facilidade no período de iminência da Abolição e nos
35
Priori e Venancio (2010) recusam-se a compreender a Lei Eusébio de Queirós como resultante unicamente de
pressões inglesas. De acordo com os autores: “Em 1807, foi abolido o tráfico de escravos em todos os territórios
ingleses. Nos anos seguintes, graças à pressão diplomática sobre Portugal, são firmados tratados em 1810, 1815
e 1817, que previam, para breve, o fim do tráfico no Brasil. Após a Independência, mudam apenas os
negociadores. Entre 1826 e 1830 são assinados novos acordos que transformam o tráfico em pirataria, atividade
ilegal em qualquer ponto do oceano Atlântico. No ano de 1845, por decisão unilateral inglesa, é aprovado o
Aberdeen Act, que permitia o ataque por parte de navios ingleses aos navios de traficantes também em portos
brasileiros.
Embora se deva reconhecer a importância dessas medidas, é difícil atribuir exclusivamente a elas a razão do fim
do tráfico de escravos. Aliás, cabe perguntar: se a pressão inglesa era assim tão avassaladora, por que o tráfico
não foi abolido em 1810 ou em 1830?! Na verdade, o que surpreende é a capacidade de as elites brasileiras
resistir (sic) ao imperialismo inglês. Talvez elas tenham finalmente cedido, extinguindo o tráfico em 1850, por
temerem outro tipo de ameaça: aquela proveniente da sociedade escravista, consubstanciada nas rebeliões da
senzala; temor intensificado a partir de 1835, em razão da Revolta dos Malês, em Salvador [...]” (PRIORI e
VENANCIO, 2010, p. 181).
A despeito de a citação ser por demais extensa, é interessante observar a interpretação que os autores conferem
às origens da Lei de 1850, relacionando-a mais ao medo de possíveis levantes negros do que às pressões
externas. Como se verá a seguir, justamente este relatado clima de medo possibilitou a intensificação de um
imaginário negativo pré-existente sobre as populações negras, fossem elas escravas, forras ou livres. Favoreceu,
portanto, juntamente a outros fatores, à boa acolhida das teorias raciais europeias no Brasil.
45
anos que a seguem, questionava as possibilidades de um país mestiço, marcado
indelevelmente pela presença negra. Eis que, ao eloquente silêncio indianista sobre o negro,
sucede o período que o toma como principal imagem literária. Destarte, cabe investigar
brevemente os sentidos que estas imagens informam, bem como as nuanças contextuais com
as quais elas se relacionam.
Se por um lado, Costa (2010, p. 335) evidencia que até “[...] os anos [18]60 as ideias
antiescravistas encontraram escassa repercussão junto à opinião pública”, por outro, Ventura
(2000, p. 333-334) situa que, a partir da citada década, o “[...] negro, o escravo e o mestiço
foram incorporados ao discurso literário e cultural [...] em poemas, romances e peças teatrais,
nos debates parlamentares e em artigos na imprensa”. A recorrência de tais imagens negras é
deveras significativa da inflexão do pensamento social brasileiro para o crescente debate em
torno da inevitabilidade da libertação dos cativos – o que não significa, sobremaneira, sugerir
que a totalidade dos escritores antiescravistas, em oposição à tradição literária brasileira,
reconhecessem laivos de humanidade no negro (BROOKSHAW, 1983). Antes, afluíam, com
maior ou menor intensidade, para a representação e querela acerca das questões elencadas no
parágrafo anterior. Ventura resume:
O cativeiro, antes tido como natural, benevolente e civilizador, passou a ser
denunciado como cruel, injusto e pouco rentável. A substituição de trabalho escravo
pelo assalariado se deu associada à percepção de uma sociedade dividida entre
senhores indefesos, de um lado, e escravos violentos, de outro. A escravidão passou
a ser vista como problemática e se falava entre as elites de um “perigo negro”, que
poderia colocar em risco a civilização brasileira. O projeto de abolição dos escravos
se ligava a um programa de apoio à imigração européia, que recebeu subvenção dos
governos imperial e provincial no final de década de 1880 (VENTURA, 2000, p.
334).
Brookshaw (1983) aponta que a literatura produzida durante este período ocasionou a
intensificação e consequente consolidação dos estereótipos sobre o negro. Ainda segundo o
pesquisador, a imagem do Escravo Fiel, até então predominante, foi substituída por aquelas
conformativas do Escravo Demônio e do Escravo Imoral, que passaram a ocupar as páginas
dos romances brasileiros e o imaginário das elites leitoras. A respeito do tratamento
dispensado ao escravizado pela literatura naquele contexto, novamente é Ventura quem
afirma:
Escravos atormentados, que sofrem nas mãos de senhores impiedosos e cruéis,
enquanto recordam uma África idílica e articulam planos de vingança, surgem nos
poemas de Castro Alves e Fagundes Varela. Romances como A escrava Isaura
(1875), de Bernardo Guimarães, a trilogia de Joaquim Manuel de Macedo, As
46
vítimas algozes (1869), ou O cortiço (1896), de Aluísio Azevedo, oscilam entre a
imagem nobre do negro e a afirmação de sua influência maléfica sobre as famílias
brancas. Os efeitos da escravidão, com a “perversão” dos costumes, foram um dos
temas recorrentes no pensamento abolicionista e nos textos literários que trataram do
cativeiro, concebido como “infecção” moral (VENTURA, 2000, p. 334).
As duas últimas concepções do escravizado destacadas por Brookshaw, bem como a
“infecção moral” que delas deriva, são particularmente significativas para esta análise, uma
vez que possibilitam flagrar, em certa medida, novas faces a compor e expandir um ideário
altamente receptivo e propício ao aceite das teorias raciais gestadas na Europa.
É possível agora retomar as observações sobre os quadros da escravidão enfileirados
em As vítimas-algozes – discussão tão somente anunciada anteriormente e mantida em estado
de latência nas últimas páginas. Tais quadros não apenas constituem abundante fonte de
imagens aterradoras sobre o negro, aspectos com os quais Macedo suscita e fortalece o clima
de medo, como também explicita e defende determinadas posturas políticas quanto à polêmica
temática da substituição do trabalho escravo. Desta forma, a obra proporciona uma
interessante e confluente síntese do imaginário norteador das perspectivas de certo viés
político – o de caráter emancipacionista – como também aquele que atribui sentidos ao negro.
Basicamente, o emancipacionismo opunha-se à extinção imediata do regime
escravista, posto projetasse nesta possibilidade um inevitável declínio da economia brasileira,
cuja lavoura encontrar-se-ia, súbita, sem braços e incapaz de produzir. Propunha, em
contraposição ao abolicionismo, que fossem geridas iniciativas lentas, pouco invasivas, de
efeito gradual e parcialmente dependentes da concessão voluntária de alforrias por parte dos
senhores, acarretando uma “[...] extinção lenta e pacífica do sistema escravista até, no
máximo, os últimos dias do século XIX, quando os escravos representariam menos de 1% da
população brasileira” (PRIORI e VENANCIO, 2010, p. 204-5).
Os emancipacionistas vislumbravam, principalmente nos anos 1870, a imigração como
saída ideal para a substituição da mão-de-obra no país, o que, acreditava-se, viria ainda a
traduzir-se em “progresso” e “branqueamento” – acepções correlatas à época. Neste plano
político, caberia ao Império o papel de introduzir mecanismos de redução paulatina da
população cativa negra – posição com a qual D. Pedro II, ele próprio um emancipacionista,
concordava. Desta forma, ganha relevo a Fala do Trono de 1867, ato com o qual o Imperador
alforriou os escravizados sob posse do Estado e defendeu abertamente o emancipacionismo,
47
tal como se deu em Portugal, como política extensiva ao Brasil (PRIORI e VENANCIO,
2010)36
.
Ainda segundo a fala de D. Pedro II, o Império deveria, igualmente, subsidiar
experiências imigrantistas, de modo que, ao término da escravidão, a lavoura não sofresse da
falta de braços. Evidentemente, a postura do Imperador, ao permitir entrever um movimento
contínuo e crescente rumo ao fim do escravismo, desagradou tanto aos abolicionistas quanto
aos escravistas37
. Os primeiros pleiteavam o fim imediato do sistema; já os escravistas, ciosos
das relações hierarquicamente estabelecidas entre senhor e escravizado, requeriam, ao menos,
indenizações que salvaguardassem financeiramente a emergente elite cafeeira, então detentora
de grandes investimentos em propriedade escrava38
. Consideradas as tensões do contexto, a
perspectiva adotada por As vítimas-algozes tenta aliar o emancipacionismo, concepção
prevalecente, com os interesses dos senhores de escravizados. Nesta direção, explicita
Süssekind (2003, p. 132):
Não há, pois, grandes disfarces na propaganda emancipacionista romanceada de
Macedo. Nada de permitir a conscientização “inteligente” dos oprimidos ou
quaisquer vinganças, veladas ou ferozes. A emancipação deveria partir dos próprios
fazendeiros e proprietários. E não a troco de nada. Com indenização. E substituindo-
se a mão-de-obra escrava e velhos métodos de plantio por uma modernização
inevitável, louvável e muito mais lucrativa.
Nesta época, em decorrência justamente das grandes somas de capital investido em
cativos, o tema da escravidão, não obstante intensamente debatido e controverso, era
considerado ainda como de fórum particular, atrelado à noção de propriedade privada, o que
dificultava uma ampla intervenção estatal. Assim, a Lei do Ventre Livre, datada de 1871, “[...] 36
Silva (2003), em interessante artigo sobre a atuação antiescravista do Príncipe Dom Obá II d‟África, anota que
a Fala do Trono de 1867 representou, para o Príncipe, a continuidade do processo de conquista da cidadania
iniciada em 7 de janeiro de 1865, quando se criou os Voluntários da Pátria, agrupamento militar composto, em
sua maioria, por escravizados fugidos, quilombolas ou doados pelo senhor em troca da própria dispensa militar. 37
“Em 1871, considerava-se um atentado, um roubo, um esbulho, uma inspiração comunista o projeto que
pretendia liberar os nascituros. [...] Acusou-se o governo de estar comprometendo seriamente o futuro da nação,
permitindo que a questão fosse discutida no parlamento. Falou-se nos perigos da agitação social e na miséria que
adviria se fosse abolida a escravidão no país.
Não menos veementes eram os abolicionistas. Diziam que a escravidão constituía um entrave ao
desenvolvimento econômico do país, impedia a imigração, inibia a mecanização da lavoura, criava uma riqueza
falsa que o brocardo “Pai rico, filho nobre, neto pobre” bem retratava. Repetiam argumentos já tantas vezes
enumerados desde os tempos da Independência; a escravidão corrompia a sociedade, a família, estimulava o ócio
e a imprevidência, deturpava senhores, aviltava escravos, corrompia a língua, a religião e os costumes,
contrariava o direito natural” (COSTA, 2010, p. 334-335). 38
Com o fim do tráfico negreiro, em 1850, e com os perigos, as incertezas e o alto custo do tráfico clandestino,
deu-se início a uma ampla negociação de escravizados do decadente Nordeste açucareiro, cuja última riqueza da
qual poderia dispor era os próprios negros, para as grandes plantações de café do eixo sul-sudeste. Fácil inferir,
portanto, que boa parte do clima de medo retratado por Azevedo (2004) entre paulistas decorre deste aumento
significativo de escravizados vindos de áreas nordestinas, assim como da fama de revoltosos e quilombolas que
carregavam consigo.
48
representou a primeira intromissão do Estado nas relações senhor-escravo” (HOFBAUER,
2006, p. 191). A Lei dos Sexagenários, quatorze anos após, complementaria e alargaria o
alcance da primeira, configurando a política oficial de caráter emancipacionista do Império, a
despeito da rápida popularização do abolicionismo no decênio de 1880. Conquanto tais leis
não tenham cumprido o seu fim último, qual seja, promover o término do escravismo de
maneira “natural”, Hofbauer (2006) considera que houve um significativo abalo na
mentalidade escravista, alavancado principalmente pela perspectiva de libertação dos
nascituros bem como pelo estabelecimento de uma data limite para o fim do regime: 1899.
Brookshaw (1983, p. 33), ao reproduzir matéria do jornal Província de São Paulo,
datado de 10 de janeiro de 1880, sugere que Joaquim Manuel de Macedo, escritor de prestígio
durante o Segundo Império, teria sido encarregado por D. Pedro II de escrever uma “[...] obra
antiescravocrata, a fim de preparar o público para a Lei do Ventre Livre”. Caso se considere
esta possibilidade, percebe-se que o abalo da mentalidade escravista inerente à Lei, referido
por Hofbauer em termos de datação para o fim do escravismo, foi pretendido e ficcionalizado
em As vítimas-algozes através da exploração do medo, para o qual concorrem as imagens de
vilanias invariavelmente associadas ao negro escravizado. Segundo Süssekind:
O que liga as ações narradas, o que explica o perfil malévolo dos escravos e ingênuo
dos senhores, o que justifica os finais trágicos das duas primeiras novelas e o
desfecho moralizante da última não é tanto o próprio enredo ou o caráter dos
personagens, mas sim a tese emancipacionista, a afirmação de um “perigo negro”
crescente, que precedem inclusive a leitura das novelas, que estão expressas desde o
prólogo do primeiro volume (SÜSSEKIND, 2003, p. 129).
Através da antonímia “vítima/algoz”, Macedo objetivava, portanto, uma “[...]
explicação sociológica para os crimes cometidos pelos escravos, buscando assustar o senhor,
ao afirmar que mesmo um negro de boa índole era levado, no Brasil, devido à influência da
escravidão, a se entregar aos vícios e à criminalidade” (AMARAL, 2007, p. 221). O efeito
pretendido – inocular o medo no público – é burilado ainda através de recorrentes
interrupções no andamento narrativo, o que permite inserções de advertências ao leitor quanto
à natureza familiar do narrado. Desta forma, Macedo condicionava quem o lia a reconhecer
em suas personagens não somente agentes isoladas, mas histórias que se multiplicavam no
transcorrer do século XIX e que naturalizavam o escravizado, independente da condição que
gozasse frente ao senhor, em um inimigo em potencial:
Concluamos.
Simeão foi o mais ingrato e perverso dos homens.
49
Pois eu vos digo que Simeão, se não fosse escravo, poderia não ter sido nem ingrato,
nem perverso. [...]
Entre os escravos a ingratidão e a perversidade fazem a regra; e o que não é nem
ingrato nem perverso entra apenas na exceção.
Porquanto, e todos o sabem, a liberdade moraliza, nobilita e é capaz de fazer
virtuoso o homem. [...]
Este Simeão vos horroriza?...
Pois eu vos juro que a forca não o matou de uma vez; ele existe e existirá enquanto
existir a escravidão no país.
Se quereis matar Simeão, acabar com Simeão, matai a mãe do crime, acabai com a
escravidão (MACEDO, 2006, p. 43-4).
Amaral (2007, p. 228) está correta quando, em contraposição às teorias raciais, afirma
que “Macedo mostrava uma oposição social entre escravos e senhores e não racial. Era o
escravo o inimigo do senhor e não o negro do branco. Caso contrário, a liberdade não seria
capaz de regenerar moralmente o escravo”. Entretanto, como a própria pesquisadora também
reconhece, as narrativas não deixam de evidenciar aspectos mesológicos – África/Brasil – ou
mesmo estritamente raciais – africano/crioulo – como determinantes do sujeito. Desta forma,
a justificativa da escravidão como sistema degradante do negro, embora insistentemente
reforçada, não consegue disfarçar as categorias hierárquicas de superioridade e inferioridade
que obsedam o escritor. Na verdade, tais diferenciações, como enfatiza Süssekind (2003, p.
136), permitem divisar um “[...] preconceito de raça já bem enraizado [...] e perceptível sem
muitas dificuldades”. Assim, conquanto Macedo pretendesse eximir o negro dos crimes
cometidos pelo escravizado, o faz apenas em parte39
:
A exibição da decadência, inclusive econômica, do fazendeiro Paulo Borges depois
que se torna amante da escrava Esméria, em “Pai Raiol – o feiticeiro”, ou da
transformação da menina Cândida numa namoradeira cheia de truques, vaidades e
mentiras, depois que se estreita sua dependência da mucama, em “Lucinda – a
mucama”, funcionam, sem quaisquer disfarces, como parábolas sobre o que poderia
acontecer a alguém ou grupo social que se tornasse “escravo de seus escravos”. Mas
não é só nesses estreitamentos de contato entre sinhás, fazendeiros e cativos que se
ativa o horror não apenas ao escravo, mas ao negro, em Macedo. Basta lembrar a
descrição do Pai Raiol, que mais parece a de um monstro, sintetizada logo no início
da novela [...] mas propositadamente detalhada o bastante para aterrorizar quem a
lesse (SÜSSEKIND, 2003, p. 138).
39
O “talvez” já relatado e a representação extremamente pejorativa da religiosidade africana, que Macedo grafa
candombe, enfraquecem o argumento do escritor: “Soam os grosseiros instrumentos que lembram as festas
selvagens do índio do Brasil e do negro da África; vêem-se talismãs rústicos, símbolos ridículos; ornamentam-se
o sacerdote e a sacerdotisa com penachos e adornos emblemáticos e de vivas cores; prepara-se ao fogo, ou na
velha imunda mesa, beberagem desconhecida, infusão de raízes enjoativas e quase sempre ou algumas vezes
esquálida; o sacerdote rompe em dança frenética, terrível, convulsiva, e muitas vezes, como a sibila, se estorce
no chão: a sacerdotisa anda como doida, entra e sai, e volta para tornar a sair, lança ao fogo folhas e raízes que
enchem de fumo sufocante e de cheiro ativo e desagradável a infecta sala, e no fim de uma hora de contorsões
(sic) e de dança de demônio, de ansiedade e de corrida louca da sócia do embusteiro, ela volta enfim do quintal,
onde nada viu, e anuncia a chegada do gênio, do espírito, do deus do feitiço, para o qual há vinte nomes cada
qual mais burlesco e mais brutal” (MACEDO, 2006, p. 46).
50
A descrição disforme do negro africano, portanto, é traçada de modo a contrastar com
aquela outra, vinculada ao crioulo, em que se observam os efeitos suavizantes do “clima” e da
“[...] influência natural do país em que nascera” (MACEDO, 2006, p. 10)40
. Embora não
explicitado, é possível avançar também na interpretação de que tais “modificações
favoráveis”, como afirma o escritor, são resultantes do afluxo de sangue branco ao negro41
,
tacitamente considerado inferior42
. Assim é que novamente Süssekind (2003, p. 139) constata
que as narrativas não cansam de “[...] registrar a melhoria do aspecto, o abrandamento dos
traços, a maior inteligência, o domínio da língua e a esperteza dos escravos nascidos no
Brasil. Por isso Pai Raiol funciona como uma espécie de paradigma de um negro só negro”.
Amaral (2007), embora discorde das implicações concernentes à leitura de Süssekind sobre a
representação imagética de Pai-Raiol, faz coro a seu argumento de que a distinção de
tratamento entre o africano e o crioulo é sintomática de um distanciamento de Macedo em
relação às teorias cientificistas dos Oitocentos:
Podemos perceber que as teses de Macedo, apesar de terem pontos em comum com
as teorias raciais do século XIX, tais como a influência do meio e a superioridade
branca, se diferenciavam destas por uma certa gradação de valores. Tomando como
exemplo as teorias poligenistas do conde de Gobineau e comparando-as com as teses
presentes na obra de Macedo, percebemos que, apesar do determinismo de ambos
em relação à influência do meio, elas diferem em um ponto fundamental. Para o
conde de Gobineau, na miscigenação predominariam as características negativas da
"raça inferior", enquanto para Macedo o crioulo e, mais ainda, o mestiço teriam os
defeitos da "raça inferior" amenizados. Esta espécie de adaptação das teorias raciais
- que tanta repercussão tiveram no Brasil - é justificada pelo fato de Macedo,
fazendo parte da elite ilustrada do país, querer validar o Brasil enquanto nação apta
ao progresso [...] (AMARAL, 2007, p. 228-229).
Como se observou, As vítimas-algozes comporta uma tese emancipacionista cuja
demonstração está vinculada ao imaginário do medo. Neste sentido, o sistema escravocrata
deveria ser extinto menos pelos aspectos de opressão e virulência que lhe são inerentes, do
que pelo “perigo negro” que alavanca e favorece. Corolários desta perspectiva, as
representações de negros nas três narrativas são dotadas de inalterabilidade: relacionam-se ao
40
Originalmente a palavra “crioulo” designava o negro escravizado nascido no Brasil, diferenciando-o daquele
proveniente do continente africano. 41
“O tema da miscigenação não foi abordado por Macedo em As vítimas-algozes. Por ser uma obra de
propaganda a favor da emancipação escrava, em que Macedo apelava para os interesses da família do senhor,
nela, mais do que em nenhuma outra obra, o autor adotou o ponto de vista senhorial. É provável que fosse este o
motivo do seu silêncio acerca da miscigenação nesta obra, uma vez que ela se constituía em verdadeiro tabu para
a elite da época” (AMARAL, 2007, p. 229). 42
“Lugar comum no pensamento do século XIX e anteriores, a idéia da inferioridade do africano assinalava a
sua presença nos discursos sem se perder em longas exposições a respeito. Era como se a pressuposta
concordância geral sobre este ponto dispensasse explicações. Assim, desta premissa, muitas vezes implícita ou
mal explicitada, desenvolvia-se o argumento de que o negro perigoso [...] precisava ser rapidamente incorporado
à sociedade via estratégias disciplinares” (AZEVEDO, 2004, p 54).
51
crime, à vilania, à maledicência, à promiscuidade, à sífilis, ao desvirtuamento, à degeneração,
à torpeza, aos atavismos, enfim. Que Macedo se propusesse derivar todas estas imagens da
escravidão e não do negro, ponto pacífico. Que falha neste intento, idem. Assim, uma última
pergunta se faz imperiosa: que restaria ao negro neste libelo antiescravista se suprimida a
escravidão? Ou seja, qual papel Macedo lhe reserva em um modelo de sociedade pós-
escravista? Neste ponto, há mais vagar do que contundência. Amaral (2007), no ponto mesmo
em que o crioulo dista do africano, infere uma possibilidade, uma vez ultimada a escravidão,
de integração do negro, já devidamente miscigenado e despido de qualquer ancestralidade
africana. Macedo, no entanto, não se pronuncia – o que não deixa de ser justificável,
porquanto a preocupação do escritor não fosse a sociedade pós-escravista, mas aquela sob a
efígie da escravidão. Da mesma forma, não lhe inquietava a condição do negro senão em face
do que poderia vir a representar para o branco. Desta forma, em As vítimas-algozes,
desnudado da condição cativa, restaria ao negro não mais que um silêncio semelhante àquele
emanado pelo Quatorze de maio de 1888, passada a euforia do dia anterior, quando se
configurou sua expulsão “[...] de um Brasil moderno, cosmético, europeizado [...] e [foi]
tangido para os porões do capitalismo nacional, sórdido, brutesco” (BOSI, 2010, p. 272.
Grifos do autor).
Caso correta a análise acima, os estereótipos “escravo demônio” e “escravo imoral”,
bem como a imagem da “infecção moral” gestada pela escravidão, elementos-chave da
argumentação de Joaquim Manuel de Macedo, deslizam do campo semântico que
circunscreve a acepção “escravo” para aquele que abarca “negro”. Este movimento imagético
favorece uma concepção apriorística do negro, ainda que à revelia do escritor. Decorre,
portanto, a possibilidade de apreendê-los não mais através dos signos originais, mas
transmutados e cristalizados em “negro demônio” e “negro imoral”.
Convém retomar, a esta altura, os excertos barretianos transcritos no início deste
tópico. A dimensão naturalizante à qual Lima Barreto se opunha ao questionar a suposta
diferenciação genésica entre brancos e negros, encontra-se já no movimento acima flagrado
em As vítimas-algozes, mesmo que a argumentação não seja amparada no discurso
cientificista da época. Destarte, as três novelas de Macedo comunicam, sub-reptícia e, talvez,
inconscientemente, o instante em que as teorias raciais começaram a se insinuar no Brasil, na
tentativa de equacionar determinados lugares sociais, antes protegidos pela rigidez do
binômio senhor x escravizado, em termos de raça. Não à toa, o movimento ascendente destas
ideias coincide com a iminência do processo antiescravista.
52
Em tese, o iminente término do sistema escravocrata exigiria um reordenamento das
estruturas sociais de modo que o negro, antes escravizado, fosse integrado ao sistema de
trabalho livre porquanto ascendesse juridicamente à categoria de cidadão. Esta perspectiva
nem ao menos beirava a realidade do antiescravismo nacional, pouco ou nada vinculado à
situação do afrodescendente. O antiescravismo brasileiro foi, antes de tudo, um movimento de
elites preocupadas em salvaguardar os próprios privilégios. Assim, por mais que Silva (2003)
esteja correto ao apontar que a população negra livre, forra ou escravizada, não se manteve
passiva frente aos processos sociais que culminaram na Abolição, a Lei Áurea resulta e dá
lugar a interesses próprios de uma parte das oligarquias nacionais, que objetivava a
substituição integral do negro pelo imigrante europeu – do que decorre a intensificação das
políticas de imigração europeia sob a tutela do Império e, logo após, da República. Nesta nova
configuração social, o lugar de subalternidade historicamente destinado ao negro não se
alterou, conforme afirma Costa:
Como a Abolição resultara mais do desejo de livrar o país dos inconvenientes da
escravidão do que de emancipar o escravo, as camadas sociais dominantes não se
ocuparam do negro e de sua integração na sociedade de classes. O ex-escravo foi
abandonado à sua própria sorte. Suas dificuldades de ajustamento às novas
condições foram encaradas como prova da incapacidade do negro e da sua
inferioridade racial. Chegou-se a dizer que era mais feliz na situação de escravo do
que na de homem livre, pois não estava apto a conduzir a própria vida (COSTA,
2010, p. 343).
Embora a Abolição tenha alterado a estrutura econômica do Estado, não interviu
profundamente na dinâmica das relações hierárquicas do período escravocrata, isto é,
extinguiu, de certo, os papéis de “senhor” e de “escravizado”, mas manteve intactas as
distâncias sociais que os separavam. Ato contínuo, o 13 de Maio também não atuou em
relação ao imaginário pré-existente sobre o negro, mantenedor de preconceitos seculares, de
modo a modificá-lo com vistas à inserção do ex-cativo na sociedade pós-escravidão. Em
verdade, o Estado alimentou-o mais, nutrindo-o de novas feições que não derivavam apenas
da negação ao pleno exercício da cidadania, mas, principalmente, do suporte ao racismo
cientificista importado do Velho Mundo, embora já desacreditado em grande parte do
continente europeu.
A transição do sistema escravocrata para o de trabalho livre se fez acompanhar,
portanto, do advento de determinadas teorias cientificistas legitimadoras de uma ordem
53
eurocêntrica de mundo43
. A partir de 1870, em concomitância com a Lei do Ventre Livre, o
Império multiplicou os centros de pesquisa do país, criando e renovando instituições à
semelhança daquelas existentes na Europa. Deu-se, desde então, a importação de teses e
autores que, a despeito de suas diferenças conceituais, apontavam em uníssono para a
consolidação e concentração de poder por uma elite branca, considerada superior, civilizada e
progressista. Silveira destaca:
O racismo científico foi [...] uma parte importantíssima da estruturação, pela
primeira vez na história da humanidade, de uma hegemonia abrangendo todo o
globo terrestre. [...] A Ciência tinha ganho contra a Igreja a dura guerra pela
prerrogativa de falar a Verdade sobre a natureza e a sociedade, tinha se associado à
técnica e à indústria, tinha criado instituições poderosas nas quais produzia-se um
discurso que era sinônimo de pertinência e potência. Este discurso [...] estabeleceu
"objetivamente" a superioridade racial das elites européias, o que conotava sua
superioridade cultural, religiosa, moral, artística, política, técnica, militar e
industrial. Tudo cientificamente comprovado. O racismo científico foi um fator
estruturante da ordem ocidental (SILVEIRA, 1999, p. 89-90).
Bosi (2010, p. 271) considera que o ideário construído à luz desta ciência “[...] fez as
vezes do mito de Cam racionalizado [...]” (Grifos do autor). O pesquisador percebe uma
continuidade de imaginários sobre as populações não-brancas que se mantém inalterável no
pensamento branco-ocidental, qual seja, o da inferioridade e consequente subserviência –
justificada primeiramente no plano religioso e, em seguida, pelo rigor científico. A constância
destacada por Bosi, facilmente verificável pelo percurso pretendido nesta seção, aponta, pois,
para a manutenção das hierarquias raciais. Ora, se esta ciência provava “objetivamente” a
superioridade do homem branco em relação ao negro, os postos de mando e poder conservar-
se-iam incólumes à transição entre sistemas de produção. Assim, como atesta Ortiz (1994), a
importação destes modelos cientificistas baseados na ideia de raça não se deu ao acaso ou por
pura propensão à cópia da matriz europeia, mas por favorecer a manutenção da estrutura
excludente sobre a qual o país se constituiu e desejava permanecer. Schwarcz argumenta:
Em meio a um contexto caracterizado pelo enfraquecimento e final da escravidão, e
pela realização de um novo projeto político para o país, as teorias raciais se
apresentavam enquanto modelo teórico viável na justificação do complicado jogo de
interesses que se montava. Para além dos problemas mais prementes relativos à
substituição da mão-de-obra ou mesmo à conservação de uma hierarquia social
bastante rígida, parecia ser preciso estabelecer critérios diferenciados de cidadania.
43
Não cabe a esta dissertação uma análise pormenorizada das tendências cientificistas dos Oitocentos europeu,
mas apenas indicar o papel que tais teorias desempenharam na estrutura social brasileira, bem como o lugar da
mestiçagem nelas ressignificado.
54
É nesse sentido que o tema racial, apesar de suas implicações negativas, se
transforma em um novo argumento de sucesso para o estabelecimento das diferenças
sociais (SCHWARCZ, 1993, p. 18).
Também Ventura (2000, p. 354) compartilha desta interpretação. Segundo o autor o
“[...] racismo científico foi adotado, de forma quase unânime, a partir de 1880, enviesando as
idéias liberais, ao refrear suas tendências democráticas e dar argumentos para estruturas
sociais e políticas autoritárias”.
Se as teorias raciais permitiam, por um lado, à sociedade pós-escravista estruturar-se
hierarquicamente de forma a manter o ordenamento prévio, por outro ocasionavam um
inconveniente entrave para se pensar o país, porquanto se considere seu caráter altamente
mestiço – denunciador da presença negra para além da condição servil. Desta forma, as
mesmas teorias que possibilitavam manter os postos de mando das elites brancas frente aos
ex-cativos, desqualificavam-nas em relação a determinados povos europeus, considerados
puros. A mestiçagem incapacitaria o Brasil a trilhar o caminho da evolução e do progresso
porque redutora das potencialidades únicas presentes na raça branca. Em verdade, para estes
teóricos a mestiçagem não seria apenas terrível para os povos brancos, mas também para os
não-brancos uma vez que resultaria inevitavelmente em seres inferiores àqueles que lhes
deram origem. Neste sentido, “[...] a mestiçagem existente no Brasil não só era descrita como
adjetivada, constituindo uma pista para explicar o atraso ou uma possível inviabilidade da
nação” (SCHWARCZ, 1993, p. 13).
A revista BRAVO!, na edição de maio de 2011, revelou alguns trechos de cartas
escritas por Monteiro Lobato, ainda inéditas. É possível compreender, através destes
documentos pessoais, em que sentido se faz a adjetivação comentada por Schwarcz posto que,
para o escritor, em carta a Arthur Neiva, o povo baiano é “[...] positivamente um resíduo, um
detrito biológico” (NIGRI, 2011, p. 30). Em outra carta, desta vez sobre o Rio de Janeiro e
endereçada a Godofredo Rangel, Lobato é mais incisivo:
Dizem que a mestiçagem liquefaz essa cristalização racial que é o caráter e dá uns
produtos instáveis. Isso no moral – e no físico, que feiura! Num desfile, à tarde, pela
horrível Rua Marechal Floriano, da gente que volta para os subúrbios, que
perpassam todas as degenerescências, todas as formas e má-formas humanas –
todas, menos a normal. Os negros da África, caçados a tiro e trazidos à força para a
escravidão, vingaram-se do português de maneira mais terrível – amulatando-o e
liquefazendo-o, dando aquela coisa residual que vem dos subúrbios pela manhã e
reflui para os subúrbios à tarde (NIGRI, 2011, p. 33).
55
Os fragmentos acima exemplificam, para além da opinião pessoal do escritor, o teor
com que se apresentam as teorias raciais aqui referidas. Em verdade, torna-se mesmo possível
entrever suas correntes mais pessimistas, como as teses do Conde de Gobineau, poligenista
francês que creditava unicamente à mestiçagem a razão de declínio dos grandes impérios da
humanidade (SCHWARCZ, 1993; HOFBAUER, 2006). Para o teórico francês não haveria
uma humanidade única, nascida uniforme, mas, sim, múltiplas e cindidas humanidades,
dotadas de potencialidades e destinos diferentes e opostos. A seguir este pensamento, a
miscigenação entre estas humanidades divergentes provocaria um colapso nas possibilidades
civilizacionais decorrentes da raça considerada superior, o que provocaria a inevitável
derrocada e deterioração. Segundo Silveira (1999, p. 110), Gobineau propunha: “[...] em todas
elas [civilizações], os „elementos de vida‟ teriam sido introduzidos pela raça branca e os
„elementos de morte‟ provenientes das raças anexadas pelos civilizadores ou das desordens
introduzidas pelas misturas de sangue”.
As ideias de Gobineau, assim como a Antropologia Criminal de Lombroso, tiveram
ampla penetração no pensamento social brasileiro44
. Importante destacar, como faz Schwarcz
(1993), que a entrada e popularização da “moda cientificista” no Brasil ocorreram pelo viés da
literatura, principalmente por romances naturalistas, e não pelo caminho estrito da ciência45
.
Ora, a descrição de Pai-Raiol, outrora salientada por Süssekind, assemelha-se imensamente ao
quadro fenotípico traçado por Lombroso como resultante de atavismos – em que pesem a obra 44
Sobre o pensamento de Lombroso, Silveira afirma: “O crime e o comportamento anti-social não foram
considerados por Lombroso atividades deliberadas, voluntárias, mas fenômenos espontaneamente naturais,
manifestando-se tanto no meio animal quanto no vegetal. Como os positivistas consideravam o livre arbítrio uma
doce quimera, nos seres humanos as disposições amorais e homicidas viriam deterministicamente de estruturas
psíquicas e físicas inatas, de mandíbulas pesadas, fraca capacidade craniana, maxilares volumosos, rostos
simiescos, anomalias no orifício occipital, nariz torto ou adunco, barba rara ou ausente, cabeleira abundante,
fisionomia feminina no homem e viril na mulher, alta proporção de canhotos, etc., etc., herdadas de um passado
animal obscuro. [...] Essa propensão ao crime e à ausência de moralidade prolongar-se-iam normalmente entre os
povos "selvagens" ou "primitivos", [...] [recheando], segundo Lombroso e consortes, a vida cotidiana das raças
coloridas” (SILVEIRA, 1999, p. 127-8). 45
“O sucesso de público das obras naturalistas demonstrava que atendiam a condições internas, que estavam
organicamente ligadas à sociedade brasileira de fins do século passado” (SÜSSEKIND, 1984, p. 59). E ainda:
“Acreditava-se, à época, fundamentalmente no poder das „idéias‟ e dos „intelectuais‟ de transformarem a
sociedade. De uma modernização científica da linguagem literária implicar uma efetiva mudança social no país.
De haver „remédios‟ e „receitas‟ capazes de curar um „organismo social doente‟. O dominante era o iluminismo,
o culto da inteligência, uma ideologia ilustrada. E a ansiosa defesa das ciências e da modernização, se bastante
crítica com relação ao beletrismo e a tradição humanítisca do passado imediato, não foi tão longe a ponto de se
fazer acompanhar de uma linguagem política mais radical que a do liberalismo e das „lutas pelo direito‟”.
(SÜSSEKIND, 1984, p. 130-1). Por último, a partir do conto “Heranças”, de Aluísio de Azevedo, afirma
novamente Süssekind (1984, p. 84): “Não são apenas as semelhanças entre pai e filho que ficam restauradas de
acordo com uma irascibilidade e uma sintomatologia consagüínea. Também o indivíduo e a nação a que pertence
tornam-se „organismos‟ análogos, cujo funcionamento e possíveis diagnósticos ficam a cargo da fisiologia. Ou,
nas palavras de Sílvio Romero: „O que se diz da vida orgânica dos indivíduos, se deve repetir também da vida
super-orgânica das sociedades [...]‟. E ficam resguardadas as analogias familiares e a identidade nacional, desde
que postas em „letras de forma‟ de acordo com as leis da hereditariedade, a noção de caráter nacional e a
fisiologia”.
56
As vítimas-algozes antecipar tendências estéticas naturalistas e a intenção de Macedo em
distinguir o africano, atávico, do crioulo, melhorado pelo clima e pelo meio. Da mesma
forma, os efeitos da aproximação entre Rita Baiana e Jerônimo em O cortiço, de Aluísio de
Azevedo, parecem metaforizar os ensinamentos de Gobineau, uma vez que:
Jerônimo, imigrante português, chega ao Brasil com todos os atributos conferidos à
raça branca: força, persistência, previdência, gosto pelo trabalho, espírito de cálculo.
Sua aspiração básica: subir na vida. Porém, ao se amasiar com uma mulata (Rita
Baiana), ao se “aclimatar” ao país [...] ele se abrasileira, isto é, torna-se dengoso,
preguiçoso, amigo das extravagâncias, sem espírito de luta, de economia e de ordem.
No início do romance Jerônimo ocupa a mesma posição que João Romão, outro
português que participa também das qualidades étnicas da raça branca. [...] No
entanto, o desfecho do romance é parabólico. João Romão, calculista e ambicioso,
ascende socialmente no momento em que se distancia da raça negra [...]; Jerônimo,
ao se abrasileirar, não consegue vencer a barreira de classe, e permanece “mulato”,
junto à população mestiça do cortiço (ORTIZ, 1994, p.39) 46
.
O corte que se instaura entre o destino daquele que se mantém “puro”, qual seja, o da
ascensão, e a estagnação daquele que se miscigena comporta um plano de nação condizente
com as determinações do conde francês, ainda que Azevedo não seja simpático a Romão.
Admitindo-se esta perspectiva, o Brasil, personificado no cortiço e, mais precisamente, em
Jerônimo, é concebido como alheio aos avanços de civilizações outras, porquanto brancas.
O pessimismo que decorre desta interpretação do país tem seu principal arauto em
Nina Rodrigues, médico que conferiu “[...] às raças o estatuto de realidades estanques [e]
defendeu que toda mistura seria sinônimo de degeneração” (SCHWARCZ, 2009, p. 93).
Desta forma, o maranhense radicado na Bahia era taxativo: “A raça negra no Brasil, por
maiores que tenham sido os seus incontáveis serviços à nossa civilização, [...] há de constituir
sempre um dos fatores da nossa inferioridade como povo” (RODRIGUES, 1977, p. 7).
Vinculado teoricamente às premissas do darwinismo social e da antropologia criminal,
Rodrigues entendia a “[...] criminalidade mestiça [como] uma particularidade nacional”
(SCHWARCZ, 2009, p. 93) – o que levou o autor a reivindicar uma intervenção médica,
baseada em princípios de antropometria e frenologia, no Código Penal do país47
. Com efeito,
46
As mudanças experimentadas por Jerônimo podem ser lidas também através da Lei da Obnubilação Brasílica,
cunhada pelo crítico literário oitocentista Araripe Júnior como premissa para a interpretação da história literária
nacional e comentada por Cairo (2007, p. 496-497), que afirma a abrangência de tal lei para entender tanto as
adaptações de europeus aos trópicos quanto das ideias provenientes do Velho Mundo. 47
“[Nina Rodrigues] defendia que a raça fosse considerada como atenuante da responsabilidade penal, de modo
a se poder lidar com a „criminalidade étnica‟, resultante da coexistência, em uma mesma sociedade, de povos ou
raças em etapas evolutivas distintas. O negro, que ainda não havia ultrapassado o estádio infantil da humanidade,
tenderia não só à loucura e à paranoia, como também ao crime devido à sobrevivência psíquica de caracteres
retrógrados. O mestiço também apresentaria alto grau de criminalidade em razão da degeneração resultante do
cruzamento de raças díspares” (VENTURA, 2000, p. 347).
57
Rodrigues associava mestiçagem, degenerescência e crime uma vez que o “[...] cruzamento de
raças tão diferentes antropologicamente, como são as raças branca, negra e vermelha, [resulta]
num produto desequilibrado e de frágil resistência física e moral, não podendo se adaptar [...]
às condições de luta social das raças superiores” (RODRIGUES, 2008, p. 1161). Em
decorrência de tais perspectivas, Rodrigues questiona “[...] a possibilidade de um
desenvolvimento próspero do país” (HOFBAUER, 2006, p. 204).
A improbabilidade de um futuro, tão marcante na postura científica de Nina
Rodrigues, não é uma concepção generalizada. Antes, operou-se uma ressignificação do papel
que a mestiçagem desempenhava nestas teorias de modo a adaptá-las para o contexto racial
brasileiro, o que possibilitaria a construção de um projeto para o país. Costa verifica que
Quando olhamos mais de perto o que esses intelectuais faziam com as ideias raciais
europeias, torna-se claro que eles não eram passivos receptores de ideias produzidas
no exterior, meras vítimas de uma mentalidade colonial que procuravam ver sua
realidade através de ideias vindas do estrangeiro. Seria talvez mais correto dizer que
eles viam aquelas ideias através de sua realidade. A elite branca brasileira já tinha
em sua própria sociedade os elementos necessários para forjar sua ideologia racial.
Tinha aprendido desde o período colonial a ver os negros como inferiores. Tinha
também aprendido a abrir exceções para alguns indivíduos negros ou mulatos.
Qualquer europeu ou americano que postulasse a superioridade branca seria
necessariamente bem recebido. Ele traria a autoridade e o prestígio de uma cultura
superior para ideias já existentes no Brasil. Os brasileiros teriam apenas de fazer
alguns ajustes. E os fizeram. [...] Assim, embora afirmando a superioridade dos
brancos sobre os negros, eles tinham meios para aceitar negros em seus grupos. E
tinham a esperança de eliminar o “estigma” negro no futuro, através da
miscigenação (COSTA, 2010, p. 375-376. Grifos do autor).
A mestiçagem, originalmente teorizada como processo de degradação social, sofre
uma inflexão semântica e passa a representar, para os pesquisadores brasileiros, a
possibilidade de uma identidade nacional, contanto que incida em branqueamento da
população. A ideia jazia na propriedade “purificadora” do sangue branco, presumido superior,
que, após cruzamentos sucessivos entre gerações, eliminaria não só os atavismos oriundos da
presença negra como também, e principalmente, a própria presença negra. Outra não é a
projeção de João Baptista Lacerda, então diretor do Museu Nacional, que, no Primeiro
Congresso Universal das Raças, em 1911, vislumbrava um Brasil sem negros e com uma
população incipiente de mestiços em pouco mais de cem anos48
. “Surgia, portanto, uma saída
48
“Tal prognóstico não era propriamente uma idéia nova, pois fazia parte de uma história longa marcada pelo
ideário do branqueamento. Vimos que em 1821 Franco e Sequeira – apoiados em análises e propostas quase
idênticas – tinham projetado o fim de raça negra igualmente num período de cem anos” (HOFBAUER, 2006, p.
211). Ainda que não seja novidade, como afirma o pesquisador, o contexto em que a análise de Lacerda se
insere, tempos de reestruturação da sociedade pós-escravista, conforma-a de maneira singular às projeções que
lhe são anteriores.
58
brasileira para a questão étnica: fundir para extinguir as raças tidas como inferiores”
(VENTURA, 2000, p. 355). Desta forma, Ortiz (1994, p. 21) considera que a “[...] temática da
mestiçagem é [...] real e simbólica: concretamente se refere às condições sociais e históricas
do amálgama étnico que transcorre no Brasil, simbolicamente conota as aspirações
nacionalistas que se ligam à construção de uma nação brasileira”. Schwarcz (1993) considera
que esta saída conceitual através da noção de branqueamento se constitui em uma
originalidade brasileira, possível apenas pelo amálgama teórico originário da necessidade dos
intelectuais em “[...] lidar com uma parte da teoria [responsável pela hierarquização racial] e
obliterar outra [quando referente aos aspectos negativos da mestiçagem]” (SCHWARCZ,
1996, p. 172). Assim, novamente a pesquisadora afirma:
Do darwinismo social adotou-se o suposto da diferença entre as raças e sua natural
hierarquia, sem que se problematizassem as implicações negativas da miscigenação.
Das máximas do evolucionismo social sublinhou-se a noção de que as raças
humanas não permaneciam estacionadas, mas em constante evolução e
“aperfeiçoamento”, obliterando-se a idéia de que a humanidade era una. Buscavam-
se, portanto, em teorias formalmente excludentes, usos e decorrências inusitados e
paralelos, transformando modelos de difícil aceitação local em teorias de sucesso
(SCHWARCZ, 1993, p. 18).
Conforme afirmam Ventura (2000), Azevedo (2004) e Hofbauer (2006), as políticas
de imigração da República eram claras quanto à perspectiva de branquear a população
brasileira, posto facilitassem a entrada de europeus no país, mas restringissem a vinda de
novos africanos, bem como de povos outros considerados não ideais ao desenvolvimento
racial, como os chineses ou “chins”. Dados os discursos nacionalistas deste contexto,
Azevedo (2004, p. 124) destaca que a demonstração de amor à pátria, nos primeiros anos do
século XX, perpassava necessariamente pela modificação da “[...] raça, purificando-a
mediante a transfusão de sangue de raças superiores”. Destarte, Guimarães (2005, p. 53)
constata que a ideologia do “[...] „embranquecimento‟ foi elaborada por um orgulho nacional
ferido, assaltado por dúvidas e desconfianças a respeito do seu gênio industrial, econômico e
civilizatório” e, assim como Schwarcz, defende a especificidade desta noção como
demarcativa do racismo brasileiro49
.
A teoria do branqueamento promoveu uma aparente maleabilidade na rígida estrutura
sócio-racial do país. Salvas as elites, protegidas por um projeto branco de nação, os mestiços
49
“Assim é o racismo brasileiro: sem cara. Travestido em roupas ilustradas, universalistas, tratando-se a si
mesmo como antirracismo, e negando, como antinacional, a presença integral do afro-brasileiro ou do índio-
brasileiro. Para este racismo, o racista é aquele que separa, não o que nega a humanidade de outrem; desse modo,
racismo, para ele, é o racismo do vizinho (o racismo americano)” (GUIMARÃES, 2005, p. 60).
59
de pele mais clara, cujas heranças de feições africanas não mais se fizessem notar, ascendiam
a postos que antes lhes eram negados, o que influía psicologicamente na identificação dos
sujeitos, fazendo-os rejeitar ou dissimular quaisquer laivos de pertença a povos não-brancos.
Hofbauer afirma:
Isso porque o ideário do branqueamento induz a negociações pessoais e contextuais
das fronteiras e das identidades dos indivíduos. Essa prática social contribuiu não
apenas para encobrir o teor discriminatório embutido nessa construção ideológica
mas também para abafar uma reação coletiva. Assim, a ideologia do branqueamento
“atua” no sentido de dividir aqueles que poderiam se organizar em torno de uma
reivindicação comum, e faz com que as pessoas procurem se apresentar no cotidiano
como o mais “branco” possível (HOFBAUER, 2006, p. 213).
O branqueamento permitia equacionar, em um só modelo teórico, a estrutura
hierárquica pretendida para o Brasil, qual seja: uma elite branca – posição justificada pelas
concepções evolucionistas e darwinistas sociais –, uma grande camada de gente mestiça,
socialmente distribuída a partir de caracteres fenotípicos e comportamentais e, na base, os
negros. Estes tenderiam duplamente a desaparecer por conta de sua própria inferioridade,
incapacitante para a convivência com raças supostamente superiores, ou pelo caldeamento
racial, o que viria a aumentar o percentual de mestiços quase-brancos ou quase-negros, a
depender de uma série de fatores situacionais.
Munanga (2008, p. 75) afirma que, quando propuseram esta saída, as elites brancas
tinham “[...] clara consciência de que o processo de miscigenação, ao anular a superioridade
numérica do negro e ao alienar seus descendentes mestiços graças à ideologia do
branqueamento, ia evitar os prováveis conflitos raciais conhecidos em outros países [...]”. Ou
seja, o pesquisador conclui por uma intencionalidade consciente na formatação do mito de
uma democracia racial, possível a partir do branqueamento50
. O “medo branco” suscitado pelo
“perigo negro”, que perpassou, em alardes crescentes, todo o século XIX, encontra, enfim, o
seu ponto de alívio. A mestiçagem não somente garantiria o poder ao segmento branco do
país, como, ato reflexo, quebraria a “[...] unidade entre os próprios mulatos, dificultando a
formação da identidade comum do seu bloco, já dividido entre os disfarçáveis (mais claros) e
os indisfarçáveis (mais escuros) e o resto dos visivelmente negros” (MUNANGA, 2008, p.
65).
50
Costa (2010, p. 376-7), não obstante concorde com relação aos efeitos da ideologia da mestiçagem, que
desemboca no mito da democracia racial, afirma que “[...] isso não significa dizer que ele [o mito] tenha sido
criado expressamente pela elite branca para cumprir essas funções. Não podemos inferir intenções e finalidades
de efeitos ou funções. Em outras palavras, devemos distinguir as funções do mito de seus usos (manipulação
expressa)”.
60
A concepção teórica do branqueamento perdura praticamente inconteste até o decênio
de 1930, quando as bases raciais de análise e interpretação são subvertidas por tendências
políticas, econômicas e culturalistas51
. Suas marcas, como já descrito no início do preâmbulo,
permanecem atuantes por toda a centúria e ainda nestes primeiros anos do século XXI, o que
indicia o grau de enraizamento das teorias raciais no cotidiano do povo brasileiro, mesmo
entre aqueles que nunca tiveram acesso às leituras de Gobineau, Lombroso, Nina Rodrigues,
Lacerda ou Oliveira Vianna, entre outros.
Entre 1870 e 1930 destacam-se duas abordagens “científicas” da mestiçagem. A
primeira, de repercussão mais restrita posto implicasse pessimismo, apreende os contatos
inter-raciais como deletérios das aptidões inatas das raças envolvidas no consórcio, o que
acarreta invariavelmente a degeneração. É o caso das assertivas de Nina Rodrigues, que se
estendem nas cartas supracitadas de Monteiro Lobato, escritas em 1935 e 1944,
respectivamente. Aliás, em outra carta, cujo trecho também fora publicado por Nigri (2011, p.
26), Lobato escreve: “País de mestiços, onde branco não tem força para organizar uma Kux-
Klan (sic) é país perdido para altos destinos”. Para esta perspectiva, a mestiçagem resulta tão
somente negativa.
Outra abordagem desconsidera o fator de degenerescência, constante nas teorias
originais, e introduz a noção de branqueamento como forma de possibilitar um projeto de
nação, antes obstacularizado por sua indisfarçável feição mestiça. Mais generalizada, esta
tendência tinha a vantagem não só de manter a hierarquia sócio-racial inalterada, como de
promover a sensação de sua inexistência uma vez considerada a mobilidade de determinados
mestiços – os de pele e comportamento mais próximos aos daqueles de padrão branco. Com
isso, objetivava o silencioso extermínio das populações não-brancas através do corrente e por
quase todos desejável caldeamento racial. Muitos são os que se associam a este ponto de vista
como Sílvio Romero, conquanto abandone o “otimismo” em fase posterior, Euclides da
Cunha, Oliveira Vianna e João Baptista Lacerda.
Ora, somem-se a estas duas possibilidades teóricas as observações tecidas aqui sobre
os sentidos da mestiçagem na poesia de Gregório de Matos e na tríade indianista de Alencar,
não obstante a definição estrita de raça lhes fosse ausente. Uma conclusão se impõe: seja na
Colônia, no Império ou na República, a mestiçagem, quando representada e analisada apenas
em face de si mesma, sem quaisquer implicações teóricas ou literárias que denotem
branqueamento do negro ou do indígena, acarreta invariavelmente aquele olhar de esguelha e
51
A respeito destas vertentes teóricas e das obras que as inauguram no Brasil, Cf. MOTA, Carlos Guilherme.
Introdução. In: ______. Ideologia da cultura brasileira (1933-1974). 3.ed. São Paulo: Ed. 34, 2008. p. 59-92.
61
repulsa, reportado algumas vezes neste texto, de que fora tradicionalmente alvo. Por outro
lado, quando investida científica e literariamente do poder simbólico de expandir a
branquitude e promover o eurocentrismo, apresenta a atuação revestida de positividade.
Embora passível de apreensão positiva, a mestiçagem não o fora em si, mas apenas como um
movimento de transição, cujo norte apontava insistentemente para o branqueamento.
Em que pesem o percurso delineado nas últimas páginas e a conclusão acima
resultante, elementos ilustrativos da continuidade de uma tradição aversiva ao mestiço, as
teses gilbertianas acerca do ethos nacional, entre as quais a mestiçagem exerce uma
centralidade positiva52
, enformam, sim, uma revolução conceitual53
. Para além do estrito
biologismo dos vários determinismos oitocentistas, redundante em demarcações arbitrárias de
níveis e critérios de humanidade, Gilberto Freyre assume o culturalismo de Franz Boas, de
quem fora discípulo, como perspectiva teórica a guiar a análise da formação patriarcal
brasileira. Este viés interpretativo implica a supressão da noção de raça como categoria de
estudo, elevando-se a esta condição os sistemas culturais delimitativos de povos, observados
através das conformações históricas, sociológicas, econômicas e psicológicas que os
condicionam. Desvinculado, portanto, das ingerências raciológicas da ciência brasileira à
época, Freyre argumentava compreender “[...] o negro e o mulato no seu justo valor [...]”
porquanto separasse raça e cultura, o que o levava a diferenciar “[...] os efeitos de relações
puramente genéticas e os de influências sociais, de herança cultural e de meio” (FREYRE,
2006, p. 32). Assim, para Skidmore (2003, p. 64) “Casa-grande & Senzala agiu como um
catalisador, trazendo à superfície uma série de questões que vinham, desde o final do Império,
incomodando os brasileiros „pensantes‟”. Ainda de acordo com o pesquisador, nesta obra
Longe de provar que os determinismos estavam errados, Freyre celebrava sua
irrelevância. Ele os encobriu num retrato ricamente detalhado de um Brasil colonial
multi-racial. E convidou os brasileiros a chegarem à conclusão de que os
portugueses, assim como os índios e os afro-brasileiros, haviam criado um ambiente
e uma população tão saudável como qualquer outra do mundo (SKIDMORE, 2003,
p. 63).
Ainda a respeito de Casa-grande & Senzala, Ribeiro (1979, p. 65) a classifica como
responsável por “[...] nos reconciliarmos com nossa ancestralidade lusitana e negra [...]”;
52
Para Freyre “[...] a relação senhor/escravo é doentia, sadomasoquista, e trouxe más consequências para a
miscigenação. Mas esta, em si, é só um bem” (REIS, 2007, p. 69). 53
Não se ignora, sobremaneira, a existência de pensadores como Manoel Bonfim, Alberto Torres ou Manuel
Querino que, embora imersos no contexto estudado, divergem em absoluto dos pressupostos teóricos elencados.
Contudo, suas obras não obtiveram repercussão necessária de modo que se possa afirmar que tenham abalado as
estruturas do pensamento da época.
62
ascendências inferiores e problemáticas, a julgar pelas premissas do evolucionismo mais
ortodoxo. De fato, ter afastado a sombra da degenerescência e das dúvidas que pairavam por
sobre os ancestrais brasileiros e, principalmente do produto deles nascente, é um mérito de
Freyre. A ideia de pureza, tão cara aos ismos do século XIX, não se afigurava ao pensamento
do antropólogo pernambucano como imprescindível ou mesmo relevante à história das
nações; antes, caberia à natureza miscigenada do português, tocada tão intensamente por
sangue mouro, lograr êxito à colonização e empresa do Brasil.
Conforme acreditava Freyre, a presença árabe na Península Ibérica agiu
psicologicamente sobre o português de forma a diferenciá-lo dos outros europeus,
mergulhados em preconceitos de raça. Em consequência desta ação, o critério de identidade
assumido pelo lusitano aproximou-se mais da religião, ou seja, o catolicismo como padrão
excludente, do que propriamente da identificação racial, praticamente inexistente em território
português54
. Ao colonizador originário desta relação sui generis, portanto, não foram
imputadas restrições morais ou éticas que o impediriam de miscigenar-se com os povos
colonizados, quais fossem. Ademais, a prática de uma ampla miscigenação, ainda de acordo
com Freyre, teria sido a única forma de garantir a posse dos territórios conquistados a
Portugal, uma vez considerada sua população diminuta para a criação, consolidação e
manutenção de sociedades coloniais55
.
Da junção entre as predisposições próprias do lusitano e o imperativo da
miscigenação, Freyre cunhou a imagem de um colonizador cosmopolita, plástico e
contemporizador que, a despeito das rígidas estruturas hierárquicas adotadas, deu forma a
uma sociedade “[...] híbrida de índio – e mais tarde de negro – na composição. Sociedade que
se desenvolveria defendida menos pela consciência de raça, quase nenhuma no português [...]
do que pelo exclusivismo religioso, desdobrado em sistema de profilaxia social e política”
(FREYRE, 2006, p. 65)56
. Assim é que Freyre (2006, p. 367) determina: todo “[...] brasileiro,
54
“Predisposto pela sua situação geográfica a ponto de contato, de trânsito, de intercomunicação e de conflito
entre elementos diversos, quer étnicos, quer sociais, Portugal acusa em sua antropologia, tanto quanto em sua
cultura, uma grande variedade de antagonismos, uns em equilíbrio, outros em conflito. Esses antagonismos em
conflito são apenas a parte indigesta da formação portuguesa: a parte maior se mostra harmoniosa nos seus
contrastes, formando um todo social plástico, que é o caracteristicamente português” (FREYRE, 2006, p. 278). 55
“O escravocrata terrível que só faltou transportar da África para a América, em navios imundos, que de longe
se adivinhavam pela inhaca, a população inteira de negros, foi por outro lado o colonizador europeu que melhor
confraternizou com as raças chamadas inferiores. O menos cruel em suas relações com os escravos. [...] o
português sempre pendeu para o contato voluptuoso com mulher exótica. Para o cruzamento e miscigenação”
(FREYRE, 2006, p. 265). 56
O regime de escravidão, aliás, é defendido e justificado pelo autor: “Tenhamos a honestidade de reconhecer
que só a colonização latifundiária e escravocrata teria sido capaz de resistir aos obstáculos enormes que se
levantaram à civilização do Brasil pelo europeu. Só a casa-grande e a senzala. O senhor de engenho rico e o
negro capaz de esforço agrícola e a ele obrigado pelo regime de trabalho escravo” (FREYRE, 2006, p. 323).
63
mesmo o alvo, de cabelo louro, traz na alma, quando não na alma e no corpo [...] a sombra, ou
pelo menos a pinta, do indígena ou do negro”; afirmação com a qual anuncia a especificidade
mestiça do país.
Em paralelo à tematização positiva da mestiçagem, e justamente em decorrência dela,
Freyre reivindica o lugar do negro, trazido ao primeiro plano da argumentação, como
constituinte ativo e civilizador do Brasil uma vez que sua presença, fazendo-se sentir no
íntimo das relações características do país, como também na religião, na língua e na culinária,
é indissociável do ethos que configura o nacional. Destarte, mais do que ao indígena, Freyre
atribui ao negro uma participação singular na conformação do brasileiro:
Os escravos vindos das áreas de cultura negra mais adiantada foram um elemento
ativo, criador, e quase que se pode acrescentar nobre na colonização do Brasil;
degradados apenas pela sua condição de escravos. Longe de terem sido apenas
animais de tração e operários de enxada, a serviço da agricultura, desempenharam
uma função civilizadora. Foram a mão direita da formação agrária brasileira, os
índios, e sob certo ponto de vista, os portugueses, a mão esquerda (FREYRE, 2006,
p. 390).57
A inclusão do negro não só como instrumento servil de trabalho, lastro econômico da
Colônia e do Império, mas em sua dimensão civilizatória, isto é, na medida das influências
que exerceu sobre o índio e, em maior escala, sobre o português, comporta uma
ressignificação da diretriz historiográfica em vigência na época. A partir do já referido plano
de Von Martius para uma história do Brasil, baseado na apreensão e inquirição das
contribuições negras e indígenas, se existentes e positivas à colonização portuguesa,
estabeleceu-se certa tradição negativista quanto à presença africana. Esta tradição, que se
espraiou praticamente inconteste até os anos 1930, em concomitância com as teorias raciais,
57
A despeito da preponderância concedida a Freyre sobre qualquer outro autor que lhe fosse contemporâneo, não
se lhe pode conferir ineditismo ao ponto de vista destacado. Manuel Querino, em comunicação apresentada ao 6º
Congresso Brasileiro de Geografia, intitulada O colono preto como factor da civilização brazileira, afirma: “Foi
com o producto do seu trabalho [do negro] que tivemos as instituições scientificas, letras, artes, commercio,
industria, etc., competindo-lhe, portanto, um logar de destaque, como factor da civilização brazileira.
Quem quer que compulse a nossa historia certificar-se-á do valor e da contribuição do negro na defeza do
territorio nacional, na agricultura, na mineração, como bandeirante, no movimento de independencia, com as
armas na mão, como elemento apreciavel na familia, e como heróe do trabalho em todas as applicações uteis e
proveitosas. Fôra o braço propulsor do desenvolvimento manifestado no estado social do paiz, na cultura
intellectual e nas grandes obras materiaes, pois que, sem o dinheiro que tudo move, não haveria educadores nem
educandos: feneceriam as aspirações mais brilhantes, dissipar-se-iam as tentativas mais valiosas. Foi com o
producto do seu labor que os ricos senhores puderam manter os filhos nas Universidades europeias, e depois, nas
faculdades de ensino do paiz [...].
Do convívio e collaboração das raças na feitura deste paiz procede esse elemento mestiço de todos os matizes,
donde essa pleiade illustre de homens de talento que, no geral, representaram o que ha de mais selecto nas
affirmações do saber, verdadeiras glorias da nação. [...]
Tratando-se da riqueza econômica, fonte da organização nacional, ainda é o colo preto a principal figura, o factor
máximo” (QUERINO, 1918, p. 35-37).
64
denegava ao africano, bem como a seus descendentes, o reconhecimento do papel civilizatório
que lhes coube ao afirmar que o desenvolvimento empreendido e alcançado pelo país fora
prejudicado devido à presença negra. A História Geral do Brazil (1854-1857), de Varnhagen
– espécie de obra inaugural desta linhagem – lastima, sem meias palavras, que primeiro
Portugal e, após a Independência, o Império houvessem importado negros africanos para o
trabalho servil nas grandes plantações de cana e café, política com a qual conspurcaram e
dificultaram o movimento ascensional do Brasil à civilização58
. O historiador acreditava que
uma colonização baseada na pequena propriedade, em mãos brancas e sem qualquer laivo
negro, teria acarretado um desenvolvimento diferente e mais benéfico ao país. Devido à
impossibilidade óbvia de um retorno ao zero para uma nova configuração de Brasil,
Varnhagen mantinha, ainda que a contragosto, as esperanças voltadas para a miscigenação, de
modo que se apagassem as características de origem africana, visíveis e apreensíveis no
brasileiro.
Com maior ou menor explicitude, os historiadores que se seguiram a Varnhagen
responderam à pergunta obsedante de Martius da forma paradigmática presente na História
Geral do Brazil, qual seja, associando o parco desenvolvimento brasileiro à larga presença
africana. Reis (2007, p. 27) considera que somente em 1933, com a publicação de Casa-
grande & Senzala, surge uma resposta diferente. Neste sentido, àquela “[...] pergunta de Von
Martius [...], Freyre responde sem hesitar: a presença negra não comprometeu em nada a
criação portuguesa; pelo contrário foi um esteio indispensável” (REIS, 2007, p. 63-64).
Embasado nesta constatação, Freyre dedicou dois capítulos de Casa-grande & Senzala, os
quais recobrem a maior parte da obra, ao estudo acerca da influência do “escravo negro na
vida sexual e de família do brasileiro”. Em outras palavras, Freyre inaugurou um espaço,
antes diminuto, quando não inexistente, para observar a presença do negro na sociedade
brasileira sem que a perspectiva adotada para o estudo, o viés culturalista, viesse a incidir ou
até reforçar o equívoco elaborado a partir do determinismo biológico. Como afirma Costa
Lima (1989, p. 194), trata-se “[...] muito mais que um avanço na interpretação do país [...]”.
Na mesma medida em que Gilberto Freyre foi revolucionário – e por certo o foi, como
se intentou demonstrar aqui –, foi igualmente conservador, continuísta e reacionário. Freyre
talvez se apresente e venha a simbolizar, ele próprio, o “equilíbrio de antagonismos”, máxima
58
Registre-se que Reis (2007, p. 44) acredita que há momentos na obra de Varnhagen em que o historiador
parece “[...] ser menos racista e mais antiescravista: não é somente a presença negra no Brasil que o desagrada,
mas sobretudo a presença da escravidão. Se a presença do negro fosse, infelizmente, inevitável, que ocorresse
em outra condição; uma condição que o ligasse ao Brasil e o levasse a considerá-lo a sua pátria. Como escravo,
ele não se sentia e não poderia ser considerado luso-brasileiro”.
65
gilbertiana para explicar o desenvolvimento brasileiro, porquanto o binômio inovação e
permanência, frente a concepções passadistas, seja perfeitamente identificável em toda sua
obra59
. Ribeiro (1979, p. 64) chega mesmo a questionar, dada a improbabilidade de tal mescla,
como fora possível a alguém tão “[...] tacanhamente reacionário no plano político [...]”
escrever um livro “[...] generoso, tolerante, forte e belo”, como Casa-grande & Senzala60
.
Paradoxos à parte, um olhar que se detenha criticamente sobre a produção gilbertiana,
ainda que deslumbrado pela excelência da escrita, nota facilmente a insistência com que o
autor deriva algumas explicações da imbricação das categorias de raça e cultura, o que
constitui um amálgama impreciso dos alcances de um e de outro. Conquanto Freyre tenha
conferido a esta mistura feições e usos “neolamarckianos”, como teoriza Araújo (1994) por
conta dos efeitos adaptativos advindos da ação mesológica, é ainda a partir de determinadas
aptidões inatas ao português colonizador, ao negro africano e ao indígena, que Freyre os
descreve61
. De forma sintomática, cabe igualmente a estes caracteres a conformação do ethos
brasileiro, do qual decorre o modelo estruturado de sociedade. Costa Lima questiona:
Estaria pois o autor [Gilberto Freyre] dizendo que as raças trazem consigo
tendências específicas ou traços psicológicos que favorecem antes uma certa direção
que outra? Por mais contraditório que isso seja quanto ao suposto papel substantivo
de Boas em seu pensamento, esta parece ter sido a sua crença. Pouco lhe importa
que não possa determinar com precisão como se verificaria a incidência das
predisposições associadas a cada raça. É mesmo porque não o pode que lhe importa
a articulação dessa “predisposição” com elementos de ordem cultural! O que vale
dizer, em Gilberto Freyre o vetor cultural não vem substituir o velho preconceito que
privilegia a raça, senão que se lhe acrescente como maneira de lhe dar visibilidade
(LIMA, 1989, p. 205).
59
“Considerada de modo geral, a formação brasileira tem sido, na verdade, como já salientamos às primeiras
páginas deste ensaio, um processo de equilíbrio de antagonismos. Antagonismos de economia e de cultura. A
cultura europeia e a indígena. A europeia e a africana. A africana e a indígena. A economia agrária e a pastoril. A
agrária e a mineira. O católico e o herege. O jesuíta e o fazendeiro. O bandeirante e o senhor de engenho. O
paulista e o emboaba. O pernambucano e o mascate. O grande proprietário e o pária. O bacharel e o analfabeto.
Mas predominando sobre todos os antagonismos, o mais geral e o mais profundo: o senhor e o escravo
(FREYRE, 2006, p. 116). 60
Em entrevista concedida aos jornalistas Carlos Garcia e Lourenço Dantas Mota, originalmente publicada no O
Estado de São Paulo, em 9 de julho de 1979 e organizada em livro por Cohn (2010, p. 177), Freyre afirma ser
“[...] o homem dos paradoxos. Acredito muito na verdade que os paradoxos apresentam. Acho que quase todas
as verdades estão em paradoxos. Sou francamente paradoxal e, com isso, tenho tendência a escandalizar os bem-
pensantes. Os paradoxos chocam os bem-pensantes, e chocam também os matemáticos”. 61
“Na verdade, em vez de ser percebida [a ação mesológica] como um terceiro elemento isolado, que poderia
unicamente se somar aos anteriores [raça e cultura], esta noção deve ser compreendida como uma espécie de
intermediária entre os conceitos de raça e de cultura, relativizando-os, modificando o seu sentido mais freqüente
e tornando-os relativamente compatíveis entre si. Isto só é possível porque Gilberto trabalha com uma definição
fundamentalmente neolamarckiana de raça, isto é, uma definição que, baseando-se na ilimitada aptidão dos seres
humanos para se adaptar às mais diferentes condições ambientais, enfatiza acima de tudo a sua capacidade de
incorporar, transmitir e herdar as características adquiridas na sua – variada, discreta e localizada – interação
com o meio físico [...]” (ARAÚJO, 1994, p. 37. Grifos do autor).
66
Para Schwarcz (2010, p. 22), Freyre considera raça como “produto de um processo
dinâmico, que confunde meio e história [...]”. Decorre justamente desta concepção a imagem
lusa esboçada pelo autor. O português que colonizou o Brasil seria dotado naturalmente, por
conta das adaptações processadas por seus ancestrais, de uma “bicontinentalidade”, isto é,
seria oriundo tanto das condições sociais, históricas, culturais e climáticas europeias quanto
africanas62
. Esta característica, advinda da proximidade geográfica com a África, bem como
do sangue mouro, introduzido quando da dominação árabe na Península Ibérica, credenciou o
português como único colonizador europeu a ter sucesso em empreendimentos nos trópicos:
O português não: por todas aquelas felizes predisposições de raça, de mesologia e de
cultura a que nos referimos, não só conseguiu vencer as condições de clima e de solo
desfavoráveis ao estabelecimento de europeus nos trópicos, como suprir a extrema
penúria de gente branca para a tarefa colonizadora unindo-se com mulher de cor.
Pelo intercurso com mulher índia ou negra multiplicou-se o colonizador em vigorosa
e dúctil população mestiça, ainda mais adaptável do que ele puro ao clima tropical
(FREYRE, 2006, p. 74).
Corolário natural da noção de raça, as teses gilbertianas incidem em hierarquizações
entre europeus, índios e africanos de modo a centralizar o comando do país nas mãos do
dominador, mesmo que não o façam em termos estritamente biológicos. Freyre supõe que
existam culturas adiantadas e atrasadas, o que, em conjunção a outros fatores, as tornam aptas
ou não para determinadas situações. Dito de outro modo, Freyre estabelece emblemas
eufêmicos, baseados no olhar comparativo de um eu superior supostamente distanciado, que
indiciam distinções de superioridade e inferioridade. Não é outro, pois, o sentido que deixa
entrever ao classificar o mestiço brasileiro como fruto do contato entre a “[...] espontaneidade,
[o] frescor e [a] emoção [...]”, provenientes das culturas africanas e ameríndias com o “[...]
pensamento adiantado da Europa” (FREYRE, 2006, p. 115). Noutro momento do texto, o
autor é ainda mais explícito ao afirmar que, independente das imprecisões advindas das
circunstâncias econômicas, de cultura ou de ambiente, aspectos delimitativos de cada povo,
“não se negam diferenças mentais entre brancos e negros” (FREYRE, 2006, p. 380)63
. Para o
autor, “ninguém ousará negar que várias qualidade e atitudes psicológicas do homem possam 62
É interessante observar que são unicamente estas características que enformam o ethos brasileiro, os aportes
africanos e indígenas são tidos apenas como importantes contribuições sobre o que o português já havia criado.
Para Bôas (2003, p. 127) “[...] a cultura brasileira começa a se forjar antes da descoberta das terras que se
tornariam o território nacional. Inicia-se na figura do colonizador português, que pela sua bicontinentalidade
entre Europa e África, capacidade de adaptação aos trópicos, predisposição às relações interétnicas e sincretismo
religioso, alcançou fundar uma sociedade agrária, escravocrata e híbrida no Brasil”. 63
Em Sobrados e Mucambos, Freyre repete a fórmula, porém de modo ainda mais explícito: “que existem entre
os sexos diferenças mentais de capacidade criadora e de predisposição para certas formas de atividade ou de
sensibilidade, parece tão fora de dúvida quanto existirem diferenças semelhantes entre as raças” (FREYRE,
2004b, p. 222).
67
ser condicionadas biologicamente pela raça” (FREYRE, 2004b, p. 805), até mesmo porque,
novamente Freyre (2004b, p. 806), “[...] a raça dará as predisposições; condicionará as
especializações de cultura humana”. As dissimetrias ocasionadas por estas predisposições
raciais distintas, quando postas em contato sob a égide da escravidão, acarretam “[...] a
degradação das raças atrasadas pelo domínio da adiantada” (FREYRE, 2006, p. 515).
Da mesma forma que o faz entre povos distintos, Freyre estabelece hierarquizações no
interior de cada raça, com o que objetiva melhor qualificar o africano colonizador do Brasil,
assim como o mestiço a que, em parte, deu origem. Segundo o autor, “[...] nada mais
anticientífico que falar-se da inferioridade do negro africano em relação ao ameríndio sem
discriminar-se antes que ameríndio; sem distinguir-se que negro” (FREYRE, 2006, p. 370). O
africano islamizado, por exemplo, a seguir o pensamento gilbertiano, seria superior aos outros
africanos e, principalmente, a qualquer indígena dos tempos da colonização. Esta afirmação
gilbertiana é sobremaneira reveladora: “nota-se que o autor entende os portadores da „cultura
negra mais adiantada‟ como grupos africanos cujo sangue já foi misturado com algum sangue
não negro (HOFBAUER, 2006, p. 247). Esta dessemelhança hierárquica possibilita a Silva
(2010, p. 80) constatar que “Gilberto fez uma adaptação do conceito [de eugenia], criando
uma „eugenia à brasileira‟: selecionou o melhor branco e o melhor negro para que estes
resultassem num „mulato eugênico‟, ou melhor, um „mulato europeizado‟”. Embora à
primeira vista esta análise pareça estranha, a preocupação de Freyre em sempre qualificar o
português, assim como em salientar que não fora qualquer africano trazido ao Brasil, mas um
tipo supostamente superior, incidências que revelam a persistência da raça em sua obra,
permitem e mesmo solicitam a hipótese aventada por Silva.
É justamente neste ponto – o da persistência da noção de raça, não obstante
dissimulada – que a ideia de mestiçagem em Gilberto Freyre aponta para uma direção um
pouco diferente daquela esboçada algumas páginas atrás, em que se declarou sua feição
positiva em face de si mesma, ou seja, sem que houvesse interesses outros que lhe
motivassem o elogio gilbertiano. Admitindo-se que raça, para Freyre, não tenha o mesmo
sentido biológico utilizado pelos teóricos raciais, mas que se traduza em conceito aglutinante
e equidistante dos condicionamentos biológicos, culturais, históricos e mesológicos, é
passível de verificação um plano de continuidade da noção de branqueamento, apenas
substituídos o vetor epidérmico pelo cultural e o paradigma “branco” por português. Em
última análise, a despeito do tom de pele da “morenidade” brasileira, é possível que se
depreenda certa lusitanidade como padrão pretendido por Freyre. Reitere-se Souza (2003, p.
65): apesar de “[...] Freyre ter enfatizado a mestiçagem de raças e culturas, sua tese central em
68
relação a esse tema é a da continuidade substancial entre Brasil e Portugal”. Tanto isso é
verdade que a miscibilidade, singularidade nacional mais premente na óptica gilbertiana, é
antes vinculada à plasticidade do português que, sem preconceitos, deitou seu sêmen no
ventre das mulheres colonizadas (FREYRE, 2006), do que efeito simbólico reforçado pela
repetição secular do próprio processo miscigenador. É precisamente neste sentido que Reis
(2007, p. 55-56) considera Casa-grande & Senzala como uma “[...] obra neovarnhageniana: é
um reelogio da colonização portuguesa. É uma justificação da conquista e ocupação
portuguesa do Brasil. [...] Freyre até supera Varnhagen nesse elogio. Seu reelogio do passado
é uma exaltação, uma idealização”.
A mestiçagem gilbertiana torna-se ainda mais problemática se observada à luz do que
pressupõe e do que projeta. Isto é, respectivamente uma escravidão benigna em suas relações
e uma democracia racial, ou social e étnica, para usar a terminologia do próprio Freyre64
. O
sociólogo recupera a imagem corrente nos Oitocentos sobre a escravidão brasileira e salienta
“[...] a doçura nas relações de senhores com escravos domésticos, talvez maior no Brasil do
que em qualquer outra parte da América” (FREYRE, 2006, p. 435)65
. Freyre reforça o
argumento a partir das impressões de estrangeiros que estiveram no Brasil e escreveram sobre
o país, como se buscasse nestes documentos a comprovação irrefutável daquilo que propõe.
Assim, enfatiza que Debbané igualmente percebeu a doçura senhoril no trato dos
escravizados, que comporiam mais “[...] gente de casa do que besta de trabalho” (FREYRE,
2006, p. 299).
A imagem de doçura, por estranha que seja quando relacionada a sistemas de
dominação, deriva tanto de a colonização brasileira ter se organizado a partir da família, com
pouca intervenção prática do Estado (FREYRE, 2006), quanto, principalmente, do sistema
escravista mouro, que permaneceu neolamarckianamente no português, mais precisamente em
seu caráter plástico e contemporizador. Além desta doçura, ou talvez em decorrência ou causa
dela, Freyre anota que “[...] a escassez de mulheres brancas criou zonas de confraternização
entre vencedores e vencidos, entre senhores e escravos” (FREYRE, 2006, p. 33). Este último
conceito, à semelhança da “plasticidade” portuguesa, atua no abrandamento dos rigores da
64
Neste ponto, endossa-se Souza (2003, p. 70), em nota de rodapé: “A discussão sobre se Gilberto Freyre usou
ou não o conceito de „democracia racial‟ parece-me bizantina. Não é importante que ele tenha usado ou não o
nome. O que importa é que ele tenha feito uso do conceito, ou seja, do conjunto de pressupostos e conseqüências
que se descortinam a partir de certas escolhas teóricas. Nesse último sentido é evidente que ele pensava em
temos de uma “democracia racial” como uma forma peculiarmente brasileira de organização social. Essa seria,
inclusive, nossa contribuição à civilização”. 65
Segundo Azevedo (2004) a imagem do Brasil como um “paraíso racial”, uma vez inexistisse preconceitos
desta ordem em seu território, bem como o quadro idílico da escravidão remontam às campanhas abolicionista e
imigrantista.
69
escravidão e favorece não o estupro do senhor à escravizada, mas a uma narrativa idílica da
mestiçagem. Lima é contundente:
Como não disponho de bibliografia especializada sobre o que se passou na região
das plantations do sul norte-americano ou com o território de colonização
espanhola, não terei condições de enfrentar a opinião corrente de que, entre nós, a
miscigenação foi bem mais elevada que alhures. Mesmo assim seria correta a
qualificação “zonas de confraternização”? Ou, ao invés, concluir-se por
„confraternização‟ não seria ir além do que permitiriam suas premissas?
Confraternização supõe uma igualdade ao menos eventual entre os parceiros. [...]
Mesmo admitida a „flexibilidade‟ portuguesa, que diminuiria seus preconceitos
quanto à mulher de cor, seria concebível falar-se em „confraternização‟ a propósito
de um contato cuja „igualdade‟ se restringiria ao encontro para o coito? (LIMA,
1989, p. 214).
Freyre, ainda que reconheça a natureza hierárquica das relações estabelecidas entre
senhores e negras escravizadas, não o faz se não apenas em parte. Se por um lado afirma
serem estes contatos entremeados pelos lugares de mando e subserviência próprios da
escravidão, por outro considera que “[...] a necessidade experimentada por muitos colonos de
constituírem família [...]” (FREYRE, 2006, p. 33) acabaram por adoçar a rigidez estrutural do
sistema. Esta formulação, que não é sobremaneira impossível de se ter constituído
pontualmente como exceção e, portanto, sujeita às restrições e aos cuidados característicos do
olhar que se quer antropológico, é elevada por Freyre à condição de regra geral e
inquestionável do sistema escravista brasileiro. Assim, via de regra, o autor embota as tensões
decorrentes da clivagem escravista entre senhores e escravizados, brancos e negros, e sugere
um estreito enlaçamento familial, patriarcal, confraternizante, a uni-los para além das
distâncias intransponíveis do sistema. Esta confraternização, decorrente dos efeitos da
mestiçagem, é de tal forma central para a construção teórica do ethos brasileiro gilbertiano
que Freyre a reafirma novamente em Sobrados e Mucambos: “[...] até o que havia de mais
renitentemente aristocrático na organização patriarcal de família, de economia e de cultura foi
atingido pelo que sempre houve de contagiosamente democrático ou democratizante [...] no
amalgamento de raças e culturas” (FREYRE, 2004b, p. 475). Ao considerar toda a
problemática que deriva desta postulação, Souza (2003, p. 69) é taxativo: “essa construção,
por secundarizar o elemento de opressão e subordinação sistemática, é ideológica e
conservadora no mau sentido do termo”.
Araújo (1994), no entanto, considera que seja apenas uma “meia verdade” – expressão
tomada em seu sentido literal, ou seja, de metade – a acusação que pesa sobre Freyre da
imagem de uma escravidão idílica. O pesquisador argumenta:
70
Para tanto, creio que valha a pena começar esta discussão registrando que, da mesma
maneira que encontramos em CGS [Casa-grande & Senzala] um vigoroso elogio da
confraternização entre negros e brancos, também é perfeitamente possível
descobrirmos lá numerosas passagens que tornam explícito o gigantesco grau de
violência inerente ao sistema escravocrata, violência que chega a alcançar os
parentes do senhor, mas que é majoritária e regularmente endereçada aos escravos
(ARAÚJO, 1994, p. 45).
É de fato verdade que Freyre relata os abusos e as violências cometidos pelos senhores
brancos – e, igualmente, pelas senhoras brancas. Assassinatos, alguns envolvendo crianças
pequenas ou ainda por nascerem, castigos e mutilações são dados presentes na narrativa
gilbertiana que podem vir a chocar o leitor. É verdade, inclusive, que estas cenas não chegam
a ser propriamente raras em Casa-grande & Senzala nem que, ao serem descritas, relacionam-
se a motivos outros fora aqueles condicionados pela escravidão. O que escapa a Araújo, bem
como a Risério (2007), defensor do mesmo argumento, é que se não há um apagamento
deliberado destas cenas de maneira a ocultá-las da história nacional, Freyre também não as
considera, independente da dissonância que produzem, como sistemáticas e significativas a
ponto de produzirem um abalo na estrutura benigna da escravatura brasileira. Com isso, ao
invés de apagá-las, Freyre antes as relativiza e oblitera. Assim, a dominação cede à
transigência; as hierarquias, à mestiçagem; a violência, à persuasão; a rigidez, à adaptação e
as tensões, à confraternização. Conforme afirma Souza (2007, p. 195), “cria-se [...] um retrato
evidentemente idílico, que escamoteia todo um processo de dominação marcado antes pela
brutalidade que pela confraternização”.
Pesam, para a construção teórica acima destacada, as generalizações gilbertianas que
partem, todas, de sua própria mirada, caracteristicamente saudosa e passional. Para Freyre
(2006, p. 44), “a história social da casa-grande [que havia sido a sua] é a história íntima de
quase todo brasileiro [...]”, assertiva com a qual o autor situa a especificidade da experiência
senhorial, salvaguardada sob o poder de mando, como locus identitário de descendentes tanto
dos senhores quanto dos escravizados. Perspectiva de per si refutável, porquanto implique a
negação de vivências outras além daquela responsável por formular o discurso e, por
conseguinte, incida sobre um eu isolado que se imagina nós, a pretensão de Freyre é ainda
menos passível de aceitação posto desconsidere as relações de poder assimétricas,
estruturantes da relação histórico-social entre a casa-grande e a senzala. Em entrevista
concedida a Joel Silveira, publicada originalmente na revista Manchete de 9 de julho de 1977,
e reeditada em livro por Cohn, Gilberto Freyre, aparentando hiante sinceridade, é
esclarecedor:
71
[...] sou um autor que se autobiografou e, até certo ponto, „autobiografou‟ quase todo
brasileiro – autobiografia coletiva – escrevendo um livro (Casa-grande & senzala)
talvez único pelo que, revelando um indivíduo em busca de sua identidade, revela
também a formação mais íntima de um povo (COHN, 2010, p. 142).
Dadas as considerações acima, talvez seja possível e algo interessante avançar com
uma comparação, conquanto o teor seja meramente ilustrativo. Assim como em Dom
Casmurro é Bentinho quem narra e cria Capitu à imagem e semelhança do ciúme oteliano que
o atravessa, em Casa-grande & Senzala, é Gilberto Freyre, rebento das antigas elites
escravocratas nordestinas, quem toma da palavra e descreve as relações interpessoais
dimanadas da escravidão à imagem e semelhança de quem as viveu do alto hierárquico da
casa-grande. Desta forma, se no romance machadiano a figura de Capitu é ambígua, passível
de incertezas e inquirições decorrentes de sua representação por discurso alheio, de tal
maneira sedutor a ponto de desvanecer as marcas de subjetividade denunciatórias da
construção narrativa, a mesma encenação é perceptível nas tramas gilbertianas acerca das
relações entre brancos e negros, senhores e escravizados. Tal Bentinho, Freyre advoga em
causa própria. Ou melhor, em causa daqueles com os quais o antropólogo pernambucano se
identifica, estima e representa: a estirpe decadente das elites açucareiras do Nordeste, outrora
pujantes. Endossa-se o afirmado por Ribeiro:
O que desejo dizer aqui é, tão-só, que obviamente tem conseqüências o fato de quem
escreveu CG&S [Casa-grande & Senzala] não ser um estranho, mas sim o
protagonista de elite, fidalgo, minoritário na inumerável massa humana [...]. Não há
como esquecer que, à perspectiva do senhor, do dono, corresponde uma visão que é
o reverso da mirada do escravo. Este contraponto ressalta, por exemplo, uma das
características remarcáveis de Gilberto: a sua nostálgica visão de senhor de
engenhos e de escravos, que ele expressa, sentimentalmente, ao longo do livro. É de
todo improvável que aos olhos de um alterno de Gilberto, isto é, um descendente de
escravos da mesma casa-grande, se encontrasse um grão que fosse dessa nostalgia
(RIBEIRO, 1979, p. 77-78).
A natureza benigna com a qual a escravidão brasileira se conformou, segundo o
pensamento gilbertiano, comporta e projeta o suposto de uma democracia racial – perspectiva
tão ou mais frágil e combatível do que a antecedente. Em verdade, a máxima democrática, em
termos sociais e étnicos, é, dentre todas em revista aqui, a mais eficaz do argumento
desenvolvido por Freyre. O antropólogo pernambucano a infunde de forma tal no cotidiano do
país que ela própria se enleia no ethos brasileiro e o traduz – no que se observa um seu
aspecto atemporal, visto o autor considerar ethos como algo essencialmente imutável, embora
sujeito, decorrente que é de predisposições raciais, a achegas neolamarckianas. Em última
72
análise, democracia social e étnica apresenta-se como conceito aglutinante que, ao ser
invocado por seu criador, atualiza e funcionaliza contemporaneamente as pretéritas noções
das quais procede: mobilidade; miscibilidade; aclimatabilidade; equilíbrio de antagonismo;
zonas de confraternização; escravidão benigna e, principalmente, plasticidade – “imagem
nuclear” da narrativa gilbertiana, conforme afirma Costa Lima (1989, p. 233)66
. Dito de outra
forma, a aplicabilidade discursiva desta noção, ainda que limitada à realidade descrita por
Freyre, é capaz de reviver o passado no presente de modo a interpretar, na quintessência de
uma relação casual qualquer, a reminiscência daquela primeira, matriz: o senhor e o
escravizado. A retomada do passado em tempos outros, posteriores, é, pois, pré-condição da
escrita do Mestre de Apipucos uma vez que “o passado, para ele, não é passado: configura e
constitui o presente e o futuro; está aqui, estará acolá” (SOUZA, 2007, p. 164).
A metáfora excessiva da mestiçagem gilbertiana não age unicamente em termos
biológicos, embora deles não prescinda67
. Configura-se, antes, por efeito das condições raciais
que se misturam, da plasticidade que se multiplica em novos sangues, como condicionante
político e social basilar e eviterno. Assim é que, para além de sistemas de produção e governo,
de casas-grandes e senzalas, de sobrados e mucambos, cabe à mestiçagem a ação estruturante
da realidade sócio-econômica brasileira, desviando-a de polarizações inflexíveis e
previamente demarcáveis – o que caracteriza o Brasil à maneira de uma sociedade relacional,
como teoriza o antropólogo Roberto DaMatta (1991). Ou seja, uma sociedade que opera de
acordo com um “[...] sistema onde a conjunção tem razões que os termos que ela relaciona
podem perfeitamente ignorar” (DaMatta, 1991, p. 28). Em termos estritamente gilbertianos,
uma sociedade movida antes por amolecimentos do que por rigidez, cuja imagem deriva da
funda penetração da mestiçagem nas práticas cotidianas:
A miscigenação que largamente se praticou aqui corrigiu a distância social que de
outro modo se teria conservado enorme entre a casa-grande e a mata tropical; entre a
casa-grande e a senzala. O que a monocultura latifundiária e escravocrata realizou
no sentido de aristocratização, extremando a sociedade brasileira em senhores e
escravos, com uma rala e insignificante lambujem de gente livre sanduichada entre
66
Note-se, a este respeito, que ao estudar o declínio da sociedade patriarcal de engenho, em Sobrados e
Mucambos, em transição conturbada para o contexto urbano regulamentado pelo poder de instituições vinculadas
ao Estado, Freyre atribui à ação do mulato, representação máxima do ethos nacional, a manutenção da
“brasilidade”: “A casa patriarcal perdeu, nas cidades e nos sítios, muitas das qualidades antigas: os senhores dos
sobrados e os negros libertos, ou fugidos, moradores dos mucambos, foram se tornando extremos antagônicos,
bem diversas, as relações entre eles, das que haviam se desenvolvido, entre senhores das casas-grandes e negros
da senzala, sob o longo patriarcado rural. Entre esses duros antagonismos é que agiu sempre de maneira
poderosa, no sentido de amolecê-los, o elemento socialmente mais plástico e em certo sentido mais dinâmico, da
nossa formação: o mulato” (FREYRE, 2004b, p. 30). 67
O conceito de metáfora excessiva foi retirado de Costa Lima (1989, p. 217) e significa “[...] aquela que „salta‟
além do que lhe permitiria sua base de lançamento”.
73
os extremos antagônicos, foi em grande parte contrariado pelos efeitos sociais da
miscigenação. A índia e a negra-mina a princípio, depois a mulata, a cabrocha, a
quadrarona, a oitavona, tornando-se caseiras, concubinas e até esposas legítimas dos
senhores brancos, agiram poderosamente no sentido de democratização social do
Brasil (FREYRE, 2006, p.33).
Para Hofbauer (2006) não é mero acaso a posição central da mestiçagem no quadro
acima transcrito. A feição que Freyre lhe confere, ao igualar socialmente negros, brancos e
índios – discursivamente, ao menos – teria viabilizado a formação da nação e da cultura
brasileiras, o que se apresenta como resposta a uma das grandes questões dos anos 1930. O
problema se instaura à medida que plano discursivo e fato sociológico, isto é, teoria
gilbertiana e realidade social brasileira passam a divergir amplamente. Afinal, um processo de
democratização social de raízes tão longínquas, que se estendem às primeiras datas da
Colônia, não poderia nunca consentir, séculos depois, a marginalidade das populações
descendentes de escravizados ou o quase extermínio dos grupos indígenas. Costa Lima
comenta:
[...] a miscigenação “aqui corrigiu a distância social”. Corrigiu em relação a quê?
Em relação por certo às formas de colonização mais ciosas da preservação da
branquitude dos senhores. O termo “corrigiu” seria adequado apenas se o dado da
cor não prejudicasse as possibilidades de ascensão social. É verdade que o autor
desenvolverá logo depois, em Sobrados e Mucambos (1936), que, durante o segundo
reinado, o diploma de doutor favorecerá os bacharéis, mesmo os mulatos ou
crioulos. Mas a necessidade mesma doutro elemento de qualificação social – a
conclusão do curso superior – demonstra o desacerto da predicação examinada. [...]
Sua decisão interpretativa nos permite identificar outro traço de seu culturalismo: se,
por um lado, seu destaque da cultura não lhe impede de continuar a operar com o
fator „raça‟, por outro, o mesmo destaque da cultura lhe serve de justificativa para
ofuscar o condicionamento sócio-econômico (LIMA, 1989, p. 214-215).
Schwarcz (2010) desenvolve argumento próximo ao de Costa Lima. Segundo a
pesquisadora, não obstante haja algo de tentador na criação teórica de Freyre, se observada
sob a óptica única da cultura, a obliteração de hierarquias e relações dessemelhantes de poder
e negociação inviabilizam-na como proposta sociológica aceitável. Reis (2007, p. 80)
considera que “a história brasileira [descrita por Gilberto Freyre] não é compreendida em
termos de ruptura, conflitos, mudanças bruscas. [...] A narrativa de Freyre, assim que percebe
conflitos, produz a sua dissipação”. Para Bôas (2003, p. 131), “na interpretação de Freyre,
aliás, os conflitos são superados pela força de um convívio social harmônico que o ethos
brasileiro se encarrega de restaurar a cada dia, equilibrando antagonismos e diferenças”. É a
assunção desta premissa, que antes dissimula do que evidencia as reais condições de
existência, que permite a Freyre supor e postular a simplificação das questões raciais no
74
Brasil. Em Sobrados e Mucambos, Freyre (2004b, p. 797) conclui: “o negro, no Brasil, está
quase reduzido ao mulato. O problema do negro, entre nós, está simplificado pela
miscigenação larga”. Destarte, a formatação de um ethos nacional pacífico, relacional,
confraternizante e miscigenador – plástico, em uma só palavra – evanesce os conflitos
inerentes a uma sociedade que provém do sistema escravocrata e que insiste recorrentemente
em ladeá-lo, mesmo após a extinção do estatuto servil. O enevoar destas arestas ocasiona a
superelevação do mestiço não apenas a signo de uma suposta democracia social, como
igualmente étnica, donde se anuncia, embora não de modo conclusivo, a imagem de um
paraíso racial68
:
Não que no brasileiro subsistam, como no anglo-americano, duas metades inimigas:
a branca e a preta; o ex-senhor e o ex-escravo. De modo nenhum. Somos duas
metades confraternizantes que se vêm mutuamente enriquecendo de valores e
experiências diversas; quando nos completarmos em um todo, não será com o
sacrifício de um elemento ao outro (FREYRE, 2006, p. 418).
A última assertiva do trecho transcrito merece alguma atenção. A priori, parece indicar
a supressão, em iguais proporções, do negro, do indígena e do branco, consubstanciados todos
no mulato – símbolo da singularidade e da homogeneidade brasileiras. No entanto, a julgar
pela permanência do conceito de raça, do qual se depreendem tanto hierarquizações quanto
aptidões ou inaptidões naturalizadas, bem como do elogio que constantemente devota ao
português, Freyre antes acoberta e falseia a exclusão do que a resolve. Neste sentido,
Munanga (2008, p. 77) esclarece: “Ou seja, encobre os conflitos raciais, possibilitando a todos
se reconhecerem como brasileiros e afastando das comunidades subalternas a tomada de
consciência [...] de uma identidade própria”.
Em termos de nação e, principalmente, das várias conformações identitárias que a
definem, todo e qualquer discurso que vislumbre ou estabeleça uma hipotética
homogeneidade resulta redutor, falso e ideológico – já não há novidade em dizê-lo. Dimana
antes de processos de legitimação dos aspectos excludentes de uma sociedade, com os quais
se valida igualmente a dominação de um grupo sobre outros. Em última análise, é esta
construção enviesada, porquanto unilateral, que se observa nos interstícios da mestiçagem
homogeneizante preconizada por Gilberto Freyre.
68
“Freyre, absolutamente, não isenta a sociedade brasileira do preconceito racial, mas torna-o mínimo, residual,
sob o argumento de que no Brasil não existiu nem existe segregação: a miscigenação constatada na maioria das
famílias brasileiras teria impedido o surgimento de diferenças étnicas marcadas pela violência” (SEYFERTH,
2003, p. 173).
75
1.3 DOIS AUTORES, UM CONCEITO, DOIS OLHARES
À página 73 de Sobrados e mucambos (2004b) observa-se que, a despeito de tantas
distinções regionais, Gilberto Freyre defende a concepção de uma unidade nacional através de
um ethos que unifique o país, o que se constata na seguinte advertência: “o estudo das
diferenças não nos deve fazer esquecer o das semelhanças”.
Tome-se esta frase de per si, isolada dos referentes que encerra e reclama.
Desconsiderem-se os desdobramentos que anuncia, os problemas teóricos que acarreta. Por
breves instantes, são como palavras quaisquer, ditas por não se sabe quem, dispostas ao acaso,
soltas em amplidão. Palavras sem dono, sem aspas às quais se interporem. Uma vez, já de
domínio público, altere-se a disposição sintática e, principalmente, semântica dos termos
“diferenças” e “semelhanças”. Modifique-se a frase, portanto, de acordo com o sentido
inverso que originalmente expressa. O estudo das semelhanças não nos deve fazer esquecer o
das diferenças.
O paradigma obtido acima é norteador do que segue – seja nas poucas páginas
restantes a esta seção ou nas tantas que compõem as sessões vindouras. Por outro lado, optou-
se até aqui por uma abordagem mista entre detectar continuidades e dissensões, a partir da
qual se objetivou um panorama de discussões sobre mestiçagem no Brasil. Desta forma,
tornou-se possível observar tanto as várias ressignificações do olhar sobre o tema – teológico,
romântico, cientificista e antropológico culturalista – quanto a atemporalidade das
hierarquizações raciais, ora explícitas, ora dissimuladas, que resultaram irretorquíveis na
exclusão das populações não-brancas.
A partir do ponto de vista alcançado, é possível afirmar, salvaguardadas todas as
diferenças contextuais e conceituais, que, em seu íntimo e em termos práticos, a posição
gilbertiana já não dista tanto assim daquela mantida por Gregório de Matos, no longínquo
século XVII. São dois representantes de uma oligarquia decadente, com profunda tradição
escravista vivenciada por Gregório, como homem branco de seu tempo, e saudosamente
reconstruída por Freyre, nascido doze anos após a Abolição. Se o primeiro detrata a
mestiçagem, posto possibilitasse a ascensão social do mulato que romperia a condição servil
do progenitor negro, e Freyre exalta-a justamente pelo que pressupõe de ação democratizante,
não se estabelece, contudo, neste aparente extremismo de posições, a negação de um no outro,
como esperável.
O elogio gilbertiano à mestiçagem ladeia a glorificação do português como
colonizador, não apenas por seu ímpeto em empreender colônias em quase todos os
76
continentes, mas também pelas “felizes predisposições de raça” que lhe permitiram
conquistar, dominar e escravizar de forma plástica, com benignidade. Ora, o ethos nacional
que Freyre enforma é, em grande parte, tributário deste elogio e rende-lhe homenagens
constantemente. Percebe-se, pois, que esta construção dimana unilateral, margeada pelo
“espírito” português acrescido de “amolecimentos” e “corrupções” basicamente africanas.
Não é, pois, de estranhar-se que o projeto de nação sonhado por Gilberto Freyre defina-se
como “luso tropical”, em que se infere, sem muito esforço, a prevalência da genealogia
branca-europeia-lusitana, em detrimento de outras, na conformação do brasileiro. Não em
aspectos estritamente fenotípicos, por certo, mas na configuração de uma ordem sociocultural.
Preservadas as mesmas diferenças conceituais e contextuais acima protegidas, a
concepção de Freyre não se aproximaria por demais das projeções mestiças do texto
alencariano, acrescentando-se o negro ao índio? Ainda sob o anteparo do escudo aberto, não
seria possível visualizar laivos e reincidências da teoria do branqueamento, mesmo que
parcialmente cerceada dos pressupostos biológicos, na imagem última de um povo
gilbertianamente mestiço? A resposta às duas interrogações talvez seja, em parte, sim.
Dadas as considerações do parágrafo anterior, qualquer pesquisa que se dedique a
desvendar unicamente as semelhanças entre Freyre e Amado, no tocante à apropriação da
mestiçagem como discurso, resulta em “meia verdade” – ou ainda menos, caso admita-se a
natureza poliédrica que “verdade” pode assumir69
. Este viés comparativo, além de redutor,
implica ler o texto amadiano de acordo com posições adotadas previamente por outrem, o que
resulta, de forma quase invariável, no eclipse das idiossincrasias do grapiúna. Cabe perguntar,
em face desta perspectiva, se é possível conferir a romances como Jubiabá, Mar morto, Tenda
dos milagres e Os pastores da noite uma dimensão lusófila, como é apreensível na obra de
Gilberto Freyre ou mesmo se, nas referidas narrativas, a mestiçagem se apresenta como
processo em que se verifica o apagamento sistemático do negro, tornado tão só contribuição à
obra colonizadora do português. Em decorrência desta última pergunta, talvez ainda valha a
pena inquirir sobre o lugar destinado ao negro tanto na literatura de Jorge Amado quanto nas
teses de Gilberto Freyre, bem como acerca da espinhosa questão da democracia racial,
presente em ambos.
Que há semelhanças, não se nega nesta dissertação. Que tais similaridades indiciam
certo grau de absorção teórica e de concordância, idem. Mas, qual a medida exata deste “certo
grau” e qual o seu verdadeiro alcance? Até que ponto o universo ficcional amadiano é
69
Na acepção de “meia verdade” reivindicada por Araújo (1994), já devidamente comentada.
77
correlato ao universo antropológico de Gilberto Freyre ou em que limite desgarra-se dele e
constitui-se outro, diferente, singular?
Não se trata do esforço vão em mensurar, com fórmula e precisão matemáticas, o
imensurável que reveste o campo das Letras de simbólico e interpretativo. Apenas de uma
leitura, dentre tantas outras possíveis, que objetiva dar algum direcionamento às indagações
acima. Assim, como já anunciado, as próximas páginas são dedicadas exclusivamente ao
estudo de alguns romances de Jorge Amado.
Antes que se passe à segunda seção, convém discutir, embora com pouco vagar,
alguns estudos e comentários que se dedicaram à comparação dos universos de Freyre e
Amado. Luz (2000, p. 214), após definir a “ideologia da mestiçagem” como “faceta da
política do embranquecimento”, considera que “[...] na elaboração e divulgação desta
ideologia dão-se as mãos intelectuais considerados de direita, como Gilberto Freyre, e
considerados de esquerda, como Jorge Amado”. Para Bernd (2004, p. 132), “[...] do ponto de
vista étnico e racial, seu apoio [de Jorge Amado] às teses da mestiçagem fazem-no cair na
ilusão de descrever o Brasil como uma „democracia racial‟”. A obra amadiana, sob este olhar,
seria “[...] tributária das teses de mestiçagem [...] que sustentaram [...] as ideologias do
melting pot (com assimilação e apagamento das especificidades) e do branqueamento, logo,
conservadora [...]” (BERND, 2007, p. 133)70
. Por sua vez, Brookshaw (1983, p. 145), afirma
que os romances de Jorge Amado “[...] são uma apologia ao sistema de relações raciais no
Brasil [...] onde possuir qualquer nuança de negro é um defeito”. Já Duarte (2006, p. 39-40),
não obstante anote certa proximidade entre os autores, observa igualmente uma importante
diferença: “em Tenda dos Milagres, Amado acolhe com clareza o ideal freyriano da
democracia racial, mas, salvo engano, faz dele um projeto de futuro. Talvez o de uma
sociedade multiétnica pautada pelo respeito e integração com a diferença” – com o que,
acrescente-se, já não é o ideal gilbertiano. O antropólogo baiano Ordep Serra dá importante
contribuição ao afirmar:
Pode-se até dizer que o romancista baiano tomou uma direção oposta à de seu
inspirador erudito, em um ponto crucial: Se Gilberto Freyre [...] focalizou, de modo
prioritário, o mundo dos senhores de engenho, as casas-grandes e os sobrados
aristocráticos, e se seu interesse maior foi sempre pelo estamento senhorial, pela
antiga classe dominante, com que se mostrou identificado nesse fascínio, Jorge
70
Importante ressalvar que a argumentação de Bernd, no artigo citado, não parte da conceituação étnico-racial,
mas dos teóricos da créolisation. Assim, a pesquisadora afirma que há um paradoxo na literatura amadiana: se,
da perspectiva racial, ela resultaria problemática, “[...] do ponto de vista cultural, apresenta um universo
crioulizado, desvendando as transferências culturais que se efetuam no Brasil e traduzindo as passagens e
travessias entre os patrimônios culturais de origem africana, indígena e européia, que estão na gênese de algo
novo” (BERND, 2007, p. 132).
78
Amado, muito ao contrário, concentrou sua atenção e sua simpatia nos oriundos da
senzala (SERRA, 1995, p. 337-338).
Goldstein (2003) merece algum destaque porquanto dedique parte importante de sua
dissertação de Mestrado, já devidamente publicada, ao tema. No tópico “Jorge Amado
regionalista e freiriano”, integrante da segunda seção da obra, a antropóloga observa as
relações existentes entre os discursos de Jorge Amado e de Gilberto Freyre e não se esquiva
de comentar as confluências e divergências entre ambos:
Existem diferenças biográficas e políticas entre os dois. Entretanto, não se pode
deixar de reconhecer a influência da interpretação do Brasil de Gilberto Freire em
Jorge Amado. Quando dava opiniões sobre problemas nacionais, religião, arte ou
novos livros, Amado recorria a argumentos muito próximos aos de Freire, sem citá-
lo. E as convergências talvez não sejam tão claras para quem lê os romances [...] De
qualquer maneira, não é mero plágio: o romancista filtra alguns dos pontos do
pensamento de Gilberto Freire e colore-os com suas próprias vivências
(GOLDSTEIN, 2003, p. 115).
A pesquisadora ressalta ainda que Amado não era “[...] tão abertamente lusófilo”
(GOLDSTEIN, 2003, p. 113) quanto Freyre e que “povo alegre, festeiro, otimista e resistente
ao sofrimento [é] o povo de Jorge Amado, não exatamente o de Gilberto Freire”
(GOLDSTEIN, 2003, p. 116). Dessemelhanças pontuais, por certo, mas que, a despeito do
tema da mestiçagem, tocam-no pouco, sem adentrá-lo de maneira mais profunda.
Com relação às semelhanças, atente-se ao fato de a antropóloga afirmar não serem,
talvez, “tão claras para quem lê os romances”. Ora, se bem observada, a utilização do termo
“talvez” opera de forma dúbia nesta frase. Por um lado, possibilita a margem da imprecisão,
com a qual a pesquisadora tergiversa de uma afirmação que não domina por completo, ou
com a qual não se quer comprometer. Por outro, constitui-se em mero recurso de estilo e
avança no sentido de afirmar tais convergências, embora, talvez, o leitor não as perceba, por
se apresentarem escondidas e dissimuladas nas narrativas. Assim, para Goldstein, o
equacionamento das semelhanças e diferenças entre Freyre e Amado proporciona a
prevalência da imagem de “freiriano”, cunhada a título do tópico.
E, talvez, o epíteto agradasse ao escritor baiano, não raro os elogios que dirigia à obra
alcançada pelo Mestre de Apipucos. Em entrevista a Alice Raillard, por exemplo, Jorge
Amado afirma:
Gilberto Freyre desempenhou um grande papel, pois Casa-Grande & Senzala é
realmente o livro brasileiro que nos falou ao máximo sobre a nossa identidade, a
79
formação da nação brasileira, e a maneira como isto se deu. [...] Ele escreveu um
livro que é fundamental para a nossa vida (RAILLARD, 1990, p. 94-95).
Noutra ocasião, em depoimento a João Moreira Salles, registrado no filme Jorge
Amado, o grapiúna reitera o elogio acima e detalha o papel central que Freyre desempenhou
para a formação de uma identidade nacional:
A obra revolucionária maior e o revolucionário mais importante a meu ver, chamou-
se Gilberto Freyre. E seu livro Casa-Grande & Senzala. Nós estávamos
atrapalhados, confusos. Pensávamos que éramos latinos, europeus, latinos. Alguns
diziam que éramos espanhóis, ibéricos, portugueses, outros, porque liam Victor
Hugo, diziam que nós éramos franceses. Gilberto Freyre chegou com o seu grande
livro, Casa-Grande & Senzala e nos disse como nós somos [...]” (JORGE AMADO,
1995).
Apesar de presumivelmente lisonjeado pela alcunha de “freiriano”, é possível – e
mesmo provável – que Jorge Amado a declinasse, por inadequada. Ao que parece, a estima do
escritor por Casa-grande & Senzala dimana de duas posições: a primeira refere-se à quebra
do paradigma biológico racista, de que emana uma visão positiva da mestiçagem e do
brasileiro em sentido coletivo, de povo; a segunda, à linguagem e ao estilo gilbertiano. Pode-
se verificar, certamente, como nas entrevistas concedidas a Alice Raillard e a João Moreira
Salles, fulguram outras imagens gilbertianas que Amado aprecia e repete, notadamente a do
português “femeeiro”. Todavia, tais juízos ficam subsumidos em sua obra literária, de tal
modo que suscitam dúvidas sobre a adesão irrestrita. Aliás, o próprio Amado não isentou a
obra de Freyre de ser passível de críticas, embora a visse sempre grandiosa: “[...] discorde-se
de idéias, de afirmações, de pontos de vista. Mas como não sentir a alegria de admirar, de
compreender e afirmar sua importância?” (AMADO, 1962, p. 35-36). Críticas, talvez, que
Jorge Amado mesmo as fizesse, caso não escrevesse em comemoração aos 25 anos de Casa-
grande & Senzala:
Todos nós podemos e qualquer um pode discordar de idéias e conceitos de Gilberto
Freyre. Eu mesmo, seu velho amigo e admirador, muito tenho discordado dêle, de
quando em vez nos encontramos em pontos de vista divergentes. O pernambucano é
homem de muito escrever, de muito publicar, de muito discutir. Por isso mesmo,
pelo muito que realiza, nem sempre é possível estar de acôrdo com tudo que êle diz
e faz. Mas não creio ser isso o que importa quando Casa-Grande & Senzala festeja
vinte e cinco anos de bons serviços prestados ao Brasil (AMADO, 1962, p. 34).
Quais seriam estas discordâncias e de que ordem? Seriam, apenas, de natureza
político-ideológica ou comportariam, para além da velha oposição direita x esquerda, razões
outras, quiçá conceituais? Jorge Amado não as escreveu. Entretanto, sem a pretensão de
80
advinhá-las, é plausível admitir-se algumas diferenciações que estruturam noções próximas,
porém destoantes no concernente à mestiçagem em Jorge Amado e Gilberto Freyre. Cabe que
sejam indicadas aqui e estudadas mais aprofundadamente nas sessões vindouras.
A primeira destas diferenciações diz respeito ao racismo. É verdade, sem dúvida, que
tanto Freyre quanto Amado o interpretam como uma espécie de aversão antibrasileira, ou seja,
pouco ou nada relacionada ao ethos nacional. São igualmente detectáveis, em ambos,
concepções das diferenças sócio-raciais brasileiras como decorrentes não apenas do
exclusivismo racial, mas, principalmente, de hierarquias classistas – o racismo estaria, assim,
parcialmente vinculado não a uma ojeriza particular ao negro, mas aos estigmas da escravidão
e da pobreza a ele associados. A clivagem entre o antropólogo pernambucano e o escritor
baiano, quanto a esta temática, origina-se dos modos de vertê-la em texto. Freyre o faz
enfatizando que, não obstante sua existência, “[...] existem grupos que, interpenetrando-se,
vêm concorrendo, através de considerável mobilidade social [...] para favorecer [...] uma
democracia dinamicamente étnico-cultural com o mérito pessoal tendendo [...] a superar
desvantagens tanto de etnia quanto de classe [...]” (FREYRE, 2000, p. 29). Noutro momento,
Freyre defende como “[...] tendência genuinamente portuguesa e brasileira [...] favorecer o
mais possível a ascensão social do negro” (FREYRE, 2006, p. 503). Jorge Amado, por sua
vez, a despeito da ascensão social de Tadeu Canhoto, em Tenda dos milagres – ou mesmo por
conta dela – não titubeia ou dissimula diante da constatação de práticas racistas no cotidiano
brasileiro. Ao contrário, elas estão no centro de romances como Jubiabá, ainda que reduzida a
um problema de classes no final, e também em Tenda dos milagres. Tais constatações
permitem que o escritor afirme, no filme de João Moreira Salles, ter dedicado sua vida à luta
contra o racismo.
A segunda diferenciação – e, talvez, a mais importante – relaciona-se ao lugar do
negro como ser físico e cultural no panorama mestiço da sociedade brasileira. Já se viu o
quanto a noção de mestiçagem em Gilberto Freyre é enganosa pelo tanto de adesão ao
branqueamento. Neste sentido, para Boulos Júnior (2001, p. 27), “embora o próprio Freyre
tenha reconhecido [...] um processo da (sic) africanização em solo brasileiro, o que ele exalta
nos africanos é o fato de terem ajudado a difundir a cultura européia junto aos índios [...] e
não [...] de terem transmitido suas próprias culturas”. Em decorrência desta análise, Boulos
Júnior (2001) defende a ideia de que, para Freyre, “negro” e “brasileiro” correspondem a
termos distintos, uma vez que o primeiro se diluiu no segundo, dotado de feições luso-
tropicais.
81
Noutro plano, observou-se nas teses gilbertianas uma nítida hierarquia entre raças, o
que traz consigo a sombra inescapável de destinos naturalizados. Não à toa, ao descrever os
negros africanos, Freyre “[...] recorre predominantemente ao modo metonímico, e o faz
selecionando neles aqueles atributos que serviam ao uso e fruição dos seus senhores”
(BOULOS JÚNIOR, 2001, p. 96). Exemplo maior desta linha argumentativa, a imagem do
negro adaptado à escravidão é deveras recorrente nas teses de Freyre (2000; 2004a; 2004b e
2006) e permite a leitura de uma condição que lhe fosse inerente porquanto inferior, ou
“atrasado”, na terminologia gilbertiana. É sintomático, pois, que o antropólogo de Apipucos
acredite que haja um desejo inconsciente no negro de estar sob os “cuidados” de um senhor
branco:
É que até em negros rebeldes estava quase sempre presente, no Brasil patriarcal e
escravocrático, o desejo de serem guiados e protegidos paternalmente por brancos
ou senhores poderosos. Quando os brancos fracassavam como pais sociais de seus
escravos negros para os tratarem como simples animais de almanjarra, de eito ou de
tração ou simples „máquinas‟ de ganho, de produção ou de trabalho, é que muitos
negros os renegavam (FREYRE, 2004b, p. 657).
Renegavam os senhores, ainda segundo Freyre (2004b, p. 158), não como princípio de
revolta contra as condições de opressão do sistema escravista, mas como casos pontuais,
isolados, posto saíssem “[...] à procura dos engenhos grandes com a fama de paternalmente
bons para os escravos [...]”. As imagens de resignação e passividade negras diante da
escravidão que se depreendem deste quadro compõem, aliás, de tal maneira uma constante das
teses gilbertianas que se confundem indissociáveis à subserviência. Assim é que Freyre (2006,
p. 550) afirma que os escravos desempenharam todas as atividades vis ordenadas pela
escravidão com “[...] uma passividade animal”. Ao término da leitura, já não se sabe mais o
que é efeito reversível e imediato da escravidão, contornável pela mudança de sistema, ou o
que é acréscimo neolamarckiano ao negro, como parece ser o caso do “riso servil do preto” e
“obsequioso”, no mulato (FREYRE, 2004b, p. 793). Neste plano, mesmo estratégias negras
seculares de preservação de uma identidade, como é o caso das origens do sincretismo
religioso, que informam inconformismo e resistência, Freyre (2006, p. 438) as interpreta
como meras concessões da política de assimilação mantida pelas elites escravocratas, com o
que esvazia a condição de sujeito do negro.
Note-se, por último, que a seguir por este estratagema discursivo, Freyre conclui
tacitamente por uma dominação branca de caráter assimilacionista, o que concede à sua
democracia racial ares não tão democráticos assim.
82
Outra é a posição de Jorge Amado sobre as populações negras de modo que Ana Rosa
Ramos (2006, p. 57) crava: “na obra romanesca de Jorge Amado, falar do negro é falar da
condição humana [...]”. Há, de fato, uma centralidade do negro na obra amadiana que foge às
implicações gilbertianas de uma mestiçagem lusófila. É a partir da imagem do negro como
sujeito epidérmico, histórico e cultural, que o escritor grapiúna ficcionaliza o cotidiano da
mestiça Cidade da Bahia – sem dúvida portuguesa e índia, mas essencialmente negra,
conforme afirmações de Jorge Amado em entrevista a Gilberto Gil:
[...] eu sempre digo que são igualmente importantes a influência ibérica, influência
branca, a influência indígena e a influência negra. Mas eu sempre digo também que
o nosso umbigo é a África. Que os valores talvez mais fundamentais da nossa
cultura, aqueles que marcam profundamente nossa cultura, vieram no barco dos
escravos. E eu acho que nós devemos ser orgulhosos desses barcos de escravos –
talvez, ainda mais do que das caravelas (TEMPO REI, 1996).
Evidentemente, o negro alçado a protagonista e heroi, cujo riso não se caracteriza
como servil, mas denota coragem, desafio e alegria, condiciona diferenças quanto à
representação da mestiçagem entre a ficção amadiana e as teses gilbertianas. Retome-se
aquela alcançada por Duarte, de uma democracia racial futura, ao invés de presente como em
Gilberto Freyre. Bacelar sintetiza:
Embora sob a premissa da miscigenação harmonizadora, outra é a perspectiva de
Jorge Amado: são os dominados (o povo negro-mestiço) que delineiam a correnteza
da vida social da Bahia. Eles são a bússola de navegação social dos sobrados e ruas
da velha cidade. A sua democracia racial, afirmadora do negro como principal e
preeminente personagem na construção do nosso processo civilizatório aparece
como desejo, vontade, premonição na busca de uma sociedade igualitária e sem
conflitos (BACELAR, 2001, p. 120).
Com base nestas distinções, talvez seja possível, sim, postular uma singularidade
amadiana em relação ao antropólogo pernambucano. Da mesma forma, talvez não seja
exagero aceitar a possibilidade que esta idiossincrasia se estenda ao longo do tempo e se
afirme em face não só de Freyre, como também em relação à longa tradição de um olhar de
esguelha direcionado ao mestiço, porquanto evidencie a presença negra.
Como se verá nas sessões subsequentes, em Jorge Amado, negro e mestiço não
enformam identidades excludentes por força de uma ideologia de branqueamento; antes,
convergem para a formatação de um povo que seja negromestiço. Palavra escrita por
aglutinação de dois substantivos que se fundem e designam um só, cujo primeiro termo
adjetiva e norteia: negro.
83
2 ENTRE O SOCIALISMO E O NEGRO SUJEITO
Não me amarra dinheiro não,
Mas a cultura.
Dinheiro não,
A pele escura...
Caetano Veloso. Beleza Pura.
Referiu-se majoritariamente, na última seção, à face amadiana estritamente vinculada
à perspectiva de uma sociedade mestiça, isto é, a temática que se desenvolveu logo após a
publicação de Gabriela, cravo e canela. Com isso, ainda que de forma involuntária, correu-se
o sempre iminente risco presente na metonímia – o de naturalizar a parte como o todo, em
uma perspectiva semelhante à expressa por Schwarcz (2009), que se valeu do epíteto “artista
da mestiçagem” em referência ao escritor baiano71
. Esta seção, ao contrário, objetiva diminuir
ou mesmo anular os efeitos generalizantes que advêm desta postura e que podem encerrar
equívocos.
Expressões como a ressaltada acima ou mesmo asserções do tipo “[...] Jorge Amado
sempre foi um grande otimista da mistura” (SCHWARCZ, 2009, p. 37), induzem a uma
conclusão errônea uma vez que indicam um universo ficcional dotado de certa imutabilidade.
Em outras palavras, favorecem o equívoco de se imaginar a obra do grapiúna como uma linha
contínua que se estende, do primeiro ao último romance, sem rupturas ou novas significações.
No entanto, os romances publicados por Jorge Amado entre 1931 e 1954 apontam para
caminhos outros. O primeiro, intitulado O país do carnaval, em particular. O Amado desta
narrativa é, com efeito, o inverso daquele ao qual a pesquisadora paulista atribui o título de
“artista da mestiçagem”.
A alcunha, entretanto, como se viu na seção anterior, não se faz por acaso. Torna-se
justo considerá-la adequada frente a declarações como a que segue:
Muitas vezes, por onde eu ando nos caminhos do mundo, vêm me perguntar se o
Brasil não está perdido, se não há uma lepra comendo os valores fundamentais, os
grandes valores do povo brasileiro. Eu digo: Não, não há. O povo brasileiro é
invencível, porque é um povo mestiço. Ele supera toda a miséria, toda a opressão,
toda a carga terrível que colocam sobre os seus ombros. E a cada momento ele teima
em fazer a festa, em cantar e dançar (AMADO, 2000, p. 29-30).
71
O texto em questão fora escrito originalmente como apresentação à obra O Brasil Best Seller de Jorge Amado:
literatura e identidade nacional, 2003, de Ilana Seltzer Goldstein.
84
O trecho em destaque, fragmento de um discurso do autor durante a abertura do I
Simpósio Internacional de Estudos Sobre Jorge Amado, organizado em 1992, a propósito das
comemorações em torno dos seus 80 anos, não é exemplo único do seu pensamento sobre a
mestiçagem. Muitas são as referências elogiosas; pública a sua crença utópica na constituição
futura de uma sociedade verdadeiramente democrática, igualitária e mestiça. Convém insistir
que o problema detectado não se refere tanto ao termo em si, mas ao caráter universal que,
sem observações em contrário, ele traduz.
As considerações acima aventadas concluem e sugerem. Se por um lado afirmam que
a mestiçagem a priori não constituiu aspectos da abordagem de Jorge Amado, inspiram, por
outro, a possibilidade de tal temática, uma vez elevada à condição de eixo estruturante de
certas narrativas comportar um percurso a ser estudado – enfoque que Rossi (2004) tangencia.
Contribui imensuravelmente para esta perspectiva o fato de O país do carnaval
apresentar-se como uma narrativa fortemente influenciada por concepções raciais tributárias
do evolucionismo e do darwinismo social – em que pese toda a negatividade atribuída à
mestiçagem. Destarte, importante frisar que a literatura amadiana parte da negativização de
um fenômeno para, décadas depois, tomar este mesmo fenômeno em uma afirmação revestida
de positividade.
Sem pretender qualquer história da mestiçagem como tema em Jorge Amado, propõe-
se o estudo de um trajeto curto, porém significativo: de O país do carnaval a Mar morto,
romance este em que se prefigura parcialmente o universo ficcional pós-Gabriela.
O recorte justifica-se por conjugar a transição entre projetos literários e o surgimento
do negro-sujeito na obra amadiana. Ou seja, as cinco narrativas que compõem os limites desta
análise encerram movimentos de ressignificação. Desta forma, o pessimismo triunfante de O
país do carnaval cede lugar à descrição das consequências nefastas do capitalismo,
caracterizadas tanto em Cacau quanto em Suor. De arrasto, entre estas mesmas três narrativas,
passa-se de uma veiculação depreciativa, porquanto biologizante das populações não brancas,
o que ocorre em O país do carnaval, para uma valorização do negro e do mestiço como
trabalhadores oprimidos em Cacau e em Suor. O que há de redutor nas representações do
povo negromestiço em Cacau e Suor é largamente superado com a publicação de Jubiabá.
Neste romance, Jorge Amado esboça com vigor a ficcionalização do negro em uma condição
de sujeito, isto é, enaltece não apenas o proletário, mas o homem que existe para além ou
aquém da posição que ocupa na hierarquia social. No entanto, este ímpeto deve ser
relativizado a partir da adesão de Baldo, protagonista de Jubiabá, ao mundo do trabalho, à
perspectiva de classe e à greve.
85
Em Mar morto, o que se ensaiou na obra anterior torna-se factível. Nesta narrativa, em
momento algum a utopia socialista se sobrepõe ao canto lírico que Amado devota aos negros
e mestiços que povoam a Baía de Todos os Santos com seus saveiros, seus códigos, seus laços
e sua fé. Apenas no quinto romance amadiano a ficcionalização do povo negromestiço baiano
alcança uma autonomia do representado72
.
Cabe ainda ressalvar que, em termos específicos, o percurso retratado aqui não é
propriamente o da mestiçagem, mas o de elementos que principiam, norteiam e viabilizam sua
ficcionalização positiva, tal como ocorre em Os pastores da noite, Tenda dos milagres e
Tocaia Grande. Busca-se, assim, um continuum que estabeleça laços matriciais entre o
Amado do decênio de 1930, notadamente aquele de Jubiabá e Mar morto, e o romancista de
final dos anos 1950 em diante.
2.1 O PAÍS DO CARNAVAL OU DE JERÔNIMO E DO BRASIL
Ao se investigar a fortuna crítica do primeiro romance amadiano, percebe-se uma
relativa ausência de estudos que dialoguem mais profundamente com as questões levantadas
pela narrativa, o que talvez se explique pela aparente solidão temática e estética do texto, ou
seja, pela inexistência de laços de continuidade com narrativas outras que compõem o
universo literário do autor. Assim, O país do carnaval seria uma espécie de ilha. Esta
72
Quanto ao conceito de autonomia, Bastide (1972, p. 42) salienta que o movimento regionalista de Freyre e
Lins do Rêgo, ao retomar certas opções estéticas caras ao naturalismo, o faz com o predomínio de uma “[...]
situação sociológica, um sistema de relações inter-humanas de dominação [...] não a irrupção do povo
propriamente dito [...]”. Ainda segundo o pesquisador, Jorge Amado rompe com esta perspectiva, configura-se,
assim, em “expressão” e “encarnação” do “proletariado nascente”. Portanto, seguindo-se a argumentação de
Bastide, se Gilberto Freyre e José Lins do Rêgo dissolvem em seus quadros interpretativos a autonomia daqueles
que representam, Jorge Amado a faz precípua à sua narrativa.
Importante frisar que Rossi (2004) se mostra cuidadoso quanto às implicações deste conceito. Para o autor é “[...]
preciso submeter sua obra [de Jorge Amado] a uma análise pormenorizada para entendermos os diversos
sentidos de povo que o escritor forja em momentos distintos de sua trajetória literária e intelectual” (ROSSI,
2004, p. 17).
De um jeito ou de outro, o sentido que o conceito encerra neste estudo possui menos a perspectiva extraliterária
– ou extraficcional – que Bastide evoca e com a qual Rossi se mostra cauteloso, do que a de uma dinâmica social
que se enraíza no cerne de boa parte da obra literária de Jorge Amado. Em outras palavras, a questão não é
considerar o escritor como uma espécie de porta-voz legitimado por aqueles que representa ficcionalmente, mas,
observar a significativa prevalência de idiossincrasias coletivas como marcas identitárias ou estratégias de
resistência de um grupo a uma ordem social excludente – concepção que o conceito de Bastide, mais amplo,
igualmente abarca. O conceito proposto aqui refere-se ainda à relação do universo ficcional com a ideologia do
romancista, isto é, pressupõe a criação literária independente de conteúdos ideológicos.
Embora sob outra perspectiva, Cândido corrobora na lapidação do conceito aqui utilizado. Segundo o autor: “No
trabalho de revelação do povo como criador, [...] nenhum escritor se apresenta de maneira mais característica do
que o sr. Jorge Amado. Os seus livros penetram na poesia do povo, estilizam-na, transformam-na em criação
própria, trazendo o proletário e o trabalhador rural, o negro e o branco, para sua experiência artística e humana,
pois que êle quis e soube viver a deles” (CÂNDIDO, 1972, p. 112).
86
perspectiva, porém, baseia-se mais em uma postura de estranhamento frente à obra do que,
propriamente, em fatos que possam ser afirmados. Neste sentido, conforme Jacqueline Penjon
(2004, p. 106) o romance “[...] contém elementos que serão desenvolvidos nas obras
posteriores [...]”, o que é confirmado por Duarte (1996) e Goldstein (2003).
Seja como for, ainda que o romance nada mais seja que um ímpeto de adolescente que
já ostenta algum olhar crítico, mesmo que desprovido de formas ou convicções muito
precisas, a existência e importância de O país do carnaval não podem ser obliteradas. A
pouca produção de estudos críticos sobre esta narrativa, bem como sobre Cacau e Suor, nega
à literatura de Jorge Amado seu ponto de partida, evanesce o movimento evolutivo, neutraliza
as mais significativas transformações que se operam no interior do principiante universo
ficcional: o deslocamento da temática conservadora para o engajamento político de esquerda;
a passagem de um pensamento marcado pelo racismo científico para a positivação e
heroicização do negro e do mestiço.
O país do carnaval causa desconforto em quem o lê. Menos por seus aspectos formais
do que por sua temática, se comparada com qualquer outro romance escrito por Jorge Amado.
A respeito da obra, importante o depoimento do próprio autor:
O País do Carnaval é o livro de um jovem de dezoito anos. Era a idade que eu tinha
quando o escrevi. E todo o pessimismo que transparece neste romance é totalmente
artificial. É uma atitude exclusivamente literária, ingenuamente literária. É uma
máscara, uma roupa emprestada – um pouco como se vestíssemos uma capa de
chuva num dia de sol porque achamos que o efeito é bonito (RAILLARD, 1990, p.
46).
O país do carnaval configura-se como uma “literatura de debate” (DUARTE, 1996, p.
42), em que o autor procura discutir os temas que permeiam as grandes questões do seu
tempo, principalmente entre os mais jovens. Neste sentido, é ainda Duarte quem afirma:
Oscilando entre as postulações modernistas e a tradição crítica do realismo-
naturalismo, O país do carnaval encaminha duas grandes indagações. A primeira –
“o que somos?”, “que país é este?” – busca pensar e discutir o caráter de nosso povo.
A segunda – “para onde vamos?”, “qual a finalidade da existência?” – volta-se para
a nova geração que surgia na virada da década, perplexa diante das transformações
em curso no Brasil e no mundo. Este segundo segmento temático, na verdade um
desdobramento do primeiro, é armado em torno das angústias da juventude
intelectualizada diante das alternativas de inserção social vigentes à época. O livro
procura discutir os caminhos que então se esboçavam, ao mesmo tempo em que
expõe as indagações existenciais do protagonista e do grupo de jovens literatos que
o circunda (DUARTE, 1996, p. 42).
87
Organizada em torno de um grupo de amigos – Paulo Rigger, Jerônimo Soares,
Ricardo Braz, José Lopes e Gomes – sob a liderança intelectual do jornalista Pedro Ticiano,
remanescente de gerações anteriores, a narrativa, por vezes, se pretende filosófica sem
conseguir sê-la em profundidade. Correntes de pensamento – ceticismo, materialismo,
tomismo – são postas em discussão na tentativa de responder, ainda que superficialmente, a
inquietações existenciais. A “finalidade da existência” coloca-se, assim, como a grande
questão a ser perseguida pelas personagens. A exceção fica por conta de Pedro Ticiano para
quem, livre de desejos, se houvesse qualquer finalidade na vida, esta seria a morte.
Paulo Rigger, recém chegado da França onde se formara em Direito e incorporara um
tom blasé, é quem vivencia mais fortemente este conflito. Incapaz de ser um cético, tal Pedro
Ticiano, por duas vezes busca no amor a resposta que almeja. Julie, a francesa que conhecera
no navio que o trouxe da Europa, acaba por traí-lo com Honório, empregado da fazenda da
família de Rigger para onde tinham viajado e vivido dias felizes até então. Maria de Lourdes,
menina pobre que vivia em um sótão sem janelas no Pelourinho e de quem Rigger torna-se
noivo, conta-lhe um dia, entre lágrimas, não ser mais virgem. O tradicionalismo patriarcal
recai sobre os ombros de Rigger; inútil tentar desvencilhar-se. O amor resulta-lhe, sem
dúvida, em frustração. O mesmo acontece com os amigos, quase todos infelizes. Excetuam-se
desta lista, porém, Jerônimo e Pedro Ticiano. O primeiro, por motivos que são analisados um
pouco adiante; o segundo, por nada esperar ou desejar da vida. O desencanto de cada uma
destas personagens, que corporificam uma geração, nutre o pessimismo que ronda o romance:
Este livro pretende contar a história de um homem que, tendo vivido na velha
França por muito tempo, voltou à pátria disposto a encontrar o sentido da vida.
Conta a sua luta, o seu fracasso. Conta a luta dos seus amigos, rapazes de talento,
que falharam na existência.
Este livro é um grito. Quase um pedido de socorro. É toda uma geração insatisfeita
que procura sua finalidade (O país do carnaval, p. 13).
Paulo Rigger é, pois, uma personagem em tudo destoante do conjunto dos heróis
amadianos. Não há nele utopia ou otimismo; sua origem não remonta às camadas mais pobres
da população nem a elas se liga por sentimento de solidariedade e não existe qualquer laivo de
pertença ao Brasil ou à Bahia. Em substituição, angústia, pessimismo, ideais pequeno-
burgueses, deslocamento. É de tal modo uma exceção que o autor, em entrevista à tradutora
francesa, afirma:
[...] o Paulo Rigger de O País do Carnaval é, de todos os heróis dos meus romances,
aquele em que eu menos me projeto, o que me é mais estranho. É uma exceção,
88
porque creio que em todos os meus outros livros meus personagens, meus heróis
sempre têm algo a ver comigo (RAILLARD, 1990, p. 47).
A despeito da prevalência temática das inquietações existenciais dos jovens da década
de 1930 em O país do carnaval, outra é a perspectiva de abordagem da obra que motiva esta
análise. Aqui se pretende observar o viés étnico-racial, visto que a narrativa se mostra
fortemente influenciada por concepções advindas das teorias mais conservadoras e reticentes
quanto à influência de sangue negro como constituinte ativo do brasileiro.
Viu-se, na abertura da seção anterior, como, principalmente após a abolição do regime
escravocrata, em especial na virada do século XIX para o XX e em suas duas primeiras
décadas, tais teorias atuavam de forma a atualizar as hierarquias raciais para além da
escravidão, conservando intactos os postos de mando e poder. Constatou-se, também, como
estas ideias, apesar de resolverem a querela das hierarquias ameaçadas, gestavam, em
consequência, um problema para se pensar o Brasil. Dado o seu caráter intensamente mestiço,
se consideradas corretas, as teses raciais acarretariam uma impossibilidade de futuro já que
visualizavam a mestiçagem como um fator de degeneração e incapacidade de avanço rumo à
“civilização”.
O eco destas teses ressoa no romance em estudo, o que origina o ponto de inversão do
epíteto “artista da mestiçagem” anteriormente mencionado. Goldstein (2003, p. 130) pontua
que “[...] o escritor, em O país do carnaval, endossa o „racismo científico‟ – formação racial
como fundamental no desenvolvimento histórico do país – e traz a visão de que a
miscigenação [...] leva à degenerescência”. Ainda na mesma página, a autora volta a afirmar
que “[...] em O país do carnaval, Jorge Amado não ousou ir contra a corrente e acabou
reproduzindo, parcialmente, o prognóstico racial aterrorizante que vigorava”. Sobre este
mesmo aspecto, é importante ressaltar que
[...] pretendendo combater o niilismo fin de siècle do pensamento burguês, o livro
resvala em muitos momentos para uma espécie de beco sem saída ideológico. E a
rebeldia juvenil descobre-se subitamente de braços dados justamente com o
pessimismo característico de certa visão de mundo conservadora, responsável por
inúmeros mitos e preconceitos envolvendo o Brasil e seu povo. Se, por diversas
vezes, o texto apresenta situações de crítica ao comportamento segregacionista das
elites, em muitas outras sobrevêm construções em que a fala dos personagens, e
mesmo do narrador, se deixam contaminar por um discurso preconceituoso em
termos de raça, sexo e atitudes atribuídas ao povo brasileiro. E surgem repetidas
velhas teses, como a da indolência [...] (DUARTE, 1996, p.44).
89
Não é preciso adentrar muito no romance para que se observe o referido pelos
pesquisadores supracitados: já na nota explicativa, presente na primeira edição e subtraída de
outras, Jorge Amado resume73
:
Este livro tem um cenário triste: o Brasil. Natureza grandiosa que faz do homem
uma pequenez clássica. [...]
No Norte, terra de promissão, há uma grande confusão de raças e de sentimentos. É
a formação do povo. E dessa confusão está saindo uma raça doente e indolente. E
todo dia a natureza surra, com o chicote do sol, o nortista tragicamente vencido (O
país do carnaval, p. 14)74
.
Não obstante a afirmação de Rabassa (1965, p. 266), segundo a qual, no fragmento
acima transcrito, o autor baiano “[...] fala da mistura das raças, condição natural da região, e
não a causa de seus problemas”, o encadeamento lógico-semântico denota, sim, um
pensamento racista. Afinal, ressalta um aspecto causal em que a condição “doente e
indolente” do povo nortista é motivada pela “confusão de raças” que lhe caracteriza e à qual
se acrescenta, ainda, o fator climático. Neste sentido, Jorge Amado faz com que ecoe em sua
própria voz os esquemas interpretativos da realidade brasileira cujas premissas se baseiam em
distinções ontológicas entre raças e na inviabilidade genésica de uma civilização mestiça. O
escritor aproxima-se, neste ponto, salvaguardadas as devidas proporções, das perspectivas
pessimistas de certos teóricos da virada do século XIX para o XX.
Penjon (2004, p. 104) encontra nesta formação do nortista descrita por Amado “[...] as
idéias já sustentadas por Monteiro Lobato em seu Jeca Tatu”. A mesma autora ainda pontua,
em sequência, que “[...] nessa falta de perspectivas, essa ausência de filosofia que pudesse
guiar o país, [advinham-se] as grandes linhas do Retrato do Brasil”. A relação da obra de
Paulo Prado com a personagem principal de O país do carnaval é ainda ressaltada por
Goldstein (2003, p. 128) que cogita que “[...] Paulo Prado possa estar por trás da personagem
Paulo Rigger”. Da mesma forma, afirma-se:
O ensaio de Prado tematiza o que, em sua opinião, seriam nossos principais defeitos:
a luxúria, a cobiça, a tristeza e o romantismo. A perspectiva que o orienta, própria de
uma elite que vinha perdendo seu poder, caracteriza-se pelo pessimismo racista e,
em consequência, por uma visão extremamente pejorativa do país, condenado pelo
autor a conviver com a “astenia da raça”, fruto do “vício de nossas origens
mestiças”.
73
Presente na edição utilizada para este trabalho, organizada pela Companhia das Letras. 74
Todas as referências aos romances publicados por Jorge Amado, por motivo de uma melhor identificação da
obra, são feitas da forma como esta primeira, ou seja, indicando o título do romance e a página da qual foi
retirado o fragmento transcrito.
90
Esta era uma das interpretações oferecidas pelas elites no debate travado nos anos 20
a respeito do nosso caráter como povo. [...] E não há como negar a existência dessa
perspectiva pessimista no livro de Amado [...] (DUARTE, 1996, p. 45).
A explicação que abre o livro destaca as linhas mestras, os princípios regentes do
universo ali ficcionalizado, reiterados enfaticamente no desenrolar da obra. Ao seguimento da
análise, observa-se que a feição racista que permeia o romance propaga-se a partir de três
vozes em conjunto: em primeiro plano, uma voz das personagens, mais ou menos uníssona,
que engloba as opiniões do círculo de amigos, centro gravitacional do enredo. Em sequência,
a voz narrativa, mais particularizada, que, em um movimento duplo, se apresenta especular e
indutora da voz das personagens. Por último, é possível inferir uma voz totalizante que, a
partir das outras duas, cristaliza os sentidos expressos em O país do carnaval. Esta terceira
voz configura-se no encadeamento lógico-semântico, ainda que espaçado, de sequências
imagéticas ao longo do texto, bem como dos subtendidos que comportam.
Como afirmado logo acima, as três instâncias destacadas atuam de forma conjunta
para afirmar ou espelhar um ideário racista. Ainda assim, decidiu-se por analisar em separado
as duas primeiras para uma melhor caracterização de cada uma delas, o que permite
evidenciar suas estratégias e raios de ação. Após, há um estudo específico da personagem
Jerônimo, em quem se identifica o todo coeso das duas vozes em concomitante atuação, do
que resulta outra, a voz totalizante.
A voz das personagens organiza-se a partir das proximidades existentes entre as
opiniões emitidas por cada personagem que se insere no círculo de amigos em torno de Pedro
Ticiano. A despeito das díspares posições sobre a finalidade da vida, de como alcançá-la e
consubstanciá-la em felicidade, Pedro Ticiano, Paulo Rigger, Jerônimo Soares, Ricardo Braz,
José Lopes e Gomes evidenciam clara afinidade no tocante ao pensamento étnico-racial que
permeia o grupo. A respeito, por exemplo, do caso de um crítico literário que fora flagrado
recebendo dinheiro para que elogiasse certo autor, o grupo comenta entre troças:
- Ora, a gente não deve ligar pra isso. Deve desculpar. Perdoar... Deve-se mesmo
sempre perdoar na vida. Os homens superiores devem amar-se uns aos outros...
- E principalmente uns às outras – riu vitorioso o Gomes.
- Deixe de trocadilhos idiotas, rapaz... Você dizia, Rigger...
- Que nós devemos nos amar uns aos outros. E que nós devemos ter uma grande
indiferença pelos outros homens, que não são nem podem ser iguais a nós...
Devemos perdoá-los sempre. Nada que eles façam de tolo, de ridículo nos deve
causar surpresa... “Eles são inferiores. Não sabem o que fazem...” [...]
- A gente não deve perdoar a imbecilidade. Não deve nem pode... Então eu hei de
perdoar a burrice crassa daqueles mulatos que publicam uma revista que é uma
afronta à gramática e às boas letras do país? – interrogava Ricardo Braz.
- Eles não têm culpa. Não foram eles que se fizeram burros. [...]
91
- Mas deviam compreender a sua mediocridade e não aparecer. Eu desculpo os
burros convencidos de sua nulidade. Os que pensam ser alguma coisa, não...
A opinião de José Lopes pesou no grupo:
- Eu acho que a gente não deve tratar desse pessoal... É dar valor... Para que lembrar
essa canalha? Melhor seria esquecer que eles existem...
- E eles existem mesmo? Têm algum valor para existirem? Vivem, não existem... –
Apoiou o Gomes, lançando baforadas de fumaça para o ar (O país do carnaval, p.
66-67. Grifos nossos).
As partes em destaque no texto evidenciam a estrutura de um pensamento
compartilhado que, sem meias palavras, divide os seres humanos entre superiores e inferiores.
A fala de Rigger, que abre o recorte acima, é explícita quanto a esta diferenciação: o “a gente”
marca o grupo de pessoas notadamente superiores, enquanto o “eles” da quarta fala, também
de Rigger, sentencia os inferiores. Ainda nesta mesma quarta fala, nota-se a crença do
protagonista em uma impossibilidade de que um grupo de seres humanos, os inferiores,
ascenda às capacidades intelectuais daqueles que considera superiores. Ora, a clivagem que aí
se estabelece e que partilha da anuência dos presentes à conversa, dada a sua impossibilidade
de equiparação entre os grupos comparados, não é de outra natureza senão ontológica. A
discussão não se faz entre distinções que possam ser superadas em qualquer plano; ao
contrário, reitera tais diferenças como o ponto mesmo em que se distanciam duas categorias
de homens: o “nós”, que compõe a voz das personagens, o “eles”, afigurados como uma voz
ausente.
O caráter estritamente étnico-racial desta separação entre superiores e inferiores
revela-se na intervenção de Ricardo Braz ao argumento desenvolvido por Rigger. Ao
direcionar o seu discurso para a intolerância à “burrice crassa daqueles mulatos”, o poeta e
estudante de Direito delimita, de forma muito precisa, o conjunto de homens considerados
inferiores, nomeado “eles” por Rigger. Neste sentido, a utilização do pronome “daqueles” em
detrimento “deste” ou mesmo “desse”, que representam certa proximidade entre o que fala e o
outro do qual se fala, corrobora ainda na configuração de uma distância insuperável entre o
“nós”, superior, e o “eles”, inferior. Em resposta a Braz, Rigger faz uso novamente do
vocábulo “eles” sem, no entanto, tecer qualquer admoestação à delimitação empregada por
seu interlocutor, o que reafirma a equivalência semântica entre “eles” e “mulatos”. Nesta
mesma réplica, é possível visualizar novamente o caráter ontológico da suposta diferenciação
defendida pelo grupo de amigos quando Rigger afirma, retomando o seu argumento inicial,
que deveriam perdoá-los uma vez que “eles” não são culpados pela deficiência intelectual
que os caracteriza.
92
Nota-se entre aqueles que argumentam no trecho analisado, a ausência do líder
intelectual do grupo, Pedro Ticiano. Faltara ao encontro por conta de problemas de saúde
resultantes da idade, mais precisamente por causa dos “[...] olhos [que] já não enfrentavam as
trevas da noite” (O país do carnaval, p. 66). Apesar de ausente, tornara público ao grupo seu
ponto de vista ao dar início, em solo baiano, à “[...] campanha pró-inteligência. [em que]
Começou a atacar o mulatismo”. (O país do carnaval, p. 34). Há, nesta sequência de ideias, os
mesmos vetores detectados na análise do debate entre o grupo de amigos. Se a campanha
inaugurada pelo jornalista denomina-se “pró-inteligência” e tem como alvo os mulatos,
depreende-se igual distinção entre “nós” e “eles”; “inteligentes” e “burros”; voz das
personagens e voz ausente daquela estabelecida nas falas de Rigger e Braz.
Pode-se, pois, a partir das interpretações empreendidas, inferir a voz das personagens
assentada sobre uma base identitária de caráter étnico-racial que dispensa ser afirmada,
porquanto tacitamente compartilhada por seus componentes. Esta identidade – de feição
branca e seleta – opõe-se amplamente à condição mestiça do país, tida, no romance, como
razão da mediocridade intelectual, marca indelével do povo brasileiro. Neste sentido, em
diálogo com José Lopes, recém convertido ao materialismo, Paulo Rigger, interrompido por
uma rádio que anunciava os milagres de uma santa no interior de Minas Gerais, afirma:
- Esse povo místico nunca aceitará o seu sistema político.
- Esse misticismo ajuda.
- Nós, brasileiros de hoje, sentimos milhões de taras dentro de nós. Nós sofremos
por nossos avós e nossos netos...
- A solução...
- Um suicídio geral...
Paulo Rigger calou-se extenuado. Da sua testa escorria, frio, o suor. José Lopes,
triste, perdia o olhar no fundo do bar.
- Esta vida...
Abraçou Paulo Rigger. Ia à casa de um camarada, um sapateiro. E segredou no
ouvido do amigo.
- A gente deve arranjar um princípio, um ideal, para iludir-se, pelo menos. Eu me
iludo com esse negócio de comunismo. Por isso fujo de você... Você me mostra a
realidade e me carrega de tristeza (O país do carnaval, p. 143-144. Grifos nossos).
De forma explícita, como no fragmento anterior, não há nada que caracterize esta
passagem como portadora de um pessimismo racista. Entretanto, as “milhões de taras” que
conformam a natureza de destino trágico do brasileiro, conforme define Rigger, não se
afastam muito da “astenia da raça” provocada pelos “vícios de nossas origens mestiças”,
elaboração intelectual de Paulo Prado, autor que Duarte pontua em trecho já citado. É
importante ainda notar a mudança operada em José Lopes a partir do argumento de Paulo
Rigger. Frente à “evidência” da incapacidade brasileira, como povo, o comunista sucumbe à
93
tristeza e admite a ideologia apenas como uma ilusão que se contrapõe à “realidade” mostrada
pelo amigo. Se no diálogo anterior José Lopes sugere que o melhor seria esquecer que esse
povo, os mulatos de burrice crassa como define Ricardo Braz, existe, neste novo momento é
justamente a impossibilidade de esquecê-lo que o entristece.
Resta um ponto sobre a voz das personagens cuja análise se impõe: o relacionamento
entre Paulo Rigger e Maria de Lourdes, personagem mulata, que, a priori, parece indicar uma
superação do enredo – e de Paulo Rigger – às próprias limitações de caráter étnico-raciais que
sustentam o preconceito. A despeito do noivado e da proximidade do casamento, a relação
não sobrevive por motivo de natureza patriarcal – o imperativo da virgindade. Por outro lado,
a impossibilidade da união entre a personagem mulata e o homem branco, em um romance tão
permeado por visões racistas, é algo a se considerar. Ainda mais quando repleto de objeções
preconceituosas:
- E quem é a noiva?
- Uma menina que encontrei na vida. Muito pobre, mas muito boa.
- Uma mulatazinha – emendou José Lopes – de família desconhecida. Nunca pensei
que Paulo chegasse a esse grau de estupidez.
- Olhe, José, vou lhe dizer uma coisa. Se você falar novamente de minha noiva deste
modo, nós cortaremos as relações.
Paulo, muito sério, todo zangado, quis levantar-se. Lopes fê-lo sentar-se.
- Seja feita a sua vontade, rapaz, não se fala mais na sua excelentíssima noiva... (O
país do carnaval, p. 82. Grifos nossos).
É possível obstar que a restrição de José Lopes a Maria de Lourdes ocorra por conta da
“família desconhecida” da noiva, afinal tal enlace não poderia mesmo ser visto com bons
olhos pela sociedade dos anos 1930. Ainda que correto este viés interpretativo, o é apenas
parcialmente. Frente aos diálogos transcritos anteriormente e às falas do próprio Lopes, nota-
se que a questão racial atravessa a oposição feita pela personagem à noiva de Rigger, objeção
acentuada ainda mais pela ironia presente em “excelentíssima noiva”.
Contrariamente à admoestação do amigo, Rigger defende a noiva. É provável que haja
nesta defesa um instante da narrativa em que as restrições de feição étnico-racial cedam à
supremacia do amor. Mas, sem recusar de todo esta possibilidade, talvez seja interessante
avançar em outro sentido. Observe-se que o protagonista defende a noiva, mas a objeção a ela
endereçada o fere. Em resposta, Rigger – que durante toda a narrativa caracteriza-se por ser
um grande debatedor de ideias – não argumenta, apenas ameaça quebrar os laços de amizade.
É, pois, preciso ponderar a hipótese que haja, em verdade, não uma quebra das barreiras
étnico-raciais entre ele e Maria de Lourdes, mas tão somente um amolecimento motivado pelo
94
amor e pelo desejo. Esta suposição ganha terreno quando se tem em vista o “poema da mulata
desconhecida”, escrito por Rigger. Segue o poema:
Eu canto a mulata dos freges
de São Sebastião do Rio de Janeiro...
A mulata cor de canela,
que tem tradições,
que tem vaidade,
que tem bondade,
(essa bondade
que faz com que ela abra
as suas coxas morenas,
fortes,
serenas,
para a satisfação dos instintos insatisfeitos,
dos poetas pobres
e dos estudantes vagabundos).
É entre as suas coxas sadias
que repousa o futuro da Pátria.
Daí sairá uma raça forte,
triste,
burra,
indomável,
mas profundamente grande,
porque é grandemente natural,
toda da sensualidade.
Por isso, cheirosa mulata,
do meu Brasil africano
(o Brasil é um pedaço d’África
que imigrou para a América),
nunca deixes de abrir as coxas
no instinto insatisfeito
dos poetas pobres
e dos estudantes vagabundos,
nessas noites mornas do Brasil,
quando há muitas estrelas no céu
e muito desejo na terra (O país do carnaval, p. 30-31. Grifos do autor).
Percebe-se, no poema acima, o mesmo grau de amolecimento das barreiras étnico-
raciais que permite a Rigger tanto amar Maria de Lourdes quanto cantar a mulata em versos.
Ato contínuo, nota-se que o desejo se faz presente por sob cada imagem delineada pelo poeta
em louvor da mulata. É justamente esta figura da mulata como objeto do desejo masculino
“insatisfeito” que permite e até solicita o amolecimento das restrições étnico-raciais75
.
Importante retomar agora, à luz deste poema, a ideia que amolecimento não significa,
necessariamente, quebra de tais restrições. Observa-se que as objeções raciais permanecem,
apesar do canto “em favor” da mulata de “São Sebastião do Rio de Janeiro”. Não é, pois,
75
“Objeto” aqui não possui o sentido reificante que comumente lhe é atribuído. Significa, antes, o
direcionamento do desejo.
95
outro o sentido dos versos componentes da segunda estrofe. Ao definir a raça que nascerá de
ventre mulato, Rigger o faz de modo a salientar que será “forte”, porém “triste”, “burra” e
“indomável”. A característica “burra”, atribuída a esta raça brasileira mestiça irmana-se à
discussão estabelecida no primeiro fragmento transcrito, em que se debatia sobre o “nós”
superior e o “eles” inferior. Já “triste”, está presente, de forma sub-reptícia, na conversa entre
Rigger e Lopes, segundo diálogo transcrito, dado o destino trágico e sem saídas do povo
brasileiro. “Forte” e “indomável”, se bem a possibilidade de serem tomadas como acepções
elogiosas em determinado contexto, no específico de O país do carnaval parecem acrescer
certa face animalesca ao mestiço, o que casa perfeitamente com o exaltado clima sexual que
perpassa a descrição da mulata.
Esta interpretação não obsta a existência do amor a unir Rigger e Lourdinha, mas
sugere que há outros aspectos a separá-los, embora talvez não preponderantes, além do
tradicionalismo patriarcal. Deste modo, existe uma voz das personagens, uníssona no tocante
à inferioridade dos mulatos, voz dominante da qual Paulo Rigger faz parte e com a qual não
consegue romper; apenas a amolece brevemente.
O “poema da mulata desconhecida” funciona ainda como introdução da segunda
instância de interpretação deste romance amadiano. A voz das personagens, embora coesa e
mais ou menos uníssona, é de natureza fragmentável uma vez que se origina nas similitudes
dos pensamentos e discursos de indivíduos próximos. Ainda assim, em última análise, não é
possível afirmá-la em um plano meramente individual: seu modus operandi baseia-se na
anuência, pressupõe uma interação confirmativa, realiza-se no assentimento entre amigos de
um mesmo discurso. A voz narrativa, por sua vez, prima justamente pela indivisibilidade, por
estar centrada na figura única do narrador. Não lhe cabe indicar nenhuma conformação
coletiva interna à obra, não obstante com ela dialogue, mas reproduzir os ideários com os
quais o narrador toma da palavra e conduz o enredo.
Importante salientar que a análise da voz narrativa, cujo nascedouro é
inequivocamente o narrador, não se confunde com um estudo baseado na abstração discursiva
desta figura literária, embora se coadune com esta perspectiva. Ou seja, não se procura
apontar as explicitudes racistas do discurso do narrador, destacadas já na “nota explicativa”
ou na caracterização das personagens negras e mestiças, como se fez ao investigar a voz das
personagens. Antes, pretende-se perscrutar o narrador no instante mesmo em que se reafirma
a face racista da obra sem que se faça uso de construções frasais desqualificantes. Deste
modo, sonda-se a própria semântica da sistematização narrativa de O país do carnaval.
96
Observa-se, neste percurso, que a voz narrativa é tanto especular quanto indutora das
individualidades que coletivizam um substrato racista de sociedade. Este movimento duplo é
responsável pelo desenvolvimento de situações que visam a afirmações racistas por parte da
voz das personagens – movimento indutor – bem como pela sobreposição de acontecimentos
em que se reafirma, através de um espelhamento subentendido, a voz das personagens –
movimento especular.
Retomando o “poema da mulata desconhecida”, é possível destacar, no contexto em
que ele se insere, o processo de indução do qual o narrador se utiliza para emergir a voz das
personagens. O instante que antecede à escrita do poema corrobora a percepção do
movimento indutor, uma vez que remonta ao sábado de carnaval em que Paulo Rigger sentiu-
se, pela primeira vez, integrado ao Brasil. Sintomaticamente, a adesão de Paulo Rigger ao
povo brasileiro deu-se pelo viés do desejo, cujo vetor deriva de uma mulata voluptuosa:
Quando Paulo Rigger saiu, um grupo de mulatas sambava na rua. Cor de canela,
seio quase à mostra, requebravam-se voluptuosamente, num delírio. Paulo viu ali
todo o sentimento da raça. Viu-se integrado no seu povo. Caiu no samba [...].
Uma mulata gorda deu-lhe uma umbigada. Agarraram-se a dançar no passeio. Até os
sujeitos que tocavam violão sambavam numa alegria doente de quem só tem três
dias de liberdade.
Os lábios da mulata entraram nos lábios de Paulo Rigger.
Ele pensava em gritar: “Viva o Brasil! Viva o Brasil”. Sentia-se integrado na alma
do povo e não pensou que aquilo era somente durante o Carnaval quando todos,
como ele fizera durante toda a sua vida, se entregavam aos instintos e faziam da
Carne o deus da humanidade... (O país do carnaval, p. 29).
Rigger está, neste momento, no Rio de Janeiro, onde passara alguns dias após o
retorno da França. Ainda não havia conhecido o grupo de amigos do qual passou a fazer parte
quando em Salvador. Assim, o que se narra nesta cena é anterior à constituição do que se
denominou voz das personagens, no entanto já a anuncia. Importante retomar a narração das
impressões de Rigger, passado o primeiro dia de sua volta ao Brasil:
Paulo Rigger andava na rua, ao léu. Sentia-se um estranho na pátria. Achava tudo
diferente... Se aquilo lhe acontecia no Rio, que seria na Bahia, para onde iria residir
em companhia da sua velha mãe?... Poderia, conseguiria viver? E tinha uma grande
nostalgia de Paris...
Teria que viver burguesmente... Não teria mais camaradas intelectuais... Ficaria com
o espírito obtuso... Talvez se casasse... Talvez fosse mesmo morar na fazenda... que
fim para ele, degenerado, viciado, doente de civilização... Enfim...
Paulo Rigger parou em frente de uma casa de discos. Uma marcha bem cantada
enchia o espaço com uma música estranha, nostálgica, cheia de sentimento que
Paulo não compreendia.
A marcha rugia:
Essa mulher há muito tempo me provoca...
97
Dá nela...
Dá nela...
[...] E ficou a escutar enlevado pela barbaria do ritmo. A alma do povo devia estar
ali... E como era diferente da sua... [...] (O país do carnaval, p. 25. Grifos do
autor)76
.
A marchinha, não obstante o sentimento estranho e até de repulsa que provoca em
Rigger, é o mesmo samba que compõe o cenário do carnaval em que o protagonista se sente
enredado através do “sentimento da raça”. Rigger opõe o viver na Europa ao viver no Brasil
em termos de “civilização” x degeneração, intelectualidade x obtusidade. A introdução da
marchinha à cena ilustra a oposição representada por este conjunto de binômios em que
Rigger cumpre o papel da “civilização” europeia e a música o da “barbaria” brasileira. A
percepção de uma diferença insuperável entre Rigger e o Brasil, que se identifica e concretiza
por meio da nostalgia provocada pelo afastamento de Paris e de sua intelectualidade, de certo
modo prenuncia a clivagem entre “seres superiores” e “seres inferiores” que posteriormente
será defendida e aceita pela voz das personagens.
Os seios quase à mostra e o estado de desvario com que as mulatas dançavam em
volúpia simbolizam, por meio da metonímia, “todo o sentimento da raça” ao qual Rigger
deseja integrar-se. Convém frisar, ainda uma vez mais, que esta possibilidade de integração
não funciona como elemento anulatório das diferenças ontológicas entre raças defendidas pelo
protagonista e já assinaladas por este estudo. Antes, novamente, realça o amolecimento
determinado pelo desejo sexual.
A escrita do poema, diretamente relacionada com o sábado de carnaval, é síntese que
evidencia por outra voz, a das personagens, aquilo que já havia sido descrito, narrado e
defendido pela voz narrativa. Deste modo, o que se denomina movimento indutor é
justamente a antecedência da voz narrativa sobre a voz das personagens, cuja função é mais
confirmativa daquilo que já havia sido expresso do que, propriamente, afirmativa de um
ideário.
O segundo movimento, a que se denominou especular, atua em concomitância com o
indutor, porém em instância não alcançada por ele: os interstícios da língua, na semântica que
se funda sobre o que é dito e não pelo que é dito. Neste sentido, sua função não é a de induzir,
mas a de espelhar e, com isso, reforçar a voz das personagens.
76
Amado faz referência à marchinha “Dá nela”, composta por Ary Barroso e gravada por Francisco Alves em
1930.
98
Note-se, nesta direção, a marginalidade para a qual as personagens negras e mestiças
são enviadas, cumprindo, não raro, funções decorativas ou mesmo dispensáveis na obra. Com
poucas exceções, a mulher negra ou mestiça aparece como vetor de desejo ou vendedora de
quitutes na rua. Já o homem surge ainda caracterizado por meio de artimanhas
desqualificantes: “E o porteiro filosofou, como bom mulato brasileiro [...]” (O país do
carnaval, p. 124). O verbo filosofar aí utilizado aponta para o sentido inverso com o qual é
comumente decodificado, diminuindo, por ironia, a fala do porteiro, baseada em intuição e
senso comum e jamais em elaborações propriamente filosóficas.
Outro processo, porém, merece maior destaque: o ciclo de aclimatação de Rigger ao
Brasil. Entrecortado pela modinha “Dá nela...”, já referenciada, o ciclo divide-se em três
momentos: o instante do racional, o instante do desejo e o instante do passional.
O primeiro evoca o momento em que o protagonista trava conhecimento da modinha,
percebe que nela se expressa a alma de um povo e conclui que é efetivamente superior àquele
mundo uma vez que “[...] não bateria nunca numa mulher” (O país do carnaval, p. 25). É o
instante em que se anunciam os binômios anteriormente elencados e a “barbaria” do ritmo da
modinha metaforiza a “barbárie” brasileira em oposição à “civilização” parisiense
representada por Rigger.
O segundo retoma o sábado de carnaval, momento em que Rigger se integra ao
“sentimento da raça”. Neste contexto, há um desvio no sentido do verso “dá nela...” que passa
de representação violenta à conotação sexual, em concordância, portanto, com o desejo que
perpassa toda a cena.
É neste segundo instante que reside o estopim de uma gradual transformação
responsável por fazer com que Rigger substitua o caminho do racional pelo do passional. O
instante do desejo evidencia o contato mais íntimo entre Paulo e a mulata, marcado pela
umbigada, pelo beijo e pela possibilidade do sexo. Até então o protagonista, que em outros
casos passados pouco havia se enredado por seus amores, desconhecia o que fosse sofrer por
amor ou ciúme. É no domingo de carnaval, quando retorna ao hotel e não encontra Julie, que
o racional cede, pela primeira vez, ao passional:
Procurou rir. Ora, deixá-la... Afinal, ela era apenas uma mulher com quem andara.
Deixá-la...
Mas, diabo, aquilo doía-lhe. Doía-lhe pensar que Julie estivesse com outro, na cama.
Não. Não podia ser... Revoltava-se contra si próprio. Não podia ser, por quê? Era.
Ela estava com outro... Com outro, na cama... E que tinha ele com isso... Não a
amava... Não a amaria mesmo? Não, pensava, desejava-a somente... Mas o amor era
a posse... Se ele a desejava é porque a amava... Amava, sim, aquela mulher viciada
99
que tinha gostos pervertidos. E ela, agora, devia estar com outro, talvez... E
dormindo, quem sabe? (O país do carnaval, p. 30).
O terceiro instante, alcunhado “do passional”, é, pois, a intensificação desta faceta em
Rigger. Tal momento se desenvolve a partir de sua chegada ao Brasil e, mais fortemente, após
o sábado de carnaval. Remonta à cena em que, descoberto o relacionamento entre Honório e
Julie, Rigger vinga a traição:
Ela, no canto, encolhida, deixava aparecer, de propósito, o seio. Ele sentiu que o seu
pé tocava no de Julie. Um arrepio correu-lhe todo o corpo. Quis levantar-se, mas não
pôde. Ela virou-se na cama e encostou-se a ele. Paulo acariciou-a. Abraçaram-se.
Possuíram-se.
E, no grande momento, ela pediu:
- Perdoe-me...
- Não!
Empurrou-a. Apertou-lhe a garganta. Ela gritou. Soltou-a.Tinha uma vontade louca
de esmagá-la. Disse-lhe nomes feios. Ela sorriu. Ele deu-lhe um soco. Julie gritou:
- Covarde!
E ele bateu-lhe até cansar. Depois, deixou-a chorando na cama. Saiu. Aspirou com
força o ar da noite. A lua, no alto, escondeu-se atrás de uma nuvem.
E o vento parecia cantar-lhe nos ouvidos a marcha carnavalesca
Dá nela...
Dá nela... (O país do carnaval, p. 54. Grifos do autor).
Há, neste trecho, um retorno da modinha ao sentido original, eliminando ou deixando
em segundo plano o viés sexual. As transformações a que, neste processo, o sentido da canção
é submetido espelha e põe em evidência as mudanças que ocorrem na alma de Rigger em
quem se nota uma gradual tendência a imiscuir-se no Brasil – em que pesem todas as
considerações pejorativas que a narrativa acentua nesta mudança. Caso se considere a opinião
primeira do protagonista sobre a modinha – exemplo de barbárie por conta do ritmo e da
violência que incita, mas, ainda assim, representativa da alma do povo – infere-se que, ao
confundir-se com aquilo que rejeita, Rigger segue por um descaminho. Desfaz-se, assim, o
primeiro dos binômios acima expostos, “civilização” x “degeneração”, em que o termo
superior cede em relação ao inferior.
Importante frisar, a esta altura, que os termos “racional” e “civilizado” confundem-se
da mesma forma como ocorre entre “passional” e “degenerado”. Não à toa, a representação do
povo brasileiro construída no romance, dada à inferioridade, é a de um povo todo voltado ao
“império dos sentidos”, o que explica o fato de Rigger creditar à modinha a expressão anímica
do povo e, à sensualidade, o seu único fator de grandeza.
Inevitável observar a recorrência do fator étnico-racial na passagem a que se
denominou ciclo de aclimatação. No primeiro instante, a canção significa barbárie e é
100
representativa do povo brasileiro, cuja caracterização mestiça fora exposta depreciativamente
já na “nota explicativa”. No instante seguinte, o texto metaforiza o desejo pela mulata e
realiza a integração de Rigger ao país por via sexual. Por último, a canção reassume o sentido
original, sem que se apague de todo o sexual, leitura motivada pela traição de Julie com
Honório, personagem negra. Renova, desta forma, a integração de Paulo Rigger à alma do
povo, desta vez pelo viés da violência, símbolo de passionalidade, que ele tanto repudiara no
início do ciclo: “Só me senti brasileiro duas vezes. Uma, no Carnaval, quando sambei na rua.
Outra, quando surrei Julie, depois que ela me traiu” (O país do carnaval, p. 63).
É possível apontar, pois, na direção de que a voz narrativa assinala uma lenta
decadência de Rigger que passa da “civilização” à “barbaria”, da condição de racional para a
de passional, quando em presença ou proximidade de personagens negras e mulatas ao passo
que, relativamente afastado destas, reassume os termos iniciais dos binômios.
Convém ressaltar que, caso correta a interpretação acima, O país do carnaval dialoga
diretamente com O cortiço, de Aluísio Azevedo, comentado na seção anterior. Embora
passageiro, o movimento de Rigger em direção à “barbaria”, tangencia a derrocada que
Jerônimo, personagem branca e portuguesa, experimenta ao relacionar-se com Rita Baiana,
brasileira e mulata. A voz narrativa, então, ao estabelecer este paralelismo, referencia, evoca e
atualiza as concepções raciais vigentes no século XIX e que compunham o grande cenário em
que o romance do maranhense se desenrola. Em ambos, o contato inter-racial é negativo,
oposto à civilização e fator de decadência.
Por último, cabe analisar a voz totalizante. Esta, de caráter mais geral, nasce
precisamente da conjunção das outras duas e é responsável por fixá-las. Em outras palavras,
define-se por acolher as imagens enunciadas tanto pela voz narrativa quanto pela voz das
personagens e, a partir destas, operar na cristalização dos sentidos em um todo narrativo
coeso. Ocorre quando, simultaneamente, as vozes coletiva e narrativa incidem sobre uma
mesma personagem e, no desenrolar da obra, a acompanham no intuito mesmo de postular e
fixar a humanidade considerada inferior, uma vez que mestiça. Nesta perspectiva, o trato de O
país do carnaval com Jerônimo Soares é revelador:
O mais apagado deles chamava-se Jerônimo Soares. Mulato claro, bom rapaz,
ingênuo, sem pretensões, sem vaidades, lugar-comum humano, que Ticiano vivia,
entretanto, a fazer “à sua imagem e semelhança”.
Pedro Ticiano tinha dessas maldades, às vezes. Antes de o conhecer, Jerônimo vivia
sereno, sem problemas, a paz dos que não pensam nem se esforçam por pensar (O
país do carnaval, p. 36).
101
O trecho supracitado se inscreve no momento narrativo em que se introduzem os
componentes do grupo de amigos em redor de Pedro Ticiano, o que se faz em tom mesmo de
apresentação77
. Após o resumo da vida do mentor intelectual do grupo, já idoso aos sessenta e
quatro anos e odiado por todos os mestiços da Bahia por conta de sua campanha “pró-
inteligência”, passa-se às promissoras perspectivas futuras dos outros integrantes. Ricardo
Braz, funcionário público, estudante de Direito e poeta; Gomes, jornalista dono de
“inteligência agudíssima” ainda que a “serviço do mais completo analfabetismo” (O país do
carnaval, p. 35), e o grande talento literário, José Lopes. Nota-se que, dentre todos, o único
descrito depreciativamente é Jerônimo Soares, justamente o mestiço. E há, certamente, uma
relação de causa e consequência entre a natureza mestiça de Jerônimo e sua descrição como o
“mais apagado” dos amigos. Esta interpretação é confirmada ao atentar-se para o
exclusivismo com que se revela a identidade étnico-racial da personagem, “mulato claro”, em
comparação às outras apresentações que, em momento algum, tocam neste aspecto. Destarte,
a caracterização racial de Jerônimo, ressaltada pela voz narrativa, cumpre o papel de
distingui-lo do restante dos amigos, voz das personagens, evidenciando sua suposta
inferioridade em um movimento de cristalização das diferenças ontológicas entre as raças, voz
totalizante.
Ainda sobre o fragmento transcrito acima, note-se que antes de conhecer o grupo e,
mais precisamente, Pedro Ticiano, Jerônimo vivia a “paz dos que não pensam nem se
esforçam por pensar”. Esta imagem relaciona-se diretamente com aquela outra expressa por
Ricardo Braz que, em trecho já trabalhado, define os mulatos como seres nulos e portadores
de “burrice crassa”. Relaciona-se, igualmente, com o “poema da mulata desconhecida”
quando Rigger toma a raça nascente de ventre mulato como “burra”, dentre outras imagens.
Culmina em uma visita do grupo a Pedro Ticiano, já doente. Nesta cena, a distinção entre
Jerônimo e os outros se torna ainda mais evidente:
- Vocês são muito bons! Não sei como lhes pague tanta bondade...
- É nosso dever. Nós lhe devemos tanto...
E Jerônimo Soares enumerava os benefícios que Pedro Ticiano lhes fizera.
José Lopes, ao ministrar o remédio, disse a Pedro:
- Aquele não lhe deve nada, Ticiano. Se você continua a ter influência sobre aquele
rapaz, fá-lo-á um infeliz...
- Mas pelo menos ele ficará diferente da totalidade dos homens. Isto é o que eu quis
fazer. Um homem diferente, digno de nós.
77
Note-se que a forma como Jorge Amado descreve o grupo como formado ao redor de Pedro Ticiano,
assemelha-se à formação da Academia dos Rebeldes, movimento literário modernista baiano estruturado em
torno de Pinheiro Viegas. Assim, Pedro Ticiano pode vir a ser uma representação ficcional do líder intelectual
dos Rebeldes.
102
- Mas ele não dá pra isso. É muito bom rapaz...
- Muito bom. Uma grande alma...
- Isso faz com que a gente perdoe a pequenez do cérebro...
- Coitado! (O país do carnaval, p.120).
O enfoque sobre Jerônimo é, recorrentemente, desqualificante, embora haja a ressalva
de que seja uma boa alma. Este mesmo discurso já havia sido pronunciado por Pedro Ticiano
que, satisfeito com a submissão de Jerônimo às suas palavras, “[...] gostava de derrubar os
sonhos daquele homem medíocre e bom, que tinha o único defeito de querer intelectualizar-
se” (O país do carnaval, p. 112). Em verdade, o fato de ser descrito como bom não ameniza o
discurso racista que incide sobre a personagem, antes o fortalece posto que, não raro, a
condição boa de sua alma confunde-se com servilismo e resignação, posição em que
geralmente é retratado. Neste sentido, Jerônimo é incapaz de rebelar-se verdadeiramente
contra o domínio de Pedro Ticiano e se, vez ou outra, ensaia o rompimento, nunca o toma em
êxito. Assim, há na relação Ticiano-Jerônimo a atualização do estereótipo do “[...] negro
infantilizado, serviçal e subalterno” (PROENÇA FILHO, 2004, p. 165. Grifos do autor), uma
vez que se mantém fiel ao grupo, não obstante as indiretas que lhe são endereçadas:
Pedro Ticiano tomou um livro que Jerônimo segurava.
- Ó rapaz! Agora é que você está lendo José de Alencar?
- Relendo, Ticiano. Eu gosto muito de Alencar...
- É bom poeta... Bom poeta...
- Poeta?
- Sim, poeta. Iracema é um poema de grande sonoridade. Mas Alencar é mau
romancista...
Ricardo Braz discordou. Achava que Alencar tinha qualidades. Não era talvez um
grande romancista, mas lia-se.
- Romancista de garoto de colégio interno e de imbecis que se honram de ter sangue
índio (O país do carnaval, p. 33).
A afirmativa que encerra a transcrição acima é esclarecedora no tocante à atualização
do estereótipo. Em sua primeira parte, Ticiano destaca que Alencar seria um escritor para
“garoto de colégio interno” o que, em se tomando o gosto de Jerônimo pelo autor cearense,
infantiliza o mulato. Em seguida, ao enfocar que seria também um escritor para “imbecis que
se honram de sangue índio”, portanto mestiços, dirige-se mais diretamente ao amigo e toca,
provocante e cáustico, em sua origem mestiçada. Neste sentido, a voz das personagens se
utiliza do gosto literário de Jerônimo para diminuí-lo intectualmente e a voz narrativa, ao
negar à personagem o direito da réplica através de um corte ensejado pela chegada de José
Lopes, traz à baila os sentidos de passividade e servilismo.
103
É necessário retornar à transcrição do trecho em que, ao leito de Ticiano doente, o
velho jornalista e José Lopes concordam quanto à “pequenez do cérebro” de Jerônimo. A
intenção de Pedro Ticiano, aí expressa, de transformar Jerônimo em um ser digno do grupo de
amigos que o mulato frequenta não pode passar despercebida. Revela-se neste intuito e,
principalmente, na impossibilidade ontológica de atingi-lo, idêntica clivagem entre o “nós”,
voz das personagens superior e o “eles”, voz ausente inferior, anteriormente analisada de
modo que Jerônimo está no grupo, posto que o frequenta e o estima, mas não faz parte dele.
Em outras palavras, enquanto José Lopes, Gomes, Ricardo Braz e Rigger assumem um papel
ativo nas discussões do grupo, mesmo em relação a Ticiano, Jerônimo é tão somente passivo.
Vez ou outra introduz assuntos, mas nunca ideias. Ouve, mas não fala. Participa das
discussões sobre a inferioridade natural dos mestiços, mas não se opõe, não argumenta. Desta
forma a voz das personagens engloba Jerônimo unicamente como componente passivo, ou
seja, visualiza-o como elemento sobre o qual há atuação.
Ainda neste mesmo fragmento um último ponto deve ser abordado: a advertência feita
por José Lopes a Pedro Ticiano sobre a felicidade de Jerônimo. Também esta passagem está
recoberta pela diferenciação entre superiores e inferiores porquanto para o velho jornalista “a
felicidade só est[eja] ao alcance dos imbecis e dos cretinos” (O país do carnaval, p. 135), com
o que concordam, à custa de desilusões, Ricardo Braz, José Lopes e Rigger. Nesta
perspectiva, a advertência de Lopes aponta para uma possível capacidade de Jerônimo ser
feliz posto que, dada a sua inferioridade intelectual, não seria atormentado pelas inquietações
existenciais que habitavam sem respostas os cérebros superiores, o que ocasionava angústia e
desconsolo. “Nós temos que viver... E procurar não fracassar. Tentar a felicidade. Para não
ficar vivendo a miséria minha e de José Lopes... Você precisa, deve, tem obrigação de ser
feliz...” (O país do carnaval, p. 121), incita Rigger a Jerônimo, ao que o mulato responde em
afirmativo. Talvez, sem o saber que ao concordar o faz também, por extensão, com o olhar
inferiorizante que lhe é dispensado pela voz das personagens:
- Você se lembra de Pedro Ticiano, José Lopes? Ele dizia que a gente vive por viver.
Que só se consegue uma calma, ainda que relativa, deixando de desejar. Ficando
indiferente... Nada querer. Super-Buda. Ele chegou a esta perfeição. Nós, homens do
nosso século, não idolatramos como ele a dúvida. Nós a combatemos. E
combatíamos Pedro Ticiano. Todos nós tentamos encontrar o sentido da existência.
O fim para que vivemos. A felicidade, se você quiser assim. Você dizia que ela, a
felicidade, estava na verdade filosófica. Ricardo Braz contestava: que só o amor-
sentimento podia nos mostrar a rota do porto. Porque só nas coisas naturais se
encontrava o sentido da vida... Eu [Rigger] pensava como ele e procurei a felicidade
no instinto. Fracassamos. Não falo de Jerônimo porque esse, medíocre, não é dos
homens insatisfeitos. A insatisfação desses homens é apenas o reflexo da nossa (O
país do carnaval, p. 140).
104
O fragmento acima se relaciona diretamente com outro, que lhe é bem anterior, em
que a voz narrativa se faz ouvir: “Jerônimo sentia-se feliz. Começava naquela noite a volta à
sua vida de outrora. Começava a libertar-se de Ticiano. E, se o conseguisse, chegaria a mais
completa felicidade. Tinha todos os elementos para isso. Era bom e burro” (O país do
carnaval, p. 87). Esta convergência entre as vozes das personagens e narrativa para a
constante inferiorização de Jerônimo culmina na felicidade do mulato em contraste com a
insatisfação dos amigos. Jerônimo encontra no amor e na religião, possibilidades ausentes no
campo do racional, sua finalidade, o sentido da vida. O que, em outro contexto, poderia ser
classificado como um final positivo para a personagem, em O país do carnaval assume um
viés racista posto que implica, dadas as premissas do romance, ratificar ainda uma vez mais a
inferioridade de Jerônimo e, por extensão, a de todos os mestiços.
Há que se observar, a pretexto de conclusão, a similitude com que são descritas a
representação mulata de Jerônimo Soares e a ficcionalização mestiça de Brasil: “Feliz Brasil,
que não se preocupa com problemas, não pensa e apenas sonha em ser, num futuro muito
próximo, „o primeiro país do mundo‟” (O país do carnaval, p. 104). Em ambos há um sonho
de grandeza que não será alcançado – a intelectualidade e a supremacia frente a outras nações
–, impossibilidade que jaz na constituição mestiça peculiar às duas caracterizações. Percebe-
se ainda a ênfase recorrente na incapacidade de pensar, sempre ilustrada em Jerônimo, o que
os situa fora da esfera racionalista e, por consequência, “civilizada” delineada pelo romance.
A despeito de tudo isso, existe a possibilidade de ser feliz que, como se viu, age no reforço às
perspectivas negativas elencadas. Desta forma, é possível afirmar um movimento da voz
totalizante em consubstanciar a personagem Jerônimo como metonímia do discurso sobre o
país. Há, pois, uma ampliação do alcance daquilo que se elabora acerca da personagem: as
limitações individuais do mulato coletivizam-se e passam a abranger o todo que delimita o
país.
Caso corretas as conclusões acima, o romance O país do carnaval estabelece uma
condenação da mestiçagem, aspecto do qual se origina o pessimismo que cerca a obra:
Jerônimo e o país poderiam ser felizes, mas, independente de qualquer esforço em contrário,
irreversivelmente “burros” e “degenerados”78
.
78
Dadas as considerações aventadas sobre O país do carnaval, impossível não mencionar certa tristeza em face
da injustificável e absurda escolha deste romance como tema do carnaval 2012 de Salvador, uma pretensa
homenagem ao centenário do escritor grapiúna.
105
2.2 DAS IMPLICAÇÕES DE UMA GUINADA À ESQUERDA
Em 1932, portanto um ano após O país do carnaval, Jorge Amado não publicou
nenhum livro. A despeito da aparente pouca relevância desta constatação, ela encerra um
movimento de descontinuidade, do qual se originam uma ruptura e a consequente
ressignificação do universo anteriormente ficcionalizado pelo baiano. Assim, não há qualquer
exagero em afirmar que o desenvolvimento da literatura amadiana, tal como se deu, decorre
em parte dos eventos que influenciaram o escritor a destruir os originais de um romance que
viria a público no ano em questão, Rui Barbosa nº 2.
Apesar da já exposta pouca cumplicidade entre o autor e o seu primeiro livro, cujo
pessimismo comporta uma atitude “artificial”, “exclusivamente literária”, crítica e público
acolheram-no em elogios e vendas, como evidenciam Táti (1961, p. 30-32) e Penjon (2004, p.
100). Segundo as palavras do próprio Jorge Amado:
[...] quando surgiu, este primeiro livro foi muito bem recebido. Talvez até, de todos,
tenha sido o que teve a melhor acolhida, a mais unânime. Depois, a partir de Cacau,
eles sempre suscitaram polêmicas. Mesmo aqueles que foram mais calorosamente
recebidos pela crítica [...] (RAILLARD, 1990, p. 47).
Talvez subsista na recepção crítica de O país do carnaval certo vínculo entre o
conservadorismo de uma determinada parcela da inteligência brasileira e aquele expresso pela
narrativa, relação ausente em obras outras do mesmo autor. Seja como for, a boa acolhida do
romance serviu de estímulo, como a indicar ao baiano que o caminho trilhado era o correto.
Desta forma, interessante notar que o poeta e editor Augusto Frederico Schmidt, ao comentar
a cena final do romance79
, sinalize, em prefácio à obra, que “Cristo é a chave e é a medida.
Felizes os que veem por acaso essa iluminação” (O país do carnaval, p. 12) 80
. O próprio
Jorge Amado relata, em entrevista a Alice Raillard, os efeitos de tantos e, às vezes, tão
desmedidos elogios:
79
Nesta cena Paulo Rigger ensaia uma aproximação com Deus através da imagem-símbolo do Cristo Redentor:
“No Corcovado, Cristo, braços abertos, parecia abençoar a cidade pagã. Tornou-se maior a tristeza nos olhos de
Paulo Rigger. Levantou os braços num gesto de supremo desespero e murmurou fitando a imagem gigantesca:
- Senhor, eu quero ser bom! Senhor, eu quero ser sereno...” (O país do carnaval, p. 146). 80
Segundo Jorge Amado “Augusto Frederico Schmidt [era] um poeta católico, que se pôs a publicar a nova
literatura que surgira depois da Revolução de 1930. Era um homem estranho, um mestiço imponente, grande,
muito gordo – o chamávamos de O Gordo Sinistro –, que reunia ascendências judia e negra. Este homem, que
deveria ter sido Jeová e Oxalá, era um „Cristo católico‟, muito católico e muito atormentado, que tinha um
terrível sentimento de culpa, não sei por quê” (RAILLARD, 1990, p. 50).
106
Assim, imediatamente – me achei o maior escritor do mundo! – escrevi outro livro,
Rui Barbosa nº 2, que era na verdade a repetição de O país do Carnaval, mas onde
já se viam as influências que eu recebia da esquerda [...]. Este livro refletia assim as
duas linhas que se desenhavam: a linha católica, ligada aos círculos tomistas, que em
grande parte foram desembocar no integralismo [...], e as correntes de esquerda que
desembocaram no Partido Comunista.
[...] Então escrevi este segundo livro, mas tive o bom senso de não publicá-lo. Pois
foi justamente no momento em que as influências de esquerda foram fortes para
mim, em que me aproximei da Juventude Comunista e comecei a militar
(RAILLARD, 1990, p. 47-48).
Os originais de Rui Barbosa nº 2 foram destruídos, de que resulta a impossibilidade de
qualquer apreciação crítica da obra. Entretanto, a julgar pela confessa semelhança em relação
a O país do carnaval, cópia “[...] para pior e para maior” (TÁTI, 1961, p. 37), e pelo seu
destino, o apagamento, talvez seja lícito especular que os esquemas interpretativos da
realidade brasileira não houvessem se alterado substancialmente de um para outro romance.
Ainda que, tal como afirma o escritor, as influências de esquerda já se fizessem sentir neste
segundo livro, é de alguma forma provável que não fossem suficientes para abalar o veio
conservador que notabiliza a estreia amadiana. Neste aspecto, o Rui Barbosa nº 2 entraria em
choque direto com o contexto vivenciado por Jorge Amado, uma vez que
Em 1932, Jorge Amado se aproxima dos escritores nordestinos, ao mesmo tempo em
que se afasta do grupo católico ligado a Otávio de Faria e Augusto Frederico
Schmidt. Conduzido por Rachel de Queiroz à juventude comunista, freqüenta
reuniões e palestras, vai às ruas participar dos meetings, dispersados muitas vezes a
tiros e patas de cavalo. Passa a devorar a literatura dos compagnons de route
estrangeiros e a impregnar-se rapidamente de utopia libertária que vinha do Leste
europeu. E então o sentimento de revolta pequeno-burguesa, dominante em O país
do carnaval, começa a ceder lugar aos pontos de vista de esquerda visíveis de Cacau
a Subterrâneos da liberdade (DUARTE, 1996, p. 28).
É, pois, neste sentido, o de sua não publicação, que Rui Barbosa nº 2 engendra uma
descontinuidade na principiante literatura amadiana e, por consequência, instaura uma revisão
do projeto literário inaugurado com O país do carnaval. No decorrer deste processo, o
ceticismo de empréstimo daquele adolescente de dezoito anos cede paulatinamente frente à
utopia socialista, viés ideológico que ganha terreno no Brasil durante a década de 1930. Treze
anos antes, a Revolução Russa tornara palpável ou, ao menos, factível a perspectiva até então
teórica da experiência socialista. A tomada de poder pelos bolcheviques plasmara, de
imediato, em todo o mundo ocidental, uma realidade capitaneada pela esperança que se
contrapunha àquela marcada pela opressão das desigualdades sociais. Entretanto, não obstante
reivindicações políticas inspiradas no exemplo russo por toda a década de 1920 – incluindo a
própria fundação do Partido Comunista do Brasil, em 1922 – apenas no decênio subsequente
107
houve uma maior veiculação da ideologia marxista, alavancada pelas crises do capitalismo e
da ordem burguesa. Em resumo:
O decênio de 30 é marcado, no mundo inteiro, por um recrudescimento da luta
ideológica: fascismo, nazismo, comunismo, socialismo e liberalismo medem suas
forças em disputa ativa; os imperialismos se expandem, o capitalismo monopolista
se consolida e, em contraparte, as Frentes Populares se organizam para enfrentá-lo.
No Brasil é a fase de crescimento do Partido Comunista, de organização da Aliança
Nacional Libertadora, da Ação Integralista, de Getúlio e seu populismo trabalhista.
A consciência de luta de classes, embora de forma confusa, penetra em todos os
lugares – na literatura inclusive, e com uma profundidade que vai causar
transformações importantes (LAFETÁ, 1974, p. 17).
Em relação ao Brasil, a despeito da crescente efervescência política dos anos vinte,
outras eram as preocupações literárias mais imediatas. A Semana de Arte Moderna de 1922,
ponto de encontro das influências oriundas das vanguardas europeias anteriores à Primeira
Grande Guerra e plataforma de uma nova realidade cultural (BOSI, 1994), dá início ao que se
convencionou chamar de “fase heróica” do Modernismo. Neste momento, a urgência maior
era o embate contra uma literatura anacrônica, parnasiana, voltada para um ideal e uma
estética que pouco ou nada traduziam do país; ou seja, “[...] uma recusa da passividade e do
servilismo com os quais muitos intelectuais haviam assimilado modelos culturais e estéticos
de importação” (OLIVEIRA, 2002, p. 64).
A dimensão política da primeira etapa do modernismo brasileiro não se traduz em
desvendamento e ficcionalização da luta de classes ou na difusão de uma utopia socialista,
mas desemboca, alguns anos após a Semana, em termos do binômio “cosmopolitismo x
nacionalismo”. A questão nacional é, pois, o núcleo base a partir do qual grupos divergem e
fundam tendências díspares, entre as quais se encontram Oswald de Andrade, sem “[...] receio
de denunciar os aspectos negativos do Brasil [...]” e o “[...] nacionalismo verde-amarelista
[que] é de tipo sentimental, epidérmico [...]” e se ocupa da “[...] exaltação de valores como o
patriotismo, a terra, a religião, a família, a ordem política vigente [...]” (OLIVEIRA, 2002, p.
72). Ainda segundo a pesquisadora é “[...] necessário sublinhar que tal nacionalismo (pelo
menos na primeira fase) era, em ambos os casos, de natureza mais literária do que
propriamente ideológica e política” (OLIVEIRA, 2002, p.73).
Cumpre ressaltar que a distinção entre as esferas do literário – projeto estético – e do
político – projeto ideológico – não são mais do que instrumentos de análise encarados de
forma dialética uma vez que “[...] o projeto estético, que é a crítica da velha linguagem pela
confrontação com uma nova linguagem, já contém em si o seu projeto ideológico” (LAFETÁ,
1974, p. 11. Grifos do autor). Decorre que, em determinado momento, uma maior ênfase pode
108
recair sobre um ou outro projeto, a depender das interpretações contextuais dos literatos.
Neste sentido, embora houvesse, desde o princípio, um projeto ideológico incrustado no
ímpeto renovador do Modernismo, tal movimento se caracterizava por uma perspectiva de
atualização das estruturas literárias, notadamente a linguagem, donde se percebe uma
prevalência do projeto estético na “fase heroica” (LAFETÁ, 1974).
Vencida a necessidade de atualização da literatura brasileira, Oliveira (2002) localiza,
a partir de meados dos anos vinte, uma movimentação gradual do Modernismo em direção à
realidade interna nacional, o que deixa em segundo plano a dimensão estética. Assim constata
Oliveira:
O esteticismo exasperado da Semana de Arte Moderna é substituído pela
preocupação de reintegrar a literatura na realidade, de mergulhar profundamente
naquele Brasil do qual tanto se falava, mas que pouco se conhecia. Sem renegar os
postulados do Modernismo, os seus protagonistas recusam a gratuidade do fato
estético em função de uma participação social mais acentuada (OLIVEIRA, 2002, p.
66).
Neste momento, um novo projeto ideológico, menos burguês em sua natureza, aos
poucos se anuncia. As reivindicações sociais, a opressão capitalista, o árduo cotidiano do
ainda incipiente proletariado urbano e do amplo contingente de trabalhadores rurais se
aproximam da literatura. Dado o contexto, a assunção de horizontes políticos vinculados ao
marxismo é praticamente inevitável. Assim, se em um primeiro momento, o projeto
ideológico se ocupa da renovação das premissas estéticas a regerem a literatura brasileira,
“[...] nos anos trinta esse projeto transborda os quadro da burguesia, principalmente em
direção às concepções esquerdizantes (denúncia dos males sociais, descrição do operário e do
camponês) [...]” (LAFETÁ, 1974, p. 18). A ênfase em um aprofundamento da consciência
política – ou da conscientização política – torna-se um divisor de águas entre ambos os
projetos ideológicos. Comparando-os ainda uma vez mais:
Não se trata mais, nesse instante [anos trinta] de “ajustar” o quadro cultural do país a
uma realidade mais moderna; trata-se de reformar ou revolucionar essa realidade, de
modificá-la profundamente, para além (ou para aquém...) da proposição burguesa: os
escritores e intelectuais esquerdistas mostram a figura do proletário (Jubiabá, por
exemplo) e do camponês (Vidas Secas) instando contra as estruturas que os mantêm
em estado de sub-humanidade [...] (LAFETÁ, 1974, p. 18-19).
O próprio decurso dos primeiros anos da década de 1930 no Brasil favorece a
passagem do projeto estético ao ideológico, uma vez que encerra a transição da política do
café com leite para a Nova República, o que interfere profundamente na vida social do país. A
109
respeito da Revolução de 1930 – ainda que Getúlio Vargas, algum tempo mais tarde, tenha
flertado com o fascismo italiano e evoluído para o Estado Novo como forma de governo – é
importante reconhecer o caráter dinamizador da política nacional bem como dos esquemas
interpretativos da nação:
O redescobrimento do Brasil pode ser registrado na própria sucessão das produções
historiográficas posteriores à Revolução de 1930. A Revolução, se não foi
suficientemente longe para romper com as formas de organização social, ao menos
abalou as linhas de interpretação da realidade brasileira – já arranhadas pela
intelectualidade que emergia em 1922, com a Semana de Arte Moderna, de um lado,
e com a fundação do Partido Comunista, de outro. Assim como no plano da política,
na seara historiográfica novos estilos surgiram, contrapondo às explicações
autorizadas de Varnhagen, Euclides da Cunha, Capistrano de Abreu e Oliveira
Vianna concepções até então praticamente inéditas, e que soariam como
revolucionárias para o momento (MOTA, 2008, p. 69).
Observa-se, portanto, que a Revolução de 1930 é responsável por uma mudança no
pensamento gestor das esferas não só política, mas também – e principalmente –
historiográfica-interpretativa. Esta influência, como já salientado, se estende à literatura e
possibilita, assim como nas outras áreas, novos olhares, novas semânticas. Neste sentido,
Candido (1972, p.110-111) considera que há, neste período, uma tendência para a literatura se
“desburguesar”. Segundo o autor, os escritores “[...] vão tentar pôr de lado uma série de
valores culturais próprios à burguesia litorânea. Vão viver menos obcecadamente voltados
para a Europa; [...] vão procurar sentir o povo [...]. O romance começa, pois, a não ser mais
romance para classe”. Isto é, há um influxo da literatura nacional na direção de uma busca
pelo povo.
Não obstante, como pontua Oliveira em fragmento já citado, o projeto estético do
Modernismo cedesse lugar ao ideológico a partir de meados da década de 1920, apenas na
subsequente o projeto ideológico do movimento e a utopia socialista irmanam-se e
confundem-se, caracterizando o movimento identificado por Candido81
. Em entrevista a
Duarte, quando perguntado sobre as notícias provenientes de Moscou acerca da Revolução
Russa, o escritor Jorge Amado afirma:
Durante a década de 20 elas chegavam, mas ainda como algo distante. Nosso
conhecimento do processo revolucionário soviético se acentua a partir da Revolução
de 30. Trinta é que é a grande data. Até então nós fazíamos uma vida de
81
Importante frisar que o projeto ideológico voltado para a utopia socialista, embora mais expressivo, não se
constituiu, sobremaneira, na única vertente que se desenvolveu no período. João Luiz Lafetá (1974, p. 18)
assinala a existência de um grupo “conservador e de direita (literatura espiritualista, essencialista, metafísica e
ainda definições políticas tradicionalistas, como a de Gilberto Freyre, ou francamente reacionárias, como o
integralismo)”.
110
subliteratura, escrever poemas... era ainda a luta contra o Parnasianismo, o
academicismo, contra Coelho Neto, coitado, que levou tantas bordoadas, muitas
delas injustas. [...] Mas a Revolução de 30 é que veio realmente marcar e ser um
divisor de águas, porque não teve o aspecto dos golpes militares ou tentativas de
golpes militares que a precederam. Antes de 30, a epopéia da Coluna Prestes já
havia nos tocado como algo heroico que se passava no interior do país e que durou
uns dois anos, entre 24 e 26. Depois, há o movimento da chamada “Aliança
Liberal”. [...] É claro que imediatamente começaram os compromissos e a
Revolução de 30 não tomou nenhum aspecto socialista, nem marchou para uma
radicalização, mas modificou muita coisa neste país (DUARTE, 1996, p. 272).
A despeito de ter sido escrito em 1930 e publicado em 1931, O país do carnaval é
muito mais um livro que reflete o pessimismo do primeiro vintênio do século passado ou
mesmo aquele que caracteriza os últimos anos do século XIX. Ao que tudo indica, o mesmo
ocorreria com Rui Barbosa nº 2. Apenas em 1932 os anos trinta passam a deixar marcas mais
profundas na literatura amadiana. A primeira, como já explicitado, uma descontinuidade
ocasionada pela não publicação do romance Rui Barbosa nº 2, desistência motivada, dentre
outros fatores, pela adesão do escritor às ideias socialistas. Esta primeira característica já
guarda em si o embrião da segunda, a ruptura que, entretanto, iria se consolidar apenas no ano
seguinte, 1933.
Como visto, há um consenso entre pesquisadores do Modernismo em opor as
produções dos anos vinte e trinta em termos de uma ênfase na experimentação estética e no
engajamento ideológico. Em se tratando especificamente da literatura amadiana, O país do
carnaval, se distante das premissas do modernismo de trinta, não é, também, o que se pode
classificar como um típico exemplar em que se note a influência dos primeiros anos do
movimento modernista. Aliás, o próprio Jorge Amado afirma, em depoimento publicado por
Valdomiro Santana (2009, p. 16) pouca proximidade com tal vertente e “até uma certa
desconfiança desse movimento, aquela coisa de paulista, de língua inventada. Os modernistas
não conheciam a linguagem popular”. A suposta distância entre Jorge Amado e os expoentes
do Modernismo talvez possa ser analisada através da pouca penetração do movimento na vida
literária baiana, cujo contato só se firmaria cinco anos após a Semana de Arte Moderna,
conforme o escritor baiano salienta a Alice Raillard (1990, p. 34)82
. Note-se que o período
referenciado por Jorge Amado como sendo o do início das trocas, ainda que incipientes, entre
Bahia e Modernismo Paulista é o mesmo considerado por Oliveira como o do arrefecimento
do esteticismo e da intensificação de um olhar voltado para a realidade nacional. Ainda que
82
A esse respeito, Rossi (2004, p. 41) sugere algo interessante. Segundo o pesquisador: “A negação [do contato
com o modernismo paulista], penso, deve ser encarada menos como uma ausência de diálogo ou aproveitamento
literário das liberdades temáticas e formais preconizadas pelos modernistas paulistas, e mais como sintoma das
reordenações de interesses dos literatos no terceiro decênio do século XX".
111
em O país do carnaval tal perspectiva se faça presente, porquanto a temática remonte em
última análise ao país, prevalece a face que dialoga diretamente com alguns grupos de caráter
conservador. Tal obra resgata, assim, um modelo de literatura anterior à Semana de 1922,
quanto mais no tocante à sua concepção de Brasil erigida sobre valores europeus.
A estreia, por assim dizer, de Jorge Amado na década de 1930 acontece com a
publicação de Cacau83
, seu segundo romance, em 1933. Mais do que simbolizar o
engajamento político do autor e apontar na direção de um projeto literário inclusivo, esta
narrativa consolida a ruptura em relação a O país do carnaval, cuja forma embrionária já se
anunciava na descontinuidade de Rui Barbosa nº 2.
Não se trata, apenas, de opor uma narrativa à outra, mas, em um plano maior, observar
os projetos que elas encerram. Cabe ressaltar que o motivo pelo qual se considera Cacau
como o exato ponto de ruptura não é outro senão o fato de, neste estudo, investigar-se projetos
literários. Poder-se-ia propor igualmente uma abordagem baseada na militância política, o que
faria com o que o projeto literário fosse meramente secundário. Sob esta premissa, a simples
destruição de Rui Barbosa nº 2, aliada ao contexto em que ocorre, seria suficiente para
preconizar uma ruptura. Ao se considerar o projeto literário, a materialidade de uma obra que
se contraponha em absoluto à outra se torna imprescindível.
O que distingue os dois primeiros romances amadianos, estabelecendo uma ruptura
entre projetos literários, não é a simples passagem de um tema a outro – dos conflitos
existenciais de um grupo de jovens burgueses ao cotidiano dos trabalhadores nos cacauais da
Bahia – ou a mudança de cenário – de uma representação citadina à fazenda de cacau. Em
verdade, apesar de marcantes, estas são consequências diretas de uma mudança maior que se
inscreve nos princípios e valores a partir dos quais as narrativas são escritas e aos quais
remetem. Por conseguinte, a distinção não se refere somente à adesão a uma ideologia
socialista, mas ao caráter mais popular do que propriamente “político” que esta assume na
obra amadiana como um todo e já em Cacau, embora muito timidamente. Revelador,
portanto, que a exceção de Subterrâneos da Liberdade e Farda, Fardão, Camisola de Dormir
– livros que Jorge Amado considera como políticos, na medida em que possuem a temática
voltada exclusivamente para questões desta natureza – o autor afirme que seus romances o são
83
O romance narra a história de José Cordeiro, também chamado de Sergipano, cujos pais foram roubados por
um tio capitalista. Assim, Cordeiro que tivera uma infância rica e pôde frequentar bons colégios se vê pobre e
alugado da Fazenda Fraternidade, de propriedade do Coronel Manoel Misael de Souza Teles. Convivendo com
outros alugados, o Sergipano incorpora aspectos da consciência de classe, o que o impede de casar-se com
Mária, filha do coronel, por quem se apaixonara. Acaba migrando para o Rio, onde encontra Colodino, que lhe
havia escrito contando sobre as descobertas a respeito da “luta de classes”.
112
“[...] na medida em que são populares e sociais, e não porque tenham uma intenção política
direta, imediata e clara [...]” (RAILLARD, 1990, p. 137).
Não se pretende, com a ressalva acima, relativizar a importância do aporte ideológico
no conjunto de obras que se iniciam em Cacau e seguem até Subterrâneos da Liberdade.
Muito menos supervalorizar um discurso que, talvez, esteja marcado pela decepção com os
rumos da antiga União Soviética. Por mais não seja, desconsiderar que Cacau se pretende um
“romance proletário”, tal como expresso em nota pelo autor, não é uma alternativa válida84
.
Ademais, é com o seu segundo romance que “Amado demonstra uma intenção muito clara de
se integrar nesta perspectiva [marxista], como forma de assumir uma posição frente aos
dilemas políticos do seu tempo” (DUARTE, 1996, p. 29). Ato reflexo, Araújo situa neste
conjunto de narrativas uma convergência estética e ideológica:
Jorge Amado [estabelece] a literatura como levantismo rebelde e tomada de posição,
no caso pela idealização do logos político. Absorvendo a tese etapista do partido,
adequando-a à concepção do romance proletário inscrito no modelo do realismo
socialista e didatizando o fenômeno de transformação da realidade pela assunção da
consciência de classe, a arte literária de Amado desenvolveu-se num tríptico do
espaço romanesco: pólis, paixão e revolução. Seu projeto estético assim se
confundiu com o ideológico, tornando a obra um bloco uno e integrado (ARAÚJO,
2003, p. 31).
Caso se propusesse a relativização acima negada, seria ainda fechar olhos para o
contexto vivenciado pelo escritor e, mais importante, para as influências literárias que o
direcionam para a ruptura com o universo narrado em seu primeiro romance. Afinal, o próprio
Jorge Amado afirma a Raillard (1990, p. 56) que “Cacau e Suor [...] significam o meu
encontro com a esquerda – é o momento em que me torno militante da esquerda, e o meu
encontro com a literatura, com o romance proletário dos anos 20, com a literatura soviética da
primeira fase e com os escritores americanos que surgiam”.
Sugere-se, entretanto, que ao lado destas influências, considere-se com igual peso e
medida o crescente conhecimento do romancista acerca da vida popular, seja a dos cacauais,
84
Segundo Eduardo de Assis Duarte (1996, p. 49) “O romance proletário estava apenas nascendo, e nascia em
meio a um debate ao qual os escritores brasileiros nem sempre tinham acesso. O modelo tateava, mas consistia
basicamente em fazer sobressair no texto a relação mimética com a realidade em suas determinações
econômicas, aliada à captação (também mimética) da linguagem popular e à adesão a algumas conquistas da
prosa modernista”.
Em entrevista a Alice Raillard, Jorge Amado afirma: “Fazer um romance proletário era, evidentemente, pura
pretensão de minha parte. A consciência proletária ainda estava em formação num país que apenas começava a
se industrializar e onde não existia, propriamente, uma classe operária; o que havia era o trabalhador manual – e,
neste ponto, a descrição da vida dos trabalhadores rurais é o que torna Cacau muito real; embora seja
absolutamente idealista, do ponto de vista ideológico, a tentativa de aproximação entre os intelectuais e o
proletariado ao qual corresponde o herói do livro” (RAILLARD, 1990, p. 55).
113
seja a da Cidade da Bahia. Sem dúvida, é por conta deste fator que a obra amadiana – Cacau e
Suor em menor intensidade e excetuando-se O país do carnaval – pode ser lida como política
para além das restrições ideológicas, tal como as definiu o autor em fragmento já citado.
Neste sentido, em análise a respeito do romance Cacau, afirma-se:
A par desta experiência [advinda com a militância e a literatura socialista],
continuadas viagens através do nordeste ou pelo interior baiano, num profícuo
aprendizado sobre a realidade social e humana do país – aprendizado valioso, que
faltara a Paulo Rigger, e sobretudo valioso para a formação de um romancista
destinado a extrair da própria essência da alma popular de sua gente os motivos mais
altos de sua inspiração (TÁTI, 1961, p. 40).
Com a publicação de Cacau, Amado aborda o cotidiano opressor daqueles que
trabalham nos cacauais ao sul da Bahia – via de regra negros e mestiços, egressos da
escravidão ou seus descendentes. No ano seguinte, 1934, Suor vem a público. A narrativa tem
como cenário principal o sobrado nº 68 da Ladeira do Pelourinho e reencena a miséria
daqueles que o habitam – negros e mestiços, bem como brancos pobres85
. Assim, ambos,
Cacau e Suor, cumprem o papel de demonstrar a “exploração do homem pelo homem”, pondo
a nu a opressão gestada por um sistema dependente da divisão social entre ricos e pobres,
mandatários e subalternos.
Apesar de imbuído da utopia socialista, quando o baiano escreve sobre os alugados
nos cacauais da região grapiúna, ou aborda as prostitutas e os vagabundos, operários e
mendigos do centro velho da velha Salvador não o faz somente como alguém do Partido que
cumpre diretrizes estéticas e ideológicas86
. Em outras palavras, ainda que o escritor teça, neste
primeiro momento, um projeto engajado, vinculado à ideologia socialista, há em suas
recriações qualquer coisa de fértil que independe da utopia. Este aspecto, que ultrapassa os
limites da política ideológica, avança, aos poucos, na direção de uma autonomia do
representado, de modo que haja um viés esquerdista a conduzir a narrativa, mas que não se
sobreponha aos valores específicos cultivados no cotidiano popular. Antes, configura-se uma
85
O romance Suor é composto por uma sucessão de imagens que busca evidenciar e enfatizar o estado de
miséria e abandono do lumpensinato baiano de modo que a personagem central do romance é o casarão nº 68 da
Ladeira do Pelourinho, símbolo em si de decadência. Tais imagens apontam para uma coletividade excluída e à
margem do Estado com o que o romancista talvez pretendesse despertar a “consciência revolucionária” em seu
leitor. Não sem motivo, a cena final do romance agrupa as imagens fragmentadas apresentadas ao longo da
narrativa em torno de uma coletividade, a multidão, que protesta: “Então a multidão avançou para os
investigadores, de braços levantados” (Suor, p. 132). 86
Segundo Edvaldo Bergamo (2008, p. 77): “Nos primeiros romances de Jorge Amado dos anos 30 do século
XX, a perspectiva social que aflora não está diretamente ligada aos ditames de uma „literatura de partido‟, que
viria a praticar na década de 1940. Ainda não é uma literatura estritamente programática, em obediência aos
cânones ideológicos e estéticos do realismo socialista [...]”.
114
confluência na qual a vida popular apresenta alguma primazia87
. Deste modo, conforma-se
uma perspectiva política singular, o que é confirmado pelas palavras do próprio escritor:
De direita, de esquerda, eu acho que são expressões que nada significam; para mim,
estas palavras têm um sentido totalmente diferente. Direita quer dizer fome, miséria,
ditadura, e encontram-se então elementos de direita, formas de direita em todos os
regimes, sejam eles os capitalistas ou os assim chamados socialistas. Esquerda para
mim quer dizer paz, liberdade, sem miséria, com trabalho, ter um emprego, cultura
para todos, e liberdade. A Liberdade. Para todos (RAILLARD, 1990, p. 52).
Sem querer descontextualizar o fragmento acima – parte de uma entrevista concedida
em 1985, portanto muitos anos após a decepção com os rumos do governo stalinista – reside,
na repetição enfática do termo “liberdade”, certa equivalência semântica com “esquerda”. Não
obstante esta seja uma concepção que se consolide após o cisma com o Partido Comunista,
em 1954, tal proposta já é anunciada com a vinculação da narrativa amadiana à vida popular
baiana. Percebe-se, assim, a formação de uma tríade sinonímica esquerda/vida
popular/liberdade que permeia o pensamento amadiano e influi, em cores crescentes, na
construção do seu universo ficcional – o que leva Portella (2011, p. 61) à concepção de
“infatigável sonho da liberdade”.
Embora mais visível nos romances que surgem a partir de Gabriela, cravo e canela,
por conta do enfraquecimento do caráter estritamente ideológico-partidário do primeiro termo,
a tríade esquerda-vida popular-liberdade pode ser observada nas obras do período “político”
de Amado, sobretudo em Jubiabá e Mar Morto, romances em que “a margem da liberdade
corresponde à liberdade da margem” (PORTELLA, 2011, p. 68). Em Cacau e Suor, todavia,
este é um traço ainda um tanto disforme e que subsiste naquilo que Duarte (1996, p. 55)
considera uma característica recorrente na obra amadiana: “[...] a representação positiva do
oprimido. O texto não se limita a deixá-lo falar, mas se incumbe de fazê-lo crescer e afirmar
sua dignidade [...]” (Grifos do autor).
Corolário da ruptura com O país do carnaval, a ressignificação ficcional se evidencia,
entre outras passagens, na autoironia que segue:
[...] Os meninos não pensavam. Trabalhavam, comiam e dormiam. Um literato disse
certa vez:
- Esses é que são felizes, não pensam...
Assim parecia a ele (Cacau, p. 94).
87
É o caso, por exemplo, dos romances Mar morto e Tenda dos milagres. Cacau e Suor pouco flertam com esta
perspectiva. Já em Jubiabá, ainda que não se desenvolva de todo, ela dá sinais de vitalidade.
115
Mea culpa. Não parece outro o sentido do fragmento transcrito em que José Cordeiro,
narrador-personagem, aborda o cotidiano nada infantil das crianças – negras e mestiças – nas
fazendas de cacau. Jorge Amado, através do Sergipano, retoma e nega a si próprio: o literato
que assumia a felicidade como compatível apenas a um baixo estágio de inteligência ou
“cultura”, uma das premissas norteadoras do preconceito latente de seu primeiro romance.
Ainda assim, a constatação de que tais crianças não pensam abre a possibilidade de
uma leitura de certa continuidade em relação à personagem Jerônimo, no que persistiria o
olhar hierarquizante de O país do carnaval. De qualquer forma, esta hipótese não resiste a
uma análise um tanto mais acurada. Em Cacau, a afirmação ganha tons de denúncia social
uma vez que não pensam porquê trabalham e porquê a escola lhes é negada. Não há qualquer
semelhança com o caráter ontológico em que se baseia a ficcionalização de Jerônimo, em que
pesa uma suposta incapacidade natural de pensar dada a sua condição mestiça, do que
resultam como inúteis quaisquer esforços em intelectualizar-se. Desta forma, as narrativas em
questão partem de pressupostos distintos e apontam para caminhos também díspares, se não
antagônicos. Ao considerar este movimento, a senda aberta por O país do carnaval é negada,
abandonada e esquecida.
O movimento de transição da ótica ontológica para a social pode ser uma importante
referência para investigar uma das mais problemáticas passagens do romance Suor, no que
concerne às representações étnico-raciais:
A imaginação dos trabalhadores, especialmente a dos negros, aceitava sem reclamar,
nem analisar, as aventuras loucas, as fugas do real do filme em série.
Quando as crianças brancas já duvidavam daqueles excessos de força e daquelas
coincidências exageradas, os negros adultos sorriam crédulos e, se alguém
manifestava a sua dúvida em voz alta, eles discutiam, afirmavam que aquilo era
possível, contavam casos para comprovar [...] (Suor, p. 48).
Apesar de ser forçoso reconhecer que há neste fragmento qualquer coisa que lembre o
biologismo de O país do carnaval, bem como a repetição da imagem estereotipada do negro
que não prima por qualquer habilidade racional, é plausível outra leitura. Se observados os
sentidos que se depreendem da narrativa como um todo – e não apenas de uma citação isolada
– é possível avançar para uma interpretação em que o trecho transcrito se configura
novamente como denúncia social ao invés de, propriamente, determinismo biológico. Assim
como em Cacau, a realidade dos trabalhadores, “especialmente a dos negros”, é amplamente
oposta àquela vivenciada pelos moradores dos bairros nobres da cidade. As discrepâncias
socioculturais revelam-se imperativas da ordem burguesa capitalista e estruturam a sociedade
116
com vista a sua manutenção88
. É, pois, no plano das possibilidades oportunizadas que a
criança branca se distingue intelectualmente do negro trabalhador adulto. É fácil inferir que
tal distinção se dá unicamente por conta do acesso à educação, possível aos brancos,
detentores de poder, e negada aos negros. Assim, se a narrativa os percebe em processo de
infantilização, o faz para ressaltar o ardil do capital em denegar-lhes o direito à consciência de
classe e posterior ação política:
Suor nada tem do biologismo que funcionou como aparato “científico” da ideologia
colonialista do século XIX e embasou a literatura da era Darwin. O materialismo de
suas postulações deita raízes na dialética marxista e na determinação em última
instância pelo econômico. Estas, sim, constituem-se em referências orientadoras das
ações, voltadas quase sempre para a exposição do lado perverso do capitalismo e
para a tomada de consciência dos dominados (DUARTE, 1996, p. 66).
Adentrando um pouco mais na perspectiva que passa a operar a partir de Cacau e
Suor, encontra-se na tríade esquerda-vida popular-liberdade, com uma prevalência do
primeiro termo nos dois romances, a matriz a partir da qual se dá a referida ressignificação.
Conclusão parcialmente aventada por Duarte (2006, p. 36), que assinala o sentimento de
classe como fator de modificação na “[...] postura amadiana a respeito das identidades
culturais afrodescendentes [...]”. Sem, novamente, desmerecer a questão ideológica, é
importante referenciar os dois termos restantes da tríade como componentes deste processo.
Como se depreende dos estudos de Bacelar (2001), Garcia (2009) e Albuquerque
(2009), em se tratando da realidade sócio-racial baiana, a perspectiva de classe impõe a
ficcionalização e positivação de negros e mestiços como trabalhadores – o que leva Rossi
(2004, p. 54) a considerar que “[...] no cruzamento de sentidos entre classe, popular e raça, o
negro surgiu, então, como o oprimido por excelência: dupla marca de sua condição étnica e
social [...]".
Este movimento, registre-se, não é acompanhado por um similar que os valorize como
sujeitos cujas idiossincrasias sejam válidas. É o caso, por exemplo, nos romances Cacau e
Suor, do trato pejorativo com a religiosidade afro-brasileira. No primeiro, o candomblé é
denominado fetichista e, em Suor, veiculado unicamente como feitiço, nunca como um
aspecto de resistência popular ou sentimento religioso: “As mulheres dos trabalhadores
rezavam também, orações esquisitas, semicatólicas e semifetichistas” (Cacau, p. 90) e “O
88
“Discrepância cultural” refere-se, neste contexto, à pouca ou nenhuma possibilidade de integração do
trabalhador negro – e dos seus descendentes – às condições oportunizadas por uma sociedade racista para as
crianças brancas. Não cabe, portanto, a discussão cultura superior/inferior, por pressupostos com os quais esta
dissertação não se coaduna, mas igualdade/desigualdade de acesso e consequente possibilidade de ascensão no
mundo capitalista hierarquizado.
117
árabe também acreditava. E quem não era dominado pela religião bárbara dos negros?” (Suor,
p. 57). Largamente utilizado pelos missionários cristãos enviados ao continente africano para
a prática da evangelização ao longo do período escravocrata, o termo “fetichismo” comporta,
assim, o olhar do dominador sobre o dominado. Não é de se estranhar que designe aquilo que
deve ser abolido, dado seu caráter primitivo em face da civilização ocidental e da “Santa
Madre Igreja”. Dialoga, portanto, com o sentido de “bárbaro”, constantemente atualizado e
reutilizado ao longo dos séculos. Ao fazer uso destes vocábulos, sem que haja qualquer outra
imagem que a eles se contraponha, Jorge Amado restringe a capacidade de representação do
negro nos romances em estudo. O negro que interessa a estas narrativas compõe quase
unicamente uma abstração ideológica, sem que haja um comprometimento com o negro-
sujeito, o que se percebe com mais ênfase em Suor89
:
Minutos depois o grupo se engrossara. Homens e mulheres cercavam o despacho,
incapazes de transpor o degrau onde o tinham deixado.
O sapateiro espanhol desceu. Passou entre o ajuntamento sem curiosidade e ia
pisando no degrau fatídico quando alguém o reteve, pegando-o pela manga da
camisa.
- Vai pisar no feitiço...
- Ah! Vocês não descem por causa disso?
Meteu o pé no embrulho, desfazendo-o. Os outros olhavam, espantados.
- Que feitiço forte! É pra matar mulher que tomou marido dos outros...
[...] Farinha com azeite de dendê. Penas de galinha preta. Quatro pratas de mil-réis e
quatro vinténs. Cabelos que pareciam de sovaco ou carapinha de negro. Uma calça
de mulher.
[...] Fitaram o espanhol compadecidos. A cólera de Ogum e dos outros orixás cairia,
sem dúvida, sobre ele.
O anarquista perguntou:
- Quem quer os quatro mil-réis?
E, como ninguém os quisesse, ele juntou as pratas e meteu-as no bolso (Suor, p. 57-
58).
Nota-se, na transcrição acima, certo investimento de superioridade na personagem
espanhola em face daqueles que, assolados pelo medo, amontoavam-se frente ao feitiço,
incapazes de transpô-lo. A profanação do pacote é também uma provocação, como se o
anarquista instasse a audiência contra suas próprias crenças, como a desafiá-los. Especula-se
que o despacho teria como intuito a morte de Nair; acredita-se, ainda, em um fim trágico para
o espanhol por tamanha ousadia. Desta forma, o retrato da religiosidade afro-brasileira aí
esboçado não dista muito das imagens elaboradas pelos já citados missionários cristãos em
terras de África. Há na fala e nas práticas religiosas de tais missionários a intermitente
89
A despeito das possíveis complicações decorrentes do termo em destaque, o que se pretende ao grafá-lo não é
vão essencialismo, mas apenas enfatizar que na representação do negro pretendida em Cacau e Suor, não se
vislumbra, ainda, uma positivação das culturas de matriz africana. Em última análise, não é o negro que
interessa, mas a função proletária que ele desempenha.
118
exploração e intensa condenação dos usos supostamente “maléficos” das tradições religiosas
negro-africanas.
Pode-se obstar, evidentemente, que o trecho transcrito faz parte de um capítulo
intitulado “religião”, em que há também uma representação negativa do catolicismo, o que
parece indicar a tentativa de Jorge Amado em tornar ficção a diretriz comunista que pressupõe
a religião como “o ópio do povo”. Ainda que esta interpretação esteja correta, é necessário
observar que a negatividade incide sobre instâncias diferenciadas no candomblé e na Igreja.
Enquanto o Deus judaico-cristão é mantido a salvo da crítica que se dirige à igreja que o
representa, tida como exploradora da fé do povo, são justamente os orixás africanos que são
colocados em evidência. Se há uma inferiorização/ridicularização dos fiéis do candomblé,
cuja contrapartida é o destemido sapateiro espanhol, é bem verdade que o mesmo ocorre do
lado católico do sobrado, com Linda e Risoleta vaidosas por receberem uma carta da Igreja
pedindo donativos. O que difere nas representações é que o olhar sobre o catolicismo se
mantém unicamente na instituição Igreja, cujo representante é o Pe. Solano Dalva, enquanto
aquele que se volta para o candomblé focaliza, inclusive, uma suposta ação maléfica dos
orixás que se consubstancia na doença de Nair e sua consequente recolhida pela Assistência:
“Eu bem que disse que aquele despacho era pra ela” (Suor, p. 58).
Se o viés socialista positiva o negro como trabalhador, mas silencia quanto a suas
particularidades históricas e culturais, é neste segundo segmento – o negro como sujeito – que
atuam os termos “vida popular” e “liberdade”. Ao dignificar não apenas a imagem do
trabalhador, mas também a especificidade vivencial do narrado – linguagem, mitologia, fé e
modos de ver e viver o mundo – Amado reivindica o combate à perseguição empreendida
contra tais particularidades. Este movimento se deve não só ao próprio enraizamento do
escritor nesta vida popular, mas também ao envolvimento crescente com os estudos sobre os
negros, empreendidos por seus companheiros Édison Carneiro e Arthur Ramos (ROSSI,
2004). Resulta, assim, não apenas na positivação de uma abstração ideológica, o proletariado,
mas nos sujeitos que o compõem e no coletivo identitário que os abarca.
Tanto em Cacau quanto em Suor esta perspectiva não é atingida em estado pleno, mas
se anuncia em algumas poucas passagens. É possível observar, em ambas as narrativas, um
resquício de dignidade à qual as personagens se agarram e a partir da qual se permitem uma
relativa desforra do cotidiano opressor, seja através da festa, da violência ou da própria utopia
socialista sintetizada na greve.
Em ambas as narrativas o circo ou o cinema; as prostitutas da Rua da Lama ou as
mulheres com as quais deitavam no areal do cais, por exemplo, representam momentos em
119
que a opressão diária cede um pouco sobre os ombros daqueles homens. São instantes, poucos
e céleres, de descarregar o trabalho, livrar-se do cansaço e dos insultos ouvidos. Os segundos
em que não há patrão e a miséria diária pode ser esquecida. Daí o certo fascínio com que os
trabalhadores vivem esses momentos. Nas relações vividas na Rua da Lama ou no areal do
cais não é apenas sexo o que ocorre, mas a própria realização das personagens como homens
– subjetividade negada pelo sistema dominante que os diminui até não mais poder em um
processo de reificação, ou seja, de total alienação da condição humana. A este respeito, José
Cordeiro, ao estranhar o termo alugado, condição em que naquele instante se encontrava,
afirma:
Estranhei o termo.
- A gente aluga máquina, burro, tudo, mas gente, não.
- Pois nestas terras do sul, gente também se aluga.
O termo me humilhava. Alugado... Eu estava reduzido a muito menos que homem...
(Cacau, p. 35).
Já em Suor, romance citadino, o processo de reificação ganha em dimensão uma vez
que se desenrola no centro antigo da Cidade da Bahia, lugar historicamente marcado pelos
castigos aplicados aos negros escravizados. Isto é, o espaço atualiza a desumanização típica
do regime escravocrata em um movimento de coisificação próprio da sociedade capitalista.
Nota-se, nesta representação, uma continuidade do Brasil pré-1888 na Bahia dos anos 1930.
Carlos Magalhães (2011, p. 213), em estudo sobre o romance em questão, situa: “[...]
desapareceram o instrumento de suplício e a escravidão, mas se instalou a servidão da
indignidade e da humilhação dos que vivem na sarjeta social”.
Ocorre que o processo de reificação não é aceito de forma passiva pelas personagens,
no que residem os laivos narrativos em que o homem, em especial o negro – e não apenas o
trabalhador – é dignificado. Em Cacau, não fossem suficientes os abusos excessivos do
trabalho, ainda mais penoso por conta da perseguição de Algemiro, espécie de feitor, a
humilhação sobre os homens se dá também em âmbito privado, nos limites de seus
relacionamentos mais íntimos. Ao chegar a este patamar, o fardo sobre Colodino torna-se
insuportável. Frente à cena de Magnólia, sua noiva, na cama com Osório, filho do patrão, a
desforra é inevitável:
[...] Ela devia estar sozinha, pois D. Júlia trabalhava na juntagem. Mas não estava.
Osório fazia-lhe companhia. Na cama tosca os dois não ouviram os passos do
carpinteiro. Nilo ouviu gritos. Correu. A cara de Osório cortada, um talho grande.
Os óculos rebentados. Colodino surrava-o com o facão. O sangue corria. Nas roças
120
não se ouvia nada. Os gritos de Osório não chegavam até lá. Colodino se cansou,
parou de bater. Nilo olhando. Disse:
- É o que você merece seu xibungo (Cacau, p. 132-133).
Os golpes que atingem Osório, ocasionados por seu envolvimento com Magnólia, não
parecem se restringir a esta razão. O homem que bate não é apenas o traído e aquele que
apanha também não é apenas o traidor. A cena se estabelece como uma catarse em que
Colodino vinga, contra o filho do patrão, as humilhações sofridas diariamente por ele e pela
classe que representa. Observa-se, desta forma, uma passagem em que, quem se levanta
contra a opressão é o homem – sujeito – e não o trabalhador – tônica deste romance.
Vinculado a esta discussão, a despeito da prevalência da perspectiva de classe sobre
qualquer outra, não se pode dizer que Jorge Amado se mantenha de olhos fechados frente às
clivagens sócio-raciais impostas por uma sociedade racista. Em Cacau, por exemplo, José
Cordeiro, rememorando a sua infância, narra que perto de sua casa havia um orfanato para
meninas, filhas de operárias com pais que não as reconheciam. “Algumas, quando crescidas,
voltavam à fábrica onde haviam nascido, e de onde mandariam novas meninas, sem
sobrenome para o orfanato. Outras, as mais alvas, iam ser freiras e se estendiam pelo país”
(Cacau, p. 20). Ora, o que sela o destino destas meninas sem pais não é a perspectiva de
classe, mas a racial. É o que se constata até mesmo nesta passagem, uma vez que só as mais
alvas alcançariam desempenhar a vida religiosa, índice de certo status, inclusive para a
família. Ainda nesta narrativa, embora em tom jocoso, os diálogos entre João Grilo, mulato, e
Honório, negro, traduzem certa diferenciação no interior da mesma classe trabalhadora:
[...] Honório pretendia ainda saber o abc. Colodino bancava o professor. Mas aquilo
não entrava na cabeça do gigante.
João Grilo, mulatíssimo, chalaceava:
- Isso é porque você é negro, Honório. Nós branco é que sabe... Eu, doutor João
Nabuco da Silveira Nascimento, vulgo João Grilo...
- E você o que é, moleque?
- Mas sou branco, que dúvida. Se eu fosse preto um minuto só, me suicidava com
uma corda (Cacau, p. 53).
Já em Suor, a utopia socialista, por intermédio da voz de Henrique, claramente
imiscui-se na vivência de homem negro:
- Você lembra dessas histórias que você conta, minha tia?
- Que histórias?
- Essas histórias de escravidão...
- O que é que tem?
- Você vai esquecer elas todas.
- Quando?
121
- No dia que nós for dono disso...
- Dono de quê?
- Disso tudo... da Bahia... do Brasil...
[...]
- Negro é escravo. Negro não briga com branco. Branco é senhor dele. Eu soube de
um negro que quis brigar com um branco. Foi há muito tempo...
[...]
- Mas agora a gente livra o preto de vez, velha. (Suor, p. 35-36).
É interessante observar, a respeito deste fragmento, a divergência de opiniões entre
Henrique e a velha, que é chamada de “minha tia”. Talvez seja possível afirmar que, na
discordância dos dois, Amado situa a passagem do velho para o novo em termos de atitude
política. Assim, a despeito da fala de “minha tia” carregar consigo o estereótipo da submissão
negra, tão marcante nas teses gilbertianas, o negro Henrique vem a afigurar o oposto, isto é, a
revolta, a possibilidade de mudança. É o que se observa na afirmativa a seguir: “[...] o negro
Henrique é flagrado alimentando fantasias que se identificariam com alguma esperança de
transformação não só da sua, mas também da vida dos companheiros” (MAGALHÃES, 2009,
p. 255).
Ainda assim, não é possível afirmar que exista em Cacau ou em Suor a positivação do
negro como sujeito – se há, é de tal forma incipiente que a representação positiva do
trabalhador lhe sobrepõe e apaga. Interrompe-se, através da inserção do negro na perspectiva
de classe, o processo de negativização iniciado em O país do carnaval. As personagens
negras e mestiças figuram em ambas as narrativas sem o tom pejorativo que incidia sobre
Jerônimo Soares – não obstante algumas imagens pareçam laivos do biologismo de O país do
carnaval.
De qualquer forma, a mestiçagem não se configura, nestes dois romances, um tema a
ser debatido, como em O país do carnaval, ou um ideal a ser afirmado, como na produção
pós-militância política. Por paradoxal que pareça, a presença de mestiços nos romances
Cacau e Suor é, de certo modo, irrelevante a um estudo sobre mestiçagem, uma vez que não
produz qualquer sentido além da composição de um painel dos párias sociais. A despeito
desta observação, o enfoque estabelecido aqui sobre estas duas obras flagra o instante em que
o olhar étnico-racial amadiano prenuncia uma guinada que resulta em uma primeira tentativa
de ficcionalização do negro-sujeito, o que se configura em Jubiabá.
A transição acima destacada é de suma importância. Como visto na seção anterior, as
restrições tecidas acerca da mestiçagem partilham das mesmas limitações construídas
historicamente sobre os negros. Ou seja, a crença em superioridade/inferioridade inatas, cuja
expressão visual remonta aos caracteres fenotípicos, é responsável pela suposição de uma
122
ação degenerativa – moral, biológica e psíquica – sobre o grupo convencionado como
superior, uma vez estabelecido o intercurso sexual entre “raças” distintas. Sendo assim, a
reversão do caráter conservador e racista do ideário da mestiçagem passa necessariamente por
uma revisão dos aspectos inferiorizantes e subalternizantes conferidos ao negro por
instituições brancas, dotadas de poder e legitimidade. De certo modo, a literatura amadiana
vivencia este percurso. De O país do carnaval a Suor passa-se do negro negativo ao negro
trabalhador positivo. Em Jubiabá, enfim, esboça-se a passagem do negro trabalhador positivo,
ao negro sujeito positivo. Cumprido este processo, a mestiçagem pode figurar em um plano
maior que o de um painel dos párias sociais, revelando-se significante e significado da
realidade baiana – movimento que se inicia em Mar morto, se prolonga em Capitães da areia
e se consolida, após longo período de latência, em Os pastores da noite.
2.3 DE NARRADO A HERÓI OU DA ESTIVA E DO SAVEIRO
Em 1935, Jorge Amado publica Jubiabá, romance considerado pelo autor como sua
primeira produção madura – os três livros que o antecedem correspondem a “cadernos de
romancista” segundo o grapiúna (RAILLARD, 1990)90
. Interessante notar que tal
classificação coincide com a ficcionalização de um universo permeado por uma prevalência
negra, seja através da presença de um herói afrodescendente – Antônio Balduíno – seja por
conta dos princípios culturais que fundamentam a personagem. É, com efeito, no ineditismo
destes pontos que se pode observar o surgimento do negro-sujeito na obra amadiana – ou pelo
menos o seu esboço:
90
Em seu quarto romance, Jubiabá, Jorge Amado narra a história do negro Antonio Balduíno, acompanhando-o
desde a infância até a personagem se constituir em uma espécie de líder da Greve Geral que movimenta as
últimas ações do romance. Assim, Amado traça o percurso ascensional da identidade de classe em Baldo à
medida que a personagem deixa de se reconhecer como negro para visualizar-se proletário. Entre um extremo e
outro, muitas são as “fases” de Baldo: ainda criança, habitante do Morro do Capa Negro, vê sua tia Luísa
enlouquecer, por causa disso é levado por Augusta para a casa do Conselheiro Pereira onde passaria a morar,
seria educado e trabalharia. Nesta casa, conhece Lindinalva, por quem nutre sincera amizade. No entanto, é
expulso pelo Conselheiro uma vez que a governanta Amélia o tinha caluniado ao inventar que Baldo olhara as
coxas de Linda. A partir deste momento a personagem percebe nutrir por Lindinalva algo maior do que simples
amizade, um sentimento que o perseguirá por toda a narrativa. Expulso da Travessa Zumbi dos Palmares, Baldo
então se torna chefe de um bando de meninos de rua, passando a boxeador, empregado nas plantações de fumo
de Cachoeira e São Félix, artista de circo e, finalmente, estivador – quando, na greve, adquire consciência de
classe. Emprega-se na estiva para poder cuidar do filho de Lindinalva que, ao contrário da trajetória ascendente
de Baldo, decai socialmente da Travessa Zumbi dos Palmares para um mísero quarto na Ladeira do Tabuão,
onde passara a exercer o ofício de prostituta. Uma vez estivador, Baldo percebe que o “mundo do trabalho” não
necessariamente se assemelha ao da escravidão porquanto exista a greve, momento em que os trabalhadores
logram tomar a cidade sob o seu domínio. O romance termina com a vitória dos grevistas e uma mensagem de
união a todos os trabalhadores, independente de “raça”, na luta contra a opressão capitalista.
123
O romance de Jorge Amado [Jubiabá] [...] é singular na história do modernismo
brasileiro, porque faz mais do que elevar um personagem negro à condição
principal. Antônio Balduíno é um herói exemplar, através do qual o autor articula e
anuncia, na década de 1930, duas grandes mudanças na paisagem social e cultural
brasileira, ou a dupla potencialidade de redenção encarnada na negritude pobre:
autenticidade cultural e justiça social (CUNHA, 2009, p. 35)
As considerações acima implicam discordar parcialmente dos argumentos de
Brookshaw (1983), Tollendal (1997) e Ferreira (2007), que percebem em Jubiabá certas
construções que informam um olhar estereotipado acerca do negro – ainda que considerem
estas representações involuntárias, porquanto pertencentes a um imaginário coletivo. Ou seja,
se consideradas corretas as análises elencadas, defender uma representação negra inovadora e
positiva em Jubiabá torna-se inviável, uma vez que Baldo não seria mais do que uma
atualização de estereótipos. Assim, em defesa daquilo que se pretende aqui, faz-se necessário
um diálogo com os pesquisadores supracitados, um debate com suas ideias.
O importante estudo de Brookshaw, não obstante correto em muitas de suas assertivas,
parece partir de um equívoco: a incapacidade do branco em representar ficcionalmente o
negro para além de estereótipos que, em última análise, revelem a latência do preconceito
racial91
. Neste sentido, segundo o pesquisador:
O modo como o branco vê o negro, portanto, foi moldado desde a infância pelas
histórias em que a negritude era associada ao mal e os que faziam mal eram negros.
Em muitas histórias e baladas, por exemplo, o negro simboliza o demônio. A fusão
negro-demônio logicamente produziu a imagem Negro qua Negro, possuidor pelo
91
Gustavo Arnt, não obstante concorde com a perspectiva aventada por Brookshaw acerca da impossibilidade de
um escritor branco falar por um negro, faz algumas considerações críticas a respeito das apreciações do
pesquisador inglês, bem como de outros brasilianistas: “Alguns autores como Gregory Rabassa, Raymond
Sayers e David Brookshaw fizeram algumas contribuições importantes a respeito do negro na literatura
brasileira, principalmente no que diz respeito à percepção dos estereótipos que se consolidaram na simbologia da
nossa literatura, principalmente no Romantismo. Contudo, faltou a eles uma percepção mais aguda acerca das
mediações que o processo de representação literária envolve. De modo geral, podemos apontar como os
problemas mais graves nesses estudos: a) a simples condenação dos autores como racistas, ou seja, falta de visão
do problema do racismo envolvendo toda a estrutura social; b) anseio de que os negros não fossem mostrados
como classe explorada, isto é, falta de real entendimento do fato de os negros aparecerem quase sempre como
pobres e marginalizados, pois se a representação se desse do modo como esses autores pretendem, o que
teríamos seria o mascaramento de nossas fraturas sociais; c) uma concepção algo ingênua de que o simples
aumento da presença dos negros na “literatura dos brancos” ajudaria a resolver os problemas raciais” (ARNT,
2010, p. 4). No que concerne à questão dos estereótipos, Serra é contundente ao elaborar sua crítica acerca da
leitura de Brookshaw sobre a obra amadiana: “Os estereótipos estão presentes na obre de Jorge Amado, que
reflete a ideologia do brasileiro médio em muitos pontos, mas que, com freqüência, é capaz de transcendê-la de
forma crítica, reelaborando as construções do senso comum. Não lhe faz justiça uma crítica superficial, puritana
e preconceituosa, imbuída do sentimento de uma political correctness que reflete uma ideologia primária [...]”
(SERRA, 1995, p. 358). A despeito da inconteste importância do trabalho desenvolvido por David Brookshaw,
acredita-se, nesta dissertação, que a sua leitura de Jorge Amado é passível de contestação, assim como também a
premissa da impossibilidade de um autor branco representar uma personagem negra.
124
menos de características semelhantes às do demônio, enquanto que o Demônio
mesmo disfarçava-se de Negro (BROOKSHAW, 1983, p. 13).
Posta nestes termos, mesmo que evoque bases culturais que a justifique, a discussão
empreendida pelo pesquisador inglês jaz em uma natureza quase ontológica. A seguir o
pensamento do autor, o homem branco se encontra irreversivelmente enredado por seculares
teias de sentido que remontam à própria Bíblia Sagrada e cristalizam o negro em estereótipos.
Isto é, cor e cultura se fundem em um amálgama racista que se reproduz inconscientemente,
geração após geração, de forma similar à transmissão genética, inescapável.
Partindo desta premissa, Brookshaw tem como primeiro objetivo “examinar o padrão
emergente de estereótipos com os quais a cultura branca tem aprisionado o negro”
(BROOKSHAW, 1983, p. 16). Em outras palavras, procura observar os processos de
assimilação perpetrados historicamente ao negro por uma literatura branca. Para tanto, na
primeira parte do estudo, que sintomaticamente recebe o título “o escritor branco”, o
pesquisador deita olhos sobre a produção literária abolicionista brasileira, bem como nas
imagens de negros e negras veiculadas nas produções modernistas. A pesquisa pretende,
assim, abarcar o “[...] período desde meados do século XIX, quando a Abolição tornou-se um
tema para a política e a literatura, até os anos entre-guerras [...] quando idéias antiquadas
concernentes à raça [...] foram questionadas” (BROOKSHAW, 1983, p. 17).
O amplo espaço de tempo que Brookshaw investiga, cerca de setenta anos, comporta
modificações importantes na estrutura socioeconômica brasileira, que passa do modelo
agrícola baseado no regime escravocrata para uma hierarquizada sociedade de classes, ante o
processo de industrialização. Obviamente, tais alterações não deixam de se refletir na
produção literária do período – seja instituindo novos temas ou uma renovada visão de mundo
do escritor. Embora Brookshaw tenha em perspectiva tais movimentos, o pesquisador
considera que as transformações operadas no âmbito literário quanto à representação do negro
não acompanharam a relevância simbólica da Abolição. Isto é, passando em revista desde a
literatura abolicionista até o chamado “romance de 30” do modernismo brasileiro, o autor
encontra, no seio de uma literatura branca, representações de negros somente por meio de
imagens estereotipadas – seja de forma negativa ou positiva, simplificação redutora para a
qual Brookshaw propõe o conceito de “ambivalência” como forma de equacionamento:
Da mesma forma que o homem branco, em suas superstições, acha conveniente a
ambivalência quanto ao simbolismo da cor preta, assim, em sua posição social
dominante, ele encontra uma certa duplicidade que lhe convém igualmente em sua
atitude para com seu subalterno negro, tanto no contexto social quanto cultural. Isto
125
fica patente na caracterização do negro na literatura criativa a partir da segunda
metade do século XIX, quando começou a ser retratado com crescente frequência
em prosa e em verso. Estereótipos positivos e negativos foram atribuídos a ele. Na
literatura abolicionista, por exemplo, a contraparte do „Escravo Demônio‟ (o
fugitivo, insurrecto, versão literária do „negro velho‟ do folclore) era o „Escravo
Fiel‟ (o „Pai João‟, equivalente brasileiro do „Uncle Remus‟). Na literatura deste
século [XX] apareceu uma outra faceta, porquanto as atitudes em relação ao negro
evoluíram de acordo com as novas prioridades sócio-culturais. Assim, surgiu um
lado positivo para o estereótipo negativo e subversivo sob a forma de um negro
encantadoramente irreverente, anárquico, todavia puro, conforme retratado nos
romances de Jorge Amado (BROOKSHAW, 1983, p. 16).
Um segundo conceito do qual Brookshaw lança mão em sua pesquisa é o de
“desassimilação”. Através desta ideia, o autor abarca os escritores, em geral brancos e não
alinhados ao ideal colonizador, que buscam na ficcionalização de heróis e sociedades não
brancos uma antítese ao modus vivendi metropolitano (BROOKSHAW, 1983). No Brasil,
ainda segundo Brookshaw, esta vertente literária inspirou, entre os anos 20 e 30 do século
passado, um “[...] nativismo brasileiro alternativo, baseado no elemento africano”
(BROOKSHAW, 1983, p.16), isto é, a perspectiva de retratar o Brasil não apenas através da
idealização indígena, mas também africana. Brookshaw propõe, assim, outro objetivo para o
seu estudo, qual seja, “[...] relacionar estereótipos aos dois temas que acabamos de examinar,
a saber: assimilação à cultura branca metropolitana e desassimilação desta mesma cultura”
(BROOKSHAW, 1983, p. 19). Entre estes dois processos, ele considera que há mudanças
sutis no uso dos estereótipos, embora atuem invariavelmente no reforço de um determinado
status social:
O racista pomposo, ou “colonizador que aceita”, enfatiza os estereótipos negativos
do negro, taxando-o de selvagem violento ou de elemento subjugado na sociedade e
desabona a presença cultural do afro-brasileiro como retrógrada e primitiva, porque
esta sua atitude é a de quem aspira que o Brasil seja um país de brancos. O nativista
branco, por outro lado, é mais propenso a retratar o negro e sua cultura como
possuidores de qualidades instintivas e de uma espiritualidade saudável, o que ele
percebe que falta na cultura branca materialista. Por conseguinte, o Brasil-afro é um
instrumento com o qual o nativista branco rejeita a cultura e os valores sociais de
sua própria classe. Ao mesmo tempo, o afro-brasileiro torna-se essencialmente uma
figura mítica, um produto do populismo estético de seu criador (BROOKSHAW,
1983, p. 19).
“Nativista branco” é, justamente, a expressão utilizada por Brookshaw para
caracterizar Jorge Amado, escritor para o qual dedica capítulo à parte em sua pesquisa,
intitulado “Jorge Amado: populismo e preconceito”. Segundo o brasilianista:
[...] este nativismo, ou populismo na opinião de Bosi, depende, como não poderia
deixar de ser, da manutenção de estereótipos sociais e raciais profundamente
inculcados na mentalidade da classe que está sendo paradoxalmente criticada. Os
126
romances de Amado, por isso, podem ser importantes meios de preservação da
cultura africana no Brasil, embora também preservem e reforcem os mitos brancos
concernentes ao afro-brasileiro como indivíduo, e é este fator que importa para o
nosso trabalho, pois ilustra as incongruências de um escritor branco aparentemente
bem intencionado (BROOKSHAW, 1983, p. 133).
Imbuído do comprometimento com a demonstração da existência de preconceito nas
representações negras amadianas, o pesquisador inglês seleciona três narrativas: Jubiabá;
Gabriela, cravo e canela e Tenda dos milagres92
. A respeito do primeiro romance,
Brookshaw destaca que o suposto preconceito de Amado se revela na construção de uma
personagem supostamente primitiva:
Balduíno é uma criatura só instinto. Sua vitalidade, espontaneidade e libido
imunizam-no contra desejos materiais. [...] De fato, seu insaciável instinto não se
volta em direção ao dinheiro, mas para a experiência sexual sem a qual, conforme
foi mencionado, ele não pode viver. Entretanto, a potente sexualidade de Balduíno
exige dele a procura de parceiros que sejam tão lascivos e conhecedores do assunto
como ele (BROOKSHAW, 1983, p. 135).
O fragmento acima transcrito merece especial atenção uma vez que concentra boa
parte dos argumentos do pesquisador inglês contra o universo ficcional amadiano, a saber: o
caráter instintivo da personagem, a excessiva presença da sexualidade, o desprendimento
material e a representação apenas sexual das mulatas – “lascivas” e “conhecedoras do
assunto”93
.
Convém, antes de discutir cada um dos “problemas” ressaltados, analisar as
conclusões aventadas por Ferreira em sua dissertação de mestrado, uma vez que se constitui
em uma espécie de análise inspirada pelo estudo de Brookshaw. Assim como o pesquisador
inglês, Ferreira procura discutir os estereótipos presentes em Jubiabá. Para tanto, mantém o
foco nas diversas imagens que Amado cunha para Antônio Balduíno ao longo da narrativa –
no que observa uma “visi-divisibilidade” do negro na ficção amadiana:
O projeto de Jorge Amado em aproximar-se das figuras menos favorecidas,
evidenciando-as, como é o caso de Antônio Balduíno em Jubiabá, e de lutar no
plano das idéias contra o preconceito racial, social e cultural fomentado pelas teorias
raciológicas transplantadas da Europa e disseminadas no Brasil, pode ser
questionado pelo fato que as mesmas estratégias utilizadas pelo autor, para
supostamente elevar o negro, trazem em si marcas de um pensamento colonial. Ao
92
As considerações de Brookshaw sobre Tenda dos milagres são devidamente analisadas na quarta seção deste
trabalho. 93
Não cabe a este trabalho discutir a representação das mulatas, embora se reconheça que incidam problemas
nestas ficcionalizações. Acredita-se, porém, que sejam incoerências advindas muito mais do patriarcalismo do
que, propriamente, de racismo. Isto é, o problema da representação das mulatas é muito mais da ordem do
feminino do que da identidade racial. Sendo assim, uma investigação de gênero é mais apropriada.
127
mesmo tempo em que Jorge Amado confere ao negro esperteza, sabedoria popular,
possibilidades de torná-lo um agenciador no enfrentamento do preconceito racial,
Balduíno é revestido por descrições de malandragens, de banditismo, de roubos,
reforçando assim a idéia de visi-divisibilidade da figura do negro (FERREIRA,
2007, p. 71-72).
A ideia de Ferreira parece apontar para caminho idêntico àquele trilhado pelo conceito
de “ambivalência” cunhado por Brookshaw, qual seja, o de considerar a representação do
negro na literatura amadiana algo escorregadia. Isto é, ambas as conceituações pressupõem
um Jorge Amado predisposto a derrubar preconceitos no momento mesmo em que,
inconscientemente, os reafirma.
No que tange às imagens destacadas por Ferreira como estereótipos, são semelhantes
àquelas que Brookshaw analisa em seu estudo. Ocorrem, entretanto, algumas derivações. Do
negro só instinto, ressaltado por Brookshaw, decorre o negro que não tem a inteligência em
destaque (FERREIRA, 2007) ou, ainda, do negro sexualmente viril se origina o ser hercúleo,
imagem com a qual “[...] o texto limita-se a conferir ao negro uma identidade circunscrita ao
físico e ao corpóreo [...]” (FERREIRA, 2007, p. 88). Assim, Ferreira conclui:
Por mais que Jorge Amado tente visibilizar Antônio Balduíno, atribuindo-lhe
destaques em algumas passagens da narrativa, o discurso do autor revela imagens de
um personagem perigoso, valente, fonte de agitação, subordinação ou
vagabundagem. A narrativa de Jubiabá transcorre para a construção de uma série de
imagens não do negro concreto, marginalizado devido ao processo de modernização,
mas para o negro ora agressivo, altamente forte capaz de vencer o branco pela força
física, ora um negro representante de uma relação marcada por subserviência e
docilidade. Os diversos estereótipos marcam a narrativa, confirmando discursos que
muitas vezes se sacralizam e são tomados como reais (FERREIRA, 2007, p. 110).
À parte das conclusões acima, não é possível negar que, em Jubiabá, ocorrem
construções frasais que dão margem a leituras como as de Brookshaw e Ferreira. Entretanto,
os pesquisadores conferem a estas imagens uma dimensão maior do que aquela que realmente
possuem ou, então, desconsideram que elas se inserem em uma cadeia de significados que as
abarca e ressignifica para além do simples estereótipo.
O problema, em verdade, está no modo como ambos os pesquisadores encerram o
conceito. Para Ferreira (2007, p. 42), o estereótipo “[...] se constitui num conjunto de crenças,
teorias e visões de um ou vários grupos sociais sobre o objeto estereotipado [...]”; já para
Brookshaw (1983, p. 10), “o ser estereotipado é [...] a corporificação física de um mito
baseado imediatamente na visão que o percebedor tem do papel sócio-cultural de seu receptor
[...]”. Nas duas definições, percebe-se a ênfase atribuída a uma certa imagem cristalizada,
capaz de reproduzir e gestar, ela própria, preconceitos. Imagem que se mantém
128
essencialmente incólume ao decurso do tempo, apenas revitalizada “[...] de acordo com o
desenvolvimento sócio-cultural e ideológico” (BROOKSHAW, 1983, p. 12).
Não obstante seja correto que se defina “estereótipo” como uma “face petrificada”
(GOLDSTEIN, 2003, p. 149), uma vez considerada sua recorrência social estigmatizante,
quando do estudo de um universo fictício alguns cuidados devem imiscuir-se ao acentuado
olhar crítico do pesquisador. Em verdade, o próprio conceito referido necessita de algumas
nuanças. Afinal, não se trata, tão somente, de uma imagem dotada de imutabilidade que se
repete, mas dos sentidos que evoca e com os quais dialoga. Mais do que simples
representação cristalizada, o estereótipo pressupõe e afirma uma intricada contextura de
signos subjacentes a um pleno assentimento tácito entre escritor, leitor e narrativa em torno de
um imaginário específico e excludente. Em última análise, o estereótipo não se constitui uma
possibilidade producente, mas difusora de acordos semânticos previamente estabelecidos, o
que ressalta e ratifica os estigmas pré-existentes.
Para além do conceito, o próprio exercício da pesquisa carece também de alguma
cautela. Como o estereótipo depende das cadeias significativas que operam no interior do
texto literário e a elas irmana-se, é necessário perscrutá-las com o intuito de perceber se
reproduzem ou subvertem aquelas outras que delimitam imaginários no “mundo real”. Neste
sentido, Ana Rosa Ramos (2006, p. 71) suspeita da “[...] utilização do estereótipo como um
meio de aprofundar a intriga do romance e desdobrar os seus conflitos [...]”, no que poderia
residir uma maior força dramática do texto. Ainda que a pesquisadora desvele em Jubiabá
outro fim para o estereótipo que não o de representar um estigma, é a partir de uma
representação estereotipada que ela apreende as imagens cunhadas pelo romance. De qualquer
modo, a pesquisadora vislumbra no universo amadiano uma empresa em “[...] valorizar as
noções de raça e cultura negras como elementos que poderiam ajudar a luta política e a
tomada de consciência [...] para resgatar a imagem do sujeito [...]” (RAMOS, 2006, p. 65.
Grifos do autor).
É importante ressaltar que, caso o universo ficcional fundamente-se em sentidos outros
daqueles que regem o complexo sociocultural que o lê, as imagens enunciadas pela narrativa
passam também a ser tributárias desta nova ordem de significados – o que abre a possibilidade
de pensá-las noutro plano que não o do mero estereótipo. Isto equivale a afirmar que, em
decorrência desta ressemantização, a leitura de tais imagens a partir de signos provenientes da
“realidade social”, sem que se considerem aqueles próprios à narrativa, pode encerrar
equívocos de interpretação. Este parece ser, em parte, o caso das referidas leituras de Jubiabá.
129
Como já expresso, certas imagens presentes em Jubiabá, se tomadas isoladamente,
podem e devem suscitar olhares enviesados quanto à representação do negro na ficção
amadiana. Contudo, se considerada a narrativa como um todo, tais imagens constituiriam
estereótipos, se apresentariam como estigmas?
Na dupla tentativa de uma resposta à indagação acima e de uma melhor dinâmica de
análise, dividiram-se os estereótipos evidenciados pelos estudos de Brookshaw e Ferreira em
dois blocos mais ou menos homogêneos e comunicantes. O primeiro organiza-se pelo “sem
limites do instinto” e abarca os estereótipos tangenciais à representação da sexualidade e da
primazia do corpóreo. O segundo, baseado em uma ordem econômica, reúne os estigmas que
supostamente se enraízam no desapego material de Baldo, bem como na representação de
uma marginalidade malandra que marca boa parte da ficcionalização da personagem.
Acatar o primeiro bloco como depositário de estereótipos, ou seja, reincidências
estigmatizantes, só faz sentido caso o livre exercício da sexualidade se sobreponha aos valores
morais de Baldo, de modo a invariavelmente suplantá-los, ou constate-se que a narrativa
partilhe do ideal ascético inculcado na moral judaico-cristã. Ambas as hipóteses, porém,
resultam falsas.
A infância de Baldo, imperador-menino da velha Cidade da Bahia, é marcada por três
grandes aprendizados: o sentimento de raça, posteriormente cambiante para classe; o anseio
por irrestrita liberdade e, ainda, o preceito “olho da piedade/olho da ruindade”. A despeito da
inequívoca relevância de cada um destes valores, tripé em que se assenta a personagem, o
último, por sua abrangência, deve ser destacado. Sem dúvida, salvaguardadas as devidas
proporções, repousa sobre o referido preceito semelhante força de lei àquela inerente aos Dez
Mandamentos que Jeová dita a Moisés como forma de guiar Seu povo. Isto é, tal qual o
ensinamento sagrado para cristãos, a distinção entre o “olho da piedade” e o “olho da
ruindade” institui elevado valor a ser alcançado com vista a moldar uma determinada conduta
ética e moral que preze pela retidão. Desta forma, a dicotomia “piedade/ruindade” desdobra-
se em outros binômios, quais sejam, bem e mal; certo e errado, pureza e mácula94
:
- Dizque também que Balbino morreu foi de feitiço, gente...
- Foi nada... Aquele morreu foi de ruim que era... Ruim como as cobras. [...]
Ninguém havia reparado a chegada de Jubiabá. O macumbeiro falou:
- Mas ele morreu de morte feia...
94
Observe-se que se elaboram representações que se envolvem com a modernidade e seus paradigmas. Neste
sentido, há que se atentar para as visões polarizadas que cobrem as relações, embates, enfim, em que
predominam, não raras vezes, visões polarizadas com que se apresentam as leituras modernas. Os binômios
acima podem vir a ilustrar esta faceta de Jubiabá.
130
Os homens baixaram a cabeça, bem sabiam que eles não podiam com Jubiabá que
era pai-de-santo.
- Morreu de morte feia. Nele o olho da piedade vazou. Ficou só o da ruindade.
Quando ele morreu o olho da piedade abriu de novo.
Repetiu:
- O olho da piedade vazou. Ficou só o da ruindade...
Então um negro troncudo chegou para perto de Jubiabá:
- Como é, pai Jubiabá?
- Ninguém deve fechar o olho da piedade. É ruim fechar o olho da piedade... Não
traz coisa boa.
Disse em nagô e quando Jubiabá falava nagô os negros ficavam trêmulos:
- Ôjú ànun fó ti ika, li ôku.
De súbito o negro se jogou aos pés de Jubiabá e contou:
- Eu já fechei o olho da piedade, gente... Um dia eu fechei o olho da piedade...
Jubiabá olhou o negro com olhos apertados. Os outros, homens e mulheres se
afastaram. [...]
- Foi um dia lá no sertão alto. Estava tudo seco... Boi morria, homem morria, tudo
morria. A gente fugiu, a gente era um bocado, mas foi tudo ficando pelo caminho.
Depois só era eu e João Janjão. Um dia ele me carregou nas costas que eu já não
podia mais com as pernas... Ele tinha o olho da piedade bem aberto e a gente tinha a
garganta seca. O sol era ruim, gente... Cadê água naquele mundão sem fim?
Ninguém sabia não. Um dia a gente arranjou numa fazenda uma cabaça d‟água para
continuar a viagem. João Janjão ia com ela, só dava água de ração. A gente ia morto
de sede. Foi quando a gente encontrou um branco que já estava quase morrendo de
sede. João Janjão quis dar a água e eu não deixei [...]. Ele tinha o olho da piedade
bem aberto... Mas o meu a sede tinha secado. Tinha ficado somente o da ruindade...
Ele quis dar água, eu briguei com ele... E na raiva eu matei ele. Ele tinha me levado
um dia todo nas costas... [...].
Jubiabá repetiu monotonamente:
- É ruim vazar o olho da piedade. Traz desgraça... (Jubiabá, p. 21-23)
Observe-se, no trecho transcrito, que a fala de Jubiabá, dada a sua repetição enfática,
transcende o sentido de um comentário que apenas encerra uma constatação qualquer para
configurar-se em oportuno ensinamento moral. Corroboram para tal entendimento a
indiscutível posição de líder religioso que Jubiabá exerce frente aos habitantes do Morro do
Capa Negro, bem como o desfecho trágico para aquele que não segue corretamente o preceito:
“traz desgraça”. Há, ainda, o emprego da língua ioruba – aspecto em que reside a sacralização
do referido. O tremor que acomete a audiência subitamente ao uso do “nagô” pelo babalorixá
é, pois, suficiente para evidenciar a natureza sagrada que recobre a língua em contexto baiano,
uma vez que praticamente restrita ao âmbito ritualístico dos terreiros de candomblé. Um
princípio religioso estrutura-se e perpassa todo o fragmento acima. Ora, e não é outro a
penetrar em conversa de adultos senão Antônio Balduíno que, em silêncio, observa “[...] ouve
e aprende [...]” (Jubiabá, p. 23) – da mesma maneira, outra não é a forma de aprendizado na
religiosidade afro-brasileira. Por último, a reiteração do princípio em outros momentos da
narrativa, seja pelo próprio Jubiabá ou por Balduíno, indicia o caráter regulador que exerce.
Admite-se, pois, tal como o faz Rossi (2004), que Baldo vivencia o cotidiano
equilibrando-se na moral ensinada por Jubiabá, ou seja, tentando manter aberto um máximo
131
de “olho da piedade” para um mínimo de “olho da ruindade”95
. Em outras palavras, o
ensinamento reverbera em Balduíno como significante do mundo que o circunscreve, assim
como elemento estruturante das relações que o protagonista tece ao longo da narrativa.
Cabe, neste ponto, retomar a ideia de que para assumir como estereotipada a
representação da sexualidade em Jubiabá, imagem de cunho unicamente lascivo e instintivo,
é necessário verificar se há uma sobreposição do sexo aos valores morais cultivados pela
personagem. No caso específico, cumpre observar se o apelo da carne é capaz, por si só, de
produzir em Baldo um obnubilamento do sentido moral da divisão entre “olho da piedade” e
“olho da ruindade”, de modo que o protagonista “vaze” o primeiro. Em última análise,
cumpre averiguar se o ímpeto sexual de Baldo o faz incorrer em um afastamento daquilo que
apreende como conduta “correta”.
Tome-se a segunda parte da obra, “Diário de um negro em fuga”, como objeto agora.
Narra-se, aqui, Antônio Balduíno distante da Cidade da Bahia, seu reino, e do areal do cais –
entre seus inúmeros aposentos reais, talvez o preferido. A personagem é flagrada em meio às
plantações de fumo de Cachoeira e São Félix, lugares de poucas mulheres, quase todas
envelhecidas precocemente pelo árduo trabalho nas fábricas de charutos96
. As poucas que
resistem à ação fabril, por serem ainda novas no labor, e conservam intacta a beleza
“pertencem” antes aos alemães donos das fábricas do que aos trabalhadores, aos quais restam
os vícios solitários – meio pelo amam todas as mulheres. O cenário descrito por Jorge Amado
neste momento é, pois, em tudo distinto daquele que se vale das velhas ruas da capital. Por
mais não seja, constitui um longo período de abstinência sexual vivenciado por Antônio
Balduíno por serem raras as mulheres solteiras nas plantações de fumo, o que não ocorre em
Salvador.
Ainda que o fator sexual não seja mais do que mero coadjuvante neste segundo
segmento de Jubiabá, que visa um quadro maior da ação reificante do capital sobre o
trabalhador – aliás, como em toda a obra – a falta do sexo provoca momentos em que o
protagonista se aproxima da interpretação de Brookshaw, o que possibilita a imagem de uma
instintividade à flor da pele. Instantes, inclusive, em que os ensinamentos aprendidos com Pai
Jubiabá parecem quase ceder frente ao desejo e que o “olho da piedade” quase não se
distingue daquele da ruindade. É o caso específico do capítulo “Sentinela”.
95
Rossi (2004) não chega a afirmar que o conceito “olho da piedade/olho da ruindade” constitui um valor moral. 96
Cachoeira e São Félix são cidades históricas e vizinhas, situadas no Recôncavo baiano, unidas por uma ponte
sobre o Rio Paraguaçu.
132
A situação que engendra o conflito moral em Balduíno é o velório de sinhá Laura, mãe
de Arminda, menina de doze anos que, antes da doença materna “[...] era alegre e tomava
banho no rio, nadando como um peixe, excitando os homens com o espetáculo do seu corpo
de menina” (Jubiabá, p. 125). A despeito da pouca idade, a escassez de mulheres ainda não
tragadas pela sanha fabril faz com que os homens desejem Arminda. Entres eles, Balduíno e
Filomeno, que estava “[...] com um plano na cabeça. Pensava em Arminda, na frescura da
carne moça” (Jubiabá, p. 125). O plano consistia basicamente em, durante a sentinela,
conseguir com que a menina saísse da sala onde todos estavam e, uma vez sozinhos, possuí-la
à força, se preciso. A mesma perspectiva era alimentada por Baldo.
O corpo de sinhá Laura inchado sobre a mesa. As orações puxadas pelo Gordo. A
generosa cachaça servida aos presentes. O choro inconsolável de Arminda. Não obstante o
clima de pesada tristeza, os olhares de Baldo e Filomeno buscam, alternados, os seios arfantes
de Arminda. É quando o realismo de Jubiabá cede ao fantástico e Jorge Amado faz a morta
voltar do outro mundo para intervir e se interpor ao olhar que Balduíno lança sobre a pequena
menina: “Pois não é que a morta fixou nele os olhos parados com uma expressão de ódio?
Antônio Balduíno olha o chão, espia as mãos grossas, mas sente que o olhar raivoso da
defunta o acompanha” (Jubiabá, p. 127). Trava-se, então, um duelo entre Baldo e sinhá Laura
em que ele tenta driblar a perseguição empreendida pela defunta. Em um momento em que a
morta se distrai, Baldo pede a Arminda um copo de água, no que força a menina a ficar
sozinha com ele:
Ela [Arminda] se levanta. Vão para o quintal, no fundo está uma tina d‟água e um
caneco. Arminda se curvou para encher o caneco e pelo decote do vestido Antônio
Balduíno vê os seios. Então segurou nos braços da menina e girou com ela que ficou
de frente para ele, olhando-o espantada. Mas ele não vê nada a não ser aquela boca e
aqueles seios que estão na sua frente. Vai apertar o abraço e sua boca se dirige para a
boca de Arminda, que ainda não compreende, quando os olhos da defunta chegam e
se colocam entre os dois. A velha Laura deixou o seu lugar em cima da mesa e se
meteu entre eles. Ela está tomando conta da filha. Os mortos sabem tudo e ela sabia
o que Antônio Balduíno pretendia fazer. Está ali entre os dois olhando o negro. Ele
solta Arminda, põe a mão nos olhos, derruba o caneco com água e entra na sala
como um cego. A morta inchou ainda mais na mesa (Jubiabá, p. 129).
O recurso do realismo fantástico nesta cena sugere, em um primeiro plano, o retorno
da mãe como forma de cuidado com Arminda, ameaçada pelo instinto sexual de Balduíno.
Esta interpretação não é de todo satisfatória, uma vez que a morta impede o contato entre
Baldo e a menina, mas nada faz contra o assédio empreendido por Filomeno, que adota a
mesma artimanha pensada pelo protagonista:
133
O negro Filomeno ri como quem compreendeu a idéia de Antonio Balduíno
ao pedir água. Ele vai fazer o mesmo com certeza. Que besta – pensa
Balduíno – ele está julgando que vai levar alguma vantagem. Quando chegar
lá encontra a finada espiando para ele. [...] Porém os olhos da morta não
acompanharam Filomeno. [...] Antônio Balduíno murmura para o rosto
impassível:
- Vá! Vá! Não está vendo aquilo? Não está vendo? Aquele negro é malvado...
Mas a morta não atende ao aviso. Parece até que ela está rindo. Ouve-se um
ruído lá dentro. Arminda volta para a sala e agora chora um choro diferente.
O vestido está machucado no lugar dos seios. O negro Filomeno entra
sorrindo. Antonio Balduíno torce as mãos com raiva, levanta e diz alto para o
Gordo:
- Você não disse que ela é uma menina de doze anos? Cadê? Cadê a morta
que não fez nada... (Jubiabá, p. 129-130).
O descaso de Laura com as intenções de Filomeno abre espaço para se pensar na
utilização do realismo fantástico pelo autor como um recurso que visa proteger menos
Arminda do que o protagonista, Antonio Balduíno. Em outras palavras, a morta cumpre o
papel de impedir que Baldo cegue o “olho da piedade”, ou seja, passe da pureza à mácula.
Noutro plano, o retorno de Laura do mundo dos mortos favorece ainda outra leitura,
qual seja a de uma metáfora para a projeção da consciência moral de Baldo em conflito por
desejar uma menina de apenas doze anos. Neste sentido, a fala que encerra o fragmento acima
transcrito é reveladora. Ao interpelar o Gordo, Baldo parece reconhecer nele uma ação
reguladora semelhante àquela exercida por Jubiabá, de modo que suas palavras reforçam uma
consciência já preexistente do “certo” e do “errado” – observe-se que na cena narrada o Gordo
desempenha, ao menos por instantes, a função de liderança religiosa, tornando-se o
responsável pelo início e ritmo das rezas.
Em decorrência desta última interpretação, cumpre ressaltar que quem persegue Baldo
e impede que o assédio se concretize não é propriamente a morta, mas seus olhos – no que
reside a reiteração do princípio moral ensinado por Jubiabá. Os olhos inchados de Laura,
percebidos unicamente por Balduíno, a separarem-no de Arminda, produzem, pois, o efeito de
uma advertência quanto ao iminente risco da transgressão moral. Da mesma forma, o fato de
Baldo levar as mãos aos olhos após largar a menina traduz, talvez, a tentativa de livrar-se não
apenas da presença da morta, mas do próprio desejo que age em sentido oposto ao “olho da
piedade”.
A resolução do conflito pelo viés moralizante em detrimento do sexualizante, ou seja,
da primazia dos valores morais em relação ao instinto sexual nega, portanto, que haja
qualquer coisa de estereotipado – pelo menos em um plano mais profundo da narrativa – no
tocante à representação da sexualidade em Balduíno. A afirmação de Brookshaw sobre a
134
primazia da instintividade na personagem soa, desta forma, como algo redutor e baseado
unicamente em uma imagem que Amado cria para enfatizar a total liberdade com que Baldo
vivia a infância: “[...] andava solto pelo morro e ainda não amava nem odiava. Era puro como
um animal e tinha por única lei os instintos” (Jubiabá, p. 13). Nesta citação, a “lei dos
instintos” ou mesmo a suposta animalização promovida parecem não passar de recursos
enfáticos que, se bem observados, não traduzem um teor estigmatizante na narrativa. Afinal,
se vista como um todo, em momento algum a personagem cede a uma sexualidade irracional
– o que remeteria a um universo animalizado – mas a vivencia como ampla expressão de
liberdade e, principalmente, como mais um componente da natureza humana. Ademais, como
bem evidencia o antropólogo baiano Ordep Serra (1995, p. 345), não “[...] acho que atribuir-
lhes uma „inerente sensualidade‟ seja ofensa para os negros – a menos que se considere a
sensualidade algo ruim, um defeito”.
Ora, foi dito anteriormente que a interpretação da sexualidade como estereótipo
deveria estar condicionada a dois fatores: a prevalência do instinto sobre a moral e a relação
da narrativa com o ideal ascético judaico-cristão. Negada, pois, a pecha de estereótipo sobre
Balduíno, uma vez considerado o desfecho do capítulo “Sentinela”, abre-se caminho para
afirmar a representação da sexualidade em Jubiabá como expressão de liberdade, com o que
se desafiam alguns dogmas do cristianismo. Para além do pecado original, que denega a todos
o Paraíso, ou mesmo da negatividade que incide sobre a ideia de “pecado”, Jorge Amado
cultiva a imagem do sexo como absoluta expressão do humano, o que vem a se configurar
como uma representação, a seu modo, libertária e subversiva. Segundo Portella (2011, p. 66)
o “[...] sexo explícito, o gesto ou o vocábulo permissivos são também modalidades da
aspiração libertária, antiga e soterrada. Tão mais libertina quanto mais reprimida”. Em outras
palavras, Araújo afirma:
Por meio de suas personagens, ludicamente, Jorge Amado recupera para o homo
ludens a perspectiva de um devir existencial sem a mácula e a náusea do sentimento
de culpa do Ocidente, sentimento que frequenta os espaços de nossa cultura
encarcerada, marginada por uma incurável responsabilidade culposa judaico-cristã
(ARAUJO, 2003, p. 111).
Não são poucas as passagens em que a sexualidade está em evidência ao longo do
romance. O desejo e, principalmente sua realização, o sexo, constituem algo corrente no
romance. A própria construção de um herói caracterizado como “bom de cama”, capaz de
satisfazer a mais exigente das mulheres, é, aliás, uma marca constante na literatura amadiana
que aponta, talvez, para a ficcionalização de Exu, orixá que, dentre outros domínios, se
135
apresenta também como regente da sexualidade. Como seja, o prisma ascético, fundador de
uma das bases da mentalidade ocidental, não é adequado para a leitura de Jubiabá, uma vez
considerada a possibilidade de senões e enganos. Não à toa, Serra (1995, p. 355) considera
que essa “[...] questão dos estereótipos na obra de Jorge Amado tem sido abordada de forma
um tanto equivocada”. Corroborando a afirmação de possíveis leituras errôneas, Ferreira
(2007, p. 102), explicita que, em “[...] linhas gerais, é atribuída uma crença de inferioridade
nata ao negro Antônio Balduíno, convergindo uma idéia que acredita em determinantes
biológicos. O negro nasce “forte”, portanto faz sexo „raivosamente‟[...]”. Ora, o pesquisador
parece não perceber que “raivosamente”, no contexto em que se insere, reflete menos uma
dimensão animalesca do negro do que, propriamente, a contraparte do ascetismo judaico-
cristão, tão necessária ao sexo. Neste sentido, Candido afirma:
Na nossa literatura moderna, o sr. Jorge Amado é o maior romancista do amor, força
de carne e de sangue que arrasta os seus personagens para um extraordinário clima
lírico. Amor dos ricos e dos pobres; amor dos pretos, dos operários, que antes não
tinha estado de literatura senão edulcorado pelo bucolismo ou bestializado pelos
naturalistas (CANDIDO, 1972, p. 115).
Pode-se obstar, em relação a esta hipótese, que Balduíno reproduz um típico
julgamento cristão quando, para o sepultamento de Lindinalva, exige um caixão branco,
símbolo de pureza e virgindade. Entretanto, os sentidos de “pureza” e “virgindade” evocados
por Baldo talvez não se liguem estritamente à sexualidade, mas a uma condição moral tornada
idônea pelo sofrimento e pelo pedido de perdão – no que se pode inferir, novamente, a
atuação do “olho da piedade”.
Aliás, é a partir da relação Baldo-Lindinalva que Tollendal (1997) sinaliza alguns
problemas de Jubiabá quanto à representação do negro97
. De acordo com o pesquisador,
“Balduíno encontra absurdo prazer na submissão a Lindinalva, que o rejeita, manifestando os
baixos sentimentos de nojo e de medo” (TOLLENDAL, 1997, p. 76. Grifos do autor). Ainda
segundo o Tollendal:
O relacionamento afetivo entre Lindinalva e seu herói, tornado possível durante a
fase de decadência da personagem – sempre unilateral – assume a forma
exclusivamente amorosa e conjugal. Subitamente recuperado em sua pureza,
Balduíno descarta a posse sexual de Lindinalva no mercado da prostituição. Fora de
seu grupo étnico e social, cessa a violência que marca seu relacionamento com as
mulheres negras e mestiças. Sem perceber, o narrador do romance político Jubiabá
nos apresenta um herói submisso, em defesa de instituições que operam sua
97
A tese de doutoramento de Tollendal investiga, dentre outros vieses, a ficcionalização do negro na literatura
engajada latino americana observando dois autores: Jorge Amado e Alejo Carpentier.
136
exclusão social: a família burguesa, o casamento, a virgindade. A imagem que
permanece do relacionamento [...] é pouco construtiva (TOLLENDAL, 1997, p. 78.
Grifos do autor).
O caráter folhetinesco que marca o amor de Baldo por Lindinalva, bem como o
aspecto servil evocado pela imagem do negro escravizado aos pés da senhora branca,
certamente indiciam fragilidades da narrativa no que concerne à ficcionalização do negro,
como fica claro na passagem a seguir:
- Baldo... fui ruim com você...
- Deixe disso...
- Me perdoe.
- Não diga isso... Não faça eu chorar...
Ela passa a mão na carapinha do negro e morre dizendo:
- Ajude Amélia a criar meu filho, Baldo... Olhe por ele...
Antonio Balduíno se joga nos pés da cama como um negro escravo (Jubiabá, p.
214).
Por outro lado, em momento algum tais fragilidades apontam na direção de uma “[...]
defesa da mulher burguesa [...]” (TOLLENDAL, 1997, p. 77) ou, menos ainda, para um
desejo de embranquecimento, motivado por um “[...] sentimento de inferioridade racial [...]”
(FERREIRA, 2004, p. 97). Antes, constituem-se em um deslize próprio da estrutura narrativa
do romance, cuja feição popular folhetinesca recorre à dimensão hiperbólica como meio de
enfatizar o drama e as virtudes do herói, tal como afirma Duarte:
Na prostituição, ela [Lindinalva] vai tendo o nome mudado na medida de sua
decadência. Passa a se chamar “Linda”, perdendo o “nalva” que simbolizava a
antiga pureza. Mais embaixo, na Ladeira do Taboão, ela será apenas a “Sardenta”, e
esta gradação negativa corresponde de modo claro à punição que o texto lhe inflige.
A personagem vai perdendo a identidade enquanto Balduíno adquire a sua. Eles
seguem trajetórias simetricamente opostas, uma ascendente, outra descendente. No
momento crucial do pathos, estas linhas se cruzam para que se dê o reconhecimento
das virtudes do herói. A cena é digna dos melodramas populares ou das novelas
radiofônicas. [...]
O bem triunfa sobre o mal, Balduíno demonstra a grandeza de seu caráter e aceita
ser o pai preto do menino branco (DUARTE, 1996, p. 91).
Em verdade, a relação Baldo-Lindinalva, para além do seu aspecto problemático,
possibilita outra leitura, pautada pela verossimilhança. Ou seja, a intransponível distância que
separa e polariza o par reproduz ficcionalmente as clivagens sócio-raciais existentes e
flagrantes no plano extraliterário, tornadas literárias a partir de estruturas e moldes românticos
e folhetinescos. A impossibilidade do enlace definitivo entre Baldo e Linda, sedimentada
quando as personagens eram ainda crianças, pode ser lida como denúncia da
137
impermutabilidade entre lugares sociais, da estratificação de esferas de poder e de submissão
com vistas a manter uma determinada ordem social. Neste sentido, o ponto de encontro entre
ambos é uma criança, símbolo do porvir. Um menino que, sem o saber, guarda em si a
esperança de Amado em uma plena superação das imperativas barreiras raciais que outrora
haviam se interposto à ingênua amizade de Linda e Baldo.
Sob outra perspectiva, o segundo bloco de estereótipos referido anteriormente, aquele
que se organiza a partir de um viés econômico, vislumbra o desprendimento material e a vida
malandra de Balduíno como representações estigmatizantes do negro. Ao que parece, as
interpretações arroladas novamente não consideram o conjunto de sentidos condicionantes de
Jubiabá, narrativa que se estrutura a partir de uma determinada visão política, qual seja, o
socialismo98
.
Em seu quarto romance, Jorge Amado alarga e aprofunda a discussão que “ensaia” nos
dois livros precedentes, Cacau e Suor – o que revela a radicalização do projeto político-
literário amadiano (PALAMARTCHUK, 1997), bem como “[...] clarifica a sua dialética dos
oprimidos” (LUCAS, 1997, p. 111-112). Em Jubiabá, ocorre, pois, uma recorrência enfática
das condições danosas que perpassam a relação homem x capital e que deságuam nas
clivagens sociais que vitimam os trabalhadores. Neste contexto, a narrativa é estrategicamente
dicotômica posto persiga um caráter de denúncia e uma feição pedagógica. A sociedade é
dividida em extremos cujos polos antonímicos são habitados pelas ficcionalizações do pobre e
do rico. O primeiro – com o qual o autor se compromete e se identifica – encarna um perfil
positivo em que se encontram valores como amizade, solidariedade e, principalmente,
ausência de distinções raciais valorativas: “[...] todo pobre agora já virou negro, é o que
explica Jubiabá” (Jubiabá, p. 217)99
. O segundo conforma um grupo cujo “olho da piedade”
fora de há muito “vazado” pela lógica capitalista, isto é, estão ausentes os valores acima
elencados. Tal esquematismo, se por um lado configura-se indubitavelmente cerceador das
individualidades, do que resulta uma simplificação da subjetividade humana, por outro
possibilita que Amado desenvolva incondicionalmente sua intenção de demonstrar a ordem
capitalista como corruptora do homem. Desta polarização, decorre
[...] a idealização romântica e sublime do oprimido, em contraste com a descrição
densa e bruta do meio, [...] recurso privilegiado para que o escritor forjasse um
98
Excetue-se o trabalho de Tollendal uma vez que ele enfoca principalmente a relação entre Baldo e Lindinalva. 99
Convém ressaltar que as exclusões raciais, em Jubiabá, são cultivadas unicamente entre os ricos, inexistindo
no seio da população pobre, na qual haveria uma convivência indistinta entre brancos, negros e mulatos. A
própria presença de Filipe, menino branco e louro, no grupo de Balduíno reflete esta percepção: “Os homens que
passam vêem apenas um grupo de meninos negros, brancos e mulatos, que mendigam” (Jubiaba, p. 49).
138
sentido heróico e engrandecedor aos seus personagens. Trata-se menos de um
processo essencializador de certas características do povo ou de uma raça, no caso a
negra, do que a própria arbitrariedade e deformação da realidade, condição da
própria criação literária que no caso de Jorge Amado dota o proletário, caricatural e
romanticamente, com os mais nobres sentimentos humanos. Ou seja, o próprio
equacionamento estilístico de Amado à utopia comunista. O ideal como meio de
introjetar as esperanças da revolução no mundo presente (ROSSI, 2004, p. 115-116).
Nestes termos, o papel de grande vilão cabe ao capital, juntamente com tudo que ele
engendra. Ora, se herói e vilão são realidades antagônicas, faces que necessariamente se
contradizem, outra não poderia ser a natureza de Baldo senão antimaterialista, anticapitalista.
Em determinado momento, Antonio Balduíno afirma:
Ele quis me comprar, gente... Me deu cem mil-réis para eu perder para aquele
raquítico... Eu disse que perdia... É para ele não querer comprar homem... Eu só me
vendo por amizade, gente... Agora vamos beber o dinheiro dele...
A “Lanterna dos Afogados” ria (Jubiabá, p. 94).
Antonio Balduíno é, pois, desde criança, uma personagem na qual Jorge Amado
investe uma forte carga ideológica de modo a caracterizá-la como símbolo contrário ao
capitalismo. Neste sentido, Baldo não é orientado pela perspectiva da acumulação de capital,
mas por seu oposto, um irretocável senso de justiça social que se confunde e se irmana com os
valores da amizade e do sentimento de classe. Nesta direção, Baldo jamais se reificaria,
jamais viria a trair os valores em que acredita.
São, pois, abundantes os momentos em que a solidariedade de Balduíno em detrimento
da posse material ganha destaque ao longo da narrativa. Criança, ainda chefe de um grupo de
mendigos, Baldo estabelece que as esmolas arrecadadas sejam distribuídas igualmente por
todo o bando e, quando um deles adoece, não tem dúvidas em dispor do anel de ouro,
encontrado outro dia na rua, em prol do convalescente. Já adulto, não titubeia em oferecer o
dinheiro destinado a presentear Rosenda, para a viúva de Clarimundo, amigo de muitas datas,
que morrera sob ação de um guindaste durante trabalho no cais. Neste aspecto, “[...] êle [Jorge
Amado] sempre foi o defensor do Ser contra o Ter, da espontaneidade da vida contra a busca
ilusória das riquezas materiais ou das aparências da respeitabilidade [...]” (BASTIDE, 1972,
p. 52. Grifos do autor). Caso correta a opinião do antropólogo francês, Antonio Balduíno é,
com efeito, a primeira de uma série de personagens amadianas que se notabilizam pela
primazia do “ser”, isto é, não se deixam reificar.
Convém ainda ressaltar um último ponto relativo a esta discussão. Ao tecer a crítica
acerca do antimaterialismo de Baldo, desmerecendo o componente político da narrativa e
139
enxergando na supressão do desejo material do protagonista uma reafirmação de
instintividade, Brookshaw negligencia José Cordeiro, homem branco, personagem de Cacau
que, assim como Balduíno, não se faz tentado por riquezas. Embora exista amor entre o
Sergipano e Mária, filha do Coronel Manoel Misael de Souza Teles, dono das terras em que
Cordeiro trabalha como alugado, as distintas realidades sociais são impeditivas do casamento.
Menos, porém, por oposição dela do que de Cordeiro, que não admite a possibilidade de
ganhar roças e se tornar patrão, posto isto lhe soar como traição à classe. Sufoca no peito um
amor por outro:
No outro dia me despedi dos camaradas. O vento balançava os campos e pela
primeira vez senti a beleza ambiente.
Olhei sem saudades para a casa-grande. O amor pela minha classe, pelos
trabalhadores e operários, amor humano e grande, mataria o amor mesquinho pela
filha do patrão. Eu pensava assim e com razão (Cacau, p. 153).
O investimento ideológico de Amado sobre Cordeiro promove um desprendimento
material similar ou ainda mais radical do que aquele que caracteriza Balduíno. De qualquer
modo, a presença desta característica em personagens não negras é suficiente para que se
constate que tal representação não se faz no âmbito da estigmatização racial, mas como um
simples imperativo político, no que diz respeito à adesão do escritor aos postulados do
socialismo, antes de tudo.
O outro estereótipo que figuraria ainda neste segundo agrupamento relaciona-se,
principalmente, com as imagens de Baldo que flagram a personagem em momento anterior ao
seu ingresso no mundo do trabalho. Ferreira argumenta que Jorge Amado
[...] emprega termos como “quadrilha”, “vagabundagem” que por vez (sic)
estigmatizam o próprio personagem. O termo “vagabundagem” comporta uma
condenação moral, advinda do fato de se estar fora do domínio familiar e produtivo,
além disso, expressa seres errantes sem moradia fixa; verdadeiros itinerantes e
ociosos, considerados ameaçadores à estabilidade social (FERREIRA, 2007, p. 90).
Em que pese a repetição de uma pergunta já feita, a despeito da expressão
“vagabundagem” implicar alguma estigmatização, é mesmo este o sentido com o qual se
apresenta em Jubiabá? Em outras palavras, “vagabundagem” não implica significados outros
além da “condenação moral”?
Ao que parece, o teor político aliado ao encadeamento narrativo de Jubiabá favorece
interpretações divergentes da apresentada por Ferreira. De acordo com Portella (2011, p. 67) a
“[...] recusa da ordem estabelecida, pela distância que se guarda, ou se festeja, com relação ao
140
centro possessivo, gera uma série de figuras ex-cêntrica, voluntárias e involuntariamente
excluídas do espaço orgânico do trabalho” (Grifos do autor). A seguir o pensamento do crítico
baiano, infere-se um gesto político nas imagens mesmas em que Ferreira detecta tão somente
um alto teor estigmatizante, ou seja, para além do estereótipo, a “vagabundagem” comporta e
traduz uma “recusa” da ordem capitalista e do mundo burguês.
Não é difícil atestar o que Portella afirma. Acaso atente-se para as imagens que Baldo
depreende, durante a infância, como signos provenientes do mundo do trabalho, logo se nota
que todas remontam a cenas traumáticas ou de forte tensão: pobreza e opressão somam-se a
corpos lanhados em cicatrizes e velhos trabalhadores tornados mendigos e suicidas, que veem
no mar o “caminho para casa”. Maior peso concentra-se nas lancinantes dores de cabeça de
Tia Luísa, única responsável por afagar o pequeno Baldo, sempre associadas ao fato de ela
carregar sobre a cabeça o mugunzá ainda quente que venderia em alguma rua da cidade.
Emblemático, portanto, que a loucura de Luísa, fato determinante na vida de Baldo, ecloda
justamente no momento em que ela se dirigia ao labor diário:
Luísa estava se preparando para sair. Antonio Balduíno matava formigas num canto
da sala. A tia pediu:
- Ajuda aqui, Balduíno.
Ele ajudou a botar uma lata em cima do tabuleiro, que Luísa suspendeu e colocou na
cabeça. Passou a mão no rosto de Antonio Balduíno e se dirigiu para a porta. Antes
de abrir a tramela, porém, sacudiu com o tabuleiro e as latas no chão, num gesto de
raiva, e gritou:
- Não vou mais.
Antonio Balduíno ficou mudo de espanto.
- Ah! Ah! Não vou mais, quem quiser que vá. Ah! Ah!
- O que é, tia?
O mugunzá corria pelos tijolos do chão [...] (Jubiabá, p. 36).
O “trabalho” é, assim, apreendido por Balduíno como instrumento de exclusão e
submissão através do qual se perpetuam as relações outrora escravocratas. Afinal, os patrões e
os empregados permanecem impermutáveis, o que acastela os lugares sociais do branco e do
negro e as representações do poder e de submissão. Opor-se ao mundo do trabalho, pelo
menos até a súbita tomada de consciência política, representa para a personagem uma vitória
sobre o sistema, uma vez que Baldo se considera livre da tradição de servir. Por outro lado,
empregar-se seria, pois, estar sob as ordens do homem branco. Neste ponto, Jorge Amado
parece retomar e atualizar certo comportamento verificado em egressos da escravidão após o
término do regime escravocrata. Com efeito, em estudo sobre a população negra no pós-
abolição, Albuquerque (2009, p. 107) afirma que, no jargão policial, o termo “vadios”
identificava-se com aqueles que “[...] traduziram liberdade por mobilidade e autonomia”. Sem
141
dúvida, a concepção de liberdade cultivada por Baldo é similar a esta trazida pela
pesquisadora. Em última análise, situar-se à parte do mundo laboral viria a constituir-se em
transgressão de uma liberdade sitiada. Em outras palavras, representaria a tentativa de pleno
rompimento com uma hierarquização social naturalizada. Segundo Duarte (1996, p. 101),
“[...] a recusa de um contexto opressivo conduz a personagem à vida nas ruas, em busca de
sua afirmação como ser humano digno e livre. Esta recusa tem o sentido de luta e de revolta
[...]” (Grifos do autor). Neste sentido, das velhas e novas histórias de escravos que circulavam
pelo Morro do Capa Negro, bem como dos heroicos ABCs de cangaceiros
Antonio Balduíno ouvia e aprendia. Aquela era a sua aula proveitosa. Única escola
que ele e as outras crianças do morro possuíam. Assim se educavam e escolhiam
carreiras. Carreiras estanhas aquelas dos filhos do morro. E carreiras que não
exigiam muita lição: malandragem, desordeiro, ladrão. Havia também outra carreira:
a escravidão das fábricas do campo, dos ofícios proletários. [...]
Antonio Balduíno aprendeu muito nas histórias heróicas que contavam ao povo do
morro e esqueceu a tradição de servir. Resolveu ser do número dos livres, dos que
depois teriam ABC e modinhas a servirem de exemplo aos homens negros, brancos
e mulatos que se escravizam sem remédio. Foi no Morro do Capa Negro que
Antonio Balduíno resolveu lutar. Tudo o que fez, depois, foi devido às histórias que
ouviu nas noites de lua na porta de sua tia. Aquelas histórias, aquelas cantigas,
tinham sido feitas para mostrar aos homens o exemplo dos que se revoltaram. Mas
os homens não compreendiam ou já estavam muito escravizados. Porém alguns
ouviam e entendiam. Antonio Balduíno foi destes que entenderam (Jubiabá, p. 23-
27).
O contexto político em que Jubiabá se insere ressignifica, portanto, as imagens que,
por ventura, poderiam flertar com uma determinada representação estereotipada do negro,
caso fossem outros os sentidos da narrativa. Neste plano, observa-se no romance amadiano
um movimento ascendente do negro, inicialmente estigmatizado – O país do Carnaval –
passando depois à condição de narrado em pano de fundo – Cacau e Suor – para, por último,
desembocar na heroicização de Jubiabá – romance que poderia constituir a primeira
ficcionalização do negro-sujeito na obra de Jorge Amado. Contudo, há que se relativizar a
representação negra em Jubiabá. Menos por causa do latente racismo autoral, como
pretendem Brookshaw e Ferreira, do que pelo próprio instrumento evocado aqui para negar
estereotipias na narrativa: o engajamento político. Segundo Duarte (2006, p. 36) “[...] o fator
econômico orienta a ficcionalização do negro. A perspectiva de classe termina obscurecendo
as demandas étnicas pela manutenção da herança cultural”. Assim, a grande luta racial que se
insinua na abertura do romance com o embate, em um ringue de boxe, entre Baldo e o
campeão ariano Ergin, do qual o negro sai vencedor e “[...] satisfeito [de ver] o branco
142
estendido aos seus pés” (Jubiabá, p. 10), cede lugar paulatinamente ao discurso de união dos
trabalhadores contra o capital. Novamente Duarte:
É interessante notar como a perspectiva de classe vai de certa forma obnubilar nessa
época as diferenças de gênero e etnia. Apesar de Jubiabá fazer de Antonio Balduíno
o primeiro herói negro do romance brasileiro – falamos daquele herói épico,
construído como síntese das qualidades de seu povo; apesar do texto se contrapor ao
discurso da eugenia e do arianismo tão forte à época [...]; apesar de narrar a
trajetória ascensional desse menino de morro e de rua até completar sua formação
enquanto cidadão – ao final, Balduíno se destaca como um dos líderes da greve que
pára Salvador; enfim, apesar de recobrir de positividade heroica todo o crescimento
da personagem, o texto deixa bem nítido o centramento na identidade de classe
(DUARTE, 1997, p. 93).
O que ocorre é que, ao fim do romance, a identidade que prevalece e da qual Balduíno
passa a se orgulhar não é a negra – não obstante não chegue de todo a negá-la – mas a de
trabalhador, a de classe. Nesse sentido, Eneida Leal Cunha constata:
Sintomaticamente, a partir do capítulo “Cheiro doce de fumo”, enquanto é narrada a
permanência do personagem na zona rural, as palavras negro e negros vão sendo
substituídas por termos como pobre e trabalhadores, indicando que a postura
libertária, o voluntarismo e a altivez do jovem negro deverão ceder lugar,
progressivamente, à solidariedade e aos laços afetivos com os companheiros de
trabalho, até atingir, no retorno ao ambiente urbano, a consciência de classe e a
militância política (CUNHA, 2009, p. 34. Grifos do autor).
Há, portanto, uma sobreposição que, se não incide em apagamento, pelo menos deixa
entrever uma hierarquização. De acordo com o próprio Jorge Amado, em entrevista a Alice
Raillard, Jubiabá evidencia que “[...] o problema de raça não é a causa, mais (sic) sim a
conseqüência do problema de classe: o problema do pobre e do rico, do escravo e do amo”
(RAILLARD, 1990, p. 101).
É certo, porém, como afirma Goldstein (2003), que a cultura afro-brasileira não é de
todo secundarizada pelo discurso político; apresenta fôlego próprio no romance, de modo que
se configura em um de seus pilares. Rossi (2004) aprofunda um pouco mais a questão ao
perceber a permanência do “olho da piedade” como signo fundamental da visão de mundo de
Baldo. Cruzando o pensamento de Rossi com as ideias desenvolvidas neste estudo, em que se
propõe o “olho da piedade” como princípio religioso, não se está muito distante de Bastide
quando ele conceitua a feição política em Amado como portadora de “[...] um marxismo
religioso, tanto ou mais do que um marxismo político [...]” (BASTIDE, 1972, p. 55). Para o
antropólogo francês
143
Esta sucessão de dois momentos na vida do herói, que poderíamos designar por
negritude e marxismo, não impede a interpenetração da negritude [...] e do
marxismo, que se sincretisa (sic) com os deuses africanos, a primeira já sendo como
que uma Anunciação do segundo, uma primeira visita do Anjo da Justiça aos
proletários negros, e o segundo só podendo triunfar com a condição de deixar de ser
uma abstração de teórico para encarnar-se em homens concretos, adoradores de
Xangô, que faz cair o raio nos maus, ou Iemanjá, que embala em seu seio o
sofrimento dos homens (BASTIDE, 1972, p. 46).
Rossi, assim como Bastide, acredita que não há “[...] ruptura ou incompatibilidade
entre essas duas lutas, ou dois momentos na vida de Balduíno: o negro-raça e o negro-classe
[...]” (ROSSI, 2004, p. 122). Em sentido oposto, Tollendal (1997, p. 69) afirma que “à medida
em que adquire hábitos de militância, Balduíno desfaz-se do manancial de cultura de que era
fiel depositário. De posse da verdade revolucionária, suas práticas anteriores passam a ser
vistas com o menosprezo que merecem as ocupações alienantes”. Nem tanto, nem tão pouco.
Os códigos negros não têm sua validade cultural negada, ou seja, não são contestados em seus
modos de ver e viver o mundo como o foram, de certo modo, em Suor. Mas, é verdade que
são negados, sim, no âmbito da ação política, como se não comportassem nenhuma
capacidade de defender o povo negro e pobre. Por outro lado, é igualmente verdade que Baldo
se desgarra do modelo de identidade simbolizado em Jubiabá, que se pauta em tradições afro-
brasileiras, e filia-se a outro, que não se pretende negro, mas de classe. Uma cena é
representativa da referida transição:
- Meu povo, vocês não sabe nada... Eu tou pensando na minha cabeça que vocês não
sabe nada... Vocês precisam ver a greve, ir para a greve. Negro faz greve, não é mais
escravo. Que adianta negro rezar, negro vir cantar pra Oxóssi? Os ricos manda
fechar a festa de Oxóssi. Uma vez os policiais fecharam a festa de Oxalá quando ele
era Oxolufã, o velho. E pai Jubiabá foi com eles, foi pra cadeia. Vocês se lembra,
sim. O que é que negro pode fazer? Negro não pode fazer nada, nem dançar pra
santo. Pois vocês não sabem de nada. Negro faz greve, pára tudo, pára guindastes,
pára bonde, cadê luz? Só tem as estrelas. Negro é a luz, é os bondes. Negro e branco
pobre, tudo é escravo, mas tem tudo na mão. É só não querer, não é mais escravo.
Meu povo, vamos pra greve que a greve é como um colar. Tudo junto é mesmo
bonito. Cai uma conta, as outras caem também (Jubiabá, p. 223-224)100
.
A greve – e unicamente a greve – surge no discurso de Balduíno como capaz de
reverter o quadro de submissão social imposta à população pobre, negros e mestiços em sua
maioria, pela lógica do sistema capitalista. Por conseguinte, Baldo ressalta uma suposta
incapacidade do candomblé em reverter orações e festas destinadas aos orixás em concreta
100
Esta cena será parcialmente reescrita em Tenda dos milagres, entretanto com outra finalidade. Se, em
Jubiabá, Jorge Amado ressalta uma incapacidade do candomblé em defender e cuidar do seu povo, de modo a
reagir às arbitrariedades sociais; é justamente em um barracão de candomblé que o romancista, em Tenda dos
milagres, situa uma importante vitória do povo negro contra o racismo institucionalizado. Este estudo será objeto
da quarta seção deste trabalho.
144
mudança social101
. Depreende-se desta contraposição “capaz x incapaz” uma tentativa de
Baldo em tomar o destino pelas próprias mãos em detrimento de delegá-lo a deuses, quais
sejam. A religiosidade seria, portanto, uma forma de alijamento da luta política, no que
corrobora o espanto de Baldo em perceber que “Jubiabá sabia coisas de santos, histórias da
escravidão, era livre mas nunca ensinara a greve ao povo escravo do morro” (Jubiabá, p.
233).
O equacionamento desta nova identidade de Antonio Balduino, chancelada pelo
romance, é algo bastante escorregadio uma vez que promove, não raro, contradições. No
mesmo instante em que o protagonista vai de encontro ao candomblé, conclamando a todos
para a nova identidade – movimento em que se flagra o esmaecer da identidade anterior – é
perceptível que, no âmbito da narrativa, esta mesma nova identidade não subsiste sem a
tradição afro-brasileira, alicerce de sua visão do mundo: os “[...] ricos tinham secado o olho
da piedade. Mas eles podem na hora que quiser secar o olho da ruindade” (Jubiabá, p. 245).
Esta nova identidade é investida de uma força ideológica tal que faz o próprio Jubiabá curvar-
se respeitoso perante Balduíno, neste instante assemelhado a Oxalá, o mais velho de todos os
orixás. Isto se revela uma inversão simbólica da ordem religiosa afro-brasileira, uma vez que
faz o mais velho de fato e de direito102
curvar-se ante o mais novo.
De uma forma ou de outra, é possível atestar as referidas leituras de Rossi e de
Tollendal, embora se possa considerar esta última mais evidente nas páginas finais do
romance. Talvez fosse o caso de se pensar em uma identidade não fechada, cambiante,
complementar com a qual Baldo abarcaria o sentimento de classe e, em menor escala, o de
raça. Ainda que se arrisque esta interpretação, não estão eliminados os pontos de atrito entre
ambas as identidades que se fundem, muito menos o caráter de absoluto com que a identidade
de classe encerra o romance. Desta forma, ainda não é possível afirmar que a imagem
construída seja a do negro-sujeito, posto se detecte a transição de uma identidade negra para a
de classe. Há, sim, um projeto que cede às demandas políticas, ao compromisso ideológico.
Há um esboço.
No que tangencia propriamente à questão da mestiçagem, a par de todos os elementos
sincréticos que a evidenciam em âmbito cultural, percebe-se que, do ponto de vista biológico,
a mestiçagem não se configura em fator explorado pela narrativa. A despeito da existência do
amor inter-racial, o contato físico não chega a se realizar, o que permite a inferência que se
101
Ao invés de candomblé, o termo “Macumba” é mais recorrente em Jubiabá. 102
De direito se refere aí ao tempo decorrido desde a iniciação de Jubiabá ser bem superior àquele de Baldo bem
como à posição hierárquica de ambos, babalorixá e ogã, respectivamente.
145
volta para um retrato das clivagens raciais imperativas no Brasil. O negro é positivado, mas a
sociedade repele o seu envolvimento com a mulher branca. Ainda assim, Baldo será o
responsável pela criação do filho branco de Lindinalva, assumindo a função de pai e
quebrando barreiras, portanto. Por isso, endossa-se a leitura de Goldstein (2003, p. 151) para
quem, não obstante o romance Jubiabá seja “[...] à primeira vista o mais radical de Jorge
Amado, não se tem verdadeiramente ódio entre brancos e negros, e o dissolver de fronteiras
começa a ser insinuado”.
O que se insinua e se esboça em Jubiabá ganha destaque e profundidade em Mar
morto, quinto romance de Jorge Amado, publicado em 1936103
. Este romance, sob a ótica da
fortuna crítica, é menos problemático no tocante às representações étnico-raciais do que o seu
precedente, ou, pelo menos, inspira uma quantidade menor de estudos, o que justifica a
abordagem menos extensa a ser empreendida por esta dissertação104
.
O lírico e igualmente trágico enlace amoroso entre Guma e Lívia, apesar de
configurar-se como romance político (TOLLENDAL, 1997; ROSSI, 2004; VEIGA, 2008),
comporta particularidades tais que, se bem observadas, desvelam um universo ficcional mais
próximo daquele de narrativas como Os pastores da noite e Tenda dos milagres, por exemplo,
do que uma continuidade com os parâmetros narrativos de Jubiabá. Embora inserido
temporalmente no grupo que Duarte (1996) denomina “romances de formação proletários” –
ou seja, Jubiabá e Capitães da areia, Mar morto adota outra perspectiva. Duarte afirma:
103
Mar morto é um romance sobre aqueles que vivem em função do mar, marinheiros, saveiristas, pescadores e,
como tal, é também uma narrativa em que a presença de Iemanjá é muito forte, não apenas como um símbolo de
fé dos marítimos – Guma é um de seus ogans – mas como arcabouço mitológico que guia a narrativa. Neste
plano, Jorge Amado conta sobre o amor de Guma e Lívia: ele, um homem do mar; ela, uma mulher da terra.
Ambos se conhecem em uma festa de Iemanjá, trocam olhares e risos. Em um átimo, Guma sabe que aquela é a
mulher que Iemanjá lhe havia destinado. Contudo, um conflito se instaura: sendo um homem do mar, sua morte é
sempre iminente, apenas adiada em mais um dia quando ancora o saveiro no cais. Seria justo desposá-la? O
destino das mulheres dos marítimos é sempre o mesmo quando viúvas, ou prostitutas ou empregadas nas fábricas
de fumo, onde cedo perdem a vida. Ao pensar nestas condições, Guma tenta fugir de Lívia, mas não resiste ao
amor que sente. Casam-se e têm um filho. Ao final do romance, como dificilmente poderia deixar de ser, Guma
cumpre o seu destino e morre envolto pelas águas de Iemanjá. Lívia, no entanto, com o apoio de Rosa Palmeirão,
subverte o destino das mulheres de marítimos: não se prostitui ou se emprega nas fábricas de fumo, mas, ao
contrário, toma do Paquete Voador, saveiro herdado de Guma, e se torna, ela também, uma marítima. 104
O pesquisador Carlos Augusto Magalhães observa que o título Mar morto corresponde a uma metáfora que
traduz a “[...] emoção que o escritor tanto quer compartilhar com seus leitores e que surge do contato com a
realidade da cidade” (MAGALHÃES, 2011, p. 180). Assim, ainda Magalhães (2011, p. 180) assevera: “[...] o
título Mar morto, de início, associável àquele que fica nos mapas, também interfere na estabilidade do
significado, pois morto não seria um adjetivo adequado para mar, dentro da previsibilidade interpretativa. Mas,
ao mesmo tempo, tal qualificativo se coaduna com a o sentido de uma vida marcada pela fatalidade, pelo
sofrimento, pela ausência de expectativa, aspectos que caracterizam a existência das pessoas que vivem no e do
mar morto da dor e do abandono social, na Bahia da década de 1930”. Aliás, o contato estabelecido e a relação
existente entre o escritor Jorge Amado e a Cidade da Bahia não é vã constatação, antes, tal como afirma
novamente Magalhães (2007, p. 45) “[...] é um vínculo carregado de solidez, que esboça a situação e o sentido de
pertencimento do escritor à urbe, numa relação plena de subjetividade e para além da cidadania, porque
existencial”.
146
[...] extrapola o projeto de narrativa militante. Embora centrada na vida popular
baiana, a história de Guma e Lívia não se enquadra no esquema de romance
proletário e passa ao largo de encaminhamentos políticos como os de Jubiabá, São
Jorge dos Ilhéus ou Seara Vermelha (DUARTE, 1996, p. 36).
Parecer semelhante é emitido por Albuquerque Júnior (2008, p. 25), para quem Mar
morto “[...] é, curiosamente, um livro que se estrutura muito mais em torno de uma etnografia
dos espaços [...] do que propriamente em torno de uma trama histórica [...]”. Ainda segundo o
pesquisador, há dois espaços para a utopia neste romance: “um espaço utópico popular, aquele
representado pelas terras de [...] de Iemanjá, e um espaço utópico imaginado pelos intelectuais
que figuram na trama do livro: a terra transformada pelo milagre da revolução comunista”
(ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2008, p. 39).
Este primeiro espaço, de natureza utópica popular, confere ao romance caráter “[...]
verdadeiramente africanista [...]” (TOLLENDAL, 1997, p. 88), posto que “o mito de Iemanjá
sustenta maravilhosamente o enredo de Mar morto, cujas imagens e estrutura nascem da
história e da figura mítica da deusa” (SALAH, 2008, p. 100. Grifos do autor). É ainda este
mesmo espaço que circunscreve as figuras centrais do romance, Guma, Lívia e Rosa
Palmeirão “[...] que mantêm com Iemanjá relações tão vigorosas, que o mito se torna um
arcabouço tão vivo e real quanto eles” (SALAH, 2008, p. 101). A onipresença do mito fica
patente desde as primeiras páginas do romance quando, em noite de temporal, morrem filho e
marido de Judith; mortes atribuídas ao destino daqueles que vivem sobre o mar, o de um dia
se juntarem a Janaína nas Terras do Sem Fim. Lívia sofre com a inevitabilidade da
perspectiva fatalista. Sabe que um dia será ela a ser consolada pelas mulheres dos marítimos
enquanto os saveiros cortarão inutilmente as águas da baía atrás do corpo de Guma perdido
para sempre, levado por Iemanjá. O temor que acomete Lívia explicita então os termos
condicionantes do universo a ser narrado:
Ela [Iemanjá] é mãe-d‟água, é a dona do mar, e por isso, todos os homens que vivem
em cima das ondas a temem e a amam. Ela castiga. Ela nunca se mostra aos homens
a não ser quando eles morrem no mar. Os que morrem na tempestade são seus
preferidos. E aqueles que morrem salvando outros homens, esses vão com ela pelos
mares afora, igual a um navio, viajando por todos os portos, correndo por todos os
mares. Destes ninguém encontra os corpos, que eles vão com Iemanjá. Para ver a
mãe-d‟água muitos já se jogaram ao mar sorrindo e não mais apareceram (Mar
morto, p. 25).
O segundo espaço delimitado por Albuquerque Júnior, aquele permeado pela ideologia
política, praticamente restringe-se às personagens de Dulce, a professora, e do Dr. Rodrigo,
147
médico, que dedicam suas vidas ao povo do mar. Segundo Tollendal (1997, p. 88) “a presença
humanitária destes personagens letrados neste espaço social acentua a necessidade de
atendimento das populações carentes na área da educação e de saúde – bandeiras de todo
programa nacional-popular a cargo do Estado. Representa, portanto, uma teoria política"105
.
Dulce espera um milagre que viria algum dia e, enquanto este não chega, ensina aos rebentos
do mar, no pouco tempo em que podem ficar na escola, a escrever e fazer contas. Rodrigo, por
sua vez, contrasta suas expectativas de médico ao cotidiano daquela população, julgando sua
ciência de pouca valia no que tange a proporcionar melhores condições de vida aos
marítimos: “só mesmo um milagre. Isso prova que você ainda tem fé no seu Deus. Já é
alguma coisa. Eu já perdi a fé na minha deusa” (Mar morto, p. 148), diz o médico à Dulce. A
professora, entretanto, desloca o milagre esperado do plano divino para o humano, no que diz
respeito à presença da ideologia socialista no romance, ainda que tacitamente:
- Não é mais um milagre do céu que eu espero. Já roguei muito aos santos e assim
mesmo os homens e as crianças morreram. Mas eu tenho fé, sim. Tenho fé, Rodrigo,
nesses homens. Uma coisa me diz que eles é que farão o milagre...
Dr. Rodrigo olhou para dona Dulce. Os olhos da professora eram bondosos e
sorriam. O médico pensou nos seus versos fracassados, na sua ciência fracassada.
Olhou a gente que sorria em torno dele. [...]
- Que milagre, Dulce? Que milagre?
Ela estava transfigurada, parecia uma santa. Os olhos doces corriam para o mar.
Uma criança veio e ela descansou a mão desencarnada na sua cabeça:
- Um milagre, sim. [...] Você nunca imaginou esse mar cheio de saveiros limpos,
com marítimos bem alimentados, ganhando o que merecem, as esposas com o futuro
garantido, os filhos na escola não durante seis meses, mas todo o tempo, depois indo
aqueles que têm vocação para as faculdades? Já pensou em postos de salvamento
nos rios, na boca da barra? Às vezes eu imagino o cais assim... [...] Um milagre
desses homens, Rodrigo... Assim como a lua nessa noite de inverno. Clareando tudo,
embelezando tudo.
Rodrigo olhou a lua que subia no céu. Era cheia e iluminava tudo, transfigurando o
mar e a noite. As estrelas surgiram, uma canção veio do forte velho, os homens não
iam mais curvados, o cortejo nupcial era belo. A umidade da noite desapareceu,
ficou o frio seco. A lua clareou a noite do mar. Mestre Manuel ia abraçado com
Maria Clara e Guma sorria para Lívia. Dr. Rodrigo olhou para o milagre da noite. A
criança sorria para a lua. Dr. Rodrigo se apercebeu então do que Dulce dizia. Botou
a criança no braço. Era verdade. Um dia aqueles homens realizariam um milagre
assim (Mar morto, p.148-149).
105
Ainda assim o pesquisador não deixa de criticar aquilo que, em sua leitura, descreve como uma “narrativa
hagiológica” em detrimento da “narrativa socialista”: “Estamos, sem dúvida, mais próximos do messianismo
romântico que do marxismo revolucionário. O narrador acaba por apontar um futuro de justiça que não tem na
práxis política o motor da sua história; que independe de circunstâncias objetivas, da correlação de forças, das
condições materiais da existência, estando à mercê de um desígnio divino ou do espírito dos povos"
(TOLLENDAL, 1997, p. 107). Ou, ainda, "Esta solução fantástica, transformando a morte trágica em sobrevida
celestial no imaginário dos povos (e leitores), sem dúvida carece de força revolucionária. A mitologia torna-se o
ópio do povo. Suave na poesia da canção romântica, quando nos fala da integração do homem ao meio como
medida da sua felicidade, na lógica do (sic) narrativa política o verso é doce morrer no mar (que lhe serve de
mote) traduz uma tese autoritária. Não há dialética quando se mitifica a morte decorrente de uma situação de
injustiça. Como um discurso compensatório, no contexto do romance social, sua mensagem acaba por estimular
a resignação, o conformismo, a alienação, diante da exploração do trabalho" (TOLLENDAL, 1997, p. 110).
148
Os dois espaços demarcados por Albuquerque Júnior não se constituem propriamente
como um ineditismo de Mar morto frente aos romances previamente escritos por Jorge
Amado. De certa forma, Jubiabá já os havia introduzido ao mergulhar tão a fundo nas
representações da vida popular e da ideologia política. Decorre que a diferenciação entre
ambas as narrativas não se situa pelos espaços ficcionalizados, porque são os mesmos, mas
pela relação hierarquizada que estrutura tais representações. Neste sentido, em Jubiabá ocorre
a migração de um espaço a outro de modo que o popular, ao fim do romance, é incorporado
pelo político-ideológico – em que pese a negação da religiosidade afro-brasileira no discurso
de Baldo. A greve funciona como agente catalisador deste processo, constituindo-se uma
espécie de epifania. Tal como um vislumbre do Sagrado, de súbito ela promove uma nova
consciência, um novo ser, como visto pouco acima. Em Mar morto a greve não produz
qualquer mudança de rumo na narrativa. Embora a faça presente e vitoriosa, Jorge Amado
restringe seu alcance ao campo social, pouco adentrando na esfera identitária; assim, ao seu
término, Guma permanece substancialmente o mesmo. Em verdade, se em Jubiabá a greve
transforma uma identidade em outra, em Mar morto o único efeito que produz neste âmbito é
acrescer uma esperança antes inexistente: “e na noite estrelada o estivador lhe contou muita
coisa. Para Guma não era de noite, era a madrugada que surgia” (Mar morto, p. 247-248).
Para Dulce e para Rodrigo, ela sinaliza também que o milagre esperado começava a se
realizar:
Dr. Rodrigo prestou grande assistência aos estivadores. Depois de tudo acabado fez
um poema em que terminava dizendo que o milagre que dona Dulce tanto esperava
tinha começado a se realizar. Ela concordou, sorrindo. Estava cada vez mais curva,
mas alteou o peito ao ouvir o poema. E sorria feliz. Aprendera uma nova palavra
para dizer nas casas pobres do cais. Agora podiam-na chamar de boa e amiga. Ela
sabia como lhes agradecer. Novamente tinha fé. Apenas agora era diferente (Mar
morto, p. 248).
Limitado o raio de ação da greve, onipotente em Jubiabá, limita-se igualmente a
atuação da ideologia política em Mar morto, o que não significa, sobremaneira, que ela não
opera; apenas indica que não submete a seu jugo identidades previamente consolidadas. A
nova palavra aprendida por Dulce, e que será ensinada aos filhos e netos de marítimos, é,
pois, índice de uma consciência política a ser passada às novas gerações que, não obstante,
manterão vivas as tradições culturais e religiosas dos pais e avós. Deste modo, recuperando a
terminologia de Albuquerque Júnior, Mar morto configura uma soma positiva dos espaços
utópicos do mítico-popular e do político-ideológico que permeiam a narrativa. Ao contrário
149
do que ocorre em Jubiabá, a valorização de um campo, o político, não é corolário da
desvalorização plena ou parcial do outro, o mítico-popular. Na história de Guma e Lívia,
ambos irmanam-se e impulsionam o desenrolar do romance. O ápice deste entrecruzamento se
dá após a morte de Guma, quando Lívia decide tomar do “Paquete Voador”, e cruzar, com
Rosa Palmeirão, os caminhos da Baía de Todos os Santos:
Aves marinhas volteiam em torno ao saveiro, passam perto da cabeça de Lívia. Ela
vai erecta e pensa que na outra viagem trará seu filho, o destino dele é o mar. [...]
Estrela matutina. No cais o velho Francisco balança a cabeça. Uma vez, quando fez
o que nenhum mestre de saveiro faria, ele viu Iemanjá, a dona do mar. E não é ela
quem vai agora de pé no Paquete Voador? Não é ela? É ela, sim. É Iemanjá quem
vai ali. E o velho Francisco grita para os outros no cais:
- Vejam! Vejam! É Janaína.
Olharam e viram. Dona Dulce olhou também da janela da escola. Viu uma mulher
forte que lutava. A luta era seu milagre. Começava a se realizar. No cais os
marítimos viam Iemanjá, a dos cinco nomes. O velho Francisco gritava, era a
segunda vez que ele a via (Mar morto, 271-272).
Nesta cena, para a qual converge todo o romance, ambos os espaços utópicos se
confundem e se fazem presentes na imagem singular de Lívia. Ao comando do “Paquete
Voador”, saveiro que herda de Guma, ela subverte o destino trágico das viúvas do cais, qual
seja, o de escravizarem-se em fábricas ou a sujeitarem-se a todos e a ninguém, em prostíbulos
vários. De uma forma ou de outra, envelheceria cedo, perderia a beleza, morreria de doenças
terríveis. Ao reagir contra estas possibilidades, Lívia instaura uma nova perspectiva, a de não-
submissão a uma ordem predefinida, preexistente. E, nesta medida, encarna o espaço utópico
político-ideológico – é o sonho de Dulce.
Ora, em uma narrativa guiada pela ideia de destino, na qual a morte de Guma já se
anuncia desde a primeira página106
e para a qual, segundo Hoisel (2008, p. 71) “[...] a própria
fatalidade [...] é também tratada como elemento mítico e idealizado [...]”, a ruptura promovida
por Lívia pode sugerir uma sobreposição do fator político ao mitológico. Ainda mais ao se
considerar o conflito vivenciado por Guma pouco antes do casamento. Afinal, Lívia era a
mulher que lhe fora enviada por Iemanjá, no entanto casar-se com ela significaria selar o
destino da moça sob o signo da tragédia, dada a sempre iminente morte daqueles que
trabalham no mar: “Foi Lívia quem Iemanjá lhe mandou, ele não pode discutir as ordens de
Iemanjá. [...] Guma não quer desgraçar o destino de Lívia, mas não pode. Destino é coisa
feita, ninguém pode desmanchar. O destino de Lívia é o destino infeliz das mulheres do cais”
(Mar morto, p. 127). Esta, no entanto, seria uma interpretação apressada. É importante
106
Rossi (2004, p. 128) considera que Mar morto “[...] é estilisticamente concebido pelo constante retardamento
desta morte anunciada”.
150
observar que, em comparação à perspectiva de Dulce, o milagre que os marítimos avistam é
outro. Enquanto a professora emociona-se com Lívia dobrando o destino, não é a viúva de
Guma que os savereiros vislumbram sobre o “Paquete Voador”, mas a própria Iemanjá
conduzindo-os a uma nova sorte, na qual não é mais necessário morrer para vê-la:
O mito não mais subordinando, mas, sobretudo impulsionando as pessoas da beira
do cais para um outro caminho, pois a morte não é mais o preço que se paga, no caso
dos homens, para quem vê Iemanjá. Muito pelo contrário, agora, ela aparece
encarnada naquela mulher [...], mostrando-se para todos os marítimos como o
verdadeiro símbolo da vida (ROSSI, 2004, p. 134).
Para os homens do mar, ainda que a cena implique um reordenamento social – ou pelo
menos a esperança dele –, a natureza do fato permanece mítica: quem subverte o destino não é
Lívia, mas Iemanjá. E, nesta medida, reconfigura-se o espaço utópico mítico-popular – o
sonho dos marítimos.
Ao contrário de Jubiabá, Mar morto não deixa entrever qualquer laivo de
hierarquização de um espaço sobre outro. Antes, apreende-os em um movimento dialético do
qual resulta Lívia, tanto mítica quanto política. Vale ressaltar que esta convergência do mítico
e do político para uma mesma representação, embora em outros contextos e com outras
conotações, está tanto em Os pastores da noite quanto em Tenda dos milagres107
. Em O
compadre de Ogum, segunda história de Os pastores da noite, Ogum, com o intuito de poder
realizar o batizado do menino de quem é padrinho, incorpora em um padre cuja intolerância
inviabiliza o procedimento litúrgico. Já em A invasão do morro do Mata-Gato, terceira
história do mesmo romance, é Jesuíno Galo Doido, um obá de Xangô, alta referência
religiosa, o responsável por organizar a defesa do Morro contra a polícia e a especulação
imobiliária. Em Tenda dos milagres, por sua vez, são os próprios orixás que expulsam e dão
fim à perseguição policial contra os terreiros de candomblé108
. Em todas estas situações,
percebe-se a confluência do sagrado e do político em uma construção contraopressiva, o que
parece indicar que “[...] dentro de um processo de esmagamento cultural, a religião é o mais
importante veículo de resistência. Mobiliza, aglutina e fortalece a identidade” (TAVARES,
2009, p. 26). Em Mar morto, esta condição não é tão clara e bem definida quanto nos outros
romances supracitados, mas já se anuncia a não-negação da religiosidade dos marítimos. Este
107
Com Gabriela, cravo e canela (1958), o termo “político” adquire uma semântica mais ampla do que aquela
existente nos romances amadianos que se estendem até Os subterrâneos da liberdade. Nestes, “político” designa,
por metonímia, a ideologia socialista. A partir de 1958, contudo, “político” passa a configurar uma ação social
contraopressiva, tão somente. 108
Todas estas cenas elencadas são devidamente analisadas nas duas próximas seções, cabendo aqui apenas
indicar a proximidade com o narrado em Mar morto.
151
é, com efeito, o primeiro ponto que permite afirmar Mar morto como um prenúncio dos
romances pós-58.
Um segundo fator é a mestiçagem. Em Mar morto, pela primeira vez, ela deixa de ser
um pano de fundo para assumir um papel de protagonista, sendo afirmada como significante e
significado da realidade baiana. Assim, o lirismo com o qual Amado circunscreve o amor de
Guma e Lívia, é todo ele baseado em referências “sincréticas”: mar e terra; candomblé e
catolicismo; fatalismo e esperança; sagrado e humano. Aliás, a própria materialização do
romance é sincrética, porquanto consista em um homem da terra, Jorge Amado, narrando
aqueles do mar: “Vinde ouvir a história de Guma e de Lívia que é a história da vida e do amor
no mar. E se ela não vos parecer bela, a culpa não é dos homens rudes que a narram. É que a
ouvistes da boca de um homem da terra [...]” (Mar morto, p. 9). Especificamente em termos
biológicos, Guma e Lívia são dois mulatos, o que leva Tollendal a afirmar:
Com a maravilhosa ventura de amor entre o mulato Guma e a morena Lívia, a
literatura de Amado adquire um significado ideológico que a paixão do negro
Balduíno pela branca Lindinalva, em Jubiabá, não conseguira alcançar: a afirmação
da mestiçagem como configuração étnica e cultural do Brasil. Trata-se,
efetivamente, de um casal alegórico, que representa a união das classes populares e
promove a exaltação de suas virtudes amorosas (TOLLENDAL, 1997, p. 97).
Tal como visto na seção anterior, a mestiçagem amadiana não pressupõe que haja
ausência de conflitos ou, muito menos, silencia quanto a uma particularidade do racismo
brasileiro, a ideologia do embranquecimento via miscigenação. Novamente, Os pastores da
noite e, principalmente, Tenda dos milagres conformam romances em que, direta ou
indiretamente, Jorge Amado discute com mais profundidade os meandros da questão sócio-
racial brasileira. Ainda que em menor grau, Mar morto permite entrever já algumas
discussões:
Guma levou a notícia a todos os seus conhecidos, e eram muitos, espalhados pelos
diversos pontos do recôncavo. Alguns deram presentes pro menino que ia nascer, a
maior parte desejou felicidades. Também Esmeralda fora à sua casa logo pela manhã
do dia seguinte. Fizera muito escândalo, muita história fiada, que estava tão contente
como se fosse ela mesma, mas quando Lívia foi à cozinha fazer um pouco de café
para eles tomarem, ela arriscou:
- Só eu não topo com um homem que me faça um filho. Sou pesada até nisso.
Homem meu não faz filho... – mostrava um pedaço das coxas, as pernas cruzadas.
Guma riu:
- É só você pedir a Rufino.
- Aquele? E quero lá filho de negro. Estou precisando de um filho de gente mais
branca do que eu pra melhorar a família... (Mar morto, p. 176).
152
Sintomático que esta fala esteja na voz de Esmeralda, única personagem do cais a ser
representada “[...] por traços de comportamento depreciativos, como a disponibilidade, a
lascívia, a aleivosia, a desafeição, a frivolidade” (TOLLENDAL, 1997, p. 94). Ela é, portanto,
aquela que destoa negativamente do meio no qual se insere, como se Amado intentasse
valorizar, por contraposição, as mulheres negras, mulatas e morenas do cais da Bahia, em
especial, Lívia. Cumpre ressaltar ainda o destino reservado a Esmeralda, assassinada por
Rufino em vingança a uma traição – no que se observa, talvez, um ato punitivo do escritor a
tudo o que a personagem representa. Neste sentido, enquanto as viúvas de marítimos – e
mesmo estes – são agraciadas ao final do romance com uma reversão do destino outrora lhes
consagrado, esperança representada por Lívia-Iemanjá, Esmeralda não subsiste nem como
simples lembrança.
É certo que a morte de Esmeralda não produz o mesmo efeito que o empenho de
Archanjo, em Tenda dos milagres, em dessacralizar as teorias raciais do Dr. Nilo Argolo,
mas, incorrendo novamente na comparação entre as duas narrativas, o apagamento da mulata
precede o de Tadeu Canhoto, afilhado de Archanjo. Em Mar morto há o desejo do
embranquecimento e a personagem que lhe dá vazão é condenada à morte violenta seguida
por seu esquecimento. Já em Tenda dos milagres, Tadeu após conseguir se formar em
Engenharia, casa-se com Lu, personagem branca e de família tradicional, com o que,
rapidamente, galga uma ascensão social que o leva a afastar-se completamente da identidade
que cultivava quando ainda pertencente ao universo do Pelourinho. Em outras palavras, Tadeu
busca intensamente branquear-se. Embora não incida sobre ele qualquer violência, o seu
destino é o mesmo de Esmeralda, ou seja, o esquecimento. Assim, é possível inferir na
postura do escritor um recorrente ato condenatório ao desejo do embranquecimento, com o
que se configura um ideal de mestiçagem voltado para a negritude.
Neste ponto, é importante frisar a relativa discordância de Tollendal. Para o
pesquisador:
Pensando na possibilidade de preconceito étnico - ou, pelo menos, de preferência
estética pela mulher mestiça de traços embranquecidos, numa sociedade em que,
como dizem as canções, o cabelo me crimina - convém lembrar o fato de Lívia ser
morena, de cabelo liso (TOLLENDAL, 1997, p. 94. Grifos do autor).
A compleição física de Lívia parece cumprir uma outra função que não a do
“preconceito étnico” ou da “preferência estética pela mulher mestiça de traços
esbranquiçados”, como preconiza Tollendal. Segundo Salah (2008) há uma forte similitude
153
entre o imaginário popular acerca de Iemanjá e as representações femininas em Mar morto.
Ele afirma que “até mesmo certos traços característicos da deusa como, por exemplo, os
cabelos compridos e molhados, são reencontrados na evocação das personagens femininas e,
sobremaneira, de Lívia” (SALAH, 2008, p. 103). A interpretação do pesquisador francês
radicado na Bahia é pertinente uma vez observado o desfecho do romance, quando os
marítimos veem em Lívia a própria Janaína. Assim, a constituição física da personagem, em
destaque seus cabelos lisos sempre molhados de mar, é condizente com a perspectiva
amadiana de entrecruzar o sagrado e o humano na convergência entre Lívia e a deusa
iourubaiana109
.
A possibilidade de preconceito étnico levantada por Tollendal é também refutada se
analisada em contraste com a composição identitária de Guma e Lívia, bem como aquela que
emana do cais. Embora Amado os caracterize como mestiços, faz com que as personagens se
reconheçam e se assumam como negras. Há, desta forma, que se ressaltar o tratamento
carinhoso que Guma devota a Lívia, chamando-a negra (Mar morto, p. 159; 164); o orgulho
com que os homens do cais ouvem as histórias de Rosa Palmeirão e a chamam igualmente de
negra (Mar morto, p. 60) ou quando divisam em Guma alguém merecedor da distinção: “Esse
aqui é Guma, negro valente de verdade” (Mar morto, p. 103). Noutro plano, a afirmação da
negritude ocorre também através da religiosidade. Guma e Lívia além de devotos de Iemanjá,
são assíduos às festas do candomblé de Pai Anselmo, do qual o marítimo é ogã, cargo de
responsabilidade:
Não era tão fácil assim ser da macumba de Pai Anselmo e era preciso ser bom
marítimo para um negro se sentar entre os ogãs de Iemanjá cercado pelas feitas que
dançavam. Guma, mulato claro, de cabelos longos e morenos, se sentaria em breve
numa das cadeiras que ficavam em volta do pai-de-santo, na sala do candomblé
(Mar morto, p. 80).
Observa-se que os dados apresentados acima apontam na direção de uma proximidade
sinonímica entre os termos “mulato”, “mestiço” e “negro” de modo a configurarem a
representação da mestiçagem no romance como uma abordagem que rejeita o branqueamento.
Convém retomar a noção de uma tríade esquerda-vida popular-liberdade como
estruturante da obra amadiana. Em Jubiabá ela se mostra imponente, abrindo horizontes
109
Os orixás, originalmente, não são representados por figuras humanas, mas por uma série de elementos que
lhes são consagrados. A imagem, portanto, de Iemanjá como de uma mulher branca e loira, sob uma túnica
branca e azul, ou ainda morena de longos cabelos lisos, é originária de um contexto ocidental, certamente
influenciada pelas imagens de santos católicos. “Iorubaiana” tenta, por aglutinação, dar conta desta dupla origem
do imaginário sobre Iemanjá, tanto ioruba quanto baiana.
154
inexplorados nos três romances anteriores. Falha, entretanto, no equilíbrio. Em um primeiro
momento, os termos “liberdade” e “vida popular” estão em destaque enquanto o fator político
metaforiza-se na recusa de Baldo ao trabalho. Durante a greve ocorre uma inversão semântica
na narrativa, o que favorece a hegemonia do componente político – ao qual se agrega o
sentido de liberdade. Rejeita-se, assim, a vida popular. Já em Mar morto, os três vértices da
tríade permanecem em perfeito equilíbrio, resultando inclusive no amálgama entre o político e
o popular – outrora excludentes –, com a ideia de liberdade permeando e regulando a relação.
Ora, é justamente do equilíbrio desta tríade que decorre a autonomia do representado,
tal como proposta aqui, ou seja, na condição de uma não interferência da ideologia do escritor
no universo das personagens representadas. As personagens de Amado, em geral, são políticas
por natureza, e, na mesma medida, são também populares. Contemplar estas duas faces, a
política e a popular, sem que uma resulte em exclusão da outra, o correto limite entre a
interferência ideológica e o retrato de um povo, foi um aprendizado que se estendeu por três
romances e que deságua na confluência político-mítica de Lívia-Iemanjá110
. Ao contrário do
que acontece na história de Balduíno, nesta outra – entrecho das vicissitudes dos que vivem
no e do mar –, o milagre de Dulce irmana-se ao milagre dos marítimos, a perspectiva
ideológica casa-se com a expressão religiosa popular – do que advém a representação do que
se designou aqui como negro-sujeito.
Buscou-se, nesta seção, discutir os cincos primeiros livros de Jorge Amado na
tentativa de compreender como seu universo ficcional evoluiu e engendrou rupturas e
continuidades no que tange à mestiçagem. Destarte, observou-se que, livro a livro, a figura do
negro – e, por conseguinte, a do mestiço – sofreu um processo contínuo de ressignificação. O
negro degenerado de 1931, cuja representação constitui uma metonímia que define o próprio
país, cedeu ao proletário de 1933 e 1934, que se amplia no negro ideológico de 1935 e,
finalmente, no negro-sujeito de 1936.
Importante frisar que nenhum dos romances analisados nesta seção objetiva uma
proposta de sociedade calcada na ideia de mestiçagem. A rigor, nem Mar morto que, a
despeito de suas muitas particularidades, configura-se em uma narrativa de natureza político-
ideológica.
Jerônimo Soares. José Cordeiro. O casarão nº 68 da Ladeira do Pelourinho. Antônio
Balduíno. Guma e Lívia. Emblemas de uma literatura nascente, contundente e polêmica. O
110
Exclui-se da lista O país do carnaval por serem outros seus referenciais.
155
primeiro, símbolo do que se abandonou, do que se rejeitou, por falso e torpe. Os três
seguintes, marcas de um tempo, de uma utopia. Os dois últimos, prenúncios do porvir.
156
PARTE II
DO POVO NEGROMESTIÇO
157
3 DOS NEGROS SENTIDOS EM OS PASTORES DA NOITE
Canto e danço que dará
Caetano Veloso. Odara.
Uma vez estabelecidos e estudados os percursos ascensionais da personagem e da
cultura negras na ficção amadiana, divisados a partir dos movimentos iniciais galgados pelo
escritor, cabe agora observá-las noutra conjuntura, qual seja, aquela cuja representação do
povo vincula-se e alude à mestiçagem como a um seu princípio estruturante, quiçá criativo111
.
Desta forma, cumpre indagar nesta seção acerca dos sentidos fundacionais oriundos da
miscigenação, isto é, a respeito da semântica que tal processo empresta à realidade narrada
por Amado, bem como inquirir em relação à própria natureza desta mestiçagem
ficcionalizada: quais valores a engendram; qual mestiço projeta?
Dos questionamentos acima, deriva um terceiro a ser ponderado – o qual resume,
permeia e direciona todas as páginas até aqui escritas e, de forma mais verticalizada, aquelas
ainda por vir neste estudo. Refere-se, pois, ao negro e ao lugar a ele destinado por Amado no
universo ficcional que o escritor baiano alcança enunciar. Compete saber: seria um universo
tão somente mestiço, em que o adjetivo incitaria dúvidas, sempre justificáveis, quanto às
representações advindas da qualificação ao substantivo112
? Ou, por outro lado, seria mais
interessante e mesmo producente designá-lo negromestiço, possibilidade linguística cuja
dupla adjetivação sobre o mesmo vocábulo, “universo”, traduziria a pujança da presença
negra, norte dos sentidos condicionantes da noção amadiana de mestiçagem?
111
O efeito ambíguo e consequentemente incerto que o pronome possessivo “seu” causa a esta última oração é
de todo proposital. Refere-se tanto ao termo “representação” quanto àquele que lhe especifica o alcance, “povo”.
Para Jorge Amado, e ele o defende em diversas ocasiões, a mestiçagem é o grande fator formativo do povo
brasileiro, da cultura e da unidade nacionais. Em entrevista a Sandra Bagno (1993, p. 77), por exemplo, o
escritor baiano afirma acreditar “[...] verdadeiramente que exista uma identidade, uma originalidade cultural
brasileira, que resulta exatamente da mistura. O fato significativo e determinante da nossa formação nacional é a
mistura. [...] é esta mistura de sangue e raças que dá uma marca característica ao Brasil, diria que é o nosso
humanismo”. ([...] davvero che esista un‟identità, un‟originalità culturale brasiliana, che risulta esattamente dalla
mescolanza. Il fato significativo e determinante della nostra formazione nazionale è la mescolanza. [...] è questa
mescolanza di sangue e razze che dà un marchio caratteristico al Brasile, vorrei dire che è il nostro umanesimo.
Tradução nossa para fins deste trabalho)”. Por outro lado, e por extensão, a mestiçagem desponta, a partir de
Gabriela, cravo e canela, como uma representação cada vez mais prenhe de sentidos e projeções acerca da
realidade brasileira, de modo a configurar-se em um a priori de algumas narrativas amadianas – especialmente
Os pastores da noite e Tenda dos milagres. 112
A considerar a problemática dos usos conservadores e ideológicos do fato biológico-cultural da miscigenação
no Brasil, investigada ainda que de forma lacunar na primeira seção deste trabalho, os termos “mestiço”,
“mestiçagem” e correlatos devem sempre inspirar dúvidas e cuidados.
158
Tome-se por objeto o romance Os pastores da noite, significativo para a abordagem
aqui proposta. Talvez não seja exagero afirmar que, publicado em 1964, este livro constitua
uma primeira imersão de fôlego amplo da literatura amadiana no tema e na defesa da
mestiçagem – o que é feito principalmente via sincretismo religioso113
em O compadre de
Ogum, segunda narrativa a compor e contar o universo dos vagabundos da Bahia114
.
Pode-se observar, no que concerne a este romance, um esforço de Jorge Amado em
preservar, através da escrita, a imagem/memória de um mundo vivido à parte daquele
regulado pelas diretrizes de uma ordem burguesa. Assim, enfoca vivências que tendem a
desvanecer ante a absolutização da ideia de “moderno”, cuja sanha mira constantemente o que
é considerado vinco do “passado”. A aspiração em registrar um modo de vida não burguês, o
escritor baiano a revela em entrevista a sua tradutora francesa:
Os Pastores da Noite é um romance sobre os vagabundos. A maioria de meus
personagens é de vagabundos. E já disse mais de uma vez, não haverá lugar para
eles no mundo de amanhã. Infelizmente. E o mundo perderá muito de sua poesia.
[...] Todo o meu esforço tende a conservar a memória de um tempo que está
acabando, que em parte já acabou. [...] é um desejo de salvar a lembrança das coisas,
e creio que é uma das razões pelas quais meus livros são tão populares
(RAILLARD, 1990, p. 310-311).
Resulta da veleidade amadiana de preservação desta memória um romance tripartido
cujas narrativas possibilitam leituras com certa autonomia em relação umas às outras, mas
que, quando observadas em conjunto, explanam e eternizam de forma coesa aspectos distintos
de uma mesma vivência em comum. Neste sentido, História verdadeira do casamento do
Cabo Martim, com todos os seus detalhes, rica de acontecimentos e de surpresas ou Curió, o
romântico, e as desilusões do amor perjuro, que vem a ser a narrativa de abertura do
romance, deslinda as relações íntimas das personagens para salvaguardar na retentiva literária
113
Endossa-se Goldstein (2003, p. 211), em nota de rodapé. A antropóloga considera: “[...] problemático falar
em sincretismo, já que o termo pressupõe a existência de conjuntos „puros‟ ou „primários‟ que se fundem. Utilizo
o termo porque Amado o emprega e por falta de outro melhor para designar ecletismo e amálgama de tradições
heterogêneas”. 114
Importante frisar que o termo “vagabundo”, utilizado às largas pelo escritor baiano, não deve ser entendido de
forma pejorativa uma vez que, como já exposto quando empreendida a análise de Jubiabá, o que está em
primeiro plano no universo literário amadiano não é a afirmação dos valores capitalistas de uma ordem burguesa
de mundo, mas o contraponto a esta configuração, daí a valorização do vagabundo, ou seja, daquele à margem
dos parâmetros sociais regulados pela burguesia. Além disto, o escritor baiano declara em entrevista a Raillard
(1990, p. 270): “[...] mas acho que sou, mais do que qualquer outra coisa, o romancista dos vagabundos e das
putas. Esta humanidade é a que tem mais peso em meus livros, talvez porque seja a mais abandonada, carente de
defesa na sociedade, carente de classe, de sindicatos. Não há uma classe nem de vagabundos nem de prostitutas.
Estas [...] são banidas da sociedade pelos regimes capitalistas, socialistas, feudais; são perseguidas em todos os
regimes, consideradas uma doença social. E os vagabundos também. São personagens que me apaixonam, trato-
os com cuidado especial em meu trabalho, e realmente estou próximo a eles. É por isso que eu gosto do livro que
intitulei Os Pastores da Noite”.
159
a efígie de um cotidiano regulado por valores dimanados da amizade. Sem prescindir de focar
ainda a questão da amizade, uma vez que decorre justamente da necessidade de preservá-la
que Ogum resolve ser compadre de Massu, o sincretismo religioso, associado à mestiçagem, é
evocado na segunda narrativa, Intervalo para o batizado de Felício, filho de Massu e Benedita
ou O compadre de Ogum. A terceira narrativa, A invasão do morro do Mata Gato ou Os
amigos do povo, possui um tom mais político. Entrecortada por intensa ironia, situa a
formação de um bairro popular no Morro do Mata Gato, tomado por invasão, e descortina as
artimanhas e os estratagemas políticos de utilização da imagem do povo como formas de
manutenção e acréscimo de prestígio e poder. Note-se que esta é a única das três narrativas
que faz referência à amizade já no título, entretanto, é igualmente a única em que os laços de
afinidade são postos em cena ironicamente, significando antes o falseamento destas relações,
situação que deriva de finalidades meramente eleitoreiras. Tal ponto de corte que se instaura
entre o mundo das instituições burguesas e o seu avesso, o popular, denota as possibilidades
de união e solidariedade presentes entre os desbravadores do Mata Gato e alhures, mas
impossíveis em meio aos conchavos existentes entre governadores, prefeitos, deputados,
vereadores, bicheiros, jornalistas, policiais e respectivas esposas.
Em Os pastores da noite, a tensão interposta ao mundo popular e àquele cultivado
pelas elites e pela classe média – problemática na qual se baseia parte da literatura amadiana –
põe em constante relevo a ideia de amizade. Este ponto de divergência entre mundos não o é
sem motivos uma vez que, para Amado, a amizade corresponde ao “[...] sal da vida” (Os
pastores da noite, p. 96). Circunscrevê-la, portanto, ao âmbito das relações entre vagabundos
e prostitutas e torná-la tão somente aleivosia em meio aos mandatários da cidade conformam
artifícios amadianos para, a partir da amizade, engrandecer os habitantes do morro em
detrimento daqueles da “cidade” – talvez haja nesta característica um resquício daquele
maniqueísmo mais ou menos presente de Cacau a Os subterrâneos da liberdade, quando da
militância política a separar o futuro socialista do presente capitalista.
A constatação acima seria de pouca monta a uma investigação sobre a
(negro)mestiçagem na obra de Jorge Amado não fosse o escritor baiano ter conferido matizes
religiosos, sociais e históricos para o feitio e enraizamento destes inquebrantáveis elos de
amizade. Não se pretende, sobremaneira, nem com o enfoque dado e nem com a afirmação
última, propor que as relações de amizade sejam apanágio único de um povo, uma cultura ou
uma determinada condição social; muito menos que Amado assim as entendesse ou
vislumbrasse: a grande pluralidade de amigos arrolados pelo romancista baiano nas páginas
160
de Navegação de cabotagem confirma o óbvio115
. Entretanto, talvez seja possível inferir, nos
contornos que delimitam tais laços, uma valorização não apenas da amizade, mas também – e
principalmente – dos sujeitos que compõem estas inter-relações.
Ao avançar na possibilidade expressa, é interessante atentar nas personagens que
figuram entre as páginas de Os pastores da noite – ou, pelo menos, naquelas que são postas
em maior evidência ao longo do romance. Há de tal forma uma convergência entre elas que se
pode mesmo designá-las como “[...] uma espécie de protagonista plural, um vasto coro em
que mal se destaca algum solista, tal a força da soma de todas as vozes” (MACHADO, 2006,
p. 80). É justamente deste “protagonista plural”, ou seja, desta coletividade social quase
individuada, que decorre uma imagem deveras significativa daquilo que se propõe ser a
mestiçagem amadiana:
Como dizia Jesuíno, pobre já fazia demais com viver, viver resistindo a tanta
miséria, às dificuldades sem fim, àquela extrema pobreza, às enfermidades, à falta
de toda assistência, viver quando já não existiam condições senão para morrer. No
entanto, viviam, era uma gente obstinada, não se deixavam liquidar facilmente. Sua
capacidade de resistência à miséria, à fome, às doenças, vinha de longe, nascera nos
navios negreiros, afirmara-se na escravidão. Tinham o corpo curado, eram duros na
queda (Os pastores da noite, p. 262).
A unidade deste “protagonista plural” é enleada em duas direções, quais sejam, uma
que se reporta ao passado e remonta à ascendência; outra que mira o presente e descreve o
cotidiano – uma diacrônica, outra sincrônica. A primeira esclarece acerca da origem e do
histórico comuns desta pluripersonagem, isto é, refere-se aos tumbeiros e à resistência diária e
secular empreendida contra a despersonalização oriunda tanto do sistema escravista quanto do
seu prolongamento pós-1888. A despeito das diferenças fenotípicas existentes entre os
habitantes do Mata Gato, pouco significativas para Jorge Amado, todos enformam, portanto,
115
A título de curiosidade, apenas: em Navegação de cabotagem, Amado relata um interessante conto georgiano
cujo tema é justamente a amizade. O conto faz referência a um arqueólogo que percorre o cemitério de Tblissi
fazendo anotações a respeito das datas de nascimento e morte, assim como das inscrições fúnebres das pessoas
ali sepultadas. O pesquisador notou, entretanto, que havia uma recorrente discrepância entre o período de vida
indicado pelas datas e aquele reportado pelas inscrições. As datas marcavam, às vezes, períodos longos de vida,
apesar das inscrições pontuarem apenas poucos anos. “De lápide em lápide constatou o absurdo: de todos se
dizia terem vivido um tempo bem menor que aquele delimitado pelas datas de nascimento e morte, todos à
exceção de dois defuntos, ambos em covas pobres, uma costureira Kátia dos Anzóis Carapuça, um carteiro de
segunda classe, Alexis Ignatiev, neles as datas quase coincidiam. Tomado de indignação o sábio dirigiu-se ao
zelador do cemitério, velho sem idade [...]. O velho tossiu, fitou o visitante, explicou: só se vive o tempo da
amizade, não sabia? O mais é tempo perdido, inútil e vazio, não é vida, apenas purgatório, quando não é
inferno” (Navegação de cabotagem, p. 546. Grifos do autor). Apesar das datas e inscrições coincidirem apenas
em covas pobres, o que denota a existência da amizade em espaços em que falta a dimensão da riqueza – o que
se explica por ser um conto com uma moral anticapitalista, dos tempos da extinta União das Repúblicas
Socialistas Soviéticas – o que sobressai como lição é menos uma ideologia socialista do que o valor inerente à
amizade.
161
uma representação negra, quanto mais em face do embate contra os “[...] os brancos lá
embaixo, brancos de ricos e não de cor [...]” (Os pastores da noite, p. 268).
Esta diferenciação apresentada entre brancos e negros, como a associá-los
respectivamente a ricos e pobres, merece algumas considerações. Uma vez estudado o
romance Jubiabá e exposto o percurso que Baldo empreende de uma identidade negra para
uma identidade de classe, movimento em que se verifica um esvaziamento da primeira
identificação e a substituição dos parâmetros discriminatórios denunciados pelo romance, que
cambiam de “raça” para classe social, torna-se difícil não considerar a continuidade deste
pensamento em Os pastores da noite. Ainda mais quando, em entrevista a Alice Raillard
(1990), Amado discorre sobre o povo brasileiro e afirma que este é a própria negação do
racismo – o que não exclui que haja racistas no país – e que fica feliz do encaminhamento
dado a Jubiabá.
Nesta perspectiva, assim como na história de Antonio Balduíno, o vocábulo “negro”
acarretaria não um sentido estritamente racial, mas uma conotação de explorado em face do
branco explorador – imagem esplendidamente sintetizada por Caetano Veloso e Gilberto Gil
na letra de Haiti, canção que se refere a uma fila de soldados que, embora fossem quase todos
pretos, representavam a força mantenedora de uma ordem social branca, posto darem porrada
em malandros e ladrões tratados como pretos, “só pra mostrar aos outros quase pretos / (e são
quase todos pretos) / e aos quase brancos pobres como pretos / como é que pretos, pobres e
mulatos / e quase brancos quase pretos de tão pobres são tratados”.
Em geral, conceber as distinções entre brancos e negros nos parâmetros acima
enfraquece o teor majoritariamente racial da discriminação existente no Brasil para pensá-la
em termos econômicos, o que ocasiona a falsa sensação de uma sociedade para qual a
epiderme não produz sentidos negativos. Desta forma, não existiria a necessidade de um
combate sistemático ao racismo, apenas às desigualdades sociais – discurso político
implementado pelo Estado Brasileiro até o advento das políticas de ação afirmativa, cujas
discussões em torno de sua aplicabilidade/constitucionalidade seguiram-se ao período de
redemocratização do país, intensificando-se a partir de meados da década de 1990.
São inúmeras as entrevistas em que Amado declara ter se dedicado com afinco à luta
contra o racismo, a começar por aquela concedida a Raillard (1990), já tantas vezes citada.
Naquela conversa, o romancista justifica a honra do ingresso na hierarquia de vários Terreiros
justamente por ter defendido “[...] os direitos dos negros, do povo e dos candomblés. A luta
de toda minha vida contra o racismo [...]” (RAILLARD, 1990, p. 82). Em outro momento,
162
interpelado pelo The Unesco Courier se o processo de mestiçagem ocorrido no Brasil teria
abolido o racismo, Amado responde:
Apenas celebramos o centésimo aniversário da Abolição da escravatura. Isto é para
dizer que há apenas cem anos negros ou principalmente negros eram ainda escravos.
As coisas têm progredido enormemente, mas ainda há muito a ser feito. A divisão
entre negros e brancos ainda coincide até certo ponto com a divisão entre os muito
ricos e os muito pobres, e isto não favorece o crescimento de sentimentos fraternais.
Isto significa que precisamos fazer tudo que pudermos via esforços políticos
democráticos, reforma social e ação cultural para resolver estes problemas e tornar
as pessoas mais próximas (THE UNESCO COURIER, 1989, p. 7)116
.
Noutra entrevista, desta vez para o jornalista Antonio Roberto Espinosa, publicada em
1981 na série “Literatura Comentada” da Editora Abril, Jorge Amado afirma ter descoberto o
problema racial no Brasil aos quinze anos, em 1927, quando passou a conhecer e a integrar-se
à vida popular baiana – reconhecimento que se deu em grande parte através da violência
contra as religiões de matriz africana. O escritor baiano é enfático:
Mas eu nunca tive dúvidas: o problema racial no Brasil é consequência do problema
social. Não existe um problema racial isolado do contexto social. Se você isolar, vai
errar na apreciação do problema e na busca das soluções. A solução não é você botar
os pretos e os brancos a se matarem entre si.
[...] Não há outra solução para o problema de raça no mundo senão a mistura. Não
há outra e, se alguém tiver, que me apresente... quero ver! Não é um racismo
diferente, seja racismo preto, seja racismo árabe ou judeu, que vai acabar com o
problema. Você não acaba com o racismo botando racismo contra racismo (JORGE
AMADO, 1981, p. 10).
Ao confrontar os dois últimos excertos transcritos, nota-se que há uma similaridade
em torno da vinculação do preconceito racial às profundas desigualdades sociais, o que, no
entanto, não impede que o autor reconheça a existência e atuação do racismo no Brasil, desde
que não seja considerado isoladamente. Esta visão da sociedade brasileira permite a Amado
imaginar o país como uma sociedade não racista: “Qualquer tendência para o racismo é
combatida por uma tendência geral para a mistura e o sincretismo. Em vez de ser
profundamente enraizado, institucionalizado e encorajado, o racismo tende antes a ser
116
“We have just celebrated the hundredth anniversary of the abolition of slavery. That is to say that only a
hundred years ago black or mainly black people were still slaves. Things have progressed enormously, but a lot
remains to be done. The white/black divide still coincides to some extent with the division between the very rich
and the very poor, and this does not exactly favour the growth of fraternal feelings.
This means that we must do all we can through democratic political struggle, social reform and cultural action to
resolve these problems and bring people closer together” (Tradução nossa para fins deste trabalho).
163
neutralizado pelo movimento para a mistura” (THE UNESCO COURIER, 1989, p. 6)117
. Para
Amado, embora haja racismo no país, o Brasil não vivencia uma tendência estrutural para o
preconceito de raças – constatação que o autor sintetiza na entrevista concedida a Raillard:
Nos Estados Unidos há milhares e milhares de anti-racistas, talvez possamos até
falar em milhões, tanto entre brancos quanto entre negros. Mas há uma filosofia de
vida racista em todos eles. No Brasil é o contrário: há milhares e milhares, centenas
de milhares de racistas, principalmente nas camadas superiores da sociedade, mas o
povo, este, não é racista. Chamar o povo brasileiro de racista é uma ignomínia e uma
calúnia (RAILLARD, 1990, p. 93)118
.
Em suma, através da óptica amadiana é possível vislumbrar um Brasil pontilhado por
práticas racistas, vinculadas e norteadas pelas desigualdades sociais, mas cuja filosofia de
vida apontaria para o oposto, ou seja, ao invés da estrita separação racial, a forte presença da
mistura de povos, credos e culturas. Seria natural que despontasse desta perspectiva um
patente paradoxo, contudo, Jorge Amado parece querer alimentar uma compreensão ao
mesmo tempo totalizante e pontual do fenômeno do racismo119
. Totalizante uma vez que o
romancista pretende explicar o preconceito de raça como oriundo das desigualdades sociais,
nascido dos conflitos instaurados por uma sociedade que se organiza de forma excludente.
Assim, no interior de uma exclusão ampla, total, que opera uma clivagem entre o “muito rico”
e o “muito pobre” ganha relevo uma outra, específica e direcionada, que atua no
distanciamento do branco e do negro, ainda que à revelia da tendência natural do país como
produto da mestiçagem. Desta forma, conquanto seja um braço de uma exclusão maior, esta
sim de caráter estruturante, o racismo fomenta determinadas práticas cotidianas como a
perseguição religiosa, por exemplo, e possibilita a existência de “milhares e milhares,
centenas de milhares de racistas”.
Por outro lado, Jorge Amado tende igualmente a pensar o racismo de forma pontual.
Ou melhor, se o romancista apreende a exclusão de uma maneira unificada, totalizante, a ação
a ser empreendida em resposta às distâncias instauradas pelos preconceitos não é única, mas
vária – dupla, ao menos. Confrontando novamente as entrevistas publicadas pelo The Unesco
Courier e também pela edição sobre Jorge Amado da Coleção Literatura Comentada, observa-
117
“[...] any tendency towards racism is countered by a general tendency towards intermingling and syncretism.
Instead of being deep-rooted, institutionalized and encouraged, racism tends rather to be defused by the
movement towards mixing” (Tradução nossa para fins deste trabalho) 118
A mesma fórmula é repetida, com alguma modificação, à página 500 de Navegação de cabotagem. Há,
porém, uma variação interessante, não pelo que acrescenta, posto não acrescente nada, mas pela maneira
enfática, explícita, com a qual foi escrita. Após afirmar a impossibilidade de chamar o povo brasileiro de racista,
quando na verdade este seria própria negação do racismo, Amado completa: “Digo o povo, não incluo as elites”. 119
O vocábulo “pontual” aí empregado não se refere a uma concepção exata ou precisa do racismo por Jorge
Amado, antes evoca as acepções de “ponto” ou “tópico” a ser apresentado ou debatido.
164
se que ambas apontam para encaminhamentos diferentes da questão mas, ao invés de
divergirem e se oporem, complementam-se. Na primeira, Amado aborda o racismo, mas
enfoca as desigualdades sociais. Solicita, então, “esforços políticos democráticos, reforma
social e ação cultural” como meios de combatê-las. Já na segunda, há uma inversão nos
termos discutidos: o problema social é trazido à baila, mas o foco recai sobre o preconceito
racial. Com a mudança de problema, também a solução aventada pelo escritor é outra: a
mestiçagem, a mistura120
. Dito de outra maneira: Amado se propõe compreender o racismo
não apenas em sua manifestação instantânea, mas em uma suposta outra origem, da qual se
ramifica e se define. Uma vez o fenômeno alcançado em sua hipotética natureza total,
compete enfrentá-lo de forma a atingi-lo igualmente no cerne e nas ramificações que,
porventura, hajam. É sob este aspecto, o do embate, que a compreensão amadiana do racismo
e, consequentemente, da exclusão assumem um caráter pontual, isto é, baseada em pontos de
ação contra os preconceitos.
Evidentemente, a mestiçagem por si só é incapaz de neutralizar um fenômeno tão
complexo quanto o racismo e pensá-la de forma contrária é atribuir natureza política a um
processo de cunho biológico/cultural. Em verdade, não faz qualquer sentido pressupor uma
ação benfazeja da mestiçagem contra as restrições de raça uma vez que, se assim ocorresse,
por lógica já não existiria racismo no Brasil. É preciso considerar, no entanto, que a visão
amadiana não é tão ingênua, nem tão simplista – embora permaneça falha. Ao vincular o
racismo às iniquidades sociais, concebendo-as como origem e cerne das injustiças de caráter
racial, a mestiçagem, ainda que investida de forte teor político, já não é suficiente para
erradicar os efeitos dos preconceitos de raça. Isto porque, na medida mesma em que ela
supostamente investisse contra o racismo, a organização desigual da sociedade brasileira,
mantida intacta, lhe travaria prontamente o ímpeto revolucionário. Para ser plena, a
mestiçagem amadiana necessitaria antes de medidas políticas com vistas a impetrar o
abrandamento das tensões sociais, bem como precisaria assegurar à personagem o processo
120
Convém ressaltar que na entrevista publicada pelo The Unesco Courier, o escritor Jorge Amado também
procura enfatizar a mestiçagem. Quando perguntado se a mistura seria a única solução para o racismo, o
romancista responde: “Absolutamente. Desde muito jovem eu tive que lutar contra uma variedade de injustiças e
preconceitos e, em particular, contra o racismo, que é sem dúvida o mais desprezível de todos os preconceitos.
Estou convencido que, a longo prazo, só existe uma única solução – absorver o racismo na mistura de raças”
(The Unesco Courier, 1989, p. 7). (“Absolutely. From a very early age I have had to fight against a variety of
injustices and prejudices and, in particular, against racism, which is without doubt the most contemptible of all
prejudices. I am convinced that, in the long run, there is only one real solution - to absorb racism in the mixture
of races”. Tradução nossa para fins deste trabalho). Cumpre ressaltar que, apesar da pergunta e da resposta
considerarem a mestiçagem como única solução para o racismo, não se encontra aí uma negação do proposto
como antídoto para o problema das desigualdades sociais, o que valida o argumento desenvolvido nesta
pesquisa.
165
histórico – daí as personagens criadas por Amado constituírem seres que resistem e não
apenas se miscigenam.
Em suma, apenas quando houver uma significativa diminuição das distâncias sociais a
separar o branco e o negro, quando ambos estiverem próximos, do ponto de vista econômico,
a mestiçagem poderá, enfim, diluir o racismo. Não à toa, a mestiçagem redentora amadiana é
sempre um projeto de futuro, nunca uma realidade presente. Em tempos hodiernos, conquanto
não proscreva o racismo e discriminações outras, é de sua alçada promover e cultivar uma
consciência concomitantemente coesa e plural que Amado localiza entre os “muito pobres”
em franca oposição às quimeras de pureza e fidalguia dos “muito ricos”121
.
Eis, portanto, uma importante diferença entre os pensamentos amadiano e gilbertiano.
Como visto na primeira seção, Freyre advoga em Casa-grande & Senzala uma compreensão
da mestiçagem como processo histórico contínuo que já teria corrigido as distâncias existentes
entre a casa-grande e a senzala, entre o branco e o negro. Para Amado, no entanto, as
distâncias sociais são flagrantes e é justamente o povo oprimido o protagonista da obra que o
baiano logrou erigir. Amado concorda com a investidura redentora sobre a mestiçagem
proposta por Freyre, toma-a como solução para o racismo, mas a projeta em um porvir
indefinido, no qual as distâncias sociais entre o rico e o pobre já não sejam operantes. É, pois,
a sua utopia.
É de se considerar ainda que a ideia de mestiçagem para o romancista baiano é de
feição muito mais cultural do que estritamente racial – neste sentido, define antes uma cultura
mestiça, a partir da qual nasceria um povo também mestiço, do que propriamente o inverso.
Povo, portanto, para além da definição sociológica que se depreende da leitura de Amado,
qual seja, a de grupos sociais à margem, é caracterizado principalmente pela cultura que o
lastreia. É, pois, justamente a partir desta primazia cultural que a literatura amadiana busca
descrever e projetar um povo especial, posto que uno e diverso: um amálgama de
alteridades122
. Visto de longe, este povo constitui algo uniforme, mas, se observado
atentamente, de perto, estrutura-se em torno de uma unidade baseada na manutenção e no
121
Coesa por se tratar de uma consciência que unifica o povo amadiano em torno de uma identidade, a
negromestiça; plural por não ser esta uma identidade excludente, mas aberta às alteridades. 122
Sobre este aspecto, Machado (2006, p. 139) pontua: “Jorge Amado não está pregando em sua obra uma
mestiçagem apenas física, nem tampouco fazendo uma celebração adocicada das violências sexuais de senhores
contra escravas culminando numa „mulatice‟ pitoresca – ou em suas continuações e permanências na sociedade
brasileira contemporânea. Fala de outra coisa. O romancista baiano parte da constatação de nossa incontestável
mistura étnica, para então discernir a mestiçagem cultural como um traço essencial de nossa identidade. Sua
utopia defende a abolição do domínio exercido pelo erudito sobre o popular, recusa a autoridade calcada na
hierarquia, mas propõe em seu lugar o reconhecimento, a incorporação respeitosa e a fusão das diferentes
contribuições culturais dos tantos plurais que constituem o Brasil”.
166
respeito às idiossincrasias – modelo cujo exemplo mais explícito talvez seja o romance Tocaia
Grande, de 1984.
Sem adentrar mais profundamente na discussão desta obra, é importante destacar o seu
teor de narrativa fundacional, como Quintana (2001, p. 108) salienta: “[...] esta novela
muestra que precisamente la fundación del país se debe a este mestizaje, sin ella Brasil nunca
hubiera surgido como nación […]". Sobre este mesmo livro, cabe ainda reproduzir um
comentário de Ana Rosa Ramos (2004, p. 94) que, por mais não seja, ajusta-se também a Os
pastores da noite: “Tocaia Grande [...] não se define [...] pela conformidade a um modelo
predeterminado – um modelo de alto para baixo – mas pela vontade dos sujeitos de se
afirmarem e de se representarem, a si próprios”123
.
Cumpre agora retomar o ponto inicial desta digressão, ou seja, o trecho transcrito de
Os pastores da noite em que o narrador considera os mandatários da cidade como brancos por
serem ricos, não exatamente pela cor que ostentam. Cogitou-se, em face daquela passagem,
que as perspectivas presentes nos romances Os pastores da noite e Jubiabá seriam, de alguma
forma, parelhas. Há em ambos, sem dúvida, certa semelhança no que concerne a pensar os
sentidos sociais de “branco” e “negro” a partir de uma clivagem econômica, o que suscitou a
hipótese. Contudo, no romance de 1964 esta perspectiva é muito mais nuançada e flexível do
que aquela presente na história de Baldo.
Em Jubiabá, por exemplo, tal “verdade” assume uma feição nítida de ideologia
política para a qual não há negros e brancos, apenas ricos e pobres distanciados pela ação
nefasta do capital. Como visto na seção anterior, o radicalismo que permeia este pensamento
conduz à negação da própria identidade negra, tornada de classe. Assim, por mais que em
cerca de 90% de sua narrativa Jubiabá possa ser considerado um romance “racial”, voltado
123
Em Tocaia Grande, Jorge Amado se propõe “[...] descobrir e revelar a face obscura, aquela que foi varrida
dos compêndios de história por infame e degradante; [...] descer ao renegado começo, [...] capaz de enfrentar e
superar a violência, a ambição, a mesquinhez, as leis do homem civilizado” (Tocaia Grande, p. 13). Para tanto,
narra a fundação e o crescimento da cidade de Tocaia Grande, processos que se irmanam à afluência de povos
distintos para a localidade, como em uma grande alusão ao processo formativo da nação brasileira. Entretanto,
mais do que um olhar retrospectivo, o romance se caracteriza pela projeção futura das relações narradas no
passado: mais do que afirmar “o Brasil é assim”, Amado parece afirmar “o Brasil poderia ser assim” – Olivieri-
Godet (2009, p. 76) destaca: “Tocaia Grande é alimentada pela utopia da transformação social que projeta um
espaço identitário coletivo no qual cada indivíduo possa se reconhecer”. A matriz negra em Tocaia Grande é
representada por Castor Abduim, também chamado Tição Aceso, Tição Abduim ou apenas Tição. Sobre esta
personagem, novamente Olivieri-Godet (2009, p. 79): “[Tocaia Grande constitui um] Canto épico de uma utopia
de descolonização [...] para figurar as múltiplas facetas de um quotidiano no qual sobrevivem as crenças e os
códigos culturais mais diversos. O universo romanesco amadiano constrói o projeto utópico de um território
culturalmente heterogêneo, solidário e inclusivo. Tição Abduim encarna esse ideal, sendo apresentado como uma
figura central no processo de transformação da comunidade”.
167
para discutir a exclusão da presença africana na sociedade baiana, em suas páginas finais o
romance opera um esvaziamento desta perspectiva: o trabalhador açambarca o negro124
.
Já para o escritor de Os pastores da noite, quase trinta anos mais maduro, apesar do
racismo continuar a ser pensado como um braço da problemática social brasileira, ainda assim
é pelo nome de “racismo” que atende. Em outras palavras, o abandono da diretriz político-
ideológica, que marca os primeiros romances de Amado, possibilita ao grapiúna maior
acuidade na observação dos fatores que tangenciam a exclusão no Brasil de tal modo que ao
invés de se perceber uma negação da identidade negra na construção das personagens,
observa-se o inverso: o realce da ascendência africana, a identificação com os valores
dimanados da cultura negra e, principalmente, uma resistência à capitulação que brota
precisamente destas características – daí a importância do aspecto diacrônico deste
“protagonista plural”.
Já uma segunda diferença em relação às teses gilbertianas pode ser formulada: em
Jorge Amado, principalmente nos livros escritos a partir de Gabriela, a representação do
negro ou do mestiço é sempre traçada de acordo com o objetivo de ressaltar os aspectos de
heroicidade, resistência e insubmissão em face de uma ordem social excludente. Ora, por mais
que pontue aqui e ali exemplos de revolta contra a escravidão, não é exatamente esta a
imagem que Freyre evoca do negro, senão a de alguém conformado e adaptado ao cativeiro,
docilmente submisso ao senhor. Se cotejadas as duas imagens provenientes da representação
do negro, é possível observar dessemelhanças não apenas no que significam como texto, mas
também no que enunciam como fragmentos de processos históricos. Assim, o negro
gilbertiano chancela a ordem colonial para além da condição de Colônia, mantém o poder das
aristocracias e enaltece a história escrita unicamente por mãos brancas. Em Amado, o oposto.
Percebe-se a contestação desta história branca e excludente e, por conseguinte, a tentativa de
estabelecer um novo ponto de vista calcado não nas narrativas da elite nacional, mas nas
populações que vivem nas margens sociais. Trata-se de uma “[...] visão descentrada, que vem
de baixo e da margem, em oposição à perspectiva centralizante, que tenta se impor com força
124
O antropólogo e babalorixá Julio Braga (2006, p. 29) alerta para o perigo de certas expressões que se referem
ao negro e à sua cultura, entre elas a utilizada neste texto, “presença africana”. Segundo o pesquisador: “[...] há
de se suspeitar de conceitos, como „contribuição africana‟ e seus derivados, „o negro no Brasil‟, „a presença
africana‟, „o legado africano‟ [...], tão presentes em textos academicamente elegantes [...]. Eles parecem
comportar, ainda que de maneira subliminar [...] um certo sentido de diminuição, de menor importância ou
menosprezo ao peso das culturas africanas [...] que entraram e garantiram o processo civilizatório brasileiro”.
Cabe, pois, a advertência: o sentido que a expressão “presença africana” tem neste trabalho não é diminuir ou
diluir os processos civilizatórios negros na constituição de uma “civilização africano-brasileira” (LUZ, 2000),
mas o oposto, isto é, evidenciar a pujança destes valores na configuração do Brasil, não obstante as narrativas
oficiais da nação os reduzam a mera „herança‟ ou simples „folclore‟.
168
vinda do alto e se aglutina em torno de um pilar de sustentação que se pretende axial e
pivotal” (MACHADO, 2006, p. 129).
Noutra visada, a abordagem sincrônica deste povo descrito em Os pastores da noite,
além de evidenciar a exclusão vivenciada de uma forma enfática na terceira narrativa a
compor o romance, traz também à baila quais os valores que alicerçam as relações e o
cotidiano desta população. E é justamente neste ponto que se fortalece a hipótese de uma
negromestiçagem em detrimento de mestiçagem, apenas. Cumpre, portanto, compreender
estes valores:
[...] O importante era ir vivendo, não se deixar abater nem entregar-se à tristeza.
Riam e cantavam, num dos barracos estava funcionando uma gafieira, a Gafieira da
Invasão, com animados bailes aos sábados e aos domingos, jogavam capoeira pelas
tardes, saudavam seus orixás nas noites de festa, cumpriam suas obrigações de santo
(Os pastores da noite, p. 263).
Manzatto é certeiro ao assinalar as personagens amadianas como seres festivos.
Segundo o autor, o “[...] homem amadiano é um homem alegre, sempre disposto à festa, à
música, à dança e à comida, como forma de celebrar a vida. Essa alegria vem do simples fato
de estar vivo e do prazer de viver” (MANZATTO, 1994, p. 211). Escapa ao autor, entretanto,
que os elementos por ele destacados não derivam apenas do “simples fato” exposto, embora
dele não prescinda. Ademais, a dança, a música e a comida, numa palavra, a festa
correspondem a valores sagrados do candomblé, portanto estruturantes da vivência
religiosa.125
Nesta perspectiva, a pesquisa empreendida por Amaral (2005) acerca dos sentidos
atrelados à festa no candomblé é esclarecedora. Segundo a antropóloga:
[No caso do candomblé] festa e religião se confundem, expressando sua estrutura
comum através dos eventos que marcam seu acontecimento. Festa e candomblé são
sinônimos, expressando-se um no outro. A festa é estrutural.
[...] Quando a festa é estrutural, caso do candomblé, ela impregna a visão de mundo
de modo total, implicando um estilo de vida marcado pelos valores festivos, como o
ludismo, o dispêndio, a alegria, a sensualidade, a transgressão, etc. que se expressam
também fora do terreiro (AMARAL, 1994, p. 110).
Conforme afirma Marinho (2010, p. 171), a vida “[...] é pra ser vivida com plenitude,
harmonia e alegria, o que explica tanta festa, tantas comidas e bebidas no âmbito religioso do
candomblé. A vida deve ser uma celebração contínua: o céu, o nirvana, é aqui e agora”. 125
Manzatto (1994, p. 213) aponta uma outra leitura para a importância da festa na obra amadiana: “A festa liga-
se com o futuro na medida que anuncia, celebra e constrói a utopia de um mundo diferente, no qual os homens
não serão mais discriminados, marginalizados ou oprimidos, mas todos verão e viverão a igualdade proclamada;
no qual as pessoas não serão condenadas a viver na tristeza causada pelo sofrimento, pela dor, pela
discriminação ou pela miséria, mas poderão viver a alegria da partilha, da igualdade e da fraternidade”
169
O fragmento transcrito de Os pastores da noite apresenta, pois, duas dimensões de
festa: uma sagrada, outra mundana; uma reflete o compromisso religioso, a outra o
compromisso com a vida, com o prazer. Em termos estritamente ocidentais, poder-se-ia falar
que a primeira estaria relacionada ao espírito, à alma, enquanto a segunda, com o corpo –
como se alma e corpo fossem instâncias diferentes, divergentes e mesmo anulatórias entre si.
Do ponto de vista do candomblé, entretanto, há uma relação de complementaridade ou mesmo
uma imbricação entre corpo e alma, de modo que não existe a negação de um no outro. Em
verdade, um se afirma no outro: o corpo físico é, em larga medida, a expressão do Sagrado. É
através do corpo que o orun, o outro mundo, e o aiyê, este mundo, confluem para a dança de
um orixá. Não à toa, o poeta negro Éle Semog (1998, p. 57) tenha escrito: “Quando eu danço /
atabaques excitados, / o meu corpo se esvaindo / em desejos de espaços, / a minha pele negra /
dominando o cosmo, / envolvendo o infinito, o som / criando outros êxtases... / [...] O meu
corpo não é objeto / sou revolução”126
. A dança, portanto, no contexto da festa sagrada, do
xirê, unifica mundos, espaços e tempos: orun e aiyê; África e Brasil, tempo mítico e tempo
presente. O comunicólogo e Obá de Xangô n‟Ilê Axé Opo Afonjá Muniz Sodré afirma:
A festa destina-se, na verdade, a renovar a força. Nas dança (sic), que caracteriza a
festa, reatualizam-se e revivem-se os saberes do culto. A dança, rito e ritmo,
territorializa sacralmente o corpo do indivíduo, realimentando-lhe a força cósmica,
isto é, o poder de pertencimento a uma realidade integrada. Além disso, graças à
intensificação dos movimentos do dançarino na festa, espaço e tempo tornam-se um
único valor (sacralização), e assim autonomizam-se, passando a independer daquele
que ocupa o espaço. A dança é propriamente integração do movimento ao espaço e
ao tempo (SODRÉ, 2002, p. 136).
Desta confluência de tempos e espaços, na qual se reafirma a complementaridade entre
corpo e alma, ser humano e orixá, decorre a expansão de axé, força vital, e de aiyó, ou seja, da
alegria, uma vez que se acredita no potencial benfazejo de tudo o que se faz alegremente, em
oposição à capacidade inerente à tristeza em dirimir e desequilibrar. A festa, com suas
músicas e danças, portanto, sintetiza este “viver no mundo” a partir de um “entender o
mundo” baseado no princípio da alegria, suporte indispensável à vida. Não é outra, pois, a
razão pela qual, nos versos da canção Odara, Caetano Veloso explicita a necessidade de
126
Importante salientar que o uso da expressão “poeta negro” para referenciar Éle Semog não ocorre por intentar
reduzir o alcance de sua poesia, mas por uma marcação identitária e política, ambas afirmativas, a exemplo do
que ocorre com a série Cadernos Negros e o conceito de literatura negra ou afro-brasileira.
170
cantar e dançar para que corpo, cara, cuca e mundo fiquem odara – palavra iorubá que
designa tudo aquilo que é igualmente belo e bom (LUZ, 2000)127
.
Postas lado a lado, a gafieira e a festa do candomblé informam uma existência em que
corpo e alma não se anulam, antes se complementam. A Gafieira da Invasão seria, assim, a
continuidade do princípio da alegria, sua expansão. Desta forma, age no sentido de
impulsionar os habitantes do Mata Gato para a vida, não obstante a miséria em derredor os
impila à morte. Prenhe dos sentidos oriundos da religiosidade afro-brasileira, o riso e a festa,
quando imersos no contexto de exclusão, passam a significar também a resistência, como
deixa entrever o próprio Jorge Amado em entrevista publicada pelo site PenAzul:
Dificilmente você verá um povo mais sofrido – que vive numa situação tão de
miséria, tão de opressão – do que o nosso. Existe, por exemplo, a Índia. Eu conheço
a Índia. A situação é semelhante, mas, qual é a diferença? É que o povo brasileiro
não está vencido. O povo de lá não tem nenhuma esperança; e ele está lá esmagado
dentro daquela coisa religiosa, tremenda, o fanatismo, que é tudo voltado para a
morte... e aqui o nosso povo? O nosso povo está voltado para a vida.
Foi a África que nos deu isso, foi o negro que nos deu esta força vital que ele tem. O
português é melancólico, o europeu em geral é voltado muito mais para a morte do
que para a vida. O próprio indígena é meio assim. Mas, o negro, esse não, esse era
voltado para a vida, e chegou aqui como escravo, quer dizer, na pior das condições
humanas, né? E, no entanto, resistiu. Lutou desde o momento que o primeiro negro
desembarcou do navio negreiro no Brasil, ele lutou contra a escravidão...
(PENAZUL, s.d.).
Eis o ponto em que os universos narrados em Mar morto e em Os pastores da noite ou
Tenda dos milagres se aproximam. Embora a dimensão da festa não esteja tão presente no
primeiro romance, a inabalável fé dos marítimos em Iemanjá é seguida por um enredo em que
a mitologia afro-brasileira exerce um papel central, como visto na seção anterior – o que
configura uma primeira enunciação de um ”representado autônomo”, isto é, uma criação em
que os valores culturais daquele que é narrado não cedem aos daquele que narra128
. Ora, em
Os pastores da noite, não são outros os valores a sustentarem a narrativa senão os da
população negromestiça da Cidade da Bahia: a fé nos orixás, a alegria decorrente desta fé e a
127
Em outro trabalho, Luz (2011, p. 129) detalha: “A categoria de odara, em língua nagô, quer dizer bom e
bonito simultaneamente, indissoluvelmente. Nesse sentido, tudo que presta deve ser belo: a técnica está
interrelacionada com a estética. Assim, nosso povo está sempre atento ao efeito estético, pois a beleza ajuda a
interação com as entidades, agradando-as e facilitando os ritos que proporcionam a fluidez do axé. A
comunidade reunida, re-ligada, compartilha com as entidades o conhecimento e a emoção proporcionados pela
atmosfera sagrada. A alegria desses momentos fortalece a todos, odara” (Grifos do autor). 128
O conceito de autonomia do representado, utilizado na seção anterior para a leitura da fase política-
ideológica de Amado talvez não faça sentido em obras como Tenda dos milagres e Os pastores da noite, uma
vez que já não há qualquer atrito entre os valores de Amado e do universo cultural que ele pretendeu narrar. Em
romances como Suor e Jubiabá, por exemplo, valores culturais negros são criticados ou, então, deixados de lado
por personagens negras em prol de um pensamento que não brota do seio da narrativa, mas que lhe é imposto de
fora para dentro, da ideologia do autor. Daí a importância e o destaque a ser dado a Mar morto.
171
capacidade de resistir aos infortúnios que delas dimana. Não sem motivo, Zuenir Ventura
(2009, p. 296), em posfácio à edição organizada pela Companhia das Letras, ressalta: “[...] Os
pastores da noite já foi definido como o romance em que o negro luta por seu lugar na
sociedade e, principalmente, pelo direito a uma religião própria”. Da mesma forma, Nunes
(1973, p. 96) pondera que o romance talvez se constitua: “[...] na mais detalhada elaboração
de aspectos da religião africana na literatura”129
.
Há ainda outro aspecto presente em Os pastores da noite que igualmente evidencia
uma estrutura baseada em princípios do candomblé: as hierarquias religiosas. Há na
religiosidade afro-brasileira uma hierarquia que se organiza, por um lado, a partir do princípio
de senioridade e, por outro, por meio da disposição de cargos a serem desempenhados por
aqueles vinculados ao Terreiro – condicionamentos que não necessariamente coincidem, uma
vez que uma ebômin pode ascender à iyalorixá sem, contudo, ser a mais velha entre as
ebômin130
.
Em Os pastores da noite, a despeito do “protagonista plural” proposto por Machado,
há momentos em que, instaurado um ou outro conflito, uma ou outra dúvida, elevam-se
personagens cujas vozes assumem um caráter de absoluto, de inquestionável: Doninha,
iyalorixá do Axé da Meia Porta e Jesuíno Galo Doido, obá de Xangô.
Doninha assume posição de realce na segunda narrativa, O compadre de Ogum,
enquanto Jesuíno Galo Doido, espécie de líder da horda de vagabundos da Bahia, destaca-se
principalmente na terceira, Os amigos do povo. Se bem observadas, ambas as personagens
representam a união dos princípios baseados na senioridade e hierarquia interna ao Terreiro.
Doninha é a iyalorixá, a senhora de todo saber, conhecedora de todos os mistérios, aquela que,
por sua posição, “[...] exerce toda a autoridade sobre os membros do grupo – em qualquer
nível de hierarquia – dos quais recebe obediência e respeito absolutos” (LIMA, 2006, p. 80).
Por sua vez, Jesuíno, cujos cabelos brancos denunciam o passar dos anos, é um dos obás de
Xangô no Axé da Meia Porta, “[...] um alto posto, honraria das maiores” (Os pastores da
noite, p. 147). Doninha é solicitada a intervir quando da necessidade em intermediar a decisão
de Ogum em relação ao drama vivido por Massu, descendente mítico do orixá, ou seja, a
problemática em torno da escolha de um padrinho para Felício, filho de Massu e Benedita.
Neste contexto de ampla apreensão, uma vez que todos pleiteavam a honra de ser o escolhido
129
“[...] the most detailed elaboration of aspects of African religion in the literature” (Tradução nossa para fins
deste trabalho). 130
Importante salientar que o referido princípio de senioridade não está vinculado estritamente à idade da pessoa,
mas à sua idade no santo, isto é, a quantidade de anos passados desde que alguém se submeteu aos processos de
iniciação do candomblé. Contudo, qualquer pessoa de idade, seja ela de santo ou não, merece o respeito e a
admiração por representar o saber, senão o específico da religião, aqueles que os anos vividos ensinaram.
172
– ainda mais que o seria por voz do orixá – a comunicação feita por Massu aos amigos da
aparição de Ogum ao Sol de meio dia, em plena via pública, para comunicar-lhe que ficaria
sob sua responsabilidade a escolha do padrinho ocasiona certa tensão:
Massu concluía sua narrativa satisfeito: Ogum decidiria sobre o padrinho para o
menino e quem quisesse fosse discutir a escolha feita pelo poderoso orixá, só
maluco o faria, Ogum não é santo de sofrer desfeita.
Houve um silêncio pleno de concordância e respeito mas também de mudas
interrogações. Não teria sido tudo aquilo montado pelo cabo Martim, não teria ele
convencido o bom negro Massu daquela estranha visão ao meio-dia com música de
macumba e o santo dançando em plena via pública? Martim era um tipo cheio de
malícia e picardia, podia aquilo ser um plano bem arquitetado: na primeira visão,
Ogum prometia resolver o problema, numa segunda, novamente sem a presença dos
demais, Ogum – um Ogum de fancaria, existindo só na imaginação do negro,
cutucada pelo cabo – declararia ter escolhido Martim para padrinho. Os olhares iam
de Massu a Martim, inquietos, sem esconder as suspeitas. Por fim, Jesuíno tomou a
palavra:
- Quer dizer que Ogum vai escolher? Ótimo. Mas como é que vai ser? Ele disse pra
tu ir procurar ele. Onde? Como tu vai fazer?
- Consultando quem pode me esclarecer. Já fui, hoje mesmo.
- Tu já foi? – na voz de Galo Doido soava o alarma. – Quem foi que tu consultou?
Teria sido o próprio Martim ou a algum industriado pelo cabo?
- Fui ver mãe Doninha, mas ela estava ocupada, não pôde me atender, só amanhã.
Jesuíno respirou, aliviado, os demais também. Mãe Doninha estava acima de toda e
qualquer suspeita, merecia absoluta confiança, quem ousaria sequer levantar a
menor dúvida a respeito de sua honorabilidade, sem falar nos seus poderes, em sua
intimidade com os orixás? (Os pastores da noite, p. 148).
Para melhor compreender a imprescindível atuação da iyalorixá Doninha neste
contexto é necessário retornar ao tema da amizade, comentado às primeiras páginas desta
seção – espécie de introito à abordagem aqui empreendida.
Como já se observou, o universo narrado compartilha da mesma história, uma
linhagem que remonta aos navios negreiros, e dos mesmos valores, aqueles relacionados ao
candomblé. Eis, portanto, que os elos de amizade nascem e se fortalecem tendo como base
este mesmo grupo de fatores. A interpretação sugerida ganha relevo à medida que os laços de
amizade se revelam também como ligações familiares que, a despeito da não-
consanguinidade, fundam-se a partir dos parâmetros reconstituintes da ancestralidade
africana: uma família que se origina na religião, com pais, filhos, tios e irmãos no santo, ou
seja, no orixá, na fé e na identidade em comum. A respeito dos sentidos oriundos desta noção
de família, Braga afirma:
[...] o candomblé permite, no plano religioso, a reinvenção da família, agora
estruturada a partir dos elementos africanos aqui aportados que se interligam com
outras estruturas, para produzir um ambiente que, de certa maneira, se aproxima ou
lembra a organização das comunidades tribais. [...]
173
Nesse sentido, podemos afirmar que o candomblé restaura, de alguma maneira, a
noção de territorialidade africana, agora transmudada em afro-brasileira, na qual é
possível descortinar, no cotidiano da vida comunitária, um nítido sentimento de
recuperação do elo perdido com as comunidades de origem e, com isso, a formação
de uma família capaz de reforçar a identidade negra de quem a ela pertence pelos
laços da iniciação religiosa ou por outro qualquer elo de afinidade identitária
(BRAGA, 2006, p. 45).
Tome-se, por exemplo, o dilema de Curió, encenado na primeira narrativa, Curió, o
romântico, e as desilusões do amor perjuro. Conta-se, nesta história de Os pastores da noite,
o retorno de cabo Martim à Cidade da Bahia, da qual fora obrigado a sair por causa de três
sertanejos que, inconformados com a sorte no baralho, juravam vingança ao cabo. Isolara-se
no Recôncavo, garantira a integridade física, mas se privara forçadamente do contato com os
amigos, das festas e obrigações do candomblé – deixara o seu território. Lá, o incorrigível
sedutor131
conhecera Marialva, que “[...] gostava de mandar nos homens, dominá-los, vê-los
rendidos a seus encantos, suplicantes. [...] Sugava-os depois, tirava-lhes a vontade e a decisão,
para largá-los como bagaços quando [...] tudo já lhe haviam entregue, até sua consciência de
homens” (Os pastores da noite, p. 69)132
. Aproveitando-se do estado vulnerável em que se
encontrava, por assim dizer, o desterritorializado cabo Martim, Marialva o sujeitara às belezas
e aos encantos dos quais era dotada. A notícia do casamento de Martim não demorara a
atravessar a Baía de Todos os Santos e atracar no velho cais do porto, em Salvador, onde,
apesar de causar espanto e incredulidade, a história logo seria confirmada com a chegada do
casal após alguns dias. É no retorno à Bahia, aos amigos e às obrigações religiosas, que
Martim recupera a “consciência de homem” outrora subjugada por Marialva. Com a mudança
repentina do cabo, Marialva pressente seus planos arruinados. É quando nota os olhos
lânguidos de Curió, avesso de Martim: apaixonado, romântico e, por isso, um fracasso com as
mulheres. Marialva, então, começa a dissimular uma paixão incontrolável por Curió, que
131
“O sapateiro, avisado por uma vizinha assanhada, solteirona, é claro, fora encontrar sua esposa na cama com
Martim, e esquecida das obrigações familiares, em plena tarde de dia útil. [...] Os vizinhos impediram desgraça
maior: o sapateiro querendo matar a mulher, suicidar-se, necessitando de sangue para lavar os chifres. Com tanta
balbúrdia, acabaram todos na polícia e saiu notícia nos jornais, na qual o cabo Martim era tratado como „o
sedutor‟. Ficou Martim muito vaidoso com esse qualificativo, guardou o recorte no bolso para exibi-lo” (Os
pastores da noite, p. 58). 132
Talvez seja possível traçar comparações dos embates Martim-Marialva e Pedro Archanjo-Iaba, em Tenda dos
milagres, com Marialva assumindo o papel daquela que planejava submeter a todos os homens. Ambas falham
no intento. Serra (1995) contribui valorosamente para a leitura destas passagens ao classificá-las como uma
versão amadiana do velho mito da “domesticação” das mulheres pelos homens, mitologia esta presente em
muitas culturas. Por este motivo, ter-se avisado anteriormente que não se analisaria a representação das mulatas,
uma vez que, de modo geral, o ponto crítico da obra amadiana não se refere à cor, mas, talvez, ao gênero – o que
também não elimina a possibilidade das personagens femininas serem analisadas pela ótica da ruptura, como
bem aponta Constância Duarte (2004, p. 167): “Ao mesmo tempo em que endossa estereótipos [...] ele [Amado]
aponta para um mundo em transformação no que se refere às relações homem e mulher. No romance de Amado
[Gabriela], temos, portanto, com muita competência uma amostra de como a mulher passa de objeto a sujeito de
sua própria história, e também do processo cultural da construção do conceito de gênero”.
174
corresponde. Eis o dilema instaurado e a razão para o amor perjuro, aquele amor que, ao
brotar, trai os votos sagrados da amizade.
Os laços que ligam Curió e Martim, que os fazem tão próximos e inseparáveis,
explicam-se naturalmente pelas relações construídas no âmbito da boêmia soteropolitana, de
bar em bar, castelo em castelo, pastoreando todas as noites, mas não somente. Há, entre
ambos, outro tipo de vínculo, uma relação de axé, são irmãos de santo:
Sua amizade [de Curió] com Martim remontava a um passado de anos, quando
Curió, menino novinho, pedia esmola nas ruas e se misturara aos capitães da areia.
Martim ocupava posto de destaque entre os capitães da areia e estendera sua mão
protetora sobre o novato, impedindo perseguições e abusos de parte dos mais velhos.
Depois, rapazolas, quando iniciavam-se na vida e no candomblé, descobriram-se
serem ambos de Oxalá, Martim de Oxalufã, Oxalá velho, Curió de Oxaguiã, Oxalá
moço. Juntos fizeram bori mais de uma vez, a mãe de santo derramando o sangue
dos animais sacrificados sobre suas cabeças, o mesmo sangue a limpar um e outro.
Juntos, certa feita, ofereceram um bode ao orixá, dividindo as despesas. Como então
podia deitar com a mulher de Martim, mesmo sofrendo por ela paixão alucinada?
Não, Martim para ele era sagrado, preferia matar-se e matar Marialva (Os pastores
da noite, p. 109).
“Martim para ele era sagrado”, frase que resume e revela. Em artigo sobre iaôs,
pessoas que já passaram pelos ritos de iniciação sem, contudo, terem completado ainda as
obrigações de sete anos, quando passam a ser consideradas ebômin, literalmente “[...] meu
irmão – ou minha irmã – mais velho(a)” (LIMA, 2006, p. 101), Cossard afirma:
Através das provações em comum, o barco forjou ligações sólidas. Possui pequenos
segredos, unidade e solidariedade. Um interdito muito rigoroso, que proíbe
quaisquer relações sexuais entre os membros do mesmo “barco”, depura esta
amizade de todo e qualquer equívoco. [...]
As iaôs do “barco” comem, cozinham e dormem juntas. Se um dos membros
encontra-se em situação difícil, é para o seu “barco” que ele se volta (COSSARD,
2006, p. 144)133
.
Lima (2006) aponta algumas distinções entre os termos “irmãos-de-santo”, “irmãos-
de-axé” e “irmãos-de-barco”. A primeira categoria reúne aqueles que são iniciados por uma
mesma iyalorixá, enquanto a segunda refere-se a todos iniciados em um mesmo Axé, ou seja,
vinculados a um mesmo Terreiro. “Irmãos-de-barco”, por sua vez, relaciona-se àqueles que se
submeteram à iniciação conjuntamente, em um mesmo barco. Lima discorre:
[Os irmãos-de-barco] Foram iniciados juntos. Recolhidos na mesma época. Deram o
nome na mesma festa. E, decerto, liberados, também, na mesma ocasião, para a vida
secular que os esperava. Tiveram longos dias de intimidade, de confidência e
133
Segundo Lima (2006, p. 93), “barco” designa “[...] o grupo de iniciação [dos] aspirantes de um terreiro”.
175
certamente de tensões e de reservas. Têm, assim, um laço mais íntimo e porventura
mais efetivo na rede dos deveres e das expectativas que é a vida de santo (LIMA,
2006, p. 97. Grifos do autor).
A dimensão de “sagrado” que envolve a amizade de Curió e Martim identifica-se com
os ritos da religiosidade afro-brasileira, o que vem a significar uma relação que dimana não
apenas do cotidiano mundano, mas da vivência, da partilha e da expansão de axé134
.
A paixão avassaladora que toma o peito de Curió, alimentada constantemente por um
jogo de negações em que ora Marialva, ora o próprio Curió alargavam ou diminuíam os
limites permissíveis de abraços, beijos e palavras, faz com que o enamorado, uma vez
impelido pelas súplicas dissimuladas de Marialva, decida expor a Martim a intenção de tomá-
la para si. A partir desta decisão, Curió sofre ao imaginar a reação do amigo/irmão, laço para
sempre rompido, enquanto Marialva exulta diante da certeza do final planejado: Martim aos
seus pés, subjugado, implorando para que ela ficasse, que não fosse com Curió. Marialva,
vitoriosa e triunfante, poderia, enfim, escolher entre um e outro.
Vestido, nos limites dos parcos recursos, como em dia de grande solenidade, Curió
adentra a casa de Martim e Marialva pontualmente às dez horas, horário estipulado por ela,
que o anuncia ao cabo:
- Senta aí, mano, vem comer uns bagos de jaca. Tá suculenta.
Curió aproximou-se no mesmo passo medido, o rosto funéreo, uma postura enfática,
quase majestosa. [...] Martim provava um bago de jaca, o perfume enchia a sala,
quem podia resistir a esse cheiro? Curió resistia, impávido. [...]
- Aconteceu alguma coisa?
- Não, nada... Tava querendo lhe falar. Para resolver um assunto...
- Pois tome assento e vá falando que estando em minhas mãos tu tá servido...
- É troço sério, é melhor esperar que tu acabe...[...]
- Tu parece até que engoliu uma vassoura... Pois tá certo, a gente primeiro dá conta
da jaca, depois conversa... Senta aí e mete os dedos...
Por entre os dedos do cabo, o mel da jaca escorria, os bagos cor de ouro e o
perfume. [...] pairava no ar aquele perfume embriagador, que importavam uns
minutos a mais, uns minutos a menos?
Curió retirou o paletó, abriu a gravata, não se pode comer jaca todo vestido de
etiqueta. Sentou-se, enfiou os dedos, retirou um bago, meteu-o na boca, cuspiu o
caroço:
- Porreta!
- Retada! – apoiou Martim. (Os pastores da noite, p. 125).
134
Em determinado momento, Curió reflete: “‟Martim é meu irmão, ai meu irmão! Não só meu irmão de santo,
filhos os dois de Oxalá (Exê ê ê Babá), mas meu amigo do peito, de todas as horas, de todas as alegrias e
tristezas, por ele sou capaz de me rebentar, de topar qualquer parada, como posso então olhar para sua mulher,
sua mulher verdadeira, senhora de sua casa, com outros olhos senão os de amigo, como posso nutrir por ela
sentimentos senão os da mais pura fraternidade? Ai, Martim, meu irmão, teu irmão é um salafra‟” (Os pastores
da noite, p. 80). Observe-se que, a despeito do fragmento transcrito parecer indicar uma maior importância ao
fato de serem amigos do peito do que irmãos de santo, não se invalida a hipótese desta amizade relacionar-se
diretamente aos laços religiosos. Ademais, não se pretende instituir aqui uma leitura exclusivista do tipo que
afirma algo supostamente inquestionável, mas sugerir possibilidades.
176
A cena acima culmina com a afirmação da amizade inquebrantável entre Martim e
Curió, o que ocasiona a derrota de Marialva, renegada e esquecida por ambos: “- E esse traste
pensou que inimizar nós dois, nós que somos que nem irmãos... Só a gente rindo...” (Os
pastores da noite, p. 130). Final que, de certo modo, contraria as expectativas suscitadas pelo
desenrolar do drama vivenciado pelo romântico camelô, uma vez que tudo parecia indicar o
confronto com Martim ao invés da confraternização ocorrida. O ponto de inflexão dos rumos
narrativos encontra-se, justamente, no fragmento transcrito e, talvez, seja passível de uma
leitura com viés religioso.
A festa do candomblé, como já dito, é um espaço de música, dança e comida,
elementos partícipes da apreensão do Sagrado e através dos quais se expandem a alegria e o
axé. Relativamente à comida, há aquela destinada aos orixás, que varia de acordo com os
gostos específicos das divindades, e outra que é reservada aos filhos do Terreiro e aos
visitantes, se houver. Este segundo tipo de comida, igualmente preparada conforme o paladar
dos orixás patronos das festas, é servida durante o ajeum, momento que se configura tanto em
um espaço de sociabilidade quanto de expansão e circulação de axé, uma vez que se partilha a
comida do orixá. Segundo Raul Lody:
É altamente socializante o ato de compartilhar do mesmo alimento em grupo,
quando servido ao término das festas públicas dos terreiros. A união das pessoas que
têm os mesmo objetivos religiosos e as mesmas crenças é reforçada pelo ato de
ingerir os alimentos preparados pelas yabás, yabassês, entre outros títulos, que
variarão conforme o tipo de Nação à qual é filiado o terreiro (LODY, 1992, p. 61.
Grifos do autor).
É interessante destacar, neste comentário de Lody, a parte que se refere ao reforço dos
laços de união entre aqueles que compartilham da mesma comida. Obviamente, o antropólogo
ressalta tal sentido dentro de um contexto específico, o religioso, em que a comida é
preparada de um jeito especial e por pessoas cujo conhecimento domina os segredos
necessários ao preparo dos alimentos. Ou seja, não se refere ao contexto mundano. Ainda
assim, talvez seja possível analisar o desenlace da história de Curió a partir de certas
associações com o momento de ajeum.
Observe-se que o modo como Curió está vestido é condizente com a gravidade da
situação a ser arrostada em face de Martim. Assim, o paletó e a gravata, bem como o jeito
pouco natural de falar e também a postura exibida aludem ao desconforto vivenciado por
Curió ao ver-se na iminência de por fim à amizade tão duradoura. A aparência de “ter
engolido uma vassoura”, que abrange não só o paletó e a gravata, mas também a fala e a
177
postura, se desfaz na partilha da jaca; as mãos de Martim e de Curió enterradas no mesmo
fruto, o gosto e o prazer divididos. Desta forma, Curió despe-se do paletó e da gravata, peças
símbolo de gravidade. Mesmo a linguagem dura, medida nas palavras, cede à espontaneidade
da exclamação: “Porreta!”.
A cena da jaca assume uma posição central no desfecho da narrativa porque é
justamente nela – ou através dela – que, à semelhança do que ocorre quando do ajeum, os elos
de amizade entre Martim e Curió são reforçados e, assim, postos a salvo da sanha vingativa de
Marialva. Embora a conversa tenha se realizado após o banquete proporcionado pela jaca e
Curió tenha tentado recuperar o tom grave ensaiado, o sentido da amizade entre eles, há pouco
reestabelecido, imperou de tal modo que Martim, compreendendo a aflição do amigo,
prontamente abriu mão de mulher e casa, dando-as a Curió. Já Curió, surpreso pela atitude de
Martim, não fez por menos: abriu mão de ambos os presentes, igualando-se a Martim no
desprendimento e na amizade. Ao fim, “os olhares dos amigos encontraram-se sob os restos
da jaca mole. Brilhavam os bagos cor de ouro, convidativos” (Os pastores da noite, p. 131).
A natureza da amizade descrita não é exclusividade da relação Martim-Curió, mas
expande-se e alcança todo o grupo de personagens apresentadas, à exceção dos políticos,
jornalistas e policiais da terceira narrativa, Os amigos do povo. Assim, em O compadre de
Ogum, a notícia do batismo de Felício, filho de Massu e Benedita, faz com que se estabeleça
um clima de disputa entre os amigos de Massu vez que cada um pleiteava ser escolhido
padrinho, honraria destinada a apenas um dentre eles:
Difícil mesmo era escolher o padrinho, convencera-se Massu, quando, três dias após
a noite das primeiras e felizes conversações, a situação não se modificara, o menino
continuava sem padrinho.
Não se modificara, é maneira de falar: em verdade a situação piorara. Não haviam
adiantado nem um passo no sentido da solução do problema, em compensação
pesava sobre o grupo a ameaça de sérias dissensões. Aparentemente aquela antiga e
exaltada amizade continuava perfeita, não sofrera o menor arranhão. Mas um
observador atento poderia sentir, no correr das noites e dos tragos, uma tensão a
crescer, a marcar palavras e gestos, a colocar pesados silêncios em meio à conversa.
Como se tivessem medo de ofenderem-se uns aos outros, estavam educados e
cerimoniosos, sem aquela largada intimidade de tantos anos e tanta cachaça (Os
pastores da noite, p. 145).
Na primeira narrativa a cena que engendra um final positivo para Curió e Martim,
afastando dos amigos qualquer possibilidade de ruptura, guarda semelhanças e talvez alusões
ao ajeum; em O compadre de Ogum, por sua vez, a intervenção do candomblé na salvaguarda
das relações de amizade ocorre de forma explícita: Ogum, pai mítico de Massu, toma para si a
responsabilidade de resolver o problema da escolha do padrinho. Assim, aquele que não fosse
178
escolhido não teria motivos para arrenegar-se com Massu uma vez que não seria sua a
escolha, os vínculos afetivos e religiosos permaneceriam intactos:
Parou o negro Massu sua caminhada: era filho de Ogum e também seu ogã. Martim
contava da festa, das danças e das cantigas. Massu, apesar do balaio na cabeça, em
equilíbrio instável, cheio de coisas de quebrar, ensaiou uns passos de dança. Martim
quebrou todo o corpo e puxou uma cantiga do orixá dos metais.
- Ogum ê ê! – salvou Massu.
E teve uma iluminação, como se o sol explodisse em amarelo, aquele sol cruel e
castigado, teve um revertério, um troço nos olhos, uma visão: viu nos matos
próximos Ogum rindo para ele, todo paramentado, com suas ferramentas, a dizer-lhe
para ter calma porque ele, Ogum, seu pai, resolveria o problema do menino. Massu
deveria vir procurá-lo. Disse e sumiu ligeiro, de tudo aquilo só ficou um ponto de
luz na retina do negro, prova insofismável do acontecido (Os pastores da noite, p.
146).
É neste contexto que a atuação de Mãe Doninha, venerável pela idade e por ser
iyalorixá, é imprescindível, como já assinalado. A amizade, como já se pode perceber, não se
refere somente às relações de profunda afinidade entre aqueles narrados por Amado, mas
reveste-se em expressão de uma identidade em comum baseada em valores culturais negros.
Assim, a amizade, tal como expressa em Os pastores da noite, constitui-se em um dos elos
que estruturam a própria noção de comunidade. Preservar os laços de amizade significa, pois,
manter intactos os valores que alicerçam o cotidiano da comunidade, ou seja, a alegria e a
resistência que remetem à expansão para a vida; noutra direção, enfraquecê-los seria sucumbir
à tristeza e à miséria, encaminhar-se para a morte.
O fato de Mãe Doninha ser uma voz insuspeita, que goza da confiança e do respeito de
todos, é preponderante para que possíveis dúvidas sobre a lisura da resposta dos búzios sejam
sanadas antes mesmo de posto o jogo. A resposta seria incontestável vez que adviria da
vontade de Ogum e do jogo de Mãe Doninha, a mais respeitada dentre todas as iyalorixás.
Ainda assim, caberia a apenas um dos amigos a honra de ser o padrinho. Embora
incontestável, a vontade Ogum não eliminaria a possibilidade de os não escolhidos guardarem
mágoa ou ressentimento, ou mesmo que aquele selecionado se visse acima dos outros em uma
espécie de escala do orixá. De uma forma ou de outra, poder-se-ia instalar um princípio de
desequilíbrio que enfraqueceria o sentido de comunidade. Ogum, então, decide ser, Ele
próprio, o padrinho:
Sim, perfeita a solução, admirável, deixara a todos satisfeitos. Nenhum deles fora o
escolhido, ninguém se encontrara colocado mais alto na escala da amizade de
Massu. Acima deles só Ogum, o encantado dos metais, o irmão de Oxóssi e de
Xangô. A solução a todos contentava. Nem por isso, no entanto, podia-se dizer estar
o problema do batizado completamente resolvido (Os pastores da noite, p. 155).
179
Desta solução, decorre um segundo problema. Mas, antes de abordá-lo, compete situar
Jesuíno Galo Doido. Assim como Mãe Doninha, Jesuíno reúne em si tanto o princípio da
senioridade quanto o da escala hierárquica, uma vez que é um dos obás de Xangô, isto é, um
dos doze ministros do orixá rei do fogo. De acordo com Leite:
Ser Obá de Xangô, ministro do Rei Xangô, é ser um defensor e protetor do
Candomblé, devidamente autorizado e protegido por Xangô, protetor maior. Quem é
simpatizante ou amigo de alguma causa pode tomar a defesa desta causa, contudo
ser Obá de Xangô, ministro do Rei Xangô, é ser mais que simpatizante, é pertencer
ao clero nagô da Bahia (LEITE, no prelo).
Lima (1966, p. 17) dá a dimensão da importância dos obás situando-os “[...]
hierarquicamente numa categoria imediatamente superior à dos Ogãs. São, a rigor, Ogãs mais
graduados no Terreiro por serem consagrados ao próprio patrono do Axé, Xangô Afonjá”135
.
Não é à toa, portanto, que Jesuíno Galo Doido venha a constituir uma personagem cuja voz e
figura apresentam alguma preponderância no seio do grupo de amigos. Assim é que, apenas
recém-chegada à cidade, Otália “[...] beijou a mão de Galo Doido, pedindo-lhe a bênção.
Bastava vê-lo para compreender ser ele da bênção e não da boa noite, talvez um babalaô,
talvez um babalorixá, quem sabe um obá de Xangô [...]” (Os pastores da noite, p. 31-32)136
.
Assim como Mãe Doninha que, investida da autoridade de iyalorixá, tornou-se
responsável por seus filhos, sendo sua obrigação zelar pelo bem estar da comunidade, também
a Galo Doido são destinados direitos e deveres. Uma vez designado obá cabe-lhe a autoridade
e o respeito inerentes ao cargo, mas igualmente passa a ser de sua alçada defender e proteger
o candomblé, como salienta Leite, e, por extensão seu povo – o que faz colocando-se ao lado
de Mãe Doninha e auxiliando-a.
135
A referência a Xangô Afonjá ocorre por conta de ser Ele o patrono do Ilê Axé Opo Afonjá, Terreiro situado
no bairro do São Gonçalo, em Salvador-Ba. Esta Casa de Axé foi a primeira a instituir a corte dos obás.
Inicialmente doze, os obás contam hoje trinta e seis no total, sendo doze titulares e vinte e quatro suplentes. Os
obás dividem-se em dois grupos, cada um com seis títulos: os obás da direita, que tem direito à voz e ao voto
além de poderem saudar Xangô com o xerê em sua festa, e os obás da esquerda, que possuem apenas o direito à
voz, exercendo tão somente uma função consultiva (LIMA, 1966). Cumpre salientar que Jorge Amado era um
dos obás de Xangô do Ilê Axé Opo Afonjá, Obá Arolu, obá da direita. Interessante ressaltar ainda que a iyalorixá
Doninha talvez constitua uma homenagem de Amado à fundadora do Ilê Axé Opo Afonjá, Eugênia Ana dos
Santos, Obá Biyi, mais conhecida por Mãe Aninha. Doninha seria, então, uma contração de Dona Aninha. 136
Na entrevista concedida a Raillard (1990, p. 81), Amado discorre sobre a posição de Obá e revela qual, em
sua leitura, é a natureza do respeito que goza: “É nesse sentido que sou um obá, isto é, uma pessoa que o povo
conhece, ama e respeita. Respeita da maneira pela qual se respeita na Bahia, com uma grande familiaridade. Não
é nunca um respeito... como dizer?... humilde, submisso, apagado, de reverência, de adulação. Não, não é isso, é
um respeito marcado por conhecimento e intimidade”. Talvez tais informações possam ajudar a interpretar o
papel de liderança de Jesuíno entre os habitantes do Mata Gato.
180
É na terceira narrativa, Os amigos do povo, quando assume junto com os capitães da
areia a defesa do Morro do Mata Gato e cria estratégias de luta contra a invasão policial, que
Jesuíno desempenha com vigor o papel de defensor do povo. Morto após uma segunda
tentativa de invasão policial, Jesuíno retorna do orun para incorporar em uma iaô do
candomblé Aldeia de Angola, declarando-se Caboclo Galo Doido – com o que se reafirma o
papel de destaque exercido pelo Obá de Xangô.
Como já expresso, muitos valores negros permeiam as narrativas de Os pastores da
noite. Neste aspecto, é relevante notar que o corpo de Jesuíno Galo Doido nunca tenha sido
encontrado, perdido para sempre na lama de um mangue situado atrás do Mata Gato. Ora,
uma possível leitura do desaparecimento do corpo de Jesuíno remete à mitologia iorubá.
Segundo esta tradição, quando da criação dos ara aiyê, os seres vivos, a lama foi escolhida
como a matéria-prima ideal para a tarefa. No entanto, toda vez que os orixás lhe retiravam
uma porção para levar a Obatalá, responsável pela criação, a lama chorava, o que ocasionava
a pronta restituição do pedaço arrancado. Apenas o orixá Iku, a morte, não teve pena da lama,
arrancando-lhe uma quantidade para levar de amostra a Obatalá. O grande orixá da criação
concordou que aquela seria a melhor matéria para a tarefa e, ao saber que a lama teria ficado
chorando, ordenou que Iku lhe restituísse cada porção arrancada, devolvendo-lhe a matéria
originária dos ara aiyê quando estes passassem ao orun (SANTOS, 2008). A morte é, pois, o
retorno do corpo à matéria original que o reclama, imagem reelaborada por Amado através de
Galo Doido.
Por meio de Galo Doido e Mãe Doninha, referências máximas de Os pastores da
noite, é possível, pois, atestar como a escrita e a atuação destas personagens estão amplamente
embasadas naquilo que significam religiosamente, ou seja, dentro da dinâmica estrutural e
cosmogônica do candomblé.
É exatamente neste aspecto que reside a terceira e principal diferença entre os
universos de Jorge Amado e o de Gilberto Freyre: o lugar do negro. Como exposto na
primeira seção, o antropólogo pernambucano, a despeito da ênfase que dispensa ao negro em
seus textos, toma-o e o exalta na justa medida em que o considera contribuir para amolecer a
cultura europeia, destituir-lhe da inflexibilidade de toda e qualquer ortodoxia religiosa, dando
vazão a um catolicismo cujos santos e dogmas passam a ser relativizados. Em outras palavras,
para Freyre o negro é aquele que, sofrendo a opressão de um sistema escravista, soube adaptar
a cultura do dominador à sua, modificando-a a partir de uma visão de mundo negro-africana
que, no entanto, se dilui. Destarte, pode-se afirmar que, para o Mestre de Apipucos, o que se
sobressai no processo formativo da cultura brasileira são os valores culturais dimanados da
181
Europa; já os provenientes do continente africano são contribuições pontuais e necessárias,
mas ainda assim meramente contribuições. Freyre não considera a cultura negra de per si,
sempre que o faz é em sua adaptação à dominante, ao catolicismo ou no ajuste da Igreja aos
trópicos.
De tal outra forma é a perspectiva amadiana, que o crítico italiano Marotti (1972, p. 9)
considera: “A obra de Jorge Amado é a expressão de uma filosofia negra do Brasil,
transfigurada poeticamente em uma interminável galeria de personagens e de situações”137
.
Pensar em termos de uma “filosofia negra”, como propõe Marotti, equivale-se
inarredavelmente a vislumbrar nos livros do escritor baiano signos profundos advindos da
religiosidade afro-brasileira uma vez que, tal como observa Luz:
[...] a religião ocupa o lugar mais relevante no processo civilizatório e cultural negro.
Em relação ao processo civilizatório, a religião é fonte e guardiã dos valores
espirituais, de visão de mundo que proporciona e impulsiona a vontade de viver. A
religião negra é depositária dos profundos conhecimentos das leis e das forças que
regem o universo e de como bem utilizá-las, possibilitando a continuidade e a
expansão da vida. Em relação ao processo cultural, a religião é fonte e dinamizadora
de um ethos, indicadora de comportamentos, hábitos, enfim, de uma maneira negra
de ser. Ela estabelece e proporciona uma ética própria. Imprime formas de relações
sociais, estipulando maneiras próprias de organização e hierarquias, estimula a vida
comunal (LUZ, 2011, p. 79).
Nesta perspectiva, Allen-Dixon (2006, p. 18) considera que o sistema mitológico
vindo com os negros escravizados constitui o “mundo interior americano” – “[...] um mundo
interior que Amado desvela aos olhos do leitor”138
. Na mesma linha, Nunes (1973) defende
que os romances amadianos estão entre os mais importantes meios de preservação da cultura
africana no Brasil. Acresçam-se, aos pesquisadores citados, as recentes investigações de Leite
(2006, 2008 e 2010) sobre a obra de Jorge Amado, pesquisas em que se verifica o encontro
das mitologias afro-brasileiras com a tessitura do enredo amadiano, bem como os resultados
até aqui alcançados por este estudo.
Assim, a leitura do texto amadiano como “expressão de uma filosofia negra”, portanto,
é não apenas possível e viável, como também se configura reveladora de um denso
conhecimento do romancista acerca do candomblé; saber que se desdobra em profunda
positivação e defesa inconteste do negro – como, aliás, prescreve o seu papel de Obá Arolu
137
“L‟opera di Jorge Amado è la espressione di una filosofia negra del Brasile, trasfigurata poeticamente in una
interminabile galleria di personaggi e di situazioni” (Tradução nossa para fins deste trabalho). 138
“[...] an inner world that Amado unveils to the reader‟s eye” (Tradução nossa para fins deste trabalho).
182
n‟Ilê Axé Opo Afonjá139
. Não sem motivos, o escritor moçambicano Mia Couto (2011), em
palestra proferida em São Paulo sobre o escritor baiano, em 2008, posteriormente coligida em
livro, tenha afirmado que uma das razões da popularidade da obra amadiana nos países
africanos de língua portuguesa deve-se a uma “familiaridade existencial”. Segue Couto:
Seus personagens eram vizinhos não de um lugar, mas da nossa própria vida. Gente
pobre, gente com os nossos nomes, gente com as nossas raças passeavam pelas
páginas do autor brasileiro. Ali estavam os nossos malandros, ali estavam os
terreiros onde falamos com os deuses, ali estava o cheiro de nossa comida, ali estava
a sensualidade e o perfume das nossas mulheres. No fundo, Jorge Amado nos fazia
regressar a nós mesmos (COUTO, 2011, p. 64).
Tais considerações, ainda mais quando endossadas por diversos escritores africanos,
muitos deles referenciados por Mia Couto, evidenciam o texto amadiano não apenas como
relicário de um ethos negro que se projeta ao leitor com o passar das páginas. Também o é
como um agente de identificação da África não só para baianos e brasileiros, mas igualmente
para os povos africanos de língua portuguesa, que então empreendiam seus esforços de
descolonização e redescoberta de si. Leite comenta:
É importante ressaltar que as declarações por parte de africanos, reconhecidamente
engajados na liberdade de seus povos e na formação de suas identidades, de que
encontram Áfricas no texto amadiano têm importância significativa. A relevância
destes dizeres de África confirma o que já sabíamos: Amado está entre os escritores
que estão ao lado do povo negro e não criador de estereótipos e coisas do gênero,
que em nada engrandecem africanidades e afro-brasilidades. Ao contrário de ser um
capitão do mato, Amado faz opção pelo negro, mesmo sendo socialmente branco.
Ele foi incorporado ao grupo, escolhido por Xangô para seu ministro e liderado pela
grande Mãe Senhora (LEITE, no prelo).
Ao contrário daquela adotada por Freyre, a perspectiva assumida por Jorge Amado é a
do protagonismo negro. Tal primazia não implica desvalorização de culturas e povos outros,
vistos como igualmente positivos, mas inverte a lógica secular da identidade brasileira, qual
139
Talvez fosse mais adequado se falar em “expressão literária de uma filosofia negra” uma vez que o texto
amadiano não se propõe ser propriamente teologia, filosofia ou antropologia, mas, englobando-as, ser tão
somente literatura. Isso significa dizer que os aspectos religiosos, quando transpostos para a literatura amadiana,
sofrem um processo de acomodação à linguagem literária na qual já não necessariamente representam
estritamente o que significam em um contexto religioso específico. Tem-se, portanto, uma apropriação e uma
consequente expressão que já não é aquela originária, sagrada, mas uma representação literária deste sagrado – o
que pode implicar certas pequenas incongruências, como avalia Serra (1995). Em entrevista concedida a Santana
(2009, p. 21), Amado deixa claro o grau de conhecimento que possui do candomblé: “Não há cerimônia de
candomblé que eu não conheça. Há alguns anos, quando foi feita a cabeça de uma minha afilhada, fui chamado
para acompanhar. Conheço tudo isso como as palmas de minhas mãos [...]”. Cabe ressaltar, a mero título de
curiosidade, o trabalho de Edson Fabiano dos Santos (2005) que, em sua dissertação de mestrado, tenta esboçar
uma teologia afro-brasileira a partir das obras de Jorge Amado.
183
seja, a de pensar o país de forma eurocêntrica; luso-tropical, em termos gilbertianos. Em
Amado o país é outro: é africano, é negro.
Logicamente, o lugar que o negro ocupa na representação amadiana de Brasil
influencia, de maneira decisiva, a ficcionalização da mestiçagem étnica e cultural pensada
pelo escritor baiano, o que a configura como uma negromestiçagem. Ainda em Os pastores da
noite, a narrativa O compadre de Ogum traz alguns elementos que merecem ser pontuados
acerca desta questão em particular.
De súbito, o leitor é apresentado a uma criança há pouco nascida. De cabelos
escorridos e loiros, os olhos azuis, o menino é filho de Massu e Benedita, dois negros.
Embora se especule aqui e ali a respeito dos tempos em que Benedita andou de xodó com um
gringo, a verdade é que a cena não reproduz a estranheza do filho branco de Baldo, em
Jubiabá. Ao contrário, o próprio narrador se encarrega de dissipar qualquer dúvida a respeito
da paternidade do menino, “[...] baixa exploração de gente maldosa, pronta a maliciar a
propósito de um tudo ou de um nada.” (Os pastores da noite, p. 135). Da mesma forma,
Benedita, Massu e sua centenária avó Veveva justificam ao leitor:
Olhos azulados qualquer menino pode ter, mesmo sendo o pai negro, pois é
impossível separar e catalogar todos os sangues de uma criança nascida na Bahia.
De repente, surge um loiro entre mulatos ou um negrinho entre brancos. Assim
somos nós, Deus seja louvado.
Benedita dizia ter saído o menino assim branco por haver puxado ao seu avô
materno, homenzarrão loiro e estrangeiro, bebedor de cerveja, Hércules de feira a
levantar pesos e marombas para espanto dos tabaréus. Explicação, como se vê, das
mais razoáveis, só as más-línguas teimavam em não aceitá-la e viviam atribuindo
pais ao garoto como se não lhe bastasse Massu, um pai e tanto, cidadão direito e
respeitado, com ele ninguém tirava prosa, e doido pelo filho. Sem falar na avó, na
negra velha Veveva com seu menino nos braços (Os pastores da noite, p. 137).
A criança, de nome Felício, compõe então uma metáfora da qual Amado se serve para
expor a tese de que, na Bahia, não existem brancos ou negros, apenas mestiços. Assim, o
nascimento de meninos negros no seio de famílias brancas, ou de crianças brancas entre casais
negros não causa qualquer espanto. Evidentemente, o que está em jogo aqui é uma
mestiçagem biológica, um amálgama de sangues diversos que constitui um povo rico em
possibilidades genéticas por conter em si todos os outros povos. É interessante notar, contudo,
que a despeito do tom estritamente racial desta perspectiva, o que confirma a paternidade de
Massu não é tanto a justificativa de Benedita, que revela genes avoengos, mas o riso de
Felício: “O jeito de rir, não tinha nada mais belo. O negro pôs-se de cócoras no chão, o
menino veio e se levantou entre suas pernas. E disse „papá‟ e repetiu. A gargalhada de Massu
184
ressoou, estremecendo as paredes” (Os pastores da noite, p. 139). Ora, se o riso, símbolo de
alegria, é tido por Amado como um veículo de expressão da cultura negra, o fato do menino
rir como Massu, de riso sem igual, é mais comprovativo que quaisquer outros argumentos140
.
O estrito biologismo não apraz literariamente a Amado. O escritor baiano toma a
mistura de sangues como uma verdade absoluta, que não carece de demonstração mais
extensa. O fato basta por si, não há absurdo que a ascendência de Felício remonte a Benedita e
Massu. A mestiçagem a ser discutida em O compadre de Ogum é outra, refere-se à cultura,
consubstancia-se no sincretismo religioso. Até mesmo por isso, o romancista não se demora a
discutir o caso da paternidade, toma-o antes como introito a tema mais relevante.
Para Goldstein (2003, p. 214), o sincretismo proposto por Amado “[...] é muito mais
uma questão de valorização da sociedade, respeito à cultura popular e, sobretudo, coerência
com sua concepção de nação do que um problema propriamente religioso”. Assim, ainda
segundo a antropóloga, “o problema não é colocado em termos de incompatibilidade
cosmológica, mas em termos práticos” (GOLDSTEIN, 2003, p. 206)141
.
Por mais discutível que seja a noção de sincretismo religioso, Amado a toma primeiro
como um exemplo da resistência cultural negra contra a dominação ocidental e, também,
como uma comprovação da tendência nacional para a mistura, para a mestiçagem – nos
termos já expostos anteriormente. Esta última perspectiva sobressai nas entrevistas concedidas
a Raillard (1990), ao The Unesco Courier (1989) e, ainda, a Combes (1989), oportunidade em
que, além de reiterar sua adesão ao sincretismo e à mistura de homens e culturas como
resoluções para o racismo, Amado marca uma oposição à Igreja Católica, refratária a estes
processos142
.
140
Segundo Albuquerque Júnior (2011, p. 249), “[...] Amado, assim como Freyre, apenas invertem o sinal do
discurso naturalista a respeito da raça, da mestiçagem e do negro. Ambos continuam presos à concepção de
etnicidade, revalorizando a raça, do ponto de vista cultural e psicológico”. Poder-se-ia afirmar, então, no caso de
Felício, que o riso seria como os acréscimos neolamarckianos de Freyre. Esta é uma hipótese que merece atenção
e cuidado. Amado não prescinde da noção de “raça”, isso é certo, mas compará-lo ao discurso naturalista, cotejo
que, em parte, serve a Freyre, talvez seja um exagero. Em Amado é muito mais importante a cultura que a
personagem assume do que, propriamente, a cor da pele que possui ou a “raça” a que se vincula. A questão é que
o romancista baiano valoriza as culturas negras por serem elas símbolos de alegria e resistência e as contrapõe à
cultura ocidental dominante, pejada de culpa e tristeza. Assim, suas personagens, à medida que assumem uma ou
outra cultura, passam a ter um ou outro comportamento. Se há algo de determinista nesta perspectiva, não o é de
caráter “racial”, antes cultural. O comportamento funciona, assim, como alegoria para que o autor distinga
culturas. 141
De um modo geral, concorda-se com a antropóloga no que concerne ao sincretismo amadiano. Por isso, a
abordagem desta questão preocupar-se-á apenas com acréscimos que se julga pontuais e que possam corroborar
para se pensar o lugar do negro na visão do mundo de Jorge Amado. 142
“Actuellement, le nouveau cardinal de Bahia, qui a été nommé par Jean Paul II, pense que les religions
africaines, c'est très bien, mais que ça ne doit riens avoir à faire avec la religion catholique et l'Eglise. Je ne sui
pas d'accord avec ça. Pour ma part, je suis résolument partisan du syncrétisme, du métissage des hommes et des
cultures. C‟est la seule façon radicale de combattre le racism” (COMBES, 1989, p. 18).
185
Eis um ponto interessante: o sincretismo amadiano não é mera ingenuidade ou simples
afirmação de um desejo de mistura, antes, comporta em si a crítica do autor à Igreja por
querer se manter distante e superior em relação às religiões afro-brasileiras; convertê-las,
extingui-las. É importante afirmar que tal crítica se restringe ao âmbito da instituição, não se
estende à fé ou à crença de quem quer que seja: Amado não combate uma intolerância com
outra, mas com a perspectiva do respeito e da convivência – daí sua ênfase no sincretismo.
Uma prova disso é que o mesmo julgamento que profere contra a Igreja, o romancista baiano
dirige a Pierre Verger, pesquisador francês que intentou restituir a pureza nagô aos rituais
sincréticos dos candomblés baianos, como explicita em Navegação de cabotagem:
Não sei que espécie de babaquice atacou Verger, padre François e os demais
velhinhos filhos-de-santo, ogãs, babalaôs, sábios titulares do candomblé baiano,
mestres de tudo quanto se refere às seitas afro-brasileiras, ao sincretismo religioso e
cultural, estudiosos da relação África x Brasil, conhecedores das similitudes e das
diferenças, sabendo que elas existem e porque existem, de repente, sem prévio aviso,
se fazem puristas africanos, negros imaculados. Pretendem que cerimônias, rituais,
designações, a língua iorubá, o culto nagô, o candomblé enfim se processe na Bahia
igualzinho ao da África, sem tirar nem pôr: muito se tirou, muito se pôs.
Estabeleceram para tanto um projeto e o levaram a cabo. Tempo perdido, resultado
nulo. Mais poderosa que qualquer ideologia, mesmo baiana, é a realidade que
determina e impõe régua e compasso (Navegação de cabotagem, p. 404).
“Admiro imensamente Pierre Verger [...]. Mas não se pode ir contra o curso das
coisas, nem contra a realidade delas. E a realidade brasileira é a „mistura‟”, completa Amado
em entrevista a Raillard (1990, p. 90). Para o escritor grapiúna a ideia de pureza conduz
inequivocamente ao racismo uma vez que se opõe à integração, à troca com o outro. É neste
sentido que estabelece sua crítica ao movimento de reafricanização dos candomblés baianos
ou de expurgo ao sincretismo. Já em relação à Igreja Católica, além de Jorge Amado criticar a
separação praticada, há ainda o fato de considerá-la como expoente de uma base reacionária
posto que “[...] ainda uma grande parte da Igreja se posiciona com o partido dos ricos contra
os pobres” (RAILLARD, 1990, p. 84).
Retome-se agora o momento em que Ogum decide ser o padrinho de Felício, filho de
Massu, preservando intactos os elos de amizade do grupo. Foi dito, quando do estudo desta
passagem, que a resolução de um problema – quem seria o padrinho – resultava em outro que,
àquela altura, não se revelou qual seria. Pois bem, a nova questão que surge e demanda
solução é a seguinte: como fazer com que um padre, metonímia da Igreja, aceite batizar um
menino que tenha como padrinho um orixá? Apurando os elementos de cunho alegórico,
chega-se à discussão central: fazer o candomblé adentrar a Igreja. Amado não propõe, assim,
186
um “sincretismo unilateral”, tal como ocorre nas ruas e ladeiras da Bahia, em que o
catolicismo penetra no cotidiano do candomblé, mas o inverso não se processa143
. Vislumbra,
antes, um convívio sem barreiras, uma plena aceitação de um no outro, um livre trânsito entre
as duas religiões. Em outras palavras, a quebra do preconceito.
De certo modo, o que está em cena nesta narrativa é a problemática da intolerância
religiosa vista a partir de uma alegoria: as artimanhas do povo-de-santo para que Ogum possa
batizar o seu afilhado. Ora, na medida mesma em que Amado enfoca as preocupações e as
estratégias pensadas e levadas a cabo por Ogum, Mãe Doninha e Jesuíno Galo Doido para que
se tenha acesso ao batizado, revela, justamente por causa da necessidade de tais medidas, a
tensão existente entre catolicismo e candomblé. Ou melhor, desvela a recusa do clero católico
em reconhecer no Outro uma face de si.
O caminho escolhido por Amado para discutir o assunto diverge daquele seguido por
Dias Gomes em O pagador de promessas, texto que remete ao ano de 1959 e cuja primeira
dramatização foi encenada no ano seguinte, 1960144
. Na peça do dramaturgo baiano, a Igreja,
através das vozes do padre Olavo e do monsenhor Otaviano, é explícita em sua intolerância
uma vez que impede o acesso de Zé-do-Burro ao altar de Santa Bárbara para cumprir
promessa feita em Terreiro de Iansã. Tal procedimento não é observado em Os pastores da
noite a não ser em entrelinhas. A despeito de o padre Gomes ser descrito como um “baiano
cordial” e nada dogmático (Os pastores da noite, p. 163), os cuidados para que não se
desconfie da verdade por trás do padrinho – Ogum cavalgando um seu filho, Artur da Guima
– dão conta de explanar o clima de não aceitação da Igreja em face do povo de santo.
Ademais, é interessante ressaltar o sacrifício de Josefa, mãe do Padre Gomes, que paga
com a própria vida, vítima de bexiga, a incúria com seu Omolu, deus da saúde e da doença, da
morte e da vida. De filha cauta e primorosa, Josefa passa a descuidar do santo à medida que o
143
Cumpre ressaltar que as referências aqui são sempre em termos institucionais. Ou seja, quando se fala que a
influência do candomblé não se processa no catolicismo, afirma-se que a instituição católica se mantém
refratária às associações entre rituais, mitologias, santos e orixás. Obviamente, isso não impede que um católico
apostólico romano, uma vez em situação difícil na vida, procure a ajuda de mães ou pais de santo e se submeta a
limpezas ou ebós, fato muito corriqueiro entre os candomblés da Bahia. 144
O próprio Dias Gomes faz ressalvas em relação à leitura de sua peça pelo viés da intolerância religiosa: “Ele
[Padre Olavo] não é um símbolo de intolerância religiosa, mas de intolerância universal. Veste batina, podia
vestir farda ou toga. É padre, podia ser dono de um truste. E Zé-do-Burro, crente do interior da Bahia, podia ter
nascido em qualquer parte do mundo [...]. O Pagador de Promessas não é uma peça anticlerical – espero que isso
seja entendido. Zé-do-Burro é trucidado não pela Igreja, mas por toda uma organização social, na qual somente o
povo das ruas com ele confraterniza e a seu lado se coloca [...]”. (GOMES, 1979, s.p). Acredita-se, não obstante
o respeito à opinião do autor, que a discussão acerca da intolerância religiosa se faz mais forte, mais presente ou
mesmo mais atual do que aquela originalmente pretendida. O pagador de promessas foi encenado pela primeira
vez no Teatro Brasileiro de Comédia, em São Paulo, em 29 de julho de 1960. Os atores Leonardo Vilar e Elísio
Albuquerque deram vida respectivamente à Zé-do-Burro e Pe. Olavo. A peça contou ainda com a grande atriz
Nathália Timberg no elenco, interpretando Rosa, esposa de Zé-do-Burro. A direção coube a Flávio Rangel.
187
filho Gomes vai avançando no seminário. Recusa a fazer a iniciação de Teresa, filha sua e
também de Omolu, igualmente vitimada pela varíola. Por fim, denega completamente o orixá,
não frequenta mais as festas nem se submete às obrigações rituais, com o que vem a falecer.
Tanto sacrifício e sofrimento por respeito “[...] ao filho seminarista, preparando-se para padre
[...]” (Os pastores da noite, p. 163). Ora, qual o motivo de tanta expiação senão um interdito
da Igreja ao povo de santo? Uma interdição que não é verbalizada como em O pagador de
promessas, mas que, por certo, impõe-se tacitamente145
.
Aliás, talvez seja interessante avançar em uma hipótese. O padre Gomes, é
descendente direto de um antigo e respeitado Obá de Xangô, o avô Ojuaruá, pai de Josefa.
Não obstante ainda criança Gomes tenha seguido os passos da família materna, ao ingressar
no seminário “[...] esqueceu o mulatinho a visão colorida das macumbas, das rodas
harmoniosas das iaôs, o som dos atabaques no chamado dos santos, a presença dos orixás nas
danças rituais, esqueceu o nome do seu avô Ojuaruá [...]” (Os pastores da noite, p. 163). Ora,
este apagamento da memória ancestral narrado em Gomes a partir do instante em que ele
passa a se dedicar ao catolicismo é condizente, e quiçá seja também uma alegoria, com os
intentos de práticas evangelizadoras operadas no Brasil desde o antanho colonial. Operações
que, baseadas em uma lógica salvacionista, visavam – e ainda hoje visam – romper os laços
originais de identificação africana e afro-brasileira com o Sagrado uma vez que, como já
explicitado anteriormente, a religião é um importante veículo de resistência e identidade.
Converter para melhor dominar e submeter, em outras palavras.
O apagamento das raízes africanas do padre Gomes constituiria, portanto, mais um
índice do ardil eclesial no trato com as religiões afro-brasileiras. Insídia que remonta aos
primeiros missionários cristãos enviados a África, que se perpetuou nos navios negreiros, nos
tempos da Colônia e do Império; espraiou-se pelas Repúblicas, a velha e a nova, pelas
democracias e ditaduras da história deste país: aceitar adeptos do candomblé nos templos
devotados aos santos católicos sem, contudo, aceitar os seus respectivos deuses é uma
145
As falas do padre Olavo, personagem de O pagador de promessas, nunca são encontradas na boca do Padre
Gomes, responsável pela Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, em O compadre de Ogum. Em
determinado momento da peça, por exemplo, o padre Olavo toma da palavra e afirma que um “[...] ritual pagão,
que começou num terreiro de candomblé, não pode terminar na nave de uma igreja” (GOMES, 1979, p. 52). O
padre Gomes, por sua vez, sabe que sua assistência é composta, em sua maioria, por pessoas de duplo
pertencimento religioso, ou seja, que cumprem uma prática sincrética aliando, na medida do possível,
catolicismo e candomblé. A despeito das diferenças entre padres, a instituição católica é uma só, intolerante e
intransigente, como atestam os necessários sacrifícios de Josefa.
188
artimanha, até hoje bem sucedida, de conversão paulatina – processo talvez indiciado através
do apagamento da ascendência materna do padre Gomes146
.
Cabe ainda apontar uma semelhança significativa entre a peça teatral de Dias Gomes,
O pagador de promessas, e a narrativa de Jorge Amado, O compadre de Ogum. Em ambas, a
despeito da intolerância da Igreja, o sincretismo se realiza no povo da Bahia. Em O pagador
de promessas, a personagem Minha Tia, vendedora de quitutes afro-brasileiros, é uma das que
defendem a similitude entre Iansã e Santa Bárbara, sem contar o próprio Zé-do-Burro que,
não raro, interpela o padre para afirmar a parelha. Já em O compadre de Ogum, todas as
personagens vinculadas ao candomblé, inclusive aquelas localizadas no topo da hierarquia
religiosa, mantém, no mínimo, uma relação de respeito e proximidade com a religião de Jesus.
A exigência do batismo de Felício parte de Veveva, avó de Massu, ebômin do Axé da Meia
Porta, irmã de santo da venerável iyalorixá Doninha, que aprova a reivindicação. Pé-de-
Vento, um dos amigos de Massu, com o intuito de garantir que todos fossem padrinhos do
menino, sugere que Felício fosse batizado “[...] no padre, no batista, no testemunha de Jeová,
nesses protestantes todos e mais no espiritismo” (Os pastores da noite, p. 140-141). Solução
prática a de Pé-de-Vento, porém inaceitável, afinal que “[...] diabo iria o menino fazer pela
vida afora com todas essas religiões? Não ia ter tempo pra nada, a correr de igreja para igreja.
Bastava com o católico e o candomblé que, como todos sabem, se misturam e se entendem...
Batizava no padre, amarrava o santo no Terreiro” (Os pastores da noite, p. 149). Ademais, 146
O depoimento que o padre negro José Gilberto de Luna concede ao documentário Jorge Amado (1995), de
João Moreira Salles, é duplamente esclarecedor uma vez que aborda tanto a visão da Igreja sobre o sincretismo
religioso, quanto a respeito da constituição “racial” do país. Sobre o primeiro tema, o padre afirma: “A posição
da Igreja Católica frente ao sincretismo religioso é a seguinte: uma atitude de respeito. Depois, também, de
paciência. Ela tem que ter paciência e pouco a pouco levá-lo à adoção de uma religião pura”. Ora, o que o Pe.
José Gilberto de Luna declara diverge amplamente da postura inflexível e austera exercida pelo Pe. Olavo em O
pagador de promessas, mas já não está tão distante daquilo que acredita o Pe. Gomes, de O compadre de Ogum,
ao tratar com respeito o povo de santo, contanto que ele seja católico. Noutro momento, o Pe. José Gilberto de
Luna discorre sobre a formação do povo brasileiro: “Certa vez perguntaram a alguém muito letrado qual a
origem do brasileiro. Então, a pessoa respondeu o seguinte, „ou está no navio, ou no morro ou na senzala‟. Está
no navio porque português viajava muito. No morro, porque o índio lá se encontrava e na senzala porque era a
habitação própria do negro. Herdamos do português a vivacidade, do negro, a formação melódica, o biótipo
melódico, e do índio, o biótipo sentimental”. Nota-se nesta fala a relativização do colonialismo lusitano,
simplificado em muitas viagens e destituído de sua inerente violência, assim como a naturalização da condição
escrava do negro uma vez que a senzala, no entender do padre, configura-se na habitação própria dos
descendentes de africanos. Como se este trecho já não fosse revelador por si só, o Pe. José Gilberto de Luna
continua, dessa vez a respeito de si: “Minhas origens, eu quero acreditar, que são muito ligadas ao índio e ao
português. Português por causa do nome. E „indígeno‟, o tipo indígena...”. Cabe uma pergunta cuja resposta é
dedutível sem muito esforço: qual a razão de tão forte desejo, de querer tão intenso? Consciente, talvez, da
natureza preconceituosa de seu discurso, o padre continua, visivelmente constrangido: “[...] reconheço que eu
sou também com uma mistura de negro”. O apagamento da memória ancestral do Pe. Gomes não é por demais
próximo deste “querer genealógico” expresso pelo Pe. José Gilberto de Luna? Assim, talvez seja necessário
considerar que, para além do acaso, possa existir no discurso do padre Luna uma possível evidência do
embotamento das matrizes africanas do povo brasileiro, processo em grande parte relacionado com a Igreja
Católica cujo imperativo da conversão combate, enfraquece e desfaz elos ancestrais, como fica claro no exemplo
ficcional do Pe. Gomes.
189
Jesuíno Galo Doido, Obá de Xangô, é quem propõe que o nome Antônio de Ogum conste
como padrinho de Felício, posto que “Ogum não era santo Antônio? Pois então: era só dar o
nome completo, Antônio de Ogum” (Os pastores da noite, p. 168).
Tais entrechos não significam sobremaneira uma desvalorização do candomblé frente
ao catolicismo, mas justamente o oposto: o engrandecimento da religiosidade afro-brasileira
em face da instituição católica, uma espécie de elação que deriva do poder de transigir e da
abertura à alteridade – características que Amado projeta no povo e, por consequência no
candomblé, em oposição às elites147
. Convém ainda ressaltar que este processo de abertura ao
Outro não se imiscui com um possível apagamento do Eu já que o povo de santo sabia
distinguir o padre Gomes como “[...] sacerdote dos orixás de branco, como designavam os
santos católicos. Com tal designação marcavam sua comunidade com seus orixás africanos, e,
ao mesmo tempo, sua diferença” (Os pastores da noite, p. 164. Grifos do autor). Aliás,
“orixás de branco” é, por si só, uma expressão que desafia o poder ocidental dominante uma
vez que comumente se fala em “santos negros”, traduzindo o termo iorubá “orixá” por um
equivalente católico, mas o contrário não é usual. Ora, se “orixá” e “santo” são equivalentes
semânticos, por que não designar por “orixás brancos” os santos católicos?
A continuar esta interpretação, uma narrativa que possibilita a Ogum entrar na Igreja
para ser padrinho de Felício, filho de Massu e Benedita, talvez não possa ser considerada
apenas uma história sobre o sincretismo religioso baiano, até mesmo porque as portas do
Bomfim, no alto da Colina Sagrada, continuam fechadas nas quintas de procissão de Oxalá e
o banho de pipoca de Omolu não adentra a Igreja de São Lázaro, na Federação – o que atesta
a atualidade tanto de O pagador de promessas quanto de O compadre de Ogum. Sem
prescindir de ser uma narração acerca do sincretismo popular, aquele que porventura possa
existir no seio do povo pobre baiano, O compadre de Ogum é, ainda mais, um texto em favor
do povo negro e do candomblé, do povo negromestiço. Afinal, abrir as portas da Igreja a um
orixá é estabelecer, ainda que ficcionalmente, o respeito e a aceitação inexistentes no
cotidiano da Cidade da Bahia.
147
A projeção amadiana de um povo aberto às alteridades coincide com o ethos do povo de santo, herdeiro das
tradições africanas. Neste sentido, importante observar o que revela Pierre Fatumbi Verger, em entrevista a
Gilberto Gil: “O católico mata aqueles que não querem virar católicos. E lá [na África, no candomblé] é o
contrário. Cada um tem os seus santos, o seu nome, suas características e respeita o outro. Há uma compreensão
do outro que é complementar à dele” (TEMPO REI, 1996). Ora, se esses são alguns dos valores que estruturam o
que se vem chamando aqui de uma mestiçagem singular amadiana, o termo proposto, negromestiçagem, torna-se
ainda mais pertinente.
190
4 TENDA DOS MILAGRES, ROMANCE PARADIGMÁTICO148
...E o povo negro entendeu
que o grande vencedor
se ergue além da dor.
Tudo chegou sobrevivente num navio
Quem descobriu o Brasil foi o negro que viu
a crueldade bem de frente
e ainda produziu milagres
de fé no extremo Ocidente
Ojuobá ia lá e via
Ojuobahia...
Caetano Veloso. Milagres do Povo.
Já não causa qualquer impacto, mossa ou ansiedade o anúncio de um estudo acerca da
mestiçagem ficcionalizada por Amado em Tenda dos milagres, uma vez que são tantas e tão
diversas, algumas antigas e outras contemporâneas, as pesquisas que adentraram e adentram
por este romance, por esta seara. Em verdade, a leitura desta obra publicada em 1969 quase se
assemelha a uma obrigação do pesquisador que verdadeiramente pretenda investigar as
relações raciais documentadas e discutidas por Amado, ainda que o texto final a ser escrito
prescinda de abordá-la. Tal fato não se deve, sobremaneira, à impossibilidade de outras
narrativas amadianas conterem elementos passíveis da elucubração almejada; muitas são as
que possuem fôlego próprio no que concerne à miscigenação como O sumiço da santa,
Tocaia Grande e Os pastores da noite, entre outras mais. Ainda assim, é de alguma forma
admissível especular, mesmo entre aqueles que não o discutem, certa concordância em
relação à posição central de Tenda dos milagres no que tangencia o pensamento sobre
“raças”, cultura, povo e nação do escritor baiano – daí a quantidade de estudos sobre este livro
em particular, soma apenas comparável às abordagens de Gabriela, cravo e canela ou
Jubiabá. Um possível consenso que talvez se justifique a partir das considerações propostas
por Olinto (1993, p. 21), que assevera: “Sob muitos aspectos pode ser, esse [Tenda dos
milagres], o mais bem realizado romance do autor em termos de um posicionamento em face
do problema racial brasileiro”.
148
O título deste tópico é tomado de empréstimo da antropóloga Ilana Seltzer Goldstein (2003, p. 204-205) que
classifica Tenda dos milagres da seguinte forma: “Enfim, Tenda dos milagres pode ser considerado o livro
paradigmático de Jorge Amado, tanto no que concerne ao elogio da mestiçagem, quanto em função da
convivência entre o erudito e o popular”.
191
Calixto (2011, p. 127) acredita que Tenda dos milagres tenha se tornado “[...] uma
espécie de referência autorizada do pensamento de Amado acerca da nação”. De acordo com a
historiadora, o fato de o romancista sempre referir-se a esta narrativa, dentre todas que logrou
escrever, como aquela em que mais se inseriu, que mais o emocionou, permite ou até solicita
esta interpretação.
Há, de fato, em entrevistas várias, uma série de assertivas do escritor baiano que
posicionam Tenda dos milagres em um lugar de destaque em relação às outras obras que
compõem a sua produção romanesca, principalmente no que concerne à discussão acerca da
formação do povo brasileiro. Naquela cedida a Raillard (1990), por exemplo, Amado revela
que Tenda dos milagres se constitui um retorno a Jubiabá, distanciado, porém, em 34 anos,
do que resulta uma maior experiência de vida e de literatura – com o que o supera, pode-se
inferir. Amado continua:
Tenda dos Milagres é Jubiabá revisitado, mas a conotação é diferente. Trata da
questão da formação da nacionalidade brasileira, da luta contra os preconceitos,
principalmente o racial, contra a pseudociência, a pseudo-erudição “europeizante”,
contra as teorias daquele francês que foi embaixador no Brasil [o conde Arthur de
Gobineau] (RAILLARD, 1990, p. 105).
Calixto (2011, p. 127) finaliza com o seguinte argumento: “[...] pode-se dizer que não
houve significativa mudança no discurso de Amado sobre o povo e a cultura brasileira até o
fim de sua trajetória, o que permitiu que o status quo da obra permanecesse inabalado [...]”.
Para Olivieri-Godet (2004, p. 116), “[...] Tenda dos Milagres é o [romance] mais
representativo do pensamento heterotópico de um autor que, desde os anos [19]30, desloca e
contraria os paradigmas sociopolíticos e morais das elites brasileiras”. Endossa-se, sem
restrições, as perspectivas aventadas pela historiadora, por Olivieri-Godet e também por
Olinto. Assim, é justamente desta possibilidade de leitura que se trata a proposta de
abordagem aqui empreendida, ou seja, perscrutar a obra com a intenção de observar qual o
país mestiço que Amado projeta, em que ele se singulariza em relação àquele enunciado
oficialmente.
Nesta perspectiva, cumpre uma advertência: como a proposta de Amado é de uma
mestiçagem sem exclusões, obviamente Pedro Archanjo Ojuobá vive e harmoniza em si tanto
o branco quanto o mundo negro – o que, se bem observado, se percebe já em seu nome, vez
que arcanjo remete à mitologia cristã, Pedro é o nome de um dos doze apóstolos de Cristo,
considerado simbolicamente o primeiro Papa da Igreja Católica, e Ojuobá faz referência ao
pertencimento à cultura e religiosidade afro-brasileiras. Assim, Archanjo afirma: “Sou um
192
mestiço, tenho do negro e do branco, sou branco e negro ao mesmo tempo” (Tenda dos
milagres, p. 316). Note-se que a alternância de posições entre os termos “negro” e “branco”,
em orações subsequenciadas, parece indicar uma equivalência entre ambos, uma vez
harmonizados em alguém que é concomitantemente Archanjo e Ojuobá.
A análise a ser empreendida aqui, sem desconhecer a importância desta confluência,
prescinde de abordá-la mais profundamente. Tal recorte se dá justamente em face daquilo que
se objetiva neste trabalho: verificar a hipótese de uma mestiçagem singular, uma
negromestiçagem. Assim, compete investigar prioritariamente como o “mundo negro” é
figurado neste “universo mestiço” alcançado pela literatura amadiana.
Desta forma, a leitura de Tenda dos milagres proposta nesta seção, de certo modo,
reitera e confirma o que foi escrito sobre Os pastores da noite, mas, a despeito de a
abordagem ser praticamente a mesma, não há qualquer repetição: o que se observou em um é
ratificado e verticalizado no outro, que vai além. Se em Os pastores da noite Jorge Amado
procura salvaguardar vivências e valores que julga em perigo, em Tenda dos milagres o
alvitre é percorrer, discutir, contrapor e projetar uma história e uma formação nacionais que
sejam fundamentadas na mestiçagem e no povo, cuja alma, já o disse Marotti (1973, p. 70),
Amado vislumbra negra149
. Em outras palavras, trata-se de um país abalizado de um povo
negromestiço.
O romance se estrutura a partir de dois eixos temporais, um presente (1968) e outro
pretérito (1868 a 1943). O primeiro cobre o Ano do Centenário de Archanjo, quando se
erigem comemorações em torno de seu nome150
. Já o segundo, remonta exatamente ao
período de vida de Mestre Pedro, ou seja, setenta e cinco anos. Os vinte e cinco anos de
diferença entre a data limite de um eixo temporal e o início do outro são de absoluto silêncio –
tanto em relação à narrativa, uma vez que não há qualquer referência a este período, quanto
no que concerne à obra de Archanjo, esquecida, desconhecida, silenciada, por fim. Segundo
Olivieri-Godet (2004, p. 117), esta “[...] dupla articulação temporal desperta a atenção do
leitor para o abismo que separa o vivido [1868-1943] da narração do vivido [1968], colocando
149
“Jorge Amado, nell‟evoluzione di una tipologia, evolve nello stesso tempo una mentalità che lo porta a
identificarsi sempre piú con l‟anima popolare, e quest‟anima è negra” (“Jorge Amado, na evolução de uma
tipologia, desenvolve ao mesmo tempo uma mentalidade que o leva a identificar-se sempre mais com a alma
popular, e esta alma é negra”. Tradução nossa para fins deste trabalho). 150
Há muitos textos acadêmicos nos quais o sobrenome de Mestre Pedro é grafado sem a letra “h”, Arcanjo
portanto. Como esta grafia é algo comum, é possível que algumas edições de Tenda dos milagres tenham sido
publicadas constando “Arcanjo” ao invés de “Archanjo”. Neste trabalho, em geral conservar-se-á “Archanjo”
como padrão em respeito à edição utilizada, grafando-se “Arcanjo” quando em citação de outrem, se assim
estiver no original. Ademais, Manzatto (1995, p. 127) explica sobre o “h”: “Se se tem em conta que em fins do
século passado o português usado no Brasil era antigo, há de se compreender que essa forma de grafia
corresponde às necessidades do romance [...]”.
193
em evidência as manobras empregadas pelas elites da nação para transformar a história em
ideologia”. Isto é, possibilita o cotejo entre o que deveras foi a vida de Archanjo e o discurso
oficial sobre esta mesma biografia, que visa adequá-la aos estreitos padrões da “fina flor”
brasileira151
.
A narrativa se desenrola a partir de vinda de James D. Levenson ao país em 1968,
primeiro eixo temporal, com o compromisso de ministrar uma série de conferências na
Universidade do Brasil, situada no Rio de Janeiro. Após as atividades acadêmicas, e tendo
recusado uma enxurrada de outros convites, o “[...] filósofo, matemático, sociólogo,
antropólogo, etnólogo, muita coisa mais, professor da Columbia University, Prêmio Nobel de
Ciência [...] e, como se tudo isso não bastasse, norte-americano” (Tenda dos milagres, p. 31)
embarca para a Cidade da Bahia sem, no entanto, revelar o motivo da viagem. Sua chegada à
capital baiana é acompanhada de grande alvoroço promovido tanto pela imprensa, quanto por
professores. Ana Mercedes, repórter e poetisa, destaca-se entre todos – e todas – no saguão do
aeroporto e logo desperta a atenção do sábio estadunidense, que se encanta. Marcos, ligado ao
Jornal da Cidade, toma da palavra na coletiva de imprensa e faz a primeira pergunta, que
versa sobre Herbert Marcuse e Karl Marx, questão a que Levenson se recusa a responder,
posto estivessem em uma entrevista, não em uma aula ou palestra. Ademais, não tinha vindo à
Bahia com intuito de discussões acadêmicas, mas para conhecer a “[...] a cidade onde viveu e
trabalhou um homem notável, de idéias profundas e generosas, um criador de humanismo,
151
Manzatto (1994, p. 123) fala em três ou quatro tempos narrativos, cada um correspondente a uma época e a
um narrador, “[...] quase que 3 histórias distintas. Assim, um plano é o de Fausto Pena, escrito na primeira
pessoa do singular e contando sua vida e seus problemas no ano de 1968; outro plano é o das comemorações do
centenário de Pedro Archanjo, situado também em 1968, mas escrito na terceira pessoa do singular e cujo
narrador não é Fausto Pena; o terceiro plano é o da vida de Pedro Archanjo, e que conta sua história [...]; narrado
na terceira pessoa. Este último plano constitui a pesquisa realizada por Fausto Pena, e supõe-se que seja ele o
narrador”. O quarto tempo, apenas aventado, poderia ser o “[...] tempo da leitura: o tempo da retomada da figura
de Archanjo pelo leitor do romance. [...] tempo de ação no combate ao racismo”. Nelson Pereira dos Santos
relata que a multiplicidade de tempos e espaços, bem como de narradores constituiu um problema no que tange à
adaptação do romance para o cinema. O cineasta afirma: “A solução que encontrei foi a de fazer de conta que o
filme é um espetáculo de televisão, tomando como espetáculo de televisão aquele que começa quando se liga o
televisor e termina quando ele é desligado. Nesse tempo, em torno de duas horas, tudo pode acontecer em
relação ao espaço e tempo e especialmente com o narrador, que pode mudar quando menos se espera, passando
dos momentos dramáticos ficcionados para o relato jornalístico, sem esquecer o delicioso imaginário da
publicidade. Dentro dessa concepção de narrativa caótica, foi resolvida com verossimilhança a passagem do
presente para o passado, e vice-versa, bem como a mudança de espaço e de narrador” (SANTOS, 1997, p. 31).
Ruchti (1995, p. 59), que procura investigar a figura do autor entre as personagens escritoras de Tenda dos
milagres, faz uma divisão semelhante à de Manzatto, designando-a “tre livelli del discorso” (três níveis do
discurso). Embora esta divisão seja extremamente funcional para as análises propostas por Manzatto que, dentre
outras coisas, analisa o foco narrativo, e por Ruchti, já que a cada nível de discurso corresponde uma
personagem-autora, pouco acrescentaria para a discussão proposta por esta investigação, uma vez que está
limitada a observar a mestiçagem. Assim, um dos três planos, como propõe Manzatto, ou um dos três níveis do
discurso, como prefere Ruchti, aquele que se refere às agruras de Fausto Pena, muito pouco acrescenta à
temática pretendida, de modo que não se justifica considerá-lo em separado.
194
vosso concidadão Pedro Archanjo. Para isso, e somente para isso, vim à Bahia” (Tenda dos
milagres, p. 30).
O silêncio que se seguiu a esta revelação, e que se estendeu até um elogio do
estadunidense a Ana Mercedes, é o mesmo daquele que se espraiou entre os vinte e cinco anos
que separam a morte de Archanjo da vinda de James D. Levenson à Bahia e que resulta do
total apagamento da obra e do autor, ou seja, deriva de uma intensa produção de esquecimento
arquitetada pelas elites baianas.
Uma vez rompido o silêncio perpetrado, a oficialidade baiana, bem como a imprensa e
os intelectuais da terra, iniciam um processo de apuração a respeito da vida de Archanjo e, em
seguida, de depuração152
. É, pois, os meandros e pressupostos desta apropriação deformativa
que Amado revela e denuncia.
O leitor passa a desvendar a história de Archanjo, assim como os motivos pelos quais
sua obra foi obliterada, a partir do momento em que Levenson, por intermédio de Ana
Mercedes, contrata Fausto Pena – poeta, sociólogo e cabrão – para vasta e documentada
pesquisa sobre Mestre Pedro. Em verdade, aquilo que se lê acerca da vida de Pedro Archanjo
remonta, em grande parte, ao trabalho de devassa empreendido pelo sociólogo. Fosse de outro
jeito, ficasse a cargo das elites a história daquele que as desafiou, e o leitor não seria
apresentado a “[...] personagens marginais, injustiçados pela sociedade, que se recusam a
continuar excluídos da literatura ou vistos de cima com olhar condescendente. [que]
conquistam seu próprio espaço e avançam para o primeiro plano” (MACHADO, 2006, p. 80).
É justamente quando Tenda dos milagres começa a adentrar, através da escrita de
Fausto Pena, na vida de Pedro Archanjo, que “[...] o texto ativa a memória histórica sobre as
componentes africanas da cultura baiana, evidenciando a origem do preconceito, da divisão e
da hierarquia sociais” (OLIVIERI-GODET, 2004, p. 120).
Há, salvaguardadas as devidas proporções, uma parelha entre a escrita de Fausto Pena
sobre Archanjo, quando a sociedade em derredor já o havia obliterado, e a do romancista
Jorge Amado, que escreve Tenda dos milagres em um momento no qual a Ditadura Militar
objetivava neutralizar as discussões étnico-raciais no país, então crescentes. A adoção do
“mito da democracia racial” como discurso oficial dos generais remete, pois, aos vínculos de
dependência com os Estados Unidos, às relações mantidas com o governo sul-africano, país
então sob o regime de apartheid, bem como à necessidade inerente a qualquer regime
152
O termo “depuração”, referindo-se à remoção de impurezas de uma superfície que se pretende imaculada, é
utilizado aqui e doravante a partir do ponto de vista das elites que operam este processo no romance. Portanto,
sempre que mencionado, evoca a construção de uma narrativa para Archanjo que diverge amplamente do que foi
sua vida e obra.
195
ditatorial de falsear uma homogeneidade estável em contextos marcados por uma
heterogeneidade instável. É neste plano que a história de Pedro Archanjo aponta para as
fissuras sociais e evidencia o continuum de exclusão racial que as acarreta. De acordo com
Oliveira:
Assim, no exacto momento em que a sociedade brasileira (re)formulava seus
projetos de identidade nacional, partindo do pressuposto de que havia um só povo e
uma única nação, tendo o Estado político-jurídico como guardião e provedor, sendo
esta a única forma capaz de conduzir a nação ao seu destino de desenvolvimento e
progresso social baseados no capitalismo, Jorge Amado publica Tenda dos Milagres
e dá visibilidade a personagens representativas de grupos étnicos considerados
periféricos ou marginais (OLIVEIRA, 2006, p. 14).
Para Calixto (2011, p. 130), em face do relatado acima, “[...] Amado situou a ação do
herói de seu romance em um contexto histórico de grande avanço das teorias racistas e de
condenação da mestiçagem étnico-cultural”. A julgar pela política dos generais no que
tangencia as lutas de afirmação racial no Brasil, talvez se possa mesmo inferir uma tentativa
do escritor baiano em falar dos anos de chumbo por meio da evocação de um tempo pretérito
– ou, pelo menos, de expor algumas raízes da desigualdade estruturante da sociedade
brasileira.
Na medida em que os eventos da vida de Pedro Archanjo se descortinam, o leitor entra
em contato com personagens que possuem equivalência extraliterária e que assinalam
passagens deveras destoantes de uma nação constituída sob o signo de uma “democracia
racial” – artifício que favorece a interpretação de um propósito em revelar a face obscura do
embuste, isto é, evidenciar justamente sua inexistência. São os casos, por exemplo, das
personagens Nilo Argolo e Pedrito Gordo, bem como do babalorixá do Ilê Ogunjá Procópio
de Oxóssi, as duas primeiras como agentes de um racismo institucionalizado e a segunda
como contraparte às políticas de cunho racista.
O catedrático de Medicina Legal da Faculdade de Medicina da Bahia, Dr. Nilo Argolo
é, em grande parte, inspirado no médico maranhense radicado na Bahia, e também professor
da mesma instituição, Raimundo Nina Rodrigues, falecido em 1906 e já devidamente
comentado na primeira seção – talvez o mais pessimista dentre os que tentavam traçar planos
para o país. Extrapola-o, porém, na medida em que a personagem se constitui como uma
representação arquetípica do racismo, ou seja, como uma ficcionalização pura e simples da
196
natureza, da essência, e da ampla abrangência de um conceito – ou, no caso, de um
preconceito153
.
Pedrito Gordo, por sua vez, remonta fielmente às campanhas contra os candomblés
baianos levadas a termo por Pedro Azevedo Gordilho, alcunhado Pedrito, delegado auxiliar da
1ª Circunscrição, nas imediações da Piedade, entre os anos de 1920 e 1926. De acordo com
Lühning (1995/1996, p. 195), Pedrito “[...] não foi o primeiro, nem foi o último delegado a
perseguir o candomblé. Foi, porém, um dos mais violentos e temidos, e de certa forma tornou-
se um símbolo da perseguição durante uma certa época”.
Sobre o babalorixá Procópio, contemporâneo e opositor ao delegado auxiliar Pedro
Gordilho, Amado, em entrevista a Raillard (1990, p. 40), afirma que, dentre todos os pais de
santo da Bahia, ele foi o mais perseguido, “[...] tinha as costas marcadas pelo chicote da
polícia”. Procópio, conjuntamente a Archanjo, personagem síntese de diversas personalidades
negras do mundo “real”, encenam a luta contra o racismo, que se configura na articulação de
teoria e prática entre Nilo Argolo e Pedrito Gordo154
. Neste contexto, é possível flagrar
Archanjo como o exato oposto de Nilo Argolo e, por conseguinte, se o médico e professor foi
aqui definido como uma representação arquetípica do racismo, Archanjo pode ser
inversamente conceituado como uma representação arquetípica do antirracismo, ou seja,
como “[...] a própria idéia mestra do romance: a possibilidade de união, de mestiçagem [...]”
(MANZATTO, 1994, p. 149). O embate de Archanjo contra o racismo manifesto
principalmente em Nilo Argolo e Pedrito Gordo, mas extensivo à boa parte da sociedade
baiana, direciona a leitura do segundo eixo temporal, ou seja, dos setenta e cinco anos da vida
de Mestre Pedro.
153
Não obstante a associação entre Nilo Argolo e Nina Rodrigues seja algo corrente nos estudos sobre Tenda dos
milagres, cumpre informar que tal parelha é funcional, mas, talvez, não seja exatamente precisa, senão com
ressalvas. Acontece que, se por um lado as teorias defendidas por Nilo Argolo são as mesmas do médico e
professor maranhense, incluindo entre elas a degeneração dos povos mestiços, por outro Nina Rodrigues nunca
apoiou ou aceitou a violência policial contra a população negra, que tinha os candomblés como principal alvo. Já
Nilo Argolo é a representação arquetípica do racismo, uma vez que se vincula às premissas do evolucionismo e
do darwinismo social, bem como à antropologia criminal de Lombroso; apoia a tentativa de expurgo dos
candomblés baianos, do samba e da capoeira, faz projetos de cunho amplamente segregacionista, como a instituir
e oficializar um regime de apartheid, além de ser um grande entusiasta do “Führer” Adolf Hitler, uma vez que o
compara a Cristo, designando-o novo redentor da humanidade. As perspectivas adotadas por Nilo Argolo que
excedem as teorias abraçadas pelo médico no exercício de sua cátedra não condizem com a postura de Nina
Rodrigues – o que não lhe diminui o racismo de suas premissas científicas, obviamente. Assim, talvez seja mais
justo admitir uma grande influência de Nina Rodrigues para a conformação da personagem Nilo Argolo, mas
evitar afirmações que mal enquadrem um na moldura do outro. 154
“Pedro Archanjo é a soma de muita gente misturada: o escritor Manuel Quirino, o babalaô Martiniano Eliseu
do Bomfim, Miguel Santana Obá Aré, o poeta Artur de Sales, o compositor Dorival Caymmi e o alufá Licutã – e
eu próprio, é claro. De todos eles Archanjo incorpora um traço, uma singularidade, a preferência, o tom da voz, o
gosto da comida, o trato das mulheres, a malícia” (Navegação de cabotagem, p. 139).
197
4.1 DOS SENTIDOS DO CANDOMBLÉ155
Em determinado momento do romance, quando pretende situar o espaço onde Lídio
Corró produz e vende seus quadros, a Tenda dos Milagres que dá nome ao livro, como o
elemento vital de todo o centro velho da Cidade da Bahia, Amado faz referência ao “[...]
Mercado de Yansan (ou de Santa Bárbara, à escolha e gôsto do distinto” (Tenda dos milagres,
p. 116). Embora posicionada quase despretensiosamente em meio a tantas outras localidades
citadas, há qualquer coisa de específico na forma como Amado se reporta ao Mercado que
talvez justifique a necessidade de empreender alguma atenção a tal nomenclatura.
A dupla possibilidade terminológica advinda com a mestiçagem ou, mais
especificamente, com o sincretismo, admite que a mesma localidade seja associada a uma
santa católica, bem como a um orixá do panteão nagô. Este procedimento não é,
sobremaneira, exclusividade do referido Mercado, mas configura uma constante entre festas e
estabelecimentos comerciais que se espraiam por ruas e ladeiras da capital baiana. Assim, a já
referida Festa de Nosso Senhor do Bomfim, que acontece toda segunda quinta-feira do ano, é
também a Procissão das Águas de Oxalá para o povo de santo; a Festa de Santa Bárbara, a 04
de dezembro, é a mesma Festa de Iansã e a Festa de São Roque, a 16 de agosto, é igualmente
Festa de Obaluaiyê. De forma idêntica, lojas de artigos religiosos ligados ao candomblé ou
mesmo as inúmeras bancas de folhas que se espalham pela cidade fazem referências a santos
católicos nos nomes que as identificam, com grande incidência de Santas Bárbaras e Sãos
Jorges, haja vista a famosa Feira de São Joaquim156
. É possível verificar as mesmas
ocorrências também no plano estritamente religioso: através da ferramenta de busca existente
no sítio eletrônico do projeto “Mapeamento dos Terreiros de Salvador”, cuja coordenação
geral esteve a cargo do Prof. Jeferson Bacelar, constata-se a existência de, ao menos, quatro
Terreiros de candomblé dedicados a Iansã, mas que se referem à Santa Bárbara no nome que
155
O título deste tópico poderia ser “Dos negros sentidos em Tenda dos milagres”, entretanto, se dotado de
tamanha amplidão, incidiria em muitas e desnecessárias repetições daquilo que já fora tratado em Os pastores da
noite. Os sentidos da festa, da amizade, da alegria, do riso permanecem incólumes se comparados um e outro
romance, embora sejam mais aprofundados em Tenda dos milagres. Um exemplo importante desta continuidade
pode ser percebido quando da morte de Archanjo. Neste contexto, Mestre Budião, velho capoeirista, insiste em ir
ao enterro do amigo de longa data, a despeito de sua sobrinha tentar dissuadi-lo da ideia por causa das limitações
advindas com a idade. À tentativa da sobrinha, Budião responde exaltado que além dos compromissos de
amizade que o ligavam ao falecido, Archanjo teria sido o homem mais sério e cumpridor que tinha conhecido. A
sobrinha estranha tais qualificativos, uma vez Mestre Pedro fosse tão festeiro. Mestre Budião encerra a conversa:
“Falo que era sério de retidão, não de cara fechada” (Tenda dos Milagres, p. 53). 156
Em recente viagem a Porto Alegre, por ocasião de uma bolsa sanduíche na Pontifícia Universidade Católica
do Rio Grande do Sul (PUCRS), foi possível perceber que o mesmo ocorre na capital gaúcha. No Partenon,
bairro cortado pela Av. Bento Gonçalves, na qual se localiza uma das entradas da Universidade, além de alguns
Terreiros de candomblé cujas fachadas são ilustradas por uma mistura de santos católicos e orixás, pode-se
encontrar a loja de produtos religiosos afro-brasileiros “São Jorge”.
198
ostentam e outros três que envergam o nome de São Jorge – sendo que um deles se declara
Terreiro de Umbanda157
.
Ora, talvez se possa perscrutar tais ocorrências por outro caminho além daquele
vinculado a uma discutível associação sincrética entre santos e orixás – sem que isso incida
em desmerecimento da fé ou da expressão religiosa de alguém. Não é difícil perceber a
existência de uma primazia e de uma preponderância simbólicas do elemento branco/católico
em relação ao componente negro/candomblé nas nomenclaturas que designam festas, lojas ou
mesmo instituições religiosas que veiculam um caráter sincrético, tal como o Mercado de
Iansã – ou de Santa Bárbara, situado na Baixa dos Sapateiros, em Salvador158
. Ainda que não
se traduzam na prática, sempre muito mais relacionada às tradições negras do que cristãs, esta
primazia e esta preponderância simbólicas talvez indiquem, através de um processo de
referencialização católica, uma tentativa de legitimação da fé afro-brasileira em face de um
contexto que a repudia e oprime.
Ora, se bem observada, a forma encontrada por Amado para indicar a natureza
sincrética do Mercado constitui uma inversão da tendência à referencialização católica em
detrimento do destaque à religiosidade afro-brasileira. Ao invés de demarcar o espaço – físico
e simbólico – como domínio de Santa Bárbara, mencionando Iansã entre parênteses, o
romancista baiano prioriza e privilegia o orixá. Nesse sentido, a frase que se segue ao nome
da santa católica é reveladora: ao condicionar o nome do Mercado ao gosto e à escolha de
quem a ele se referir, Amado põe a nu o próprio gosto e a própria escolha: Mercado de Iansã.
Como se viu, em Os pastores da noite a forte presença do candomblé não se
configura, nas narrativas que compõem o romance, mera coadjuvante em um painel sobre o
povo da Bahia, muito menos denota um exotismo estéril. Da mesma forma ocorre em Tenda
dos milagres: a religiosidade afro-brasileira igualmente produz sentidos e norteia a escrita –
quiçá de forma mais verticalizada do que nas histórias de Martim, Massu e Jesuíno.
157
Segue a lista com os nomes dos Terreiros: “Ilê Axé Santa Bárbara (Iansã)”, três denominam-se “Terreiro de
Santa Bárbara”; “Casa Recreativa São Jorge”; “Terreiro de Umbanda São Jorge Guerreiro” e “Terreiro de São
Jorge (Odé Toquí)”. As informações podem ser acessadas através do sítio eletrônico www.terreiros.ceao.ufba.br. 158
Aliás, ao utilizar as ferramentas de busca em acervo disponíveis nos sítios eletrônicos dos jornais A Tarde
(www.atarde.com.br) e Correio da Bahia (www.correio24horas.com.br), principais periódicos baianos, e
pesquisar aleatoriamente pelos termos “Mercado de Santa Bárbara” e “Mercado de Iansã”, constatou-se que a
pesquisa baseada na santa católica retornou o dobro de resultados do que aquela cujo parâmetro foi o orixá.
Registre-se que todas as notícias que foram elencadas a partir da divindade iorubá constavam, também, entre
aquelas arroladas na pesquisa a partir da “santa guerreira”. Obviamente, tais dados foram obtidos de maneira
nada científica e, em hipótese alguma, permitem concluir o que quer que seja. Ainda assim, há a possibilidade
que indiciem certo escamoteamento ou, pelo menos, a secundarização dos elementos de origem africana que
compõem aquilo que deveria ser a exata outra metade de tudo o que se pretende reconhecer como sincrético.
199
Para além daquelas já estudadas em Os pastores da noite e que permanecem em Tenda
dos milagres, quais sejam, os valores conformativos de um povo, a representação do
candomblé neste segundo romance produz – ou verticaliza – três outras ordens de
significação, a saber: um sentido míticoidentitário; um sentido socioidentitário e, por último,
um sentido metonímico. A primeira diz respeito à filiação mítica de Archanjo e às
possibilidades semânticas que dimanam desta relação; a segunda relaciona-se à atuação do
protagonista em defesa de seu povo e, a terceira, concerne à resistência do candomblé como
representação da resistência do povo negro e congrega em si as duas outras ordens de
significação.
A premissa que orienta a conformação de uma análise acerca do sentido
míticoidentitário do candomblé remete à abordagem da obra amadiana proposta por Leite
(2010, p. 1), que afirma: “[...] há personagens amadianos que agem de acordo com as
características dos orixás que os regem [...]”. Em outras palavras, o pesquisador salienta que,
ao invés de uma hipotética superficialidade, tantas vezes alegada por críticos vários, o texto
alcançado pelo escritor grapiúna apresenta um complexo arcabouço mitológico afro-brasileiro
que o estrutura e confere sentido. Em sua dissertação de mestrado, já devidamente publicada,
Leite (2008) promove a leitura do romance Dona Flor e seus dois maridos a partir dos mitos
relacionados a Oxum, mãe mítica de Flor, e de Exu, eleda de Vadinho, do que resultam novas
perspectivas de elucubração sobre a produção amadiana. Possibilidades de leitura cujo
embasamento “[...] pode ser encontrado nas ruas da velha „Cidade da Bahia‟, nos candomblés
de orixás, nos cultos de Baba-Egum, nos salões de festa da umbanda e nos escritos
antropológicos” (LEITE, 2008, p. 141).
De acordo com Santos (2008, p. 203), a cosmogonia nagô concebe o ser humano como
“[...] constituído por elementos coletivos, representações deslocadas das entidades genitoras,
míticas ou divinas e ancestrais ou antepassados [...] e por uma combinação de elementos que
constituem sua especificidade, [...] sua unidade individual”. A antropóloga argentina ainda
explica que cada “[...] elemento constitutivo do ser humano é derivado de uma entidade de
origem que lhe transmite suas propriedades materiais e seu significado simbólico” (SANTOS,
2008, p. 204). Segundo Luz (2000, p. 49), dentre todos esses elementos, aquele que se faz
preponderante “[...] caracteriza o eleda, ou orixá da pessoa, e também sua qualidade
preponderante de axé, de princípio e de poder”. Prandi (2005c, p. 38) afirma que o eleda, isto
é, o orixá pessoal, estabelece “[...] a ligação do presente com o mito, com o passado remoto
que age sobre o presente [...]”. Esta contínua relação entre tempo mitológico e tempo
presente, orun e aiyê, estabelece uma circularidade complementar entre este e o outro mundo,
200
o que resulta em “[...] princípios e valores religiosos [que] perpassam a vida do africano de tal
modo que ele vive em estado de constante tensão dialética entre o mundo imanente e o
transcendente” (LUZ, 2000, p. 92)159
.
Verifica-se, portanto, uma relação intrínseca, ininterrupta, perenal e convergente entre
aiyê e orun de modo que o ser humano, ara aiyê, é, em si, um microcosmo representativo do
transcendente e por ele, em certa medida, condicionado. Como já expresso, vários sãos os
aspectos conformativos da noção de ara aiyê. Prandi arrola, por exemplo, quatro “almas”:
[...] a parte espiritual [do ser humano] é formada de várias unidades reunidas, várias
almas, cada uma com existência própria. As unidades principais da parte espiritual
[...] são o ori, a personalidade-destino que define a individualidade; o egum, ou
espírito propriamente dito, que é a alma que reencarna, ligando as várias gerações da
mesma família; o orixá pessoal, que define a origem remota da família e liga a
pessoa à natureza, ao mito, às origens. Há também o emi, o sopro vital, que permite
à vida manifestar-se. Cada parte dessa precisa ser integrada durante a vida no todo
que forma a pessoa, e cada uma delas tem um destino diferente depois da morte
(PRANDI, 2005b, p. 56).
Não obstante seja a reunião de todos estes elementos, a responsável por possibilitar o
entendimento dos sentidos específicos que individualizam uma pessoa, ainda segundo Prandi
(2005b, p. 56), cabe ao orixá pessoal, ao eleda, definir “[...] a origem mítica de cada pessoa,
suas potencialidades e tabus”. É possível afirmar, portanto, que o ara aiyê se constitui em
herdeiro das potencialidades míticas de seu eleda, no que configura uma sua representação
infinitesimal.
É a partir desta relação de caráter especular que se estabelece entre ara aiyê e eleda
que se pode discorrer, sempre em tons de generalização, por exemplo, sobre o dengue, a
sedução e a sensibilidade próprios a uma filha de Oxum; a calma, a espiritualidade e o
equilíbrio inerentes a um filho de Oxalá; a força e a impulsividade relacionadas a Ogum e
Oxóssi; o dinamismo e o vigor ligados a Iansã; o hedonismo, o senso de justiça e liderança
dos filhos de Xangô; a beleza, a inteligência e a amabilidade dos herdeiros de Logunedé, entre
tantas e tantas outras características e tantos e tantos outros orixás160
.
159
O que o pesquisador Marco Aurélio Luz afirma sobre o africano pode ser utilizado para falar daquele que se
identifica com o candomblé, ligando-se à religião através dos rituais de iniciação, uma vez que os valores
cosmogônicos que estruturam o pensamento religioso afro-brasileiro e africano não se distanciam tanto. 160
Obviamente, os qualificativos elencados redundam em generalizações que se associam a um arquétipo geral
de cada orixá. Contudo, como o ser humano não é constituído apenas do eleda, mas também de outras matérias
míticas que influenciam no processo de individualização, bem como de outros orixás que porventura partilhem o
ori, a cabeça do ara aiyê, a estruturação da personalidade de alguém pode variar em relação aos modelos
referidos. As informações presentes neste parágrafo foram selecionadas e coligidas a partir de artigos de Lépine
(2006, p. 25-27) e Cossard (2006, p. 137).
201
Nesta perspectiva, a descendência mítica de Pedro Archanjo, ou seja, a relação filial
que se estabelece entre a personagem e seu respectivo eleda, evoca sentidos que são
impressos na tessitura do enredo e projetam uma leitura que avança para além da constatação
de um simples epíteto, “Pedro Archanjo, filho de Exu”:
Por vezes diziam ser Archanjo filho de Ogun, muitos pensavam-no de Xangô, em
cuja casa tinha alto posto e título. Mas, quando punham os búzios e faziam o jogo,
quem de imediato respondia, antes de outro qualquer, era o vadio Exu, senhor do
movimento. Vinha depois Xangô por seu Ojuobá, Ogun estava perto e vinha
Yemanjá. Na frente, Exu a rir, amedrontador e fuzarqueiro. Não resta dúvida,
Archanjo era o Cão. (Tenda dos milagres, p. 98).
Antes de quaisquer considerações que possam ser alcançadas a partir da relação Exu-
Archanjo, é necessário e mesmo imperioso atentar para a última frase do fragmento transcrito,
uma afirmação contundente, desprovida de dúvidas: “Archanjo era o Cão”. Da forma como
grafado, com instigante letra maiúscula, o que faz o substantivo ser tomado como nome
próprio, “Cão” dá a impressão de remeter à acepção de Diabo; absoluta antípoda ao Deus
judaico-cristão. Ora, o encadeamento imagético Archanjo-Exu/Archanjo-Cão, parece sugerir
uma associação entre o orixá e a representação arquetípica cristã de tudo aquilo que é
essencialmente negativo, mal e ruim – acepção com a qual o romancista baiano endossaria
uma série de leituras errôneas e preconceituosas acerca de Exu.
O mundo ocidental, quando em contato com as sociedades negro-africanas,
engendrou, a partir do olhar de um “Eu Cristão”, sua interpretação de tudo aquilo que lhe
fugia ao entendimento, a começar pelo sistema de valores religiosos dos povos negros. Tal
leitura, que subsiste com força ainda hoje, evidentemente reproduz um olhar etnocêntrico
baseado em uma política de assimilação do “[...] Outro ao Mesmo numa economia narcísica
que visa reforçar o sentimento de superioridade do Eu” (LINS, 1997, p. 102)161
. Por
conseguinte, a desvalorização e demonização das culturas negras, promovidas pelas práticas
coloniais europeias, cumpriam, além da incapacidade de lidar com o Outro, o jogo do poder:
ao impelir o Outro a uma negação de si em prol de transmudar-se no Eu, o Ocidente
desmontava, ainda que parcialmente, as estruturas simbólicas nativas dos povos colonizados,
o que resultava em uma menor e menos disseminada capacidade de resistência e
enfrentamento.
Tais estratégias de incremento e perpetuação do poder ocidental frente a outros povos,
quais sejam, são facilmente perceptíveis no campo do sagrado. Como já exposto, os valores 161
Relembre-se, a este respeito, o que se discutiu na primeira seção no concernente ao “Mito de Cam” e ao papel
da Igreja na legitimação da servidão negra.
202
que dimanam da religiosidade dão coesão e identidade a um grupo, o que favorece
amplamente o prélio contra uma ordem de submissão. Não à toa, a prática salvacionista e de
conversão da Igreja tenha sempre ladeado os projetos coloniais da Europa Católica.
No que concerne aos povos negros transplantados à revelia para as Américas e, mais
especificamente, àqueles direcionados para o Brasil, a reconstrução de estruturas sociais que
comportassem e expandissem os valores tradicionais africanos conviveu intimamente com as
pressões da ordem instituída visando o desmantelamento deste mesmo sistema simbólico.
Assim, quando Lühning, em passagem já citada, assevera que Pedro Gordilho não fora o
primeiro nem o último representante da ordem e do poder soteropolitanos a perseguir os
candomblés, revela uma prática cujo início remonta aos primeiros tumbeiros aportados aqui e
que se espraia e perpetua nos dias contemporâneos162
.
É importante insistir um pouco mais neste ponto antes de retornar ao trecho citado de
Tenda dos milagres. Infundir, através da prática da conversão ao cristianismo, uma rígida
dicotomia entre o bem e o mal – bipolaridade de certa forma estruturante da teologia cristã –
naqueles cujas culturas e sistemas religiosos dispensam tal antípoda, corrobora com a
conformação de um estigma que envolve e deprecia, por má e equívoca, toda cultura que não
seja de natureza cristã. Assim, o processo de marginalização e apagamento das tradições
ancestrais africanas transladadas para o Brasil confunde-se indissociavelmente com a
demonização de tudo que a elas se refere – processo que toma novo fôlego na
contemporaneidade com o avanço das Igrejas Neopentecostais e o acirramento das práticas de
conversão.
162
Impossível não fazer referência à destruição do Terreiro Oyá Onipo Neto da iyalorixá Rosalice do Amor
Divino, situado no bairro do Imbuí, em Salvador, por órgãos da Prefeitura, no ano de 2008. A demolição parcial
do Ilê Axé, levada a cabo pela Superintendência de Controle e Ordenamento do Uso do Solo do Município
(SUCOM), iniciou-se ainda com filhos e filhas de santo no interior da casa, impedidos de retirarem do Axé os
seus pertences e os objetos sagrados do culto. Da mesma forma, importante salientar o “silêncio sorridente”,
parafraseando Caetano e Gil, dos órgãos midiáticos e governamentais baianos diante da escalada da intolerância
religiosa e da violência contra o povo de santo. Violências que vão desde acumular sacos de lixo nas entradas
dos Terreiros a invasões, ameaças e recorrentes assassinatos de mães, pais e filhos de santo. Recentemente, no
dia 20 de janeiro de 2012, o antropólogo Ordep Serra, coordenador do projeto Lorogun, que estuda e combate as
agressões ao povo de santo, publicou em seu sítio eletrônico pessoal um Manifesto contra a intolerância
religiosa e o racismo, em defesa do candomblé e dos cultos afro-brasileiros em geral. Segue um trecho: “Por
muito tempo, neste país, alimentamos o furor de um racismo hipócrita fazendo de conta que isso não existia por
aqui, fingindo que não temos „problema racial‟. Hoje, poucos apregoam a „democracia racial brasileira‟. Mas
agora nos defrontamos com um triste casamento de racismo com intolerância religiosa. Ora, convém lembrar que
racismo é crime e intolerância religiosa também. Representam um desacato a nossas leis maiores, a começar pela
própria Constituição Brasileira. [...] É momento de cobrar com vigor o resgate da imensa dívida do Brasil para
com os afro-descendentes. Neste contexto, torna-se imperativo reconhecer que é imoral e ilegal o ataque aos
adeptos dos cultos afro-brasileiros e a sua religião. Cidadãos dignos, seja qual for sua crença, não podem admitir
que a liberdade religiosa seja violada, que os adeptos do candomblé sejam desrespeitados, ofendidos, injuriados,
maltratados, perseguidos” (SERRA, 2012).
203
No que tangencia o culto dos orixás, dos inquices e dos voduns, a produção do estigma
depreciativo, porquanto associado a práticas demoníacas, ocorreu pela atribuição de uma
significação diabólica a Exu. A construção desta parelha deriva, talvez, não apenas de uma
impossibilidade teológica cristã de apreender a semântica própria de Exu, mas também e
conjuntamente da concepção estratégica do labéu a ser imputado.
O mundo ocidental é fundamentado sob a diretriz antipódica do bem e do mal, do puro
e da mácula; ou se é um ou se é outro, “isto ou aquilo”, como resume Paz (1982, p. 124). Não
sem motivo, Verger (1992, p. 18) comenta que os relatórios produzidos por missionários
cristãos na África “[...] refletem geralmente uma bem fundada fé cristã, uma austera
moralidade e noções seguras do bem e do mal, tudo isto pesando duramente no seu conteúdo
apesar do esforço para compreensão do objeto em vista”. Destarte, Exu, isto e aquilo por
excelência, representa uma fissura, uma incompreensão no âmbito do pensamento cristão.
Trata-se de uma realidade que destoa da lógica concernente ao Deus judaico-cristão uma vez
que “[...] sendo único, Um, o Deus Cristão não poderia ser „muitos‟. Sem o fundamento do
Um, a consciência cristã perde-se na riqueza infinita do diverso, arrisca-se ao confronto com a
radical e convulsiva estranheza do real, enxerga o diabólico” (SODRÉ, 2000, p. 148). Para
Castro:
[...] visto pela ambiguidade do seu caráter, ao mesmo tempo símbolo de forças
negativas e positivas, destruidoras e protetoras, a divindade representada por Exu
[...] terminou sendo confundido com o Diabo concebido pelo Cristianismo, ainda
mais porque é visto como símbolo da sexualidade e suas representações sempre
exibem um pênis de tamanho descomunal. Era a única entidade negra que podia
simbolizar a contraface de Deus [...] (CASTRO, 2000, p. 313).
A questão da sexualidade apontada pela etnolinguista acima citada é de suma
importância neste processo de formatação do estigma diabólico. Ora, a cosmogonia cristã
percebe a sexualidade humana como um ponto de tensão, uma vez que remete à tentação e ao
pecado original que teriam ocasionado a expulsão do Paraíso. O ideal ascético, no entanto,
não se relaciona a Exu, que, não raro, é representado com um enorme e potente pênis e cujos
domínios englobam a sexualidade. Deste confronto com a razão ocidental, impingiu-se, assim,
um binômio depreciativo a Exu: “sexo e pecado, luxúria e danação, fornicação e maldade”
(PRANDI, 2005a, p. 72).
Por outro lado, tendo-se em vista o que Exu significa no plano do dinamismo da
religião nagô, é possível inferir que, a despeito da incompreensão teológica da semântica
elegbariana, o Ocidente soube intuir muito bem as possibilidades difusoras de um estigma que
204
recaísse sobre Exu163
. Em outras palavras, Exu é imprescindível ao candomblé, tudo que se
faz e tudo o que se realiza depende da participação de Exu, “[...] sem ele todos os elementos
do sistema e seu devir ficariam imobilizados, a vida não se desenvolveria” (SANTOS, 2008,
p. 131). O antropólogo Reginaldo Prandi reitera:
Exu faz a ponte entre este mundo e o mundo dos orixás, especialmente nas consultas
oraculares. Como os orixás interferem em tudo o que ocorre neste mundo, incluindo
o cotidiano dos viventes e os fenômenos da própria natureza, nada acontece sem o
trabalho intermediário do mensageiro e transportador Exu. Nada se faz sem ele,
nenhuma mudança, nem mesmo uma repetição. [...] Sem Exu nada é possível. O
poder de Exu é, portanto, incomensurável (PRANDI, 2005a, p. 74).
Barretti Filho (2010, p. 83) situa Exu como o “[...] agente da causa e do efeito, das
escolhas e suas consequências, do fazer ou não fazer, do cumprir ou do descumprir. Ele é a
dinâmica da ação, aquele que faz acontecer, pois tem o poder da „realização‟”. Soa, portanto,
estratégico estigmatizar justamente Exu como o Diabo judaico-cristão. Se é por intermédio
seu que tudo se realiza no candomblé e se a Exu todos os demais orixás rendem homenagens,
como evidencia o mito Exu respeita o tabu e é feito o decano dos orixás, coligido por Prandi
(2001, p. 42-43), admiti-lo como Diabo corresponde a aceitar igualmente a hipótese de todo
um sistema religioso dependente e intrinsecamente vinculado ao Demônio – conjectura que,
se acolhida, acarretaria em uma maior e menos dificultosa expansão das práticas de
conversão.
A julgar pelas intenções declaradas de Amado em relação ao que propunha em Tenda
dos milagres e pela perspectiva de um mundo negromestiço já pulsante em Os pastores da
noite, bem como pelas abordagens críticas do romance transcritas até aqui, seria estranho e
incoerente que o escritor baiano partilhasse do equívoco em comparar Exu ao Diabo. Tal
interpretação acarretaria o mergulho no mesmo erro de outro literato baiano, Xavier Marques,
que, a despeito de pretender uma defesa do candomblé em O feiticeiro, designa Exu como
“[...] o mau espírito, [que] exige atos propiciatórios; é uma condição para que não aconteça
desgraça ou qualquer perturbação durante a festa” (MARQUES, 1975, p. 35)164
. Assim, uma
segunda leitura da frase “Archanjo era o Cão” é necessária.
É possível vislumbrar uma inflexão do texto amadiano no sentido oposto ao da
estigmatização depreciativa caso se atente para o fato de as acepções de “Diabo” e “Cão”, ao
menos no que concerne ao falar baiano, prescindirem quase totalmente dos sentidos
163
“Elegbariana” refere-se a Elegbara, Senhor do Poder, um dos títulos de Exu. 164
Admite-se que, na exata medida da época de sua publicação, o ano de 1897, sob título Boto & Cia, O
feiticeiro representou, com ressalvas, uma defesa e um avanço em relação à religiosidade afro-brasileira.
205
teológicos que as constituem originalmente. Na Cidade da Bahia, os termos “diabo” e “cão”,
grafados com iniciais minúsculas, podem designar teimosia, impetuosidade, perseverança e,
quando associados a crianças de quem se gosta, ditos com uma ternura mal disfarçada na voz
que se quer grave, um misto de espanto e gracejo diante de alguma traquinagem inofensiva.
Assim, a possível e hipotética expressão “Fulano é um diabo mesmo, conseguiu o que queria”
é, à maneira baiana de imiscuir o religioso e o mundano, elogiosa, porquanto denote
admiração em face de uma conquista improvável.
Pode-se interpelar que, apesar destes sentidos, Amado tenha registrado o termo com
letra maiúscula – o que é verdade. Contudo, é plausível avançar um pouco e inferir, talvez,
um jogo de significação opositiva no qual a conotação supera a mera denotação. Isto é, o
sentido específico vinculado ao termo “Diabo”, qual seja, a contraparte do Deus cristão, é
invocado para logo ser rejeitado e sobreposto por aqueles atrelados conotativamente a “diabo”
– não à toa muito mais próximos do campo semântico que circunscreve Exu.
Em termos finais, obviamente Exu não é o Diabo, como reitera o poeta negro José
Carlos Limeira (2008) no belo poema Outro pra Exu: “[...] para início de conversa: gosto de
dendê, farofa e quiabo / mas apesar de usar branco, vermelho e preto / sou outro verbo,
predicado e sujeito / e nada tenho de diabo / sendo mais franco, eu sou preto / e diabo é coisa
de branco!”. Da mesma forma, a acepção demoníaca atribuída a Exu não figura no texto
amadiano. E não há prova maior disso do que a própria ascendência mítica de Archanjo, que
remonta a Elegbara, ao Senhor do Poder. Ora, cabem justamente a Archanjo as atribuições de
defender, representar e liderar o povo negromestiço da Bahia contra as empreitadas racistas
promovidas pela Faculdade de Medicina, pela Polícia e pelos jornais. Nesta perspectiva, o
desconsolo de Ester em face da morte de Mestre Pedro é sintomático:
- Ai Archanjo, meu santo, por que não disse que estava doente? Como eu ia saber?
Agora Ojuobá, como vai ser? Tu era a luz da gente, nossos olhos de ver, nossa boca
de falar. Tu era a coragem da gente e nosso entendimento. Tu sabia de ontem e de
amanhã, quem mais vai saber? (Tenda dos milagres, p. 48).
O texto amadiano pontua que, ainda nas primeiras obrigações do axexê, o povo de
santo já se aglomerava na Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, de onde sairia o
cortejo, e nas praças em derredor. Eram “[...] respeitáveis ogans, filhas de santo, iaôs de barco
recente” (Tenda dos milagres, p. 56), afluência que evidencia a importância de Pedro
Archanjo para o povo negromestiço da Bahia. Talvez não seja por uma coincidência qualquer
que Amado descreva o sepultamento de Archanjo de forma semelhante à lembrança impressa
206
acerca do sepultamento de Mãe Senhora, em 1966: “A notícia invade a cidade e a comove. O
enterro sai no fim da tarde da Igreja do Rosário dos Negros, no Pelourinho, se estende pelas
ruas, cortejo imenso no caminho do Cemitério das Quintas. Imenso e lento. [...] o canto do
axexê cobre o choro no adeus à iyalorixá [...]” (Navegação de cabotagem, p. 65). Não se trata
de comparar Archanjo a Maria Bibiana do Espírito Santo, Mãe Senhora Oxum Muiwà, grande
sacerdotisa do Ilê Axé Opo Afonjá, considerada a maior iyalorixá da Bahia por Vinícius de
Morais em Samba da benção. Apenas de ressaltar uma imagem possivelmente recuperada por
Amado em 1969, ano em que escreveu Tenda dos milagres, e que denota não só o grande
apreço que as figuras de Senhora e Archanjo provocaram, mas, principalmente, a dimensão de
liderança e defesa do povo e dos valores negros que desempenharam neste mundo e no mundo
ficcional.
Muitas semelhanças entre Archanjo e Exu podem ser arroladas aqui, a exemplo da
impossibilidade de se guardar qualquer segredo diante de Mestre Pedro: “Que maneira, que
léria, que poder possuía êle para abrir a bôca, o coração dos demais? Nem as mães-de-santo
mais ciosas e estritas, [...] nem elas guardavam segredos para o velho” (Tenda dos milagres,
p. 45). E não vem a ser essa uma característica de Exu, a de tudo saber, já que se constitui no
mensageiro de todos os orixás? Prandi (2001) transcreve um mito em que Eleguá, um dos
nomes que Exu assume nas Américas, ajuda Orunmilá a ser nomeado adivinho por Olofim, o
Deus Supremo, designado Olorun no Brasil. Xangô, então primeiro adivinho, havia pedido a
Olofim para que fosse substituído por Orunmilá, de quem era muito amigo, uma vez que
precisava concentrar-se nas guerras:
Olofim concordou.
Mas deveria pôr à prova a capacidade de Orunmilá.
Olofim saiu para o campo.
Levou consigo milho cru e milho tostado.
Num canteiro semeou o milho cru,
noutro, o milho torrado.
Eleguá assistiu a toda cena.
Eleguá pediu oferendas a Orumilá
e em troca lhe contou o segredo das sementes.
Olofim levou Orunmilá ao lugar da plantação [...]
Orunmilá, devidamente instruído por Eleguá,
mostrou-lhe onde estavam as sementes cruas por nascer.
Olofim se deu por satisfeito
e entregou a Orunmilá os segredos da adivinhação [...] (PRANDI, 2001, p. 60-61)165
.
165
Convém informar que este mito, tal como transcrito, talvez não seja encontrado no Brasil, posto ter sido
coligido por Prandi a partir do livro El monte, da pesquisadora cubana Lydia Cabrera.
207
Esse mito, que narra como Orunmilá foi designado Babá Ifá, o adivinho, e que termina
por afirmá-lo como o único apto a ler o futuro e adivinhar corretamente o porvir, coloca em
cena também Exu/Eleguá que demonstra ser capaz de conhecer inclusive os segredos do Deus
Supremo, Olorun/Olofim. E é justamente por conhecer todas as perguntas e todas as
respostas, por saber dos mistérios do antes, do agora e do depois, característica que advém do
seu papel de mensageiro, que Exu é dotado de amplo poder de ação, de realização, de
mudança.
Considerando-se o contexto opressor vivenciado pelos povos negros no Brasil, Exu
representa, para aqueles que não o vinculam a uma concepção judaico-cristã, a possibilidade
de transformação e resistência, de não submissão. Nesta perspectiva, o pesquisador Jaime
Sodré (2009, p. 6) conclui: “[...] o arquétipo de não submissão, da coragem, da resistência,
tonifica a personagem, enveredando na leitura de um discurso heróico do protetor, libertador,
contestador da dominação, verdadeira fidelidade à memória original". Contundente, Lody
(2010, p. 96), considera Exu como “[...] o mais ativo e audaz agente libertador da história e da
cultura geral do homem africano no Brasil”. Não é, portanto, simples acaso que o papel de
liderança do povo negromestiço, de resistência contra o racismo e da transformação da
sociedade com vistas a um organismo social antirracista, sejam responsabilidade de Pedro
Archanjo: “Por acaso não era Pedro Archanjo filho predileto de Exu, senhor dos caminhos e
das encruzilhadas?” (Tenda dos milagres, p. 154). Prandi afirma:
Mas talvez o que o distingue [Exu] de todos os outros deuses é seu caráter de
transformador: Exu é aquele que tem o poder de quebrar a tradição, pôr as regras em
questão, romper a norma e promover a mudança. Não é pois de se estranhar que seja
considerado perigoso e temido, posto que se trata daquele que é o próprio princípio
do movimento, que tudo transforma, que não respeita limites e, assim, tudo o que
contraria as normas sociais que regulam o cotidiano passa a ser atributo seu
(PRANDI, 2005a, p. 74).
O “andar para frente”, tantas vezes ressaltado por Mestre Pedro como um símbolo seu
de caminhada, de abertura e ação de encontro ao porvir, do deslocar-se de um lugar a outro e
das transformações e mudanças que advém desta marcha, remonta a Exu, orixá princípio do
movimento. E se a sociedade brasileira se rege a partir de práticas racistas, Archanjo-Exu a
faz mover-se, ainda que lentamente, na perspectiva de uma outra regulação social. Na escrita
de Amado, através de Archanjo, Exu não é o Diabo, mas o herói de um povo. Desta forma, o
romancista baiano opera uma desconstrução do sentido atribuído a este orixá pelo Ocidente:
ao invés do papel de Demônio a disseminar suas vilanias, Exu representa o agente restaurador
208
da dignidade social tolhida de um povo – papel e função com os quais Amado afirma tal orixá
com toda beleza e singularidade que lhes são próprias.
Cabe adentrar agora na segunda instância de análise enunciada anteriormente, ou seja,
o sentido socioidentitário que se depreende da representação do candomblé em Tenda dos
milagres. Intimamente relacionado com o sentido míticoidentitário, circularidade que se
assemelha àquela entre orun e ayiê, o sentido socioidentitário canaliza as potencialidades
advindas da reflexiva eleda/ara aiyê para que se realizem socialmente em prol do povo
negromestiço da Bahia. Em outras palavras, o que se alcunha aqui de sentido socioidentitário
é a expansão do plano identitário mítico no contexto social do aiyê através das obrigações
assumidas por Archanjo ao ser consagrado Ojuobá, os Olhos do Rei, os Olhos de Xangô:
“Nasci no candomblé, cresci com os orixás e ainda moço assumi um alto posto no Terreiro.
Sabe o que significa Ojuobá? Sou os olhos de Xangô, meu ilustre professor. Tenho um
compromisso, uma responsabilidade” (Tenda dos milagres, p. 316).
Compromisso e responsabilidade, dois imperativos que dimanam diretamente do fato
de Archanjo ser Ojuobá. Mas, a que se relacionam, em que implicam? Assim como Exu
imprime significados na narrativa de Tenda dos milagres, Xangô também o faz, em igual
proporção. Em verdade, os sentidos de um e de outro se entrecruzam na figura de Archanjo
Ojuobá e apontam para a direção de uma luta por liberdade e justiça, sentidos que marcam e
notabilizam tais orixás no contexto brasileiro, assim também como a Ogum, que marca
importante presença em Tenda dos milagres por meio de Lídio Corró, seu descendente mítico.
Como afirma Leite (2006), Pedro Archanjo toma dos instrumentos rituais e simbólicos de Exu
e Xangô na luta contra a rejeição ao povo negromestiço da Bahia. Mas, no tocante a Xangô,
quais sentidos e quais instrumentos rituais e simbólicos são estes evocados por Leite? Para
melhor compreendê-los, é importante e necessário discorrer sobre o orixá do fogo, do trovão,
das pedras-de-raio; o Alafin de Oyó e patrono de tradicionais candomblés baianos, Xangô.
Marinho (2010, p. 165) define Xangô como “[...] o saber da justiça e da política de
condução do homem em sociedade, dono do saber do poder, do governo de comunidades e
toda a sorte de sociedade. Representa a sociedade organizada, com justiça social”. Após
comentar a associação de Xangô à justiça, bem como à virilidade masculina, Lody (2010, p.
41) afirma que o orixá “[...] representa a síntese da liberdade, da altivez e da realeza [...]”, o
que ocasionou, entre os escravizados, que Xangô encarnasse “[...] o ideal de liberdade,
juntamente com Exu e Ogum”. A este respeito, Tavares (2005, p. 68-69) assevera: “Símbolo
supremo de vida, de realeza do negro, de luta, de tenacidade e de erotismo Xangô [...] figura
como o intenso fogo que alimentou a resistência escrava, que aqueceu, que temperou, que
209
vivificou e solidificou a coesão negra”. Prandi e Vallado (2010, p. 148) acentuam que em um
mundo repleto de desigualdades “[...] o orixá da justiça ganhou cada vez mais importância.
Seu prestígio foi consolidado”. Os pesquisadores continuam:
Mas Xangô é mais que a história da África e mais que a história do Brasil. Seu duplo
machado visa à justiça para cada um dos dois lados que se opõem na contenda, suas
pedras-de-raio são o santuário guardião das esperanças de tanta gente que padece em
consequência das mazelas de nossa sociedade: desemprego, falta de oportunidades,
incompreensão e dificuldade no trabalho, escassez de meios de sobrevivência,
perseguição e disputas insanas, inveja, complicações legais de toda sorte, e tantas
outras coisas ruins. Apelar a Xangô, para o devoto, é buscar alento, realimentar
esperanças, prover-se para a difícil aventura da vida (PRANDI e VALLADO, 2010,
p. 151).
Xangô representa, portanto, o esteio de todo um povo, a esperança que motiva a luta
cotidiana, ininterrupta por justiça e melhores condições sociais. O oxê, machado duplo que
carrega consigo, instrumento que o identifica, simboliza o papel que o Alafin de Oyó
desempenha como “[...] mito-herói, [revela] sua justiça, sabedoria de dominar o fogo, entre
outros títulos que comporta seu caráter impetuoso, temperamental e fogoso” (LODY, 1983, p.
16). Ildásio Tavares, que foi um dos Obás de Xangô n‟Ilê Axé Opo Afonjá, Obá Aré, informa:
Ao esmiuçar a simbologia do oxê, entendo-o além de símbolo de poder de Xangô
sobre o raio e o trovão, como a resolução, a conciliação das polaridades [...], o oxê
corta para condenar, corta para absolver, exprime as ambivalências e oscilações do
julgamento. Xangô, orixá por excelência da justiça, empunha oxês de vários
formatos, inclusive quando dança no barracão (TAVARES, 2005, p. 105. Grifos do
autor).
O mito Xangô é reconhecido como o orixá da justiça, coletado por Rita Amaral em
trabalho de campo e publicado por Prandi (2001), narra uma guerra violenta em que o
exército de Xangô, embora estivesse lutando bravamente, estava sendo derrotado pelo inimigo
que, implacável e cruel, torturava e mutilava os soldados do Alafin até a morte. Desesperado e
enfurecido pela derrota, mas, principalmente, pelas iniquidades cometidas pelo exército rival,
Xangô alcançou o alto de uma pedreira e começou a golpeá-la com o oxê:
O machado arrancava das pedras faíscas,
que acendiam no ar famintas línguas de fogo,
que devoravam no ar os soldados inimigos.
A guerra perdida foi se transformando em vitória.
Xangô ganhou a guerra.
Os chefes inimigos que haviam ordenado
o massacre dos soldados de Xangô
foram dizimados por um raio que Xangô disparou no auge da fúria.
Mas os soldados inimigos que sobreviveram
210
foram poupados por Xangô [...] (PRANDI, 2001, p. 245).
O oxê surge, no mito transcrito, como o instrumento do qual Xangô se utiliza para
vencer a guerra a partir dos raios que lança quando em contato com a pedreira. Nesse sentido,
o oxê torna-se o símbolo máximo da luta contra as iniquidades, representando o próprio
caráter de justiça do orixá que invariavelmente protege quando há de proteger e condena,
quando há de condenar.
Por certo, não há exagero em afirmar que Xangô, uma vez a par das potencialidades
herdadas de Exu por Archanjo, por sabê-lo um agente exponencial de mudança e liberdade,
tenha-o consagrado Ojuobá para personificar e brandir o oxê em favor do povo negromestiço
da Bahia166
. Aliás, a ideia de um vínculo entre Xangô e Exu que seja expresso através do oxê
não é de todo estranha uma vez que no “[...] no machado duplo, encontram-se gravados traços
que caracterizam a presença do orixá Exu [...]” (LUZ, 2000, p. 60).
Ojuobá significa, de forma literal, os Olhos do Rei e, por extensão, os Olhos de
Xangô. Denota, portanto, a presença do Alafin através daquele a quem se determina tudo ver,
tudo saber. Função que exige confiança, pois implica também defesa e proteção da
Comunidade-Terreiro a que se pertence e, por conseguinte, do povo de santo e da tradição do
Axé.
Foi a partir desse tempo, moço de vinte e poucos anos, que Pedro Archanjo deu na
mania de anotar histórias, acontecidos, notícias, casos, nomes, datas, detalhes
insignificantes, tudo quanto se referisse à vida popular. Para que? Quem sabe lá.
Pedro Archanjo era cheio de quizilas, de saberes e certamente não se devera ao
acaso sua escolha, tão moderno ainda, para alto posto na casa de Xangô: Levantado
e consagrado Ojuobá, preferido entre tantos e tantos candidatos, velhos de respeito e
sapiência. Coube-lhe, no entanto, o título, com os direitos e os deveres; não
completara ainda trinta anos quando o santo o escolheu e o declarou: não pudera
haver maior acerto – Xangô sabe os porquês (Tenda dos milagres, p. 117).
Interessante que Amado desenvolva o parágrafo transcrito como uma relação de causa
e consequência que, entrecruzando-se, não se distinguem totalmente uma da outra. Archanjo
deu início a suas anotações por ser Ojuobá ou foi feito Ojuobá por causa do olhar percuciente
acerca da vida popular baiana? Eis uma questão interessante, uma vez que, em parte, são estas
166
O Grêmio Recreativo Cultural Escola de Samba Mocidade Alegre, integrante do Grupo Especial do Desfile
das Escolas de Samba de São Paulo, desfilou, neste ano de 2012, o enredo “Ojuobá”, com o qual se sagrou
campeã. No belo samba-enredo, composto em conjunto por Fernando, Leandro Poeta, Renato Guerra, Rodrigo
Minuetto, Thiago e Vitor Gabriel, há uma passagem em que Ojuobá é comparado ao oxê de Xangô, uma vez que
o orixá o conduz na luta contra o preconceito. Segue o trecho do samba-enredo: “Kaô Kabecile / Kaô, meu pai
Xangô! / Ouça o clamor de Ojuobá / É fogo! É trovão! É justiça! / E assim cruzando o mar de Yemanjá / Aponta
o seu oxé a nos guiar / Raiou o sol da liberdade a quebrar correntes / E nessa terra o negro vence / Com a
proteção do rei de Oyó / Contra o preconceito ao seu povo / Conduz a mão que escreve um mundo novo”
(MOCIDADE ALEGRE, 2012).
211
anotações que, anos depois, permitem a Archanjo Ojuobá argumentos precisos e
inquestionáveis contra a obra racista do Dr. Nilo Argolo. Instigante, porém, deve-se
reconhecer, absolutamente irrespondível. Ainda assim, cumpre salientar o que parece uma
prova da ação conjunta entre Exu e Xangô através de Ojuobá. Se Exu é aquele que conhece
todas as perguntas e todas as respostas, e se esta característica pode estar representada no
grande número de anotações sobre o dia a dia popular que Archanjo acumula ao longo de sua
vida, é, pois, destas mesmas notas que Xangô se serve para brandir o oxê e desferi-lo em raios
fulminantes contra as teorias da Faculdade de Medicina, contra Nilo Argolo, contra o racismo
– perspectiva que é abordada no próximo tópico.
A interpretação acima ganha relevo caso se observe as entrelinhas que vinculam três
parágrafos em sequência, sendo que o primeiro corresponde ao transcrito acima. Após o
fragmento citado, no qual Archanjo é consagrado Ojuobá, Amado escreve:
Uma versão circula entre o povo dos Terreiros, corre nas ruas da cidade: teria sido o
próprio orixá quem ordenara a Archanjo tudo ver, tudo saber, tudo escrever. Para
isso fizera-o Ojuobá, os olhos de Xangô.
Aos trinta e dois anos, exatamente em 1900, Pedro Archanjo foi nomeado bedel da
Faculdade de Medicina e assumiu seu pôsto no Terreiro (Tenda dos milagres, p.
117).
Em três parágrafos sequenciados, Archanjo assume dois postos: um no Terreiro,
Ojuobá da casa de Xangô, posto alto e importante, outro no Terreiro de Jesus, bedel na
Faculdade de Medicina da Bahia, cargo secundário, auxiliar. É, pois, a partir deste segundo
cargo que Ojuobá se faz consciente da incumbência que lhe foi destinada: “[...] é preciso
trabalhar na Faculdade para ouvir e entender. Na opinião de certos professores, Manuel,
mulato e criminoso são sinônimos” (Tenda dos milagres, p. 163). Uma vez inserido na
faculdade, Ojuobá entra em contato com as “suspeitas teorias” ali gestadas e capitaneadas por
Nilo Argolo, para quem “[...] a desgraça do Brasil era aquela negralhada, a infame
mestiçagem” (Tenda dos milagres, p. 123). Aliás, cabe ressaltar novamente a presença das
potencialidades do eleda Exu no trânsito de Archanjo entre o Pelourinho e a Faculdade de
Medicina da Bahia – duas realidades próximas no espaço e opostas em significados. Na
primeira, o cotidiano do povo negromestiço, a fusão de sangues e culturas; na segunda, as
teorias racistas, o segregacionismo. Duas realidades que tenderiam a se excluir, a se anular
não fosse Archanjo Ojuobá, omo Exu, a pô-las em contato, a relacioná-las, inserindo, aos
poucos, uma na outra. Ora, e não é justamente a Exu que compete estar em todos os lugares
sem que se levantem empecilhos à sua circulação? Senhor dos Caminhos, não é a Ele que
212
cumpre abrir ou fechar as passagens, a depender do contexto? Não seria justamente Exu
considerado um “elemento de ligação”, como pontua Luz (2000, p. 51)? “Os lugares sobre os
quais reina Èsù-Legba são lugares de encontro, de mediação, de troca, e estão, como todo
lugar de transição e interseção, carregados de tensão e perigo. [...] Só Èsù-Legba, com seu
poder de transformação, pode metamorfosear o conflito em harmonia” frisa Capone (2009, p.
61).
Retome-se a fala de Archanjo, quando define o que é ser Ojuobá: “Sabe o que
significa ser Ojuobá? Sou os olhos de Xangô [...]. Tenho um compromisso, uma
responsabilidade”. Uma vez em contato com as teorias raciais em voga na Faculdade de
Medicina, lidos os opúsculos de Nilo Argolo, Archanjo Ojuobá deslinda especificamente a
que se referem o compromisso e a responsabilidade que herdou como deveres ao ser
escolhido por Xangô. Percebe a ameaça que paira sobre o povo negromestiço da Bahia, ao
qual se funde indissociavelmente como bem indica o termo “Ojuobahia” de Milagres do povo,
epígrafe desta seção. O instante em que Mestre Pedro Archanjo Ojuobá, pai e herói daquele
povo, decide por em livro os fatos da vida baiana que contrariam, rejeitam e subvertem as
bases teóricas do racismo científico pretendido pelo Dr. Nilo Argolo, é o mesmo no qual
Xangô fere as pedreiras com o seu oxê, evocando os primeiros raios de liberdade e justiça, e
Exu dinamiza o universo provocando movimento, transformação e mudança.
“Vai escrever realmente ou esquecerá na vadiagem de festas e mulheres, nos ensaios
de pastoris, na Escola de Budião, nas obrigações de Terreiro, a promessa feita em noite de
cachaça longa e tempestade?” (Tenda dos milagres, p. 163). Sendo o instrumento de Xangô,
Mãe Majé Bassan, do alto de sua incontestável autoridade e sapiência de venerável iyalorixá,
não poderia permitir que Archanjo falhasse no que concerne às obrigações de Ojuobá, os
Olhos de Xangô. Então, dias após anunciar que escreveria um livro sobre o povo da Bahia,
um libelo antirracista, Ojuobá é avisado que Mãe Majé Bassan o espera, que deseja falar:
No peji, sentada em sua cadeira de braços, trono pobre, nem por isso menos temível,
Majé Bassan lhe entregou o adjá e tirou uma cantiga para o santo. Depois, brincando
com os búzios mas sem interrogá-los como se o jôgo fosse desnecessário, falou:
- Soube que tu disse que vai escrever um livro, mas sei que tu não está fazendo, o
teu fazer é só da bôca para fora, tu se contenta com pensar. Tu passa a vida
xeretando de um lado para o outro, conversa aqui conversa ali, toma nota de um
tudo e para quê? Tu vai ser tôda a vida contínuo de doutor? Só isso e nada mais? O
emprêgo é pra teu de-comer, para não passar necessidade. Mas não é para te bastar
nem para te calar. Não é para isso que tu é Ojuobá.
Então Pedro Archanjo tomou da caneta e escreveu (Tenda dos milagres, p. 163).
213
Tudo ver, tudo saber, tudo escrever. Obrigação transmitida por Xangô ao seu Ojuobá,
desígnio que estabelece um compromisso com o orixá signo de justiça e uma responsabilidade
com o povo negromestiço das ruas e ladeiras da Bahia, tão vilipendiado e tão rico: combater
Argolos e Pedritos, salvaguardar o povo e as tradições, eis sua incumbência. Archanjo omo
Exu, passa a ser também Ojuobá, espécie de herói-mito, como Lody refere-se a Xangô,
guiado pela sacerdotisa do Alafin, Mãe Majé Bassã, suprema autoridade. Cunha-se, então,
uma identidade que se enraíza e aprofunda no contexto social vivenciado por Archanjo, no
âmbito do embate contra as perseguições racistas, mas que se vincula e depende dos laços
míticos entre pai e filho, Exu e Archanjo, e os fortalece e potencializa com o oxê, os raios e a
guerra por justiça de Xangô. Pedro Archanjo Ojuobá, uma única identidade, de feição
sóciomítica, convergência de aiyê e orun, amálgama de Exu e Xangô, Elegbara e Alafin: “Foi
Pedro Archanjo e Ojuobá ao mesmo tempo. Não se dividiu em dois, com hora marcada para
um e outro, o sábio e o homem. [...] Foi mestre Archanjo Ojuobá, um só e inteiro”. (Tenda
dos milagres, p. 230).
Alcunhou-se metonímico o terceiro sentido do candomblé em Tenda dos milagres.
Assim, algumas considerações a seu respeito precisam ser tecidas. Como já referido, a
religiosidade afro-brasileira não apenas exprime um ethos negro, como também, e
principalmente, constitui-se na própria raiz de uma identidade negra no Brasil, posto veicule
os valores e a dinâmica de uma civilização negro-africana e possibilite a restauração dos elos
de parentesco outrora perdidos (BRAGA, 2006). Esta identificação, conforme salienta Pinho
(2004) independe de uma participação efetiva em Terreiros, uma vez que os mitos e os
exemplos de resistência histórica ultrapassam os muros fronteiriços dos Ilê Axé. Desta forma,
quando Amado traz à baila a violência policial contra os Terreiros de candomblé na década de
1920, assim como seu contraponto, a resistência heroica da religiosidade afro-brasileira,
obviamente não discorre apenas sobre a aversão de uma sociedade que se quer
imaculadamente latina em face da religião negra. Antes, o faz metonimicamente tomando o
candomblé como parte simbólica de um todo, qual seja, o povo negromestiço. Neste aspecto,
importante recuperar o depoimento de Jorge Amado a Alice Raillard (1990, p. 37): “[...] era
uma repressão das mais violentas; a toda hora a polícia invadia os terreiros de candomblé,
quebrava tudo, batia em todo mundo, prendia [...], torturava [...] era uma forma de repressão
contra toda a matriz negra [...], contra todas as expressões da cultura negra”.
Não é necessário arrolar muitos exemplos ou citações para que se comprove o efeito
metonímico que Jorge Amado confere ao candomblé em Tenda dos milagres. Para além da
violência às Casas de Axé e das teorias racistas da Faculdade de Medicina da Bahia, o
214
romancista baiano aborda, em diversas passagens, as perseguições aos capoeiristas e aos
sambistas, bem como os assassinatos de diversos deles – tiros disparados pelas costas, muitas
vezes. Se, a despeito destas outras violências, Amado focaliza prioritariamente as
perseguições religiosa e científica é porque, de alguma forma, englobam e suscitam todas as
outras – daí também a feição metonímica.
Antes que se discuta de maneira específica a atuação do delegado auxiliar Pedrito
Gordo e a forma como foi derrotado, convém abordar brevemente um outro insucesso
policial, desta vez em relação ao interdito à saída dos Afoxés no carnaval baiano. Amado
escreve:
[...] o doutor Francisco Antônio de Castro Loureiro, diretor interino da Secretaria de
Polícia, não proibira “por motivos étnicos e sociais, em defesa das famílias, dos
costumes, da moral e do bem-estar público, no combate ao crime, ao deboche e à
desordem”, a saída e o desfile dos afoxés, a partir de 1904, sob qualquer pretexto e
onde quer que fôsse na cidade? Quem ousara, então? (Tenda dos milagres, p. 90).
Os alegados motivos que justificam a proibição dos Afoxés não são outros senão
aqueles que se bifurcam na teoria de Nilo Argolo e na prática de Pedrito Gordo. Afinal,
“motivos étnicos e sociais” e “combate ao crime” estão amplamente relacionados com um
apagamento dos povos negros, desejo do delegado auxiliar, e a teorização acerca da natural
tendência ao crime das populações mestiças, conclusão relacionada com o professor da
Faculdade de Medicina.
Segundo Amaral (2005, p. 97), “o afoxé foi, historicamente, a primeira manifestação
da religiosidade do candomblé nas ruas”, com o que se justifica enquadrá-lo no sentido
metonímico da religiosidade afro-brasileira. Nesta direção, Risério (1981, p. 12) afirma que o
termo “afoxé” significa “[...] a enunciação que faz (alguma coisa) acontecer. Ou, numa
tradução mais poética, a fala que faz. Escreve Olabiyi: afoxé „em iorubá, significa, pois,
encantamento, palavra eficaz, operante‟. Outras palavras: fórmula mágica” (grifos do autor).
Ao sair do âmbito linguístico para observar o afoxé nas ruas na virada do decênio de 1970
para o seguinte, período que Risério considera como de “reafricanização” do carnaval, o
pesquisador constata que o período “[...] continua sendo um espaço privilegiado para a
manifestação e a afirmação cultural dos negros, com implicações sociais e políticas daí
decorrentes” (RISÉRIO, 1981, p. 18)167
. Ora, o prefixo “re” anteposto a “africanização” indica
167
A ideia de encantamento é tão presente e forte entre os Afoxés que Edil Pacheco, ao escrever Ijexá (Filhos de
Gandhi), gravada pela saudosa Clara Nunes, em homenagem ao Afoxé Filhos de Gandhy, bloco tradicional do
carnaval de Salvador, que a adota em seu repertório, destaca logo nos primeiros versos: “Tem um mistério / Que
bate no coração / Força de uma canção / Que tem o dom de encantar”.
215
o retorno da Festa de Momo a uma condição que deixara de veicular – a dos valores negros
correlacionados aos afoxés e blocos afro. Já o verbo “continuar”, conjugado a partir do
substantivo “carnaval”, evidencia que, não obstante este intervalo de “desafricanização” da
festa, os blocos negros de meados de 1970, ao entrarem na Avenida Sete, mantêm o sentido
político daqueles primeiros, que desfilavam na passagem do século XIX para o XX e
desafiavam as ordens policiais. Expunham, assim, à revelia da sociedade em derredor, o
mundo dos valores negros nas ruas da Cidade da Bahia, como que em uma antecipação dos
versos de Paulinho Camafeu em Mundo negro, composta para introduzir o Ilê Aiyê no
carnaval baiano de 1975: “Que bloco é esse? / Eu quero saber / É o mundo negro / Que
viemos cantar pra você”.
A julgar pelas informações do parágrafo anterior, os afoxés originalmente estariam
vinculados à expressão de uma visão de mundo negro-africana evidenciada nas músicas e nas
danças relacionadas aos orixás, bem como a uma proposta de natureza afirmativa que buscava
desafiar os limites impostos pelas elites brancas.
A despeito da proibição promulgada pelo diretor interino da Secretaria de Polícia, que
duraria longos quinzes anos, Archanjo juntamente com Lídio Corró, omo Exu e omo Ogum,
dois irmãos, decidem levar o afoxé para a rua:
Afoxé significa encantamento, e o primeiro de todos, o inicial, fôra posto em mãos
de Pedro Archanjo por Majé Bassan, a temível: Archanjo viera lhe comunicar a
decisão e pedir a benção e conselho. [...] pretendiam organizar uma Folia
Carnavalesca, a Embaixada Africana, em honra dos encantados e para exibir no
entrudo a civilização de onde provinham negros e mulatos.
Mãe Majé Bassan fez o jôgo para saber qual o dono da Embaixada e qual o Exu a
protegê-la. Apregoou-se dona a sereia do mar, Yemanjá, e Exu Akssan assumiu os
cuidados e a responsabilidade. Assim sendo, a iyalorixá trouxe o pequeno chifre de
carneiro, encastoado em prata, contendo axé, o alicerce do mundo. Êste é o afoxé,
disse, e sem êle ou outro igual em fundamento, nenhuma folia ou Troça de Carnaval
deve sair à rua nem atrever-se.
- Este é o afoxé, o encantamento. – repetiu e o colocou nas mãos de Pedro Archanjo
(Tenda dos milagres, p. 92).
Claras estão, neste fragmento, as motivações religiosas – “em honra dos encantados” –
e políticas – “exibir a civilização de negros e mulatos” – do afoxé. Somem-se a estas razões,
nome e tema escolhidos para o desfile: Afoxé Filhos da Bahia a contar a saga insurrecta de
Zumbi dos Palmares. Ora, Afoxé Filhos da Bahia é um nome deveras sintomático uma vez
que se considere a proibição aos blocos negros de desfilarem pelas ruas, bem como as
perseguições policiais e as teorias raciais já em voga no período. Um nome que reivindica e
afirma uma condição, uma pertença e uma identidade que a própria Bahia diariamente denega,
216
exclui, deseja apátrida... E se o nome escolhido requisita o reconhecimento de negros e
mestiços como filhos autênticos deste Estado, o tema se configura ainda mais provocador:
traduz a não submissão, o orgulho, o combate contra o prolongamento da escravidão. A
encenação de um herói negro, em luta contra a ordem escravocrata e em favor do mundo
negro-africano, em pleno desfile proibido de um bloco de afoxé, atualiza a pugna de Zumbi, a
faz coetânea. A oposição aos senhores de escravos e o embate contra a polícia no pós-
escravidão tornadas uma só e grande batalha, enfim, todos os esforços a favor do povo e dos
valores negromestiços:
Lá estava Zumbi de pé sôbre a montanha, a lança em punho, o torso nu, uma pele de
onça tapando-lhe as vergonhas. O grito de guerra marca a dança dos negros fugidos
dos engenhos, do rêlho, dos capatazes e senhores, da condição de alimária,
recuperados homens e beligerantes; nunca mais escravos. [...]
O povo aplaudia o insubmisso, valente desafio: onde já se viu, senhor doutor
Francisco Antônio de Castro Loureiro, interino da polícia e branco de cu prêto, onde
já se viu carnaval sem afoxé, brinquedo do povo pobre, do mais pobre, seu teatro e
seu balé, sua representação? (Tenda dos milagres, p. 90).
O aplauso do povo nas ruas, solto, livre, a expandir o axé. O Afoxé Filhos da Bahia
tinha triunfado com as bênçãos de Yemanjá e Exu Akssan, o protetor. A simbologia de Zumbi
tinha mais uma vez prevalecido. Quando a polícia conseguiu enfim dispersar o afoxé já o
carnaval inteiro tinha sido encantado por aquele mundo negro, já o axé tinha se expandido e o
aiyó, a alegria, se libertado da repressão: “[...] Archanjo [...] começou a rir, a rir às bandeiras
despregadas, um riso alto, claro e bom de quem rompera a ordem injusta e proclamara a festa;
abaixo o despotismo, viva o povo, límpido e infinito riso de alegria” (Tenda dos milagres, p.
91).
A resposta não tarda. Acirram-se as coibições, intensifica-se a campanha dos jornais
contra a população negromestiça da Bahia: “A continuar essa escandalosa exibição de África
[...], o samba embriagador, êsse encantamento, êsse sortilégio, êsse feitiço, então onde irá
parar nossa latinidade? Pois somos latinos, bem sabeis, se não sabeis, aprendereis à custa de
rêlho e de porrada” (Tenda dos milagres, p. 94). Este contexto favorece a ascensão do
delegado auxiliar Pedrito Gordo cuja sanha é, portanto, legitimada. A truculência e a
obstinação do delegado são vistas com bons olhos pela elite baiana, ávida por uma latinidade
depurada das “manchas africanas”, consideradas como bárbaras, empecilhos à civilização:
De 1920 a 1926, enquanto durou o reinado do todo-poderoso delegado auxiliar, os
costumes de origem negra, sem exceção, das vendedoras de comida até os orixás,
foram objetos de violência contínua e crescente. O delegado mantinha-se disposto a
217
acabar com as tradições populares, a porrete e a facão, a bala se preciso (Tenda dos
milagres, p. 304).
Todas as formas de expressão do povo negromestiço estavam sob a mira obsedante de
Pedrito Gordo. “O samba de roda foi exilado [...], as escolas de capoeira fecharam suas portas
[...] de quando em vez o corpo de um capoeirista aparecia crivado de balas na madrugada,
tiros de tocaia [...]. Assim morreram Neco, Dendê, Porco Espinho, João Grauçá, Cassiano do
Boné” (Tenda dos milagres, p. 304). Uma, porém, por ser reunião e matriz de todas as outras,
símbolo maior de uma cultura e de uma identidade negras, é especialmente perseguida e
golpeada: a religiosidade afro-brasileira, o candomblé:
Muitos babalorixás e iyalorixás levaram axé e santos para longe, expulsos do centro
e dos bairros vizinhos para as roças distantes, lugares de difícil acesso. Outros
tomaram dos orixás, dos instrumentos, dos trajes, dos itás, das cantigas e danças, do
baticum, dos ritmos e se transferiram para o Rio de Janeiro [...]. Alguns Terreiros
menores não puderam resistir a tanta perseguição, desapareceram de vez. Vários
reduziram o calendário de festas às obrigações imprescindíveis, realizadas às
escondidas (Tenda dos milagres, p. 304).
Pedrito Gordo punha em prática tudo aquilo que aprendera lendo as obras dos teóricos
do racismo, entre eles o professor Nilo Argolo. Fora ensinado, ainda nos tempos da Faculdade
de Direito, que “[...] negros e mestiços possuem natural tendência ao crime agravada pelas
práticas bárbaras do candomblé, das rodas de samba, da capoeira, escolas de criminalidade a
aperfeiçoar quem já nascera assassino, ladrão, canalha” (Tenda dos milagres, p. 272). Teoria e
prática, Nilo e Pedrito. Não surpreende, portanto, que o professor da Faculdade de Medicina
tenha comparado o delegado auxiliar a Ricardo Coração de Leão, ao imaginá-lo travando uma
“guerra santa, cruzada bendita, a resgatar os foros de civilização de nossa terra conspurcada”
(Tenda dos milagres, p. 273). Da mesma forma, não causa estranheza o discurso de Pedrito
Gordo:
Quando certos demagogos, em busca de popularidade entre a ralé, a plebe, o zé-
povinho, punham-se a discutir a repressão aos costumes populares e os métodos
violentos usados pela polícia para silenciar atabaques, ganzás, berimbaus, agogôs e
caxixis, para impedir a dança das feitas e dos capoeiras, o delegado auxiliar Pedrito
Gordo exibia a cultura antropológica e jurídica de sua estante: “São os mestres que
afirmam a periculosidade da negralhada, é a ciência que proclama guerra às suas
práticas anti-sociais, não sou eu”. Num gesto de humildade, completava: “Apenas
trato de extirpar o mal pela raiz, evitando que êle se propague. No dia em que
tivermos terminado com tôda essa porcaria, o índice de criminalidade em Salvador
vai diminuir enormemente e por fim poderemos dizer que nossa terra é civilizada”
(Tenda dos milagres, p. 273).
218
A Guerra Santa estava, então, deflagrada. Era, com alguns séculos de atraso, a Décima
Cruzada tendo início, substituindo-se a Cidade Sagrada de Jerusalém pela Bahia e os povos
islâmicos pela população negromestiça dos candomblés de orixá, de inquice, vodun e caboclo
– a negralhada, como resumem depreciativamente Pedrito e Nilo Argolo.
A opressão policial não se restringia apenas à proibição aos cultos religiosos, ao toque
dos atabaques rum, rumpi e lé e do agogô, à dança dos orixás. Ia além, não havia limites de
crueldade para a “malta de facínoras”, para o letífero séquito de Pedrito Gordo: “A destruição
dos objetos rituais não acalmou a fúria, o ódio dos cruzados. Era pouco. Puseram fogo no
barracão, as chamas consumiram o Terreiro de Sabaji. Para exemplo” (Tenda dos milagres, p.
275).
“O doutor Pedrito prometera acabar com a feitiçaria, o samba, a negralhada” (Tenda
dos milagres, p. 276). Ao exemplo dado pela destruição do Terreiro de Sabaji, juntaram-se
outros e mais outros de modo que os Ilê Axé se afastaram, se reduziram, escassearam. Poucos
mantinham suas portas abertas, muitos se mudavam para o Rio de Janeiro. Investia-se, assim,
contra “[...] as bases de uma cidadania diferenciada” (BRAGA, 1995, p.20), uma vez que
“[...] o terreiro seria o campo (território de preservação da regra simbólica) delimitativo da
cultura negra no Brasil, o espaço de reposição cultural de um grupo cujas reminiscências de
diáspora ainda eram muito vivas” (SODRÉ, 2005, p. 125)168
.
Metonimicamente, o processo de apagamento da identidade e das tradições de matriz
africana consubstancia-se, então, na opressão exercida sobre os candomblés baianos, o que
insere tal investida no amplo movimento de continuidade da exclusão do negro no período
que se segue à Abolição. Trata-se, assim, por um lado de salvaguardar os lugares de mando e
poder social, essencialmente intactos desde a Colônia e, por outro, de dirimir, na população
negromestiça da Bahia, o quinhão negro que a caracteriza – daí também a importância de
acentuar o caráter negromestiço da mestiçagem amadiana.
O universo ficcional de Jorge Amado, porém, não assoalha ou não visualiza a
população negromestiça da Bahia como uma imagem meramente passiva ou fugidia. Diante
da opressão exercida por uma sociedade que se quimeriza branca, personagens negras
resistem, delimitam e lutam por um território que se constitui igualmente em um espaço físico 168
Importante salientar, ainda uma vez mais, que o ataque a estas “bases de uma cidadania diferenciada” que
correspondem ao candomblé, como define Júlio Braga, não se restringiu aos anos 1920. O próprio Júlio Braga
(1992, p. 13) afirma: “[...] entre muitos problemas emergentes dessa comunidade submetida a uma hedionda
campanha que tenta depreciá-la naquilo que ela tem de mais original e inovador, qual seja, uma opção de
existência alternativa e espiritual, campanha arquitetada nos dias atuais pela igreja Universal do Reino de Deus,
a situação que mais preocupa o [...] povo-de-santo é a constante pressão ou opressão exercida pela sociedade
dominante que parece refratária a aceitar o candomblé como elemento integrante da vida religiosa brasileira e
sustentáculo dinâmico da herança cultural africana no Brasil”.
219
e simbólico: o Terreiro, que é tanto moradia quanto identidade; que é tanto tempo presente
quanto reconstrução de uma ancestralidade. Para além de Pedro Archanjo Ojuobá, omo Exu, e
Lídio Corró, omo Ogum, Tenda dos milagres evidencia também o babalorixá n‟Ilê Ogunjá
Procópio Xavier de Souza, omo Oxóssi, orixá considerado Obá Alaketu, isto é, Rei e Senhor
dos Ketu, epíteto que O faz um protetor dos ara ketu, povo de Ketu – nomenclatura que, no
Brasil, designa a nação de candomblé de culto nagô, ou seja, aquela que se correlaciona aos
orixás, o que estende a proteção de Oxóssi a todos omo orixá brasileiros, independente do
eleda ou do patrono do Ilê Axé a que se vinculam169
.
Em contraposição àquela parcela dos Terreiros que se deslocavam para lugares
inacessíveis ou mesmo que fechavam as portas, Pai Procópio de Oxóssi representa aqueles
que resistem e lutam pela sobrevivência das tradições africanas, a despeito da crescente
violência de Pedrito Gordo:
[Procópio] Enfrentou Pedrito e foi por êle perseguido e castigado sem tréguas.
Constantemente prêso, tinha nas costas as marcas de chicote de couro cru, lanhos de
sangue. Nada o abateu, não se deixou derrotar. [...]
Procópio não silenciou os atabaques, não fugiu de casa para o mato ou para o Rio de
Janeiro. A roda das feitas diminuiu, de enorme ficou pequena, ogans se recolheram à
espera de melhores tempos. Procópio prosseguiu:
- Meu santo ninguém vai me impedir de festejar.
Banhado em sangue, a roupa em trapos, em frente a Pedrito Gordo, na sala da
Delegacia Auxiliar, renova o desafio: sou babalorixá, festejo meu santo, meu pai
Oxóssi. [...]
- Ouça, animal sem inteligência: vou lhe soltar mas se ousar bater candomblé outra
vez, atente bem, será a última. A última!
- Não vou morrer antes do dia determinado por Deus. Oxóssi me defende. [...]
- Ouça, cabra ruim: santo de igreja faz milagre, por isso é santo. Êsses santos de
vocês só fazem barulho, são uns santos de merda. No dia em que eu ver um milagre
dêsses putos, nesse dia me demito do cargo – riu, tocou com a ponta da bengala o
peito rasgado do negro: – Daqui a poucos dias vai fazer seis anos que baixo o pau
em candomblé, já acabei com quase todos, vou acabar com o resto de uma vez.
Nesse tempo todo nunca vi um milagre de orixá. Muito falatório e só. [...]
- Meu santo ninguém vai me impedir de festejar (Tenda dos milagres, p. 395-306).
A reiteração enfática de Procópio, o que denota o enfrentamento à ordem social
racista, traduz, pela defesa de uma tradição, a preservação de uma identidade: “sou
babalorixá, festejo o meu santo”. Tal encadeamento, em que festejar o santo é consequência
direta de Procópio ser babalorixá, evidencia os deveres inerentes à posição de alto sacerdote
dos orixás e traduz as mesmas obrigações assumidas por Pedro Archanjo ao ser consagrado
Ojuobá: “Sou Ojuobá, tenho um compromisso, uma responsabilidade”. Assim, ao acastelar a
169
Sobre o conceito de nação de candomblé, Cf: LIMA, Vivaldo da Costa. O conceito de “nação” nos
candomblés da Bahia. Afro-Ásia, Salvador, n. 12, p. 65-90. 1976. Sobre Oxóssi, Barretti Filho (2010, p. 101)
afirma que “[...] Òsóòsì continua protegendo e propiciando ao homem seu sustento e lhe dando morada e, ainda,
se possível, fartura com qualidade de vida e prosperidade”.
220
tradição religiosa, Procópio mantém incólume o compromisso assumido com os orixás de
preservar o culto e o modo de vida que se constitui peculiar, a relação aiyê e orun e os
princípios e valores que sustentam a dinâmica do mundo negro. Por outro lado, acata e faz
cumprir a responsabilidade lhe outorgada pelo orun, qual seja, estar junto ao povo de santo
para guiá-lo, protegê-lo e conservá-lo em torno a uma identidade coletiva. Eis Procópio, omo
Oxóssi, filho do Obá Alaketu, Rei e Senhor, protetor dos filhos de Ketu.
O embate que põe em polos conflitantes Pedrito Gordo e Procópio de Oxóssi, este
ladeado por Pedro Archanjo Ojuobá, tem, como não poderia deixar de ser, o seu arremate no
Ilê Ogunjá, em noite de festa do Rei de Ketu, com todos os orixás presentes: “Festa pobre de
afluência mas rica de animação. [...] No centro da sala, Oxossi, rei de Ketu, caçador de feras,
na mão direita o arco-e-flecha, na esquerda o erukerê. [...] Na dança de Procópio, Oxossi
dirigiu-se à porta do Terreiro, lançou seu grito de desafio” (Tenda dos milagres, p. 307). O
repto lançado por Oxóssi para além dos muros do Ilê Ogunjá convocava Pedrito Gordo para a
batalha, “sou Oxossi, comigo ninguém acaba!” (Tenda dos milagres, p. 309). O delegado
auxiliar, escoltado por sua horda de assassinos, não tarda a adentrar o Terreiro de Procópio.
Traz consigo Zé Alma Grande, assim chamado “[...] pela franqueza no falar e a tranquilidade
no matar” (Tenda dos milagres, p. 309). Archanjo o conhece, sabe-o filho de Ogum, Mãe
Majé Bassan o havia expulsado do Axé de Xangô por ter assassinado uma iyaô, fora então
recrutado por Pedrito Gordo para os trabalhos mais brutais, os que exigiriam maior violência.
“Pedro Archanjo Ojuobá reconheceu Zé de Ogun: tudo podia acontecer” (Tenda dos milagres,
p. 309).
Um inevitável clima de tensão toma conta do Ilê Ogunjá. Oxóssi cavalga Procópio,
dança os mitos da terra de Ketu quando Pedrito se dirige ao babalorixá ordenando interromper
o toque dos atabaques. Procópio/Oxóssi desafia, continua a dança, atira suas flechas:
- Vou acabar com você agora mesmo, santo de merda! – Pedrito Gordo apontou
Procópio a Zé Alma Grande: – Aquêle. Vá buscá-lo, vivo ou morto.
Adiantou-se o negro maior do que um sobrado, Ojuobá percebeu com os olhos de
Xangô um átimo de vacilação no passo do facínora ao penetrar no recinto sagrado
do Terreiro. [...]
Contam que, nessa hora exata, Exu, de volta do horizonte penetrou na sala. Ojuobá
disse: Laroiê, Exu! Foi tudo muito rápido. Quando Zé Alma Grande deu mais um
passo em direção a Oxossi, encontrou pela frente a Pedro Archanjo. Pedro Archanjo,
Ojuobá ou o próprio Exu conforme opinião de muitos. A voz se abriu imperativa no
anátema terrível, na objurgatória fatal!
- Ogun kapê dan meji, dan pelú oniban!
Do tamanho de um sobrado, os olhos de assassino, o braço de guindaste, as mãos de
morte, estarrecido, o negro Zé Alma Grande parou ao ouvir o sortilégio. Zé de Ogun
deu um salto e um berro, atirou longe os sapatos, rodopiou na sala, virou orixá, no
221
santo sua força duplicava. Ogunhê!, gritou, e todos os presentes responderam:
Ogunhê, meu pai Ogun! [...]
Quando Zé Alma Grande, cão de fila, assassino às ordens, homem de tôda
confiança, virou Ogun e partiu para o delegado, Pedrito necessitou do orgulho
inteiro para erguer a bengala na tentativa última de se impor. De nada serviu. Os
pedaços de junco estalaram nos dedos do encantado [...]. Não coube a Pedrito Gordo
outro recurso senão correr vergonhosamente, em pânico, gritando por socorro [...].
Foi o riso da cidade, a galhofa [...] (Tenda dos milagres, p. 309-311)170
.
Três fatores que se entrelaçam devem ser observados na cena transcrita acima. O
primeiro deles refere-se à presença beligerante dos orixás no Ilê Ogunjá. Desde o primeiro
momento em que o Obá Alaketu Oxóssi lança o seu brado, que já não é mais apenas o ilá,
aviso de chegada ao aiyê, mas desafio a Pedrito, convocação para a guerra, percebe-se
iminente o despontar do milagre nunca visto pelo delegado auxiliar. Assim, é Odé, o rei
caçador de Ketu, quem enfrenta Pedrito e não apenas Procópio; são os olhos de Xangô, olhos
de justiça, que percebem o titubeio de Zé Alma Grande e, da mesma forma, é Ojuobá, o oxê
de Xangô, quem pressente e saúda o retorno de Exu, e não tão somente Pedro Archanjo; e já
também não é exclusivamente Pedro Archanjo quem lança o sortilégio sobre o filho de Ogum,
mas Exu, Senhor do Poder, agente de transformação e liberdade, quem o faz. Por último,
ainda que de identidade rediviva, não cabe a Zé Alma Grande avançar contra Pedrito, mas ao
dono da casa, ao patrono do Terreiro uma vez que Ilê Ogunjá significa “Casa de Ogunjá” e
Ogunjá constitui uma das qualidades de Ogum, orixá da guerra e também da civilização. A
derrota de Pedrito, portanto, simboliza concomitantemente uma retomada simbólica, mas
também de natureza concreta: a do orixá que recupera a casa invadida, o seu domínio, o
território em que erige sua civilização e que, com isso, reconquista a liberdade do povo de
santo para bater os atabaques, reviver os mitos, cantar e dançar, viver os orixás. Por mais não
seja, Santana pontua nesta cena:
170
Lühning (1995-1996, p. 197) em sua pesquisa sobre Pedro Gordilho escreve: “Jorge Amado, que aborda o
„reinado‟ de Pedrito no seu romance Tenda dos Milagres, descreve uma cena (pp. 308-111) em que um dos
acompanhantes de Pedrito, na ocasião da batida, teria “dado santo” na casa de Procópio, e até atentado contra o
próprio delegado, o que teria levado ao já mencionado pedido de demissão. Outras informações pessoais já
contam que o próprio delegado teria „dado santo‟, ou na casa de Procópio ou de uma mãe-de-santo de nome
ignorado”. Interessante ainda evidenciar que às páginas 268 e 269 da 7ª edição de Tenda dos milagres publicada
pela Martins, pressentindo a hora da morte, Mãe Majé Bassã convoca Archanjo para lhe passar um último
ensinamento: um mito que narra a invasão de um Terreiro quando todos os orixás dançavam. “Ogun dançava a
espera dos soldados. Não tardou êles chegarem, pulavam dos cavalos, e sem dizer aqui-del-rei iam puxando as
armas de bater e criar bicho. Da porta Ogun falou assim para os soldados: Quem fôr de paz entre no Terreiro,
venha dançar em minha festa. Para os amigos, meu coração é mel de flôres, mas ai dos inimigos: para êles meu
coração é poço de veneno”. Em meio à narração, Mãe Majé Bassã ensina a Archanjo as palavras mágicas ditas
por Ogum para afugentar os soldados: Ogun kapê dan meji, dan pelú oniban. O mito e a invasão do Ilê Ogunjá
coincidem o que possibilita inferir que Mãe Majé Bassã, de alguma forma, sabia o que iria acontecer. Eis mais
uma evidência de como a literatura amadiana e o candomblé são convergentes.
222
[...] um feito surpreendente de catarse literária: o escritor vinga o insulto do opressor
e através de seus personagens promove um ato de justiça com força sobrenatural, em
favor do povo oprimido dos candomblés, ao sentenciar publicamente o seu algoz,
Pedrito Gordo, com as palavras mágicas com forte poder de transformação [...].
(SANTANA, 2009, p. 45).
Mencionadas por Santana, as “palavras mágicas com forte poder de transformação”
conformam o segundo fator que suscita algumas considerações. Indicia-se, a partir delas, um
detalhe fundamental na construção do texto amadiano, qual seja, uma cena para a qual
convergem múltiplos valores negros. Assim, não somente pela presença dos orixás se
configura a derrocada de Pedrito Gordo, mas também pela evocação de um ethos negro que se
defende e se impõe a partir de um seu princípio: o poder de encantamento da palavra dita; a
força de realização que se manteve indene a despeito da passagem de tanto tempo e por tantos
mares, não obstante as diversas ordens de silêncio. Neste sentido, é importante ressaltar que
“[...] as palavras carregadas de ase são forças profundas. [...] Pronunciadas no contexto e lugar
adequados, as palavras têm a força de trazer consigo os seres e entidades míticos e sagrados”
(SANTOS e SANTOS, 1993, p. 45). Risério comenta:
Na concepção iorubana, os signos lingüísticos podem estar carregados de força
mágica. A emissão do texto é capaz de liberar poderes invisíveis, já que a ação de
nomear é dotada de eficácia prática. Acredita-se por exemplo que, ao proferir um
oriqui dirigido a um orixá, o indivíduo será ouvido. E há mesmo quem diga que a
emissão de um oriqui pode induzir os mais sensíveis a mergulhar nas profundezas
energéticas do transe (RISÉRIO, 1992, p. 37).
O derradeiro olhar sobre esta cena é de natureza comparativa. Quando Jorge Amado
afirma que Tenda dos milagres é uma reescritura de Jubiabá, evidentemente há uma série de
fatores que podem ser representativos desta nova escrita. Por certo, o estr(e)ito viés político
que permeia a história de Baldo cedendo lugar à amplitude política de Tenda dos milagres é
deveras importante de se considerar. Nesta perspectiva, pode-se atentar para a greve como
desfecho do romance de 1935 enquanto se torna elemento apenas secundário naquele de 1969.
Pode-se observar, igualmente, a presença do humor corrosivo, crítico, bem como o maior
domínio das técnicas narrativas em contraposição ao tom mais “sério” de Jubiabá. Entretanto,
se o parâmetro a ser observado for a personagem negra, nenhuma outra cena pode melhor
evidenciar a reescrita de Jubiabá em Tenda dos milagres do que a última transcrita, a derrota
de Pedrito Gordo.
Ora, em Jubiabá é justamente durante uma festa de Oxóssi que Antônio Balduíno
invade o Terreiro para conclamar os presentes para a greve uma vez que, repita-se o que já foi
transcrito e comentado em seção anterior, “que adianta negro rezar, negro vir cantar pra
223
Oxóssi? Os ricos manda fechar a festa de Oxóssi. Uma vez os policiais fecharam a festa de
Oxalá quando ele era Oxolufã, o velho. E pai Jubiabá foi com eles, foi pra cadeia” (Jubiabá,
p. 223-224). Ainda que a identidade negra não se apague de todo na personagem de Balduíno,
o momento acima marca um rompimento: Baldo desgarra-se de Jubiabá e, desta forma, do
candomblé. Certamente por causa da onipresença da ideologia política a ser veiculada pelo
romance, a religiosidade é colocada como a antípoda da greve: se na união de trabalhadores
em torno de um ideal comum é possível lutar, resistir, alcançar mudanças, impor-se, enfim,
nenhuma destas perspectivas é exequível através dos orixás, da religião, da tradição africano-
brasileira. Seu discurso, neste instante, beira a iconoclastia.
Outra é a mirada de Tenda dos milagres. Neste romance, a festa de Oxóssi profanada
em Jubiabá volta à cena. Entretanto, o discurso político estreito, os orixás submissos à ordem
desigual de mundo e o fato de a religiosidade mostrar-se incapaz de proteger o seu povo dão
lugar a uma perspectiva política ampla em que a construção amadiana desloca o candomblé
para a posição de protagonista – quiçá superando o próprio protagonismo de Archanjo uma
vez que o heroísmo da personagem explica-se por ser Mestre Pedro omo Exu e Ojuobá, os
Olhos do Rei Xangô. Nesta reescritura, são os deuses ultrajados por Baldo trinta e quatro anos
antes que se deslocam do orun ao aiyê para que possam guiar o povo negromestiço da Bahia,
para restituir-lhe a liberdade vilipendiada por Pedrito Gordo e a dignidade de homens
descartada por Nilo Argolo.
Em Tenda dos milagres, a circularidade, a convergência orun-aiyê é posta em cena por
Jorge Amado. As personagens, ao menos aquelas nas quais o romancista investe heroicidade,
são sujeitos que, na justa medida em que são homens, ultrapassam a condição meramente
humana e encerram em si as potencialidades dos orixás, os representam e os são –
salvaguardadas, claro, as limitações do humano em face de legítimos deuses. Por conseguinte,
a afirmação dos valores tradicionais da cultura afro-brasileira não depende de um contexto
externo a ela, como seria, por exemplo, se fosse defendida pelos escritos de Archanjo. Antes,
a resistência a tão inúmeras perseguições bem como a luta afirmativa de uma existência
específica, sua, são ideadas a partir daquilo que há de mais seu, por aquilo que lhe permita,
talvez, ser melhor identificada: o encanto da palavra que transcende; a palavra recoberta de
axé.
Por último, a seguir o intento deste tópico, é inevitável adentrar em uma discussão
que, a despeito de ser bizantina, merece alguma atenção. Refere-se ao longo e um tanto
quanto espinhoso diálogo entre Pedro Archanjo Ojuobá e Fraga Neto, professor da Faculdade
de Medicina da Bahia que faz oposição às teorias do Dr. Nilo Argolo. A questão que Fraga
224
Neto levanta é a seguinte: como Pedro Archanjo poderia, sendo um homem de ciência,
continuar a acreditar no candomblé? Seguem alguns trechos com as respostas de Archanjo:
- Durante anos e anos acreditei nos meus orixás como frei Timóteo acredita nos seus
santos, no Cristo e na Virgem. Nesse tempo tudo que eu sabia aprendera na rua.
Depois busquei outras fontes de saber, ganhei novos bens, perdi a crença. [...]
Tudo aquilo que foi meu lastro, terra onde eu tinha fincado os pés, tudo se
transformou num jôgo fácil de adivinhas. O que era milagrosa descida dos santos
reduziu-se a um estado de transe que qualquer calouro da Faculdade analisa e expõe.
Para mim, professor, só existe a matéria. Mas nem por isso deixo de ir ao Terreiro e
de exercer as funções de meu pôsto de Ojuobá, cumprir meu compromisso. Não me
limito como o senhor que tem mêdo do que os outros possam pensar, tem mêdo de
diminuir o tamanho de seu materialismo. [...]
Ademais, há o seguinte: estamos numa luta cruel e dura. Veja com que violência
querem destruir a tudo que nós, negros e mulatos, possuímos, nossos bens, nossa
fisionomia. Ainda há pouco tempo, com o delegado Pedrito, ir a um candomblé era
um perigo [...]. Sabe por que o delegado foi pôsto na rua? Sabe como se deu? [...]
Eu penso que os orixás são um bem do povo. A luta da capoeira, o samba-de-roda,
os afoxés, os atabaques, os berimbaus, são bens do povo. Tôdas essas coisas e
muitas outras que o senhor, com seu pensamento estreito, quer acabar, professor,
igualzinho ao delegado Pedrito [...].
Digo-lhe mais professor. Sei de ciência certa que todo sobrenatural não existe [...].
No entanto, quando meu afilhado Tadeu me disse que queria se casar com môça rica
e branca, mesmo sem querer pensei no jôgo feito pela mãe-de-santo no dia que êle
se formou. Trago tudo isso no sangue, professor (Tenda dos milagres, p. 316-318).
Claro está, ao contrário do que pensa Brookshaw (1983), que esta revelação de
Archanjo pouco ou nada influi para uma investigação acerca do lugar do negro na obra
amadiana – uma vez considerada plausível a leitura empreendida até aqui. Em momento
algum Archanjo incorre em desvalorização das tradições afro-brasileiras, até mesmo porque
permanece a elas vinculado, não as rejeita, não as nega como faz o professor Fraga Neto.
Neste aspecto, fica difícil compreender o que propõe o brasilianista inglês Brookshaw (1983,
p. 140) ao afirmar que Mestre Pedro abandona a “respeitabilidade social” ao rejeitar negar sua
personalidade. Não seria justamente o inverso? Talvez um Archanjo que denegasse as
tradições afro-brasileiras aprouvesse mais ao crítico inglês porquanto considere a personagem
como “viciada em candomblé” (BROOKSHAW, 1983, p. 138)171
. Ora, “vício” não é bem o
termo correto para designar a intensa relação identitária que Archanjo, omo Exu e os Olhos do
Rei Xangô, mantém com a religião dos orixás. Não obstante se declare materialista, Ojuobá
continua pertencente ao povo de santo para além dos compromissos e das responsabilidades
171
O antropólogo Ordep Serra (1995) faz duras (e justas) críticas à leitura alcançada por Brookshaw sobre a
literatura amadiana, que tenderiam a uma “generalização espantosa”. Machado (2006, p. 137), assustada com a
acusação de racismo que pesa sobre Amado em meios anglo-saxões, contexto no qual se insere Brookshaw,
comenta: “[...] como é que os meios acadêmicos anglo-saxões imaginam que poderá surgir a mestiçagem em
alguma sociedade se representantes de etnias diferentes não se permitirem viver uma atração mútua e uma
descoberta das seduções e encantos do outro”?
225
que advêm de seu posicionamento hierárquico: por mais ciência que saiba, por mais
materialista que seja, os búzios ainda têm sentido em sua vida, afinal é deles que Archanjo
rememora quando os fatos que sucedem na vida confirmam os previstos no jogo tempos
antes. Archanjo situa-se identitariamente ente os ara Ketu, o povo de Ketu, o povo dos
candomblés baianos. Ao pressentir a presença de Iku, a morte, sentindo a dor atravessar-lhe o
peito, entre outras lembranças e outros desejos, a memória de Rosa, o grande amor, do Major,
de Lídio e de Tadeu, Archanjo gostaria de estar no Terreiro para saudar uma vez mais o santo,
para um passo de dança, para puxar uma cantiga (Tenda dos milagres, p. 43) – cena em que
Leite (2006, p. 123) visualiza uma “redenção negra” uma vez que “[...] as crenças
abandonadas pelo etnólogo [...] no momento da morte re-afloram [...]”.
É óbvio que tais posições, quando enunciadas pelo “mito-herói” Pedro Archanjo,
causam certo impacto, acarretam alguma estranheza – deve-se reconhecer. Por mais não seja,
por longemente evocar a lembrança da iconoclastia de um Baldo recém-convertido ao
materialismo. Tal perspectiva, no entanto, não avança em Tenda dos milagres. Em verdade,
não chega nem a assomar, senão em Fraga Neto e prontamente repudiada por Mestre Pedro.
Assumi-la seria igualar-se a Pedrito Gordo, embora por outros caminhos. Archanjo Ojuobá
representa, então, a possibilidade de imiscuir duas compreensões de mundo divergentes, quiçá
antagônicas: o pensamento materialista e a vivência religiosa. A partir desta confluência,
Manzatto (1994, p. 172-173) teoriza uma “[...] possível abertura à transcendência. [...] Assim,
o homem não estaria condenado a pensar e a viver prisioneiro de realidades exclusivamente
materiais, mas poderia abrir-se à transcendência sem por isso deixar de ser homem ou ser
menos humano”.
Convém ressaltar, sem que maiores esforços intelectuais sejam necessários para tanto,
que é perceptível a fala específica do escritor Jorge Amado através das revelações de
Archanjo a Fraga Neto. O Obá de Xangô n‟Ilê Axé Opo Afonjá, com direito a saudar o Alafin
de Oyó com o xerê, declarava-se materialista convicto e, não raro, respondia à mesma
pergunta feita por Fraga Neto a Archanjo: como conciliar o materialismo e o candomblé172
?
Na entrevista que concede a Álvaro Gomes, publicada na série Literatura Comentada, Amado
responde de forma quase idêntica a Pedro Archanjo:
172
Talvez seja cabível a dúvida no que concerne à real natureza da pergunta e à sua insistência: será que não
comporta em si o preconceito de uma sociedade que sempre enxergou e ainda enxerga as tradições afro-
brasileiras, principalmente em seus aspectos religiosos, como primitivas e incompatíveis com um suposto mundo
civilizado, porquanto reduzido a uma lógica cartesiana, ocidental? Raciocínio estreito, insuficiente, incapaz de
lidar com os múltiplos ângulos e as diversas facetas do que é poliédrico por excelência: o mundo.
226
Eu sou materialista, mas meu materialismo não me limita. [...] Por isso, quando
entro no Axé Opô Afonjá, com meus colares, faço tudo o que tenho que fazer e faço
exatamente tudo com o maior prazer... Eu não poderia escrever sobre a Bahia, ter a
pretensão de ser um romancista da Bahia se não conhecesse realmente por dentro,
como eu conheço, os candomblés, que é a religião do povo da Bahia (JORGE
AMADO, 1981, p. 11).
Eis o ponto em que Pedro Archanjo seria precisamente Jorge Amado. Ambos
professam um materialismo não sectário, o compromisso com as obrigações advindas das
funções que desempenham nos Terreiros e o candomblé como um bem do povo da Bahia –
indissociável, inextinguível, portanto. Mas eis também o ponto em que, apesar de Pedro
Archanjo apresentar-se como Jorge Amado, não deixa de ser Ojuobá, assim como o
romancista, a despeito de ser agnóstico, não deixa de ser Obá Arolu: em ambos, não obstante
o materialismo, há uma “abertura à transcendência”. Neste aspecto, os dois primeiros versos
de Milagres do povo, cartesianamente contraditórios, explicam-se por uma entrevista de
Amado concedida à escritora Clarice Lispector (1975, p.13): “Não sou religioso, não possuo
crença religiosa alguma, sou materialista. Não tive experiências místicas, mas tenho assistido
a muita mágica, sou supersticioso e acredito em milagres, a vida é feita de acontecimentos
comuns e de milagres”. Quem é ateu / e viu milagres como eu, canta Caetano Veloso em
música dedicada a Tenda dos milagres.
Para além da negação de uma crença, afirma-se, portanto, a dimensão de uma vivência
religiosa. O materialismo não os limita. Nem a Archanjo Ojuobá, nem a Jorge Amado, Obá
Arolu.
4.2. UM “UNIVERSO MESTIÇO”, UM “MUNDO NEGRO”
Acaso se considere válida a interpretação alcançada acima em que Pedro Archanjo
Ojuobá passa a ser visto como uma representação do oxê de Xangô, há de se ponderar, como
também possível, a leitura das obras archanjianas como fulminantes raios de justiça lançados
pelo Alafin de Oyó. Corresponderiam, portanto, à defesa do povo negromestiço brasileiro
contra as exclusões advindas de práticas sociais racistas; pleito em que se observa o
enaltecimento da mistura entre povos, do amálgama que fundaria um só povo, de feição e
cultura mestiças. É o que se observa, por exemplo, em um fragmento extraído das
“Influências africanas nos costumes da Bahia”, segundo livro publicado pelo omo Exu:
“Formar-se-á uma cultura mestiça de tal maneira poderosa e inerente a cada brasileiro que
227
será a própria consciência nacional [...]” (Tenda dos milagres, p. 258). Da mesma forma,
depreende-se igual conceito da assertiva-síntese de Archanjo, qual seja, aquela dita por um
ferreiro em noite de discussão acerca do recuo dos exércitos nazistas: “Nem Deus, que fêz o
povo pode matar tudo de uma vez, vai matando de um a um e quanto mais êle mata mais
nasce e cresce gente e há de nascer, de crescer e de se misturar, filho-da-puta nenhum vai
impedir!” (Tenda dos milagres, p. 40-43).
Todavia, a julgar pelo histórico das propostas de mestiçagem no Brasil, abordado
lacunarmente na primeira seção, soa estranho que o termo “mestiço” possa abrigar em si a
população negra do país sem que lhe incida em escamoteamento ou supressão, sem que lhe
imponha branqueamentos vários. Não desprovidos de justa razão, portanto, os movimentos
negros nacionais, de uma forma geral, tendem à recusa de se conceberem a partir de uma
estética e de um ideário da mestiçagem, como sinaliza a letra de Alienação, canção cuja
autoria é de Sandro Teles e Mário Pam, músicos que compõem para o Ilê Aiyê:
Se você está a fim de ofender
É só chamá-lo de moreno, pode crer
É desrespeito à raça, é alienação
Aqui no Ilê Aiyê, a preferência é ser chamado de negão
Se você está a fim de ofender
É só chamá-la de morena, pode crer
Você pode até achar que impressiona
Aqui no Ilê Aiyê, a preferência é ser chamada de negona
Deve-se reconhecer, assim, que o abordo ficcional do negro empreendido através do
mestiço, como se a vinculá-los e exaltá-los apenas de forma conjunta, corresponde a uma
inalterabilidade representativa que invariavelmente obriga o leitor/pesquisador a engendrar
ressalvas e cuidados analíticos sempre justificáveis.
No que concerne especificamente à literatura amadiana, na qual a ascensão de um
mundo negro à protagonista se faz acompanhar da invariável valorização de um universo
mestiço, não poderia ser diferente. Por certo, ressalvas e cuidados são precisos, como bem os
faz Serra (1995, p. 340), para quem “[...] quando Jorge Amado faz do mulato a encarnação da
vitória sobre o racismo, incide numa simplificação brutalmente equivocada [...]”173
.
Conquanto haja a real necessidade de tais reservas, é plausível defender e arrazoar,
como se tem feito até aqui, a hipótese de que o “universo mestiço” figurado na literatura
amadiana comporta e valora positivamente em si mesmo um “mundo negro”. Por
173
Embora esta afirmação seja discutida e relativizada neste trabalho, não se pode deixar de lhe atribuir certa
razão.
228
conseguinte, é mister admitir que, no que tange à mestiçagem, o romancista baiano alcança
configurá-la e enunciá-la de maneira singular, isto é, depurada dos estratagemas enviesados
do racismo brasileiro.
Conforme Machado (2006, p. 139), a literatura do grapiúna não trata “[...] de acenar
com o mito da democracia racial [...]. Trata-se de refletir a possibilidade de uma democracia
feita de mestiçagem cultural”. Neste sentido, os termos utilizados no parágrafo anterior, quais
sejam, “universo mestiço” e “mundo negro”, não o foram aleatoriamente. A especificidade do
segundo em relação à abrangência do primeiro constitui, talvez, a distinção entre dois
possíveis planos de leitura da obra produzida pelo baiano: o vislumbre quimérico de um
universo mestiço social e identitariamente democrático, associado à afirmação de um mundo
negro encastoado em uma sociedade mestiça excludente. O primeiro, uma projeção ou um
sonho futuro; a segunda, uma necessidade presente:
Naquele tempo inicial tinham derrotado e demitido o diretor da Polícia, doutor
Francisco Antonio de Castro Soromenho, que proibira o desfile de ranchos e afoxés,
o batuque e o samba. Bons tempos aquêles, hein, compadre!, quando jovens e
afoitos saímos no Afoxé dos Filhos da Bahia, fit-o-fó para a polícia, viva o povo e
sua festa! Se lembra, compadre? Essa briga é comprida de nunca se acabar. O major
Damião de Souza, um menino, arrancou o quepe de um soldado, o finado Manuel de
Praxedes representava o papel de Zumbi. Nunca mais se parou de brigar, compadre:
na rua e no Terreiro, no livro e no jornal, na tinta e na pedra, na festa e no barulho.
Luta mais comprida, briga mais sem fim. Será que um dia se acaba, meu compadre?
Um dia vai se acabar, meu bom, não será no nosso tempo, camarado. Vamos morrer
brigando, na briga nos divertindo. Pedrito na frente, na corrida, Ogun atrás, as mãos
de cobras, deixe-me rir, compadre, coisa tão engraçada nunca vi. Vamos morrer
brigando. Jovens e afoitos, meu bom. Fit-o-fó para a polícia, viva o povo da Bahia.
(Tenda dos milagres, p 313).
Há, no fragmento acima transcrito, tanto a projeção de um futuro distante e indefinido,
porém certo, em que já não haverá qualquer necessidade do povo negromestiço em afirmar-se
através de lutas várias, quanto, também, a certeza de que ambos, Lídio e Pedro, não
desfrutarão deste tempo. Morrerão lutando, desafiando a ordem estabelecida de um mundo
racista. Em cada luta, a afirmação dos princípios e valores do povo negromestiço da Bahia e,
por extensão, deste mesmo povo. À certeza de futuro, corresponde ao “universo mestiço”
amadiano; às lutas do presente, o “mundo negro” concebido pelo romancista grapiúna.
Olivieri-Godet afirma:
Em Amado, essa sociedade mestiça e plural é mais um projeto que uma realidade,
como demonstra o complexo universo romanesco do escritor. Este universo coloca
em cena a estrutura hierárquica do poder que produz os violentos conflitos sociais e
as forças brutais e dissimuladas da exclusão (OLIVIERI-GODET, 2004, p. 128-
129).
229
Caso a intuição acima seja adequada, é possível aplicá-la já em O compadre de Ogum,
narrativa em que quimera e realidade se entrelaçam, mas, igualmente se contraposicionam. O
plano quimérico, ou seja, correspondente ao que foi designado “universo mestiço”, é
metafórico e concerne à encenação do batizado de Felício: um orixá dentro da Igreja. Como
utopia, não chega a se realizar, senão parcialmente. Ogum entra na Igreja Católica, o batizado
se realiza, mas, para que isso pudesse acontecer, fez-se necessário que se dissimulasse a real
identidade do padrinho em frente ao padre. A mestiçagem, tal como Amado a projeta, como
uma “democracia social e identitária”, não sobrevém. Noutro plano, alegoricamente estão
postos a exclusão e os limites em que o povo de santo é aceito pela Igreja e que impedem tal
democracia. Neste ponto, adentra-se ao que se convencionou como “mundo negro”, isto é, um
contexto cuja exclusão social perpetrada a uma identidade gesta a necessidade de afirmá-la.
Não à toa, o romancista baiano faz Exu gritar o seu nome em frente ao padre; não à toa, faz
Ogum incorporar naquele que é o símbolo e a metonímia da Igreja, instituição que se pretende
refratária a outras concepções religiosas, às outras identidades.
De todo modo, Felício é batizado por um padre e tem um orixá como padrinho. É
branco, porém filho legítimo de pais negros. Representa, pois, o entrelaçamento, a união, um
encontro que se dá de forma harmoniosa. Ora, caso se considere a criança como um símbolo
de devir e do porvir, não seria esta uma projeção amadiana de um “universo mestiço”, tal
como designado aqui, ao invés do simples elogio à mestiçagem ou ao sincretismo religioso?
Não obstante seja possível ler O compadre de Ogum sob esta diretriz, os planos
“universo mestiço” e “mundo negro” se colocam com maior vigor e clareza em Tenda dos
milagres. Neste romance, tanto o vislumbre quimérico de uma democracia identitária,
“universo mestiço”, quanto a afirmação de uma identidade frente a um contexto de exclusão,
“mundo negro”, são vislumbráveis nas personagens Kirsi, Major Damião e Tadeu Canhoto,
além, claro, de Pedro Archanjo Ojuobá.
A sueca ou finlandesa Kirsi Hekkonen, “branca mais branca, de alvaiade” (Tenda dos
milagres, p. 95), não obstante presentifique o ideal ariano pretendido pelo Dr. Nilo Argolo,
aparta-se das premissas teóricas endossadas pelo catedrático para estabelecer um contraponto
ao seu pensamento. Alheia ao mundo acadêmico e às concepções cientificistas que nele
reinam, recém-desembarcada de um cargueiro na negromestiça Cidade da Bahia, Kirsi
deslumbra-se e apaixona-se por tudo que vê e, ainda mais, por Pedro Archanjo. Convive com
Mestre Pedro, a quem chama de Oju – abreviando o nome nagô Ojuobá – por seis meses,
durante os quais percorre os mistérios de cidade tão velha e intrigante quanto o mundo.
230
Conhece as pessoas, imiscui-se nelas, torna-se uma delas: a nova estrela d‟alva do Terno de
Reis – e o faz de modo sincero, sem arroubos de arianismo ou laivos quaisquer de racismo.
Ao cabo de meio ano, cargueiro novamente aportado no cais da Bahia, Kirsi embarca de volta
para as terras frias da Escandinávia. Porém, não sem antes comentar:
“Não há no mundo gente melhor do que vocês, povo mais civilizado do que o povo
mulato da Bahia”, dissera a sueca ao despedir-se na Tenda dos Milagres, em
conversa com Lídio, Budião e Aussá. Chegara de longe, vivera com eles, dizia por
saber, um saber sem restrições ou dúvidas, de real conhecimento (Tenda dos
milagres, p. 119).
O leitor é apresentado ao julgamento de Kirsi sobre o povo da Bahia para, logo depois,
travar conhecimento das considerações diametralmente opostas do Dr. Nilo Argolo, para
quem a condição mestiça dos baianos seria impeditiva de civilização: “Por que então o doutor
Nilo Argolo [...] escrevera sôbre os mestiços da Bahia aquelas páginas terríveis, as candentes
palavras?” (Tenda dos milagres, p. 119).
A distinção entre os comentários ocorre por efeito da discrepância que se estabelece
entre as premissas do “real conhecimento” que Kirsi incorpora, fruto do contato e da vivência
com o povo negromestiço baiano, e das “suspeitas teorias” avocadas por um distante e
imiscível Nilo Argolo. Assim, talvez não seja de todo imponderável a possibilidade de inferir
na personagem Kirsi um intento de Jorge Amado em investi-la da dimensão simbólica
pertinente à Antropologia – conquanto constitua uma antropóloga estranha e avessa ao mundo
acadêmico. Por via metafórica, a assertiva da escandinava origina-se de profundo e profícuo
trabalho de campo, o que a legitima como uma interpretação cientificamente válida do povo
baiano. Por outro lado, a leitura que Nilo Argolo faz deste mesmo povo abdica de um contato
direto e mesmo o rejeita. Baseia-se tão somente nas teorias advindas de franceses e italianos,
que se valem de diferenciações fenotípicas para justificar e perpetrar o poder colonizador
europeu, e as aplica ipsis litteris ao contexto brasileiro como forma de perpetuar um Estado
excludente.
Confrontá-las em um mesmo parágrafo, como indiretamente o fez Amado, possibilita
perceber através da solidez enunciativa de uma, a leitura alcançada por Kirsi, a insustentável
fragilidade teórica da outra, pretendida por Nilo Argolo. Neste aspecto, também Kirsi se torna
agente de afirmação de um “mundo negro”, ladeada por Pedro Archanjo, Lídio Corró,
Procópio de Oxóssi, Mãe Majé Bassã, Major Damião, entre tantos outros – o que por certo
indicia a superação de um pensamento baseado em uma linha fenotípica sectária: a de que
brancos e negros possuem necessariamente interesses opostos e excludentes, o que
231
impossibilitaria que lutassem juntos por um mundo em comum. Assim, o romancista baiano
afirma de forma peremptória a viabilidade de um não-negro lutar e pôr-se sinceramente ao
lado dos interesses da população negra.
Noutro plano, Kirsi se afigura não apenas como veículo de um “mundo negro”, mas
também, a exemplo de Pedro Archanjo Ojuobá, como expressão de um “universo mestiço”.
Ao retornar ao cargueiro, a escandinava revela: “[...] é tempo que me vá, levo no ventre o
nosso filho. [...] Levo comigo o sol, tua música e teu sangue. [...] Obrigada, Oju” (Tenda dos
milagres, p. 118-119).
Eis outro símbolo do porvir elencado por este trabalho. O primeiro se referiu ao filho
branco de Linda a ser criado pelo pai negro, Baldo; o segundo, ao filho branco de pais negros,
Massu e Benedita, batizado por um padre e afilhado de um orixá. O terceiro: Oju Hekkonen,
filho mulato do negro Pedro Archanjo e da ariana Kirsi, união simbolizada no nome nagô
anteposto ao europeu. Também Oju é devir e porvir, futuro Rei da Escandinávia, como afirma
Archanjo em conversa com Zabela quando lhe mostra a foto do filho (Tenda dos milagres, p.
186). Destarte, se Nilo Argolo é a representação arquetípica do racismo e, por isso, constitui
barreiras a uma “democracia social e identitária”, Kirsi, por sua vez, encena a quimera de um
“universo mestiço”, ao engendrar em si a própria representação desta esperança utópica.
O retorno de Kirsi à terra natal separa Pedro Archanjo do filho, criança que não chega
a conhecer: “[...] ...distante. – tão distante, do outro lado do mundo” (Tenda dos milagres, p.
187). A distância aí referida, sem prescindir de indicar a infindável sucessão de terras e
oceanos que separam a Bahia do níveo Norte Europeu, por via alegórica indicia, igualmente,
aquela outra que extrema o “universo mestiço”, simbolizado por Oju Hekkonen, da sociedade
racista e hierarquizada em que se encontra Pedro Archanjo Ojuobá. A uni-los, pai e filho,
presente e quimera, apenas uma foto enviada por Kirsi em que se visualiza, no rosto da
criança, a mestiçagem: “O menino é sua cara”, diz Zabela, “Mas parece também com Kirsi”,
responde Archanjo (Tenda dos milagres, p. 186).
Noutro plano estão as personagens Tadeu Canhoto e Major Damião de Souza. Se o
filho Oju Hekkonen significa o distante “universo mestiço” pretendido pelo romancista
baiano, Tadeu e o Major, por sua vez, evidenciam as vicissitudes da sociedade na qual se
inserem: o primeiro opta em subir na vida, branquear-se de todo, apartar-se do “mundo
negro”; já o segundo, discípulo de Ojuobá é, pois, a sua continuidade:
Olhos de Ojuobá, Pedro Archanjo os reconhece e acompanha: são diferentes os
caminhos. Damião, um livro aberto, sem segredos, não conquistou título de doutor
em Faculdade, quem lhe deu títulos e patentes foi o povo. Onde quer que o leve sua
232
sina, permanecerá igual, sempre o mesmo, plantado ali, inamovível. Tadeu começou
a galgar a escada ainda na Faculdade, à frente dos colegas. Decidira subir todos os
degraus, disposto a obter um lugar em cima. “Hei de ser alguém, padrinho”, dissera
na manhã daquele dia, uma flama de ambição. Por quanto tempo o teriam ainda na
Tenda dos Milagres? (Tenda dos milagres, p. 238).
Filho de Dorotéia, a ex-Iaba vencida por Pedro Archanjo, Tadeu Canhoto lembra o
padrinho Ojuobá no ímpeto pelos estudos, na determinação de vencer174
. A diferenciá-los, a
abrangência da vitória: enquanto Archanjo triunfa para o bem do povo negromestiço baiano,
Tadeu o faz apenas em benefício de si. Não interessa a Canhoto a perspectiva de “andar para a
frente”, expressão que conota os embates por uma transformação da sociedade em derredor,
mas a possibilidade, tantas vezes negada por Archanjo, de subir, de elevar-se socialmente. Isto
é, a expectativa de uma ascensão individual.
“Como todos os demais mulatos e pobres de seu tempo o que ele [Tadeu] queria era
ser branco e rico, em vez de revolucionário tornou-se genro de fazendeiro, embranqueceu,
deixou o Pelourinho pelo Corredor da Vitória”, afirma Amado (Navegação de cabotagem, p.
447). Não obstante a repreensível – e algo perigosa – generalização contida na fala do
romancista baiano, o ideário do branqueamento como fator de ascensão e prestígio sociais foi
– e, talvez, ainda o seja – um importante aspecto da problemática em torno das identidades
étnico-raciais no Brasil, como se viu na primeira seção deste trabalho. Construir-se branco
significava, pois, desenredar-se dos estigmas de incivilizado e de inferioridade; esquivar-se da
pecha de ser visto com alguém moral e psicologicamente degenerado – características
consideradas inerentes às populações negras e mestiças pelo pensamento científico nas
primeiras décadas do século XX. Significava, sobretudo, a possibilidade de galgar posições
antes interditas. Eis a perspectiva alentada por Tadeu:
A brincadeira atravessou a noite, mas bem cedo o dono da festa, o motivo da
reunião, o alvo das homenagens, o doutor Tadeu Canhoto, engenheiro civil,
mecânico, geógrafo, arquiteto, astrônomo, engenheiro de pontes e canais, de
ferrovias e estradas de rodagem, politécnico, pediu licença e retirou-se. Nos salões
da Cruz Vermelha, o clube da elite, o paraninfo, o ilustre e rico professor Tarquínio,
oferece o baile de formatura aos novos engenheiros.
- Preciso ir, padrinho. O baile começou faz tempo.
- Não é cedo ainda? Por que não fica mais um pouco? Todos aqui lhe estimam e
vieram para lhe ver. – Archanjo não queria dizer e disse, por que o fêz?
- Bem sei e gostaria de ficar. Mas... [...]
Tadeu sumiu na escuridão, ressoam os passos na ladeira, sapatos de verniz.
Ninguém poderá detê-lo em seu caminho. Não tentarei, Zabela, para quê? Vai subir
174
Ao longo de Tenda dos milagres, são encontradas evidências que sugerem Pedro Archanjo como pai de
Tadeu Canhoto. Sem dúvida, esta é uma leitura certeira – o que é comprovado pela quantidade de textos críticos
que assumem a perspectiva de tratarem Tadeu como um filho do relacionamento entre Ojuobá e Dorotéia.
Entretanto, optou-se aqui por não avançar no campo do que é apenas sugerido: mantenha-se o “segredo”.
233
os degraus da escada, um a um, e leva pressa. Adeus, Tadeu Canhoto, a festa foi de
despedida (Tenda dos milagres, p. 239).
Logo após a formatura, Tadeu Canhoto passa a trabalhar na construção da Estrada de
Ferro Jaguaquara, em Jequié, emprego no qual veio a ser engenheiro-auxiliar. Passado algum
tempo, retorna à capital para conversar com o padrinho assuntos de amor porquanto
pretendesse desposar Lu, “cachos loiros, pele transparente de opalina” (Tenda dos milagres, p.
248). Filha de um grande fazendeiro da Bahia, Tadeu a conhecera por intermédio de Astério,
amigo dos tempos de faculdade, e irmão de Lu. A separá-los, Tadeu e Lu, as distâncias entre
a pobreza e a riqueza, entre o branco e o negro. Ambas reversíveis, demonstra o romance.
Tadeu é explícito quanto à estratégia para superar a primeira distância: irá para o Rio de
Janeiro, de onde recebera vantajosa proposta para trabalhar com o engenheiro Paulo de Frotin,
responsável pela modernização da cidade. Haveria boas perspectivas para Canhoto na Cidade
Maravilhosa, poderia ascender e fazer fortuna, o que, de certo modo, era impossível na Bahia.
Já em relação ao segundo empecilho, Tadeu não o aborda de forma tão clara e, em verdade,
até o tenta minorar: “Se me disserem não por eu ser mulato, vou dar meu jeito. Mas se
permitir que me digam não, por eu não ser capaz de sustentar família, que direito terei de
reclamar? Nenhum, não acha?” (Tenda dos milagres, p. 249).
No retorno a Salvador, a despeito da substancial melhoria na condição financeira, o
pedido de casamento de Tadeu é negado pelo pai de Lu:
- O senhor abusou da confiança que em si depositamos. Por ser colega de meu filho,
nós o recebemos em casa sem levar em conta sua côr e sua procedência. Dizem que
o senhor é inteligente, como então não se deu conta que não criamos filha para
negro? Agora saia e não volte nunca mais a esta casa senão será pôsto na rua a
pontapés (Tenda dos milagres, p. 281).
As reações de Archanjo e de Tadeu que se seguem à negativa são sintomáticas. “A
despeito de esperar a recusa, Pedro Archanjo ficou fora de si, deblaterou, perdeu a cabeça
[...]” (Tenda dos milagres, p. 282). Acusa a família de Lu de hipócritas por terem aceitado
Tadeu em sua casa como amigo, mas de agirem tal racistas estadunidenses quanto à proposta
de casamento. Ojuobá, então, traça planos de rapto e fuga, casamento às escondidas. “[...]
capoeiristas guardando a rua, Lu fugindo de casa pela madrugada, envôlta em susto e em
negro albornoz, um saveiro de velas enfunadas a levar os noivos para esconderijos no
Recôncavo, o casamento às escondidas, a raiva dos Gomes” (Tenda dos milagres, p. 283).
Outro, porém, é o plano de Tadeu Canhoto, que não pretende abdicar de ser visto
como integrante da família Gomes: “Que é isso, Padrinho? Calma, não insulte meus parentes.
234
[...] Nem por isso são más pessoas, e, no fundo, penso que mesmo êsse preconceito é
superficial, não resiste ao tempo” (Tenda dos milagres, p. 282). Em lugar do rapto e da fuga,
dos saveiros e dos capoeiristas, enfim, em substituição ao rompimento definitivo com os
Gomes, o promissor engenheiro prefere a calma e a paciência operando o convencimento
diário e pacífico. Afinal, queria-os como parentes, almejava ser um deles. Não restasse outra
solução, casar-se-iam, Lu e Tadeu, quando ela completasse a maioridade e, assim, pudesse
juridicamente decidir por si acerca de sua vida.
Casaram-se, enfim, à revelia dos Gomes que se mudaram para a fazenda a fim de
fugirem das maledicências e da vergonha que sentiam. A cerimônia, planejada inicialmente na
decadente casa de Zabela, realizou-se no palacete do casal Silva Virajá que, a pedido do
amigo Archanjo, haviam acobertado Lu e Tadeu nos dias antecedentes ao casamento.
Lu e Tadeu se mudam para o Rio de Janeiro. Um último encontro entre o afilhado e
Archanjo vem a acontecer algum tempo depois. Conversam Lídio e Ojuobá, quando o
riscador de milagres pergunta:
- Meu compadre, você sabia que Tadeu chegou, está na Bahia?
- Tadeu chegou? Quando?
- Quando, não sei, já tem dias. Soube hoje, de manhãzinha, na barraca de Terência.
Damião encontrou com êle na rua. Disse que vai para a Europa. Está em casa da
família de Lu...
- Família dêle, meu bom. Não é genro do coronel, marido da filha?
- Não apareceu por aqui...
- Vai aparecer, com certeza. Chegou, tem coisas a tratar, passeios a fazer, parentes a
visitar.
- Parentes? E nós?
- Você é parente dêle, meu bom? Desde quando? Por que êle lhe chamava de tio?
Coisas de aprendiz, meu camarado.
- E você, também não é?
- Sou parente de todo mundo e não sou de ninguém. Se fiz filhos, não os tenho, não
fiquei com nenhum, meu bom. Não se afobe, quando Tadeu arranjar um tempo, vem
por aqui. Para dizer adeus. [...]
- É falar no diabo, êle aparece – riu Pedro Archanjo e Lídio suspende a vista. [...]
Pedro Archanjo considerou com olhos de amizade o importante senhor de pé em sua
frente. Tadeu devia andar pelos trinta e cinco anos, tinha quatorze quando Dorotéia o
trouxera ao Terreiro e o entregara a Archanjo: só fala em leitura e em conta, não me
serve para nada mas não posso torcer o destino, mudar a sina do moleque. Também
eu não posso torcer o destino, mudar os caminhos, parar o tempo, impedir a subida,
compadre Lídio, meu bom. Tadeu Canhoto anda seu caminho, chegará ao tôpo da
escada, para tanto se preparou, e nós, meu camarado, o ajudamos. Veja, Dorotéia,
seu menino a subir, vai longe. [...]
Tadeu mantivera-se de pé, a ponta da bengala fincada nas tábuas podres do assoalho.
De súbito ficaram os três sem assunto, sem conversa. [...]
-Então, até outra.
- Adeus, Tadeu canhoto (Tenda dos milagres, p. 339-343).
235
De passagem, o fragmento transcrito acima indicia a aceitação de Tadeu por parte dos
Gomes uma vez que é na casa do fazendeiro que o casal está hospedado. Indicia, igualmente,
o sucesso profissional do engenheiro Canhoto, posto se apresente como um lorde, como nota
Mestre Lídio Corró (Tenda dos milagres, p. 340), e esteja de viagem marcada para a Europa,
como o faz saber o afilhado. Por certo, tais fatos estão intensamente imbricados, o que produz
a sensação de que o romancista Jorge Amado coloca o racismo brasileiro como simplesmente
derivado de uma clivagem socioeconômica.
Como evidenciado na seção anterior, a questão não se afigura assim tão simplista ao
pensamento amadiano. Para o grapiúna, a desigualdade social é, sim, um fator preponderante
sobre o racismo, pois o nutre e o expande. Mas, isto não impede o escritor baiano de
reconhecer a existência e atuação específica do preconceito racial. Assim é que, a aceitação de
Tadeu pelos Gomes não se relaciona apenas à ascensão social do jovem engenheiro, mas é
também – e, talvez, principalmente – condicionada pelo distanciamento que se estabelece
entre Tadeu e o “mundo negro” simbolizado pelo espaço do Pelourinho, com suas
personagens e suas histórias.
A despeito de serem padrinho e afilhado, de terem convivido por tantos anos, Tadeu e
Archanjo conversam como dois estranhos. É emblemático que, em determinado momento,
emudeçam, sem assuntos: o que os une além de uma memória que, talvez, Tadeu procure
esquecer? Da mesma forma que a distância entre Archanjo e Oju Hekkonen aponta para uma
lonjura a ser percorrida entre o “mundo negro” e o “universo mestiço”, a ida de Tadeu
Canhoto para a Europa simboliza o seu rompimento definitivo em relação ao “mundo negro”
do qual migrara para aquele outro, branco, das famílias, das histórias, das genealogias do
Corredor da Vitória. Não sem motivo, o “adeus” de Archanjo!
Diametralmente oposta é a perspectiva abraçada pelo Major Damião de Souza. O
rábula do povo, como é conhecido, nunca teve a pretensão de subir na vida, senão a de
enraizar-se cada vez mais no convívio do povo negromestiço da Bahia e estar ao seu serviço,
quando necessário – sempre, diga-se de passagem. Desde criança no convívio com Ojuobá,
Damião aprendera com Mestre Pedro o domínio das letras e dos números, o amor das
mulheres; vivera o cotidiano pobre, sofrido e, não obstante as mazelas, alegre do Pelourinho.
Pedro Archanjo Ojuobá foi o seu exemplo, com ele aprendera, sobretudo, a “andar para a
frente”, ao invés de simplesmente subir:
Rábula do Povo, Procurador dos Pobres, Providência dos Infelizes, provisionado no
fórum, batera todos os recordes de defesa – e de absolvição – no júri onde atuava há
cêrca de cinqüenta anos; inumerável clientela de réus paupérrimos, desamparados,
236
na maioria gratuitos. Jornalista com banca em todos os jornais, pois em todos
escrevia e publicava as lidíssimas “Duas Linhas” de reclamações e pedidos às
autoridades, de denúncia de violências e injustiças, de clamor contra a miséria, a
fome, o analfabetismo. Ex-vereador pela legenda de um pequeno partido, que, nas
águas de sua estima pública, elegera dois sabidórios, o Presidente e o Primeiro-
Secretário da agremiação, insaciáveis ratos, fêz da Câmara Municipal a casa do povo
pobre, trouxe os outros edis num cortado, empenhou a vereança nas Invasões de
onde nasceram os novos bairros, nunca mais obteve legenda. Orador geral e
universal, não só de júri e de tribunal de apelação mas de qualquer cerimônia ou
festa onde se encontrasse, erguia a voz tanto em solenidade cívica como em almoço
ou jantar de casamento, aniversário e batizado; tanto em inauguração de escola
pública ou pôsto de saúde como em abertura de lojas, armazéns, panificadoras,
bares; em entêrro de figura de proa e em comícios políticos [...] sem distinção de
partido. Segundo êle, para defender os interêsses do povo, para protestar contra a
miséria, a falta de trabalho e de escolas, qualquer pasquim e qualquer tribuna
servem, e o mais que se dane (Tenda dos milagres, p. 76).
Retome-se o singelo dizer de Ester sobre Mestre Pedro, quando o encontra morto. “Os
olhos de ver” e a “boca de falar” da gente pobre da Bahia, do povo negro e mestiço das tantas
e tantas ruas e ladeiras do Pelourinho, se afiguram também na personagem do Major. É, pois,
um espelho de Archanjo. Neste sentido, importante situar a atuação do Major Damião no
tribunal quando ganhou a sua carta de rábula. O réu era Zé da Inácia e o processo corria por
conta do assassinato de Afonso da Conceição, mais conhecido por “Bôca Suja”. Processo
considerado sem chances de defesa, uma vez que a acusação tinha argumentos cientificamente
inquestionáveis:
No primeiro júri, após mais de um ano de espera na cadeia, o promotor falara em
perversidade congênita, exibira o seu Lombroso. Observem, Senhores Jurados, a
cabeça do indigitado réu: crânio típico de assassino. Sem falar na côr escura: as
teorias mais modernas, defendidas pelo ilustre professor de Medicina Legal de nossa
colenda Faculdade, doutor Nilo Argolo, autoridade inconteste, assinalam o alto
percentual de criminalidade dos mestiços. Ali, no banco dos réus, encontra-se uma
prova a mais do acêrto dessas teses (Tenda dos milagres, p. 242).
O advogado de defesa, doutor Alberto Alves, sem prestar muita atenção ao caso –
preocupava-se mais com a mulher que deixara em companhia de outro homem – pouco fez
para contestar o que, também a ele, parecia incontestável: “Doutor Alves nada negou, nada
contestou, ao júri pediu apenas clemência na aplicação da justiça” (Tenda dos milagres, p.
243). Sentença dada, apelou apenas no último instante, ainda assim por motivo de reprimenda
do Juiz. Faltou, no entanto, aos dois julgamentos marcados para que se pudesse recorrer do
determinado pelo primeiro júri. Tendo se ausentado também do terceiro, o doutor Lobato
designa Damião, então empregado do fórum e postulante à carta de rábula, para a defesa.
Caso se saísse bem, lhe seria outorgada a pretendida autorização. “Acontece, porém, que a
estréia de Damião de Souza na tribuna do júri converteu-se na maior sensação da temporada,
237
comentada na Justiça durante longo tempo. [...] Notícia de gazeta seria Damião daí por diante,
a vida inteira” (Tenda dos milagres, p. 244). Não só fez a defesa de Zé da Inácia como
conseguiu sobrepor-se às teses racistas da acusação, vencê-las, enfim:
Por unanimidade, o Conselho de Sentença absolveu o réu. Coube ao juiz Santos
Cruz ditar a sentença e mandar pôr em liberdade Zé da Inácia. “Pouco faltou para
que eu também chorasse, nunca vi em minha vida coisa igual – disse o Meretíssimo
(sic) ao Promotor em pânico – Vou lhe obter carta de rábula, nunca mais faltará
advogado para os pobres”.
Assim se deu a formatura de Damião. Formatura sem anel de grau, sem canudo de
doutor, sem quadro, sem retrato de beca, sem baile, sem paraninfo, sem colegas, êle
só e único (Tenda dos milagres, p. 246).
Tal Archanjo em luta contra aqueles que oprimem o povo, em luta contra todas as
formas de opressão, Major Damião se distancia de Tadeu Canhoto, vive outra realidade, vive
outro mundo: o mesmo de Pedro Archanjo Ojuobá, o “mundo negro”. Desta forma, cabe ao
Major retirar da poça de lama de uma rua qualquer no Pelourinho o corpo de Archanjo,
quando de sua morte; e, em 1968, é também Damião de Souza quem resgata o nome de
Archanjo em meio às comemorações em torno dos cem anos quando, em plena Sessão Solene,
pede a palavra para introduzir uma filha de Mestre Pedro175
. Eis, pois, um novo Archanjo.
Ora, comparando-se as trajetórias dessemelhantes de Tadeu e Damião, bem como a
“morte” simbólica do primeiro e o engrandecimento do segundo, é possível inferir que a
perspectiva alentada pela literatura amadiana, a despeito da valorização da mestiçagem, é a do
combate ao branqueamento. Noutras palavras, ao invés de minorar e apagar, Amado pretende
valorizar e incluir o “mundo negro” – daí também se defender neste trabalho a terminologia
“povo negromestiço” para representar as personagens criadas por Jorge Amado.
De acordo com Olivieri-Godet (2004, p. 120), contrário a um projeto de modernização
do país “[...] baseado em matrizes coloniais e numa retórica da exclusão, Tenda dos Milagres
defende um projeto de inclusão do Brasil periférico [...] abrindo-se para uma figuração
identitária construída a partir de um simbolismo da mestiçagem”. Evidentemente, este
acréscimo do Brasil periférico, nos termos propostos pela pesquisadora, ou do Brasil
especificamente negro, como analisado aqui, não ocorre sem que haja uma resistência em
contrário. Assim como no plano extraliterário, em que qualquer ação política de
reorganização social igualitária encontra ampla oposição de políticos conservadores,
independentes de quais legendas partidárias professem, o acréscimo do Brasil excluído ao
175
A análise desta cena é feita no próximo tópico, “Uma verdade, a despeito do embuste”. Por isso aqui se fez
apenas a referência a ela.
238
Brasil oficial, alcançada no plano ficcional por Amado, não se faz com a permissão e as boas-
vindas do segundo: é preciso resistir à opressão, é necessário combatê-la, é imperativo vencê-
la.
É, pois, na justa medida em que este acréscimo precisa ser feito, e não o é senão à
custa de muitas batalhas, de muita resistência e afirmação, que se pode discordar, por
exemplo, da antropóloga Goldstein (2006, p. 78), para quem Tenda dos milagres “[...]
apresenta os encontros interétnicos como solução ao racismo”. Ora, caso fosse correto o que a
pesquisadora afirma, caso a solução fosse assim tão simplória, o próprio romance não seria
escrito, vez que todos são mestiços, como comprova um dos livros de Archanjo, o racismo já
não existiria, consequentemente inexistiram também os embates de Ojuobá contra uma ordem
excludente.
Antes, a mestiçagem é uma realidade popular em potencial que, vencido o racismo,
pode vir a estruturar um “universo mestiço”, ou seja, uma “democracia social e identitária”.
Entretanto, ela em si e de per si não se sobrepõe às hierarquias sociais, não desfaz as
exclusões que advêm da estrutura desigual da sociedade brasileira – concepção do problema
racial que, aliás, foi investigada na última seção, a partir de algumas entrevistas do romancista
baiano.
Da mesma maneira, pode-se discordar parcialmente da ressalva feita pelo antropólogo
Ordep Serra ao romance Tenda dos milagres. Se o antropólogo está absolutamente correto em
afirmar que a apreensão da temática e da solução do racismo por Amado é, de certa maneira,
simplista – como igualmente já foi colocado aqui ao considerá-la falha – não há, por outro
lado, simplificação no fato de um mulato ser o herói da vitória sobre o racismo. Ora, Pedro
Archanjo não triunfa pelo fato único de ser um mulato, mas porque resiste, porque luta e,
nesta peleja, alcança afirmar a si e ao seu povo, porque, em última instância, é principalmente
através dele que os orixás intervêm no aiyê.
Pode-se obstar ao ponto de vista enunciado que, não raro, Jorge Amado afirma a
capacidade de resistência do povo brasileiro como proveniente da mestiçagem, argumento
com o qual Serra estaria plenamente correto. Tal genealogia da resistência é passível de
relativização, como se viu em Os pastores da noite através de uma fala de Jesuíno. O
imaginário amadiano acerca da propensão do povo a resistir e a vencer remonta mais ao
heroísmo negro em não se submeter, cabisbaixo e resignado, aos ditames de antigos e atuais
mandatários do que propriamente à simples mistura de povos e culturas. Desta forma, a
vitória de um mulato sobre o racismo talvez possa significar muito mais a afirmação de um
“mundo negro” do que, tão somente, o puro, ingênuo e irrestrito elogio da mestiçagem.
239
Retome-se especificamente a personagem Pedro Archanjo. Como se viu, o
propugnáculo do candomblé em Tenda dos milagres não é mera atitude de respeito à religião
negra, mas, em diversas instâncias, corresponde à afirmação peremptória da identidade afro-
brasileira feita através de princípios e valores que lhe são próprios; alicerçada e levada a
termo, inclusive, pelos orixás. Abordou-se, assim, uma parte do “mundo negro”. Cabe agora
mirar a outra metade, as “suspeitas teorias” da Faculdade de Medicina e sua contraparte, os
livros de Pedro Archanjo, libelos antirracistas.
As primeiras páginas do romance são destinadas a descrever e exaltar a “imagem
nova, original” caracterizada por “uma côr e um som” dimanadas da mistura de “ritmos,
passos e sangue” (Tenda dos milagres, p. 15). Dá-se conhecimento, assim, de instrumentos,
músicos, capoeiristas e riscadores de milagres, poetas de cordel, trovadores, violeiros e
repentistas, escultores que trabalham com madeira e com metais, com as contas e as palhas,
pobres vendedoras de ervas cujas receitas enriquecem médicos e, por último, a Tenda dos
Milagres de Mestre Lídio Corró, designada como reitoria da vária e vasta universidade
popular que constitui o território do Pelourinho (Tenda dos milagres, p. 15-20). Ao deter-se
no número 60 da Ladeira do Tabuão, a Tenda de Lídio Corró, Amado apresenta Pedro
Archanjo, especula que talvez ele seja o reitor desta universidade popular, e informa a
impressão de um seu livro sobre o viver baiano. Para a obra amadiana, o Pelourinho cumpre,
conforme afirma Pinho (1998), a função de uma metáfora que permite ao romancista baiano
situar as desigualdades socais da cidade bem como a sua originalidade. Neste aspecto, o
Pelourinho encerra tanto aquilo que Amado pretende combater, a exclusão, quanto o que
pretende ressaltar, valorizar e incluir: o povo negromestiço.
Noutro lugar, o Terreiro de Jesus, separado tão somente de forma simbólica do
Pelourinho, Amado evidencia, em breves quatro linhas, a Faculdade de Medicina – instituição
em que leciona Nilo Argolo. A despeito de adentrar o território da universidade popular, a
instituição acadêmica oficial permanece à parte: nela ensina-se e aprende-se “suspeitas
teorias”.
O grande painel traçado por Amado apresenta, pois, a dicotomia-base sobre a qual se
assenta Tenda dos milagres: os dois centros de saber, o popular e o erudito/oficial. Do
primeiro, origina-se uma sociedade intensamente marcada pela mestiçagem que, de acordo
com o que sugere o autor, extrapola o sentido meramente biológico: faz-se criativa, criadora.
Do segundo, vigoram as restrições que cindem e hierarquizam esta mesma sociedade. Assim,
é possível afirmar que Amado vislumbra no território popular, um “protouniverso mestiço” e,
no segundo, as limitações e os preconceitos que impedem a quimera de se realizar, vez que se
240
configuram em agentes de exclusão. Assim, para Oliveira (2006, p. 19), “[...] a incumbência
de Pedro Archanjo é inserir na moldura do retrato da nação, outras figuras que [...] ficaram
excluídas da fotografia que as elites forjaram ao seu bel prazer”. Isto é, ressaltar, afirmar e
incluir um “mundo negro” em uma sociedade que tende a rejeitá-lo e estigmatizá-lo –
acréscimo que, à medida que se opera, desfaz preconceitos e hierarquias, constituindo-se,
portanto, em base da utopia que projeta um “universo mestiço”.
Asseverou-se anteriormente que Nilo Argolo e Pedro Archanjo corresponderiam a
duas representações arquetípicas antagônicas; assim, o catedrático de Medicina Legal
encarnaria por completo o conceito de racismo, enquanto Ojuobá seria o antirracismo por
excelência. Cabe, pois, avançar nesta perspectiva. Contraposta à descrição elogiosa
empreendida pelo romancista acerca da universidade vasta e vária do Pelourinho, a instituição
oficial, situada no Terreiro de Jesus, apresenta-se decadente:
Nos comêços do século, a Faculdade de Medicina encontrava-se propícia a receber e
a chocar as teorias racistas pois deixara paulatinamente de ser o poderoso centro de
estudos médicos fundado por Dom João VI, fonte original do saber científico do
Brasil, a primeira casa dos doutôres da matéria e da vida, para transformar-se em
ninho de subliteratura, da mais completa e acabada, da mais retórica, balofa e
acadêmica, a mais retrógrada. Na grande Escola desfraldaram-se então as bandeiras
do preconceito e do ódio (Tenda dos milagres, p. 169-170).
Argolo é, pois, o principal arauto deste preconceito e deste ódio que se expande a
partir da Faculdade de Medicina. Sobre ele, narra-se que “em 1904, [...] publicou numa
revista médica e em separata, a monografia „A degenerescência psíquica e mental dos povos
mestiços – o exemplo da Bahia” (Tenda dos milagres, p. 169). Sem dúvida, a referida
monografia alude a um texto do médico maranhense Nina Rodrigues que publicou, em 1899,
um trabalho intitulado Mestiçagem, degenerescência e crime, comentado brevemente na
primeira seção. O conteúdo de ambos os estudos, o ficcional e o real, é evidente pelo título
auto-explicativo: uma tese baseada em hierarquizações raciais e na degradação humana
oriunda da miscigenação. Assim, o mestiço seria o degrau mais baixo da escala humana, tipo
caracterizado apenas pelo que haveria de inerentemente negativo entre as raças. A esta altura,
Pedro Archanjo Ojuobá já se encontrava inserido na Faculdade de Medicina e, da mesma
forma, investido das responsabilidades e dos compromissos advindos com o alto posto em
Casa de Xangô:
Archanjo passou a vista pelas páginas, seus olhos se fizeram pequenos e vermelhos.
Para o doutor Nilo Argolo a desgraça do Brasil era aquela negralhada, a infame
mestiçagem.
241
- O professor descasca você, não deixa vasa – comentou a divertir-se o quartanista. –
De ladrão e assassino para baixo, não faz por menos. Você está na fronteira entre o
irracional e o racional. E os mulatos são piores que os negros, veja lá. O Monstro
acaba com você e sua raça, mestre Pedro (Tenda dos milagres, p. 123).
“Meu Deus, onde fôra o professor buscar afirmações assim tão categóricas? „Maior
fator de nosso atraso, de nossa inferioridade, constituem os mestiços uma sub-raça incapaz‟.
Quanto aos negros, na opinião do professor Argolo, não tinham ainda atingido a condição
humana [...]” (Tenda dos milagres, p. 119-120). Ao quartanista, Archanjo ensaia o argumento
que, anos depois, será usado contra Argolo: “- Só comigo, meu bom? – fitou o cabelo do
rapaz, a bôca, os lábios, o nariz. – Acaba com todos nós, com todos os mestiços, meu bom.
Comigo, com você... – e passando o olhar pelos demais –... nesse grupo ninguém escapa, nem
um para remédio” (Tenda dos milagres, p. 123). É bem verdade que revelar uma genealogia
negada, escondida, não contribui, em termos científicos, para o repúdio às concepções raciais
aventadas pelo estudante e pelo professor. Simboliza, no entanto, o rompimento com a
continuidade de uma situação de silêncio em relação aos negros na Bahia. Ao revelar a
ascendência negra do quartanista, Mestre Pedro põe em cheque uma identidade forjada a
partir de uma obliteração histórica. Ademais, é como se revelasse, através do sucesso do
estudante, a nulidade teórica e também prática das proposições científicas de Argolo, uma vez
que, na condição de mestiço, o quartanista seria, em tese, incapaz de estar no lugar em que se
encontra.
A investida de Argolo contra a mestiçagem avança, toma novos contornos. Ao assumir
as perspectivas teóricas da antropologia criminal, do italiano Cesare Lombroso, Nilo Argolo
extrapola os limites da Medicina e avança para o campo do Direito. Neste sentido, Argolo
pretende um corpo de leis que considera de máxima urgência:
Tal corpo de leis a prever e ordenar quanto se relacionasse a negros e mestiços,
centralizava-se em dois projetos fundamentais.
O primeiro referia-se à localização e isolamento de negros e mestiços em certas
áreas geográficas, já determinadas pelo professor Nilo Argolo: regiões da Amazônia,
de Mato Grosso, de Goiás. Clichês de mapas estabelecidos pelo professor,
reproduzidos no opúsculo, não deixavam dúvida sôbre o inóspito das áreas
escolhidas. Êsse confinamento não possuía caráter definitivo, destinava-se a manter
a “raça inferior” e a “sub-raça aviltante” apartadas do resto da população enquanto
não lhes fosse dado definitivo destino. O professor previa a aquisição pelo govêrno
de território africano capaz de acolher tôda a população negra e mestiça do Brasil.
Uma espécie de Libéria, sem os erros da experiência norte-americana, naturalmente.
No caso brasileiro, negros e mestiços, todos, se possível, seriam deportados,
mandados embora de vez, para sempre.
O segundo projeto, de claríssima urgência, lei ou decreto de salvação nacional,
poibiria o casamento entre brancos e negros, entendidos por negros todos os
portadores de “sangue afro”. Proibição absoluta, capaz de pôr freio à mestiçagem
(Tenda dos milagres, p. 320).
242
A respeito do corpo de leis acima, Serra (1995, p. 334) comenta que “[...] Jorge
Amado envolve seu herói no combate a uma fantasia delirante: o sonho de uma legislação
ultra-racista [...]”. De fato, o romancista baiano faz convergirem para a personagem de Nilo
Argolo várias perspectivas de racismo que extrapolam o tipo específico de preconceito que se
estruturou no Brasil. Talvez não haja nisso demérito do texto amadiano, posto que o
romancista baiano projete em Nilo Argolo uma representação arquetípica do racismo. Assim,
faz ecoar no catedrático de Medicina Legal não só as reverberações das teorias cientificistas
da virada do século XIX para o XX no Brasil, como também as diversas experiências racistas
que tiveram lugar no mundo ao longo do século XX, quais sejam: a política de negação dos
direitos civis, adotadas pelos Estados Unidos da América, a experiência do apartheid sul-
africano e, também, a ideia de uma superioridade ariana da Alemanha Nazista – não à toa,
Nilo Argolo saúda o “Führer” Adolf Hitler como redentor da humanidade.
Ora, se o racismo, seja ele explícito como nos contextos ressaltados acima ou
dissimulado como o é, em geral, no Brasil, redunda invariavelmente em sociedades totalmente
segregadas, a postura antirracista adotada por Amado e projetada em Archanjo envolve a luta
por uma sociedade plenamente integrada. É, pois, esta a perspectiva que Ojuobá afirma e
defende nos livros que escreve: a de um “universo mestiço” – em uma conotação amadiana,
isto é, uma “democracia social e identitária”.
Diferentemente da batalha contra Pedrito Gordo, que prescindiu do enfrentamento
físico pelo milagre promovido pelos orixás, o embate entre Archanjo e Nilo Argolo acontece
noutro campo: o da Academia. Supõe, desta maneira, o conflito entre pressupostos teóricos.
Era, pois, necessário aprender a digladiar com conceitos, brandir teorias, apropriar-se do
erudito para exprimir a verdade do popular. Neste sentido, Santos observa:
A apropriação da cultura erudita podia funcionar, funcionava e funciona como uma
forma de resistência. Conhecer os sinais diacríticos do outro é poder melhor utilizá-
los em proveito próprio, sendo, então, possível, construir discursos sobre si e sobre
os seus, reafirmando a identidade e deixando de ser apenas o objeto do discurso
alheio (SANTOS, 2008, p.7).
Compromisso assumido com Xangô quando consagrado Ojuobá, e relembrado por
Mãe Majé Bassã, Archanjo enfim tomou da obrigação que lhe convinha: escreveu e estudou
com afinco. Os cofres de Xangô lhe foram abertos pela iyalorixá para a compra de livros
caros, raros, muitos importados e em línguas estrangeiras, mas imprescindíveis ao debate com
Nilo Argolo: “Ah! meu bom, leio pra entender o que vejo e o que me dizem”, responde
243
Archanjo à pergunta de Mestre Lídio do porque tanta leitura se ele tanto já sabia (Tenda dos
milagres, p. 181).
Além dos artigos e das cartas publicadas em jornais vários, Mestre Pedro Archanjo
Ojuobá logra escrever quatro livros, a saber: A vida popular na Bahia, 1907; Influências
africanas nos costumes da Bahia, 1918; Apontamentos sobre a mestiçagem nas famílias
baianas, 1928 e, em 1930, A culinária baiana: origens e preceitos. Amado situa que os “[...]
livros de Archanjo, os três primeiros especialmente, encontram-se diretamente ligados a êsse
debate [com Nilo Argolo]” (Tenda dos milagres, p. 169). São, deste modo, os raios de justiça
lançados pelo oxê de Xangô, Pedro Archanjo:
[Nos dois primeiros livros] Archanjo não citara os dois teóricos baianos do racismo,
tampouco seus artigos e opúsculos, não lhes dirigira sua resposta, preferindo
contestar afirmativas e teorias arianas com aquela massa irrespondível de fatos, com
a defesa ardente e o louvor apaixonado da mestiçagem (Tenda dos milagres, p. 171).
Afiguravam-se nas páginas de A vida popular na Bahia, portanto, uma descrição mais
generalizada do cotidiano da velha Salvador, daquela cidade ainda de casas coloniais que
fragilmente resistem à passagem do tempo, e do povo que a movimenta e vivifica. Já em
Influências africanas nos costumes da Bahia, empreende-se uma abordagem mais
pormenorizada em relação aos aspectos negro-africanos deste mesmo povo.
“A defesa ardente e o louvor apaixonado da mestiçagem”, que caracterizam o texto e a
teoria archanjiana, representam, pois, concomitantemente os planos do “universo mestiço” e
do “mundo negro. Ora, a julgar pelo título do segundo livro de Ojuobá, percebe-se de forma
inequívoca o intento em revelar o “mundo negro” do cotidiano popular da Cidade da Bahia,
ao que se agrega a denúncia da ação excludente perpetrada contra esta população. O texto
registra:
“São de tal maneira terríveis as condições de vida do povo baiano, tamanha é a
miséria, tão absoluta a falta de qualquer assistência médica ou sanitária, do mais
mínimo interêsse do Estado ou das autoridades, que viver em tais condições
constitui por si só extraordinária demonstração de fôrça e vitalidade. Assim sendo, a
preservação de costumes e tradições, a organização de sociedades, escolas, desfiles,
ranchos, ternos, afoxés, a criação de ritmos de dança e canto, tudo quanto significa
enriquecimento cultural adquire a importância de verdadeiro milagre que só a
mistura de raças explica e possibilita. Da miscigenação nasce uma raça de tanto
talento e resistência, tão poderosa, que supera a miséria e o desespêro na criação
quotidiana da beleza e da vida” (Tenda dos milagres, p. 291-292).
É importante registrar que, como se depreende da passagem acima, retirada do
segundo livro de Archanjo e citada por Fraga Neto, o louvor da mestiçagem aí expresso está
244
intrinsecamente relacionado com a oposição empreendida às teorias gestadas pela Faculdade
de Medicina. Se Nilo Argolo afirma que os mestiços conformam uma “sub-raça”, incapaz e
degenerada, Archanjo os exalta na medida mesma em que os apresenta fortes, resistentes,
criativos e criadores, isto é, contesta o ponto central das teorias raciais, ainda que prescinda de
objetá-las de forma mais direta. A perspectiva abraçada por Jorge Amado/Pedro Archanjo é
concebida, portanto, dentro de um projeto político de contraposição ao eurocentrismo e
consequente afirmação das identidades alijadas do discurso hegemônico, silenciadas e
abafadas.
A despeito da citação feita por Fraga Neto, pouco os primeiros livros repercutiram
para além dos muros da Faculdade de Medicina. Aliás, mesmo na Instituição pouco
despertaram além da curiosidade acerca de certos fatos da cultura popular negromestiça que já
se julgavam extintos ou nunca existentes em terras brasileiras. Por certo, houve o interesse e a
acolhida de muitos estudantes, no entanto, menos pelas proposições de Archanjo do que pela
perspectiva de afrontar o intransigente Nilo Argolo, em geral detestado pelo corpo discente da
Faculdade.
Outra é a repercussão do terceiro livro de Archanjo, Apontamentos sobre a
mestiçagem nas famílias baianas: “O mundo veio abaixo” (Tenda dos milagres, p. 324),
resume Amado. Com diminuta tiragem – 142 exemplares, apenas – e publicado com grande
sacrifício na tipografia de Mestre Lídio Corró, tal estudo vem a se configurar como
contraponto ao anteprojeto de lei do professor Nilo Argolo, apresentado à Câmara um ano
antes e que visava a total segregação racial no país.
O argumento base desta investigação é aquele mesmo ensaiado contra o quartanista
que apresenta a Pedro Archanjo um opúsculo de Nilo Argolo, bem como daquela resposta
dada por Mestre Pedro quando trava conhecimento do projeto de lei proposto pelo catedrático:
“Difícil será separar e classificar, senhor professor” (Tenda dos milagres, p. 179). A dimensão
e a exatidão dos fatos trazidos à tona por Ojuobá desta vez repercutem em toda a elite baiana,
ciosa do silêncio acerca de certos avós não brancos, como ilustra a seguinte passagem:
Em seu terceiro livro, Pedro Archanjo analisou as fontes da mestiçagem e
comprovou sua extensão, maior do que êle próprio imaginara: não havia família sem
mistura de sangue – apenas uns quantos gringos recém-chegados e êsses não
contavam. Branco puro era coisa inexistente na Bahia, todo sangue branco se
enriquecera de sangue indígena e negro, em geral dos dois. A mistura começou com
o naufrágio de Caramuru, nunca mais parou, prossegue correntia e acelerada, é a
base da nacionalidade.
O capítulo dedicado a provar a capacidade intelectual do mestiço inclui imponente
relação de nomes de políticos, escritores, artistas, engenheiros, jornalistas, e até
245
barões do Império, diplomatas e bispos, todos mulatos, o melhor da inteligência do
país.
Fechando o volume, a grande lista, o motivo da grita, do escândalo, da perseguição
ao autor. Pedro Archanjo relacionara as famílias nobres da Bahia e completara as
árvores genealógicas em geral pouco atentas a certos avós, a determinados conúbios,
a filhos bastardos e ilegítimos. Assentados em provas irrefutáveis lá estavam, do
tronco aos ramos, brancos, negros e indígenas, colonos, escravos e libertos,
guerreiros e letrados, padres e feiticeiros, aquela mistura nacional. Abrindo a grande
lista, os Ávilas, os Argolos, os Araújos, os ascendentes do professor de Medicina
Legal, o ariano puro, disposto a discriminar e deportar negros e mestiços, criminosos
natos (Tenda dos milagres, p. 323-324).
Relembre-se, pois, o que foi dito quando da resposta dada ao quartanista: através de
tantos exemplos, Pedro Archanjo Ojuobá contradiz o fatalismo das teorias apregoadas por
Nilo Argolo. Afinal, onde estavam a incapacidade, a inferioridade, a degenerescência dos
mestiços se os modelos mais notáveis de inteligência do país se encontram justamente
naqueles que apresentam em si o amálgama de sangues diversos? Se competência, criação e
resistência são características marcantes do povo mestiço da Bahia, onde estariam as
deficiências ontológicas advindas do influxo de sangues outros além do europeu?
Por outro lado, como separar as raças em país tão intensamente tocado pela
mestiçagem, parece questionar novamente Archanjo. Assim, a grande lista encabeçada pelo
arianista Nilo Argolo vem a comprovar a extensão e a profundidade da mistura de sangues no
Brasil que, dada a sua dimensão, é considerada como “base da nacionalidade”. A despeito da
exclusão e do racismo, à revelia das pretensões arianas e das teorias da Faculdade de
Medicina, impõe-se uma sociedade inarredavelmente mestiça, conclui a obra archanjiana.
Sem medir as consequências que porventura pudessem advir das verdades reveladas,
Pedro Archanjo dedica o livro a um primo já um tanto distante, mas, ainda assim, parente
consanguíneo: Nilo Argolo. Escreve: “Ao ilustríssimo senhor professor e homem de letras,
doutor Nilo d‟Ávila Oubitikô Argolo de Araújo [...] oferece as modestas páginas que se
seguem seu primo Pedro Archanjo Oubitikô Ojuobá” (Tenda dos milagres, p. 324). O nome
africano associado a Nilo Argolo, Bomboxê Oubitikô, como grafado em Tenda dos milagres,
ou Bamboxê Êssa Obitikô, segundo Silveira (2006), corresponde ao “nome de branco”
Rodolpho Martins de Andrade, grande personalidade do mundo afro-brasileiro no século XIX
que seria trisavô tanto de Archanjo quanto de Argolo.
O nome evocado por Jorge Amado, cumpre informar, traz consigo outras implicações,
de modo que é preciso refletir um pouco mais sobre ele. Bamboxê desempenhou importante
papel na implantação do primeiro Terreiro de Ketu da Bahia, o Ìyá Omi Àse Àirá Intilè, aos
fundos da Igreja da Barroquinha, na qual, havia sido fundada, anos antes, a Irmandade Senhor
246
Bom Jesus dos Martírios176
. Ainda segundo Silveira (2006, p. 403), Bamboxê “[...] é
considerado pelos seus descendentes baianos como um príncipe de Oyó. Devia ser membro da
linhagem real e teoricamente elegível”. O pesquisador ainda informa que Bamboxê era um
babalaô e que chegou a ser um oluô, sacerdote supremo do culto a Ogodô, orixá guerreiro da
casa real de Oyó – com o que veio a se tornar “[...] chefe de todos os babalaôs” (SILVEIRA,
2006, p. 404).
Por certo, o romancista baiano Jorge Amado partilhava das informações acima, vez
que inserido nas comunidades afro-brasileiras e nelas aceito por grandes sacerdotisas, a
exemplo de Mãe Senhora que o fez Obá de Xangô. Assim, a partir do nome Bamboxê, ou
Bomboxê como escreve, Amado faz Nilo Argolo não apenas ter sangue negro, mas
igualmente descender de uma nobre linhagem africana, com ampla penetração no mundo
religioso afro-baiano.
A etimologia do nome Bamboxê ainda guarda uma boa e sintomática surpresa: de
acordo com Vivaldo da Costa Lima (apud SILVEIRA, 2006, p. 403), “Bamboxê é a
transcrição brasileira do nome próprio iorubá Bangbose, que significa „ajuda-me a segurar o
oxê‟”. Ora, defende-se aqui que as obras de Archanjo derivam diretamente de ordens de
Xangô. Deste modo, constituem parte das obrigações assumidas por Mestre Pedro quando da
consagração ao posto de Ojuobá – o que o faz, em uma leitura metafórica, a representação do
próprio oxê. Por extensão, como expresso no início deste tópico, tais obras podem ser intuídas
como os raios de justiça lançados por Xangô, que maneja o oxê/Pedro Archanjo contra os
opressores do povo negromestiço da Bahia. Logo, a preciosa informação acerca das
genealogias dos Argolo, dos D‟Ávila e dos Araújo, não se faz figurar na obra archanjiana por
simples provocação ao catedrático, mas por configurar-se no principal sustentáculo da
argumentação; é, pois, o subsídio que possibilita a Xangô verter em raios de justiça os
Apontamentos sobre a mestiçagem nas famílias baianas, escrito por seu oxê, Pedro Archanjo:
“Nos „Apontamentos‟, mestre Archanjo expôs a verdade completa e as famílias finalmente
176
Silveira (2006, p. 373) assinala que não há como precisar exatamente o ano de fundação do Candomblé da
Barroquinha, que pode variar entre os últimos anos do século XVIII e as primeiras décadas do XIX, nem o nome
do Terreiro. Aquele transcrito aqui corresponde ao disponibilizado por Pierre Verger e transcrito por Silveira
que, no entanto, admite “uma pulga atrás da orelha” uma vez que “[...] pode parecer estranho à primeira vista:
Ìyá Omi significa literalmente „a mãe das águas‟, podendo ser lido também como „a senhora das águas‟, ficando
difícil combinar esta expressão com o axé de Airá, considerado entre nós o mais velho senhor do trovão [...]”
(SILVEIRA, 2006, p. 380). A tradição do Candomblé da Barroquinha continua ainda hoje no Ilê Axé Iyá Nassô
Oká, popularmente conhecido como Casa Branca do Engenho Velho, mais antigo Terreiro de nação Ketu do
Brasil e do qual descendem o Ilê Iyá Omin Axé Iamassê, conhecido como Terreiro do Gantois, e o Ilê Axé Opô
Afonjá.
247
puderam conhecer de onde provinham, contemplar não apenas uma face mas o rosto inteiro, o
trigo e o carvão, e saber quem se deitou na cama” (Tenda dos milagres, p. 324).
Torna-se fácil, pois, perceber como um “mundo negro”, mundo a ser afirmado das
vivências e dos sentidos negros, está indissociavelmente atrelado à concepção de um
“universo mestiço” na literatura amadiana.
Como já advertido anteriormente, em face dos segredos guardados com tanto zelo
durante décadas e mesmo séculos, “o mundo veio abaixo”. A despeito da ovação recebida por
Archanjo por parte dos estudantes da Faculdade de Medicina e das vaias direcionadas a Nilo
Argolo, Ojuobá foi demitido do cargo que ocupara por exatos trinta anos por ter agredido o
catedrático em sua honra (Tenda dos milagres, p. 326). A retaliação das elites baianas
ofendidas apenas começava: além de demitido, Archanjo foi preso, a oficina tipográfica de
Mestre Lídio Corró foi destruída. Nada havia sobrado. Não fossem alguns poucos exemplares
que Lídio Corró secretamente enviara para universidades estrangeiras, entre elas a Columbia
University, o esforço para a produção de esquecimento levada a cabo pelo Governador da
Bahia teria eficácia completa: “Sem uma palavra do Governador, nada posso fazer, repetia o
Chefe de Polícia. Foi êle próprio quem deu a ordem de prisão, só êle pode mandar soltar”
(Tenda dos milagres, p. 327).
Mesmo preso, Mestre Pedro Archanjo Ojuobá logrou erigir uma possibilidade de
justiça vindoura – a democracia social e identitária de um “universo mestiço”. Honrou, desta
forma, as potencialidades herdadas de seu pai mítico, a confiança de Xangô e do povo que o
tinha tomado como líder, mestre e pai; honrou os compromissos e as responsabilidades: “Se
não terminou com os racistas – sempre haverá imbecis e salafrários em qualquer tempo ou
sociedade –, Pedro Archanjo os marcou a ferro e fogo, apontando-os na rua, „eis, meus bons,
os antibrasileiros‟ e proclamou a grandeza do mestiço” (AMADO, 1971, p. 172).
“Se o Brasil concorreu com alguma coisa válida para o enriquecimento da cultura
universal, foi com a miscigenação – ela marca nossa presença no acêrvo do humanismo, é a
nossa contribuição maior para a humanidade” (Tenda dos milagres, p. 141). Tais
considerações, encastoadas nos Apontamentos sobre a mestiçagem nas famílias baianas, são
comumente evocadas para dar crédito às leituras que tomam da literatura amadiana como
signatária da visão harmoniosa de um Brasil mestiço. Ora, é sim possível atribuir a elas – e a
tantas outras – tal conotação, caso sejam lidas absolutamente de modo descontextualizado. No
entanto, se tais leituras forem confrontadas com o contexto em que se inserem, com o que
vêm a negar e com a contrarreação que provocam, seria possível manter esta interpretação?
Não seria, talvez, mais adequado ler a obra alcançada por Jorge Amado, ainda que falha em
248
alguns aspectos, como a valorização de um “mundo negro” e a esperança em um “universo
mestiço”, ainda longínquo, mas projetado pelo autor?
Nesta perspectiva, importante ressaltar, ainda que de forma pouco detalhada, dois
últimos pontos: o quarto livro de Archanjo, Culinária baiana: origens e preceitos, de 1930, e
o reencontro entre Ojuobá e Nilo Argolo, transmudados respectivamente nos Exércitos do
Eixo e nas Forças Aliadas, durante a Segunda Grande Guerra.
O menos comentado dos livros archanjianos constitui em si uma grande defesa do
“mundo negro”. A despeito de Bonfanti, livreiro e editor, considerá-lo apenas como uma peça
de cozinha destinada às senhoras, Culinária baiana: origens e preceitos vai muito além do
simples receituário:
Não foi pacífico o acêrto da edição, querendo Bonfanti reduzir o texto às receitas
com meia página de prefácio, se muito, enquanto Archanjo exigia a publicação na
íntegra, sem cortes: antes, a pesquisa, os comentários, o estudo extenso; depois, as
receitas. Finalmente o livro saiu completo [...] (Tenda dos milagres, p. 73).
Para Vivaldo da Costa Lima (2000, p. 60) é possível observar “[...] duas vertentes na
análise da cozinha na obra de Jorge, a literária e a antropológica”. A investigação literária
teria como objeto as imagens, a linguagem e as metáforas que o romancista baiano exprime a
partir da cozinha. Já a pesquisa antropológica faria uma incursão pelo mundo do candomblé,
isto é, o modo como a cozinha amadiana reproduz a cozinha litúrgica afro-brasileira.
Por certo, a temática da cozinha em Tenda dos milagres não é tão forte, tão presente
ou vigorosa como em Dona Flor e seus dois maridos, por exemplo. Entretanto, cabe
perguntar, em decorrência da perspectiva antropológica prevista por Lima, se não há na briga
de Archanjo pela publicação integral de suas pesquisas uma importante defesa do “mundo
negro”. Ora, ponto pacífico que a culinária baiana é, em larga medida, relacionada ao
candomblé, principalmente pela intensa presença do azeite de dendê a dar cor e gosto, mas
também sentido e identidade aos alimentos: “Para o mundo cultural afro-brasileiro o dendê é
marca, distintivo, e atestação da memória, da ação, da produção, criação e recriação de um
patrimônio de bases africanas absorvido, e também reinventado em espaço brasileiro”, afirma
Lody (1992, p. 1).
Segundo Lody (1998, p. 24), é “[...] por meio da alimentação comum dos deuses e de
seus adeptos que as religiões têm assegurada a sua sobrevivência”. É neste aspecto que reside
a importância de se pensar na defesa a um “mundo negro” em Culinária baiana: origens e
preceitos. Expandindo-se a partir dos terreiros de candomblé, o que se designa como
249
“culinária baiana” carrega consigo uma forte carga identitária que, a despeito das preferências
religiosas e culturais de quem as come, são, em certa medida, transmitidas posto que
presentes, de forma simbólica, no modo de preparo, nos nomes, nos ingredientes e, em
especial, no dendê – não à toa um estudo específico de Lody (1992) tenha o sugestivo título
Tem dendê, tem axé.
Destarte, a comida afro-baiana não é apenas gosto, é igualmente identidade. O que
Archanjo pretende ao brigar pela publicação integral, em que estejam presentes não apenas as
receitas, mas também, e principalmente, o estudo acerca dos sentidos, dos vínculos religiosos
e das identidades que se exprimem a partir desta comida, é evitar a reificação da culinária
afro-brasileira. Equivale dizer: evitar a reificação da identidade afro-brasileira. Há a inserção,
embora por via indireta, da mesma categoria dos outros três livros: a defesa de um “mundo
negro”:
[...] é indivisível o dendê da história africana nas suas interpretações gerais, como
também de Exu – o principal agente do dendê – e, assim, a vida social e cultural do
africano, as suas heranças na formulação do patrimônio afro-brasileiro, é
definitivamente fundida na trama da sociedade nacional. [...]
Sem dúvida, comer dendê é comer o que significa o dendê, maneira mito-endógena
de comer e alcançar os ancestrais – e neles Exu – o mais dendê de todos (LODY,
1992, p. 12).
Sem dúvida, esta defesa se constitui em mais uma evidência da proposta específica da
mestiçagem amadiana, de uma negromestiçagem. Afinal, pretender salvaguardar a identidade
afro-brasileira contida na comida, é, também, evitar o apagamento do negro.
Por último, cumpre reportar o reencontro de Archanjo e Nilo Argolo, transplantados
simbolicamente para os campos em guerra da Europa Central. De um lado, as tropas nazistas
e a ideologia de uma supremacia ariana; do outro, as forças aliadas. Tempos, pois, de medo e
incertezas:
Tudo quanto o professor reclamara e previra fizera-se realidade. Tudo quanto o
velho pregara e defendera estava em perigo. Teses e idéias em confronto,
novamente. Não mais num debate intelectual, agora de armas na mão. Corria o
sangue, as legiões de soldados empunhavam a morte.
Se Hitler vencesse, Hitler ou outro qualquer fanático racista, poderia terminar com
todos êles, na morte e na escravidão? O professor disse que sim, conclamou o líder
capaz de fazê-lo, das brumas da Alemanha Hitler respondeu: Presente! Se vencesse,
poderia acabar com o povo, em mortos e escravos? O velho busca uma resposta [...]
(Tenda dos milagres, p. 359).
Claro está que o que aí se coloca em jogo é a própria vida de Archanjo, ou melhor, sua
história: tudo o que fez, tudo pelo que lutou, tudo pelo que venceu. Já alquebrado e
250
desleixado, Pedro Archanjo recupera o vigor durante os anos de Guerra: ele próprio um
general investindo contra as tropas do “Führer”. “Quando todos desanimaram e se deram por
vencidos, êle assumiu o comando de um exército de mulatos, de judeus, de negros, de árabes,
de chineses e partiu a enfrentar as hordas do nazismo. Vamos, meu bom, vencer a morte
desatada, a infame!” (Tenda dos milagres, p. 355).
Durante a Segunda Grande Guerra não se trata mais de defender apenas o “mundo
negro”, mas, sem prescindir de fazê-lo, proteger a própria perspectiva de um “universo
mestiço”, extremamente ameaçada pelo avanço alemão – daí exército tão numeroso e
heterogêneo como o reunido simbolicamente por Archanjo.
Por seu lado, Argolo exultava com o avanço de Hitler. Certa vez Archanjo, de forma
irônica, lhe havia sugerido que exterminasse a todos, negros e mestiços. O catedrático, então
sonhou:
- Eliminar a todos, um mundo sòmente de árias?
Mundo perfeito! Grandioso, irrealizável sonho. Onde o temerário gênio capaz de
tomar da atrevida idéia e levá-la à prática? Quem sabe, um dia, invicto deus da
guerra cumprirá a missão suprema? Visionário, o professor Argolo perscrutou o
futuro e pressentiu o herói à frente das coortes arianas. Fulgurante imagem, instante
glorioso [...] (Tenda dos milagres, p. 178).
O sonho do professor Argolo em vias de tornar-se realidade: Hitler ascende ao poder
alemão. “Quando Hitler assumiu o poder na Alemanha e anunciou o comêço do milênio
racista, o professor ainda era vivo e o saudou em delirante artigo: O ENVIADO DE DEUS.
Enviado de Deus para exterminar negros e judeus, árabes e mestiços, a mulataria sórdida [...]”
(Tenda dos milagres, p. 358).
Teria sido em vão os embates com Argolo e com Pedrito se agora o professor saísse
vitorioso na pele de Hitler. Novamente o confronto entre as representações arquetípicas do
racismo e do antirracismo. E quando tudo indicava uma vitória dos exércitos alemães, o
inverno russo sobreveio e mudou o curso da Guerra. Os imaginários exércitos comandados
por Mestre Pedro Archanjo Ojuobá passaram a avançar sobre as tropas alemãs, cada vez mais
enfraquecidas. Vitória após vitória, persistia a utopia de um “universo mestiço”. Os nazistas
cada vez mais recuados, perdendo posições importantes, sofrendo com o terrível frio: “As
notícias daquela noite davam gôsto, os „arianos‟ apanhando de criar bicho. Todo mundo
xingava os alemães, „os nazistas alemães‟, [...] o velho, porém, só se referia aos „bandidos
arianos‟, assassinos de judeus, negros e árabes. Conhecia alemães ótimos [...]” (Tenda dos
milagres, p. 40).
251
Não obstante as boas notícias, era já a noite de 1943 – noite fatídica, noite de morte. A
discussão começa no bar de Maluf. E se Hitler vencesse?
Destruir o mundo? Se Hitler ganhasse a guerra poderia matar e escravizar todos os
que não fôssem brancos puros, arianos comprovados? Acabar com a vida e a
liberdade, mortos ou, pior ainda, escravos todos nós, sem exceção?
Pegou fogo a discussão, pode, não pode, por que não pode? Ora se pode! O ferreiro
se retou:
- Nem Deus que fêz o povo pode matar tudo de uma vez, vai matando de um a um e
quanto mais êle mata mais nasce e cresce gente e há de nascer, crescer e se misturar,
filho-da-puta nenhum vai impedir! [...]
O velho Pedro Archanjo repetiu a resposta finalmente ouvida:
- ... há de nascer, crescer e se misturar, ninguém pode impedir. Tem razão,
camarado, é isso mesmo, ninguém pode acabar com a gente, nunca. Ninguém, meu
bom.
Já era tarde, ainda sentia a dormência no braço, a dor lá no fundo, à espreita. Alegre
se despediu: até amanhã, meus bons, paga a pena viver quando se tem amigos, um
trago de cachaça e uma certeza assim tão certa. Vou-me embora, quem vier atrás
feche as cancelas (Tenda dos milagres, p. 362).
Eis a certeza que, para além do resultado da Guerra, subjugaria a todos os exércitos
nazistas; que derrotaria peremptoriamente tantos Hitler, Argolo e Pedrito houvessem neste
mundo. Um último livro precisava ainda ser escrito, o quinto de sua produção, o definitivo.
Esta verdade inquestionável coroava seu trabalho, sua luta, sua esperança. A dor, entretanto,
já o atravessa por inteiro. Lentamente, Archanjo procurava avançar pelo Pelourinho em
direção ao quartinho dos fundos do castelo de Ester, onde morava já há algum tempo.
Precisava transcrever a assertiva síntese, mas a “[...] dor o rasga em dois, rompe-lhe o peito, ai
não alcançará a casa de Ester, perdida a frase do ferreiro, tão bonita e certa [...]” (Tenda dos
milagres, p. 43). O corpo rola pelo chão.
A noite cobre Archanjo em escuridão. Vêm os primeiros raios da aurora, o movimento
dos últimos bêbados retornando a suas casas, os primeiros trabalhadores saindo. Vem o Major
Damião, desvira o corpo de bruços sobre a lama, reconhece-o: eis Pedro Archanjo Ojuobá.
Vencido pela morte, Ojuobá passa ao orun sem, contudo, transcrever e publicar a frase
do ferreiro; frase tão sua: lei irrevogável da condição humana. A despeito de preconceitos e
segregações várias, a certeza, enfim, de um “universo mestiço” – nascer, crescer e se misturar,
não obstante Argolos e Hitlers.
252
4.3 UMA VERDADE, A DESPEITO DO EMBUSTE
“[...] um homem notável, de idéias profundas e generosas, um criador de humanismo,
vosso concidadão Pedro Archanjo” (Tenda dos milagres, p. 30). Com tão grandiosas palavras
o sábio estadunidense e prêmio Nobel James D. Levenson, autoridade inconteste, introduz o
nome de Mestre Pedro nos círculos eruditos nacionais, na imprensa e na Academia. Silêncio
vezes silêncio seguiu-se à pronúncia de tal nome, já há tantos anos esquecido sob as poeiras
do refluxo governamental aos livros publicados por Ojuobá. Rematada a coletiva, silêncio
desfeito, enfim. Edifica-se uma glória da nação brasileira – Archanjo:
Começou então a corrida em torno de Archanjo e de sua obra. Muito papel, muita
tinta e muito espaço em jornal foram gastos, a partir da entrevista de Levenson, para
saudar, analisar estudar, comentar, louvar o injustiçado escriba. Era necessário tirar
o atraso, corrigir o erro, apagar o silêncio de tantos anos (Tenda dos milagres, p. 36).
Qual o Archanjo alçado de súbito aos píncaros do saber nacional? – cabe perguntar.
Fez-se referência, logo na abertura desta quarta seção, a dois processos que advêm da
contundente declaração de Levenson sobre Archanjo, a relembrá-los: um de apuração seguido
por outro de depuração.
Empreendido por Fausto Pena, o processo de apuração, isto é, aquele que promove o
resgate da história de Ojuobá e possibilita ao leitor conhecê-la da forma como vivida por
Mestre Pedro, fiel às vicissitudes, aos embates, às vitórias que lhe couberam, orientou a
leitura até aqui alcançada por esta investigação acerca de Tenda dos milagres.
É mister, porém, avançar algumas considerações sobre o segundo processo, qual seja,
aquele que se refere à depuração da personagem Pedro Archanjo, de modo que possa vir a
representar o orgulho nacional – o que configura, ao passo que se realiza, uma apropriação
deformativa, como se designou anteriormente.
Retome-se, portanto, o ano de 1968, ainda que os segmentos narrativos que enfocam
este eixo temporal não abordem, senão tangencialmente, a temática da mestiçagem. Nesta
conjuntura, cumpre observar os meandros da composição de uma narrativa oficial sobre Pedro
Archanjo a pretexto de vislumbrar a continuidade do repúdio ao negro na sociedade brasileira
pós Nilo Argolo, embora se mantenha dissimulado. Noutras palavras, compete o cotejo do
vivido com a narração do vivido.
A apropriação deformativa de Mestre Pedro Archanjo Ojuobá tem início na sala de
Zezinho Pinto, proprietário e diretor do Jornal da Cidade que, apesar de ser constituído por
253
“uma redação com tantos talentos, a flor da intelectualidade” (Tenda dos milagres, p. 75),
pouca importância havia concedido ao sábio baiano, assunto do momento – erro imperdoável
para um diário que se arvora como o melhor da Bahia.
Inconformado por estar atrás dos outros periódicos no que tange à cobertura ao nome
de Archanjo, Zezinho Pinto vê o Major Damião adentrar o escritório e reclamar de não ter
sido ainda ouvido sobre o assunto, uma vez fosse ele um dos poucos restantes a ter de fato
convivido com Ojuobá. Afinal, quem “[...] me ensinou a ler? Quem o encontrou morto na
Ladeira do Pelourinho?”, indaga o Major para, logo depois, afirmar: “Quem me educou foi
êle, quem me ensinou o abc, o bem e o mal da vida” (Tenda dos milagres, p. 75-76).
Eis a oportunidade de suplantar os concorrentes: o testemunho de alguém que tenha
convivido tão intimamente com a glória nacional, Archanjo. Aliás, mero alguém não, mas o
Major Damião, figura conhecida e célebre da Cidade da Bahia, o rábula do povo. Sem
quaisquer delongas, Zezinho convoca Ari, o principal redator do jornal, para que tome as
devidas anotações do relato. O Major Damião de Souza passa a narrar a vida de Archanjo e o
faz de modo tal como o leitor passará a conhecê-la via Fausto Pena, algumas páginas depois.
“Muita coisa, certamente, mas tôda aquela lengalenga do Major derrota o dono do
jornal: de pouco vale, não possui o mínimo caráter científico” (Tenda dos milagres, p. 79). A
julgar pela sagacidade do bem sucedido empresário no ramo de notícias, a referida sensação
de derrota talvez possa conotar algo. Conquanto se possa argumentar, com certa razão, que o
crescente desinteresse do empresário pela narrativa do Major justifique-se, acima de tudo,
pelo fato de as histórias contadas não projetarem um aumento significativo nas vendas do
jornal, é justamente porque não resultam em tiragens esgotadas que se infere a permanência
de laivos racistas na sociedade baiana. Ora, os fatos relatados pelo major versam sobre a
perseguição a Procópio e sobre a vitória diante de Pedrito, contam dos Afoxés indo às ruas,
mesmo proibidos, descrevem a Tenda dos Milagres de Mestre Lídio; revelam o cotidiano de
uma Bahia popular, dizem de um Pedro Archanjo negromestiço. A implicação é lógica: se o
número de vendas de um jornal resulta da importância da notícia e, ainda mais, do interesse
que ela é capaz de ocasionar, o desânimo de Zezinho Pinto não pode dar a entender acerca do
desinteresse da sociedade baiana por histórias de um “pardo, paisano e pobre”?
Ademais, Amado parece insinuar, na recusa de Zezinho Pinto pelos verdadeiros
episódios da vida de Archanjo, uma sociedade que, estruturada a partir de valores e princípios
etnocêntricos, desvaloriza por infame tudo aquilo que não é burguês, branco ou cristão; tudo o
que não representa o devido espelho de quem narra a história oficial do Brasil. Por
conseguinte, a glória da nação, o sábio baiano referido por Levenson, já não condiz com o
254
homem Pedro que, sem abdicar de ser Archanjo, foi também, e em igual medida, Ojuobá, os
Olhos do Rei Xangô. É preciso corrigi-lo, enquadrá-lo, numa palavra: construí-lo – o que fica
patente noutro contexto, quando Fausto Pena procura Zezinho Pinto com o intuito de vender
as pesquisas que tinha feito sobre Archanjo. Como já referido, as narrações de Fausto Pena e
do Major Damião coincidem sobre a personagem que narram: são fiéis ao vivido por Mestre
Pedro. Desta maneira, por uma segunda vez o ilustre dono do Jornal da Cidade tem acesso ao
dia-a-dia do Archanjo “real”. A reação de Zezinho Pinto é reveladora:
Quando, porém, lhe exibi minhas notas, por pouco não fatura uma crise histérica.
“Isto é exatamente o que não quero: essa falta de respeito com um grande homem,
com um espírito superior. Êsse achincalhe, êsse apequenamento da figura de
Archanjo. Não admito! Se lhe compramos essas laudas de tagarelices e
maledicências é exatamente para pô-las fora, para que não sejam usadas e não
maculem a imagem de Pedro Archanjo. Meu caro Fausto, pense nas crianças das
escolas”.
[...] Doutor Zezinho, ainda nervoso, completou: “Polígamo, que infâmia! Não era
sequer casado! Meu caro poeta, aprenda esta lição: um grande homem tem de
possuir integridade moral e se, por acaso, transigiu e prevaricou, cabe-nos repô-lo
em sua perfeição. Os grandes homens são patrimônios da Pátria, exemplos para as
novas gerações: devemos mantê-los no altar do gênio e da virtude” (Tenda dos
milagres, p. 129).
Eis, portanto, a manipulação da história por uma ideologia elitista, estratégia
denunciada por Olivieri-Godet (2004). Apropria-se, assim, da figura de Archanjo e a deforma
de maneira tal, que abstraídos e depurados os princípios e os valores que ela esparge, a
resistência e a esperança que ela semeia, emana-se um Archanjo-Outro que, em verdade, já
não destoa, senão minimamente, daqueles a quem confrontou; um herói que já não estabelece
qualquer ruptura. Neutraliza-se, desta forma, “[...] o potencial de construção de um
pensamento autônomo, associado a uma prática libertária, no seio das camadas sociais mais
desfavorecidas”, uma vez que Archanjo exprimisse o “[...] descentramento em relação às
ideias dominantes” (OLIVIERI-GODET, 2009, p. 292). Neste aspecto, inclusive o próprio
Levenson, que antes houvera proporcionado a glória ao nome de Archanjo, alinha-se e
representa, em certa medida, o projeto das elites baianas vez que ignora completamente os
dados levantados por Fausto Pena:
[...] Acrescento apenas, com certa melancolia, não ter sido meu trabalho, êste meu
trabalho, levado em consideração pelo grande Levenson. [...] De todo o material
enviado, o sábio usou apenas a fotografia ao publicar em inglês a tradução de boa
parte da obra de Pedro Archanjo [...].
Nas páginas introdutórias, Levenson pràticamente não se preocupou com a análise
dos livros do baiano; pouquíssimas são as referências à sua vida. Bastante, porém,
para demonstrar-me não ter êle sequer lançado um golpe de vista em meu texto. Em
seu prefácio, Archanjo é promovido a professor, a membro eminente da
255
Congregação da Faculdade de Medicina (“distinguished Professor, member of the
Teacher‟s Council”), por cuja conta e encargo realizara suas pesquisas e publicara
seus livros, imagine-se! Quem impingiu tais patranhas a Levenson, não o sei, mas
houvesse êle ao menos folheado meus originais, não teria incorrido em erro assim
grosseiro – de bedel a professor, ah! meu pobre Archanjo, só te faltava mais esta
(Tenda dos milagres, p. 25).
Ora, considere-se a denúncia alcançada, em Tenda dos milagres, das artimanhas
urdidas pelas elites baianas como forma de perpetuar a dissimulada organização das estruturas
sócio-racial e simbólica nacionais. Retomem-se, pois, as considerações iniciais desta seção,
que indicam este romance como um emblema representativo do pensamento amadiano no que
concerne às questões de cunho racial. Ao compará-las, como resumir a literatura de Jorge
Amado a uma simples e partícipe defesa das relações raciais brasileiras, da forma como
preconiza o inglês David Brookshaw (1983)? Ou, noutro plano, como uma mera expansão das
concepções gilbertianas, como pretendem e sentenciam tantos outros críticos? Apesar de falha
no que diz respeito à supervalorização da mestiçagem, Jorge Amado não a reivindica como
base de uma suposta e coeva “democracia racial brasileira”, senão de uma possível
“democracia social e identitária” situada alhures: no ainda distante porvir.
Neste sentido, convém ressaltar que a referida construção ideológica de um Archanjo-
Outro coincide inextrincavelmente com o processo de branqueamento empreendido por Tadeu
Canhoto a si, embora, desta vez, a metamorfose operada se constitua à revelia de Ojuobá,
idealizada e promovida por terceiros. Da mesma forma que o faz em relação a Tadeu, Amado
descortina, assim, as diretrizes racistas que orientam e balizam a ascensão e a aceitação
sociais no Brasil: pouco importa a que se referem as obras ou as batalhas logradas por
Archanjo; para representar uma glória da nação brasileira Mestre Pedro tem de ser branco ou,
ao menos, dar a entender que o é – em todo caso, obrigatoriamente um não-negro.
Durante toda a sequência narrativa que se fixa no eixo temporal presente, ou seja, no
ano de 1968, é possível perceber, aqui e ali, certos apagamentos que se vão realizando à
medida que o discurso sobre o Archanjo-Outro é tecido pelas elites baianas. Por certo, não se
faz necessária muita astúcia ou aprimorada capacidade intuitiva para observar nesta depuração
o propósito de minorar e, por fim, delir a memória de um Archanjo negro – com o que estaria
igualmente assegurado o escamoteamento de tudo aquilo que Ojuobá deveras significou.
Assim é que Fausto Pena comenta:
[...] a glória finalmente ilumina a figura do mestre baiano. Que figura? Para falar
com tôda franqueza, nem eu mesmo sei. Nessas festas grandiosas do centenário é tão
estridente o barulho, as girândolas da louvação oficial espoucam com luz tamanha
que se torna difícil enxergar os contornos exatos da figura [...].
256
Impressionante: ninguém se refere à obra e à luta de Archanjo (Tenda dos milagres,
p. 333).
Caso se retorne à entrevista do Major Damião de Souza a Zezinho Pinto, mandatário
do Jornal da Cidade, deve-se revelar não ter sido de todo improfícuo o relato concedido. Ao
fim da história, a informação desejada por Zezinho: “[...] E em dezembro, uma semana antes
do Natal, no dia 18, fará cem anos que ele nasceu” (Tenda dos milagres, p. 80).
A perspectiva do centésimo aniversário de Archanjo se afigura então como
possibilidade de uma grande promoção: o Ano do Centenário de Archanjo. Programam-se
homenagens, seminário, sessão solene e prêmios para o decorrer do ano festivo capitaneado,
obviamente, pelo Jornal da Cidade.
Em verdade, o seminário anunciado acima não chega a acontecer. Fora cancelado
devido ao silêncio imposto pelos laços diplomáticos que a Ditadura Militar Brasileira
mantinha com os Estados Unidos e a África do Sul – qualquer discussão sobre raça naquele
contexto poderia ocasionar uma onda de protestos contra as nações “amigas”. Para substituí-
lo, Zezinho Pinto propõe que se pense em “[...] grande concurso, a ser lançado entre os
secundaristas [...]. Seria o „Prêmio Pedro Archanjo‟” (Tenda dos milagres, p. 145-146).
É, pois, na esteira deste prêmio que Amado condensa as evidências mais notáveis da
apropriação deformativa de Ojuobá realizada pelas elites baianas. Voltado para os alunos de
escola pública, o concurso consistiria na escrita de uma redação sobre Pedro Archanjo. Para
tanto, a Agência de Publicidade Dopping S.A, coordenadora das comemorações do
centenário, solicita ao professor Calazans, um dos poucos a conhecer profundamente a obra
do baiano, algumas notas que seriam transformadas em texto pela agência. Este texto seria
destinado às professoras para que pudessem, em suas aulas, ensinar aos estudantes sobre a
vida e a obra de Mestre Pedro. A tabela que segue busca coligir, de forma algo esquemática,
as informações que se depreendem das páginas 206 a 214 da edição aqui utilizada de Tenda
dos milagres, publicada em 1971 pela Martins. Tais páginas referem-se à sucessão de relatos
dos envolvidos no prêmio: as notas do professor Calazans; o texto da Dopping S.A, a aula da
professora Dida Queiroz e a redação do estudante Rai, de nove anos.
257
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258
No eixo vertical da tabela estão elencados nove itens que correspondem aos elementos
cujas transformações ocorridas na passagem de um a outro discurso favorecem e propiciam o
branqueamento de Mestre Pedro – o que vem a configurar um Archanjo-Outro. Já no eixo
horizontal, encontram-se os relatos a serem investigados, bem como as informações que se
depreendem da vida verdadeira de Ojuobá. Cumpre entrecruzá-los.
Observe-se, de início, as colunas “nome” e “ligação com o candomblé” que, de
alguma maneira, parecem interligadas. Em determinado momento do romance Archanjo
afirma: “– Meu nome de cristão é Pedro Archanjo mas em nagô sou Ojuobá” (Tenda dos
milagres, p. 186). Como se percebe pelo avançar dos discursos, o nome nagô de Archanjo é
obliterado. Não consta nem ao menos no relato concedido pelo professor Calazans, dentre
todos analisados, aquele que se constitui o mais fiel à vida vivida por Mestre Pedro.
Da mesma forma, nota-se que à passagem dos relatos não se encontra qualquer alusão
ao elo entre Archanjo e o candomblé, não obstante a importância desta ligação para situá-lo
em termos identitários ou em um contexto histórico, posto se considere a luta contra Pedrito
Gordo.
O deliberado escamoteamento de tais dados configura, indubitavelmente, parte
importante do processo de invisibilização da identidade negra de Pedro Archanjo Ojuobá.
Ora, apagar-lhe a pertença identitária, ocultar-lhe o nome nagô é, pois, expungir do Archanjo-
Outro, aquele que se pretende edificar, a memória do Archanjo real, aquele que se deseja
suprimir. Noutro plano, dirimir o nome Ojuobá da história é denegar aos nascituros a
possibilidade de reconhecer, em um herói da nação, vitórias e sentidos lidimamente negros. É,
tanto pior, inviabilizar o próprio reconhecer-se de uma criança negra ou mestiça naquele que
figuraria um orgulho negromestiço – estratagema tão usual no continuum histórico brasileiro
que força o país a ter uma lei específica para que se ensine história e cultura afro-brasileiras
nas escolas177
.
De modo semelhante ocorre quando o parâmetro a ser analisado concerne à filiação.
Atenta-se, nesta linha específica, a dois procedimentos opostos: o engrandecimento do pai,
Antônio Archanjo, e a eliminação do nome da mãe, Noca de Logunedê. O primeiro, de recruta
na Guerra do Paraguai, conforme consta no relato do professor Calazans, é promovido a herói,
177
A Lei nº 10.639/2003, tal como sancionada a 09 de janeiro daquele ano pelo Presidente Luís Inácio Lula da
Silva, alterou a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996 que estabelecia as diretrizes e bases da educação
nacional, para incluir a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”. Assim, o parágrafo
primeiro do artigo 26-A determina: “O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo incluirá o
estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na
formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política
pertinentes à História do Brasil”.
259
no texto produzido pela Dopping S.A e, finalmente, a General, na aula ministrada pela
professora Dida Queiroz, na Escola Pública Jornalista Giovanni Guimarães. Acaso se
considere que o Exército Brasileiro recrutou, em suas fileiras, muitos negros escravizados sob
a promessa de alforria uma vez fosse vencido Solano López, a referência do professor
Calazans pode vir a revelar a ascendência negra de Archanjo. Como se vê, o engrandecimento
da figura representada por Antônio Archanjo não serve apenas para enaltecer as tradições
herdadas pelo filho, mas também para distanciá-lo de posições que denotem uma genealogia
negra.
Ainda mais sintomática é a supressão da mãe cujo nome, Noêmia de Tal, e também a
alcunha, Noca de Logunedê, desvelam o que se pretende velado. Ao acompanhar a sucessão
dos relatos, percebe-se que a agência de publicidade Dopping S.A faz referência à mãe, mas
oculta os nomes pelos quais é conhecida: designa-a apenas por “esposa grávida”. A professora
Dida Queiroz, não a menciona, o que também se percebe na redação de Rai, que classifica
Archanjo como órfão – já Noca de Logun não existe.
A despeito do apagamento de Noca da história criada sobre Archanjo, Amado faz o
leitor ter conhecimento da importância singular que a mãe exerceu na vida do filho, afinal ter
sido em sua companhia “[...] em vida tão parca e dura, [que] o menino aprendeu a não ceder, a
não desanimar, a seguir em frente” (Tenda dos milagres, p. 226). O Archanjo-Outro, contudo,
não pode descender de alguém que tenha no nome as marcas denunciatórias da escravidão ou
da pertença cultural negra. “de Tal”, epíteto hoje um tanto depreciativo, era comumente
utilizado no Brasil escravocrata para designar os negros que, embora batizados, por um
motivo ou outro, não herdassem os sobrenomes dos senhores ou, então, aqueles que os
omitiam. Já Logunedê corresponde a um orixá do panteão nagô e, como tal, marca
explicitamente uma pertença religiosa e cultural negra. Logo, tal Ojuobá, foram excetuados do
discurso oficial sobre Archanjo.
Já não causa espanto algum o fato do texto produzido pela Dopping ou a aula
ministrada por Dida Queiroz eliminarem de todo a referência à feição negromestiça de Pedro
Archanjo – ou simplesmente mestiça, como faz o professor Calazans. Classificam-no apenas
como “pobre”, nascido em ambiente pouco propício à cultura. Apesar de não chegarem ao
ponto de afirmá-lo branco, retome-se o que foi dito anteriormente: basta que não o explicitem
negro.
Também não mais causa estranheza os livros de Archanjo terem se reduzido em
simples e quase pueris “[...] histórias de bichos e de gente, mas [que] não servem para menino
ler” (Tenda dos milagres, p. 213). Esvaziado o conteúdo revolucionário inerente à
260
personagem Archanjo Ojuobá, procedeu-se de forma idêntica com os livros que logrou
escrever: a Dopping S.A. considera que apresentam um levantamento dos problemas raciais,
mas não menciona em que tais livros implicam, não refere acerca do que tratam, muito menos
adverte a respeito do porque existem – são como frutos naturais do exercício da profissão de
professor da Faculdade de Medicina ou da Columbia University, como deixa entrever a
professora Dida Queiroz.
Aliás, a ascensão profissional deste Archanjo-Outro que, não tendo sido nunca bedel,
fez vestibular, foi aluno e professor da Faculdade de Medicina – talvez até amigo de Nilo
Argolo, quem sabe? – não é apanágio somente dos discursos aqui examinados. Por certo, não
assombra saber que também a própria Faculdade de Medicina dera sua importante
contribuição:
Um porta-voz da tradicional Escola, em entrevista ao J.C. logo após o lançamento da
campanha [do centenário], ainda na fase inicial das declarações de apoio, afirmou:
“Pedro Archanjo é um filho da Faculdade de Medicina, sua obra é parte de nosso
sagrado patrimônio, êsse patrimônio inigualável que nasceu no secular Largo do
Terreiro de Jesus, no precípuo Colégio dos Jesuítas e se afirmou com os ovantes
mestres da Faculdade, erguida sobre os alicerces do primeiro estabelecimento de
ensino do Brasil. A obra de Pedro Archanjo, hoje reconhecida até no estrangeiro, só
pôde ser realizada porque seu autor, membro da administração da Faculdade,
imbuiu-se do espírito da benemérita instituição [...]. Pedro Archanjo forjou seu
ânimo nesse clima de alta espiritualidade, na doutrina da veneranda Escola temperou
sua pena. É com justificado orgulho que afirmamos por ocasião desta efeméride
gloriosa: a obra de Pedro Archanjo é produto da Faculdade de Medicina da Bahia”.
No que, apesar de tudo, não deixava de ter certa razão (Tenda dos milagres, p. 149-
150).
Ainda a respeito da ligação de Pedro Archanjo com a Faculdade de Medicina, é
interessante notar que ressalvas podem ser feitas até ao relato produzido pelo professor
Calazans, posto não mencione o motivo da repercussão que teria ocasionado a demissão de
Ojuobá – com isto, o professor silencia a respeito das “suspeitas teorias” em voga na
instituição e do combate a elas feito pelos livros de Archanjo.
Em relação à vida amorosa de Archanjo, a total supressão de Rosa de Oxalá, grande e
irrealizável amor da vida de Mestre Pedro, segue os mesmos ditames dos apagamentos de
Ojuobá e Noca de Logunedê: a demarcação religiosa/cultural/identitária. Aliás, cabe aqui um
adendo a respeito da impossibilidade do enlace entre Rosa e Archanjo. O impeditivo não se
constitui em falta de amor mútuo, mas por meio de uma interdição na qual Lídio Corró ocupa
posição de realce. Ele também é enamorado de Rosa, fato que desencadeia o impedimento:
“[...] se Lídio nascesse de minha mãe, nela pôsto por meu pai, não seria tão meu irmão, não
lhe deveria tanta decência e lealdade” (Tenda dos milagres, p. 113). Seria, talvez, uma
261
repetição do tema já desenvolvido em Os pastores da noite, envolvendo Curió, Cabo Martim
e Marialva, se não houvesse nesta lealdade ao amigo Lídio um detalhe a mais: o romance de
Jorge Amado se aproveita do tema da amizade entre dois homens, o que lhe é muito caro, para
também neste aspecto discutir e negar as teorias raciais de Nilo Argolo:
Rosa, [...] temos honra e sentimento. Rosa, nós não somos degenerados em
promiscuidade imunda, uns animais ou, pior, uns criminosos. Sim, Rosa, exatamente
isso: “Mestiços, degenerados em sórdida, em imunda promiscuidade”, foi o que
escreveu um professor de medicina, um doutor, um catedrático. Mas é mentira,
Rosa, é calúnia desse sabetudo que não sabe nada. [...]
Na gringa te esquecerei, e em Sabina, em Rosenda, em Risoleta [...]. Esquecerei ou
buscarei em desespêro? Em campo de jasmim e trigo, teu negrume. Em todas elas,
rosa de Oxalá, tua indecifrável adivinha, teu proibido eterno amor (Tenda dos
milagres, p. 113).
E já que se falou da “gringa”, aproveite-se o ensejo: em plena substituição a Rosa de
Oxalá, Archanjo-Outro se casa com Kirsi, seu grande amor. Ora, e não seria este o perfeito
arremate do branqueamento de Archanjo: a transferência simbólica da brancura de alvaiade de
Kirsi para um Archanjo que o leitor já não mais reconhece como negro?
Resta ainda comentar a Sessão Solene, a acontecer no Salão Nobre do Instituto
Histórico e Geográfico, como marco das comemorações do Centenário de Pedro Archanjo –
uma vez que o seminário planejado sobre a obra de Ojuobá fora suspenso, toda a discussão
acadêmica sobre as propostas teóricas de Mestre Pedro no que concerne à questão racial ficara
concentrada na Sessão Solene. Compõem a mesa: o Governador do Estado da Bahia, como
presidente; o doutor Zezinho Pinto; o professor Calazans, responsável pela leitura de uma
carta de James D. Levenson; o doutor Benito Mariz, representante da Associação dos Médicos
Escritores; a folclorista Edelweiss Vieira e, por último, o preclaro acadêmico Batista. Convém
ressaltar, dentre todos, os discursos da folclorista e do acadêmico.
Eldeweiss Vieira faz de sua fala um agradecimento emocionado àquele que considera
como o pai dos estudos folclóricos baianos. Ao término do discurso, a folclorista surpreende
ao quebrar o protocolo acadêmico e pedir a benção ao pai Archanjo. Segue o texto amadiano:
Pesquisando em terra por êle desbastada, percorrendo veredas e atalhos abertos pelo
autor de “A vida popular na Bahia”, a folclorista, em meio a tanta formalidade, a
todo aquêle eloqüente e vazio palavreado, parecia reverente filha de terreiro posta de
joelhos ante o pai pequeno. Naquele instante, nítida, se projetou na sala a figura de
Archanjo (Tenda dos milagres, p. 365).
Não somente àquela noite, mas estendendo-se por todas as homenagens e prêmios
promovidos em decorrência das comemorações do Centenário de Pedro Archanjo, talvez
262
aquele tenha sido o único instante em que se falou, ainda que de viés, do Pedro Archanjo
verdadeiro, o Ojuobá. “Por um breve momento, apenas, pois em seguida teve a palavra o
preclaro Acadêmico Batista, orador principal da noite [...]” (Tenda dos milagres, p. 365).
Batista representa a voz oficial, pois é ligado umbilicalmente à Ditadura Militar: “[...]
homem de proa da situação, responsável, segundo diziam, por muitas denúncias e muitos
processos de elementos subversivos” (Tenda dos milagres, p. 365). Tendo assumido há
poucos dias a presidência da Benemérita Associação de Defesa da Tradição, da Família e da
Propriedade, o professor Batista ocupou “[...] a maior parte do discurso no elogio da
„verdadeira tradição, única efetivamente digna de culto, a da família brasileira e cristã‟”
(Tenda dos milagres, p. 366). Desta forma, era natural que o orador viesse a polemizar com
Pedro Archanjo:
A seu ver, o homenageado da noite, alvo do generoso aplauso dos presentes, jamais
devera ter ultrapassado os limites das pesquisas folclóricas: “ainda que eivadas de
imperfeições quantiosas, representam tentativa promissora e merecem ser admitidas
na prática dos eruditos”. Ao querer, porém, lavorar em messe de grandes sábios da
estatura de Nilo Argolo e Oswaldo Fontes, “grafou extravagâncias sem a mais
reduzida base de infrágil sustentação” (Tenda dos milagres, p. 366).
Ainda que destoante de todos os outros discursos da noite, aquele proferido por Batista
traz consigo o peso que o faz, de certa maneira, inquestionável: representa o discurso oficial
da Ditadura Militar. Desta forma, convém atentar para a validação das teorias alardeadas por
Nilo Argolo e Oswaldo Fontes em contraposição àquelas defendidas por Pedro Archanjo. Por
conseguinte, constata-se a continuidade de uma diretriz racista a nortear os rumos políticos do
país e a aprofundar as distâncias sociais.
Ao término da fala do acadêmico Batista, quando o Governador já proclamava o fim
da Sessão Solene, o Major Damião, já há algum tempo presente no Salão Nobre, pede a
palavra. Trazia consigo uma “[...] mal vestida mulata, em adiantado estado de gravidez [...]”
(Tenda dos milagres, p. 367). Palavra concedida, o Major discursa:
[...] tanta festa, tanto discurso, tanto elogio a Archanjo, merecedor disso tudo e de
muito mais ainda – mas eis o reverso da medalha! A família, os descendentes de
Archanjo, seus parentes, êsses morriam à míngua, vegetavam na maior miséria, na
fome e no frio. Ali mesmo, minhas bondosas Senhoras, meus ilustres Senhores,
naquela sala em festa tão grandiosa, ali mesmo padecia uma parenta próxima de
Archanjo, mãe de sete filhos, às vésperas do oitavo, viúva ainda a chorar a morte do
espôso estremecido, necessitada de médico, hospital, remédios, dinheiro para
comida dos meninos... Ali, naquela sala onde eram ouvidos tantos louvores a Pedro
Archanjo, ali...
Apontava a mulata na cadeira:
263
- Levante-se, minha filha, ponha-se de pé para que todos vejam em que estado se
encontra uma descendente, uma parenta próxima do imortal Pedro Archanjo, glória
da Bahia e do Brasil, glória da Pátria! (Tenda dos milagres, p. 368).
De certo modo, é possível afirmar que tudo o que se pretendeu neste tópico, isto é, o
confronto do vivido com a narração do vivido, do Archanjo com o Archanjo-Outro, é
sintetizado, metaforizado e exposto no fragmento acima. Uma verdade, a despeito do embuste
do Major: sem sê-la, ali estava uma filha de Archanjo, do legítimo. Como afirmou Fraga
Neto, também presente na Sessão Solene: “[...] nessas comemorações tudo fôra farsa e
embuste, um colar de absurdos. Talvez a única verdade tenha sido a invencionice do Major, a
mulata prenhe e sem comida, precisada e sestrosa, falsa parenta, parenta verdadeira, gente de
Archanjo, universo de Archanjo” (Tenda dos milagres, p. 369-370).
Por certo, a cena transcrita evoca uma imagem que é de todo familiar aos leitores de
Tenda dos milagres, qual seja, a de uma população negromestiça posta invariavelmente às
margens do Estado. Situá-la no contexto específico em que Amado o faz, metaforizada na
mulata prenhe e precisada, evoca, pois, uma relação de continuidade entre os eixos temporais
do romance: os tempos de antanho deságuam atemporais na exclusão hodierna do negro
brasileiro.
Distante quarenta anos daquele já longínquo 1928, quando Archanjo publicou os
Apontamentos sobre a mestiçagem nas famílias baianas, seu terceiro livro, o ano do seu
centenário já não destoa tanto assim daquele vivido: os discursos governamentais coincidem
e, portanto, também o corolário excludente se repete. A despeito das leis segregacionistas
pretendidas por Nilo Argolo não terem vigorado, vencidas, talvez, pela obra archanjiana, há
de se reconhecer no universo narrado pelo romancista baiano uma sociedade extremamente
polarizada, dividida, hierarquizada a partir, sim, de critérios raciais – não o fosse, por que da
necessidade de branquear Archanjo?
Assim, cabe reincidir tanto na pergunta quanto na citação: onde, na literatura
amadiana, a mestiçagem redentora que teria corrigido a “[...] distância social [...] entre a casa-
grande e a senzala” (FREYRE, 2006, p. 33), senão em uma quimérica sociedade futura que
Amado deseja projetar como esperança? Onde puros e simples encontros interétnicos como
solução para o racismo senão associados a lutas várias, à resistência diária e contínua e à
necessidade de afirmação de identidades denegadas por um poder etnocêntrico? Da mesma
forma, e principalmente, onde o apagamento do negro senão tão somente como denúncia?
No Salão Nobre do Instituto Histórico e Geográfico, a pespegar verdades entre tantos
e tantos embustes acerca de Ojuobá, Mestre Pedro redivivo no Major Damião, o rábula do
264
povo – também um herói. Talvez Amado delineie nesta personagem um novo Pedro
Archanjo, vez que os tempos não são tão outros assim: Argolo continua vivo no discurso do
acadêmico Batista, no texto da Dopping S.A., na aula da professora Dida Queiroz; na
hierarquização social e no repúdio a tudo o que é negro, enfim. Ademais, o Major não
aprendera com Ojuobá o bom e o mal da vida? Não aprendera com ele a andar para frente ao
invés de subir, como o fez Tadeu? Não aprendera com Mestre Pedro a manter-se ao lado do
povo negromestiço das ruas e ladeiras do Pelourinho, da Cidade da Bahia? Certamente, ao
menos, o Major Damião simboliza o imprescindível contraponto à sociedade que o romancista
baiano Jorge Amado conhece, sim, estruturada de forma desigual e racista. Afinal, não fora a
intervenção do Major, necessária e verdadeira, ressaltada pelo Jornal da Cidade no dia
seguinte ao da Sessão Solene, mas “[...] a peça magistral de erudição e patriotismo” (Tenda
dos milagres, p. 366) concebida pelo acadêmico Batista, ainda que por força do Regime
Militar.
Da glória de Pedro Archanjo Ojuobá, cria-se um Archanjo-Outro a quem se dedicam
homenagens e prêmios vários. Um Archanjo-Outro que empresta seu nome a ruas e escolas;
que vende refrigerantes, cachaças, jornais e o que mais seja. Um Archanjo-Outro cuja
imagem, ao fim, lega às gerações porvindouras o embuste convertido em branca verdade:
“[...] na estátua, quase branco puro, sábio oficial da Faculdade, capado e mudo, vestido com a
túnica de soldado, Pedro Archanjo, glória do Brasil” (Tenda dos milagres, p.334).
EPÍLOGO OU “MILAGRE É ISSO”
A derradeira imagem de Tenda dos milagres não é a de um Archanjo capitulado diante
do racismo que sempre combateu em vida. Não é a do Archanjo-Outro, homem branco, de
vida irretocavelmente puritana, que figura na estátua erigida em glória imortal. Também não é
a da Sessão Solene que pouco ou nada versou sobre Mestre Pedro, senão tão só pela
intervenção do Major Damião. Não!, a imagem derradeira não poderia nunca ser a de um
Archanjo vencido, tão vencedor que fora.
Uma vez encerrado o romance, irrompe o carnaval de 1969. A Escola de Samba Filhos
do Tororó sai às ruas da Cidade da Bahia para festejar, cantar e sambar a história de Archanjo.
Mais uma homenagem ao sábio baiano. Mas qual Archanjo será cantado, o verdadeiro ou o
Archanjo-Outro? Qual a história, a vivida ou o embuste?
265
Dissipam-se as dúvidas: surge Rosa de Oxalá, o grande amor. Seguem Lídio e Budião,
Valdeloir e Manuel de Praxedes, Aussá e Paco Muñoz. Passa o Afoxé Filhos da Bahia (ainda
meio órfãos esses filhos), vem com Zumbi em cima – é festa, mas também é luta: Quando
Zumbi chega / É zumbi é quem manda, lembra Jorge Ben Jor.
Kirsi de estrela d‟alva. Depois o candomblé, com seus instrumentos e orixás, suas
iaôs, o pai de santo Procópio, Ogum alto e forte colocando Pedrito para correr. Expande-se o
axé, propaga-se o aiyó. Sim, eis Archanjo! Eis Mestre Pedro Archanjo Ojuobá redivivo em
pleno carnaval.
O carnaval: há quem o diga que não seja mais do que uma outra festa qualquer. Quem
o considere pura perda de tempo; outros, ciumentos, como período de brigas várias e
reconciliações nem tão vastas entre casais. Há, ainda, quem o entenda a partir do discurso do
“ópio do povo”, fórmula simplória com entranhado cheiro de naftalina. Para Jorge Amado, no
entanto, outro, e nobre, é o sentido da Festa de Momo. Ao término da entrevista concedida ao
The Unesco Courier, por exemplo, é pedido ao romancista baiano que sugira uma imagem
qualquer de otimismo, de esperança. Sem titubeio, Amado responde: “A imagem do carnaval.
Todas aquelas pessoas de pele clara, morena ou negra, que às vezes falam em separação de
raças, mas que se reúnem, dançam juntas e finalmente casam-se umas com as outras” (THE
UNESCO COURIER, 1989, p. 7)178
. O carnaval como esperança: Eu queria / Que essa
fantasia fosse eterna / Quem sabe um dia a paz vence a guerra / E viver será só festejar –
sonha a letra de Baianidade nagô, composta por Evany e considerada um dos hinos do
carnaval baiano. Quiçá muitos outros, simples foliões de todos os anos, compartilhem destes
mesmos votos vez que ainda hoje se emocionam ao ouvir os seus primeiros versos, entoados
no Campo Grande, estenderem-se na Avenida Sete, contornarem a Praça Castro Alves,
subirem a Carlos Gomes e retornarem ao Campo Grande, sem que camarotes hierarquizem
ainda mais a festa já cindida por tantas cordas e tantos abadás.
Se, em O país do carnaval, a festa fevereira é o símbolo máximo da incapacidade do
povo mestiço brasileiro, em Tenda dos milagres ela representa o oposto: constitui a imagem
de esperança que Amado deposita no futuro deste povo negromestiço. Restituído do que
realmente fora, em meio à festa do povo negromestiço da Bahia, subvertendo a construção
ideológica de um Archanjo-Outro, “Pedro Archanjo Ojuobá vem dançando, não é um só, é
vário, numeroso, múltiplo [...]. Todos pobres, pardos e paisanos” (Tenda dos milagres, p.
374). “Milagre é isso”, diria Archanjo/Amado. “É, meu bom”, alguém responderia.
178
"The image of Carnival. All those fair-skinned, brown-skinned, black-skinned people, who sometimes talk of
the segregation of the races but who come together, dance together and finally marry each other"
266
CONCLUSÃO
Há de nascer, de crescer e de se misturar...
Jorge Amado. Tenda dos milagres.
Eis, após outras tantas, as poucas e derradeiras páginas desta dissertação.
É chegado o instante em que concluir se faz imperativo, não obstante houvesse ainda
tanto mais por escrever. Outra centena, talvez.
Concluir, palavra estranha à literatura. Como encerrar no singular estreito de uma
conclusão a amplidão plural de tudo o que é literário?
Como figurar em assertiva única, final, as tantas outras igualmente possíveis?
A arte é, por natureza, poliédrica, inexata, subjetiva e vária. Tanto mais o é o campo
específico das Letras: a despeito de tantos e tão vastos dicionários, as palavras ainda jazem
indefiníveis quando enleadas umas às outras em associações metafóricas, em arranjos
linguísticos que as projetam para além de si. Concluir não seria pretender encerrar em uma
fórmula única, tal uma equação de grau qualquer, as tantas nuanças nada matemáticas da arte
escrita?
Admita-se: necessariamente parcial e inconclusiva vem a ser qualquer abordagem
daquilo que se constitui como literário. Sobretudo as que se revestem de um caráter
interpretativo, isto é, que almejam em vão apreender e ressignificar uma metáfora em
linguagem não metafórica.
Neste plano, talvez seja interessante relembrar o último parágrafo da introdução deste
trabalho. Há exatas duzentas e quarenta e duas páginas, advertiu-se em relação a outras
leituras da obra amadiana: aquela empreendida aqui muito discorda, muito questiona, muito
rejeita. Entretanto, não o faz para negar verdades outras, apenas para defender e reforçar as
premissas aqui endossadas, os argumentos aqui desenvolvidos, as conclusões aqui
vislumbradas.
Discordar, questionar e rejeitar constituem-se, em verdade, tão somente necessidades
argumentativas dimanadas de concepções divergentes acerca de um mesmo e polêmico
objeto.
Ponto pacífico, pois: o perímetro de cada leitura limita-se na justa medida de quem a
empreende, das premissas que adota e dos argumentos que desenvolve. Assim também com as
conclusões a que se alcança.
267
Desta forma, compete ressaltar o óbvio: as conclusões a serem enunciadas
evidentemente resultam das perspectivas aqui adotadas, do olhar e das crenças daquele que as
escreve. São, portanto, parciais em absoluto. Somam-se a todas as outras, inclusive àquelas
diametralmente opostas e igualmente parciais, em um amplo e diverso mosaico a compor a
fortuna crítica do romancista baiano Jorge Amado.
Às conclusões, sem mais delongas.
Observaram-se, na primeira seção deste estudo, algumas dentre as várias
ressignificações em torno do conceito de mestiçagem ao longo da história brasileira, que
evolui de uma condição amplamente pessimista e negativista para expressão por excelência de
uma positiva singularidade nacional – o que vem a configurar a perspectiva adotada por
Gilberto Freyre. A despeito destas importantes transmutações semânticas, averiguou-se que o
lugar destinado ao negro nas teses gilbertianas não se distanciava tanto em relação àquele
estabelecido pelos teóricos do branqueamento, nos primeiros anos do século XX. Ao propor
uma nacionalidade baseada na ascendência lusitana, acrescida aqui e ali de pontuais
contribuições africanas e indígenas, o antropólogo pernambucano secundariza e mesmo
oblitera a pujança dos valores negros como demarcativos de Brasil. Por consequência, o
Mestre de Apipucos deslegitima identidades estruturadas e erigidas em torno a estes mesmos
valores, isto é, identidades que porventura se afirmem como negras – o que o faz em prol da
teorização de um povo homogêneo, dotado de feição luso-tropical.
Questionou-se, por ensejo desta discussão, se seria esta a concepção de mestiçagem
presente nos romances de Jorge Amado, ou seja, se seria possível atribuir-lhe a mesma
lusofilia de Freyre ou, mais grave, se haveria nas narrativas do escritor baiano um deliberado
apagamento da identidade negra em prol do soerguimento de um povo tão somente mestiço.
A partir da segunda seção intentou-se dar um direcionamento às indagações acima.
Desta forma, procurou-se investigar como a literatura amadiana desenvolveu em si as
temáticas da mestiçagem e do negro. Para tanto, analisou-se os cinco primeiros romances
escritos por Jorge Amado, obras em que se percebe um contínuo movimento de
ressignificação das personagens negras e mestiças.
Partiu-se, pois, de O país do carnaval, narrativa amplamente marcada por leituras a
partir de concepções biologizantes, desqualificativas do negro e do mestiço, para avançar a
uma primeira exaltação deste mesmo universo em Mar morto. Neste ínterim, constatou-se a
importância da ideologia socialista a conduzir Amado para uma nova visão de mundo, ou
seja, orientando-o à substituição das premissas biológicas por outras de ordem
socioeconômicas.
268
Deste modo, já em Cacau e Suor, narrativas que se seguem a O país do carnaval, as
personagens negras e mestiças não se afiguram como degeneradas ou portadoras de uma
inferioridade ontológica, mas como excluídas históricas e socialmente imersas em um amplo
painel da desigualdade nacional que Amado planeja evidenciar. Em outras palavras, o
romancista as apreende como representações alijadas do capitalismo – com o que as investe
de forte carga ideológica.
Embora destoantes das representações de O país do carnaval, as personagens
presentes em Cacau e Suor não avançam tanto no que concerne à ficcionalização do negro,
vez que meramente reduzidas a um “projeto ideológico” que as concebe na condição de
excluídas, o que possibilita a denúncia do capitalismo. Por conseguinte, não é o negro como
identidade que Amado focaliza, mas como lúmpen.
Ainda esta é a perspectiva norteadora de Jubiabá, apesar de esta narrativa conter um
primeiro esboço de representação do negro-sujeito. Na medida mesma em que Amado
ficcionaliza uma identidade negra para Antônio Balduíno, inserindo-o em um contexto
cultural norteado por valores afro-brasileiros, denega esta identidade quando faz Baldo
assumir os valores revolucionários da greve como superiores àqueles simbolizados no pai de
santo Jubiabá. Superiores porquanto pudessem conduzir o lúmpen à resistência e à vitória
contra a exclusão, possibilidades ausentes no campo da religiosidade afro-brasileira, discursa
Balduíno. Desta maneira, assoma ao fim do romance uma identidade baseada em uma
perspectiva de classe que se sobrepõe àquela de feição étnico-racial.
Distinto, porém, é o encaminhamento de Mar morto. Nas páginas que narram o amor
entre Guma e Lívia, não obstante a ideologia socialista seja visível em uma ou outra
personagem e a presença da greve também se imponha, em momento algum se
supraposicionam ao conjunto dos valores que condicionam a identidade daqueles homens do
mar – característica à qual se julgou por justo designá-la autonomia do representado.
Neste quinto romance, descortina-se o horizonte do que viria a constituir alguns
símbolos da literatura amadiana, a partir de finais do decênio de 1950: o protagonismo do
negro-sujeito, a preponderância da cultura e da religiosidade afro-brasileiras e a presença da
mestiçagem.
Tal percurso, por si só, já revela alguns subsídios para distinguir as obras de Freyre e
Amado no que se relacionam ao negro. Mas, como aquilo que se pretendeu aqui não foi
apenas o estudo do negro na obra amadiana, mas, antes, uma investigação acerca do lugar que
ele ocupa na representação da mestiçagem alcançada por Jorge Amado, fez-se necessário
avançar para o estudo de outros romances: Os pastores da noite e Tenda dos milagres.
269
A escolha destas duas narrativas justifica-se na medida em que ambas projetam, em
primeiro plano, uma sociedade mestiça. Ora, elucubrá-las a partir das representações do negro
iria, pois, ao encontro do proposto por esta dissertação. Caso o negro-sujeito de Mar morto
persistisse e se verticalizasse nos romances agora em destaque, seria possível afirmar uma
“concepção amadiana de mestiçagem”, singular, portanto?
Uma vez estudados os entrechos de Os pastores da noite e Tenda dos milagres,
constatou-se a presença de três diferenças entre as abordagens de Amado e Freyre no
concernente à mestiçagem. A despeito do reduzido número apontado, acredita-se que tais
diferenças se configuram de tal maneira sintomáticas e relevantes que possibilitem de per si
afirmar a singularidade da mestiçagem amadiana.
A primeira diferença diz respeito a como o romancista baiano e o antropólogo
pernambucano concebem o racismo e, por extensão, revestem a mestiçagem de uma
capacidade redentora.
Paradoxal como sempre, Freyre não isenta a sociedade brasileira do racismo,
entretanto a vislumbra como uma “democracia social e étnica” em que a mestiçagem teria
anulado as distâncias sociais e na qual o problema do negro estaria reduzido ao mulato. Neste
sentido, o racismo é algo meramente residual, de pouca monta, que pouco se percebe no
cotidiano brasileiro. A mestiçagem, por sua vez, remontaria a uma ação benfazeja pretérita
que teria aproximado socialmente, por via do mulato, os extremos do sistema escravista.
Todavia, os romances amadianos aqui elencados, a despeito de narrarem
majoritariamente uma sociedade mestiça, são pontilhados por conflitos que, em última
análise, remontam a uma natureza étnico-racial – sejam aqueles explícitos como em Tenda
dos milagres, sejam aqueles alegóricos como em Os pastores da noite. Assim, por mais que
Jorge Amado tenha defendido, em entrevistas várias, o suposto de uma vinculação do racismo
ao problema social brasileiro, do qual seria originário, o romancista baiano não diminui em
sua obra o peso que o preconceito de raça tem na configuração desigual do Estado.
Para Jorge Amado, portanto, a ação benfazeja e redentora da mestiçagem não está
localizada no passado, como em Freyre, mas projetada no futuro, em um indefinido porvir.
Ademais, a perspectiva amadiana é menos simplista do que aquela enunciada pelo
antropólogo pernambucano. Não obstante o grapiúna também identifique na mestiçagem certo
potencial revolucionário, não o faz de forma isolada como Gilberto Freyre: para o romancista
baiano não basta a existência de uma natural tendência para a mistura no Brasil; antes, é
preciso uma reorganização social das esferas de poder do país para que a mestiçagem possa,
enfim, dirimir preconceitos.
270
Diferentes, pois, são os âmbitos da mestiçagem traçados por Gilberto Freyre e Jorge
Amado. Enquanto o pernambucano a emoldura como estruturante de uma democracia racial
coetânea e generalizada, Amado localiza a democracia racial brasileira no povo, ou seja, no
amplo mosaico dos excluídos, mas a rejeita como realidade social uma vez que descreva as
elites como eivadas de preconceitos e o país como uma sociedade pejada de racismos. Não à
toa, foram estabelecidos os conceitos de “mundo negro” e “universo mestiço” ao longo desta
dissertação para a leitura da mestiçagem amadiana. O primeiro ressalta e combate o
deliberado apagamento de tudo o que é relativo ao negro no Brasil, principalmente os valores
que denotam uma identidade específica, uma vivência africano-brasileira. O segundo, por sua
vez, quimeriza uma futura sociedade mestiça, isto é, dotada de uma democracia social e
identitária – perspectiva que se depreende da noção de mestiçagem alentada por Jorge
Amado.
Especificamente o conceito “mundo negro” aponta para uma segunda e também
fundamental diferença entre Amado e Freyre. Em geral o negro gilbertiano reproduz um
aspecto de submissão à ordem vigente, adaptando-se docilmente à escravidão, o que enforma
uma representação denotativa de natural subalternidade. Ora, insubmissa é a ficcionalização
do povo de santo em face da impossibilidade de os orixás adentrarem a Igreja, como em O
compadre de Ogum. Da mesma forma, insurrecta é a manifestação dos habitantes do Mata
Gato, capitaneada por Jesuíno Galo Doido em Os amigos do povo. E o que dizer de Pedro
Archanjo, Lídio Corró, Procópio, Majé Bassan e Major Damião? Onde a passividade típica
dos negros retratados em Casa-Grande & Senzala?
Se o negro gilbertiano chancela a ordem colonial, a representação amadiana
corresponde ao exato oposto: contesta-a, rejeita-a, reescreve-a. O negro alcançado pela ficção
de Jorge Amado afirma-se, sobretudo.
Ora, na exata medida em que a personagem negra afronta a sociedade racista e
excludente para se afirmar, estabelece-se a terceira e principal distinção entre os universos de
Jorge Amado e de Gilberto Freyre, qual seja, o lugar do negro.
A despeito da ênfase com que Gilberto Freyre focaliza o negro em suas obras, não é
bem um povo afro-brasileiro dotado de um ethos negro que se projeta e vivifica a partir de
suas tantas páginas. Antes, um povo homogeneamente mestiço sob a diretriz de uma
genealogia lusitana – daí Freyre reconhecer adaptações e “amolecimentos” promovidos pelo
negro e pelo indígena à cultura do branco colonizador, mas rejeitar vislumbrar um Brasil que
se teça primordialmente pelos valores culturais do negro ou do índio.
271
Noutro plano situa-se o Brasil de Amado. Após as leituras empreendidas aqui acerca
de Os pastores da noite e Tenda dos milagres, obras na quais se buscou ressaltar como os
enredos são condicionados por valores culturais negros, é possível afirmar não apenas o
protagonismo de personagens negras, mas, também, o protagonismo de um ethos negro.
Ora, o termo mestiçagem é, em si, problemático porquanto historicamente implique
preconceitos, apagamentos e branqueamentos dissimulados. Não sem motivo, o ideário da
“mestiçagem” quase invariavelmente está relacionado com a manutenção do poder e da
ordem dominantes, pretensamente brancos.
Jorge Amado, porém, alcança enunciá-la de forma singular, isto é, concebê-la e
representá-la livre das incidências estigmatizantes ou obliterantes que tradicionalmente o
conceito comporta. No que concerne especificamente ao negro, ao invés de desvanecê-lo em
tons mais claros de pele e cultura, o romancista baiano o ficcionaliza na justa medida dos
valores culturais que dimanam do continuum África-Brasil e que delimitam uma identidade
negra na margem oeste do Atlântico.
O povo que fulgura nesta concepção singular de mestiçagem amadiana não é, portanto,
tão somente mestiço: expande-se para além das várias limitações deste conceito na medida em
que se configura, se assume e se afirma sobretudo negro; um povo negromestiço.
272
REFERÊNCIAS
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz. A invenção do Nordeste e outras artes. 5.ed. São
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