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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS- CAMPUS I PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDO DE LINGUAGENS ANTONIO CARLOS MONTEIRO TEIXEIRA SOBRINHO UM POVO NEGROMESTIÇO OU O QUE HÁ DE SINGULAR NA MESTIÇAGEM AMADIANA Salvador 2012

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA

DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS- CAMPUS I

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDO DE LINGUAGENS

ANTONIO CARLOS MONTEIRO TEIXEIRA SOBRINHO

UM POVO NEGROMESTIÇO OU O QUE HÁ DE SINGULAR NA

MESTIÇAGEM AMADIANA

Salvador

2012

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ANTONIO CARLOS MONTEIRO TEIXEIRA SOBRINHO

UM POVO NEGROMESTIÇO OU O QUE HÁ DE SINGULAR NA

MESTIÇAGEM AMADIANA

Salvador

2012

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Estudo de

Linguagens, Leitura, Literatura e Identidades, do Departamento de

Ciências Humanas, Campus I, da Universidade do Estado da Bahia,

como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre.

Orientador: Prof. Dr. Carlos Augusto Magalhães

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FICHA CATALOGRÁFICA

Biblioteca Central da UNEB

Teixeira Sobrinho, Antonio Carlos Monteiro

Um povo negromestiço ou o que há de singular na mestiçagem amadiana / Antonio Carlos

Monteiro Teixeira Sobrinho . – Salvador, 2012.

285f.

Orientador : Prof. Dr. Carlos Augusto Magalhães.

Dissertação (Mestrado) – Universidade do Estado da Bahia. Departamento de Ciências

Humanas . Campus I. 2012.

Contém referências .

1. Miscigenação - Brasil. 2. Mestiçagem - Brasil. 3. Negros - Identidade racial. 4. Brasil -

Relações raciais. I. Magalhães, Carlos Augusto. II. Universidade do Estado da Bahia,

Departamento de Ciências Humanas.

CDD: 305.800981

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ANTONIO CARLOS MONTEIRO TEIXEIRA SOBRINHO

UM POVO NEGROMESTIÇO OU O QUE HÁ DE SINGULAR NA

MESTIÇAGEM AMADIANA

BANCA EXAMINADORA

Prof. Dr. Carlos Augusto Magalhães (orientador)

Universidade do Estado da Bahia

Profª. Drª. Lícia Soares de Souza

Universidade do Estado da Bahia

___________________________________________________________________________

Prof. Dr. Eduardo de Assis Duarte

Universidade Federal de Minas Gerais

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em

Estudo de Linguagens, Linha 1 – Leitura, Literatura e

Identidades – do Departamento de Ciências Humanas,

Campus I, da Universidade do Estado da Bahia, como

requisito parcial para obtenção do grau de Mestre.

Orientador: Prof. Dr. Carlos Augusto Magalhães

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Aos meus pais, Célia (Iyá mi axexe) e Eduardo (Babá mi axexe);

À minha avó, Didi;

A Nerinha, igualmente mãe;

A Bi, afilhada.

Ao silêncio de todas as madrugadas

A Jorge Amado

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AGRADECIMENTOS

A Olorum Olodumare,

pela vida e pela família,

por ontem, por hoje e por amanhã;

Aos ancestrais, Babá Olokotun ati Babá Alapalá awon Ilê Asipá,

pela alegria, pela proteção e pelas bênçãos,

por sempre me responderem que eu nunca estaria só;

A Exu,

pelas certezas e

por todos os caminhos abertos;

A Logun Edé, meu eledá,

“sabido, puxou aos pais”,

pelo abebê e pelo ofá;

A Xangô,

pelo oxê e pelo axé;

pelos porquês que só Ele sabe

A Oxum,

pela contramão em Porto Alegre,

“quem tem santo é quem entende”

A todos os Orixás

Ao Ilê Asipá

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Em determinado momento da fase de conclusão da graduação, agradeci a meus pais de

forma simples, porém muito sincera e extremamente significativa. Disse-lhes, e registrei por

escrito, que lhes era muito grato por todo o esforço que empreenderam para que eu pudesse

estudar em uma das melhores escolas de Salvador, o Colégio Antônio Vieira. Disse-lhes ainda

que era igualmente muito grato por nunca me terem pedido que fizesse este ou aquele curso,

que fosse médico ou advogado. Sempre que possível renovarei estes agradecimentos; afinal,

não fosse por eles, meus pais, onde eu estaria agora? Mas, dessa vez, quero ser um pouco

mais específico: Ai, se vocês adivinhassem e eu soubesse dizer o quanto são importantes nesta

minha caminhada, nesta minha vida... Agradeço, minha mãe, por um afago que a senhora me

fez em um momento difícil, de quase desistência, mas que me pôs novamente em pé e aqui

estou, tantos anos depois e ainda em pé. Agradeço, meu pai, por um “não” que o senhor me

deu, assim mesmo, sem exclamação alguma, sem qualquer alteração na voz ou na face, em

um momento nosso difícil, e que me fez entender o porquê de tanto esforço para que eu

estudasse. Tudo que eu vier a ser, é pela senhora, minha mãe. Tudo o que eu vier a ser, é pelo

senhor, meu pai. Valeu a pena, minha mãe. Valeu a pena, meu pai. Muito obrigado. Eu os

amo.

Que problemas existem e que são vários, não há pessoa nesse mundo que duvide.

Logo cedo todos nós aprendemos esta nossa lei. Aprendemos também, e isso é o mais

importante, que não há problema nesse mundo que não se supere. Como todo mundo, aprendi

essas duas verdades com a vivência de cada dia. Mas, além destes dois ensinamentos, aprendi

também que a melhor forma de não capitular é rir dos problemas que surgem, independente

de quais sejam. E isso, eu aprendi com minha avó, Didi. Não conheço quem tenha tido mais

motivos de tristeza nesta vida, mas também não conheço quem tenha o riso e a alegria mais

fáceis, quem tenha mais vontade de viver. Minha avó, muito obrigado pelo exemplo de vida

que a senhora oferece aos filhos, netos, bisnetos.

E o que dizer sobre aquelas pessoas que, sem vínculo de sangue nenhum com a gente,

sem nos ter gestado por meses, se transformam também em nossas mães? Que tipo de relação

é essa que escapa, que foge à compreensão exata das coisas, mas que, por certo, o orun

explica e o coração, ai, o coração sente? Quantos mundos outros, além daquele pequenininho

que é o meu, eu pude conhecer e vivenciar somente porque você estava ao meu lado, Nere?

Quantas outras verdades eu ouvi e aprendi porque só você as saberia dizer, porquê só você as

tinha vivido? Olha, Néu, olha o que eu escrevo porque também é por você que eu posso

escrever. Que há de importar o sangue, Néu? Muito obrigado, é seu filho quem agradece.

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Sophia, Duda e Bi; prima, irmã e afilhada, uma escadinha. Ai dos momentos mais

tristes e exaustivos, daqueles ante os quais nada resta a fazer senão desistir, esquecer, deitar,

dormir... ai desses momentos se não fosse o riso das crianças. “É a vida, é bonita e é bonita”,

canta Gonzaguinha enquanto as três me abraçam, me livram do cansaço e me convidam a

viver. Eu também Gonzaguinha, eu também “fico com a pureza da resposta das crianças...”.

Muito obrigado, minhas princesas.

“Feitos um pro outro / feitos pra durar / uma luz que não produz... sombra”. Lembra

do começo, lá do beijo sem palavras, nem um “oi”, sequer? Das artimanhas do destino para

que nos conhecêssemos? E já se vão quase seis anos, Dadai. Quanto já vivemos... quantos

momentos difíceis já superamos... e aqui estamos. E o que nos há de separar? Estamos apenas

no começo, lembra? Sempre no começo. E quem diria que um dia eu lhe agradeceria

justamente pela... paciência? Sim! pela paciência por esses últimos dois anos e por, mesmo

quando eu estava longe, lá no outro canto deste país, não ter deixado de estar ao meu lado. É

muito bom ter você em minha vida. Muito obrigado, amor.

Quem me conhece de perto sabe, a despeito do meu ar expansivo, que não sou de

confiar nas pessoas de imediato, que há certa demora até que eu acredite de verdade em

alguém – raras são as vezes em que chego deveras a levar fé. Não que desconfie de tudo e de

todos, mas pelo simples zelo que tenho pela palavra amizade. Não sou do tipo que se pretende

cercado de vinte, trinta pessoas sem que lhes possa confiar um segredo, ou um pedido de

ajuda quando preciso for. Prefiro andar desacompanhado por essas ruas, mas com a certeza de

não estar sozinho na vida, de ter sempre alguém para me sustentar quando minhas duas pernas

falharem. Assim, que palavras há para dizer dos amigos que tenho, com muito orgulho e

amor, há mais de vinte, quinze e dez anos? Esses pastores das noites da Bahia...ai... quantas

cervejas lhes devo, por estes dois anos que quase não bebi? Quantas noites se prolongaram

para além da hora devida porque faltamos ao compromisso de pastoreá-las ao descanso

diurno? Nessa vida, ensina Jorge Amado,“só se vive o tempo da amizade”. De resto, pouco

importam os sucessos, as fortunas, as capas de revista, os prêmios... Que há de ser tudo isso

sem amizade? Sem aquelas pessoas que riem conosco, quando rimos; que choram conosco,

quando choramos; que estão do nosso lado quando nós mesmos não estamos? Antenor, Davi,

Kpenga, Salmão, Ivan, Leonardo, Leopoldo, Zenon, Tiago, Quézia e Velame: vocês não

sabem o quanto eu agradeço. Muito obrigado, meus irmãos.

Prof. Ms. Gildeci de Oliveira Leite, meu amigo, meu irmão de santo, quem tanta vezes

me estendeu a mão, me mostrou caminhos, me deu força e coragem quando esta dissertação

era apenas um projeto, a quem eu tanto devo – Muito obrigado meu irmão, axé!

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José Félix dos Santos, Otun Alagbá n‟Ilê Asipá, Mãe Nídia de Iemanjá e Mãe Cida de

Nanã, são tantos os agradecimentos que lhes devo. Gostaria que pudessem saber o que sinto

quando adentro o Ilê Asipá, salvo os orixás, e me ponho a escutar as histórias que circulam, a

conversar as conversas que surgem. Sensação indescritível de um bem que se faz à alma, ao

corpo, sensação de estar em casa. Muito obrigado por tudo, axé!

A Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), que me

concedeu uma bolsa fundamental para as leituras que desenvolvi. Muito obrigado.

Ao meu orientador, Prof. Dr. Carlos Augusto Magalhães, de comentários sempre tão

precisos, de ideias sempre tão certeiras, de indicações sempre tão necessárias. Que seria deste

Mestrado, sem sua orientação? Por acaso eu já teria ultrapassado os limites sufocantes do

primeiro parágrafo? Muito obrigado, Carlos, de coração.

Ao Prof. Dr. João Antônio de Santana Neto e à Prof. Drª Rosa Helena Blanco

Machado, dos quais fui bolsista em meus tempos de graduação e os quais me ensinaram a

fazer pesquisa. Tenham a certeza de que em qualquer das palavras deste texto – e são tantas,

eu bem sei – vocês estão presentes. E continuarão, quaisquer que sejam as palavras que eu

venha a escrever em outras pesquisas, em outros projetos. Muito obrigado, professores.

Da mesma forma, agradeço enormemente ao Prof. Dr. Décio Torres Cruz que aceitou

me orientar em minha primeira investida na pesquisa literária. Que me ensinou algo que

levarei sempre comigo: “O limite daquilo que você pode dizer sobre o texto, é o limite que o

texto lhe permite dizer”. Às vezes, para quem estuda literatura, o óbvio precisa ser ensinado.

Muito obrigado, professor.

À Prof. Drª Verbena Maria Rocha Cordeiro por ter me concedido a oportunidade, via

PROCAD, de uma bolsa para cumprir Mestrado-Sanduíche na Pontifícia Universidade

Católica do Rio Grande do Sul, estágio que se mostrou essencial a esta pesquisa, tantas as

informações que lá obtive. Muito obrigado, professora.

Agradeço imensamente também à Prof. Drª Ana Maria Lisboa de Mello pela recepção

e pelo cuidado que teve comigo e pela orientação em terras gaúchas. Muito obrigado,

professora.

Agradeço também à Secretaria da Pós-graduação em Letras da Pontifícia Universidade

Católica do Rio Grande do Sul, no nome de Mara Rejane Martins Nascimento, sempre tão

prestativa. Aproveito o mesmo parágrafo e agradeço ao pessoal responsável pelo serviço de

comutação da Biblioteca Central da PUCRS, que me disponibilizou textos quase impossíveis

de conseguir: Diego da Silva Machado, Eduardo Bernicker Costa e Joyce Ferrari Pinheiro.

Muito obrigado a todos.

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Ao pessoal que me acolheu na HousingRS, em especial Isaac Verdú, Arhur Chiochetta

Licks, Anderson Siqueira Pereira, Eduardo Henrique Spies e Eduardo Weber Carlos. Quase

me sinto em casa, na minha Bahia: faltavam, porém, a Baía de Todos os Santos e o azeite de

dendê – nada pode ser perfeito. Muito obrigado.

Agradeço aos colegas de PPGEL que viram este projeto ainda como um embrião e o

ajudaram a crescer.

Agradeço aos colegas de graduação, dos quais sempre guardo ótimas lembranças.

À secretaria do PPGEL. O que seria possível neste programa sem Camila e Danilo?

Quem responderia tantas vezes – e com tanta paciência – às minhas dúvidas a respeito dos

próximos passos burocráticos a serem dados? Vocês são parte fundamental disso tudo. Muito

obrigado.

A Lourdes de Fátima, ex-professora de Literatura do Colégio Antônio Vieira e ex-

colega da Academia Vieirense de Letras. As “quintas de magia”, quando nos dedicávamos à

literatura e não às enfadonhas regras das Escolas Literárias, se perpetuam ainda hoje, todos os

dias. Muito obrigado, professora.

Aos meus alunos do componente curricular Literatura Brasileira no Século XX,

disciplina que ministrei no Curso de Letras Vernáculas da UNEB – CAMPUS I – em função

do Estágio Tirocínio Docente. Guardarei sempre as lembranças. Em todas as turmas que

venha a lecionar, vocês estarão presentes.

Por fim, um agradecimento especial a todos aqueles que foram meus alunos nos quatro

anos em que fui professor de literatura do Cursinho Universidade Para Todos. Se este projeto

foi pensado, inscrito na disputa por uma vaga no Mestrado, aprovado e agora segue para

defesa, deve-se àqueles meus estudantes que se emocionavam com Pedro Archanjo Ojuobá,

que se viam em Tenda dos milagres. Não fosse por eles, nem sei o que estaria hoje estudando.

Muito obrigado!

Muito obrigado a todos.

Axé!

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Nestes meus oitenta e... quase oitenta e dois

anos de vida, a maioria deles dedicada à luta

contra o racismo, eu aprendi que só há uma

maneira possível de terminar com isso. Não é

uma maneira fácil. É na mistura de sangue. Na

mistura de raças. Na mistura de credos, na

mistura de culturas que um dia nós chegaremos.

Disso eu estou inteiramente convencido. É por

isso que eu dou uma importância tão grande ao

que se passa no Brasil como mestiçagem, como

mistura de raças.

Jorge Amado.

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RESUMO

A pesquisa que estas páginas encerram aborda a temática da mestiçagem na obra amadiana

para compreender quais sentidos reclama. Isto é, investiga-se o que, de fato, vem a significar a

proposta literária do romancista Jorge Amado acerca da representação de um país mestiço. A

hipótese principal que guia esta investigação concerne às diferenças existentes entre o que

Amado evoca, propõe e representa como um ethos mestiço e as evocações, propostas e

representações pertinentes à perspectiva do antropólogo pernambucano Gilberto Freyre.

Assim, destacando-se o protagonismo negro na literatura de Amado, rejeita-se a opção pelo

luso-tropical gilbertiano e propõe-se que a ficcionalização da mestiçagem pelo romancista

baiano comporta em si uma negromestiçagem. Para atestar a funcionalidade desta designação,

busca-se investigar os lugares do negro na prosa amadiana e a quais emanações de sentido

estes lugares estão associados.

Palavras-chave: Jorge Amado, mestiçagem, negro, candomblé, Gilberto Freyre

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ABSTRACT

This research addresses the theme of miscegenation at Amado‟s novels to understand which

way it relates. It investigates what Jorge Amado‟s writing proposal on the representation of a

mixed country really means. The main hypothesis guides into the differences between what

Amado evokes, proposes and represents as a mixed ethos and evocations, proposals and

representations to the perspectives of the anthropologist Gilberto Freyre. Thus, highlighting

the protagonism of black people at Amado‟s work rejects the option by Freyre Portuguse-

tropical‟s thesis and proposes that fictional miscegenation by Amado bears a

“blackmiscigenation”. To demonstrate this designation, we seek the places of black people at

Amado‟s prose and which emanations are associated with these places.

Keywords: Jorge Amado, miscegenation, black people, Candomble, Gilberto Freyre

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 14

PARTE I – DOS PERCURSOS 25

1 UM CONCEITO PARA UM PAÍS 26

1.1 PREÂMBULO OU “MILAGRES DO BRASIL SÃO” 27

1.2 SIM, UMA REVOLUÇÃO. EM TERMOS, PORÉM. 34

1.3 DOIS AUTORES, UM CONCEITO, DOIS OLHARES 75

2 ENTRE O SOCIALISMO E O NEGRO SUJEITO 83

2.1 O PAÍS DO CARNAVAL OU DE JERÔNIMO E DO BRASIL 85

2.2 DAS IMPLICAÇÕES DE UMA GUINADA À ESQUERDA 105

2.3 DE NARRADO A HEROI OU DA ESTIVA E DO SAVEIRO 122

PARTE II – DO POVO NEGROMESTIÇO 156

3 DOS NEGROS SENTIDOS EM OS PASTORES DA NOITE 157

4 TENDA DOS MILAGRES, ROMANCE PARADIGMÁTICO 190

4.1 DOS SENTIDOS DO CANDOMBLÉ 197

4.2 UM “UNIVERSO MESTIÇO”, UM “MUNDO NEGRO” 226

4.3 UMA VERDADE, A DESPEITO DO EMBUSTE 252

EPÍLOGO OU “MILAGRE É ISSO” 264

CONCLUSÃO 266

REFERÊNCIAS 272

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INTRODUÇÃO

É na mistura de sangues. Na mistura de raças.

Jorge Amado.

A epígrafe matriz, aquela que enceta, abarca e anuncia as páginas vindouras desta

dissertação, remonta às considerações tecidas por Jorge Amado acerca de si e de sua obra para

o filme de João Moreira Salles. O segmento outrora destacado e em parte anteposto

novamente a esta introdução desvela não apenas o autor baiano e seus romances, não só a

propósito de enredos e personagens, mas alude igualmente à feição utópica que reveste e

caracteriza a concepção amadiana de mestiçagem.

Tomem-se em separado, por representativas a esta dissertação, as últimas palavras

acima. O qualificativo “amadiana”, interposto aos vocábulos “concepção” e “mestiçagem”,

restringe o alcance do primeiro termo, circunscrevendo-o aos limites da individualidade. Da

mesma forma, incide também sobre o segundo, diferenciando-o de apropriações outras.

Provém desta sintaxe uma definição precisa, quase matemática: a vinculação adstrita daquilo

sobre o que se discorre a alguém, a quem se refere.

Para além das divagações meramente sintáticas do parágrafo anterior, que resultam

ensimesmadas, quase tautológicas, abre-se a possibilidade de estudar e compreender a

contenção advinda do adjetivo como demarcativa real de singularidade – preocupação

primeira desta pesquisa. Neste plano, importa menos o efeito linguístico conferido ao

substantivo e ao complemento por ação do restritivo, isto é, o de correlacioná-los a outrem, do

que uma questão de ordem estritamente comparativa: considerando-se a literatura de Jorge

Amado a partir dos assentimentos e das dissensões frente a percepções outras de mestiçagem,

subsiste a leitura de uma “concepção amadiana”, como se abalizasse uma especificidade?

Subjacente a esta, uma segunda questão: quais traços de seu universo ficcional viabilizam esta

singularidade, se existente?

Eis as indagações norteadoras dos últimos dois anos, durante os quais foi desenvolvida

a pesquisa a que, por fim, designou-se um povo negromestiço ou o que há de singular na

mestiçagem amadiana. Perguntas cujas respostas, indiciam-nas, de antemão, o título: quanto à

“concepção amadiana de mestiçagem”, sim, é possível atestá-la, o que a convalida

singularmente. Por sua vez, em relação ao que a possibilita e estrutura, a respeito do que a

diferencia e singulariza, conclui-se pelo signo “negromestiço”, de composição aglutinante,

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denotativo de uma confluência identitária ímpar, posto não implique o apagamento do

primeiro termo; antes o realce e a ele confira proeminência.

Conquanto se reconheça os sacrifícios do estilo e da elegância da escrita decorrentes

da repetição do radical “mestiç”, a escolha do título desta dissertação não se fez ao acaso:

antes, por admitir entrever em si o jogo de perguntas e respostas que norteia a pesquisa aqui

empreendida. Assim, sua primeira parte, “um povo negromestiço”, complementa e responde o

tácito sentido interrogativo da segunda, “o que há de singular na mestiçagem amadiana”. Por

outro lado, a ausência de interrogação, ao fim desta segunda parte, comporta a possibilidade

de uma equivalência afirmativa, a relacionar ambos os segmentos. Neste caso, depreende-se:

“Um povo negromestiço é o que há de singular na mestiçagem amadiana”, substituindo-se

assim a conjunção alternativa pelo enfático verbo de ligação.

A centralidade atribuída à qualificação negromestiça da representação amadiana de um

povo, a partir da qual se verifica sua singularidade, solicita ou mesmo reivindica algumas

linhas que a justifiquem1.

A mestiçagem, como mero substrato biológico que pouco ou nada acrescenta ao

processo de desenvolvimento e identificação dos povos, salvaguardados os seus períodos de

isolamento e impermeabilidade, conforma uma prática universal e atemporal que, a rigor,

nada significa para além do fenótipo. Contudo, ao ser vertida em discurso para afirmar,

distinguir ou rejeitar identidades biológico-culturais, desloca-se do genético ao ontológico e

deste à prática social cotidiana, instância em que, associada à ideia de raça, assume uma

feição política, colonialista e eurocêntrica.

O conceito cientificista de raça, sobrelevado a pedra de toque das potencialidades de

um povo, estabelece uma rígida hierarquia que subdivide a humanidade em grupos estanques,

condicionados por supostas aptidões civilizacionais inatas, ou por sua ausência – o que

secundariza ou mesmo subtrai os fatores históricos, políticos, econômicos e socioculturais.

Decorre desta perspectiva uma humanidade incontornavelmente cindida entre uma minoria

1 A despeito do termo “povo” configurar uma acepção problemática vez que comumente atrelada a discursos

ideológicos e políticos, além de constituir-se em uma abstração semântica de contornos quase sempre

indefiníveis, sua utilização neste trabalho está de acordo com a proposta amadiana, qual seja, a ampla

representação dos excluídos. A despeito das diferenças identitárias no interior deste mosaico a que Amado

designa povo, o romancista baiano o compreende como dotado de uma única e mesma humanidade (TAVARES,

1980, p. 183) – daí a possibilidade do amálgama pretendido pelo escritor grapiúna. Desta forma, Araújo (2008,

p. 76) assevera: “A solidariedade para com os humildes e espoliados social e economicamente tornou Jorge

Amado uma espécie de exegeta folhetinesco dos oprimidos, sejam prostitutas ou demais habitantes da beira do

cais, como os marinheiros, boêmios, bêbados, mestiços, pescadores, conjugados à defesa autoral dos meninos de

rua, mendigos, artistas, capoeiristas, rebeldes em geral, os poetas populares e, especialmente, os cultores do

candomblé, isolados e confundidos na sociedade patriarcal com seus valores ortodoxos de supremacia branca e

religião oficial”.

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civilizada e superior, porquanto branca, e uma massa não-branca atávica, primitiva,

degenerada e incapaz.

Aceitas tais premissas, a mestiçagem tenderia a ser repudiada vez que resultaria

invariavelmente efeitos negativos. Os teóricos do cientificismo europeu efetivamente a

imaginam a partir de uma relação antonímica com a ideia de pureza racial, que assume, tanto

maior, a feição de um invólucro da superioridade de um povo. Desta forma, porquanto

supostamente conspurque e dilua a almejada “pureza”, a miscigenação entre povos distintos é

revestida de um simbolismo contraproducente e degenerativo que engendra, de forma

inescapável, seres de natureza inferior e deletéria à dos progenitores. Tal perspectiva pode ser

observada em diversos autores brasileiros da virada do século XIX para o XX, mas,

principalmente, em Nina Rodrigues (1977; 2008), cujo pessimismo em relação ao país é

sintomático.

A ação insalubre da mestiçagem seria, por último, tanto mais danosa quanto maior

fosse a diferenciação fenotípica e de cultura entre as populações em contato – o que,

consideradas as premissas de tal pensamento, extremava em antípoda insolúvel a “raça

branca”, convencionada como superior, e a “raça negra”, cuja humanidade não consistia um

parti pris da época.

No que concerne ao Brasil, data da década de 1870 o advento das teorias cientificistas

baseadas na ideia de raça e, do decênio seguinte, sua rápida popularização, alcançada via

literatura naturalista (SÜSSEKIND, 1984).

Não é difícil inferir a quais demandas correspondiam a importação destas teorias, se

observados os dados que seguem: a Lei Eusébio de Queiróz, em 1850, seguida pela Lei do

Ventre Livre, em 1871 e, por último, a Lei dos Sexagenários, em 1885, estatutos que em

conjunto configuravam a política emancipacionista do Segundo Império. Ainda que o fim do

regime escravocrata fosse protelado aos últimos dias da centúria, tais indícios já o mostravam

inevitavelmente próximo (HOFBAUER, 2006). Ora, à substituição do trabalho escravo pelo

livre, seguir-se-ia, em tese, um reordenamento social que, em última análise, a médio ou

longo prazo acarretaria a inserção do ex-cativo na sociedade capitalista, o que estruturaria,

assim, novas esferas de poder. Obviamente, tal perspectiva não agradava às elites

escravocratas, ciosas do poder que detinham e das relações senhoriais de que gozavam. Da

mesma forma, o fim da escravidão não era benquisto por boa parte da população livre

brasileira, cuja imagem arraigada do negro refletia antes a condição servil do que humana

(AZEVEDO, 2004). Neste sentido, as teorias raciais permitiram equacionar as relações

assimétricas de poder, próprias do sistema escravista, para além de sua extinção. Tais

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distinções passam a ser vistas não mais a partir de um estatuto jurídico do qual resulta o

senhor e o escravizado, mas, sim, a partir do princípio cientificista da divisão imanente da

humanidade que estabelece a dicotomia entre superiores e inferiores, brancos e negros, como

demonstram os estudos de Hofbauer (2006), Schwarcz (1993) e Guimarães (2008).

Apesar de resolvida a querela do lugar destinado ao negro no país de elites brancas,

estas mesmas teorias ocasionaram empecilhos ante o intento de se pensar um projeto de nação

brasileira. Afinal, em um país tão indelevelmente marcado pela mestiçagem, e se esta

significa degeneração, como pensar em futuro? Como legitimar uma civilização brasileira?

Resulta deste problema conceitual a teoria do branqueamento, através da qual a mestiçagem é

positivada, desde quando incida sobre o contato de uma população mestiça e outra branca, de

modo que a segunda aja sobre a primeira “purificando-a”. Justifica-se, deste modo, a

intensificação da política imigrantista após o 13 de Maio, a qual, aliás, já vinha há décadas

sendo testada e aplicada em fazendas do interior de São Paulo (AZEVEDO, 2004). Neste

contexto, a ideologia do branqueamento identifica-se com as propostas de futuro, progresso e

civilização, conceitos pensados como apanágios da raça branca. Tal signo incorpora um

caráter estritamente racial, uma vez que “raça” concentra em si todas as explicações de

sucessos e fracassos.

A partir dos anos 1930, com o crescente descrédito do conceito de raça e a

consequente valorização dos aspectos mestiços de corpo e cultura do povo brasileiro, a

ideologia do branqueamento, sem deixar de existir, passou a operar no sentido de sua

pseudoautonegação. Isto é, a adoção de um discurso oficial pelo Estado e endossado pelas

elites de uma nação mestiça, permeada por zonas de confraternização entre negros e brancos,

ex-senhores e ex-escravos, escamoteia e dissimula as tensões sócio-raciais estruturantes da

exclusão do negro e da afirmação do branco – é o que se percebe, por exemplo, a partir da

leitura da obra de Gilberto Freyre (2000, 2004a, 2004b e 2006). A seguir este discurso, a

despeito das dessemelhantes oportunidades sociais reservadas a negros e brancos, o Brasil não

se conformaria um país racista, até mesmo pela imprecisão em delimitar e separar as “raças”,

amalgamadas secularmente. É neste sentido que Liv Sovik (2009, p. 38) considera que aqui a

exclusão racial “[...] fala em duas vozes: uma, no privado, sobre o valor da branquitude e

outra, pronunciada em alto e bom som, sobre a noção de que cor e raça são de importância

relativa já que a população é mestiça”. A pesquisadora observa:

Em outras palavras, o discurso da mestiçagem não significa que os setores

dominantes se imaginam sempre como não brancos. A adoção do discurso da

mestiçagem é uma antiga concessão, incorporada no decorrer dos anos pelo senso

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comum, à presença maciça de não brancos em uma sociedade que valoriza a

branquitude e uma antiga e atual forma de resistência ao olhar eurocêntrico. Esse

reconhecimento não desbanca os brancos das classes dominantes. O que um dia foi

uma vitória cultural e política contra a opressão eurocêntrica já foi capturado pelo

conservadorismo reinante e a naturalização de relações sociais racistas. [...] Reiterar

que, por ser um país mestiço, não há ódio racial serve para reforçar esse controle dos

sentidos da vida em sociedade (SOVIK, 2009, p. 39).

Evidentemente, as relações raciais estruturadas ao longo dos séculos no país

perpassam inclusive a produção literária brasileira. Assim, é possível e deveras importante

atentar para as construções feitas a respeito do negro e do mestiço, uma vez que possam

conotar estigmas que se perpetuam ainda hoje através de obras consideradas clássicas, como

O cortiço, por exemplo. O brasilianista Raymond Sayers comenta:

A literatura reflete todos os aspectos da situação racial brasileira: a importância

numérica dos negros; aspectos da cultura africana que sobreviveram a despeito de

barreiras temporais e espaciais; integração em vários níveis e de vários tipos;

relacionamento afetivo e hostil entre as raças; a permanência nos brancos do

sentimento de culpa pela crueldade da escravidão e, mais tarde, da exploração dos

negros pelos brancos; a posição do mulato em relação ao branco e ao negro; as

atitudes raciais refletidas na língua, nos chavões e nos provérbios; e a integração do

negro nos movimentos de luta social. Tudo isto está amplamente documentado em

dúzias de obras literárias de todos os gêneros (SAYERS, 1983, p. 179-180).

Neste sentido, muitas são as imagens que se depreendem da literatura nacional capazes

de conotar exclusão e apagamento do negro; outras, igualmente várias, apontam para a

resistência e afirmação, como evidenciam os estudos de David Brookshaw (1983), Gregory

Rabassa (1965), Domício Proença Filho (2004) e Eduardo de Assis Duarte (2011), entre

outros. De uma forma ou de outra, caso se mire apenas as representações literárias de um

Brasil mestiço, é possível observar, no que concerne à ficcionalização do negro, uma intensa

produção de estigmas ou um silencioso apagamento da identidade étnica.

É precisamente neste ponto que o vocábulo negro, acrescido a mestiço, compõe uma

particularidade amadiana e torna-se relevante nesta pesquisa. De certo modo, é possível

afirmar que a mestiçagem amadiana destoa do discurso fundante do Brasil mestiço justamente

porque quando este se pretende patriarcal, Amado o descreve em uma visada popular, como

destaca Albuquerque Júnior (2011, p. 247). Acrescente-se: quando o país se pretende branco,

Amado o descreve negro.

Compete ressaltar que um estudo sobre a mestiçagem na obra amadiana não se

constitui, a princípio, em uma novidade investigativa. Eis um tema por diversas vezes

explorado, como atestam os estudos de Brookshaw (1983), Ordep Serra (1995), Ilana

Goldstein (2003), Rita Olivieri-Godet (2004), Ana Rosa Ramos (2004), Ana Maria Machado

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(2006), Humberto Lima de Oliveira (2006) e Cid Seixas (2006). Some-se, ainda, a recente

dissertação de Carolina Fernandes Calixto (2011).

À grande fortuna crítica elencada, vem a se incluir a análise aqui empreendida.

Entretanto, o que se pretende não é simplesmente elucubrar acerca da mestiçagem presente

nos romances amadianos, mas perscrutar o lugar e o sentido do negro. Em outras palavras,

compete abordar aqui as representações das personagens mestiças e das culturas sincréticas

para observá-las à luz do que revelam de personagens e culturas negras uma vez que “[...] a

arte pode escolher tudo quanto a ideologia dominante esquece, evita ou repele” (BOSI, 2002,

p. 122). Nesta direção, esta dissertação dialoga muito proximamente com os trabalhos

desenvolvidos por Maria Luísa Nunes (1973), Jorge Allen-Dixon (2006) e Gildeci de Oliveira

Leite (2006, 2008, 2010 e no prelo2), que revelam sentidos negros nas entrelinhas amadianas,

bem como com Seixas (2006, p. 40), para quem é possível vislumbrar “[...] um virtual projeto

de demolição do eurocentrismo” na obra elaborada por Jorge Amado.

De acordo com Bosi (2002, p. 118), resistência é um “[...] conceito originariamente

ético, e não estético”, entretanto, a “[...] translação de sentido da esfera ética para a estética é

possível [...] quando o narrador se põe a explorar uma força catalisadora de vida em

sociedade: os seus valores” (BOSI, 2002, p. 120. Grifos do autor). Nesta perspectiva, a

literatura pode vir a exprimir a resistência de um grupo oprimido, desde que assuma para si os

valores pertinentes a este grupo.

Ora, quando se revelam, entre as linhas de entrechos amadianos, sentidos concernentes

à mitologia e ao ethos do candomblé, temáticas que vêm a ser predominantes em muitas

narrativas, não equivale a assumir como negros os valores presentes na escrita de Jorge

Amado?

Nesta mesma medida, a literatura amadiana identifica-se com o signo de “literatura

como missão”, de Nicolau Sevcenko (1983), no que se refere ao sentido com que o historiador

aborda a produção dos escritores Euclides da Cunha e Lima Barreto: “[...] como registro

judicioso de uma época e como projetos sociais alternativos para a sua transformação”

(SEVCENKO, 1983, p. 199). Tal conceito corresponde a considerar a literatura para além do

fruir estético3. Isto é, vê-se a literatura concomitantemente como espelho da sociedade na qual

2 O texto referido como “no prelo” foi apresentado pelo Prof. Gildeci de Oliveira Leite no Curso Jorge Amado

2011 – I Colóquio de Literatura Brasileira, realizado na sede da Academia de Letras da Bahia, em 2011.

Encontra-se em vias de publicação em uma coletânea de artigos oriundos do evento e foi gentilmente cedido pelo

autor para este trabalho. 3 Importante ressaltar que, considerar o texto literário “para além do fruir estético” não significa, sobremaneira,

rejeitar os aspectos estéticos da literatura, mas, sem prescindir de analisá-los, observar outros fatores também

presentes.

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o escritor está inserido, mas, também como uma produção que vislumbra outra sociedade,

produto de um sonho – o mundo idealizado de uma utopia redentora. Neste sentido, Carlos

Augusto Magalhães assevera:

Na verdade, por trás do sentido de falar e mostrar a Bahia, há o forte compromisso

de fazer com que a literatura se empenhe, também, com a propagação da utopia de

mudança do quadro social. Estabelece-se, desta maneira, uma denúncia com

propósitos utópicos. [...]

O sentido de “literatura como missão” faz com que Jorge Amado assuma o papel de

porta voz dos economicamente explorados e deserdados sociais, cujas vozes passam

a ser ouvidas e a ganhar espaço (MAGALHÃES, 2011, p. 162-163).

A leitura empreendida pelo pesquisador faz menção aos termos “utopia”,

“economicamente explorados” e “deserdados sociais”, que se revelam comuns no trato com

os romances amadianos entre 1933 e 1954, período em que o escritor se identifica com o

socialismo. Com efeito, o corpus do pesquisador é o romance Suor, de 1934, texto-mãe de

onde parte, por meio das denúncias de exploração destrutiva do capitalismo, para observar o

desejo utópico de uma cidade idealizada a partir do socialismo. “Eis aí o sentido de um

contundente princípio ético imbricado na categoria „literatura como missão‟”, salienta ainda

Magalhães (2011, p. 153-154). Revelador, pois, que o pesquisador tenha observado e realçado

um “princípio ético” no que se refere à produção literária de Amado. Justifica-se, assim, o uso

da ideia de “resistência”, tal como apontada anteriormente por Bosi, atrelada ao conceito

cunhado por Sevcenko.

Ademais, acredita-se possível estender o conceito de “literatura como missão” para

além do período mais denso da adesão amadiana ao socialismo. Afinal, os romances que se

seguem a Gabriela, cravo e canela, de 1958, não deixam de elaborar uma nova utopia,

atrelada desta vez à rejeição dos estreitos padrões de uma sociedade branca baseada em uma

moral burguesa judaico-cristã. Assim, em substituição à utopia socialista, relacionada com a

defesa dos “economicamente explorados”, em obras como Os pastores da noite e Tenda dos

milagres, por exemplo, infere-se uma “utopia mestiça” ou, como se definirá mais adiante, um

“universo mestiço”. Nesta perspectiva, ganham relevo as personagens negras e mestiças –

negromestiças – bem como os valores culturais e sociais oriundos do candomblé,

religiosidade de matriz africana.

Sintomático, portanto, que Olivieri-Godet (2004, p. 128) identifique como “[...] uma

profissão de fé da escrita amadiana: salvar do esquecimento, recuperar das margens sociais,

culturais, intelectuais ou políticas, todos aqueles que as elites oprimem e condenam ao

silêncio”. É igualmente revelador que a literatura amadiana possa “[...] sugerir que o homem

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tem o dever de lutar por certos princípios que são essenciais, como a fruição do amor em um

espaço livre de construção político-religiosa” (LOPES, 1993, p. 7-8) – condição que o crítico

considera como a função do escritor4.

Ao abraçar outra proposta de mestiçagem, torna-se possível observar que a literatura

amadiana se coloca também como importante foco de resistência e afirmação. Neste sentido, a

eleição da mestiçagem como motivo de fazer literário se apresenta não só como uma forte

denúncia do racismo eurocêntrico, como também a tudo que lhe é corolário: a intolerância

religiosa e a exclusão social. Eis o motivo pelo qual se caracteriza por negromestiço o alvitre

amadiano.

Apresentando-se como análise de uma representação mestiça supostamente diversa da

que se configura como discurso de apagamento explícito ou dissimulado do negro, o objetivo

principal desta dissertação se constitui em verificar se a hipótese aventada de uma

negromestiçagem amadiana se sustenta.

Para que esta conjectura se confirme, é necessário que tal ficção divirja de forma

substancial do discurso extraliterário que toma do Brasil como um país mestiço, luso-tropical,

sem quaisquer preconceitos de raça; uma “democracia racial”, enfim. Destarte, faz-se

inevitável o cotejo entre as perspectivas enunciadas por Jorge Amado e Gilberto Freyre, que

vem a ser o principal ideólogo da mestiçagem como discurso.

Em decorrência deste primeiro objetivo específico, um segundo ganha relevo: adentrar

os sentidos e valores negros presentes na obra amadiana, demonstrá-los como estruturantes

das narrativas e das personagens, revelá-los presentes na proposta de mestiçagem pretendida

pelo romancista baiano.

Como um adendo, um terceiro objetivo específico se impõe: explicitar que o negro não

é, a princípio, o componente ficcional a ser valorizado por Jorge Amado5. Da mesma forma,

pouco apraz ao romancista baiano a ideia de mestiçagem como temática de seus primeiros

romances. Portanto, o trajeto ascensional das temáticas negras e mestiças revela, à medida que

se projeta, ressignificações da obra amadiana que, por certo, cumpre observar aqui. Assim,

4 “Vale a dire che la funzione dello scrittore, peraltro assunta con passione programmatica, è stata sempre quella

di suggerire che l'uomo ha il dovere di lottare per alcuni principi irrinunciabili, quale la fruizione dell'amore in

uno spazio libero da construzione politico-religiose. In questo senso l'opera di Jorge Amado è attraversata da una

voce onnipresente come un respiro palpitante di affetto; il suo corpus testuale non è altro che il riflesso di

varizioni succesive sulla dignità dell'umana condizione e sulla leggitimità della speranza, in fonde la molla

segreta che fa muovere i personaggi nel grande teatro dell'immaginario amadiano” (Tradução nossa para fins

deste trabalho). 5 Por “negro”, refere-se não apenas ao homem ou mulher negros, mas ao complexo cultural, religioso, ético,

moral, ao sistema de princípios e valores que se depreendem do mundo afro-brasileiro, cuja metonímia original é

o Terreiro de Candomblé.

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pretende-se atentar não apenas para a diferença entre as perspectivas de Jorge Amado e

Gilberto Freyre, como também para a construção progressiva do tema dentro da sequência da

obra do autor baiano.

Explicitadas, pois, as linhas gerais e os objetivos que estas páginas encerram, compete,

agora, passar em revista a estrutura desta dissertação, isto é, as partes e as seções com que ela

se divide e se apresenta.

O texto que segue fraciona-se em duas partes e quatro seções, distribuídas

igualitariamente. Optou-se por dividir-se esta dissertação em partes não por qualquer laivo de

preciosismo, mas por constatar, uma vez escritas as seções, que elas se agrupavam em torno

de duas dimensões de abordagem distintas: uma, de caráter horizontal; outra, de feição

absolutamente verticalizada.

Assim, a primeira parte comporta duas investigações panorâmicas, horizontais, que,

não obstante tenham objetos diferentes, partilham da intenção de perscrutar as significações e

ressignificações do negro e da mestiçagem. Tais abordagens compõem, portanto, uma unidade

que, não sem motivo, intitula-se “dos percursos”.

A primeira seção, “um conceito para um país”, apresenta-se como a tentativa de

compreender de que maneira a ideia de mestiçagem torna-se indissociável da concepção de

Brasil. Intenta-se, também, explorar os sentidos que são atribuídos ao negro ao longo das

várias transmutações semânticas do conceito de mestiçagem. Para tanto, a seção inicia-se no

século XVII, com a leitura de um poema em que Gregório de Matos se dirige ao vigário

Lourenço Ribeiro, mulato6. Passa-se, então, ao século XIX, momento em que se situam os

movimentos de Independência, de construção da nacionalidade, das lutas antiescravistas, da

Abolição e, no último quartel, do aporto das teorias raciais. Assim, promovem-se as leituras

do indianismo alencariano e do emancipacionismo de Joaquim Manuel de Macedo, bem como

as do plano historiográfico de Von Martius; dos pressupostos e das projeções dos teóricos

raciais.

O arco final deste primeiro percurso empreendido focaliza a obra gilbertiana nos

aspectos revolucionários e conservadores que a compõem. Assim, não obstante se reconheça a

ruptura que constitui em relação às concepções anteriores de mestiçagem, busca-se evidenciar

a continuidade de uma exclusão do negro, ainda que silenciosa. Por último, um cotejo inicial

6 Apesar da grafia “Gregório de Mattos” ser algo corrente, constando inclusive no site oficial da fundação que

leva o seu nome, optou-se em utilizar “Matos” por fidelidade à coletânea organizada por Mendes (1996), que

serviu de suporte às citações deste trabalho.

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entre Freyre e Amado, abordagem que aponta e aprofunda as possibilidades de dissensões

existentes entre as teses do antropólogo pernambucano e do literato baiano.

A segunda seção, “entre o socialismo e o negro sujeito”, espraia-se pelos cincos

primeiros romances amadianos, a saber: O país do carnaval (1931), Cacau (1933), Suor

(1934), Jubiabá (1935) e Mar morto (1936). Procura-se, desta maneira, observar os

movimentos de interpretação e reinterpretação do escritor baiano acerca do negro e do

mestiço, propostas que evoluem de uma representação negativa em O país do carnaval para

outra positiva, em Mar morto – romance em que se antevê o escritor de Os pastores da noite e

Tenda dos milagres. Para cumprir tal fim, evoca-se o conceito de “autonomia do

representado”, lapidado a partir das leituras de Bastide (1972), Candido (1972) e Machado

(2006), e que diz respeito à representação do povo negro e mestiço sem que os sistemas

culturais e religiosos destas personagens sejam negados em prol da utopia socialista do

escritor. Desta forma, a ideia de “autonomia”, tal como abordada aqui, concerne a uma

relação específica entre o representado, isto é, a personagem, e o romancista, Jorge Amado.

Em complemento à primeira parte, que se caracteriza por uma abordagem horizontal, a

segunda parte desta dissertação se vertizaliza no que concerne à análise aprofundada de dois

romances, Os pastores da noite (1964) e Tenda dos milagres (1969). Da mesma forma que a

anterior, esta parte também se constitui em uma unidade fracionada em duas seções. Busca-se

aqui investigar especificamente o lugar do negro na composição de um discurso mestiço

amadiano, isto é, se há de fato um protagonismo negro ou se o negro se apresenta

escamoteado e obliterado pela mestiçagem idealizada por Jorge Amado. Intitula-se “do povo

negromestiço” e abrange a terceira e a quarta seções desta dissertação.

Em “dos negros sentidos em Os pastores da noite”, terceira seção, investiga-se a

citada narrativa como a expansão de um Terreiro, de uma Casa de Axé. Neste sentido,

procura-se evidenciar como sentidos negros são estruturantes da narrativa, o que, por si, já

denota um protagonismo negro. Retoma-se, pois, o cotejo com o universo gilbertiano e

aponta-se para três importantes divergências amadianas, quais sejam: o tempo da mestiçagem

redentora; a atitude do negro e, por último, o lugar do negro.

Já a quarta seção, “Tenda dos milagres, romance paradigmático”, verticaliza ainda

mais o que foi ensaiado na leitura de Os pastores da noite. Enfim, busca-se penetrar nos

meandros da singular mestiçagem amadiana, isto é, da negromestiçagem. Assim, o estudo

inicia-se com uma abordagem específica acerca dos sentidos dimanados pelo candomblé e

que estruturam a narrativa: um sentido míticoidentitário, que faz de Pedro Archanjo, filho de

Exu, a representação do eleda, orixá pessoal; um sentido socioidentitário, que faz de Archanjo

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Ojuobá, os Olhos de Xangô, o que significa assumir compromissos e responsabilidades

perante o orixá e o povo de santo; e um sentido metonímico, em que o candomblé representa a

própria resistência e afirmação negras.

Em um segundo momento, discute-se mais detalhadamente a proposta de uma

negromestiçagem amadiana. Para tanto, são criados os conceitos de “mundo negro”, que

representa a resistência e a afirmação dos sentidos e dos valores culturais afro-brasileiros, e de

“universo mestiço”, que vem a ser o vislumbre quimérico e utópico de um universo mestiço

social e identitariamente democrático – de que se conclui que a sociedade mestiça amadiana

diverge amplamente daquela pretendida por Freyre.

É óbvio que, ao longo da argumentação empreendida, discorda-se de um ou outro

crítico, questiona-se uma ou outra assertiva, rejeita-se uma ou outra conclusão – imiscuir-se

em terreno polêmico, como é o da mestiçagem em Amado, não admite nem permite outra

postura. Contudo, não se procede desta maneira com o intuito de invalidar qualquer leitura

que seja, apenas para defender e reforçar o argumento desenvolvido, as conclusões

alcançadas.

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PARTE I

DOS PERCURSOS

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1 UM CONCEITO PARA UM PAÍS

Sou um mulato nato

No sentido lato mulato

Democrático do litoral.

Caetano Veloso. Sugar Cane Fields Forever.

A noção de mestiçagem é, de forma concomitante, pedra fundamental e angular da

percepção de uma singularidade brasileira, porquanto se constitua um lastro de ideários

historicamente reincidentes. Do protocasal branco/indígena Diogo Álvares Caramuru e

Catarina Paraguaçu, assinalado já por Frei Vicente do Salvador7, àqueles outros que, no

decurso do último decênio, invariavelmente repetiram-se em novelas televisivas8, o contato

inter-racial conforma-se em uma constante que (re)afirma a inequívoca condição mestiça do

povo brasileiro9.

O amálgama de povos e culturas que se processou nestas terras de além-mar, ao sul do

Equador, fomentou, todavia, sucessivas abordagens díspares. Da crítica à ascensão do mulato,

passando ao pessimismo e ao otimismo, à multiplicidade de olhares enviesados, reticentes e

7 Obviamente, não se afirma aqui que Frei Vicente do Salvador tenha descrito o casal como protótipo de um

povo, mas que o engendramento da mestiçagem como identidade brasileira, ocorrido séculos após o historiador

ter escrito, mitifica o envolvimento entre Caramuru e Paraguaçu, tornando-os simbolicamente protogênese do

povo brasileiro. Segundo Frei Vicente do Salvador (s.d, p. 40-1): “[Catarina Paraguaçu] morreu muito velha, e

viu em sua vida todas suas filhas, e algumas netas casadas com os principais portugueses da terra, e bem o

mereciam também por parte do seu progenitor Diogo Álvares Caramuru [...] pois foi este o que conservou a

posse da terra tantos anos [...] e os fez [aos índios] servir aos brancos, e assim edificou, povoou e fortificou a

cidade, que chamou do Salvador”. Cunha, Bacelar e Alves (2008, p. 17) consideram Diogo Caramuru como

sendo uma figura “[...] de grande relevo para o imaginário da miscigenação”. 8 Está ainda por ser feito um estudo que investigue a recente recorrência inter-racial de casais protagonistas de

algumas das últimas novelas da Rede Globo de Televisão em horário nobre, ou seja, 21 horas. Na novela Duas

Caras, de Aguinaldo Silva, exibida entre 2007 e 2008, Lázaro Ramos e Débora Falabella deram vida ao casal

Evilásio Caó e Júlia Barreto. Já em Viver a Vida, 2009-2010, de Manoel Carlos, Zé Mayer e Taís Araújo

interpretaram o casal Marcos e Helena. Em 2011, na novela Insensato Coração, de Gilberto Braga e Ricardo

Linhares, Lázaro Ramos e Bruna Linzmaeyer, Camila Pitanga e Antonio Fagundes puseram em cena os casais

André e Leila; Raul e Carol. É interessante sugerir que tal recorrência coincide com o alargamento das

discussões sobre políticas afirmativas, o que permite inferir uma estratégia de reafirmação do caráter mestiço do

brasileiro em detrimento da assunção de uma identidade negra. 9 Chauí define “mito fundador” da seguinte forma: “[...] é aquele que não cessa de encontrar novos meios para

exprimir-se, novas linguagens, novos valores e idéias, de tal modo que, quanto mais parece ser outra coisa, tanto

mais é a repetição de si mesmo” (CHAUÍ, 2000, p. 9). Nesta perspectiva, a mestiçagem é, pois, um dos mitos

fundadores do Brasil. Quiçá, o principal.

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críticos10

, soma-se outra, igualmente ampla, porém mais propensa a pensar a miscigenação

como um fator positivo. As inúmeras ressignificações decorrentes destes vários vieses

interpretativos situam a temática da mestiçagem, embora já algo surrada, como uma dentre as

mais producentes do pensamento social brasileiro. Cumpre, portanto, observar alguns

movimentos de significação e ressignificação da mestiçagem no Brasil.

1.1 PREÂMBULO OU “MILAGRES DO BRASIL SÃO”

A larga tradição de um olhar de esguelha sobre a população mestiça, atitude

redundante de desdém e demarcativa de lugares de mando e poder, ainda mais quando em

face do intercurso entre negros e brancos, não é um ineditismo do século XIX nem tão

somente uma postura decorrente das teorias raciais gestadas a partir de meados desta centúria.

Em verdade, a despeito da pregnância de tais teorias, cujas premissas são ainda hoje

flagrantes em falas e piadas cotidianas, a apreensão negativa da mestiçagem, ao menos em

contexto brasileiro, antecede o debruçar-se da ciência sobre o conceito de raça como elemento

síntese de essências e, portanto, distintivo entre povos11

. A genealogia desta percepção

negativa do processo miscigenatório remonta, pois, a uma rígida noção hierarquizante

nascente a meio termo entre a permanência do discurso cristão medievo e a estrutura

socioeconômica da então colônia portuguesa, instâncias estigmatizantes do negro – fator

preponderante para uma recusa do mestiço.

Embora o século XIX tenha se encarregado da tentativa de demonstrar de forma

supostamente inquestionável, posto que científica, a presumida inferioridade genésica das

populações não-brancas, em especial a dos negros africanos, tal sentido, ainda que não

atrelado à noção de raça, já se encontrava plenamente consolidado no imaginário europeu-

brasileiro de princípios da colonização. Foi sobre esta imagem duplamente negativa do negro

que se compôs e derivou aquela outra acerca da mestiçagem, igualmente reticente.

Referiu-se, logo acima, a uma “imagem duplamente negativa do negro”, bem como,

no parágrafo antecedente a esta expressão, deu-se nota de duas instâncias de estigmatização 10

Sejam os olhares brancos, do século XIX, que viam na mestiçagem fator de degeneração; sejam os olhares

negros do século XX e princípio do XXI, que enxergam no discurso da mestiçagem uma negação da identidade

negra, portanto uma artimanha racista. 11

A respeito do conceito de raça, Seyferth (2007, p. 106) afirma: “O que caracteriza o conceito de raça é sua

imponderabilidade, o fato de ser, antes de tudo, uma construção social que interfere nas relações sociais, informa

comportamentos individuais e coletivos, instrui determinadas práticas discriminatórias na medida em que

fornece signos e símbolos de pertencimento – fatores que interferiram também nos sistemas classificatórios

produzidos no campo científico”.

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precedentes aos teóricos raciais, quais sejam, o discurso cristão e a estrutura socioeconômica

da Colônia. Estas duas vertentes, embora distintas, configuram entre si um elo comunicativo

de modo a estabelecer e nutrir um processo de retroalimentação capaz de manter, revigorar e

expandir continuamente o imaginário desqualificante a respeito do negro12

.

O pensamento ocidental possibilitou a associação do negro aos sentidos de “mal”,

“inculto”, “bestial” e “demoníaco”, concepções condensadas em torno de referenciais

estéticos, éticos e morais eurocêntricos que justificariam e estruturariam o sistema

escravocrata. Neste sentido, a Igreja recorreu ao ideário já estabelecido sobre os “filhos de

Cam” e retomou uma leitura do mito bíblico – em que pese todo o poder de persuasão da

Bíblia naquele contexto – que condenava o continente africano à eterna servidão13

. Em

consequência, a materialidade da ordem escravocrata ampliava e disseminava o poder e o

alcance de tal interpretação bíblica. Assim, dois estigmas convergem para o negro e compõem

uma imagem única, com carga semântica duplamente negativa14

. Por um lado, sob o prisma

do discurso religioso oficial, o negro é indecoroso e mesmo abjeto por relacionar-se à

profanação do veto à nudez e, por isto, condenado a estar eternamente abaixo de seus irmãos.

No tocante à estrutura socioeconômica, o negro é o escravizado, elemento mais baixo na

organização hierárquica de poder da sociedade brasileira e responsável pelos afazeres

renegados por quaisquer outros que estivessem salvaguardados pela condição de homens

livres e brancos. Neste contexto, sua classificação jurídica era a de um bem semovente (LUZ,

2003, p.199), ou seja, assemelhado a animais.

Estes dois movimentos de sentido produziram e cristalizaram a inferioridade do negro

em um contexto no qual, de acordo com Hofbauer (2006, p.85), o “[...] grande paradigma de

inclusão e exclusão [...] não era a cor da pele, mas a filiação religiosa [...]”, ainda que,

12

“A construção de uma imagem negativa do negro tem marcos históricos importantes, que se iniciam no

contato dos europeus com o continente africano. No último quartel do século XV, como também na segunda

metade do XIX, o Ocidente dirigiu-se várias vezes à África, na sede do ouro, desejo de poder, escravos e

catequese, o que significa dizer “conquistas”, “escravidão”, “colonização” e “conversão”. Além do que, toda a

fantasia da Idade Média estava presente na imaginação dos navegantes e traficantes, pois essa terra era sinônimo

de costumes estranhos, ervas fabulosas, costumes exóticos, fenômenos sobrenaturais e uma infinita variedade de

monstros [...]” (SODRÉ, 2010, p. 31). 13

Hofbauer (2006, p. 47) pontua que houve uma imbricação do crime de Caim e da maldição de Cam nos

discursos teológicos contemporâneos à escravidão, projetando a ambos na figura do negro escravizado.

Guimarães (2008, p. 16) complementa ao salientar que a interpretação dos negros como descendentes de Cam

deriva de inclusões de “[...] passagens talmúdicas ou de midrash [...]” na leitura do mito bíblico. Note-se que

Hofbauer não grafa “Cam” para o filho mais jovem de Noé, mas “Ham”. Já Guimarães anota “Cã”. Em certas

traduções da Bíblia é possível também encontrar um terceiro nome, Cão que, embora pareça mais raro, pode

produzir associações com a figura do Diabo, popularmente alcunhado desta forma. Cf. também Munanga (2005-

2006, p. 55-56). 14

“O nó do preconceito fica inextricável quando a desigualdade produzida pela divisão social se combina com

discriminações de raça ou de credo. Na Colônia, ambos, o opressor e o oprimido, receberam o selo de uma dupla

determinação” (BOSI, 2010, p. 101).

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novamente segundo o pesquisador, houvesse “[...] mecanismos e expressões por meio dos

quais os portugueses faziam os africanos sentir que não eram aceitos como iguais, mesmo que

estes fossem cristianizados” (HOFBAUER, 2006, p. 87). Primeiramente, há que se destacar a

prevalência de um imaginário mítico-religioso na estruturação desta clivagem para além da

conversão, uma vez observados os aspectos valorativos e morais relacionados opostamente às

cores branca, signo de pureza, e preta, correspondente à mácula, na simbologia ocidental. Já

em momento posterior, a realidade social se impôs como um dado poderoso. A experiência do

contato com o negro foi cotidianamente vivenciada e permeada pela dominação, pelo poder.

Ao negro coube servir e obedecer, ao branco, mandar e ser obedecido. O contínuo e invariável

repetir-se ad infinitum da ordem escravocrata ocasionou a inobservância de sua formação

histórica. Em decorrência deste processo, houve a naturalização de determinados lugares

sociais a serem organizados e distribuídos segundo critérios de raça, antes mesmo deste

conceito ser determinante nos estudos sobre as distinções entre povos.

O olhar de través, originário do contexto acima e referido há poucas páginas, é

recorrente nos primeiros anos da colonização e se expressa vigoroso já no século XVII,

quando presente na poética de Gregório de Matos, autor tido como fonte da história do

período (CAMPOS, 1989)15

. Assim como este crítico, Cunha, Bacelar e Alves (2008, p. 23)

vislumbram no poeta “[...] uma documentação minuciosa e ácida da vida colonial na Bahia

[...]”. Ora, assumir o “Boca do Inferno” como tal implica admitir, em sua poesia de cunho

satírico, a representatividade de uma época não apenas em termos de reprodução do viver

cotidiano mas, também, dos imaginários basilares das estruturas de poder componentes deste

mesmo dia-a-dia16

.

Perspectiva idêntica é proposta por Hansen (1989, p.169) ao afirmar que “[...] a

metaforização barroca se faz como uma ligação aguda de conceitos de uma experiência ou

conhecimento socialmente partilhado por poeta e público contemporâneo”. Esta comunhão de

sentidos, ainda segundo o pesquisador, “[...] [permite] estabelecer os critérios de auto-

representação de um grupo ou ordem e, portanto, constituir o que ele propunha no discurso

15

Como o objetivo desta discussão é possibilitar compreender, ao menos em parte, os sentidos que “negro” e

“mestiço” apresentam no alvorecer do século XIX, optou-se, por economia, em evidenciar alguns aspectos da

poesia de Gregório de Matos. Outros exemplos podem ser conseguidos nos sermões seiscentistas de Pe. Antônio

Vieira. Alguns sermões do jesuíta operavam na manutenção do regime escravocrata condicionando o paraíso à

subordinação dos negros ao trabalho escravo: “[...] o pecado do senhor era a crueldade, o pecado do escravo era

a revolta – uma teologia com óbvias implicações conservadoras” (COSTA, 2010, p. 357). 16

Cunha, Bacelar e Alves (2008, p. 23) consideram que os versos de Gregório “[...] plasmaram e fixaram visões

do passado – cenas da origem – que repercutem até o presente no imaginário baiano e na efetividade da ordem

econômica e das práticas sociais”. Reivindicam assim a importância do poeta barroco para uma história cultural

da Bahia.

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como o seu outro” (HANSEN, 1989, p. 169). Assim é que, de acordo com Peres (1967, p. 67)

“[...] GM ao descrever [...] tão impiedosamente os defeitos físicos e morais dos negros e

mestiços preparava o terreno para a criação de um comportamento verbal”. Gregório de

Matos torna-se, pois, o porta-voz de uma aristocracia descontente com a ascensão social do

mestiço (PERES, 1967), uma vez que o negro e o mulato “[...] confundiam-se do ponto de

vista social, [...] fazendo parte de um mesmo quadro, de uma mesma „classe‟, a escravaria

[...]” (PERES, 1967, p. 59).

Convém ressalvar que, a despeito da “escravaria” abranger igualmente a negros e

mestiços, há uma “[...] freqüência relativamente baixa, na poesia satírica atribuída a Gregório,

de poemas contra negros escravizados ou índios” (HANSEN, 1989, p. 173). Bosi (2010)

também afirma esta maior ojeriza do poeta por mestiços do que por negros. Hansen atribui

este dado aos critérios de classificação jurídica dos Seiscentos, no que não deixa de ter certa

razão. É correto e importante sugerir que o negro escravizado não se constituiu alvo corrente

do poeta, se comparado ao mestiço, justamente por causa da condição servil que era imposta.

Entretanto, talvez isto se deva menos ao estatuto jurídico, como o interpreta Hansen, do que a

uma rígida organização social baseada na opressão do mando e dos instrumentos de suplício.

Em outras palavras, a considerar a óptica gregoriana, o negro escravizado ocupava o lugar que

lhe era devido, isto é, o de submissão passiva ao branco – o que acastelava a estabilidade

hierárquica entre os habitantes da Colônia.

Noutro plano, o mestiço que ascende e se apodera de posições antes destinadas

invariavelmente aos brancos, superando-os às vezes em educação e posses, pressupõe e

representa a desestruturação, mesmo que parcial, do sistema polarizado senhores x

escravizados. Isto é, afigura-se um terceiro elemento que se interpõe à estrutura dicotômica

preexistente. Este terceiro elemento, o mestiço livre, ausente da equação inicial do sistema

escravocrata, comporta, em larga medida, a reorganização de determinadas esferas de poder

da estrutura social – movimento ascensional que alarma, desagrada e exaspera a aristocracia

baiana, quanto mais a parcela decadente.

Evidenciam-se, assim, as razões pelas quais o negro e o mestiço motivaram

tratamentos poéticos diferenciados, ou melhor, construções literárias em que se percebe uma

maior produção de estigmas sobre o mestiço. Pelo menos no tocante à intensidade da

adjetivação desqualificante que agiu na sedimentação das “[...] peculiares formas do racismo

vigente e persistente da sociedade baiana” (CUNHA; BACELAR E ALVES, 2008, p. 24). Ao

produzir, em termos quantitativos, um número de textos depreciativos do mulato superior

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àquele que se dirige ao negro, Gregório de Matos deu vazão à inquietude transbordante da

elite decadente, com a qual se identificava17

.

No que tangencia o vocabulário associado a negros e mestiços, Hansen (1989), atento

aos topoi constituintes da poesia satírica de Gregório de Matos, lança luz ao que

anteriormente Peres havia denominado “comportamento verbal” 18

. Para o pesquisador:

[...] o “mulato” [pode ser]: preceituário ético, pelo qual é aristotélicamente (sic)

mau, porque misturado e excessivo; regulamentação jurídica, pelo qual se classifica

na “gente baixa”, quando livre, e fora do corpo político, quando escravo; troca

sexual, pela qual é “puta” e “bestial”; fundamentação teológica, pela qual é

naturalmente escravo, descendente de Cam; classificação hierárquica, no fim do

fim, abaixo dos brancos mais baixos; pragmáticas de precedências, trajes e formas

tratamento (sic), pelas quais é “atrevido”, “vão”, “arrogante”, “desavergonhado”;

referência letrada, pela qual é “ladino” ou “pícaro”; transação econômica, pela qual

é mercadoria e peça; ortodoxia religiosa, pela qual é gentio ou herege, feiticeiro

dado ao calundu, à necromancia, ao sexo nefando, a Satanás etc. (HANSEN, 1989,

p. 164-165. Grifos do autor).

Observa-se, nos topoi elencados por Hansen, a ressonância, mais ou menos explícita,

de sentidos advindos do binômio anteriormente salientado, composto pela tradição do

imaginário cristão medievo e a naturalização das estruturas sociais. Não é, portanto, exagero

afirmar que tais sentidos são estruturantes da sátira gregoriana de forma semelhante a que

organizavam as próprias relações sociais cotidianas da Colônia, marcadas por intensas

clivagens 19

, o que se evidencia, em parte, no poema em que Gregório responde a uma sátira

que lhe haviam feito e que fora publicada em nome do vigário Lourenço Ribeiro20

:

17

A identificação entre Gregório de Matos e esta parcela decadente da elite baiana é sugerida, inclusive, em

outro poema seu: “Triste Bahia! Oh quão dessemelhante / estás e estou do nosso antigo estado! / Pobre te vejo a

ti, tu a mi empenhado / rica te vi eu já, tu a mi abundante” (MENDES, 1996, p. 86). Bosi, em abordagem

específica sobre este poema, escreve em relação ao quarteto transcrito: “Selando o contraste, que separa o

passado e o presente, vem o predicado central: quão dessemelhante. A diferença está radicada no eixo do tempo:

houve um antigo estado, cuja perda é o motivo gerador de todo o discurso. Neste primeiro quarteto, importa

assinalar que a mudança arrastou consigo a Bahia e Gregório, o tu e o eu. É sobre essa identificação profunda de

sujeito e objeto que assenta a liricidade do texto: as contradições da história social falam aqui pela voz do

indivíduo” (BOSI, 2010, p. 95). 18

Hansen define topoi como “[...] elencos de argumentos opináveis e verossímeis poéticos que formam o „caso‟,

tema desenvolvido, para a vituperação e a maledicência” (HANSEN, 1989, p. 164). 19

Esta estreita relação entre a obra satírica de Gregório de Matos e o imaginário coletivo da sociedade que lhe

foi contemporânea é atestado pela própria preservação de seus textos, que circulavam oralmente ou em

transcrições feitas por terceiros. Gregório nunca editou em vida um livro seu. O que poderia facilmente perder-se

no desvanecer contínuo dos tempos e lugares idos, contudo, suplanta o passar dos séculos. Esta preservação,

talvez, só tenha sido possível devido à convergência entre texto e sociedade, sátira e imaginário, promovida pelo

poeta. 20

Utilizou-se o título do poema, tal como consta da coletânea de Mendes (1996), para completar o sentido da

oração construída, por isto a grafia em itálico. Todo o trecho destacado corresponde, assim, ao título.

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Um branco muito encolhido,

um mulato muito ousado,

um branco todo coitado,

um canaz todo atrevido:

o saber muito abatido,

a ignorância, e ignorante

mui ufano, e mui arfante

sem pena, ou contradição:

milagres do Brasil são.

Que um cão revestido em Padre

por culpa da Santa Sé

seja tão ousado que

contra um branco ousado ladre:

e que esta ousadia quadre

ao Bispo, ao Governador,

ao Cortesão, ao Senhor,

tendo naus no Maranhão:

milagres do Brasil são.

Se a este podengo asneiro

o pai o alvanece já,

a mãe lhe lembre que está

roendo em um tamoeiro:

que importa um branco cueiro,

se o cu é tão denegrido!

Mas se no misto sentido

se lhe esconde a negridão:

milagres do Brasil são.

[...]

Que há de pregar o cachorro,

sendo uma vil criatura,

se não sabe da escritura

mais que aquela que os pôs forro? [...] (MENDES, 1996, p. 180).

O estribilho satírico “milagres do Brasil são”, que encerra cada nona em tom de

censura, com “milagres” assumindo antes um sentido negativo do que positivo, é o ponto

síntese que delimita o olhar de soslaio que o poeta avança sobre a sociedade, porquanto esta

permita a ascensão do mestiço à condição de vigário21

. Nota-se ainda que, ao exercício desta

atividade específica, é atribuída uma ênfase que a reveste de tônica da crítica proposta pelo

poema. Estabelece-se assim um entrelaçamento das restrições oriundas do binômio outrora

21

Ofício, aliás, exercido, mesmo que por pouco tempo, pelo próprio Gregório: “Foi vigário-geral da Sé da Bahia

e seu tesoureiro-mor a partir de 1681 quando ainda gozava do valimento de Dom Gaspar Barata, primeiro titular

daquela arquidiocese” (BOSI, 2010, p. 99). Esta informação corrobora o argumento desenvolvido na medida em

que possibilita sugerir uma repulsa do poeta, expressa nos versos transcritos, ao ver-se igualado a um mestiço,

uma vez ocupassem cargos próximos, ou de vê-lo ocupar uma posição que fora sua. Daí, também, a tentativa de

desqualificá-lo para tal profissão.

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citado, convergentes na figura do mestiço, e limítrofes de seu alcance social – que não fosse

escravizado, mas se mantivesse subalterno ao branco.

Já a primeira nona, composta inteiramente de oposições, fixa aquela que norteia o

poema: o branco e o mulato. O primeiro encontra-se encolhido e na condição de coitado

enquanto o segundo é descrito como ousado e atrevido. Estas primeiras distinções operam no

sentido de representar um suposto desamparo do homem branco frente à ascensão do mulato.

Evidente, porém, que os termos “encolhido” e “coitado” não consubstanciam qualquer

verossimilhança, uma vez que o “real” é marcado pela escravatura e pela distribuição desigual

de poder entre os homens livres. Isto é, tal instância concentra-se exponencialmente em mãos

brancas. O hiperbólico infundado de tais acepções possibilita entrever, no entanto, a

percepção do poeta acerca do fato que engendrou o poema: o “descabido” de ter sido – ele,

um homem branco – alvo da sátira de um mulato. Estabelecidas as primeiras contraposições,

branco e mulato cumprindo respectivamente os papéis de oprimido e opressor, Gregório de

Matos passa à caracterização destes dois tipos, associando o branco ao saber, embora “muito

abatido” e o mulato, substituído no quarto verso pelo desqualificante “canaz”, à ignorância.

Desta forma, age com o intento de valorizar o sentido de “descabido” que conota à sátira por

ele recebida, posto que escrita por mulato – logo, ignorante – para ridicularizar um branco,

símbolo de saber.

A segunda e a quarta estrofes transcritas recorrem ao imaginário cristão e o

potencializam na medida em que questionam a capacidade do mulato ante a demanda do

desempenho da função de padre. Note-se que, para tanto, o termo “canaz”, da primeira nona,

multiplica-se em “cão” e em “cachorro”, com os quais Gregório referencia e atualiza o

estigma sobre o mulato22

. Ademais, tais sentidos, indissociáveis de uma conotação religiosa

popular com que se nomeia o próprio demônio, reforçam o contrassenso pretendido pelo

poeta e peculiar a um padre mulato – a se considerar a lógica desenvolvida, imagem

semanticamente propícia para se pensar no Diabo a serviço de Deus. Esta interpretação ganha

força ao se perceber que, na última estrofe, a imagem “cachorro” é complementada por “vil

criatura”. Ato contínuo, “escritura” congrega tanto um viés sagrado, quando relacionada à

Bíblia – da qual a “vil criatura” nada sabe –, quanto profano, sendo associada à carta de

alforria – única escritura da qual o mulato teria algum conhecimento.

22

É tentador avançar na hipótese, embora não conclusiva, que “cão”, repetido sete vezes em todo o poema e

reiterado por expressões outras que orbitam o mesmo universo semântico, presentifique, de forma explícita, o

mulato como herdeiro direto de Cam, filho de Noé – haja vista a proximidade fônica entre os dois termos e a

utilização, àquela época, do mito bíblico como justificativa teológica para a escravidão. Caso correta esta

hipótese, o imaginário cristão requisitado pelo poema não seria aquele enevoado, de datações que remontem à

Idade Média, mas o que dialoga diretamente com o contexto vivenciado por Gregório de Matos.

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A terceira nona transcrita prescinde do arcabouço teológico para desqualificar o

mestiço, utilizando-se para isto de sua ascendência. Os versos “que importa um branco cueiro

/ se o cu é tão denegrido!” enformam o ponto nodal de toda a estrutura do poema. Para

Gregório de Matos, o fato de o vigário Lourenço Ribeiro ser um mestiço, filho de pai branco,

não neutraliza a lembrança materna da negritude, da qual deveria herdar igualmente a

condição servil.

O poema em questão é, pois, representativo do imaginário branco próprio do século

XVII sobre a mestiçagem no Brasil e, salvaguardadas as devidas proporções, possibilita

concluir que tal texto não dista muito daquele que será tecido cientificamente, nos Oitocentos,

sob a noção de raça. A sátira que Gregório de Matos elabora em represália a Lourenço Ribeiro

objetiva unicamente depreciá-lo como mulato, portanto herdeiro das supostas inaptidões de

sua mãe negra. Não seria esta uma imagem usada às largas pelos teóricos raciais, e pela

literatura que a eles se filia, a do sangue negro como agente contrário à “civilização”?

Percebe-se que, mesmo sem um respaldo científico, o pressuposto da degeneração do sangue

negro já era algo corrente e arraigado nas mentalidades dos Seiscentos. Neste aspecto, os

últimos versos da terceira estrofe, tornam-se emblemáticos. Por uma confluência de

imaginários, que subverte a linearidade incontornável do tempo, Gregório antecipa e torna-lhe

coetâneas as discussões a serem travadas cerca de cento e cinquenta anos após sua morte, em

1695. Apenas por volta de 1840, com as demandas para se pensar identitariamente o Brasil

independente e que deseja se inserir na esfera do mundo moderno, a mestiçagem surgirá como

uma questão a ser levada a sério. Passa a ser objeto da ciência, da política, da imprensa, do

teatro e da literatura. Comporta, igualmente, otimismos e pessimismos no que concerne à

“civilização” brasileira, de modo que em qualquer uma destas vertentes oitocentistas infere-se

a censura gregoriana – “Mas se no misto sentido / se lhe esconde a negridão: / milagres do

Brasil são”.

1.2 SIM, UMA REVOLUÇÃO. EM TERMOS, PORÉM

Acaso seja possível afirmar que existam quaisquer méritos literários em As vítimas-

algozes, os maiores elogios devem recair sobre a felicidade do autor em conceber o título a

encabeçar a obra. A considerar o escopo a que se propõem as três narrativas que emolduram

os quadros da escravidão, ou seja, promover o medo acerca da potencialidade vingativa do

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negro escravizado, nenhuma outra imagem poderia ser mais justa23

do que o efeito de

deslocamento conseguido por Joaquim Manuel de Macedo24

. O movimento transgressor,

empreendido pela representação do escravizado que passa da condição de vítima para a de

algoz, implica o vazio da primeira posição, a ser ocupada ficcionalmente pelo complexo

familiar branco, com o qual, à época, o leitor se identificaria, amedrontado25

. Note-se que, a

despeito do instrumento de suplício ser portado e brandido por mãos alvas, não cabe ao

senhor de escravos o posicionamento primeiro, isto é, o papel de algoz que agisse sobre o

cativo, o que ocasionaria o movimentar-se da engrenagem argumentativa do texto. Tal função

se destinaria antes a uma instituição: a escravatura. Salvo de pecha e redimido de qualquer

violência, o homem branco – personagem ficcional e leitor imiscuídos – configura-se, por

paradoxal que seja à História, como principal vítima do sistema no qual, ele próprio, é força

dominante.

Registre-se que, da mesma forma que a escravidão exime o branco da condição de

carnífice, o autor pretendeu – e, talvez, houvesse sinceridade no intento – que o mesmo

ocorresse com o negro, porquanto tenha negado repetidas vezes que “ingratidão” ou

“perversidade” fossem atributos inatos à raça. Macedo considerava-as, antes, como

inexoráveis derivações da ordem escravocrata. Entretanto, as imagens e os simbolismos

decorrentes das narrativas depõem em contrário e, no titubeio próprio de um talvez que marca

e explicita a exceção, a obra se deixa penetrar pelos sentidos mesmos aos quais denega

credibilidade26

. Na incerteza que se instaura a respeito da ocorrência de “felizes disposições

naturais” em Simeão, impossíveis de investigação devido ao “cortejo” da escravidão já tê-lo

corrompido, flagra-se o instante de inflexão às teorias científicas reinantes na centúria,

princípios com os quais se argumentam e se fundamentam as supostas inferioridade e

criminalidade inerentes ao ser negro – ainda que Macedo não adira a elas completamente.

23

Na acepção de justeza, mas não na de justiça. 24

As três narrativas são: Simeão, o crioulo; Pai-Raiol, o feiticeiro e Lucinda, a mucama. 25

O medo, embora tácito ou disfarçado em preocupações outras, é uma constante em muitos discursos

abolicionistas do século XIX, quando alimentados por crescentes números sobre “crimes” praticados por

escravizados. Note-se, por favor, que as aspas não implicam em relativizar o teor criminal do assassinato ou do

furto que, por ventura, possa ter sido cometido pelos cativos em subversão ao cativeiro; apenas indicam a

imprecisão de tais julgamentos numa ordem social em que a balança da justiça pendia desfavoravelmente ao

negro sem, contudo, pretender que não tenham acontecido. O medo presente entre as elites brancas oitocentistas,

tributário de uma imagem do negro vingador, deita raízes na “[...] sangrenta revolução em São Domingos, onde

os negros não só haviam se rebelado contra a escravidão na última década do século XVIII e proclamado sua

independência em 1804, como também – sob a direção de Toussaint l‟Ouverture – colocaram em prática os

grandes princípios da Revolução Francesa, o que acarretou transtornos fatais para muitos senhores de escravos,

suas famílias e propriedades” (AZEVEDO, 2004, p. 28). 26

“A escravidão já tinha com o seu cortejo lógico e quase sempre infalível de todos os sentimentos ruins, de

todas as paixões ignóbeis, estragado o crioulo que talvez houvesse nascido com felizes disposições naturais”

(MACEDO, 2006, p. 14. Grifos nossos).

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Proposições que, resultantes da absolutização cientificista do conceito de raça, são

maravilhosamente descritas por Lima Barreto em seu Diário Íntimo, em anotações que

remetem ao ano de 1904: “[...] a capacidade mental dos negros é discutida a priori e a dos

brancos, a posteriori” ou “se a feição, o peso, a forma do crânio nada denota quanto a

inteligência e vigor mental entre indivíduos da raça branca, porque excomungará o negro?”

(BARRETO, s.d. p. 20). Porém, antes que se adentre ao período de eloquência destas

imagens, em especial o quartel último da centúria, faz-se necessário considerar aquele outro

contexto, imerso em silêncio.

A literatura brasileira do século XIX defronta-se, para além das questões estéticas e de

estilo, com inevitáveis demandas políticas decorrentes da Independência, na primeira metade

da centúria, e do iminente fim da ordem escravocrata, em seu último quartel. Assim, se por

um lado a literatura de fins dos anos 1860 em diante é marcada por uma recorrência imagética

de negros; por outro, a literatura romântica indianista de meados dos Oitocentos, responsável

por dar vazão a pensamentos e elaborar imagens que se identificam com a questão da

identidade nacional, notabiliza-se pelo silêncio em torno desta mesma representação.

Conceição Evaristo constata:

Um olhar “ingênuo” ou pouco crítico sobre o discurso literário muitas vezes impede

o reconhecimento de que há formas de representações literárias que funcionam como

mecanismo de exclusão de indivíduos e de grupos. Acompanhando o processo de

formação do discurso literário brasileiro, percebemos que o romantismo despreza a

presença africana e sua descendência no Brasil como elementos fundadores da

nação. Observamos que a ficção romântica é capaz de idealizar uma origem mestiça

para os brasileiros, porém só a imagem indígena servirá de estofo literário para os

autores da época (EVARISTO, 2009, p.22).

Perrone-Moisés (2007) destaca que, diferentemente do europeu, o romantismo latino-

americano tinha por missão criar uma pátria e uma literatura que se distinguissem, ambas, dos

modelos metropolitanos27

. Em se tratando especificamente do romantismo brasileiro, o

movimento inseria-se, desta forma, num amplo esforço de construção de um sentimento de

nação empreendido pelo Império, já que desde “[...] a época da independência, vários

testemunhos registraram a ausência de uma identidade nacional [...]”(PRIORI e VENANCIO,

2010, p. 169), o que acarretava contratempos políticos. Assim, imperativas e urgentes,

27

“Devemos ter em mente que por literatura, na época, não se entendia apenas o poema e o romance escritos

para serem publicados e lidos silenciosamente, mas também as peças oratórias, discursos e sermões, assim como

poemas para serem declamados em igrejas, salões e teatros. A literatura esteve presente nos principais meios de

formação de opinião: nos jornais, nos púlpitos e nas tribunas políticas, e era considerada o principal cimento para

soldar as opiniões na construção da nacionalidade” (RONCARI, 1995, p. 294).

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37

nascedouro e essência nacionais eram as principais questões a serem respondidas e plasmadas

por cientistas naturais, historiadores e literatos28

.

Para Figueiredo (2000, p. 98), “[...] o que estava em jogo naquele momento era a

definição do que era digno de ser representado na literatura brasileira, já que esta moldava a

imagem do país”. Assim, o recurso ao índio, de acordo com Perrone-Moisés (2007, p. 38),

[constituía] uma imagem romanesca e poética com múltiplas vantagens: eram [os

índios] aquela origem mítica necessária a toda nação; eram nossa parte original, não

européia; já quase exterminados, prestavam-se a todas as fantasias; serviam de

biombo para os negros, que estavam demasiado próximos e suscitavam a questão

espinhosa da escravidão [...]29

.

Embora correta tal interpretação, a exclusão do negro em prol do índio como opção

formativa da identidade nacional não obedeceu apenas aos espinhos suscitados pela

escravidão, como sugere a pesquisadora. Para além da dimensão histórica30

, tão necessária ao

romantismo, tal efeito subtrativo deitou raízes mais profundas no próprio imaginário nacional

sobre o negro, associado aos mesmos elementos expostos quando da apreciação do poema de

Gregório de Matos. Assim é que, no Brasil, segundo Costa (2010, p. 355-356), “[nunca]

houve dúvida sobre o status do africano: ele havia sido importado para ser escravo. Também

não havia discussão sobre o status de seus descendentes, que nasciam para ser escravos como

seus pais. Ninguém debatia a posição dos negros livres [...]”. Dados os estigmas de

inferioridade e servilismo, aceitos e compartilhados tacitamente, configurou-se uma imagem

do negro como antimodelo de identidade, ou seja, como elemento destoante dos parâmetros

pretendidos pela intelectualidade brasileira, ciosa de sua autorrepresentação. Em outras

palavras, buscava-se uma imagem de país oposta àquela vinculada ao negro; uma nação que

pudesse incitar no povo o orgulho de se imaginar equiparado às grandes nações europeias,

subvertendo simbolicamente a posição secular de colônia – outrora já rompida no plano

político. Para Brookshaw:

28

“A independência política do país, em 1822, com a ruptura dos laços coloniais com Portugal e a organização

de uma nação independente, tinha sido o fato mais decisivo para a emergência de uma consciência nacional. Ela

não vinha, porém, de forma tranquila, pois, antes de tudo, significava para os homens livres do Brasil a perda de

uma identidade segura: a de poderem considerar-se tão portugueses e europeus quanto os da metrópole,

comungando os mesmos valores ocidentais, civilizados e cristãos” (RONCARI, 1995, p. 288). 29

Pereira (1996, p. 104) compartilha da mesma perspectiva: “Enquanto postura ideológica o Romantismo pode

facilmente representar e idealizar o índio, posto que este já estava fundamentalmente afastado da civilização, não

constituindo uma mácula, nem tampouco uma ameaça à ordem vigente. Daí a facilidade com que se louvou o

índio distante e, em contrapartida, o total silêncio em relação ao negro, a ausência de representação (pelo menos,

enquanto contestação à ordem escravocrata) deste inconveniente ser, tão próximo de todos, tão cotidianamente

presente” (Grifos do autor). 30

O negro teria sido introduzido no Brasil após a chegada dos portugueses, enquanto o Romantismo visava

construir uma história pré-cabraliana.

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38

Na medida em que o negro apareceu afinal na literatura indianista, foi para

contrastar com o índio. Dessa forma o negro, representando a realidade da raça

colonizada, labutando nas plantações do colonizador, não era páreo para o mítico

índio em termos de atração literária. Se o índio por natureza era corajoso e

profundamente orgulhoso de sua independência, o negro era de índole escrava,

humilde e resignada (BROOKSHAW, 1983, p. 27).

Este panorama intelectual não é restrito apenas aos círculos literários. Fundado em

1838, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) cumpriu importante papel na

afirmação dos devidos lugares do índio e do negro na composição identitária do país.

Segundo Priori e Venancio (2010), já no ano seguinte ao de sua fundação, o IHGB organizou

investigações arqueológicas com o intuito de descobrir vestígios de grandes civilizações que

tivessem habitado terras brasileiras. O próprio Imperador D. Pedro II, ainda conforme os

pesquisadores citados, era entusiasta desta procura uma vez cobrasse respostas urgentes ao

Instituto. Tratava-se, pois, de reconstruir o passado brasileiro deslocando a origem deste povo

para séculos ou milênios que antecedessem o domínio português – destituído de sua função

genésica, caberia a Portugal o papel de dínamo desta “Civilização Brasileira”. Neste sentido,

Figueiredo constata:

Na reconstrução utilitária do passado, surgem, então, dois caminhos até certo ponto

opostos. O primeiro seria construir a proto-história a partir do indígena, como fez,

por exemplo, o México. Nesse país, como observou Octavio Paz, a história oficial

representa uma negação categórica do período colonial, visto como um interregno,

uma etapa de usurpação, uma fase de ilegitimidade histórica. [...] Entretanto, as

características conservadoras do nosso processo de independência política e a

própria tenuidade da presença da cultura indígena entre nós, naquele momento, não

nos permitiu assumir a radicalidade da leitura mexicana. Por isso, quando nos

aproximamos dessa vertente, procuramos amenizá-la, adotando uma solução de

meio termo, que recuperava o passado indígena sem excluir o português, buscando

uma saída pela simbiose, que favorecia o sentido da continuidade (FIGUEIREDO,

2000, p. 95).

Reis (2007, p. 31) confirma a perspectiva traçada por Figueiredo ao afirmar que “[...]

era preciso criar uma idéia de homem brasileiro, de povo brasileiro, no interior de um projeto

de nação brasileira. Sobretudo era preciso perceber a nação como diferença e continuidade

colonial e como continuidade da diferença colonial”. Assim, continua o pesquisador, “[...] o

Brasil não queria ser indígena, negro, republicano, latino-americano e não-católico. O que

significa dizer: o Brasil queria continuar a ser português e para isso não hesitará em recusar

ou reprimir o seu lado brasileiro” (REIS, 2007, p. 31-32).

Especificidade brasileira e continuidade da herança portuguesa compõem o cerne da

monografia de Von Martius, Como se deve escrever a história do Brasil. Vencedora do

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concurso realizado pelo IHGB e publicada em 1845 na revista do mesmo Instituto, a

monografia enforma um plano de elaboração da história nacional baseado nas três raças aqui

co-habitantes – o que caracterizaria a especificidade – e na prevalência histórica e cultural

branca/portuguesa – continuidade:

Cada uma das particularidades físicas e morais, que distinguem as diversas raças,

oferece a este respeito um motor especial; e tanto maior será a sua influência para o

desenvolvimento comum, quanto maior a energia, número e dignidade da sociedade

de cada uma dessas raças. Disso necessariamente se segue o português, que, como

descobridor, conquistador e senhor, poderosamente influiu naquele

desenvolvimento; o português, que deu as condições e garantias morais e físicas

para um reino independente; que o português se apresenta como o mais poderoso e

essencial motor. Mas também decerto seria um grande erro para todos os princípios

da historiografia pragmática, se se desprezassem as forças dos indígenas e dos

negros importados, forças estas que igualmente concorreram para o

desenvolvimento físico, moral e civil da totalidade da população (MARTIUS, 1982,

p. 87).

Embora considere que as três raças tenham concorrido para a formação da

especificidade brasileira, Martius pouca importância concede aos aportes africanos, de modo

que resume a investigação do historiador a responder se o desenvolvimento do Brasil, caso

não houvesse aqui os escravizados negros, teria transcorrido de forma mais positiva do que de

fato se deu. Para Schwarcz (1993), enquanto Martius reservou ao branco o papel de

civilizador e vislumbrou no índio uma dignidade outrora perdida, mas recuperável, restou ao

negro unicamente o espaço da detração. Com isto, Martius nutriu a incredulidade quanto às

capacidades civilizacionais dos povos negros, de há muito considerados inferiores não só em

relação ao homem branco, como também aos índios.

Quanto aos indígenas, o botânico alemão referiu-se a eles como “ruínas de povos”. A

despeito do teor negativo que se possa conferir a esta expressão na contemporaneidade, no

momento em que cunhada, para além da demarcação de uma inferioridade em face da

civilização portuguesa, outro sentido lhe era mais destacado: o de passado. Isto é, Martius

cultivou a esperança, compartilhada pelo IHGB e também pelo Imperador D. Pedro II, de que

tais povos comportassem uma dimensão histórica profunda, passível de ser afirmada não

obstante, ponto pacífico na época, terem regredido do estágio de civilização:

Segundo tal interpretação, o que faria do Brasil uma sociedade positivamente

diferente da portuguesa não seria propriamente a presença africana [...], mas sim a

indígena. Em relação a este segmento, a posição de Martius foi a de não mencionar

uma contribuição, mas sim indicar que eles eram “ruínas de povos”, ou seja,

descendiam de uma antiga civilização que teria migrado para o Novo Mundo e

entrado em decadência, regredindo ao estágio de selvageria. Ora, essa sutil diferença

em relação aos outros dois povos formadores da nacionalidade brasileira tinha

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importantes implicações. Se refletirmos um pouco, perceberemos que Martius

transferiu para o futuro a definição do que seria a contribuição indígena; dependendo

dos rumos tomados pelos estudos arqueológicos e linguísticos [...] essa contribuição

poderia ser considerada tão importante quanto a dos portugueses (PRIORI e

VENANCIO, 2010, p. 174) 31

.

De acordo com Schwarcz (1993, p. 113), a partir de então “[...] uma delimitação estrita

vigorará no IHGB. Enquanto sobre os negros recaía a pesada carga da impossibilidade de

adaptação, em relação aos índios imperava a visão romântica [...] que lhes reservava um

espaço sobretudo exemplar”. Não se tratava, porém, de substituir o português pelo indígena32

,

como o México havia feito em relação ao espanhol em uma tentativa de expurgar o passado

colonial. Buscava-se, antes, resolver o conflito entre as instâncias do “Mesmo” e do “Outro”,

pré-condição de qualquer literatura de origem colonial (PERRONE-MOISÉS, 2007). A crise

instaurada por esta identidade cindida e tensionada ampliou-se, assim, na exata medida em

que o escritor romântico tomou para si a demanda de pensar “[...] à imagem e semelhança do

Outro, num lugar desprovido do passado do Outro e destituído do seu próprio passado”

(PERRONE-MOISÉS, 2007, p. 32). Considerada a dimensão histórica como um entrave à

conformação da identidade nacional, fez-se premente a necessidade de contornar esta

ausência de passado, de modo que se pudesse descrever o Brasil independentemente, ainda

que indissociável de Portugal – daí o “espaço sobretudo exemplar” destinado ao índio.

Na perspectiva desta tensão ressaltada por Perrone-Moisés, a assunção de um ideal

ligado ao índio, para Cunha (2006), relaciona-se também às imagens dos primeiros contatos

entre portugueses e nativos, sobretudo aquelas referentes à Primeira Missa, reproduzidas na

“Carta” de Caminha. Segundo a autora:

O ideal e a necessidade que movem a produção textual dos meados do século XIX,

para serem compreendidas em sua amplitude e em sua força, requerem que se

extrapole a consideração das exigências institucionais do jovem Estado e as

31

Para Martius, o fato das expedições arqueológicas promovidas pelo IHGB não terem ainda resultado em

descobertas significativas “[...] certamente não basta para duvidar que também neste país reinava em tempos

muito remotos uma civilização superior, semelhante à dos países que acabo de mencionar [Bolívia,

Cundinamarca e México]. [...] Se considerarmos que em alguns lugares, v.g. em Paupatla, se elevam matas

altíssimas e milenárias sobre as construções de antigos monumentos, não se há de achar inverossímil que o

mesmo se encontra nas florestas do Brasil, tanto mais que até agora elas não são conhecidas nem acessíveis

senão em muito pequena proporção” (MARTIUS, 1982, p. 94). Paralelo às escavações arqueológicas, “[...]

desenvolveu-se na capital do Império uma linguística igualmente fantástica, na qual [...] Francisco Adolfo de

Varnhagen, procurou demonstrar, por meio da comparação de vocábulos indígenas com os de antigas

civilizações, a origem euroasiática dos povos tupis-guaranis” (PRIORI e VENANCIO, 2010, p. 171). 32

“Segundo este desenho de contrastes [nação/colônia, novo/antigo], o esperável seria que o índio ocupasse, no

imaginário pós-colonial, o lugar que lhe competia, o papel de rebelde. [...] Mas não foi precisamente o que se

passou em nossa ficção romântica mais significativa. O índio de Alencar entra em íntima comunhão com o

colonizador. Peri é, literal e voluntariamente, escravo de Ceci, a quem venera como sua Iara, “senhora”, e

vassalo fidelíssimo de dom Antônio” (BOSI, 2010, p. 177).

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expectativas de auto-reconhecimento da sociedade, para considerar, no primeiro

plano, as compulsões mais íntimas de todos os escritores que, a partir daquele

século, investiram na configuração da nacionalidade. Porque é a si mesmos,

enquanto escritores e herdeiros dos colonizadores, que é preciso legitimar. Nesta

perspectiva, a família original composta por europeu e índia – ou vice-versa – passa

a ser vista prioritariamente como a montagem de uma ascendência ideal,

purificadora e particularizadora, que aplaca a conturbação posta por duas evidências:

a primeira, de que, a rigor, se é intelectualmente [...] europeu [...]; a segunda, de que

a matriz para ser europeu aqui é [...] ser receptivo aos rituais que o imaginário

colonizador produz, contemplá-los mais ou menos a distância, repeti-los

incessantemente, sem inferir na sua lógica própria e já dada (CUNHA, 2006, p.

125).

Assim, a idealização do indígena cumpriria o duplo papel de aparar arestas entre o

“Mesmo” e o “Outro” e de representá-los, a ambos, como uma mesma e inquebrantável

identidade. Pacificadora, a imagem simbólica deste índio guardaria em si a expectativa de

explicitar a singularidade do povo brasileiro em face do português, mas, também e

concomitantemente, a permanência do português em face do brasileiro. A singularidade

justificaria e ratificaria a Independência; já a permanência, por sua vez, tornaria factível a

aspiração do Brasil em constituir-se numa civilização tipicamente europeia, embora situada à

margem da Europa. Especificidade e continuidade, pois.

Noutro plano, o romantismo, como afirma Roncari (1995), possibilita não somente a

afirmação nacional como também a crítica da civilização urbano-burguesa europeia, do que

resulta a valorização e idealização do Novo Mundo. Ainda conforme o autor, o “[...] indígena

americano já não era visto pela cultura européia como o bárbaro selvagem, mas como o

homem natural, puro, ainda não corrompido pelos maus costumes da civilização”

(RONCARI, 1995, p. 290). No entanto, o mesmo tratamento não era dispensado ao negro,

sempre visto sob os estigmas da escravidão e da inferioridade. Neste sentido, conforme

afirmam Priori e Venancio:

Aos índios podia ser atribuído o que, supostamente, faltava ao negro, permitindo-

lhes rivalizar com os brancos. Da ótica do pequeno grupo de intelectuais que, na

época, refletiu a respeito da identidade nacional brasileira, os primeiros habitantes

do Brasil passaram a ser vistos como portadores de valores que até os portugueses

da Época Moderna, marcados pela ânsia do lucro e do acúmulo de bens materiais,

haviam perdido. Para os autores que adotaram este tipo de concepção, o mundo

indígena teria conservado a nobreza, a generosidade e a bravura do mundo antigo,

valores que não existiam mais nas sociedades contemporâneas. A tradição indígena

– ou a invenção desta tradição – fornecia, por assim dizer, os ingredientes que

faltavam para fazer do brasileiro um ser diferente do português, mas nem por isso

inferior (PRIORI e VENANCIO, 2010, p. 175).

Este universo simbólico conservado na figura idealizada do índio, suporte básico do

nacionalismo romântico brasileiro e também das perspectivas históricas nacionais do IHGB,

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bem como as inquietações decorrentes de uma identidade a meio termo entre o “Mesmo” e o

“Outro”, deságuam na tríade indianista de Alencar, O guarani, Iracema e Ubirajara. Nesta

direção, o romancista cearense procede à criação do ethos nacional alicerçado em conjecturas

de valores tradicionais indígenas, na miscigenação entre brancos e índios e na exclusão do

negro33

.

Excetuando-se, por já comentado nas páginas anteriores, o terceiro componente do

ethos estabelecido por José de Alencar, convém avançar algumas poucas observações sobre os

dois restantes. Em verdade, o que o escritor cearense elege e descreve como tradição indígena,

na qual deveria ancorar-se a raiz mais profunda do brasileiro, não é mais do que a soma de

valores pertencentes ao colonizador, transplantados e projetados na fantasia romântica do

índio. Neste sentido, Pereira (1996, p. 105) é esclarecedora ao afirmar que até “[...] mesmo a

representação do mundo indígena, quando ainda em estado „natural‟ e sem interferência dos

colonizadores (Ubirajara), já reproduz valores e modelos da sociedade do homem branco e

„civilizado‟”. Ainda a este respeito, Bosi (2010, p. 180-181) considera que a “[...] concepção

que Alencar tem do processo colonizador impede que os valores atribuídos romanticamente

ao nosso índio – o heroísmo, a beleza, a naturalidade – brilhem em si e para si; eles se

constelam em torno de um ímã, o conquistador [...]”. Tais considerações evidenciam, ainda

uma vez mais, a confluência do “Mesmo” e do “Outro” na figura ímpar do índio. Este

movimento convergente produz, no entanto, apenas uma imagem aparente do indígena,

espelhada que é nas personagens brancas. Conclui Pereira (1996, p. 105) que da relação “[...]

branco/índio resulta sempre a aculturação dos valores deste em benefício daquele”.

O viés aculturativo do consórcio entre brancos e índios, acima ressaltado por Pereira, é

percebido por Bosi (2010) em termos de um “complexo sacrificial” estruturante da mitologia

romântica alencariana. Segundo o pesquisador, ao comparar-se as tramas coloniais e

indianistas do escritor cearense, percebe-se que suas resoluções se dão “[...] pela imolação

voluntária dos protagonistas: o índio, a índia, a mulher prostituída, a mãe negra. A nobreza

dos fracos só se conquista pelos sacrifícios de suas vidas” (BOSI, 2010, p. 179). A ideia de

sacrifício está também presente na reflexão elaborada por Figueiredo (2000) sobre os mitos

românticos. Para a pesquisadora, a miscigenação proposta pelo ideário romântico indianista 33

Registre-se que a exclusão do negro no plano identitário nacional traçado por José de Alencar era condizente

com sua postura política acerca do tema da abolição, uma vez que o escritor “[...] foi um árduo defensor do

escravismo [...]” (PRIORI e VENANCIO, 2010, p. 207). No campo literário “[o romantismo alencariano]

também mostrou-se receoso de qualquer tipo de mudança social, parecendo esgotar os seus sentimentos de

rebeldia ao jugo colonial nas comoções políticas da Independência. Passado este ciclo, qualquer medida que

avançasse no sentido de alargar a tão estreita margem de liberdade outorgada pela Carta de 23 assumia ares de

subversão. Assim, a reforma eleitoral e a questão servil ficaram bloqueadas [...]” (BOSI, 2010, p. 176. Grifos do

autor)).

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ocasiona a gestação de um ser de fronteira que orienta “[...] o sacrifício da cultura indígena

em prol da cultura do colonizador” (FIGUEIREDO, 2000, p. 97). Incisivo, Bosi (2010, p.178-

9), assinala que nas “[...] histórias de Peri e de Iracema a entrega do índio ao branco é

incondicional, faz-se de corpo e alma, implicando sacrifício e abandono da sua pertença à

tribo de origem. Uma partida sem retorno”. Ainda Bosi:

O que importa é ver como a figura do índio belo, forte e livre se modelou em

um regime de combinação com a franca apologia do colonizador. Essa

conciliação, dada como espontânea por Alencar, viola abertamente a história

da ocupação portuguesa no primeiro século [...], enfim é pesadamente

ideológica como interpretação do processo colonial (BOSI, 2010, p. 179).

A interpretação mantida por Alencar sobre o então recente passado colonial propõe

que, dos princípios de “especificidade” e “continuidade”, anteriormente abordados como

premissas do processo de autorreconhecimento do Brasil como realidade autônoma, o

segundo prevaleça sobre o primeiro. Assim, enquanto a “especificidade” é meramente

simbólica, relegada à instância da aparência, sem a possibilidade da percepção de sentidos

mais profundos, a “continuidade” se estabelece subjacente à conformação do ethos nacional,

direcionando-o.

A ideia de mestiçagem que brota deste quadro é igualmente “ideológica”. Não apenas

pela evidente exclusão do negro, mas principalmente pela feição amorosa que Alencar lhe

confere, favorecendo o deslocamento do colonizador “[...] de uma perspectiva de oposição à

cultura nativa [para o] status de elemento purificador no cruzamento das raças” (PEREIRA,

1996, p. 105. Grifos do autor)34

.

Cabe, pois, retomar o preâmbulo desta seção para fins comparativos. Atentou-se,

naquele segmento, para o tratamento dispensado por Gregório de Matos ao tema da

mestiçagem e, por extensão, ao negro. A repulsa do poeta barroco ao mulato, dentre outros

motivos, originou-se da simultaneidade de dois processos: a decadência das elites açucareiras

baianas e a ascensão dos mestiços. Para o poeta, portanto, a mestiçagem era um dado concreto

e negativo. Distintos são o contexto e o sentido que designam a mestiçagem na prosa

alencariana. O romancista, contrariamente à perspectiva alentada por Gregório de Matos,

34

É possível que esta exclusão do negro comporte em si a resposta alencariana à indagação de Martius sobre um

melhor desenvolvimento do Brasil sem o elemento negro. Neste caso, o silenciamento do romancista sobre o

negro torna-se tão eloquente quanto as depreciações promovidas a partir da segunda metade do século XIX.

Assim, ganha força o que Nascimento Neto aponta em artigo sobre O guarani. O pesquisador atenta para o

simbolismo das cores, marca de delimitações raciais, a distanciar as representações de Ceci, branca, e Isabel,

morena, e conclui: “é mister que a morte alcance a vida de Isabel numa amostra clara e direta que o mestiço não

se configura como a verdadeira representação do país” (Nascimento Neto, 2006, p. 40). Pelo menos, não o

mestiço de branco e negro.

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fundamenta uma mestiçagem de ordem unicamente simbólica, porquanto pretenda uma

metáfora, um mito de origem. Em momento algum Alencar lidou ou descreveu um processo

que lhe fosse contemporâneo. Assim, sua mestiçagem não é de natureza real, mas remissiva à

criação de um arcabouço mitológico. Enforma a retomada de um passado longínquo, mítico,

incapaz de atualizar-se devido ao extermínio dos povos indígenas – genocídio sobre o qual

Alencar se calou. É, também, de caráter positivo, pois atua como anulatória das instâncias

diferenciadoras do “Mesmo” e do “Outro”. Ao encobrir e desfazer estas diferenças, bem como

os conflitos que encerram, Alencar promoveu uma convergência do “Mesmo” e do “Outro”

para a representação única do colonizador. Nestes termos, o romancista projetou, em tempos

idos, vislumbres que ansiavam por responder às questões que se lhes apresentavam.

Basicamente, a de como edulcorar uma “especificidade” brasileira, de modo que ela

acarretasse em “continuidade” portuguesa.

Em paralelo às tendências indianistas do século XIX, a extinção oficial do tráfico

negreiro, em 1850, trouxe à baila novas e antigas preocupações35

. O término do regime

escravocrata, até então uma perspectiva longínqua e incerta, com difusas demarcações

temporais futuras, entrevia-se algo próximo, embora não datado – matéria suficiente para

inquietar as elites nacionais dependentes do escravizado. Três questões de naturezas distintas

afiguravam-se no horizonte destas elites: a primeira, de ordem econômica e material, dizia

respeito à substituição do escravizado por trabalhadores livres, bem como denotava uma

preocupação com prejuízos decorrentes da perda da “propriedade” cativa. A segunda, de

feição intimista, relacionava-se ao medo, já referido no início deste tópico. A terceira, de

caráter identitário, notável com mais facilidade no período de iminência da Abolição e nos

35

Priori e Venancio (2010) recusam-se a compreender a Lei Eusébio de Queirós como resultante unicamente de

pressões inglesas. De acordo com os autores: “Em 1807, foi abolido o tráfico de escravos em todos os territórios

ingleses. Nos anos seguintes, graças à pressão diplomática sobre Portugal, são firmados tratados em 1810, 1815

e 1817, que previam, para breve, o fim do tráfico no Brasil. Após a Independência, mudam apenas os

negociadores. Entre 1826 e 1830 são assinados novos acordos que transformam o tráfico em pirataria, atividade

ilegal em qualquer ponto do oceano Atlântico. No ano de 1845, por decisão unilateral inglesa, é aprovado o

Aberdeen Act, que permitia o ataque por parte de navios ingleses aos navios de traficantes também em portos

brasileiros.

Embora se deva reconhecer a importância dessas medidas, é difícil atribuir exclusivamente a elas a razão do fim

do tráfico de escravos. Aliás, cabe perguntar: se a pressão inglesa era assim tão avassaladora, por que o tráfico

não foi abolido em 1810 ou em 1830?! Na verdade, o que surpreende é a capacidade de as elites brasileiras

resistir (sic) ao imperialismo inglês. Talvez elas tenham finalmente cedido, extinguindo o tráfico em 1850, por

temerem outro tipo de ameaça: aquela proveniente da sociedade escravista, consubstanciada nas rebeliões da

senzala; temor intensificado a partir de 1835, em razão da Revolta dos Malês, em Salvador [...]” (PRIORI e

VENANCIO, 2010, p. 181).

A despeito de a citação ser por demais extensa, é interessante observar a interpretação que os autores conferem

às origens da Lei de 1850, relacionando-a mais ao medo de possíveis levantes negros do que às pressões

externas. Como se verá a seguir, justamente este relatado clima de medo possibilitou a intensificação de um

imaginário negativo pré-existente sobre as populações negras, fossem elas escravas, forras ou livres. Favoreceu,

portanto, juntamente a outros fatores, à boa acolhida das teorias raciais europeias no Brasil.

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anos que a seguem, questionava as possibilidades de um país mestiço, marcado

indelevelmente pela presença negra. Eis que, ao eloquente silêncio indianista sobre o negro,

sucede o período que o toma como principal imagem literária. Destarte, cabe investigar

brevemente os sentidos que estas imagens informam, bem como as nuanças contextuais com

as quais elas se relacionam.

Se por um lado, Costa (2010, p. 335) evidencia que até “[...] os anos [18]60 as ideias

antiescravistas encontraram escassa repercussão junto à opinião pública”, por outro, Ventura

(2000, p. 333-334) situa que, a partir da citada década, o “[...] negro, o escravo e o mestiço

foram incorporados ao discurso literário e cultural [...] em poemas, romances e peças teatrais,

nos debates parlamentares e em artigos na imprensa”. A recorrência de tais imagens negras é

deveras significativa da inflexão do pensamento social brasileiro para o crescente debate em

torno da inevitabilidade da libertação dos cativos – o que não significa, sobremaneira, sugerir

que a totalidade dos escritores antiescravistas, em oposição à tradição literária brasileira,

reconhecessem laivos de humanidade no negro (BROOKSHAW, 1983). Antes, afluíam, com

maior ou menor intensidade, para a representação e querela acerca das questões elencadas no

parágrafo anterior. Ventura resume:

O cativeiro, antes tido como natural, benevolente e civilizador, passou a ser

denunciado como cruel, injusto e pouco rentável. A substituição de trabalho escravo

pelo assalariado se deu associada à percepção de uma sociedade dividida entre

senhores indefesos, de um lado, e escravos violentos, de outro. A escravidão passou

a ser vista como problemática e se falava entre as elites de um “perigo negro”, que

poderia colocar em risco a civilização brasileira. O projeto de abolição dos escravos

se ligava a um programa de apoio à imigração européia, que recebeu subvenção dos

governos imperial e provincial no final de década de 1880 (VENTURA, 2000, p.

334).

Brookshaw (1983) aponta que a literatura produzida durante este período ocasionou a

intensificação e consequente consolidação dos estereótipos sobre o negro. Ainda segundo o

pesquisador, a imagem do Escravo Fiel, até então predominante, foi substituída por aquelas

conformativas do Escravo Demônio e do Escravo Imoral, que passaram a ocupar as páginas

dos romances brasileiros e o imaginário das elites leitoras. A respeito do tratamento

dispensado ao escravizado pela literatura naquele contexto, novamente é Ventura quem

afirma:

Escravos atormentados, que sofrem nas mãos de senhores impiedosos e cruéis,

enquanto recordam uma África idílica e articulam planos de vingança, surgem nos

poemas de Castro Alves e Fagundes Varela. Romances como A escrava Isaura

(1875), de Bernardo Guimarães, a trilogia de Joaquim Manuel de Macedo, As

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vítimas algozes (1869), ou O cortiço (1896), de Aluísio Azevedo, oscilam entre a

imagem nobre do negro e a afirmação de sua influência maléfica sobre as famílias

brancas. Os efeitos da escravidão, com a “perversão” dos costumes, foram um dos

temas recorrentes no pensamento abolicionista e nos textos literários que trataram do

cativeiro, concebido como “infecção” moral (VENTURA, 2000, p. 334).

As duas últimas concepções do escravizado destacadas por Brookshaw, bem como a

“infecção moral” que delas deriva, são particularmente significativas para esta análise, uma

vez que possibilitam flagrar, em certa medida, novas faces a compor e expandir um ideário

altamente receptivo e propício ao aceite das teorias raciais gestadas na Europa.

É possível agora retomar as observações sobre os quadros da escravidão enfileirados

em As vítimas-algozes – discussão tão somente anunciada anteriormente e mantida em estado

de latência nas últimas páginas. Tais quadros não apenas constituem abundante fonte de

imagens aterradoras sobre o negro, aspectos com os quais Macedo suscita e fortalece o clima

de medo, como também explicita e defende determinadas posturas políticas quanto à polêmica

temática da substituição do trabalho escravo. Desta forma, a obra proporciona uma

interessante e confluente síntese do imaginário norteador das perspectivas de certo viés

político – o de caráter emancipacionista – como também aquele que atribui sentidos ao negro.

Basicamente, o emancipacionismo opunha-se à extinção imediata do regime

escravista, posto projetasse nesta possibilidade um inevitável declínio da economia brasileira,

cuja lavoura encontrar-se-ia, súbita, sem braços e incapaz de produzir. Propunha, em

contraposição ao abolicionismo, que fossem geridas iniciativas lentas, pouco invasivas, de

efeito gradual e parcialmente dependentes da concessão voluntária de alforrias por parte dos

senhores, acarretando uma “[...] extinção lenta e pacífica do sistema escravista até, no

máximo, os últimos dias do século XIX, quando os escravos representariam menos de 1% da

população brasileira” (PRIORI e VENANCIO, 2010, p. 204-5).

Os emancipacionistas vislumbravam, principalmente nos anos 1870, a imigração como

saída ideal para a substituição da mão-de-obra no país, o que, acreditava-se, viria ainda a

traduzir-se em “progresso” e “branqueamento” – acepções correlatas à época. Neste plano

político, caberia ao Império o papel de introduzir mecanismos de redução paulatina da

população cativa negra – posição com a qual D. Pedro II, ele próprio um emancipacionista,

concordava. Desta forma, ganha relevo a Fala do Trono de 1867, ato com o qual o Imperador

alforriou os escravizados sob posse do Estado e defendeu abertamente o emancipacionismo,

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tal como se deu em Portugal, como política extensiva ao Brasil (PRIORI e VENANCIO,

2010)36

.

Ainda segundo a fala de D. Pedro II, o Império deveria, igualmente, subsidiar

experiências imigrantistas, de modo que, ao término da escravidão, a lavoura não sofresse da

falta de braços. Evidentemente, a postura do Imperador, ao permitir entrever um movimento

contínuo e crescente rumo ao fim do escravismo, desagradou tanto aos abolicionistas quanto

aos escravistas37

. Os primeiros pleiteavam o fim imediato do sistema; já os escravistas, ciosos

das relações hierarquicamente estabelecidas entre senhor e escravizado, requeriam, ao menos,

indenizações que salvaguardassem financeiramente a emergente elite cafeeira, então detentora

de grandes investimentos em propriedade escrava38

. Consideradas as tensões do contexto, a

perspectiva adotada por As vítimas-algozes tenta aliar o emancipacionismo, concepção

prevalecente, com os interesses dos senhores de escravizados. Nesta direção, explicita

Süssekind (2003, p. 132):

Não há, pois, grandes disfarces na propaganda emancipacionista romanceada de

Macedo. Nada de permitir a conscientização “inteligente” dos oprimidos ou

quaisquer vinganças, veladas ou ferozes. A emancipação deveria partir dos próprios

fazendeiros e proprietários. E não a troco de nada. Com indenização. E substituindo-

se a mão-de-obra escrava e velhos métodos de plantio por uma modernização

inevitável, louvável e muito mais lucrativa.

Nesta época, em decorrência justamente das grandes somas de capital investido em

cativos, o tema da escravidão, não obstante intensamente debatido e controverso, era

considerado ainda como de fórum particular, atrelado à noção de propriedade privada, o que

dificultava uma ampla intervenção estatal. Assim, a Lei do Ventre Livre, datada de 1871, “[...] 36

Silva (2003), em interessante artigo sobre a atuação antiescravista do Príncipe Dom Obá II d‟África, anota que

a Fala do Trono de 1867 representou, para o Príncipe, a continuidade do processo de conquista da cidadania

iniciada em 7 de janeiro de 1865, quando se criou os Voluntários da Pátria, agrupamento militar composto, em

sua maioria, por escravizados fugidos, quilombolas ou doados pelo senhor em troca da própria dispensa militar. 37

“Em 1871, considerava-se um atentado, um roubo, um esbulho, uma inspiração comunista o projeto que

pretendia liberar os nascituros. [...] Acusou-se o governo de estar comprometendo seriamente o futuro da nação,

permitindo que a questão fosse discutida no parlamento. Falou-se nos perigos da agitação social e na miséria que

adviria se fosse abolida a escravidão no país.

Não menos veementes eram os abolicionistas. Diziam que a escravidão constituía um entrave ao

desenvolvimento econômico do país, impedia a imigração, inibia a mecanização da lavoura, criava uma riqueza

falsa que o brocardo “Pai rico, filho nobre, neto pobre” bem retratava. Repetiam argumentos já tantas vezes

enumerados desde os tempos da Independência; a escravidão corrompia a sociedade, a família, estimulava o ócio

e a imprevidência, deturpava senhores, aviltava escravos, corrompia a língua, a religião e os costumes,

contrariava o direito natural” (COSTA, 2010, p. 334-335). 38

Com o fim do tráfico negreiro, em 1850, e com os perigos, as incertezas e o alto custo do tráfico clandestino,

deu-se início a uma ampla negociação de escravizados do decadente Nordeste açucareiro, cuja última riqueza da

qual poderia dispor era os próprios negros, para as grandes plantações de café do eixo sul-sudeste. Fácil inferir,

portanto, que boa parte do clima de medo retratado por Azevedo (2004) entre paulistas decorre deste aumento

significativo de escravizados vindos de áreas nordestinas, assim como da fama de revoltosos e quilombolas que

carregavam consigo.

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representou a primeira intromissão do Estado nas relações senhor-escravo” (HOFBAUER,

2006, p. 191). A Lei dos Sexagenários, quatorze anos após, complementaria e alargaria o

alcance da primeira, configurando a política oficial de caráter emancipacionista do Império, a

despeito da rápida popularização do abolicionismo no decênio de 1880. Conquanto tais leis

não tenham cumprido o seu fim último, qual seja, promover o término do escravismo de

maneira “natural”, Hofbauer (2006) considera que houve um significativo abalo na

mentalidade escravista, alavancado principalmente pela perspectiva de libertação dos

nascituros bem como pelo estabelecimento de uma data limite para o fim do regime: 1899.

Brookshaw (1983, p. 33), ao reproduzir matéria do jornal Província de São Paulo,

datado de 10 de janeiro de 1880, sugere que Joaquim Manuel de Macedo, escritor de prestígio

durante o Segundo Império, teria sido encarregado por D. Pedro II de escrever uma “[...] obra

antiescravocrata, a fim de preparar o público para a Lei do Ventre Livre”. Caso se considere

esta possibilidade, percebe-se que o abalo da mentalidade escravista inerente à Lei, referido

por Hofbauer em termos de datação para o fim do escravismo, foi pretendido e ficcionalizado

em As vítimas-algozes através da exploração do medo, para o qual concorrem as imagens de

vilanias invariavelmente associadas ao negro escravizado. Segundo Süssekind:

O que liga as ações narradas, o que explica o perfil malévolo dos escravos e ingênuo

dos senhores, o que justifica os finais trágicos das duas primeiras novelas e o

desfecho moralizante da última não é tanto o próprio enredo ou o caráter dos

personagens, mas sim a tese emancipacionista, a afirmação de um “perigo negro”

crescente, que precedem inclusive a leitura das novelas, que estão expressas desde o

prólogo do primeiro volume (SÜSSEKIND, 2003, p. 129).

Através da antonímia “vítima/algoz”, Macedo objetivava, portanto, uma “[...]

explicação sociológica para os crimes cometidos pelos escravos, buscando assustar o senhor,

ao afirmar que mesmo um negro de boa índole era levado, no Brasil, devido à influência da

escravidão, a se entregar aos vícios e à criminalidade” (AMARAL, 2007, p. 221). O efeito

pretendido – inocular o medo no público – é burilado ainda através de recorrentes

interrupções no andamento narrativo, o que permite inserções de advertências ao leitor quanto

à natureza familiar do narrado. Desta forma, Macedo condicionava quem o lia a reconhecer

em suas personagens não somente agentes isoladas, mas histórias que se multiplicavam no

transcorrer do século XIX e que naturalizavam o escravizado, independente da condição que

gozasse frente ao senhor, em um inimigo em potencial:

Concluamos.

Simeão foi o mais ingrato e perverso dos homens.

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Pois eu vos digo que Simeão, se não fosse escravo, poderia não ter sido nem ingrato,

nem perverso. [...]

Entre os escravos a ingratidão e a perversidade fazem a regra; e o que não é nem

ingrato nem perverso entra apenas na exceção.

Porquanto, e todos o sabem, a liberdade moraliza, nobilita e é capaz de fazer

virtuoso o homem. [...]

Este Simeão vos horroriza?...

Pois eu vos juro que a forca não o matou de uma vez; ele existe e existirá enquanto

existir a escravidão no país.

Se quereis matar Simeão, acabar com Simeão, matai a mãe do crime, acabai com a

escravidão (MACEDO, 2006, p. 43-4).

Amaral (2007, p. 228) está correta quando, em contraposição às teorias raciais, afirma

que “Macedo mostrava uma oposição social entre escravos e senhores e não racial. Era o

escravo o inimigo do senhor e não o negro do branco. Caso contrário, a liberdade não seria

capaz de regenerar moralmente o escravo”. Entretanto, como a própria pesquisadora também

reconhece, as narrativas não deixam de evidenciar aspectos mesológicos – África/Brasil – ou

mesmo estritamente raciais – africano/crioulo – como determinantes do sujeito. Desta forma,

a justificativa da escravidão como sistema degradante do negro, embora insistentemente

reforçada, não consegue disfarçar as categorias hierárquicas de superioridade e inferioridade

que obsedam o escritor. Na verdade, tais diferenciações, como enfatiza Süssekind (2003, p.

136), permitem divisar um “[...] preconceito de raça já bem enraizado [...] e perceptível sem

muitas dificuldades”. Assim, conquanto Macedo pretendesse eximir o negro dos crimes

cometidos pelo escravizado, o faz apenas em parte39

:

A exibição da decadência, inclusive econômica, do fazendeiro Paulo Borges depois

que se torna amante da escrava Esméria, em “Pai Raiol – o feiticeiro”, ou da

transformação da menina Cândida numa namoradeira cheia de truques, vaidades e

mentiras, depois que se estreita sua dependência da mucama, em “Lucinda – a

mucama”, funcionam, sem quaisquer disfarces, como parábolas sobre o que poderia

acontecer a alguém ou grupo social que se tornasse “escravo de seus escravos”. Mas

não é só nesses estreitamentos de contato entre sinhás, fazendeiros e cativos que se

ativa o horror não apenas ao escravo, mas ao negro, em Macedo. Basta lembrar a

descrição do Pai Raiol, que mais parece a de um monstro, sintetizada logo no início

da novela [...] mas propositadamente detalhada o bastante para aterrorizar quem a

lesse (SÜSSEKIND, 2003, p. 138).

39

O “talvez” já relatado e a representação extremamente pejorativa da religiosidade africana, que Macedo grafa

candombe, enfraquecem o argumento do escritor: “Soam os grosseiros instrumentos que lembram as festas

selvagens do índio do Brasil e do negro da África; vêem-se talismãs rústicos, símbolos ridículos; ornamentam-se

o sacerdote e a sacerdotisa com penachos e adornos emblemáticos e de vivas cores; prepara-se ao fogo, ou na

velha imunda mesa, beberagem desconhecida, infusão de raízes enjoativas e quase sempre ou algumas vezes

esquálida; o sacerdote rompe em dança frenética, terrível, convulsiva, e muitas vezes, como a sibila, se estorce

no chão: a sacerdotisa anda como doida, entra e sai, e volta para tornar a sair, lança ao fogo folhas e raízes que

enchem de fumo sufocante e de cheiro ativo e desagradável a infecta sala, e no fim de uma hora de contorsões

(sic) e de dança de demônio, de ansiedade e de corrida louca da sócia do embusteiro, ela volta enfim do quintal,

onde nada viu, e anuncia a chegada do gênio, do espírito, do deus do feitiço, para o qual há vinte nomes cada

qual mais burlesco e mais brutal” (MACEDO, 2006, p. 46).

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A descrição disforme do negro africano, portanto, é traçada de modo a contrastar com

aquela outra, vinculada ao crioulo, em que se observam os efeitos suavizantes do “clima” e da

“[...] influência natural do país em que nascera” (MACEDO, 2006, p. 10)40

. Embora não

explicitado, é possível avançar também na interpretação de que tais “modificações

favoráveis”, como afirma o escritor, são resultantes do afluxo de sangue branco ao negro41

,

tacitamente considerado inferior42

. Assim é que novamente Süssekind (2003, p. 139) constata

que as narrativas não cansam de “[...] registrar a melhoria do aspecto, o abrandamento dos

traços, a maior inteligência, o domínio da língua e a esperteza dos escravos nascidos no

Brasil. Por isso Pai Raiol funciona como uma espécie de paradigma de um negro só negro”.

Amaral (2007), embora discorde das implicações concernentes à leitura de Süssekind sobre a

representação imagética de Pai-Raiol, faz coro a seu argumento de que a distinção de

tratamento entre o africano e o crioulo é sintomática de um distanciamento de Macedo em

relação às teorias cientificistas dos Oitocentos:

Podemos perceber que as teses de Macedo, apesar de terem pontos em comum com

as teorias raciais do século XIX, tais como a influência do meio e a superioridade

branca, se diferenciavam destas por uma certa gradação de valores. Tomando como

exemplo as teorias poligenistas do conde de Gobineau e comparando-as com as teses

presentes na obra de Macedo, percebemos que, apesar do determinismo de ambos

em relação à influência do meio, elas diferem em um ponto fundamental. Para o

conde de Gobineau, na miscigenação predominariam as características negativas da

"raça inferior", enquanto para Macedo o crioulo e, mais ainda, o mestiço teriam os

defeitos da "raça inferior" amenizados. Esta espécie de adaptação das teorias raciais

- que tanta repercussão tiveram no Brasil - é justificada pelo fato de Macedo,

fazendo parte da elite ilustrada do país, querer validar o Brasil enquanto nação apta

ao progresso [...] (AMARAL, 2007, p. 228-229).

Como se observou, As vítimas-algozes comporta uma tese emancipacionista cuja

demonstração está vinculada ao imaginário do medo. Neste sentido, o sistema escravocrata

deveria ser extinto menos pelos aspectos de opressão e virulência que lhe são inerentes, do

que pelo “perigo negro” que alavanca e favorece. Corolários desta perspectiva, as

representações de negros nas três narrativas são dotadas de inalterabilidade: relacionam-se ao

40

Originalmente a palavra “crioulo” designava o negro escravizado nascido no Brasil, diferenciando-o daquele

proveniente do continente africano. 41

“O tema da miscigenação não foi abordado por Macedo em As vítimas-algozes. Por ser uma obra de

propaganda a favor da emancipação escrava, em que Macedo apelava para os interesses da família do senhor,

nela, mais do que em nenhuma outra obra, o autor adotou o ponto de vista senhorial. É provável que fosse este o

motivo do seu silêncio acerca da miscigenação nesta obra, uma vez que ela se constituía em verdadeiro tabu para

a elite da época” (AMARAL, 2007, p. 229). 42

“Lugar comum no pensamento do século XIX e anteriores, a idéia da inferioridade do africano assinalava a

sua presença nos discursos sem se perder em longas exposições a respeito. Era como se a pressuposta

concordância geral sobre este ponto dispensasse explicações. Assim, desta premissa, muitas vezes implícita ou

mal explicitada, desenvolvia-se o argumento de que o negro perigoso [...] precisava ser rapidamente incorporado

à sociedade via estratégias disciplinares” (AZEVEDO, 2004, p 54).

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crime, à vilania, à maledicência, à promiscuidade, à sífilis, ao desvirtuamento, à degeneração,

à torpeza, aos atavismos, enfim. Que Macedo se propusesse derivar todas estas imagens da

escravidão e não do negro, ponto pacífico. Que falha neste intento, idem. Assim, uma última

pergunta se faz imperiosa: que restaria ao negro neste libelo antiescravista se suprimida a

escravidão? Ou seja, qual papel Macedo lhe reserva em um modelo de sociedade pós-

escravista? Neste ponto, há mais vagar do que contundência. Amaral (2007), no ponto mesmo

em que o crioulo dista do africano, infere uma possibilidade, uma vez ultimada a escravidão,

de integração do negro, já devidamente miscigenado e despido de qualquer ancestralidade

africana. Macedo, no entanto, não se pronuncia – o que não deixa de ser justificável,

porquanto a preocupação do escritor não fosse a sociedade pós-escravista, mas aquela sob a

efígie da escravidão. Da mesma forma, não lhe inquietava a condição do negro senão em face

do que poderia vir a representar para o branco. Desta forma, em As vítimas-algozes,

desnudado da condição cativa, restaria ao negro não mais que um silêncio semelhante àquele

emanado pelo Quatorze de maio de 1888, passada a euforia do dia anterior, quando se

configurou sua expulsão “[...] de um Brasil moderno, cosmético, europeizado [...] e [foi]

tangido para os porões do capitalismo nacional, sórdido, brutesco” (BOSI, 2010, p. 272.

Grifos do autor).

Caso correta a análise acima, os estereótipos “escravo demônio” e “escravo imoral”,

bem como a imagem da “infecção moral” gestada pela escravidão, elementos-chave da

argumentação de Joaquim Manuel de Macedo, deslizam do campo semântico que

circunscreve a acepção “escravo” para aquele que abarca “negro”. Este movimento imagético

favorece uma concepção apriorística do negro, ainda que à revelia do escritor. Decorre,

portanto, a possibilidade de apreendê-los não mais através dos signos originais, mas

transmutados e cristalizados em “negro demônio” e “negro imoral”.

Convém retomar, a esta altura, os excertos barretianos transcritos no início deste

tópico. A dimensão naturalizante à qual Lima Barreto se opunha ao questionar a suposta

diferenciação genésica entre brancos e negros, encontra-se já no movimento acima flagrado

em As vítimas-algozes, mesmo que a argumentação não seja amparada no discurso

cientificista da época. Destarte, as três novelas de Macedo comunicam, sub-reptícia e, talvez,

inconscientemente, o instante em que as teorias raciais começaram a se insinuar no Brasil, na

tentativa de equacionar determinados lugares sociais, antes protegidos pela rigidez do

binômio senhor x escravizado, em termos de raça. Não à toa, o movimento ascendente destas

ideias coincide com a iminência do processo antiescravista.

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Em tese, o iminente término do sistema escravocrata exigiria um reordenamento das

estruturas sociais de modo que o negro, antes escravizado, fosse integrado ao sistema de

trabalho livre porquanto ascendesse juridicamente à categoria de cidadão. Esta perspectiva

nem ao menos beirava a realidade do antiescravismo nacional, pouco ou nada vinculado à

situação do afrodescendente. O antiescravismo brasileiro foi, antes de tudo, um movimento de

elites preocupadas em salvaguardar os próprios privilégios. Assim, por mais que Silva (2003)

esteja correto ao apontar que a população negra livre, forra ou escravizada, não se manteve

passiva frente aos processos sociais que culminaram na Abolição, a Lei Áurea resulta e dá

lugar a interesses próprios de uma parte das oligarquias nacionais, que objetivava a

substituição integral do negro pelo imigrante europeu – do que decorre a intensificação das

políticas de imigração europeia sob a tutela do Império e, logo após, da República. Nesta nova

configuração social, o lugar de subalternidade historicamente destinado ao negro não se

alterou, conforme afirma Costa:

Como a Abolição resultara mais do desejo de livrar o país dos inconvenientes da

escravidão do que de emancipar o escravo, as camadas sociais dominantes não se

ocuparam do negro e de sua integração na sociedade de classes. O ex-escravo foi

abandonado à sua própria sorte. Suas dificuldades de ajustamento às novas

condições foram encaradas como prova da incapacidade do negro e da sua

inferioridade racial. Chegou-se a dizer que era mais feliz na situação de escravo do

que na de homem livre, pois não estava apto a conduzir a própria vida (COSTA,

2010, p. 343).

Embora a Abolição tenha alterado a estrutura econômica do Estado, não interviu

profundamente na dinâmica das relações hierárquicas do período escravocrata, isto é,

extinguiu, de certo, os papéis de “senhor” e de “escravizado”, mas manteve intactas as

distâncias sociais que os separavam. Ato contínuo, o 13 de Maio também não atuou em

relação ao imaginário pré-existente sobre o negro, mantenedor de preconceitos seculares, de

modo a modificá-lo com vistas à inserção do ex-cativo na sociedade pós-escravidão. Em

verdade, o Estado alimentou-o mais, nutrindo-o de novas feições que não derivavam apenas

da negação ao pleno exercício da cidadania, mas, principalmente, do suporte ao racismo

cientificista importado do Velho Mundo, embora já desacreditado em grande parte do

continente europeu.

A transição do sistema escravocrata para o de trabalho livre se fez acompanhar,

portanto, do advento de determinadas teorias cientificistas legitimadoras de uma ordem

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eurocêntrica de mundo43

. A partir de 1870, em concomitância com a Lei do Ventre Livre, o

Império multiplicou os centros de pesquisa do país, criando e renovando instituições à

semelhança daquelas existentes na Europa. Deu-se, desde então, a importação de teses e

autores que, a despeito de suas diferenças conceituais, apontavam em uníssono para a

consolidação e concentração de poder por uma elite branca, considerada superior, civilizada e

progressista. Silveira destaca:

O racismo científico foi [...] uma parte importantíssima da estruturação, pela

primeira vez na história da humanidade, de uma hegemonia abrangendo todo o

globo terrestre. [...] A Ciência tinha ganho contra a Igreja a dura guerra pela

prerrogativa de falar a Verdade sobre a natureza e a sociedade, tinha se associado à

técnica e à indústria, tinha criado instituições poderosas nas quais produzia-se um

discurso que era sinônimo de pertinência e potência. Este discurso [...] estabeleceu

"objetivamente" a superioridade racial das elites européias, o que conotava sua

superioridade cultural, religiosa, moral, artística, política, técnica, militar e

industrial. Tudo cientificamente comprovado. O racismo científico foi um fator

estruturante da ordem ocidental (SILVEIRA, 1999, p. 89-90).

Bosi (2010, p. 271) considera que o ideário construído à luz desta ciência “[...] fez as

vezes do mito de Cam racionalizado [...]” (Grifos do autor). O pesquisador percebe uma

continuidade de imaginários sobre as populações não-brancas que se mantém inalterável no

pensamento branco-ocidental, qual seja, o da inferioridade e consequente subserviência –

justificada primeiramente no plano religioso e, em seguida, pelo rigor científico. A constância

destacada por Bosi, facilmente verificável pelo percurso pretendido nesta seção, aponta, pois,

para a manutenção das hierarquias raciais. Ora, se esta ciência provava “objetivamente” a

superioridade do homem branco em relação ao negro, os postos de mando e poder conservar-

se-iam incólumes à transição entre sistemas de produção. Assim, como atesta Ortiz (1994), a

importação destes modelos cientificistas baseados na ideia de raça não se deu ao acaso ou por

pura propensão à cópia da matriz europeia, mas por favorecer a manutenção da estrutura

excludente sobre a qual o país se constituiu e desejava permanecer. Schwarcz argumenta:

Em meio a um contexto caracterizado pelo enfraquecimento e final da escravidão, e

pela realização de um novo projeto político para o país, as teorias raciais se

apresentavam enquanto modelo teórico viável na justificação do complicado jogo de

interesses que se montava. Para além dos problemas mais prementes relativos à

substituição da mão-de-obra ou mesmo à conservação de uma hierarquia social

bastante rígida, parecia ser preciso estabelecer critérios diferenciados de cidadania.

43

Não cabe a esta dissertação uma análise pormenorizada das tendências cientificistas dos Oitocentos europeu,

mas apenas indicar o papel que tais teorias desempenharam na estrutura social brasileira, bem como o lugar da

mestiçagem nelas ressignificado.

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54

É nesse sentido que o tema racial, apesar de suas implicações negativas, se

transforma em um novo argumento de sucesso para o estabelecimento das diferenças

sociais (SCHWARCZ, 1993, p. 18).

Também Ventura (2000, p. 354) compartilha desta interpretação. Segundo o autor o

“[...] racismo científico foi adotado, de forma quase unânime, a partir de 1880, enviesando as

idéias liberais, ao refrear suas tendências democráticas e dar argumentos para estruturas

sociais e políticas autoritárias”.

Se as teorias raciais permitiam, por um lado, à sociedade pós-escravista estruturar-se

hierarquicamente de forma a manter o ordenamento prévio, por outro ocasionavam um

inconveniente entrave para se pensar o país, porquanto se considere seu caráter altamente

mestiço – denunciador da presença negra para além da condição servil. Desta forma, as

mesmas teorias que possibilitavam manter os postos de mando das elites brancas frente aos

ex-cativos, desqualificavam-nas em relação a determinados povos europeus, considerados

puros. A mestiçagem incapacitaria o Brasil a trilhar o caminho da evolução e do progresso

porque redutora das potencialidades únicas presentes na raça branca. Em verdade, para estes

teóricos a mestiçagem não seria apenas terrível para os povos brancos, mas também para os

não-brancos uma vez que resultaria inevitavelmente em seres inferiores àqueles que lhes

deram origem. Neste sentido, “[...] a mestiçagem existente no Brasil não só era descrita como

adjetivada, constituindo uma pista para explicar o atraso ou uma possível inviabilidade da

nação” (SCHWARCZ, 1993, p. 13).

A revista BRAVO!, na edição de maio de 2011, revelou alguns trechos de cartas

escritas por Monteiro Lobato, ainda inéditas. É possível compreender, através destes

documentos pessoais, em que sentido se faz a adjetivação comentada por Schwarcz posto que,

para o escritor, em carta a Arthur Neiva, o povo baiano é “[...] positivamente um resíduo, um

detrito biológico” (NIGRI, 2011, p. 30). Em outra carta, desta vez sobre o Rio de Janeiro e

endereçada a Godofredo Rangel, Lobato é mais incisivo:

Dizem que a mestiçagem liquefaz essa cristalização racial que é o caráter e dá uns

produtos instáveis. Isso no moral – e no físico, que feiura! Num desfile, à tarde, pela

horrível Rua Marechal Floriano, da gente que volta para os subúrbios, que

perpassam todas as degenerescências, todas as formas e má-formas humanas –

todas, menos a normal. Os negros da África, caçados a tiro e trazidos à força para a

escravidão, vingaram-se do português de maneira mais terrível – amulatando-o e

liquefazendo-o, dando aquela coisa residual que vem dos subúrbios pela manhã e

reflui para os subúrbios à tarde (NIGRI, 2011, p. 33).

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55

Os fragmentos acima exemplificam, para além da opinião pessoal do escritor, o teor

com que se apresentam as teorias raciais aqui referidas. Em verdade, torna-se mesmo possível

entrever suas correntes mais pessimistas, como as teses do Conde de Gobineau, poligenista

francês que creditava unicamente à mestiçagem a razão de declínio dos grandes impérios da

humanidade (SCHWARCZ, 1993; HOFBAUER, 2006). Para o teórico francês não haveria

uma humanidade única, nascida uniforme, mas, sim, múltiplas e cindidas humanidades,

dotadas de potencialidades e destinos diferentes e opostos. A seguir este pensamento, a

miscigenação entre estas humanidades divergentes provocaria um colapso nas possibilidades

civilizacionais decorrentes da raça considerada superior, o que provocaria a inevitável

derrocada e deterioração. Segundo Silveira (1999, p. 110), Gobineau propunha: “[...] em todas

elas [civilizações], os „elementos de vida‟ teriam sido introduzidos pela raça branca e os

„elementos de morte‟ provenientes das raças anexadas pelos civilizadores ou das desordens

introduzidas pelas misturas de sangue”.

As ideias de Gobineau, assim como a Antropologia Criminal de Lombroso, tiveram

ampla penetração no pensamento social brasileiro44

. Importante destacar, como faz Schwarcz

(1993), que a entrada e popularização da “moda cientificista” no Brasil ocorreram pelo viés da

literatura, principalmente por romances naturalistas, e não pelo caminho estrito da ciência45

.

Ora, a descrição de Pai-Raiol, outrora salientada por Süssekind, assemelha-se imensamente ao

quadro fenotípico traçado por Lombroso como resultante de atavismos – em que pesem a obra 44

Sobre o pensamento de Lombroso, Silveira afirma: “O crime e o comportamento anti-social não foram

considerados por Lombroso atividades deliberadas, voluntárias, mas fenômenos espontaneamente naturais,

manifestando-se tanto no meio animal quanto no vegetal. Como os positivistas consideravam o livre arbítrio uma

doce quimera, nos seres humanos as disposições amorais e homicidas viriam deterministicamente de estruturas

psíquicas e físicas inatas, de mandíbulas pesadas, fraca capacidade craniana, maxilares volumosos, rostos

simiescos, anomalias no orifício occipital, nariz torto ou adunco, barba rara ou ausente, cabeleira abundante,

fisionomia feminina no homem e viril na mulher, alta proporção de canhotos, etc., etc., herdadas de um passado

animal obscuro. [...] Essa propensão ao crime e à ausência de moralidade prolongar-se-iam normalmente entre os

povos "selvagens" ou "primitivos", [...] [recheando], segundo Lombroso e consortes, a vida cotidiana das raças

coloridas” (SILVEIRA, 1999, p. 127-8). 45

“O sucesso de público das obras naturalistas demonstrava que atendiam a condições internas, que estavam

organicamente ligadas à sociedade brasileira de fins do século passado” (SÜSSEKIND, 1984, p. 59). E ainda:

“Acreditava-se, à época, fundamentalmente no poder das „idéias‟ e dos „intelectuais‟ de transformarem a

sociedade. De uma modernização científica da linguagem literária implicar uma efetiva mudança social no país.

De haver „remédios‟ e „receitas‟ capazes de curar um „organismo social doente‟. O dominante era o iluminismo,

o culto da inteligência, uma ideologia ilustrada. E a ansiosa defesa das ciências e da modernização, se bastante

crítica com relação ao beletrismo e a tradição humanítisca do passado imediato, não foi tão longe a ponto de se

fazer acompanhar de uma linguagem política mais radical que a do liberalismo e das „lutas pelo direito‟”.

(SÜSSEKIND, 1984, p. 130-1). Por último, a partir do conto “Heranças”, de Aluísio de Azevedo, afirma

novamente Süssekind (1984, p. 84): “Não são apenas as semelhanças entre pai e filho que ficam restauradas de

acordo com uma irascibilidade e uma sintomatologia consagüínea. Também o indivíduo e a nação a que pertence

tornam-se „organismos‟ análogos, cujo funcionamento e possíveis diagnósticos ficam a cargo da fisiologia. Ou,

nas palavras de Sílvio Romero: „O que se diz da vida orgânica dos indivíduos, se deve repetir também da vida

super-orgânica das sociedades [...]‟. E ficam resguardadas as analogias familiares e a identidade nacional, desde

que postas em „letras de forma‟ de acordo com as leis da hereditariedade, a noção de caráter nacional e a

fisiologia”.

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As vítimas-algozes antecipar tendências estéticas naturalistas e a intenção de Macedo em

distinguir o africano, atávico, do crioulo, melhorado pelo clima e pelo meio. Da mesma

forma, os efeitos da aproximação entre Rita Baiana e Jerônimo em O cortiço, de Aluísio de

Azevedo, parecem metaforizar os ensinamentos de Gobineau, uma vez que:

Jerônimo, imigrante português, chega ao Brasil com todos os atributos conferidos à

raça branca: força, persistência, previdência, gosto pelo trabalho, espírito de cálculo.

Sua aspiração básica: subir na vida. Porém, ao se amasiar com uma mulata (Rita

Baiana), ao se “aclimatar” ao país [...] ele se abrasileira, isto é, torna-se dengoso,

preguiçoso, amigo das extravagâncias, sem espírito de luta, de economia e de ordem.

No início do romance Jerônimo ocupa a mesma posição que João Romão, outro

português que participa também das qualidades étnicas da raça branca. [...] No

entanto, o desfecho do romance é parabólico. João Romão, calculista e ambicioso,

ascende socialmente no momento em que se distancia da raça negra [...]; Jerônimo,

ao se abrasileirar, não consegue vencer a barreira de classe, e permanece “mulato”,

junto à população mestiça do cortiço (ORTIZ, 1994, p.39) 46

.

O corte que se instaura entre o destino daquele que se mantém “puro”, qual seja, o da

ascensão, e a estagnação daquele que se miscigena comporta um plano de nação condizente

com as determinações do conde francês, ainda que Azevedo não seja simpático a Romão.

Admitindo-se esta perspectiva, o Brasil, personificado no cortiço e, mais precisamente, em

Jerônimo, é concebido como alheio aos avanços de civilizações outras, porquanto brancas.

O pessimismo que decorre desta interpretação do país tem seu principal arauto em

Nina Rodrigues, médico que conferiu “[...] às raças o estatuto de realidades estanques [e]

defendeu que toda mistura seria sinônimo de degeneração” (SCHWARCZ, 2009, p. 93).

Desta forma, o maranhense radicado na Bahia era taxativo: “A raça negra no Brasil, por

maiores que tenham sido os seus incontáveis serviços à nossa civilização, [...] há de constituir

sempre um dos fatores da nossa inferioridade como povo” (RODRIGUES, 1977, p. 7).

Vinculado teoricamente às premissas do darwinismo social e da antropologia criminal,

Rodrigues entendia a “[...] criminalidade mestiça [como] uma particularidade nacional”

(SCHWARCZ, 2009, p. 93) – o que levou o autor a reivindicar uma intervenção médica,

baseada em princípios de antropometria e frenologia, no Código Penal do país47

. Com efeito,

46

As mudanças experimentadas por Jerônimo podem ser lidas também através da Lei da Obnubilação Brasílica,

cunhada pelo crítico literário oitocentista Araripe Júnior como premissa para a interpretação da história literária

nacional e comentada por Cairo (2007, p. 496-497), que afirma a abrangência de tal lei para entender tanto as

adaptações de europeus aos trópicos quanto das ideias provenientes do Velho Mundo. 47

“[Nina Rodrigues] defendia que a raça fosse considerada como atenuante da responsabilidade penal, de modo

a se poder lidar com a „criminalidade étnica‟, resultante da coexistência, em uma mesma sociedade, de povos ou

raças em etapas evolutivas distintas. O negro, que ainda não havia ultrapassado o estádio infantil da humanidade,

tenderia não só à loucura e à paranoia, como também ao crime devido à sobrevivência psíquica de caracteres

retrógrados. O mestiço também apresentaria alto grau de criminalidade em razão da degeneração resultante do

cruzamento de raças díspares” (VENTURA, 2000, p. 347).

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Rodrigues associava mestiçagem, degenerescência e crime uma vez que o “[...] cruzamento de

raças tão diferentes antropologicamente, como são as raças branca, negra e vermelha, [resulta]

num produto desequilibrado e de frágil resistência física e moral, não podendo se adaptar [...]

às condições de luta social das raças superiores” (RODRIGUES, 2008, p. 1161). Em

decorrência de tais perspectivas, Rodrigues questiona “[...] a possibilidade de um

desenvolvimento próspero do país” (HOFBAUER, 2006, p. 204).

A improbabilidade de um futuro, tão marcante na postura científica de Nina

Rodrigues, não é uma concepção generalizada. Antes, operou-se uma ressignificação do papel

que a mestiçagem desempenhava nestas teorias de modo a adaptá-las para o contexto racial

brasileiro, o que possibilitaria a construção de um projeto para o país. Costa verifica que

Quando olhamos mais de perto o que esses intelectuais faziam com as ideias raciais

europeias, torna-se claro que eles não eram passivos receptores de ideias produzidas

no exterior, meras vítimas de uma mentalidade colonial que procuravam ver sua

realidade através de ideias vindas do estrangeiro. Seria talvez mais correto dizer que

eles viam aquelas ideias através de sua realidade. A elite branca brasileira já tinha

em sua própria sociedade os elementos necessários para forjar sua ideologia racial.

Tinha aprendido desde o período colonial a ver os negros como inferiores. Tinha

também aprendido a abrir exceções para alguns indivíduos negros ou mulatos.

Qualquer europeu ou americano que postulasse a superioridade branca seria

necessariamente bem recebido. Ele traria a autoridade e o prestígio de uma cultura

superior para ideias já existentes no Brasil. Os brasileiros teriam apenas de fazer

alguns ajustes. E os fizeram. [...] Assim, embora afirmando a superioridade dos

brancos sobre os negros, eles tinham meios para aceitar negros em seus grupos. E

tinham a esperança de eliminar o “estigma” negro no futuro, através da

miscigenação (COSTA, 2010, p. 375-376. Grifos do autor).

A mestiçagem, originalmente teorizada como processo de degradação social, sofre

uma inflexão semântica e passa a representar, para os pesquisadores brasileiros, a

possibilidade de uma identidade nacional, contanto que incida em branqueamento da

população. A ideia jazia na propriedade “purificadora” do sangue branco, presumido superior,

que, após cruzamentos sucessivos entre gerações, eliminaria não só os atavismos oriundos da

presença negra como também, e principalmente, a própria presença negra. Outra não é a

projeção de João Baptista Lacerda, então diretor do Museu Nacional, que, no Primeiro

Congresso Universal das Raças, em 1911, vislumbrava um Brasil sem negros e com uma

população incipiente de mestiços em pouco mais de cem anos48

. “Surgia, portanto, uma saída

48

“Tal prognóstico não era propriamente uma idéia nova, pois fazia parte de uma história longa marcada pelo

ideário do branqueamento. Vimos que em 1821 Franco e Sequeira – apoiados em análises e propostas quase

idênticas – tinham projetado o fim de raça negra igualmente num período de cem anos” (HOFBAUER, 2006, p.

211). Ainda que não seja novidade, como afirma o pesquisador, o contexto em que a análise de Lacerda se

insere, tempos de reestruturação da sociedade pós-escravista, conforma-a de maneira singular às projeções que

lhe são anteriores.

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brasileira para a questão étnica: fundir para extinguir as raças tidas como inferiores”

(VENTURA, 2000, p. 355). Desta forma, Ortiz (1994, p. 21) considera que a “[...] temática da

mestiçagem é [...] real e simbólica: concretamente se refere às condições sociais e históricas

do amálgama étnico que transcorre no Brasil, simbolicamente conota as aspirações

nacionalistas que se ligam à construção de uma nação brasileira”. Schwarcz (1993) considera

que esta saída conceitual através da noção de branqueamento se constitui em uma

originalidade brasileira, possível apenas pelo amálgama teórico originário da necessidade dos

intelectuais em “[...] lidar com uma parte da teoria [responsável pela hierarquização racial] e

obliterar outra [quando referente aos aspectos negativos da mestiçagem]” (SCHWARCZ,

1996, p. 172). Assim, novamente a pesquisadora afirma:

Do darwinismo social adotou-se o suposto da diferença entre as raças e sua natural

hierarquia, sem que se problematizassem as implicações negativas da miscigenação.

Das máximas do evolucionismo social sublinhou-se a noção de que as raças

humanas não permaneciam estacionadas, mas em constante evolução e

“aperfeiçoamento”, obliterando-se a idéia de que a humanidade era una. Buscavam-

se, portanto, em teorias formalmente excludentes, usos e decorrências inusitados e

paralelos, transformando modelos de difícil aceitação local em teorias de sucesso

(SCHWARCZ, 1993, p. 18).

Conforme afirmam Ventura (2000), Azevedo (2004) e Hofbauer (2006), as políticas

de imigração da República eram claras quanto à perspectiva de branquear a população

brasileira, posto facilitassem a entrada de europeus no país, mas restringissem a vinda de

novos africanos, bem como de povos outros considerados não ideais ao desenvolvimento

racial, como os chineses ou “chins”. Dados os discursos nacionalistas deste contexto,

Azevedo (2004, p. 124) destaca que a demonstração de amor à pátria, nos primeiros anos do

século XX, perpassava necessariamente pela modificação da “[...] raça, purificando-a

mediante a transfusão de sangue de raças superiores”. Destarte, Guimarães (2005, p. 53)

constata que a ideologia do “[...] „embranquecimento‟ foi elaborada por um orgulho nacional

ferido, assaltado por dúvidas e desconfianças a respeito do seu gênio industrial, econômico e

civilizatório” e, assim como Schwarcz, defende a especificidade desta noção como

demarcativa do racismo brasileiro49

.

A teoria do branqueamento promoveu uma aparente maleabilidade na rígida estrutura

sócio-racial do país. Salvas as elites, protegidas por um projeto branco de nação, os mestiços

49

“Assim é o racismo brasileiro: sem cara. Travestido em roupas ilustradas, universalistas, tratando-se a si

mesmo como antirracismo, e negando, como antinacional, a presença integral do afro-brasileiro ou do índio-

brasileiro. Para este racismo, o racista é aquele que separa, não o que nega a humanidade de outrem; desse modo,

racismo, para ele, é o racismo do vizinho (o racismo americano)” (GUIMARÃES, 2005, p. 60).

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de pele mais clara, cujas heranças de feições africanas não mais se fizessem notar, ascendiam

a postos que antes lhes eram negados, o que influía psicologicamente na identificação dos

sujeitos, fazendo-os rejeitar ou dissimular quaisquer laivos de pertença a povos não-brancos.

Hofbauer afirma:

Isso porque o ideário do branqueamento induz a negociações pessoais e contextuais

das fronteiras e das identidades dos indivíduos. Essa prática social contribuiu não

apenas para encobrir o teor discriminatório embutido nessa construção ideológica

mas também para abafar uma reação coletiva. Assim, a ideologia do branqueamento

“atua” no sentido de dividir aqueles que poderiam se organizar em torno de uma

reivindicação comum, e faz com que as pessoas procurem se apresentar no cotidiano

como o mais “branco” possível (HOFBAUER, 2006, p. 213).

O branqueamento permitia equacionar, em um só modelo teórico, a estrutura

hierárquica pretendida para o Brasil, qual seja: uma elite branca – posição justificada pelas

concepções evolucionistas e darwinistas sociais –, uma grande camada de gente mestiça,

socialmente distribuída a partir de caracteres fenotípicos e comportamentais e, na base, os

negros. Estes tenderiam duplamente a desaparecer por conta de sua própria inferioridade,

incapacitante para a convivência com raças supostamente superiores, ou pelo caldeamento

racial, o que viria a aumentar o percentual de mestiços quase-brancos ou quase-negros, a

depender de uma série de fatores situacionais.

Munanga (2008, p. 75) afirma que, quando propuseram esta saída, as elites brancas

tinham “[...] clara consciência de que o processo de miscigenação, ao anular a superioridade

numérica do negro e ao alienar seus descendentes mestiços graças à ideologia do

branqueamento, ia evitar os prováveis conflitos raciais conhecidos em outros países [...]”. Ou

seja, o pesquisador conclui por uma intencionalidade consciente na formatação do mito de

uma democracia racial, possível a partir do branqueamento50

. O “medo branco” suscitado pelo

“perigo negro”, que perpassou, em alardes crescentes, todo o século XIX, encontra, enfim, o

seu ponto de alívio. A mestiçagem não somente garantiria o poder ao segmento branco do

país, como, ato reflexo, quebraria a “[...] unidade entre os próprios mulatos, dificultando a

formação da identidade comum do seu bloco, já dividido entre os disfarçáveis (mais claros) e

os indisfarçáveis (mais escuros) e o resto dos visivelmente negros” (MUNANGA, 2008, p.

65).

50

Costa (2010, p. 376-7), não obstante concorde com relação aos efeitos da ideologia da mestiçagem, que

desemboca no mito da democracia racial, afirma que “[...] isso não significa dizer que ele [o mito] tenha sido

criado expressamente pela elite branca para cumprir essas funções. Não podemos inferir intenções e finalidades

de efeitos ou funções. Em outras palavras, devemos distinguir as funções do mito de seus usos (manipulação

expressa)”.

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A concepção teórica do branqueamento perdura praticamente inconteste até o decênio

de 1930, quando as bases raciais de análise e interpretação são subvertidas por tendências

políticas, econômicas e culturalistas51

. Suas marcas, como já descrito no início do preâmbulo,

permanecem atuantes por toda a centúria e ainda nestes primeiros anos do século XXI, o que

indicia o grau de enraizamento das teorias raciais no cotidiano do povo brasileiro, mesmo

entre aqueles que nunca tiveram acesso às leituras de Gobineau, Lombroso, Nina Rodrigues,

Lacerda ou Oliveira Vianna, entre outros.

Entre 1870 e 1930 destacam-se duas abordagens “científicas” da mestiçagem. A

primeira, de repercussão mais restrita posto implicasse pessimismo, apreende os contatos

inter-raciais como deletérios das aptidões inatas das raças envolvidas no consórcio, o que

acarreta invariavelmente a degeneração. É o caso das assertivas de Nina Rodrigues, que se

estendem nas cartas supracitadas de Monteiro Lobato, escritas em 1935 e 1944,

respectivamente. Aliás, em outra carta, cujo trecho também fora publicado por Nigri (2011, p.

26), Lobato escreve: “País de mestiços, onde branco não tem força para organizar uma Kux-

Klan (sic) é país perdido para altos destinos”. Para esta perspectiva, a mestiçagem resulta tão

somente negativa.

Outra abordagem desconsidera o fator de degenerescência, constante nas teorias

originais, e introduz a noção de branqueamento como forma de possibilitar um projeto de

nação, antes obstacularizado por sua indisfarçável feição mestiça. Mais generalizada, esta

tendência tinha a vantagem não só de manter a hierarquia sócio-racial inalterada, como de

promover a sensação de sua inexistência uma vez considerada a mobilidade de determinados

mestiços – os de pele e comportamento mais próximos aos daqueles de padrão branco. Com

isso, objetivava o silencioso extermínio das populações não-brancas através do corrente e por

quase todos desejável caldeamento racial. Muitos são os que se associam a este ponto de vista

como Sílvio Romero, conquanto abandone o “otimismo” em fase posterior, Euclides da

Cunha, Oliveira Vianna e João Baptista Lacerda.

Ora, somem-se a estas duas possibilidades teóricas as observações tecidas aqui sobre

os sentidos da mestiçagem na poesia de Gregório de Matos e na tríade indianista de Alencar,

não obstante a definição estrita de raça lhes fosse ausente. Uma conclusão se impõe: seja na

Colônia, no Império ou na República, a mestiçagem, quando representada e analisada apenas

em face de si mesma, sem quaisquer implicações teóricas ou literárias que denotem

branqueamento do negro ou do indígena, acarreta invariavelmente aquele olhar de esguelha e

51

A respeito destas vertentes teóricas e das obras que as inauguram no Brasil, Cf. MOTA, Carlos Guilherme.

Introdução. In: ______. Ideologia da cultura brasileira (1933-1974). 3.ed. São Paulo: Ed. 34, 2008. p. 59-92.

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repulsa, reportado algumas vezes neste texto, de que fora tradicionalmente alvo. Por outro

lado, quando investida científica e literariamente do poder simbólico de expandir a

branquitude e promover o eurocentrismo, apresenta a atuação revestida de positividade.

Embora passível de apreensão positiva, a mestiçagem não o fora em si, mas apenas como um

movimento de transição, cujo norte apontava insistentemente para o branqueamento.

Em que pesem o percurso delineado nas últimas páginas e a conclusão acima

resultante, elementos ilustrativos da continuidade de uma tradição aversiva ao mestiço, as

teses gilbertianas acerca do ethos nacional, entre as quais a mestiçagem exerce uma

centralidade positiva52

, enformam, sim, uma revolução conceitual53

. Para além do estrito

biologismo dos vários determinismos oitocentistas, redundante em demarcações arbitrárias de

níveis e critérios de humanidade, Gilberto Freyre assume o culturalismo de Franz Boas, de

quem fora discípulo, como perspectiva teórica a guiar a análise da formação patriarcal

brasileira. Este viés interpretativo implica a supressão da noção de raça como categoria de

estudo, elevando-se a esta condição os sistemas culturais delimitativos de povos, observados

através das conformações históricas, sociológicas, econômicas e psicológicas que os

condicionam. Desvinculado, portanto, das ingerências raciológicas da ciência brasileira à

época, Freyre argumentava compreender “[...] o negro e o mulato no seu justo valor [...]”

porquanto separasse raça e cultura, o que o levava a diferenciar “[...] os efeitos de relações

puramente genéticas e os de influências sociais, de herança cultural e de meio” (FREYRE,

2006, p. 32). Assim, para Skidmore (2003, p. 64) “Casa-grande & Senzala agiu como um

catalisador, trazendo à superfície uma série de questões que vinham, desde o final do Império,

incomodando os brasileiros „pensantes‟”. Ainda de acordo com o pesquisador, nesta obra

Longe de provar que os determinismos estavam errados, Freyre celebrava sua

irrelevância. Ele os encobriu num retrato ricamente detalhado de um Brasil colonial

multi-racial. E convidou os brasileiros a chegarem à conclusão de que os

portugueses, assim como os índios e os afro-brasileiros, haviam criado um ambiente

e uma população tão saudável como qualquer outra do mundo (SKIDMORE, 2003,

p. 63).

Ainda a respeito de Casa-grande & Senzala, Ribeiro (1979, p. 65) a classifica como

responsável por “[...] nos reconciliarmos com nossa ancestralidade lusitana e negra [...]”;

52

Para Freyre “[...] a relação senhor/escravo é doentia, sadomasoquista, e trouxe más consequências para a

miscigenação. Mas esta, em si, é só um bem” (REIS, 2007, p. 69). 53

Não se ignora, sobremaneira, a existência de pensadores como Manoel Bonfim, Alberto Torres ou Manuel

Querino que, embora imersos no contexto estudado, divergem em absoluto dos pressupostos teóricos elencados.

Contudo, suas obras não obtiveram repercussão necessária de modo que se possa afirmar que tenham abalado as

estruturas do pensamento da época.

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ascendências inferiores e problemáticas, a julgar pelas premissas do evolucionismo mais

ortodoxo. De fato, ter afastado a sombra da degenerescência e das dúvidas que pairavam por

sobre os ancestrais brasileiros e, principalmente do produto deles nascente, é um mérito de

Freyre. A ideia de pureza, tão cara aos ismos do século XIX, não se afigurava ao pensamento

do antropólogo pernambucano como imprescindível ou mesmo relevante à história das

nações; antes, caberia à natureza miscigenada do português, tocada tão intensamente por

sangue mouro, lograr êxito à colonização e empresa do Brasil.

Conforme acreditava Freyre, a presença árabe na Península Ibérica agiu

psicologicamente sobre o português de forma a diferenciá-lo dos outros europeus,

mergulhados em preconceitos de raça. Em consequência desta ação, o critério de identidade

assumido pelo lusitano aproximou-se mais da religião, ou seja, o catolicismo como padrão

excludente, do que propriamente da identificação racial, praticamente inexistente em território

português54

. Ao colonizador originário desta relação sui generis, portanto, não foram

imputadas restrições morais ou éticas que o impediriam de miscigenar-se com os povos

colonizados, quais fossem. Ademais, a prática de uma ampla miscigenação, ainda de acordo

com Freyre, teria sido a única forma de garantir a posse dos territórios conquistados a

Portugal, uma vez considerada sua população diminuta para a criação, consolidação e

manutenção de sociedades coloniais55

.

Da junção entre as predisposições próprias do lusitano e o imperativo da

miscigenação, Freyre cunhou a imagem de um colonizador cosmopolita, plástico e

contemporizador que, a despeito das rígidas estruturas hierárquicas adotadas, deu forma a

uma sociedade “[...] híbrida de índio – e mais tarde de negro – na composição. Sociedade que

se desenvolveria defendida menos pela consciência de raça, quase nenhuma no português [...]

do que pelo exclusivismo religioso, desdobrado em sistema de profilaxia social e política”

(FREYRE, 2006, p. 65)56

. Assim é que Freyre (2006, p. 367) determina: todo “[...] brasileiro,

54

“Predisposto pela sua situação geográfica a ponto de contato, de trânsito, de intercomunicação e de conflito

entre elementos diversos, quer étnicos, quer sociais, Portugal acusa em sua antropologia, tanto quanto em sua

cultura, uma grande variedade de antagonismos, uns em equilíbrio, outros em conflito. Esses antagonismos em

conflito são apenas a parte indigesta da formação portuguesa: a parte maior se mostra harmoniosa nos seus

contrastes, formando um todo social plástico, que é o caracteristicamente português” (FREYRE, 2006, p. 278). 55

“O escravocrata terrível que só faltou transportar da África para a América, em navios imundos, que de longe

se adivinhavam pela inhaca, a população inteira de negros, foi por outro lado o colonizador europeu que melhor

confraternizou com as raças chamadas inferiores. O menos cruel em suas relações com os escravos. [...] o

português sempre pendeu para o contato voluptuoso com mulher exótica. Para o cruzamento e miscigenação”

(FREYRE, 2006, p. 265). 56

O regime de escravidão, aliás, é defendido e justificado pelo autor: “Tenhamos a honestidade de reconhecer

que só a colonização latifundiária e escravocrata teria sido capaz de resistir aos obstáculos enormes que se

levantaram à civilização do Brasil pelo europeu. Só a casa-grande e a senzala. O senhor de engenho rico e o

negro capaz de esforço agrícola e a ele obrigado pelo regime de trabalho escravo” (FREYRE, 2006, p. 323).

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mesmo o alvo, de cabelo louro, traz na alma, quando não na alma e no corpo [...] a sombra, ou

pelo menos a pinta, do indígena ou do negro”; afirmação com a qual anuncia a especificidade

mestiça do país.

Em paralelo à tematização positiva da mestiçagem, e justamente em decorrência dela,

Freyre reivindica o lugar do negro, trazido ao primeiro plano da argumentação, como

constituinte ativo e civilizador do Brasil uma vez que sua presença, fazendo-se sentir no

íntimo das relações características do país, como também na religião, na língua e na culinária,

é indissociável do ethos que configura o nacional. Destarte, mais do que ao indígena, Freyre

atribui ao negro uma participação singular na conformação do brasileiro:

Os escravos vindos das áreas de cultura negra mais adiantada foram um elemento

ativo, criador, e quase que se pode acrescentar nobre na colonização do Brasil;

degradados apenas pela sua condição de escravos. Longe de terem sido apenas

animais de tração e operários de enxada, a serviço da agricultura, desempenharam

uma função civilizadora. Foram a mão direita da formação agrária brasileira, os

índios, e sob certo ponto de vista, os portugueses, a mão esquerda (FREYRE, 2006,

p. 390).57

A inclusão do negro não só como instrumento servil de trabalho, lastro econômico da

Colônia e do Império, mas em sua dimensão civilizatória, isto é, na medida das influências

que exerceu sobre o índio e, em maior escala, sobre o português, comporta uma

ressignificação da diretriz historiográfica em vigência na época. A partir do já referido plano

de Von Martius para uma história do Brasil, baseado na apreensão e inquirição das

contribuições negras e indígenas, se existentes e positivas à colonização portuguesa,

estabeleceu-se certa tradição negativista quanto à presença africana. Esta tradição, que se

espraiou praticamente inconteste até os anos 1930, em concomitância com as teorias raciais,

57

A despeito da preponderância concedida a Freyre sobre qualquer outro autor que lhe fosse contemporâneo, não

se lhe pode conferir ineditismo ao ponto de vista destacado. Manuel Querino, em comunicação apresentada ao 6º

Congresso Brasileiro de Geografia, intitulada O colono preto como factor da civilização brazileira, afirma: “Foi

com o producto do seu trabalho [do negro] que tivemos as instituições scientificas, letras, artes, commercio,

industria, etc., competindo-lhe, portanto, um logar de destaque, como factor da civilização brazileira.

Quem quer que compulse a nossa historia certificar-se-á do valor e da contribuição do negro na defeza do

territorio nacional, na agricultura, na mineração, como bandeirante, no movimento de independencia, com as

armas na mão, como elemento apreciavel na familia, e como heróe do trabalho em todas as applicações uteis e

proveitosas. Fôra o braço propulsor do desenvolvimento manifestado no estado social do paiz, na cultura

intellectual e nas grandes obras materiaes, pois que, sem o dinheiro que tudo move, não haveria educadores nem

educandos: feneceriam as aspirações mais brilhantes, dissipar-se-iam as tentativas mais valiosas. Foi com o

producto do seu labor que os ricos senhores puderam manter os filhos nas Universidades europeias, e depois, nas

faculdades de ensino do paiz [...].

Do convívio e collaboração das raças na feitura deste paiz procede esse elemento mestiço de todos os matizes,

donde essa pleiade illustre de homens de talento que, no geral, representaram o que ha de mais selecto nas

affirmações do saber, verdadeiras glorias da nação. [...]

Tratando-se da riqueza econômica, fonte da organização nacional, ainda é o colo preto a principal figura, o factor

máximo” (QUERINO, 1918, p. 35-37).

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denegava ao africano, bem como a seus descendentes, o reconhecimento do papel civilizatório

que lhes coube ao afirmar que o desenvolvimento empreendido e alcançado pelo país fora

prejudicado devido à presença negra. A História Geral do Brazil (1854-1857), de Varnhagen

– espécie de obra inaugural desta linhagem – lastima, sem meias palavras, que primeiro

Portugal e, após a Independência, o Império houvessem importado negros africanos para o

trabalho servil nas grandes plantações de cana e café, política com a qual conspurcaram e

dificultaram o movimento ascensional do Brasil à civilização58

. O historiador acreditava que

uma colonização baseada na pequena propriedade, em mãos brancas e sem qualquer laivo

negro, teria acarretado um desenvolvimento diferente e mais benéfico ao país. Devido à

impossibilidade óbvia de um retorno ao zero para uma nova configuração de Brasil,

Varnhagen mantinha, ainda que a contragosto, as esperanças voltadas para a miscigenação, de

modo que se apagassem as características de origem africana, visíveis e apreensíveis no

brasileiro.

Com maior ou menor explicitude, os historiadores que se seguiram a Varnhagen

responderam à pergunta obsedante de Martius da forma paradigmática presente na História

Geral do Brazil, qual seja, associando o parco desenvolvimento brasileiro à larga presença

africana. Reis (2007, p. 27) considera que somente em 1933, com a publicação de Casa-

grande & Senzala, surge uma resposta diferente. Neste sentido, àquela “[...] pergunta de Von

Martius [...], Freyre responde sem hesitar: a presença negra não comprometeu em nada a

criação portuguesa; pelo contrário foi um esteio indispensável” (REIS, 2007, p. 63-64).

Embasado nesta constatação, Freyre dedicou dois capítulos de Casa-grande & Senzala, os

quais recobrem a maior parte da obra, ao estudo acerca da influência do “escravo negro na

vida sexual e de família do brasileiro”. Em outras palavras, Freyre inaugurou um espaço,

antes diminuto, quando não inexistente, para observar a presença do negro na sociedade

brasileira sem que a perspectiva adotada para o estudo, o viés culturalista, viesse a incidir ou

até reforçar o equívoco elaborado a partir do determinismo biológico. Como afirma Costa

Lima (1989, p. 194), trata-se “[...] muito mais que um avanço na interpretação do país [...]”.

Na mesma medida em que Gilberto Freyre foi revolucionário – e por certo o foi, como

se intentou demonstrar aqui –, foi igualmente conservador, continuísta e reacionário. Freyre

talvez se apresente e venha a simbolizar, ele próprio, o “equilíbrio de antagonismos”, máxima

58

Registre-se que Reis (2007, p. 44) acredita que há momentos na obra de Varnhagen em que o historiador

parece “[...] ser menos racista e mais antiescravista: não é somente a presença negra no Brasil que o desagrada,

mas sobretudo a presença da escravidão. Se a presença do negro fosse, infelizmente, inevitável, que ocorresse

em outra condição; uma condição que o ligasse ao Brasil e o levasse a considerá-lo a sua pátria. Como escravo,

ele não se sentia e não poderia ser considerado luso-brasileiro”.

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gilbertiana para explicar o desenvolvimento brasileiro, porquanto o binômio inovação e

permanência, frente a concepções passadistas, seja perfeitamente identificável em toda sua

obra59

. Ribeiro (1979, p. 64) chega mesmo a questionar, dada a improbabilidade de tal mescla,

como fora possível a alguém tão “[...] tacanhamente reacionário no plano político [...]”

escrever um livro “[...] generoso, tolerante, forte e belo”, como Casa-grande & Senzala60

.

Paradoxos à parte, um olhar que se detenha criticamente sobre a produção gilbertiana,

ainda que deslumbrado pela excelência da escrita, nota facilmente a insistência com que o

autor deriva algumas explicações da imbricação das categorias de raça e cultura, o que

constitui um amálgama impreciso dos alcances de um e de outro. Conquanto Freyre tenha

conferido a esta mistura feições e usos “neolamarckianos”, como teoriza Araújo (1994) por

conta dos efeitos adaptativos advindos da ação mesológica, é ainda a partir de determinadas

aptidões inatas ao português colonizador, ao negro africano e ao indígena, que Freyre os

descreve61

. De forma sintomática, cabe igualmente a estes caracteres a conformação do ethos

brasileiro, do qual decorre o modelo estruturado de sociedade. Costa Lima questiona:

Estaria pois o autor [Gilberto Freyre] dizendo que as raças trazem consigo

tendências específicas ou traços psicológicos que favorecem antes uma certa direção

que outra? Por mais contraditório que isso seja quanto ao suposto papel substantivo

de Boas em seu pensamento, esta parece ter sido a sua crença. Pouco lhe importa

que não possa determinar com precisão como se verificaria a incidência das

predisposições associadas a cada raça. É mesmo porque não o pode que lhe importa

a articulação dessa “predisposição” com elementos de ordem cultural! O que vale

dizer, em Gilberto Freyre o vetor cultural não vem substituir o velho preconceito que

privilegia a raça, senão que se lhe acrescente como maneira de lhe dar visibilidade

(LIMA, 1989, p. 205).

59

“Considerada de modo geral, a formação brasileira tem sido, na verdade, como já salientamos às primeiras

páginas deste ensaio, um processo de equilíbrio de antagonismos. Antagonismos de economia e de cultura. A

cultura europeia e a indígena. A europeia e a africana. A africana e a indígena. A economia agrária e a pastoril. A

agrária e a mineira. O católico e o herege. O jesuíta e o fazendeiro. O bandeirante e o senhor de engenho. O

paulista e o emboaba. O pernambucano e o mascate. O grande proprietário e o pária. O bacharel e o analfabeto.

Mas predominando sobre todos os antagonismos, o mais geral e o mais profundo: o senhor e o escravo

(FREYRE, 2006, p. 116). 60

Em entrevista concedida aos jornalistas Carlos Garcia e Lourenço Dantas Mota, originalmente publicada no O

Estado de São Paulo, em 9 de julho de 1979 e organizada em livro por Cohn (2010, p. 177), Freyre afirma ser

“[...] o homem dos paradoxos. Acredito muito na verdade que os paradoxos apresentam. Acho que quase todas

as verdades estão em paradoxos. Sou francamente paradoxal e, com isso, tenho tendência a escandalizar os bem-

pensantes. Os paradoxos chocam os bem-pensantes, e chocam também os matemáticos”. 61

“Na verdade, em vez de ser percebida [a ação mesológica] como um terceiro elemento isolado, que poderia

unicamente se somar aos anteriores [raça e cultura], esta noção deve ser compreendida como uma espécie de

intermediária entre os conceitos de raça e de cultura, relativizando-os, modificando o seu sentido mais freqüente

e tornando-os relativamente compatíveis entre si. Isto só é possível porque Gilberto trabalha com uma definição

fundamentalmente neolamarckiana de raça, isto é, uma definição que, baseando-se na ilimitada aptidão dos seres

humanos para se adaptar às mais diferentes condições ambientais, enfatiza acima de tudo a sua capacidade de

incorporar, transmitir e herdar as características adquiridas na sua – variada, discreta e localizada – interação

com o meio físico [...]” (ARAÚJO, 1994, p. 37. Grifos do autor).

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Para Schwarcz (2010, p. 22), Freyre considera raça como “produto de um processo

dinâmico, que confunde meio e história [...]”. Decorre justamente desta concepção a imagem

lusa esboçada pelo autor. O português que colonizou o Brasil seria dotado naturalmente, por

conta das adaptações processadas por seus ancestrais, de uma “bicontinentalidade”, isto é,

seria oriundo tanto das condições sociais, históricas, culturais e climáticas europeias quanto

africanas62

. Esta característica, advinda da proximidade geográfica com a África, bem como

do sangue mouro, introduzido quando da dominação árabe na Península Ibérica, credenciou o

português como único colonizador europeu a ter sucesso em empreendimentos nos trópicos:

O português não: por todas aquelas felizes predisposições de raça, de mesologia e de

cultura a que nos referimos, não só conseguiu vencer as condições de clima e de solo

desfavoráveis ao estabelecimento de europeus nos trópicos, como suprir a extrema

penúria de gente branca para a tarefa colonizadora unindo-se com mulher de cor.

Pelo intercurso com mulher índia ou negra multiplicou-se o colonizador em vigorosa

e dúctil população mestiça, ainda mais adaptável do que ele puro ao clima tropical

(FREYRE, 2006, p. 74).

Corolário natural da noção de raça, as teses gilbertianas incidem em hierarquizações

entre europeus, índios e africanos de modo a centralizar o comando do país nas mãos do

dominador, mesmo que não o façam em termos estritamente biológicos. Freyre supõe que

existam culturas adiantadas e atrasadas, o que, em conjunção a outros fatores, as tornam aptas

ou não para determinadas situações. Dito de outro modo, Freyre estabelece emblemas

eufêmicos, baseados no olhar comparativo de um eu superior supostamente distanciado, que

indiciam distinções de superioridade e inferioridade. Não é outro, pois, o sentido que deixa

entrever ao classificar o mestiço brasileiro como fruto do contato entre a “[...] espontaneidade,

[o] frescor e [a] emoção [...]”, provenientes das culturas africanas e ameríndias com o “[...]

pensamento adiantado da Europa” (FREYRE, 2006, p. 115). Noutro momento do texto, o

autor é ainda mais explícito ao afirmar que, independente das imprecisões advindas das

circunstâncias econômicas, de cultura ou de ambiente, aspectos delimitativos de cada povo,

“não se negam diferenças mentais entre brancos e negros” (FREYRE, 2006, p. 380)63

. Para o

autor, “ninguém ousará negar que várias qualidade e atitudes psicológicas do homem possam 62

É interessante observar que são unicamente estas características que enformam o ethos brasileiro, os aportes

africanos e indígenas são tidos apenas como importantes contribuições sobre o que o português já havia criado.

Para Bôas (2003, p. 127) “[...] a cultura brasileira começa a se forjar antes da descoberta das terras que se

tornariam o território nacional. Inicia-se na figura do colonizador português, que pela sua bicontinentalidade

entre Europa e África, capacidade de adaptação aos trópicos, predisposição às relações interétnicas e sincretismo

religioso, alcançou fundar uma sociedade agrária, escravocrata e híbrida no Brasil”. 63

Em Sobrados e Mucambos, Freyre repete a fórmula, porém de modo ainda mais explícito: “que existem entre

os sexos diferenças mentais de capacidade criadora e de predisposição para certas formas de atividade ou de

sensibilidade, parece tão fora de dúvida quanto existirem diferenças semelhantes entre as raças” (FREYRE,

2004b, p. 222).

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ser condicionadas biologicamente pela raça” (FREYRE, 2004b, p. 805), até mesmo porque,

novamente Freyre (2004b, p. 806), “[...] a raça dará as predisposições; condicionará as

especializações de cultura humana”. As dissimetrias ocasionadas por estas predisposições

raciais distintas, quando postas em contato sob a égide da escravidão, acarretam “[...] a

degradação das raças atrasadas pelo domínio da adiantada” (FREYRE, 2006, p. 515).

Da mesma forma que o faz entre povos distintos, Freyre estabelece hierarquizações no

interior de cada raça, com o que objetiva melhor qualificar o africano colonizador do Brasil,

assim como o mestiço a que, em parte, deu origem. Segundo o autor, “[...] nada mais

anticientífico que falar-se da inferioridade do negro africano em relação ao ameríndio sem

discriminar-se antes que ameríndio; sem distinguir-se que negro” (FREYRE, 2006, p. 370). O

africano islamizado, por exemplo, a seguir o pensamento gilbertiano, seria superior aos outros

africanos e, principalmente, a qualquer indígena dos tempos da colonização. Esta afirmação

gilbertiana é sobremaneira reveladora: “nota-se que o autor entende os portadores da „cultura

negra mais adiantada‟ como grupos africanos cujo sangue já foi misturado com algum sangue

não negro (HOFBAUER, 2006, p. 247). Esta dessemelhança hierárquica possibilita a Silva

(2010, p. 80) constatar que “Gilberto fez uma adaptação do conceito [de eugenia], criando

uma „eugenia à brasileira‟: selecionou o melhor branco e o melhor negro para que estes

resultassem num „mulato eugênico‟, ou melhor, um „mulato europeizado‟”. Embora à

primeira vista esta análise pareça estranha, a preocupação de Freyre em sempre qualificar o

português, assim como em salientar que não fora qualquer africano trazido ao Brasil, mas um

tipo supostamente superior, incidências que revelam a persistência da raça em sua obra,

permitem e mesmo solicitam a hipótese aventada por Silva.

É justamente neste ponto – o da persistência da noção de raça, não obstante

dissimulada – que a ideia de mestiçagem em Gilberto Freyre aponta para uma direção um

pouco diferente daquela esboçada algumas páginas atrás, em que se declarou sua feição

positiva em face de si mesma, ou seja, sem que houvesse interesses outros que lhe

motivassem o elogio gilbertiano. Admitindo-se que raça, para Freyre, não tenha o mesmo

sentido biológico utilizado pelos teóricos raciais, mas que se traduza em conceito aglutinante

e equidistante dos condicionamentos biológicos, culturais, históricos e mesológicos, é

passível de verificação um plano de continuidade da noção de branqueamento, apenas

substituídos o vetor epidérmico pelo cultural e o paradigma “branco” por português. Em

última análise, a despeito do tom de pele da “morenidade” brasileira, é possível que se

depreenda certa lusitanidade como padrão pretendido por Freyre. Reitere-se Souza (2003, p.

65): apesar de “[...] Freyre ter enfatizado a mestiçagem de raças e culturas, sua tese central em

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relação a esse tema é a da continuidade substancial entre Brasil e Portugal”. Tanto isso é

verdade que a miscibilidade, singularidade nacional mais premente na óptica gilbertiana, é

antes vinculada à plasticidade do português que, sem preconceitos, deitou seu sêmen no

ventre das mulheres colonizadas (FREYRE, 2006), do que efeito simbólico reforçado pela

repetição secular do próprio processo miscigenador. É precisamente neste sentido que Reis

(2007, p. 55-56) considera Casa-grande & Senzala como uma “[...] obra neovarnhageniana: é

um reelogio da colonização portuguesa. É uma justificação da conquista e ocupação

portuguesa do Brasil. [...] Freyre até supera Varnhagen nesse elogio. Seu reelogio do passado

é uma exaltação, uma idealização”.

A mestiçagem gilbertiana torna-se ainda mais problemática se observada à luz do que

pressupõe e do que projeta. Isto é, respectivamente uma escravidão benigna em suas relações

e uma democracia racial, ou social e étnica, para usar a terminologia do próprio Freyre64

. O

sociólogo recupera a imagem corrente nos Oitocentos sobre a escravidão brasileira e salienta

“[...] a doçura nas relações de senhores com escravos domésticos, talvez maior no Brasil do

que em qualquer outra parte da América” (FREYRE, 2006, p. 435)65

. Freyre reforça o

argumento a partir das impressões de estrangeiros que estiveram no Brasil e escreveram sobre

o país, como se buscasse nestes documentos a comprovação irrefutável daquilo que propõe.

Assim, enfatiza que Debbané igualmente percebeu a doçura senhoril no trato dos

escravizados, que comporiam mais “[...] gente de casa do que besta de trabalho” (FREYRE,

2006, p. 299).

A imagem de doçura, por estranha que seja quando relacionada a sistemas de

dominação, deriva tanto de a colonização brasileira ter se organizado a partir da família, com

pouca intervenção prática do Estado (FREYRE, 2006), quanto, principalmente, do sistema

escravista mouro, que permaneceu neolamarckianamente no português, mais precisamente em

seu caráter plástico e contemporizador. Além desta doçura, ou talvez em decorrência ou causa

dela, Freyre anota que “[...] a escassez de mulheres brancas criou zonas de confraternização

entre vencedores e vencidos, entre senhores e escravos” (FREYRE, 2006, p. 33). Este último

conceito, à semelhança da “plasticidade” portuguesa, atua no abrandamento dos rigores da

64

Neste ponto, endossa-se Souza (2003, p. 70), em nota de rodapé: “A discussão sobre se Gilberto Freyre usou

ou não o conceito de „democracia racial‟ parece-me bizantina. Não é importante que ele tenha usado ou não o

nome. O que importa é que ele tenha feito uso do conceito, ou seja, do conjunto de pressupostos e conseqüências

que se descortinam a partir de certas escolhas teóricas. Nesse último sentido é evidente que ele pensava em

temos de uma “democracia racial” como uma forma peculiarmente brasileira de organização social. Essa seria,

inclusive, nossa contribuição à civilização”. 65

Segundo Azevedo (2004) a imagem do Brasil como um “paraíso racial”, uma vez inexistisse preconceitos

desta ordem em seu território, bem como o quadro idílico da escravidão remontam às campanhas abolicionista e

imigrantista.

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escravidão e favorece não o estupro do senhor à escravizada, mas a uma narrativa idílica da

mestiçagem. Lima é contundente:

Como não disponho de bibliografia especializada sobre o que se passou na região

das plantations do sul norte-americano ou com o território de colonização

espanhola, não terei condições de enfrentar a opinião corrente de que, entre nós, a

miscigenação foi bem mais elevada que alhures. Mesmo assim seria correta a

qualificação “zonas de confraternização”? Ou, ao invés, concluir-se por

„confraternização‟ não seria ir além do que permitiriam suas premissas?

Confraternização supõe uma igualdade ao menos eventual entre os parceiros. [...]

Mesmo admitida a „flexibilidade‟ portuguesa, que diminuiria seus preconceitos

quanto à mulher de cor, seria concebível falar-se em „confraternização‟ a propósito

de um contato cuja „igualdade‟ se restringiria ao encontro para o coito? (LIMA,

1989, p. 214).

Freyre, ainda que reconheça a natureza hierárquica das relações estabelecidas entre

senhores e negras escravizadas, não o faz se não apenas em parte. Se por um lado afirma

serem estes contatos entremeados pelos lugares de mando e subserviência próprios da

escravidão, por outro considera que “[...] a necessidade experimentada por muitos colonos de

constituírem família [...]” (FREYRE, 2006, p. 33) acabaram por adoçar a rigidez estrutural do

sistema. Esta formulação, que não é sobremaneira impossível de se ter constituído

pontualmente como exceção e, portanto, sujeita às restrições e aos cuidados característicos do

olhar que se quer antropológico, é elevada por Freyre à condição de regra geral e

inquestionável do sistema escravista brasileiro. Assim, via de regra, o autor embota as tensões

decorrentes da clivagem escravista entre senhores e escravizados, brancos e negros, e sugere

um estreito enlaçamento familial, patriarcal, confraternizante, a uni-los para além das

distâncias intransponíveis do sistema. Esta confraternização, decorrente dos efeitos da

mestiçagem, é de tal forma central para a construção teórica do ethos brasileiro gilbertiano

que Freyre a reafirma novamente em Sobrados e Mucambos: “[...] até o que havia de mais

renitentemente aristocrático na organização patriarcal de família, de economia e de cultura foi

atingido pelo que sempre houve de contagiosamente democrático ou democratizante [...] no

amalgamento de raças e culturas” (FREYRE, 2004b, p. 475). Ao considerar toda a

problemática que deriva desta postulação, Souza (2003, p. 69) é taxativo: “essa construção,

por secundarizar o elemento de opressão e subordinação sistemática, é ideológica e

conservadora no mau sentido do termo”.

Araújo (1994), no entanto, considera que seja apenas uma “meia verdade” – expressão

tomada em seu sentido literal, ou seja, de metade – a acusação que pesa sobre Freyre da

imagem de uma escravidão idílica. O pesquisador argumenta:

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Para tanto, creio que valha a pena começar esta discussão registrando que, da mesma

maneira que encontramos em CGS [Casa-grande & Senzala] um vigoroso elogio da

confraternização entre negros e brancos, também é perfeitamente possível

descobrirmos lá numerosas passagens que tornam explícito o gigantesco grau de

violência inerente ao sistema escravocrata, violência que chega a alcançar os

parentes do senhor, mas que é majoritária e regularmente endereçada aos escravos

(ARAÚJO, 1994, p. 45).

É de fato verdade que Freyre relata os abusos e as violências cometidos pelos senhores

brancos – e, igualmente, pelas senhoras brancas. Assassinatos, alguns envolvendo crianças

pequenas ou ainda por nascerem, castigos e mutilações são dados presentes na narrativa

gilbertiana que podem vir a chocar o leitor. É verdade, inclusive, que estas cenas não chegam

a ser propriamente raras em Casa-grande & Senzala nem que, ao serem descritas, relacionam-

se a motivos outros fora aqueles condicionados pela escravidão. O que escapa a Araújo, bem

como a Risério (2007), defensor do mesmo argumento, é que se não há um apagamento

deliberado destas cenas de maneira a ocultá-las da história nacional, Freyre também não as

considera, independente da dissonância que produzem, como sistemáticas e significativas a

ponto de produzirem um abalo na estrutura benigna da escravatura brasileira. Com isso, ao

invés de apagá-las, Freyre antes as relativiza e oblitera. Assim, a dominação cede à

transigência; as hierarquias, à mestiçagem; a violência, à persuasão; a rigidez, à adaptação e

as tensões, à confraternização. Conforme afirma Souza (2007, p. 195), “cria-se [...] um retrato

evidentemente idílico, que escamoteia todo um processo de dominação marcado antes pela

brutalidade que pela confraternização”.

Pesam, para a construção teórica acima destacada, as generalizações gilbertianas que

partem, todas, de sua própria mirada, caracteristicamente saudosa e passional. Para Freyre

(2006, p. 44), “a história social da casa-grande [que havia sido a sua] é a história íntima de

quase todo brasileiro [...]”, assertiva com a qual o autor situa a especificidade da experiência

senhorial, salvaguardada sob o poder de mando, como locus identitário de descendentes tanto

dos senhores quanto dos escravizados. Perspectiva de per si refutável, porquanto implique a

negação de vivências outras além daquela responsável por formular o discurso e, por

conseguinte, incida sobre um eu isolado que se imagina nós, a pretensão de Freyre é ainda

menos passível de aceitação posto desconsidere as relações de poder assimétricas,

estruturantes da relação histórico-social entre a casa-grande e a senzala. Em entrevista

concedida a Joel Silveira, publicada originalmente na revista Manchete de 9 de julho de 1977,

e reeditada em livro por Cohn, Gilberto Freyre, aparentando hiante sinceridade, é

esclarecedor:

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[...] sou um autor que se autobiografou e, até certo ponto, „autobiografou‟ quase todo

brasileiro – autobiografia coletiva – escrevendo um livro (Casa-grande & senzala)

talvez único pelo que, revelando um indivíduo em busca de sua identidade, revela

também a formação mais íntima de um povo (COHN, 2010, p. 142).

Dadas as considerações acima, talvez seja possível e algo interessante avançar com

uma comparação, conquanto o teor seja meramente ilustrativo. Assim como em Dom

Casmurro é Bentinho quem narra e cria Capitu à imagem e semelhança do ciúme oteliano que

o atravessa, em Casa-grande & Senzala, é Gilberto Freyre, rebento das antigas elites

escravocratas nordestinas, quem toma da palavra e descreve as relações interpessoais

dimanadas da escravidão à imagem e semelhança de quem as viveu do alto hierárquico da

casa-grande. Desta forma, se no romance machadiano a figura de Capitu é ambígua, passível

de incertezas e inquirições decorrentes de sua representação por discurso alheio, de tal

maneira sedutor a ponto de desvanecer as marcas de subjetividade denunciatórias da

construção narrativa, a mesma encenação é perceptível nas tramas gilbertianas acerca das

relações entre brancos e negros, senhores e escravizados. Tal Bentinho, Freyre advoga em

causa própria. Ou melhor, em causa daqueles com os quais o antropólogo pernambucano se

identifica, estima e representa: a estirpe decadente das elites açucareiras do Nordeste, outrora

pujantes. Endossa-se o afirmado por Ribeiro:

O que desejo dizer aqui é, tão-só, que obviamente tem conseqüências o fato de quem

escreveu CG&S [Casa-grande & Senzala] não ser um estranho, mas sim o

protagonista de elite, fidalgo, minoritário na inumerável massa humana [...]. Não há

como esquecer que, à perspectiva do senhor, do dono, corresponde uma visão que é

o reverso da mirada do escravo. Este contraponto ressalta, por exemplo, uma das

características remarcáveis de Gilberto: a sua nostálgica visão de senhor de

engenhos e de escravos, que ele expressa, sentimentalmente, ao longo do livro. É de

todo improvável que aos olhos de um alterno de Gilberto, isto é, um descendente de

escravos da mesma casa-grande, se encontrasse um grão que fosse dessa nostalgia

(RIBEIRO, 1979, p. 77-78).

A natureza benigna com a qual a escravidão brasileira se conformou, segundo o

pensamento gilbertiano, comporta e projeta o suposto de uma democracia racial – perspectiva

tão ou mais frágil e combatível do que a antecedente. Em verdade, a máxima democrática, em

termos sociais e étnicos, é, dentre todas em revista aqui, a mais eficaz do argumento

desenvolvido por Freyre. O antropólogo pernambucano a infunde de forma tal no cotidiano do

país que ela própria se enleia no ethos brasileiro e o traduz – no que se observa um seu

aspecto atemporal, visto o autor considerar ethos como algo essencialmente imutável, embora

sujeito, decorrente que é de predisposições raciais, a achegas neolamarckianas. Em última

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análise, democracia social e étnica apresenta-se como conceito aglutinante que, ao ser

invocado por seu criador, atualiza e funcionaliza contemporaneamente as pretéritas noções

das quais procede: mobilidade; miscibilidade; aclimatabilidade; equilíbrio de antagonismo;

zonas de confraternização; escravidão benigna e, principalmente, plasticidade – “imagem

nuclear” da narrativa gilbertiana, conforme afirma Costa Lima (1989, p. 233)66

. Dito de outra

forma, a aplicabilidade discursiva desta noção, ainda que limitada à realidade descrita por

Freyre, é capaz de reviver o passado no presente de modo a interpretar, na quintessência de

uma relação casual qualquer, a reminiscência daquela primeira, matriz: o senhor e o

escravizado. A retomada do passado em tempos outros, posteriores, é, pois, pré-condição da

escrita do Mestre de Apipucos uma vez que “o passado, para ele, não é passado: configura e

constitui o presente e o futuro; está aqui, estará acolá” (SOUZA, 2007, p. 164).

A metáfora excessiva da mestiçagem gilbertiana não age unicamente em termos

biológicos, embora deles não prescinda67

. Configura-se, antes, por efeito das condições raciais

que se misturam, da plasticidade que se multiplica em novos sangues, como condicionante

político e social basilar e eviterno. Assim é que, para além de sistemas de produção e governo,

de casas-grandes e senzalas, de sobrados e mucambos, cabe à mestiçagem a ação estruturante

da realidade sócio-econômica brasileira, desviando-a de polarizações inflexíveis e

previamente demarcáveis – o que caracteriza o Brasil à maneira de uma sociedade relacional,

como teoriza o antropólogo Roberto DaMatta (1991). Ou seja, uma sociedade que opera de

acordo com um “[...] sistema onde a conjunção tem razões que os termos que ela relaciona

podem perfeitamente ignorar” (DaMatta, 1991, p. 28). Em termos estritamente gilbertianos,

uma sociedade movida antes por amolecimentos do que por rigidez, cuja imagem deriva da

funda penetração da mestiçagem nas práticas cotidianas:

A miscigenação que largamente se praticou aqui corrigiu a distância social que de

outro modo se teria conservado enorme entre a casa-grande e a mata tropical; entre a

casa-grande e a senzala. O que a monocultura latifundiária e escravocrata realizou

no sentido de aristocratização, extremando a sociedade brasileira em senhores e

escravos, com uma rala e insignificante lambujem de gente livre sanduichada entre

66

Note-se, a este respeito, que ao estudar o declínio da sociedade patriarcal de engenho, em Sobrados e

Mucambos, em transição conturbada para o contexto urbano regulamentado pelo poder de instituições vinculadas

ao Estado, Freyre atribui à ação do mulato, representação máxima do ethos nacional, a manutenção da

“brasilidade”: “A casa patriarcal perdeu, nas cidades e nos sítios, muitas das qualidades antigas: os senhores dos

sobrados e os negros libertos, ou fugidos, moradores dos mucambos, foram se tornando extremos antagônicos,

bem diversas, as relações entre eles, das que haviam se desenvolvido, entre senhores das casas-grandes e negros

da senzala, sob o longo patriarcado rural. Entre esses duros antagonismos é que agiu sempre de maneira

poderosa, no sentido de amolecê-los, o elemento socialmente mais plástico e em certo sentido mais dinâmico, da

nossa formação: o mulato” (FREYRE, 2004b, p. 30). 67

O conceito de metáfora excessiva foi retirado de Costa Lima (1989, p. 217) e significa “[...] aquela que „salta‟

além do que lhe permitiria sua base de lançamento”.

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os extremos antagônicos, foi em grande parte contrariado pelos efeitos sociais da

miscigenação. A índia e a negra-mina a princípio, depois a mulata, a cabrocha, a

quadrarona, a oitavona, tornando-se caseiras, concubinas e até esposas legítimas dos

senhores brancos, agiram poderosamente no sentido de democratização social do

Brasil (FREYRE, 2006, p.33).

Para Hofbauer (2006) não é mero acaso a posição central da mestiçagem no quadro

acima transcrito. A feição que Freyre lhe confere, ao igualar socialmente negros, brancos e

índios – discursivamente, ao menos – teria viabilizado a formação da nação e da cultura

brasileiras, o que se apresenta como resposta a uma das grandes questões dos anos 1930. O

problema se instaura à medida que plano discursivo e fato sociológico, isto é, teoria

gilbertiana e realidade social brasileira passam a divergir amplamente. Afinal, um processo de

democratização social de raízes tão longínquas, que se estendem às primeiras datas da

Colônia, não poderia nunca consentir, séculos depois, a marginalidade das populações

descendentes de escravizados ou o quase extermínio dos grupos indígenas. Costa Lima

comenta:

[...] a miscigenação “aqui corrigiu a distância social”. Corrigiu em relação a quê?

Em relação por certo às formas de colonização mais ciosas da preservação da

branquitude dos senhores. O termo “corrigiu” seria adequado apenas se o dado da

cor não prejudicasse as possibilidades de ascensão social. É verdade que o autor

desenvolverá logo depois, em Sobrados e Mucambos (1936), que, durante o segundo

reinado, o diploma de doutor favorecerá os bacharéis, mesmo os mulatos ou

crioulos. Mas a necessidade mesma doutro elemento de qualificação social – a

conclusão do curso superior – demonstra o desacerto da predicação examinada. [...]

Sua decisão interpretativa nos permite identificar outro traço de seu culturalismo: se,

por um lado, seu destaque da cultura não lhe impede de continuar a operar com o

fator „raça‟, por outro, o mesmo destaque da cultura lhe serve de justificativa para

ofuscar o condicionamento sócio-econômico (LIMA, 1989, p. 214-215).

Schwarcz (2010) desenvolve argumento próximo ao de Costa Lima. Segundo a

pesquisadora, não obstante haja algo de tentador na criação teórica de Freyre, se observada

sob a óptica única da cultura, a obliteração de hierarquias e relações dessemelhantes de poder

e negociação inviabilizam-na como proposta sociológica aceitável. Reis (2007, p. 80)

considera que “a história brasileira [descrita por Gilberto Freyre] não é compreendida em

termos de ruptura, conflitos, mudanças bruscas. [...] A narrativa de Freyre, assim que percebe

conflitos, produz a sua dissipação”. Para Bôas (2003, p. 131), “na interpretação de Freyre,

aliás, os conflitos são superados pela força de um convívio social harmônico que o ethos

brasileiro se encarrega de restaurar a cada dia, equilibrando antagonismos e diferenças”. É a

assunção desta premissa, que antes dissimula do que evidencia as reais condições de

existência, que permite a Freyre supor e postular a simplificação das questões raciais no

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Brasil. Em Sobrados e Mucambos, Freyre (2004b, p. 797) conclui: “o negro, no Brasil, está

quase reduzido ao mulato. O problema do negro, entre nós, está simplificado pela

miscigenação larga”. Destarte, a formatação de um ethos nacional pacífico, relacional,

confraternizante e miscigenador – plástico, em uma só palavra – evanesce os conflitos

inerentes a uma sociedade que provém do sistema escravocrata e que insiste recorrentemente

em ladeá-lo, mesmo após a extinção do estatuto servil. O enevoar destas arestas ocasiona a

superelevação do mestiço não apenas a signo de uma suposta democracia social, como

igualmente étnica, donde se anuncia, embora não de modo conclusivo, a imagem de um

paraíso racial68

:

Não que no brasileiro subsistam, como no anglo-americano, duas metades inimigas:

a branca e a preta; o ex-senhor e o ex-escravo. De modo nenhum. Somos duas

metades confraternizantes que se vêm mutuamente enriquecendo de valores e

experiências diversas; quando nos completarmos em um todo, não será com o

sacrifício de um elemento ao outro (FREYRE, 2006, p. 418).

A última assertiva do trecho transcrito merece alguma atenção. A priori, parece indicar

a supressão, em iguais proporções, do negro, do indígena e do branco, consubstanciados todos

no mulato – símbolo da singularidade e da homogeneidade brasileiras. No entanto, a julgar

pela permanência do conceito de raça, do qual se depreendem tanto hierarquizações quanto

aptidões ou inaptidões naturalizadas, bem como do elogio que constantemente devota ao

português, Freyre antes acoberta e falseia a exclusão do que a resolve. Neste sentido,

Munanga (2008, p. 77) esclarece: “Ou seja, encobre os conflitos raciais, possibilitando a todos

se reconhecerem como brasileiros e afastando das comunidades subalternas a tomada de

consciência [...] de uma identidade própria”.

Em termos de nação e, principalmente, das várias conformações identitárias que a

definem, todo e qualquer discurso que vislumbre ou estabeleça uma hipotética

homogeneidade resulta redutor, falso e ideológico – já não há novidade em dizê-lo. Dimana

antes de processos de legitimação dos aspectos excludentes de uma sociedade, com os quais

se valida igualmente a dominação de um grupo sobre outros. Em última análise, é esta

construção enviesada, porquanto unilateral, que se observa nos interstícios da mestiçagem

homogeneizante preconizada por Gilberto Freyre.

68

“Freyre, absolutamente, não isenta a sociedade brasileira do preconceito racial, mas torna-o mínimo, residual,

sob o argumento de que no Brasil não existiu nem existe segregação: a miscigenação constatada na maioria das

famílias brasileiras teria impedido o surgimento de diferenças étnicas marcadas pela violência” (SEYFERTH,

2003, p. 173).

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1.3 DOIS AUTORES, UM CONCEITO, DOIS OLHARES

À página 73 de Sobrados e mucambos (2004b) observa-se que, a despeito de tantas

distinções regionais, Gilberto Freyre defende a concepção de uma unidade nacional através de

um ethos que unifique o país, o que se constata na seguinte advertência: “o estudo das

diferenças não nos deve fazer esquecer o das semelhanças”.

Tome-se esta frase de per si, isolada dos referentes que encerra e reclama.

Desconsiderem-se os desdobramentos que anuncia, os problemas teóricos que acarreta. Por

breves instantes, são como palavras quaisquer, ditas por não se sabe quem, dispostas ao acaso,

soltas em amplidão. Palavras sem dono, sem aspas às quais se interporem. Uma vez, já de

domínio público, altere-se a disposição sintática e, principalmente, semântica dos termos

“diferenças” e “semelhanças”. Modifique-se a frase, portanto, de acordo com o sentido

inverso que originalmente expressa. O estudo das semelhanças não nos deve fazer esquecer o

das diferenças.

O paradigma obtido acima é norteador do que segue – seja nas poucas páginas

restantes a esta seção ou nas tantas que compõem as sessões vindouras. Por outro lado, optou-

se até aqui por uma abordagem mista entre detectar continuidades e dissensões, a partir da

qual se objetivou um panorama de discussões sobre mestiçagem no Brasil. Desta forma,

tornou-se possível observar tanto as várias ressignificações do olhar sobre o tema – teológico,

romântico, cientificista e antropológico culturalista – quanto a atemporalidade das

hierarquizações raciais, ora explícitas, ora dissimuladas, que resultaram irretorquíveis na

exclusão das populações não-brancas.

A partir do ponto de vista alcançado, é possível afirmar, salvaguardadas todas as

diferenças contextuais e conceituais, que, em seu íntimo e em termos práticos, a posição

gilbertiana já não dista tanto assim daquela mantida por Gregório de Matos, no longínquo

século XVII. São dois representantes de uma oligarquia decadente, com profunda tradição

escravista vivenciada por Gregório, como homem branco de seu tempo, e saudosamente

reconstruída por Freyre, nascido doze anos após a Abolição. Se o primeiro detrata a

mestiçagem, posto possibilitasse a ascensão social do mulato que romperia a condição servil

do progenitor negro, e Freyre exalta-a justamente pelo que pressupõe de ação democratizante,

não se estabelece, contudo, neste aparente extremismo de posições, a negação de um no outro,

como esperável.

O elogio gilbertiano à mestiçagem ladeia a glorificação do português como

colonizador, não apenas por seu ímpeto em empreender colônias em quase todos os

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continentes, mas também pelas “felizes predisposições de raça” que lhe permitiram

conquistar, dominar e escravizar de forma plástica, com benignidade. Ora, o ethos nacional

que Freyre enforma é, em grande parte, tributário deste elogio e rende-lhe homenagens

constantemente. Percebe-se, pois, que esta construção dimana unilateral, margeada pelo

“espírito” português acrescido de “amolecimentos” e “corrupções” basicamente africanas.

Não é, pois, de estranhar-se que o projeto de nação sonhado por Gilberto Freyre defina-se

como “luso tropical”, em que se infere, sem muito esforço, a prevalência da genealogia

branca-europeia-lusitana, em detrimento de outras, na conformação do brasileiro. Não em

aspectos estritamente fenotípicos, por certo, mas na configuração de uma ordem sociocultural.

Preservadas as mesmas diferenças conceituais e contextuais acima protegidas, a

concepção de Freyre não se aproximaria por demais das projeções mestiças do texto

alencariano, acrescentando-se o negro ao índio? Ainda sob o anteparo do escudo aberto, não

seria possível visualizar laivos e reincidências da teoria do branqueamento, mesmo que

parcialmente cerceada dos pressupostos biológicos, na imagem última de um povo

gilbertianamente mestiço? A resposta às duas interrogações talvez seja, em parte, sim.

Dadas as considerações do parágrafo anterior, qualquer pesquisa que se dedique a

desvendar unicamente as semelhanças entre Freyre e Amado, no tocante à apropriação da

mestiçagem como discurso, resulta em “meia verdade” – ou ainda menos, caso admita-se a

natureza poliédrica que “verdade” pode assumir69

. Este viés comparativo, além de redutor,

implica ler o texto amadiano de acordo com posições adotadas previamente por outrem, o que

resulta, de forma quase invariável, no eclipse das idiossincrasias do grapiúna. Cabe perguntar,

em face desta perspectiva, se é possível conferir a romances como Jubiabá, Mar morto, Tenda

dos milagres e Os pastores da noite uma dimensão lusófila, como é apreensível na obra de

Gilberto Freyre ou mesmo se, nas referidas narrativas, a mestiçagem se apresenta como

processo em que se verifica o apagamento sistemático do negro, tornado tão só contribuição à

obra colonizadora do português. Em decorrência desta última pergunta, talvez ainda valha a

pena inquirir sobre o lugar destinado ao negro tanto na literatura de Jorge Amado quanto nas

teses de Gilberto Freyre, bem como acerca da espinhosa questão da democracia racial,

presente em ambos.

Que há semelhanças, não se nega nesta dissertação. Que tais similaridades indiciam

certo grau de absorção teórica e de concordância, idem. Mas, qual a medida exata deste “certo

grau” e qual o seu verdadeiro alcance? Até que ponto o universo ficcional amadiano é

69

Na acepção de “meia verdade” reivindicada por Araújo (1994), já devidamente comentada.

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correlato ao universo antropológico de Gilberto Freyre ou em que limite desgarra-se dele e

constitui-se outro, diferente, singular?

Não se trata do esforço vão em mensurar, com fórmula e precisão matemáticas, o

imensurável que reveste o campo das Letras de simbólico e interpretativo. Apenas de uma

leitura, dentre tantas outras possíveis, que objetiva dar algum direcionamento às indagações

acima. Assim, como já anunciado, as próximas páginas são dedicadas exclusivamente ao

estudo de alguns romances de Jorge Amado.

Antes que se passe à segunda seção, convém discutir, embora com pouco vagar,

alguns estudos e comentários que se dedicaram à comparação dos universos de Freyre e

Amado. Luz (2000, p. 214), após definir a “ideologia da mestiçagem” como “faceta da

política do embranquecimento”, considera que “[...] na elaboração e divulgação desta

ideologia dão-se as mãos intelectuais considerados de direita, como Gilberto Freyre, e

considerados de esquerda, como Jorge Amado”. Para Bernd (2004, p. 132), “[...] do ponto de

vista étnico e racial, seu apoio [de Jorge Amado] às teses da mestiçagem fazem-no cair na

ilusão de descrever o Brasil como uma „democracia racial‟”. A obra amadiana, sob este olhar,

seria “[...] tributária das teses de mestiçagem [...] que sustentaram [...] as ideologias do

melting pot (com assimilação e apagamento das especificidades) e do branqueamento, logo,

conservadora [...]” (BERND, 2007, p. 133)70

. Por sua vez, Brookshaw (1983, p. 145), afirma

que os romances de Jorge Amado “[...] são uma apologia ao sistema de relações raciais no

Brasil [...] onde possuir qualquer nuança de negro é um defeito”. Já Duarte (2006, p. 39-40),

não obstante anote certa proximidade entre os autores, observa igualmente uma importante

diferença: “em Tenda dos Milagres, Amado acolhe com clareza o ideal freyriano da

democracia racial, mas, salvo engano, faz dele um projeto de futuro. Talvez o de uma

sociedade multiétnica pautada pelo respeito e integração com a diferença” – com o que,

acrescente-se, já não é o ideal gilbertiano. O antropólogo baiano Ordep Serra dá importante

contribuição ao afirmar:

Pode-se até dizer que o romancista baiano tomou uma direção oposta à de seu

inspirador erudito, em um ponto crucial: Se Gilberto Freyre [...] focalizou, de modo

prioritário, o mundo dos senhores de engenho, as casas-grandes e os sobrados

aristocráticos, e se seu interesse maior foi sempre pelo estamento senhorial, pela

antiga classe dominante, com que se mostrou identificado nesse fascínio, Jorge

70

Importante ressalvar que a argumentação de Bernd, no artigo citado, não parte da conceituação étnico-racial,

mas dos teóricos da créolisation. Assim, a pesquisadora afirma que há um paradoxo na literatura amadiana: se,

da perspectiva racial, ela resultaria problemática, “[...] do ponto de vista cultural, apresenta um universo

crioulizado, desvendando as transferências culturais que se efetuam no Brasil e traduzindo as passagens e

travessias entre os patrimônios culturais de origem africana, indígena e européia, que estão na gênese de algo

novo” (BERND, 2007, p. 132).

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Amado, muito ao contrário, concentrou sua atenção e sua simpatia nos oriundos da

senzala (SERRA, 1995, p. 337-338).

Goldstein (2003) merece algum destaque porquanto dedique parte importante de sua

dissertação de Mestrado, já devidamente publicada, ao tema. No tópico “Jorge Amado

regionalista e freiriano”, integrante da segunda seção da obra, a antropóloga observa as

relações existentes entre os discursos de Jorge Amado e de Gilberto Freyre e não se esquiva

de comentar as confluências e divergências entre ambos:

Existem diferenças biográficas e políticas entre os dois. Entretanto, não se pode

deixar de reconhecer a influência da interpretação do Brasil de Gilberto Freire em

Jorge Amado. Quando dava opiniões sobre problemas nacionais, religião, arte ou

novos livros, Amado recorria a argumentos muito próximos aos de Freire, sem citá-

lo. E as convergências talvez não sejam tão claras para quem lê os romances [...] De

qualquer maneira, não é mero plágio: o romancista filtra alguns dos pontos do

pensamento de Gilberto Freire e colore-os com suas próprias vivências

(GOLDSTEIN, 2003, p. 115).

A pesquisadora ressalta ainda que Amado não era “[...] tão abertamente lusófilo”

(GOLDSTEIN, 2003, p. 113) quanto Freyre e que “povo alegre, festeiro, otimista e resistente

ao sofrimento [é] o povo de Jorge Amado, não exatamente o de Gilberto Freire”

(GOLDSTEIN, 2003, p. 116). Dessemelhanças pontuais, por certo, mas que, a despeito do

tema da mestiçagem, tocam-no pouco, sem adentrá-lo de maneira mais profunda.

Com relação às semelhanças, atente-se ao fato de a antropóloga afirmar não serem,

talvez, “tão claras para quem lê os romances”. Ora, se bem observada, a utilização do termo

“talvez” opera de forma dúbia nesta frase. Por um lado, possibilita a margem da imprecisão,

com a qual a pesquisadora tergiversa de uma afirmação que não domina por completo, ou

com a qual não se quer comprometer. Por outro, constitui-se em mero recurso de estilo e

avança no sentido de afirmar tais convergências, embora, talvez, o leitor não as perceba, por

se apresentarem escondidas e dissimuladas nas narrativas. Assim, para Goldstein, o

equacionamento das semelhanças e diferenças entre Freyre e Amado proporciona a

prevalência da imagem de “freiriano”, cunhada a título do tópico.

E, talvez, o epíteto agradasse ao escritor baiano, não raro os elogios que dirigia à obra

alcançada pelo Mestre de Apipucos. Em entrevista a Alice Raillard, por exemplo, Jorge

Amado afirma:

Gilberto Freyre desempenhou um grande papel, pois Casa-Grande & Senzala é

realmente o livro brasileiro que nos falou ao máximo sobre a nossa identidade, a

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formação da nação brasileira, e a maneira como isto se deu. [...] Ele escreveu um

livro que é fundamental para a nossa vida (RAILLARD, 1990, p. 94-95).

Noutra ocasião, em depoimento a João Moreira Salles, registrado no filme Jorge

Amado, o grapiúna reitera o elogio acima e detalha o papel central que Freyre desempenhou

para a formação de uma identidade nacional:

A obra revolucionária maior e o revolucionário mais importante a meu ver, chamou-

se Gilberto Freyre. E seu livro Casa-Grande & Senzala. Nós estávamos

atrapalhados, confusos. Pensávamos que éramos latinos, europeus, latinos. Alguns

diziam que éramos espanhóis, ibéricos, portugueses, outros, porque liam Victor

Hugo, diziam que nós éramos franceses. Gilberto Freyre chegou com o seu grande

livro, Casa-Grande & Senzala e nos disse como nós somos [...]” (JORGE AMADO,

1995).

Apesar de presumivelmente lisonjeado pela alcunha de “freiriano”, é possível – e

mesmo provável – que Jorge Amado a declinasse, por inadequada. Ao que parece, a estima do

escritor por Casa-grande & Senzala dimana de duas posições: a primeira refere-se à quebra

do paradigma biológico racista, de que emana uma visão positiva da mestiçagem e do

brasileiro em sentido coletivo, de povo; a segunda, à linguagem e ao estilo gilbertiano. Pode-

se verificar, certamente, como nas entrevistas concedidas a Alice Raillard e a João Moreira

Salles, fulguram outras imagens gilbertianas que Amado aprecia e repete, notadamente a do

português “femeeiro”. Todavia, tais juízos ficam subsumidos em sua obra literária, de tal

modo que suscitam dúvidas sobre a adesão irrestrita. Aliás, o próprio Amado não isentou a

obra de Freyre de ser passível de críticas, embora a visse sempre grandiosa: “[...] discorde-se

de idéias, de afirmações, de pontos de vista. Mas como não sentir a alegria de admirar, de

compreender e afirmar sua importância?” (AMADO, 1962, p. 35-36). Críticas, talvez, que

Jorge Amado mesmo as fizesse, caso não escrevesse em comemoração aos 25 anos de Casa-

grande & Senzala:

Todos nós podemos e qualquer um pode discordar de idéias e conceitos de Gilberto

Freyre. Eu mesmo, seu velho amigo e admirador, muito tenho discordado dêle, de

quando em vez nos encontramos em pontos de vista divergentes. O pernambucano é

homem de muito escrever, de muito publicar, de muito discutir. Por isso mesmo,

pelo muito que realiza, nem sempre é possível estar de acôrdo com tudo que êle diz

e faz. Mas não creio ser isso o que importa quando Casa-Grande & Senzala festeja

vinte e cinco anos de bons serviços prestados ao Brasil (AMADO, 1962, p. 34).

Quais seriam estas discordâncias e de que ordem? Seriam, apenas, de natureza

político-ideológica ou comportariam, para além da velha oposição direita x esquerda, razões

outras, quiçá conceituais? Jorge Amado não as escreveu. Entretanto, sem a pretensão de

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advinhá-las, é plausível admitir-se algumas diferenciações que estruturam noções próximas,

porém destoantes no concernente à mestiçagem em Jorge Amado e Gilberto Freyre. Cabe que

sejam indicadas aqui e estudadas mais aprofundadamente nas sessões vindouras.

A primeira destas diferenciações diz respeito ao racismo. É verdade, sem dúvida, que

tanto Freyre quanto Amado o interpretam como uma espécie de aversão antibrasileira, ou seja,

pouco ou nada relacionada ao ethos nacional. São igualmente detectáveis, em ambos,

concepções das diferenças sócio-raciais brasileiras como decorrentes não apenas do

exclusivismo racial, mas, principalmente, de hierarquias classistas – o racismo estaria, assim,

parcialmente vinculado não a uma ojeriza particular ao negro, mas aos estigmas da escravidão

e da pobreza a ele associados. A clivagem entre o antropólogo pernambucano e o escritor

baiano, quanto a esta temática, origina-se dos modos de vertê-la em texto. Freyre o faz

enfatizando que, não obstante sua existência, “[...] existem grupos que, interpenetrando-se,

vêm concorrendo, através de considerável mobilidade social [...] para favorecer [...] uma

democracia dinamicamente étnico-cultural com o mérito pessoal tendendo [...] a superar

desvantagens tanto de etnia quanto de classe [...]” (FREYRE, 2000, p. 29). Noutro momento,

Freyre defende como “[...] tendência genuinamente portuguesa e brasileira [...] favorecer o

mais possível a ascensão social do negro” (FREYRE, 2006, p. 503). Jorge Amado, por sua

vez, a despeito da ascensão social de Tadeu Canhoto, em Tenda dos milagres – ou mesmo por

conta dela – não titubeia ou dissimula diante da constatação de práticas racistas no cotidiano

brasileiro. Ao contrário, elas estão no centro de romances como Jubiabá, ainda que reduzida a

um problema de classes no final, e também em Tenda dos milagres. Tais constatações

permitem que o escritor afirme, no filme de João Moreira Salles, ter dedicado sua vida à luta

contra o racismo.

A segunda diferenciação – e, talvez, a mais importante – relaciona-se ao lugar do

negro como ser físico e cultural no panorama mestiço da sociedade brasileira. Já se viu o

quanto a noção de mestiçagem em Gilberto Freyre é enganosa pelo tanto de adesão ao

branqueamento. Neste sentido, para Boulos Júnior (2001, p. 27), “embora o próprio Freyre

tenha reconhecido [...] um processo da (sic) africanização em solo brasileiro, o que ele exalta

nos africanos é o fato de terem ajudado a difundir a cultura européia junto aos índios [...] e

não [...] de terem transmitido suas próprias culturas”. Em decorrência desta análise, Boulos

Júnior (2001) defende a ideia de que, para Freyre, “negro” e “brasileiro” correspondem a

termos distintos, uma vez que o primeiro se diluiu no segundo, dotado de feições luso-

tropicais.

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Noutro plano, observou-se nas teses gilbertianas uma nítida hierarquia entre raças, o

que traz consigo a sombra inescapável de destinos naturalizados. Não à toa, ao descrever os

negros africanos, Freyre “[...] recorre predominantemente ao modo metonímico, e o faz

selecionando neles aqueles atributos que serviam ao uso e fruição dos seus senhores”

(BOULOS JÚNIOR, 2001, p. 96). Exemplo maior desta linha argumentativa, a imagem do

negro adaptado à escravidão é deveras recorrente nas teses de Freyre (2000; 2004a; 2004b e

2006) e permite a leitura de uma condição que lhe fosse inerente porquanto inferior, ou

“atrasado”, na terminologia gilbertiana. É sintomático, pois, que o antropólogo de Apipucos

acredite que haja um desejo inconsciente no negro de estar sob os “cuidados” de um senhor

branco:

É que até em negros rebeldes estava quase sempre presente, no Brasil patriarcal e

escravocrático, o desejo de serem guiados e protegidos paternalmente por brancos

ou senhores poderosos. Quando os brancos fracassavam como pais sociais de seus

escravos negros para os tratarem como simples animais de almanjarra, de eito ou de

tração ou simples „máquinas‟ de ganho, de produção ou de trabalho, é que muitos

negros os renegavam (FREYRE, 2004b, p. 657).

Renegavam os senhores, ainda segundo Freyre (2004b, p. 158), não como princípio de

revolta contra as condições de opressão do sistema escravista, mas como casos pontuais,

isolados, posto saíssem “[...] à procura dos engenhos grandes com a fama de paternalmente

bons para os escravos [...]”. As imagens de resignação e passividade negras diante da

escravidão que se depreendem deste quadro compõem, aliás, de tal maneira uma constante das

teses gilbertianas que se confundem indissociáveis à subserviência. Assim é que Freyre (2006,

p. 550) afirma que os escravos desempenharam todas as atividades vis ordenadas pela

escravidão com “[...] uma passividade animal”. Ao término da leitura, já não se sabe mais o

que é efeito reversível e imediato da escravidão, contornável pela mudança de sistema, ou o

que é acréscimo neolamarckiano ao negro, como parece ser o caso do “riso servil do preto” e

“obsequioso”, no mulato (FREYRE, 2004b, p. 793). Neste plano, mesmo estratégias negras

seculares de preservação de uma identidade, como é o caso das origens do sincretismo

religioso, que informam inconformismo e resistência, Freyre (2006, p. 438) as interpreta

como meras concessões da política de assimilação mantida pelas elites escravocratas, com o

que esvazia a condição de sujeito do negro.

Note-se, por último, que a seguir por este estratagema discursivo, Freyre conclui

tacitamente por uma dominação branca de caráter assimilacionista, o que concede à sua

democracia racial ares não tão democráticos assim.

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Outra é a posição de Jorge Amado sobre as populações negras de modo que Ana Rosa

Ramos (2006, p. 57) crava: “na obra romanesca de Jorge Amado, falar do negro é falar da

condição humana [...]”. Há, de fato, uma centralidade do negro na obra amadiana que foge às

implicações gilbertianas de uma mestiçagem lusófila. É a partir da imagem do negro como

sujeito epidérmico, histórico e cultural, que o escritor grapiúna ficcionaliza o cotidiano da

mestiça Cidade da Bahia – sem dúvida portuguesa e índia, mas essencialmente negra,

conforme afirmações de Jorge Amado em entrevista a Gilberto Gil:

[...] eu sempre digo que são igualmente importantes a influência ibérica, influência

branca, a influência indígena e a influência negra. Mas eu sempre digo também que

o nosso umbigo é a África. Que os valores talvez mais fundamentais da nossa

cultura, aqueles que marcam profundamente nossa cultura, vieram no barco dos

escravos. E eu acho que nós devemos ser orgulhosos desses barcos de escravos –

talvez, ainda mais do que das caravelas (TEMPO REI, 1996).

Evidentemente, o negro alçado a protagonista e heroi, cujo riso não se caracteriza

como servil, mas denota coragem, desafio e alegria, condiciona diferenças quanto à

representação da mestiçagem entre a ficção amadiana e as teses gilbertianas. Retome-se

aquela alcançada por Duarte, de uma democracia racial futura, ao invés de presente como em

Gilberto Freyre. Bacelar sintetiza:

Embora sob a premissa da miscigenação harmonizadora, outra é a perspectiva de

Jorge Amado: são os dominados (o povo negro-mestiço) que delineiam a correnteza

da vida social da Bahia. Eles são a bússola de navegação social dos sobrados e ruas

da velha cidade. A sua democracia racial, afirmadora do negro como principal e

preeminente personagem na construção do nosso processo civilizatório aparece

como desejo, vontade, premonição na busca de uma sociedade igualitária e sem

conflitos (BACELAR, 2001, p. 120).

Com base nestas distinções, talvez seja possível, sim, postular uma singularidade

amadiana em relação ao antropólogo pernambucano. Da mesma forma, talvez não seja

exagero aceitar a possibilidade que esta idiossincrasia se estenda ao longo do tempo e se

afirme em face não só de Freyre, como também em relação à longa tradição de um olhar de

esguelha direcionado ao mestiço, porquanto evidencie a presença negra.

Como se verá nas sessões subsequentes, em Jorge Amado, negro e mestiço não

enformam identidades excludentes por força de uma ideologia de branqueamento; antes,

convergem para a formatação de um povo que seja negromestiço. Palavra escrita por

aglutinação de dois substantivos que se fundem e designam um só, cujo primeiro termo

adjetiva e norteia: negro.

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2 ENTRE O SOCIALISMO E O NEGRO SUJEITO

Não me amarra dinheiro não,

Mas a cultura.

Dinheiro não,

A pele escura...

Caetano Veloso. Beleza Pura.

Referiu-se majoritariamente, na última seção, à face amadiana estritamente vinculada

à perspectiva de uma sociedade mestiça, isto é, a temática que se desenvolveu logo após a

publicação de Gabriela, cravo e canela. Com isso, ainda que de forma involuntária, correu-se

o sempre iminente risco presente na metonímia – o de naturalizar a parte como o todo, em

uma perspectiva semelhante à expressa por Schwarcz (2009), que se valeu do epíteto “artista

da mestiçagem” em referência ao escritor baiano71

. Esta seção, ao contrário, objetiva diminuir

ou mesmo anular os efeitos generalizantes que advêm desta postura e que podem encerrar

equívocos.

Expressões como a ressaltada acima ou mesmo asserções do tipo “[...] Jorge Amado

sempre foi um grande otimista da mistura” (SCHWARCZ, 2009, p. 37), induzem a uma

conclusão errônea uma vez que indicam um universo ficcional dotado de certa imutabilidade.

Em outras palavras, favorecem o equívoco de se imaginar a obra do grapiúna como uma linha

contínua que se estende, do primeiro ao último romance, sem rupturas ou novas significações.

No entanto, os romances publicados por Jorge Amado entre 1931 e 1954 apontam para

caminhos outros. O primeiro, intitulado O país do carnaval, em particular. O Amado desta

narrativa é, com efeito, o inverso daquele ao qual a pesquisadora paulista atribui o título de

“artista da mestiçagem”.

A alcunha, entretanto, como se viu na seção anterior, não se faz por acaso. Torna-se

justo considerá-la adequada frente a declarações como a que segue:

Muitas vezes, por onde eu ando nos caminhos do mundo, vêm me perguntar se o

Brasil não está perdido, se não há uma lepra comendo os valores fundamentais, os

grandes valores do povo brasileiro. Eu digo: Não, não há. O povo brasileiro é

invencível, porque é um povo mestiço. Ele supera toda a miséria, toda a opressão,

toda a carga terrível que colocam sobre os seus ombros. E a cada momento ele teima

em fazer a festa, em cantar e dançar (AMADO, 2000, p. 29-30).

71

O texto em questão fora escrito originalmente como apresentação à obra O Brasil Best Seller de Jorge Amado:

literatura e identidade nacional, 2003, de Ilana Seltzer Goldstein.

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O trecho em destaque, fragmento de um discurso do autor durante a abertura do I

Simpósio Internacional de Estudos Sobre Jorge Amado, organizado em 1992, a propósito das

comemorações em torno dos seus 80 anos, não é exemplo único do seu pensamento sobre a

mestiçagem. Muitas são as referências elogiosas; pública a sua crença utópica na constituição

futura de uma sociedade verdadeiramente democrática, igualitária e mestiça. Convém insistir

que o problema detectado não se refere tanto ao termo em si, mas ao caráter universal que,

sem observações em contrário, ele traduz.

As considerações acima aventadas concluem e sugerem. Se por um lado afirmam que

a mestiçagem a priori não constituiu aspectos da abordagem de Jorge Amado, inspiram, por

outro, a possibilidade de tal temática, uma vez elevada à condição de eixo estruturante de

certas narrativas comportar um percurso a ser estudado – enfoque que Rossi (2004) tangencia.

Contribui imensuravelmente para esta perspectiva o fato de O país do carnaval

apresentar-se como uma narrativa fortemente influenciada por concepções raciais tributárias

do evolucionismo e do darwinismo social – em que pese toda a negatividade atribuída à

mestiçagem. Destarte, importante frisar que a literatura amadiana parte da negativização de

um fenômeno para, décadas depois, tomar este mesmo fenômeno em uma afirmação revestida

de positividade.

Sem pretender qualquer história da mestiçagem como tema em Jorge Amado, propõe-

se o estudo de um trajeto curto, porém significativo: de O país do carnaval a Mar morto,

romance este em que se prefigura parcialmente o universo ficcional pós-Gabriela.

O recorte justifica-se por conjugar a transição entre projetos literários e o surgimento

do negro-sujeito na obra amadiana. Ou seja, as cinco narrativas que compõem os limites desta

análise encerram movimentos de ressignificação. Desta forma, o pessimismo triunfante de O

país do carnaval cede lugar à descrição das consequências nefastas do capitalismo,

caracterizadas tanto em Cacau quanto em Suor. De arrasto, entre estas mesmas três narrativas,

passa-se de uma veiculação depreciativa, porquanto biologizante das populações não brancas,

o que ocorre em O país do carnaval, para uma valorização do negro e do mestiço como

trabalhadores oprimidos em Cacau e em Suor. O que há de redutor nas representações do

povo negromestiço em Cacau e Suor é largamente superado com a publicação de Jubiabá.

Neste romance, Jorge Amado esboça com vigor a ficcionalização do negro em uma condição

de sujeito, isto é, enaltece não apenas o proletário, mas o homem que existe para além ou

aquém da posição que ocupa na hierarquia social. No entanto, este ímpeto deve ser

relativizado a partir da adesão de Baldo, protagonista de Jubiabá, ao mundo do trabalho, à

perspectiva de classe e à greve.

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Em Mar morto, o que se ensaiou na obra anterior torna-se factível. Nesta narrativa, em

momento algum a utopia socialista se sobrepõe ao canto lírico que Amado devota aos negros

e mestiços que povoam a Baía de Todos os Santos com seus saveiros, seus códigos, seus laços

e sua fé. Apenas no quinto romance amadiano a ficcionalização do povo negromestiço baiano

alcança uma autonomia do representado72

.

Cabe ainda ressalvar que, em termos específicos, o percurso retratado aqui não é

propriamente o da mestiçagem, mas o de elementos que principiam, norteiam e viabilizam sua

ficcionalização positiva, tal como ocorre em Os pastores da noite, Tenda dos milagres e

Tocaia Grande. Busca-se, assim, um continuum que estabeleça laços matriciais entre o

Amado do decênio de 1930, notadamente aquele de Jubiabá e Mar morto, e o romancista de

final dos anos 1950 em diante.

2.1 O PAÍS DO CARNAVAL OU DE JERÔNIMO E DO BRASIL

Ao se investigar a fortuna crítica do primeiro romance amadiano, percebe-se uma

relativa ausência de estudos que dialoguem mais profundamente com as questões levantadas

pela narrativa, o que talvez se explique pela aparente solidão temática e estética do texto, ou

seja, pela inexistência de laços de continuidade com narrativas outras que compõem o

universo literário do autor. Assim, O país do carnaval seria uma espécie de ilha. Esta

72

Quanto ao conceito de autonomia, Bastide (1972, p. 42) salienta que o movimento regionalista de Freyre e

Lins do Rêgo, ao retomar certas opções estéticas caras ao naturalismo, o faz com o predomínio de uma “[...]

situação sociológica, um sistema de relações inter-humanas de dominação [...] não a irrupção do povo

propriamente dito [...]”. Ainda segundo o pesquisador, Jorge Amado rompe com esta perspectiva, configura-se,

assim, em “expressão” e “encarnação” do “proletariado nascente”. Portanto, seguindo-se a argumentação de

Bastide, se Gilberto Freyre e José Lins do Rêgo dissolvem em seus quadros interpretativos a autonomia daqueles

que representam, Jorge Amado a faz precípua à sua narrativa.

Importante frisar que Rossi (2004) se mostra cuidadoso quanto às implicações deste conceito. Para o autor é “[...]

preciso submeter sua obra [de Jorge Amado] a uma análise pormenorizada para entendermos os diversos

sentidos de povo que o escritor forja em momentos distintos de sua trajetória literária e intelectual” (ROSSI,

2004, p. 17).

De um jeito ou de outro, o sentido que o conceito encerra neste estudo possui menos a perspectiva extraliterária

– ou extraficcional – que Bastide evoca e com a qual Rossi se mostra cauteloso, do que a de uma dinâmica social

que se enraíza no cerne de boa parte da obra literária de Jorge Amado. Em outras palavras, a questão não é

considerar o escritor como uma espécie de porta-voz legitimado por aqueles que representa ficcionalmente, mas,

observar a significativa prevalência de idiossincrasias coletivas como marcas identitárias ou estratégias de

resistência de um grupo a uma ordem social excludente – concepção que o conceito de Bastide, mais amplo,

igualmente abarca. O conceito proposto aqui refere-se ainda à relação do universo ficcional com a ideologia do

romancista, isto é, pressupõe a criação literária independente de conteúdos ideológicos.

Embora sob outra perspectiva, Cândido corrobora na lapidação do conceito aqui utilizado. Segundo o autor: “No

trabalho de revelação do povo como criador, [...] nenhum escritor se apresenta de maneira mais característica do

que o sr. Jorge Amado. Os seus livros penetram na poesia do povo, estilizam-na, transformam-na em criação

própria, trazendo o proletário e o trabalhador rural, o negro e o branco, para sua experiência artística e humana,

pois que êle quis e soube viver a deles” (CÂNDIDO, 1972, p. 112).

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perspectiva, porém, baseia-se mais em uma postura de estranhamento frente à obra do que,

propriamente, em fatos que possam ser afirmados. Neste sentido, conforme Jacqueline Penjon

(2004, p. 106) o romance “[...] contém elementos que serão desenvolvidos nas obras

posteriores [...]”, o que é confirmado por Duarte (1996) e Goldstein (2003).

Seja como for, ainda que o romance nada mais seja que um ímpeto de adolescente que

já ostenta algum olhar crítico, mesmo que desprovido de formas ou convicções muito

precisas, a existência e importância de O país do carnaval não podem ser obliteradas. A

pouca produção de estudos críticos sobre esta narrativa, bem como sobre Cacau e Suor, nega

à literatura de Jorge Amado seu ponto de partida, evanesce o movimento evolutivo, neutraliza

as mais significativas transformações que se operam no interior do principiante universo

ficcional: o deslocamento da temática conservadora para o engajamento político de esquerda;

a passagem de um pensamento marcado pelo racismo científico para a positivação e

heroicização do negro e do mestiço.

O país do carnaval causa desconforto em quem o lê. Menos por seus aspectos formais

do que por sua temática, se comparada com qualquer outro romance escrito por Jorge Amado.

A respeito da obra, importante o depoimento do próprio autor:

O País do Carnaval é o livro de um jovem de dezoito anos. Era a idade que eu tinha

quando o escrevi. E todo o pessimismo que transparece neste romance é totalmente

artificial. É uma atitude exclusivamente literária, ingenuamente literária. É uma

máscara, uma roupa emprestada – um pouco como se vestíssemos uma capa de

chuva num dia de sol porque achamos que o efeito é bonito (RAILLARD, 1990, p.

46).

O país do carnaval configura-se como uma “literatura de debate” (DUARTE, 1996, p.

42), em que o autor procura discutir os temas que permeiam as grandes questões do seu

tempo, principalmente entre os mais jovens. Neste sentido, é ainda Duarte quem afirma:

Oscilando entre as postulações modernistas e a tradição crítica do realismo-

naturalismo, O país do carnaval encaminha duas grandes indagações. A primeira –

“o que somos?”, “que país é este?” – busca pensar e discutir o caráter de nosso povo.

A segunda – “para onde vamos?”, “qual a finalidade da existência?” – volta-se para

a nova geração que surgia na virada da década, perplexa diante das transformações

em curso no Brasil e no mundo. Este segundo segmento temático, na verdade um

desdobramento do primeiro, é armado em torno das angústias da juventude

intelectualizada diante das alternativas de inserção social vigentes à época. O livro

procura discutir os caminhos que então se esboçavam, ao mesmo tempo em que

expõe as indagações existenciais do protagonista e do grupo de jovens literatos que

o circunda (DUARTE, 1996, p. 42).

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Organizada em torno de um grupo de amigos – Paulo Rigger, Jerônimo Soares,

Ricardo Braz, José Lopes e Gomes – sob a liderança intelectual do jornalista Pedro Ticiano,

remanescente de gerações anteriores, a narrativa, por vezes, se pretende filosófica sem

conseguir sê-la em profundidade. Correntes de pensamento – ceticismo, materialismo,

tomismo – são postas em discussão na tentativa de responder, ainda que superficialmente, a

inquietações existenciais. A “finalidade da existência” coloca-se, assim, como a grande

questão a ser perseguida pelas personagens. A exceção fica por conta de Pedro Ticiano para

quem, livre de desejos, se houvesse qualquer finalidade na vida, esta seria a morte.

Paulo Rigger, recém chegado da França onde se formara em Direito e incorporara um

tom blasé, é quem vivencia mais fortemente este conflito. Incapaz de ser um cético, tal Pedro

Ticiano, por duas vezes busca no amor a resposta que almeja. Julie, a francesa que conhecera

no navio que o trouxe da Europa, acaba por traí-lo com Honório, empregado da fazenda da

família de Rigger para onde tinham viajado e vivido dias felizes até então. Maria de Lourdes,

menina pobre que vivia em um sótão sem janelas no Pelourinho e de quem Rigger torna-se

noivo, conta-lhe um dia, entre lágrimas, não ser mais virgem. O tradicionalismo patriarcal

recai sobre os ombros de Rigger; inútil tentar desvencilhar-se. O amor resulta-lhe, sem

dúvida, em frustração. O mesmo acontece com os amigos, quase todos infelizes. Excetuam-se

desta lista, porém, Jerônimo e Pedro Ticiano. O primeiro, por motivos que são analisados um

pouco adiante; o segundo, por nada esperar ou desejar da vida. O desencanto de cada uma

destas personagens, que corporificam uma geração, nutre o pessimismo que ronda o romance:

Este livro pretende contar a história de um homem que, tendo vivido na velha

França por muito tempo, voltou à pátria disposto a encontrar o sentido da vida.

Conta a sua luta, o seu fracasso. Conta a luta dos seus amigos, rapazes de talento,

que falharam na existência.

Este livro é um grito. Quase um pedido de socorro. É toda uma geração insatisfeita

que procura sua finalidade (O país do carnaval, p. 13).

Paulo Rigger é, pois, uma personagem em tudo destoante do conjunto dos heróis

amadianos. Não há nele utopia ou otimismo; sua origem não remonta às camadas mais pobres

da população nem a elas se liga por sentimento de solidariedade e não existe qualquer laivo de

pertença ao Brasil ou à Bahia. Em substituição, angústia, pessimismo, ideais pequeno-

burgueses, deslocamento. É de tal modo uma exceção que o autor, em entrevista à tradutora

francesa, afirma:

[...] o Paulo Rigger de O País do Carnaval é, de todos os heróis dos meus romances,

aquele em que eu menos me projeto, o que me é mais estranho. É uma exceção,

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porque creio que em todos os meus outros livros meus personagens, meus heróis

sempre têm algo a ver comigo (RAILLARD, 1990, p. 47).

A despeito da prevalência temática das inquietações existenciais dos jovens da década

de 1930 em O país do carnaval, outra é a perspectiva de abordagem da obra que motiva esta

análise. Aqui se pretende observar o viés étnico-racial, visto que a narrativa se mostra

fortemente influenciada por concepções advindas das teorias mais conservadoras e reticentes

quanto à influência de sangue negro como constituinte ativo do brasileiro.

Viu-se, na abertura da seção anterior, como, principalmente após a abolição do regime

escravocrata, em especial na virada do século XIX para o XX e em suas duas primeiras

décadas, tais teorias atuavam de forma a atualizar as hierarquias raciais para além da

escravidão, conservando intactos os postos de mando e poder. Constatou-se, também, como

estas ideias, apesar de resolverem a querela das hierarquias ameaçadas, gestavam, em

consequência, um problema para se pensar o Brasil. Dado o seu caráter intensamente mestiço,

se consideradas corretas, as teses raciais acarretariam uma impossibilidade de futuro já que

visualizavam a mestiçagem como um fator de degeneração e incapacidade de avanço rumo à

“civilização”.

O eco destas teses ressoa no romance em estudo, o que origina o ponto de inversão do

epíteto “artista da mestiçagem” anteriormente mencionado. Goldstein (2003, p. 130) pontua

que “[...] o escritor, em O país do carnaval, endossa o „racismo científico‟ – formação racial

como fundamental no desenvolvimento histórico do país – e traz a visão de que a

miscigenação [...] leva à degenerescência”. Ainda na mesma página, a autora volta a afirmar

que “[...] em O país do carnaval, Jorge Amado não ousou ir contra a corrente e acabou

reproduzindo, parcialmente, o prognóstico racial aterrorizante que vigorava”. Sobre este

mesmo aspecto, é importante ressaltar que

[...] pretendendo combater o niilismo fin de siècle do pensamento burguês, o livro

resvala em muitos momentos para uma espécie de beco sem saída ideológico. E a

rebeldia juvenil descobre-se subitamente de braços dados justamente com o

pessimismo característico de certa visão de mundo conservadora, responsável por

inúmeros mitos e preconceitos envolvendo o Brasil e seu povo. Se, por diversas

vezes, o texto apresenta situações de crítica ao comportamento segregacionista das

elites, em muitas outras sobrevêm construções em que a fala dos personagens, e

mesmo do narrador, se deixam contaminar por um discurso preconceituoso em

termos de raça, sexo e atitudes atribuídas ao povo brasileiro. E surgem repetidas

velhas teses, como a da indolência [...] (DUARTE, 1996, p.44).

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Não é preciso adentrar muito no romance para que se observe o referido pelos

pesquisadores supracitados: já na nota explicativa, presente na primeira edição e subtraída de

outras, Jorge Amado resume73

:

Este livro tem um cenário triste: o Brasil. Natureza grandiosa que faz do homem

uma pequenez clássica. [...]

No Norte, terra de promissão, há uma grande confusão de raças e de sentimentos. É

a formação do povo. E dessa confusão está saindo uma raça doente e indolente. E

todo dia a natureza surra, com o chicote do sol, o nortista tragicamente vencido (O

país do carnaval, p. 14)74

.

Não obstante a afirmação de Rabassa (1965, p. 266), segundo a qual, no fragmento

acima transcrito, o autor baiano “[...] fala da mistura das raças, condição natural da região, e

não a causa de seus problemas”, o encadeamento lógico-semântico denota, sim, um

pensamento racista. Afinal, ressalta um aspecto causal em que a condição “doente e

indolente” do povo nortista é motivada pela “confusão de raças” que lhe caracteriza e à qual

se acrescenta, ainda, o fator climático. Neste sentido, Jorge Amado faz com que ecoe em sua

própria voz os esquemas interpretativos da realidade brasileira cujas premissas se baseiam em

distinções ontológicas entre raças e na inviabilidade genésica de uma civilização mestiça. O

escritor aproxima-se, neste ponto, salvaguardadas as devidas proporções, das perspectivas

pessimistas de certos teóricos da virada do século XIX para o XX.

Penjon (2004, p. 104) encontra nesta formação do nortista descrita por Amado “[...] as

idéias já sustentadas por Monteiro Lobato em seu Jeca Tatu”. A mesma autora ainda pontua,

em sequência, que “[...] nessa falta de perspectivas, essa ausência de filosofia que pudesse

guiar o país, [advinham-se] as grandes linhas do Retrato do Brasil”. A relação da obra de

Paulo Prado com a personagem principal de O país do carnaval é ainda ressaltada por

Goldstein (2003, p. 128) que cogita que “[...] Paulo Prado possa estar por trás da personagem

Paulo Rigger”. Da mesma forma, afirma-se:

O ensaio de Prado tematiza o que, em sua opinião, seriam nossos principais defeitos:

a luxúria, a cobiça, a tristeza e o romantismo. A perspectiva que o orienta, própria de

uma elite que vinha perdendo seu poder, caracteriza-se pelo pessimismo racista e,

em consequência, por uma visão extremamente pejorativa do país, condenado pelo

autor a conviver com a “astenia da raça”, fruto do “vício de nossas origens

mestiças”.

73

Presente na edição utilizada para este trabalho, organizada pela Companhia das Letras. 74

Todas as referências aos romances publicados por Jorge Amado, por motivo de uma melhor identificação da

obra, são feitas da forma como esta primeira, ou seja, indicando o título do romance e a página da qual foi

retirado o fragmento transcrito.

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Esta era uma das interpretações oferecidas pelas elites no debate travado nos anos 20

a respeito do nosso caráter como povo. [...] E não há como negar a existência dessa

perspectiva pessimista no livro de Amado [...] (DUARTE, 1996, p. 45).

A explicação que abre o livro destaca as linhas mestras, os princípios regentes do

universo ali ficcionalizado, reiterados enfaticamente no desenrolar da obra. Ao seguimento da

análise, observa-se que a feição racista que permeia o romance propaga-se a partir de três

vozes em conjunto: em primeiro plano, uma voz das personagens, mais ou menos uníssona,

que engloba as opiniões do círculo de amigos, centro gravitacional do enredo. Em sequência,

a voz narrativa, mais particularizada, que, em um movimento duplo, se apresenta especular e

indutora da voz das personagens. Por último, é possível inferir uma voz totalizante que, a

partir das outras duas, cristaliza os sentidos expressos em O país do carnaval. Esta terceira

voz configura-se no encadeamento lógico-semântico, ainda que espaçado, de sequências

imagéticas ao longo do texto, bem como dos subtendidos que comportam.

Como afirmado logo acima, as três instâncias destacadas atuam de forma conjunta

para afirmar ou espelhar um ideário racista. Ainda assim, decidiu-se por analisar em separado

as duas primeiras para uma melhor caracterização de cada uma delas, o que permite

evidenciar suas estratégias e raios de ação. Após, há um estudo específico da personagem

Jerônimo, em quem se identifica o todo coeso das duas vozes em concomitante atuação, do

que resulta outra, a voz totalizante.

A voz das personagens organiza-se a partir das proximidades existentes entre as

opiniões emitidas por cada personagem que se insere no círculo de amigos em torno de Pedro

Ticiano. A despeito das díspares posições sobre a finalidade da vida, de como alcançá-la e

consubstanciá-la em felicidade, Pedro Ticiano, Paulo Rigger, Jerônimo Soares, Ricardo Braz,

José Lopes e Gomes evidenciam clara afinidade no tocante ao pensamento étnico-racial que

permeia o grupo. A respeito, por exemplo, do caso de um crítico literário que fora flagrado

recebendo dinheiro para que elogiasse certo autor, o grupo comenta entre troças:

- Ora, a gente não deve ligar pra isso. Deve desculpar. Perdoar... Deve-se mesmo

sempre perdoar na vida. Os homens superiores devem amar-se uns aos outros...

- E principalmente uns às outras – riu vitorioso o Gomes.

- Deixe de trocadilhos idiotas, rapaz... Você dizia, Rigger...

- Que nós devemos nos amar uns aos outros. E que nós devemos ter uma grande

indiferença pelos outros homens, que não são nem podem ser iguais a nós...

Devemos perdoá-los sempre. Nada que eles façam de tolo, de ridículo nos deve

causar surpresa... “Eles são inferiores. Não sabem o que fazem...” [...]

- A gente não deve perdoar a imbecilidade. Não deve nem pode... Então eu hei de

perdoar a burrice crassa daqueles mulatos que publicam uma revista que é uma

afronta à gramática e às boas letras do país? – interrogava Ricardo Braz.

- Eles não têm culpa. Não foram eles que se fizeram burros. [...]

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- Mas deviam compreender a sua mediocridade e não aparecer. Eu desculpo os

burros convencidos de sua nulidade. Os que pensam ser alguma coisa, não...

A opinião de José Lopes pesou no grupo:

- Eu acho que a gente não deve tratar desse pessoal... É dar valor... Para que lembrar

essa canalha? Melhor seria esquecer que eles existem...

- E eles existem mesmo? Têm algum valor para existirem? Vivem, não existem... –

Apoiou o Gomes, lançando baforadas de fumaça para o ar (O país do carnaval, p.

66-67. Grifos nossos).

As partes em destaque no texto evidenciam a estrutura de um pensamento

compartilhado que, sem meias palavras, divide os seres humanos entre superiores e inferiores.

A fala de Rigger, que abre o recorte acima, é explícita quanto a esta diferenciação: o “a gente”

marca o grupo de pessoas notadamente superiores, enquanto o “eles” da quarta fala, também

de Rigger, sentencia os inferiores. Ainda nesta mesma quarta fala, nota-se a crença do

protagonista em uma impossibilidade de que um grupo de seres humanos, os inferiores,

ascenda às capacidades intelectuais daqueles que considera superiores. Ora, a clivagem que aí

se estabelece e que partilha da anuência dos presentes à conversa, dada a sua impossibilidade

de equiparação entre os grupos comparados, não é de outra natureza senão ontológica. A

discussão não se faz entre distinções que possam ser superadas em qualquer plano; ao

contrário, reitera tais diferenças como o ponto mesmo em que se distanciam duas categorias

de homens: o “nós”, que compõe a voz das personagens, o “eles”, afigurados como uma voz

ausente.

O caráter estritamente étnico-racial desta separação entre superiores e inferiores

revela-se na intervenção de Ricardo Braz ao argumento desenvolvido por Rigger. Ao

direcionar o seu discurso para a intolerância à “burrice crassa daqueles mulatos”, o poeta e

estudante de Direito delimita, de forma muito precisa, o conjunto de homens considerados

inferiores, nomeado “eles” por Rigger. Neste sentido, a utilização do pronome “daqueles” em

detrimento “deste” ou mesmo “desse”, que representam certa proximidade entre o que fala e o

outro do qual se fala, corrobora ainda na configuração de uma distância insuperável entre o

“nós”, superior, e o “eles”, inferior. Em resposta a Braz, Rigger faz uso novamente do

vocábulo “eles” sem, no entanto, tecer qualquer admoestação à delimitação empregada por

seu interlocutor, o que reafirma a equivalência semântica entre “eles” e “mulatos”. Nesta

mesma réplica, é possível visualizar novamente o caráter ontológico da suposta diferenciação

defendida pelo grupo de amigos quando Rigger afirma, retomando o seu argumento inicial,

que deveriam perdoá-los uma vez que “eles” não são culpados pela deficiência intelectual

que os caracteriza.

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Nota-se entre aqueles que argumentam no trecho analisado, a ausência do líder

intelectual do grupo, Pedro Ticiano. Faltara ao encontro por conta de problemas de saúde

resultantes da idade, mais precisamente por causa dos “[...] olhos [que] já não enfrentavam as

trevas da noite” (O país do carnaval, p. 66). Apesar de ausente, tornara público ao grupo seu

ponto de vista ao dar início, em solo baiano, à “[...] campanha pró-inteligência. [em que]

Começou a atacar o mulatismo”. (O país do carnaval, p. 34). Há, nesta sequência de ideias, os

mesmos vetores detectados na análise do debate entre o grupo de amigos. Se a campanha

inaugurada pelo jornalista denomina-se “pró-inteligência” e tem como alvo os mulatos,

depreende-se igual distinção entre “nós” e “eles”; “inteligentes” e “burros”; voz das

personagens e voz ausente daquela estabelecida nas falas de Rigger e Braz.

Pode-se, pois, a partir das interpretações empreendidas, inferir a voz das personagens

assentada sobre uma base identitária de caráter étnico-racial que dispensa ser afirmada,

porquanto tacitamente compartilhada por seus componentes. Esta identidade – de feição

branca e seleta – opõe-se amplamente à condição mestiça do país, tida, no romance, como

razão da mediocridade intelectual, marca indelével do povo brasileiro. Neste sentido, em

diálogo com José Lopes, recém convertido ao materialismo, Paulo Rigger, interrompido por

uma rádio que anunciava os milagres de uma santa no interior de Minas Gerais, afirma:

- Esse povo místico nunca aceitará o seu sistema político.

- Esse misticismo ajuda.

- Nós, brasileiros de hoje, sentimos milhões de taras dentro de nós. Nós sofremos

por nossos avós e nossos netos...

- A solução...

- Um suicídio geral...

Paulo Rigger calou-se extenuado. Da sua testa escorria, frio, o suor. José Lopes,

triste, perdia o olhar no fundo do bar.

- Esta vida...

Abraçou Paulo Rigger. Ia à casa de um camarada, um sapateiro. E segredou no

ouvido do amigo.

- A gente deve arranjar um princípio, um ideal, para iludir-se, pelo menos. Eu me

iludo com esse negócio de comunismo. Por isso fujo de você... Você me mostra a

realidade e me carrega de tristeza (O país do carnaval, p. 143-144. Grifos nossos).

De forma explícita, como no fragmento anterior, não há nada que caracterize esta

passagem como portadora de um pessimismo racista. Entretanto, as “milhões de taras” que

conformam a natureza de destino trágico do brasileiro, conforme define Rigger, não se

afastam muito da “astenia da raça” provocada pelos “vícios de nossas origens mestiças”,

elaboração intelectual de Paulo Prado, autor que Duarte pontua em trecho já citado. É

importante ainda notar a mudança operada em José Lopes a partir do argumento de Paulo

Rigger. Frente à “evidência” da incapacidade brasileira, como povo, o comunista sucumbe à

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tristeza e admite a ideologia apenas como uma ilusão que se contrapõe à “realidade” mostrada

pelo amigo. Se no diálogo anterior José Lopes sugere que o melhor seria esquecer que esse

povo, os mulatos de burrice crassa como define Ricardo Braz, existe, neste novo momento é

justamente a impossibilidade de esquecê-lo que o entristece.

Resta um ponto sobre a voz das personagens cuja análise se impõe: o relacionamento

entre Paulo Rigger e Maria de Lourdes, personagem mulata, que, a priori, parece indicar uma

superação do enredo – e de Paulo Rigger – às próprias limitações de caráter étnico-raciais que

sustentam o preconceito. A despeito do noivado e da proximidade do casamento, a relação

não sobrevive por motivo de natureza patriarcal – o imperativo da virgindade. Por outro lado,

a impossibilidade da união entre a personagem mulata e o homem branco, em um romance tão

permeado por visões racistas, é algo a se considerar. Ainda mais quando repleto de objeções

preconceituosas:

- E quem é a noiva?

- Uma menina que encontrei na vida. Muito pobre, mas muito boa.

- Uma mulatazinha – emendou José Lopes – de família desconhecida. Nunca pensei

que Paulo chegasse a esse grau de estupidez.

- Olhe, José, vou lhe dizer uma coisa. Se você falar novamente de minha noiva deste

modo, nós cortaremos as relações.

Paulo, muito sério, todo zangado, quis levantar-se. Lopes fê-lo sentar-se.

- Seja feita a sua vontade, rapaz, não se fala mais na sua excelentíssima noiva... (O

país do carnaval, p. 82. Grifos nossos).

É possível obstar que a restrição de José Lopes a Maria de Lourdes ocorra por conta da

“família desconhecida” da noiva, afinal tal enlace não poderia mesmo ser visto com bons

olhos pela sociedade dos anos 1930. Ainda que correto este viés interpretativo, o é apenas

parcialmente. Frente aos diálogos transcritos anteriormente e às falas do próprio Lopes, nota-

se que a questão racial atravessa a oposição feita pela personagem à noiva de Rigger, objeção

acentuada ainda mais pela ironia presente em “excelentíssima noiva”.

Contrariamente à admoestação do amigo, Rigger defende a noiva. É provável que haja

nesta defesa um instante da narrativa em que as restrições de feição étnico-racial cedam à

supremacia do amor. Mas, sem recusar de todo esta possibilidade, talvez seja interessante

avançar em outro sentido. Observe-se que o protagonista defende a noiva, mas a objeção a ela

endereçada o fere. Em resposta, Rigger – que durante toda a narrativa caracteriza-se por ser

um grande debatedor de ideias – não argumenta, apenas ameaça quebrar os laços de amizade.

É, pois, preciso ponderar a hipótese que haja, em verdade, não uma quebra das barreiras

étnico-raciais entre ele e Maria de Lourdes, mas tão somente um amolecimento motivado pelo

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amor e pelo desejo. Esta suposição ganha terreno quando se tem em vista o “poema da mulata

desconhecida”, escrito por Rigger. Segue o poema:

Eu canto a mulata dos freges

de São Sebastião do Rio de Janeiro...

A mulata cor de canela,

que tem tradições,

que tem vaidade,

que tem bondade,

(essa bondade

que faz com que ela abra

as suas coxas morenas,

fortes,

serenas,

para a satisfação dos instintos insatisfeitos,

dos poetas pobres

e dos estudantes vagabundos).

É entre as suas coxas sadias

que repousa o futuro da Pátria.

Daí sairá uma raça forte,

triste,

burra,

indomável,

mas profundamente grande,

porque é grandemente natural,

toda da sensualidade.

Por isso, cheirosa mulata,

do meu Brasil africano

(o Brasil é um pedaço d’África

que imigrou para a América),

nunca deixes de abrir as coxas

no instinto insatisfeito

dos poetas pobres

e dos estudantes vagabundos,

nessas noites mornas do Brasil,

quando há muitas estrelas no céu

e muito desejo na terra (O país do carnaval, p. 30-31. Grifos do autor).

Percebe-se, no poema acima, o mesmo grau de amolecimento das barreiras étnico-

raciais que permite a Rigger tanto amar Maria de Lourdes quanto cantar a mulata em versos.

Ato contínuo, nota-se que o desejo se faz presente por sob cada imagem delineada pelo poeta

em louvor da mulata. É justamente esta figura da mulata como objeto do desejo masculino

“insatisfeito” que permite e até solicita o amolecimento das restrições étnico-raciais75

.

Importante retomar agora, à luz deste poema, a ideia que amolecimento não significa,

necessariamente, quebra de tais restrições. Observa-se que as objeções raciais permanecem,

apesar do canto “em favor” da mulata de “São Sebastião do Rio de Janeiro”. Não é, pois,

75

“Objeto” aqui não possui o sentido reificante que comumente lhe é atribuído. Significa, antes, o

direcionamento do desejo.

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outro o sentido dos versos componentes da segunda estrofe. Ao definir a raça que nascerá de

ventre mulato, Rigger o faz de modo a salientar que será “forte”, porém “triste”, “burra” e

“indomável”. A característica “burra”, atribuída a esta raça brasileira mestiça irmana-se à

discussão estabelecida no primeiro fragmento transcrito, em que se debatia sobre o “nós”

superior e o “eles” inferior. Já “triste”, está presente, de forma sub-reptícia, na conversa entre

Rigger e Lopes, segundo diálogo transcrito, dado o destino trágico e sem saídas do povo

brasileiro. “Forte” e “indomável”, se bem a possibilidade de serem tomadas como acepções

elogiosas em determinado contexto, no específico de O país do carnaval parecem acrescer

certa face animalesca ao mestiço, o que casa perfeitamente com o exaltado clima sexual que

perpassa a descrição da mulata.

Esta interpretação não obsta a existência do amor a unir Rigger e Lourdinha, mas

sugere que há outros aspectos a separá-los, embora talvez não preponderantes, além do

tradicionalismo patriarcal. Deste modo, existe uma voz das personagens, uníssona no tocante

à inferioridade dos mulatos, voz dominante da qual Paulo Rigger faz parte e com a qual não

consegue romper; apenas a amolece brevemente.

O “poema da mulata desconhecida” funciona ainda como introdução da segunda

instância de interpretação deste romance amadiano. A voz das personagens, embora coesa e

mais ou menos uníssona, é de natureza fragmentável uma vez que se origina nas similitudes

dos pensamentos e discursos de indivíduos próximos. Ainda assim, em última análise, não é

possível afirmá-la em um plano meramente individual: seu modus operandi baseia-se na

anuência, pressupõe uma interação confirmativa, realiza-se no assentimento entre amigos de

um mesmo discurso. A voz narrativa, por sua vez, prima justamente pela indivisibilidade, por

estar centrada na figura única do narrador. Não lhe cabe indicar nenhuma conformação

coletiva interna à obra, não obstante com ela dialogue, mas reproduzir os ideários com os

quais o narrador toma da palavra e conduz o enredo.

Importante salientar que a análise da voz narrativa, cujo nascedouro é

inequivocamente o narrador, não se confunde com um estudo baseado na abstração discursiva

desta figura literária, embora se coadune com esta perspectiva. Ou seja, não se procura

apontar as explicitudes racistas do discurso do narrador, destacadas já na “nota explicativa”

ou na caracterização das personagens negras e mestiças, como se fez ao investigar a voz das

personagens. Antes, pretende-se perscrutar o narrador no instante mesmo em que se reafirma

a face racista da obra sem que se faça uso de construções frasais desqualificantes. Deste

modo, sonda-se a própria semântica da sistematização narrativa de O país do carnaval.

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Observa-se, neste percurso, que a voz narrativa é tanto especular quanto indutora das

individualidades que coletivizam um substrato racista de sociedade. Este movimento duplo é

responsável pelo desenvolvimento de situações que visam a afirmações racistas por parte da

voz das personagens – movimento indutor – bem como pela sobreposição de acontecimentos

em que se reafirma, através de um espelhamento subentendido, a voz das personagens –

movimento especular.

Retomando o “poema da mulata desconhecida”, é possível destacar, no contexto em

que ele se insere, o processo de indução do qual o narrador se utiliza para emergir a voz das

personagens. O instante que antecede à escrita do poema corrobora a percepção do

movimento indutor, uma vez que remonta ao sábado de carnaval em que Paulo Rigger sentiu-

se, pela primeira vez, integrado ao Brasil. Sintomaticamente, a adesão de Paulo Rigger ao

povo brasileiro deu-se pelo viés do desejo, cujo vetor deriva de uma mulata voluptuosa:

Quando Paulo Rigger saiu, um grupo de mulatas sambava na rua. Cor de canela,

seio quase à mostra, requebravam-se voluptuosamente, num delírio. Paulo viu ali

todo o sentimento da raça. Viu-se integrado no seu povo. Caiu no samba [...].

Uma mulata gorda deu-lhe uma umbigada. Agarraram-se a dançar no passeio. Até os

sujeitos que tocavam violão sambavam numa alegria doente de quem só tem três

dias de liberdade.

Os lábios da mulata entraram nos lábios de Paulo Rigger.

Ele pensava em gritar: “Viva o Brasil! Viva o Brasil”. Sentia-se integrado na alma

do povo e não pensou que aquilo era somente durante o Carnaval quando todos,

como ele fizera durante toda a sua vida, se entregavam aos instintos e faziam da

Carne o deus da humanidade... (O país do carnaval, p. 29).

Rigger está, neste momento, no Rio de Janeiro, onde passara alguns dias após o

retorno da França. Ainda não havia conhecido o grupo de amigos do qual passou a fazer parte

quando em Salvador. Assim, o que se narra nesta cena é anterior à constituição do que se

denominou voz das personagens, no entanto já a anuncia. Importante retomar a narração das

impressões de Rigger, passado o primeiro dia de sua volta ao Brasil:

Paulo Rigger andava na rua, ao léu. Sentia-se um estranho na pátria. Achava tudo

diferente... Se aquilo lhe acontecia no Rio, que seria na Bahia, para onde iria residir

em companhia da sua velha mãe?... Poderia, conseguiria viver? E tinha uma grande

nostalgia de Paris...

Teria que viver burguesmente... Não teria mais camaradas intelectuais... Ficaria com

o espírito obtuso... Talvez se casasse... Talvez fosse mesmo morar na fazenda... que

fim para ele, degenerado, viciado, doente de civilização... Enfim...

Paulo Rigger parou em frente de uma casa de discos. Uma marcha bem cantada

enchia o espaço com uma música estranha, nostálgica, cheia de sentimento que

Paulo não compreendia.

A marcha rugia:

Essa mulher há muito tempo me provoca...

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Dá nela...

Dá nela...

[...] E ficou a escutar enlevado pela barbaria do ritmo. A alma do povo devia estar

ali... E como era diferente da sua... [...] (O país do carnaval, p. 25. Grifos do

autor)76

.

A marchinha, não obstante o sentimento estranho e até de repulsa que provoca em

Rigger, é o mesmo samba que compõe o cenário do carnaval em que o protagonista se sente

enredado através do “sentimento da raça”. Rigger opõe o viver na Europa ao viver no Brasil

em termos de “civilização” x degeneração, intelectualidade x obtusidade. A introdução da

marchinha à cena ilustra a oposição representada por este conjunto de binômios em que

Rigger cumpre o papel da “civilização” europeia e a música o da “barbaria” brasileira. A

percepção de uma diferença insuperável entre Rigger e o Brasil, que se identifica e concretiza

por meio da nostalgia provocada pelo afastamento de Paris e de sua intelectualidade, de certo

modo prenuncia a clivagem entre “seres superiores” e “seres inferiores” que posteriormente

será defendida e aceita pela voz das personagens.

Os seios quase à mostra e o estado de desvario com que as mulatas dançavam em

volúpia simbolizam, por meio da metonímia, “todo o sentimento da raça” ao qual Rigger

deseja integrar-se. Convém frisar, ainda uma vez mais, que esta possibilidade de integração

não funciona como elemento anulatório das diferenças ontológicas entre raças defendidas pelo

protagonista e já assinaladas por este estudo. Antes, novamente, realça o amolecimento

determinado pelo desejo sexual.

A escrita do poema, diretamente relacionada com o sábado de carnaval, é síntese que

evidencia por outra voz, a das personagens, aquilo que já havia sido descrito, narrado e

defendido pela voz narrativa. Deste modo, o que se denomina movimento indutor é

justamente a antecedência da voz narrativa sobre a voz das personagens, cuja função é mais

confirmativa daquilo que já havia sido expresso do que, propriamente, afirmativa de um

ideário.

O segundo movimento, a que se denominou especular, atua em concomitância com o

indutor, porém em instância não alcançada por ele: os interstícios da língua, na semântica que

se funda sobre o que é dito e não pelo que é dito. Neste sentido, sua função não é a de induzir,

mas a de espelhar e, com isso, reforçar a voz das personagens.

76

Amado faz referência à marchinha “Dá nela”, composta por Ary Barroso e gravada por Francisco Alves em

1930.

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Note-se, nesta direção, a marginalidade para a qual as personagens negras e mestiças

são enviadas, cumprindo, não raro, funções decorativas ou mesmo dispensáveis na obra. Com

poucas exceções, a mulher negra ou mestiça aparece como vetor de desejo ou vendedora de

quitutes na rua. Já o homem surge ainda caracterizado por meio de artimanhas

desqualificantes: “E o porteiro filosofou, como bom mulato brasileiro [...]” (O país do

carnaval, p. 124). O verbo filosofar aí utilizado aponta para o sentido inverso com o qual é

comumente decodificado, diminuindo, por ironia, a fala do porteiro, baseada em intuição e

senso comum e jamais em elaborações propriamente filosóficas.

Outro processo, porém, merece maior destaque: o ciclo de aclimatação de Rigger ao

Brasil. Entrecortado pela modinha “Dá nela...”, já referenciada, o ciclo divide-se em três

momentos: o instante do racional, o instante do desejo e o instante do passional.

O primeiro evoca o momento em que o protagonista trava conhecimento da modinha,

percebe que nela se expressa a alma de um povo e conclui que é efetivamente superior àquele

mundo uma vez que “[...] não bateria nunca numa mulher” (O país do carnaval, p. 25). É o

instante em que se anunciam os binômios anteriormente elencados e a “barbaria” do ritmo da

modinha metaforiza a “barbárie” brasileira em oposição à “civilização” parisiense

representada por Rigger.

O segundo retoma o sábado de carnaval, momento em que Rigger se integra ao

“sentimento da raça”. Neste contexto, há um desvio no sentido do verso “dá nela...” que passa

de representação violenta à conotação sexual, em concordância, portanto, com o desejo que

perpassa toda a cena.

É neste segundo instante que reside o estopim de uma gradual transformação

responsável por fazer com que Rigger substitua o caminho do racional pelo do passional. O

instante do desejo evidencia o contato mais íntimo entre Paulo e a mulata, marcado pela

umbigada, pelo beijo e pela possibilidade do sexo. Até então o protagonista, que em outros

casos passados pouco havia se enredado por seus amores, desconhecia o que fosse sofrer por

amor ou ciúme. É no domingo de carnaval, quando retorna ao hotel e não encontra Julie, que

o racional cede, pela primeira vez, ao passional:

Procurou rir. Ora, deixá-la... Afinal, ela era apenas uma mulher com quem andara.

Deixá-la...

Mas, diabo, aquilo doía-lhe. Doía-lhe pensar que Julie estivesse com outro, na cama.

Não. Não podia ser... Revoltava-se contra si próprio. Não podia ser, por quê? Era.

Ela estava com outro... Com outro, na cama... E que tinha ele com isso... Não a

amava... Não a amaria mesmo? Não, pensava, desejava-a somente... Mas o amor era

a posse... Se ele a desejava é porque a amava... Amava, sim, aquela mulher viciada

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que tinha gostos pervertidos. E ela, agora, devia estar com outro, talvez... E

dormindo, quem sabe? (O país do carnaval, p. 30).

O terceiro instante, alcunhado “do passional”, é, pois, a intensificação desta faceta em

Rigger. Tal momento se desenvolve a partir de sua chegada ao Brasil e, mais fortemente, após

o sábado de carnaval. Remonta à cena em que, descoberto o relacionamento entre Honório e

Julie, Rigger vinga a traição:

Ela, no canto, encolhida, deixava aparecer, de propósito, o seio. Ele sentiu que o seu

pé tocava no de Julie. Um arrepio correu-lhe todo o corpo. Quis levantar-se, mas não

pôde. Ela virou-se na cama e encostou-se a ele. Paulo acariciou-a. Abraçaram-se.

Possuíram-se.

E, no grande momento, ela pediu:

- Perdoe-me...

- Não!

Empurrou-a. Apertou-lhe a garganta. Ela gritou. Soltou-a.Tinha uma vontade louca

de esmagá-la. Disse-lhe nomes feios. Ela sorriu. Ele deu-lhe um soco. Julie gritou:

- Covarde!

E ele bateu-lhe até cansar. Depois, deixou-a chorando na cama. Saiu. Aspirou com

força o ar da noite. A lua, no alto, escondeu-se atrás de uma nuvem.

E o vento parecia cantar-lhe nos ouvidos a marcha carnavalesca

Dá nela...

Dá nela... (O país do carnaval, p. 54. Grifos do autor).

Há, neste trecho, um retorno da modinha ao sentido original, eliminando ou deixando

em segundo plano o viés sexual. As transformações a que, neste processo, o sentido da canção

é submetido espelha e põe em evidência as mudanças que ocorrem na alma de Rigger em

quem se nota uma gradual tendência a imiscuir-se no Brasil – em que pesem todas as

considerações pejorativas que a narrativa acentua nesta mudança. Caso se considere a opinião

primeira do protagonista sobre a modinha – exemplo de barbárie por conta do ritmo e da

violência que incita, mas, ainda assim, representativa da alma do povo – infere-se que, ao

confundir-se com aquilo que rejeita, Rigger segue por um descaminho. Desfaz-se, assim, o

primeiro dos binômios acima expostos, “civilização” x “degeneração”, em que o termo

superior cede em relação ao inferior.

Importante frisar, a esta altura, que os termos “racional” e “civilizado” confundem-se

da mesma forma como ocorre entre “passional” e “degenerado”. Não à toa, a representação do

povo brasileiro construída no romance, dada à inferioridade, é a de um povo todo voltado ao

“império dos sentidos”, o que explica o fato de Rigger creditar à modinha a expressão anímica

do povo e, à sensualidade, o seu único fator de grandeza.

Inevitável observar a recorrência do fator étnico-racial na passagem a que se

denominou ciclo de aclimatação. No primeiro instante, a canção significa barbárie e é

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representativa do povo brasileiro, cuja caracterização mestiça fora exposta depreciativamente

já na “nota explicativa”. No instante seguinte, o texto metaforiza o desejo pela mulata e

realiza a integração de Rigger ao país por via sexual. Por último, a canção reassume o sentido

original, sem que se apague de todo o sexual, leitura motivada pela traição de Julie com

Honório, personagem negra. Renova, desta forma, a integração de Paulo Rigger à alma do

povo, desta vez pelo viés da violência, símbolo de passionalidade, que ele tanto repudiara no

início do ciclo: “Só me senti brasileiro duas vezes. Uma, no Carnaval, quando sambei na rua.

Outra, quando surrei Julie, depois que ela me traiu” (O país do carnaval, p. 63).

É possível apontar, pois, na direção de que a voz narrativa assinala uma lenta

decadência de Rigger que passa da “civilização” à “barbaria”, da condição de racional para a

de passional, quando em presença ou proximidade de personagens negras e mulatas ao passo

que, relativamente afastado destas, reassume os termos iniciais dos binômios.

Convém ressaltar que, caso correta a interpretação acima, O país do carnaval dialoga

diretamente com O cortiço, de Aluísio Azevedo, comentado na seção anterior. Embora

passageiro, o movimento de Rigger em direção à “barbaria”, tangencia a derrocada que

Jerônimo, personagem branca e portuguesa, experimenta ao relacionar-se com Rita Baiana,

brasileira e mulata. A voz narrativa, então, ao estabelecer este paralelismo, referencia, evoca e

atualiza as concepções raciais vigentes no século XIX e que compunham o grande cenário em

que o romance do maranhense se desenrola. Em ambos, o contato inter-racial é negativo,

oposto à civilização e fator de decadência.

Por último, cabe analisar a voz totalizante. Esta, de caráter mais geral, nasce

precisamente da conjunção das outras duas e é responsável por fixá-las. Em outras palavras,

define-se por acolher as imagens enunciadas tanto pela voz narrativa quanto pela voz das

personagens e, a partir destas, operar na cristalização dos sentidos em um todo narrativo

coeso. Ocorre quando, simultaneamente, as vozes coletiva e narrativa incidem sobre uma

mesma personagem e, no desenrolar da obra, a acompanham no intuito mesmo de postular e

fixar a humanidade considerada inferior, uma vez que mestiça. Nesta perspectiva, o trato de O

país do carnaval com Jerônimo Soares é revelador:

O mais apagado deles chamava-se Jerônimo Soares. Mulato claro, bom rapaz,

ingênuo, sem pretensões, sem vaidades, lugar-comum humano, que Ticiano vivia,

entretanto, a fazer “à sua imagem e semelhança”.

Pedro Ticiano tinha dessas maldades, às vezes. Antes de o conhecer, Jerônimo vivia

sereno, sem problemas, a paz dos que não pensam nem se esforçam por pensar (O

país do carnaval, p. 36).

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O trecho supracitado se inscreve no momento narrativo em que se introduzem os

componentes do grupo de amigos em redor de Pedro Ticiano, o que se faz em tom mesmo de

apresentação77

. Após o resumo da vida do mentor intelectual do grupo, já idoso aos sessenta e

quatro anos e odiado por todos os mestiços da Bahia por conta de sua campanha “pró-

inteligência”, passa-se às promissoras perspectivas futuras dos outros integrantes. Ricardo

Braz, funcionário público, estudante de Direito e poeta; Gomes, jornalista dono de

“inteligência agudíssima” ainda que a “serviço do mais completo analfabetismo” (O país do

carnaval, p. 35), e o grande talento literário, José Lopes. Nota-se que, dentre todos, o único

descrito depreciativamente é Jerônimo Soares, justamente o mestiço. E há, certamente, uma

relação de causa e consequência entre a natureza mestiça de Jerônimo e sua descrição como o

“mais apagado” dos amigos. Esta interpretação é confirmada ao atentar-se para o

exclusivismo com que se revela a identidade étnico-racial da personagem, “mulato claro”, em

comparação às outras apresentações que, em momento algum, tocam neste aspecto. Destarte,

a caracterização racial de Jerônimo, ressaltada pela voz narrativa, cumpre o papel de

distingui-lo do restante dos amigos, voz das personagens, evidenciando sua suposta

inferioridade em um movimento de cristalização das diferenças ontológicas entre as raças, voz

totalizante.

Ainda sobre o fragmento transcrito acima, note-se que antes de conhecer o grupo e,

mais precisamente, Pedro Ticiano, Jerônimo vivia a “paz dos que não pensam nem se

esforçam por pensar”. Esta imagem relaciona-se diretamente com aquela outra expressa por

Ricardo Braz que, em trecho já trabalhado, define os mulatos como seres nulos e portadores

de “burrice crassa”. Relaciona-se, igualmente, com o “poema da mulata desconhecida”

quando Rigger toma a raça nascente de ventre mulato como “burra”, dentre outras imagens.

Culmina em uma visita do grupo a Pedro Ticiano, já doente. Nesta cena, a distinção entre

Jerônimo e os outros se torna ainda mais evidente:

- Vocês são muito bons! Não sei como lhes pague tanta bondade...

- É nosso dever. Nós lhe devemos tanto...

E Jerônimo Soares enumerava os benefícios que Pedro Ticiano lhes fizera.

José Lopes, ao ministrar o remédio, disse a Pedro:

- Aquele não lhe deve nada, Ticiano. Se você continua a ter influência sobre aquele

rapaz, fá-lo-á um infeliz...

- Mas pelo menos ele ficará diferente da totalidade dos homens. Isto é o que eu quis

fazer. Um homem diferente, digno de nós.

77

Note-se que a forma como Jorge Amado descreve o grupo como formado ao redor de Pedro Ticiano,

assemelha-se à formação da Academia dos Rebeldes, movimento literário modernista baiano estruturado em

torno de Pinheiro Viegas. Assim, Pedro Ticiano pode vir a ser uma representação ficcional do líder intelectual

dos Rebeldes.

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- Mas ele não dá pra isso. É muito bom rapaz...

- Muito bom. Uma grande alma...

- Isso faz com que a gente perdoe a pequenez do cérebro...

- Coitado! (O país do carnaval, p.120).

O enfoque sobre Jerônimo é, recorrentemente, desqualificante, embora haja a ressalva

de que seja uma boa alma. Este mesmo discurso já havia sido pronunciado por Pedro Ticiano

que, satisfeito com a submissão de Jerônimo às suas palavras, “[...] gostava de derrubar os

sonhos daquele homem medíocre e bom, que tinha o único defeito de querer intelectualizar-

se” (O país do carnaval, p. 112). Em verdade, o fato de ser descrito como bom não ameniza o

discurso racista que incide sobre a personagem, antes o fortalece posto que, não raro, a

condição boa de sua alma confunde-se com servilismo e resignação, posição em que

geralmente é retratado. Neste sentido, Jerônimo é incapaz de rebelar-se verdadeiramente

contra o domínio de Pedro Ticiano e se, vez ou outra, ensaia o rompimento, nunca o toma em

êxito. Assim, há na relação Ticiano-Jerônimo a atualização do estereótipo do “[...] negro

infantilizado, serviçal e subalterno” (PROENÇA FILHO, 2004, p. 165. Grifos do autor), uma

vez que se mantém fiel ao grupo, não obstante as indiretas que lhe são endereçadas:

Pedro Ticiano tomou um livro que Jerônimo segurava.

- Ó rapaz! Agora é que você está lendo José de Alencar?

- Relendo, Ticiano. Eu gosto muito de Alencar...

- É bom poeta... Bom poeta...

- Poeta?

- Sim, poeta. Iracema é um poema de grande sonoridade. Mas Alencar é mau

romancista...

Ricardo Braz discordou. Achava que Alencar tinha qualidades. Não era talvez um

grande romancista, mas lia-se.

- Romancista de garoto de colégio interno e de imbecis que se honram de ter sangue

índio (O país do carnaval, p. 33).

A afirmativa que encerra a transcrição acima é esclarecedora no tocante à atualização

do estereótipo. Em sua primeira parte, Ticiano destaca que Alencar seria um escritor para

“garoto de colégio interno” o que, em se tomando o gosto de Jerônimo pelo autor cearense,

infantiliza o mulato. Em seguida, ao enfocar que seria também um escritor para “imbecis que

se honram de sangue índio”, portanto mestiços, dirige-se mais diretamente ao amigo e toca,

provocante e cáustico, em sua origem mestiçada. Neste sentido, a voz das personagens se

utiliza do gosto literário de Jerônimo para diminuí-lo intectualmente e a voz narrativa, ao

negar à personagem o direito da réplica através de um corte ensejado pela chegada de José

Lopes, traz à baila os sentidos de passividade e servilismo.

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É necessário retornar à transcrição do trecho em que, ao leito de Ticiano doente, o

velho jornalista e José Lopes concordam quanto à “pequenez do cérebro” de Jerônimo. A

intenção de Pedro Ticiano, aí expressa, de transformar Jerônimo em um ser digno do grupo de

amigos que o mulato frequenta não pode passar despercebida. Revela-se neste intuito e,

principalmente, na impossibilidade ontológica de atingi-lo, idêntica clivagem entre o “nós”,

voz das personagens superior e o “eles”, voz ausente inferior, anteriormente analisada de

modo que Jerônimo está no grupo, posto que o frequenta e o estima, mas não faz parte dele.

Em outras palavras, enquanto José Lopes, Gomes, Ricardo Braz e Rigger assumem um papel

ativo nas discussões do grupo, mesmo em relação a Ticiano, Jerônimo é tão somente passivo.

Vez ou outra introduz assuntos, mas nunca ideias. Ouve, mas não fala. Participa das

discussões sobre a inferioridade natural dos mestiços, mas não se opõe, não argumenta. Desta

forma a voz das personagens engloba Jerônimo unicamente como componente passivo, ou

seja, visualiza-o como elemento sobre o qual há atuação.

Ainda neste mesmo fragmento um último ponto deve ser abordado: a advertência feita

por José Lopes a Pedro Ticiano sobre a felicidade de Jerônimo. Também esta passagem está

recoberta pela diferenciação entre superiores e inferiores porquanto para o velho jornalista “a

felicidade só est[eja] ao alcance dos imbecis e dos cretinos” (O país do carnaval, p. 135), com

o que concordam, à custa de desilusões, Ricardo Braz, José Lopes e Rigger. Nesta

perspectiva, a advertência de Lopes aponta para uma possível capacidade de Jerônimo ser

feliz posto que, dada a sua inferioridade intelectual, não seria atormentado pelas inquietações

existenciais que habitavam sem respostas os cérebros superiores, o que ocasionava angústia e

desconsolo. “Nós temos que viver... E procurar não fracassar. Tentar a felicidade. Para não

ficar vivendo a miséria minha e de José Lopes... Você precisa, deve, tem obrigação de ser

feliz...” (O país do carnaval, p. 121), incita Rigger a Jerônimo, ao que o mulato responde em

afirmativo. Talvez, sem o saber que ao concordar o faz também, por extensão, com o olhar

inferiorizante que lhe é dispensado pela voz das personagens:

- Você se lembra de Pedro Ticiano, José Lopes? Ele dizia que a gente vive por viver.

Que só se consegue uma calma, ainda que relativa, deixando de desejar. Ficando

indiferente... Nada querer. Super-Buda. Ele chegou a esta perfeição. Nós, homens do

nosso século, não idolatramos como ele a dúvida. Nós a combatemos. E

combatíamos Pedro Ticiano. Todos nós tentamos encontrar o sentido da existência.

O fim para que vivemos. A felicidade, se você quiser assim. Você dizia que ela, a

felicidade, estava na verdade filosófica. Ricardo Braz contestava: que só o amor-

sentimento podia nos mostrar a rota do porto. Porque só nas coisas naturais se

encontrava o sentido da vida... Eu [Rigger] pensava como ele e procurei a felicidade

no instinto. Fracassamos. Não falo de Jerônimo porque esse, medíocre, não é dos

homens insatisfeitos. A insatisfação desses homens é apenas o reflexo da nossa (O

país do carnaval, p. 140).

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O fragmento acima se relaciona diretamente com outro, que lhe é bem anterior, em

que a voz narrativa se faz ouvir: “Jerônimo sentia-se feliz. Começava naquela noite a volta à

sua vida de outrora. Começava a libertar-se de Ticiano. E, se o conseguisse, chegaria a mais

completa felicidade. Tinha todos os elementos para isso. Era bom e burro” (O país do

carnaval, p. 87). Esta convergência entre as vozes das personagens e narrativa para a

constante inferiorização de Jerônimo culmina na felicidade do mulato em contraste com a

insatisfação dos amigos. Jerônimo encontra no amor e na religião, possibilidades ausentes no

campo do racional, sua finalidade, o sentido da vida. O que, em outro contexto, poderia ser

classificado como um final positivo para a personagem, em O país do carnaval assume um

viés racista posto que implica, dadas as premissas do romance, ratificar ainda uma vez mais a

inferioridade de Jerônimo e, por extensão, a de todos os mestiços.

Há que se observar, a pretexto de conclusão, a similitude com que são descritas a

representação mulata de Jerônimo Soares e a ficcionalização mestiça de Brasil: “Feliz Brasil,

que não se preocupa com problemas, não pensa e apenas sonha em ser, num futuro muito

próximo, „o primeiro país do mundo‟” (O país do carnaval, p. 104). Em ambos há um sonho

de grandeza que não será alcançado – a intelectualidade e a supremacia frente a outras nações

–, impossibilidade que jaz na constituição mestiça peculiar às duas caracterizações. Percebe-

se ainda a ênfase recorrente na incapacidade de pensar, sempre ilustrada em Jerônimo, o que

os situa fora da esfera racionalista e, por consequência, “civilizada” delineada pelo romance.

A despeito de tudo isso, existe a possibilidade de ser feliz que, como se viu, age no reforço às

perspectivas negativas elencadas. Desta forma, é possível afirmar um movimento da voz

totalizante em consubstanciar a personagem Jerônimo como metonímia do discurso sobre o

país. Há, pois, uma ampliação do alcance daquilo que se elabora acerca da personagem: as

limitações individuais do mulato coletivizam-se e passam a abranger o todo que delimita o

país.

Caso corretas as conclusões acima, o romance O país do carnaval estabelece uma

condenação da mestiçagem, aspecto do qual se origina o pessimismo que cerca a obra:

Jerônimo e o país poderiam ser felizes, mas, independente de qualquer esforço em contrário,

irreversivelmente “burros” e “degenerados”78

.

78

Dadas as considerações aventadas sobre O país do carnaval, impossível não mencionar certa tristeza em face

da injustificável e absurda escolha deste romance como tema do carnaval 2012 de Salvador, uma pretensa

homenagem ao centenário do escritor grapiúna.

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2.2 DAS IMPLICAÇÕES DE UMA GUINADA À ESQUERDA

Em 1932, portanto um ano após O país do carnaval, Jorge Amado não publicou

nenhum livro. A despeito da aparente pouca relevância desta constatação, ela encerra um

movimento de descontinuidade, do qual se originam uma ruptura e a consequente

ressignificação do universo anteriormente ficcionalizado pelo baiano. Assim, não há qualquer

exagero em afirmar que o desenvolvimento da literatura amadiana, tal como se deu, decorre

em parte dos eventos que influenciaram o escritor a destruir os originais de um romance que

viria a público no ano em questão, Rui Barbosa nº 2.

Apesar da já exposta pouca cumplicidade entre o autor e o seu primeiro livro, cujo

pessimismo comporta uma atitude “artificial”, “exclusivamente literária”, crítica e público

acolheram-no em elogios e vendas, como evidenciam Táti (1961, p. 30-32) e Penjon (2004, p.

100). Segundo as palavras do próprio Jorge Amado:

[...] quando surgiu, este primeiro livro foi muito bem recebido. Talvez até, de todos,

tenha sido o que teve a melhor acolhida, a mais unânime. Depois, a partir de Cacau,

eles sempre suscitaram polêmicas. Mesmo aqueles que foram mais calorosamente

recebidos pela crítica [...] (RAILLARD, 1990, p. 47).

Talvez subsista na recepção crítica de O país do carnaval certo vínculo entre o

conservadorismo de uma determinada parcela da inteligência brasileira e aquele expresso pela

narrativa, relação ausente em obras outras do mesmo autor. Seja como for, a boa acolhida do

romance serviu de estímulo, como a indicar ao baiano que o caminho trilhado era o correto.

Desta forma, interessante notar que o poeta e editor Augusto Frederico Schmidt, ao comentar

a cena final do romance79

, sinalize, em prefácio à obra, que “Cristo é a chave e é a medida.

Felizes os que veem por acaso essa iluminação” (O país do carnaval, p. 12) 80

. O próprio

Jorge Amado relata, em entrevista a Alice Raillard, os efeitos de tantos e, às vezes, tão

desmedidos elogios:

79

Nesta cena Paulo Rigger ensaia uma aproximação com Deus através da imagem-símbolo do Cristo Redentor:

“No Corcovado, Cristo, braços abertos, parecia abençoar a cidade pagã. Tornou-se maior a tristeza nos olhos de

Paulo Rigger. Levantou os braços num gesto de supremo desespero e murmurou fitando a imagem gigantesca:

- Senhor, eu quero ser bom! Senhor, eu quero ser sereno...” (O país do carnaval, p. 146). 80

Segundo Jorge Amado “Augusto Frederico Schmidt [era] um poeta católico, que se pôs a publicar a nova

literatura que surgira depois da Revolução de 1930. Era um homem estranho, um mestiço imponente, grande,

muito gordo – o chamávamos de O Gordo Sinistro –, que reunia ascendências judia e negra. Este homem, que

deveria ter sido Jeová e Oxalá, era um „Cristo católico‟, muito católico e muito atormentado, que tinha um

terrível sentimento de culpa, não sei por quê” (RAILLARD, 1990, p. 50).

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Assim, imediatamente – me achei o maior escritor do mundo! – escrevi outro livro,

Rui Barbosa nº 2, que era na verdade a repetição de O país do Carnaval, mas onde

já se viam as influências que eu recebia da esquerda [...]. Este livro refletia assim as

duas linhas que se desenhavam: a linha católica, ligada aos círculos tomistas, que em

grande parte foram desembocar no integralismo [...], e as correntes de esquerda que

desembocaram no Partido Comunista.

[...] Então escrevi este segundo livro, mas tive o bom senso de não publicá-lo. Pois

foi justamente no momento em que as influências de esquerda foram fortes para

mim, em que me aproximei da Juventude Comunista e comecei a militar

(RAILLARD, 1990, p. 47-48).

Os originais de Rui Barbosa nº 2 foram destruídos, de que resulta a impossibilidade de

qualquer apreciação crítica da obra. Entretanto, a julgar pela confessa semelhança em relação

a O país do carnaval, cópia “[...] para pior e para maior” (TÁTI, 1961, p. 37), e pelo seu

destino, o apagamento, talvez seja lícito especular que os esquemas interpretativos da

realidade brasileira não houvessem se alterado substancialmente de um para outro romance.

Ainda que, tal como afirma o escritor, as influências de esquerda já se fizessem sentir neste

segundo livro, é de alguma forma provável que não fossem suficientes para abalar o veio

conservador que notabiliza a estreia amadiana. Neste aspecto, o Rui Barbosa nº 2 entraria em

choque direto com o contexto vivenciado por Jorge Amado, uma vez que

Em 1932, Jorge Amado se aproxima dos escritores nordestinos, ao mesmo tempo em

que se afasta do grupo católico ligado a Otávio de Faria e Augusto Frederico

Schmidt. Conduzido por Rachel de Queiroz à juventude comunista, freqüenta

reuniões e palestras, vai às ruas participar dos meetings, dispersados muitas vezes a

tiros e patas de cavalo. Passa a devorar a literatura dos compagnons de route

estrangeiros e a impregnar-se rapidamente de utopia libertária que vinha do Leste

europeu. E então o sentimento de revolta pequeno-burguesa, dominante em O país

do carnaval, começa a ceder lugar aos pontos de vista de esquerda visíveis de Cacau

a Subterrâneos da liberdade (DUARTE, 1996, p. 28).

É, pois, neste sentido, o de sua não publicação, que Rui Barbosa nº 2 engendra uma

descontinuidade na principiante literatura amadiana e, por consequência, instaura uma revisão

do projeto literário inaugurado com O país do carnaval. No decorrer deste processo, o

ceticismo de empréstimo daquele adolescente de dezoito anos cede paulatinamente frente à

utopia socialista, viés ideológico que ganha terreno no Brasil durante a década de 1930. Treze

anos antes, a Revolução Russa tornara palpável ou, ao menos, factível a perspectiva até então

teórica da experiência socialista. A tomada de poder pelos bolcheviques plasmara, de

imediato, em todo o mundo ocidental, uma realidade capitaneada pela esperança que se

contrapunha àquela marcada pela opressão das desigualdades sociais. Entretanto, não obstante

reivindicações políticas inspiradas no exemplo russo por toda a década de 1920 – incluindo a

própria fundação do Partido Comunista do Brasil, em 1922 – apenas no decênio subsequente

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houve uma maior veiculação da ideologia marxista, alavancada pelas crises do capitalismo e

da ordem burguesa. Em resumo:

O decênio de 30 é marcado, no mundo inteiro, por um recrudescimento da luta

ideológica: fascismo, nazismo, comunismo, socialismo e liberalismo medem suas

forças em disputa ativa; os imperialismos se expandem, o capitalismo monopolista

se consolida e, em contraparte, as Frentes Populares se organizam para enfrentá-lo.

No Brasil é a fase de crescimento do Partido Comunista, de organização da Aliança

Nacional Libertadora, da Ação Integralista, de Getúlio e seu populismo trabalhista.

A consciência de luta de classes, embora de forma confusa, penetra em todos os

lugares – na literatura inclusive, e com uma profundidade que vai causar

transformações importantes (LAFETÁ, 1974, p. 17).

Em relação ao Brasil, a despeito da crescente efervescência política dos anos vinte,

outras eram as preocupações literárias mais imediatas. A Semana de Arte Moderna de 1922,

ponto de encontro das influências oriundas das vanguardas europeias anteriores à Primeira

Grande Guerra e plataforma de uma nova realidade cultural (BOSI, 1994), dá início ao que se

convencionou chamar de “fase heróica” do Modernismo. Neste momento, a urgência maior

era o embate contra uma literatura anacrônica, parnasiana, voltada para um ideal e uma

estética que pouco ou nada traduziam do país; ou seja, “[...] uma recusa da passividade e do

servilismo com os quais muitos intelectuais haviam assimilado modelos culturais e estéticos

de importação” (OLIVEIRA, 2002, p. 64).

A dimensão política da primeira etapa do modernismo brasileiro não se traduz em

desvendamento e ficcionalização da luta de classes ou na difusão de uma utopia socialista,

mas desemboca, alguns anos após a Semana, em termos do binômio “cosmopolitismo x

nacionalismo”. A questão nacional é, pois, o núcleo base a partir do qual grupos divergem e

fundam tendências díspares, entre as quais se encontram Oswald de Andrade, sem “[...] receio

de denunciar os aspectos negativos do Brasil [...]” e o “[...] nacionalismo verde-amarelista

[que] é de tipo sentimental, epidérmico [...]” e se ocupa da “[...] exaltação de valores como o

patriotismo, a terra, a religião, a família, a ordem política vigente [...]” (OLIVEIRA, 2002, p.

72). Ainda segundo a pesquisadora é “[...] necessário sublinhar que tal nacionalismo (pelo

menos na primeira fase) era, em ambos os casos, de natureza mais literária do que

propriamente ideológica e política” (OLIVEIRA, 2002, p.73).

Cumpre ressaltar que a distinção entre as esferas do literário – projeto estético – e do

político – projeto ideológico – não são mais do que instrumentos de análise encarados de

forma dialética uma vez que “[...] o projeto estético, que é a crítica da velha linguagem pela

confrontação com uma nova linguagem, já contém em si o seu projeto ideológico” (LAFETÁ,

1974, p. 11. Grifos do autor). Decorre que, em determinado momento, uma maior ênfase pode

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recair sobre um ou outro projeto, a depender das interpretações contextuais dos literatos.

Neste sentido, embora houvesse, desde o princípio, um projeto ideológico incrustado no

ímpeto renovador do Modernismo, tal movimento se caracterizava por uma perspectiva de

atualização das estruturas literárias, notadamente a linguagem, donde se percebe uma

prevalência do projeto estético na “fase heroica” (LAFETÁ, 1974).

Vencida a necessidade de atualização da literatura brasileira, Oliveira (2002) localiza,

a partir de meados dos anos vinte, uma movimentação gradual do Modernismo em direção à

realidade interna nacional, o que deixa em segundo plano a dimensão estética. Assim constata

Oliveira:

O esteticismo exasperado da Semana de Arte Moderna é substituído pela

preocupação de reintegrar a literatura na realidade, de mergulhar profundamente

naquele Brasil do qual tanto se falava, mas que pouco se conhecia. Sem renegar os

postulados do Modernismo, os seus protagonistas recusam a gratuidade do fato

estético em função de uma participação social mais acentuada (OLIVEIRA, 2002, p.

66).

Neste momento, um novo projeto ideológico, menos burguês em sua natureza, aos

poucos se anuncia. As reivindicações sociais, a opressão capitalista, o árduo cotidiano do

ainda incipiente proletariado urbano e do amplo contingente de trabalhadores rurais se

aproximam da literatura. Dado o contexto, a assunção de horizontes políticos vinculados ao

marxismo é praticamente inevitável. Assim, se em um primeiro momento, o projeto

ideológico se ocupa da renovação das premissas estéticas a regerem a literatura brasileira,

“[...] nos anos trinta esse projeto transborda os quadro da burguesia, principalmente em

direção às concepções esquerdizantes (denúncia dos males sociais, descrição do operário e do

camponês) [...]” (LAFETÁ, 1974, p. 18). A ênfase em um aprofundamento da consciência

política – ou da conscientização política – torna-se um divisor de águas entre ambos os

projetos ideológicos. Comparando-os ainda uma vez mais:

Não se trata mais, nesse instante [anos trinta] de “ajustar” o quadro cultural do país a

uma realidade mais moderna; trata-se de reformar ou revolucionar essa realidade, de

modificá-la profundamente, para além (ou para aquém...) da proposição burguesa: os

escritores e intelectuais esquerdistas mostram a figura do proletário (Jubiabá, por

exemplo) e do camponês (Vidas Secas) instando contra as estruturas que os mantêm

em estado de sub-humanidade [...] (LAFETÁ, 1974, p. 18-19).

O próprio decurso dos primeiros anos da década de 1930 no Brasil favorece a

passagem do projeto estético ao ideológico, uma vez que encerra a transição da política do

café com leite para a Nova República, o que interfere profundamente na vida social do país. A

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respeito da Revolução de 1930 – ainda que Getúlio Vargas, algum tempo mais tarde, tenha

flertado com o fascismo italiano e evoluído para o Estado Novo como forma de governo – é

importante reconhecer o caráter dinamizador da política nacional bem como dos esquemas

interpretativos da nação:

O redescobrimento do Brasil pode ser registrado na própria sucessão das produções

historiográficas posteriores à Revolução de 1930. A Revolução, se não foi

suficientemente longe para romper com as formas de organização social, ao menos

abalou as linhas de interpretação da realidade brasileira – já arranhadas pela

intelectualidade que emergia em 1922, com a Semana de Arte Moderna, de um lado,

e com a fundação do Partido Comunista, de outro. Assim como no plano da política,

na seara historiográfica novos estilos surgiram, contrapondo às explicações

autorizadas de Varnhagen, Euclides da Cunha, Capistrano de Abreu e Oliveira

Vianna concepções até então praticamente inéditas, e que soariam como

revolucionárias para o momento (MOTA, 2008, p. 69).

Observa-se, portanto, que a Revolução de 1930 é responsável por uma mudança no

pensamento gestor das esferas não só política, mas também – e principalmente –

historiográfica-interpretativa. Esta influência, como já salientado, se estende à literatura e

possibilita, assim como nas outras áreas, novos olhares, novas semânticas. Neste sentido,

Candido (1972, p.110-111) considera que há, neste período, uma tendência para a literatura se

“desburguesar”. Segundo o autor, os escritores “[...] vão tentar pôr de lado uma série de

valores culturais próprios à burguesia litorânea. Vão viver menos obcecadamente voltados

para a Europa; [...] vão procurar sentir o povo [...]. O romance começa, pois, a não ser mais

romance para classe”. Isto é, há um influxo da literatura nacional na direção de uma busca

pelo povo.

Não obstante, como pontua Oliveira em fragmento já citado, o projeto estético do

Modernismo cedesse lugar ao ideológico a partir de meados da década de 1920, apenas na

subsequente o projeto ideológico do movimento e a utopia socialista irmanam-se e

confundem-se, caracterizando o movimento identificado por Candido81

. Em entrevista a

Duarte, quando perguntado sobre as notícias provenientes de Moscou acerca da Revolução

Russa, o escritor Jorge Amado afirma:

Durante a década de 20 elas chegavam, mas ainda como algo distante. Nosso

conhecimento do processo revolucionário soviético se acentua a partir da Revolução

de 30. Trinta é que é a grande data. Até então nós fazíamos uma vida de

81

Importante frisar que o projeto ideológico voltado para a utopia socialista, embora mais expressivo, não se

constituiu, sobremaneira, na única vertente que se desenvolveu no período. João Luiz Lafetá (1974, p. 18)

assinala a existência de um grupo “conservador e de direita (literatura espiritualista, essencialista, metafísica e

ainda definições políticas tradicionalistas, como a de Gilberto Freyre, ou francamente reacionárias, como o

integralismo)”.

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subliteratura, escrever poemas... era ainda a luta contra o Parnasianismo, o

academicismo, contra Coelho Neto, coitado, que levou tantas bordoadas, muitas

delas injustas. [...] Mas a Revolução de 30 é que veio realmente marcar e ser um

divisor de águas, porque não teve o aspecto dos golpes militares ou tentativas de

golpes militares que a precederam. Antes de 30, a epopéia da Coluna Prestes já

havia nos tocado como algo heroico que se passava no interior do país e que durou

uns dois anos, entre 24 e 26. Depois, há o movimento da chamada “Aliança

Liberal”. [...] É claro que imediatamente começaram os compromissos e a

Revolução de 30 não tomou nenhum aspecto socialista, nem marchou para uma

radicalização, mas modificou muita coisa neste país (DUARTE, 1996, p. 272).

A despeito de ter sido escrito em 1930 e publicado em 1931, O país do carnaval é

muito mais um livro que reflete o pessimismo do primeiro vintênio do século passado ou

mesmo aquele que caracteriza os últimos anos do século XIX. Ao que tudo indica, o mesmo

ocorreria com Rui Barbosa nº 2. Apenas em 1932 os anos trinta passam a deixar marcas mais

profundas na literatura amadiana. A primeira, como já explicitado, uma descontinuidade

ocasionada pela não publicação do romance Rui Barbosa nº 2, desistência motivada, dentre

outros fatores, pela adesão do escritor às ideias socialistas. Esta primeira característica já

guarda em si o embrião da segunda, a ruptura que, entretanto, iria se consolidar apenas no ano

seguinte, 1933.

Como visto, há um consenso entre pesquisadores do Modernismo em opor as

produções dos anos vinte e trinta em termos de uma ênfase na experimentação estética e no

engajamento ideológico. Em se tratando especificamente da literatura amadiana, O país do

carnaval, se distante das premissas do modernismo de trinta, não é, também, o que se pode

classificar como um típico exemplar em que se note a influência dos primeiros anos do

movimento modernista. Aliás, o próprio Jorge Amado afirma, em depoimento publicado por

Valdomiro Santana (2009, p. 16) pouca proximidade com tal vertente e “até uma certa

desconfiança desse movimento, aquela coisa de paulista, de língua inventada. Os modernistas

não conheciam a linguagem popular”. A suposta distância entre Jorge Amado e os expoentes

do Modernismo talvez possa ser analisada através da pouca penetração do movimento na vida

literária baiana, cujo contato só se firmaria cinco anos após a Semana de Arte Moderna,

conforme o escritor baiano salienta a Alice Raillard (1990, p. 34)82

. Note-se que o período

referenciado por Jorge Amado como sendo o do início das trocas, ainda que incipientes, entre

Bahia e Modernismo Paulista é o mesmo considerado por Oliveira como o do arrefecimento

do esteticismo e da intensificação de um olhar voltado para a realidade nacional. Ainda que

82

A esse respeito, Rossi (2004, p. 41) sugere algo interessante. Segundo o pesquisador: “A negação [do contato

com o modernismo paulista], penso, deve ser encarada menos como uma ausência de diálogo ou aproveitamento

literário das liberdades temáticas e formais preconizadas pelos modernistas paulistas, e mais como sintoma das

reordenações de interesses dos literatos no terceiro decênio do século XX".

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em O país do carnaval tal perspectiva se faça presente, porquanto a temática remonte em

última análise ao país, prevalece a face que dialoga diretamente com alguns grupos de caráter

conservador. Tal obra resgata, assim, um modelo de literatura anterior à Semana de 1922,

quanto mais no tocante à sua concepção de Brasil erigida sobre valores europeus.

A estreia, por assim dizer, de Jorge Amado na década de 1930 acontece com a

publicação de Cacau83

, seu segundo romance, em 1933. Mais do que simbolizar o

engajamento político do autor e apontar na direção de um projeto literário inclusivo, esta

narrativa consolida a ruptura em relação a O país do carnaval, cuja forma embrionária já se

anunciava na descontinuidade de Rui Barbosa nº 2.

Não se trata, apenas, de opor uma narrativa à outra, mas, em um plano maior, observar

os projetos que elas encerram. Cabe ressaltar que o motivo pelo qual se considera Cacau

como o exato ponto de ruptura não é outro senão o fato de, neste estudo, investigar-se projetos

literários. Poder-se-ia propor igualmente uma abordagem baseada na militância política, o que

faria com o que o projeto literário fosse meramente secundário. Sob esta premissa, a simples

destruição de Rui Barbosa nº 2, aliada ao contexto em que ocorre, seria suficiente para

preconizar uma ruptura. Ao se considerar o projeto literário, a materialidade de uma obra que

se contraponha em absoluto à outra se torna imprescindível.

O que distingue os dois primeiros romances amadianos, estabelecendo uma ruptura

entre projetos literários, não é a simples passagem de um tema a outro – dos conflitos

existenciais de um grupo de jovens burgueses ao cotidiano dos trabalhadores nos cacauais da

Bahia – ou a mudança de cenário – de uma representação citadina à fazenda de cacau. Em

verdade, apesar de marcantes, estas são consequências diretas de uma mudança maior que se

inscreve nos princípios e valores a partir dos quais as narrativas são escritas e aos quais

remetem. Por conseguinte, a distinção não se refere somente à adesão a uma ideologia

socialista, mas ao caráter mais popular do que propriamente “político” que esta assume na

obra amadiana como um todo e já em Cacau, embora muito timidamente. Revelador,

portanto, que a exceção de Subterrâneos da Liberdade e Farda, Fardão, Camisola de Dormir

– livros que Jorge Amado considera como políticos, na medida em que possuem a temática

voltada exclusivamente para questões desta natureza – o autor afirme que seus romances o são

83

O romance narra a história de José Cordeiro, também chamado de Sergipano, cujos pais foram roubados por

um tio capitalista. Assim, Cordeiro que tivera uma infância rica e pôde frequentar bons colégios se vê pobre e

alugado da Fazenda Fraternidade, de propriedade do Coronel Manoel Misael de Souza Teles. Convivendo com

outros alugados, o Sergipano incorpora aspectos da consciência de classe, o que o impede de casar-se com

Mária, filha do coronel, por quem se apaixonara. Acaba migrando para o Rio, onde encontra Colodino, que lhe

havia escrito contando sobre as descobertas a respeito da “luta de classes”.

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“[...] na medida em que são populares e sociais, e não porque tenham uma intenção política

direta, imediata e clara [...]” (RAILLARD, 1990, p. 137).

Não se pretende, com a ressalva acima, relativizar a importância do aporte ideológico

no conjunto de obras que se iniciam em Cacau e seguem até Subterrâneos da Liberdade.

Muito menos supervalorizar um discurso que, talvez, esteja marcado pela decepção com os

rumos da antiga União Soviética. Por mais não seja, desconsiderar que Cacau se pretende um

“romance proletário”, tal como expresso em nota pelo autor, não é uma alternativa válida84

.

Ademais, é com o seu segundo romance que “Amado demonstra uma intenção muito clara de

se integrar nesta perspectiva [marxista], como forma de assumir uma posição frente aos

dilemas políticos do seu tempo” (DUARTE, 1996, p. 29). Ato reflexo, Araújo situa neste

conjunto de narrativas uma convergência estética e ideológica:

Jorge Amado [estabelece] a literatura como levantismo rebelde e tomada de posição,

no caso pela idealização do logos político. Absorvendo a tese etapista do partido,

adequando-a à concepção do romance proletário inscrito no modelo do realismo

socialista e didatizando o fenômeno de transformação da realidade pela assunção da

consciência de classe, a arte literária de Amado desenvolveu-se num tríptico do

espaço romanesco: pólis, paixão e revolução. Seu projeto estético assim se

confundiu com o ideológico, tornando a obra um bloco uno e integrado (ARAÚJO,

2003, p. 31).

Caso se propusesse a relativização acima negada, seria ainda fechar olhos para o

contexto vivenciado pelo escritor e, mais importante, para as influências literárias que o

direcionam para a ruptura com o universo narrado em seu primeiro romance. Afinal, o próprio

Jorge Amado afirma a Raillard (1990, p. 56) que “Cacau e Suor [...] significam o meu

encontro com a esquerda – é o momento em que me torno militante da esquerda, e o meu

encontro com a literatura, com o romance proletário dos anos 20, com a literatura soviética da

primeira fase e com os escritores americanos que surgiam”.

Sugere-se, entretanto, que ao lado destas influências, considere-se com igual peso e

medida o crescente conhecimento do romancista acerca da vida popular, seja a dos cacauais,

84

Segundo Eduardo de Assis Duarte (1996, p. 49) “O romance proletário estava apenas nascendo, e nascia em

meio a um debate ao qual os escritores brasileiros nem sempre tinham acesso. O modelo tateava, mas consistia

basicamente em fazer sobressair no texto a relação mimética com a realidade em suas determinações

econômicas, aliada à captação (também mimética) da linguagem popular e à adesão a algumas conquistas da

prosa modernista”.

Em entrevista a Alice Raillard, Jorge Amado afirma: “Fazer um romance proletário era, evidentemente, pura

pretensão de minha parte. A consciência proletária ainda estava em formação num país que apenas começava a

se industrializar e onde não existia, propriamente, uma classe operária; o que havia era o trabalhador manual – e,

neste ponto, a descrição da vida dos trabalhadores rurais é o que torna Cacau muito real; embora seja

absolutamente idealista, do ponto de vista ideológico, a tentativa de aproximação entre os intelectuais e o

proletariado ao qual corresponde o herói do livro” (RAILLARD, 1990, p. 55).

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seja a da Cidade da Bahia. Sem dúvida, é por conta deste fator que a obra amadiana – Cacau e

Suor em menor intensidade e excetuando-se O país do carnaval – pode ser lida como política

para além das restrições ideológicas, tal como as definiu o autor em fragmento já citado.

Neste sentido, em análise a respeito do romance Cacau, afirma-se:

A par desta experiência [advinda com a militância e a literatura socialista],

continuadas viagens através do nordeste ou pelo interior baiano, num profícuo

aprendizado sobre a realidade social e humana do país – aprendizado valioso, que

faltara a Paulo Rigger, e sobretudo valioso para a formação de um romancista

destinado a extrair da própria essência da alma popular de sua gente os motivos mais

altos de sua inspiração (TÁTI, 1961, p. 40).

Com a publicação de Cacau, Amado aborda o cotidiano opressor daqueles que

trabalham nos cacauais ao sul da Bahia – via de regra negros e mestiços, egressos da

escravidão ou seus descendentes. No ano seguinte, 1934, Suor vem a público. A narrativa tem

como cenário principal o sobrado nº 68 da Ladeira do Pelourinho e reencena a miséria

daqueles que o habitam – negros e mestiços, bem como brancos pobres85

. Assim, ambos,

Cacau e Suor, cumprem o papel de demonstrar a “exploração do homem pelo homem”, pondo

a nu a opressão gestada por um sistema dependente da divisão social entre ricos e pobres,

mandatários e subalternos.

Apesar de imbuído da utopia socialista, quando o baiano escreve sobre os alugados

nos cacauais da região grapiúna, ou aborda as prostitutas e os vagabundos, operários e

mendigos do centro velho da velha Salvador não o faz somente como alguém do Partido que

cumpre diretrizes estéticas e ideológicas86

. Em outras palavras, ainda que o escritor teça, neste

primeiro momento, um projeto engajado, vinculado à ideologia socialista, há em suas

recriações qualquer coisa de fértil que independe da utopia. Este aspecto, que ultrapassa os

limites da política ideológica, avança, aos poucos, na direção de uma autonomia do

representado, de modo que haja um viés esquerdista a conduzir a narrativa, mas que não se

sobreponha aos valores específicos cultivados no cotidiano popular. Antes, configura-se uma

85

O romance Suor é composto por uma sucessão de imagens que busca evidenciar e enfatizar o estado de

miséria e abandono do lumpensinato baiano de modo que a personagem central do romance é o casarão nº 68 da

Ladeira do Pelourinho, símbolo em si de decadência. Tais imagens apontam para uma coletividade excluída e à

margem do Estado com o que o romancista talvez pretendesse despertar a “consciência revolucionária” em seu

leitor. Não sem motivo, a cena final do romance agrupa as imagens fragmentadas apresentadas ao longo da

narrativa em torno de uma coletividade, a multidão, que protesta: “Então a multidão avançou para os

investigadores, de braços levantados” (Suor, p. 132). 86

Segundo Edvaldo Bergamo (2008, p. 77): “Nos primeiros romances de Jorge Amado dos anos 30 do século

XX, a perspectiva social que aflora não está diretamente ligada aos ditames de uma „literatura de partido‟, que

viria a praticar na década de 1940. Ainda não é uma literatura estritamente programática, em obediência aos

cânones ideológicos e estéticos do realismo socialista [...]”.

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confluência na qual a vida popular apresenta alguma primazia87

. Deste modo, conforma-se

uma perspectiva política singular, o que é confirmado pelas palavras do próprio escritor:

De direita, de esquerda, eu acho que são expressões que nada significam; para mim,

estas palavras têm um sentido totalmente diferente. Direita quer dizer fome, miséria,

ditadura, e encontram-se então elementos de direita, formas de direita em todos os

regimes, sejam eles os capitalistas ou os assim chamados socialistas. Esquerda para

mim quer dizer paz, liberdade, sem miséria, com trabalho, ter um emprego, cultura

para todos, e liberdade. A Liberdade. Para todos (RAILLARD, 1990, p. 52).

Sem querer descontextualizar o fragmento acima – parte de uma entrevista concedida

em 1985, portanto muitos anos após a decepção com os rumos do governo stalinista – reside,

na repetição enfática do termo “liberdade”, certa equivalência semântica com “esquerda”. Não

obstante esta seja uma concepção que se consolide após o cisma com o Partido Comunista,

em 1954, tal proposta já é anunciada com a vinculação da narrativa amadiana à vida popular

baiana. Percebe-se, assim, a formação de uma tríade sinonímica esquerda/vida

popular/liberdade que permeia o pensamento amadiano e influi, em cores crescentes, na

construção do seu universo ficcional – o que leva Portella (2011, p. 61) à concepção de

“infatigável sonho da liberdade”.

Embora mais visível nos romances que surgem a partir de Gabriela, cravo e canela,

por conta do enfraquecimento do caráter estritamente ideológico-partidário do primeiro termo,

a tríade esquerda-vida popular-liberdade pode ser observada nas obras do período “político”

de Amado, sobretudo em Jubiabá e Mar Morto, romances em que “a margem da liberdade

corresponde à liberdade da margem” (PORTELLA, 2011, p. 68). Em Cacau e Suor, todavia,

este é um traço ainda um tanto disforme e que subsiste naquilo que Duarte (1996, p. 55)

considera uma característica recorrente na obra amadiana: “[...] a representação positiva do

oprimido. O texto não se limita a deixá-lo falar, mas se incumbe de fazê-lo crescer e afirmar

sua dignidade [...]” (Grifos do autor).

Corolário da ruptura com O país do carnaval, a ressignificação ficcional se evidencia,

entre outras passagens, na autoironia que segue:

[...] Os meninos não pensavam. Trabalhavam, comiam e dormiam. Um literato disse

certa vez:

- Esses é que são felizes, não pensam...

Assim parecia a ele (Cacau, p. 94).

87

É o caso, por exemplo, dos romances Mar morto e Tenda dos milagres. Cacau e Suor pouco flertam com esta

perspectiva. Já em Jubiabá, ainda que não se desenvolva de todo, ela dá sinais de vitalidade.

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Mea culpa. Não parece outro o sentido do fragmento transcrito em que José Cordeiro,

narrador-personagem, aborda o cotidiano nada infantil das crianças – negras e mestiças – nas

fazendas de cacau. Jorge Amado, através do Sergipano, retoma e nega a si próprio: o literato

que assumia a felicidade como compatível apenas a um baixo estágio de inteligência ou

“cultura”, uma das premissas norteadoras do preconceito latente de seu primeiro romance.

Ainda assim, a constatação de que tais crianças não pensam abre a possibilidade de

uma leitura de certa continuidade em relação à personagem Jerônimo, no que persistiria o

olhar hierarquizante de O país do carnaval. De qualquer forma, esta hipótese não resiste a

uma análise um tanto mais acurada. Em Cacau, a afirmação ganha tons de denúncia social

uma vez que não pensam porquê trabalham e porquê a escola lhes é negada. Não há qualquer

semelhança com o caráter ontológico em que se baseia a ficcionalização de Jerônimo, em que

pesa uma suposta incapacidade natural de pensar dada a sua condição mestiça, do que

resultam como inúteis quaisquer esforços em intelectualizar-se. Desta forma, as narrativas em

questão partem de pressupostos distintos e apontam para caminhos também díspares, se não

antagônicos. Ao considerar este movimento, a senda aberta por O país do carnaval é negada,

abandonada e esquecida.

O movimento de transição da ótica ontológica para a social pode ser uma importante

referência para investigar uma das mais problemáticas passagens do romance Suor, no que

concerne às representações étnico-raciais:

A imaginação dos trabalhadores, especialmente a dos negros, aceitava sem reclamar,

nem analisar, as aventuras loucas, as fugas do real do filme em série.

Quando as crianças brancas já duvidavam daqueles excessos de força e daquelas

coincidências exageradas, os negros adultos sorriam crédulos e, se alguém

manifestava a sua dúvida em voz alta, eles discutiam, afirmavam que aquilo era

possível, contavam casos para comprovar [...] (Suor, p. 48).

Apesar de ser forçoso reconhecer que há neste fragmento qualquer coisa que lembre o

biologismo de O país do carnaval, bem como a repetição da imagem estereotipada do negro

que não prima por qualquer habilidade racional, é plausível outra leitura. Se observados os

sentidos que se depreendem da narrativa como um todo – e não apenas de uma citação isolada

– é possível avançar para uma interpretação em que o trecho transcrito se configura

novamente como denúncia social ao invés de, propriamente, determinismo biológico. Assim

como em Cacau, a realidade dos trabalhadores, “especialmente a dos negros”, é amplamente

oposta àquela vivenciada pelos moradores dos bairros nobres da cidade. As discrepâncias

socioculturais revelam-se imperativas da ordem burguesa capitalista e estruturam a sociedade

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com vista a sua manutenção88

. É, pois, no plano das possibilidades oportunizadas que a

criança branca se distingue intelectualmente do negro trabalhador adulto. É fácil inferir que

tal distinção se dá unicamente por conta do acesso à educação, possível aos brancos,

detentores de poder, e negada aos negros. Assim, se a narrativa os percebe em processo de

infantilização, o faz para ressaltar o ardil do capital em denegar-lhes o direito à consciência de

classe e posterior ação política:

Suor nada tem do biologismo que funcionou como aparato “científico” da ideologia

colonialista do século XIX e embasou a literatura da era Darwin. O materialismo de

suas postulações deita raízes na dialética marxista e na determinação em última

instância pelo econômico. Estas, sim, constituem-se em referências orientadoras das

ações, voltadas quase sempre para a exposição do lado perverso do capitalismo e

para a tomada de consciência dos dominados (DUARTE, 1996, p. 66).

Adentrando um pouco mais na perspectiva que passa a operar a partir de Cacau e

Suor, encontra-se na tríade esquerda-vida popular-liberdade, com uma prevalência do

primeiro termo nos dois romances, a matriz a partir da qual se dá a referida ressignificação.

Conclusão parcialmente aventada por Duarte (2006, p. 36), que assinala o sentimento de

classe como fator de modificação na “[...] postura amadiana a respeito das identidades

culturais afrodescendentes [...]”. Sem, novamente, desmerecer a questão ideológica, é

importante referenciar os dois termos restantes da tríade como componentes deste processo.

Como se depreende dos estudos de Bacelar (2001), Garcia (2009) e Albuquerque

(2009), em se tratando da realidade sócio-racial baiana, a perspectiva de classe impõe a

ficcionalização e positivação de negros e mestiços como trabalhadores – o que leva Rossi

(2004, p. 54) a considerar que “[...] no cruzamento de sentidos entre classe, popular e raça, o

negro surgiu, então, como o oprimido por excelência: dupla marca de sua condição étnica e

social [...]".

Este movimento, registre-se, não é acompanhado por um similar que os valorize como

sujeitos cujas idiossincrasias sejam válidas. É o caso, por exemplo, nos romances Cacau e

Suor, do trato pejorativo com a religiosidade afro-brasileira. No primeiro, o candomblé é

denominado fetichista e, em Suor, veiculado unicamente como feitiço, nunca como um

aspecto de resistência popular ou sentimento religioso: “As mulheres dos trabalhadores

rezavam também, orações esquisitas, semicatólicas e semifetichistas” (Cacau, p. 90) e “O

88

“Discrepância cultural” refere-se, neste contexto, à pouca ou nenhuma possibilidade de integração do

trabalhador negro – e dos seus descendentes – às condições oportunizadas por uma sociedade racista para as

crianças brancas. Não cabe, portanto, a discussão cultura superior/inferior, por pressupostos com os quais esta

dissertação não se coaduna, mas igualdade/desigualdade de acesso e consequente possibilidade de ascensão no

mundo capitalista hierarquizado.

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árabe também acreditava. E quem não era dominado pela religião bárbara dos negros?” (Suor,

p. 57). Largamente utilizado pelos missionários cristãos enviados ao continente africano para

a prática da evangelização ao longo do período escravocrata, o termo “fetichismo” comporta,

assim, o olhar do dominador sobre o dominado. Não é de se estranhar que designe aquilo que

deve ser abolido, dado seu caráter primitivo em face da civilização ocidental e da “Santa

Madre Igreja”. Dialoga, portanto, com o sentido de “bárbaro”, constantemente atualizado e

reutilizado ao longo dos séculos. Ao fazer uso destes vocábulos, sem que haja qualquer outra

imagem que a eles se contraponha, Jorge Amado restringe a capacidade de representação do

negro nos romances em estudo. O negro que interessa a estas narrativas compõe quase

unicamente uma abstração ideológica, sem que haja um comprometimento com o negro-

sujeito, o que se percebe com mais ênfase em Suor89

:

Minutos depois o grupo se engrossara. Homens e mulheres cercavam o despacho,

incapazes de transpor o degrau onde o tinham deixado.

O sapateiro espanhol desceu. Passou entre o ajuntamento sem curiosidade e ia

pisando no degrau fatídico quando alguém o reteve, pegando-o pela manga da

camisa.

- Vai pisar no feitiço...

- Ah! Vocês não descem por causa disso?

Meteu o pé no embrulho, desfazendo-o. Os outros olhavam, espantados.

- Que feitiço forte! É pra matar mulher que tomou marido dos outros...

[...] Farinha com azeite de dendê. Penas de galinha preta. Quatro pratas de mil-réis e

quatro vinténs. Cabelos que pareciam de sovaco ou carapinha de negro. Uma calça

de mulher.

[...] Fitaram o espanhol compadecidos. A cólera de Ogum e dos outros orixás cairia,

sem dúvida, sobre ele.

O anarquista perguntou:

- Quem quer os quatro mil-réis?

E, como ninguém os quisesse, ele juntou as pratas e meteu-as no bolso (Suor, p. 57-

58).

Nota-se, na transcrição acima, certo investimento de superioridade na personagem

espanhola em face daqueles que, assolados pelo medo, amontoavam-se frente ao feitiço,

incapazes de transpô-lo. A profanação do pacote é também uma provocação, como se o

anarquista instasse a audiência contra suas próprias crenças, como a desafiá-los. Especula-se

que o despacho teria como intuito a morte de Nair; acredita-se, ainda, em um fim trágico para

o espanhol por tamanha ousadia. Desta forma, o retrato da religiosidade afro-brasileira aí

esboçado não dista muito das imagens elaboradas pelos já citados missionários cristãos em

terras de África. Há na fala e nas práticas religiosas de tais missionários a intermitente

89

A despeito das possíveis complicações decorrentes do termo em destaque, o que se pretende ao grafá-lo não é

vão essencialismo, mas apenas enfatizar que na representação do negro pretendida em Cacau e Suor, não se

vislumbra, ainda, uma positivação das culturas de matriz africana. Em última análise, não é o negro que

interessa, mas a função proletária que ele desempenha.

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exploração e intensa condenação dos usos supostamente “maléficos” das tradições religiosas

negro-africanas.

Pode-se obstar, evidentemente, que o trecho transcrito faz parte de um capítulo

intitulado “religião”, em que há também uma representação negativa do catolicismo, o que

parece indicar a tentativa de Jorge Amado em tornar ficção a diretriz comunista que pressupõe

a religião como “o ópio do povo”. Ainda que esta interpretação esteja correta, é necessário

observar que a negatividade incide sobre instâncias diferenciadas no candomblé e na Igreja.

Enquanto o Deus judaico-cristão é mantido a salvo da crítica que se dirige à igreja que o

representa, tida como exploradora da fé do povo, são justamente os orixás africanos que são

colocados em evidência. Se há uma inferiorização/ridicularização dos fiéis do candomblé,

cuja contrapartida é o destemido sapateiro espanhol, é bem verdade que o mesmo ocorre do

lado católico do sobrado, com Linda e Risoleta vaidosas por receberem uma carta da Igreja

pedindo donativos. O que difere nas representações é que o olhar sobre o catolicismo se

mantém unicamente na instituição Igreja, cujo representante é o Pe. Solano Dalva, enquanto

aquele que se volta para o candomblé focaliza, inclusive, uma suposta ação maléfica dos

orixás que se consubstancia na doença de Nair e sua consequente recolhida pela Assistência:

“Eu bem que disse que aquele despacho era pra ela” (Suor, p. 58).

Se o viés socialista positiva o negro como trabalhador, mas silencia quanto a suas

particularidades históricas e culturais, é neste segundo segmento – o negro como sujeito – que

atuam os termos “vida popular” e “liberdade”. Ao dignificar não apenas a imagem do

trabalhador, mas também a especificidade vivencial do narrado – linguagem, mitologia, fé e

modos de ver e viver o mundo – Amado reivindica o combate à perseguição empreendida

contra tais particularidades. Este movimento se deve não só ao próprio enraizamento do

escritor nesta vida popular, mas também ao envolvimento crescente com os estudos sobre os

negros, empreendidos por seus companheiros Édison Carneiro e Arthur Ramos (ROSSI,

2004). Resulta, assim, não apenas na positivação de uma abstração ideológica, o proletariado,

mas nos sujeitos que o compõem e no coletivo identitário que os abarca.

Tanto em Cacau quanto em Suor esta perspectiva não é atingida em estado pleno, mas

se anuncia em algumas poucas passagens. É possível observar, em ambas as narrativas, um

resquício de dignidade à qual as personagens se agarram e a partir da qual se permitem uma

relativa desforra do cotidiano opressor, seja através da festa, da violência ou da própria utopia

socialista sintetizada na greve.

Em ambas as narrativas o circo ou o cinema; as prostitutas da Rua da Lama ou as

mulheres com as quais deitavam no areal do cais, por exemplo, representam momentos em

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que a opressão diária cede um pouco sobre os ombros daqueles homens. São instantes, poucos

e céleres, de descarregar o trabalho, livrar-se do cansaço e dos insultos ouvidos. Os segundos

em que não há patrão e a miséria diária pode ser esquecida. Daí o certo fascínio com que os

trabalhadores vivem esses momentos. Nas relações vividas na Rua da Lama ou no areal do

cais não é apenas sexo o que ocorre, mas a própria realização das personagens como homens

– subjetividade negada pelo sistema dominante que os diminui até não mais poder em um

processo de reificação, ou seja, de total alienação da condição humana. A este respeito, José

Cordeiro, ao estranhar o termo alugado, condição em que naquele instante se encontrava,

afirma:

Estranhei o termo.

- A gente aluga máquina, burro, tudo, mas gente, não.

- Pois nestas terras do sul, gente também se aluga.

O termo me humilhava. Alugado... Eu estava reduzido a muito menos que homem...

(Cacau, p. 35).

Já em Suor, romance citadino, o processo de reificação ganha em dimensão uma vez

que se desenrola no centro antigo da Cidade da Bahia, lugar historicamente marcado pelos

castigos aplicados aos negros escravizados. Isto é, o espaço atualiza a desumanização típica

do regime escravocrata em um movimento de coisificação próprio da sociedade capitalista.

Nota-se, nesta representação, uma continuidade do Brasil pré-1888 na Bahia dos anos 1930.

Carlos Magalhães (2011, p. 213), em estudo sobre o romance em questão, situa: “[...]

desapareceram o instrumento de suplício e a escravidão, mas se instalou a servidão da

indignidade e da humilhação dos que vivem na sarjeta social”.

Ocorre que o processo de reificação não é aceito de forma passiva pelas personagens,

no que residem os laivos narrativos em que o homem, em especial o negro – e não apenas o

trabalhador – é dignificado. Em Cacau, não fossem suficientes os abusos excessivos do

trabalho, ainda mais penoso por conta da perseguição de Algemiro, espécie de feitor, a

humilhação sobre os homens se dá também em âmbito privado, nos limites de seus

relacionamentos mais íntimos. Ao chegar a este patamar, o fardo sobre Colodino torna-se

insuportável. Frente à cena de Magnólia, sua noiva, na cama com Osório, filho do patrão, a

desforra é inevitável:

[...] Ela devia estar sozinha, pois D. Júlia trabalhava na juntagem. Mas não estava.

Osório fazia-lhe companhia. Na cama tosca os dois não ouviram os passos do

carpinteiro. Nilo ouviu gritos. Correu. A cara de Osório cortada, um talho grande.

Os óculos rebentados. Colodino surrava-o com o facão. O sangue corria. Nas roças

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não se ouvia nada. Os gritos de Osório não chegavam até lá. Colodino se cansou,

parou de bater. Nilo olhando. Disse:

- É o que você merece seu xibungo (Cacau, p. 132-133).

Os golpes que atingem Osório, ocasionados por seu envolvimento com Magnólia, não

parecem se restringir a esta razão. O homem que bate não é apenas o traído e aquele que

apanha também não é apenas o traidor. A cena se estabelece como uma catarse em que

Colodino vinga, contra o filho do patrão, as humilhações sofridas diariamente por ele e pela

classe que representa. Observa-se, desta forma, uma passagem em que, quem se levanta

contra a opressão é o homem – sujeito – e não o trabalhador – tônica deste romance.

Vinculado a esta discussão, a despeito da prevalência da perspectiva de classe sobre

qualquer outra, não se pode dizer que Jorge Amado se mantenha de olhos fechados frente às

clivagens sócio-raciais impostas por uma sociedade racista. Em Cacau, por exemplo, José

Cordeiro, rememorando a sua infância, narra que perto de sua casa havia um orfanato para

meninas, filhas de operárias com pais que não as reconheciam. “Algumas, quando crescidas,

voltavam à fábrica onde haviam nascido, e de onde mandariam novas meninas, sem

sobrenome para o orfanato. Outras, as mais alvas, iam ser freiras e se estendiam pelo país”

(Cacau, p. 20). Ora, o que sela o destino destas meninas sem pais não é a perspectiva de

classe, mas a racial. É o que se constata até mesmo nesta passagem, uma vez que só as mais

alvas alcançariam desempenhar a vida religiosa, índice de certo status, inclusive para a

família. Ainda nesta narrativa, embora em tom jocoso, os diálogos entre João Grilo, mulato, e

Honório, negro, traduzem certa diferenciação no interior da mesma classe trabalhadora:

[...] Honório pretendia ainda saber o abc. Colodino bancava o professor. Mas aquilo

não entrava na cabeça do gigante.

João Grilo, mulatíssimo, chalaceava:

- Isso é porque você é negro, Honório. Nós branco é que sabe... Eu, doutor João

Nabuco da Silveira Nascimento, vulgo João Grilo...

- E você o que é, moleque?

- Mas sou branco, que dúvida. Se eu fosse preto um minuto só, me suicidava com

uma corda (Cacau, p. 53).

Já em Suor, a utopia socialista, por intermédio da voz de Henrique, claramente

imiscui-se na vivência de homem negro:

- Você lembra dessas histórias que você conta, minha tia?

- Que histórias?

- Essas histórias de escravidão...

- O que é que tem?

- Você vai esquecer elas todas.

- Quando?

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- No dia que nós for dono disso...

- Dono de quê?

- Disso tudo... da Bahia... do Brasil...

[...]

- Negro é escravo. Negro não briga com branco. Branco é senhor dele. Eu soube de

um negro que quis brigar com um branco. Foi há muito tempo...

[...]

- Mas agora a gente livra o preto de vez, velha. (Suor, p. 35-36).

É interessante observar, a respeito deste fragmento, a divergência de opiniões entre

Henrique e a velha, que é chamada de “minha tia”. Talvez seja possível afirmar que, na

discordância dos dois, Amado situa a passagem do velho para o novo em termos de atitude

política. Assim, a despeito da fala de “minha tia” carregar consigo o estereótipo da submissão

negra, tão marcante nas teses gilbertianas, o negro Henrique vem a afigurar o oposto, isto é, a

revolta, a possibilidade de mudança. É o que se observa na afirmativa a seguir: “[...] o negro

Henrique é flagrado alimentando fantasias que se identificariam com alguma esperança de

transformação não só da sua, mas também da vida dos companheiros” (MAGALHÃES, 2009,

p. 255).

Ainda assim, não é possível afirmar que exista em Cacau ou em Suor a positivação do

negro como sujeito – se há, é de tal forma incipiente que a representação positiva do

trabalhador lhe sobrepõe e apaga. Interrompe-se, através da inserção do negro na perspectiva

de classe, o processo de negativização iniciado em O país do carnaval. As personagens

negras e mestiças figuram em ambas as narrativas sem o tom pejorativo que incidia sobre

Jerônimo Soares – não obstante algumas imagens pareçam laivos do biologismo de O país do

carnaval.

De qualquer forma, a mestiçagem não se configura, nestes dois romances, um tema a

ser debatido, como em O país do carnaval, ou um ideal a ser afirmado, como na produção

pós-militância política. Por paradoxal que pareça, a presença de mestiços nos romances

Cacau e Suor é, de certo modo, irrelevante a um estudo sobre mestiçagem, uma vez que não

produz qualquer sentido além da composição de um painel dos párias sociais. A despeito

desta observação, o enfoque estabelecido aqui sobre estas duas obras flagra o instante em que

o olhar étnico-racial amadiano prenuncia uma guinada que resulta em uma primeira tentativa

de ficcionalização do negro-sujeito, o que se configura em Jubiabá.

A transição acima destacada é de suma importância. Como visto na seção anterior, as

restrições tecidas acerca da mestiçagem partilham das mesmas limitações construídas

historicamente sobre os negros. Ou seja, a crença em superioridade/inferioridade inatas, cuja

expressão visual remonta aos caracteres fenotípicos, é responsável pela suposição de uma

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ação degenerativa – moral, biológica e psíquica – sobre o grupo convencionado como

superior, uma vez estabelecido o intercurso sexual entre “raças” distintas. Sendo assim, a

reversão do caráter conservador e racista do ideário da mestiçagem passa necessariamente por

uma revisão dos aspectos inferiorizantes e subalternizantes conferidos ao negro por

instituições brancas, dotadas de poder e legitimidade. De certo modo, a literatura amadiana

vivencia este percurso. De O país do carnaval a Suor passa-se do negro negativo ao negro

trabalhador positivo. Em Jubiabá, enfim, esboça-se a passagem do negro trabalhador positivo,

ao negro sujeito positivo. Cumprido este processo, a mestiçagem pode figurar em um plano

maior que o de um painel dos párias sociais, revelando-se significante e significado da

realidade baiana – movimento que se inicia em Mar morto, se prolonga em Capitães da areia

e se consolida, após longo período de latência, em Os pastores da noite.

2.3 DE NARRADO A HERÓI OU DA ESTIVA E DO SAVEIRO

Em 1935, Jorge Amado publica Jubiabá, romance considerado pelo autor como sua

primeira produção madura – os três livros que o antecedem correspondem a “cadernos de

romancista” segundo o grapiúna (RAILLARD, 1990)90

. Interessante notar que tal

classificação coincide com a ficcionalização de um universo permeado por uma prevalência

negra, seja através da presença de um herói afrodescendente – Antônio Balduíno – seja por

conta dos princípios culturais que fundamentam a personagem. É, com efeito, no ineditismo

destes pontos que se pode observar o surgimento do negro-sujeito na obra amadiana – ou pelo

menos o seu esboço:

90

Em seu quarto romance, Jubiabá, Jorge Amado narra a história do negro Antonio Balduíno, acompanhando-o

desde a infância até a personagem se constituir em uma espécie de líder da Greve Geral que movimenta as

últimas ações do romance. Assim, Amado traça o percurso ascensional da identidade de classe em Baldo à

medida que a personagem deixa de se reconhecer como negro para visualizar-se proletário. Entre um extremo e

outro, muitas são as “fases” de Baldo: ainda criança, habitante do Morro do Capa Negro, vê sua tia Luísa

enlouquecer, por causa disso é levado por Augusta para a casa do Conselheiro Pereira onde passaria a morar,

seria educado e trabalharia. Nesta casa, conhece Lindinalva, por quem nutre sincera amizade. No entanto, é

expulso pelo Conselheiro uma vez que a governanta Amélia o tinha caluniado ao inventar que Baldo olhara as

coxas de Linda. A partir deste momento a personagem percebe nutrir por Lindinalva algo maior do que simples

amizade, um sentimento que o perseguirá por toda a narrativa. Expulso da Travessa Zumbi dos Palmares, Baldo

então se torna chefe de um bando de meninos de rua, passando a boxeador, empregado nas plantações de fumo

de Cachoeira e São Félix, artista de circo e, finalmente, estivador – quando, na greve, adquire consciência de

classe. Emprega-se na estiva para poder cuidar do filho de Lindinalva que, ao contrário da trajetória ascendente

de Baldo, decai socialmente da Travessa Zumbi dos Palmares para um mísero quarto na Ladeira do Tabuão,

onde passara a exercer o ofício de prostituta. Uma vez estivador, Baldo percebe que o “mundo do trabalho” não

necessariamente se assemelha ao da escravidão porquanto exista a greve, momento em que os trabalhadores

logram tomar a cidade sob o seu domínio. O romance termina com a vitória dos grevistas e uma mensagem de

união a todos os trabalhadores, independente de “raça”, na luta contra a opressão capitalista.

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O romance de Jorge Amado [Jubiabá] [...] é singular na história do modernismo

brasileiro, porque faz mais do que elevar um personagem negro à condição

principal. Antônio Balduíno é um herói exemplar, através do qual o autor articula e

anuncia, na década de 1930, duas grandes mudanças na paisagem social e cultural

brasileira, ou a dupla potencialidade de redenção encarnada na negritude pobre:

autenticidade cultural e justiça social (CUNHA, 2009, p. 35)

As considerações acima implicam discordar parcialmente dos argumentos de

Brookshaw (1983), Tollendal (1997) e Ferreira (2007), que percebem em Jubiabá certas

construções que informam um olhar estereotipado acerca do negro – ainda que considerem

estas representações involuntárias, porquanto pertencentes a um imaginário coletivo. Ou seja,

se consideradas corretas as análises elencadas, defender uma representação negra inovadora e

positiva em Jubiabá torna-se inviável, uma vez que Baldo não seria mais do que uma

atualização de estereótipos. Assim, em defesa daquilo que se pretende aqui, faz-se necessário

um diálogo com os pesquisadores supracitados, um debate com suas ideias.

O importante estudo de Brookshaw, não obstante correto em muitas de suas assertivas,

parece partir de um equívoco: a incapacidade do branco em representar ficcionalmente o

negro para além de estereótipos que, em última análise, revelem a latência do preconceito

racial91

. Neste sentido, segundo o pesquisador:

O modo como o branco vê o negro, portanto, foi moldado desde a infância pelas

histórias em que a negritude era associada ao mal e os que faziam mal eram negros.

Em muitas histórias e baladas, por exemplo, o negro simboliza o demônio. A fusão

negro-demônio logicamente produziu a imagem Negro qua Negro, possuidor pelo

91

Gustavo Arnt, não obstante concorde com a perspectiva aventada por Brookshaw acerca da impossibilidade de

um escritor branco falar por um negro, faz algumas considerações críticas a respeito das apreciações do

pesquisador inglês, bem como de outros brasilianistas: “Alguns autores como Gregory Rabassa, Raymond

Sayers e David Brookshaw fizeram algumas contribuições importantes a respeito do negro na literatura

brasileira, principalmente no que diz respeito à percepção dos estereótipos que se consolidaram na simbologia da

nossa literatura, principalmente no Romantismo. Contudo, faltou a eles uma percepção mais aguda acerca das

mediações que o processo de representação literária envolve. De modo geral, podemos apontar como os

problemas mais graves nesses estudos: a) a simples condenação dos autores como racistas, ou seja, falta de visão

do problema do racismo envolvendo toda a estrutura social; b) anseio de que os negros não fossem mostrados

como classe explorada, isto é, falta de real entendimento do fato de os negros aparecerem quase sempre como

pobres e marginalizados, pois se a representação se desse do modo como esses autores pretendem, o que

teríamos seria o mascaramento de nossas fraturas sociais; c) uma concepção algo ingênua de que o simples

aumento da presença dos negros na “literatura dos brancos” ajudaria a resolver os problemas raciais” (ARNT,

2010, p. 4). No que concerne à questão dos estereótipos, Serra é contundente ao elaborar sua crítica acerca da

leitura de Brookshaw sobre a obra amadiana: “Os estereótipos estão presentes na obre de Jorge Amado, que

reflete a ideologia do brasileiro médio em muitos pontos, mas que, com freqüência, é capaz de transcendê-la de

forma crítica, reelaborando as construções do senso comum. Não lhe faz justiça uma crítica superficial, puritana

e preconceituosa, imbuída do sentimento de uma political correctness que reflete uma ideologia primária [...]”

(SERRA, 1995, p. 358). A despeito da inconteste importância do trabalho desenvolvido por David Brookshaw,

acredita-se, nesta dissertação, que a sua leitura de Jorge Amado é passível de contestação, assim como também a

premissa da impossibilidade de um autor branco representar uma personagem negra.

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menos de características semelhantes às do demônio, enquanto que o Demônio

mesmo disfarçava-se de Negro (BROOKSHAW, 1983, p. 13).

Posta nestes termos, mesmo que evoque bases culturais que a justifique, a discussão

empreendida pelo pesquisador inglês jaz em uma natureza quase ontológica. A seguir o

pensamento do autor, o homem branco se encontra irreversivelmente enredado por seculares

teias de sentido que remontam à própria Bíblia Sagrada e cristalizam o negro em estereótipos.

Isto é, cor e cultura se fundem em um amálgama racista que se reproduz inconscientemente,

geração após geração, de forma similar à transmissão genética, inescapável.

Partindo desta premissa, Brookshaw tem como primeiro objetivo “examinar o padrão

emergente de estereótipos com os quais a cultura branca tem aprisionado o negro”

(BROOKSHAW, 1983, p. 16). Em outras palavras, procura observar os processos de

assimilação perpetrados historicamente ao negro por uma literatura branca. Para tanto, na

primeira parte do estudo, que sintomaticamente recebe o título “o escritor branco”, o

pesquisador deita olhos sobre a produção literária abolicionista brasileira, bem como nas

imagens de negros e negras veiculadas nas produções modernistas. A pesquisa pretende,

assim, abarcar o “[...] período desde meados do século XIX, quando a Abolição tornou-se um

tema para a política e a literatura, até os anos entre-guerras [...] quando idéias antiquadas

concernentes à raça [...] foram questionadas” (BROOKSHAW, 1983, p. 17).

O amplo espaço de tempo que Brookshaw investiga, cerca de setenta anos, comporta

modificações importantes na estrutura socioeconômica brasileira, que passa do modelo

agrícola baseado no regime escravocrata para uma hierarquizada sociedade de classes, ante o

processo de industrialização. Obviamente, tais alterações não deixam de se refletir na

produção literária do período – seja instituindo novos temas ou uma renovada visão de mundo

do escritor. Embora Brookshaw tenha em perspectiva tais movimentos, o pesquisador

considera que as transformações operadas no âmbito literário quanto à representação do negro

não acompanharam a relevância simbólica da Abolição. Isto é, passando em revista desde a

literatura abolicionista até o chamado “romance de 30” do modernismo brasileiro, o autor

encontra, no seio de uma literatura branca, representações de negros somente por meio de

imagens estereotipadas – seja de forma negativa ou positiva, simplificação redutora para a

qual Brookshaw propõe o conceito de “ambivalência” como forma de equacionamento:

Da mesma forma que o homem branco, em suas superstições, acha conveniente a

ambivalência quanto ao simbolismo da cor preta, assim, em sua posição social

dominante, ele encontra uma certa duplicidade que lhe convém igualmente em sua

atitude para com seu subalterno negro, tanto no contexto social quanto cultural. Isto

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fica patente na caracterização do negro na literatura criativa a partir da segunda

metade do século XIX, quando começou a ser retratado com crescente frequência

em prosa e em verso. Estereótipos positivos e negativos foram atribuídos a ele. Na

literatura abolicionista, por exemplo, a contraparte do „Escravo Demônio‟ (o

fugitivo, insurrecto, versão literária do „negro velho‟ do folclore) era o „Escravo

Fiel‟ (o „Pai João‟, equivalente brasileiro do „Uncle Remus‟). Na literatura deste

século [XX] apareceu uma outra faceta, porquanto as atitudes em relação ao negro

evoluíram de acordo com as novas prioridades sócio-culturais. Assim, surgiu um

lado positivo para o estereótipo negativo e subversivo sob a forma de um negro

encantadoramente irreverente, anárquico, todavia puro, conforme retratado nos

romances de Jorge Amado (BROOKSHAW, 1983, p. 16).

Um segundo conceito do qual Brookshaw lança mão em sua pesquisa é o de

“desassimilação”. Através desta ideia, o autor abarca os escritores, em geral brancos e não

alinhados ao ideal colonizador, que buscam na ficcionalização de heróis e sociedades não

brancos uma antítese ao modus vivendi metropolitano (BROOKSHAW, 1983). No Brasil,

ainda segundo Brookshaw, esta vertente literária inspirou, entre os anos 20 e 30 do século

passado, um “[...] nativismo brasileiro alternativo, baseado no elemento africano”

(BROOKSHAW, 1983, p.16), isto é, a perspectiva de retratar o Brasil não apenas através da

idealização indígena, mas também africana. Brookshaw propõe, assim, outro objetivo para o

seu estudo, qual seja, “[...] relacionar estereótipos aos dois temas que acabamos de examinar,

a saber: assimilação à cultura branca metropolitana e desassimilação desta mesma cultura”

(BROOKSHAW, 1983, p. 19). Entre estes dois processos, ele considera que há mudanças

sutis no uso dos estereótipos, embora atuem invariavelmente no reforço de um determinado

status social:

O racista pomposo, ou “colonizador que aceita”, enfatiza os estereótipos negativos

do negro, taxando-o de selvagem violento ou de elemento subjugado na sociedade e

desabona a presença cultural do afro-brasileiro como retrógrada e primitiva, porque

esta sua atitude é a de quem aspira que o Brasil seja um país de brancos. O nativista

branco, por outro lado, é mais propenso a retratar o negro e sua cultura como

possuidores de qualidades instintivas e de uma espiritualidade saudável, o que ele

percebe que falta na cultura branca materialista. Por conseguinte, o Brasil-afro é um

instrumento com o qual o nativista branco rejeita a cultura e os valores sociais de

sua própria classe. Ao mesmo tempo, o afro-brasileiro torna-se essencialmente uma

figura mítica, um produto do populismo estético de seu criador (BROOKSHAW,

1983, p. 19).

“Nativista branco” é, justamente, a expressão utilizada por Brookshaw para

caracterizar Jorge Amado, escritor para o qual dedica capítulo à parte em sua pesquisa,

intitulado “Jorge Amado: populismo e preconceito”. Segundo o brasilianista:

[...] este nativismo, ou populismo na opinião de Bosi, depende, como não poderia

deixar de ser, da manutenção de estereótipos sociais e raciais profundamente

inculcados na mentalidade da classe que está sendo paradoxalmente criticada. Os

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romances de Amado, por isso, podem ser importantes meios de preservação da

cultura africana no Brasil, embora também preservem e reforcem os mitos brancos

concernentes ao afro-brasileiro como indivíduo, e é este fator que importa para o

nosso trabalho, pois ilustra as incongruências de um escritor branco aparentemente

bem intencionado (BROOKSHAW, 1983, p. 133).

Imbuído do comprometimento com a demonstração da existência de preconceito nas

representações negras amadianas, o pesquisador inglês seleciona três narrativas: Jubiabá;

Gabriela, cravo e canela e Tenda dos milagres92

. A respeito do primeiro romance,

Brookshaw destaca que o suposto preconceito de Amado se revela na construção de uma

personagem supostamente primitiva:

Balduíno é uma criatura só instinto. Sua vitalidade, espontaneidade e libido

imunizam-no contra desejos materiais. [...] De fato, seu insaciável instinto não se

volta em direção ao dinheiro, mas para a experiência sexual sem a qual, conforme

foi mencionado, ele não pode viver. Entretanto, a potente sexualidade de Balduíno

exige dele a procura de parceiros que sejam tão lascivos e conhecedores do assunto

como ele (BROOKSHAW, 1983, p. 135).

O fragmento acima transcrito merece especial atenção uma vez que concentra boa

parte dos argumentos do pesquisador inglês contra o universo ficcional amadiano, a saber: o

caráter instintivo da personagem, a excessiva presença da sexualidade, o desprendimento

material e a representação apenas sexual das mulatas – “lascivas” e “conhecedoras do

assunto”93

.

Convém, antes de discutir cada um dos “problemas” ressaltados, analisar as

conclusões aventadas por Ferreira em sua dissertação de mestrado, uma vez que se constitui

em uma espécie de análise inspirada pelo estudo de Brookshaw. Assim como o pesquisador

inglês, Ferreira procura discutir os estereótipos presentes em Jubiabá. Para tanto, mantém o

foco nas diversas imagens que Amado cunha para Antônio Balduíno ao longo da narrativa –

no que observa uma “visi-divisibilidade” do negro na ficção amadiana:

O projeto de Jorge Amado em aproximar-se das figuras menos favorecidas,

evidenciando-as, como é o caso de Antônio Balduíno em Jubiabá, e de lutar no

plano das idéias contra o preconceito racial, social e cultural fomentado pelas teorias

raciológicas transplantadas da Europa e disseminadas no Brasil, pode ser

questionado pelo fato que as mesmas estratégias utilizadas pelo autor, para

supostamente elevar o negro, trazem em si marcas de um pensamento colonial. Ao

92

As considerações de Brookshaw sobre Tenda dos milagres são devidamente analisadas na quarta seção deste

trabalho. 93

Não cabe a este trabalho discutir a representação das mulatas, embora se reconheça que incidam problemas

nestas ficcionalizações. Acredita-se, porém, que sejam incoerências advindas muito mais do patriarcalismo do

que, propriamente, de racismo. Isto é, o problema da representação das mulatas é muito mais da ordem do

feminino do que da identidade racial. Sendo assim, uma investigação de gênero é mais apropriada.

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mesmo tempo em que Jorge Amado confere ao negro esperteza, sabedoria popular,

possibilidades de torná-lo um agenciador no enfrentamento do preconceito racial,

Balduíno é revestido por descrições de malandragens, de banditismo, de roubos,

reforçando assim a idéia de visi-divisibilidade da figura do negro (FERREIRA,

2007, p. 71-72).

A ideia de Ferreira parece apontar para caminho idêntico àquele trilhado pelo conceito

de “ambivalência” cunhado por Brookshaw, qual seja, o de considerar a representação do

negro na literatura amadiana algo escorregadia. Isto é, ambas as conceituações pressupõem

um Jorge Amado predisposto a derrubar preconceitos no momento mesmo em que,

inconscientemente, os reafirma.

No que tange às imagens destacadas por Ferreira como estereótipos, são semelhantes

àquelas que Brookshaw analisa em seu estudo. Ocorrem, entretanto, algumas derivações. Do

negro só instinto, ressaltado por Brookshaw, decorre o negro que não tem a inteligência em

destaque (FERREIRA, 2007) ou, ainda, do negro sexualmente viril se origina o ser hercúleo,

imagem com a qual “[...] o texto limita-se a conferir ao negro uma identidade circunscrita ao

físico e ao corpóreo [...]” (FERREIRA, 2007, p. 88). Assim, Ferreira conclui:

Por mais que Jorge Amado tente visibilizar Antônio Balduíno, atribuindo-lhe

destaques em algumas passagens da narrativa, o discurso do autor revela imagens de

um personagem perigoso, valente, fonte de agitação, subordinação ou

vagabundagem. A narrativa de Jubiabá transcorre para a construção de uma série de

imagens não do negro concreto, marginalizado devido ao processo de modernização,

mas para o negro ora agressivo, altamente forte capaz de vencer o branco pela força

física, ora um negro representante de uma relação marcada por subserviência e

docilidade. Os diversos estereótipos marcam a narrativa, confirmando discursos que

muitas vezes se sacralizam e são tomados como reais (FERREIRA, 2007, p. 110).

À parte das conclusões acima, não é possível negar que, em Jubiabá, ocorrem

construções frasais que dão margem a leituras como as de Brookshaw e Ferreira. Entretanto,

os pesquisadores conferem a estas imagens uma dimensão maior do que aquela que realmente

possuem ou, então, desconsideram que elas se inserem em uma cadeia de significados que as

abarca e ressignifica para além do simples estereótipo.

O problema, em verdade, está no modo como ambos os pesquisadores encerram o

conceito. Para Ferreira (2007, p. 42), o estereótipo “[...] se constitui num conjunto de crenças,

teorias e visões de um ou vários grupos sociais sobre o objeto estereotipado [...]”; já para

Brookshaw (1983, p. 10), “o ser estereotipado é [...] a corporificação física de um mito

baseado imediatamente na visão que o percebedor tem do papel sócio-cultural de seu receptor

[...]”. Nas duas definições, percebe-se a ênfase atribuída a uma certa imagem cristalizada,

capaz de reproduzir e gestar, ela própria, preconceitos. Imagem que se mantém

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essencialmente incólume ao decurso do tempo, apenas revitalizada “[...] de acordo com o

desenvolvimento sócio-cultural e ideológico” (BROOKSHAW, 1983, p. 12).

Não obstante seja correto que se defina “estereótipo” como uma “face petrificada”

(GOLDSTEIN, 2003, p. 149), uma vez considerada sua recorrência social estigmatizante,

quando do estudo de um universo fictício alguns cuidados devem imiscuir-se ao acentuado

olhar crítico do pesquisador. Em verdade, o próprio conceito referido necessita de algumas

nuanças. Afinal, não se trata, tão somente, de uma imagem dotada de imutabilidade que se

repete, mas dos sentidos que evoca e com os quais dialoga. Mais do que simples

representação cristalizada, o estereótipo pressupõe e afirma uma intricada contextura de

signos subjacentes a um pleno assentimento tácito entre escritor, leitor e narrativa em torno de

um imaginário específico e excludente. Em última análise, o estereótipo não se constitui uma

possibilidade producente, mas difusora de acordos semânticos previamente estabelecidos, o

que ressalta e ratifica os estigmas pré-existentes.

Para além do conceito, o próprio exercício da pesquisa carece também de alguma

cautela. Como o estereótipo depende das cadeias significativas que operam no interior do

texto literário e a elas irmana-se, é necessário perscrutá-las com o intuito de perceber se

reproduzem ou subvertem aquelas outras que delimitam imaginários no “mundo real”. Neste

sentido, Ana Rosa Ramos (2006, p. 71) suspeita da “[...] utilização do estereótipo como um

meio de aprofundar a intriga do romance e desdobrar os seus conflitos [...]”, no que poderia

residir uma maior força dramática do texto. Ainda que a pesquisadora desvele em Jubiabá

outro fim para o estereótipo que não o de representar um estigma, é a partir de uma

representação estereotipada que ela apreende as imagens cunhadas pelo romance. De qualquer

modo, a pesquisadora vislumbra no universo amadiano uma empresa em “[...] valorizar as

noções de raça e cultura negras como elementos que poderiam ajudar a luta política e a

tomada de consciência [...] para resgatar a imagem do sujeito [...]” (RAMOS, 2006, p. 65.

Grifos do autor).

É importante ressaltar que, caso o universo ficcional fundamente-se em sentidos outros

daqueles que regem o complexo sociocultural que o lê, as imagens enunciadas pela narrativa

passam também a ser tributárias desta nova ordem de significados – o que abre a possibilidade

de pensá-las noutro plano que não o do mero estereótipo. Isto equivale a afirmar que, em

decorrência desta ressemantização, a leitura de tais imagens a partir de signos provenientes da

“realidade social”, sem que se considerem aqueles próprios à narrativa, pode encerrar

equívocos de interpretação. Este parece ser, em parte, o caso das referidas leituras de Jubiabá.

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Como já expresso, certas imagens presentes em Jubiabá, se tomadas isoladamente,

podem e devem suscitar olhares enviesados quanto à representação do negro na ficção

amadiana. Contudo, se considerada a narrativa como um todo, tais imagens constituiriam

estereótipos, se apresentariam como estigmas?

Na dupla tentativa de uma resposta à indagação acima e de uma melhor dinâmica de

análise, dividiram-se os estereótipos evidenciados pelos estudos de Brookshaw e Ferreira em

dois blocos mais ou menos homogêneos e comunicantes. O primeiro organiza-se pelo “sem

limites do instinto” e abarca os estereótipos tangenciais à representação da sexualidade e da

primazia do corpóreo. O segundo, baseado em uma ordem econômica, reúne os estigmas que

supostamente se enraízam no desapego material de Baldo, bem como na representação de

uma marginalidade malandra que marca boa parte da ficcionalização da personagem.

Acatar o primeiro bloco como depositário de estereótipos, ou seja, reincidências

estigmatizantes, só faz sentido caso o livre exercício da sexualidade se sobreponha aos valores

morais de Baldo, de modo a invariavelmente suplantá-los, ou constate-se que a narrativa

partilhe do ideal ascético inculcado na moral judaico-cristã. Ambas as hipóteses, porém,

resultam falsas.

A infância de Baldo, imperador-menino da velha Cidade da Bahia, é marcada por três

grandes aprendizados: o sentimento de raça, posteriormente cambiante para classe; o anseio

por irrestrita liberdade e, ainda, o preceito “olho da piedade/olho da ruindade”. A despeito da

inequívoca relevância de cada um destes valores, tripé em que se assenta a personagem, o

último, por sua abrangência, deve ser destacado. Sem dúvida, salvaguardadas as devidas

proporções, repousa sobre o referido preceito semelhante força de lei àquela inerente aos Dez

Mandamentos que Jeová dita a Moisés como forma de guiar Seu povo. Isto é, tal qual o

ensinamento sagrado para cristãos, a distinção entre o “olho da piedade” e o “olho da

ruindade” institui elevado valor a ser alcançado com vista a moldar uma determinada conduta

ética e moral que preze pela retidão. Desta forma, a dicotomia “piedade/ruindade” desdobra-

se em outros binômios, quais sejam, bem e mal; certo e errado, pureza e mácula94

:

- Dizque também que Balbino morreu foi de feitiço, gente...

- Foi nada... Aquele morreu foi de ruim que era... Ruim como as cobras. [...]

Ninguém havia reparado a chegada de Jubiabá. O macumbeiro falou:

- Mas ele morreu de morte feia...

94

Observe-se que se elaboram representações que se envolvem com a modernidade e seus paradigmas. Neste

sentido, há que se atentar para as visões polarizadas que cobrem as relações, embates, enfim, em que

predominam, não raras vezes, visões polarizadas com que se apresentam as leituras modernas. Os binômios

acima podem vir a ilustrar esta faceta de Jubiabá.

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Os homens baixaram a cabeça, bem sabiam que eles não podiam com Jubiabá que

era pai-de-santo.

- Morreu de morte feia. Nele o olho da piedade vazou. Ficou só o da ruindade.

Quando ele morreu o olho da piedade abriu de novo.

Repetiu:

- O olho da piedade vazou. Ficou só o da ruindade...

Então um negro troncudo chegou para perto de Jubiabá:

- Como é, pai Jubiabá?

- Ninguém deve fechar o olho da piedade. É ruim fechar o olho da piedade... Não

traz coisa boa.

Disse em nagô e quando Jubiabá falava nagô os negros ficavam trêmulos:

- Ôjú ànun fó ti ika, li ôku.

De súbito o negro se jogou aos pés de Jubiabá e contou:

- Eu já fechei o olho da piedade, gente... Um dia eu fechei o olho da piedade...

Jubiabá olhou o negro com olhos apertados. Os outros, homens e mulheres se

afastaram. [...]

- Foi um dia lá no sertão alto. Estava tudo seco... Boi morria, homem morria, tudo

morria. A gente fugiu, a gente era um bocado, mas foi tudo ficando pelo caminho.

Depois só era eu e João Janjão. Um dia ele me carregou nas costas que eu já não

podia mais com as pernas... Ele tinha o olho da piedade bem aberto e a gente tinha a

garganta seca. O sol era ruim, gente... Cadê água naquele mundão sem fim?

Ninguém sabia não. Um dia a gente arranjou numa fazenda uma cabaça d‟água para

continuar a viagem. João Janjão ia com ela, só dava água de ração. A gente ia morto

de sede. Foi quando a gente encontrou um branco que já estava quase morrendo de

sede. João Janjão quis dar a água e eu não deixei [...]. Ele tinha o olho da piedade

bem aberto... Mas o meu a sede tinha secado. Tinha ficado somente o da ruindade...

Ele quis dar água, eu briguei com ele... E na raiva eu matei ele. Ele tinha me levado

um dia todo nas costas... [...].

Jubiabá repetiu monotonamente:

- É ruim vazar o olho da piedade. Traz desgraça... (Jubiabá, p. 21-23)

Observe-se, no trecho transcrito, que a fala de Jubiabá, dada a sua repetição enfática,

transcende o sentido de um comentário que apenas encerra uma constatação qualquer para

configurar-se em oportuno ensinamento moral. Corroboram para tal entendimento a

indiscutível posição de líder religioso que Jubiabá exerce frente aos habitantes do Morro do

Capa Negro, bem como o desfecho trágico para aquele que não segue corretamente o preceito:

“traz desgraça”. Há, ainda, o emprego da língua ioruba – aspecto em que reside a sacralização

do referido. O tremor que acomete a audiência subitamente ao uso do “nagô” pelo babalorixá

é, pois, suficiente para evidenciar a natureza sagrada que recobre a língua em contexto baiano,

uma vez que praticamente restrita ao âmbito ritualístico dos terreiros de candomblé. Um

princípio religioso estrutura-se e perpassa todo o fragmento acima. Ora, e não é outro a

penetrar em conversa de adultos senão Antônio Balduíno que, em silêncio, observa “[...] ouve

e aprende [...]” (Jubiabá, p. 23) – da mesma maneira, outra não é a forma de aprendizado na

religiosidade afro-brasileira. Por último, a reiteração do princípio em outros momentos da

narrativa, seja pelo próprio Jubiabá ou por Balduíno, indicia o caráter regulador que exerce.

Admite-se, pois, tal como o faz Rossi (2004), que Baldo vivencia o cotidiano

equilibrando-se na moral ensinada por Jubiabá, ou seja, tentando manter aberto um máximo

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de “olho da piedade” para um mínimo de “olho da ruindade”95

. Em outras palavras, o

ensinamento reverbera em Balduíno como significante do mundo que o circunscreve, assim

como elemento estruturante das relações que o protagonista tece ao longo da narrativa.

Cabe, neste ponto, retomar a ideia de que para assumir como estereotipada a

representação da sexualidade em Jubiabá, imagem de cunho unicamente lascivo e instintivo,

é necessário verificar se há uma sobreposição do sexo aos valores morais cultivados pela

personagem. No caso específico, cumpre observar se o apelo da carne é capaz, por si só, de

produzir em Baldo um obnubilamento do sentido moral da divisão entre “olho da piedade” e

“olho da ruindade”, de modo que o protagonista “vaze” o primeiro. Em última análise,

cumpre averiguar se o ímpeto sexual de Baldo o faz incorrer em um afastamento daquilo que

apreende como conduta “correta”.

Tome-se a segunda parte da obra, “Diário de um negro em fuga”, como objeto agora.

Narra-se, aqui, Antônio Balduíno distante da Cidade da Bahia, seu reino, e do areal do cais –

entre seus inúmeros aposentos reais, talvez o preferido. A personagem é flagrada em meio às

plantações de fumo de Cachoeira e São Félix, lugares de poucas mulheres, quase todas

envelhecidas precocemente pelo árduo trabalho nas fábricas de charutos96

. As poucas que

resistem à ação fabril, por serem ainda novas no labor, e conservam intacta a beleza

“pertencem” antes aos alemães donos das fábricas do que aos trabalhadores, aos quais restam

os vícios solitários – meio pelo amam todas as mulheres. O cenário descrito por Jorge Amado

neste momento é, pois, em tudo distinto daquele que se vale das velhas ruas da capital. Por

mais não seja, constitui um longo período de abstinência sexual vivenciado por Antônio

Balduíno por serem raras as mulheres solteiras nas plantações de fumo, o que não ocorre em

Salvador.

Ainda que o fator sexual não seja mais do que mero coadjuvante neste segundo

segmento de Jubiabá, que visa um quadro maior da ação reificante do capital sobre o

trabalhador – aliás, como em toda a obra – a falta do sexo provoca momentos em que o

protagonista se aproxima da interpretação de Brookshaw, o que possibilita a imagem de uma

instintividade à flor da pele. Instantes, inclusive, em que os ensinamentos aprendidos com Pai

Jubiabá parecem quase ceder frente ao desejo e que o “olho da piedade” quase não se

distingue daquele da ruindade. É o caso específico do capítulo “Sentinela”.

95

Rossi (2004) não chega a afirmar que o conceito “olho da piedade/olho da ruindade” constitui um valor moral. 96

Cachoeira e São Félix são cidades históricas e vizinhas, situadas no Recôncavo baiano, unidas por uma ponte

sobre o Rio Paraguaçu.

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A situação que engendra o conflito moral em Balduíno é o velório de sinhá Laura, mãe

de Arminda, menina de doze anos que, antes da doença materna “[...] era alegre e tomava

banho no rio, nadando como um peixe, excitando os homens com o espetáculo do seu corpo

de menina” (Jubiabá, p. 125). A despeito da pouca idade, a escassez de mulheres ainda não

tragadas pela sanha fabril faz com que os homens desejem Arminda. Entres eles, Balduíno e

Filomeno, que estava “[...] com um plano na cabeça. Pensava em Arminda, na frescura da

carne moça” (Jubiabá, p. 125). O plano consistia basicamente em, durante a sentinela,

conseguir com que a menina saísse da sala onde todos estavam e, uma vez sozinhos, possuí-la

à força, se preciso. A mesma perspectiva era alimentada por Baldo.

O corpo de sinhá Laura inchado sobre a mesa. As orações puxadas pelo Gordo. A

generosa cachaça servida aos presentes. O choro inconsolável de Arminda. Não obstante o

clima de pesada tristeza, os olhares de Baldo e Filomeno buscam, alternados, os seios arfantes

de Arminda. É quando o realismo de Jubiabá cede ao fantástico e Jorge Amado faz a morta

voltar do outro mundo para intervir e se interpor ao olhar que Balduíno lança sobre a pequena

menina: “Pois não é que a morta fixou nele os olhos parados com uma expressão de ódio?

Antônio Balduíno olha o chão, espia as mãos grossas, mas sente que o olhar raivoso da

defunta o acompanha” (Jubiabá, p. 127). Trava-se, então, um duelo entre Baldo e sinhá Laura

em que ele tenta driblar a perseguição empreendida pela defunta. Em um momento em que a

morta se distrai, Baldo pede a Arminda um copo de água, no que força a menina a ficar

sozinha com ele:

Ela [Arminda] se levanta. Vão para o quintal, no fundo está uma tina d‟água e um

caneco. Arminda se curvou para encher o caneco e pelo decote do vestido Antônio

Balduíno vê os seios. Então segurou nos braços da menina e girou com ela que ficou

de frente para ele, olhando-o espantada. Mas ele não vê nada a não ser aquela boca e

aqueles seios que estão na sua frente. Vai apertar o abraço e sua boca se dirige para a

boca de Arminda, que ainda não compreende, quando os olhos da defunta chegam e

se colocam entre os dois. A velha Laura deixou o seu lugar em cima da mesa e se

meteu entre eles. Ela está tomando conta da filha. Os mortos sabem tudo e ela sabia

o que Antônio Balduíno pretendia fazer. Está ali entre os dois olhando o negro. Ele

solta Arminda, põe a mão nos olhos, derruba o caneco com água e entra na sala

como um cego. A morta inchou ainda mais na mesa (Jubiabá, p. 129).

O recurso do realismo fantástico nesta cena sugere, em um primeiro plano, o retorno

da mãe como forma de cuidado com Arminda, ameaçada pelo instinto sexual de Balduíno.

Esta interpretação não é de todo satisfatória, uma vez que a morta impede o contato entre

Baldo e a menina, mas nada faz contra o assédio empreendido por Filomeno, que adota a

mesma artimanha pensada pelo protagonista:

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O negro Filomeno ri como quem compreendeu a idéia de Antonio Balduíno

ao pedir água. Ele vai fazer o mesmo com certeza. Que besta – pensa

Balduíno – ele está julgando que vai levar alguma vantagem. Quando chegar

lá encontra a finada espiando para ele. [...] Porém os olhos da morta não

acompanharam Filomeno. [...] Antônio Balduíno murmura para o rosto

impassível:

- Vá! Vá! Não está vendo aquilo? Não está vendo? Aquele negro é malvado...

Mas a morta não atende ao aviso. Parece até que ela está rindo. Ouve-se um

ruído lá dentro. Arminda volta para a sala e agora chora um choro diferente.

O vestido está machucado no lugar dos seios. O negro Filomeno entra

sorrindo. Antonio Balduíno torce as mãos com raiva, levanta e diz alto para o

Gordo:

- Você não disse que ela é uma menina de doze anos? Cadê? Cadê a morta

que não fez nada... (Jubiabá, p. 129-130).

O descaso de Laura com as intenções de Filomeno abre espaço para se pensar na

utilização do realismo fantástico pelo autor como um recurso que visa proteger menos

Arminda do que o protagonista, Antonio Balduíno. Em outras palavras, a morta cumpre o

papel de impedir que Baldo cegue o “olho da piedade”, ou seja, passe da pureza à mácula.

Noutro plano, o retorno de Laura do mundo dos mortos favorece ainda outra leitura,

qual seja a de uma metáfora para a projeção da consciência moral de Baldo em conflito por

desejar uma menina de apenas doze anos. Neste sentido, a fala que encerra o fragmento acima

transcrito é reveladora. Ao interpelar o Gordo, Baldo parece reconhecer nele uma ação

reguladora semelhante àquela exercida por Jubiabá, de modo que suas palavras reforçam uma

consciência já preexistente do “certo” e do “errado” – observe-se que na cena narrada o Gordo

desempenha, ao menos por instantes, a função de liderança religiosa, tornando-se o

responsável pelo início e ritmo das rezas.

Em decorrência desta última interpretação, cumpre ressaltar que quem persegue Baldo

e impede que o assédio se concretize não é propriamente a morta, mas seus olhos – no que

reside a reiteração do princípio moral ensinado por Jubiabá. Os olhos inchados de Laura,

percebidos unicamente por Balduíno, a separarem-no de Arminda, produzem, pois, o efeito de

uma advertência quanto ao iminente risco da transgressão moral. Da mesma forma, o fato de

Baldo levar as mãos aos olhos após largar a menina traduz, talvez, a tentativa de livrar-se não

apenas da presença da morta, mas do próprio desejo que age em sentido oposto ao “olho da

piedade”.

A resolução do conflito pelo viés moralizante em detrimento do sexualizante, ou seja,

da primazia dos valores morais em relação ao instinto sexual nega, portanto, que haja

qualquer coisa de estereotipado – pelo menos em um plano mais profundo da narrativa – no

tocante à representação da sexualidade em Balduíno. A afirmação de Brookshaw sobre a

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primazia da instintividade na personagem soa, desta forma, como algo redutor e baseado

unicamente em uma imagem que Amado cria para enfatizar a total liberdade com que Baldo

vivia a infância: “[...] andava solto pelo morro e ainda não amava nem odiava. Era puro como

um animal e tinha por única lei os instintos” (Jubiabá, p. 13). Nesta citação, a “lei dos

instintos” ou mesmo a suposta animalização promovida parecem não passar de recursos

enfáticos que, se bem observados, não traduzem um teor estigmatizante na narrativa. Afinal,

se vista como um todo, em momento algum a personagem cede a uma sexualidade irracional

– o que remeteria a um universo animalizado – mas a vivencia como ampla expressão de

liberdade e, principalmente, como mais um componente da natureza humana. Ademais, como

bem evidencia o antropólogo baiano Ordep Serra (1995, p. 345), não “[...] acho que atribuir-

lhes uma „inerente sensualidade‟ seja ofensa para os negros – a menos que se considere a

sensualidade algo ruim, um defeito”.

Ora, foi dito anteriormente que a interpretação da sexualidade como estereótipo

deveria estar condicionada a dois fatores: a prevalência do instinto sobre a moral e a relação

da narrativa com o ideal ascético judaico-cristão. Negada, pois, a pecha de estereótipo sobre

Balduíno, uma vez considerado o desfecho do capítulo “Sentinela”, abre-se caminho para

afirmar a representação da sexualidade em Jubiabá como expressão de liberdade, com o que

se desafiam alguns dogmas do cristianismo. Para além do pecado original, que denega a todos

o Paraíso, ou mesmo da negatividade que incide sobre a ideia de “pecado”, Jorge Amado

cultiva a imagem do sexo como absoluta expressão do humano, o que vem a se configurar

como uma representação, a seu modo, libertária e subversiva. Segundo Portella (2011, p. 66)

o “[...] sexo explícito, o gesto ou o vocábulo permissivos são também modalidades da

aspiração libertária, antiga e soterrada. Tão mais libertina quanto mais reprimida”. Em outras

palavras, Araújo afirma:

Por meio de suas personagens, ludicamente, Jorge Amado recupera para o homo

ludens a perspectiva de um devir existencial sem a mácula e a náusea do sentimento

de culpa do Ocidente, sentimento que frequenta os espaços de nossa cultura

encarcerada, marginada por uma incurável responsabilidade culposa judaico-cristã

(ARAUJO, 2003, p. 111).

Não são poucas as passagens em que a sexualidade está em evidência ao longo do

romance. O desejo e, principalmente sua realização, o sexo, constituem algo corrente no

romance. A própria construção de um herói caracterizado como “bom de cama”, capaz de

satisfazer a mais exigente das mulheres, é, aliás, uma marca constante na literatura amadiana

que aponta, talvez, para a ficcionalização de Exu, orixá que, dentre outros domínios, se

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apresenta também como regente da sexualidade. Como seja, o prisma ascético, fundador de

uma das bases da mentalidade ocidental, não é adequado para a leitura de Jubiabá, uma vez

considerada a possibilidade de senões e enganos. Não à toa, Serra (1995, p. 355) considera

que essa “[...] questão dos estereótipos na obra de Jorge Amado tem sido abordada de forma

um tanto equivocada”. Corroborando a afirmação de possíveis leituras errôneas, Ferreira

(2007, p. 102), explicita que, em “[...] linhas gerais, é atribuída uma crença de inferioridade

nata ao negro Antônio Balduíno, convergindo uma idéia que acredita em determinantes

biológicos. O negro nasce “forte”, portanto faz sexo „raivosamente‟[...]”. Ora, o pesquisador

parece não perceber que “raivosamente”, no contexto em que se insere, reflete menos uma

dimensão animalesca do negro do que, propriamente, a contraparte do ascetismo judaico-

cristão, tão necessária ao sexo. Neste sentido, Candido afirma:

Na nossa literatura moderna, o sr. Jorge Amado é o maior romancista do amor, força

de carne e de sangue que arrasta os seus personagens para um extraordinário clima

lírico. Amor dos ricos e dos pobres; amor dos pretos, dos operários, que antes não

tinha estado de literatura senão edulcorado pelo bucolismo ou bestializado pelos

naturalistas (CANDIDO, 1972, p. 115).

Pode-se obstar, em relação a esta hipótese, que Balduíno reproduz um típico

julgamento cristão quando, para o sepultamento de Lindinalva, exige um caixão branco,

símbolo de pureza e virgindade. Entretanto, os sentidos de “pureza” e “virgindade” evocados

por Baldo talvez não se liguem estritamente à sexualidade, mas a uma condição moral tornada

idônea pelo sofrimento e pelo pedido de perdão – no que se pode inferir, novamente, a

atuação do “olho da piedade”.

Aliás, é a partir da relação Baldo-Lindinalva que Tollendal (1997) sinaliza alguns

problemas de Jubiabá quanto à representação do negro97

. De acordo com o pesquisador,

“Balduíno encontra absurdo prazer na submissão a Lindinalva, que o rejeita, manifestando os

baixos sentimentos de nojo e de medo” (TOLLENDAL, 1997, p. 76. Grifos do autor). Ainda

segundo o Tollendal:

O relacionamento afetivo entre Lindinalva e seu herói, tornado possível durante a

fase de decadência da personagem – sempre unilateral – assume a forma

exclusivamente amorosa e conjugal. Subitamente recuperado em sua pureza,

Balduíno descarta a posse sexual de Lindinalva no mercado da prostituição. Fora de

seu grupo étnico e social, cessa a violência que marca seu relacionamento com as

mulheres negras e mestiças. Sem perceber, o narrador do romance político Jubiabá

nos apresenta um herói submisso, em defesa de instituições que operam sua

97

A tese de doutoramento de Tollendal investiga, dentre outros vieses, a ficcionalização do negro na literatura

engajada latino americana observando dois autores: Jorge Amado e Alejo Carpentier.

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exclusão social: a família burguesa, o casamento, a virgindade. A imagem que

permanece do relacionamento [...] é pouco construtiva (TOLLENDAL, 1997, p. 78.

Grifos do autor).

O caráter folhetinesco que marca o amor de Baldo por Lindinalva, bem como o

aspecto servil evocado pela imagem do negro escravizado aos pés da senhora branca,

certamente indiciam fragilidades da narrativa no que concerne à ficcionalização do negro,

como fica claro na passagem a seguir:

- Baldo... fui ruim com você...

- Deixe disso...

- Me perdoe.

- Não diga isso... Não faça eu chorar...

Ela passa a mão na carapinha do negro e morre dizendo:

- Ajude Amélia a criar meu filho, Baldo... Olhe por ele...

Antonio Balduíno se joga nos pés da cama como um negro escravo (Jubiabá, p.

214).

Por outro lado, em momento algum tais fragilidades apontam na direção de uma “[...]

defesa da mulher burguesa [...]” (TOLLENDAL, 1997, p. 77) ou, menos ainda, para um

desejo de embranquecimento, motivado por um “[...] sentimento de inferioridade racial [...]”

(FERREIRA, 2004, p. 97). Antes, constituem-se em um deslize próprio da estrutura narrativa

do romance, cuja feição popular folhetinesca recorre à dimensão hiperbólica como meio de

enfatizar o drama e as virtudes do herói, tal como afirma Duarte:

Na prostituição, ela [Lindinalva] vai tendo o nome mudado na medida de sua

decadência. Passa a se chamar “Linda”, perdendo o “nalva” que simbolizava a

antiga pureza. Mais embaixo, na Ladeira do Taboão, ela será apenas a “Sardenta”, e

esta gradação negativa corresponde de modo claro à punição que o texto lhe inflige.

A personagem vai perdendo a identidade enquanto Balduíno adquire a sua. Eles

seguem trajetórias simetricamente opostas, uma ascendente, outra descendente. No

momento crucial do pathos, estas linhas se cruzam para que se dê o reconhecimento

das virtudes do herói. A cena é digna dos melodramas populares ou das novelas

radiofônicas. [...]

O bem triunfa sobre o mal, Balduíno demonstra a grandeza de seu caráter e aceita

ser o pai preto do menino branco (DUARTE, 1996, p. 91).

Em verdade, a relação Baldo-Lindinalva, para além do seu aspecto problemático,

possibilita outra leitura, pautada pela verossimilhança. Ou seja, a intransponível distância que

separa e polariza o par reproduz ficcionalmente as clivagens sócio-raciais existentes e

flagrantes no plano extraliterário, tornadas literárias a partir de estruturas e moldes românticos

e folhetinescos. A impossibilidade do enlace definitivo entre Baldo e Linda, sedimentada

quando as personagens eram ainda crianças, pode ser lida como denúncia da

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impermutabilidade entre lugares sociais, da estratificação de esferas de poder e de submissão

com vistas a manter uma determinada ordem social. Neste sentido, o ponto de encontro entre

ambos é uma criança, símbolo do porvir. Um menino que, sem o saber, guarda em si a

esperança de Amado em uma plena superação das imperativas barreiras raciais que outrora

haviam se interposto à ingênua amizade de Linda e Baldo.

Sob outra perspectiva, o segundo bloco de estereótipos referido anteriormente, aquele

que se organiza a partir de um viés econômico, vislumbra o desprendimento material e a vida

malandra de Balduíno como representações estigmatizantes do negro. Ao que parece, as

interpretações arroladas novamente não consideram o conjunto de sentidos condicionantes de

Jubiabá, narrativa que se estrutura a partir de uma determinada visão política, qual seja, o

socialismo98

.

Em seu quarto romance, Jorge Amado alarga e aprofunda a discussão que “ensaia” nos

dois livros precedentes, Cacau e Suor – o que revela a radicalização do projeto político-

literário amadiano (PALAMARTCHUK, 1997), bem como “[...] clarifica a sua dialética dos

oprimidos” (LUCAS, 1997, p. 111-112). Em Jubiabá, ocorre, pois, uma recorrência enfática

das condições danosas que perpassam a relação homem x capital e que deságuam nas

clivagens sociais que vitimam os trabalhadores. Neste contexto, a narrativa é estrategicamente

dicotômica posto persiga um caráter de denúncia e uma feição pedagógica. A sociedade é

dividida em extremos cujos polos antonímicos são habitados pelas ficcionalizações do pobre e

do rico. O primeiro – com o qual o autor se compromete e se identifica – encarna um perfil

positivo em que se encontram valores como amizade, solidariedade e, principalmente,

ausência de distinções raciais valorativas: “[...] todo pobre agora já virou negro, é o que

explica Jubiabá” (Jubiabá, p. 217)99

. O segundo conforma um grupo cujo “olho da piedade”

fora de há muito “vazado” pela lógica capitalista, isto é, estão ausentes os valores acima

elencados. Tal esquematismo, se por um lado configura-se indubitavelmente cerceador das

individualidades, do que resulta uma simplificação da subjetividade humana, por outro

possibilita que Amado desenvolva incondicionalmente sua intenção de demonstrar a ordem

capitalista como corruptora do homem. Desta polarização, decorre

[...] a idealização romântica e sublime do oprimido, em contraste com a descrição

densa e bruta do meio, [...] recurso privilegiado para que o escritor forjasse um

98

Excetue-se o trabalho de Tollendal uma vez que ele enfoca principalmente a relação entre Baldo e Lindinalva. 99

Convém ressaltar que as exclusões raciais, em Jubiabá, são cultivadas unicamente entre os ricos, inexistindo

no seio da população pobre, na qual haveria uma convivência indistinta entre brancos, negros e mulatos. A

própria presença de Filipe, menino branco e louro, no grupo de Balduíno reflete esta percepção: “Os homens que

passam vêem apenas um grupo de meninos negros, brancos e mulatos, que mendigam” (Jubiaba, p. 49).

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sentido heróico e engrandecedor aos seus personagens. Trata-se menos de um

processo essencializador de certas características do povo ou de uma raça, no caso a

negra, do que a própria arbitrariedade e deformação da realidade, condição da

própria criação literária que no caso de Jorge Amado dota o proletário, caricatural e

romanticamente, com os mais nobres sentimentos humanos. Ou seja, o próprio

equacionamento estilístico de Amado à utopia comunista. O ideal como meio de

introjetar as esperanças da revolução no mundo presente (ROSSI, 2004, p. 115-116).

Nestes termos, o papel de grande vilão cabe ao capital, juntamente com tudo que ele

engendra. Ora, se herói e vilão são realidades antagônicas, faces que necessariamente se

contradizem, outra não poderia ser a natureza de Baldo senão antimaterialista, anticapitalista.

Em determinado momento, Antonio Balduíno afirma:

Ele quis me comprar, gente... Me deu cem mil-réis para eu perder para aquele

raquítico... Eu disse que perdia... É para ele não querer comprar homem... Eu só me

vendo por amizade, gente... Agora vamos beber o dinheiro dele...

A “Lanterna dos Afogados” ria (Jubiabá, p. 94).

Antonio Balduíno é, pois, desde criança, uma personagem na qual Jorge Amado

investe uma forte carga ideológica de modo a caracterizá-la como símbolo contrário ao

capitalismo. Neste sentido, Baldo não é orientado pela perspectiva da acumulação de capital,

mas por seu oposto, um irretocável senso de justiça social que se confunde e se irmana com os

valores da amizade e do sentimento de classe. Nesta direção, Baldo jamais se reificaria,

jamais viria a trair os valores em que acredita.

São, pois, abundantes os momentos em que a solidariedade de Balduíno em detrimento

da posse material ganha destaque ao longo da narrativa. Criança, ainda chefe de um grupo de

mendigos, Baldo estabelece que as esmolas arrecadadas sejam distribuídas igualmente por

todo o bando e, quando um deles adoece, não tem dúvidas em dispor do anel de ouro,

encontrado outro dia na rua, em prol do convalescente. Já adulto, não titubeia em oferecer o

dinheiro destinado a presentear Rosenda, para a viúva de Clarimundo, amigo de muitas datas,

que morrera sob ação de um guindaste durante trabalho no cais. Neste aspecto, “[...] êle [Jorge

Amado] sempre foi o defensor do Ser contra o Ter, da espontaneidade da vida contra a busca

ilusória das riquezas materiais ou das aparências da respeitabilidade [...]” (BASTIDE, 1972,

p. 52. Grifos do autor). Caso correta a opinião do antropólogo francês, Antonio Balduíno é,

com efeito, a primeira de uma série de personagens amadianas que se notabilizam pela

primazia do “ser”, isto é, não se deixam reificar.

Convém ainda ressaltar um último ponto relativo a esta discussão. Ao tecer a crítica

acerca do antimaterialismo de Baldo, desmerecendo o componente político da narrativa e

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enxergando na supressão do desejo material do protagonista uma reafirmação de

instintividade, Brookshaw negligencia José Cordeiro, homem branco, personagem de Cacau

que, assim como Balduíno, não se faz tentado por riquezas. Embora exista amor entre o

Sergipano e Mária, filha do Coronel Manoel Misael de Souza Teles, dono das terras em que

Cordeiro trabalha como alugado, as distintas realidades sociais são impeditivas do casamento.

Menos, porém, por oposição dela do que de Cordeiro, que não admite a possibilidade de

ganhar roças e se tornar patrão, posto isto lhe soar como traição à classe. Sufoca no peito um

amor por outro:

No outro dia me despedi dos camaradas. O vento balançava os campos e pela

primeira vez senti a beleza ambiente.

Olhei sem saudades para a casa-grande. O amor pela minha classe, pelos

trabalhadores e operários, amor humano e grande, mataria o amor mesquinho pela

filha do patrão. Eu pensava assim e com razão (Cacau, p. 153).

O investimento ideológico de Amado sobre Cordeiro promove um desprendimento

material similar ou ainda mais radical do que aquele que caracteriza Balduíno. De qualquer

modo, a presença desta característica em personagens não negras é suficiente para que se

constate que tal representação não se faz no âmbito da estigmatização racial, mas como um

simples imperativo político, no que diz respeito à adesão do escritor aos postulados do

socialismo, antes de tudo.

O outro estereótipo que figuraria ainda neste segundo agrupamento relaciona-se,

principalmente, com as imagens de Baldo que flagram a personagem em momento anterior ao

seu ingresso no mundo do trabalho. Ferreira argumenta que Jorge Amado

[...] emprega termos como “quadrilha”, “vagabundagem” que por vez (sic)

estigmatizam o próprio personagem. O termo “vagabundagem” comporta uma

condenação moral, advinda do fato de se estar fora do domínio familiar e produtivo,

além disso, expressa seres errantes sem moradia fixa; verdadeiros itinerantes e

ociosos, considerados ameaçadores à estabilidade social (FERREIRA, 2007, p. 90).

Em que pese a repetição de uma pergunta já feita, a despeito da expressão

“vagabundagem” implicar alguma estigmatização, é mesmo este o sentido com o qual se

apresenta em Jubiabá? Em outras palavras, “vagabundagem” não implica significados outros

além da “condenação moral”?

Ao que parece, o teor político aliado ao encadeamento narrativo de Jubiabá favorece

interpretações divergentes da apresentada por Ferreira. De acordo com Portella (2011, p. 67) a

“[...] recusa da ordem estabelecida, pela distância que se guarda, ou se festeja, com relação ao

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centro possessivo, gera uma série de figuras ex-cêntrica, voluntárias e involuntariamente

excluídas do espaço orgânico do trabalho” (Grifos do autor). A seguir o pensamento do crítico

baiano, infere-se um gesto político nas imagens mesmas em que Ferreira detecta tão somente

um alto teor estigmatizante, ou seja, para além do estereótipo, a “vagabundagem” comporta e

traduz uma “recusa” da ordem capitalista e do mundo burguês.

Não é difícil atestar o que Portella afirma. Acaso atente-se para as imagens que Baldo

depreende, durante a infância, como signos provenientes do mundo do trabalho, logo se nota

que todas remontam a cenas traumáticas ou de forte tensão: pobreza e opressão somam-se a

corpos lanhados em cicatrizes e velhos trabalhadores tornados mendigos e suicidas, que veem

no mar o “caminho para casa”. Maior peso concentra-se nas lancinantes dores de cabeça de

Tia Luísa, única responsável por afagar o pequeno Baldo, sempre associadas ao fato de ela

carregar sobre a cabeça o mugunzá ainda quente que venderia em alguma rua da cidade.

Emblemático, portanto, que a loucura de Luísa, fato determinante na vida de Baldo, ecloda

justamente no momento em que ela se dirigia ao labor diário:

Luísa estava se preparando para sair. Antonio Balduíno matava formigas num canto

da sala. A tia pediu:

- Ajuda aqui, Balduíno.

Ele ajudou a botar uma lata em cima do tabuleiro, que Luísa suspendeu e colocou na

cabeça. Passou a mão no rosto de Antonio Balduíno e se dirigiu para a porta. Antes

de abrir a tramela, porém, sacudiu com o tabuleiro e as latas no chão, num gesto de

raiva, e gritou:

- Não vou mais.

Antonio Balduíno ficou mudo de espanto.

- Ah! Ah! Não vou mais, quem quiser que vá. Ah! Ah!

- O que é, tia?

O mugunzá corria pelos tijolos do chão [...] (Jubiabá, p. 36).

O “trabalho” é, assim, apreendido por Balduíno como instrumento de exclusão e

submissão através do qual se perpetuam as relações outrora escravocratas. Afinal, os patrões e

os empregados permanecem impermutáveis, o que acastela os lugares sociais do branco e do

negro e as representações do poder e de submissão. Opor-se ao mundo do trabalho, pelo

menos até a súbita tomada de consciência política, representa para a personagem uma vitória

sobre o sistema, uma vez que Baldo se considera livre da tradição de servir. Por outro lado,

empregar-se seria, pois, estar sob as ordens do homem branco. Neste ponto, Jorge Amado

parece retomar e atualizar certo comportamento verificado em egressos da escravidão após o

término do regime escravocrata. Com efeito, em estudo sobre a população negra no pós-

abolição, Albuquerque (2009, p. 107) afirma que, no jargão policial, o termo “vadios”

identificava-se com aqueles que “[...] traduziram liberdade por mobilidade e autonomia”. Sem

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dúvida, a concepção de liberdade cultivada por Baldo é similar a esta trazida pela

pesquisadora. Em última análise, situar-se à parte do mundo laboral viria a constituir-se em

transgressão de uma liberdade sitiada. Em outras palavras, representaria a tentativa de pleno

rompimento com uma hierarquização social naturalizada. Segundo Duarte (1996, p. 101),

“[...] a recusa de um contexto opressivo conduz a personagem à vida nas ruas, em busca de

sua afirmação como ser humano digno e livre. Esta recusa tem o sentido de luta e de revolta

[...]” (Grifos do autor). Neste sentido, das velhas e novas histórias de escravos que circulavam

pelo Morro do Capa Negro, bem como dos heroicos ABCs de cangaceiros

Antonio Balduíno ouvia e aprendia. Aquela era a sua aula proveitosa. Única escola

que ele e as outras crianças do morro possuíam. Assim se educavam e escolhiam

carreiras. Carreiras estanhas aquelas dos filhos do morro. E carreiras que não

exigiam muita lição: malandragem, desordeiro, ladrão. Havia também outra carreira:

a escravidão das fábricas do campo, dos ofícios proletários. [...]

Antonio Balduíno aprendeu muito nas histórias heróicas que contavam ao povo do

morro e esqueceu a tradição de servir. Resolveu ser do número dos livres, dos que

depois teriam ABC e modinhas a servirem de exemplo aos homens negros, brancos

e mulatos que se escravizam sem remédio. Foi no Morro do Capa Negro que

Antonio Balduíno resolveu lutar. Tudo o que fez, depois, foi devido às histórias que

ouviu nas noites de lua na porta de sua tia. Aquelas histórias, aquelas cantigas,

tinham sido feitas para mostrar aos homens o exemplo dos que se revoltaram. Mas

os homens não compreendiam ou já estavam muito escravizados. Porém alguns

ouviam e entendiam. Antonio Balduíno foi destes que entenderam (Jubiabá, p. 23-

27).

O contexto político em que Jubiabá se insere ressignifica, portanto, as imagens que,

por ventura, poderiam flertar com uma determinada representação estereotipada do negro,

caso fossem outros os sentidos da narrativa. Neste plano, observa-se no romance amadiano

um movimento ascendente do negro, inicialmente estigmatizado – O país do Carnaval –

passando depois à condição de narrado em pano de fundo – Cacau e Suor – para, por último,

desembocar na heroicização de Jubiabá – romance que poderia constituir a primeira

ficcionalização do negro-sujeito na obra de Jorge Amado. Contudo, há que se relativizar a

representação negra em Jubiabá. Menos por causa do latente racismo autoral, como

pretendem Brookshaw e Ferreira, do que pelo próprio instrumento evocado aqui para negar

estereotipias na narrativa: o engajamento político. Segundo Duarte (2006, p. 36) “[...] o fator

econômico orienta a ficcionalização do negro. A perspectiva de classe termina obscurecendo

as demandas étnicas pela manutenção da herança cultural”. Assim, a grande luta racial que se

insinua na abertura do romance com o embate, em um ringue de boxe, entre Baldo e o

campeão ariano Ergin, do qual o negro sai vencedor e “[...] satisfeito [de ver] o branco

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estendido aos seus pés” (Jubiabá, p. 10), cede lugar paulatinamente ao discurso de união dos

trabalhadores contra o capital. Novamente Duarte:

É interessante notar como a perspectiva de classe vai de certa forma obnubilar nessa

época as diferenças de gênero e etnia. Apesar de Jubiabá fazer de Antonio Balduíno

o primeiro herói negro do romance brasileiro – falamos daquele herói épico,

construído como síntese das qualidades de seu povo; apesar do texto se contrapor ao

discurso da eugenia e do arianismo tão forte à época [...]; apesar de narrar a

trajetória ascensional desse menino de morro e de rua até completar sua formação

enquanto cidadão – ao final, Balduíno se destaca como um dos líderes da greve que

pára Salvador; enfim, apesar de recobrir de positividade heroica todo o crescimento

da personagem, o texto deixa bem nítido o centramento na identidade de classe

(DUARTE, 1997, p. 93).

O que ocorre é que, ao fim do romance, a identidade que prevalece e da qual Balduíno

passa a se orgulhar não é a negra – não obstante não chegue de todo a negá-la – mas a de

trabalhador, a de classe. Nesse sentido, Eneida Leal Cunha constata:

Sintomaticamente, a partir do capítulo “Cheiro doce de fumo”, enquanto é narrada a

permanência do personagem na zona rural, as palavras negro e negros vão sendo

substituídas por termos como pobre e trabalhadores, indicando que a postura

libertária, o voluntarismo e a altivez do jovem negro deverão ceder lugar,

progressivamente, à solidariedade e aos laços afetivos com os companheiros de

trabalho, até atingir, no retorno ao ambiente urbano, a consciência de classe e a

militância política (CUNHA, 2009, p. 34. Grifos do autor).

Há, portanto, uma sobreposição que, se não incide em apagamento, pelo menos deixa

entrever uma hierarquização. De acordo com o próprio Jorge Amado, em entrevista a Alice

Raillard, Jubiabá evidencia que “[...] o problema de raça não é a causa, mais (sic) sim a

conseqüência do problema de classe: o problema do pobre e do rico, do escravo e do amo”

(RAILLARD, 1990, p. 101).

É certo, porém, como afirma Goldstein (2003), que a cultura afro-brasileira não é de

todo secundarizada pelo discurso político; apresenta fôlego próprio no romance, de modo que

se configura em um de seus pilares. Rossi (2004) aprofunda um pouco mais a questão ao

perceber a permanência do “olho da piedade” como signo fundamental da visão de mundo de

Baldo. Cruzando o pensamento de Rossi com as ideias desenvolvidas neste estudo, em que se

propõe o “olho da piedade” como princípio religioso, não se está muito distante de Bastide

quando ele conceitua a feição política em Amado como portadora de “[...] um marxismo

religioso, tanto ou mais do que um marxismo político [...]” (BASTIDE, 1972, p. 55). Para o

antropólogo francês

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Esta sucessão de dois momentos na vida do herói, que poderíamos designar por

negritude e marxismo, não impede a interpenetração da negritude [...] e do

marxismo, que se sincretisa (sic) com os deuses africanos, a primeira já sendo como

que uma Anunciação do segundo, uma primeira visita do Anjo da Justiça aos

proletários negros, e o segundo só podendo triunfar com a condição de deixar de ser

uma abstração de teórico para encarnar-se em homens concretos, adoradores de

Xangô, que faz cair o raio nos maus, ou Iemanjá, que embala em seu seio o

sofrimento dos homens (BASTIDE, 1972, p. 46).

Rossi, assim como Bastide, acredita que não há “[...] ruptura ou incompatibilidade

entre essas duas lutas, ou dois momentos na vida de Balduíno: o negro-raça e o negro-classe

[...]” (ROSSI, 2004, p. 122). Em sentido oposto, Tollendal (1997, p. 69) afirma que “à medida

em que adquire hábitos de militância, Balduíno desfaz-se do manancial de cultura de que era

fiel depositário. De posse da verdade revolucionária, suas práticas anteriores passam a ser

vistas com o menosprezo que merecem as ocupações alienantes”. Nem tanto, nem tão pouco.

Os códigos negros não têm sua validade cultural negada, ou seja, não são contestados em seus

modos de ver e viver o mundo como o foram, de certo modo, em Suor. Mas, é verdade que

são negados, sim, no âmbito da ação política, como se não comportassem nenhuma

capacidade de defender o povo negro e pobre. Por outro lado, é igualmente verdade que Baldo

se desgarra do modelo de identidade simbolizado em Jubiabá, que se pauta em tradições afro-

brasileiras, e filia-se a outro, que não se pretende negro, mas de classe. Uma cena é

representativa da referida transição:

- Meu povo, vocês não sabe nada... Eu tou pensando na minha cabeça que vocês não

sabe nada... Vocês precisam ver a greve, ir para a greve. Negro faz greve, não é mais

escravo. Que adianta negro rezar, negro vir cantar pra Oxóssi? Os ricos manda

fechar a festa de Oxóssi. Uma vez os policiais fecharam a festa de Oxalá quando ele

era Oxolufã, o velho. E pai Jubiabá foi com eles, foi pra cadeia. Vocês se lembra,

sim. O que é que negro pode fazer? Negro não pode fazer nada, nem dançar pra

santo. Pois vocês não sabem de nada. Negro faz greve, pára tudo, pára guindastes,

pára bonde, cadê luz? Só tem as estrelas. Negro é a luz, é os bondes. Negro e branco

pobre, tudo é escravo, mas tem tudo na mão. É só não querer, não é mais escravo.

Meu povo, vamos pra greve que a greve é como um colar. Tudo junto é mesmo

bonito. Cai uma conta, as outras caem também (Jubiabá, p. 223-224)100

.

A greve – e unicamente a greve – surge no discurso de Balduíno como capaz de

reverter o quadro de submissão social imposta à população pobre, negros e mestiços em sua

maioria, pela lógica do sistema capitalista. Por conseguinte, Baldo ressalta uma suposta

incapacidade do candomblé em reverter orações e festas destinadas aos orixás em concreta

100

Esta cena será parcialmente reescrita em Tenda dos milagres, entretanto com outra finalidade. Se, em

Jubiabá, Jorge Amado ressalta uma incapacidade do candomblé em defender e cuidar do seu povo, de modo a

reagir às arbitrariedades sociais; é justamente em um barracão de candomblé que o romancista, em Tenda dos

milagres, situa uma importante vitória do povo negro contra o racismo institucionalizado. Este estudo será objeto

da quarta seção deste trabalho.

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mudança social101

. Depreende-se desta contraposição “capaz x incapaz” uma tentativa de

Baldo em tomar o destino pelas próprias mãos em detrimento de delegá-lo a deuses, quais

sejam. A religiosidade seria, portanto, uma forma de alijamento da luta política, no que

corrobora o espanto de Baldo em perceber que “Jubiabá sabia coisas de santos, histórias da

escravidão, era livre mas nunca ensinara a greve ao povo escravo do morro” (Jubiabá, p.

233).

O equacionamento desta nova identidade de Antonio Balduino, chancelada pelo

romance, é algo bastante escorregadio uma vez que promove, não raro, contradições. No

mesmo instante em que o protagonista vai de encontro ao candomblé, conclamando a todos

para a nova identidade – movimento em que se flagra o esmaecer da identidade anterior – é

perceptível que, no âmbito da narrativa, esta mesma nova identidade não subsiste sem a

tradição afro-brasileira, alicerce de sua visão do mundo: os “[...] ricos tinham secado o olho

da piedade. Mas eles podem na hora que quiser secar o olho da ruindade” (Jubiabá, p. 245).

Esta nova identidade é investida de uma força ideológica tal que faz o próprio Jubiabá curvar-

se respeitoso perante Balduíno, neste instante assemelhado a Oxalá, o mais velho de todos os

orixás. Isto se revela uma inversão simbólica da ordem religiosa afro-brasileira, uma vez que

faz o mais velho de fato e de direito102

curvar-se ante o mais novo.

De uma forma ou de outra, é possível atestar as referidas leituras de Rossi e de

Tollendal, embora se possa considerar esta última mais evidente nas páginas finais do

romance. Talvez fosse o caso de se pensar em uma identidade não fechada, cambiante,

complementar com a qual Baldo abarcaria o sentimento de classe e, em menor escala, o de

raça. Ainda que se arrisque esta interpretação, não estão eliminados os pontos de atrito entre

ambas as identidades que se fundem, muito menos o caráter de absoluto com que a identidade

de classe encerra o romance. Desta forma, ainda não é possível afirmar que a imagem

construída seja a do negro-sujeito, posto se detecte a transição de uma identidade negra para a

de classe. Há, sim, um projeto que cede às demandas políticas, ao compromisso ideológico.

Há um esboço.

No que tangencia propriamente à questão da mestiçagem, a par de todos os elementos

sincréticos que a evidenciam em âmbito cultural, percebe-se que, do ponto de vista biológico,

a mestiçagem não se configura em fator explorado pela narrativa. A despeito da existência do

amor inter-racial, o contato físico não chega a se realizar, o que permite a inferência que se

101

Ao invés de candomblé, o termo “Macumba” é mais recorrente em Jubiabá. 102

De direito se refere aí ao tempo decorrido desde a iniciação de Jubiabá ser bem superior àquele de Baldo bem

como à posição hierárquica de ambos, babalorixá e ogã, respectivamente.

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volta para um retrato das clivagens raciais imperativas no Brasil. O negro é positivado, mas a

sociedade repele o seu envolvimento com a mulher branca. Ainda assim, Baldo será o

responsável pela criação do filho branco de Lindinalva, assumindo a função de pai e

quebrando barreiras, portanto. Por isso, endossa-se a leitura de Goldstein (2003, p. 151) para

quem, não obstante o romance Jubiabá seja “[...] à primeira vista o mais radical de Jorge

Amado, não se tem verdadeiramente ódio entre brancos e negros, e o dissolver de fronteiras

começa a ser insinuado”.

O que se insinua e se esboça em Jubiabá ganha destaque e profundidade em Mar

morto, quinto romance de Jorge Amado, publicado em 1936103

. Este romance, sob a ótica da

fortuna crítica, é menos problemático no tocante às representações étnico-raciais do que o seu

precedente, ou, pelo menos, inspira uma quantidade menor de estudos, o que justifica a

abordagem menos extensa a ser empreendida por esta dissertação104

.

O lírico e igualmente trágico enlace amoroso entre Guma e Lívia, apesar de

configurar-se como romance político (TOLLENDAL, 1997; ROSSI, 2004; VEIGA, 2008),

comporta particularidades tais que, se bem observadas, desvelam um universo ficcional mais

próximo daquele de narrativas como Os pastores da noite e Tenda dos milagres, por exemplo,

do que uma continuidade com os parâmetros narrativos de Jubiabá. Embora inserido

temporalmente no grupo que Duarte (1996) denomina “romances de formação proletários” –

ou seja, Jubiabá e Capitães da areia, Mar morto adota outra perspectiva. Duarte afirma:

103

Mar morto é um romance sobre aqueles que vivem em função do mar, marinheiros, saveiristas, pescadores e,

como tal, é também uma narrativa em que a presença de Iemanjá é muito forte, não apenas como um símbolo de

fé dos marítimos – Guma é um de seus ogans – mas como arcabouço mitológico que guia a narrativa. Neste

plano, Jorge Amado conta sobre o amor de Guma e Lívia: ele, um homem do mar; ela, uma mulher da terra.

Ambos se conhecem em uma festa de Iemanjá, trocam olhares e risos. Em um átimo, Guma sabe que aquela é a

mulher que Iemanjá lhe havia destinado. Contudo, um conflito se instaura: sendo um homem do mar, sua morte é

sempre iminente, apenas adiada em mais um dia quando ancora o saveiro no cais. Seria justo desposá-la? O

destino das mulheres dos marítimos é sempre o mesmo quando viúvas, ou prostitutas ou empregadas nas fábricas

de fumo, onde cedo perdem a vida. Ao pensar nestas condições, Guma tenta fugir de Lívia, mas não resiste ao

amor que sente. Casam-se e têm um filho. Ao final do romance, como dificilmente poderia deixar de ser, Guma

cumpre o seu destino e morre envolto pelas águas de Iemanjá. Lívia, no entanto, com o apoio de Rosa Palmeirão,

subverte o destino das mulheres de marítimos: não se prostitui ou se emprega nas fábricas de fumo, mas, ao

contrário, toma do Paquete Voador, saveiro herdado de Guma, e se torna, ela também, uma marítima. 104

O pesquisador Carlos Augusto Magalhães observa que o título Mar morto corresponde a uma metáfora que

traduz a “[...] emoção que o escritor tanto quer compartilhar com seus leitores e que surge do contato com a

realidade da cidade” (MAGALHÃES, 2011, p. 180). Assim, ainda Magalhães (2011, p. 180) assevera: “[...] o

título Mar morto, de início, associável àquele que fica nos mapas, também interfere na estabilidade do

significado, pois morto não seria um adjetivo adequado para mar, dentro da previsibilidade interpretativa. Mas,

ao mesmo tempo, tal qualificativo se coaduna com a o sentido de uma vida marcada pela fatalidade, pelo

sofrimento, pela ausência de expectativa, aspectos que caracterizam a existência das pessoas que vivem no e do

mar morto da dor e do abandono social, na Bahia da década de 1930”. Aliás, o contato estabelecido e a relação

existente entre o escritor Jorge Amado e a Cidade da Bahia não é vã constatação, antes, tal como afirma

novamente Magalhães (2007, p. 45) “[...] é um vínculo carregado de solidez, que esboça a situação e o sentido de

pertencimento do escritor à urbe, numa relação plena de subjetividade e para além da cidadania, porque

existencial”.

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[...] extrapola o projeto de narrativa militante. Embora centrada na vida popular

baiana, a história de Guma e Lívia não se enquadra no esquema de romance

proletário e passa ao largo de encaminhamentos políticos como os de Jubiabá, São

Jorge dos Ilhéus ou Seara Vermelha (DUARTE, 1996, p. 36).

Parecer semelhante é emitido por Albuquerque Júnior (2008, p. 25), para quem Mar

morto “[...] é, curiosamente, um livro que se estrutura muito mais em torno de uma etnografia

dos espaços [...] do que propriamente em torno de uma trama histórica [...]”. Ainda segundo o

pesquisador, há dois espaços para a utopia neste romance: “um espaço utópico popular, aquele

representado pelas terras de [...] de Iemanjá, e um espaço utópico imaginado pelos intelectuais

que figuram na trama do livro: a terra transformada pelo milagre da revolução comunista”

(ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2008, p. 39).

Este primeiro espaço, de natureza utópica popular, confere ao romance caráter “[...]

verdadeiramente africanista [...]” (TOLLENDAL, 1997, p. 88), posto que “o mito de Iemanjá

sustenta maravilhosamente o enredo de Mar morto, cujas imagens e estrutura nascem da

história e da figura mítica da deusa” (SALAH, 2008, p. 100. Grifos do autor). É ainda este

mesmo espaço que circunscreve as figuras centrais do romance, Guma, Lívia e Rosa

Palmeirão “[...] que mantêm com Iemanjá relações tão vigorosas, que o mito se torna um

arcabouço tão vivo e real quanto eles” (SALAH, 2008, p. 101). A onipresença do mito fica

patente desde as primeiras páginas do romance quando, em noite de temporal, morrem filho e

marido de Judith; mortes atribuídas ao destino daqueles que vivem sobre o mar, o de um dia

se juntarem a Janaína nas Terras do Sem Fim. Lívia sofre com a inevitabilidade da

perspectiva fatalista. Sabe que um dia será ela a ser consolada pelas mulheres dos marítimos

enquanto os saveiros cortarão inutilmente as águas da baía atrás do corpo de Guma perdido

para sempre, levado por Iemanjá. O temor que acomete Lívia explicita então os termos

condicionantes do universo a ser narrado:

Ela [Iemanjá] é mãe-d‟água, é a dona do mar, e por isso, todos os homens que vivem

em cima das ondas a temem e a amam. Ela castiga. Ela nunca se mostra aos homens

a não ser quando eles morrem no mar. Os que morrem na tempestade são seus

preferidos. E aqueles que morrem salvando outros homens, esses vão com ela pelos

mares afora, igual a um navio, viajando por todos os portos, correndo por todos os

mares. Destes ninguém encontra os corpos, que eles vão com Iemanjá. Para ver a

mãe-d‟água muitos já se jogaram ao mar sorrindo e não mais apareceram (Mar

morto, p. 25).

O segundo espaço delimitado por Albuquerque Júnior, aquele permeado pela ideologia

política, praticamente restringe-se às personagens de Dulce, a professora, e do Dr. Rodrigo,

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médico, que dedicam suas vidas ao povo do mar. Segundo Tollendal (1997, p. 88) “a presença

humanitária destes personagens letrados neste espaço social acentua a necessidade de

atendimento das populações carentes na área da educação e de saúde – bandeiras de todo

programa nacional-popular a cargo do Estado. Representa, portanto, uma teoria política"105

.

Dulce espera um milagre que viria algum dia e, enquanto este não chega, ensina aos rebentos

do mar, no pouco tempo em que podem ficar na escola, a escrever e fazer contas. Rodrigo, por

sua vez, contrasta suas expectativas de médico ao cotidiano daquela população, julgando sua

ciência de pouca valia no que tange a proporcionar melhores condições de vida aos

marítimos: “só mesmo um milagre. Isso prova que você ainda tem fé no seu Deus. Já é

alguma coisa. Eu já perdi a fé na minha deusa” (Mar morto, p. 148), diz o médico à Dulce. A

professora, entretanto, desloca o milagre esperado do plano divino para o humano, no que diz

respeito à presença da ideologia socialista no romance, ainda que tacitamente:

- Não é mais um milagre do céu que eu espero. Já roguei muito aos santos e assim

mesmo os homens e as crianças morreram. Mas eu tenho fé, sim. Tenho fé, Rodrigo,

nesses homens. Uma coisa me diz que eles é que farão o milagre...

Dr. Rodrigo olhou para dona Dulce. Os olhos da professora eram bondosos e

sorriam. O médico pensou nos seus versos fracassados, na sua ciência fracassada.

Olhou a gente que sorria em torno dele. [...]

- Que milagre, Dulce? Que milagre?

Ela estava transfigurada, parecia uma santa. Os olhos doces corriam para o mar.

Uma criança veio e ela descansou a mão desencarnada na sua cabeça:

- Um milagre, sim. [...] Você nunca imaginou esse mar cheio de saveiros limpos,

com marítimos bem alimentados, ganhando o que merecem, as esposas com o futuro

garantido, os filhos na escola não durante seis meses, mas todo o tempo, depois indo

aqueles que têm vocação para as faculdades? Já pensou em postos de salvamento

nos rios, na boca da barra? Às vezes eu imagino o cais assim... [...] Um milagre

desses homens, Rodrigo... Assim como a lua nessa noite de inverno. Clareando tudo,

embelezando tudo.

Rodrigo olhou a lua que subia no céu. Era cheia e iluminava tudo, transfigurando o

mar e a noite. As estrelas surgiram, uma canção veio do forte velho, os homens não

iam mais curvados, o cortejo nupcial era belo. A umidade da noite desapareceu,

ficou o frio seco. A lua clareou a noite do mar. Mestre Manuel ia abraçado com

Maria Clara e Guma sorria para Lívia. Dr. Rodrigo olhou para o milagre da noite. A

criança sorria para a lua. Dr. Rodrigo se apercebeu então do que Dulce dizia. Botou

a criança no braço. Era verdade. Um dia aqueles homens realizariam um milagre

assim (Mar morto, p.148-149).

105

Ainda assim o pesquisador não deixa de criticar aquilo que, em sua leitura, descreve como uma “narrativa

hagiológica” em detrimento da “narrativa socialista”: “Estamos, sem dúvida, mais próximos do messianismo

romântico que do marxismo revolucionário. O narrador acaba por apontar um futuro de justiça que não tem na

práxis política o motor da sua história; que independe de circunstâncias objetivas, da correlação de forças, das

condições materiais da existência, estando à mercê de um desígnio divino ou do espírito dos povos"

(TOLLENDAL, 1997, p. 107). Ou, ainda, "Esta solução fantástica, transformando a morte trágica em sobrevida

celestial no imaginário dos povos (e leitores), sem dúvida carece de força revolucionária. A mitologia torna-se o

ópio do povo. Suave na poesia da canção romântica, quando nos fala da integração do homem ao meio como

medida da sua felicidade, na lógica do (sic) narrativa política o verso é doce morrer no mar (que lhe serve de

mote) traduz uma tese autoritária. Não há dialética quando se mitifica a morte decorrente de uma situação de

injustiça. Como um discurso compensatório, no contexto do romance social, sua mensagem acaba por estimular

a resignação, o conformismo, a alienação, diante da exploração do trabalho" (TOLLENDAL, 1997, p. 110).

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Os dois espaços demarcados por Albuquerque Júnior não se constituem propriamente

como um ineditismo de Mar morto frente aos romances previamente escritos por Jorge

Amado. De certa forma, Jubiabá já os havia introduzido ao mergulhar tão a fundo nas

representações da vida popular e da ideologia política. Decorre que a diferenciação entre

ambas as narrativas não se situa pelos espaços ficcionalizados, porque são os mesmos, mas

pela relação hierarquizada que estrutura tais representações. Neste sentido, em Jubiabá ocorre

a migração de um espaço a outro de modo que o popular, ao fim do romance, é incorporado

pelo político-ideológico – em que pese a negação da religiosidade afro-brasileira no discurso

de Baldo. A greve funciona como agente catalisador deste processo, constituindo-se uma

espécie de epifania. Tal como um vislumbre do Sagrado, de súbito ela promove uma nova

consciência, um novo ser, como visto pouco acima. Em Mar morto a greve não produz

qualquer mudança de rumo na narrativa. Embora a faça presente e vitoriosa, Jorge Amado

restringe seu alcance ao campo social, pouco adentrando na esfera identitária; assim, ao seu

término, Guma permanece substancialmente o mesmo. Em verdade, se em Jubiabá a greve

transforma uma identidade em outra, em Mar morto o único efeito que produz neste âmbito é

acrescer uma esperança antes inexistente: “e na noite estrelada o estivador lhe contou muita

coisa. Para Guma não era de noite, era a madrugada que surgia” (Mar morto, p. 247-248).

Para Dulce e para Rodrigo, ela sinaliza também que o milagre esperado começava a se

realizar:

Dr. Rodrigo prestou grande assistência aos estivadores. Depois de tudo acabado fez

um poema em que terminava dizendo que o milagre que dona Dulce tanto esperava

tinha começado a se realizar. Ela concordou, sorrindo. Estava cada vez mais curva,

mas alteou o peito ao ouvir o poema. E sorria feliz. Aprendera uma nova palavra

para dizer nas casas pobres do cais. Agora podiam-na chamar de boa e amiga. Ela

sabia como lhes agradecer. Novamente tinha fé. Apenas agora era diferente (Mar

morto, p. 248).

Limitado o raio de ação da greve, onipotente em Jubiabá, limita-se igualmente a

atuação da ideologia política em Mar morto, o que não significa, sobremaneira, que ela não

opera; apenas indica que não submete a seu jugo identidades previamente consolidadas. A

nova palavra aprendida por Dulce, e que será ensinada aos filhos e netos de marítimos, é,

pois, índice de uma consciência política a ser passada às novas gerações que, não obstante,

manterão vivas as tradições culturais e religiosas dos pais e avós. Deste modo, recuperando a

terminologia de Albuquerque Júnior, Mar morto configura uma soma positiva dos espaços

utópicos do mítico-popular e do político-ideológico que permeiam a narrativa. Ao contrário

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do que ocorre em Jubiabá, a valorização de um campo, o político, não é corolário da

desvalorização plena ou parcial do outro, o mítico-popular. Na história de Guma e Lívia,

ambos irmanam-se e impulsionam o desenrolar do romance. O ápice deste entrecruzamento se

dá após a morte de Guma, quando Lívia decide tomar do “Paquete Voador”, e cruzar, com

Rosa Palmeirão, os caminhos da Baía de Todos os Santos:

Aves marinhas volteiam em torno ao saveiro, passam perto da cabeça de Lívia. Ela

vai erecta e pensa que na outra viagem trará seu filho, o destino dele é o mar. [...]

Estrela matutina. No cais o velho Francisco balança a cabeça. Uma vez, quando fez

o que nenhum mestre de saveiro faria, ele viu Iemanjá, a dona do mar. E não é ela

quem vai agora de pé no Paquete Voador? Não é ela? É ela, sim. É Iemanjá quem

vai ali. E o velho Francisco grita para os outros no cais:

- Vejam! Vejam! É Janaína.

Olharam e viram. Dona Dulce olhou também da janela da escola. Viu uma mulher

forte que lutava. A luta era seu milagre. Começava a se realizar. No cais os

marítimos viam Iemanjá, a dos cinco nomes. O velho Francisco gritava, era a

segunda vez que ele a via (Mar morto, 271-272).

Nesta cena, para a qual converge todo o romance, ambos os espaços utópicos se

confundem e se fazem presentes na imagem singular de Lívia. Ao comando do “Paquete

Voador”, saveiro que herda de Guma, ela subverte o destino trágico das viúvas do cais, qual

seja, o de escravizarem-se em fábricas ou a sujeitarem-se a todos e a ninguém, em prostíbulos

vários. De uma forma ou de outra, envelheceria cedo, perderia a beleza, morreria de doenças

terríveis. Ao reagir contra estas possibilidades, Lívia instaura uma nova perspectiva, a de não-

submissão a uma ordem predefinida, preexistente. E, nesta medida, encarna o espaço utópico

político-ideológico – é o sonho de Dulce.

Ora, em uma narrativa guiada pela ideia de destino, na qual a morte de Guma já se

anuncia desde a primeira página106

e para a qual, segundo Hoisel (2008, p. 71) “[...] a própria

fatalidade [...] é também tratada como elemento mítico e idealizado [...]”, a ruptura promovida

por Lívia pode sugerir uma sobreposição do fator político ao mitológico. Ainda mais ao se

considerar o conflito vivenciado por Guma pouco antes do casamento. Afinal, Lívia era a

mulher que lhe fora enviada por Iemanjá, no entanto casar-se com ela significaria selar o

destino da moça sob o signo da tragédia, dada a sempre iminente morte daqueles que

trabalham no mar: “Foi Lívia quem Iemanjá lhe mandou, ele não pode discutir as ordens de

Iemanjá. [...] Guma não quer desgraçar o destino de Lívia, mas não pode. Destino é coisa

feita, ninguém pode desmanchar. O destino de Lívia é o destino infeliz das mulheres do cais”

(Mar morto, p. 127). Esta, no entanto, seria uma interpretação apressada. É importante

106

Rossi (2004, p. 128) considera que Mar morto “[...] é estilisticamente concebido pelo constante retardamento

desta morte anunciada”.

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observar que, em comparação à perspectiva de Dulce, o milagre que os marítimos avistam é

outro. Enquanto a professora emociona-se com Lívia dobrando o destino, não é a viúva de

Guma que os savereiros vislumbram sobre o “Paquete Voador”, mas a própria Iemanjá

conduzindo-os a uma nova sorte, na qual não é mais necessário morrer para vê-la:

O mito não mais subordinando, mas, sobretudo impulsionando as pessoas da beira

do cais para um outro caminho, pois a morte não é mais o preço que se paga, no caso

dos homens, para quem vê Iemanjá. Muito pelo contrário, agora, ela aparece

encarnada naquela mulher [...], mostrando-se para todos os marítimos como o

verdadeiro símbolo da vida (ROSSI, 2004, p. 134).

Para os homens do mar, ainda que a cena implique um reordenamento social – ou pelo

menos a esperança dele –, a natureza do fato permanece mítica: quem subverte o destino não é

Lívia, mas Iemanjá. E, nesta medida, reconfigura-se o espaço utópico mítico-popular – o

sonho dos marítimos.

Ao contrário de Jubiabá, Mar morto não deixa entrever qualquer laivo de

hierarquização de um espaço sobre outro. Antes, apreende-os em um movimento dialético do

qual resulta Lívia, tanto mítica quanto política. Vale ressaltar que esta convergência do mítico

e do político para uma mesma representação, embora em outros contextos e com outras

conotações, está tanto em Os pastores da noite quanto em Tenda dos milagres107

. Em O

compadre de Ogum, segunda história de Os pastores da noite, Ogum, com o intuito de poder

realizar o batizado do menino de quem é padrinho, incorpora em um padre cuja intolerância

inviabiliza o procedimento litúrgico. Já em A invasão do morro do Mata-Gato, terceira

história do mesmo romance, é Jesuíno Galo Doido, um obá de Xangô, alta referência

religiosa, o responsável por organizar a defesa do Morro contra a polícia e a especulação

imobiliária. Em Tenda dos milagres, por sua vez, são os próprios orixás que expulsam e dão

fim à perseguição policial contra os terreiros de candomblé108

. Em todas estas situações,

percebe-se a confluência do sagrado e do político em uma construção contraopressiva, o que

parece indicar que “[...] dentro de um processo de esmagamento cultural, a religião é o mais

importante veículo de resistência. Mobiliza, aglutina e fortalece a identidade” (TAVARES,

2009, p. 26). Em Mar morto, esta condição não é tão clara e bem definida quanto nos outros

romances supracitados, mas já se anuncia a não-negação da religiosidade dos marítimos. Este

107

Com Gabriela, cravo e canela (1958), o termo “político” adquire uma semântica mais ampla do que aquela

existente nos romances amadianos que se estendem até Os subterrâneos da liberdade. Nestes, “político” designa,

por metonímia, a ideologia socialista. A partir de 1958, contudo, “político” passa a configurar uma ação social

contraopressiva, tão somente. 108

Todas estas cenas elencadas são devidamente analisadas nas duas próximas seções, cabendo aqui apenas

indicar a proximidade com o narrado em Mar morto.

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é, com efeito, o primeiro ponto que permite afirmar Mar morto como um prenúncio dos

romances pós-58.

Um segundo fator é a mestiçagem. Em Mar morto, pela primeira vez, ela deixa de ser

um pano de fundo para assumir um papel de protagonista, sendo afirmada como significante e

significado da realidade baiana. Assim, o lirismo com o qual Amado circunscreve o amor de

Guma e Lívia, é todo ele baseado em referências “sincréticas”: mar e terra; candomblé e

catolicismo; fatalismo e esperança; sagrado e humano. Aliás, a própria materialização do

romance é sincrética, porquanto consista em um homem da terra, Jorge Amado, narrando

aqueles do mar: “Vinde ouvir a história de Guma e de Lívia que é a história da vida e do amor

no mar. E se ela não vos parecer bela, a culpa não é dos homens rudes que a narram. É que a

ouvistes da boca de um homem da terra [...]” (Mar morto, p. 9). Especificamente em termos

biológicos, Guma e Lívia são dois mulatos, o que leva Tollendal a afirmar:

Com a maravilhosa ventura de amor entre o mulato Guma e a morena Lívia, a

literatura de Amado adquire um significado ideológico que a paixão do negro

Balduíno pela branca Lindinalva, em Jubiabá, não conseguira alcançar: a afirmação

da mestiçagem como configuração étnica e cultural do Brasil. Trata-se,

efetivamente, de um casal alegórico, que representa a união das classes populares e

promove a exaltação de suas virtudes amorosas (TOLLENDAL, 1997, p. 97).

Tal como visto na seção anterior, a mestiçagem amadiana não pressupõe que haja

ausência de conflitos ou, muito menos, silencia quanto a uma particularidade do racismo

brasileiro, a ideologia do embranquecimento via miscigenação. Novamente, Os pastores da

noite e, principalmente, Tenda dos milagres conformam romances em que, direta ou

indiretamente, Jorge Amado discute com mais profundidade os meandros da questão sócio-

racial brasileira. Ainda que em menor grau, Mar morto permite entrever já algumas

discussões:

Guma levou a notícia a todos os seus conhecidos, e eram muitos, espalhados pelos

diversos pontos do recôncavo. Alguns deram presentes pro menino que ia nascer, a

maior parte desejou felicidades. Também Esmeralda fora à sua casa logo pela manhã

do dia seguinte. Fizera muito escândalo, muita história fiada, que estava tão contente

como se fosse ela mesma, mas quando Lívia foi à cozinha fazer um pouco de café

para eles tomarem, ela arriscou:

- Só eu não topo com um homem que me faça um filho. Sou pesada até nisso.

Homem meu não faz filho... – mostrava um pedaço das coxas, as pernas cruzadas.

Guma riu:

- É só você pedir a Rufino.

- Aquele? E quero lá filho de negro. Estou precisando de um filho de gente mais

branca do que eu pra melhorar a família... (Mar morto, p. 176).

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Sintomático que esta fala esteja na voz de Esmeralda, única personagem do cais a ser

representada “[...] por traços de comportamento depreciativos, como a disponibilidade, a

lascívia, a aleivosia, a desafeição, a frivolidade” (TOLLENDAL, 1997, p. 94). Ela é, portanto,

aquela que destoa negativamente do meio no qual se insere, como se Amado intentasse

valorizar, por contraposição, as mulheres negras, mulatas e morenas do cais da Bahia, em

especial, Lívia. Cumpre ressaltar ainda o destino reservado a Esmeralda, assassinada por

Rufino em vingança a uma traição – no que se observa, talvez, um ato punitivo do escritor a

tudo o que a personagem representa. Neste sentido, enquanto as viúvas de marítimos – e

mesmo estes – são agraciadas ao final do romance com uma reversão do destino outrora lhes

consagrado, esperança representada por Lívia-Iemanjá, Esmeralda não subsiste nem como

simples lembrança.

É certo que a morte de Esmeralda não produz o mesmo efeito que o empenho de

Archanjo, em Tenda dos milagres, em dessacralizar as teorias raciais do Dr. Nilo Argolo,

mas, incorrendo novamente na comparação entre as duas narrativas, o apagamento da mulata

precede o de Tadeu Canhoto, afilhado de Archanjo. Em Mar morto há o desejo do

embranquecimento e a personagem que lhe dá vazão é condenada à morte violenta seguida

por seu esquecimento. Já em Tenda dos milagres, Tadeu após conseguir se formar em

Engenharia, casa-se com Lu, personagem branca e de família tradicional, com o que,

rapidamente, galga uma ascensão social que o leva a afastar-se completamente da identidade

que cultivava quando ainda pertencente ao universo do Pelourinho. Em outras palavras, Tadeu

busca intensamente branquear-se. Embora não incida sobre ele qualquer violência, o seu

destino é o mesmo de Esmeralda, ou seja, o esquecimento. Assim, é possível inferir na

postura do escritor um recorrente ato condenatório ao desejo do embranquecimento, com o

que se configura um ideal de mestiçagem voltado para a negritude.

Neste ponto, é importante frisar a relativa discordância de Tollendal. Para o

pesquisador:

Pensando na possibilidade de preconceito étnico - ou, pelo menos, de preferência

estética pela mulher mestiça de traços embranquecidos, numa sociedade em que,

como dizem as canções, o cabelo me crimina - convém lembrar o fato de Lívia ser

morena, de cabelo liso (TOLLENDAL, 1997, p. 94. Grifos do autor).

A compleição física de Lívia parece cumprir uma outra função que não a do

“preconceito étnico” ou da “preferência estética pela mulher mestiça de traços

esbranquiçados”, como preconiza Tollendal. Segundo Salah (2008) há uma forte similitude

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entre o imaginário popular acerca de Iemanjá e as representações femininas em Mar morto.

Ele afirma que “até mesmo certos traços característicos da deusa como, por exemplo, os

cabelos compridos e molhados, são reencontrados na evocação das personagens femininas e,

sobremaneira, de Lívia” (SALAH, 2008, p. 103). A interpretação do pesquisador francês

radicado na Bahia é pertinente uma vez observado o desfecho do romance, quando os

marítimos veem em Lívia a própria Janaína. Assim, a constituição física da personagem, em

destaque seus cabelos lisos sempre molhados de mar, é condizente com a perspectiva

amadiana de entrecruzar o sagrado e o humano na convergência entre Lívia e a deusa

iourubaiana109

.

A possibilidade de preconceito étnico levantada por Tollendal é também refutada se

analisada em contraste com a composição identitária de Guma e Lívia, bem como aquela que

emana do cais. Embora Amado os caracterize como mestiços, faz com que as personagens se

reconheçam e se assumam como negras. Há, desta forma, que se ressaltar o tratamento

carinhoso que Guma devota a Lívia, chamando-a negra (Mar morto, p. 159; 164); o orgulho

com que os homens do cais ouvem as histórias de Rosa Palmeirão e a chamam igualmente de

negra (Mar morto, p. 60) ou quando divisam em Guma alguém merecedor da distinção: “Esse

aqui é Guma, negro valente de verdade” (Mar morto, p. 103). Noutro plano, a afirmação da

negritude ocorre também através da religiosidade. Guma e Lívia além de devotos de Iemanjá,

são assíduos às festas do candomblé de Pai Anselmo, do qual o marítimo é ogã, cargo de

responsabilidade:

Não era tão fácil assim ser da macumba de Pai Anselmo e era preciso ser bom

marítimo para um negro se sentar entre os ogãs de Iemanjá cercado pelas feitas que

dançavam. Guma, mulato claro, de cabelos longos e morenos, se sentaria em breve

numa das cadeiras que ficavam em volta do pai-de-santo, na sala do candomblé

(Mar morto, p. 80).

Observa-se que os dados apresentados acima apontam na direção de uma proximidade

sinonímica entre os termos “mulato”, “mestiço” e “negro” de modo a configurarem a

representação da mestiçagem no romance como uma abordagem que rejeita o branqueamento.

Convém retomar a noção de uma tríade esquerda-vida popular-liberdade como

estruturante da obra amadiana. Em Jubiabá ela se mostra imponente, abrindo horizontes

109

Os orixás, originalmente, não são representados por figuras humanas, mas por uma série de elementos que

lhes são consagrados. A imagem, portanto, de Iemanjá como de uma mulher branca e loira, sob uma túnica

branca e azul, ou ainda morena de longos cabelos lisos, é originária de um contexto ocidental, certamente

influenciada pelas imagens de santos católicos. “Iorubaiana” tenta, por aglutinação, dar conta desta dupla origem

do imaginário sobre Iemanjá, tanto ioruba quanto baiana.

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inexplorados nos três romances anteriores. Falha, entretanto, no equilíbrio. Em um primeiro

momento, os termos “liberdade” e “vida popular” estão em destaque enquanto o fator político

metaforiza-se na recusa de Baldo ao trabalho. Durante a greve ocorre uma inversão semântica

na narrativa, o que favorece a hegemonia do componente político – ao qual se agrega o

sentido de liberdade. Rejeita-se, assim, a vida popular. Já em Mar morto, os três vértices da

tríade permanecem em perfeito equilíbrio, resultando inclusive no amálgama entre o político e

o popular – outrora excludentes –, com a ideia de liberdade permeando e regulando a relação.

Ora, é justamente do equilíbrio desta tríade que decorre a autonomia do representado,

tal como proposta aqui, ou seja, na condição de uma não interferência da ideologia do escritor

no universo das personagens representadas. As personagens de Amado, em geral, são políticas

por natureza, e, na mesma medida, são também populares. Contemplar estas duas faces, a

política e a popular, sem que uma resulte em exclusão da outra, o correto limite entre a

interferência ideológica e o retrato de um povo, foi um aprendizado que se estendeu por três

romances e que deságua na confluência político-mítica de Lívia-Iemanjá110

. Ao contrário do

que acontece na história de Balduíno, nesta outra – entrecho das vicissitudes dos que vivem

no e do mar –, o milagre de Dulce irmana-se ao milagre dos marítimos, a perspectiva

ideológica casa-se com a expressão religiosa popular – do que advém a representação do que

se designou aqui como negro-sujeito.

Buscou-se, nesta seção, discutir os cincos primeiros livros de Jorge Amado na

tentativa de compreender como seu universo ficcional evoluiu e engendrou rupturas e

continuidades no que tange à mestiçagem. Destarte, observou-se que, livro a livro, a figura do

negro – e, por conseguinte, a do mestiço – sofreu um processo contínuo de ressignificação. O

negro degenerado de 1931, cuja representação constitui uma metonímia que define o próprio

país, cedeu ao proletário de 1933 e 1934, que se amplia no negro ideológico de 1935 e,

finalmente, no negro-sujeito de 1936.

Importante frisar que nenhum dos romances analisados nesta seção objetiva uma

proposta de sociedade calcada na ideia de mestiçagem. A rigor, nem Mar morto que, a

despeito de suas muitas particularidades, configura-se em uma narrativa de natureza político-

ideológica.

Jerônimo Soares. José Cordeiro. O casarão nº 68 da Ladeira do Pelourinho. Antônio

Balduíno. Guma e Lívia. Emblemas de uma literatura nascente, contundente e polêmica. O

110

Exclui-se da lista O país do carnaval por serem outros seus referenciais.

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primeiro, símbolo do que se abandonou, do que se rejeitou, por falso e torpe. Os três

seguintes, marcas de um tempo, de uma utopia. Os dois últimos, prenúncios do porvir.

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PARTE II

DO POVO NEGROMESTIÇO

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3 DOS NEGROS SENTIDOS EM OS PASTORES DA NOITE

Canto e danço que dará

Caetano Veloso. Odara.

Uma vez estabelecidos e estudados os percursos ascensionais da personagem e da

cultura negras na ficção amadiana, divisados a partir dos movimentos iniciais galgados pelo

escritor, cabe agora observá-las noutra conjuntura, qual seja, aquela cuja representação do

povo vincula-se e alude à mestiçagem como a um seu princípio estruturante, quiçá criativo111

.

Desta forma, cumpre indagar nesta seção acerca dos sentidos fundacionais oriundos da

miscigenação, isto é, a respeito da semântica que tal processo empresta à realidade narrada

por Amado, bem como inquirir em relação à própria natureza desta mestiçagem

ficcionalizada: quais valores a engendram; qual mestiço projeta?

Dos questionamentos acima, deriva um terceiro a ser ponderado – o qual resume,

permeia e direciona todas as páginas até aqui escritas e, de forma mais verticalizada, aquelas

ainda por vir neste estudo. Refere-se, pois, ao negro e ao lugar a ele destinado por Amado no

universo ficcional que o escritor baiano alcança enunciar. Compete saber: seria um universo

tão somente mestiço, em que o adjetivo incitaria dúvidas, sempre justificáveis, quanto às

representações advindas da qualificação ao substantivo112

? Ou, por outro lado, seria mais

interessante e mesmo producente designá-lo negromestiço, possibilidade linguística cuja

dupla adjetivação sobre o mesmo vocábulo, “universo”, traduziria a pujança da presença

negra, norte dos sentidos condicionantes da noção amadiana de mestiçagem?

111

O efeito ambíguo e consequentemente incerto que o pronome possessivo “seu” causa a esta última oração é

de todo proposital. Refere-se tanto ao termo “representação” quanto àquele que lhe especifica o alcance, “povo”.

Para Jorge Amado, e ele o defende em diversas ocasiões, a mestiçagem é o grande fator formativo do povo

brasileiro, da cultura e da unidade nacionais. Em entrevista a Sandra Bagno (1993, p. 77), por exemplo, o

escritor baiano afirma acreditar “[...] verdadeiramente que exista uma identidade, uma originalidade cultural

brasileira, que resulta exatamente da mistura. O fato significativo e determinante da nossa formação nacional é a

mistura. [...] é esta mistura de sangue e raças que dá uma marca característica ao Brasil, diria que é o nosso

humanismo”. ([...] davvero che esista un‟identità, un‟originalità culturale brasiliana, che risulta esattamente dalla

mescolanza. Il fato significativo e determinante della nostra formazione nazionale è la mescolanza. [...] è questa

mescolanza di sangue e razze che dà un marchio caratteristico al Brasile, vorrei dire che è il nostro umanesimo.

Tradução nossa para fins deste trabalho)”. Por outro lado, e por extensão, a mestiçagem desponta, a partir de

Gabriela, cravo e canela, como uma representação cada vez mais prenhe de sentidos e projeções acerca da

realidade brasileira, de modo a configurar-se em um a priori de algumas narrativas amadianas – especialmente

Os pastores da noite e Tenda dos milagres. 112

A considerar a problemática dos usos conservadores e ideológicos do fato biológico-cultural da miscigenação

no Brasil, investigada ainda que de forma lacunar na primeira seção deste trabalho, os termos “mestiço”,

“mestiçagem” e correlatos devem sempre inspirar dúvidas e cuidados.

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Tome-se por objeto o romance Os pastores da noite, significativo para a abordagem

aqui proposta. Talvez não seja exagero afirmar que, publicado em 1964, este livro constitua

uma primeira imersão de fôlego amplo da literatura amadiana no tema e na defesa da

mestiçagem – o que é feito principalmente via sincretismo religioso113

em O compadre de

Ogum, segunda narrativa a compor e contar o universo dos vagabundos da Bahia114

.

Pode-se observar, no que concerne a este romance, um esforço de Jorge Amado em

preservar, através da escrita, a imagem/memória de um mundo vivido à parte daquele

regulado pelas diretrizes de uma ordem burguesa. Assim, enfoca vivências que tendem a

desvanecer ante a absolutização da ideia de “moderno”, cuja sanha mira constantemente o que

é considerado vinco do “passado”. A aspiração em registrar um modo de vida não burguês, o

escritor baiano a revela em entrevista a sua tradutora francesa:

Os Pastores da Noite é um romance sobre os vagabundos. A maioria de meus

personagens é de vagabundos. E já disse mais de uma vez, não haverá lugar para

eles no mundo de amanhã. Infelizmente. E o mundo perderá muito de sua poesia.

[...] Todo o meu esforço tende a conservar a memória de um tempo que está

acabando, que em parte já acabou. [...] é um desejo de salvar a lembrança das coisas,

e creio que é uma das razões pelas quais meus livros são tão populares

(RAILLARD, 1990, p. 310-311).

Resulta da veleidade amadiana de preservação desta memória um romance tripartido

cujas narrativas possibilitam leituras com certa autonomia em relação umas às outras, mas

que, quando observadas em conjunto, explanam e eternizam de forma coesa aspectos distintos

de uma mesma vivência em comum. Neste sentido, História verdadeira do casamento do

Cabo Martim, com todos os seus detalhes, rica de acontecimentos e de surpresas ou Curió, o

romântico, e as desilusões do amor perjuro, que vem a ser a narrativa de abertura do

romance, deslinda as relações íntimas das personagens para salvaguardar na retentiva literária

113

Endossa-se Goldstein (2003, p. 211), em nota de rodapé. A antropóloga considera: “[...] problemático falar

em sincretismo, já que o termo pressupõe a existência de conjuntos „puros‟ ou „primários‟ que se fundem. Utilizo

o termo porque Amado o emprega e por falta de outro melhor para designar ecletismo e amálgama de tradições

heterogêneas”. 114

Importante frisar que o termo “vagabundo”, utilizado às largas pelo escritor baiano, não deve ser entendido de

forma pejorativa uma vez que, como já exposto quando empreendida a análise de Jubiabá, o que está em

primeiro plano no universo literário amadiano não é a afirmação dos valores capitalistas de uma ordem burguesa

de mundo, mas o contraponto a esta configuração, daí a valorização do vagabundo, ou seja, daquele à margem

dos parâmetros sociais regulados pela burguesia. Além disto, o escritor baiano declara em entrevista a Raillard

(1990, p. 270): “[...] mas acho que sou, mais do que qualquer outra coisa, o romancista dos vagabundos e das

putas. Esta humanidade é a que tem mais peso em meus livros, talvez porque seja a mais abandonada, carente de

defesa na sociedade, carente de classe, de sindicatos. Não há uma classe nem de vagabundos nem de prostitutas.

Estas [...] são banidas da sociedade pelos regimes capitalistas, socialistas, feudais; são perseguidas em todos os

regimes, consideradas uma doença social. E os vagabundos também. São personagens que me apaixonam, trato-

os com cuidado especial em meu trabalho, e realmente estou próximo a eles. É por isso que eu gosto do livro que

intitulei Os Pastores da Noite”.

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a efígie de um cotidiano regulado por valores dimanados da amizade. Sem prescindir de focar

ainda a questão da amizade, uma vez que decorre justamente da necessidade de preservá-la

que Ogum resolve ser compadre de Massu, o sincretismo religioso, associado à mestiçagem, é

evocado na segunda narrativa, Intervalo para o batizado de Felício, filho de Massu e Benedita

ou O compadre de Ogum. A terceira narrativa, A invasão do morro do Mata Gato ou Os

amigos do povo, possui um tom mais político. Entrecortada por intensa ironia, situa a

formação de um bairro popular no Morro do Mata Gato, tomado por invasão, e descortina as

artimanhas e os estratagemas políticos de utilização da imagem do povo como formas de

manutenção e acréscimo de prestígio e poder. Note-se que esta é a única das três narrativas

que faz referência à amizade já no título, entretanto, é igualmente a única em que os laços de

afinidade são postos em cena ironicamente, significando antes o falseamento destas relações,

situação que deriva de finalidades meramente eleitoreiras. Tal ponto de corte que se instaura

entre o mundo das instituições burguesas e o seu avesso, o popular, denota as possibilidades

de união e solidariedade presentes entre os desbravadores do Mata Gato e alhures, mas

impossíveis em meio aos conchavos existentes entre governadores, prefeitos, deputados,

vereadores, bicheiros, jornalistas, policiais e respectivas esposas.

Em Os pastores da noite, a tensão interposta ao mundo popular e àquele cultivado

pelas elites e pela classe média – problemática na qual se baseia parte da literatura amadiana –

põe em constante relevo a ideia de amizade. Este ponto de divergência entre mundos não o é

sem motivos uma vez que, para Amado, a amizade corresponde ao “[...] sal da vida” (Os

pastores da noite, p. 96). Circunscrevê-la, portanto, ao âmbito das relações entre vagabundos

e prostitutas e torná-la tão somente aleivosia em meio aos mandatários da cidade conformam

artifícios amadianos para, a partir da amizade, engrandecer os habitantes do morro em

detrimento daqueles da “cidade” – talvez haja nesta característica um resquício daquele

maniqueísmo mais ou menos presente de Cacau a Os subterrâneos da liberdade, quando da

militância política a separar o futuro socialista do presente capitalista.

A constatação acima seria de pouca monta a uma investigação sobre a

(negro)mestiçagem na obra de Jorge Amado não fosse o escritor baiano ter conferido matizes

religiosos, sociais e históricos para o feitio e enraizamento destes inquebrantáveis elos de

amizade. Não se pretende, sobremaneira, nem com o enfoque dado e nem com a afirmação

última, propor que as relações de amizade sejam apanágio único de um povo, uma cultura ou

uma determinada condição social; muito menos que Amado assim as entendesse ou

vislumbrasse: a grande pluralidade de amigos arrolados pelo romancista baiano nas páginas

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de Navegação de cabotagem confirma o óbvio115

. Entretanto, talvez seja possível inferir, nos

contornos que delimitam tais laços, uma valorização não apenas da amizade, mas também – e

principalmente – dos sujeitos que compõem estas inter-relações.

Ao avançar na possibilidade expressa, é interessante atentar nas personagens que

figuram entre as páginas de Os pastores da noite – ou, pelo menos, naquelas que são postas

em maior evidência ao longo do romance. Há de tal forma uma convergência entre elas que se

pode mesmo designá-las como “[...] uma espécie de protagonista plural, um vasto coro em

que mal se destaca algum solista, tal a força da soma de todas as vozes” (MACHADO, 2006,

p. 80). É justamente deste “protagonista plural”, ou seja, desta coletividade social quase

individuada, que decorre uma imagem deveras significativa daquilo que se propõe ser a

mestiçagem amadiana:

Como dizia Jesuíno, pobre já fazia demais com viver, viver resistindo a tanta

miséria, às dificuldades sem fim, àquela extrema pobreza, às enfermidades, à falta

de toda assistência, viver quando já não existiam condições senão para morrer. No

entanto, viviam, era uma gente obstinada, não se deixavam liquidar facilmente. Sua

capacidade de resistência à miséria, à fome, às doenças, vinha de longe, nascera nos

navios negreiros, afirmara-se na escravidão. Tinham o corpo curado, eram duros na

queda (Os pastores da noite, p. 262).

A unidade deste “protagonista plural” é enleada em duas direções, quais sejam, uma

que se reporta ao passado e remonta à ascendência; outra que mira o presente e descreve o

cotidiano – uma diacrônica, outra sincrônica. A primeira esclarece acerca da origem e do

histórico comuns desta pluripersonagem, isto é, refere-se aos tumbeiros e à resistência diária e

secular empreendida contra a despersonalização oriunda tanto do sistema escravista quanto do

seu prolongamento pós-1888. A despeito das diferenças fenotípicas existentes entre os

habitantes do Mata Gato, pouco significativas para Jorge Amado, todos enformam, portanto,

115

A título de curiosidade, apenas: em Navegação de cabotagem, Amado relata um interessante conto georgiano

cujo tema é justamente a amizade. O conto faz referência a um arqueólogo que percorre o cemitério de Tblissi

fazendo anotações a respeito das datas de nascimento e morte, assim como das inscrições fúnebres das pessoas

ali sepultadas. O pesquisador notou, entretanto, que havia uma recorrente discrepância entre o período de vida

indicado pelas datas e aquele reportado pelas inscrições. As datas marcavam, às vezes, períodos longos de vida,

apesar das inscrições pontuarem apenas poucos anos. “De lápide em lápide constatou o absurdo: de todos se

dizia terem vivido um tempo bem menor que aquele delimitado pelas datas de nascimento e morte, todos à

exceção de dois defuntos, ambos em covas pobres, uma costureira Kátia dos Anzóis Carapuça, um carteiro de

segunda classe, Alexis Ignatiev, neles as datas quase coincidiam. Tomado de indignação o sábio dirigiu-se ao

zelador do cemitério, velho sem idade [...]. O velho tossiu, fitou o visitante, explicou: só se vive o tempo da

amizade, não sabia? O mais é tempo perdido, inútil e vazio, não é vida, apenas purgatório, quando não é

inferno” (Navegação de cabotagem, p. 546. Grifos do autor). Apesar das datas e inscrições coincidirem apenas

em covas pobres, o que denota a existência da amizade em espaços em que falta a dimensão da riqueza – o que

se explica por ser um conto com uma moral anticapitalista, dos tempos da extinta União das Repúblicas

Socialistas Soviéticas – o que sobressai como lição é menos uma ideologia socialista do que o valor inerente à

amizade.

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uma representação negra, quanto mais em face do embate contra os “[...] os brancos lá

embaixo, brancos de ricos e não de cor [...]” (Os pastores da noite, p. 268).

Esta diferenciação apresentada entre brancos e negros, como a associá-los

respectivamente a ricos e pobres, merece algumas considerações. Uma vez estudado o

romance Jubiabá e exposto o percurso que Baldo empreende de uma identidade negra para

uma identidade de classe, movimento em que se verifica um esvaziamento da primeira

identificação e a substituição dos parâmetros discriminatórios denunciados pelo romance, que

cambiam de “raça” para classe social, torna-se difícil não considerar a continuidade deste

pensamento em Os pastores da noite. Ainda mais quando, em entrevista a Alice Raillard

(1990), Amado discorre sobre o povo brasileiro e afirma que este é a própria negação do

racismo – o que não exclui que haja racistas no país – e que fica feliz do encaminhamento

dado a Jubiabá.

Nesta perspectiva, assim como na história de Antonio Balduíno, o vocábulo “negro”

acarretaria não um sentido estritamente racial, mas uma conotação de explorado em face do

branco explorador – imagem esplendidamente sintetizada por Caetano Veloso e Gilberto Gil

na letra de Haiti, canção que se refere a uma fila de soldados que, embora fossem quase todos

pretos, representavam a força mantenedora de uma ordem social branca, posto darem porrada

em malandros e ladrões tratados como pretos, “só pra mostrar aos outros quase pretos / (e são

quase todos pretos) / e aos quase brancos pobres como pretos / como é que pretos, pobres e

mulatos / e quase brancos quase pretos de tão pobres são tratados”.

Em geral, conceber as distinções entre brancos e negros nos parâmetros acima

enfraquece o teor majoritariamente racial da discriminação existente no Brasil para pensá-la

em termos econômicos, o que ocasiona a falsa sensação de uma sociedade para qual a

epiderme não produz sentidos negativos. Desta forma, não existiria a necessidade de um

combate sistemático ao racismo, apenas às desigualdades sociais – discurso político

implementado pelo Estado Brasileiro até o advento das políticas de ação afirmativa, cujas

discussões em torno de sua aplicabilidade/constitucionalidade seguiram-se ao período de

redemocratização do país, intensificando-se a partir de meados da década de 1990.

São inúmeras as entrevistas em que Amado declara ter se dedicado com afinco à luta

contra o racismo, a começar por aquela concedida a Raillard (1990), já tantas vezes citada.

Naquela conversa, o romancista justifica a honra do ingresso na hierarquia de vários Terreiros

justamente por ter defendido “[...] os direitos dos negros, do povo e dos candomblés. A luta

de toda minha vida contra o racismo [...]” (RAILLARD, 1990, p. 82). Em outro momento,

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interpelado pelo The Unesco Courier se o processo de mestiçagem ocorrido no Brasil teria

abolido o racismo, Amado responde:

Apenas celebramos o centésimo aniversário da Abolição da escravatura. Isto é para

dizer que há apenas cem anos negros ou principalmente negros eram ainda escravos.

As coisas têm progredido enormemente, mas ainda há muito a ser feito. A divisão

entre negros e brancos ainda coincide até certo ponto com a divisão entre os muito

ricos e os muito pobres, e isto não favorece o crescimento de sentimentos fraternais.

Isto significa que precisamos fazer tudo que pudermos via esforços políticos

democráticos, reforma social e ação cultural para resolver estes problemas e tornar

as pessoas mais próximas (THE UNESCO COURIER, 1989, p. 7)116

.

Noutra entrevista, desta vez para o jornalista Antonio Roberto Espinosa, publicada em

1981 na série “Literatura Comentada” da Editora Abril, Jorge Amado afirma ter descoberto o

problema racial no Brasil aos quinze anos, em 1927, quando passou a conhecer e a integrar-se

à vida popular baiana – reconhecimento que se deu em grande parte através da violência

contra as religiões de matriz africana. O escritor baiano é enfático:

Mas eu nunca tive dúvidas: o problema racial no Brasil é consequência do problema

social. Não existe um problema racial isolado do contexto social. Se você isolar, vai

errar na apreciação do problema e na busca das soluções. A solução não é você botar

os pretos e os brancos a se matarem entre si.

[...] Não há outra solução para o problema de raça no mundo senão a mistura. Não

há outra e, se alguém tiver, que me apresente... quero ver! Não é um racismo

diferente, seja racismo preto, seja racismo árabe ou judeu, que vai acabar com o

problema. Você não acaba com o racismo botando racismo contra racismo (JORGE

AMADO, 1981, p. 10).

Ao confrontar os dois últimos excertos transcritos, nota-se que há uma similaridade

em torno da vinculação do preconceito racial às profundas desigualdades sociais, o que, no

entanto, não impede que o autor reconheça a existência e atuação do racismo no Brasil, desde

que não seja considerado isoladamente. Esta visão da sociedade brasileira permite a Amado

imaginar o país como uma sociedade não racista: “Qualquer tendência para o racismo é

combatida por uma tendência geral para a mistura e o sincretismo. Em vez de ser

profundamente enraizado, institucionalizado e encorajado, o racismo tende antes a ser

116

“We have just celebrated the hundredth anniversary of the abolition of slavery. That is to say that only a

hundred years ago black or mainly black people were still slaves. Things have progressed enormously, but a lot

remains to be done. The white/black divide still coincides to some extent with the division between the very rich

and the very poor, and this does not exactly favour the growth of fraternal feelings.

This means that we must do all we can through democratic political struggle, social reform and cultural action to

resolve these problems and bring people closer together” (Tradução nossa para fins deste trabalho).

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neutralizado pelo movimento para a mistura” (THE UNESCO COURIER, 1989, p. 6)117

. Para

Amado, embora haja racismo no país, o Brasil não vivencia uma tendência estrutural para o

preconceito de raças – constatação que o autor sintetiza na entrevista concedida a Raillard:

Nos Estados Unidos há milhares e milhares de anti-racistas, talvez possamos até

falar em milhões, tanto entre brancos quanto entre negros. Mas há uma filosofia de

vida racista em todos eles. No Brasil é o contrário: há milhares e milhares, centenas

de milhares de racistas, principalmente nas camadas superiores da sociedade, mas o

povo, este, não é racista. Chamar o povo brasileiro de racista é uma ignomínia e uma

calúnia (RAILLARD, 1990, p. 93)118

.

Em suma, através da óptica amadiana é possível vislumbrar um Brasil pontilhado por

práticas racistas, vinculadas e norteadas pelas desigualdades sociais, mas cuja filosofia de

vida apontaria para o oposto, ou seja, ao invés da estrita separação racial, a forte presença da

mistura de povos, credos e culturas. Seria natural que despontasse desta perspectiva um

patente paradoxo, contudo, Jorge Amado parece querer alimentar uma compreensão ao

mesmo tempo totalizante e pontual do fenômeno do racismo119

. Totalizante uma vez que o

romancista pretende explicar o preconceito de raça como oriundo das desigualdades sociais,

nascido dos conflitos instaurados por uma sociedade que se organiza de forma excludente.

Assim, no interior de uma exclusão ampla, total, que opera uma clivagem entre o “muito rico”

e o “muito pobre” ganha relevo uma outra, específica e direcionada, que atua no

distanciamento do branco e do negro, ainda que à revelia da tendência natural do país como

produto da mestiçagem. Desta forma, conquanto seja um braço de uma exclusão maior, esta

sim de caráter estruturante, o racismo fomenta determinadas práticas cotidianas como a

perseguição religiosa, por exemplo, e possibilita a existência de “milhares e milhares,

centenas de milhares de racistas”.

Por outro lado, Jorge Amado tende igualmente a pensar o racismo de forma pontual.

Ou melhor, se o romancista apreende a exclusão de uma maneira unificada, totalizante, a ação

a ser empreendida em resposta às distâncias instauradas pelos preconceitos não é única, mas

vária – dupla, ao menos. Confrontando novamente as entrevistas publicadas pelo The Unesco

Courier e também pela edição sobre Jorge Amado da Coleção Literatura Comentada, observa-

117

“[...] any tendency towards racism is countered by a general tendency towards intermingling and syncretism.

Instead of being deep-rooted, institutionalized and encouraged, racism tends rather to be defused by the

movement towards mixing” (Tradução nossa para fins deste trabalho) 118

A mesma fórmula é repetida, com alguma modificação, à página 500 de Navegação de cabotagem. Há,

porém, uma variação interessante, não pelo que acrescenta, posto não acrescente nada, mas pela maneira

enfática, explícita, com a qual foi escrita. Após afirmar a impossibilidade de chamar o povo brasileiro de racista,

quando na verdade este seria própria negação do racismo, Amado completa: “Digo o povo, não incluo as elites”. 119

O vocábulo “pontual” aí empregado não se refere a uma concepção exata ou precisa do racismo por Jorge

Amado, antes evoca as acepções de “ponto” ou “tópico” a ser apresentado ou debatido.

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se que ambas apontam para encaminhamentos diferentes da questão mas, ao invés de

divergirem e se oporem, complementam-se. Na primeira, Amado aborda o racismo, mas

enfoca as desigualdades sociais. Solicita, então, “esforços políticos democráticos, reforma

social e ação cultural” como meios de combatê-las. Já na segunda, há uma inversão nos

termos discutidos: o problema social é trazido à baila, mas o foco recai sobre o preconceito

racial. Com a mudança de problema, também a solução aventada pelo escritor é outra: a

mestiçagem, a mistura120

. Dito de outra maneira: Amado se propõe compreender o racismo

não apenas em sua manifestação instantânea, mas em uma suposta outra origem, da qual se

ramifica e se define. Uma vez o fenômeno alcançado em sua hipotética natureza total,

compete enfrentá-lo de forma a atingi-lo igualmente no cerne e nas ramificações que,

porventura, hajam. É sob este aspecto, o do embate, que a compreensão amadiana do racismo

e, consequentemente, da exclusão assumem um caráter pontual, isto é, baseada em pontos de

ação contra os preconceitos.

Evidentemente, a mestiçagem por si só é incapaz de neutralizar um fenômeno tão

complexo quanto o racismo e pensá-la de forma contrária é atribuir natureza política a um

processo de cunho biológico/cultural. Em verdade, não faz qualquer sentido pressupor uma

ação benfazeja da mestiçagem contra as restrições de raça uma vez que, se assim ocorresse,

por lógica já não existiria racismo no Brasil. É preciso considerar, no entanto, que a visão

amadiana não é tão ingênua, nem tão simplista – embora permaneça falha. Ao vincular o

racismo às iniquidades sociais, concebendo-as como origem e cerne das injustiças de caráter

racial, a mestiçagem, ainda que investida de forte teor político, já não é suficiente para

erradicar os efeitos dos preconceitos de raça. Isto porque, na medida mesma em que ela

supostamente investisse contra o racismo, a organização desigual da sociedade brasileira,

mantida intacta, lhe travaria prontamente o ímpeto revolucionário. Para ser plena, a

mestiçagem amadiana necessitaria antes de medidas políticas com vistas a impetrar o

abrandamento das tensões sociais, bem como precisaria assegurar à personagem o processo

120

Convém ressaltar que na entrevista publicada pelo The Unesco Courier, o escritor Jorge Amado também

procura enfatizar a mestiçagem. Quando perguntado se a mistura seria a única solução para o racismo, o

romancista responde: “Absolutamente. Desde muito jovem eu tive que lutar contra uma variedade de injustiças e

preconceitos e, em particular, contra o racismo, que é sem dúvida o mais desprezível de todos os preconceitos.

Estou convencido que, a longo prazo, só existe uma única solução – absorver o racismo na mistura de raças”

(The Unesco Courier, 1989, p. 7). (“Absolutely. From a very early age I have had to fight against a variety of

injustices and prejudices and, in particular, against racism, which is without doubt the most contemptible of all

prejudices. I am convinced that, in the long run, there is only one real solution - to absorb racism in the mixture

of races”. Tradução nossa para fins deste trabalho). Cumpre ressaltar que, apesar da pergunta e da resposta

considerarem a mestiçagem como única solução para o racismo, não se encontra aí uma negação do proposto

como antídoto para o problema das desigualdades sociais, o que valida o argumento desenvolvido nesta

pesquisa.

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histórico – daí as personagens criadas por Amado constituírem seres que resistem e não

apenas se miscigenam.

Em suma, apenas quando houver uma significativa diminuição das distâncias sociais a

separar o branco e o negro, quando ambos estiverem próximos, do ponto de vista econômico,

a mestiçagem poderá, enfim, diluir o racismo. Não à toa, a mestiçagem redentora amadiana é

sempre um projeto de futuro, nunca uma realidade presente. Em tempos hodiernos, conquanto

não proscreva o racismo e discriminações outras, é de sua alçada promover e cultivar uma

consciência concomitantemente coesa e plural que Amado localiza entre os “muito pobres”

em franca oposição às quimeras de pureza e fidalguia dos “muito ricos”121

.

Eis, portanto, uma importante diferença entre os pensamentos amadiano e gilbertiano.

Como visto na primeira seção, Freyre advoga em Casa-grande & Senzala uma compreensão

da mestiçagem como processo histórico contínuo que já teria corrigido as distâncias existentes

entre a casa-grande e a senzala, entre o branco e o negro. Para Amado, no entanto, as

distâncias sociais são flagrantes e é justamente o povo oprimido o protagonista da obra que o

baiano logrou erigir. Amado concorda com a investidura redentora sobre a mestiçagem

proposta por Freyre, toma-a como solução para o racismo, mas a projeta em um porvir

indefinido, no qual as distâncias sociais entre o rico e o pobre já não sejam operantes. É, pois,

a sua utopia.

É de se considerar ainda que a ideia de mestiçagem para o romancista baiano é de

feição muito mais cultural do que estritamente racial – neste sentido, define antes uma cultura

mestiça, a partir da qual nasceria um povo também mestiço, do que propriamente o inverso.

Povo, portanto, para além da definição sociológica que se depreende da leitura de Amado,

qual seja, a de grupos sociais à margem, é caracterizado principalmente pela cultura que o

lastreia. É, pois, justamente a partir desta primazia cultural que a literatura amadiana busca

descrever e projetar um povo especial, posto que uno e diverso: um amálgama de

alteridades122

. Visto de longe, este povo constitui algo uniforme, mas, se observado

atentamente, de perto, estrutura-se em torno de uma unidade baseada na manutenção e no

121

Coesa por se tratar de uma consciência que unifica o povo amadiano em torno de uma identidade, a

negromestiça; plural por não ser esta uma identidade excludente, mas aberta às alteridades. 122

Sobre este aspecto, Machado (2006, p. 139) pontua: “Jorge Amado não está pregando em sua obra uma

mestiçagem apenas física, nem tampouco fazendo uma celebração adocicada das violências sexuais de senhores

contra escravas culminando numa „mulatice‟ pitoresca – ou em suas continuações e permanências na sociedade

brasileira contemporânea. Fala de outra coisa. O romancista baiano parte da constatação de nossa incontestável

mistura étnica, para então discernir a mestiçagem cultural como um traço essencial de nossa identidade. Sua

utopia defende a abolição do domínio exercido pelo erudito sobre o popular, recusa a autoridade calcada na

hierarquia, mas propõe em seu lugar o reconhecimento, a incorporação respeitosa e a fusão das diferentes

contribuições culturais dos tantos plurais que constituem o Brasil”.

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respeito às idiossincrasias – modelo cujo exemplo mais explícito talvez seja o romance Tocaia

Grande, de 1984.

Sem adentrar mais profundamente na discussão desta obra, é importante destacar o seu

teor de narrativa fundacional, como Quintana (2001, p. 108) salienta: “[...] esta novela

muestra que precisamente la fundación del país se debe a este mestizaje, sin ella Brasil nunca

hubiera surgido como nación […]". Sobre este mesmo livro, cabe ainda reproduzir um

comentário de Ana Rosa Ramos (2004, p. 94) que, por mais não seja, ajusta-se também a Os

pastores da noite: “Tocaia Grande [...] não se define [...] pela conformidade a um modelo

predeterminado – um modelo de alto para baixo – mas pela vontade dos sujeitos de se

afirmarem e de se representarem, a si próprios”123

.

Cumpre agora retomar o ponto inicial desta digressão, ou seja, o trecho transcrito de

Os pastores da noite em que o narrador considera os mandatários da cidade como brancos por

serem ricos, não exatamente pela cor que ostentam. Cogitou-se, em face daquela passagem,

que as perspectivas presentes nos romances Os pastores da noite e Jubiabá seriam, de alguma

forma, parelhas. Há em ambos, sem dúvida, certa semelhança no que concerne a pensar os

sentidos sociais de “branco” e “negro” a partir de uma clivagem econômica, o que suscitou a

hipótese. Contudo, no romance de 1964 esta perspectiva é muito mais nuançada e flexível do

que aquela presente na história de Baldo.

Em Jubiabá, por exemplo, tal “verdade” assume uma feição nítida de ideologia

política para a qual não há negros e brancos, apenas ricos e pobres distanciados pela ação

nefasta do capital. Como visto na seção anterior, o radicalismo que permeia este pensamento

conduz à negação da própria identidade negra, tornada de classe. Assim, por mais que em

cerca de 90% de sua narrativa Jubiabá possa ser considerado um romance “racial”, voltado

123

Em Tocaia Grande, Jorge Amado se propõe “[...] descobrir e revelar a face obscura, aquela que foi varrida

dos compêndios de história por infame e degradante; [...] descer ao renegado começo, [...] capaz de enfrentar e

superar a violência, a ambição, a mesquinhez, as leis do homem civilizado” (Tocaia Grande, p. 13). Para tanto,

narra a fundação e o crescimento da cidade de Tocaia Grande, processos que se irmanam à afluência de povos

distintos para a localidade, como em uma grande alusão ao processo formativo da nação brasileira. Entretanto,

mais do que um olhar retrospectivo, o romance se caracteriza pela projeção futura das relações narradas no

passado: mais do que afirmar “o Brasil é assim”, Amado parece afirmar “o Brasil poderia ser assim” – Olivieri-

Godet (2009, p. 76) destaca: “Tocaia Grande é alimentada pela utopia da transformação social que projeta um

espaço identitário coletivo no qual cada indivíduo possa se reconhecer”. A matriz negra em Tocaia Grande é

representada por Castor Abduim, também chamado Tição Aceso, Tição Abduim ou apenas Tição. Sobre esta

personagem, novamente Olivieri-Godet (2009, p. 79): “[Tocaia Grande constitui um] Canto épico de uma utopia

de descolonização [...] para figurar as múltiplas facetas de um quotidiano no qual sobrevivem as crenças e os

códigos culturais mais diversos. O universo romanesco amadiano constrói o projeto utópico de um território

culturalmente heterogêneo, solidário e inclusivo. Tição Abduim encarna esse ideal, sendo apresentado como uma

figura central no processo de transformação da comunidade”.

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para discutir a exclusão da presença africana na sociedade baiana, em suas páginas finais o

romance opera um esvaziamento desta perspectiva: o trabalhador açambarca o negro124

.

Já para o escritor de Os pastores da noite, quase trinta anos mais maduro, apesar do

racismo continuar a ser pensado como um braço da problemática social brasileira, ainda assim

é pelo nome de “racismo” que atende. Em outras palavras, o abandono da diretriz político-

ideológica, que marca os primeiros romances de Amado, possibilita ao grapiúna maior

acuidade na observação dos fatores que tangenciam a exclusão no Brasil de tal modo que ao

invés de se perceber uma negação da identidade negra na construção das personagens,

observa-se o inverso: o realce da ascendência africana, a identificação com os valores

dimanados da cultura negra e, principalmente, uma resistência à capitulação que brota

precisamente destas características – daí a importância do aspecto diacrônico deste

“protagonista plural”.

Já uma segunda diferença em relação às teses gilbertianas pode ser formulada: em

Jorge Amado, principalmente nos livros escritos a partir de Gabriela, a representação do

negro ou do mestiço é sempre traçada de acordo com o objetivo de ressaltar os aspectos de

heroicidade, resistência e insubmissão em face de uma ordem social excludente. Ora, por mais

que pontue aqui e ali exemplos de revolta contra a escravidão, não é exatamente esta a

imagem que Freyre evoca do negro, senão a de alguém conformado e adaptado ao cativeiro,

docilmente submisso ao senhor. Se cotejadas as duas imagens provenientes da representação

do negro, é possível observar dessemelhanças não apenas no que significam como texto, mas

também no que enunciam como fragmentos de processos históricos. Assim, o negro

gilbertiano chancela a ordem colonial para além da condição de Colônia, mantém o poder das

aristocracias e enaltece a história escrita unicamente por mãos brancas. Em Amado, o oposto.

Percebe-se a contestação desta história branca e excludente e, por conseguinte, a tentativa de

estabelecer um novo ponto de vista calcado não nas narrativas da elite nacional, mas nas

populações que vivem nas margens sociais. Trata-se de uma “[...] visão descentrada, que vem

de baixo e da margem, em oposição à perspectiva centralizante, que tenta se impor com força

124

O antropólogo e babalorixá Julio Braga (2006, p. 29) alerta para o perigo de certas expressões que se referem

ao negro e à sua cultura, entre elas a utilizada neste texto, “presença africana”. Segundo o pesquisador: “[...] há

de se suspeitar de conceitos, como „contribuição africana‟ e seus derivados, „o negro no Brasil‟, „a presença

africana‟, „o legado africano‟ [...], tão presentes em textos academicamente elegantes [...]. Eles parecem

comportar, ainda que de maneira subliminar [...] um certo sentido de diminuição, de menor importância ou

menosprezo ao peso das culturas africanas [...] que entraram e garantiram o processo civilizatório brasileiro”.

Cabe, pois, a advertência: o sentido que a expressão “presença africana” tem neste trabalho não é diminuir ou

diluir os processos civilizatórios negros na constituição de uma “civilização africano-brasileira” (LUZ, 2000),

mas o oposto, isto é, evidenciar a pujança destes valores na configuração do Brasil, não obstante as narrativas

oficiais da nação os reduzam a mera „herança‟ ou simples „folclore‟.

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vinda do alto e se aglutina em torno de um pilar de sustentação que se pretende axial e

pivotal” (MACHADO, 2006, p. 129).

Noutra visada, a abordagem sincrônica deste povo descrito em Os pastores da noite,

além de evidenciar a exclusão vivenciada de uma forma enfática na terceira narrativa a

compor o romance, traz também à baila quais os valores que alicerçam as relações e o

cotidiano desta população. E é justamente neste ponto que se fortalece a hipótese de uma

negromestiçagem em detrimento de mestiçagem, apenas. Cumpre, portanto, compreender

estes valores:

[...] O importante era ir vivendo, não se deixar abater nem entregar-se à tristeza.

Riam e cantavam, num dos barracos estava funcionando uma gafieira, a Gafieira da

Invasão, com animados bailes aos sábados e aos domingos, jogavam capoeira pelas

tardes, saudavam seus orixás nas noites de festa, cumpriam suas obrigações de santo

(Os pastores da noite, p. 263).

Manzatto é certeiro ao assinalar as personagens amadianas como seres festivos.

Segundo o autor, o “[...] homem amadiano é um homem alegre, sempre disposto à festa, à

música, à dança e à comida, como forma de celebrar a vida. Essa alegria vem do simples fato

de estar vivo e do prazer de viver” (MANZATTO, 1994, p. 211). Escapa ao autor, entretanto,

que os elementos por ele destacados não derivam apenas do “simples fato” exposto, embora

dele não prescinda. Ademais, a dança, a música e a comida, numa palavra, a festa

correspondem a valores sagrados do candomblé, portanto estruturantes da vivência

religiosa.125

Nesta perspectiva, a pesquisa empreendida por Amaral (2005) acerca dos sentidos

atrelados à festa no candomblé é esclarecedora. Segundo a antropóloga:

[No caso do candomblé] festa e religião se confundem, expressando sua estrutura

comum através dos eventos que marcam seu acontecimento. Festa e candomblé são

sinônimos, expressando-se um no outro. A festa é estrutural.

[...] Quando a festa é estrutural, caso do candomblé, ela impregna a visão de mundo

de modo total, implicando um estilo de vida marcado pelos valores festivos, como o

ludismo, o dispêndio, a alegria, a sensualidade, a transgressão, etc. que se expressam

também fora do terreiro (AMARAL, 1994, p. 110).

Conforme afirma Marinho (2010, p. 171), a vida “[...] é pra ser vivida com plenitude,

harmonia e alegria, o que explica tanta festa, tantas comidas e bebidas no âmbito religioso do

candomblé. A vida deve ser uma celebração contínua: o céu, o nirvana, é aqui e agora”. 125

Manzatto (1994, p. 213) aponta uma outra leitura para a importância da festa na obra amadiana: “A festa liga-

se com o futuro na medida que anuncia, celebra e constrói a utopia de um mundo diferente, no qual os homens

não serão mais discriminados, marginalizados ou oprimidos, mas todos verão e viverão a igualdade proclamada;

no qual as pessoas não serão condenadas a viver na tristeza causada pelo sofrimento, pela dor, pela

discriminação ou pela miséria, mas poderão viver a alegria da partilha, da igualdade e da fraternidade”

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O fragmento transcrito de Os pastores da noite apresenta, pois, duas dimensões de

festa: uma sagrada, outra mundana; uma reflete o compromisso religioso, a outra o

compromisso com a vida, com o prazer. Em termos estritamente ocidentais, poder-se-ia falar

que a primeira estaria relacionada ao espírito, à alma, enquanto a segunda, com o corpo –

como se alma e corpo fossem instâncias diferentes, divergentes e mesmo anulatórias entre si.

Do ponto de vista do candomblé, entretanto, há uma relação de complementaridade ou mesmo

uma imbricação entre corpo e alma, de modo que não existe a negação de um no outro. Em

verdade, um se afirma no outro: o corpo físico é, em larga medida, a expressão do Sagrado. É

através do corpo que o orun, o outro mundo, e o aiyê, este mundo, confluem para a dança de

um orixá. Não à toa, o poeta negro Éle Semog (1998, p. 57) tenha escrito: “Quando eu danço /

atabaques excitados, / o meu corpo se esvaindo / em desejos de espaços, / a minha pele negra /

dominando o cosmo, / envolvendo o infinito, o som / criando outros êxtases... / [...] O meu

corpo não é objeto / sou revolução”126

. A dança, portanto, no contexto da festa sagrada, do

xirê, unifica mundos, espaços e tempos: orun e aiyê; África e Brasil, tempo mítico e tempo

presente. O comunicólogo e Obá de Xangô n‟Ilê Axé Opo Afonjá Muniz Sodré afirma:

A festa destina-se, na verdade, a renovar a força. Nas dança (sic), que caracteriza a

festa, reatualizam-se e revivem-se os saberes do culto. A dança, rito e ritmo,

territorializa sacralmente o corpo do indivíduo, realimentando-lhe a força cósmica,

isto é, o poder de pertencimento a uma realidade integrada. Além disso, graças à

intensificação dos movimentos do dançarino na festa, espaço e tempo tornam-se um

único valor (sacralização), e assim autonomizam-se, passando a independer daquele

que ocupa o espaço. A dança é propriamente integração do movimento ao espaço e

ao tempo (SODRÉ, 2002, p. 136).

Desta confluência de tempos e espaços, na qual se reafirma a complementaridade entre

corpo e alma, ser humano e orixá, decorre a expansão de axé, força vital, e de aiyó, ou seja, da

alegria, uma vez que se acredita no potencial benfazejo de tudo o que se faz alegremente, em

oposição à capacidade inerente à tristeza em dirimir e desequilibrar. A festa, com suas

músicas e danças, portanto, sintetiza este “viver no mundo” a partir de um “entender o

mundo” baseado no princípio da alegria, suporte indispensável à vida. Não é outra, pois, a

razão pela qual, nos versos da canção Odara, Caetano Veloso explicita a necessidade de

126

Importante salientar que o uso da expressão “poeta negro” para referenciar Éle Semog não ocorre por intentar

reduzir o alcance de sua poesia, mas por uma marcação identitária e política, ambas afirmativas, a exemplo do

que ocorre com a série Cadernos Negros e o conceito de literatura negra ou afro-brasileira.

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cantar e dançar para que corpo, cara, cuca e mundo fiquem odara – palavra iorubá que

designa tudo aquilo que é igualmente belo e bom (LUZ, 2000)127

.

Postas lado a lado, a gafieira e a festa do candomblé informam uma existência em que

corpo e alma não se anulam, antes se complementam. A Gafieira da Invasão seria, assim, a

continuidade do princípio da alegria, sua expansão. Desta forma, age no sentido de

impulsionar os habitantes do Mata Gato para a vida, não obstante a miséria em derredor os

impila à morte. Prenhe dos sentidos oriundos da religiosidade afro-brasileira, o riso e a festa,

quando imersos no contexto de exclusão, passam a significar também a resistência, como

deixa entrever o próprio Jorge Amado em entrevista publicada pelo site PenAzul:

Dificilmente você verá um povo mais sofrido – que vive numa situação tão de

miséria, tão de opressão – do que o nosso. Existe, por exemplo, a Índia. Eu conheço

a Índia. A situação é semelhante, mas, qual é a diferença? É que o povo brasileiro

não está vencido. O povo de lá não tem nenhuma esperança; e ele está lá esmagado

dentro daquela coisa religiosa, tremenda, o fanatismo, que é tudo voltado para a

morte... e aqui o nosso povo? O nosso povo está voltado para a vida.

Foi a África que nos deu isso, foi o negro que nos deu esta força vital que ele tem. O

português é melancólico, o europeu em geral é voltado muito mais para a morte do

que para a vida. O próprio indígena é meio assim. Mas, o negro, esse não, esse era

voltado para a vida, e chegou aqui como escravo, quer dizer, na pior das condições

humanas, né? E, no entanto, resistiu. Lutou desde o momento que o primeiro negro

desembarcou do navio negreiro no Brasil, ele lutou contra a escravidão...

(PENAZUL, s.d.).

Eis o ponto em que os universos narrados em Mar morto e em Os pastores da noite ou

Tenda dos milagres se aproximam. Embora a dimensão da festa não esteja tão presente no

primeiro romance, a inabalável fé dos marítimos em Iemanjá é seguida por um enredo em que

a mitologia afro-brasileira exerce um papel central, como visto na seção anterior – o que

configura uma primeira enunciação de um ”representado autônomo”, isto é, uma criação em

que os valores culturais daquele que é narrado não cedem aos daquele que narra128

. Ora, em

Os pastores da noite, não são outros os valores a sustentarem a narrativa senão os da

população negromestiça da Cidade da Bahia: a fé nos orixás, a alegria decorrente desta fé e a

127

Em outro trabalho, Luz (2011, p. 129) detalha: “A categoria de odara, em língua nagô, quer dizer bom e

bonito simultaneamente, indissoluvelmente. Nesse sentido, tudo que presta deve ser belo: a técnica está

interrelacionada com a estética. Assim, nosso povo está sempre atento ao efeito estético, pois a beleza ajuda a

interação com as entidades, agradando-as e facilitando os ritos que proporcionam a fluidez do axé. A

comunidade reunida, re-ligada, compartilha com as entidades o conhecimento e a emoção proporcionados pela

atmosfera sagrada. A alegria desses momentos fortalece a todos, odara” (Grifos do autor). 128

O conceito de autonomia do representado, utilizado na seção anterior para a leitura da fase política-

ideológica de Amado talvez não faça sentido em obras como Tenda dos milagres e Os pastores da noite, uma

vez que já não há qualquer atrito entre os valores de Amado e do universo cultural que ele pretendeu narrar. Em

romances como Suor e Jubiabá, por exemplo, valores culturais negros são criticados ou, então, deixados de lado

por personagens negras em prol de um pensamento que não brota do seio da narrativa, mas que lhe é imposto de

fora para dentro, da ideologia do autor. Daí a importância e o destaque a ser dado a Mar morto.

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capacidade de resistir aos infortúnios que delas dimana. Não sem motivo, Zuenir Ventura

(2009, p. 296), em posfácio à edição organizada pela Companhia das Letras, ressalta: “[...] Os

pastores da noite já foi definido como o romance em que o negro luta por seu lugar na

sociedade e, principalmente, pelo direito a uma religião própria”. Da mesma forma, Nunes

(1973, p. 96) pondera que o romance talvez se constitua: “[...] na mais detalhada elaboração

de aspectos da religião africana na literatura”129

.

Há ainda outro aspecto presente em Os pastores da noite que igualmente evidencia

uma estrutura baseada em princípios do candomblé: as hierarquias religiosas. Há na

religiosidade afro-brasileira uma hierarquia que se organiza, por um lado, a partir do princípio

de senioridade e, por outro, por meio da disposição de cargos a serem desempenhados por

aqueles vinculados ao Terreiro – condicionamentos que não necessariamente coincidem, uma

vez que uma ebômin pode ascender à iyalorixá sem, contudo, ser a mais velha entre as

ebômin130

.

Em Os pastores da noite, a despeito do “protagonista plural” proposto por Machado,

há momentos em que, instaurado um ou outro conflito, uma ou outra dúvida, elevam-se

personagens cujas vozes assumem um caráter de absoluto, de inquestionável: Doninha,

iyalorixá do Axé da Meia Porta e Jesuíno Galo Doido, obá de Xangô.

Doninha assume posição de realce na segunda narrativa, O compadre de Ogum,

enquanto Jesuíno Galo Doido, espécie de líder da horda de vagabundos da Bahia, destaca-se

principalmente na terceira, Os amigos do povo. Se bem observadas, ambas as personagens

representam a união dos princípios baseados na senioridade e hierarquia interna ao Terreiro.

Doninha é a iyalorixá, a senhora de todo saber, conhecedora de todos os mistérios, aquela que,

por sua posição, “[...] exerce toda a autoridade sobre os membros do grupo – em qualquer

nível de hierarquia – dos quais recebe obediência e respeito absolutos” (LIMA, 2006, p. 80).

Por sua vez, Jesuíno, cujos cabelos brancos denunciam o passar dos anos, é um dos obás de

Xangô no Axé da Meia Porta, “[...] um alto posto, honraria das maiores” (Os pastores da

noite, p. 147). Doninha é solicitada a intervir quando da necessidade em intermediar a decisão

de Ogum em relação ao drama vivido por Massu, descendente mítico do orixá, ou seja, a

problemática em torno da escolha de um padrinho para Felício, filho de Massu e Benedita.

Neste contexto de ampla apreensão, uma vez que todos pleiteavam a honra de ser o escolhido

129

“[...] the most detailed elaboration of aspects of African religion in the literature” (Tradução nossa para fins

deste trabalho). 130

Importante salientar que o referido princípio de senioridade não está vinculado estritamente à idade da pessoa,

mas à sua idade no santo, isto é, a quantidade de anos passados desde que alguém se submeteu aos processos de

iniciação do candomblé. Contudo, qualquer pessoa de idade, seja ela de santo ou não, merece o respeito e a

admiração por representar o saber, senão o específico da religião, aqueles que os anos vividos ensinaram.

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– ainda mais que o seria por voz do orixá – a comunicação feita por Massu aos amigos da

aparição de Ogum ao Sol de meio dia, em plena via pública, para comunicar-lhe que ficaria

sob sua responsabilidade a escolha do padrinho ocasiona certa tensão:

Massu concluía sua narrativa satisfeito: Ogum decidiria sobre o padrinho para o

menino e quem quisesse fosse discutir a escolha feita pelo poderoso orixá, só

maluco o faria, Ogum não é santo de sofrer desfeita.

Houve um silêncio pleno de concordância e respeito mas também de mudas

interrogações. Não teria sido tudo aquilo montado pelo cabo Martim, não teria ele

convencido o bom negro Massu daquela estranha visão ao meio-dia com música de

macumba e o santo dançando em plena via pública? Martim era um tipo cheio de

malícia e picardia, podia aquilo ser um plano bem arquitetado: na primeira visão,

Ogum prometia resolver o problema, numa segunda, novamente sem a presença dos

demais, Ogum – um Ogum de fancaria, existindo só na imaginação do negro,

cutucada pelo cabo – declararia ter escolhido Martim para padrinho. Os olhares iam

de Massu a Martim, inquietos, sem esconder as suspeitas. Por fim, Jesuíno tomou a

palavra:

- Quer dizer que Ogum vai escolher? Ótimo. Mas como é que vai ser? Ele disse pra

tu ir procurar ele. Onde? Como tu vai fazer?

- Consultando quem pode me esclarecer. Já fui, hoje mesmo.

- Tu já foi? – na voz de Galo Doido soava o alarma. – Quem foi que tu consultou?

Teria sido o próprio Martim ou a algum industriado pelo cabo?

- Fui ver mãe Doninha, mas ela estava ocupada, não pôde me atender, só amanhã.

Jesuíno respirou, aliviado, os demais também. Mãe Doninha estava acima de toda e

qualquer suspeita, merecia absoluta confiança, quem ousaria sequer levantar a

menor dúvida a respeito de sua honorabilidade, sem falar nos seus poderes, em sua

intimidade com os orixás? (Os pastores da noite, p. 148).

Para melhor compreender a imprescindível atuação da iyalorixá Doninha neste

contexto é necessário retornar ao tema da amizade, comentado às primeiras páginas desta

seção – espécie de introito à abordagem aqui empreendida.

Como já se observou, o universo narrado compartilha da mesma história, uma

linhagem que remonta aos navios negreiros, e dos mesmos valores, aqueles relacionados ao

candomblé. Eis, portanto, que os elos de amizade nascem e se fortalecem tendo como base

este mesmo grupo de fatores. A interpretação sugerida ganha relevo à medida que os laços de

amizade se revelam também como ligações familiares que, a despeito da não-

consanguinidade, fundam-se a partir dos parâmetros reconstituintes da ancestralidade

africana: uma família que se origina na religião, com pais, filhos, tios e irmãos no santo, ou

seja, no orixá, na fé e na identidade em comum. A respeito dos sentidos oriundos desta noção

de família, Braga afirma:

[...] o candomblé permite, no plano religioso, a reinvenção da família, agora

estruturada a partir dos elementos africanos aqui aportados que se interligam com

outras estruturas, para produzir um ambiente que, de certa maneira, se aproxima ou

lembra a organização das comunidades tribais. [...]

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Nesse sentido, podemos afirmar que o candomblé restaura, de alguma maneira, a

noção de territorialidade africana, agora transmudada em afro-brasileira, na qual é

possível descortinar, no cotidiano da vida comunitária, um nítido sentimento de

recuperação do elo perdido com as comunidades de origem e, com isso, a formação

de uma família capaz de reforçar a identidade negra de quem a ela pertence pelos

laços da iniciação religiosa ou por outro qualquer elo de afinidade identitária

(BRAGA, 2006, p. 45).

Tome-se, por exemplo, o dilema de Curió, encenado na primeira narrativa, Curió, o

romântico, e as desilusões do amor perjuro. Conta-se, nesta história de Os pastores da noite,

o retorno de cabo Martim à Cidade da Bahia, da qual fora obrigado a sair por causa de três

sertanejos que, inconformados com a sorte no baralho, juravam vingança ao cabo. Isolara-se

no Recôncavo, garantira a integridade física, mas se privara forçadamente do contato com os

amigos, das festas e obrigações do candomblé – deixara o seu território. Lá, o incorrigível

sedutor131

conhecera Marialva, que “[...] gostava de mandar nos homens, dominá-los, vê-los

rendidos a seus encantos, suplicantes. [...] Sugava-os depois, tirava-lhes a vontade e a decisão,

para largá-los como bagaços quando [...] tudo já lhe haviam entregue, até sua consciência de

homens” (Os pastores da noite, p. 69)132

. Aproveitando-se do estado vulnerável em que se

encontrava, por assim dizer, o desterritorializado cabo Martim, Marialva o sujeitara às belezas

e aos encantos dos quais era dotada. A notícia do casamento de Martim não demorara a

atravessar a Baía de Todos os Santos e atracar no velho cais do porto, em Salvador, onde,

apesar de causar espanto e incredulidade, a história logo seria confirmada com a chegada do

casal após alguns dias. É no retorno à Bahia, aos amigos e às obrigações religiosas, que

Martim recupera a “consciência de homem” outrora subjugada por Marialva. Com a mudança

repentina do cabo, Marialva pressente seus planos arruinados. É quando nota os olhos

lânguidos de Curió, avesso de Martim: apaixonado, romântico e, por isso, um fracasso com as

mulheres. Marialva, então, começa a dissimular uma paixão incontrolável por Curió, que

131

“O sapateiro, avisado por uma vizinha assanhada, solteirona, é claro, fora encontrar sua esposa na cama com

Martim, e esquecida das obrigações familiares, em plena tarde de dia útil. [...] Os vizinhos impediram desgraça

maior: o sapateiro querendo matar a mulher, suicidar-se, necessitando de sangue para lavar os chifres. Com tanta

balbúrdia, acabaram todos na polícia e saiu notícia nos jornais, na qual o cabo Martim era tratado como „o

sedutor‟. Ficou Martim muito vaidoso com esse qualificativo, guardou o recorte no bolso para exibi-lo” (Os

pastores da noite, p. 58). 132

Talvez seja possível traçar comparações dos embates Martim-Marialva e Pedro Archanjo-Iaba, em Tenda dos

milagres, com Marialva assumindo o papel daquela que planejava submeter a todos os homens. Ambas falham

no intento. Serra (1995) contribui valorosamente para a leitura destas passagens ao classificá-las como uma

versão amadiana do velho mito da “domesticação” das mulheres pelos homens, mitologia esta presente em

muitas culturas. Por este motivo, ter-se avisado anteriormente que não se analisaria a representação das mulatas,

uma vez que, de modo geral, o ponto crítico da obra amadiana não se refere à cor, mas, talvez, ao gênero – o que

também não elimina a possibilidade das personagens femininas serem analisadas pela ótica da ruptura, como

bem aponta Constância Duarte (2004, p. 167): “Ao mesmo tempo em que endossa estereótipos [...] ele [Amado]

aponta para um mundo em transformação no que se refere às relações homem e mulher. No romance de Amado

[Gabriela], temos, portanto, com muita competência uma amostra de como a mulher passa de objeto a sujeito de

sua própria história, e também do processo cultural da construção do conceito de gênero”.

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corresponde. Eis o dilema instaurado e a razão para o amor perjuro, aquele amor que, ao

brotar, trai os votos sagrados da amizade.

Os laços que ligam Curió e Martim, que os fazem tão próximos e inseparáveis,

explicam-se naturalmente pelas relações construídas no âmbito da boêmia soteropolitana, de

bar em bar, castelo em castelo, pastoreando todas as noites, mas não somente. Há, entre

ambos, outro tipo de vínculo, uma relação de axé, são irmãos de santo:

Sua amizade [de Curió] com Martim remontava a um passado de anos, quando

Curió, menino novinho, pedia esmola nas ruas e se misturara aos capitães da areia.

Martim ocupava posto de destaque entre os capitães da areia e estendera sua mão

protetora sobre o novato, impedindo perseguições e abusos de parte dos mais velhos.

Depois, rapazolas, quando iniciavam-se na vida e no candomblé, descobriram-se

serem ambos de Oxalá, Martim de Oxalufã, Oxalá velho, Curió de Oxaguiã, Oxalá

moço. Juntos fizeram bori mais de uma vez, a mãe de santo derramando o sangue

dos animais sacrificados sobre suas cabeças, o mesmo sangue a limpar um e outro.

Juntos, certa feita, ofereceram um bode ao orixá, dividindo as despesas. Como então

podia deitar com a mulher de Martim, mesmo sofrendo por ela paixão alucinada?

Não, Martim para ele era sagrado, preferia matar-se e matar Marialva (Os pastores

da noite, p. 109).

“Martim para ele era sagrado”, frase que resume e revela. Em artigo sobre iaôs,

pessoas que já passaram pelos ritos de iniciação sem, contudo, terem completado ainda as

obrigações de sete anos, quando passam a ser consideradas ebômin, literalmente “[...] meu

irmão – ou minha irmã – mais velho(a)” (LIMA, 2006, p. 101), Cossard afirma:

Através das provações em comum, o barco forjou ligações sólidas. Possui pequenos

segredos, unidade e solidariedade. Um interdito muito rigoroso, que proíbe

quaisquer relações sexuais entre os membros do mesmo “barco”, depura esta

amizade de todo e qualquer equívoco. [...]

As iaôs do “barco” comem, cozinham e dormem juntas. Se um dos membros

encontra-se em situação difícil, é para o seu “barco” que ele se volta (COSSARD,

2006, p. 144)133

.

Lima (2006) aponta algumas distinções entre os termos “irmãos-de-santo”, “irmãos-

de-axé” e “irmãos-de-barco”. A primeira categoria reúne aqueles que são iniciados por uma

mesma iyalorixá, enquanto a segunda refere-se a todos iniciados em um mesmo Axé, ou seja,

vinculados a um mesmo Terreiro. “Irmãos-de-barco”, por sua vez, relaciona-se àqueles que se

submeteram à iniciação conjuntamente, em um mesmo barco. Lima discorre:

[Os irmãos-de-barco] Foram iniciados juntos. Recolhidos na mesma época. Deram o

nome na mesma festa. E, decerto, liberados, também, na mesma ocasião, para a vida

secular que os esperava. Tiveram longos dias de intimidade, de confidência e

133

Segundo Lima (2006, p. 93), “barco” designa “[...] o grupo de iniciação [dos] aspirantes de um terreiro”.

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certamente de tensões e de reservas. Têm, assim, um laço mais íntimo e porventura

mais efetivo na rede dos deveres e das expectativas que é a vida de santo (LIMA,

2006, p. 97. Grifos do autor).

A dimensão de “sagrado” que envolve a amizade de Curió e Martim identifica-se com

os ritos da religiosidade afro-brasileira, o que vem a significar uma relação que dimana não

apenas do cotidiano mundano, mas da vivência, da partilha e da expansão de axé134

.

A paixão avassaladora que toma o peito de Curió, alimentada constantemente por um

jogo de negações em que ora Marialva, ora o próprio Curió alargavam ou diminuíam os

limites permissíveis de abraços, beijos e palavras, faz com que o enamorado, uma vez

impelido pelas súplicas dissimuladas de Marialva, decida expor a Martim a intenção de tomá-

la para si. A partir desta decisão, Curió sofre ao imaginar a reação do amigo/irmão, laço para

sempre rompido, enquanto Marialva exulta diante da certeza do final planejado: Martim aos

seus pés, subjugado, implorando para que ela ficasse, que não fosse com Curió. Marialva,

vitoriosa e triunfante, poderia, enfim, escolher entre um e outro.

Vestido, nos limites dos parcos recursos, como em dia de grande solenidade, Curió

adentra a casa de Martim e Marialva pontualmente às dez horas, horário estipulado por ela,

que o anuncia ao cabo:

- Senta aí, mano, vem comer uns bagos de jaca. Tá suculenta.

Curió aproximou-se no mesmo passo medido, o rosto funéreo, uma postura enfática,

quase majestosa. [...] Martim provava um bago de jaca, o perfume enchia a sala,

quem podia resistir a esse cheiro? Curió resistia, impávido. [...]

- Aconteceu alguma coisa?

- Não, nada... Tava querendo lhe falar. Para resolver um assunto...

- Pois tome assento e vá falando que estando em minhas mãos tu tá servido...

- É troço sério, é melhor esperar que tu acabe...[...]

- Tu parece até que engoliu uma vassoura... Pois tá certo, a gente primeiro dá conta

da jaca, depois conversa... Senta aí e mete os dedos...

Por entre os dedos do cabo, o mel da jaca escorria, os bagos cor de ouro e o

perfume. [...] pairava no ar aquele perfume embriagador, que importavam uns

minutos a mais, uns minutos a menos?

Curió retirou o paletó, abriu a gravata, não se pode comer jaca todo vestido de

etiqueta. Sentou-se, enfiou os dedos, retirou um bago, meteu-o na boca, cuspiu o

caroço:

- Porreta!

- Retada! – apoiou Martim. (Os pastores da noite, p. 125).

134

Em determinado momento, Curió reflete: “‟Martim é meu irmão, ai meu irmão! Não só meu irmão de santo,

filhos os dois de Oxalá (Exê ê ê Babá), mas meu amigo do peito, de todas as horas, de todas as alegrias e

tristezas, por ele sou capaz de me rebentar, de topar qualquer parada, como posso então olhar para sua mulher,

sua mulher verdadeira, senhora de sua casa, com outros olhos senão os de amigo, como posso nutrir por ela

sentimentos senão os da mais pura fraternidade? Ai, Martim, meu irmão, teu irmão é um salafra‟” (Os pastores

da noite, p. 80). Observe-se que, a despeito do fragmento transcrito parecer indicar uma maior importância ao

fato de serem amigos do peito do que irmãos de santo, não se invalida a hipótese desta amizade relacionar-se

diretamente aos laços religiosos. Ademais, não se pretende instituir aqui uma leitura exclusivista do tipo que

afirma algo supostamente inquestionável, mas sugerir possibilidades.

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A cena acima culmina com a afirmação da amizade inquebrantável entre Martim e

Curió, o que ocasiona a derrota de Marialva, renegada e esquecida por ambos: “- E esse traste

pensou que inimizar nós dois, nós que somos que nem irmãos... Só a gente rindo...” (Os

pastores da noite, p. 130). Final que, de certo modo, contraria as expectativas suscitadas pelo

desenrolar do drama vivenciado pelo romântico camelô, uma vez que tudo parecia indicar o

confronto com Martim ao invés da confraternização ocorrida. O ponto de inflexão dos rumos

narrativos encontra-se, justamente, no fragmento transcrito e, talvez, seja passível de uma

leitura com viés religioso.

A festa do candomblé, como já dito, é um espaço de música, dança e comida,

elementos partícipes da apreensão do Sagrado e através dos quais se expandem a alegria e o

axé. Relativamente à comida, há aquela destinada aos orixás, que varia de acordo com os

gostos específicos das divindades, e outra que é reservada aos filhos do Terreiro e aos

visitantes, se houver. Este segundo tipo de comida, igualmente preparada conforme o paladar

dos orixás patronos das festas, é servida durante o ajeum, momento que se configura tanto em

um espaço de sociabilidade quanto de expansão e circulação de axé, uma vez que se partilha a

comida do orixá. Segundo Raul Lody:

É altamente socializante o ato de compartilhar do mesmo alimento em grupo,

quando servido ao término das festas públicas dos terreiros. A união das pessoas que

têm os mesmo objetivos religiosos e as mesmas crenças é reforçada pelo ato de

ingerir os alimentos preparados pelas yabás, yabassês, entre outros títulos, que

variarão conforme o tipo de Nação à qual é filiado o terreiro (LODY, 1992, p. 61.

Grifos do autor).

É interessante destacar, neste comentário de Lody, a parte que se refere ao reforço dos

laços de união entre aqueles que compartilham da mesma comida. Obviamente, o antropólogo

ressalta tal sentido dentro de um contexto específico, o religioso, em que a comida é

preparada de um jeito especial e por pessoas cujo conhecimento domina os segredos

necessários ao preparo dos alimentos. Ou seja, não se refere ao contexto mundano. Ainda

assim, talvez seja possível analisar o desenlace da história de Curió a partir de certas

associações com o momento de ajeum.

Observe-se que o modo como Curió está vestido é condizente com a gravidade da

situação a ser arrostada em face de Martim. Assim, o paletó e a gravata, bem como o jeito

pouco natural de falar e também a postura exibida aludem ao desconforto vivenciado por

Curió ao ver-se na iminência de por fim à amizade tão duradoura. A aparência de “ter

engolido uma vassoura”, que abrange não só o paletó e a gravata, mas também a fala e a

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postura, se desfaz na partilha da jaca; as mãos de Martim e de Curió enterradas no mesmo

fruto, o gosto e o prazer divididos. Desta forma, Curió despe-se do paletó e da gravata, peças

símbolo de gravidade. Mesmo a linguagem dura, medida nas palavras, cede à espontaneidade

da exclamação: “Porreta!”.

A cena da jaca assume uma posição central no desfecho da narrativa porque é

justamente nela – ou através dela – que, à semelhança do que ocorre quando do ajeum, os elos

de amizade entre Martim e Curió são reforçados e, assim, postos a salvo da sanha vingativa de

Marialva. Embora a conversa tenha se realizado após o banquete proporcionado pela jaca e

Curió tenha tentado recuperar o tom grave ensaiado, o sentido da amizade entre eles, há pouco

reestabelecido, imperou de tal modo que Martim, compreendendo a aflição do amigo,

prontamente abriu mão de mulher e casa, dando-as a Curió. Já Curió, surpreso pela atitude de

Martim, não fez por menos: abriu mão de ambos os presentes, igualando-se a Martim no

desprendimento e na amizade. Ao fim, “os olhares dos amigos encontraram-se sob os restos

da jaca mole. Brilhavam os bagos cor de ouro, convidativos” (Os pastores da noite, p. 131).

A natureza da amizade descrita não é exclusividade da relação Martim-Curió, mas

expande-se e alcança todo o grupo de personagens apresentadas, à exceção dos políticos,

jornalistas e policiais da terceira narrativa, Os amigos do povo. Assim, em O compadre de

Ogum, a notícia do batismo de Felício, filho de Massu e Benedita, faz com que se estabeleça

um clima de disputa entre os amigos de Massu vez que cada um pleiteava ser escolhido

padrinho, honraria destinada a apenas um dentre eles:

Difícil mesmo era escolher o padrinho, convencera-se Massu, quando, três dias após

a noite das primeiras e felizes conversações, a situação não se modificara, o menino

continuava sem padrinho.

Não se modificara, é maneira de falar: em verdade a situação piorara. Não haviam

adiantado nem um passo no sentido da solução do problema, em compensação

pesava sobre o grupo a ameaça de sérias dissensões. Aparentemente aquela antiga e

exaltada amizade continuava perfeita, não sofrera o menor arranhão. Mas um

observador atento poderia sentir, no correr das noites e dos tragos, uma tensão a

crescer, a marcar palavras e gestos, a colocar pesados silêncios em meio à conversa.

Como se tivessem medo de ofenderem-se uns aos outros, estavam educados e

cerimoniosos, sem aquela largada intimidade de tantos anos e tanta cachaça (Os

pastores da noite, p. 145).

Na primeira narrativa a cena que engendra um final positivo para Curió e Martim,

afastando dos amigos qualquer possibilidade de ruptura, guarda semelhanças e talvez alusões

ao ajeum; em O compadre de Ogum, por sua vez, a intervenção do candomblé na salvaguarda

das relações de amizade ocorre de forma explícita: Ogum, pai mítico de Massu, toma para si a

responsabilidade de resolver o problema da escolha do padrinho. Assim, aquele que não fosse

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escolhido não teria motivos para arrenegar-se com Massu uma vez que não seria sua a

escolha, os vínculos afetivos e religiosos permaneceriam intactos:

Parou o negro Massu sua caminhada: era filho de Ogum e também seu ogã. Martim

contava da festa, das danças e das cantigas. Massu, apesar do balaio na cabeça, em

equilíbrio instável, cheio de coisas de quebrar, ensaiou uns passos de dança. Martim

quebrou todo o corpo e puxou uma cantiga do orixá dos metais.

- Ogum ê ê! – salvou Massu.

E teve uma iluminação, como se o sol explodisse em amarelo, aquele sol cruel e

castigado, teve um revertério, um troço nos olhos, uma visão: viu nos matos

próximos Ogum rindo para ele, todo paramentado, com suas ferramentas, a dizer-lhe

para ter calma porque ele, Ogum, seu pai, resolveria o problema do menino. Massu

deveria vir procurá-lo. Disse e sumiu ligeiro, de tudo aquilo só ficou um ponto de

luz na retina do negro, prova insofismável do acontecido (Os pastores da noite, p.

146).

É neste contexto que a atuação de Mãe Doninha, venerável pela idade e por ser

iyalorixá, é imprescindível, como já assinalado. A amizade, como já se pode perceber, não se

refere somente às relações de profunda afinidade entre aqueles narrados por Amado, mas

reveste-se em expressão de uma identidade em comum baseada em valores culturais negros.

Assim, a amizade, tal como expressa em Os pastores da noite, constitui-se em um dos elos

que estruturam a própria noção de comunidade. Preservar os laços de amizade significa, pois,

manter intactos os valores que alicerçam o cotidiano da comunidade, ou seja, a alegria e a

resistência que remetem à expansão para a vida; noutra direção, enfraquecê-los seria sucumbir

à tristeza e à miséria, encaminhar-se para a morte.

O fato de Mãe Doninha ser uma voz insuspeita, que goza da confiança e do respeito de

todos, é preponderante para que possíveis dúvidas sobre a lisura da resposta dos búzios sejam

sanadas antes mesmo de posto o jogo. A resposta seria incontestável vez que adviria da

vontade de Ogum e do jogo de Mãe Doninha, a mais respeitada dentre todas as iyalorixás.

Ainda assim, caberia a apenas um dos amigos a honra de ser o padrinho. Embora

incontestável, a vontade Ogum não eliminaria a possibilidade de os não escolhidos guardarem

mágoa ou ressentimento, ou mesmo que aquele selecionado se visse acima dos outros em uma

espécie de escala do orixá. De uma forma ou de outra, poder-se-ia instalar um princípio de

desequilíbrio que enfraqueceria o sentido de comunidade. Ogum, então, decide ser, Ele

próprio, o padrinho:

Sim, perfeita a solução, admirável, deixara a todos satisfeitos. Nenhum deles fora o

escolhido, ninguém se encontrara colocado mais alto na escala da amizade de

Massu. Acima deles só Ogum, o encantado dos metais, o irmão de Oxóssi e de

Xangô. A solução a todos contentava. Nem por isso, no entanto, podia-se dizer estar

o problema do batizado completamente resolvido (Os pastores da noite, p. 155).

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Desta solução, decorre um segundo problema. Mas, antes de abordá-lo, compete situar

Jesuíno Galo Doido. Assim como Mãe Doninha, Jesuíno reúne em si tanto o princípio da

senioridade quanto o da escala hierárquica, uma vez que é um dos obás de Xangô, isto é, um

dos doze ministros do orixá rei do fogo. De acordo com Leite:

Ser Obá de Xangô, ministro do Rei Xangô, é ser um defensor e protetor do

Candomblé, devidamente autorizado e protegido por Xangô, protetor maior. Quem é

simpatizante ou amigo de alguma causa pode tomar a defesa desta causa, contudo

ser Obá de Xangô, ministro do Rei Xangô, é ser mais que simpatizante, é pertencer

ao clero nagô da Bahia (LEITE, no prelo).

Lima (1966, p. 17) dá a dimensão da importância dos obás situando-os “[...]

hierarquicamente numa categoria imediatamente superior à dos Ogãs. São, a rigor, Ogãs mais

graduados no Terreiro por serem consagrados ao próprio patrono do Axé, Xangô Afonjá”135

.

Não é à toa, portanto, que Jesuíno Galo Doido venha a constituir uma personagem cuja voz e

figura apresentam alguma preponderância no seio do grupo de amigos. Assim é que, apenas

recém-chegada à cidade, Otália “[...] beijou a mão de Galo Doido, pedindo-lhe a bênção.

Bastava vê-lo para compreender ser ele da bênção e não da boa noite, talvez um babalaô,

talvez um babalorixá, quem sabe um obá de Xangô [...]” (Os pastores da noite, p. 31-32)136

.

Assim como Mãe Doninha que, investida da autoridade de iyalorixá, tornou-se

responsável por seus filhos, sendo sua obrigação zelar pelo bem estar da comunidade, também

a Galo Doido são destinados direitos e deveres. Uma vez designado obá cabe-lhe a autoridade

e o respeito inerentes ao cargo, mas igualmente passa a ser de sua alçada defender e proteger

o candomblé, como salienta Leite, e, por extensão seu povo – o que faz colocando-se ao lado

de Mãe Doninha e auxiliando-a.

135

A referência a Xangô Afonjá ocorre por conta de ser Ele o patrono do Ilê Axé Opo Afonjá, Terreiro situado

no bairro do São Gonçalo, em Salvador-Ba. Esta Casa de Axé foi a primeira a instituir a corte dos obás.

Inicialmente doze, os obás contam hoje trinta e seis no total, sendo doze titulares e vinte e quatro suplentes. Os

obás dividem-se em dois grupos, cada um com seis títulos: os obás da direita, que tem direito à voz e ao voto

além de poderem saudar Xangô com o xerê em sua festa, e os obás da esquerda, que possuem apenas o direito à

voz, exercendo tão somente uma função consultiva (LIMA, 1966). Cumpre salientar que Jorge Amado era um

dos obás de Xangô do Ilê Axé Opo Afonjá, Obá Arolu, obá da direita. Interessante ressaltar ainda que a iyalorixá

Doninha talvez constitua uma homenagem de Amado à fundadora do Ilê Axé Opo Afonjá, Eugênia Ana dos

Santos, Obá Biyi, mais conhecida por Mãe Aninha. Doninha seria, então, uma contração de Dona Aninha. 136

Na entrevista concedida a Raillard (1990, p. 81), Amado discorre sobre a posição de Obá e revela qual, em

sua leitura, é a natureza do respeito que goza: “É nesse sentido que sou um obá, isto é, uma pessoa que o povo

conhece, ama e respeita. Respeita da maneira pela qual se respeita na Bahia, com uma grande familiaridade. Não

é nunca um respeito... como dizer?... humilde, submisso, apagado, de reverência, de adulação. Não, não é isso, é

um respeito marcado por conhecimento e intimidade”. Talvez tais informações possam ajudar a interpretar o

papel de liderança de Jesuíno entre os habitantes do Mata Gato.

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É na terceira narrativa, Os amigos do povo, quando assume junto com os capitães da

areia a defesa do Morro do Mata Gato e cria estratégias de luta contra a invasão policial, que

Jesuíno desempenha com vigor o papel de defensor do povo. Morto após uma segunda

tentativa de invasão policial, Jesuíno retorna do orun para incorporar em uma iaô do

candomblé Aldeia de Angola, declarando-se Caboclo Galo Doido – com o que se reafirma o

papel de destaque exercido pelo Obá de Xangô.

Como já expresso, muitos valores negros permeiam as narrativas de Os pastores da

noite. Neste aspecto, é relevante notar que o corpo de Jesuíno Galo Doido nunca tenha sido

encontrado, perdido para sempre na lama de um mangue situado atrás do Mata Gato. Ora,

uma possível leitura do desaparecimento do corpo de Jesuíno remete à mitologia iorubá.

Segundo esta tradição, quando da criação dos ara aiyê, os seres vivos, a lama foi escolhida

como a matéria-prima ideal para a tarefa. No entanto, toda vez que os orixás lhe retiravam

uma porção para levar a Obatalá, responsável pela criação, a lama chorava, o que ocasionava

a pronta restituição do pedaço arrancado. Apenas o orixá Iku, a morte, não teve pena da lama,

arrancando-lhe uma quantidade para levar de amostra a Obatalá. O grande orixá da criação

concordou que aquela seria a melhor matéria para a tarefa e, ao saber que a lama teria ficado

chorando, ordenou que Iku lhe restituísse cada porção arrancada, devolvendo-lhe a matéria

originária dos ara aiyê quando estes passassem ao orun (SANTOS, 2008). A morte é, pois, o

retorno do corpo à matéria original que o reclama, imagem reelaborada por Amado através de

Galo Doido.

Por meio de Galo Doido e Mãe Doninha, referências máximas de Os pastores da

noite, é possível, pois, atestar como a escrita e a atuação destas personagens estão amplamente

embasadas naquilo que significam religiosamente, ou seja, dentro da dinâmica estrutural e

cosmogônica do candomblé.

É exatamente neste aspecto que reside a terceira e principal diferença entre os

universos de Jorge Amado e o de Gilberto Freyre: o lugar do negro. Como exposto na

primeira seção, o antropólogo pernambucano, a despeito da ênfase que dispensa ao negro em

seus textos, toma-o e o exalta na justa medida em que o considera contribuir para amolecer a

cultura europeia, destituir-lhe da inflexibilidade de toda e qualquer ortodoxia religiosa, dando

vazão a um catolicismo cujos santos e dogmas passam a ser relativizados. Em outras palavras,

para Freyre o negro é aquele que, sofrendo a opressão de um sistema escravista, soube adaptar

a cultura do dominador à sua, modificando-a a partir de uma visão de mundo negro-africana

que, no entanto, se dilui. Destarte, pode-se afirmar que, para o Mestre de Apipucos, o que se

sobressai no processo formativo da cultura brasileira são os valores culturais dimanados da

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Europa; já os provenientes do continente africano são contribuições pontuais e necessárias,

mas ainda assim meramente contribuições. Freyre não considera a cultura negra de per si,

sempre que o faz é em sua adaptação à dominante, ao catolicismo ou no ajuste da Igreja aos

trópicos.

De tal outra forma é a perspectiva amadiana, que o crítico italiano Marotti (1972, p. 9)

considera: “A obra de Jorge Amado é a expressão de uma filosofia negra do Brasil,

transfigurada poeticamente em uma interminável galeria de personagens e de situações”137

.

Pensar em termos de uma “filosofia negra”, como propõe Marotti, equivale-se

inarredavelmente a vislumbrar nos livros do escritor baiano signos profundos advindos da

religiosidade afro-brasileira uma vez que, tal como observa Luz:

[...] a religião ocupa o lugar mais relevante no processo civilizatório e cultural negro.

Em relação ao processo civilizatório, a religião é fonte e guardiã dos valores

espirituais, de visão de mundo que proporciona e impulsiona a vontade de viver. A

religião negra é depositária dos profundos conhecimentos das leis e das forças que

regem o universo e de como bem utilizá-las, possibilitando a continuidade e a

expansão da vida. Em relação ao processo cultural, a religião é fonte e dinamizadora

de um ethos, indicadora de comportamentos, hábitos, enfim, de uma maneira negra

de ser. Ela estabelece e proporciona uma ética própria. Imprime formas de relações

sociais, estipulando maneiras próprias de organização e hierarquias, estimula a vida

comunal (LUZ, 2011, p. 79).

Nesta perspectiva, Allen-Dixon (2006, p. 18) considera que o sistema mitológico

vindo com os negros escravizados constitui o “mundo interior americano” – “[...] um mundo

interior que Amado desvela aos olhos do leitor”138

. Na mesma linha, Nunes (1973) defende

que os romances amadianos estão entre os mais importantes meios de preservação da cultura

africana no Brasil. Acresçam-se, aos pesquisadores citados, as recentes investigações de Leite

(2006, 2008 e 2010) sobre a obra de Jorge Amado, pesquisas em que se verifica o encontro

das mitologias afro-brasileiras com a tessitura do enredo amadiano, bem como os resultados

até aqui alcançados por este estudo.

Assim, a leitura do texto amadiano como “expressão de uma filosofia negra”, portanto,

é não apenas possível e viável, como também se configura reveladora de um denso

conhecimento do romancista acerca do candomblé; saber que se desdobra em profunda

positivação e defesa inconteste do negro – como, aliás, prescreve o seu papel de Obá Arolu

137

“L‟opera di Jorge Amado è la espressione di una filosofia negra del Brasile, trasfigurata poeticamente in una

interminabile galleria di personaggi e di situazioni” (Tradução nossa para fins deste trabalho). 138

“[...] an inner world that Amado unveils to the reader‟s eye” (Tradução nossa para fins deste trabalho).

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n‟Ilê Axé Opo Afonjá139

. Não sem motivos, o escritor moçambicano Mia Couto (2011), em

palestra proferida em São Paulo sobre o escritor baiano, em 2008, posteriormente coligida em

livro, tenha afirmado que uma das razões da popularidade da obra amadiana nos países

africanos de língua portuguesa deve-se a uma “familiaridade existencial”. Segue Couto:

Seus personagens eram vizinhos não de um lugar, mas da nossa própria vida. Gente

pobre, gente com os nossos nomes, gente com as nossas raças passeavam pelas

páginas do autor brasileiro. Ali estavam os nossos malandros, ali estavam os

terreiros onde falamos com os deuses, ali estava o cheiro de nossa comida, ali estava

a sensualidade e o perfume das nossas mulheres. No fundo, Jorge Amado nos fazia

regressar a nós mesmos (COUTO, 2011, p. 64).

Tais considerações, ainda mais quando endossadas por diversos escritores africanos,

muitos deles referenciados por Mia Couto, evidenciam o texto amadiano não apenas como

relicário de um ethos negro que se projeta ao leitor com o passar das páginas. Também o é

como um agente de identificação da África não só para baianos e brasileiros, mas igualmente

para os povos africanos de língua portuguesa, que então empreendiam seus esforços de

descolonização e redescoberta de si. Leite comenta:

É importante ressaltar que as declarações por parte de africanos, reconhecidamente

engajados na liberdade de seus povos e na formação de suas identidades, de que

encontram Áfricas no texto amadiano têm importância significativa. A relevância

destes dizeres de África confirma o que já sabíamos: Amado está entre os escritores

que estão ao lado do povo negro e não criador de estereótipos e coisas do gênero,

que em nada engrandecem africanidades e afro-brasilidades. Ao contrário de ser um

capitão do mato, Amado faz opção pelo negro, mesmo sendo socialmente branco.

Ele foi incorporado ao grupo, escolhido por Xangô para seu ministro e liderado pela

grande Mãe Senhora (LEITE, no prelo).

Ao contrário daquela adotada por Freyre, a perspectiva assumida por Jorge Amado é a

do protagonismo negro. Tal primazia não implica desvalorização de culturas e povos outros,

vistos como igualmente positivos, mas inverte a lógica secular da identidade brasileira, qual

139

Talvez fosse mais adequado se falar em “expressão literária de uma filosofia negra” uma vez que o texto

amadiano não se propõe ser propriamente teologia, filosofia ou antropologia, mas, englobando-as, ser tão

somente literatura. Isso significa dizer que os aspectos religiosos, quando transpostos para a literatura amadiana,

sofrem um processo de acomodação à linguagem literária na qual já não necessariamente representam

estritamente o que significam em um contexto religioso específico. Tem-se, portanto, uma apropriação e uma

consequente expressão que já não é aquela originária, sagrada, mas uma representação literária deste sagrado – o

que pode implicar certas pequenas incongruências, como avalia Serra (1995). Em entrevista concedida a Santana

(2009, p. 21), Amado deixa claro o grau de conhecimento que possui do candomblé: “Não há cerimônia de

candomblé que eu não conheça. Há alguns anos, quando foi feita a cabeça de uma minha afilhada, fui chamado

para acompanhar. Conheço tudo isso como as palmas de minhas mãos [...]”. Cabe ressaltar, a mero título de

curiosidade, o trabalho de Edson Fabiano dos Santos (2005) que, em sua dissertação de mestrado, tenta esboçar

uma teologia afro-brasileira a partir das obras de Jorge Amado.

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seja, a de pensar o país de forma eurocêntrica; luso-tropical, em termos gilbertianos. Em

Amado o país é outro: é africano, é negro.

Logicamente, o lugar que o negro ocupa na representação amadiana de Brasil

influencia, de maneira decisiva, a ficcionalização da mestiçagem étnica e cultural pensada

pelo escritor baiano, o que a configura como uma negromestiçagem. Ainda em Os pastores da

noite, a narrativa O compadre de Ogum traz alguns elementos que merecem ser pontuados

acerca desta questão em particular.

De súbito, o leitor é apresentado a uma criança há pouco nascida. De cabelos

escorridos e loiros, os olhos azuis, o menino é filho de Massu e Benedita, dois negros.

Embora se especule aqui e ali a respeito dos tempos em que Benedita andou de xodó com um

gringo, a verdade é que a cena não reproduz a estranheza do filho branco de Baldo, em

Jubiabá. Ao contrário, o próprio narrador se encarrega de dissipar qualquer dúvida a respeito

da paternidade do menino, “[...] baixa exploração de gente maldosa, pronta a maliciar a

propósito de um tudo ou de um nada.” (Os pastores da noite, p. 135). Da mesma forma,

Benedita, Massu e sua centenária avó Veveva justificam ao leitor:

Olhos azulados qualquer menino pode ter, mesmo sendo o pai negro, pois é

impossível separar e catalogar todos os sangues de uma criança nascida na Bahia.

De repente, surge um loiro entre mulatos ou um negrinho entre brancos. Assim

somos nós, Deus seja louvado.

Benedita dizia ter saído o menino assim branco por haver puxado ao seu avô

materno, homenzarrão loiro e estrangeiro, bebedor de cerveja, Hércules de feira a

levantar pesos e marombas para espanto dos tabaréus. Explicação, como se vê, das

mais razoáveis, só as más-línguas teimavam em não aceitá-la e viviam atribuindo

pais ao garoto como se não lhe bastasse Massu, um pai e tanto, cidadão direito e

respeitado, com ele ninguém tirava prosa, e doido pelo filho. Sem falar na avó, na

negra velha Veveva com seu menino nos braços (Os pastores da noite, p. 137).

A criança, de nome Felício, compõe então uma metáfora da qual Amado se serve para

expor a tese de que, na Bahia, não existem brancos ou negros, apenas mestiços. Assim, o

nascimento de meninos negros no seio de famílias brancas, ou de crianças brancas entre casais

negros não causa qualquer espanto. Evidentemente, o que está em jogo aqui é uma

mestiçagem biológica, um amálgama de sangues diversos que constitui um povo rico em

possibilidades genéticas por conter em si todos os outros povos. É interessante notar, contudo,

que a despeito do tom estritamente racial desta perspectiva, o que confirma a paternidade de

Massu não é tanto a justificativa de Benedita, que revela genes avoengos, mas o riso de

Felício: “O jeito de rir, não tinha nada mais belo. O negro pôs-se de cócoras no chão, o

menino veio e se levantou entre suas pernas. E disse „papá‟ e repetiu. A gargalhada de Massu

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ressoou, estremecendo as paredes” (Os pastores da noite, p. 139). Ora, se o riso, símbolo de

alegria, é tido por Amado como um veículo de expressão da cultura negra, o fato do menino

rir como Massu, de riso sem igual, é mais comprovativo que quaisquer outros argumentos140

.

O estrito biologismo não apraz literariamente a Amado. O escritor baiano toma a

mistura de sangues como uma verdade absoluta, que não carece de demonstração mais

extensa. O fato basta por si, não há absurdo que a ascendência de Felício remonte a Benedita e

Massu. A mestiçagem a ser discutida em O compadre de Ogum é outra, refere-se à cultura,

consubstancia-se no sincretismo religioso. Até mesmo por isso, o romancista não se demora a

discutir o caso da paternidade, toma-o antes como introito a tema mais relevante.

Para Goldstein (2003, p. 214), o sincretismo proposto por Amado “[...] é muito mais

uma questão de valorização da sociedade, respeito à cultura popular e, sobretudo, coerência

com sua concepção de nação do que um problema propriamente religioso”. Assim, ainda

segundo a antropóloga, “o problema não é colocado em termos de incompatibilidade

cosmológica, mas em termos práticos” (GOLDSTEIN, 2003, p. 206)141

.

Por mais discutível que seja a noção de sincretismo religioso, Amado a toma primeiro

como um exemplo da resistência cultural negra contra a dominação ocidental e, também,

como uma comprovação da tendência nacional para a mistura, para a mestiçagem – nos

termos já expostos anteriormente. Esta última perspectiva sobressai nas entrevistas concedidas

a Raillard (1990), ao The Unesco Courier (1989) e, ainda, a Combes (1989), oportunidade em

que, além de reiterar sua adesão ao sincretismo e à mistura de homens e culturas como

resoluções para o racismo, Amado marca uma oposição à Igreja Católica, refratária a estes

processos142

.

140

Segundo Albuquerque Júnior (2011, p. 249), “[...] Amado, assim como Freyre, apenas invertem o sinal do

discurso naturalista a respeito da raça, da mestiçagem e do negro. Ambos continuam presos à concepção de

etnicidade, revalorizando a raça, do ponto de vista cultural e psicológico”. Poder-se-ia afirmar, então, no caso de

Felício, que o riso seria como os acréscimos neolamarckianos de Freyre. Esta é uma hipótese que merece atenção

e cuidado. Amado não prescinde da noção de “raça”, isso é certo, mas compará-lo ao discurso naturalista, cotejo

que, em parte, serve a Freyre, talvez seja um exagero. Em Amado é muito mais importante a cultura que a

personagem assume do que, propriamente, a cor da pele que possui ou a “raça” a que se vincula. A questão é que

o romancista baiano valoriza as culturas negras por serem elas símbolos de alegria e resistência e as contrapõe à

cultura ocidental dominante, pejada de culpa e tristeza. Assim, suas personagens, à medida que assumem uma ou

outra cultura, passam a ter um ou outro comportamento. Se há algo de determinista nesta perspectiva, não o é de

caráter “racial”, antes cultural. O comportamento funciona, assim, como alegoria para que o autor distinga

culturas. 141

De um modo geral, concorda-se com a antropóloga no que concerne ao sincretismo amadiano. Por isso, a

abordagem desta questão preocupar-se-á apenas com acréscimos que se julga pontuais e que possam corroborar

para se pensar o lugar do negro na visão do mundo de Jorge Amado. 142

“Actuellement, le nouveau cardinal de Bahia, qui a été nommé par Jean Paul II, pense que les religions

africaines, c'est très bien, mais que ça ne doit riens avoir à faire avec la religion catholique et l'Eglise. Je ne sui

pas d'accord avec ça. Pour ma part, je suis résolument partisan du syncrétisme, du métissage des hommes et des

cultures. C‟est la seule façon radicale de combattre le racism” (COMBES, 1989, p. 18).

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Eis um ponto interessante: o sincretismo amadiano não é mera ingenuidade ou simples

afirmação de um desejo de mistura, antes, comporta em si a crítica do autor à Igreja por

querer se manter distante e superior em relação às religiões afro-brasileiras; convertê-las,

extingui-las. É importante afirmar que tal crítica se restringe ao âmbito da instituição, não se

estende à fé ou à crença de quem quer que seja: Amado não combate uma intolerância com

outra, mas com a perspectiva do respeito e da convivência – daí sua ênfase no sincretismo.

Uma prova disso é que o mesmo julgamento que profere contra a Igreja, o romancista baiano

dirige a Pierre Verger, pesquisador francês que intentou restituir a pureza nagô aos rituais

sincréticos dos candomblés baianos, como explicita em Navegação de cabotagem:

Não sei que espécie de babaquice atacou Verger, padre François e os demais

velhinhos filhos-de-santo, ogãs, babalaôs, sábios titulares do candomblé baiano,

mestres de tudo quanto se refere às seitas afro-brasileiras, ao sincretismo religioso e

cultural, estudiosos da relação África x Brasil, conhecedores das similitudes e das

diferenças, sabendo que elas existem e porque existem, de repente, sem prévio aviso,

se fazem puristas africanos, negros imaculados. Pretendem que cerimônias, rituais,

designações, a língua iorubá, o culto nagô, o candomblé enfim se processe na Bahia

igualzinho ao da África, sem tirar nem pôr: muito se tirou, muito se pôs.

Estabeleceram para tanto um projeto e o levaram a cabo. Tempo perdido, resultado

nulo. Mais poderosa que qualquer ideologia, mesmo baiana, é a realidade que

determina e impõe régua e compasso (Navegação de cabotagem, p. 404).

“Admiro imensamente Pierre Verger [...]. Mas não se pode ir contra o curso das

coisas, nem contra a realidade delas. E a realidade brasileira é a „mistura‟”, completa Amado

em entrevista a Raillard (1990, p. 90). Para o escritor grapiúna a ideia de pureza conduz

inequivocamente ao racismo uma vez que se opõe à integração, à troca com o outro. É neste

sentido que estabelece sua crítica ao movimento de reafricanização dos candomblés baianos

ou de expurgo ao sincretismo. Já em relação à Igreja Católica, além de Jorge Amado criticar a

separação praticada, há ainda o fato de considerá-la como expoente de uma base reacionária

posto que “[...] ainda uma grande parte da Igreja se posiciona com o partido dos ricos contra

os pobres” (RAILLARD, 1990, p. 84).

Retome-se agora o momento em que Ogum decide ser o padrinho de Felício, filho de

Massu, preservando intactos os elos de amizade do grupo. Foi dito, quando do estudo desta

passagem, que a resolução de um problema – quem seria o padrinho – resultava em outro que,

àquela altura, não se revelou qual seria. Pois bem, a nova questão que surge e demanda

solução é a seguinte: como fazer com que um padre, metonímia da Igreja, aceite batizar um

menino que tenha como padrinho um orixá? Apurando os elementos de cunho alegórico,

chega-se à discussão central: fazer o candomblé adentrar a Igreja. Amado não propõe, assim,

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um “sincretismo unilateral”, tal como ocorre nas ruas e ladeiras da Bahia, em que o

catolicismo penetra no cotidiano do candomblé, mas o inverso não se processa143

. Vislumbra,

antes, um convívio sem barreiras, uma plena aceitação de um no outro, um livre trânsito entre

as duas religiões. Em outras palavras, a quebra do preconceito.

De certo modo, o que está em cena nesta narrativa é a problemática da intolerância

religiosa vista a partir de uma alegoria: as artimanhas do povo-de-santo para que Ogum possa

batizar o seu afilhado. Ora, na medida mesma em que Amado enfoca as preocupações e as

estratégias pensadas e levadas a cabo por Ogum, Mãe Doninha e Jesuíno Galo Doido para que

se tenha acesso ao batizado, revela, justamente por causa da necessidade de tais medidas, a

tensão existente entre catolicismo e candomblé. Ou melhor, desvela a recusa do clero católico

em reconhecer no Outro uma face de si.

O caminho escolhido por Amado para discutir o assunto diverge daquele seguido por

Dias Gomes em O pagador de promessas, texto que remete ao ano de 1959 e cuja primeira

dramatização foi encenada no ano seguinte, 1960144

. Na peça do dramaturgo baiano, a Igreja,

através das vozes do padre Olavo e do monsenhor Otaviano, é explícita em sua intolerância

uma vez que impede o acesso de Zé-do-Burro ao altar de Santa Bárbara para cumprir

promessa feita em Terreiro de Iansã. Tal procedimento não é observado em Os pastores da

noite a não ser em entrelinhas. A despeito de o padre Gomes ser descrito como um “baiano

cordial” e nada dogmático (Os pastores da noite, p. 163), os cuidados para que não se

desconfie da verdade por trás do padrinho – Ogum cavalgando um seu filho, Artur da Guima

– dão conta de explanar o clima de não aceitação da Igreja em face do povo de santo.

Ademais, é interessante ressaltar o sacrifício de Josefa, mãe do Padre Gomes, que paga

com a própria vida, vítima de bexiga, a incúria com seu Omolu, deus da saúde e da doença, da

morte e da vida. De filha cauta e primorosa, Josefa passa a descuidar do santo à medida que o

143

Cumpre ressaltar que as referências aqui são sempre em termos institucionais. Ou seja, quando se fala que a

influência do candomblé não se processa no catolicismo, afirma-se que a instituição católica se mantém

refratária às associações entre rituais, mitologias, santos e orixás. Obviamente, isso não impede que um católico

apostólico romano, uma vez em situação difícil na vida, procure a ajuda de mães ou pais de santo e se submeta a

limpezas ou ebós, fato muito corriqueiro entre os candomblés da Bahia. 144

O próprio Dias Gomes faz ressalvas em relação à leitura de sua peça pelo viés da intolerância religiosa: “Ele

[Padre Olavo] não é um símbolo de intolerância religiosa, mas de intolerância universal. Veste batina, podia

vestir farda ou toga. É padre, podia ser dono de um truste. E Zé-do-Burro, crente do interior da Bahia, podia ter

nascido em qualquer parte do mundo [...]. O Pagador de Promessas não é uma peça anticlerical – espero que isso

seja entendido. Zé-do-Burro é trucidado não pela Igreja, mas por toda uma organização social, na qual somente o

povo das ruas com ele confraterniza e a seu lado se coloca [...]”. (GOMES, 1979, s.p). Acredita-se, não obstante

o respeito à opinião do autor, que a discussão acerca da intolerância religiosa se faz mais forte, mais presente ou

mesmo mais atual do que aquela originalmente pretendida. O pagador de promessas foi encenado pela primeira

vez no Teatro Brasileiro de Comédia, em São Paulo, em 29 de julho de 1960. Os atores Leonardo Vilar e Elísio

Albuquerque deram vida respectivamente à Zé-do-Burro e Pe. Olavo. A peça contou ainda com a grande atriz

Nathália Timberg no elenco, interpretando Rosa, esposa de Zé-do-Burro. A direção coube a Flávio Rangel.

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filho Gomes vai avançando no seminário. Recusa a fazer a iniciação de Teresa, filha sua e

também de Omolu, igualmente vitimada pela varíola. Por fim, denega completamente o orixá,

não frequenta mais as festas nem se submete às obrigações rituais, com o que vem a falecer.

Tanto sacrifício e sofrimento por respeito “[...] ao filho seminarista, preparando-se para padre

[...]” (Os pastores da noite, p. 163). Ora, qual o motivo de tanta expiação senão um interdito

da Igreja ao povo de santo? Uma interdição que não é verbalizada como em O pagador de

promessas, mas que, por certo, impõe-se tacitamente145

.

Aliás, talvez seja interessante avançar em uma hipótese. O padre Gomes, é

descendente direto de um antigo e respeitado Obá de Xangô, o avô Ojuaruá, pai de Josefa.

Não obstante ainda criança Gomes tenha seguido os passos da família materna, ao ingressar

no seminário “[...] esqueceu o mulatinho a visão colorida das macumbas, das rodas

harmoniosas das iaôs, o som dos atabaques no chamado dos santos, a presença dos orixás nas

danças rituais, esqueceu o nome do seu avô Ojuaruá [...]” (Os pastores da noite, p. 163). Ora,

este apagamento da memória ancestral narrado em Gomes a partir do instante em que ele

passa a se dedicar ao catolicismo é condizente, e quiçá seja também uma alegoria, com os

intentos de práticas evangelizadoras operadas no Brasil desde o antanho colonial. Operações

que, baseadas em uma lógica salvacionista, visavam – e ainda hoje visam – romper os laços

originais de identificação africana e afro-brasileira com o Sagrado uma vez que, como já

explicitado anteriormente, a religião é um importante veículo de resistência e identidade.

Converter para melhor dominar e submeter, em outras palavras.

O apagamento das raízes africanas do padre Gomes constituiria, portanto, mais um

índice do ardil eclesial no trato com as religiões afro-brasileiras. Insídia que remonta aos

primeiros missionários cristãos enviados a África, que se perpetuou nos navios negreiros, nos

tempos da Colônia e do Império; espraiou-se pelas Repúblicas, a velha e a nova, pelas

democracias e ditaduras da história deste país: aceitar adeptos do candomblé nos templos

devotados aos santos católicos sem, contudo, aceitar os seus respectivos deuses é uma

145

As falas do padre Olavo, personagem de O pagador de promessas, nunca são encontradas na boca do Padre

Gomes, responsável pela Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, em O compadre de Ogum. Em

determinado momento da peça, por exemplo, o padre Olavo toma da palavra e afirma que um “[...] ritual pagão,

que começou num terreiro de candomblé, não pode terminar na nave de uma igreja” (GOMES, 1979, p. 52). O

padre Gomes, por sua vez, sabe que sua assistência é composta, em sua maioria, por pessoas de duplo

pertencimento religioso, ou seja, que cumprem uma prática sincrética aliando, na medida do possível,

catolicismo e candomblé. A despeito das diferenças entre padres, a instituição católica é uma só, intolerante e

intransigente, como atestam os necessários sacrifícios de Josefa.

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artimanha, até hoje bem sucedida, de conversão paulatina – processo talvez indiciado através

do apagamento da ascendência materna do padre Gomes146

.

Cabe ainda apontar uma semelhança significativa entre a peça teatral de Dias Gomes,

O pagador de promessas, e a narrativa de Jorge Amado, O compadre de Ogum. Em ambas, a

despeito da intolerância da Igreja, o sincretismo se realiza no povo da Bahia. Em O pagador

de promessas, a personagem Minha Tia, vendedora de quitutes afro-brasileiros, é uma das que

defendem a similitude entre Iansã e Santa Bárbara, sem contar o próprio Zé-do-Burro que,

não raro, interpela o padre para afirmar a parelha. Já em O compadre de Ogum, todas as

personagens vinculadas ao candomblé, inclusive aquelas localizadas no topo da hierarquia

religiosa, mantém, no mínimo, uma relação de respeito e proximidade com a religião de Jesus.

A exigência do batismo de Felício parte de Veveva, avó de Massu, ebômin do Axé da Meia

Porta, irmã de santo da venerável iyalorixá Doninha, que aprova a reivindicação. Pé-de-

Vento, um dos amigos de Massu, com o intuito de garantir que todos fossem padrinhos do

menino, sugere que Felício fosse batizado “[...] no padre, no batista, no testemunha de Jeová,

nesses protestantes todos e mais no espiritismo” (Os pastores da noite, p. 140-141). Solução

prática a de Pé-de-Vento, porém inaceitável, afinal que “[...] diabo iria o menino fazer pela

vida afora com todas essas religiões? Não ia ter tempo pra nada, a correr de igreja para igreja.

Bastava com o católico e o candomblé que, como todos sabem, se misturam e se entendem...

Batizava no padre, amarrava o santo no Terreiro” (Os pastores da noite, p. 149). Ademais, 146

O depoimento que o padre negro José Gilberto de Luna concede ao documentário Jorge Amado (1995), de

João Moreira Salles, é duplamente esclarecedor uma vez que aborda tanto a visão da Igreja sobre o sincretismo

religioso, quanto a respeito da constituição “racial” do país. Sobre o primeiro tema, o padre afirma: “A posição

da Igreja Católica frente ao sincretismo religioso é a seguinte: uma atitude de respeito. Depois, também, de

paciência. Ela tem que ter paciência e pouco a pouco levá-lo à adoção de uma religião pura”. Ora, o que o Pe.

José Gilberto de Luna declara diverge amplamente da postura inflexível e austera exercida pelo Pe. Olavo em O

pagador de promessas, mas já não está tão distante daquilo que acredita o Pe. Gomes, de O compadre de Ogum,

ao tratar com respeito o povo de santo, contanto que ele seja católico. Noutro momento, o Pe. José Gilberto de

Luna discorre sobre a formação do povo brasileiro: “Certa vez perguntaram a alguém muito letrado qual a

origem do brasileiro. Então, a pessoa respondeu o seguinte, „ou está no navio, ou no morro ou na senzala‟. Está

no navio porque português viajava muito. No morro, porque o índio lá se encontrava e na senzala porque era a

habitação própria do negro. Herdamos do português a vivacidade, do negro, a formação melódica, o biótipo

melódico, e do índio, o biótipo sentimental”. Nota-se nesta fala a relativização do colonialismo lusitano,

simplificado em muitas viagens e destituído de sua inerente violência, assim como a naturalização da condição

escrava do negro uma vez que a senzala, no entender do padre, configura-se na habitação própria dos

descendentes de africanos. Como se este trecho já não fosse revelador por si só, o Pe. José Gilberto de Luna

continua, dessa vez a respeito de si: “Minhas origens, eu quero acreditar, que são muito ligadas ao índio e ao

português. Português por causa do nome. E „indígeno‟, o tipo indígena...”. Cabe uma pergunta cuja resposta é

dedutível sem muito esforço: qual a razão de tão forte desejo, de querer tão intenso? Consciente, talvez, da

natureza preconceituosa de seu discurso, o padre continua, visivelmente constrangido: “[...] reconheço que eu

sou também com uma mistura de negro”. O apagamento da memória ancestral do Pe. Gomes não é por demais

próximo deste “querer genealógico” expresso pelo Pe. José Gilberto de Luna? Assim, talvez seja necessário

considerar que, para além do acaso, possa existir no discurso do padre Luna uma possível evidência do

embotamento das matrizes africanas do povo brasileiro, processo em grande parte relacionado com a Igreja

Católica cujo imperativo da conversão combate, enfraquece e desfaz elos ancestrais, como fica claro no exemplo

ficcional do Pe. Gomes.

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Jesuíno Galo Doido, Obá de Xangô, é quem propõe que o nome Antônio de Ogum conste

como padrinho de Felício, posto que “Ogum não era santo Antônio? Pois então: era só dar o

nome completo, Antônio de Ogum” (Os pastores da noite, p. 168).

Tais entrechos não significam sobremaneira uma desvalorização do candomblé frente

ao catolicismo, mas justamente o oposto: o engrandecimento da religiosidade afro-brasileira

em face da instituição católica, uma espécie de elação que deriva do poder de transigir e da

abertura à alteridade – características que Amado projeta no povo e, por consequência no

candomblé, em oposição às elites147

. Convém ainda ressaltar que este processo de abertura ao

Outro não se imiscui com um possível apagamento do Eu já que o povo de santo sabia

distinguir o padre Gomes como “[...] sacerdote dos orixás de branco, como designavam os

santos católicos. Com tal designação marcavam sua comunidade com seus orixás africanos, e,

ao mesmo tempo, sua diferença” (Os pastores da noite, p. 164. Grifos do autor). Aliás,

“orixás de branco” é, por si só, uma expressão que desafia o poder ocidental dominante uma

vez que comumente se fala em “santos negros”, traduzindo o termo iorubá “orixá” por um

equivalente católico, mas o contrário não é usual. Ora, se “orixá” e “santo” são equivalentes

semânticos, por que não designar por “orixás brancos” os santos católicos?

A continuar esta interpretação, uma narrativa que possibilita a Ogum entrar na Igreja

para ser padrinho de Felício, filho de Massu e Benedita, talvez não possa ser considerada

apenas uma história sobre o sincretismo religioso baiano, até mesmo porque as portas do

Bomfim, no alto da Colina Sagrada, continuam fechadas nas quintas de procissão de Oxalá e

o banho de pipoca de Omolu não adentra a Igreja de São Lázaro, na Federação – o que atesta

a atualidade tanto de O pagador de promessas quanto de O compadre de Ogum. Sem

prescindir de ser uma narração acerca do sincretismo popular, aquele que porventura possa

existir no seio do povo pobre baiano, O compadre de Ogum é, ainda mais, um texto em favor

do povo negro e do candomblé, do povo negromestiço. Afinal, abrir as portas da Igreja a um

orixá é estabelecer, ainda que ficcionalmente, o respeito e a aceitação inexistentes no

cotidiano da Cidade da Bahia.

147

A projeção amadiana de um povo aberto às alteridades coincide com o ethos do povo de santo, herdeiro das

tradições africanas. Neste sentido, importante observar o que revela Pierre Fatumbi Verger, em entrevista a

Gilberto Gil: “O católico mata aqueles que não querem virar católicos. E lá [na África, no candomblé] é o

contrário. Cada um tem os seus santos, o seu nome, suas características e respeita o outro. Há uma compreensão

do outro que é complementar à dele” (TEMPO REI, 1996). Ora, se esses são alguns dos valores que estruturam o

que se vem chamando aqui de uma mestiçagem singular amadiana, o termo proposto, negromestiçagem, torna-se

ainda mais pertinente.

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4 TENDA DOS MILAGRES, ROMANCE PARADIGMÁTICO148

...E o povo negro entendeu

que o grande vencedor

se ergue além da dor.

Tudo chegou sobrevivente num navio

Quem descobriu o Brasil foi o negro que viu

a crueldade bem de frente

e ainda produziu milagres

de fé no extremo Ocidente

Ojuobá ia lá e via

Ojuobahia...

Caetano Veloso. Milagres do Povo.

Já não causa qualquer impacto, mossa ou ansiedade o anúncio de um estudo acerca da

mestiçagem ficcionalizada por Amado em Tenda dos milagres, uma vez que são tantas e tão

diversas, algumas antigas e outras contemporâneas, as pesquisas que adentraram e adentram

por este romance, por esta seara. Em verdade, a leitura desta obra publicada em 1969 quase se

assemelha a uma obrigação do pesquisador que verdadeiramente pretenda investigar as

relações raciais documentadas e discutidas por Amado, ainda que o texto final a ser escrito

prescinda de abordá-la. Tal fato não se deve, sobremaneira, à impossibilidade de outras

narrativas amadianas conterem elementos passíveis da elucubração almejada; muitas são as

que possuem fôlego próprio no que concerne à miscigenação como O sumiço da santa,

Tocaia Grande e Os pastores da noite, entre outras mais. Ainda assim, é de alguma forma

admissível especular, mesmo entre aqueles que não o discutem, certa concordância em

relação à posição central de Tenda dos milagres no que tangencia o pensamento sobre

“raças”, cultura, povo e nação do escritor baiano – daí a quantidade de estudos sobre este livro

em particular, soma apenas comparável às abordagens de Gabriela, cravo e canela ou

Jubiabá. Um possível consenso que talvez se justifique a partir das considerações propostas

por Olinto (1993, p. 21), que assevera: “Sob muitos aspectos pode ser, esse [Tenda dos

milagres], o mais bem realizado romance do autor em termos de um posicionamento em face

do problema racial brasileiro”.

148

O título deste tópico é tomado de empréstimo da antropóloga Ilana Seltzer Goldstein (2003, p. 204-205) que

classifica Tenda dos milagres da seguinte forma: “Enfim, Tenda dos milagres pode ser considerado o livro

paradigmático de Jorge Amado, tanto no que concerne ao elogio da mestiçagem, quanto em função da

convivência entre o erudito e o popular”.

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Calixto (2011, p. 127) acredita que Tenda dos milagres tenha se tornado “[...] uma

espécie de referência autorizada do pensamento de Amado acerca da nação”. De acordo com a

historiadora, o fato de o romancista sempre referir-se a esta narrativa, dentre todas que logrou

escrever, como aquela em que mais se inseriu, que mais o emocionou, permite ou até solicita

esta interpretação.

Há, de fato, em entrevistas várias, uma série de assertivas do escritor baiano que

posicionam Tenda dos milagres em um lugar de destaque em relação às outras obras que

compõem a sua produção romanesca, principalmente no que concerne à discussão acerca da

formação do povo brasileiro. Naquela cedida a Raillard (1990), por exemplo, Amado revela

que Tenda dos milagres se constitui um retorno a Jubiabá, distanciado, porém, em 34 anos,

do que resulta uma maior experiência de vida e de literatura – com o que o supera, pode-se

inferir. Amado continua:

Tenda dos Milagres é Jubiabá revisitado, mas a conotação é diferente. Trata da

questão da formação da nacionalidade brasileira, da luta contra os preconceitos,

principalmente o racial, contra a pseudociência, a pseudo-erudição “europeizante”,

contra as teorias daquele francês que foi embaixador no Brasil [o conde Arthur de

Gobineau] (RAILLARD, 1990, p. 105).

Calixto (2011, p. 127) finaliza com o seguinte argumento: “[...] pode-se dizer que não

houve significativa mudança no discurso de Amado sobre o povo e a cultura brasileira até o

fim de sua trajetória, o que permitiu que o status quo da obra permanecesse inabalado [...]”.

Para Olivieri-Godet (2004, p. 116), “[...] Tenda dos Milagres é o [romance] mais

representativo do pensamento heterotópico de um autor que, desde os anos [19]30, desloca e

contraria os paradigmas sociopolíticos e morais das elites brasileiras”. Endossa-se, sem

restrições, as perspectivas aventadas pela historiadora, por Olivieri-Godet e também por

Olinto. Assim, é justamente desta possibilidade de leitura que se trata a proposta de

abordagem aqui empreendida, ou seja, perscrutar a obra com a intenção de observar qual o

país mestiço que Amado projeta, em que ele se singulariza em relação àquele enunciado

oficialmente.

Nesta perspectiva, cumpre uma advertência: como a proposta de Amado é de uma

mestiçagem sem exclusões, obviamente Pedro Archanjo Ojuobá vive e harmoniza em si tanto

o branco quanto o mundo negro – o que, se bem observado, se percebe já em seu nome, vez

que arcanjo remete à mitologia cristã, Pedro é o nome de um dos doze apóstolos de Cristo,

considerado simbolicamente o primeiro Papa da Igreja Católica, e Ojuobá faz referência ao

pertencimento à cultura e religiosidade afro-brasileiras. Assim, Archanjo afirma: “Sou um

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mestiço, tenho do negro e do branco, sou branco e negro ao mesmo tempo” (Tenda dos

milagres, p. 316). Note-se que a alternância de posições entre os termos “negro” e “branco”,

em orações subsequenciadas, parece indicar uma equivalência entre ambos, uma vez

harmonizados em alguém que é concomitantemente Archanjo e Ojuobá.

A análise a ser empreendida aqui, sem desconhecer a importância desta confluência,

prescinde de abordá-la mais profundamente. Tal recorte se dá justamente em face daquilo que

se objetiva neste trabalho: verificar a hipótese de uma mestiçagem singular, uma

negromestiçagem. Assim, compete investigar prioritariamente como o “mundo negro” é

figurado neste “universo mestiço” alcançado pela literatura amadiana.

Desta forma, a leitura de Tenda dos milagres proposta nesta seção, de certo modo,

reitera e confirma o que foi escrito sobre Os pastores da noite, mas, a despeito de a

abordagem ser praticamente a mesma, não há qualquer repetição: o que se observou em um é

ratificado e verticalizado no outro, que vai além. Se em Os pastores da noite Jorge Amado

procura salvaguardar vivências e valores que julga em perigo, em Tenda dos milagres o

alvitre é percorrer, discutir, contrapor e projetar uma história e uma formação nacionais que

sejam fundamentadas na mestiçagem e no povo, cuja alma, já o disse Marotti (1973, p. 70),

Amado vislumbra negra149

. Em outras palavras, trata-se de um país abalizado de um povo

negromestiço.

O romance se estrutura a partir de dois eixos temporais, um presente (1968) e outro

pretérito (1868 a 1943). O primeiro cobre o Ano do Centenário de Archanjo, quando se

erigem comemorações em torno de seu nome150

. Já o segundo, remonta exatamente ao

período de vida de Mestre Pedro, ou seja, setenta e cinco anos. Os vinte e cinco anos de

diferença entre a data limite de um eixo temporal e o início do outro são de absoluto silêncio –

tanto em relação à narrativa, uma vez que não há qualquer referência a este período, quanto

no que concerne à obra de Archanjo, esquecida, desconhecida, silenciada, por fim. Segundo

Olivieri-Godet (2004, p. 117), esta “[...] dupla articulação temporal desperta a atenção do

leitor para o abismo que separa o vivido [1868-1943] da narração do vivido [1968], colocando

149

“Jorge Amado, nell‟evoluzione di una tipologia, evolve nello stesso tempo una mentalità che lo porta a

identificarsi sempre piú con l‟anima popolare, e quest‟anima è negra” (“Jorge Amado, na evolução de uma

tipologia, desenvolve ao mesmo tempo uma mentalidade que o leva a identificar-se sempre mais com a alma

popular, e esta alma é negra”. Tradução nossa para fins deste trabalho). 150

Há muitos textos acadêmicos nos quais o sobrenome de Mestre Pedro é grafado sem a letra “h”, Arcanjo

portanto. Como esta grafia é algo comum, é possível que algumas edições de Tenda dos milagres tenham sido

publicadas constando “Arcanjo” ao invés de “Archanjo”. Neste trabalho, em geral conservar-se-á “Archanjo”

como padrão em respeito à edição utilizada, grafando-se “Arcanjo” quando em citação de outrem, se assim

estiver no original. Ademais, Manzatto (1995, p. 127) explica sobre o “h”: “Se se tem em conta que em fins do

século passado o português usado no Brasil era antigo, há de se compreender que essa forma de grafia

corresponde às necessidades do romance [...]”.

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em evidência as manobras empregadas pelas elites da nação para transformar a história em

ideologia”. Isto é, possibilita o cotejo entre o que deveras foi a vida de Archanjo e o discurso

oficial sobre esta mesma biografia, que visa adequá-la aos estreitos padrões da “fina flor”

brasileira151

.

A narrativa se desenrola a partir de vinda de James D. Levenson ao país em 1968,

primeiro eixo temporal, com o compromisso de ministrar uma série de conferências na

Universidade do Brasil, situada no Rio de Janeiro. Após as atividades acadêmicas, e tendo

recusado uma enxurrada de outros convites, o “[...] filósofo, matemático, sociólogo,

antropólogo, etnólogo, muita coisa mais, professor da Columbia University, Prêmio Nobel de

Ciência [...] e, como se tudo isso não bastasse, norte-americano” (Tenda dos milagres, p. 31)

embarca para a Cidade da Bahia sem, no entanto, revelar o motivo da viagem. Sua chegada à

capital baiana é acompanhada de grande alvoroço promovido tanto pela imprensa, quanto por

professores. Ana Mercedes, repórter e poetisa, destaca-se entre todos – e todas – no saguão do

aeroporto e logo desperta a atenção do sábio estadunidense, que se encanta. Marcos, ligado ao

Jornal da Cidade, toma da palavra na coletiva de imprensa e faz a primeira pergunta, que

versa sobre Herbert Marcuse e Karl Marx, questão a que Levenson se recusa a responder,

posto estivessem em uma entrevista, não em uma aula ou palestra. Ademais, não tinha vindo à

Bahia com intuito de discussões acadêmicas, mas para conhecer a “[...] a cidade onde viveu e

trabalhou um homem notável, de idéias profundas e generosas, um criador de humanismo,

151

Manzatto (1994, p. 123) fala em três ou quatro tempos narrativos, cada um correspondente a uma época e a

um narrador, “[...] quase que 3 histórias distintas. Assim, um plano é o de Fausto Pena, escrito na primeira

pessoa do singular e contando sua vida e seus problemas no ano de 1968; outro plano é o das comemorações do

centenário de Pedro Archanjo, situado também em 1968, mas escrito na terceira pessoa do singular e cujo

narrador não é Fausto Pena; o terceiro plano é o da vida de Pedro Archanjo, e que conta sua história [...]; narrado

na terceira pessoa. Este último plano constitui a pesquisa realizada por Fausto Pena, e supõe-se que seja ele o

narrador”. O quarto tempo, apenas aventado, poderia ser o “[...] tempo da leitura: o tempo da retomada da figura

de Archanjo pelo leitor do romance. [...] tempo de ação no combate ao racismo”. Nelson Pereira dos Santos

relata que a multiplicidade de tempos e espaços, bem como de narradores constituiu um problema no que tange à

adaptação do romance para o cinema. O cineasta afirma: “A solução que encontrei foi a de fazer de conta que o

filme é um espetáculo de televisão, tomando como espetáculo de televisão aquele que começa quando se liga o

televisor e termina quando ele é desligado. Nesse tempo, em torno de duas horas, tudo pode acontecer em

relação ao espaço e tempo e especialmente com o narrador, que pode mudar quando menos se espera, passando

dos momentos dramáticos ficcionados para o relato jornalístico, sem esquecer o delicioso imaginário da

publicidade. Dentro dessa concepção de narrativa caótica, foi resolvida com verossimilhança a passagem do

presente para o passado, e vice-versa, bem como a mudança de espaço e de narrador” (SANTOS, 1997, p. 31).

Ruchti (1995, p. 59), que procura investigar a figura do autor entre as personagens escritoras de Tenda dos

milagres, faz uma divisão semelhante à de Manzatto, designando-a “tre livelli del discorso” (três níveis do

discurso). Embora esta divisão seja extremamente funcional para as análises propostas por Manzatto que, dentre

outras coisas, analisa o foco narrativo, e por Ruchti, já que a cada nível de discurso corresponde uma

personagem-autora, pouco acrescentaria para a discussão proposta por esta investigação, uma vez que está

limitada a observar a mestiçagem. Assim, um dos três planos, como propõe Manzatto, ou um dos três níveis do

discurso, como prefere Ruchti, aquele que se refere às agruras de Fausto Pena, muito pouco acrescenta à

temática pretendida, de modo que não se justifica considerá-lo em separado.

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vosso concidadão Pedro Archanjo. Para isso, e somente para isso, vim à Bahia” (Tenda dos

milagres, p. 30).

O silêncio que se seguiu a esta revelação, e que se estendeu até um elogio do

estadunidense a Ana Mercedes, é o mesmo daquele que se espraiou entre os vinte e cinco anos

que separam a morte de Archanjo da vinda de James D. Levenson à Bahia e que resulta do

total apagamento da obra e do autor, ou seja, deriva de uma intensa produção de esquecimento

arquitetada pelas elites baianas.

Uma vez rompido o silêncio perpetrado, a oficialidade baiana, bem como a imprensa e

os intelectuais da terra, iniciam um processo de apuração a respeito da vida de Archanjo e, em

seguida, de depuração152

. É, pois, os meandros e pressupostos desta apropriação deformativa

que Amado revela e denuncia.

O leitor passa a desvendar a história de Archanjo, assim como os motivos pelos quais

sua obra foi obliterada, a partir do momento em que Levenson, por intermédio de Ana

Mercedes, contrata Fausto Pena – poeta, sociólogo e cabrão – para vasta e documentada

pesquisa sobre Mestre Pedro. Em verdade, aquilo que se lê acerca da vida de Pedro Archanjo

remonta, em grande parte, ao trabalho de devassa empreendido pelo sociólogo. Fosse de outro

jeito, ficasse a cargo das elites a história daquele que as desafiou, e o leitor não seria

apresentado a “[...] personagens marginais, injustiçados pela sociedade, que se recusam a

continuar excluídos da literatura ou vistos de cima com olhar condescendente. [que]

conquistam seu próprio espaço e avançam para o primeiro plano” (MACHADO, 2006, p. 80).

É justamente quando Tenda dos milagres começa a adentrar, através da escrita de

Fausto Pena, na vida de Pedro Archanjo, que “[...] o texto ativa a memória histórica sobre as

componentes africanas da cultura baiana, evidenciando a origem do preconceito, da divisão e

da hierarquia sociais” (OLIVIERI-GODET, 2004, p. 120).

Há, salvaguardadas as devidas proporções, uma parelha entre a escrita de Fausto Pena

sobre Archanjo, quando a sociedade em derredor já o havia obliterado, e a do romancista

Jorge Amado, que escreve Tenda dos milagres em um momento no qual a Ditadura Militar

objetivava neutralizar as discussões étnico-raciais no país, então crescentes. A adoção do

“mito da democracia racial” como discurso oficial dos generais remete, pois, aos vínculos de

dependência com os Estados Unidos, às relações mantidas com o governo sul-africano, país

então sob o regime de apartheid, bem como à necessidade inerente a qualquer regime

152

O termo “depuração”, referindo-se à remoção de impurezas de uma superfície que se pretende imaculada, é

utilizado aqui e doravante a partir do ponto de vista das elites que operam este processo no romance. Portanto,

sempre que mencionado, evoca a construção de uma narrativa para Archanjo que diverge amplamente do que foi

sua vida e obra.

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ditatorial de falsear uma homogeneidade estável em contextos marcados por uma

heterogeneidade instável. É neste plano que a história de Pedro Archanjo aponta para as

fissuras sociais e evidencia o continuum de exclusão racial que as acarreta. De acordo com

Oliveira:

Assim, no exacto momento em que a sociedade brasileira (re)formulava seus

projetos de identidade nacional, partindo do pressuposto de que havia um só povo e

uma única nação, tendo o Estado político-jurídico como guardião e provedor, sendo

esta a única forma capaz de conduzir a nação ao seu destino de desenvolvimento e

progresso social baseados no capitalismo, Jorge Amado publica Tenda dos Milagres

e dá visibilidade a personagens representativas de grupos étnicos considerados

periféricos ou marginais (OLIVEIRA, 2006, p. 14).

Para Calixto (2011, p. 130), em face do relatado acima, “[...] Amado situou a ação do

herói de seu romance em um contexto histórico de grande avanço das teorias racistas e de

condenação da mestiçagem étnico-cultural”. A julgar pela política dos generais no que

tangencia as lutas de afirmação racial no Brasil, talvez se possa mesmo inferir uma tentativa

do escritor baiano em falar dos anos de chumbo por meio da evocação de um tempo pretérito

– ou, pelo menos, de expor algumas raízes da desigualdade estruturante da sociedade

brasileira.

Na medida em que os eventos da vida de Pedro Archanjo se descortinam, o leitor entra

em contato com personagens que possuem equivalência extraliterária e que assinalam

passagens deveras destoantes de uma nação constituída sob o signo de uma “democracia

racial” – artifício que favorece a interpretação de um propósito em revelar a face obscura do

embuste, isto é, evidenciar justamente sua inexistência. São os casos, por exemplo, das

personagens Nilo Argolo e Pedrito Gordo, bem como do babalorixá do Ilê Ogunjá Procópio

de Oxóssi, as duas primeiras como agentes de um racismo institucionalizado e a segunda

como contraparte às políticas de cunho racista.

O catedrático de Medicina Legal da Faculdade de Medicina da Bahia, Dr. Nilo Argolo

é, em grande parte, inspirado no médico maranhense radicado na Bahia, e também professor

da mesma instituição, Raimundo Nina Rodrigues, falecido em 1906 e já devidamente

comentado na primeira seção – talvez o mais pessimista dentre os que tentavam traçar planos

para o país. Extrapola-o, porém, na medida em que a personagem se constitui como uma

representação arquetípica do racismo, ou seja, como uma ficcionalização pura e simples da

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natureza, da essência, e da ampla abrangência de um conceito – ou, no caso, de um

preconceito153

.

Pedrito Gordo, por sua vez, remonta fielmente às campanhas contra os candomblés

baianos levadas a termo por Pedro Azevedo Gordilho, alcunhado Pedrito, delegado auxiliar da

1ª Circunscrição, nas imediações da Piedade, entre os anos de 1920 e 1926. De acordo com

Lühning (1995/1996, p. 195), Pedrito “[...] não foi o primeiro, nem foi o último delegado a

perseguir o candomblé. Foi, porém, um dos mais violentos e temidos, e de certa forma tornou-

se um símbolo da perseguição durante uma certa época”.

Sobre o babalorixá Procópio, contemporâneo e opositor ao delegado auxiliar Pedro

Gordilho, Amado, em entrevista a Raillard (1990, p. 40), afirma que, dentre todos os pais de

santo da Bahia, ele foi o mais perseguido, “[...] tinha as costas marcadas pelo chicote da

polícia”. Procópio, conjuntamente a Archanjo, personagem síntese de diversas personalidades

negras do mundo “real”, encenam a luta contra o racismo, que se configura na articulação de

teoria e prática entre Nilo Argolo e Pedrito Gordo154

. Neste contexto, é possível flagrar

Archanjo como o exato oposto de Nilo Argolo e, por conseguinte, se o médico e professor foi

aqui definido como uma representação arquetípica do racismo, Archanjo pode ser

inversamente conceituado como uma representação arquetípica do antirracismo, ou seja,

como “[...] a própria idéia mestra do romance: a possibilidade de união, de mestiçagem [...]”

(MANZATTO, 1994, p. 149). O embate de Archanjo contra o racismo manifesto

principalmente em Nilo Argolo e Pedrito Gordo, mas extensivo à boa parte da sociedade

baiana, direciona a leitura do segundo eixo temporal, ou seja, dos setenta e cinco anos da vida

de Mestre Pedro.

153

Não obstante a associação entre Nilo Argolo e Nina Rodrigues seja algo corrente nos estudos sobre Tenda dos

milagres, cumpre informar que tal parelha é funcional, mas, talvez, não seja exatamente precisa, senão com

ressalvas. Acontece que, se por um lado as teorias defendidas por Nilo Argolo são as mesmas do médico e

professor maranhense, incluindo entre elas a degeneração dos povos mestiços, por outro Nina Rodrigues nunca

apoiou ou aceitou a violência policial contra a população negra, que tinha os candomblés como principal alvo. Já

Nilo Argolo é a representação arquetípica do racismo, uma vez que se vincula às premissas do evolucionismo e

do darwinismo social, bem como à antropologia criminal de Lombroso; apoia a tentativa de expurgo dos

candomblés baianos, do samba e da capoeira, faz projetos de cunho amplamente segregacionista, como a instituir

e oficializar um regime de apartheid, além de ser um grande entusiasta do “Führer” Adolf Hitler, uma vez que o

compara a Cristo, designando-o novo redentor da humanidade. As perspectivas adotadas por Nilo Argolo que

excedem as teorias abraçadas pelo médico no exercício de sua cátedra não condizem com a postura de Nina

Rodrigues – o que não lhe diminui o racismo de suas premissas científicas, obviamente. Assim, talvez seja mais

justo admitir uma grande influência de Nina Rodrigues para a conformação da personagem Nilo Argolo, mas

evitar afirmações que mal enquadrem um na moldura do outro. 154

“Pedro Archanjo é a soma de muita gente misturada: o escritor Manuel Quirino, o babalaô Martiniano Eliseu

do Bomfim, Miguel Santana Obá Aré, o poeta Artur de Sales, o compositor Dorival Caymmi e o alufá Licutã – e

eu próprio, é claro. De todos eles Archanjo incorpora um traço, uma singularidade, a preferência, o tom da voz, o

gosto da comida, o trato das mulheres, a malícia” (Navegação de cabotagem, p. 139).

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4.1 DOS SENTIDOS DO CANDOMBLÉ155

Em determinado momento do romance, quando pretende situar o espaço onde Lídio

Corró produz e vende seus quadros, a Tenda dos Milagres que dá nome ao livro, como o

elemento vital de todo o centro velho da Cidade da Bahia, Amado faz referência ao “[...]

Mercado de Yansan (ou de Santa Bárbara, à escolha e gôsto do distinto” (Tenda dos milagres,

p. 116). Embora posicionada quase despretensiosamente em meio a tantas outras localidades

citadas, há qualquer coisa de específico na forma como Amado se reporta ao Mercado que

talvez justifique a necessidade de empreender alguma atenção a tal nomenclatura.

A dupla possibilidade terminológica advinda com a mestiçagem ou, mais

especificamente, com o sincretismo, admite que a mesma localidade seja associada a uma

santa católica, bem como a um orixá do panteão nagô. Este procedimento não é,

sobremaneira, exclusividade do referido Mercado, mas configura uma constante entre festas e

estabelecimentos comerciais que se espraiam por ruas e ladeiras da capital baiana. Assim, a já

referida Festa de Nosso Senhor do Bomfim, que acontece toda segunda quinta-feira do ano, é

também a Procissão das Águas de Oxalá para o povo de santo; a Festa de Santa Bárbara, a 04

de dezembro, é a mesma Festa de Iansã e a Festa de São Roque, a 16 de agosto, é igualmente

Festa de Obaluaiyê. De forma idêntica, lojas de artigos religiosos ligados ao candomblé ou

mesmo as inúmeras bancas de folhas que se espalham pela cidade fazem referências a santos

católicos nos nomes que as identificam, com grande incidência de Santas Bárbaras e Sãos

Jorges, haja vista a famosa Feira de São Joaquim156

. É possível verificar as mesmas

ocorrências também no plano estritamente religioso: através da ferramenta de busca existente

no sítio eletrônico do projeto “Mapeamento dos Terreiros de Salvador”, cuja coordenação

geral esteve a cargo do Prof. Jeferson Bacelar, constata-se a existência de, ao menos, quatro

Terreiros de candomblé dedicados a Iansã, mas que se referem à Santa Bárbara no nome que

155

O título deste tópico poderia ser “Dos negros sentidos em Tenda dos milagres”, entretanto, se dotado de

tamanha amplidão, incidiria em muitas e desnecessárias repetições daquilo que já fora tratado em Os pastores da

noite. Os sentidos da festa, da amizade, da alegria, do riso permanecem incólumes se comparados um e outro

romance, embora sejam mais aprofundados em Tenda dos milagres. Um exemplo importante desta continuidade

pode ser percebido quando da morte de Archanjo. Neste contexto, Mestre Budião, velho capoeirista, insiste em ir

ao enterro do amigo de longa data, a despeito de sua sobrinha tentar dissuadi-lo da ideia por causa das limitações

advindas com a idade. À tentativa da sobrinha, Budião responde exaltado que além dos compromissos de

amizade que o ligavam ao falecido, Archanjo teria sido o homem mais sério e cumpridor que tinha conhecido. A

sobrinha estranha tais qualificativos, uma vez Mestre Pedro fosse tão festeiro. Mestre Budião encerra a conversa:

“Falo que era sério de retidão, não de cara fechada” (Tenda dos Milagres, p. 53). 156

Em recente viagem a Porto Alegre, por ocasião de uma bolsa sanduíche na Pontifícia Universidade Católica

do Rio Grande do Sul (PUCRS), foi possível perceber que o mesmo ocorre na capital gaúcha. No Partenon,

bairro cortado pela Av. Bento Gonçalves, na qual se localiza uma das entradas da Universidade, além de alguns

Terreiros de candomblé cujas fachadas são ilustradas por uma mistura de santos católicos e orixás, pode-se

encontrar a loja de produtos religiosos afro-brasileiros “São Jorge”.

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ostentam e outros três que envergam o nome de São Jorge – sendo que um deles se declara

Terreiro de Umbanda157

.

Ora, talvez se possa perscrutar tais ocorrências por outro caminho além daquele

vinculado a uma discutível associação sincrética entre santos e orixás – sem que isso incida

em desmerecimento da fé ou da expressão religiosa de alguém. Não é difícil perceber a

existência de uma primazia e de uma preponderância simbólicas do elemento branco/católico

em relação ao componente negro/candomblé nas nomenclaturas que designam festas, lojas ou

mesmo instituições religiosas que veiculam um caráter sincrético, tal como o Mercado de

Iansã – ou de Santa Bárbara, situado na Baixa dos Sapateiros, em Salvador158

. Ainda que não

se traduzam na prática, sempre muito mais relacionada às tradições negras do que cristãs, esta

primazia e esta preponderância simbólicas talvez indiquem, através de um processo de

referencialização católica, uma tentativa de legitimação da fé afro-brasileira em face de um

contexto que a repudia e oprime.

Ora, se bem observada, a forma encontrada por Amado para indicar a natureza

sincrética do Mercado constitui uma inversão da tendência à referencialização católica em

detrimento do destaque à religiosidade afro-brasileira. Ao invés de demarcar o espaço – físico

e simbólico – como domínio de Santa Bárbara, mencionando Iansã entre parênteses, o

romancista baiano prioriza e privilegia o orixá. Nesse sentido, a frase que se segue ao nome

da santa católica é reveladora: ao condicionar o nome do Mercado ao gosto e à escolha de

quem a ele se referir, Amado põe a nu o próprio gosto e a própria escolha: Mercado de Iansã.

Como se viu, em Os pastores da noite a forte presença do candomblé não se

configura, nas narrativas que compõem o romance, mera coadjuvante em um painel sobre o

povo da Bahia, muito menos denota um exotismo estéril. Da mesma forma ocorre em Tenda

dos milagres: a religiosidade afro-brasileira igualmente produz sentidos e norteia a escrita –

quiçá de forma mais verticalizada do que nas histórias de Martim, Massu e Jesuíno.

157

Segue a lista com os nomes dos Terreiros: “Ilê Axé Santa Bárbara (Iansã)”, três denominam-se “Terreiro de

Santa Bárbara”; “Casa Recreativa São Jorge”; “Terreiro de Umbanda São Jorge Guerreiro” e “Terreiro de São

Jorge (Odé Toquí)”. As informações podem ser acessadas através do sítio eletrônico www.terreiros.ceao.ufba.br. 158

Aliás, ao utilizar as ferramentas de busca em acervo disponíveis nos sítios eletrônicos dos jornais A Tarde

(www.atarde.com.br) e Correio da Bahia (www.correio24horas.com.br), principais periódicos baianos, e

pesquisar aleatoriamente pelos termos “Mercado de Santa Bárbara” e “Mercado de Iansã”, constatou-se que a

pesquisa baseada na santa católica retornou o dobro de resultados do que aquela cujo parâmetro foi o orixá.

Registre-se que todas as notícias que foram elencadas a partir da divindade iorubá constavam, também, entre

aquelas arroladas na pesquisa a partir da “santa guerreira”. Obviamente, tais dados foram obtidos de maneira

nada científica e, em hipótese alguma, permitem concluir o que quer que seja. Ainda assim, há a possibilidade

que indiciem certo escamoteamento ou, pelo menos, a secundarização dos elementos de origem africana que

compõem aquilo que deveria ser a exata outra metade de tudo o que se pretende reconhecer como sincrético.

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199

Para além daquelas já estudadas em Os pastores da noite e que permanecem em Tenda

dos milagres, quais sejam, os valores conformativos de um povo, a representação do

candomblé neste segundo romance produz – ou verticaliza – três outras ordens de

significação, a saber: um sentido míticoidentitário; um sentido socioidentitário e, por último,

um sentido metonímico. A primeira diz respeito à filiação mítica de Archanjo e às

possibilidades semânticas que dimanam desta relação; a segunda relaciona-se à atuação do

protagonista em defesa de seu povo e, a terceira, concerne à resistência do candomblé como

representação da resistência do povo negro e congrega em si as duas outras ordens de

significação.

A premissa que orienta a conformação de uma análise acerca do sentido

míticoidentitário do candomblé remete à abordagem da obra amadiana proposta por Leite

(2010, p. 1), que afirma: “[...] há personagens amadianos que agem de acordo com as

características dos orixás que os regem [...]”. Em outras palavras, o pesquisador salienta que,

ao invés de uma hipotética superficialidade, tantas vezes alegada por críticos vários, o texto

alcançado pelo escritor grapiúna apresenta um complexo arcabouço mitológico afro-brasileiro

que o estrutura e confere sentido. Em sua dissertação de mestrado, já devidamente publicada,

Leite (2008) promove a leitura do romance Dona Flor e seus dois maridos a partir dos mitos

relacionados a Oxum, mãe mítica de Flor, e de Exu, eleda de Vadinho, do que resultam novas

perspectivas de elucubração sobre a produção amadiana. Possibilidades de leitura cujo

embasamento “[...] pode ser encontrado nas ruas da velha „Cidade da Bahia‟, nos candomblés

de orixás, nos cultos de Baba-Egum, nos salões de festa da umbanda e nos escritos

antropológicos” (LEITE, 2008, p. 141).

De acordo com Santos (2008, p. 203), a cosmogonia nagô concebe o ser humano como

“[...] constituído por elementos coletivos, representações deslocadas das entidades genitoras,

míticas ou divinas e ancestrais ou antepassados [...] e por uma combinação de elementos que

constituem sua especificidade, [...] sua unidade individual”. A antropóloga argentina ainda

explica que cada “[...] elemento constitutivo do ser humano é derivado de uma entidade de

origem que lhe transmite suas propriedades materiais e seu significado simbólico” (SANTOS,

2008, p. 204). Segundo Luz (2000, p. 49), dentre todos esses elementos, aquele que se faz

preponderante “[...] caracteriza o eleda, ou orixá da pessoa, e também sua qualidade

preponderante de axé, de princípio e de poder”. Prandi (2005c, p. 38) afirma que o eleda, isto

é, o orixá pessoal, estabelece “[...] a ligação do presente com o mito, com o passado remoto

que age sobre o presente [...]”. Esta contínua relação entre tempo mitológico e tempo

presente, orun e aiyê, estabelece uma circularidade complementar entre este e o outro mundo,

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o que resulta em “[...] princípios e valores religiosos [que] perpassam a vida do africano de tal

modo que ele vive em estado de constante tensão dialética entre o mundo imanente e o

transcendente” (LUZ, 2000, p. 92)159

.

Verifica-se, portanto, uma relação intrínseca, ininterrupta, perenal e convergente entre

aiyê e orun de modo que o ser humano, ara aiyê, é, em si, um microcosmo representativo do

transcendente e por ele, em certa medida, condicionado. Como já expresso, vários sãos os

aspectos conformativos da noção de ara aiyê. Prandi arrola, por exemplo, quatro “almas”:

[...] a parte espiritual [do ser humano] é formada de várias unidades reunidas, várias

almas, cada uma com existência própria. As unidades principais da parte espiritual

[...] são o ori, a personalidade-destino que define a individualidade; o egum, ou

espírito propriamente dito, que é a alma que reencarna, ligando as várias gerações da

mesma família; o orixá pessoal, que define a origem remota da família e liga a

pessoa à natureza, ao mito, às origens. Há também o emi, o sopro vital, que permite

à vida manifestar-se. Cada parte dessa precisa ser integrada durante a vida no todo

que forma a pessoa, e cada uma delas tem um destino diferente depois da morte

(PRANDI, 2005b, p. 56).

Não obstante seja a reunião de todos estes elementos, a responsável por possibilitar o

entendimento dos sentidos específicos que individualizam uma pessoa, ainda segundo Prandi

(2005b, p. 56), cabe ao orixá pessoal, ao eleda, definir “[...] a origem mítica de cada pessoa,

suas potencialidades e tabus”. É possível afirmar, portanto, que o ara aiyê se constitui em

herdeiro das potencialidades míticas de seu eleda, no que configura uma sua representação

infinitesimal.

É a partir desta relação de caráter especular que se estabelece entre ara aiyê e eleda

que se pode discorrer, sempre em tons de generalização, por exemplo, sobre o dengue, a

sedução e a sensibilidade próprios a uma filha de Oxum; a calma, a espiritualidade e o

equilíbrio inerentes a um filho de Oxalá; a força e a impulsividade relacionadas a Ogum e

Oxóssi; o dinamismo e o vigor ligados a Iansã; o hedonismo, o senso de justiça e liderança

dos filhos de Xangô; a beleza, a inteligência e a amabilidade dos herdeiros de Logunedé, entre

tantas e tantas outras características e tantos e tantos outros orixás160

.

159

O que o pesquisador Marco Aurélio Luz afirma sobre o africano pode ser utilizado para falar daquele que se

identifica com o candomblé, ligando-se à religião através dos rituais de iniciação, uma vez que os valores

cosmogônicos que estruturam o pensamento religioso afro-brasileiro e africano não se distanciam tanto. 160

Obviamente, os qualificativos elencados redundam em generalizações que se associam a um arquétipo geral

de cada orixá. Contudo, como o ser humano não é constituído apenas do eleda, mas também de outras matérias

míticas que influenciam no processo de individualização, bem como de outros orixás que porventura partilhem o

ori, a cabeça do ara aiyê, a estruturação da personalidade de alguém pode variar em relação aos modelos

referidos. As informações presentes neste parágrafo foram selecionadas e coligidas a partir de artigos de Lépine

(2006, p. 25-27) e Cossard (2006, p. 137).

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Nesta perspectiva, a descendência mítica de Pedro Archanjo, ou seja, a relação filial

que se estabelece entre a personagem e seu respectivo eleda, evoca sentidos que são

impressos na tessitura do enredo e projetam uma leitura que avança para além da constatação

de um simples epíteto, “Pedro Archanjo, filho de Exu”:

Por vezes diziam ser Archanjo filho de Ogun, muitos pensavam-no de Xangô, em

cuja casa tinha alto posto e título. Mas, quando punham os búzios e faziam o jogo,

quem de imediato respondia, antes de outro qualquer, era o vadio Exu, senhor do

movimento. Vinha depois Xangô por seu Ojuobá, Ogun estava perto e vinha

Yemanjá. Na frente, Exu a rir, amedrontador e fuzarqueiro. Não resta dúvida,

Archanjo era o Cão. (Tenda dos milagres, p. 98).

Antes de quaisquer considerações que possam ser alcançadas a partir da relação Exu-

Archanjo, é necessário e mesmo imperioso atentar para a última frase do fragmento transcrito,

uma afirmação contundente, desprovida de dúvidas: “Archanjo era o Cão”. Da forma como

grafado, com instigante letra maiúscula, o que faz o substantivo ser tomado como nome

próprio, “Cão” dá a impressão de remeter à acepção de Diabo; absoluta antípoda ao Deus

judaico-cristão. Ora, o encadeamento imagético Archanjo-Exu/Archanjo-Cão, parece sugerir

uma associação entre o orixá e a representação arquetípica cristã de tudo aquilo que é

essencialmente negativo, mal e ruim – acepção com a qual o romancista baiano endossaria

uma série de leituras errôneas e preconceituosas acerca de Exu.

O mundo ocidental, quando em contato com as sociedades negro-africanas,

engendrou, a partir do olhar de um “Eu Cristão”, sua interpretação de tudo aquilo que lhe

fugia ao entendimento, a começar pelo sistema de valores religiosos dos povos negros. Tal

leitura, que subsiste com força ainda hoje, evidentemente reproduz um olhar etnocêntrico

baseado em uma política de assimilação do “[...] Outro ao Mesmo numa economia narcísica

que visa reforçar o sentimento de superioridade do Eu” (LINS, 1997, p. 102)161

. Por

conseguinte, a desvalorização e demonização das culturas negras, promovidas pelas práticas

coloniais europeias, cumpriam, além da incapacidade de lidar com o Outro, o jogo do poder:

ao impelir o Outro a uma negação de si em prol de transmudar-se no Eu, o Ocidente

desmontava, ainda que parcialmente, as estruturas simbólicas nativas dos povos colonizados,

o que resultava em uma menor e menos disseminada capacidade de resistência e

enfrentamento.

Tais estratégias de incremento e perpetuação do poder ocidental frente a outros povos,

quais sejam, são facilmente perceptíveis no campo do sagrado. Como já exposto, os valores 161

Relembre-se, a este respeito, o que se discutiu na primeira seção no concernente ao “Mito de Cam” e ao papel

da Igreja na legitimação da servidão negra.

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que dimanam da religiosidade dão coesão e identidade a um grupo, o que favorece

amplamente o prélio contra uma ordem de submissão. Não à toa, a prática salvacionista e de

conversão da Igreja tenha sempre ladeado os projetos coloniais da Europa Católica.

No que concerne aos povos negros transplantados à revelia para as Américas e, mais

especificamente, àqueles direcionados para o Brasil, a reconstrução de estruturas sociais que

comportassem e expandissem os valores tradicionais africanos conviveu intimamente com as

pressões da ordem instituída visando o desmantelamento deste mesmo sistema simbólico.

Assim, quando Lühning, em passagem já citada, assevera que Pedro Gordilho não fora o

primeiro nem o último representante da ordem e do poder soteropolitanos a perseguir os

candomblés, revela uma prática cujo início remonta aos primeiros tumbeiros aportados aqui e

que se espraia e perpetua nos dias contemporâneos162

.

É importante insistir um pouco mais neste ponto antes de retornar ao trecho citado de

Tenda dos milagres. Infundir, através da prática da conversão ao cristianismo, uma rígida

dicotomia entre o bem e o mal – bipolaridade de certa forma estruturante da teologia cristã –

naqueles cujas culturas e sistemas religiosos dispensam tal antípoda, corrobora com a

conformação de um estigma que envolve e deprecia, por má e equívoca, toda cultura que não

seja de natureza cristã. Assim, o processo de marginalização e apagamento das tradições

ancestrais africanas transladadas para o Brasil confunde-se indissociavelmente com a

demonização de tudo que a elas se refere – processo que toma novo fôlego na

contemporaneidade com o avanço das Igrejas Neopentecostais e o acirramento das práticas de

conversão.

162

Impossível não fazer referência à destruição do Terreiro Oyá Onipo Neto da iyalorixá Rosalice do Amor

Divino, situado no bairro do Imbuí, em Salvador, por órgãos da Prefeitura, no ano de 2008. A demolição parcial

do Ilê Axé, levada a cabo pela Superintendência de Controle e Ordenamento do Uso do Solo do Município

(SUCOM), iniciou-se ainda com filhos e filhas de santo no interior da casa, impedidos de retirarem do Axé os

seus pertences e os objetos sagrados do culto. Da mesma forma, importante salientar o “silêncio sorridente”,

parafraseando Caetano e Gil, dos órgãos midiáticos e governamentais baianos diante da escalada da intolerância

religiosa e da violência contra o povo de santo. Violências que vão desde acumular sacos de lixo nas entradas

dos Terreiros a invasões, ameaças e recorrentes assassinatos de mães, pais e filhos de santo. Recentemente, no

dia 20 de janeiro de 2012, o antropólogo Ordep Serra, coordenador do projeto Lorogun, que estuda e combate as

agressões ao povo de santo, publicou em seu sítio eletrônico pessoal um Manifesto contra a intolerância

religiosa e o racismo, em defesa do candomblé e dos cultos afro-brasileiros em geral. Segue um trecho: “Por

muito tempo, neste país, alimentamos o furor de um racismo hipócrita fazendo de conta que isso não existia por

aqui, fingindo que não temos „problema racial‟. Hoje, poucos apregoam a „democracia racial brasileira‟. Mas

agora nos defrontamos com um triste casamento de racismo com intolerância religiosa. Ora, convém lembrar que

racismo é crime e intolerância religiosa também. Representam um desacato a nossas leis maiores, a começar pela

própria Constituição Brasileira. [...] É momento de cobrar com vigor o resgate da imensa dívida do Brasil para

com os afro-descendentes. Neste contexto, torna-se imperativo reconhecer que é imoral e ilegal o ataque aos

adeptos dos cultos afro-brasileiros e a sua religião. Cidadãos dignos, seja qual for sua crença, não podem admitir

que a liberdade religiosa seja violada, que os adeptos do candomblé sejam desrespeitados, ofendidos, injuriados,

maltratados, perseguidos” (SERRA, 2012).

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No que tangencia o culto dos orixás, dos inquices e dos voduns, a produção do estigma

depreciativo, porquanto associado a práticas demoníacas, ocorreu pela atribuição de uma

significação diabólica a Exu. A construção desta parelha deriva, talvez, não apenas de uma

impossibilidade teológica cristã de apreender a semântica própria de Exu, mas também e

conjuntamente da concepção estratégica do labéu a ser imputado.

O mundo ocidental é fundamentado sob a diretriz antipódica do bem e do mal, do puro

e da mácula; ou se é um ou se é outro, “isto ou aquilo”, como resume Paz (1982, p. 124). Não

sem motivo, Verger (1992, p. 18) comenta que os relatórios produzidos por missionários

cristãos na África “[...] refletem geralmente uma bem fundada fé cristã, uma austera

moralidade e noções seguras do bem e do mal, tudo isto pesando duramente no seu conteúdo

apesar do esforço para compreensão do objeto em vista”. Destarte, Exu, isto e aquilo por

excelência, representa uma fissura, uma incompreensão no âmbito do pensamento cristão.

Trata-se de uma realidade que destoa da lógica concernente ao Deus judaico-cristão uma vez

que “[...] sendo único, Um, o Deus Cristão não poderia ser „muitos‟. Sem o fundamento do

Um, a consciência cristã perde-se na riqueza infinita do diverso, arrisca-se ao confronto com a

radical e convulsiva estranheza do real, enxerga o diabólico” (SODRÉ, 2000, p. 148). Para

Castro:

[...] visto pela ambiguidade do seu caráter, ao mesmo tempo símbolo de forças

negativas e positivas, destruidoras e protetoras, a divindade representada por Exu

[...] terminou sendo confundido com o Diabo concebido pelo Cristianismo, ainda

mais porque é visto como símbolo da sexualidade e suas representações sempre

exibem um pênis de tamanho descomunal. Era a única entidade negra que podia

simbolizar a contraface de Deus [...] (CASTRO, 2000, p. 313).

A questão da sexualidade apontada pela etnolinguista acima citada é de suma

importância neste processo de formatação do estigma diabólico. Ora, a cosmogonia cristã

percebe a sexualidade humana como um ponto de tensão, uma vez que remete à tentação e ao

pecado original que teriam ocasionado a expulsão do Paraíso. O ideal ascético, no entanto,

não se relaciona a Exu, que, não raro, é representado com um enorme e potente pênis e cujos

domínios englobam a sexualidade. Deste confronto com a razão ocidental, impingiu-se, assim,

um binômio depreciativo a Exu: “sexo e pecado, luxúria e danação, fornicação e maldade”

(PRANDI, 2005a, p. 72).

Por outro lado, tendo-se em vista o que Exu significa no plano do dinamismo da

religião nagô, é possível inferir que, a despeito da incompreensão teológica da semântica

elegbariana, o Ocidente soube intuir muito bem as possibilidades difusoras de um estigma que

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recaísse sobre Exu163

. Em outras palavras, Exu é imprescindível ao candomblé, tudo que se

faz e tudo o que se realiza depende da participação de Exu, “[...] sem ele todos os elementos

do sistema e seu devir ficariam imobilizados, a vida não se desenvolveria” (SANTOS, 2008,

p. 131). O antropólogo Reginaldo Prandi reitera:

Exu faz a ponte entre este mundo e o mundo dos orixás, especialmente nas consultas

oraculares. Como os orixás interferem em tudo o que ocorre neste mundo, incluindo

o cotidiano dos viventes e os fenômenos da própria natureza, nada acontece sem o

trabalho intermediário do mensageiro e transportador Exu. Nada se faz sem ele,

nenhuma mudança, nem mesmo uma repetição. [...] Sem Exu nada é possível. O

poder de Exu é, portanto, incomensurável (PRANDI, 2005a, p. 74).

Barretti Filho (2010, p. 83) situa Exu como o “[...] agente da causa e do efeito, das

escolhas e suas consequências, do fazer ou não fazer, do cumprir ou do descumprir. Ele é a

dinâmica da ação, aquele que faz acontecer, pois tem o poder da „realização‟”. Soa, portanto,

estratégico estigmatizar justamente Exu como o Diabo judaico-cristão. Se é por intermédio

seu que tudo se realiza no candomblé e se a Exu todos os demais orixás rendem homenagens,

como evidencia o mito Exu respeita o tabu e é feito o decano dos orixás, coligido por Prandi

(2001, p. 42-43), admiti-lo como Diabo corresponde a aceitar igualmente a hipótese de todo

um sistema religioso dependente e intrinsecamente vinculado ao Demônio – conjectura que,

se acolhida, acarretaria em uma maior e menos dificultosa expansão das práticas de

conversão.

A julgar pelas intenções declaradas de Amado em relação ao que propunha em Tenda

dos milagres e pela perspectiva de um mundo negromestiço já pulsante em Os pastores da

noite, bem como pelas abordagens críticas do romance transcritas até aqui, seria estranho e

incoerente que o escritor baiano partilhasse do equívoco em comparar Exu ao Diabo. Tal

interpretação acarretaria o mergulho no mesmo erro de outro literato baiano, Xavier Marques,

que, a despeito de pretender uma defesa do candomblé em O feiticeiro, designa Exu como

“[...] o mau espírito, [que] exige atos propiciatórios; é uma condição para que não aconteça

desgraça ou qualquer perturbação durante a festa” (MARQUES, 1975, p. 35)164

. Assim, uma

segunda leitura da frase “Archanjo era o Cão” é necessária.

É possível vislumbrar uma inflexão do texto amadiano no sentido oposto ao da

estigmatização depreciativa caso se atente para o fato de as acepções de “Diabo” e “Cão”, ao

menos no que concerne ao falar baiano, prescindirem quase totalmente dos sentidos

163

“Elegbariana” refere-se a Elegbara, Senhor do Poder, um dos títulos de Exu. 164

Admite-se que, na exata medida da época de sua publicação, o ano de 1897, sob título Boto & Cia, O

feiticeiro representou, com ressalvas, uma defesa e um avanço em relação à religiosidade afro-brasileira.

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teológicos que as constituem originalmente. Na Cidade da Bahia, os termos “diabo” e “cão”,

grafados com iniciais minúsculas, podem designar teimosia, impetuosidade, perseverança e,

quando associados a crianças de quem se gosta, ditos com uma ternura mal disfarçada na voz

que se quer grave, um misto de espanto e gracejo diante de alguma traquinagem inofensiva.

Assim, a possível e hipotética expressão “Fulano é um diabo mesmo, conseguiu o que queria”

é, à maneira baiana de imiscuir o religioso e o mundano, elogiosa, porquanto denote

admiração em face de uma conquista improvável.

Pode-se interpelar que, apesar destes sentidos, Amado tenha registrado o termo com

letra maiúscula – o que é verdade. Contudo, é plausível avançar um pouco e inferir, talvez,

um jogo de significação opositiva no qual a conotação supera a mera denotação. Isto é, o

sentido específico vinculado ao termo “Diabo”, qual seja, a contraparte do Deus cristão, é

invocado para logo ser rejeitado e sobreposto por aqueles atrelados conotativamente a “diabo”

– não à toa muito mais próximos do campo semântico que circunscreve Exu.

Em termos finais, obviamente Exu não é o Diabo, como reitera o poeta negro José

Carlos Limeira (2008) no belo poema Outro pra Exu: “[...] para início de conversa: gosto de

dendê, farofa e quiabo / mas apesar de usar branco, vermelho e preto / sou outro verbo,

predicado e sujeito / e nada tenho de diabo / sendo mais franco, eu sou preto / e diabo é coisa

de branco!”. Da mesma forma, a acepção demoníaca atribuída a Exu não figura no texto

amadiano. E não há prova maior disso do que a própria ascendência mítica de Archanjo, que

remonta a Elegbara, ao Senhor do Poder. Ora, cabem justamente a Archanjo as atribuições de

defender, representar e liderar o povo negromestiço da Bahia contra as empreitadas racistas

promovidas pela Faculdade de Medicina, pela Polícia e pelos jornais. Nesta perspectiva, o

desconsolo de Ester em face da morte de Mestre Pedro é sintomático:

- Ai Archanjo, meu santo, por que não disse que estava doente? Como eu ia saber?

Agora Ojuobá, como vai ser? Tu era a luz da gente, nossos olhos de ver, nossa boca

de falar. Tu era a coragem da gente e nosso entendimento. Tu sabia de ontem e de

amanhã, quem mais vai saber? (Tenda dos milagres, p. 48).

O texto amadiano pontua que, ainda nas primeiras obrigações do axexê, o povo de

santo já se aglomerava na Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, de onde sairia o

cortejo, e nas praças em derredor. Eram “[...] respeitáveis ogans, filhas de santo, iaôs de barco

recente” (Tenda dos milagres, p. 56), afluência que evidencia a importância de Pedro

Archanjo para o povo negromestiço da Bahia. Talvez não seja por uma coincidência qualquer

que Amado descreva o sepultamento de Archanjo de forma semelhante à lembrança impressa

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acerca do sepultamento de Mãe Senhora, em 1966: “A notícia invade a cidade e a comove. O

enterro sai no fim da tarde da Igreja do Rosário dos Negros, no Pelourinho, se estende pelas

ruas, cortejo imenso no caminho do Cemitério das Quintas. Imenso e lento. [...] o canto do

axexê cobre o choro no adeus à iyalorixá [...]” (Navegação de cabotagem, p. 65). Não se trata

de comparar Archanjo a Maria Bibiana do Espírito Santo, Mãe Senhora Oxum Muiwà, grande

sacerdotisa do Ilê Axé Opo Afonjá, considerada a maior iyalorixá da Bahia por Vinícius de

Morais em Samba da benção. Apenas de ressaltar uma imagem possivelmente recuperada por

Amado em 1969, ano em que escreveu Tenda dos milagres, e que denota não só o grande

apreço que as figuras de Senhora e Archanjo provocaram, mas, principalmente, a dimensão de

liderança e defesa do povo e dos valores negros que desempenharam neste mundo e no mundo

ficcional.

Muitas semelhanças entre Archanjo e Exu podem ser arroladas aqui, a exemplo da

impossibilidade de se guardar qualquer segredo diante de Mestre Pedro: “Que maneira, que

léria, que poder possuía êle para abrir a bôca, o coração dos demais? Nem as mães-de-santo

mais ciosas e estritas, [...] nem elas guardavam segredos para o velho” (Tenda dos milagres,

p. 45). E não vem a ser essa uma característica de Exu, a de tudo saber, já que se constitui no

mensageiro de todos os orixás? Prandi (2001) transcreve um mito em que Eleguá, um dos

nomes que Exu assume nas Américas, ajuda Orunmilá a ser nomeado adivinho por Olofim, o

Deus Supremo, designado Olorun no Brasil. Xangô, então primeiro adivinho, havia pedido a

Olofim para que fosse substituído por Orunmilá, de quem era muito amigo, uma vez que

precisava concentrar-se nas guerras:

Olofim concordou.

Mas deveria pôr à prova a capacidade de Orunmilá.

Olofim saiu para o campo.

Levou consigo milho cru e milho tostado.

Num canteiro semeou o milho cru,

noutro, o milho torrado.

Eleguá assistiu a toda cena.

Eleguá pediu oferendas a Orumilá

e em troca lhe contou o segredo das sementes.

Olofim levou Orunmilá ao lugar da plantação [...]

Orunmilá, devidamente instruído por Eleguá,

mostrou-lhe onde estavam as sementes cruas por nascer.

Olofim se deu por satisfeito

e entregou a Orunmilá os segredos da adivinhação [...] (PRANDI, 2001, p. 60-61)165

.

165

Convém informar que este mito, tal como transcrito, talvez não seja encontrado no Brasil, posto ter sido

coligido por Prandi a partir do livro El monte, da pesquisadora cubana Lydia Cabrera.

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Esse mito, que narra como Orunmilá foi designado Babá Ifá, o adivinho, e que termina

por afirmá-lo como o único apto a ler o futuro e adivinhar corretamente o porvir, coloca em

cena também Exu/Eleguá que demonstra ser capaz de conhecer inclusive os segredos do Deus

Supremo, Olorun/Olofim. E é justamente por conhecer todas as perguntas e todas as

respostas, por saber dos mistérios do antes, do agora e do depois, característica que advém do

seu papel de mensageiro, que Exu é dotado de amplo poder de ação, de realização, de

mudança.

Considerando-se o contexto opressor vivenciado pelos povos negros no Brasil, Exu

representa, para aqueles que não o vinculam a uma concepção judaico-cristã, a possibilidade

de transformação e resistência, de não submissão. Nesta perspectiva, o pesquisador Jaime

Sodré (2009, p. 6) conclui: “[...] o arquétipo de não submissão, da coragem, da resistência,

tonifica a personagem, enveredando na leitura de um discurso heróico do protetor, libertador,

contestador da dominação, verdadeira fidelidade à memória original". Contundente, Lody

(2010, p. 96), considera Exu como “[...] o mais ativo e audaz agente libertador da história e da

cultura geral do homem africano no Brasil”. Não é, portanto, simples acaso que o papel de

liderança do povo negromestiço, de resistência contra o racismo e da transformação da

sociedade com vistas a um organismo social antirracista, sejam responsabilidade de Pedro

Archanjo: “Por acaso não era Pedro Archanjo filho predileto de Exu, senhor dos caminhos e

das encruzilhadas?” (Tenda dos milagres, p. 154). Prandi afirma:

Mas talvez o que o distingue [Exu] de todos os outros deuses é seu caráter de

transformador: Exu é aquele que tem o poder de quebrar a tradição, pôr as regras em

questão, romper a norma e promover a mudança. Não é pois de se estranhar que seja

considerado perigoso e temido, posto que se trata daquele que é o próprio princípio

do movimento, que tudo transforma, que não respeita limites e, assim, tudo o que

contraria as normas sociais que regulam o cotidiano passa a ser atributo seu

(PRANDI, 2005a, p. 74).

O “andar para frente”, tantas vezes ressaltado por Mestre Pedro como um símbolo seu

de caminhada, de abertura e ação de encontro ao porvir, do deslocar-se de um lugar a outro e

das transformações e mudanças que advém desta marcha, remonta a Exu, orixá princípio do

movimento. E se a sociedade brasileira se rege a partir de práticas racistas, Archanjo-Exu a

faz mover-se, ainda que lentamente, na perspectiva de uma outra regulação social. Na escrita

de Amado, através de Archanjo, Exu não é o Diabo, mas o herói de um povo. Desta forma, o

romancista baiano opera uma desconstrução do sentido atribuído a este orixá pelo Ocidente:

ao invés do papel de Demônio a disseminar suas vilanias, Exu representa o agente restaurador

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da dignidade social tolhida de um povo – papel e função com os quais Amado afirma tal orixá

com toda beleza e singularidade que lhes são próprias.

Cabe adentrar agora na segunda instância de análise enunciada anteriormente, ou seja,

o sentido socioidentitário que se depreende da representação do candomblé em Tenda dos

milagres. Intimamente relacionado com o sentido míticoidentitário, circularidade que se

assemelha àquela entre orun e ayiê, o sentido socioidentitário canaliza as potencialidades

advindas da reflexiva eleda/ara aiyê para que se realizem socialmente em prol do povo

negromestiço da Bahia. Em outras palavras, o que se alcunha aqui de sentido socioidentitário

é a expansão do plano identitário mítico no contexto social do aiyê através das obrigações

assumidas por Archanjo ao ser consagrado Ojuobá, os Olhos do Rei, os Olhos de Xangô:

“Nasci no candomblé, cresci com os orixás e ainda moço assumi um alto posto no Terreiro.

Sabe o que significa Ojuobá? Sou os olhos de Xangô, meu ilustre professor. Tenho um

compromisso, uma responsabilidade” (Tenda dos milagres, p. 316).

Compromisso e responsabilidade, dois imperativos que dimanam diretamente do fato

de Archanjo ser Ojuobá. Mas, a que se relacionam, em que implicam? Assim como Exu

imprime significados na narrativa de Tenda dos milagres, Xangô também o faz, em igual

proporção. Em verdade, os sentidos de um e de outro se entrecruzam na figura de Archanjo

Ojuobá e apontam para a direção de uma luta por liberdade e justiça, sentidos que marcam e

notabilizam tais orixás no contexto brasileiro, assim também como a Ogum, que marca

importante presença em Tenda dos milagres por meio de Lídio Corró, seu descendente mítico.

Como afirma Leite (2006), Pedro Archanjo toma dos instrumentos rituais e simbólicos de Exu

e Xangô na luta contra a rejeição ao povo negromestiço da Bahia. Mas, no tocante a Xangô,

quais sentidos e quais instrumentos rituais e simbólicos são estes evocados por Leite? Para

melhor compreendê-los, é importante e necessário discorrer sobre o orixá do fogo, do trovão,

das pedras-de-raio; o Alafin de Oyó e patrono de tradicionais candomblés baianos, Xangô.

Marinho (2010, p. 165) define Xangô como “[...] o saber da justiça e da política de

condução do homem em sociedade, dono do saber do poder, do governo de comunidades e

toda a sorte de sociedade. Representa a sociedade organizada, com justiça social”. Após

comentar a associação de Xangô à justiça, bem como à virilidade masculina, Lody (2010, p.

41) afirma que o orixá “[...] representa a síntese da liberdade, da altivez e da realeza [...]”, o

que ocasionou, entre os escravizados, que Xangô encarnasse “[...] o ideal de liberdade,

juntamente com Exu e Ogum”. A este respeito, Tavares (2005, p. 68-69) assevera: “Símbolo

supremo de vida, de realeza do negro, de luta, de tenacidade e de erotismo Xangô [...] figura

como o intenso fogo que alimentou a resistência escrava, que aqueceu, que temperou, que

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vivificou e solidificou a coesão negra”. Prandi e Vallado (2010, p. 148) acentuam que em um

mundo repleto de desigualdades “[...] o orixá da justiça ganhou cada vez mais importância.

Seu prestígio foi consolidado”. Os pesquisadores continuam:

Mas Xangô é mais que a história da África e mais que a história do Brasil. Seu duplo

machado visa à justiça para cada um dos dois lados que se opõem na contenda, suas

pedras-de-raio são o santuário guardião das esperanças de tanta gente que padece em

consequência das mazelas de nossa sociedade: desemprego, falta de oportunidades,

incompreensão e dificuldade no trabalho, escassez de meios de sobrevivência,

perseguição e disputas insanas, inveja, complicações legais de toda sorte, e tantas

outras coisas ruins. Apelar a Xangô, para o devoto, é buscar alento, realimentar

esperanças, prover-se para a difícil aventura da vida (PRANDI e VALLADO, 2010,

p. 151).

Xangô representa, portanto, o esteio de todo um povo, a esperança que motiva a luta

cotidiana, ininterrupta por justiça e melhores condições sociais. O oxê, machado duplo que

carrega consigo, instrumento que o identifica, simboliza o papel que o Alafin de Oyó

desempenha como “[...] mito-herói, [revela] sua justiça, sabedoria de dominar o fogo, entre

outros títulos que comporta seu caráter impetuoso, temperamental e fogoso” (LODY, 1983, p.

16). Ildásio Tavares, que foi um dos Obás de Xangô n‟Ilê Axé Opo Afonjá, Obá Aré, informa:

Ao esmiuçar a simbologia do oxê, entendo-o além de símbolo de poder de Xangô

sobre o raio e o trovão, como a resolução, a conciliação das polaridades [...], o oxê

corta para condenar, corta para absolver, exprime as ambivalências e oscilações do

julgamento. Xangô, orixá por excelência da justiça, empunha oxês de vários

formatos, inclusive quando dança no barracão (TAVARES, 2005, p. 105. Grifos do

autor).

O mito Xangô é reconhecido como o orixá da justiça, coletado por Rita Amaral em

trabalho de campo e publicado por Prandi (2001), narra uma guerra violenta em que o

exército de Xangô, embora estivesse lutando bravamente, estava sendo derrotado pelo inimigo

que, implacável e cruel, torturava e mutilava os soldados do Alafin até a morte. Desesperado e

enfurecido pela derrota, mas, principalmente, pelas iniquidades cometidas pelo exército rival,

Xangô alcançou o alto de uma pedreira e começou a golpeá-la com o oxê:

O machado arrancava das pedras faíscas,

que acendiam no ar famintas línguas de fogo,

que devoravam no ar os soldados inimigos.

A guerra perdida foi se transformando em vitória.

Xangô ganhou a guerra.

Os chefes inimigos que haviam ordenado

o massacre dos soldados de Xangô

foram dizimados por um raio que Xangô disparou no auge da fúria.

Mas os soldados inimigos que sobreviveram

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foram poupados por Xangô [...] (PRANDI, 2001, p. 245).

O oxê surge, no mito transcrito, como o instrumento do qual Xangô se utiliza para

vencer a guerra a partir dos raios que lança quando em contato com a pedreira. Nesse sentido,

o oxê torna-se o símbolo máximo da luta contra as iniquidades, representando o próprio

caráter de justiça do orixá que invariavelmente protege quando há de proteger e condena,

quando há de condenar.

Por certo, não há exagero em afirmar que Xangô, uma vez a par das potencialidades

herdadas de Exu por Archanjo, por sabê-lo um agente exponencial de mudança e liberdade,

tenha-o consagrado Ojuobá para personificar e brandir o oxê em favor do povo negromestiço

da Bahia166

. Aliás, a ideia de um vínculo entre Xangô e Exu que seja expresso através do oxê

não é de todo estranha uma vez que no “[...] no machado duplo, encontram-se gravados traços

que caracterizam a presença do orixá Exu [...]” (LUZ, 2000, p. 60).

Ojuobá significa, de forma literal, os Olhos do Rei e, por extensão, os Olhos de

Xangô. Denota, portanto, a presença do Alafin através daquele a quem se determina tudo ver,

tudo saber. Função que exige confiança, pois implica também defesa e proteção da

Comunidade-Terreiro a que se pertence e, por conseguinte, do povo de santo e da tradição do

Axé.

Foi a partir desse tempo, moço de vinte e poucos anos, que Pedro Archanjo deu na

mania de anotar histórias, acontecidos, notícias, casos, nomes, datas, detalhes

insignificantes, tudo quanto se referisse à vida popular. Para que? Quem sabe lá.

Pedro Archanjo era cheio de quizilas, de saberes e certamente não se devera ao

acaso sua escolha, tão moderno ainda, para alto posto na casa de Xangô: Levantado

e consagrado Ojuobá, preferido entre tantos e tantos candidatos, velhos de respeito e

sapiência. Coube-lhe, no entanto, o título, com os direitos e os deveres; não

completara ainda trinta anos quando o santo o escolheu e o declarou: não pudera

haver maior acerto – Xangô sabe os porquês (Tenda dos milagres, p. 117).

Interessante que Amado desenvolva o parágrafo transcrito como uma relação de causa

e consequência que, entrecruzando-se, não se distinguem totalmente uma da outra. Archanjo

deu início a suas anotações por ser Ojuobá ou foi feito Ojuobá por causa do olhar percuciente

acerca da vida popular baiana? Eis uma questão interessante, uma vez que, em parte, são estas

166

O Grêmio Recreativo Cultural Escola de Samba Mocidade Alegre, integrante do Grupo Especial do Desfile

das Escolas de Samba de São Paulo, desfilou, neste ano de 2012, o enredo “Ojuobá”, com o qual se sagrou

campeã. No belo samba-enredo, composto em conjunto por Fernando, Leandro Poeta, Renato Guerra, Rodrigo

Minuetto, Thiago e Vitor Gabriel, há uma passagem em que Ojuobá é comparado ao oxê de Xangô, uma vez que

o orixá o conduz na luta contra o preconceito. Segue o trecho do samba-enredo: “Kaô Kabecile / Kaô, meu pai

Xangô! / Ouça o clamor de Ojuobá / É fogo! É trovão! É justiça! / E assim cruzando o mar de Yemanjá / Aponta

o seu oxé a nos guiar / Raiou o sol da liberdade a quebrar correntes / E nessa terra o negro vence / Com a

proteção do rei de Oyó / Contra o preconceito ao seu povo / Conduz a mão que escreve um mundo novo”

(MOCIDADE ALEGRE, 2012).

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anotações que, anos depois, permitem a Archanjo Ojuobá argumentos precisos e

inquestionáveis contra a obra racista do Dr. Nilo Argolo. Instigante, porém, deve-se

reconhecer, absolutamente irrespondível. Ainda assim, cumpre salientar o que parece uma

prova da ação conjunta entre Exu e Xangô através de Ojuobá. Se Exu é aquele que conhece

todas as perguntas e todas as respostas, e se esta característica pode estar representada no

grande número de anotações sobre o dia a dia popular que Archanjo acumula ao longo de sua

vida, é, pois, destas mesmas notas que Xangô se serve para brandir o oxê e desferi-lo em raios

fulminantes contra as teorias da Faculdade de Medicina, contra Nilo Argolo, contra o racismo

– perspectiva que é abordada no próximo tópico.

A interpretação acima ganha relevo caso se observe as entrelinhas que vinculam três

parágrafos em sequência, sendo que o primeiro corresponde ao transcrito acima. Após o

fragmento citado, no qual Archanjo é consagrado Ojuobá, Amado escreve:

Uma versão circula entre o povo dos Terreiros, corre nas ruas da cidade: teria sido o

próprio orixá quem ordenara a Archanjo tudo ver, tudo saber, tudo escrever. Para

isso fizera-o Ojuobá, os olhos de Xangô.

Aos trinta e dois anos, exatamente em 1900, Pedro Archanjo foi nomeado bedel da

Faculdade de Medicina e assumiu seu pôsto no Terreiro (Tenda dos milagres, p.

117).

Em três parágrafos sequenciados, Archanjo assume dois postos: um no Terreiro,

Ojuobá da casa de Xangô, posto alto e importante, outro no Terreiro de Jesus, bedel na

Faculdade de Medicina da Bahia, cargo secundário, auxiliar. É, pois, a partir deste segundo

cargo que Ojuobá se faz consciente da incumbência que lhe foi destinada: “[...] é preciso

trabalhar na Faculdade para ouvir e entender. Na opinião de certos professores, Manuel,

mulato e criminoso são sinônimos” (Tenda dos milagres, p. 163). Uma vez inserido na

faculdade, Ojuobá entra em contato com as “suspeitas teorias” ali gestadas e capitaneadas por

Nilo Argolo, para quem “[...] a desgraça do Brasil era aquela negralhada, a infame

mestiçagem” (Tenda dos milagres, p. 123). Aliás, cabe ressaltar novamente a presença das

potencialidades do eleda Exu no trânsito de Archanjo entre o Pelourinho e a Faculdade de

Medicina da Bahia – duas realidades próximas no espaço e opostas em significados. Na

primeira, o cotidiano do povo negromestiço, a fusão de sangues e culturas; na segunda, as

teorias racistas, o segregacionismo. Duas realidades que tenderiam a se excluir, a se anular

não fosse Archanjo Ojuobá, omo Exu, a pô-las em contato, a relacioná-las, inserindo, aos

poucos, uma na outra. Ora, e não é justamente a Exu que compete estar em todos os lugares

sem que se levantem empecilhos à sua circulação? Senhor dos Caminhos, não é a Ele que

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cumpre abrir ou fechar as passagens, a depender do contexto? Não seria justamente Exu

considerado um “elemento de ligação”, como pontua Luz (2000, p. 51)? “Os lugares sobre os

quais reina Èsù-Legba são lugares de encontro, de mediação, de troca, e estão, como todo

lugar de transição e interseção, carregados de tensão e perigo. [...] Só Èsù-Legba, com seu

poder de transformação, pode metamorfosear o conflito em harmonia” frisa Capone (2009, p.

61).

Retome-se a fala de Archanjo, quando define o que é ser Ojuobá: “Sabe o que

significa ser Ojuobá? Sou os olhos de Xangô [...]. Tenho um compromisso, uma

responsabilidade”. Uma vez em contato com as teorias raciais em voga na Faculdade de

Medicina, lidos os opúsculos de Nilo Argolo, Archanjo Ojuobá deslinda especificamente a

que se referem o compromisso e a responsabilidade que herdou como deveres ao ser

escolhido por Xangô. Percebe a ameaça que paira sobre o povo negromestiço da Bahia, ao

qual se funde indissociavelmente como bem indica o termo “Ojuobahia” de Milagres do povo,

epígrafe desta seção. O instante em que Mestre Pedro Archanjo Ojuobá, pai e herói daquele

povo, decide por em livro os fatos da vida baiana que contrariam, rejeitam e subvertem as

bases teóricas do racismo científico pretendido pelo Dr. Nilo Argolo, é o mesmo no qual

Xangô fere as pedreiras com o seu oxê, evocando os primeiros raios de liberdade e justiça, e

Exu dinamiza o universo provocando movimento, transformação e mudança.

“Vai escrever realmente ou esquecerá na vadiagem de festas e mulheres, nos ensaios

de pastoris, na Escola de Budião, nas obrigações de Terreiro, a promessa feita em noite de

cachaça longa e tempestade?” (Tenda dos milagres, p. 163). Sendo o instrumento de Xangô,

Mãe Majé Bassan, do alto de sua incontestável autoridade e sapiência de venerável iyalorixá,

não poderia permitir que Archanjo falhasse no que concerne às obrigações de Ojuobá, os

Olhos de Xangô. Então, dias após anunciar que escreveria um livro sobre o povo da Bahia,

um libelo antirracista, Ojuobá é avisado que Mãe Majé Bassan o espera, que deseja falar:

No peji, sentada em sua cadeira de braços, trono pobre, nem por isso menos temível,

Majé Bassan lhe entregou o adjá e tirou uma cantiga para o santo. Depois, brincando

com os búzios mas sem interrogá-los como se o jôgo fosse desnecessário, falou:

- Soube que tu disse que vai escrever um livro, mas sei que tu não está fazendo, o

teu fazer é só da bôca para fora, tu se contenta com pensar. Tu passa a vida

xeretando de um lado para o outro, conversa aqui conversa ali, toma nota de um

tudo e para quê? Tu vai ser tôda a vida contínuo de doutor? Só isso e nada mais? O

emprêgo é pra teu de-comer, para não passar necessidade. Mas não é para te bastar

nem para te calar. Não é para isso que tu é Ojuobá.

Então Pedro Archanjo tomou da caneta e escreveu (Tenda dos milagres, p. 163).

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Tudo ver, tudo saber, tudo escrever. Obrigação transmitida por Xangô ao seu Ojuobá,

desígnio que estabelece um compromisso com o orixá signo de justiça e uma responsabilidade

com o povo negromestiço das ruas e ladeiras da Bahia, tão vilipendiado e tão rico: combater

Argolos e Pedritos, salvaguardar o povo e as tradições, eis sua incumbência. Archanjo omo

Exu, passa a ser também Ojuobá, espécie de herói-mito, como Lody refere-se a Xangô,

guiado pela sacerdotisa do Alafin, Mãe Majé Bassã, suprema autoridade. Cunha-se, então,

uma identidade que se enraíza e aprofunda no contexto social vivenciado por Archanjo, no

âmbito do embate contra as perseguições racistas, mas que se vincula e depende dos laços

míticos entre pai e filho, Exu e Archanjo, e os fortalece e potencializa com o oxê, os raios e a

guerra por justiça de Xangô. Pedro Archanjo Ojuobá, uma única identidade, de feição

sóciomítica, convergência de aiyê e orun, amálgama de Exu e Xangô, Elegbara e Alafin: “Foi

Pedro Archanjo e Ojuobá ao mesmo tempo. Não se dividiu em dois, com hora marcada para

um e outro, o sábio e o homem. [...] Foi mestre Archanjo Ojuobá, um só e inteiro”. (Tenda

dos milagres, p. 230).

Alcunhou-se metonímico o terceiro sentido do candomblé em Tenda dos milagres.

Assim, algumas considerações a seu respeito precisam ser tecidas. Como já referido, a

religiosidade afro-brasileira não apenas exprime um ethos negro, como também, e

principalmente, constitui-se na própria raiz de uma identidade negra no Brasil, posto veicule

os valores e a dinâmica de uma civilização negro-africana e possibilite a restauração dos elos

de parentesco outrora perdidos (BRAGA, 2006). Esta identificação, conforme salienta Pinho

(2004) independe de uma participação efetiva em Terreiros, uma vez que os mitos e os

exemplos de resistência histórica ultrapassam os muros fronteiriços dos Ilê Axé. Desta forma,

quando Amado traz à baila a violência policial contra os Terreiros de candomblé na década de

1920, assim como seu contraponto, a resistência heroica da religiosidade afro-brasileira,

obviamente não discorre apenas sobre a aversão de uma sociedade que se quer

imaculadamente latina em face da religião negra. Antes, o faz metonimicamente tomando o

candomblé como parte simbólica de um todo, qual seja, o povo negromestiço. Neste aspecto,

importante recuperar o depoimento de Jorge Amado a Alice Raillard (1990, p. 37): “[...] era

uma repressão das mais violentas; a toda hora a polícia invadia os terreiros de candomblé,

quebrava tudo, batia em todo mundo, prendia [...], torturava [...] era uma forma de repressão

contra toda a matriz negra [...], contra todas as expressões da cultura negra”.

Não é necessário arrolar muitos exemplos ou citações para que se comprove o efeito

metonímico que Jorge Amado confere ao candomblé em Tenda dos milagres. Para além da

violência às Casas de Axé e das teorias racistas da Faculdade de Medicina da Bahia, o

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romancista baiano aborda, em diversas passagens, as perseguições aos capoeiristas e aos

sambistas, bem como os assassinatos de diversos deles – tiros disparados pelas costas, muitas

vezes. Se, a despeito destas outras violências, Amado focaliza prioritariamente as

perseguições religiosa e científica é porque, de alguma forma, englobam e suscitam todas as

outras – daí também a feição metonímica.

Antes que se discuta de maneira específica a atuação do delegado auxiliar Pedrito

Gordo e a forma como foi derrotado, convém abordar brevemente um outro insucesso

policial, desta vez em relação ao interdito à saída dos Afoxés no carnaval baiano. Amado

escreve:

[...] o doutor Francisco Antônio de Castro Loureiro, diretor interino da Secretaria de

Polícia, não proibira “por motivos étnicos e sociais, em defesa das famílias, dos

costumes, da moral e do bem-estar público, no combate ao crime, ao deboche e à

desordem”, a saída e o desfile dos afoxés, a partir de 1904, sob qualquer pretexto e

onde quer que fôsse na cidade? Quem ousara, então? (Tenda dos milagres, p. 90).

Os alegados motivos que justificam a proibição dos Afoxés não são outros senão

aqueles que se bifurcam na teoria de Nilo Argolo e na prática de Pedrito Gordo. Afinal,

“motivos étnicos e sociais” e “combate ao crime” estão amplamente relacionados com um

apagamento dos povos negros, desejo do delegado auxiliar, e a teorização acerca da natural

tendência ao crime das populações mestiças, conclusão relacionada com o professor da

Faculdade de Medicina.

Segundo Amaral (2005, p. 97), “o afoxé foi, historicamente, a primeira manifestação

da religiosidade do candomblé nas ruas”, com o que se justifica enquadrá-lo no sentido

metonímico da religiosidade afro-brasileira. Nesta direção, Risério (1981, p. 12) afirma que o

termo “afoxé” significa “[...] a enunciação que faz (alguma coisa) acontecer. Ou, numa

tradução mais poética, a fala que faz. Escreve Olabiyi: afoxé „em iorubá, significa, pois,

encantamento, palavra eficaz, operante‟. Outras palavras: fórmula mágica” (grifos do autor).

Ao sair do âmbito linguístico para observar o afoxé nas ruas na virada do decênio de 1970

para o seguinte, período que Risério considera como de “reafricanização” do carnaval, o

pesquisador constata que o período “[...] continua sendo um espaço privilegiado para a

manifestação e a afirmação cultural dos negros, com implicações sociais e políticas daí

decorrentes” (RISÉRIO, 1981, p. 18)167

. Ora, o prefixo “re” anteposto a “africanização” indica

167

A ideia de encantamento é tão presente e forte entre os Afoxés que Edil Pacheco, ao escrever Ijexá (Filhos de

Gandhi), gravada pela saudosa Clara Nunes, em homenagem ao Afoxé Filhos de Gandhy, bloco tradicional do

carnaval de Salvador, que a adota em seu repertório, destaca logo nos primeiros versos: “Tem um mistério / Que

bate no coração / Força de uma canção / Que tem o dom de encantar”.

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o retorno da Festa de Momo a uma condição que deixara de veicular – a dos valores negros

correlacionados aos afoxés e blocos afro. Já o verbo “continuar”, conjugado a partir do

substantivo “carnaval”, evidencia que, não obstante este intervalo de “desafricanização” da

festa, os blocos negros de meados de 1970, ao entrarem na Avenida Sete, mantêm o sentido

político daqueles primeiros, que desfilavam na passagem do século XIX para o XX e

desafiavam as ordens policiais. Expunham, assim, à revelia da sociedade em derredor, o

mundo dos valores negros nas ruas da Cidade da Bahia, como que em uma antecipação dos

versos de Paulinho Camafeu em Mundo negro, composta para introduzir o Ilê Aiyê no

carnaval baiano de 1975: “Que bloco é esse? / Eu quero saber / É o mundo negro / Que

viemos cantar pra você”.

A julgar pelas informações do parágrafo anterior, os afoxés originalmente estariam

vinculados à expressão de uma visão de mundo negro-africana evidenciada nas músicas e nas

danças relacionadas aos orixás, bem como a uma proposta de natureza afirmativa que buscava

desafiar os limites impostos pelas elites brancas.

A despeito da proibição promulgada pelo diretor interino da Secretaria de Polícia, que

duraria longos quinzes anos, Archanjo juntamente com Lídio Corró, omo Exu e omo Ogum,

dois irmãos, decidem levar o afoxé para a rua:

Afoxé significa encantamento, e o primeiro de todos, o inicial, fôra posto em mãos

de Pedro Archanjo por Majé Bassan, a temível: Archanjo viera lhe comunicar a

decisão e pedir a benção e conselho. [...] pretendiam organizar uma Folia

Carnavalesca, a Embaixada Africana, em honra dos encantados e para exibir no

entrudo a civilização de onde provinham negros e mulatos.

Mãe Majé Bassan fez o jôgo para saber qual o dono da Embaixada e qual o Exu a

protegê-la. Apregoou-se dona a sereia do mar, Yemanjá, e Exu Akssan assumiu os

cuidados e a responsabilidade. Assim sendo, a iyalorixá trouxe o pequeno chifre de

carneiro, encastoado em prata, contendo axé, o alicerce do mundo. Êste é o afoxé,

disse, e sem êle ou outro igual em fundamento, nenhuma folia ou Troça de Carnaval

deve sair à rua nem atrever-se.

- Este é o afoxé, o encantamento. – repetiu e o colocou nas mãos de Pedro Archanjo

(Tenda dos milagres, p. 92).

Claras estão, neste fragmento, as motivações religiosas – “em honra dos encantados” –

e políticas – “exibir a civilização de negros e mulatos” – do afoxé. Somem-se a estas razões,

nome e tema escolhidos para o desfile: Afoxé Filhos da Bahia a contar a saga insurrecta de

Zumbi dos Palmares. Ora, Afoxé Filhos da Bahia é um nome deveras sintomático uma vez

que se considere a proibição aos blocos negros de desfilarem pelas ruas, bem como as

perseguições policiais e as teorias raciais já em voga no período. Um nome que reivindica e

afirma uma condição, uma pertença e uma identidade que a própria Bahia diariamente denega,

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exclui, deseja apátrida... E se o nome escolhido requisita o reconhecimento de negros e

mestiços como filhos autênticos deste Estado, o tema se configura ainda mais provocador:

traduz a não submissão, o orgulho, o combate contra o prolongamento da escravidão. A

encenação de um herói negro, em luta contra a ordem escravocrata e em favor do mundo

negro-africano, em pleno desfile proibido de um bloco de afoxé, atualiza a pugna de Zumbi, a

faz coetânea. A oposição aos senhores de escravos e o embate contra a polícia no pós-

escravidão tornadas uma só e grande batalha, enfim, todos os esforços a favor do povo e dos

valores negromestiços:

Lá estava Zumbi de pé sôbre a montanha, a lança em punho, o torso nu, uma pele de

onça tapando-lhe as vergonhas. O grito de guerra marca a dança dos negros fugidos

dos engenhos, do rêlho, dos capatazes e senhores, da condição de alimária,

recuperados homens e beligerantes; nunca mais escravos. [...]

O povo aplaudia o insubmisso, valente desafio: onde já se viu, senhor doutor

Francisco Antônio de Castro Loureiro, interino da polícia e branco de cu prêto, onde

já se viu carnaval sem afoxé, brinquedo do povo pobre, do mais pobre, seu teatro e

seu balé, sua representação? (Tenda dos milagres, p. 90).

O aplauso do povo nas ruas, solto, livre, a expandir o axé. O Afoxé Filhos da Bahia

tinha triunfado com as bênçãos de Yemanjá e Exu Akssan, o protetor. A simbologia de Zumbi

tinha mais uma vez prevalecido. Quando a polícia conseguiu enfim dispersar o afoxé já o

carnaval inteiro tinha sido encantado por aquele mundo negro, já o axé tinha se expandido e o

aiyó, a alegria, se libertado da repressão: “[...] Archanjo [...] começou a rir, a rir às bandeiras

despregadas, um riso alto, claro e bom de quem rompera a ordem injusta e proclamara a festa;

abaixo o despotismo, viva o povo, límpido e infinito riso de alegria” (Tenda dos milagres, p.

91).

A resposta não tarda. Acirram-se as coibições, intensifica-se a campanha dos jornais

contra a população negromestiça da Bahia: “A continuar essa escandalosa exibição de África

[...], o samba embriagador, êsse encantamento, êsse sortilégio, êsse feitiço, então onde irá

parar nossa latinidade? Pois somos latinos, bem sabeis, se não sabeis, aprendereis à custa de

rêlho e de porrada” (Tenda dos milagres, p. 94). Este contexto favorece a ascensão do

delegado auxiliar Pedrito Gordo cuja sanha é, portanto, legitimada. A truculência e a

obstinação do delegado são vistas com bons olhos pela elite baiana, ávida por uma latinidade

depurada das “manchas africanas”, consideradas como bárbaras, empecilhos à civilização:

De 1920 a 1926, enquanto durou o reinado do todo-poderoso delegado auxiliar, os

costumes de origem negra, sem exceção, das vendedoras de comida até os orixás,

foram objetos de violência contínua e crescente. O delegado mantinha-se disposto a

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acabar com as tradições populares, a porrete e a facão, a bala se preciso (Tenda dos

milagres, p. 304).

Todas as formas de expressão do povo negromestiço estavam sob a mira obsedante de

Pedrito Gordo. “O samba de roda foi exilado [...], as escolas de capoeira fecharam suas portas

[...] de quando em vez o corpo de um capoeirista aparecia crivado de balas na madrugada,

tiros de tocaia [...]. Assim morreram Neco, Dendê, Porco Espinho, João Grauçá, Cassiano do

Boné” (Tenda dos milagres, p. 304). Uma, porém, por ser reunião e matriz de todas as outras,

símbolo maior de uma cultura e de uma identidade negras, é especialmente perseguida e

golpeada: a religiosidade afro-brasileira, o candomblé:

Muitos babalorixás e iyalorixás levaram axé e santos para longe, expulsos do centro

e dos bairros vizinhos para as roças distantes, lugares de difícil acesso. Outros

tomaram dos orixás, dos instrumentos, dos trajes, dos itás, das cantigas e danças, do

baticum, dos ritmos e se transferiram para o Rio de Janeiro [...]. Alguns Terreiros

menores não puderam resistir a tanta perseguição, desapareceram de vez. Vários

reduziram o calendário de festas às obrigações imprescindíveis, realizadas às

escondidas (Tenda dos milagres, p. 304).

Pedrito Gordo punha em prática tudo aquilo que aprendera lendo as obras dos teóricos

do racismo, entre eles o professor Nilo Argolo. Fora ensinado, ainda nos tempos da Faculdade

de Direito, que “[...] negros e mestiços possuem natural tendência ao crime agravada pelas

práticas bárbaras do candomblé, das rodas de samba, da capoeira, escolas de criminalidade a

aperfeiçoar quem já nascera assassino, ladrão, canalha” (Tenda dos milagres, p. 272). Teoria e

prática, Nilo e Pedrito. Não surpreende, portanto, que o professor da Faculdade de Medicina

tenha comparado o delegado auxiliar a Ricardo Coração de Leão, ao imaginá-lo travando uma

“guerra santa, cruzada bendita, a resgatar os foros de civilização de nossa terra conspurcada”

(Tenda dos milagres, p. 273). Da mesma forma, não causa estranheza o discurso de Pedrito

Gordo:

Quando certos demagogos, em busca de popularidade entre a ralé, a plebe, o zé-

povinho, punham-se a discutir a repressão aos costumes populares e os métodos

violentos usados pela polícia para silenciar atabaques, ganzás, berimbaus, agogôs e

caxixis, para impedir a dança das feitas e dos capoeiras, o delegado auxiliar Pedrito

Gordo exibia a cultura antropológica e jurídica de sua estante: “São os mestres que

afirmam a periculosidade da negralhada, é a ciência que proclama guerra às suas

práticas anti-sociais, não sou eu”. Num gesto de humildade, completava: “Apenas

trato de extirpar o mal pela raiz, evitando que êle se propague. No dia em que

tivermos terminado com tôda essa porcaria, o índice de criminalidade em Salvador

vai diminuir enormemente e por fim poderemos dizer que nossa terra é civilizada”

(Tenda dos milagres, p. 273).

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A Guerra Santa estava, então, deflagrada. Era, com alguns séculos de atraso, a Décima

Cruzada tendo início, substituindo-se a Cidade Sagrada de Jerusalém pela Bahia e os povos

islâmicos pela população negromestiça dos candomblés de orixá, de inquice, vodun e caboclo

– a negralhada, como resumem depreciativamente Pedrito e Nilo Argolo.

A opressão policial não se restringia apenas à proibição aos cultos religiosos, ao toque

dos atabaques rum, rumpi e lé e do agogô, à dança dos orixás. Ia além, não havia limites de

crueldade para a “malta de facínoras”, para o letífero séquito de Pedrito Gordo: “A destruição

dos objetos rituais não acalmou a fúria, o ódio dos cruzados. Era pouco. Puseram fogo no

barracão, as chamas consumiram o Terreiro de Sabaji. Para exemplo” (Tenda dos milagres, p.

275).

“O doutor Pedrito prometera acabar com a feitiçaria, o samba, a negralhada” (Tenda

dos milagres, p. 276). Ao exemplo dado pela destruição do Terreiro de Sabaji, juntaram-se

outros e mais outros de modo que os Ilê Axé se afastaram, se reduziram, escassearam. Poucos

mantinham suas portas abertas, muitos se mudavam para o Rio de Janeiro. Investia-se, assim,

contra “[...] as bases de uma cidadania diferenciada” (BRAGA, 1995, p.20), uma vez que

“[...] o terreiro seria o campo (território de preservação da regra simbólica) delimitativo da

cultura negra no Brasil, o espaço de reposição cultural de um grupo cujas reminiscências de

diáspora ainda eram muito vivas” (SODRÉ, 2005, p. 125)168

.

Metonimicamente, o processo de apagamento da identidade e das tradições de matriz

africana consubstancia-se, então, na opressão exercida sobre os candomblés baianos, o que

insere tal investida no amplo movimento de continuidade da exclusão do negro no período

que se segue à Abolição. Trata-se, assim, por um lado de salvaguardar os lugares de mando e

poder social, essencialmente intactos desde a Colônia e, por outro, de dirimir, na população

negromestiça da Bahia, o quinhão negro que a caracteriza – daí também a importância de

acentuar o caráter negromestiço da mestiçagem amadiana.

O universo ficcional de Jorge Amado, porém, não assoalha ou não visualiza a

população negromestiça da Bahia como uma imagem meramente passiva ou fugidia. Diante

da opressão exercida por uma sociedade que se quimeriza branca, personagens negras

resistem, delimitam e lutam por um território que se constitui igualmente em um espaço físico 168

Importante salientar, ainda uma vez mais, que o ataque a estas “bases de uma cidadania diferenciada” que

correspondem ao candomblé, como define Júlio Braga, não se restringiu aos anos 1920. O próprio Júlio Braga

(1992, p. 13) afirma: “[...] entre muitos problemas emergentes dessa comunidade submetida a uma hedionda

campanha que tenta depreciá-la naquilo que ela tem de mais original e inovador, qual seja, uma opção de

existência alternativa e espiritual, campanha arquitetada nos dias atuais pela igreja Universal do Reino de Deus,

a situação que mais preocupa o [...] povo-de-santo é a constante pressão ou opressão exercida pela sociedade

dominante que parece refratária a aceitar o candomblé como elemento integrante da vida religiosa brasileira e

sustentáculo dinâmico da herança cultural africana no Brasil”.

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e simbólico: o Terreiro, que é tanto moradia quanto identidade; que é tanto tempo presente

quanto reconstrução de uma ancestralidade. Para além de Pedro Archanjo Ojuobá, omo Exu, e

Lídio Corró, omo Ogum, Tenda dos milagres evidencia também o babalorixá n‟Ilê Ogunjá

Procópio Xavier de Souza, omo Oxóssi, orixá considerado Obá Alaketu, isto é, Rei e Senhor

dos Ketu, epíteto que O faz um protetor dos ara ketu, povo de Ketu – nomenclatura que, no

Brasil, designa a nação de candomblé de culto nagô, ou seja, aquela que se correlaciona aos

orixás, o que estende a proteção de Oxóssi a todos omo orixá brasileiros, independente do

eleda ou do patrono do Ilê Axé a que se vinculam169

.

Em contraposição àquela parcela dos Terreiros que se deslocavam para lugares

inacessíveis ou mesmo que fechavam as portas, Pai Procópio de Oxóssi representa aqueles

que resistem e lutam pela sobrevivência das tradições africanas, a despeito da crescente

violência de Pedrito Gordo:

[Procópio] Enfrentou Pedrito e foi por êle perseguido e castigado sem tréguas.

Constantemente prêso, tinha nas costas as marcas de chicote de couro cru, lanhos de

sangue. Nada o abateu, não se deixou derrotar. [...]

Procópio não silenciou os atabaques, não fugiu de casa para o mato ou para o Rio de

Janeiro. A roda das feitas diminuiu, de enorme ficou pequena, ogans se recolheram à

espera de melhores tempos. Procópio prosseguiu:

- Meu santo ninguém vai me impedir de festejar.

Banhado em sangue, a roupa em trapos, em frente a Pedrito Gordo, na sala da

Delegacia Auxiliar, renova o desafio: sou babalorixá, festejo meu santo, meu pai

Oxóssi. [...]

- Ouça, animal sem inteligência: vou lhe soltar mas se ousar bater candomblé outra

vez, atente bem, será a última. A última!

- Não vou morrer antes do dia determinado por Deus. Oxóssi me defende. [...]

- Ouça, cabra ruim: santo de igreja faz milagre, por isso é santo. Êsses santos de

vocês só fazem barulho, são uns santos de merda. No dia em que eu ver um milagre

dêsses putos, nesse dia me demito do cargo – riu, tocou com a ponta da bengala o

peito rasgado do negro: – Daqui a poucos dias vai fazer seis anos que baixo o pau

em candomblé, já acabei com quase todos, vou acabar com o resto de uma vez.

Nesse tempo todo nunca vi um milagre de orixá. Muito falatório e só. [...]

- Meu santo ninguém vai me impedir de festejar (Tenda dos milagres, p. 395-306).

A reiteração enfática de Procópio, o que denota o enfrentamento à ordem social

racista, traduz, pela defesa de uma tradição, a preservação de uma identidade: “sou

babalorixá, festejo o meu santo”. Tal encadeamento, em que festejar o santo é consequência

direta de Procópio ser babalorixá, evidencia os deveres inerentes à posição de alto sacerdote

dos orixás e traduz as mesmas obrigações assumidas por Pedro Archanjo ao ser consagrado

Ojuobá: “Sou Ojuobá, tenho um compromisso, uma responsabilidade”. Assim, ao acastelar a

169

Sobre o conceito de nação de candomblé, Cf: LIMA, Vivaldo da Costa. O conceito de “nação” nos

candomblés da Bahia. Afro-Ásia, Salvador, n. 12, p. 65-90. 1976. Sobre Oxóssi, Barretti Filho (2010, p. 101)

afirma que “[...] Òsóòsì continua protegendo e propiciando ao homem seu sustento e lhe dando morada e, ainda,

se possível, fartura com qualidade de vida e prosperidade”.

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tradição religiosa, Procópio mantém incólume o compromisso assumido com os orixás de

preservar o culto e o modo de vida que se constitui peculiar, a relação aiyê e orun e os

princípios e valores que sustentam a dinâmica do mundo negro. Por outro lado, acata e faz

cumprir a responsabilidade lhe outorgada pelo orun, qual seja, estar junto ao povo de santo

para guiá-lo, protegê-lo e conservá-lo em torno a uma identidade coletiva. Eis Procópio, omo

Oxóssi, filho do Obá Alaketu, Rei e Senhor, protetor dos filhos de Ketu.

O embate que põe em polos conflitantes Pedrito Gordo e Procópio de Oxóssi, este

ladeado por Pedro Archanjo Ojuobá, tem, como não poderia deixar de ser, o seu arremate no

Ilê Ogunjá, em noite de festa do Rei de Ketu, com todos os orixás presentes: “Festa pobre de

afluência mas rica de animação. [...] No centro da sala, Oxossi, rei de Ketu, caçador de feras,

na mão direita o arco-e-flecha, na esquerda o erukerê. [...] Na dança de Procópio, Oxossi

dirigiu-se à porta do Terreiro, lançou seu grito de desafio” (Tenda dos milagres, p. 307). O

repto lançado por Oxóssi para além dos muros do Ilê Ogunjá convocava Pedrito Gordo para a

batalha, “sou Oxossi, comigo ninguém acaba!” (Tenda dos milagres, p. 309). O delegado

auxiliar, escoltado por sua horda de assassinos, não tarda a adentrar o Terreiro de Procópio.

Traz consigo Zé Alma Grande, assim chamado “[...] pela franqueza no falar e a tranquilidade

no matar” (Tenda dos milagres, p. 309). Archanjo o conhece, sabe-o filho de Ogum, Mãe

Majé Bassan o havia expulsado do Axé de Xangô por ter assassinado uma iyaô, fora então

recrutado por Pedrito Gordo para os trabalhos mais brutais, os que exigiriam maior violência.

“Pedro Archanjo Ojuobá reconheceu Zé de Ogun: tudo podia acontecer” (Tenda dos milagres,

p. 309).

Um inevitável clima de tensão toma conta do Ilê Ogunjá. Oxóssi cavalga Procópio,

dança os mitos da terra de Ketu quando Pedrito se dirige ao babalorixá ordenando interromper

o toque dos atabaques. Procópio/Oxóssi desafia, continua a dança, atira suas flechas:

- Vou acabar com você agora mesmo, santo de merda! – Pedrito Gordo apontou

Procópio a Zé Alma Grande: – Aquêle. Vá buscá-lo, vivo ou morto.

Adiantou-se o negro maior do que um sobrado, Ojuobá percebeu com os olhos de

Xangô um átimo de vacilação no passo do facínora ao penetrar no recinto sagrado

do Terreiro. [...]

Contam que, nessa hora exata, Exu, de volta do horizonte penetrou na sala. Ojuobá

disse: Laroiê, Exu! Foi tudo muito rápido. Quando Zé Alma Grande deu mais um

passo em direção a Oxossi, encontrou pela frente a Pedro Archanjo. Pedro Archanjo,

Ojuobá ou o próprio Exu conforme opinião de muitos. A voz se abriu imperativa no

anátema terrível, na objurgatória fatal!

- Ogun kapê dan meji, dan pelú oniban!

Do tamanho de um sobrado, os olhos de assassino, o braço de guindaste, as mãos de

morte, estarrecido, o negro Zé Alma Grande parou ao ouvir o sortilégio. Zé de Ogun

deu um salto e um berro, atirou longe os sapatos, rodopiou na sala, virou orixá, no

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santo sua força duplicava. Ogunhê!, gritou, e todos os presentes responderam:

Ogunhê, meu pai Ogun! [...]

Quando Zé Alma Grande, cão de fila, assassino às ordens, homem de tôda

confiança, virou Ogun e partiu para o delegado, Pedrito necessitou do orgulho

inteiro para erguer a bengala na tentativa última de se impor. De nada serviu. Os

pedaços de junco estalaram nos dedos do encantado [...]. Não coube a Pedrito Gordo

outro recurso senão correr vergonhosamente, em pânico, gritando por socorro [...].

Foi o riso da cidade, a galhofa [...] (Tenda dos milagres, p. 309-311)170

.

Três fatores que se entrelaçam devem ser observados na cena transcrita acima. O

primeiro deles refere-se à presença beligerante dos orixás no Ilê Ogunjá. Desde o primeiro

momento em que o Obá Alaketu Oxóssi lança o seu brado, que já não é mais apenas o ilá,

aviso de chegada ao aiyê, mas desafio a Pedrito, convocação para a guerra, percebe-se

iminente o despontar do milagre nunca visto pelo delegado auxiliar. Assim, é Odé, o rei

caçador de Ketu, quem enfrenta Pedrito e não apenas Procópio; são os olhos de Xangô, olhos

de justiça, que percebem o titubeio de Zé Alma Grande e, da mesma forma, é Ojuobá, o oxê

de Xangô, quem pressente e saúda o retorno de Exu, e não tão somente Pedro Archanjo; e já

também não é exclusivamente Pedro Archanjo quem lança o sortilégio sobre o filho de Ogum,

mas Exu, Senhor do Poder, agente de transformação e liberdade, quem o faz. Por último,

ainda que de identidade rediviva, não cabe a Zé Alma Grande avançar contra Pedrito, mas ao

dono da casa, ao patrono do Terreiro uma vez que Ilê Ogunjá significa “Casa de Ogunjá” e

Ogunjá constitui uma das qualidades de Ogum, orixá da guerra e também da civilização. A

derrota de Pedrito, portanto, simboliza concomitantemente uma retomada simbólica, mas

também de natureza concreta: a do orixá que recupera a casa invadida, o seu domínio, o

território em que erige sua civilização e que, com isso, reconquista a liberdade do povo de

santo para bater os atabaques, reviver os mitos, cantar e dançar, viver os orixás. Por mais não

seja, Santana pontua nesta cena:

170

Lühning (1995-1996, p. 197) em sua pesquisa sobre Pedro Gordilho escreve: “Jorge Amado, que aborda o

„reinado‟ de Pedrito no seu romance Tenda dos Milagres, descreve uma cena (pp. 308-111) em que um dos

acompanhantes de Pedrito, na ocasião da batida, teria “dado santo” na casa de Procópio, e até atentado contra o

próprio delegado, o que teria levado ao já mencionado pedido de demissão. Outras informações pessoais já

contam que o próprio delegado teria „dado santo‟, ou na casa de Procópio ou de uma mãe-de-santo de nome

ignorado”. Interessante ainda evidenciar que às páginas 268 e 269 da 7ª edição de Tenda dos milagres publicada

pela Martins, pressentindo a hora da morte, Mãe Majé Bassã convoca Archanjo para lhe passar um último

ensinamento: um mito que narra a invasão de um Terreiro quando todos os orixás dançavam. “Ogun dançava a

espera dos soldados. Não tardou êles chegarem, pulavam dos cavalos, e sem dizer aqui-del-rei iam puxando as

armas de bater e criar bicho. Da porta Ogun falou assim para os soldados: Quem fôr de paz entre no Terreiro,

venha dançar em minha festa. Para os amigos, meu coração é mel de flôres, mas ai dos inimigos: para êles meu

coração é poço de veneno”. Em meio à narração, Mãe Majé Bassã ensina a Archanjo as palavras mágicas ditas

por Ogum para afugentar os soldados: Ogun kapê dan meji, dan pelú oniban. O mito e a invasão do Ilê Ogunjá

coincidem o que possibilita inferir que Mãe Majé Bassã, de alguma forma, sabia o que iria acontecer. Eis mais

uma evidência de como a literatura amadiana e o candomblé são convergentes.

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[...] um feito surpreendente de catarse literária: o escritor vinga o insulto do opressor

e através de seus personagens promove um ato de justiça com força sobrenatural, em

favor do povo oprimido dos candomblés, ao sentenciar publicamente o seu algoz,

Pedrito Gordo, com as palavras mágicas com forte poder de transformação [...].

(SANTANA, 2009, p. 45).

Mencionadas por Santana, as “palavras mágicas com forte poder de transformação”

conformam o segundo fator que suscita algumas considerações. Indicia-se, a partir delas, um

detalhe fundamental na construção do texto amadiano, qual seja, uma cena para a qual

convergem múltiplos valores negros. Assim, não somente pela presença dos orixás se

configura a derrocada de Pedrito Gordo, mas também pela evocação de um ethos negro que se

defende e se impõe a partir de um seu princípio: o poder de encantamento da palavra dita; a

força de realização que se manteve indene a despeito da passagem de tanto tempo e por tantos

mares, não obstante as diversas ordens de silêncio. Neste sentido, é importante ressaltar que

“[...] as palavras carregadas de ase são forças profundas. [...] Pronunciadas no contexto e lugar

adequados, as palavras têm a força de trazer consigo os seres e entidades míticos e sagrados”

(SANTOS e SANTOS, 1993, p. 45). Risério comenta:

Na concepção iorubana, os signos lingüísticos podem estar carregados de força

mágica. A emissão do texto é capaz de liberar poderes invisíveis, já que a ação de

nomear é dotada de eficácia prática. Acredita-se por exemplo que, ao proferir um

oriqui dirigido a um orixá, o indivíduo será ouvido. E há mesmo quem diga que a

emissão de um oriqui pode induzir os mais sensíveis a mergulhar nas profundezas

energéticas do transe (RISÉRIO, 1992, p. 37).

O derradeiro olhar sobre esta cena é de natureza comparativa. Quando Jorge Amado

afirma que Tenda dos milagres é uma reescritura de Jubiabá, evidentemente há uma série de

fatores que podem ser representativos desta nova escrita. Por certo, o estr(e)ito viés político

que permeia a história de Baldo cedendo lugar à amplitude política de Tenda dos milagres é

deveras importante de se considerar. Nesta perspectiva, pode-se atentar para a greve como

desfecho do romance de 1935 enquanto se torna elemento apenas secundário naquele de 1969.

Pode-se observar, igualmente, a presença do humor corrosivo, crítico, bem como o maior

domínio das técnicas narrativas em contraposição ao tom mais “sério” de Jubiabá. Entretanto,

se o parâmetro a ser observado for a personagem negra, nenhuma outra cena pode melhor

evidenciar a reescrita de Jubiabá em Tenda dos milagres do que a última transcrita, a derrota

de Pedrito Gordo.

Ora, em Jubiabá é justamente durante uma festa de Oxóssi que Antônio Balduíno

invade o Terreiro para conclamar os presentes para a greve uma vez que, repita-se o que já foi

transcrito e comentado em seção anterior, “que adianta negro rezar, negro vir cantar pra

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Oxóssi? Os ricos manda fechar a festa de Oxóssi. Uma vez os policiais fecharam a festa de

Oxalá quando ele era Oxolufã, o velho. E pai Jubiabá foi com eles, foi pra cadeia” (Jubiabá,

p. 223-224). Ainda que a identidade negra não se apague de todo na personagem de Balduíno,

o momento acima marca um rompimento: Baldo desgarra-se de Jubiabá e, desta forma, do

candomblé. Certamente por causa da onipresença da ideologia política a ser veiculada pelo

romance, a religiosidade é colocada como a antípoda da greve: se na união de trabalhadores

em torno de um ideal comum é possível lutar, resistir, alcançar mudanças, impor-se, enfim,

nenhuma destas perspectivas é exequível através dos orixás, da religião, da tradição africano-

brasileira. Seu discurso, neste instante, beira a iconoclastia.

Outra é a mirada de Tenda dos milagres. Neste romance, a festa de Oxóssi profanada

em Jubiabá volta à cena. Entretanto, o discurso político estreito, os orixás submissos à ordem

desigual de mundo e o fato de a religiosidade mostrar-se incapaz de proteger o seu povo dão

lugar a uma perspectiva política ampla em que a construção amadiana desloca o candomblé

para a posição de protagonista – quiçá superando o próprio protagonismo de Archanjo uma

vez que o heroísmo da personagem explica-se por ser Mestre Pedro omo Exu e Ojuobá, os

Olhos do Rei Xangô. Nesta reescritura, são os deuses ultrajados por Baldo trinta e quatro anos

antes que se deslocam do orun ao aiyê para que possam guiar o povo negromestiço da Bahia,

para restituir-lhe a liberdade vilipendiada por Pedrito Gordo e a dignidade de homens

descartada por Nilo Argolo.

Em Tenda dos milagres, a circularidade, a convergência orun-aiyê é posta em cena por

Jorge Amado. As personagens, ao menos aquelas nas quais o romancista investe heroicidade,

são sujeitos que, na justa medida em que são homens, ultrapassam a condição meramente

humana e encerram em si as potencialidades dos orixás, os representam e os são –

salvaguardadas, claro, as limitações do humano em face de legítimos deuses. Por conseguinte,

a afirmação dos valores tradicionais da cultura afro-brasileira não depende de um contexto

externo a ela, como seria, por exemplo, se fosse defendida pelos escritos de Archanjo. Antes,

a resistência a tão inúmeras perseguições bem como a luta afirmativa de uma existência

específica, sua, são ideadas a partir daquilo que há de mais seu, por aquilo que lhe permita,

talvez, ser melhor identificada: o encanto da palavra que transcende; a palavra recoberta de

axé.

Por último, a seguir o intento deste tópico, é inevitável adentrar em uma discussão

que, a despeito de ser bizantina, merece alguma atenção. Refere-se ao longo e um tanto

quanto espinhoso diálogo entre Pedro Archanjo Ojuobá e Fraga Neto, professor da Faculdade

de Medicina da Bahia que faz oposição às teorias do Dr. Nilo Argolo. A questão que Fraga

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Neto levanta é a seguinte: como Pedro Archanjo poderia, sendo um homem de ciência,

continuar a acreditar no candomblé? Seguem alguns trechos com as respostas de Archanjo:

- Durante anos e anos acreditei nos meus orixás como frei Timóteo acredita nos seus

santos, no Cristo e na Virgem. Nesse tempo tudo que eu sabia aprendera na rua.

Depois busquei outras fontes de saber, ganhei novos bens, perdi a crença. [...]

Tudo aquilo que foi meu lastro, terra onde eu tinha fincado os pés, tudo se

transformou num jôgo fácil de adivinhas. O que era milagrosa descida dos santos

reduziu-se a um estado de transe que qualquer calouro da Faculdade analisa e expõe.

Para mim, professor, só existe a matéria. Mas nem por isso deixo de ir ao Terreiro e

de exercer as funções de meu pôsto de Ojuobá, cumprir meu compromisso. Não me

limito como o senhor que tem mêdo do que os outros possam pensar, tem mêdo de

diminuir o tamanho de seu materialismo. [...]

Ademais, há o seguinte: estamos numa luta cruel e dura. Veja com que violência

querem destruir a tudo que nós, negros e mulatos, possuímos, nossos bens, nossa

fisionomia. Ainda há pouco tempo, com o delegado Pedrito, ir a um candomblé era

um perigo [...]. Sabe por que o delegado foi pôsto na rua? Sabe como se deu? [...]

Eu penso que os orixás são um bem do povo. A luta da capoeira, o samba-de-roda,

os afoxés, os atabaques, os berimbaus, são bens do povo. Tôdas essas coisas e

muitas outras que o senhor, com seu pensamento estreito, quer acabar, professor,

igualzinho ao delegado Pedrito [...].

Digo-lhe mais professor. Sei de ciência certa que todo sobrenatural não existe [...].

No entanto, quando meu afilhado Tadeu me disse que queria se casar com môça rica

e branca, mesmo sem querer pensei no jôgo feito pela mãe-de-santo no dia que êle

se formou. Trago tudo isso no sangue, professor (Tenda dos milagres, p. 316-318).

Claro está, ao contrário do que pensa Brookshaw (1983), que esta revelação de

Archanjo pouco ou nada influi para uma investigação acerca do lugar do negro na obra

amadiana – uma vez considerada plausível a leitura empreendida até aqui. Em momento

algum Archanjo incorre em desvalorização das tradições afro-brasileiras, até mesmo porque

permanece a elas vinculado, não as rejeita, não as nega como faz o professor Fraga Neto.

Neste aspecto, fica difícil compreender o que propõe o brasilianista inglês Brookshaw (1983,

p. 140) ao afirmar que Mestre Pedro abandona a “respeitabilidade social” ao rejeitar negar sua

personalidade. Não seria justamente o inverso? Talvez um Archanjo que denegasse as

tradições afro-brasileiras aprouvesse mais ao crítico inglês porquanto considere a personagem

como “viciada em candomblé” (BROOKSHAW, 1983, p. 138)171

. Ora, “vício” não é bem o

termo correto para designar a intensa relação identitária que Archanjo, omo Exu e os Olhos do

Rei Xangô, mantém com a religião dos orixás. Não obstante se declare materialista, Ojuobá

continua pertencente ao povo de santo para além dos compromissos e das responsabilidades

171

O antropólogo Ordep Serra (1995) faz duras (e justas) críticas à leitura alcançada por Brookshaw sobre a

literatura amadiana, que tenderiam a uma “generalização espantosa”. Machado (2006, p. 137), assustada com a

acusação de racismo que pesa sobre Amado em meios anglo-saxões, contexto no qual se insere Brookshaw,

comenta: “[...] como é que os meios acadêmicos anglo-saxões imaginam que poderá surgir a mestiçagem em

alguma sociedade se representantes de etnias diferentes não se permitirem viver uma atração mútua e uma

descoberta das seduções e encantos do outro”?

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que advêm de seu posicionamento hierárquico: por mais ciência que saiba, por mais

materialista que seja, os búzios ainda têm sentido em sua vida, afinal é deles que Archanjo

rememora quando os fatos que sucedem na vida confirmam os previstos no jogo tempos

antes. Archanjo situa-se identitariamente ente os ara Ketu, o povo de Ketu, o povo dos

candomblés baianos. Ao pressentir a presença de Iku, a morte, sentindo a dor atravessar-lhe o

peito, entre outras lembranças e outros desejos, a memória de Rosa, o grande amor, do Major,

de Lídio e de Tadeu, Archanjo gostaria de estar no Terreiro para saudar uma vez mais o santo,

para um passo de dança, para puxar uma cantiga (Tenda dos milagres, p. 43) – cena em que

Leite (2006, p. 123) visualiza uma “redenção negra” uma vez que “[...] as crenças

abandonadas pelo etnólogo [...] no momento da morte re-afloram [...]”.

É óbvio que tais posições, quando enunciadas pelo “mito-herói” Pedro Archanjo,

causam certo impacto, acarretam alguma estranheza – deve-se reconhecer. Por mais não seja,

por longemente evocar a lembrança da iconoclastia de um Baldo recém-convertido ao

materialismo. Tal perspectiva, no entanto, não avança em Tenda dos milagres. Em verdade,

não chega nem a assomar, senão em Fraga Neto e prontamente repudiada por Mestre Pedro.

Assumi-la seria igualar-se a Pedrito Gordo, embora por outros caminhos. Archanjo Ojuobá

representa, então, a possibilidade de imiscuir duas compreensões de mundo divergentes, quiçá

antagônicas: o pensamento materialista e a vivência religiosa. A partir desta confluência,

Manzatto (1994, p. 172-173) teoriza uma “[...] possível abertura à transcendência. [...] Assim,

o homem não estaria condenado a pensar e a viver prisioneiro de realidades exclusivamente

materiais, mas poderia abrir-se à transcendência sem por isso deixar de ser homem ou ser

menos humano”.

Convém ressaltar, sem que maiores esforços intelectuais sejam necessários para tanto,

que é perceptível a fala específica do escritor Jorge Amado através das revelações de

Archanjo a Fraga Neto. O Obá de Xangô n‟Ilê Axé Opo Afonjá, com direito a saudar o Alafin

de Oyó com o xerê, declarava-se materialista convicto e, não raro, respondia à mesma

pergunta feita por Fraga Neto a Archanjo: como conciliar o materialismo e o candomblé172

?

Na entrevista que concede a Álvaro Gomes, publicada na série Literatura Comentada, Amado

responde de forma quase idêntica a Pedro Archanjo:

172

Talvez seja cabível a dúvida no que concerne à real natureza da pergunta e à sua insistência: será que não

comporta em si o preconceito de uma sociedade que sempre enxergou e ainda enxerga as tradições afro-

brasileiras, principalmente em seus aspectos religiosos, como primitivas e incompatíveis com um suposto mundo

civilizado, porquanto reduzido a uma lógica cartesiana, ocidental? Raciocínio estreito, insuficiente, incapaz de

lidar com os múltiplos ângulos e as diversas facetas do que é poliédrico por excelência: o mundo.

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Eu sou materialista, mas meu materialismo não me limita. [...] Por isso, quando

entro no Axé Opô Afonjá, com meus colares, faço tudo o que tenho que fazer e faço

exatamente tudo com o maior prazer... Eu não poderia escrever sobre a Bahia, ter a

pretensão de ser um romancista da Bahia se não conhecesse realmente por dentro,

como eu conheço, os candomblés, que é a religião do povo da Bahia (JORGE

AMADO, 1981, p. 11).

Eis o ponto em que Pedro Archanjo seria precisamente Jorge Amado. Ambos

professam um materialismo não sectário, o compromisso com as obrigações advindas das

funções que desempenham nos Terreiros e o candomblé como um bem do povo da Bahia –

indissociável, inextinguível, portanto. Mas eis também o ponto em que, apesar de Pedro

Archanjo apresentar-se como Jorge Amado, não deixa de ser Ojuobá, assim como o

romancista, a despeito de ser agnóstico, não deixa de ser Obá Arolu: em ambos, não obstante

o materialismo, há uma “abertura à transcendência”. Neste aspecto, os dois primeiros versos

de Milagres do povo, cartesianamente contraditórios, explicam-se por uma entrevista de

Amado concedida à escritora Clarice Lispector (1975, p.13): “Não sou religioso, não possuo

crença religiosa alguma, sou materialista. Não tive experiências místicas, mas tenho assistido

a muita mágica, sou supersticioso e acredito em milagres, a vida é feita de acontecimentos

comuns e de milagres”. Quem é ateu / e viu milagres como eu, canta Caetano Veloso em

música dedicada a Tenda dos milagres.

Para além da negação de uma crença, afirma-se, portanto, a dimensão de uma vivência

religiosa. O materialismo não os limita. Nem a Archanjo Ojuobá, nem a Jorge Amado, Obá

Arolu.

4.2. UM “UNIVERSO MESTIÇO”, UM “MUNDO NEGRO”

Acaso se considere válida a interpretação alcançada acima em que Pedro Archanjo

Ojuobá passa a ser visto como uma representação do oxê de Xangô, há de se ponderar, como

também possível, a leitura das obras archanjianas como fulminantes raios de justiça lançados

pelo Alafin de Oyó. Corresponderiam, portanto, à defesa do povo negromestiço brasileiro

contra as exclusões advindas de práticas sociais racistas; pleito em que se observa o

enaltecimento da mistura entre povos, do amálgama que fundaria um só povo, de feição e

cultura mestiças. É o que se observa, por exemplo, em um fragmento extraído das

“Influências africanas nos costumes da Bahia”, segundo livro publicado pelo omo Exu:

“Formar-se-á uma cultura mestiça de tal maneira poderosa e inerente a cada brasileiro que

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será a própria consciência nacional [...]” (Tenda dos milagres, p. 258). Da mesma forma,

depreende-se igual conceito da assertiva-síntese de Archanjo, qual seja, aquela dita por um

ferreiro em noite de discussão acerca do recuo dos exércitos nazistas: “Nem Deus, que fêz o

povo pode matar tudo de uma vez, vai matando de um a um e quanto mais êle mata mais

nasce e cresce gente e há de nascer, de crescer e de se misturar, filho-da-puta nenhum vai

impedir!” (Tenda dos milagres, p. 40-43).

Todavia, a julgar pelo histórico das propostas de mestiçagem no Brasil, abordado

lacunarmente na primeira seção, soa estranho que o termo “mestiço” possa abrigar em si a

população negra do país sem que lhe incida em escamoteamento ou supressão, sem que lhe

imponha branqueamentos vários. Não desprovidos de justa razão, portanto, os movimentos

negros nacionais, de uma forma geral, tendem à recusa de se conceberem a partir de uma

estética e de um ideário da mestiçagem, como sinaliza a letra de Alienação, canção cuja

autoria é de Sandro Teles e Mário Pam, músicos que compõem para o Ilê Aiyê:

Se você está a fim de ofender

É só chamá-lo de moreno, pode crer

É desrespeito à raça, é alienação

Aqui no Ilê Aiyê, a preferência é ser chamado de negão

Se você está a fim de ofender

É só chamá-la de morena, pode crer

Você pode até achar que impressiona

Aqui no Ilê Aiyê, a preferência é ser chamada de negona

Deve-se reconhecer, assim, que o abordo ficcional do negro empreendido através do

mestiço, como se a vinculá-los e exaltá-los apenas de forma conjunta, corresponde a uma

inalterabilidade representativa que invariavelmente obriga o leitor/pesquisador a engendrar

ressalvas e cuidados analíticos sempre justificáveis.

No que concerne especificamente à literatura amadiana, na qual a ascensão de um

mundo negro à protagonista se faz acompanhar da invariável valorização de um universo

mestiço, não poderia ser diferente. Por certo, ressalvas e cuidados são precisos, como bem os

faz Serra (1995, p. 340), para quem “[...] quando Jorge Amado faz do mulato a encarnação da

vitória sobre o racismo, incide numa simplificação brutalmente equivocada [...]”173

.

Conquanto haja a real necessidade de tais reservas, é plausível defender e arrazoar,

como se tem feito até aqui, a hipótese de que o “universo mestiço” figurado na literatura

amadiana comporta e valora positivamente em si mesmo um “mundo negro”. Por

173

Embora esta afirmação seja discutida e relativizada neste trabalho, não se pode deixar de lhe atribuir certa

razão.

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conseguinte, é mister admitir que, no que tange à mestiçagem, o romancista baiano alcança

configurá-la e enunciá-la de maneira singular, isto é, depurada dos estratagemas enviesados

do racismo brasileiro.

Conforme Machado (2006, p. 139), a literatura do grapiúna não trata “[...] de acenar

com o mito da democracia racial [...]. Trata-se de refletir a possibilidade de uma democracia

feita de mestiçagem cultural”. Neste sentido, os termos utilizados no parágrafo anterior, quais

sejam, “universo mestiço” e “mundo negro”, não o foram aleatoriamente. A especificidade do

segundo em relação à abrangência do primeiro constitui, talvez, a distinção entre dois

possíveis planos de leitura da obra produzida pelo baiano: o vislumbre quimérico de um

universo mestiço social e identitariamente democrático, associado à afirmação de um mundo

negro encastoado em uma sociedade mestiça excludente. O primeiro, uma projeção ou um

sonho futuro; a segunda, uma necessidade presente:

Naquele tempo inicial tinham derrotado e demitido o diretor da Polícia, doutor

Francisco Antonio de Castro Soromenho, que proibira o desfile de ranchos e afoxés,

o batuque e o samba. Bons tempos aquêles, hein, compadre!, quando jovens e

afoitos saímos no Afoxé dos Filhos da Bahia, fit-o-fó para a polícia, viva o povo e

sua festa! Se lembra, compadre? Essa briga é comprida de nunca se acabar. O major

Damião de Souza, um menino, arrancou o quepe de um soldado, o finado Manuel de

Praxedes representava o papel de Zumbi. Nunca mais se parou de brigar, compadre:

na rua e no Terreiro, no livro e no jornal, na tinta e na pedra, na festa e no barulho.

Luta mais comprida, briga mais sem fim. Será que um dia se acaba, meu compadre?

Um dia vai se acabar, meu bom, não será no nosso tempo, camarado. Vamos morrer

brigando, na briga nos divertindo. Pedrito na frente, na corrida, Ogun atrás, as mãos

de cobras, deixe-me rir, compadre, coisa tão engraçada nunca vi. Vamos morrer

brigando. Jovens e afoitos, meu bom. Fit-o-fó para a polícia, viva o povo da Bahia.

(Tenda dos milagres, p 313).

Há, no fragmento acima transcrito, tanto a projeção de um futuro distante e indefinido,

porém certo, em que já não haverá qualquer necessidade do povo negromestiço em afirmar-se

através de lutas várias, quanto, também, a certeza de que ambos, Lídio e Pedro, não

desfrutarão deste tempo. Morrerão lutando, desafiando a ordem estabelecida de um mundo

racista. Em cada luta, a afirmação dos princípios e valores do povo negromestiço da Bahia e,

por extensão, deste mesmo povo. À certeza de futuro, corresponde ao “universo mestiço”

amadiano; às lutas do presente, o “mundo negro” concebido pelo romancista grapiúna.

Olivieri-Godet afirma:

Em Amado, essa sociedade mestiça e plural é mais um projeto que uma realidade,

como demonstra o complexo universo romanesco do escritor. Este universo coloca

em cena a estrutura hierárquica do poder que produz os violentos conflitos sociais e

as forças brutais e dissimuladas da exclusão (OLIVIERI-GODET, 2004, p. 128-

129).

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Caso a intuição acima seja adequada, é possível aplicá-la já em O compadre de Ogum,

narrativa em que quimera e realidade se entrelaçam, mas, igualmente se contraposicionam. O

plano quimérico, ou seja, correspondente ao que foi designado “universo mestiço”, é

metafórico e concerne à encenação do batizado de Felício: um orixá dentro da Igreja. Como

utopia, não chega a se realizar, senão parcialmente. Ogum entra na Igreja Católica, o batizado

se realiza, mas, para que isso pudesse acontecer, fez-se necessário que se dissimulasse a real

identidade do padrinho em frente ao padre. A mestiçagem, tal como Amado a projeta, como

uma “democracia social e identitária”, não sobrevém. Noutro plano, alegoricamente estão

postos a exclusão e os limites em que o povo de santo é aceito pela Igreja e que impedem tal

democracia. Neste ponto, adentra-se ao que se convencionou como “mundo negro”, isto é, um

contexto cuja exclusão social perpetrada a uma identidade gesta a necessidade de afirmá-la.

Não à toa, o romancista baiano faz Exu gritar o seu nome em frente ao padre; não à toa, faz

Ogum incorporar naquele que é o símbolo e a metonímia da Igreja, instituição que se pretende

refratária a outras concepções religiosas, às outras identidades.

De todo modo, Felício é batizado por um padre e tem um orixá como padrinho. É

branco, porém filho legítimo de pais negros. Representa, pois, o entrelaçamento, a união, um

encontro que se dá de forma harmoniosa. Ora, caso se considere a criança como um símbolo

de devir e do porvir, não seria esta uma projeção amadiana de um “universo mestiço”, tal

como designado aqui, ao invés do simples elogio à mestiçagem ou ao sincretismo religioso?

Não obstante seja possível ler O compadre de Ogum sob esta diretriz, os planos

“universo mestiço” e “mundo negro” se colocam com maior vigor e clareza em Tenda dos

milagres. Neste romance, tanto o vislumbre quimérico de uma democracia identitária,

“universo mestiço”, quanto a afirmação de uma identidade frente a um contexto de exclusão,

“mundo negro”, são vislumbráveis nas personagens Kirsi, Major Damião e Tadeu Canhoto,

além, claro, de Pedro Archanjo Ojuobá.

A sueca ou finlandesa Kirsi Hekkonen, “branca mais branca, de alvaiade” (Tenda dos

milagres, p. 95), não obstante presentifique o ideal ariano pretendido pelo Dr. Nilo Argolo,

aparta-se das premissas teóricas endossadas pelo catedrático para estabelecer um contraponto

ao seu pensamento. Alheia ao mundo acadêmico e às concepções cientificistas que nele

reinam, recém-desembarcada de um cargueiro na negromestiça Cidade da Bahia, Kirsi

deslumbra-se e apaixona-se por tudo que vê e, ainda mais, por Pedro Archanjo. Convive com

Mestre Pedro, a quem chama de Oju – abreviando o nome nagô Ojuobá – por seis meses,

durante os quais percorre os mistérios de cidade tão velha e intrigante quanto o mundo.

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Conhece as pessoas, imiscui-se nelas, torna-se uma delas: a nova estrela d‟alva do Terno de

Reis – e o faz de modo sincero, sem arroubos de arianismo ou laivos quaisquer de racismo.

Ao cabo de meio ano, cargueiro novamente aportado no cais da Bahia, Kirsi embarca de volta

para as terras frias da Escandinávia. Porém, não sem antes comentar:

“Não há no mundo gente melhor do que vocês, povo mais civilizado do que o povo

mulato da Bahia”, dissera a sueca ao despedir-se na Tenda dos Milagres, em

conversa com Lídio, Budião e Aussá. Chegara de longe, vivera com eles, dizia por

saber, um saber sem restrições ou dúvidas, de real conhecimento (Tenda dos

milagres, p. 119).

O leitor é apresentado ao julgamento de Kirsi sobre o povo da Bahia para, logo depois,

travar conhecimento das considerações diametralmente opostas do Dr. Nilo Argolo, para

quem a condição mestiça dos baianos seria impeditiva de civilização: “Por que então o doutor

Nilo Argolo [...] escrevera sôbre os mestiços da Bahia aquelas páginas terríveis, as candentes

palavras?” (Tenda dos milagres, p. 119).

A distinção entre os comentários ocorre por efeito da discrepância que se estabelece

entre as premissas do “real conhecimento” que Kirsi incorpora, fruto do contato e da vivência

com o povo negromestiço baiano, e das “suspeitas teorias” avocadas por um distante e

imiscível Nilo Argolo. Assim, talvez não seja de todo imponderável a possibilidade de inferir

na personagem Kirsi um intento de Jorge Amado em investi-la da dimensão simbólica

pertinente à Antropologia – conquanto constitua uma antropóloga estranha e avessa ao mundo

acadêmico. Por via metafórica, a assertiva da escandinava origina-se de profundo e profícuo

trabalho de campo, o que a legitima como uma interpretação cientificamente válida do povo

baiano. Por outro lado, a leitura que Nilo Argolo faz deste mesmo povo abdica de um contato

direto e mesmo o rejeita. Baseia-se tão somente nas teorias advindas de franceses e italianos,

que se valem de diferenciações fenotípicas para justificar e perpetrar o poder colonizador

europeu, e as aplica ipsis litteris ao contexto brasileiro como forma de perpetuar um Estado

excludente.

Confrontá-las em um mesmo parágrafo, como indiretamente o fez Amado, possibilita

perceber através da solidez enunciativa de uma, a leitura alcançada por Kirsi, a insustentável

fragilidade teórica da outra, pretendida por Nilo Argolo. Neste aspecto, também Kirsi se torna

agente de afirmação de um “mundo negro”, ladeada por Pedro Archanjo, Lídio Corró,

Procópio de Oxóssi, Mãe Majé Bassã, Major Damião, entre tantos outros – o que por certo

indicia a superação de um pensamento baseado em uma linha fenotípica sectária: a de que

brancos e negros possuem necessariamente interesses opostos e excludentes, o que

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impossibilitaria que lutassem juntos por um mundo em comum. Assim, o romancista baiano

afirma de forma peremptória a viabilidade de um não-negro lutar e pôr-se sinceramente ao

lado dos interesses da população negra.

Noutro plano, Kirsi se afigura não apenas como veículo de um “mundo negro”, mas

também, a exemplo de Pedro Archanjo Ojuobá, como expressão de um “universo mestiço”.

Ao retornar ao cargueiro, a escandinava revela: “[...] é tempo que me vá, levo no ventre o

nosso filho. [...] Levo comigo o sol, tua música e teu sangue. [...] Obrigada, Oju” (Tenda dos

milagres, p. 118-119).

Eis outro símbolo do porvir elencado por este trabalho. O primeiro se referiu ao filho

branco de Linda a ser criado pelo pai negro, Baldo; o segundo, ao filho branco de pais negros,

Massu e Benedita, batizado por um padre e afilhado de um orixá. O terceiro: Oju Hekkonen,

filho mulato do negro Pedro Archanjo e da ariana Kirsi, união simbolizada no nome nagô

anteposto ao europeu. Também Oju é devir e porvir, futuro Rei da Escandinávia, como afirma

Archanjo em conversa com Zabela quando lhe mostra a foto do filho (Tenda dos milagres, p.

186). Destarte, se Nilo Argolo é a representação arquetípica do racismo e, por isso, constitui

barreiras a uma “democracia social e identitária”, Kirsi, por sua vez, encena a quimera de um

“universo mestiço”, ao engendrar em si a própria representação desta esperança utópica.

O retorno de Kirsi à terra natal separa Pedro Archanjo do filho, criança que não chega

a conhecer: “[...] ...distante. – tão distante, do outro lado do mundo” (Tenda dos milagres, p.

187). A distância aí referida, sem prescindir de indicar a infindável sucessão de terras e

oceanos que separam a Bahia do níveo Norte Europeu, por via alegórica indicia, igualmente,

aquela outra que extrema o “universo mestiço”, simbolizado por Oju Hekkonen, da sociedade

racista e hierarquizada em que se encontra Pedro Archanjo Ojuobá. A uni-los, pai e filho,

presente e quimera, apenas uma foto enviada por Kirsi em que se visualiza, no rosto da

criança, a mestiçagem: “O menino é sua cara”, diz Zabela, “Mas parece também com Kirsi”,

responde Archanjo (Tenda dos milagres, p. 186).

Noutro plano estão as personagens Tadeu Canhoto e Major Damião de Souza. Se o

filho Oju Hekkonen significa o distante “universo mestiço” pretendido pelo romancista

baiano, Tadeu e o Major, por sua vez, evidenciam as vicissitudes da sociedade na qual se

inserem: o primeiro opta em subir na vida, branquear-se de todo, apartar-se do “mundo

negro”; já o segundo, discípulo de Ojuobá é, pois, a sua continuidade:

Olhos de Ojuobá, Pedro Archanjo os reconhece e acompanha: são diferentes os

caminhos. Damião, um livro aberto, sem segredos, não conquistou título de doutor

em Faculdade, quem lhe deu títulos e patentes foi o povo. Onde quer que o leve sua

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sina, permanecerá igual, sempre o mesmo, plantado ali, inamovível. Tadeu começou

a galgar a escada ainda na Faculdade, à frente dos colegas. Decidira subir todos os

degraus, disposto a obter um lugar em cima. “Hei de ser alguém, padrinho”, dissera

na manhã daquele dia, uma flama de ambição. Por quanto tempo o teriam ainda na

Tenda dos Milagres? (Tenda dos milagres, p. 238).

Filho de Dorotéia, a ex-Iaba vencida por Pedro Archanjo, Tadeu Canhoto lembra o

padrinho Ojuobá no ímpeto pelos estudos, na determinação de vencer174

. A diferenciá-los, a

abrangência da vitória: enquanto Archanjo triunfa para o bem do povo negromestiço baiano,

Tadeu o faz apenas em benefício de si. Não interessa a Canhoto a perspectiva de “andar para a

frente”, expressão que conota os embates por uma transformação da sociedade em derredor,

mas a possibilidade, tantas vezes negada por Archanjo, de subir, de elevar-se socialmente. Isto

é, a expectativa de uma ascensão individual.

“Como todos os demais mulatos e pobres de seu tempo o que ele [Tadeu] queria era

ser branco e rico, em vez de revolucionário tornou-se genro de fazendeiro, embranqueceu,

deixou o Pelourinho pelo Corredor da Vitória”, afirma Amado (Navegação de cabotagem, p.

447). Não obstante a repreensível – e algo perigosa – generalização contida na fala do

romancista baiano, o ideário do branqueamento como fator de ascensão e prestígio sociais foi

– e, talvez, ainda o seja – um importante aspecto da problemática em torno das identidades

étnico-raciais no Brasil, como se viu na primeira seção deste trabalho. Construir-se branco

significava, pois, desenredar-se dos estigmas de incivilizado e de inferioridade; esquivar-se da

pecha de ser visto com alguém moral e psicologicamente degenerado – características

consideradas inerentes às populações negras e mestiças pelo pensamento científico nas

primeiras décadas do século XX. Significava, sobretudo, a possibilidade de galgar posições

antes interditas. Eis a perspectiva alentada por Tadeu:

A brincadeira atravessou a noite, mas bem cedo o dono da festa, o motivo da

reunião, o alvo das homenagens, o doutor Tadeu Canhoto, engenheiro civil,

mecânico, geógrafo, arquiteto, astrônomo, engenheiro de pontes e canais, de

ferrovias e estradas de rodagem, politécnico, pediu licença e retirou-se. Nos salões

da Cruz Vermelha, o clube da elite, o paraninfo, o ilustre e rico professor Tarquínio,

oferece o baile de formatura aos novos engenheiros.

- Preciso ir, padrinho. O baile começou faz tempo.

- Não é cedo ainda? Por que não fica mais um pouco? Todos aqui lhe estimam e

vieram para lhe ver. – Archanjo não queria dizer e disse, por que o fêz?

- Bem sei e gostaria de ficar. Mas... [...]

Tadeu sumiu na escuridão, ressoam os passos na ladeira, sapatos de verniz.

Ninguém poderá detê-lo em seu caminho. Não tentarei, Zabela, para quê? Vai subir

174

Ao longo de Tenda dos milagres, são encontradas evidências que sugerem Pedro Archanjo como pai de

Tadeu Canhoto. Sem dúvida, esta é uma leitura certeira – o que é comprovado pela quantidade de textos críticos

que assumem a perspectiva de tratarem Tadeu como um filho do relacionamento entre Ojuobá e Dorotéia.

Entretanto, optou-se aqui por não avançar no campo do que é apenas sugerido: mantenha-se o “segredo”.

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os degraus da escada, um a um, e leva pressa. Adeus, Tadeu Canhoto, a festa foi de

despedida (Tenda dos milagres, p. 239).

Logo após a formatura, Tadeu Canhoto passa a trabalhar na construção da Estrada de

Ferro Jaguaquara, em Jequié, emprego no qual veio a ser engenheiro-auxiliar. Passado algum

tempo, retorna à capital para conversar com o padrinho assuntos de amor porquanto

pretendesse desposar Lu, “cachos loiros, pele transparente de opalina” (Tenda dos milagres, p.

248). Filha de um grande fazendeiro da Bahia, Tadeu a conhecera por intermédio de Astério,

amigo dos tempos de faculdade, e irmão de Lu. A separá-los, Tadeu e Lu, as distâncias entre

a pobreza e a riqueza, entre o branco e o negro. Ambas reversíveis, demonstra o romance.

Tadeu é explícito quanto à estratégia para superar a primeira distância: irá para o Rio de

Janeiro, de onde recebera vantajosa proposta para trabalhar com o engenheiro Paulo de Frotin,

responsável pela modernização da cidade. Haveria boas perspectivas para Canhoto na Cidade

Maravilhosa, poderia ascender e fazer fortuna, o que, de certo modo, era impossível na Bahia.

Já em relação ao segundo empecilho, Tadeu não o aborda de forma tão clara e, em verdade,

até o tenta minorar: “Se me disserem não por eu ser mulato, vou dar meu jeito. Mas se

permitir que me digam não, por eu não ser capaz de sustentar família, que direito terei de

reclamar? Nenhum, não acha?” (Tenda dos milagres, p. 249).

No retorno a Salvador, a despeito da substancial melhoria na condição financeira, o

pedido de casamento de Tadeu é negado pelo pai de Lu:

- O senhor abusou da confiança que em si depositamos. Por ser colega de meu filho,

nós o recebemos em casa sem levar em conta sua côr e sua procedência. Dizem que

o senhor é inteligente, como então não se deu conta que não criamos filha para

negro? Agora saia e não volte nunca mais a esta casa senão será pôsto na rua a

pontapés (Tenda dos milagres, p. 281).

As reações de Archanjo e de Tadeu que se seguem à negativa são sintomáticas. “A

despeito de esperar a recusa, Pedro Archanjo ficou fora de si, deblaterou, perdeu a cabeça

[...]” (Tenda dos milagres, p. 282). Acusa a família de Lu de hipócritas por terem aceitado

Tadeu em sua casa como amigo, mas de agirem tal racistas estadunidenses quanto à proposta

de casamento. Ojuobá, então, traça planos de rapto e fuga, casamento às escondidas. “[...]

capoeiristas guardando a rua, Lu fugindo de casa pela madrugada, envôlta em susto e em

negro albornoz, um saveiro de velas enfunadas a levar os noivos para esconderijos no

Recôncavo, o casamento às escondidas, a raiva dos Gomes” (Tenda dos milagres, p. 283).

Outro, porém, é o plano de Tadeu Canhoto, que não pretende abdicar de ser visto

como integrante da família Gomes: “Que é isso, Padrinho? Calma, não insulte meus parentes.

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[...] Nem por isso são más pessoas, e, no fundo, penso que mesmo êsse preconceito é

superficial, não resiste ao tempo” (Tenda dos milagres, p. 282). Em lugar do rapto e da fuga,

dos saveiros e dos capoeiristas, enfim, em substituição ao rompimento definitivo com os

Gomes, o promissor engenheiro prefere a calma e a paciência operando o convencimento

diário e pacífico. Afinal, queria-os como parentes, almejava ser um deles. Não restasse outra

solução, casar-se-iam, Lu e Tadeu, quando ela completasse a maioridade e, assim, pudesse

juridicamente decidir por si acerca de sua vida.

Casaram-se, enfim, à revelia dos Gomes que se mudaram para a fazenda a fim de

fugirem das maledicências e da vergonha que sentiam. A cerimônia, planejada inicialmente na

decadente casa de Zabela, realizou-se no palacete do casal Silva Virajá que, a pedido do

amigo Archanjo, haviam acobertado Lu e Tadeu nos dias antecedentes ao casamento.

Lu e Tadeu se mudam para o Rio de Janeiro. Um último encontro entre o afilhado e

Archanjo vem a acontecer algum tempo depois. Conversam Lídio e Ojuobá, quando o

riscador de milagres pergunta:

- Meu compadre, você sabia que Tadeu chegou, está na Bahia?

- Tadeu chegou? Quando?

- Quando, não sei, já tem dias. Soube hoje, de manhãzinha, na barraca de Terência.

Damião encontrou com êle na rua. Disse que vai para a Europa. Está em casa da

família de Lu...

- Família dêle, meu bom. Não é genro do coronel, marido da filha?

- Não apareceu por aqui...

- Vai aparecer, com certeza. Chegou, tem coisas a tratar, passeios a fazer, parentes a

visitar.

- Parentes? E nós?

- Você é parente dêle, meu bom? Desde quando? Por que êle lhe chamava de tio?

Coisas de aprendiz, meu camarado.

- E você, também não é?

- Sou parente de todo mundo e não sou de ninguém. Se fiz filhos, não os tenho, não

fiquei com nenhum, meu bom. Não se afobe, quando Tadeu arranjar um tempo, vem

por aqui. Para dizer adeus. [...]

- É falar no diabo, êle aparece – riu Pedro Archanjo e Lídio suspende a vista. [...]

Pedro Archanjo considerou com olhos de amizade o importante senhor de pé em sua

frente. Tadeu devia andar pelos trinta e cinco anos, tinha quatorze quando Dorotéia o

trouxera ao Terreiro e o entregara a Archanjo: só fala em leitura e em conta, não me

serve para nada mas não posso torcer o destino, mudar a sina do moleque. Também

eu não posso torcer o destino, mudar os caminhos, parar o tempo, impedir a subida,

compadre Lídio, meu bom. Tadeu Canhoto anda seu caminho, chegará ao tôpo da

escada, para tanto se preparou, e nós, meu camarado, o ajudamos. Veja, Dorotéia,

seu menino a subir, vai longe. [...]

Tadeu mantivera-se de pé, a ponta da bengala fincada nas tábuas podres do assoalho.

De súbito ficaram os três sem assunto, sem conversa. [...]

-Então, até outra.

- Adeus, Tadeu canhoto (Tenda dos milagres, p. 339-343).

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De passagem, o fragmento transcrito acima indicia a aceitação de Tadeu por parte dos

Gomes uma vez que é na casa do fazendeiro que o casal está hospedado. Indicia, igualmente,

o sucesso profissional do engenheiro Canhoto, posto se apresente como um lorde, como nota

Mestre Lídio Corró (Tenda dos milagres, p. 340), e esteja de viagem marcada para a Europa,

como o faz saber o afilhado. Por certo, tais fatos estão intensamente imbricados, o que produz

a sensação de que o romancista Jorge Amado coloca o racismo brasileiro como simplesmente

derivado de uma clivagem socioeconômica.

Como evidenciado na seção anterior, a questão não se afigura assim tão simplista ao

pensamento amadiano. Para o grapiúna, a desigualdade social é, sim, um fator preponderante

sobre o racismo, pois o nutre e o expande. Mas, isto não impede o escritor baiano de

reconhecer a existência e atuação específica do preconceito racial. Assim é que, a aceitação de

Tadeu pelos Gomes não se relaciona apenas à ascensão social do jovem engenheiro, mas é

também – e, talvez, principalmente – condicionada pelo distanciamento que se estabelece

entre Tadeu e o “mundo negro” simbolizado pelo espaço do Pelourinho, com suas

personagens e suas histórias.

A despeito de serem padrinho e afilhado, de terem convivido por tantos anos, Tadeu e

Archanjo conversam como dois estranhos. É emblemático que, em determinado momento,

emudeçam, sem assuntos: o que os une além de uma memória que, talvez, Tadeu procure

esquecer? Da mesma forma que a distância entre Archanjo e Oju Hekkonen aponta para uma

lonjura a ser percorrida entre o “mundo negro” e o “universo mestiço”, a ida de Tadeu

Canhoto para a Europa simboliza o seu rompimento definitivo em relação ao “mundo negro”

do qual migrara para aquele outro, branco, das famílias, das histórias, das genealogias do

Corredor da Vitória. Não sem motivo, o “adeus” de Archanjo!

Diametralmente oposta é a perspectiva abraçada pelo Major Damião de Souza. O

rábula do povo, como é conhecido, nunca teve a pretensão de subir na vida, senão a de

enraizar-se cada vez mais no convívio do povo negromestiço da Bahia e estar ao seu serviço,

quando necessário – sempre, diga-se de passagem. Desde criança no convívio com Ojuobá,

Damião aprendera com Mestre Pedro o domínio das letras e dos números, o amor das

mulheres; vivera o cotidiano pobre, sofrido e, não obstante as mazelas, alegre do Pelourinho.

Pedro Archanjo Ojuobá foi o seu exemplo, com ele aprendera, sobretudo, a “andar para a

frente”, ao invés de simplesmente subir:

Rábula do Povo, Procurador dos Pobres, Providência dos Infelizes, provisionado no

fórum, batera todos os recordes de defesa – e de absolvição – no júri onde atuava há

cêrca de cinqüenta anos; inumerável clientela de réus paupérrimos, desamparados,

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na maioria gratuitos. Jornalista com banca em todos os jornais, pois em todos

escrevia e publicava as lidíssimas “Duas Linhas” de reclamações e pedidos às

autoridades, de denúncia de violências e injustiças, de clamor contra a miséria, a

fome, o analfabetismo. Ex-vereador pela legenda de um pequeno partido, que, nas

águas de sua estima pública, elegera dois sabidórios, o Presidente e o Primeiro-

Secretário da agremiação, insaciáveis ratos, fêz da Câmara Municipal a casa do povo

pobre, trouxe os outros edis num cortado, empenhou a vereança nas Invasões de

onde nasceram os novos bairros, nunca mais obteve legenda. Orador geral e

universal, não só de júri e de tribunal de apelação mas de qualquer cerimônia ou

festa onde se encontrasse, erguia a voz tanto em solenidade cívica como em almoço

ou jantar de casamento, aniversário e batizado; tanto em inauguração de escola

pública ou pôsto de saúde como em abertura de lojas, armazéns, panificadoras,

bares; em entêrro de figura de proa e em comícios políticos [...] sem distinção de

partido. Segundo êle, para defender os interêsses do povo, para protestar contra a

miséria, a falta de trabalho e de escolas, qualquer pasquim e qualquer tribuna

servem, e o mais que se dane (Tenda dos milagres, p. 76).

Retome-se o singelo dizer de Ester sobre Mestre Pedro, quando o encontra morto. “Os

olhos de ver” e a “boca de falar” da gente pobre da Bahia, do povo negro e mestiço das tantas

e tantas ruas e ladeiras do Pelourinho, se afiguram também na personagem do Major. É, pois,

um espelho de Archanjo. Neste sentido, importante situar a atuação do Major Damião no

tribunal quando ganhou a sua carta de rábula. O réu era Zé da Inácia e o processo corria por

conta do assassinato de Afonso da Conceição, mais conhecido por “Bôca Suja”. Processo

considerado sem chances de defesa, uma vez que a acusação tinha argumentos cientificamente

inquestionáveis:

No primeiro júri, após mais de um ano de espera na cadeia, o promotor falara em

perversidade congênita, exibira o seu Lombroso. Observem, Senhores Jurados, a

cabeça do indigitado réu: crânio típico de assassino. Sem falar na côr escura: as

teorias mais modernas, defendidas pelo ilustre professor de Medicina Legal de nossa

colenda Faculdade, doutor Nilo Argolo, autoridade inconteste, assinalam o alto

percentual de criminalidade dos mestiços. Ali, no banco dos réus, encontra-se uma

prova a mais do acêrto dessas teses (Tenda dos milagres, p. 242).

O advogado de defesa, doutor Alberto Alves, sem prestar muita atenção ao caso –

preocupava-se mais com a mulher que deixara em companhia de outro homem – pouco fez

para contestar o que, também a ele, parecia incontestável: “Doutor Alves nada negou, nada

contestou, ao júri pediu apenas clemência na aplicação da justiça” (Tenda dos milagres, p.

243). Sentença dada, apelou apenas no último instante, ainda assim por motivo de reprimenda

do Juiz. Faltou, no entanto, aos dois julgamentos marcados para que se pudesse recorrer do

determinado pelo primeiro júri. Tendo se ausentado também do terceiro, o doutor Lobato

designa Damião, então empregado do fórum e postulante à carta de rábula, para a defesa.

Caso se saísse bem, lhe seria outorgada a pretendida autorização. “Acontece, porém, que a

estréia de Damião de Souza na tribuna do júri converteu-se na maior sensação da temporada,

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comentada na Justiça durante longo tempo. [...] Notícia de gazeta seria Damião daí por diante,

a vida inteira” (Tenda dos milagres, p. 244). Não só fez a defesa de Zé da Inácia como

conseguiu sobrepor-se às teses racistas da acusação, vencê-las, enfim:

Por unanimidade, o Conselho de Sentença absolveu o réu. Coube ao juiz Santos

Cruz ditar a sentença e mandar pôr em liberdade Zé da Inácia. “Pouco faltou para

que eu também chorasse, nunca vi em minha vida coisa igual – disse o Meretíssimo

(sic) ao Promotor em pânico – Vou lhe obter carta de rábula, nunca mais faltará

advogado para os pobres”.

Assim se deu a formatura de Damião. Formatura sem anel de grau, sem canudo de

doutor, sem quadro, sem retrato de beca, sem baile, sem paraninfo, sem colegas, êle

só e único (Tenda dos milagres, p. 246).

Tal Archanjo em luta contra aqueles que oprimem o povo, em luta contra todas as

formas de opressão, Major Damião se distancia de Tadeu Canhoto, vive outra realidade, vive

outro mundo: o mesmo de Pedro Archanjo Ojuobá, o “mundo negro”. Desta forma, cabe ao

Major retirar da poça de lama de uma rua qualquer no Pelourinho o corpo de Archanjo,

quando de sua morte; e, em 1968, é também Damião de Souza quem resgata o nome de

Archanjo em meio às comemorações em torno dos cem anos quando, em plena Sessão Solene,

pede a palavra para introduzir uma filha de Mestre Pedro175

. Eis, pois, um novo Archanjo.

Ora, comparando-se as trajetórias dessemelhantes de Tadeu e Damião, bem como a

“morte” simbólica do primeiro e o engrandecimento do segundo, é possível inferir que a

perspectiva alentada pela literatura amadiana, a despeito da valorização da mestiçagem, é a do

combate ao branqueamento. Noutras palavras, ao invés de minorar e apagar, Amado pretende

valorizar e incluir o “mundo negro” – daí também se defender neste trabalho a terminologia

“povo negromestiço” para representar as personagens criadas por Jorge Amado.

De acordo com Olivieri-Godet (2004, p. 120), contrário a um projeto de modernização

do país “[...] baseado em matrizes coloniais e numa retórica da exclusão, Tenda dos Milagres

defende um projeto de inclusão do Brasil periférico [...] abrindo-se para uma figuração

identitária construída a partir de um simbolismo da mestiçagem”. Evidentemente, este

acréscimo do Brasil periférico, nos termos propostos pela pesquisadora, ou do Brasil

especificamente negro, como analisado aqui, não ocorre sem que haja uma resistência em

contrário. Assim como no plano extraliterário, em que qualquer ação política de

reorganização social igualitária encontra ampla oposição de políticos conservadores,

independentes de quais legendas partidárias professem, o acréscimo do Brasil excluído ao

175

A análise desta cena é feita no próximo tópico, “Uma verdade, a despeito do embuste”. Por isso aqui se fez

apenas a referência a ela.

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Brasil oficial, alcançada no plano ficcional por Amado, não se faz com a permissão e as boas-

vindas do segundo: é preciso resistir à opressão, é necessário combatê-la, é imperativo vencê-

la.

É, pois, na justa medida em que este acréscimo precisa ser feito, e não o é senão à

custa de muitas batalhas, de muita resistência e afirmação, que se pode discordar, por

exemplo, da antropóloga Goldstein (2006, p. 78), para quem Tenda dos milagres “[...]

apresenta os encontros interétnicos como solução ao racismo”. Ora, caso fosse correto o que a

pesquisadora afirma, caso a solução fosse assim tão simplória, o próprio romance não seria

escrito, vez que todos são mestiços, como comprova um dos livros de Archanjo, o racismo já

não existiria, consequentemente inexistiram também os embates de Ojuobá contra uma ordem

excludente.

Antes, a mestiçagem é uma realidade popular em potencial que, vencido o racismo,

pode vir a estruturar um “universo mestiço”, ou seja, uma “democracia social e identitária”.

Entretanto, ela em si e de per si não se sobrepõe às hierarquias sociais, não desfaz as

exclusões que advêm da estrutura desigual da sociedade brasileira – concepção do problema

racial que, aliás, foi investigada na última seção, a partir de algumas entrevistas do romancista

baiano.

Da mesma maneira, pode-se discordar parcialmente da ressalva feita pelo antropólogo

Ordep Serra ao romance Tenda dos milagres. Se o antropólogo está absolutamente correto em

afirmar que a apreensão da temática e da solução do racismo por Amado é, de certa maneira,

simplista – como igualmente já foi colocado aqui ao considerá-la falha – não há, por outro

lado, simplificação no fato de um mulato ser o herói da vitória sobre o racismo. Ora, Pedro

Archanjo não triunfa pelo fato único de ser um mulato, mas porque resiste, porque luta e,

nesta peleja, alcança afirmar a si e ao seu povo, porque, em última instância, é principalmente

através dele que os orixás intervêm no aiyê.

Pode-se obstar ao ponto de vista enunciado que, não raro, Jorge Amado afirma a

capacidade de resistência do povo brasileiro como proveniente da mestiçagem, argumento

com o qual Serra estaria plenamente correto. Tal genealogia da resistência é passível de

relativização, como se viu em Os pastores da noite através de uma fala de Jesuíno. O

imaginário amadiano acerca da propensão do povo a resistir e a vencer remonta mais ao

heroísmo negro em não se submeter, cabisbaixo e resignado, aos ditames de antigos e atuais

mandatários do que propriamente à simples mistura de povos e culturas. Desta forma, a

vitória de um mulato sobre o racismo talvez possa significar muito mais a afirmação de um

“mundo negro” do que, tão somente, o puro, ingênuo e irrestrito elogio da mestiçagem.

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Retome-se especificamente a personagem Pedro Archanjo. Como se viu, o

propugnáculo do candomblé em Tenda dos milagres não é mera atitude de respeito à religião

negra, mas, em diversas instâncias, corresponde à afirmação peremptória da identidade afro-

brasileira feita através de princípios e valores que lhe são próprios; alicerçada e levada a

termo, inclusive, pelos orixás. Abordou-se, assim, uma parte do “mundo negro”. Cabe agora

mirar a outra metade, as “suspeitas teorias” da Faculdade de Medicina e sua contraparte, os

livros de Pedro Archanjo, libelos antirracistas.

As primeiras páginas do romance são destinadas a descrever e exaltar a “imagem

nova, original” caracterizada por “uma côr e um som” dimanadas da mistura de “ritmos,

passos e sangue” (Tenda dos milagres, p. 15). Dá-se conhecimento, assim, de instrumentos,

músicos, capoeiristas e riscadores de milagres, poetas de cordel, trovadores, violeiros e

repentistas, escultores que trabalham com madeira e com metais, com as contas e as palhas,

pobres vendedoras de ervas cujas receitas enriquecem médicos e, por último, a Tenda dos

Milagres de Mestre Lídio Corró, designada como reitoria da vária e vasta universidade

popular que constitui o território do Pelourinho (Tenda dos milagres, p. 15-20). Ao deter-se

no número 60 da Ladeira do Tabuão, a Tenda de Lídio Corró, Amado apresenta Pedro

Archanjo, especula que talvez ele seja o reitor desta universidade popular, e informa a

impressão de um seu livro sobre o viver baiano. Para a obra amadiana, o Pelourinho cumpre,

conforme afirma Pinho (1998), a função de uma metáfora que permite ao romancista baiano

situar as desigualdades socais da cidade bem como a sua originalidade. Neste aspecto, o

Pelourinho encerra tanto aquilo que Amado pretende combater, a exclusão, quanto o que

pretende ressaltar, valorizar e incluir: o povo negromestiço.

Noutro lugar, o Terreiro de Jesus, separado tão somente de forma simbólica do

Pelourinho, Amado evidencia, em breves quatro linhas, a Faculdade de Medicina – instituição

em que leciona Nilo Argolo. A despeito de adentrar o território da universidade popular, a

instituição acadêmica oficial permanece à parte: nela ensina-se e aprende-se “suspeitas

teorias”.

O grande painel traçado por Amado apresenta, pois, a dicotomia-base sobre a qual se

assenta Tenda dos milagres: os dois centros de saber, o popular e o erudito/oficial. Do

primeiro, origina-se uma sociedade intensamente marcada pela mestiçagem que, de acordo

com o que sugere o autor, extrapola o sentido meramente biológico: faz-se criativa, criadora.

Do segundo, vigoram as restrições que cindem e hierarquizam esta mesma sociedade. Assim,

é possível afirmar que Amado vislumbra no território popular, um “protouniverso mestiço” e,

no segundo, as limitações e os preconceitos que impedem a quimera de se realizar, vez que se

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configuram em agentes de exclusão. Assim, para Oliveira (2006, p. 19), “[...] a incumbência

de Pedro Archanjo é inserir na moldura do retrato da nação, outras figuras que [...] ficaram

excluídas da fotografia que as elites forjaram ao seu bel prazer”. Isto é, ressaltar, afirmar e

incluir um “mundo negro” em uma sociedade que tende a rejeitá-lo e estigmatizá-lo –

acréscimo que, à medida que se opera, desfaz preconceitos e hierarquias, constituindo-se,

portanto, em base da utopia que projeta um “universo mestiço”.

Asseverou-se anteriormente que Nilo Argolo e Pedro Archanjo corresponderiam a

duas representações arquetípicas antagônicas; assim, o catedrático de Medicina Legal

encarnaria por completo o conceito de racismo, enquanto Ojuobá seria o antirracismo por

excelência. Cabe, pois, avançar nesta perspectiva. Contraposta à descrição elogiosa

empreendida pelo romancista acerca da universidade vasta e vária do Pelourinho, a instituição

oficial, situada no Terreiro de Jesus, apresenta-se decadente:

Nos comêços do século, a Faculdade de Medicina encontrava-se propícia a receber e

a chocar as teorias racistas pois deixara paulatinamente de ser o poderoso centro de

estudos médicos fundado por Dom João VI, fonte original do saber científico do

Brasil, a primeira casa dos doutôres da matéria e da vida, para transformar-se em

ninho de subliteratura, da mais completa e acabada, da mais retórica, balofa e

acadêmica, a mais retrógrada. Na grande Escola desfraldaram-se então as bandeiras

do preconceito e do ódio (Tenda dos milagres, p. 169-170).

Argolo é, pois, o principal arauto deste preconceito e deste ódio que se expande a

partir da Faculdade de Medicina. Sobre ele, narra-se que “em 1904, [...] publicou numa

revista médica e em separata, a monografia „A degenerescência psíquica e mental dos povos

mestiços – o exemplo da Bahia” (Tenda dos milagres, p. 169). Sem dúvida, a referida

monografia alude a um texto do médico maranhense Nina Rodrigues que publicou, em 1899,

um trabalho intitulado Mestiçagem, degenerescência e crime, comentado brevemente na

primeira seção. O conteúdo de ambos os estudos, o ficcional e o real, é evidente pelo título

auto-explicativo: uma tese baseada em hierarquizações raciais e na degradação humana

oriunda da miscigenação. Assim, o mestiço seria o degrau mais baixo da escala humana, tipo

caracterizado apenas pelo que haveria de inerentemente negativo entre as raças. A esta altura,

Pedro Archanjo Ojuobá já se encontrava inserido na Faculdade de Medicina e, da mesma

forma, investido das responsabilidades e dos compromissos advindos com o alto posto em

Casa de Xangô:

Archanjo passou a vista pelas páginas, seus olhos se fizeram pequenos e vermelhos.

Para o doutor Nilo Argolo a desgraça do Brasil era aquela negralhada, a infame

mestiçagem.

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- O professor descasca você, não deixa vasa – comentou a divertir-se o quartanista. –

De ladrão e assassino para baixo, não faz por menos. Você está na fronteira entre o

irracional e o racional. E os mulatos são piores que os negros, veja lá. O Monstro

acaba com você e sua raça, mestre Pedro (Tenda dos milagres, p. 123).

“Meu Deus, onde fôra o professor buscar afirmações assim tão categóricas? „Maior

fator de nosso atraso, de nossa inferioridade, constituem os mestiços uma sub-raça incapaz‟.

Quanto aos negros, na opinião do professor Argolo, não tinham ainda atingido a condição

humana [...]” (Tenda dos milagres, p. 119-120). Ao quartanista, Archanjo ensaia o argumento

que, anos depois, será usado contra Argolo: “- Só comigo, meu bom? – fitou o cabelo do

rapaz, a bôca, os lábios, o nariz. – Acaba com todos nós, com todos os mestiços, meu bom.

Comigo, com você... – e passando o olhar pelos demais –... nesse grupo ninguém escapa, nem

um para remédio” (Tenda dos milagres, p. 123). É bem verdade que revelar uma genealogia

negada, escondida, não contribui, em termos científicos, para o repúdio às concepções raciais

aventadas pelo estudante e pelo professor. Simboliza, no entanto, o rompimento com a

continuidade de uma situação de silêncio em relação aos negros na Bahia. Ao revelar a

ascendência negra do quartanista, Mestre Pedro põe em cheque uma identidade forjada a

partir de uma obliteração histórica. Ademais, é como se revelasse, através do sucesso do

estudante, a nulidade teórica e também prática das proposições científicas de Argolo, uma vez

que, na condição de mestiço, o quartanista seria, em tese, incapaz de estar no lugar em que se

encontra.

A investida de Argolo contra a mestiçagem avança, toma novos contornos. Ao assumir

as perspectivas teóricas da antropologia criminal, do italiano Cesare Lombroso, Nilo Argolo

extrapola os limites da Medicina e avança para o campo do Direito. Neste sentido, Argolo

pretende um corpo de leis que considera de máxima urgência:

Tal corpo de leis a prever e ordenar quanto se relacionasse a negros e mestiços,

centralizava-se em dois projetos fundamentais.

O primeiro referia-se à localização e isolamento de negros e mestiços em certas

áreas geográficas, já determinadas pelo professor Nilo Argolo: regiões da Amazônia,

de Mato Grosso, de Goiás. Clichês de mapas estabelecidos pelo professor,

reproduzidos no opúsculo, não deixavam dúvida sôbre o inóspito das áreas

escolhidas. Êsse confinamento não possuía caráter definitivo, destinava-se a manter

a “raça inferior” e a “sub-raça aviltante” apartadas do resto da população enquanto

não lhes fosse dado definitivo destino. O professor previa a aquisição pelo govêrno

de território africano capaz de acolher tôda a população negra e mestiça do Brasil.

Uma espécie de Libéria, sem os erros da experiência norte-americana, naturalmente.

No caso brasileiro, negros e mestiços, todos, se possível, seriam deportados,

mandados embora de vez, para sempre.

O segundo projeto, de claríssima urgência, lei ou decreto de salvação nacional,

poibiria o casamento entre brancos e negros, entendidos por negros todos os

portadores de “sangue afro”. Proibição absoluta, capaz de pôr freio à mestiçagem

(Tenda dos milagres, p. 320).

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A respeito do corpo de leis acima, Serra (1995, p. 334) comenta que “[...] Jorge

Amado envolve seu herói no combate a uma fantasia delirante: o sonho de uma legislação

ultra-racista [...]”. De fato, o romancista baiano faz convergirem para a personagem de Nilo

Argolo várias perspectivas de racismo que extrapolam o tipo específico de preconceito que se

estruturou no Brasil. Talvez não haja nisso demérito do texto amadiano, posto que o

romancista baiano projete em Nilo Argolo uma representação arquetípica do racismo. Assim,

faz ecoar no catedrático de Medicina Legal não só as reverberações das teorias cientificistas

da virada do século XIX para o XX no Brasil, como também as diversas experiências racistas

que tiveram lugar no mundo ao longo do século XX, quais sejam: a política de negação dos

direitos civis, adotadas pelos Estados Unidos da América, a experiência do apartheid sul-

africano e, também, a ideia de uma superioridade ariana da Alemanha Nazista – não à toa,

Nilo Argolo saúda o “Führer” Adolf Hitler como redentor da humanidade.

Ora, se o racismo, seja ele explícito como nos contextos ressaltados acima ou

dissimulado como o é, em geral, no Brasil, redunda invariavelmente em sociedades totalmente

segregadas, a postura antirracista adotada por Amado e projetada em Archanjo envolve a luta

por uma sociedade plenamente integrada. É, pois, esta a perspectiva que Ojuobá afirma e

defende nos livros que escreve: a de um “universo mestiço” – em uma conotação amadiana,

isto é, uma “democracia social e identitária”.

Diferentemente da batalha contra Pedrito Gordo, que prescindiu do enfrentamento

físico pelo milagre promovido pelos orixás, o embate entre Archanjo e Nilo Argolo acontece

noutro campo: o da Academia. Supõe, desta maneira, o conflito entre pressupostos teóricos.

Era, pois, necessário aprender a digladiar com conceitos, brandir teorias, apropriar-se do

erudito para exprimir a verdade do popular. Neste sentido, Santos observa:

A apropriação da cultura erudita podia funcionar, funcionava e funciona como uma

forma de resistência. Conhecer os sinais diacríticos do outro é poder melhor utilizá-

los em proveito próprio, sendo, então, possível, construir discursos sobre si e sobre

os seus, reafirmando a identidade e deixando de ser apenas o objeto do discurso

alheio (SANTOS, 2008, p.7).

Compromisso assumido com Xangô quando consagrado Ojuobá, e relembrado por

Mãe Majé Bassã, Archanjo enfim tomou da obrigação que lhe convinha: escreveu e estudou

com afinco. Os cofres de Xangô lhe foram abertos pela iyalorixá para a compra de livros

caros, raros, muitos importados e em línguas estrangeiras, mas imprescindíveis ao debate com

Nilo Argolo: “Ah! meu bom, leio pra entender o que vejo e o que me dizem”, responde

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Archanjo à pergunta de Mestre Lídio do porque tanta leitura se ele tanto já sabia (Tenda dos

milagres, p. 181).

Além dos artigos e das cartas publicadas em jornais vários, Mestre Pedro Archanjo

Ojuobá logra escrever quatro livros, a saber: A vida popular na Bahia, 1907; Influências

africanas nos costumes da Bahia, 1918; Apontamentos sobre a mestiçagem nas famílias

baianas, 1928 e, em 1930, A culinária baiana: origens e preceitos. Amado situa que os “[...]

livros de Archanjo, os três primeiros especialmente, encontram-se diretamente ligados a êsse

debate [com Nilo Argolo]” (Tenda dos milagres, p. 169). São, deste modo, os raios de justiça

lançados pelo oxê de Xangô, Pedro Archanjo:

[Nos dois primeiros livros] Archanjo não citara os dois teóricos baianos do racismo,

tampouco seus artigos e opúsculos, não lhes dirigira sua resposta, preferindo

contestar afirmativas e teorias arianas com aquela massa irrespondível de fatos, com

a defesa ardente e o louvor apaixonado da mestiçagem (Tenda dos milagres, p. 171).

Afiguravam-se nas páginas de A vida popular na Bahia, portanto, uma descrição mais

generalizada do cotidiano da velha Salvador, daquela cidade ainda de casas coloniais que

fragilmente resistem à passagem do tempo, e do povo que a movimenta e vivifica. Já em

Influências africanas nos costumes da Bahia, empreende-se uma abordagem mais

pormenorizada em relação aos aspectos negro-africanos deste mesmo povo.

“A defesa ardente e o louvor apaixonado da mestiçagem”, que caracterizam o texto e a

teoria archanjiana, representam, pois, concomitantemente os planos do “universo mestiço” e

do “mundo negro. Ora, a julgar pelo título do segundo livro de Ojuobá, percebe-se de forma

inequívoca o intento em revelar o “mundo negro” do cotidiano popular da Cidade da Bahia,

ao que se agrega a denúncia da ação excludente perpetrada contra esta população. O texto

registra:

“São de tal maneira terríveis as condições de vida do povo baiano, tamanha é a

miséria, tão absoluta a falta de qualquer assistência médica ou sanitária, do mais

mínimo interêsse do Estado ou das autoridades, que viver em tais condições

constitui por si só extraordinária demonstração de fôrça e vitalidade. Assim sendo, a

preservação de costumes e tradições, a organização de sociedades, escolas, desfiles,

ranchos, ternos, afoxés, a criação de ritmos de dança e canto, tudo quanto significa

enriquecimento cultural adquire a importância de verdadeiro milagre que só a

mistura de raças explica e possibilita. Da miscigenação nasce uma raça de tanto

talento e resistência, tão poderosa, que supera a miséria e o desespêro na criação

quotidiana da beleza e da vida” (Tenda dos milagres, p. 291-292).

É importante registrar que, como se depreende da passagem acima, retirada do

segundo livro de Archanjo e citada por Fraga Neto, o louvor da mestiçagem aí expresso está

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intrinsecamente relacionado com a oposição empreendida às teorias gestadas pela Faculdade

de Medicina. Se Nilo Argolo afirma que os mestiços conformam uma “sub-raça”, incapaz e

degenerada, Archanjo os exalta na medida mesma em que os apresenta fortes, resistentes,

criativos e criadores, isto é, contesta o ponto central das teorias raciais, ainda que prescinda de

objetá-las de forma mais direta. A perspectiva abraçada por Jorge Amado/Pedro Archanjo é

concebida, portanto, dentro de um projeto político de contraposição ao eurocentrismo e

consequente afirmação das identidades alijadas do discurso hegemônico, silenciadas e

abafadas.

A despeito da citação feita por Fraga Neto, pouco os primeiros livros repercutiram

para além dos muros da Faculdade de Medicina. Aliás, mesmo na Instituição pouco

despertaram além da curiosidade acerca de certos fatos da cultura popular negromestiça que já

se julgavam extintos ou nunca existentes em terras brasileiras. Por certo, houve o interesse e a

acolhida de muitos estudantes, no entanto, menos pelas proposições de Archanjo do que pela

perspectiva de afrontar o intransigente Nilo Argolo, em geral detestado pelo corpo discente da

Faculdade.

Outra é a repercussão do terceiro livro de Archanjo, Apontamentos sobre a

mestiçagem nas famílias baianas: “O mundo veio abaixo” (Tenda dos milagres, p. 324),

resume Amado. Com diminuta tiragem – 142 exemplares, apenas – e publicado com grande

sacrifício na tipografia de Mestre Lídio Corró, tal estudo vem a se configurar como

contraponto ao anteprojeto de lei do professor Nilo Argolo, apresentado à Câmara um ano

antes e que visava a total segregação racial no país.

O argumento base desta investigação é aquele mesmo ensaiado contra o quartanista

que apresenta a Pedro Archanjo um opúsculo de Nilo Argolo, bem como daquela resposta

dada por Mestre Pedro quando trava conhecimento do projeto de lei proposto pelo catedrático:

“Difícil será separar e classificar, senhor professor” (Tenda dos milagres, p. 179). A dimensão

e a exatidão dos fatos trazidos à tona por Ojuobá desta vez repercutem em toda a elite baiana,

ciosa do silêncio acerca de certos avós não brancos, como ilustra a seguinte passagem:

Em seu terceiro livro, Pedro Archanjo analisou as fontes da mestiçagem e

comprovou sua extensão, maior do que êle próprio imaginara: não havia família sem

mistura de sangue – apenas uns quantos gringos recém-chegados e êsses não

contavam. Branco puro era coisa inexistente na Bahia, todo sangue branco se

enriquecera de sangue indígena e negro, em geral dos dois. A mistura começou com

o naufrágio de Caramuru, nunca mais parou, prossegue correntia e acelerada, é a

base da nacionalidade.

O capítulo dedicado a provar a capacidade intelectual do mestiço inclui imponente

relação de nomes de políticos, escritores, artistas, engenheiros, jornalistas, e até

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barões do Império, diplomatas e bispos, todos mulatos, o melhor da inteligência do

país.

Fechando o volume, a grande lista, o motivo da grita, do escândalo, da perseguição

ao autor. Pedro Archanjo relacionara as famílias nobres da Bahia e completara as

árvores genealógicas em geral pouco atentas a certos avós, a determinados conúbios,

a filhos bastardos e ilegítimos. Assentados em provas irrefutáveis lá estavam, do

tronco aos ramos, brancos, negros e indígenas, colonos, escravos e libertos,

guerreiros e letrados, padres e feiticeiros, aquela mistura nacional. Abrindo a grande

lista, os Ávilas, os Argolos, os Araújos, os ascendentes do professor de Medicina

Legal, o ariano puro, disposto a discriminar e deportar negros e mestiços, criminosos

natos (Tenda dos milagres, p. 323-324).

Relembre-se, pois, o que foi dito quando da resposta dada ao quartanista: através de

tantos exemplos, Pedro Archanjo Ojuobá contradiz o fatalismo das teorias apregoadas por

Nilo Argolo. Afinal, onde estavam a incapacidade, a inferioridade, a degenerescência dos

mestiços se os modelos mais notáveis de inteligência do país se encontram justamente

naqueles que apresentam em si o amálgama de sangues diversos? Se competência, criação e

resistência são características marcantes do povo mestiço da Bahia, onde estariam as

deficiências ontológicas advindas do influxo de sangues outros além do europeu?

Por outro lado, como separar as raças em país tão intensamente tocado pela

mestiçagem, parece questionar novamente Archanjo. Assim, a grande lista encabeçada pelo

arianista Nilo Argolo vem a comprovar a extensão e a profundidade da mistura de sangues no

Brasil que, dada a sua dimensão, é considerada como “base da nacionalidade”. A despeito da

exclusão e do racismo, à revelia das pretensões arianas e das teorias da Faculdade de

Medicina, impõe-se uma sociedade inarredavelmente mestiça, conclui a obra archanjiana.

Sem medir as consequências que porventura pudessem advir das verdades reveladas,

Pedro Archanjo dedica o livro a um primo já um tanto distante, mas, ainda assim, parente

consanguíneo: Nilo Argolo. Escreve: “Ao ilustríssimo senhor professor e homem de letras,

doutor Nilo d‟Ávila Oubitikô Argolo de Araújo [...] oferece as modestas páginas que se

seguem seu primo Pedro Archanjo Oubitikô Ojuobá” (Tenda dos milagres, p. 324). O nome

africano associado a Nilo Argolo, Bomboxê Oubitikô, como grafado em Tenda dos milagres,

ou Bamboxê Êssa Obitikô, segundo Silveira (2006), corresponde ao “nome de branco”

Rodolpho Martins de Andrade, grande personalidade do mundo afro-brasileiro no século XIX

que seria trisavô tanto de Archanjo quanto de Argolo.

O nome evocado por Jorge Amado, cumpre informar, traz consigo outras implicações,

de modo que é preciso refletir um pouco mais sobre ele. Bamboxê desempenhou importante

papel na implantação do primeiro Terreiro de Ketu da Bahia, o Ìyá Omi Àse Àirá Intilè, aos

fundos da Igreja da Barroquinha, na qual, havia sido fundada, anos antes, a Irmandade Senhor

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Bom Jesus dos Martírios176

. Ainda segundo Silveira (2006, p. 403), Bamboxê “[...] é

considerado pelos seus descendentes baianos como um príncipe de Oyó. Devia ser membro da

linhagem real e teoricamente elegível”. O pesquisador ainda informa que Bamboxê era um

babalaô e que chegou a ser um oluô, sacerdote supremo do culto a Ogodô, orixá guerreiro da

casa real de Oyó – com o que veio a se tornar “[...] chefe de todos os babalaôs” (SILVEIRA,

2006, p. 404).

Por certo, o romancista baiano Jorge Amado partilhava das informações acima, vez

que inserido nas comunidades afro-brasileiras e nelas aceito por grandes sacerdotisas, a

exemplo de Mãe Senhora que o fez Obá de Xangô. Assim, a partir do nome Bamboxê, ou

Bomboxê como escreve, Amado faz Nilo Argolo não apenas ter sangue negro, mas

igualmente descender de uma nobre linhagem africana, com ampla penetração no mundo

religioso afro-baiano.

A etimologia do nome Bamboxê ainda guarda uma boa e sintomática surpresa: de

acordo com Vivaldo da Costa Lima (apud SILVEIRA, 2006, p. 403), “Bamboxê é a

transcrição brasileira do nome próprio iorubá Bangbose, que significa „ajuda-me a segurar o

oxê‟”. Ora, defende-se aqui que as obras de Archanjo derivam diretamente de ordens de

Xangô. Deste modo, constituem parte das obrigações assumidas por Mestre Pedro quando da

consagração ao posto de Ojuobá – o que o faz, em uma leitura metafórica, a representação do

próprio oxê. Por extensão, como expresso no início deste tópico, tais obras podem ser intuídas

como os raios de justiça lançados por Xangô, que maneja o oxê/Pedro Archanjo contra os

opressores do povo negromestiço da Bahia. Logo, a preciosa informação acerca das

genealogias dos Argolo, dos D‟Ávila e dos Araújo, não se faz figurar na obra archanjiana por

simples provocação ao catedrático, mas por configurar-se no principal sustentáculo da

argumentação; é, pois, o subsídio que possibilita a Xangô verter em raios de justiça os

Apontamentos sobre a mestiçagem nas famílias baianas, escrito por seu oxê, Pedro Archanjo:

“Nos „Apontamentos‟, mestre Archanjo expôs a verdade completa e as famílias finalmente

176

Silveira (2006, p. 373) assinala que não há como precisar exatamente o ano de fundação do Candomblé da

Barroquinha, que pode variar entre os últimos anos do século XVIII e as primeiras décadas do XIX, nem o nome

do Terreiro. Aquele transcrito aqui corresponde ao disponibilizado por Pierre Verger e transcrito por Silveira

que, no entanto, admite “uma pulga atrás da orelha” uma vez que “[...] pode parecer estranho à primeira vista:

Ìyá Omi significa literalmente „a mãe das águas‟, podendo ser lido também como „a senhora das águas‟, ficando

difícil combinar esta expressão com o axé de Airá, considerado entre nós o mais velho senhor do trovão [...]”

(SILVEIRA, 2006, p. 380). A tradição do Candomblé da Barroquinha continua ainda hoje no Ilê Axé Iyá Nassô

Oká, popularmente conhecido como Casa Branca do Engenho Velho, mais antigo Terreiro de nação Ketu do

Brasil e do qual descendem o Ilê Iyá Omin Axé Iamassê, conhecido como Terreiro do Gantois, e o Ilê Axé Opô

Afonjá.

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puderam conhecer de onde provinham, contemplar não apenas uma face mas o rosto inteiro, o

trigo e o carvão, e saber quem se deitou na cama” (Tenda dos milagres, p. 324).

Torna-se fácil, pois, perceber como um “mundo negro”, mundo a ser afirmado das

vivências e dos sentidos negros, está indissociavelmente atrelado à concepção de um

“universo mestiço” na literatura amadiana.

Como já advertido anteriormente, em face dos segredos guardados com tanto zelo

durante décadas e mesmo séculos, “o mundo veio abaixo”. A despeito da ovação recebida por

Archanjo por parte dos estudantes da Faculdade de Medicina e das vaias direcionadas a Nilo

Argolo, Ojuobá foi demitido do cargo que ocupara por exatos trinta anos por ter agredido o

catedrático em sua honra (Tenda dos milagres, p. 326). A retaliação das elites baianas

ofendidas apenas começava: além de demitido, Archanjo foi preso, a oficina tipográfica de

Mestre Lídio Corró foi destruída. Nada havia sobrado. Não fossem alguns poucos exemplares

que Lídio Corró secretamente enviara para universidades estrangeiras, entre elas a Columbia

University, o esforço para a produção de esquecimento levada a cabo pelo Governador da

Bahia teria eficácia completa: “Sem uma palavra do Governador, nada posso fazer, repetia o

Chefe de Polícia. Foi êle próprio quem deu a ordem de prisão, só êle pode mandar soltar”

(Tenda dos milagres, p. 327).

Mesmo preso, Mestre Pedro Archanjo Ojuobá logrou erigir uma possibilidade de

justiça vindoura – a democracia social e identitária de um “universo mestiço”. Honrou, desta

forma, as potencialidades herdadas de seu pai mítico, a confiança de Xangô e do povo que o

tinha tomado como líder, mestre e pai; honrou os compromissos e as responsabilidades: “Se

não terminou com os racistas – sempre haverá imbecis e salafrários em qualquer tempo ou

sociedade –, Pedro Archanjo os marcou a ferro e fogo, apontando-os na rua, „eis, meus bons,

os antibrasileiros‟ e proclamou a grandeza do mestiço” (AMADO, 1971, p. 172).

“Se o Brasil concorreu com alguma coisa válida para o enriquecimento da cultura

universal, foi com a miscigenação – ela marca nossa presença no acêrvo do humanismo, é a

nossa contribuição maior para a humanidade” (Tenda dos milagres, p. 141). Tais

considerações, encastoadas nos Apontamentos sobre a mestiçagem nas famílias baianas, são

comumente evocadas para dar crédito às leituras que tomam da literatura amadiana como

signatária da visão harmoniosa de um Brasil mestiço. Ora, é sim possível atribuir a elas – e a

tantas outras – tal conotação, caso sejam lidas absolutamente de modo descontextualizado. No

entanto, se tais leituras forem confrontadas com o contexto em que se inserem, com o que

vêm a negar e com a contrarreação que provocam, seria possível manter esta interpretação?

Não seria, talvez, mais adequado ler a obra alcançada por Jorge Amado, ainda que falha em

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alguns aspectos, como a valorização de um “mundo negro” e a esperança em um “universo

mestiço”, ainda longínquo, mas projetado pelo autor?

Nesta perspectiva, importante ressaltar, ainda que de forma pouco detalhada, dois

últimos pontos: o quarto livro de Archanjo, Culinária baiana: origens e preceitos, de 1930, e

o reencontro entre Ojuobá e Nilo Argolo, transmudados respectivamente nos Exércitos do

Eixo e nas Forças Aliadas, durante a Segunda Grande Guerra.

O menos comentado dos livros archanjianos constitui em si uma grande defesa do

“mundo negro”. A despeito de Bonfanti, livreiro e editor, considerá-lo apenas como uma peça

de cozinha destinada às senhoras, Culinária baiana: origens e preceitos vai muito além do

simples receituário:

Não foi pacífico o acêrto da edição, querendo Bonfanti reduzir o texto às receitas

com meia página de prefácio, se muito, enquanto Archanjo exigia a publicação na

íntegra, sem cortes: antes, a pesquisa, os comentários, o estudo extenso; depois, as

receitas. Finalmente o livro saiu completo [...] (Tenda dos milagres, p. 73).

Para Vivaldo da Costa Lima (2000, p. 60) é possível observar “[...] duas vertentes na

análise da cozinha na obra de Jorge, a literária e a antropológica”. A investigação literária

teria como objeto as imagens, a linguagem e as metáforas que o romancista baiano exprime a

partir da cozinha. Já a pesquisa antropológica faria uma incursão pelo mundo do candomblé,

isto é, o modo como a cozinha amadiana reproduz a cozinha litúrgica afro-brasileira.

Por certo, a temática da cozinha em Tenda dos milagres não é tão forte, tão presente

ou vigorosa como em Dona Flor e seus dois maridos, por exemplo. Entretanto, cabe

perguntar, em decorrência da perspectiva antropológica prevista por Lima, se não há na briga

de Archanjo pela publicação integral de suas pesquisas uma importante defesa do “mundo

negro”. Ora, ponto pacífico que a culinária baiana é, em larga medida, relacionada ao

candomblé, principalmente pela intensa presença do azeite de dendê a dar cor e gosto, mas

também sentido e identidade aos alimentos: “Para o mundo cultural afro-brasileiro o dendê é

marca, distintivo, e atestação da memória, da ação, da produção, criação e recriação de um

patrimônio de bases africanas absorvido, e também reinventado em espaço brasileiro”, afirma

Lody (1992, p. 1).

Segundo Lody (1998, p. 24), é “[...] por meio da alimentação comum dos deuses e de

seus adeptos que as religiões têm assegurada a sua sobrevivência”. É neste aspecto que reside

a importância de se pensar na defesa a um “mundo negro” em Culinária baiana: origens e

preceitos. Expandindo-se a partir dos terreiros de candomblé, o que se designa como

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“culinária baiana” carrega consigo uma forte carga identitária que, a despeito das preferências

religiosas e culturais de quem as come, são, em certa medida, transmitidas posto que

presentes, de forma simbólica, no modo de preparo, nos nomes, nos ingredientes e, em

especial, no dendê – não à toa um estudo específico de Lody (1992) tenha o sugestivo título

Tem dendê, tem axé.

Destarte, a comida afro-baiana não é apenas gosto, é igualmente identidade. O que

Archanjo pretende ao brigar pela publicação integral, em que estejam presentes não apenas as

receitas, mas também, e principalmente, o estudo acerca dos sentidos, dos vínculos religiosos

e das identidades que se exprimem a partir desta comida, é evitar a reificação da culinária

afro-brasileira. Equivale dizer: evitar a reificação da identidade afro-brasileira. Há a inserção,

embora por via indireta, da mesma categoria dos outros três livros: a defesa de um “mundo

negro”:

[...] é indivisível o dendê da história africana nas suas interpretações gerais, como

também de Exu – o principal agente do dendê – e, assim, a vida social e cultural do

africano, as suas heranças na formulação do patrimônio afro-brasileiro, é

definitivamente fundida na trama da sociedade nacional. [...]

Sem dúvida, comer dendê é comer o que significa o dendê, maneira mito-endógena

de comer e alcançar os ancestrais – e neles Exu – o mais dendê de todos (LODY,

1992, p. 12).

Sem dúvida, esta defesa se constitui em mais uma evidência da proposta específica da

mestiçagem amadiana, de uma negromestiçagem. Afinal, pretender salvaguardar a identidade

afro-brasileira contida na comida, é, também, evitar o apagamento do negro.

Por último, cumpre reportar o reencontro de Archanjo e Nilo Argolo, transplantados

simbolicamente para os campos em guerra da Europa Central. De um lado, as tropas nazistas

e a ideologia de uma supremacia ariana; do outro, as forças aliadas. Tempos, pois, de medo e

incertezas:

Tudo quanto o professor reclamara e previra fizera-se realidade. Tudo quanto o

velho pregara e defendera estava em perigo. Teses e idéias em confronto,

novamente. Não mais num debate intelectual, agora de armas na mão. Corria o

sangue, as legiões de soldados empunhavam a morte.

Se Hitler vencesse, Hitler ou outro qualquer fanático racista, poderia terminar com

todos êles, na morte e na escravidão? O professor disse que sim, conclamou o líder

capaz de fazê-lo, das brumas da Alemanha Hitler respondeu: Presente! Se vencesse,

poderia acabar com o povo, em mortos e escravos? O velho busca uma resposta [...]

(Tenda dos milagres, p. 359).

Claro está que o que aí se coloca em jogo é a própria vida de Archanjo, ou melhor, sua

história: tudo o que fez, tudo pelo que lutou, tudo pelo que venceu. Já alquebrado e

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desleixado, Pedro Archanjo recupera o vigor durante os anos de Guerra: ele próprio um

general investindo contra as tropas do “Führer”. “Quando todos desanimaram e se deram por

vencidos, êle assumiu o comando de um exército de mulatos, de judeus, de negros, de árabes,

de chineses e partiu a enfrentar as hordas do nazismo. Vamos, meu bom, vencer a morte

desatada, a infame!” (Tenda dos milagres, p. 355).

Durante a Segunda Grande Guerra não se trata mais de defender apenas o “mundo

negro”, mas, sem prescindir de fazê-lo, proteger a própria perspectiva de um “universo

mestiço”, extremamente ameaçada pelo avanço alemão – daí exército tão numeroso e

heterogêneo como o reunido simbolicamente por Archanjo.

Por seu lado, Argolo exultava com o avanço de Hitler. Certa vez Archanjo, de forma

irônica, lhe havia sugerido que exterminasse a todos, negros e mestiços. O catedrático, então

sonhou:

- Eliminar a todos, um mundo sòmente de árias?

Mundo perfeito! Grandioso, irrealizável sonho. Onde o temerário gênio capaz de

tomar da atrevida idéia e levá-la à prática? Quem sabe, um dia, invicto deus da

guerra cumprirá a missão suprema? Visionário, o professor Argolo perscrutou o

futuro e pressentiu o herói à frente das coortes arianas. Fulgurante imagem, instante

glorioso [...] (Tenda dos milagres, p. 178).

O sonho do professor Argolo em vias de tornar-se realidade: Hitler ascende ao poder

alemão. “Quando Hitler assumiu o poder na Alemanha e anunciou o comêço do milênio

racista, o professor ainda era vivo e o saudou em delirante artigo: O ENVIADO DE DEUS.

Enviado de Deus para exterminar negros e judeus, árabes e mestiços, a mulataria sórdida [...]”

(Tenda dos milagres, p. 358).

Teria sido em vão os embates com Argolo e com Pedrito se agora o professor saísse

vitorioso na pele de Hitler. Novamente o confronto entre as representações arquetípicas do

racismo e do antirracismo. E quando tudo indicava uma vitória dos exércitos alemães, o

inverno russo sobreveio e mudou o curso da Guerra. Os imaginários exércitos comandados

por Mestre Pedro Archanjo Ojuobá passaram a avançar sobre as tropas alemãs, cada vez mais

enfraquecidas. Vitória após vitória, persistia a utopia de um “universo mestiço”. Os nazistas

cada vez mais recuados, perdendo posições importantes, sofrendo com o terrível frio: “As

notícias daquela noite davam gôsto, os „arianos‟ apanhando de criar bicho. Todo mundo

xingava os alemães, „os nazistas alemães‟, [...] o velho, porém, só se referia aos „bandidos

arianos‟, assassinos de judeus, negros e árabes. Conhecia alemães ótimos [...]” (Tenda dos

milagres, p. 40).

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Não obstante as boas notícias, era já a noite de 1943 – noite fatídica, noite de morte. A

discussão começa no bar de Maluf. E se Hitler vencesse?

Destruir o mundo? Se Hitler ganhasse a guerra poderia matar e escravizar todos os

que não fôssem brancos puros, arianos comprovados? Acabar com a vida e a

liberdade, mortos ou, pior ainda, escravos todos nós, sem exceção?

Pegou fogo a discussão, pode, não pode, por que não pode? Ora se pode! O ferreiro

se retou:

- Nem Deus que fêz o povo pode matar tudo de uma vez, vai matando de um a um e

quanto mais êle mata mais nasce e cresce gente e há de nascer, crescer e se misturar,

filho-da-puta nenhum vai impedir! [...]

O velho Pedro Archanjo repetiu a resposta finalmente ouvida:

- ... há de nascer, crescer e se misturar, ninguém pode impedir. Tem razão,

camarado, é isso mesmo, ninguém pode acabar com a gente, nunca. Ninguém, meu

bom.

Já era tarde, ainda sentia a dormência no braço, a dor lá no fundo, à espreita. Alegre

se despediu: até amanhã, meus bons, paga a pena viver quando se tem amigos, um

trago de cachaça e uma certeza assim tão certa. Vou-me embora, quem vier atrás

feche as cancelas (Tenda dos milagres, p. 362).

Eis a certeza que, para além do resultado da Guerra, subjugaria a todos os exércitos

nazistas; que derrotaria peremptoriamente tantos Hitler, Argolo e Pedrito houvessem neste

mundo. Um último livro precisava ainda ser escrito, o quinto de sua produção, o definitivo.

Esta verdade inquestionável coroava seu trabalho, sua luta, sua esperança. A dor, entretanto,

já o atravessa por inteiro. Lentamente, Archanjo procurava avançar pelo Pelourinho em

direção ao quartinho dos fundos do castelo de Ester, onde morava já há algum tempo.

Precisava transcrever a assertiva síntese, mas a “[...] dor o rasga em dois, rompe-lhe o peito, ai

não alcançará a casa de Ester, perdida a frase do ferreiro, tão bonita e certa [...]” (Tenda dos

milagres, p. 43). O corpo rola pelo chão.

A noite cobre Archanjo em escuridão. Vêm os primeiros raios da aurora, o movimento

dos últimos bêbados retornando a suas casas, os primeiros trabalhadores saindo. Vem o Major

Damião, desvira o corpo de bruços sobre a lama, reconhece-o: eis Pedro Archanjo Ojuobá.

Vencido pela morte, Ojuobá passa ao orun sem, contudo, transcrever e publicar a frase

do ferreiro; frase tão sua: lei irrevogável da condição humana. A despeito de preconceitos e

segregações várias, a certeza, enfim, de um “universo mestiço” – nascer, crescer e se misturar,

não obstante Argolos e Hitlers.

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4.3 UMA VERDADE, A DESPEITO DO EMBUSTE

“[...] um homem notável, de idéias profundas e generosas, um criador de humanismo,

vosso concidadão Pedro Archanjo” (Tenda dos milagres, p. 30). Com tão grandiosas palavras

o sábio estadunidense e prêmio Nobel James D. Levenson, autoridade inconteste, introduz o

nome de Mestre Pedro nos círculos eruditos nacionais, na imprensa e na Academia. Silêncio

vezes silêncio seguiu-se à pronúncia de tal nome, já há tantos anos esquecido sob as poeiras

do refluxo governamental aos livros publicados por Ojuobá. Rematada a coletiva, silêncio

desfeito, enfim. Edifica-se uma glória da nação brasileira – Archanjo:

Começou então a corrida em torno de Archanjo e de sua obra. Muito papel, muita

tinta e muito espaço em jornal foram gastos, a partir da entrevista de Levenson, para

saudar, analisar estudar, comentar, louvar o injustiçado escriba. Era necessário tirar

o atraso, corrigir o erro, apagar o silêncio de tantos anos (Tenda dos milagres, p. 36).

Qual o Archanjo alçado de súbito aos píncaros do saber nacional? – cabe perguntar.

Fez-se referência, logo na abertura desta quarta seção, a dois processos que advêm da

contundente declaração de Levenson sobre Archanjo, a relembrá-los: um de apuração seguido

por outro de depuração.

Empreendido por Fausto Pena, o processo de apuração, isto é, aquele que promove o

resgate da história de Ojuobá e possibilita ao leitor conhecê-la da forma como vivida por

Mestre Pedro, fiel às vicissitudes, aos embates, às vitórias que lhe couberam, orientou a

leitura até aqui alcançada por esta investigação acerca de Tenda dos milagres.

É mister, porém, avançar algumas considerações sobre o segundo processo, qual seja,

aquele que se refere à depuração da personagem Pedro Archanjo, de modo que possa vir a

representar o orgulho nacional – o que configura, ao passo que se realiza, uma apropriação

deformativa, como se designou anteriormente.

Retome-se, portanto, o ano de 1968, ainda que os segmentos narrativos que enfocam

este eixo temporal não abordem, senão tangencialmente, a temática da mestiçagem. Nesta

conjuntura, cumpre observar os meandros da composição de uma narrativa oficial sobre Pedro

Archanjo a pretexto de vislumbrar a continuidade do repúdio ao negro na sociedade brasileira

pós Nilo Argolo, embora se mantenha dissimulado. Noutras palavras, compete o cotejo do

vivido com a narração do vivido.

A apropriação deformativa de Mestre Pedro Archanjo Ojuobá tem início na sala de

Zezinho Pinto, proprietário e diretor do Jornal da Cidade que, apesar de ser constituído por

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“uma redação com tantos talentos, a flor da intelectualidade” (Tenda dos milagres, p. 75),

pouca importância havia concedido ao sábio baiano, assunto do momento – erro imperdoável

para um diário que se arvora como o melhor da Bahia.

Inconformado por estar atrás dos outros periódicos no que tange à cobertura ao nome

de Archanjo, Zezinho Pinto vê o Major Damião adentrar o escritório e reclamar de não ter

sido ainda ouvido sobre o assunto, uma vez fosse ele um dos poucos restantes a ter de fato

convivido com Ojuobá. Afinal, quem “[...] me ensinou a ler? Quem o encontrou morto na

Ladeira do Pelourinho?”, indaga o Major para, logo depois, afirmar: “Quem me educou foi

êle, quem me ensinou o abc, o bem e o mal da vida” (Tenda dos milagres, p. 75-76).

Eis a oportunidade de suplantar os concorrentes: o testemunho de alguém que tenha

convivido tão intimamente com a glória nacional, Archanjo. Aliás, mero alguém não, mas o

Major Damião, figura conhecida e célebre da Cidade da Bahia, o rábula do povo. Sem

quaisquer delongas, Zezinho convoca Ari, o principal redator do jornal, para que tome as

devidas anotações do relato. O Major Damião de Souza passa a narrar a vida de Archanjo e o

faz de modo tal como o leitor passará a conhecê-la via Fausto Pena, algumas páginas depois.

“Muita coisa, certamente, mas tôda aquela lengalenga do Major derrota o dono do

jornal: de pouco vale, não possui o mínimo caráter científico” (Tenda dos milagres, p. 79). A

julgar pela sagacidade do bem sucedido empresário no ramo de notícias, a referida sensação

de derrota talvez possa conotar algo. Conquanto se possa argumentar, com certa razão, que o

crescente desinteresse do empresário pela narrativa do Major justifique-se, acima de tudo,

pelo fato de as histórias contadas não projetarem um aumento significativo nas vendas do

jornal, é justamente porque não resultam em tiragens esgotadas que se infere a permanência

de laivos racistas na sociedade baiana. Ora, os fatos relatados pelo major versam sobre a

perseguição a Procópio e sobre a vitória diante de Pedrito, contam dos Afoxés indo às ruas,

mesmo proibidos, descrevem a Tenda dos Milagres de Mestre Lídio; revelam o cotidiano de

uma Bahia popular, dizem de um Pedro Archanjo negromestiço. A implicação é lógica: se o

número de vendas de um jornal resulta da importância da notícia e, ainda mais, do interesse

que ela é capaz de ocasionar, o desânimo de Zezinho Pinto não pode dar a entender acerca do

desinteresse da sociedade baiana por histórias de um “pardo, paisano e pobre”?

Ademais, Amado parece insinuar, na recusa de Zezinho Pinto pelos verdadeiros

episódios da vida de Archanjo, uma sociedade que, estruturada a partir de valores e princípios

etnocêntricos, desvaloriza por infame tudo aquilo que não é burguês, branco ou cristão; tudo o

que não representa o devido espelho de quem narra a história oficial do Brasil. Por

conseguinte, a glória da nação, o sábio baiano referido por Levenson, já não condiz com o

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homem Pedro que, sem abdicar de ser Archanjo, foi também, e em igual medida, Ojuobá, os

Olhos do Rei Xangô. É preciso corrigi-lo, enquadrá-lo, numa palavra: construí-lo – o que fica

patente noutro contexto, quando Fausto Pena procura Zezinho Pinto com o intuito de vender

as pesquisas que tinha feito sobre Archanjo. Como já referido, as narrações de Fausto Pena e

do Major Damião coincidem sobre a personagem que narram: são fiéis ao vivido por Mestre

Pedro. Desta maneira, por uma segunda vez o ilustre dono do Jornal da Cidade tem acesso ao

dia-a-dia do Archanjo “real”. A reação de Zezinho Pinto é reveladora:

Quando, porém, lhe exibi minhas notas, por pouco não fatura uma crise histérica.

“Isto é exatamente o que não quero: essa falta de respeito com um grande homem,

com um espírito superior. Êsse achincalhe, êsse apequenamento da figura de

Archanjo. Não admito! Se lhe compramos essas laudas de tagarelices e

maledicências é exatamente para pô-las fora, para que não sejam usadas e não

maculem a imagem de Pedro Archanjo. Meu caro Fausto, pense nas crianças das

escolas”.

[...] Doutor Zezinho, ainda nervoso, completou: “Polígamo, que infâmia! Não era

sequer casado! Meu caro poeta, aprenda esta lição: um grande homem tem de

possuir integridade moral e se, por acaso, transigiu e prevaricou, cabe-nos repô-lo

em sua perfeição. Os grandes homens são patrimônios da Pátria, exemplos para as

novas gerações: devemos mantê-los no altar do gênio e da virtude” (Tenda dos

milagres, p. 129).

Eis, portanto, a manipulação da história por uma ideologia elitista, estratégia

denunciada por Olivieri-Godet (2004). Apropria-se, assim, da figura de Archanjo e a deforma

de maneira tal, que abstraídos e depurados os princípios e os valores que ela esparge, a

resistência e a esperança que ela semeia, emana-se um Archanjo-Outro que, em verdade, já

não destoa, senão minimamente, daqueles a quem confrontou; um herói que já não estabelece

qualquer ruptura. Neutraliza-se, desta forma, “[...] o potencial de construção de um

pensamento autônomo, associado a uma prática libertária, no seio das camadas sociais mais

desfavorecidas”, uma vez que Archanjo exprimisse o “[...] descentramento em relação às

ideias dominantes” (OLIVIERI-GODET, 2009, p. 292). Neste aspecto, inclusive o próprio

Levenson, que antes houvera proporcionado a glória ao nome de Archanjo, alinha-se e

representa, em certa medida, o projeto das elites baianas vez que ignora completamente os

dados levantados por Fausto Pena:

[...] Acrescento apenas, com certa melancolia, não ter sido meu trabalho, êste meu

trabalho, levado em consideração pelo grande Levenson. [...] De todo o material

enviado, o sábio usou apenas a fotografia ao publicar em inglês a tradução de boa

parte da obra de Pedro Archanjo [...].

Nas páginas introdutórias, Levenson pràticamente não se preocupou com a análise

dos livros do baiano; pouquíssimas são as referências à sua vida. Bastante, porém,

para demonstrar-me não ter êle sequer lançado um golpe de vista em meu texto. Em

seu prefácio, Archanjo é promovido a professor, a membro eminente da

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Congregação da Faculdade de Medicina (“distinguished Professor, member of the

Teacher‟s Council”), por cuja conta e encargo realizara suas pesquisas e publicara

seus livros, imagine-se! Quem impingiu tais patranhas a Levenson, não o sei, mas

houvesse êle ao menos folheado meus originais, não teria incorrido em erro assim

grosseiro – de bedel a professor, ah! meu pobre Archanjo, só te faltava mais esta

(Tenda dos milagres, p. 25).

Ora, considere-se a denúncia alcançada, em Tenda dos milagres, das artimanhas

urdidas pelas elites baianas como forma de perpetuar a dissimulada organização das estruturas

sócio-racial e simbólica nacionais. Retomem-se, pois, as considerações iniciais desta seção,

que indicam este romance como um emblema representativo do pensamento amadiano no que

concerne às questões de cunho racial. Ao compará-las, como resumir a literatura de Jorge

Amado a uma simples e partícipe defesa das relações raciais brasileiras, da forma como

preconiza o inglês David Brookshaw (1983)? Ou, noutro plano, como uma mera expansão das

concepções gilbertianas, como pretendem e sentenciam tantos outros críticos? Apesar de falha

no que diz respeito à supervalorização da mestiçagem, Jorge Amado não a reivindica como

base de uma suposta e coeva “democracia racial brasileira”, senão de uma possível

“democracia social e identitária” situada alhures: no ainda distante porvir.

Neste sentido, convém ressaltar que a referida construção ideológica de um Archanjo-

Outro coincide inextrincavelmente com o processo de branqueamento empreendido por Tadeu

Canhoto a si, embora, desta vez, a metamorfose operada se constitua à revelia de Ojuobá,

idealizada e promovida por terceiros. Da mesma forma que o faz em relação a Tadeu, Amado

descortina, assim, as diretrizes racistas que orientam e balizam a ascensão e a aceitação

sociais no Brasil: pouco importa a que se referem as obras ou as batalhas logradas por

Archanjo; para representar uma glória da nação brasileira Mestre Pedro tem de ser branco ou,

ao menos, dar a entender que o é – em todo caso, obrigatoriamente um não-negro.

Durante toda a sequência narrativa que se fixa no eixo temporal presente, ou seja, no

ano de 1968, é possível perceber, aqui e ali, certos apagamentos que se vão realizando à

medida que o discurso sobre o Archanjo-Outro é tecido pelas elites baianas. Por certo, não se

faz necessária muita astúcia ou aprimorada capacidade intuitiva para observar nesta depuração

o propósito de minorar e, por fim, delir a memória de um Archanjo negro – com o que estaria

igualmente assegurado o escamoteamento de tudo aquilo que Ojuobá deveras significou.

Assim é que Fausto Pena comenta:

[...] a glória finalmente ilumina a figura do mestre baiano. Que figura? Para falar

com tôda franqueza, nem eu mesmo sei. Nessas festas grandiosas do centenário é tão

estridente o barulho, as girândolas da louvação oficial espoucam com luz tamanha

que se torna difícil enxergar os contornos exatos da figura [...].

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Impressionante: ninguém se refere à obra e à luta de Archanjo (Tenda dos milagres,

p. 333).

Caso se retorne à entrevista do Major Damião de Souza a Zezinho Pinto, mandatário

do Jornal da Cidade, deve-se revelar não ter sido de todo improfícuo o relato concedido. Ao

fim da história, a informação desejada por Zezinho: “[...] E em dezembro, uma semana antes

do Natal, no dia 18, fará cem anos que ele nasceu” (Tenda dos milagres, p. 80).

A perspectiva do centésimo aniversário de Archanjo se afigura então como

possibilidade de uma grande promoção: o Ano do Centenário de Archanjo. Programam-se

homenagens, seminário, sessão solene e prêmios para o decorrer do ano festivo capitaneado,

obviamente, pelo Jornal da Cidade.

Em verdade, o seminário anunciado acima não chega a acontecer. Fora cancelado

devido ao silêncio imposto pelos laços diplomáticos que a Ditadura Militar Brasileira

mantinha com os Estados Unidos e a África do Sul – qualquer discussão sobre raça naquele

contexto poderia ocasionar uma onda de protestos contra as nações “amigas”. Para substituí-

lo, Zezinho Pinto propõe que se pense em “[...] grande concurso, a ser lançado entre os

secundaristas [...]. Seria o „Prêmio Pedro Archanjo‟” (Tenda dos milagres, p. 145-146).

É, pois, na esteira deste prêmio que Amado condensa as evidências mais notáveis da

apropriação deformativa de Ojuobá realizada pelas elites baianas. Voltado para os alunos de

escola pública, o concurso consistiria na escrita de uma redação sobre Pedro Archanjo. Para

tanto, a Agência de Publicidade Dopping S.A, coordenadora das comemorações do

centenário, solicita ao professor Calazans, um dos poucos a conhecer profundamente a obra

do baiano, algumas notas que seriam transformadas em texto pela agência. Este texto seria

destinado às professoras para que pudessem, em suas aulas, ensinar aos estudantes sobre a

vida e a obra de Mestre Pedro. A tabela que segue busca coligir, de forma algo esquemática,

as informações que se depreendem das páginas 206 a 214 da edição aqui utilizada de Tenda

dos milagres, publicada em 1971 pela Martins. Tais páginas referem-se à sucessão de relatos

dos envolvidos no prêmio: as notas do professor Calazans; o texto da Dopping S.A, a aula da

professora Dida Queiroz e a redação do estudante Rai, de nove anos.

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No eixo vertical da tabela estão elencados nove itens que correspondem aos elementos

cujas transformações ocorridas na passagem de um a outro discurso favorecem e propiciam o

branqueamento de Mestre Pedro – o que vem a configurar um Archanjo-Outro. Já no eixo

horizontal, encontram-se os relatos a serem investigados, bem como as informações que se

depreendem da vida verdadeira de Ojuobá. Cumpre entrecruzá-los.

Observe-se, de início, as colunas “nome” e “ligação com o candomblé” que, de

alguma maneira, parecem interligadas. Em determinado momento do romance Archanjo

afirma: “– Meu nome de cristão é Pedro Archanjo mas em nagô sou Ojuobá” (Tenda dos

milagres, p. 186). Como se percebe pelo avançar dos discursos, o nome nagô de Archanjo é

obliterado. Não consta nem ao menos no relato concedido pelo professor Calazans, dentre

todos analisados, aquele que se constitui o mais fiel à vida vivida por Mestre Pedro.

Da mesma forma, nota-se que à passagem dos relatos não se encontra qualquer alusão

ao elo entre Archanjo e o candomblé, não obstante a importância desta ligação para situá-lo

em termos identitários ou em um contexto histórico, posto se considere a luta contra Pedrito

Gordo.

O deliberado escamoteamento de tais dados configura, indubitavelmente, parte

importante do processo de invisibilização da identidade negra de Pedro Archanjo Ojuobá.

Ora, apagar-lhe a pertença identitária, ocultar-lhe o nome nagô é, pois, expungir do Archanjo-

Outro, aquele que se pretende edificar, a memória do Archanjo real, aquele que se deseja

suprimir. Noutro plano, dirimir o nome Ojuobá da história é denegar aos nascituros a

possibilidade de reconhecer, em um herói da nação, vitórias e sentidos lidimamente negros. É,

tanto pior, inviabilizar o próprio reconhecer-se de uma criança negra ou mestiça naquele que

figuraria um orgulho negromestiço – estratagema tão usual no continuum histórico brasileiro

que força o país a ter uma lei específica para que se ensine história e cultura afro-brasileiras

nas escolas177

.

De modo semelhante ocorre quando o parâmetro a ser analisado concerne à filiação.

Atenta-se, nesta linha específica, a dois procedimentos opostos: o engrandecimento do pai,

Antônio Archanjo, e a eliminação do nome da mãe, Noca de Logunedê. O primeiro, de recruta

na Guerra do Paraguai, conforme consta no relato do professor Calazans, é promovido a herói,

177

A Lei nº 10.639/2003, tal como sancionada a 09 de janeiro daquele ano pelo Presidente Luís Inácio Lula da

Silva, alterou a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996 que estabelecia as diretrizes e bases da educação

nacional, para incluir a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”. Assim, o parágrafo

primeiro do artigo 26-A determina: “O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo incluirá o

estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na

formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política

pertinentes à História do Brasil”.

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259

no texto produzido pela Dopping S.A e, finalmente, a General, na aula ministrada pela

professora Dida Queiroz, na Escola Pública Jornalista Giovanni Guimarães. Acaso se

considere que o Exército Brasileiro recrutou, em suas fileiras, muitos negros escravizados sob

a promessa de alforria uma vez fosse vencido Solano López, a referência do professor

Calazans pode vir a revelar a ascendência negra de Archanjo. Como se vê, o engrandecimento

da figura representada por Antônio Archanjo não serve apenas para enaltecer as tradições

herdadas pelo filho, mas também para distanciá-lo de posições que denotem uma genealogia

negra.

Ainda mais sintomática é a supressão da mãe cujo nome, Noêmia de Tal, e também a

alcunha, Noca de Logunedê, desvelam o que se pretende velado. Ao acompanhar a sucessão

dos relatos, percebe-se que a agência de publicidade Dopping S.A faz referência à mãe, mas

oculta os nomes pelos quais é conhecida: designa-a apenas por “esposa grávida”. A professora

Dida Queiroz, não a menciona, o que também se percebe na redação de Rai, que classifica

Archanjo como órfão – já Noca de Logun não existe.

A despeito do apagamento de Noca da história criada sobre Archanjo, Amado faz o

leitor ter conhecimento da importância singular que a mãe exerceu na vida do filho, afinal ter

sido em sua companhia “[...] em vida tão parca e dura, [que] o menino aprendeu a não ceder, a

não desanimar, a seguir em frente” (Tenda dos milagres, p. 226). O Archanjo-Outro, contudo,

não pode descender de alguém que tenha no nome as marcas denunciatórias da escravidão ou

da pertença cultural negra. “de Tal”, epíteto hoje um tanto depreciativo, era comumente

utilizado no Brasil escravocrata para designar os negros que, embora batizados, por um

motivo ou outro, não herdassem os sobrenomes dos senhores ou, então, aqueles que os

omitiam. Já Logunedê corresponde a um orixá do panteão nagô e, como tal, marca

explicitamente uma pertença religiosa e cultural negra. Logo, tal Ojuobá, foram excetuados do

discurso oficial sobre Archanjo.

Já não causa espanto algum o fato do texto produzido pela Dopping ou a aula

ministrada por Dida Queiroz eliminarem de todo a referência à feição negromestiça de Pedro

Archanjo – ou simplesmente mestiça, como faz o professor Calazans. Classificam-no apenas

como “pobre”, nascido em ambiente pouco propício à cultura. Apesar de não chegarem ao

ponto de afirmá-lo branco, retome-se o que foi dito anteriormente: basta que não o explicitem

negro.

Também não mais causa estranheza os livros de Archanjo terem se reduzido em

simples e quase pueris “[...] histórias de bichos e de gente, mas [que] não servem para menino

ler” (Tenda dos milagres, p. 213). Esvaziado o conteúdo revolucionário inerente à

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personagem Archanjo Ojuobá, procedeu-se de forma idêntica com os livros que logrou

escrever: a Dopping S.A. considera que apresentam um levantamento dos problemas raciais,

mas não menciona em que tais livros implicam, não refere acerca do que tratam, muito menos

adverte a respeito do porque existem – são como frutos naturais do exercício da profissão de

professor da Faculdade de Medicina ou da Columbia University, como deixa entrever a

professora Dida Queiroz.

Aliás, a ascensão profissional deste Archanjo-Outro que, não tendo sido nunca bedel,

fez vestibular, foi aluno e professor da Faculdade de Medicina – talvez até amigo de Nilo

Argolo, quem sabe? – não é apanágio somente dos discursos aqui examinados. Por certo, não

assombra saber que também a própria Faculdade de Medicina dera sua importante

contribuição:

Um porta-voz da tradicional Escola, em entrevista ao J.C. logo após o lançamento da

campanha [do centenário], ainda na fase inicial das declarações de apoio, afirmou:

“Pedro Archanjo é um filho da Faculdade de Medicina, sua obra é parte de nosso

sagrado patrimônio, êsse patrimônio inigualável que nasceu no secular Largo do

Terreiro de Jesus, no precípuo Colégio dos Jesuítas e se afirmou com os ovantes

mestres da Faculdade, erguida sobre os alicerces do primeiro estabelecimento de

ensino do Brasil. A obra de Pedro Archanjo, hoje reconhecida até no estrangeiro, só

pôde ser realizada porque seu autor, membro da administração da Faculdade,

imbuiu-se do espírito da benemérita instituição [...]. Pedro Archanjo forjou seu

ânimo nesse clima de alta espiritualidade, na doutrina da veneranda Escola temperou

sua pena. É com justificado orgulho que afirmamos por ocasião desta efeméride

gloriosa: a obra de Pedro Archanjo é produto da Faculdade de Medicina da Bahia”.

No que, apesar de tudo, não deixava de ter certa razão (Tenda dos milagres, p. 149-

150).

Ainda a respeito da ligação de Pedro Archanjo com a Faculdade de Medicina, é

interessante notar que ressalvas podem ser feitas até ao relato produzido pelo professor

Calazans, posto não mencione o motivo da repercussão que teria ocasionado a demissão de

Ojuobá – com isto, o professor silencia a respeito das “suspeitas teorias” em voga na

instituição e do combate a elas feito pelos livros de Archanjo.

Em relação à vida amorosa de Archanjo, a total supressão de Rosa de Oxalá, grande e

irrealizável amor da vida de Mestre Pedro, segue os mesmos ditames dos apagamentos de

Ojuobá e Noca de Logunedê: a demarcação religiosa/cultural/identitária. Aliás, cabe aqui um

adendo a respeito da impossibilidade do enlace entre Rosa e Archanjo. O impeditivo não se

constitui em falta de amor mútuo, mas por meio de uma interdição na qual Lídio Corró ocupa

posição de realce. Ele também é enamorado de Rosa, fato que desencadeia o impedimento:

“[...] se Lídio nascesse de minha mãe, nela pôsto por meu pai, não seria tão meu irmão, não

lhe deveria tanta decência e lealdade” (Tenda dos milagres, p. 113). Seria, talvez, uma

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repetição do tema já desenvolvido em Os pastores da noite, envolvendo Curió, Cabo Martim

e Marialva, se não houvesse nesta lealdade ao amigo Lídio um detalhe a mais: o romance de

Jorge Amado se aproveita do tema da amizade entre dois homens, o que lhe é muito caro, para

também neste aspecto discutir e negar as teorias raciais de Nilo Argolo:

Rosa, [...] temos honra e sentimento. Rosa, nós não somos degenerados em

promiscuidade imunda, uns animais ou, pior, uns criminosos. Sim, Rosa, exatamente

isso: “Mestiços, degenerados em sórdida, em imunda promiscuidade”, foi o que

escreveu um professor de medicina, um doutor, um catedrático. Mas é mentira,

Rosa, é calúnia desse sabetudo que não sabe nada. [...]

Na gringa te esquecerei, e em Sabina, em Rosenda, em Risoleta [...]. Esquecerei ou

buscarei em desespêro? Em campo de jasmim e trigo, teu negrume. Em todas elas,

rosa de Oxalá, tua indecifrável adivinha, teu proibido eterno amor (Tenda dos

milagres, p. 113).

E já que se falou da “gringa”, aproveite-se o ensejo: em plena substituição a Rosa de

Oxalá, Archanjo-Outro se casa com Kirsi, seu grande amor. Ora, e não seria este o perfeito

arremate do branqueamento de Archanjo: a transferência simbólica da brancura de alvaiade de

Kirsi para um Archanjo que o leitor já não mais reconhece como negro?

Resta ainda comentar a Sessão Solene, a acontecer no Salão Nobre do Instituto

Histórico e Geográfico, como marco das comemorações do Centenário de Pedro Archanjo –

uma vez que o seminário planejado sobre a obra de Ojuobá fora suspenso, toda a discussão

acadêmica sobre as propostas teóricas de Mestre Pedro no que concerne à questão racial ficara

concentrada na Sessão Solene. Compõem a mesa: o Governador do Estado da Bahia, como

presidente; o doutor Zezinho Pinto; o professor Calazans, responsável pela leitura de uma

carta de James D. Levenson; o doutor Benito Mariz, representante da Associação dos Médicos

Escritores; a folclorista Edelweiss Vieira e, por último, o preclaro acadêmico Batista. Convém

ressaltar, dentre todos, os discursos da folclorista e do acadêmico.

Eldeweiss Vieira faz de sua fala um agradecimento emocionado àquele que considera

como o pai dos estudos folclóricos baianos. Ao término do discurso, a folclorista surpreende

ao quebrar o protocolo acadêmico e pedir a benção ao pai Archanjo. Segue o texto amadiano:

Pesquisando em terra por êle desbastada, percorrendo veredas e atalhos abertos pelo

autor de “A vida popular na Bahia”, a folclorista, em meio a tanta formalidade, a

todo aquêle eloqüente e vazio palavreado, parecia reverente filha de terreiro posta de

joelhos ante o pai pequeno. Naquele instante, nítida, se projetou na sala a figura de

Archanjo (Tenda dos milagres, p. 365).

Não somente àquela noite, mas estendendo-se por todas as homenagens e prêmios

promovidos em decorrência das comemorações do Centenário de Pedro Archanjo, talvez

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aquele tenha sido o único instante em que se falou, ainda que de viés, do Pedro Archanjo

verdadeiro, o Ojuobá. “Por um breve momento, apenas, pois em seguida teve a palavra o

preclaro Acadêmico Batista, orador principal da noite [...]” (Tenda dos milagres, p. 365).

Batista representa a voz oficial, pois é ligado umbilicalmente à Ditadura Militar: “[...]

homem de proa da situação, responsável, segundo diziam, por muitas denúncias e muitos

processos de elementos subversivos” (Tenda dos milagres, p. 365). Tendo assumido há

poucos dias a presidência da Benemérita Associação de Defesa da Tradição, da Família e da

Propriedade, o professor Batista ocupou “[...] a maior parte do discurso no elogio da

„verdadeira tradição, única efetivamente digna de culto, a da família brasileira e cristã‟”

(Tenda dos milagres, p. 366). Desta forma, era natural que o orador viesse a polemizar com

Pedro Archanjo:

A seu ver, o homenageado da noite, alvo do generoso aplauso dos presentes, jamais

devera ter ultrapassado os limites das pesquisas folclóricas: “ainda que eivadas de

imperfeições quantiosas, representam tentativa promissora e merecem ser admitidas

na prática dos eruditos”. Ao querer, porém, lavorar em messe de grandes sábios da

estatura de Nilo Argolo e Oswaldo Fontes, “grafou extravagâncias sem a mais

reduzida base de infrágil sustentação” (Tenda dos milagres, p. 366).

Ainda que destoante de todos os outros discursos da noite, aquele proferido por Batista

traz consigo o peso que o faz, de certa maneira, inquestionável: representa o discurso oficial

da Ditadura Militar. Desta forma, convém atentar para a validação das teorias alardeadas por

Nilo Argolo e Oswaldo Fontes em contraposição àquelas defendidas por Pedro Archanjo. Por

conseguinte, constata-se a continuidade de uma diretriz racista a nortear os rumos políticos do

país e a aprofundar as distâncias sociais.

Ao término da fala do acadêmico Batista, quando o Governador já proclamava o fim

da Sessão Solene, o Major Damião, já há algum tempo presente no Salão Nobre, pede a

palavra. Trazia consigo uma “[...] mal vestida mulata, em adiantado estado de gravidez [...]”

(Tenda dos milagres, p. 367). Palavra concedida, o Major discursa:

[...] tanta festa, tanto discurso, tanto elogio a Archanjo, merecedor disso tudo e de

muito mais ainda – mas eis o reverso da medalha! A família, os descendentes de

Archanjo, seus parentes, êsses morriam à míngua, vegetavam na maior miséria, na

fome e no frio. Ali mesmo, minhas bondosas Senhoras, meus ilustres Senhores,

naquela sala em festa tão grandiosa, ali mesmo padecia uma parenta próxima de

Archanjo, mãe de sete filhos, às vésperas do oitavo, viúva ainda a chorar a morte do

espôso estremecido, necessitada de médico, hospital, remédios, dinheiro para

comida dos meninos... Ali, naquela sala onde eram ouvidos tantos louvores a Pedro

Archanjo, ali...

Apontava a mulata na cadeira:

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- Levante-se, minha filha, ponha-se de pé para que todos vejam em que estado se

encontra uma descendente, uma parenta próxima do imortal Pedro Archanjo, glória

da Bahia e do Brasil, glória da Pátria! (Tenda dos milagres, p. 368).

De certo modo, é possível afirmar que tudo o que se pretendeu neste tópico, isto é, o

confronto do vivido com a narração do vivido, do Archanjo com o Archanjo-Outro, é

sintetizado, metaforizado e exposto no fragmento acima. Uma verdade, a despeito do embuste

do Major: sem sê-la, ali estava uma filha de Archanjo, do legítimo. Como afirmou Fraga

Neto, também presente na Sessão Solene: “[...] nessas comemorações tudo fôra farsa e

embuste, um colar de absurdos. Talvez a única verdade tenha sido a invencionice do Major, a

mulata prenhe e sem comida, precisada e sestrosa, falsa parenta, parenta verdadeira, gente de

Archanjo, universo de Archanjo” (Tenda dos milagres, p. 369-370).

Por certo, a cena transcrita evoca uma imagem que é de todo familiar aos leitores de

Tenda dos milagres, qual seja, a de uma população negromestiça posta invariavelmente às

margens do Estado. Situá-la no contexto específico em que Amado o faz, metaforizada na

mulata prenhe e precisada, evoca, pois, uma relação de continuidade entre os eixos temporais

do romance: os tempos de antanho deságuam atemporais na exclusão hodierna do negro

brasileiro.

Distante quarenta anos daquele já longínquo 1928, quando Archanjo publicou os

Apontamentos sobre a mestiçagem nas famílias baianas, seu terceiro livro, o ano do seu

centenário já não destoa tanto assim daquele vivido: os discursos governamentais coincidem

e, portanto, também o corolário excludente se repete. A despeito das leis segregacionistas

pretendidas por Nilo Argolo não terem vigorado, vencidas, talvez, pela obra archanjiana, há

de se reconhecer no universo narrado pelo romancista baiano uma sociedade extremamente

polarizada, dividida, hierarquizada a partir, sim, de critérios raciais – não o fosse, por que da

necessidade de branquear Archanjo?

Assim, cabe reincidir tanto na pergunta quanto na citação: onde, na literatura

amadiana, a mestiçagem redentora que teria corrigido a “[...] distância social [...] entre a casa-

grande e a senzala” (FREYRE, 2006, p. 33), senão em uma quimérica sociedade futura que

Amado deseja projetar como esperança? Onde puros e simples encontros interétnicos como

solução para o racismo senão associados a lutas várias, à resistência diária e contínua e à

necessidade de afirmação de identidades denegadas por um poder etnocêntrico? Da mesma

forma, e principalmente, onde o apagamento do negro senão tão somente como denúncia?

No Salão Nobre do Instituto Histórico e Geográfico, a pespegar verdades entre tantos

e tantos embustes acerca de Ojuobá, Mestre Pedro redivivo no Major Damião, o rábula do

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povo – também um herói. Talvez Amado delineie nesta personagem um novo Pedro

Archanjo, vez que os tempos não são tão outros assim: Argolo continua vivo no discurso do

acadêmico Batista, no texto da Dopping S.A., na aula da professora Dida Queiroz; na

hierarquização social e no repúdio a tudo o que é negro, enfim. Ademais, o Major não

aprendera com Ojuobá o bom e o mal da vida? Não aprendera com ele a andar para frente ao

invés de subir, como o fez Tadeu? Não aprendera com Mestre Pedro a manter-se ao lado do

povo negromestiço das ruas e ladeiras do Pelourinho, da Cidade da Bahia? Certamente, ao

menos, o Major Damião simboliza o imprescindível contraponto à sociedade que o romancista

baiano Jorge Amado conhece, sim, estruturada de forma desigual e racista. Afinal, não fora a

intervenção do Major, necessária e verdadeira, ressaltada pelo Jornal da Cidade no dia

seguinte ao da Sessão Solene, mas “[...] a peça magistral de erudição e patriotismo” (Tenda

dos milagres, p. 366) concebida pelo acadêmico Batista, ainda que por força do Regime

Militar.

Da glória de Pedro Archanjo Ojuobá, cria-se um Archanjo-Outro a quem se dedicam

homenagens e prêmios vários. Um Archanjo-Outro que empresta seu nome a ruas e escolas;

que vende refrigerantes, cachaças, jornais e o que mais seja. Um Archanjo-Outro cuja

imagem, ao fim, lega às gerações porvindouras o embuste convertido em branca verdade:

“[...] na estátua, quase branco puro, sábio oficial da Faculdade, capado e mudo, vestido com a

túnica de soldado, Pedro Archanjo, glória do Brasil” (Tenda dos milagres, p.334).

EPÍLOGO OU “MILAGRE É ISSO”

A derradeira imagem de Tenda dos milagres não é a de um Archanjo capitulado diante

do racismo que sempre combateu em vida. Não é a do Archanjo-Outro, homem branco, de

vida irretocavelmente puritana, que figura na estátua erigida em glória imortal. Também não é

a da Sessão Solene que pouco ou nada versou sobre Mestre Pedro, senão tão só pela

intervenção do Major Damião. Não!, a imagem derradeira não poderia nunca ser a de um

Archanjo vencido, tão vencedor que fora.

Uma vez encerrado o romance, irrompe o carnaval de 1969. A Escola de Samba Filhos

do Tororó sai às ruas da Cidade da Bahia para festejar, cantar e sambar a história de Archanjo.

Mais uma homenagem ao sábio baiano. Mas qual Archanjo será cantado, o verdadeiro ou o

Archanjo-Outro? Qual a história, a vivida ou o embuste?

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Dissipam-se as dúvidas: surge Rosa de Oxalá, o grande amor. Seguem Lídio e Budião,

Valdeloir e Manuel de Praxedes, Aussá e Paco Muñoz. Passa o Afoxé Filhos da Bahia (ainda

meio órfãos esses filhos), vem com Zumbi em cima – é festa, mas também é luta: Quando

Zumbi chega / É zumbi é quem manda, lembra Jorge Ben Jor.

Kirsi de estrela d‟alva. Depois o candomblé, com seus instrumentos e orixás, suas

iaôs, o pai de santo Procópio, Ogum alto e forte colocando Pedrito para correr. Expande-se o

axé, propaga-se o aiyó. Sim, eis Archanjo! Eis Mestre Pedro Archanjo Ojuobá redivivo em

pleno carnaval.

O carnaval: há quem o diga que não seja mais do que uma outra festa qualquer. Quem

o considere pura perda de tempo; outros, ciumentos, como período de brigas várias e

reconciliações nem tão vastas entre casais. Há, ainda, quem o entenda a partir do discurso do

“ópio do povo”, fórmula simplória com entranhado cheiro de naftalina. Para Jorge Amado, no

entanto, outro, e nobre, é o sentido da Festa de Momo. Ao término da entrevista concedida ao

The Unesco Courier, por exemplo, é pedido ao romancista baiano que sugira uma imagem

qualquer de otimismo, de esperança. Sem titubeio, Amado responde: “A imagem do carnaval.

Todas aquelas pessoas de pele clara, morena ou negra, que às vezes falam em separação de

raças, mas que se reúnem, dançam juntas e finalmente casam-se umas com as outras” (THE

UNESCO COURIER, 1989, p. 7)178

. O carnaval como esperança: Eu queria / Que essa

fantasia fosse eterna / Quem sabe um dia a paz vence a guerra / E viver será só festejar –

sonha a letra de Baianidade nagô, composta por Evany e considerada um dos hinos do

carnaval baiano. Quiçá muitos outros, simples foliões de todos os anos, compartilhem destes

mesmos votos vez que ainda hoje se emocionam ao ouvir os seus primeiros versos, entoados

no Campo Grande, estenderem-se na Avenida Sete, contornarem a Praça Castro Alves,

subirem a Carlos Gomes e retornarem ao Campo Grande, sem que camarotes hierarquizem

ainda mais a festa já cindida por tantas cordas e tantos abadás.

Se, em O país do carnaval, a festa fevereira é o símbolo máximo da incapacidade do

povo mestiço brasileiro, em Tenda dos milagres ela representa o oposto: constitui a imagem

de esperança que Amado deposita no futuro deste povo negromestiço. Restituído do que

realmente fora, em meio à festa do povo negromestiço da Bahia, subvertendo a construção

ideológica de um Archanjo-Outro, “Pedro Archanjo Ojuobá vem dançando, não é um só, é

vário, numeroso, múltiplo [...]. Todos pobres, pardos e paisanos” (Tenda dos milagres, p.

374). “Milagre é isso”, diria Archanjo/Amado. “É, meu bom”, alguém responderia.

178

"The image of Carnival. All those fair-skinned, brown-skinned, black-skinned people, who sometimes talk of

the segregation of the races but who come together, dance together and finally marry each other"

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CONCLUSÃO

Há de nascer, de crescer e de se misturar...

Jorge Amado. Tenda dos milagres.

Eis, após outras tantas, as poucas e derradeiras páginas desta dissertação.

É chegado o instante em que concluir se faz imperativo, não obstante houvesse ainda

tanto mais por escrever. Outra centena, talvez.

Concluir, palavra estranha à literatura. Como encerrar no singular estreito de uma

conclusão a amplidão plural de tudo o que é literário?

Como figurar em assertiva única, final, as tantas outras igualmente possíveis?

A arte é, por natureza, poliédrica, inexata, subjetiva e vária. Tanto mais o é o campo

específico das Letras: a despeito de tantos e tão vastos dicionários, as palavras ainda jazem

indefiníveis quando enleadas umas às outras em associações metafóricas, em arranjos

linguísticos que as projetam para além de si. Concluir não seria pretender encerrar em uma

fórmula única, tal uma equação de grau qualquer, as tantas nuanças nada matemáticas da arte

escrita?

Admita-se: necessariamente parcial e inconclusiva vem a ser qualquer abordagem

daquilo que se constitui como literário. Sobretudo as que se revestem de um caráter

interpretativo, isto é, que almejam em vão apreender e ressignificar uma metáfora em

linguagem não metafórica.

Neste plano, talvez seja interessante relembrar o último parágrafo da introdução deste

trabalho. Há exatas duzentas e quarenta e duas páginas, advertiu-se em relação a outras

leituras da obra amadiana: aquela empreendida aqui muito discorda, muito questiona, muito

rejeita. Entretanto, não o faz para negar verdades outras, apenas para defender e reforçar as

premissas aqui endossadas, os argumentos aqui desenvolvidos, as conclusões aqui

vislumbradas.

Discordar, questionar e rejeitar constituem-se, em verdade, tão somente necessidades

argumentativas dimanadas de concepções divergentes acerca de um mesmo e polêmico

objeto.

Ponto pacífico, pois: o perímetro de cada leitura limita-se na justa medida de quem a

empreende, das premissas que adota e dos argumentos que desenvolve. Assim também com as

conclusões a que se alcança.

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Desta forma, compete ressaltar o óbvio: as conclusões a serem enunciadas

evidentemente resultam das perspectivas aqui adotadas, do olhar e das crenças daquele que as

escreve. São, portanto, parciais em absoluto. Somam-se a todas as outras, inclusive àquelas

diametralmente opostas e igualmente parciais, em um amplo e diverso mosaico a compor a

fortuna crítica do romancista baiano Jorge Amado.

Às conclusões, sem mais delongas.

Observaram-se, na primeira seção deste estudo, algumas dentre as várias

ressignificações em torno do conceito de mestiçagem ao longo da história brasileira, que

evolui de uma condição amplamente pessimista e negativista para expressão por excelência de

uma positiva singularidade nacional – o que vem a configurar a perspectiva adotada por

Gilberto Freyre. A despeito destas importantes transmutações semânticas, averiguou-se que o

lugar destinado ao negro nas teses gilbertianas não se distanciava tanto em relação àquele

estabelecido pelos teóricos do branqueamento, nos primeiros anos do século XX. Ao propor

uma nacionalidade baseada na ascendência lusitana, acrescida aqui e ali de pontuais

contribuições africanas e indígenas, o antropólogo pernambucano secundariza e mesmo

oblitera a pujança dos valores negros como demarcativos de Brasil. Por consequência, o

Mestre de Apipucos deslegitima identidades estruturadas e erigidas em torno a estes mesmos

valores, isto é, identidades que porventura se afirmem como negras – o que o faz em prol da

teorização de um povo homogêneo, dotado de feição luso-tropical.

Questionou-se, por ensejo desta discussão, se seria esta a concepção de mestiçagem

presente nos romances de Jorge Amado, ou seja, se seria possível atribuir-lhe a mesma

lusofilia de Freyre ou, mais grave, se haveria nas narrativas do escritor baiano um deliberado

apagamento da identidade negra em prol do soerguimento de um povo tão somente mestiço.

A partir da segunda seção intentou-se dar um direcionamento às indagações acima.

Desta forma, procurou-se investigar como a literatura amadiana desenvolveu em si as

temáticas da mestiçagem e do negro. Para tanto, analisou-se os cinco primeiros romances

escritos por Jorge Amado, obras em que se percebe um contínuo movimento de

ressignificação das personagens negras e mestiças.

Partiu-se, pois, de O país do carnaval, narrativa amplamente marcada por leituras a

partir de concepções biologizantes, desqualificativas do negro e do mestiço, para avançar a

uma primeira exaltação deste mesmo universo em Mar morto. Neste ínterim, constatou-se a

importância da ideologia socialista a conduzir Amado para uma nova visão de mundo, ou

seja, orientando-o à substituição das premissas biológicas por outras de ordem

socioeconômicas.

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Deste modo, já em Cacau e Suor, narrativas que se seguem a O país do carnaval, as

personagens negras e mestiças não se afiguram como degeneradas ou portadoras de uma

inferioridade ontológica, mas como excluídas históricas e socialmente imersas em um amplo

painel da desigualdade nacional que Amado planeja evidenciar. Em outras palavras, o

romancista as apreende como representações alijadas do capitalismo – com o que as investe

de forte carga ideológica.

Embora destoantes das representações de O país do carnaval, as personagens

presentes em Cacau e Suor não avançam tanto no que concerne à ficcionalização do negro,

vez que meramente reduzidas a um “projeto ideológico” que as concebe na condição de

excluídas, o que possibilita a denúncia do capitalismo. Por conseguinte, não é o negro como

identidade que Amado focaliza, mas como lúmpen.

Ainda esta é a perspectiva norteadora de Jubiabá, apesar de esta narrativa conter um

primeiro esboço de representação do negro-sujeito. Na medida mesma em que Amado

ficcionaliza uma identidade negra para Antônio Balduíno, inserindo-o em um contexto

cultural norteado por valores afro-brasileiros, denega esta identidade quando faz Baldo

assumir os valores revolucionários da greve como superiores àqueles simbolizados no pai de

santo Jubiabá. Superiores porquanto pudessem conduzir o lúmpen à resistência e à vitória

contra a exclusão, possibilidades ausentes no campo da religiosidade afro-brasileira, discursa

Balduíno. Desta maneira, assoma ao fim do romance uma identidade baseada em uma

perspectiva de classe que se sobrepõe àquela de feição étnico-racial.

Distinto, porém, é o encaminhamento de Mar morto. Nas páginas que narram o amor

entre Guma e Lívia, não obstante a ideologia socialista seja visível em uma ou outra

personagem e a presença da greve também se imponha, em momento algum se

supraposicionam ao conjunto dos valores que condicionam a identidade daqueles homens do

mar – característica à qual se julgou por justo designá-la autonomia do representado.

Neste quinto romance, descortina-se o horizonte do que viria a constituir alguns

símbolos da literatura amadiana, a partir de finais do decênio de 1950: o protagonismo do

negro-sujeito, a preponderância da cultura e da religiosidade afro-brasileiras e a presença da

mestiçagem.

Tal percurso, por si só, já revela alguns subsídios para distinguir as obras de Freyre e

Amado no que se relacionam ao negro. Mas, como aquilo que se pretendeu aqui não foi

apenas o estudo do negro na obra amadiana, mas, antes, uma investigação acerca do lugar que

ele ocupa na representação da mestiçagem alcançada por Jorge Amado, fez-se necessário

avançar para o estudo de outros romances: Os pastores da noite e Tenda dos milagres.

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A escolha destas duas narrativas justifica-se na medida em que ambas projetam, em

primeiro plano, uma sociedade mestiça. Ora, elucubrá-las a partir das representações do negro

iria, pois, ao encontro do proposto por esta dissertação. Caso o negro-sujeito de Mar morto

persistisse e se verticalizasse nos romances agora em destaque, seria possível afirmar uma

“concepção amadiana de mestiçagem”, singular, portanto?

Uma vez estudados os entrechos de Os pastores da noite e Tenda dos milagres,

constatou-se a presença de três diferenças entre as abordagens de Amado e Freyre no

concernente à mestiçagem. A despeito do reduzido número apontado, acredita-se que tais

diferenças se configuram de tal maneira sintomáticas e relevantes que possibilitem de per si

afirmar a singularidade da mestiçagem amadiana.

A primeira diferença diz respeito a como o romancista baiano e o antropólogo

pernambucano concebem o racismo e, por extensão, revestem a mestiçagem de uma

capacidade redentora.

Paradoxal como sempre, Freyre não isenta a sociedade brasileira do racismo,

entretanto a vislumbra como uma “democracia social e étnica” em que a mestiçagem teria

anulado as distâncias sociais e na qual o problema do negro estaria reduzido ao mulato. Neste

sentido, o racismo é algo meramente residual, de pouca monta, que pouco se percebe no

cotidiano brasileiro. A mestiçagem, por sua vez, remontaria a uma ação benfazeja pretérita

que teria aproximado socialmente, por via do mulato, os extremos do sistema escravista.

Todavia, os romances amadianos aqui elencados, a despeito de narrarem

majoritariamente uma sociedade mestiça, são pontilhados por conflitos que, em última

análise, remontam a uma natureza étnico-racial – sejam aqueles explícitos como em Tenda

dos milagres, sejam aqueles alegóricos como em Os pastores da noite. Assim, por mais que

Jorge Amado tenha defendido, em entrevistas várias, o suposto de uma vinculação do racismo

ao problema social brasileiro, do qual seria originário, o romancista baiano não diminui em

sua obra o peso que o preconceito de raça tem na configuração desigual do Estado.

Para Jorge Amado, portanto, a ação benfazeja e redentora da mestiçagem não está

localizada no passado, como em Freyre, mas projetada no futuro, em um indefinido porvir.

Ademais, a perspectiva amadiana é menos simplista do que aquela enunciada pelo

antropólogo pernambucano. Não obstante o grapiúna também identifique na mestiçagem certo

potencial revolucionário, não o faz de forma isolada como Gilberto Freyre: para o romancista

baiano não basta a existência de uma natural tendência para a mistura no Brasil; antes, é

preciso uma reorganização social das esferas de poder do país para que a mestiçagem possa,

enfim, dirimir preconceitos.

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Diferentes, pois, são os âmbitos da mestiçagem traçados por Gilberto Freyre e Jorge

Amado. Enquanto o pernambucano a emoldura como estruturante de uma democracia racial

coetânea e generalizada, Amado localiza a democracia racial brasileira no povo, ou seja, no

amplo mosaico dos excluídos, mas a rejeita como realidade social uma vez que descreva as

elites como eivadas de preconceitos e o país como uma sociedade pejada de racismos. Não à

toa, foram estabelecidos os conceitos de “mundo negro” e “universo mestiço” ao longo desta

dissertação para a leitura da mestiçagem amadiana. O primeiro ressalta e combate o

deliberado apagamento de tudo o que é relativo ao negro no Brasil, principalmente os valores

que denotam uma identidade específica, uma vivência africano-brasileira. O segundo, por sua

vez, quimeriza uma futura sociedade mestiça, isto é, dotada de uma democracia social e

identitária – perspectiva que se depreende da noção de mestiçagem alentada por Jorge

Amado.

Especificamente o conceito “mundo negro” aponta para uma segunda e também

fundamental diferença entre Amado e Freyre. Em geral o negro gilbertiano reproduz um

aspecto de submissão à ordem vigente, adaptando-se docilmente à escravidão, o que enforma

uma representação denotativa de natural subalternidade. Ora, insubmissa é a ficcionalização

do povo de santo em face da impossibilidade de os orixás adentrarem a Igreja, como em O

compadre de Ogum. Da mesma forma, insurrecta é a manifestação dos habitantes do Mata

Gato, capitaneada por Jesuíno Galo Doido em Os amigos do povo. E o que dizer de Pedro

Archanjo, Lídio Corró, Procópio, Majé Bassan e Major Damião? Onde a passividade típica

dos negros retratados em Casa-Grande & Senzala?

Se o negro gilbertiano chancela a ordem colonial, a representação amadiana

corresponde ao exato oposto: contesta-a, rejeita-a, reescreve-a. O negro alcançado pela ficção

de Jorge Amado afirma-se, sobretudo.

Ora, na exata medida em que a personagem negra afronta a sociedade racista e

excludente para se afirmar, estabelece-se a terceira e principal distinção entre os universos de

Jorge Amado e de Gilberto Freyre, qual seja, o lugar do negro.

A despeito da ênfase com que Gilberto Freyre focaliza o negro em suas obras, não é

bem um povo afro-brasileiro dotado de um ethos negro que se projeta e vivifica a partir de

suas tantas páginas. Antes, um povo homogeneamente mestiço sob a diretriz de uma

genealogia lusitana – daí Freyre reconhecer adaptações e “amolecimentos” promovidos pelo

negro e pelo indígena à cultura do branco colonizador, mas rejeitar vislumbrar um Brasil que

se teça primordialmente pelos valores culturais do negro ou do índio.

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Noutro plano situa-se o Brasil de Amado. Após as leituras empreendidas aqui acerca

de Os pastores da noite e Tenda dos milagres, obras na quais se buscou ressaltar como os

enredos são condicionados por valores culturais negros, é possível afirmar não apenas o

protagonismo de personagens negras, mas, também, o protagonismo de um ethos negro.

Ora, o termo mestiçagem é, em si, problemático porquanto historicamente implique

preconceitos, apagamentos e branqueamentos dissimulados. Não sem motivo, o ideário da

“mestiçagem” quase invariavelmente está relacionado com a manutenção do poder e da

ordem dominantes, pretensamente brancos.

Jorge Amado, porém, alcança enunciá-la de forma singular, isto é, concebê-la e

representá-la livre das incidências estigmatizantes ou obliterantes que tradicionalmente o

conceito comporta. No que concerne especificamente ao negro, ao invés de desvanecê-lo em

tons mais claros de pele e cultura, o romancista baiano o ficcionaliza na justa medida dos

valores culturais que dimanam do continuum África-Brasil e que delimitam uma identidade

negra na margem oeste do Atlântico.

O povo que fulgura nesta concepção singular de mestiçagem amadiana não é, portanto,

tão somente mestiço: expande-se para além das várias limitações deste conceito na medida em

que se configura, se assume e se afirma sobretudo negro; um povo negromestiço.

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