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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E ENSINO DE PÓS-GRADUAÇÃO DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO CAMPUS II ALAGOINHAS/BAHIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CRÍTICA CULTURAL ANGELA CARLA DE FARIAS “SILENCIADAS” A REPRESENTAÇÃO CULTURAL DO PAPEL DA MULHER E SUA UTILIZAÇÃO NOS PROCESSOS DE CRIMES PASSIONAIS NA CIDADE DE INHAMBUPE- BAHIA (1996-2006) Alagoinhas - BA 2013

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA

PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E ENSINO DE PÓS-GRADUAÇÃO

DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO – CAMPUS II ALAGOINHAS/BAHIA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CRÍTICA CULTURAL

ANGELA CARLA DE FARIAS

“SILENCIADAS”

A REPRESENTAÇÃO CULTURAL DO PAPEL DA MULHER E SUA

UTILIZAÇÃO NOS PROCESSOS DE CRIMES PASSIONAIS NA

CIDADE DE INHAMBUPE- BAHIA (1996-2006)

Alagoinhas - BA

2013

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ANGELA CARLA DE FARIAS

“SILENCIADAS”

A REPRESENTAÇÃO CULTURAL DO PAPEL DA MULHER E SUA

UTILIZAÇÃO NOS PROCESSOS DE CRIMES PASSIONAIS NA

CIDADE DE INHAMBUPE- BAHIA (1996-2006)

Dissertação apresentada ao Curso de

Pós-graduação em Crítica Cultural da

Universidade do Estado da Bahia

UNEB como requisito para obtenção do

título de Mestre em Crítica Cultural

Orientador: Prof. Dr. Osvaldo Francisco Ribas Lobos Fernandez

Alagoinhas

2013

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ANGELA CARLA DE FARIAS

“SILENCIADAS”

A REPRESENTAÇÃO CULTURAL DO PAPEL DA MULHER E SUA

UTILIZAÇÃO NOS PROCESSOS DE CRIMES PASSIONAIS NA

CIDADE DE INHAMBUPE- BAHIA (1996-2006)

Esta dissertação foi julgada para obtenção do título Mestre em Crítica Cultural. Área de

concentração em Letras e aprovada em sua forma final pelo curso de Pós-Graduação em

Crítica Cultural da Universidade do Estado da Bahia (UNEB) Campus II.

Orientador

__________________________________________

Prof. Dr. Osvaldo Francisco Ribas Lobos

Fernandez/UFBA

BANCA EXAMINADORA

__________________________________________

Prof. Dr. Osvaldo Francisco Ribas Lobos Fernandez

UNEB

_________________________________________

Profa. Dr.Carlos Magno Gomes

UFS

_________________________________________

Profa. Dra. Lia Zannotta Machado

UNB

SUPLENTES

________________________________________

Profa. Dra. Márcia Santana Tavares

UFBA

________________________________________

Profa. Dra. Maria Neuma Mascarenhas Paes

UNEB

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Dedico este trabalho aos meus avós, Maria do

Carmo Conceição Dias (em memória),

Jovelina Oliveira da Luz e Lidio Bispo da Luz

(em memória); a minha mãe, Gedalva da Luz;

a meus irmãos, Lidio da Luz Rodrigues

Nascimento e Viviane da Luz Pedroso; às

sobrinhas Fanny Clara Pedroso Oliveira e

Ágata Oliveira Nascimento e ao tio Gileno da

luz (em memória). Por toda a inspiração e

amor incondicional que representam.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço a Deus, pela saúde e disposição para realizar este trabalho.

Aos meus familiares, pelo incentivo, paciência e cumplicidade, principalmente nas horas das

dificuldades.

Ao Programa de Mestrado em Crítica Cultural, Departamento II da UNEB, pela generosa

oportunidade de crescimento e amadurecimento intelectual.

Aos professores e funcionários do Programa, pelo apoio e gentileza.

Ao professor Osmar Santos, pela franqueza e generosidade.

Ao meu orientador, Osvaldo Ribas Lobos Fernandez, por me ensinar a ter amor e rigor pelo

trabalho científico.

Aos meus colegas de turma, pela troca de conhecimento, apoio mútuo e pelo carinho

demonstrado nos nossos encontros intelectuais, regados a muita poesia e afeto.

Aos funcionários do fórum Adalício Nogueira, de Inhambupe, pela presteza das informações:

Juíza Elke Figueiredo Schuster, assessora e funcionários da vara crime; a Aldinei Alves

Lima, Almir Cláudio dos Santos e José Genilson dos Santos.

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A noite não adormece

nos olhos das mulheres

a lua fêmea, semelhante nossa,

em vigília atenta vigia

a nossa memória.

A noite não adormece

nos olhos das mulheres

há mais olhos que sono

onde lágrimas suspensas

virgulam o lapso

de nossas molhadas lembranças.

A noite não adormece

nos olhos das mulheres

vaginas abertas

retêm e expulsam a vida

donde Ainás, Nzingas, Ngambeles

e outras meninas luas

afastam delas e de nós

os nossos cálices de lágrimas.

A noite não adormecerá

jamais nos olhos das fêmeas

pois do nosso sangue-mulher

de nosso líquido lembradiço

em cada gota que jorra

um fio invisível e tônico

pacientemente cose a rede

de nossa milenar resistência.

A noite não adormece nos olhos das mulheres

Conceição Evaristo

Em memória de Beatriz Nascimento

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RESUMO

Os estudos em torno da violência contra a mulher no Brasil pressupõem sua vida familiar e

privada, o poder político, sua condição jurídica e os papéis socioeconômicos e culturais

desempenhados ao longo da história do país, nas várias regiões, tanto na cidade quanto no

campo, e entre os diversos grupos sociais. O presente trabalho procura discutir os processos

relativos a crimes passionais ocorridos na cidade de Inhambupe, Bahia, entre os anos de 1996

a 2006, no que concerne à situação do homem que assassina sua companheira acusando-a de

infidelidade. Dentro desta perspectiva, e tendo como base as narrativas processuais em suas

diversas fases inquérito, processo e julgamento, buscou-se, no discurso dos atores jurídicos

(delegado, advogado, promotor, juízes e jurados) e nos das testemunhas e acusados, investigar

de que forma o sistema judiciário, no que diz respeito ao tratamento dispensado às mulheres, é

um reflexo da cultura.

Palavras-chave: Crime passional. Cultura. Direito da mulher. Gênero.

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ABSTRACT

Studies around violence against women in Brazil assume his private and family life, political

power, their legal status and the socioeconomic and cultural roles played throughout the

history of the country, in various regions, both the city and the countryside, and between

different social groups. This paper discusses the processes relating to crimes of passion

occurred in the city of Inhambupe, Bahia, between the years 1996 to 2006, regarding the case

of a man who murders his partner accusing her of infidelity. Within this perspective, and

based on the narratives in their various procedural stages investigation, prosecution and

trial, we sought in the discourse of legal actors (delegate, attorney, prosecutor, judges and

jurors) and of witnesses and accused, investigate how the judicial system, with regard to the

treatment of women is a reflection of culture.

Keywords: Crime of passion. Culture. Woman‟s right. Genre.

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LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS

CAM Central de Atendimento à Mulher

CAPS Centro de Atenção Psicossocial

CEBELA Centro Brasileiro de Estudos Latino-Americanos

CEJIL Centro pela Justiça e Direito Internacional

CGJ Corregedoria Geral de Justiça

CID Classificação Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde

CIDH Comissão Interamericana de Direitos Humanos

CLADEM Comitê da América Latina e Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher

CNDM Conselho Nacional dos Direitos da Mulher

CNJ Conselho Nacional de Justiça

CP Código Penal

CPB Código Penal Brasileiro

DDM Delegacia de Atendimento à Mulher

DEAM Delegacia de Atendimento à Mulher

DSTs Doenças Sexualmente Transmissíveis

E.I.A.L. Estudios Interdisciplinarios de América Latina y El Caribe

FPA Fundação Perseu Abramo

FUNDEB Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de

Valorização dos Profissionais da Educação

FUNDEF Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de

Valorização do Magistério

HCTPS Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico em Salvador

IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

JESCRIMs Juizados Especiais Criminais

LER lesão por esforço repetitivo

MNDH Movimento Nacional dos Direitos Humanos

MP Ministério Público

NAM Núcleo de Atendimento à Mulher

NEGIF Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Gênero, Idade e Família

NEPeM Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre a Mulher

OEA Organização dos Estados Americanos

ONG Organização Não Governamental

ONU Organização das Nações Unidas

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PL Projeto de Lei

SEI Superintendência de Estudos Econômicos e Sociais da Bahia

SPM Secretaria Nacional de Políticas Públicas para as Mulheres

UFC Universidade Federal do Ceará

UnB Universidade de Brasília

UNEB Universidade do Estado da Bahia

UNESCO United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ................................................................................................................. 12

1 VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA AS MULHERES: MAPEANDO O

CAMPO DE DISCUSSÃO .......................................................................................... 19

1.1 VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER EM DADOS: OS FEMICÍDIOS NO BRASIL 25

1.2 GÊNERO E CULTURA .............................................................................................. 31

2 OS CASOS DE INHAMBUPE: PERCORRENDO UMA DÉCADA, OS CASOS

DO FIM DO SÉCULO XX (1996-1998) .................................................................... 42

2.1 CARACTERIZANDO O MUNICÍPIO ...................................................................... 42

2.2 CARACTERIZANDO A PESQUISA ........................................................................ 44

2.3 CARACTERIZANDO OS CASOS ............................................................................ 47

2.4 CASO I: “MULHER RUIM TEM QUE MORRER .................................................... 48

2.4.1 Constituição do Inquérito, Depoimento das Testemunhas e Réu ....................... 48

2.4.2 Ministério Público, Produção da Denúncia, Instauração do Processo e Análise

do Juiz ....................................................................................................................... 50

2.4.3 Análise dos Discursos e Falhas do Processo .......................................................... 54

2.5 CASO 2: “INSPIRAÇÃO PRÓPRIA PARA MATAR” ............................................. 57

2.5.1 Constituição do Inquérito, Depoimentos das Testemunhas e Réu ...................... 58

2.5.2 Ministério Público, Produção da Denúncia, Instauração do Processo e Análise

do Juiz ....................................................................................................................... 59

2.5.3 Análise dos Discursos e Falhas do Processo .......................................................... 62

3 OS CASOS DE INHAMBUPE: PERCORRENDO UMA DÉCADA, OS CASOS

DO INÍCIO DO SÉCULO XXI (2002) ....................................................................... 64

3.1 CASO 3: “É ASSIM QUE VOCÊ DIZ QUE NÃO SAI DE CASA!” ........................ 65

3.1.1 Constituição do Inquérito, Depoimentos das Testemunhas e Réu ...................... 65

3.1.2 Ministério Público, Produção da Denúncia, Instauração do Processo e Análise

do Juiz ....................................................................................................................... 67

3.1.3 Análise dos Discursos e Falhas do Processo .......................................................... 73

3.2 “DEVERIA TER MATADO OS DOIS” ..................................................................... 77

3.2.1 Constituição do Inquérito, Depoimentos das Testemunhas e Réu ...................... 77

3.2.2 Ministério Público, Produção da Denúncia, Instauração do Processo e Análise

do Juiz ....................................................................................................................... 79

3.2.3 Análise dos Discursos e Falhas do Processo .......................................................... 82

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4 CRIMES, DISCURSO E CULTURA ........................................................................ 84

4.1 AS REAÇÕES EM TORNO DO ASSASSINATO DE MULHERES: CRIAÇÃO

DE POLÍTICAS PÚBLICAS ...................................................................................... 91

CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................ 98

REFERÊNCIAS ............................................................................................................... 100

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INTRODUÇÃO

O que leva um homem a assassinar sua companheira? A sociedade contribui

culturalmente para esta prática? O que motiva ou caracteriza um crime passional? De que

forma o discurso jurídico se apresenta diante desta problemática? Estas são questões

profundamente complexas que motivaram a construção desta pesquisa. No entanto, ao longo

deste árduo trajeto, foi possível perceber que, embora a pesquisa se constitua de um conjunto

de informações de um universo restrito (a cidade de Inhambupe), ela faz parte de uma

realidade global: é apenas uma peça de um grande quebra-cabeça.

A vontade de trabalhar com o tema crime passional surgiu em 2005, ao realizar

uma pesquisa para o Curso de Especialização em História Política, desenvolvido pelo

Programa de Pós Graduação da Universidade do Estado da Bahia (UNEB). Na ocasião,

analisei processos ocorridos na cidade de Esplanada, Bahia, de 1984 a 1997, todos contra

mulheres. Este estudo trazia uma abordagem mais sucinta e estava ligado à história da mulher.

Neste trabalho, o assassinato de mulheres será discutido na perspectiva da crítica

cultural analisando, com mais profundidade, a representação cultural do papel da mulher e sua

utilização nos discursos processuais proferidos pelos operadores do direito, testemunhas e

acusados, tendo como foco a cidade de Inhambupe, uma cidade de pequeno porte do Litoral

Norte da Bahia, entre os anos 1996-2006. Enfocando o período de uma década como o

entremeado de dois séculos, o fim do século XX e o início do século XXI, busca-se observar o

que converge e o que diverge nos processos, demarcando os possíveis avanços e/ou

retrocessos, ao longo do tempo, em torno da violência doméstica contra a mulher,

especificadamente, os ditos crimes passionais.

O leitor pode estar se perguntando, neste exato momento: mas, porque

Inhambupe? A escolha desta cidade se deu pela necessidade de estudos mais regionais sobre o

tema, haja vista a extensa territorialidade do país e o fato de as pesquisas que contemplam esta

problemática serem realizadas nos grandes centros urbanos e em algumas capitais, em sua

grande maioria, capitais da região Centro Sul. No entanto, não poderia escamotear o fato de

que, durante minha adolescência, vi, em Inhambupe, várias mulheres apanharem de seus

maridos, ficava sabendo de assassinatos e nestas situações os vizinhos ou observadores

curiosos sempre diziam: “Em briga de marido e mulher não se mete a colher”.

Os julgamentos de assassinatos cometidos contra cônjuges, os chamados “crimes

passionais”, são distintos daqueles referentes aos demais crimes contra a vida, pois,

historicamente, sempre houve uma condescendência generalizada em relação aos criminosos,

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sejam eles homens ou mulheres, já que as mulheres também matam, porém, em número

infinitamente menor. O que se julgava com muito mais veemência eram as condutas sociais

da vítima e do acusado1.

Nos casos analisados na atual pesquisa, a pergunta mais recorrente dos advogados

de defesa dos acusados às testemunhas era sobre a conduta moral da vítima, em suma, se esta

traía o marido, se “era dada a amantes”, se bebia, como se portava no bairro, se era motivo de

vergonha para seu cônjuge, se cumpria bem “seu papel de esposa”, ou seja, estes advogados

buscavam levantar a ideia de que o marido matou por que estava com o seu “coração doente”,

afligido por uma esposa infiel, um discurso patriarcal respaldado em princípios de conduta

moral. A defesa manipula estereótipos sexuais, pois sabe que eles poderão ser aceitos pelo

júri, mas, mesmo nos casos em que não há júri, os depoimentos das testemunhas estão

carregados de conceitos determinados culturalmente sobre o que faz parte do comportamento

de homens e mulheres. Trata-se, aqui, de manipulações de formações discursivas dominantes.

Quem compõe o aparato judicial é a própria sociedade, assim, o processo é o

reflexo direto da visão que esta sociedade tem dos homens e das mulheres; além disto, a

permanência de um Código Penal de 72 anos reforça uma visão ideológica “tradicional” que

reluta em mudar.

A pesquisa é sempre um grande desafio e o que demarca a agora empreendida é a

busca em trabalhar com femicídios, ocorridos em uma cidade pequena do interior do

Nordeste, cometidos por companheiros atuais ou ex-companheiros das vítimas, na tentativa de

observar o que constitui a trajetória dos crimes observados.

De onde vem o termo femicídio? O conceito de femicídio foi utilizado, pela

primeira vez, por Diana Russel, em 1976, em Bruxelas, para caracterizar o assassinato de

mulheres pelo fato de serem mulheres. Alguns países possuem legislação específica em

relação a este fenômeno, como El Salvador, Costa Rica, Guatemala, Chile, Peru, México,

Nicarágua e Argentina. (MOTA, 2012). É imprescindível ressaltar que este é ainda um termo

em construção enquanto marco jurídico que aponta o assassinato de mulheres por homens

com quem a vítima mantinha algum relacionamento de casal, mas não abarca outros

1 As assassinas mulheres que conseguiam convencer a defesa de que eram “boas donas de casa”, que

sempre apanhavam e eram exploradas pelos maridos, os quais não trabalhavam e bebiam,

geralmente eram absolvidas ou tinham a pena abrandada. Também os assassinos que convenciam a

defesa da infidelidade e da não adequação da companheira aos “padrões sociais” eram absolvidos

ou tinham sua pena abrandada, uma tendência muito forte entre os anos 50 e 70. Nos casos dos

assassinos, era comumente utilizada a tese da “legítima defesa da honra”, criação argumentativa de

advogados de defesa para fins de absolvição, já que o nosso Código Penal fala apenas em “legítima

defesa corporal” em situação de atentado contra a vida. Sobre o assunto ver Corrêa (1983).

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assassinatos de mulheres dentro e fora do âmbito doméstico. Os países citados especificam o

assassinato de mulheres quando este é cometido por cônjuge como femicídio íntimo.

Sobre o assassinato de mulheres e a força política do termo femicídio, a líder do

Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Gênero, Idade e Família (NEGIF) da Universidade

Federal do Ceará (UFC), observa:

O marco jurídico penal de cada sociedade deve responder a esse tipo de

crime resultante de seu próprio contexto sociocultural e puni-lo de modo

correspondente com a sua gravidade e com a sua perspectiva de direitos

humanos das mulheres, de democracia e de justiça de gênero. O referencial

legal que fundamenta essas tipificações do feminicídio é a Convenção de

Belém do Pará de 1994, ou seja, a Convenção Interamericana para Prevenir,

Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher. O feminicídio se difere do

homicídio por se tratar de um crime cultural, motivado por discriminação

de gênero. (MOTA, 2012, grifo nosso).

De acordo com Antony, em publicação que discute a importância da construção

do conceito de femicídio e sua tipificação penal, patrocinada pelo Comitê da América Latina e

Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher (CLADEM):

Não podemos deixar os homicídios de mulheres como um homicídio mais no

marco da violência social, pois corremos o perigo de banalizá-lo e dar passo

a percepções tais como „a morte de Edna foi um crime passional produto dos

ciúmes‟ ou „o homicida atuou levado por uma paixão incontrolável‟ como

comumente o visibilizam os meios de comunicação. Faz-se necessário

erradicar o termo „delito passional‟ por ser um conceito misógino, posto que

esconde todo o sistema de dominação patriarcal e, portanto, busca seguir

mantendo as mulheres subordinadas. Visibilizar o femicídio – a par de seu

valor simbólico ou de sua função promocional – para poder conhecer a real

magnitude desta conduta ilícita, contribuiria a abrir os espaços aos

homicídios de mulheres não só por parte de seus companheiros ou ex-

companheiros, mas também aos homicídios de mulheres que exercem a

prostituição, ou são assassinadas depois de terem sido estupradas, ou vítimas

de outras condutas de violência sexual. (ANTONY, 2012, p. 12-13).

O que os pesquisadores desta seara propõem é não só a utilização da terminologia,

demarcando a condição desigual da mulher materializada nos assassinatos, mas sua

tipificação penal no sentido de viabilizar políticas públicas para prevenir os femicídios. Neste

contexto, analisar o discurso processual é buscar esvaziar o signo: representa uma caixa de

ferramentas teórico-metodológica para compreender e desconstruir a máquina sexista

engendrada pelas diversas instituições sociais: igrejas, mídia, judiciário, escola, enfim, o

Estado.

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O método aplicado ao trabalho de pesquisa foi o qualitativo, configurado pela

seleção e análise dos processos-crimes em suas diferentes fases, buscando recorrer a

expressões, palavras-chaves, linguagens processuais e jurídicas ou informais.

A análise proposta foi sistematizada da seguinte forma: a) visita à delegacia e ao

Fórum da cidade para a seleção documental; b) leitura, estudo, transcrição e interpretação dos

discursos de advogados, promotores, acusados e testemunhas contidos nos processos,

enquanto crítica cultural das tensões entre os gêneros; c) coleta dos índices socioeconômicos

da cidade, nas Secretarias de Educação e Serviço Social, para posterior interpretação e

confronto com os resultados dos autos; d) revisão teórica de publicações que discutem a

problemática; e) indicação de possíveis avanços da condição feminina na pós-modernidade.

Durante a pesquisa foram encontrados quatro processos de assassinato de

mulheres por companheiros, namorados ou ex-companheiros/namorados, de 1996 a 2006. Os

autos apresentavam vários caminhos, demandas e resultados, desde a instauração do inquérito,

apurado na Delegacia à época do fato, perpassando pela autoria do processo por parte do

Ministério Público (MP) e a indicação de advogados de defesa até o julgamento pelo tribunal

do júri e a sanção da pena pelo juiz.

Analisar a representação cultural do que é o ser mulher subsidiador de um papel

social e o que se espera deste como também as consequências da transgressão desta normativa

é o foco central deste trabalho, ressaltando que o processo judiciário se configura como

substancial fonte de pesquisa.

Os papéis sociais atribuídos a homens e mulheres são ideologicamente marcados e

historicamente construídos, atravessados pela cultura, repletos de símbolos e relações de

poder, como nos lembra Beauvoir (1999, p. 9) em O segundo sexo: “Ninguém nasce mulher

torna-se mulher”. Nesta abordagem, as diferenças de gênero e suas consequentes tensões são

culturais e, embora os papéis sociais de homens e mulheres variem de uma sociedade para

outra, não se encontra nas sociedades modernas lugar em que a mulher exerça um papel

dominante. (BOURDIEU, 2002).

Falar sobre cultura não é uma tarefa simples e, ao longo dos anos, tem suscitado

muitos debates, devido a sua característica altamente polissêmica e interdisciplinar. Assim, ao

abordar o tema, se faz necessário delimitar a dimensão da cultura à qual se está referindo.

O conceito de cultura que se busca delimitar aqui está voltado para a antropologia

cultural e social (interpretativa), ou seja, cultura como construção de representações

simbólicas interpretáveis. Esta concepção remete a Geertz (1989), que propõe a metodologia

da descrição densa na etnografia. Para o antropólogo, a cultura é um conjunto semiótico de

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teias de significações que o homem cria para interpretar sua existência complexa. Assim,

concebe a atividade do antropólogo como aquele que lê e interpreta a cultura como texto.

Na análise de um discurso processual, observa-se que a cultura está ali, cravada no

texto, atravessada nele, pois, todo o ritual jurídico é descritivo e, não se pode esquecer, o

processo representa o mundo vivido pelas partes que compõem a lide ou conflito. Nas

centenas de páginas construídas pelo discurso forense, ou português jurídico, ressoam as

relações de poder. Não à toa, existe um antigo brocado jurídico que diz: “o que está nos autos

está no mundo”. Logo, analisar o discurso da peça processual é ler a cultura como texto.

Ler a cultura como texto é uma atividade que surge como espaço na Antropologia

em contraposição ao discurso cientificista da ordem e, assim, os elementos indivíduo,

subjetividade e história recuperam suas características híbridas e dinâmicas nas análises

culturais, desvencilhando-se das correntes naturalistas que os aprisionavam. Como define

Cardoso de Oliveira (1989, p. 97): “esses três elementos, assim reformulados, passam a atuar

como fatores de desordem daquela antropologia que os interpretativistas tendem a chamar de

„antropologia tradicional‟, sustentada pelos paradigmas da ordem”.

Existe, no paradigma hermenêutico, uma característica que o assemelha e interliga

aos estudos culturais: a necessidade embrionária da desordem como aliada e não como

inimiga das análises, uma opção que representa o avançar das perspectivas de estudo dos

objetos possibilitando outras formas de perceber a cultura e suas relações.

A Antropologia Interpretativa e os Estudos Culturais rompem com a tradição e

apresentam outras formas de estudar os fenômenos socioculturais as culturas e suas

manifestações simbólicas buscando o estreitamento de suas análises, entre si e com outras

disciplinas das Ciências Humanas a exemplo da História e da Psicanálise, como uma forma de

vizinhança e auxílio mútuo que representa ganhos para todos os lados, sem domesticações,

subterfúgios ou ocultações dos elementos que nelas se imbricam. A Análise de Discurso na

perspectiva francesa vai explicar como ocorre este processo.

Atendo-se aos Estudos Culturais, é válido ressaltar que este nasce como um

empreendimento marginal, um movimento político encabeçado por um grupo de intelectuais

britânicos, a exemplo de Hoggart, Thompson e Williams, na década de 1960, os quais,

descontentes com os rumos do marxismo ortodoxo, desenvolveram um projeto que se inicia

com aulas para adultos trabalhadores e alcança grandes dimensões, ao proporcionar a

formação da Nova Esquerda, que traz para o campo das análises marxistas temas não

abordados enfaticamente como as questões de raça, a cultura popular e a crítica em relação à

cultura de massa, provocando um descentramento nas formas de conceber e analisar a cultura

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e, assim, a cultura popular, os movimentos feministas e raciais passaram a ter um espaço de

discussão e encontraram representatividade.

Temas como o modo de vida da classe trabalhadora fora das fábricas ou das

lavouras, o patriarcalismo (com o adentramento do movimento feminista), identidade cultural,

preconceito racial, circularidade e diáspora cultural, entre outros, são paulatinamente

discutidos e se transformam em produção acadêmica, inicialmente na Universidade de

Birmingham, sob a orientação de Richard Hoggart e Stuart Hall, já por volta de 1970. Este

movimento representa um olhar marginal que foge do centro e produz outras formas de

resistência e crítica baseadas na inversão da ordem do que tinha sido discutido e analisado até

o momento, no que concerne à cultura. De acordo com Cevasco (2003, p. 174): “a linha

d‟água que diferencia os estudos culturais é seu projeto político, seu impulso claro de fazer

ligações com a realidade social e diferença na prática cultural”.

A Nova Esquerda criticava, fervorosamente, o que intitulava como “crise da

modernidade”, o esgotamento ou superação da razão iluminista, afirmando e oportunizando o

desordenamento dos signos de dominação que representavam a sociedade hierarquizada, ao

conclamar o princípio da diversidade. Isto provocou o questionamento das “verdades” que

sempre estiveram presentes nas relações sociais, construídas e alimentadas historicamente.

Destarte, para o abalo das crenças que estruturavam as sociedades de forma hierárquica, seria

necessário um aparato teórico que se dedicasse a compreender a humanidade a partir da

análise das diferenças.

Mas o que seria esse conclamar a diversidade? Seria dar campo ao jogo das

diferenças, a partir da abrangência de características socioculturais que os indivíduos

apresentam: raça, etnia, gênero, sexualidade, estilo de vida, origem, idade. A proposta era

buscar outras cartografias, um processo de flexibilização e hibridação das fronteiras de

análises culturais.

É imprescindível ressaltar que boa parte da tendência discursiva que caracteriza a

diversidade e os movimentos culturais como objeto de estudo, a resistência que marca uma

política de democracia e crítica cultural, as produções infindáveis que abarcam a

contemporaneidade principiaram nos Estudos Culturais, o que influenciou diretamente os

estudiosos sobre a cultura no Brasil.

Os capítulos desta dissertação estão divididos da seguinte forma:

No primeiro capítulo, traça-se um panorama sobre a violência contra a mulher,

mapeando o campo de discussão sobre o tema e as diferentes linhas de pesquisa indicando

possíveis abordagens da problemática.

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Nos capítulos seguintes, o intento é analisar mais detalhadamente os discursos

proferidos nos processos selecionados, desde o inquérito policial, passando pela instauração

do processo até o julgamento, com o objetivo de comparar as falas de cada etapa, analisando,

assim, suas representações e repercussões.

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1 VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA AS MULHERES: MAPEANDO O

CAMPO DE DISCUSSÃO

A violência de gênero contra a mulher tem como base uma relação de

dominação/exploração entre homens e mulheres, construída histórica e culturalmente, e

traduzida em desigualdades econômicas e políticas. O fato preocupante é que, além de um

problema de saúde pública, este é também um problema de Estado, haja vista o número

alarmante de mulheres que sofrem algum tipo de violência doméstica a cada segundo e, em

última instância, os assassinatos. Como alerta Soares.

Se o preconceito misógino é um traço cultural marcante na sociedade

brasileira, a discriminação e a violência não poderiam deixar de estar

presente no cotidiano das mulheres. A violência perpetrada contra os

diferentes segmentos de mulheres brasileiras é um exemplo disso. Essas

violências revelam a existência de mecanismos de legitimação da sujeição

das mulheres aos homens, sendo o uso do poder e da força sua principal

característica como ação, e o descaso e a naturalização por parte do Estado e

dos poderes públicos, em geral, como omissão. (2004, p. 177).

A violência contra as mulheres não ocorre esporadicamente. De acordo com a

pesquisa realizada pela Fundação Perseu Abramo, em 2007, uma em cada cinco mulheres

brasileiras, isto é, 19% delas, sofreu algum tipo de violência por parte de algum homem. A

projeção da taxa de espancamento é de 11%: dentre 61,5 milhões de investigadas, este

percentual representa 6,8 milhões de mulheres; dentre aquelas que admitiram ter sido

espancadas, 31% declararam que a última vez em que isso ocorreu tinha sido no período

relativo aos doze meses anteriores.

A pesquisa também demonstrou a frequência dessas ocorrências: a cada doze

segundos, há ameaça de espancamento de uma mulher (2.433.970 por ano; 202.831 por mês;

6.761 por dia; 282 por hora; 5 por minuto); a cada quinze segundos, uma mulher é privada

de sua liberdade (1.936.116 por hora; 161.343 por mês; 5.378 por dia; 224 por hora; 4 por

minuto); a cada vinte segundos, ocorre ameaça à integridade física de uma mulher por arma

de fogo (1.327.622 por ano; 110.635 por mês; 3.6883 por dia; 154 por hora; 3 por minuto); a

cada sete segundos, uma mulher é agredida com tapas e empurrões (4.425.408 por ano;

368.784 por mês; 12.293 por dia; 512 por hora; 9 por minuto); e, a cada 15 segundos, uma

mulher sofre espancamento (2.286,461 por ano; 190.538 por mês; 6.351 por dia; 265 por

hora; 4 por minuto). (FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO, 2007).

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Existem algumas correntes de discussão que se debruçam sobre os estudos da

violência contra a mulher focando a dominação masculina, o patriarcado e a perspectiva

relacional das quais serão discutidas as principais abordagens para tornar possível delinear

alguns questionamentos sobre a temática.

A noção de dominação masculina analisa a violência contra a mulher como

expressão de dominação do homem sobre a mulher, um pressuposto teórico trabalhado por

autoras como Chauí, que discutem as diferenças hierárquicas entre homens e mulheres,

tomando como base a mulher definida na condição de “objeto” e não de “sujeito”, como

aponta a seguinte passagem do seu conhecido artigo, “Participando do debate sobre mulher e

violência”.

A violência contra a mulher é expressão de uma „normalidade‟ social que

converte diferenças em relações hierárquicas com fins de dominação,

exploração e opressão. É também a ação que trata o sujeito como coisa,

caracterizando-o pela inércia, pela passividade e pelo silêncio. (1985, p. 35).

A concepção de vitimização proposta por Chauí (1985) nesse artigo e, também,

por Azevedo (1985), em Mulheres espancadas: a violência denunciada, é pouco

problematizada pelos trabalhos iniciais da década de 80, que objetivavam tornar visíveis as

denúncias de violência através da identificação do perfil das queixas, das “vítimas” e dos

agressores. Vale observar que as autoras colocam a mulher em uma condição de

vítima/cúmplice do ciclo de violência, o que é questionado por Saffioti (2004), em Gênero,

patriarcado e violência: Como é possível haver cumplicidade em uma relação de

desigualdade hierárquica? Tendo em vista que cumplicidade pressupõe igualdade, parceria,

confiança e apoio nas mais diversas decisões a serem tomadas, a conotação geralmente

atribuída a esta atitude é positiva porque demonstra harmonia, companheirismo e

entendimento o que se apresenta aqui como uma contradição.

Para Saffioti que, por meio do paradigma patriarcal, representa a segunda corrente

de discussão que analisa a violência contra a mulher numa perspectiva

feminista/capitalista/racial: “o poder é macho, branco e de preferência heterossexual” (2004,

p. 31). A correlação que a autora estabelece entre sexismo e racismo como gênese explicativa

da diferenciação entre homens e mulheres e da imposição do poder, é muito contributiva,

porque ajuda a compreender melhor a formação das masculinidades e feminilidades em nosso

país de origem escravocrata e de fortes influências religiosas (principalmente cristã), já que a

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autora aponta, também, que as religiões estão perpassadas por uma estrutura de poder

patriarcal.

Sexismo e racismo são irmãos gêmeos. Na gênese do escravismo constava

um tratamento distinto dispensado a homens e a mulheres. Eis porque o

racismo, base do escravismo, independentemente das características físicas

ou culturais do povo conquistado, nasceu no mesmo momento histórico em

que nasceu o sexismo. Quando um povo conquistava outro, submetia-o a

seus desejos e suas necessidades. Os homens eram temidos, em virtude de

representarem grande risco de revolta, já que dispunham em média, de mais

força física que as mulheres, sendo, ainda treinados para enfrentar perigos.

Assim, eram sumariamente eliminados, assassinados. As mulheres eram

preservadas, pois serviam a três propósitos: constituíam força de trabalho,

importante fator de produção em sociedades sem tecnologia ou possuidoras

de tecnologias rudimentares; eram reprodutoras desta força de trabalho,

assegurando a continuidade da produção e da própria sociedade; prestavam

(cediam) serviços sexuais aos homes do povo vitorioso. (SAFFIOTTI, 2004,

p. 124).

Apesar do trabalho de Saffioti não compartilhar a visão de Chauí (1985), por

demonstrar que, em uma situação de dominação, não há cumplicidade e sim imposição pela

força, leia-se poder, e, embora ambas desenvolvam conceitos importantes acerca da violência

contra as mulheres, estes ainda se apresentam pouco precisos e suas pesquisas não são bem

delimitadas, por não fazerem uma nítida distinção entre os termos “violência contra as

mulheres”, “violência doméstica” e “violência familiar”, que acabam sendo utilizados como

sinônimos. Os relacionamentos violentos são analisados nestas pesquisas em um mesmo

grupo, sem distinção socioeconômica, étnica, etária, ou por número de filhos, dentre outros

fatores de indispensável valor analítico (DEBERT; GREGORI, 2008). Além disto, as autoras

apresentam as relações homem/mulher em uma conotação dualista e fixa, revigorando, em um

ciclo sem fim, o cenário algoz versus vítima e perpetuando um contexto viciado.

No decorrer da década de 90, outras interpretações são desenvolvidas e os estudos

sobre a dominação masculina e patriarcal são revisados com a introdução de outras questões,

como a discussão de gênero em uma perspectiva da relativização dominação/vitimização: é

neste cenário que se localiza a denominada corrente relacional, discutida por feministas como

Santos e Izumino (2005) e Gregori (1993), que analisam a violência como uma forma de

comunicação, um jogo relacional entre homens e mulheres.

É importante lembrar o impacto gerado por essa nova percepção analítica, quando,

em relatório sobre violência contra as mulheres, preparado para ser apresentado, pelo governo

brasileiro, na IV Conferência Mundial da Mulher realizada pela Organização das Nações

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Unidas (ONU), em Beijing, no ano de 1995, a antropóloga Miriam Grossi (1994) utilizou a

perspectiva de Gregori (1993) sobre “cumplicidade” suscitando críticas por parte de algumas

feministas do movimento de mulheres e da Academia cujas análises apresentavam novos

olhares sobre esta seara, no sentido de problematizar o modelo dominação

masculina/vitimização feminina para que se investigue o contexto em que ocorre a violência.

As pesquisas sobre o tema vêm demonstrando que a mulher não é apenas vítima, no sentido

de que, ao denunciar a violência conjugal, ela tanto resiste quanto perpetua os papéis sociais

que, muitas vezes, a colocam em posição de vítima.

Mesmo com essas importantes contribuições, que buscam dar uma nova

conotação para a violência contra a mulher não mais apenas como vítima, mas, também, como

aquela que denuncia, negocia e/ou também busca punição, as análises de Gregori (1993)

ficam incompletas, pois o fenômeno da violência não pode ser discutido desgarrado da

relação de poder, que ocorre ao nível do inconsciente. A autora, ao afastar de sua análise

qualquer referência ao poder, assume a igualdade social entre os parceiros, relegando a

questão primordial, “o poder e suas nuances”, à qual Saffioti (2004) faz correlação mais

detalhada.

Observe-se, assim, que, no sentido de preencher essas lacunas interpretativas,

ainda devem ser construídas muitas pesquisas que permitam discutir com mais propriedade o

tema e, como o território brasileiro é muito vasto e com características muito diversificadas,

isto pressupõe pesquisas mais direcionadas às regiões periféricas e interioranas o que

começou a ser realizado há pouquíssimo tempo.

A principal referência para os estudos sobre gênero no Brasil advém do trabalho

de Scott, historiadora e feminista norte-americana, principalmente do seu artigo publicado em

1988, Gender: a useful category of historical analysis, no qual formula que, como “um

elemento constitutivo de relações sociais fundadas sobre as diferenças percebidas entre os

sexos, o gênero é um primeiro modo de dar significado às relações de poder” (1990, p. 14).

Com o aprofundamento dos estudos de gênero, a perspectiva relacional torna mais

diversificada a discussão, visto que, também com base nos preceitos de Foucault, trabalhos

publicados introduzem o conceito de poder nas relações de gênero, como os de Butler (2003),

Santos e Izumino (2005), Saffioti e Almeida (1995) e Saffioti (2004), que passam a analisar o

poder nas relações de gênero numa concepção mais fluida entre masculinidades e

feminilidades, sem fixá-las estaticamente, cruzando nas pesquisas os conceitos de

sexualidade, família, gênero, afetividade, educação e crítica cultural. Isto significa, para

algumas, a exemplo de Santos e Izumino e Saffioti, não abandonar nem rejeitar as

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contribuições advindas da análise do patriarcado, haja vista a manutenção de muitas das suas

análises na contemporaneidade, porém abarcar outras visões, pois a sociedade não permanece

imutável, os fatores econômicos têm muita influência e o mundo do direito se vê instigado a

atender às exigências dos movimentos sociais.

Santos e Izumino, em artigo publicado em 2005, na revista Estudios

Interdisciplinarios de América Latina y El Caribe (E.I.A.L.), da Universidade de Tel Aviv,

intitulado “Violência contra as mulheres e violência de gênero: notas sobre estudos feministas

no Brasil”, ao contrário de Saffioti (2004), clamam pelo abandono da concepção de

patriarcado, como demonstra este trecho:

O paradigma do patriarcado deve ser abandonado, porque é insuficiente para

explicar as mudanças dos papéis sociais e do comportamento de muitas

mulheres diante da violência. Como mostram as pesquisas sobre delegacias

da mulher no Estado de São Paulo, tem crescido o número de denúncias

mesmo que o número de delegacias não tenha aumentado. Por um lado, esse

aumento sugere que as delegacias se tornaram um lugar de referência para as

mulheres em situação de violência, por outro lado, evidencia a capacidade

que estas mulheres possuem para reagir à violência sofrida. Em segundo

lugar, quando se define violência de gênero como uma relação de dominação

patriarcal, o poder das partes segue sendo concebido como algo estático.

Adotando o conceito de poder de Foucault e o conceito de gênero de Scott,

[...] pensar as relações de gênero como uma das formas de circulação de

poder na sociedade significa alterar os termos em que se baseiam as relações

entre homens e mulheres nas sociedades; implica em considerar essas

relações como dinâmicas de poder e não mais como resultado da dominação

de homens sobre mulheres, estática, polarizada. (SANTOS; IZUMINO,

2005, p. 13).

Embora o trabalho de Santos e Izumino (2005) atente para outras análises sobre a

violência contra a mulher e as relações de poder para além da dominação patriarcal, no

entanto, quando elas categorizam como um grito de revolta o abandono radical desta linha de

discussão ficam dúvidas e interrogações: como explicar o crescente aumento de casos de

violência contra a mulher, sem frisar os assassinatos? e, mesmo quando a lei se demonstra

condenatória, porque os discursos processuais caracterizados por papéis sociais construídos

historicamente e atravessados pela cultura continuam ainda relutantes? Um exemplo disto são

os discursos proferidos pelos operadores do direito, réus e testemunhas, que serão discutidos

oportunamente neste trabalho.

Scott também discorre sobre a construção cultural de masculinidades e

feminilidades enquanto papéis sociais normativos.

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Estas diferenças se fundam em símbolos culturalmente disponíveis que

evocam representações simbólicas e mitos. Além disso, „os conceitos

normativos que põem em evidência as interpretações do sentido dos

símbolos, que se esforçam para limitar e conter suas possibilidades

metafóricas‟, expressos em doutrinas religiosas, educativas, políticas ou

jurídicas e que opõem de maneira binária e inequívoca as concepções de

masculino e feminino. (SCOTT apud TORRÃO FILHO, 2005, p. 134-135).

Nas suas investigações sobre as relações de gênero, Scott nos instiga ao não

abandono da análise dos papéis sexuais historicamente construídos, por serem eles fortemente

embasados em uma cultura tradicional, androcêntrica e misógina que delineou nossa

sociedade, mas sim avançar a partir deles. Para ela, o feminino se apresenta como uma

“eterna” ameaça ao homem, sendo que cada época define a medida do risco, pois, “a idéia de

masculinidade repousa sobre a repressão necessária de aspectos femininos – do potencial

bissexual do sujeito – e introduz o conflito na oposição do masculino e do feminino” (1990, p.

12).

Para Scott, a nossa sociedade rechaça os homossexuais, em função de sua forte

identificação com o feminino, uma situação que só será superada através de um processo de

construção de liberdade e democracia, uma questão também abordada por Nolasco em A

desconstrução do masculino: uma crítica à análise de gênero:

Invariavelmente, questiona-se a masculinidade daquele que é penetrado, oral

ou analmente, por situar-se na esfera do feminino. O homem penetrado é

homem desvalorizado, é homem sem poder. Na sodomia articulam-se

igualmente as forças e jogos de prazer e poder da ideologia masculina.

(1995, p. 80).

Esses(as) autores(as) colocam a homofobia no mesmo patamar da misoginia e

descortinam algumas importantes observações sobre as temáticas. Segundo Torrão Filho

(2005, p. 146): “Mesmo entre os homossexuais, a masculinidade e a virilidade são

valorizados em detrimento dos maneirismos femininos, constituindo-se como um verdadeiro

valor agregado na economia da conquista sexual”. Assim as significações de gênero e poder

são construídos reciprocamente e são elas que identificam as mulheres e o que a elas é

“reservado” socialmente.

As discussões sobre a violência de gênero contra as mulheres devem contemplar

uma postura relativista que abarque os pressupostos positivos de cada perspectiva e, a partir

disto, sobre o crivo de uma análise crítica e ética, coloque em questão os construtos

socioculturais das masculinidades e das feminilidades enquanto discursos identitários

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marcados nos corpos e fortificados por diversas instâncias sociais perpetuadoras de

preconceitos. Como nos alerta Butler (2003), o corpo é performativo, assim, vitimizar as

mulheres, numa concepção entre bom e mau, gato e rato, no jogo das relações, não tem

diminuído os índices de violência ou contribuído para uma análise mais proveitosa.

1.1 VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER EM DADOS: OS FEMICÍDIOS NO

BRASIL

Os dados sobre os femicídios devem ser minuciosamente observados, devido a

sua alta complexidade, incidência, e comparados com os de outros países. No Brasil, as

pesquisas remontam apenas às capitais das regiões do país e, de acordo com um mapa

realizado por amostragem, Souza, Ramos e Carvalho (2006 apud MACHADO, 2010, p. 52),

observa-se que a taxa de assassinato de mulheres por 100 mil habitantes, varia, nas capitais

brasileiras da Região Norte, entre 3,1 (Belém) e 7,3 (Porto Velho); da Região Nordeste, entre

1,8 (João Pessoa) e 7,0 (Recife); da região Sudeste, entre 5,3 (Vitória) e 6,9 (Belo Horizonte);

da região Sul, entre 2,1 (Florianópolis) e 4,4 (Curitiba); por fim, da região Centro Oeste, entre

3,9 (Campo Grande) e 8,4 (Cuiabá).

Com base nesses dados, a taxa de femicídios nas capitais brasileiras que varia de

1,8 a 8,4 por 100 mil habitantes se iguala ou supera, sozinha, a taxa total de homicídios e

femicídios, ou seja, incluindo assassinato de homens e mulheres, dos países europeus

ocidentais (de 3 a 4), dos países da América do Norte (de 2 a 6) e da Austrália (de 2 a 3),

segundo MACHADO (2010, p. 53), um fator alarmante que requer maiores aprofundamentos

e problematizações.

A violência interpessoal, a mais encontrada nas relações de gênero, está alicerçada

sobre duas bases diferenciadas: Conforme afirma Machado:

As relações violentas entre os homens se dão em torno do valor do desafio,

da coragem e da defesa da honra, por mulheres e prestígio. Resultam mais

rapidamente em mortes. As relações violentas de homens contra mulheres

têm como foco o controle do poder, dos ciúmes e a defesa da honra. Em

nome do controle, do poder e dos ciúmes, os atos tendem a ser de violência

cotidiana e crônica física, psíquica. Podem e desencadeiam em morte. Mas

quantitativamente, matar também é perder o controle e como o controle deve

ser constante, quantitativamente, espancam-se constantemente mais

mulheres e se matam mais homens entre si. (MACHADO, 2010, p. 57).

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Segundo dados do Movimento Nacional dos Direitos Humanos (MNDH), de

1995/1996, 66,29% dos assassinatos de mulheres são cometidos por esposos, companheiros,

amantes, noivos, namorados ou ex (MACHADO, 2010, p. 58).

A partir do resultado de pesquisas realizadas no Núcleo de Estudos e Pesquisas

sobre a Mulher (NEPeM) da Universidade de Brasília (UnB), ao ouvir agressores e agredidas

junto à Delegacia das Mulheres em Brasília, Machado e Magalhães (1999 apud MACHADO,

2010, p. 59), concluíram:

[...] em relações conjugais violentas, os agressores buscam o sentido de seus

atos violentos no contrato conjugal que julgam ter feito” . Consideram seus

atos como “corretivos”. [...] A violência é, portanto, sempre “disciplinar”.

Eles não se interpelam sobre o porquê de agirem desta ou daquela forma.

Sua interpelação é apenas e somente sobre seus excessos: descontrole,

bebida ou “Eu não sei o que me deu”, resposta dada pela grande maioria dos

acusados.

Nos autos que analisei em Inhambupe, para justificar os crimes, os acusados

alegavam ciúmes, desconfiança da paternidade e também, como na análise de Brasília, o

emblemático enunciado: “Eu não sei o que me deu” ou “Eu estava embriagado”. A violência é

vivenciada como uma “decisão” em nome de um poder e de uma lei que o parceiro homem

encarna de forma legitimada, cultural e historicamente.

No livro Assassinato de mulheres e direitos humanos, a socióloga Blay (2008),

apresenta dados de uma pesquisa realizada na cidade de São Paulo, entre os anos 1991 e 2000,

para a qual analisou e catalogou, em fóruns e delegacias da capital, boletins de ocorrência e

autos processuais de assassinatos de mulheres e seus resultados. Escolhendo alguns casos para

a observação dos resultados jurídicos, ela demonstra que a justiça é extremamente lenta e

burocrática, além de necessitar de aparatos mais sofisticados para a análise técnica pericial

dos crimes, de forma a aumentar o seu potencial produtivo.

Sua pesquisa demonstra que grande parte dos assassinos foram punidos, em

muitos casos, com penas condizentes, do ponto de vista jurídico, enfatizando que suas

observações científicas perfazem um período antes da aprovação e repercussão da Lei Maria

da Penha Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006. Seu trabalho alerta que a separação, um

suposto adultério, a desconfiança sobre a paternidade e/ou uma simples gravidez estão na base

da maioria dos assassinatos analisados, ou seja, são a segunda causa de assassinato de

mulheres em São Paulo.

A obra de Blay (2008) não analisa o perfil dos assassinos ou das vítimas, apenas

relata sucintamente os casos, o que gera muitas dúvidas nos leitores, o que ela atribui à

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precariedade das informações dos boletins de ocorrência, à falta de digitalização dos

processos. Segundo a antropóloga, tudo tem de ser vasculhado à mão, não existe separação

dos crimes nas varas criminais, os assassinatos não são catalogados por faixa etária ou sexo,

assim como as fases processuais não estão informatizadas, uma situação que observei,

também, durante a realização da pesquisa científica que consubstancia esta dissertação.

No entanto, Blay (2008) apenas relata alguns casos sem realizar uma discussão

mais consubstanciada e analítica sobre os assassinatos, sem correlacioná-los com a realidade

do país ou com a cultura: ela apenas faz observações tímidas e esparsas. Segundo ela, na

nossa cultura, a violência física da mulher contra o homem só se dá como reação à agressão

deste, ressaltando que as mulheres não são educadas a desenvolver a força física e sua ação

não tem legitimidade disciplinar: isto acontece apenas na relação com a prole, situação em

que as mulheres tendem a ser mais violentas, pois nesta relação estão exercendo o poder

investido pelo pai para “educar, disciplinar” educação esta travestida de tons sexista e

misógino.

São importantes as observações de Machado (2010) sobre a tentação de afastar as

mulheres dos atos violentos e da posição de sujeito da violência, principalmente nas análises

que se desenvolvem pelo viés das discussões em torno da dominação da mulher que apenas as

vitimizam caricaturando-as como passivas e não violentas.

De acordo com a antropóloga, a diminuta presença das mulheres na qualidade de

acusadas de homicídio é, em grande parte, ilusória, pois, em algumas situações, elas são

violentas, haja vista os casos em que assumem cargos de poder como a chefia de áreas de

tráfico e bandidagens antes controladas por seus companheiros, mas é, também, verdadeira,

no sentido de que a construção simbólica do feminino não as coloca no lugar de parecerem ser

depositárias da lei, o que se consubstancia em uma maior dificuldade da construção não só da

ideia de autonomia feminina enquanto poder à frente, como de posicionar o masculino, enfim

distanciando-as do lugar de centralidade da imposição violenta.

Para Machado (2010), existe uma intrínseca relação entre cultura, gênero e

violência, o que denotam os fenômenos de longa duração que persistem na modernidade

mesmo que travestidos de outras nuances. Assim ela descreve:

[...] as formas modernas de violência se nutrem das formas tradicionais de

longa duração da violência brasileira em torno da ideia de honra, do

desafio entre homens e do controle das mulheres. [...] as modernas e

tradicionais formas de violência no Brasil se articulam e se nutrem entre si

exacerbando a ideia de masculinidade como poder e de valorização da

sociedade violenta. As formas modernas e tradicionais das violências entre

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homens e contra as mulheres se reforçam e se imbricam continuamente. Não

se pode desarticulá-las. A dimensão de gênero vai sendo ressignificada, mas

continua fundante para se entender e se enfrentar as formas e articulações

das violências. O enfrentamento da violência no Brasil não pode se voltar

exclusivamente para o combate à criminalidade organizada, mas deve

também enfrentar as violências relacionais entre gênero e intra gêneros que

vêm de uma longa duração. (MACHADO, 2010, p. 69, grifo da autora).

Grossi também argumentou sobre esta questão, quando apresentou, em 1995, um

trabalho intitulado “Violência contra a mulher”, na Conferência de Beijing, organizada pelas

Nações Unidas. Segundo a pesquisadora, o fato de vivermos em um país e em uma época de

violência generalizada não pode servir como desculpa para desvincular da reflexão as formas

específicas de violência contra a mulher que, muitas vezes, culminam na morte enquanto

última instância de uma escalada de violências.

Para Corrêa (1983), o crime passional tem forte ligação com os valores

tradicionais que interligam masculinidade a honra e, por conseguinte, a comportamentos

violentos, o que serve de sinalização para o fato apontado na pesquisa de Machado (2010, p.

56): “mata-se e morre-se mais no masculino, no feminino, morre-se um pouco menos e mata-

se muito menos”. É interessante observar o ponto de encontro de obras com 27 anos de

diferença de publicação, ou seja: a questão do assassinato de mulheres, mais especificamente,

dos femicidios, continua sendo um problema relevante devido à sua alta incidência. Aponta,

ainda, Corrêa que o Brasil é um país de tradição de violência legitimada culturalmente o que,

de certo modo, contradiz a visão do brasileiro como “homem cordial e pacificador”.

A fundamentação teórica do crime passional apoia-se na tradição de um

patriarcalismo brasileiro onde a honra sempre foi lavada com sangue – não

apenas a honra de maridos traídos, mas também a de pais a quem os filhos

foram desleais, ou coronéis indignados com a traição de seus capangas [...].

Este retrato de uma tradição brasileira de violência legitimada

posteriormente pela justiça tem seu contraponto numa leitura de nossa

história política, como uma sucessão de acordos e tentativas de conciliação e

na descrição do brasileiro como um homem cordial, especialista do „jeitinho

e do deixa pra lá‟, leitura que obrigaria os que aceitam essa hipótese a negar

as evidências cotidianas de uma sociedade da qual a violência é um dos

elementos. Provavelmente as duas versões fazem sentido e não só na história

do Brasil, dependendo do momento e do lugar específico. (CORRÊA, 1983,

p. 19).

De acordo com a Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM), a capital baiana,

Salvador, foi uma das campeãs, no que diz respeito à taxa de femicídios e nas denúncias de

agressão contra a mulher, respectivamente, nos anos de 2010 e 2011. E, em números

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absolutos, a Bahia é o segundo estado no ranking nacional de atendimentos da Central de

Atendimento à Mulher (CAM) 180 , em 2011, com 53.850 mil chamadas registradas

(BRASIL, 2011, p. 17).

Alagoinhas, a cidade mais próxima de Inhambupe que possui uma Delegacia de

Atendimento à Mulher (DEAM), teve registradas, nos seus cinco anos de existência, 5.912

ocorrências policiais em relação a mulheres agredidas, sendo que 645, em 2007, 1059, em

2008; 963, em 2009; 1136, em 2010; 1466, em 2011; e 643, até junho de 2012, números

considerados altos em valores absolutos.

É importante salientar que os femicídios no Brasil ocorrem em todas as camadas

sociais, ou seja, este não é um problema exclusivo de classes mais ou menos abastadas é,

antes, uma questão de valores hierárquicos espalhados pelos territórios, pelas camadas sociais

e pelas diferentes gerações, o que Blay (2008) denomina de manutenção de uma mentalidade

patriarcal.

Ciúme disfarçado em amor, infidelidade, álcool, problemas psicológicos, entre

outros motivos que buscam justificar os comportamentos fatais dos homens que matam, na

verdade, escamoteiam questões mais profundas que é a forma como a cultura cria e reproduz

valores circularmente enquanto campo das realidades vividas, das práticas humanas

simbolizadas, das relações de poder entre si.

A nossa cultura demarca concepções identitárias performatizando masculinidades

versus feminilidades como campos de batalha antagônicos e hierarquizados que são

reproduzidos e perpetuados socialmente. Assim, não basta a mudança na lei, se a mentalidade

continua presa e seduzida por uma ideologia sexista, machista e androcêntrica que se

manifesta através de mensagens nos meios de comunicação: novelas, filmes, seriados,

programas humorísticos, letras de música, piadas, revistas ou propagandas, assim como,

também, no campo da política, da filosofia, da ciência e das leis.

O relacionamento conjugal é uma união que envolve muitos fatores: a trajetória

do indivíduo, suas fantasias, desejos, expectativas, os traumas que constituíram o cenário da

relação, a cultura na qual está constituída. Frequentemente, os delitos de crimes passionais

ocorrem em casais que formam vínculos patológicos que se retroalimentam, em uma

progressiva onda de violência na qual predomina o ódio e o rancor.

A violência de gênero contra as mulheres tem intrínseca relação com a

incapacidade de alguns homens de lidar com a “impotência”, exercendo o domínio violento

quando se sentem contrariados na relação, haja vista que o comportamento socialmente aceito

e estimulado pela cultura, denotado nos homens como masculinidade, é a potência, o falo, o

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esconder os sentimentos, a competitividade e a agressividade. Enfim, estes são

constantemente estimulados a exercer o domínio ativo.

Segundo Torrão Filho (2005, p. 140), “alguns comportamentos são definidos pela

cultura como sendo pertencentes a um ou outro sexo, aos quais o homem e a mulher „devem

recalcar para serem reconhecidos como homem e mulher‟2”. As atividades do lar, por

exemplo, são sempre “empurradas” para as mulheres como atributos inerentes ao seu universo

enquanto o homem se aventura no espaço público. Quantas vezes se observa, em um casal

que, ao chegar em casa após uma jornada de trabalho, a mulher continuar trabalhando na lida

dos afazeres domésticos e dos cuidados com os filhos enquanto o homem vai para o bar com

os amigos. Hoje estes papéis são questionados, porém a mudança é lenta e regada a muitos

confrontos.

Um sistema de divisão sexual de papéis muda lentamente, freqüentemente

por deslizamentos de sentido graduais. E isso não diz respeito apenas às

mulheres; os homens devem aprender a ser dominadores e ativos e as

mulheres a serem submissas; se as mulheres devem ser castas, os homens

devem conhecer os limites nos quais eles podem atentar contra esta

castidade. (AMUSSEM3 apud TORRÃO FILHO, 2005, p. 139).

Os homens sofrem uma pressão sociocultural muito grande, sendo constantemente

incentivados a performatizar comportamentos ditos como masculinos e influenciados, pela

cultura e por sua teia de relações, a agir de acordo com os papéis sociais normatizadores.

Na maioria esmagadora dos femicídios, existem violências anteriores que

circundam o relacionamento conjugal, variando estas de pequenas agressões como trocas

mútuas de xingamentos, empurrões até surras e lesões corporais mais graves, o que levanta

uma interrogação: o que leva uma mulher a não romper tão logo com uma relação agressiva

em potencial? São várias as questões suscitadas nesta seara, como a dependência afetiva e ou

econômica, ciúmes e posse disfarçados de amor e proteção, o medo das ameaças impostas

pelo agressor, o ideal de manutenção da família configurado pela esperança de que o

companheiro pode mudar, o isolamento, a vergonha, a burocracia e o desconhecimento do

aparato judicial, de modo que é necessário levar em conta aspectos sociais, individuais,

familiares e culturais.

2 NOLASCO, Sócrates. A desconstrução do masculino: uma crítica à análise de gênero. In: A

desconstrução do masculino. Rio de Janeiro, Rocco, 1995, p. 17. 3 AMUSSEN, Susan Dwyer. Féminin/Masculin: le genre dans l‟Angleterre de l‟époque moderne.

Annales ESC. Paris, vol. 40, no 2, mar./apr., 1985, p. 271.

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Assim, deve ser observado o impacto da violência de gênero contra as mulheres

para além das estatísticas de sua incidência, no sentido de inscrevê-la na interpretação das

“causas do adoecimento, empobrecimento, desamparo à infância e evasão escolar, enfim,

como obstáculos ao desenvolvimento pessoal e social para milhares de mulheres”

(CAMARGO, 1998).

1.2 GÊNERO E CULTURA

O gênero é uma das relações estruturantes que situa o indivíduo no mundo e

determina, ao longo da sua vida, oportunidades, escolhas, trajetórias,

vivências, lugares, interesses. (LAVINAS, 1997, p. 16).

Foi só com o advento do feminismo que se pôde ver que a culpa sexual da

mulher é uma fantasia infantil e por isso o mundo pode libertar-se dela e

criar uma ética do gozo, a única que pode fazer explodir o patriarcado, o

capitalismo e a opressão. (MURARO, 2000).

Como nos alerta Saffioti (2004, p. 45-58), gênero é um conceito carregado de

significações entendido como a imagem que a sociedade constrói do masculino e do feminino:

não há sociedade sem gênero. Assim, o gênero enquanto categoria histórica e atravessado pela

cultura pode ser concebido em várias instâncias:

[...] como aparelho semiótico (Lauretis, 1987); símbolos culturais

evocadores de representações, conceitos normativos como grade de

interpretação de significados, organizações e instituições sociais, identidade

subjetiva (Scott, 1988); como divisões e atribuições assimétricas de

características e potencialidades (Flax, 1987); como, numa certa instância,

uma gramática sexual, regulando não apenas relações homem-mulher, mas

também relações homem-homem e mulher-mulher (Saffioti, 1992, 1997b;

Saffioti e Almeida, 1995). (SAFFIOTI, 1999, p. 82).

Campo de consenso o gênero é, portanto, a construção histórica, social e cultural

do masculino e do feminino, das visões do que é ser homem e do que é ser mulher em uma

sociedade, recorte epistemológico do qual me aproximo, pois, identificar e delinear esta

construção nos permite compreender, historicamente, as condições subalternas da mulher

como também o poderio masculino: e aí está o patriarcalismo. Na visão de Saffioti:

O gênero é aqui entendido como muito mais vasto que o patriarcado, na

medida em que neste as relações são hierarquizadas entre seres socialmente

desiguais, enquanto o gênero compreende também relações igualitárias.

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Desta forma, o patriarcado é um caso específico das relações de gênero.

(SAFFIOTI, 2004, p. 119).

Partindo das análises de Saffiotti (2004, p. 70-71), sendo o patriarcado um traço

das relações de gênero, pois remete à formação da propriedade privada e da sedentarização

dos humanos, portanto, de cerca de dois mil anos, a cultura, o gênero e o patriarcado se

cruzam nas condições subalternas vividas pelas mulheres na história do Brasil, haja vista que

o poder, em diversas culturas e, em específico, no Brasil, devido ao seu processo de

colonização, sempre foi uma prerrogativa masculina: aos homens, principalmente brancos, é

atribuído o poder, o domínio tanto público como privado e, às mulheres, o espaço do lar, da

família, da maternidade e da subalternização.

[...] gênero também enquanto conjunto de normas modeladoras dos seres

humanos em homens e mulheres, normas estas expressas nas relações destas

duas categorias sociais [...]. A desigualdade longe de ser natural, é posta pela

tradição cultural, pelas estruturas de poder, pelos agentes envolvidos na

trama das relações sociais. Nas relações entre homens e mulheres, a

desigualdade de gênero não é dada, mas pode ser construída, e o é com

frequência [...] a violência de gênero pode ser perpetrada por um homem

contra outro, por uma mulher contra outra. Todavia o vetor mais amplamente

difundido da violência de gênero caminha no sentido do homem contra a

mulher, tendo a falocracia como caldo da cultura. (SAFFIOTI, 2004, p. 70-

71).

Nesta ótica, a cultura de subordinação do feminino reforçada pela estrutura

patriarcal atravessa o gênero, a classe social, a raça e a etnia, compondo uma sociedade

desigual e assimétrica entre homens e mulheres. Isto pode ser observado nos diversos

discursos que transitam em nossa sociedade nas mais diferentes instâncias, midiáticos,

populares, discursos processuais proferidos pelos atores jurídicos, discursos institucionais de

uma gramática androcêntrica que teima em não flexionar o gênero; enfim, discursos diversos,

reforçados por valores sustentados pela tradição e subjetivados na memória que, mesmo com

a constituição de um aparato jurídico, na tentativa de barrar a sua subsistência, teimam em se

perpetuar e se reproduzir em confronto com novas posturas libertárias e democráticas de

equidade entre os gêneros. Assim, mesmo havendo movimentos de resistência à violência

contra a mulher, a subjugação do gênero continua sendo uma forte característica do nosso país

até hoje.

Segundo pesquisa realizada em dez capitais do Brasil, jovens entre 16 e 24 anos

defendem o uso da violência na resolução de disputas afetivas e/ou como reparação de danos

causados por traições (1/5 concorda muito que uma mulher infiel ao marido deve apanhar),

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um item liderado pelos municípios de Salvador e de Manaus (CARDIA apud NJAINE et al.,

2009, p. 86). Logo, se a cultura patriarcal não estivesse, ainda, tão presente como explicar os

resultados desta pesquisa?

Jovens meninos e meninas revelam o quanto o machismo é reproduzido em seus

namoros e “ficadas”, relações marcadas pela ótica de submissão da mulher e por justificativas

de agressões físicas por atos considerados imorais na conduta feminina. Frequentemente, os

adolescentes justificaram a ocorrência de violência física com base nas atitudes e

comportamentos da própria vítima, que teria “dado motivos” para ser agredida. E tal vítima,

na maioria dos casos, é menina.

Em outra pesquisa sobre jovens, violência e as DSTs/AIDS, Taquette et al. (2003)

mostram que grande parte destes considera normal a agressão verbal ou física na resolução de

conflitos, principalmente no caso de ciúmes, que, segundo os pesquisados, justifica a

ocorrência de violência e de desrespeito nas relações afetivas. Estes comportamentos se

expressam na forma como algumas experiências de namoro e do ficar se estabelecem,

reproduzindo padrões sociais cristalizados ou criando novos padrões de relações influenciados

pela cultura de violência, pelos modelos comportamentais em voga deste grupo social e,

ainda, pela interpretação dada pelos meios de comunicação.

O programa apresentado por Ana Maria Braga, intitulado “Mais Você” da Rede

Globo de Televisão, canal aberto de maior influência e audiência do país, em abril de 2012,

comparou a personagem de uma novela (do mesmo canal, transmitida no horário nobre,

20h30minh) a um animal, no caso a uma “piranha”, simplesmente por esta ser uma mulher

sexualmente ativa que declarava abertamente se relacionar com vários parceiros. O

interessante é que o programa dedicou cerca de uma hora a estas analogias ridicularizadoras,

fazendo correlações entre a personagem da novela e o animal devorador de carne. É

imprescindível salientar que este tipo de analogia quase nunca é feita com homens na mesma

condição, haja vista que a referida novela tem também um personagem que vive relações

estáveis com três mulheres e, no entanto é concebido como esperto, galante e sedutor.

Esse episódio que parece ser “corriqueiro e banal”, nos leva a refletir o quanto a

mídia, considerada o quarto poder, principalmente em um país pobre, como o Brasil, com

pouquíssimas possibilidades de acesso a bens culturais diversos, em que as pessoas passam,

em média, quatro horas por dia em frente à televisão, forma estereótipos, alimentando uma

ideologia de dominação sobre como devem ser os comportamentos e atributos de homens e

mulheres.

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Esse é apenas um pequeno exemplo no mar de estereótipos reproduzidos nos

discursos que a mídia em geral cria em torno das mulheres, um verdadeiro desserviço social,

seja impondo padrões inalcançáveis de beleza, moda, consumo e comportamento, em suma,

objetificando seu corpo no intuito de agradar os homens ou de obter vantagens diversas no

mercado do corpo aval. Como nos lembra Foucault sobre os discursos institucionalizados:

[...] a instituição responde: „[...] o discurso está na ordem das leis; que há

muito tempo se cuida da sua aparição; que lhe foi preparado um lugar que o

honra mas o desarma; e que, se lhe ocorre ter algum poder, é de nós, só de

nós, que ele lhe advém‟. (2010a, p. 7).

Para Butler, teórica que problematiza as concepções de gênero buscando

confrontá-lo com o sexo, identidade, cultura, feminismo e linguagens discursivas, o gênero é

também uma criação discursiva comprometida com determinados períodos e/ou instituições.

Para ela, se o gênero ou sexo são fixos ou livres, isto ocorre em função de um discurso e de

como este irá surgir, ou seja, o gênero se estabelece por meio de um discurso cultural

hegemônico baseado “em estruturas binárias que se apresentam como linguagem de

racionalidade universal”. (2003, p. 28) Assim, a coerção é introduzida naquilo que a

linguagem constitui como domínio inimaginável do gênero. Partindo desta observação,

estudar os discursos culturalmente produzidos sobre as mulheres e reproduzidos nos

processos de crimes passionais podem nos ajudar não só a penetrá-los, compreendê-los e

desconstruí-los, mas, também, contribuir para transformar esta realidade de alta incidência de

femicídios no campo social.

Vale ressaltar que a Igreja Católica, no apogeu da Idade Média, produziu e

patrocinou discursos depreciativos sobre as mulheres, que ecoaram ferozmente no Ocidente e

influenciaram a literatura ocidental, desde a literatura médica até a jurídica, como também as

formas de se pensar sobre “o que eram as mulheres e os seus devidos lugares”. Logo, analisar

estes discursos ladeados por poderes institucionais, localizando suas abrangências,

incongruências, resistências e permanências no cotidiano, desmontando-os através das teorias

metodológicas fornecidas pela crítica cultural, é oportunizar outras formas de pensar e propor

políticas de enfrentamento da violência contra a mulher.

A violência contra a mulher remete a tempos distantes em diversas culturas e

organizações sociais. Na sociedade ocidental, atingiu sua hegemonia durante a Idade Média e

início da Idade Moderna quando a Igreja Cristã se tornou a grande controladora dos costumes

de uma sociedade afogada em peste, fome e guerra, que via nesta instituição mediadora entre

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o céu e a terra alguma esperança de felicidade. Apropriando-se das normas sociojurídicas,

após as invasões bárbaras, o intitulado Direito Canônico ditou modelos comportamentais para

homens e mulheres, e para a sua sexualidade, os quais, quando não cumpridos os seus

desígnios, estavam fadados à punição. Porém, eram as classes sociais mais desfavorecidas que

eram perseguidas: mulheres, pobres, judeus, negros, índios ou mestiços, ressaltando-se que os

crimes contra a moral e os bons costumes sempre tinham a mulher como alvo.

Para reforçar a perseguição às mulheres foram escolhidos e adaptados trechos da

Bíblia, em um discurso de cunho criminológico elaborado por clérigos e intelectuais, a

exemplo dos frades dominicanos nomeados inquisidores pelo Papa Inocêncio VIII, para

erradicar, das terras alemães, os “vício, heresia e a bruxaria”. Como exemplo, um trecho de

um tratado sobre a inferioridade das mulheres, denominado Malleus Maleficarum4 ou O

martelo das feiticeiras, escrito em 1484, por dois monges dominicanos:

Da perversidade das mulheres fala-se no „Eclesiástico‟, 25: „não há veneno

pior que o das serpentes; não há cólera que vença a da mulher. É melhor

viver com um leão e um dragão que morar com uma mulher maldosa‟. […]

„Toda malícia é leve se comparada à malícia de uma mulher‟. [...] „É melhor

não se casar‟ (Mateus, 19). „Que há de ser a mulher senão uma adversária da

amizade, um castigo inevitável, um mal necessário, uma tentação natural,

uma calamidade desejável, um perigo doméstico, um deleite nocivo, um mal

da natureza, pintado de lindas cores. Portanto, sendo pecado dela divorciar-

se, conviver com ela passa a ser tortura necessária [...].

Mas a razão natural está em que a mulher é mais carnal do que o homem, o

que se evidencia pelas muitas de suas abominações carnais. E convém

observar que houve uma falha na formação da primeira mulher, por ter sido

ela criada a partir de uma costela recurva é, por assim dizer, contrária a

retidão do homem. E como em virtude dessa falha, a mulher é animal

imperfeito, sempre decepciona a mente. (KRAMER; SPRENGER, 2007, p.

114-116).

Essa perseguição latente foi culturalmente absorvida, a sexualidade feminina

subjugada e os modelo da virgindade, castidade e o enclausuramento enaltecidos: aquela

mulher que escapasse da normatização cultural era julgada e condenada. A figura da bruxa

surge neste cenário e, então, com o objetivo de desarticular um gênero que representava

metade da população, a caça às bruxas mandou milhares de mulheres para a tortura e a

fogueira.

4 Através desse livro fica cravada a satanização da sexualidade, base da misoginia da cultura

ocidental. Uma satanização que tem sua primeira expressão no Capítulo II do Gênesis e sua

materialização no Malleus Maleficarum. É importante ressaltar que entre os dois textos há uma

distância de 3.500 anos. De acordo com Muraro (2000, p. 78), o Gênesis e O martelo das feiticeiras

são os textos mais importantes sobre a mulher no período patriarcal, porque é neles que a

sexualidade e, portanto, a mulher, é satanizada.

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Os portugueses chegam ao Brasil marcados pela cultura europeia de demonização

dos costumes não cristãos e de inferiorização do feminino e se deparam com uma contradição:

nudez, liberação sexual, poligamia, ou seja, um lugar altamente propício para a prática da

moralização e da santificação instituída pelos jesuítas.

A família patriarcal brasileira surge neste contexto católico, entre os séculos XVI

e XIX, de concentração do poder na figura do homem branco, chefe dos escravos e da família,

da máxima hegemonia do homem que tudo podia sobre os seus escravos e sobre a mulher.

[…] a mulher era reprimida de diversos lados. Para igreja era vista como

Eva, autora do pecado original. Em casa, muitas vezes era alvo de

espancamento. Era tida como ser inferior, afinal, apenas o homem poderia

tornar-se padre. Era associada ao Diabo, ou seja, endiabrada. Posto que se

entregava a ele, incorporava-o, transmutava-o em feitiçaria. A mulher

feiticeira transitou por três séculos no entreato de dois mundos: o antigo que

resistia em ruir e o novo que resistia em nascer. (PEDRINHA, 2009, p. 61).

Casar apenas para procriar, ter costumes que se assemelhassem a “Nossa

Senhora”, viver no claustro: esta era a função social da mulher branca dos trópicos. Assim,

um estudo da mulher brasileira não pode deixar de lado sua vida familiar e privada, os papéis

socioculturais desempenhados através da história do país, nas várias regiões, tanto na cidade

quanto no campo e entre os diversos grupos de mulheres.

Durante séculos, as mulheres brasileiras foram alijadas do espaço público. De

acordo com o que era imposto, cabia-lhes a esfera doméstica e sua contribuição social se

restringia ao papel de mantenedoras do equilíbrio doméstico familiar, como aconselhava o

pregador Manuel Arceniaga, em seu Método prático de hacer fructuosamente confesión

general, de 1724:

A mulher deve estar sujeita ao seu marido, querer-lhe, obsequiar-lhe: não

deve fazer coisa alguma sem seu conselho, seu principal cuidado deve ser

educar e instruir a seus filhos cristãmente (sic), cuidar com diligência das

coisas de casa, não sair dela sem necessidade e permissão de seu marido.

(apud PRIORE, 2009, p. 235).

Em oposição às mulheres da elite, estavam as negras, mulatas, índias ou

miscigenadas, que viviam à margem dos estereótipos patriarcais, em relações mais liberais ou

de concubinatos, mas que, pouco a pouco, passaram a ser cobradas para viverem de acordo

com as proposições cristãs o casamento na igreja e a maternidade que objetivava

estratificar diferenças raciais e culturais identificando o gênero feminino ao intento colonial.

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Algumas continuaram à margem deste processo, mas estas sofriam enormes preconceitos

sociais sendo caracterizadas como promíscuas ou libertinas.

Segundo Foucault (2009), com o aparecimento do Estado, a tarefa de vigiar e

punir é passada para várias instituições (polícia, judiciário, família, escola, fábrica, etc.) que

se constituirão em micropoderes. Assim, a condição do gênero feminino como se vivencia

hoje tem uma intrínseca ligação com os movimentos histórico-sócio-culturais e suas

consequências. Neste processo, gradativamente, as mulheres brasileiras foram sendo

empurradas para o mundo doméstico familiar enquanto, para o homem, cuja moral é mais

flexível, o espaço é o público e neste ele pode se aventurar. Sob este prisma cultural estão

associadas visões ideais de homem e mulher e as noções de honra e vergonha. Também o

modelo científico médico, sustentado nos preceitos religiosos, se configurou totalmente

androcêntrico com discursos associando a mulher à procriação, com base na alegação de que

o crânio feminino é pequeno por ela não precisar de capacidade intelectual, enquanto a pélvis

mais alargada indica que o seu destino é a maternidade.

A base da família brasileira é romana, fundada na noção do pater familias, a cuja

autoridade todos os entes da família devem se submeter: “Pater, nesta expressão, não quer

dizer pai, mas um chefe, efetivo ou em potencial. Um impúbere e um celibatário podiam ser

pateres” (CRETELLA JÚNIOR, 1990, p. 106).

O dogma da família completa, ideal e feliz contribuiu e ainda contribui para a

manutenção da família em sua forma nuclear original, independentemente do custo pessoal

que isto possa causar. Muitas mulheres, apesar de viverem em situação de violência doméstica

e familiar, “optam” por permanecer em seus lares, preservando a constituição da família, por

ter sido este o modelo construído historicamente como ideal e por ser a família a instituição

reconhecida e incentivada pelo Estado como responsável pela sobrevivência e proteção dos

seus integrantes. A autoridade, na família, se funda em experiências comuns dos

antepassados, em suma, na força da tradição como instância justa e legitimada. Pode-se

obedecer a uma ordem desarrazoada, que é aceita tradicionalmente, no seio da família, como

adequada e, ao mesmo tempo, é possível presumir a desobediência a uma ordem coerente, por

ser emanada de quem não tem legitimidade no grupo (BARRETO, 2007, p. 30; 32).

Para o Estado brasileiro, com base no Código Civil de 1916 Lei nº 3.071, de 1º

de janeiro de 1916 , uma família se estabelecia originalmente através do pátrio poder (uma

derivação de pater famílias), ou seja, o exercício do poder do pai sobre os filhos sendo a mãe

considerada uma colaboradora no cuidado da família. Termo mantido mesmo com a Lei do

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Divórcio Lei nº 6.515, de 26 de dezembro de 1977 , o pátrio poder só foi extinto com a

instituição do novo Código Civil pela Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002, pelo poder

familiar sob o qual mulher e homem têm os mesmos direitos e deveres na família.

Quanto maiores a desigualdade, a hierarquização e a supressão de direitos entre os

membros da família, maior o pátrio poder, que designava o poder autoritário da figura

masculina sobre a família, ordenando as atividades e impondo regras e limites à esposa e

filhos, o poder marital. À medida que se deu a emancipação da mulher casada, deixando esta

de ser alieni juris, e que os filhos foram emergindo em dignidade e obtendo tratamento legal

isonômico, independentemente de sua origem, houve redução do quantum despótico,

restringindo estes poderes domésticos. No Brasil, foram necessários 462 anos, desde o início

da colonização portuguesa, para a mulher casada deixar de ser considerada relativamente

incapaz (Estatuto da Mulher Casada, Lei n. 4.121, de 27 de agosto de 1962) e mais de 86

anos, através da criação do novo Código Civil, em janeiro de 2002 para consumar a igualdade

de direitos e deveres na família (LÔBO, 2005).

A violência conjugal contra a mulher não foge nem um pouco deste cenário: sua

explicação se dá pelo fato de uma das partes considerar que o outro “não está cumprindo o seu

papel” seja de homem provedor, seja de fiel esposa, mãe dedicada e boa dona de casa. Assim,

o que, atualmente, se considera como violência contra a mulher, durante quase dois séculos,

foi considerado “natural”. Como lembra Foucault, o Estado Moderno deu, ao pai de família, o

controle e o uso da violência no espaço doméstico, sem que isto fosse considerado crime.

A manutenção da família e sua concepção histórica é uma das explicações para

muitas mulheres não se separarem, diante de um ciclo de violência de muitos anos. Vale

ressaltar que, em face da possibilidade de um divórcio, o juiz conclamava o casal e

questionava se aquela realmente era a decisão a ser tomada e, muitas vezes, aconselhava o não

término.

Um advogado especialista em direito de família, durante as minhas incursões ao

fórum, quando questionado sobre divórcio afirmou:

Já vi muito advogado tomar reclamação e advertência do juiz por, na visão

deste, tentar induzir a mulher a se separar, pois, ao ser questionada pelo mesmo sobre uma

nova chance ao parceiro e sobre a certeza do divórcio, ela se mostrou indecisa e disse que

iria pensar melhor.

A questão do prazer enquanto realização do desejo seja ele sexual, familiar ou

social, baseado na manutenção do casamento, na concepção idílica e cultural de felicidade da

mulher no casamento heteronormativo, enfim, na formação de uma família, em muitos casos,

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representa a perpetuação do ciclo de violência enquanto ação e reação, haja vista que as

mulheres revidam de diversas formas levando a uma relação violenta e, em última instância,

aos “crimes passionais”. Vale ressaltar que, nos casos observados na pesquisa sobre “crimes

passionais” em Inhambupe, 90% das mortes foram precedidas de um ciclo de violências, de

idas e vindas, que culminou no assassinato destas mulheres quando rompiam definitivamente

a relação na tentativa de construir uma nova vida.

A morte entre cônjuges representa, quase exclusivamente, a supressão da mulher

e, maciçamente, o argumento justificador utilizado pelos indiciados para fins de defesa é o

adultério. No Brasil Colonial, o código utilizado, de origem napoleônica, outorgava o direito

ao homem à infidelidade, desde que fosse preservado o leito conjugal; a mulher somente

podia pedir o divórcio caso a traição do marido o violasse. O Código Criminal do período

imperial, que passara a vigorar em 1830 Lei de 16 de dezembro de 1830 , aplicava, no

artigo 250, “a pena de prisão com trabalho por um a três anos” à adúltera e ao adúltero, mas

esta pena só se aplicaria ao “homem casado, que tivesse concubina, teúda, e manteúda”. O art.

240 do Código Penal de 1940, que só foi revogado em 2002, conjuntamente com a reforma de

1984, previa pena de seis meses para o adultério. A previsão legal do castigo da mulher

adúltera ainda ocorre em alguns códigos até os dias hoje.

O crime passional aparece como discussão, no campo da história, na obra, Crime

e cotidiano: a criminalização em São Paulo, do historiador Fausto (1984). Neste trabalho, o

tema é abordado em apenas um dos capítulos e com enfoque voltado para São Paulo, nos anos

entre 1880-1924, em que são narrados casos de assassinatos de mulheres, alguns envolvendo

extrema crueldade.

Corrêa (1983) desenvolveu uma importante pesquisa sobre o tema, na cidade de

Campinas, São Paulo, que culminou no livro, Morte em família: representação jurídica de

papéis sexuais no qual o tema é discutido de forma mais abrangente, com dedicação exclusiva

ao assunto na referida cidade, nos anos de 50 a 70, através da comparação dos processos de

crimes conjugais de homens e mulheres sob dois ângulos: o discurso dos atores jurídicos

(delegado, advogado, promotor, juízes e jurados); e o das vítimas e acusados.

A antropóloga analisa detalhadamente todas as falhas envolvidas no processo,

mostrando que existe uma lógica anterior aos fatos, que é a forma como a justiça (na voz de

seus representantes) constrói um modelo ideal de homem, que corresponde ao do “bom pai de

família”, cumpridor de suas obrigações de provedor, e o da mulher assassinada, que lhe era

infiel e não cuidava bem do lar, situação em que ele certamente era absolvido, como

demonstra a passagem:

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O trabalho do marido demonstra sua utilidade social e está destinado à

manutenção de sua família. […] A transgressão dessa mulher, expressa em

sua escolha de seguir „o caminho errado‟, abandonando a família legítima e

negando-se a colaborar com a imagem do lar „harmonioso e feliz‟, que o

marido pretendia é punida com a morte, punição aceita ao ser legitimada

socialmente. O não cumprimento de um conjunto de deveres conjugais dos

quais o mais importante parece ser a fidelidade, confronta-se com o direito

do marido em exigi-los e resulta numa eliminação sancionada. Esse direito

do marido advém da sua adequação a todos os seus deveres como esposo,

homem e pai. (CORRÊA, 1983, p. 124).

Em outro livro denominado Os crimes da paixão, Corrêa (1986) faz uma

abordagem mais sucinta sobre os crimes passionais de grande e pequena repercussão nacional,

da primeira metade do século XX, apresentando advogados de defesa que se tornaram

famosos e exclusivos de criminosos passionais, e ainda discorre sobre a história do crime

passional no nosso Direito, demonstrando alguns poucos avanços.

Na linguagem jurídica, se convencionou chamar de passional, os crimes

cometidos em função de um relacionamento sexual ou amoroso. No seu livro A paixão no

banco dos réus, em que narra dez casos de crimes passionais que obtiveram grande

notoriedade na mídia abrangendo o período entre os casos Pontes Vergueiro e o de Pimenta

Neves, Eluf analisa que o crime passional nada tem a ver com amor e sim com obsessão,

posse e preocupação com a reputação, afirmando:

O autor de crime passional possui uma necessidade ilimitada de dominar e

uma preocupação exagerada com sua reputação. O horror ao adultério se

manifesta claramente, mas não pelo que esse último significa para o

relacionamento a dois e sim em face da repercussão social que fulmina o

homem traído. [...] Os homicidas passionais trazem em si uma vontade

insana de autoafirmação. O assassino não é amoroso é cruel: Ele quer acima

de tudo mostrar-se no comando do relacionamento e causar sofrimento a

outrem. Sua história de amor é egocêntrica. Em sua vida sentimental existem

apenas ele a sua superioridade. Sua vontade de subjugar. Não houvesse a

separação, a rejeição, a insubordinação e eventualmente a infidelidade do

ser desejado, não haveria necessidade de eliminá-lo. (2007, p. 117-119,

grifo nosso).

De acordo com a promotora de justiça, a literatura mundial está repleta de casos

de crimes “passionais”, de poemas a romances, encenados no cinema, teatro e televisão

criando uma “magia”, um “glamour” em torno do tema, o que representa e fortalece uma

cultura insistentemente machista que justificou diversas sentenças absolutórias em favor dos

criminosos da vida real e que ainda o faz nos dias atuais. Ao mesmo tempo, ela demonstra que

a literatura traz poucos casos de mulheres que mataram seus companheiros, afirmando que os

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tribunais brasileiros raramente se defrontam com casos de mulheres possessivas e vingativas

que não suportam a rejeição de seus companheiros.

As imposições culturais seriam uma explicação para o pequeno número de

criminosas “passionais”, segundo Eluf (2007), pois as mulheres não se sentem “poderosas

socialmente” e não se veem “proprietárias dos seus parceiros”, ou seja, são, desde pequenas,

ensinadas a “compreender” as traições masculinas como sendo uma necessidade natural do

homem.

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2 OS CASOS DE INHAMBUPE: PERCORRENDO UMA DÉCADA, OS

CASOS DO FIM DO SÉCULO XX (1996-1998)

2.1 CARACTERIZANDO O MUNICÍPIO

O município de Inhambupe se localiza na mesorregião geográfica do Nordeste

Baiano, microrregião geográfica de Alagoinhas, Região Econômica Litoral Norte (eixo de

desenvolvimento: Grande Recôncavo) e Território de Identidade Agreste de

Alagoinhas/Litoral Norte. Em relação aos recursos naturais, o tipo climático é Subúmido a

Seco, com Temperatura Média Anual de 23,8ºc, Pluviosidade Anual, 923,2mm, Vegetação de

Cerrado Caatinga e Cerrado Arbóreo Aberto, sendo integrante do chamado “Polígono das

Secas”. Quanto à hidrografia, o território é cortado pelo Rio Inhambupe (que deu origem ao

nome da cidade que, na língua dos índios Kariris “Ilhabupe” significava “grande ilha”,

hoje totalmente poluído pelos esgotos e pelo matadouro), e os afluentes que o atravessam, o

córrego de Santa Maria, o Rio Subaúma e o Rio do Unã.

O ponto central de Inhambupe é a Praça Cônego Maximiliano, Praça da Matriz,

onde há a Igreja de Nossa Senhora da Conceição. Além da Igreja, destacam-se, no conjunto

arquitetônico da cidade, o casarão da Prefeitura, os prédios do Fórum (antigo e novo), o

Banco do Brasil, o Centro de Convenções, a Câmara Municipal, o hospital e diversos casarões

construídos nos séculos XVII e XVIII.

Vale ressaltar que o município, segundo os dados do Instituto Brasileiro de

Geografia e Estatística (IBGE) é de pequeno porte, possuindo uma população relativamente

jovem que concentra um maior número de habitantes entre 10 a 29 anos, com percentual

maior de homens, uma característica predominante nos países subdesenvolvidos, maior

quantidade de jovens, configurada pela baixa expectativa de envelhecimento (Quadro 1).

No tocante a ocupação e emprego, Inhambupe possui uma baixa perspectiva de

empregabilidade existindo apenas a pequena agricultura familiar, as empresas de

reflorestamento (que impactam negativamente o meio ambiente e não incentivam o

desenvolvimento sustentável e são responsáveis por vários casos de envenenamento, lesões

por esforços repetitivos (LER) e acidentes de trabalho, além do baixo salário e da pouca

perspectiva de crescimento funcional), uma empresa de laranja e limão, que compra dos

produtores e repassa para os grandes centros (o município é o segundo maior produtor da

Bahia), a Prefeitura Municipal, que possui 1.700 servidores distribuídos nas secretarias, e um

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pequeno comércio direto e indireto; vale, ainda, lembrar que existem muitos trabalhadores

informais.

Quadro 1 População municipal, faixa etária e sexo Inhambupe, 2006

Faixa Etária Masculino Feminino Total

Menos de 1 382 438 824

1 a 4 1.608 1.605 3.213

5 a 9 1.937 1.907 3.844

10 a 14 2.052 1.795 3.847

15 a 19 1.898 1.777 3.675

20 a 29 2.772 2.580 5.352

30 a 39 1.818 1.850 3.668

40 a 42 1.284 1.348 2.632

50 a 59 1.033 1.130 2.163

60 a 69 685 841 1.526

70 a 79 502 530 1.032

80 e mais 259 376 635

Totais 16.230 16.177 32.407

Fonte: IBGE, Censo Demográfico, 2006

Em Inhambupe, há um alto índice de pessoas com menos de 1 ano de estudo, o

que representa 11% da população total, poucas pessoas com mais de 8 anos de estudo, e 29%

da população em idade escolar. Historicamente, durante muitas décadas, o município investiu

pouco em Educação: o Ensino Fundamental (séries finais) e o Ensino Médio eram oferecidos

apenas no centro urbano e não havia transporte para a comunidade rural estudar; os

profissionais em educação, até 2007, não eram concursados e a alocação de professores se

dava através de contratação com fundo político partidário; nesta mesma perspectiva, as

escolas da zona rural foram construídas através de doações de terrenos oferecidos por

correligionários políticos na troca por contratação de professor e merendeira.

Dentro dessa lógica patrimonialista e pouco desenvolvida de Educação, a

população do município não era incentivada a matricular as crianças e não se exigia acesso a

níveis mais avançados de educação, o que só veio a ser amenizado com o advento do

Programa Bolsa Família, um sistema de repasse federal para as famílias de baixa renda com

filhos, pois uma das suas exigências primordiais é que as crianças entre 6 e 14 anos estejam

devidamente matriculadas e frequentem as aulas.

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O pouco investimento em Educação se reflete diretamente na renda mensal da

população, que é uma das mais baixas da Bahia, como também demonstra uma lógica

perversa do país, que é o fato de as mulheres ganharem menos que os homens, como

demonstram dados da Superintendência de Estudos Econômicos e Sociais da Bahia (SEI)

sobre a renda média mensal, relativos aos municípios do Estado, em 2006. Tomando como

base estes dados, pode-se observar que os homens de Inhambupe ganham R$ 25,10 a mais

que as mulheres, acusando uma diferença nominal de 11,52%. Em termos de rendimento

médio mensal, a situação é a seguinte: 36,7% da população ocupada, por domicílio, percebem

até 1/4 de salário mínimo; 24,7% vivem com

1/4 a

1/2 salário mínimo; 25,2 têm, mensalmente,

de 1/2 a 1 salário mínimo; 8,6% ganham de 1 a 2 salários mínimos; 1,1% ganha de 2 a 3

salários; e 3,6% dispõem de mais de 3 salários mínimos. Sobressai neste conjunto de dados o

triste fato de que 86,6% da população ocupada, em Inhambupe, vivem com até 1 salário

mínimo por mês.5

O estabelecimento do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino

Fundamental e de Valorização do Magistério (FUNDEF) e, posteriormente, do Fundo de

Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da

Educação (FUNDEB), do Bolsa Família, como também do Sistema Municipal de Ensino

(processo de municipalização do Ensino Fundamental, que abarca, primordialmente, as séries

iniciais) orientou o município de Inhambupe a um aumento no oferecimento de vagas na

educação básica e de transporte escolar para localidades distantes, objetivando obter, assim,

mais recursos federais.

Atualmente, Inhambupe possui 5.507 famílias que recebem o Programa Bolsa

Família (Federal), como também instituiu o Programa Bolsa Família Municipal que, através

da Lei Municipal nº 03/2010, oferece R$ 50,00 mensais como complementação de renda para

mil famílias consideradas extremamente carentes.

2.2 CARACTERIZANDO A PESQUISA

Desenvolver uma pesquisa sobre crimes não é uma tarefa fácil. O fórum é um

local com seus próprios rituais e, mesmo o processo sendo considerado um instrumento

público, não existe facilidade de acesso, principalmente quando não se é advogado. As

5 Os dados sobre as condições socioeconômicas do município foram obtidos na publicação

Estatística dos municípios baianos. Salvador: SEI, 2010. v. 1. Quanto às condições educacionais

estes foram fornecidos pela Secretaria Municipal de Educação.

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relações pessoais de amizade, comuns em cidades pequenas, é que podem facilitar o acesso. A

busca do processo é outro fator de grande dificuldade, pois, nas varas (Cível, de Família e

Criminal) estes não estão arquivados por sexo ou idade, ficam todos amontoados em caixas, e

o escrivão, entre outros afazeres, vai “se lembrando” e buscando os casos. Os processos mais

antigos, com mais de quinze anos, ficam guardados em depósitos empoeirados e de difícil

acesso, amontoados junto com os objetos relativos aos crimes e outros materiais. O sistema de

digitalização em fóruns do interior só começa a ser realizado agora e caminha a passos lentos.

Na primeira vez que adentrei o Fórum de Inhambupe, pude perceber a carência de

funcionários. Ali, a busca pela defensoria jurídica é uma constante, cumprindo ressaltar que

há mais de um ano não é nomeado nenhum(a) defensor(a) para o município, após a remoção

da anterior para a capital.

O Ministério Público sempre está com a sala de espera abarrotada de mulheres

com seus filhos(as) pequenos(as), aguardando atendimento, via de regra, para solicitação de

pensão alimentícia atrasada ou a ser recorrida, além de pedidos de reconhecimento de

paternidade.

Sempre procurava realizar a pesquisa nas sextas feiras, dia em que o fórum está

calmo, pois a grande maioria de seus funcionários, principalmente os de alto escalão, é de

outras cidades e neste dia viajam para seus domicílios. Assim, a população não vai à entidade,

pois já sabe que terá dificuldade de atendimento e, nesta situação, os funcionários podiam dar

mais atenção às minhas incansáveis solicitações.

A sala da Vara Crime é pequena e os processos se amontoam. Eles estão em todos

os lados, aguardando despacho do juiz, enfileirados em um canto para serem remetidos aos

advogados, abertos em sequência para composição documental e para o início do processo de

catalogação eletrônica ou, simplesmente, aguardando. É uma bagunça ordenada e o vaivém de

pessoas é constante: advogados e seus assessores, assessores dos juízes, funcionários e

transeuntes entram e saem da sala a todo tempo. Enquanto isto, o pesquisador fica no meio

disto tudo, sempre acompanhado por um funcionário, pois não pode sair com o processo ou

ficar sozinho com ele. Não há mesa, apenas uma cadeira e, assim, é preciso ser equilibrista,

segurar processos, caderneta de anotações, bolsa...: um espaço deveras pequeno.

Os funcionários, quando entendem o teor do trabalho de pesquisa, demonstram

boa vontade, relembrando processos e buscando-os em caixas abarrotadas; no entanto, uma

pessoa diferente do grupo habitual adentrando aquele ambiente é sempre um estranho no

ninho, pois, no fórum, a vida tem suas linguagens e dinâmicas particulares e o tempo passa

rápido, mesmo que o tempo processual seja lento. Esta lentidão se dá, em grande parte, pela

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falta de recursos das instituições judiciais, o que quer dizer que, para que os julgamentos

sejam mais rápidos seria necessária uma maior instrumentalização e aparelhamento do

judiciário: mais defensores, promotores, juízes, escrivães, delegados, delegacias e

penitenciárias, uma série de aparatos necessários para que as fases processuais ocorram com

maior agilidade; assim, o tempo que passa rápido dentro do fórum representa, ironicamente, a

luta de “alguns funcionários” para lidarem com a enorme demanda e apresentarem um

mínimo de retorno social.

A tradição é a marca do lugar. Em dia de audiência com o juiz é uma correria

geral: pessoas aguardando, muitas vozes circulando, advogados chegando e saindo

apressados, vítimas, réus e testemunhas aguardando sua oitiva, funcionários organizando a

situação seja fazendo a seleção de quem deve entrar seja controlando as roupas: uma dança

marcada por compassos. No fórum, existe muito cuidado com as roupas: não se entra de short,

boné, camiseta, não se fala com juiz com roupas decotadas. Seios entrevistos, “nem pensar”

muitas mulheres voltam, pois, na linguagem jurídica, estão descompostas, e isto é uma

constante. O funcionário diz: “Ou troca de roupa ou não entra”. Na sua esmagadora maioria,

são mulheres e homens negros e pobres.

O fórum é um ambiente tenso: ouvem-se queixas por todos os lados, caras de

insatisfação, em geral se reclama da morosidade, da baixa resolutividade das demandas, da

dificuldade de atendimento, dos processos parados, da inépcia e da falta de funcionários.

Demonstra Foucault que o aparelho judiciário possui um “poder disciplinar que

se deve, sem dúvida, ao uso de instrumentos simples: o olhar hierárquico, a sanção

normalizadora e suas combinações num procedimento que lhe é específico, o exame” (2009,

p. 164).

O Tribunal de Justiça, popularmente nomeado Fórum, enquanto instituição do

Estado, é o campo de atuação da jurisdição, ou seja, é onde ocorre a justa composição da lide.

Nele se busca a resolução dos conflitos, através do poder que é instituído ao juiz que, por sua

vez, analisa as partes e media os interesses; a autojurisdição é negada, pois ninguém pode

“fazer justiça com as próprias mãos”, o que só é permitido em caso de legítima defesa ou de

estado de necessidade. Neste contexto está o processo materializado nos atos judiciais.

A origem da palavra processo é latina, vem de procedere e significa “marcha

avante” ou “caminhada”, e pode ser definido, no âmbito jurídico, como:

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Instrumento para o legítimo exercício do poder, ele está presente em todas as

atividades estatais [...] tem pelo menos três sujeitos: o autor e o réu, nos

polos contrastantes da relação processual, como sujeitos parciais; e como

sujeito imparcial, o juiz, representando o interesse coletivo orientado para

justa resolução do litígio. (CINTRA; DINAMARCO; GRINOVER, 2012, p.

326).

A peça processual é quase exclusivamente escrita, baseada, em grande parte, nas

narrativas orais, depoimentos que enquanto discursos representam formas de ver o mundo,

modos de vida, tradições, crenças e normas, a própria cultura, como também formas de

convencimento, camuflagem e o poder de quem fala e de onde fala. O processo possui um

poder constituído como essencial na engrenagem da disciplina do fórum, modelada por uma

acumulação documentária administrativa.

Em casos de assassinato, o autor do processo é o Ministério Público que, sob a

direção do promotor de justiça, irá representar a vítima. O advogado atua no contraditório ou

ampla defesa e ninguém pode ir a juízo sem estar representado por um; assim, caso não tenha

condições de constituí-lo, receberá um advogado dativo indicado pelo juiz, ou seja, assistência

judiciária.

É imprescindível ressaltar que, enquanto o caso está sendo apurado na Delegacia,

consubstancia-se, ainda, um inquérito policial, isto é, está ainda na fase de investigação e de

composição do fato e só se transforma em processo quando é remetido ao Fórum.

2.3 CARACTERIZANDO OS CASOS

Dentro do universo jurisdicional de Inhambupe6, após as buscas realizadas com o

apoio do escrivão, foram encontrados, na Vara Crime, quatro casos de assassinato de

mulheres já concluídos, isto é, que já tinham sido julgados pelo tribunal do júri. O interesse

por casos já ultrapassado o trânsito julgado se consubstancia em buscar observar os resultados

obtidos, isto é, o destino dos réus e a resposta social. Estes crimes foram cometidos por ex-

companheiros ou namorados, entre os anos de 1996 a 2006, e como este trabalho tem base

cronológica, nenhum caso de mulher que tivesse assassinado homem foi encontrado.

Foram percorridos todos os trâmites dos autos, com leituras e releituras da

composição do fato elaborada pelo delegado, dos depoimentos do acusado e das testemunhas

(de acusação e defesa), ainda na fase do inquérito, e perante o juiz, já na etapa processual, a 6 Inhambupe e Alagoinhas são próximas, cerca de 56 km de distância embora com desenvolvimentos

econômicos diferentes denotam parecida formação cultural, sendo que Alagoinhas era distrito de

Inhambupe.

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arguição do promotor de justiça (apresentação da denúncia), a arguição do advogado de

defesa e do juiz, depois de colhidos os depoimentos das testemunhas, as provas

(pronunciando a denúncia); e, por fim, todo o procedimento perante o tribunal do júri.

2.4 CASO I: “MULHER RUIM TEM QUE MORRER”

O primeiro caso remete aos autos do Processo n° 000099-76199680501404, de 3

de agosto de 1996.

Vicentino de Souza, 39 anos, negro, analfabeto, lavrador, convivia em união

estável com Mariana Santos, 36 anos, negra, ensino fundamental incompleto, dona de casa.

Viviam há oito anos em regime de união estável, tinham três filhos e estavam separados havia

15 dias, quando ocorrido o fato.

O réu, morador da periferia de Alagoinhas, alega que matou a companheira com

golpes de facada, pois, após a separação de uma união de oito anos ela foi morar em outra

cidade, Inhambupe, povoado de Boa Vista, zona rural, na casa da mãe dela e, lá, “saía com

vários homens”.

Vicentino Souza afirma que foi incentivado por Bingo um primo da vítima que

lhe dissera: “Você vem trazer alimentos para seus filhos e sua mulher está saindo com gatos e

cachorros e você ainda traz alimentos para essa mulher? Seu filho é apenas metade seu.

Mulher ruim tem que morrer!”.

2.4.1 Constituição do Inquérito, Depoimento das Testemunhas e Réu

Vicentino de Souza foi encontrado duas horas depois do fato, em um bar distando

cerca de 15 km do local do crime, ingerindo bebida alcoólica; tentou fugir e foi capturado. Em

seu depoimento, na Delegacia, confirmou o assassinato e justificou ter matado por influência

do primo da vítima. Contou que, na noite anterior, tinha ido à residência onde a ex-

companheira estava hospedada, no intuito de conversarem, e Bingo foi o responsável por

chamá-la. Ela, no entanto, desconfiada e temendo o possível desenrolar da conversa, não

aceitou sair.

No dia seguinte pela manhã, o réu, juntamente com Bingo, foi novamente chamar

Mariana Santos, mas ela, novamente, não quis sair da casa para falar com ele. Furioso,

escondeu-se entre as plantas, já que aquela era uma propriedade rural envolta em vegetação

densa e, quando a vítima saiu com a filha de quatro meses no colo, imaginando que eles

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teriam ido embora, foi brutalmente atacada, levando diversos golpes de faca. Ao ouvir gritos,

o irmão da vítima saiu em sua defesa com uma espingarda de pólvora utilizada para matar

passarinhos, na tentativa de que o réu parasse quando atingido pelos tiros de chumbo no

braço. Vicentino Souza, então, correu em disparada. Observando o desfecho fatal, Bingo

também fugiu por entre o matagal próximo.

A irmã da vítima, auxiliada por uma vizinha que ouvira os gritos, parou um carro

que passava próximo ao local para prestar socorro. Ao chegarem ao hospital da cidade, não

havia médico plantonista e uma enfermeira recomendou que seguissem para Alagoinhas para

a vítima receber atendimento. Não conformadas com a situação, as acompanhantes buscaram

um médico morador da cidade que, quando chegou, disse que nada podia fazer, pois o caso

era grave e o hospital não dispunha de recursos materiais para um atendimento mais

complexo. Neste ínterim, Mariana Santos morreu.

As testemunhas inicialmente arroladas foram o irmão e a irmã da vítima, a vizinha

que auxiliou no socorro e o motorista que as conduzira ao hospital. Nos depoimentos, os

parentes de Mariana Santos assim como a moradora vizinha alegaram que o réu era ciumento,

violento e constantemente espancava a vítima que, por conta das agressões, já tinha abortado

um filho.

Novas testemunhas foram arroladas ao caso: o policial que primeiro chegou ao

local do crime para apurar o acontecido e um ex-patrão de Vicentino de Souza. O policial

alega que perseguiu o “assassino” pelas proximidades até este ser encontrado “em um bar

bebendo cachaça”. Ele portava uma faca quando foi preso e Bingo não foi encontrado.

Acrescentou, ainda, que ouviu dizer, durante as buscas, que o réu perseguia a vítima, que

desejava a separação.

O antigo patrão diz que trabalhou com o réu e o ouviu falar: “Vou matar aquela

mulher, porque ela é nova e quer me fazer de besta” e complementou afirmando que

Vicentino de Souza era “criador de arruaça e perigoso”; por fim, disse que, ao ouvir estas

ameaças, o dispensou do trabalho.

Depois de arroladas todas as testemunhas, o delegado fez um relatório

reconstituindo os fatos e informando que o “assassino” se encontrava preso na respectiva

delegacia e que o material do crime estava detido. Colocou, ainda, Bingo na categoria de

coautor e mentor intelectual do fato e remeteu o caso ao Fórum.

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2.4.2 Ministério Público, Produção da Denúncia, Instauração do Processo e

Análise do Juiz

O promotor de justiça reconstituiu todo o acontecimento com base no inquérito

policial e, arguindo em defesa da vítima, disse:

O réu em conluio com Bingo golpeou fatalmente a vítima numa emboscada

mortal não tendo piedade, pois ela estava com a criança nos braços. Um

assassino de uma conduta social não exemplar que agredia a vítima, bebia e

aproveitou o momento em que a mesma carregava o filho de quatro meses

nos braços, fugiu sem prestar socorro.

O promotor defendeu a tese de homicídio qualificado, pois considerou o motivo

torpe, atestou que a vítima foi pega de surpresa, não tendo como se defender, e solicitou a

aplicação da Lei nº 8.072/90 Lei de Crimes Hediondos , que aumenta a pena.

O juiz conclamou todas as testemunhas que foram ouvidas na Delegacia e

questiona sobre o acontecido: os irmãos da vítima narram o fato, reiterando o comportamento

ciumento e agressivo do réu que “costumeiramente espancava a companheira fazendo com

que ela abortasse”; sobre a participação de Bingo como coautor, dizem não saber se ele

incentivou o assassinato alegando a infidelidade conjugal da vítima; no entanto, afirmam “Ele

era capaz disso” e alegaram que foi ele quem chamou a vítima por duas vezes. Perguntados se

Mariana Santos traía o réu, dizem: “Ela não traía ele, era uma sofredora, por isso se separou,

porque apanhava”.

A vizinha modificou a narrativa dada na delegacia e falou: “Ouvi dizer que

Vicentino espancava Mariana, não sei sobre como viviam, pois moravam em outra cidade;

não sei se Bingo participou de alguma coisa, apenas ajudei no socorro”.

O ex-patrão também modificou o depoimento e disse: “Trabalhei com Vicentino,

mas não sei dizer como ele era e se planejava matar a mulher; soube que ele fez isso”.

O réu foi inquirido pela juíza para ser ouvido e modificou completamente o

depoimento anterior dizendo que Bingo foi quem o incentivou a assassinar a companheira

dizendo:

Seu filho é meio seu, sua mulher sai com gatos e cachorros, quando ela viaja

pra casa de parentes, fica com outros inclusive esse filho pequeno seu é meu

também, também fiquei com ela, como é que uma mulher fica meses fora de

casa na casa de um primo, ele ia dar comida de graça pra ela, abestalhado.

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Vicentino de Souza diz que, no dia do fato, estava completamente embriagado,

pois passara a noite bebendo com Bingo e não se lembra de muita coisa; sabe dizer, apenas,

que foi à casa da irmã da vítima para conversarem, que se aproximou dela para pegar a

criança no colo, mas foi alvejado com um tiro de espingarda no peito e não sabe mais o que

aconteceu, pois “lhe faltou os sentidos”. O réu requereu um defensor dativo, pois afirma ser

“pobre sem meios para ter um advogado”.

Depois de constituído o advogado de defesa pela juíza, devido à falta de recursos

do réu, foram arroladas duas novas testemunhas de defesa, pessoas que trabalharam com o

réu, uma estratégia do advogado na tentativa de demonstrar que Vicentino de Souza era

trabalhador, “cumpridor de suas obrigações de cônjuge, mas que às vezes fazia uso de álcool,

o que comprometia seu discernimento”. Estas testemunhas afirmaram: “Vicentino era um

homem trabalhador, uma boa pessoa, fazia uso de bebida alcoólica, já ficou bêbado em

algumas vezes”. Sobre o crime, alegaram que ouviram dizer que ele assassinou a

companheira, mas não sabem qual o motivo do crime nem podiam informar sobre a

convivência do casal.

Um ano após o fato, foi apresentado o laudo cadavérico que informava:

Crime por motivos passionais; houve morte por faca tipo peixeira,

perfuração no diafragma, fígado, causando fortes lesões e morte por

hemorragia; não se pode informar se houve utilização de recursos que

dificultou ou tornou impossível a defesa da vítima.

Quatro anos após o fato, foi marcado o julgamento: o júri foi composto por sete

jurados, quatro mulheres e três homens, em sua maioria funcionários públicos da Secretaria de

Educação Municipal, para os quais foram feitas sete perguntas às quais deveriam responder

sim ou não. Promotoria e defesa travaram um longo embate discursivo buscando adequar cada

parte aos estereótipos socioculturais aceitos: o promotor afirmou e reafirmou, em várias falas

e por meio das testemunhas de acusação, parentes de Mariana Santos, que Vicentino Souza

tinha

Conduta social não exemplar, agredia a vítima, bebia constantemente, não

era bom pai e aproveitou o momento em que a vítima carregava o filho nos

braços de quatro meses para golpeá-la e depois fugiu sem piedade, sem

prestar socorro.

O advogado de defesa contra ataca alegando que a vítima era “adúltera contumaz

envergonhando seu cônjuge perante o meio social”.

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O julgamento dura dois dias e é marcado por tese e contra tese, argumento e

contra argumento, réplica e tréplica de cada parte, um longo vai e vem da defesa versus

acusação, no entanto, o que emerge não é o crime em si como um ato brutal, a vida ceifada,

mas um conjunto de discursos acoplados sobre o que cada um era ou deixava de ser no meio

social: a vítima, assim, é coisificada.

Sobre o fato, a defesa discursou:

O réu induzido pelo segundo denunciado, Bingo, primo da vítima, sob o

império da violenta emoção, descrita no art. 65, do CP, por CIÚMES, veio a

golpear a vítima, sendo que esta, devido à falta de atendimento do hospital

veio a falecer. Está claro e cristalino nos autos, que o apelante além de agir

sob o império da violenta emoção, agiu por CIÚMES, e neste contexto

reside a manifesta contrariedade a provas dos autos. Em nenhum momento

houve por parte do apelante VINGANÇA, mas sim um CIÚMES, que

provocado e instigado pelo segundo acusado veio a causar o despacho

trágico à vida da vítima. A doutrina e a jurisprudência são pacíficas no

sentido de que o CIÚME não é motivo torpe, conforme enuncia Damásio de

Jesus, Júlio Mirabete, Heráclito Mossim, dentre outros eminentes

doutrinador³. Se vê o réu instigado por outrem, dizendo-lhe que sua

companheira o traía com „gatos e cachorros‟, que o seu filho era metade seu,

e que, ao tentar conversar com a convivente. recebeu um tiro no peito (grifo

da defesa).

Os quesitos entregues ao júri foram:

1) O réu Vicentino de Souza, no dia 03 de agosto de 1996, por volta das

07:00h, na localidade de Boa Vista, neste município, produziu vários golpes

de faca de tipo peixeira contra sua companheira Mariana Santos, provocando

as lesões descritas no laudo do exame cadavérico de fls. 118/119?

2) Essas lesões por sua natureza ocasionaram a morte da vítima Mariana

Santos?

3) O réu Vicentino de Souza, assim agindo quis o resultado morte?

4) O réu Vicentino de Souza, assim agindo assumiu o risco de produzir o

resultado morte?

5) O réu Vicentino de Souza, agiu por motivo torpe, qual seja vingança?

6) O réu Vicentino de Souza, confessou espontaneamente perante a

autoridade o fato delituoso praticado?

7) O réu Vicentino de Souza cometeu o crime sob a influência de violenta

emoção, provocado por ato injusto da vítima?

O réu foi condenado, na grande maioria dos quesitos, no entanto, algumas

questões suscitaram debates: a) três dos sete jurados acreditaram que o réu cometeu o crime

porque estava acometido por violenta emoção provocada por ato injusto da vítima, ou seja,

justificaram que a suposta traição da vítima era um motivo que justificava o crime; b) o quarto

quesito, que perguntava se o réu, agindo da forma que agiu, assumira os riscos de produzir o

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resultado morte, não obteve resposta dos jurados, pois eles alegaram que não tinham provas

materiais suficientes para saber se ela morreu pelos golpes proferidos no pulmão, diafragma e

fígado ou se pelo atendimento precário e negligente do hospital, ou seja, mesmo o réu tendo

desferido diversos golpes na vítima, o corpo de jurados ainda tinha dúvidas se Vicentino de

Souza assumira o risco de produzir o resultado morte!

Essa situação, em parte, denota a pouca atuação do Ministério Público e a

esperteza do advogado de defesa, que convocou como testemunha o médico da cidade que

atendera a vítima devido à falta de plantonista no hospital, provocando dúvidas sobre a causa

morte: hemorragia pelas facadas proferidas ou pela falta de atendimento após as facadas

proferidas? Atesta o médico: “Não foi tanto pela gravidade da lesão que se deu a causa morte,

mas sim a perda de sangue que provocou a lesão fatal, acredito que não deu o golpe com a

intenção de atingir um ponto vital”.

Com base na dúvida provocada pelo depoimento do médico e no laudo

cadavérico, que não pode informar se houve a utilização de recursos que dificultasse ou

tornasse impossível a defesa da vítima, o advogado recheou de argumentos o seu discurso,

alegando que havia dúvidas se Vicentino de Souza realmente provocara a morte da ex-

companheira ou dificultara a sua autodefesa.

Na sentença, os atenuantes do caso foram: a) o réu ter confessado

espontaneamente o crime, o que diminuiu a pena em 1/3; e b) o fato de o júri não ter

respondido se ele tinha ou não assumido os riscos do fato. Vicentino de Souza foi condenado

a 13 anos e seis meses em regime fechado na Penitenciária Lemos de Brito.

A defesa entrou com recurso pedindo a anulação do júri, com base no direito ao

duplo grau de jurisdição, ou seja, o de buscar, em uma instância superior, a tentativa de mudar

o resultado da sentença, apresentando a seguinte justificativa:

O réu estava obcecado de amor e agiu porque estava bêbado, procurou a

vítima apenas para conversar, o crime se deu no auge de uma discussão,

além disso uma das juradas era diretora do hospital que negligenciou o

atendimento isso compromete o caso, peço a mudança de homicídio

qualificado para lesão corporal dolosa, já que foi o hospital e não o réu o

responsável pela morte da vítima.

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O desembargador que julgou o caso negou o pedido, afirmando que a sentença

prolatada fora justa e bem razoável e que a presença da funcionária do hospital no júri não

demonstrava ter havido alteração no processo7.

O réu, depois de prolatada a sentença definitiva, ficou por dois anos esperando

uma vaga para ser remetido à Penitenciária Lemos de Brito; vários ofícios foram enviados

pelo juiz para o diretor do presídio, sem solução, pois a resposta era que não tinha vaga. Em

abril de 2002, ele fugiu, pulando o muro com o auxílio de uma corda improvisada.

Em fevereiro de 2012 (dez anos depois da fuga), foi, novamente, decretada a sua

prisão preventiva e ele não foi mais encontrado. Caso não seja encontrado até 2016, será

extinta a punibilidade, ou seja, o direito de punir do Estado e ele, novamente, será considerado

um réu primário.

2.4.3 Análise dos Discursos e Falhas do Processo

No livro Eu Pierre Riviéri, que degolei minha mãe, minha irmã e meu irmão,

Foucault (2010b) faz uma análise detalhada de um processo de 1835, ocorrido em uma aldeia

da França, em que o jovem Riviéri assassinou, brutalmente, membros da família. O relato

compreende, detalhadamente, as etapas judiciárias do processo, as perícias médico-legais

realizadas por psiquiatras da época, uma memória escrita pelo próprio autor com o objetivo de

explicar o seu ato e diversas matérias jornalísticas sobre o acorrido. Este estudo de caso

apresenta os diferentes discursos, do réu, juiz de paz, procurador, presidente da aldeia,

tribunal do júri, ministro de justiça, médicos psiquiatras e aldeões.

Para Foucault, o discurso processual é um discurso-narrativa muito específico,

que representa uma simbiose de cultura, subjetivação da memória, busca de convencimento,

desabafo, manutenção da ordem vigente e está muito aquém da “verdade”. O fato já

aconteceu: o que se tem são indícios, tentativas de aproximação e justificações.

7 Código Penal. Homicídio simples: Art. 121. Matar alguém: Pena reclusão, de 6 (seis) a 20

(vinte) anos. Homicídio qualificado § 2º Se o homicídio é cometido: I mediante paga ou

promessa de recompensa, ou por outro motivo torpe. Fixação da pena: Art. 59 O juiz, atendendo

à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às

circunstâncias e consequências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá,

conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime: I as penas aplicáveis

dentre as cominadas; II a quantidade de pena aplicável, dentro dos limites previstos; III o

regime inicial de cumprimento da pena privativa de liberdade; IV a substituição da pena privativa

da liberdade aplicada, por outra espécie de pena, se cabível.

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O réu do caso de Inhambupe, assim como Riviéri, busca, no “discurso da ordem”,

a justificativa para seus crimes brutais: o jovem francês alega que matou a mãe porque ela

estava separada de seu pai, importunando-o ao querer comandar a família e os bens, e seus

irmãos porque ficavam do lado da mãe, afirmando: “Acabo de libertar meu pai, agora ele não

está mais infeliz” (FOUCAULT, 2010b, p. 10).

No sistema jurídico francês, assim como no Código Civil brasileiro, que foi

fortemente influenciado pelo código civil napoleônico, a mulher casada era considerada

relativamente capaz, não podendo cuidar sozinha do patrimônio da família ou administrar

negócios. Como já dito anteriormente, apenas em 1962, por meio do Estatuto da Mulher

Casada, a mulher brasileira obteve este direito. Vale ressaltar que, apenas em 2002, foi

consagrada a igualdade de direitos entre homens e mulheres na família, com o pátrio poder

dando lugar ao poder familiar.

O jovem Riviéri buscou, também, na figura bíblica de Moisés, a justificativa para

o direito de matar. Segundo ele, Deus ordenou a Moisés que cometesse assassinatos em nome

da manutenção da ordem e dos valores cristãos e “a família é um dos maiores desses valores”

(FOUCAULT, 2010b).

Vicentino de Souza não aceitava a separação de sua mulher, uma jovem que

poderia reconstruir sua família com outro homem, e usa o discurso cultural da ordem para

afirmar que matou porque estava sendo traído reiteradamente e chamado de “abestalhado” por

aquele a quem julgava ser o influenciador do seu crime, “o primo da vítima, Bingo”. Por outro

lado, o Promotor de Justiça busca, através das testemunhas de defesa, evidenciar o discurso da

ordem para provar que o réu era violento, descumpridor de seus deveres matrimoniais,

portador de uma “conduta social não exemplar”; ou seja, todos buscam o “conforto do

discurso da ordem”.

Em outro livro, A ordem do discurso, Foucault (2010b) discute como a sociedade,

por meio da cultura e das instituições sociais, produz e reproduz discursos que representam o

poder e o desejo configurados na vontade de verdade, objetivando justificar, normatizar e

normalizar algumas narrativas, atos e fatos. Estão entre estes, o discurso sobre a família, o

discurso bíblico, o discurso jurídico, o discurso psiquiátrico, dentre tantos outros. Em sua

“arriscada ordem do discurso”, o autor nos provoca:

Suponho que em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo

controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de

procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar

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seu acontecimento aleatório, esquiva sua pesada e temível materialidade.

(FOUCAULT, 2010a, p. 8-9).

Mas que discurso da ordem é esse que atravessa as narrativas jurídicas fontes da

atual pesquisa? A ordem do que é socioculturalmente aceitável, “o doce lar da família”, o

marido e a esposa enquadrados nos padrões de casal construídos no imaginário social e

reproduzidos pela mídia, religião e instituições sociais. Mais do que tentar compreender o que

leva ao crime e o que precisa ser mudado na cultura, no sistema educacional, no sistema

jurídico, nos corações e nas mentes, o mundo jurídico busca, nos padrões da ordem, enquadrar

seus casos na tríade de tendência positivista fato, valor e norma como também na

tendência mecanicista dos julgamentos caso concreto, lei e cominação da pena.

Os discursos da ordem são construções culturais relativamente “fluidas”, pois são

utilizadas nos processos, em diferentes posições, de acordo com cada “necessidade”. Em

nenhum momento é discutido o crime enquanto um atentado à dignidade da pessoa humana,

ao direito à vida, à igualdade de direitos entre homens e mulheres “constitucionalmente

defendidas” e caracterizadas como cláusulas pétreas: nada disto é mencionado. Buscam-se

justificativas que se adequem às funções normalizadoras e normatizadoras da sociedade na

tentativa de que sejam mais facilmente aceitas pelo júri e pelo juiz, pois são posições

comungadas por boa parte da sociedade.

Com relação ao perfil dos depoentes e do réu, com exceção do médico, que possui

nível educacional superior, boas condições econômicas, é branco e católico, alguns dados

chamam a atenção: são todos católicos e semialfabetizados (menos de quatro anos de estudo),

alegam ser pardos e pobres, o que coincide com os baixos índices econômicos e sociais do

município.

O processo apresenta lacunas que jamais poderão ser preenchidas: o tom de voz, a

face, os trejeitos de quem depõe e o que representam dados e símbolos importantes. A

oralidade exposta nos autos depende, também, da qualidade de quem redige e, no caso em

questão, muitas vezes as falas escritas pareciam confusas e pouco lineares; os fatos compostos

no processo careciam de maior e melhor investigação, pois emergiam dúvidas; as testemunhas

não são inquiridas sobre suas mudanças de posição; no inquérito, são firmes, mas, passado

algum tempo, quando são ouvidas em juízo e no tribunal do júri mudam a narrativa e não são

interrogadas quanto a isto.

A vizinha da irmã da vítima e o ex-patrão do réu não são questionados sobre a

grande mudança em seus depoimentos: teriam, talvez, feito isto por aconselhamento de outras

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pessoas, já que o réu era considerado “violento”? ou porque, na hora em que deram o

depoimento na Delegacia, estavam emocionados com toda a brutalidade que presenciaram e

foram mais enfáticos na sua sede de justiça destacando a conduta do réu? Nunca se saberá,

pois os autos obscurecem estas questões.

Bingo, considerado coautor e mentor intelectual, aparece sempre pelo apelido e

não fica muito claro se ele é primo da vítima ou do assassino ora aparece como um primo

(um parente entre as partes), ora como primo da vítima, ora aparenta ser primo do acusado.

Sua figura, que parece ser tão substancial para a elucidação do caso, não é devidamente

investigada seja no inquérito seja na instauração do processo seja no tribunal do júri. O seu

verdadeiro nome, assim como as buscas, resta vago: as informações dos autos indicam que ele

fugiu quando viu o desfecho fatal e nunca mais foi encontrado e, no final do processo, é

citado na qualidade de réu coautor que se encontra à revelia, ou seja, foragido.

Cabe questionar, agora, como uma pessoa foragida será encontrada sem um nome,

apenas com um apelido? O processo não apresenta nenhum indício de novas buscas ao réu

coautor: ele, simplesmente, desaparece de cena e, no Tribunal do Júri, as testemunhas não são

inquiridas sobre o seu paradeiro ou sua real participação.

O médico da cidade que atendeu a vítima devido à falta de um médico plantonista

no hospital, indicado pela defesa, não foi investigado com o devido rigor sobre as alegações

de que foram a hemorragia e a má qualidade do atendimento que provocaram a morte da

vítima e de que o réu não dera golpes com a intenção de atingir um ponto vital. A promotoria

não analisou estas alegações com profundidade, pois, como uma pessoa que desfere diversas

facadas em outra que se encontra, no momento, desprevenida, com uma criança nos braços,

não tem a intenção de matar? Devido à falta de maior profundidade analítico-jurídica destas

questões, o réu teve a sua pena diminuída. Vale ressaltar que era fato conhecido por todos na

cidade que, neste período, o médico inquirido para o depoimento tinha querelas trabalhistas

contra o hospital e, assim, suas alegações poderiam ser duvidosas, na tentativa de incriminar

ainda mais a instituição, mas, em nenhum momento, a promotoria se esforçou em suspeitar

disso.

2.5 CASO 2: “INSPIRAÇÃO PRÓPRIA PARA MATAR”

Este caso remete ao Processo n° 000013-37 1998 805 0104, de 11 de agosto de

1998. Geam da Cruz, 18 anos, lavrador, negro, semialfabetizado, residente na Fazenda Nova,

zona rural de Inhambupe, assassinou e esquartejou sua namorada, Alana Cardoso, 17 anos,

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lavradora, negra, semialfabetizada, residente na comunidade rural de Volta de Cima. Eles

tinham uma filha de cinco meses de idade.

Geam da Cruz alega que matou a namorada porque achava que o filho não era seu

e ela exigia que ele assumisse a paternidade, tendo recebido, alguns dias antes do fato, uma

intimação judicial de investigação de paternidade. Nervoso com a situação, arquitetou um

plano e convenceu a vítima de que deveriam fugir para viverem juntos em outra cidade sem a

intromissão dos pais de Alana Cardoso, dizendo que arrumara um emprego de vaqueiro em

uma fazenda distante, na localidade de Pataíba, e que lá seriam felizes. Seduzida pela

proposta, a vítima o acompanhou a um matagal de eucalipto onde foi degolada e depois

esquartejada. Sua ossada em decomposição foi encontrada por vaqueiros que passavam pelo

local, na divisa entre os municípios de Inhambupe e Sátiro Dias, a cerca de 15 km da

residência da vítima, oito dias após o fato. Este caso alarmou a cidade.

2.5.1 Constituição do Inquérito, Depoimento das Testemunhas e Réu

Geam da Cruz foi preso poucos dias depois de encontrado o corpo da vítima. De

acordo com o inquérito policial, uma amiga de Alana disse que os vira juntos, na data do seu

desaparecimento, e que a vítima teria dado indícios à colega e confidente de que iriam fugir.

Com base nestas provas, o delegado solicitou à juíza a prisão preventiva de Geam da Cruz,

temendo que ele fugisse. Na Delegacia, ele disse:

Achava que a filha não era minha ela insistia que eu assumisse, me aborrecia

e foi no fórum me intimar e foi por isso que eu preparei tudo, embebedei ela

e levei pro mato, matei pra me ver livre dos processos, ela pediu para eu não

fazer mas eu passei o facão no pescoço e depois fui embora, não tive

inspiração de ninguém foi inspiração própria minha para matar.

Na Delegacia, foram arroladas várias testemunhas: os pais da vítima, os sete

vaqueiros que encontraram o corpo e a amiga confidente que os viu juntos pela última vez. Os

pais de Alana Cardoso alegaram que eles namoravam, que tinham uma filha de cinco meses,

mas cada um morava na casa de seus pais, e que, quando a filha engravidou, ele disse que ia

casar e assumiria o filho, mas, no dia do casamento, não apareceu e no dia do registro da

criança, também. Assim a filha resolvera buscar o Fórum na tentativa de reconhecimento de

paternidade.

Os vaqueiros disseram que estavam naquela localidade transportando gado,

montados a cavalo, quando avistaram urubus em torno de uma área da plantação de

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eucaliptos. Como sabiam do “sumiço” de Alana Cardoso, resolveram olhar e, ao chegarem,

encontraram uma ossada deteriorada de mulher cujas roupas eram parecidas com as da vítima.

Assim, rapidamente, chamaram a família para o reconhecimento.

A amiga de Alana Cardoso disse que o casal, mesmo sem o consentimento da

família dela, que não mais queria o relacionamento pelo fato de o réu não ter assumido a

paternidade, continuava se encontrando às escondidas e que a vítima dera a entender que

iriam fugir dizendo: “Vou viver com meu amor para sermos felizes”. Conta que era um

domingo à noite e que, após o término do encontro, viu o casal conversando numa esquina:

esta foi a última vez que Alana Cardoso foi vista com vida. Complementou afirmando que a

vítima era uma jovem cheia de vida, gostava do namorado e que o filho era dele, sim, e que,

além disto, desconfiava de que ela estava grávida novamente.

O delegado reconstituiu o caso para remeter o inquérito ao Fórum objetivando a

instauração do processo e narrou a frieza e brutalidade do assassinato de Alana Cardoso, a

forma como o “corpo esqueletizado e putreficado” se encontrava, a naturalidade com que o

assassino se encontrava em casa quando foi detido, como também a calma com que prestou

depoimento, sem esboçar remorso, sempre afirmando que o filho não era seu e por isto não

queria assumir a criança e nem ser processado, motivo pelo qual cometera o crime. Sobre o

estado do corpo reiterou: “O réu destruiu o corpo, cortando-o, separando as partes, visando

impedir que se descobrisse o crime, bem como fosse identificado o corpo”.

O delegado afirma que solicitou do Fórum alguma comprovação de que o réu

havia sido convocado pelo órgão para audiência de reconhecimento de paternidade, resposta

que foi dada afirmativamente, tendo o fórum encaminhado uma cópia do Mandado de

Intimação: ele assassinara a namorada no dia 11 de agosto de 1998 e tinha sido intimado para

comparecer ao fórum no dia 19 de agosto de 1998, ou seja, ele cometera o crime oito dias

antes da necessidade do comparecimento.

2.5.2 Ministério Público, Produção da Denúncia, Instauração do Processo e

Análise do Juiz

O Ministério Público instaurou o processo e produziu a denúncia através da fala

inflamada do promotor de justiça que, narrando o caso, disse: “O réu é uma besta-fera

impiedosa e perversa, fechou os ouvidos aos apelos de sua indefesa vítima que implorou para

não morrer”. O promotor solicitou que o réu fosse indiciado por homicídio qualificado

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caracterizado por motivo torpe mediante dissimulação e ocultação de cadáver (art. 121, inciso

2º, parágrafo I e IV e art. 211 do Código Penal).

A juíza inquiriu o réu e ele disse que não foi o responsável pela morte da

namorada, que não sabia quem foi e se defendeu dizendo que era inocente e que assumira o

crime na delegacia porque apanhara muito e que nada mais tinha a dizer.

Após a instauração da denúncia e antes que a juíza convocasse as testemunhas

para oitiva, no dia 8 de março de 1999 (sete meses após o assassinato), houve uma fuga da

Delegacia. Detentos serraram a grade e improvisaram uma corda conhecida como “tereza”,

feita de tecido, provavelmente dos cobertores e lençóis das celas, para pularem o muro: Geam

da Cruz estava entre eles.

O caso ficou parado e o processo não faz menção às buscas, apenas que, em 23 de

outubro de 2002 (quatro anos depois da fuga), a juíza remeteu uma carta precatória

convocando o réu para comparecer ao Fórum, pois testemunhas o teriam visto em São Paulo,

no município de Osasco, trabalhando em uma concessionária de uma avenida movimentada

do centro.

Por mais de quatro vezes, a juíza remeteu cartas ao Fórum da Comarca de Osasco

para que o oficial de justiça intimasse o réu. A última carta foi respondida da seguinte forma

pelo oficial:

A avenida citada é muito extensa, tem várias concessionárias e não foi

enviado um número específico; fui até a que mais correspondia com o

endereço descrito e a responsável do setor de recursos humanos disse que lá

não tem nenhum funcionário por nome Geam da Cruz (23/11/2002).

No dia 28 de agosto de 2003 (cinco anos, portanto, após o assassinato), a juíza

atestou à revelia, ou seja, por desaparecimento do réu, convocou as testemunhas, com o

intuito de continuar a apuração dos fatos e cartas foram remetidas a oficiais de justiça de

outras cidades, pois algumas das testemunhas, a exemplo de alguns dos vaqueiros, estavam

morando em outras cidades: algumas testemunhas compareceram, outras não. Os depoimentos

reforçaram tudo o que fora afirmado no passado ainda na Delegacia, não havendo grandes

modificações. Como o réu estava desaparecido, a juíza convocou um defensor público para

assumir o caso o qual não apresentou nenhuma testemunha, por declarar que o réu estava

foragido, ou seja: não houve interesse da defensoria em movimentar a defesa devido à fuga do

réu.

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Em seguida, outro promotor, que assumiu o caso porque o anterior havia sido

transferido, refez a denúncia recontando os fatos e discursando sobre o acusado:

Ele embebedou a vítima, e após andarem pela mata, revelou seu intento

criminoso, oportunidade em que a vítima ajoelhou-se pedindo clemência, e

Alam desferiu o golpe de facão no pescoço, decepando-o, retalhando o

corpo, causando-lhe morte instantaneamente.

É solicitada pena semelhante à requerida pelo promotor anterior, homicídio

qualificado caracterizando motivo torpe mediante dissimulação e ocultação de cadáver.

No dia 8 de maio de 2012, a juíza declarou extinta a punibilidade, pois o réu

estava foragido havia mais de treze anos e como, na data do fato, ele tinha 18 anos de idade,

de acordo com o Código Penal, o prazo para prescrição, ou seja, para a extinção do processo e

do direito de punir do Estado é reduzido à metade.

Nos casos de homicídio, a extinção da punibilidade se dá, em geral, após vinte

anos da produção da denúncia, mas, devido à idade do réu, com base no art. 115, CP, isso

ocorreu em 16 de novembro de 2008, logo, dez anos após a apresentação da denúncia.

Declara a juíza:

Declaro extinta a punibilidade com base no art. 115 do CP: [...] dezoito anos

de idade, prazo prescricional reduz a metade, isso ocorreu 16/11/2008,

nesse sentido, como a denúncia foi recebida em 16 de novembro de 1998, ou

seja, há mais de treze anos, forçoso reconhecer que no presente caso, o

Estado, perdeu o seu juspuniendi em relação ao acusado em 16 de

novembro de 1998. Em face dessas breves considerações. Declaro extinta a

punibilidade em favor de Geam da Cruz, relativamente ao crime

tipificado no art. 121 inciso 2º, parágrafo I do CPB. (grifo da juíza).

Com essas palavras da juíza, também respaldadas pelo art. 107 do CP, e tendo

sido anexados ao processo uma cópia do Diário Oficial da Justiça declarando extinta a

punibilidade8 em favor de Geam da Cruz, o caso foi colocado em uma caixa e remetido para o

arquivo com o rótulo “caso encerrado”.

8 Código Penal: Art. 107. Da extinção da punibilidade Extingue-se a punibilidade: I pela morte

do agente; II pela anistia, graça ou indulto; III pela retroatividade de lei que não mais considera

o fato como criminoso; IV pela prescrição, decadência ou perempção; V pela renúncia do

direito de queixa ou pelo perdão aceito, nos crimes de ação privada; VI pela retratação do agente,

nos casos em que a lei a admite; VII (Revogado pela Lei nº 11.106, de 29.03.05); VIII

(Revogado pela Lei nº 11.106, de 29.03.05); IX pelo perdão judicial, nos casos previstos em lei.

Redução dos prazos de prescrição Art. 115 São reduzidos de metade os prazos de prescrição

quando o criminoso era, ao tempo do crime, menor de 21 (vinte e um) anos ou, na data da

sentença, maior de 70 (setenta) anos.

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2.5.3 Análise dos Discursos e Falhas do Processo

Neste caso, o réu busca justificar o assassinato perverso da namorada pela

suspeita de que o filho não era seu, no entanto, as narrativas do réu na Delegacia e das

testemunhas de defesa demonstram que o assassinato foi motivado pela disposição da vítima

ou de sua família? de buscar os meios legais para a assunção da paternidade. Logo, o ato

se deu por raiva e vingança por ter que assumir as consequências da paternidade impensada.

Além disto, a amiga da vítima alega que, possivelmente, a vítima estaria novamente grávida

do réu.

Essa possível nova gravidez da vítima, um fato que consubstancia ainda mais os

motivos para o crime, fica no campo da especulação, pois as testemunhas, principalmente os

pais da vítima, não são inquiridos sobre o fato: o processo não instiga esta elucidação assim

como não é investigada a total mudança de depoimento do réu, que alegou em juízo que

assumira o crime porque apanhara, quando forneceu o depoimento na Delegacia.

Geam da Cruz, ao dizer “matei porque não queria aborrecimento com processo, o

filho não era meu”, assim como ocorrido no caso Riviéri (FOUCAULT, 2010b), busca, no

discurso da ordem, justificar seu crime, ao apresentar um motivo que abrandasse seu ato, ou

seja, argumentar, com base em uma suposta infidelidade da namorada um fato “socialmente

condenável” , colocar a vítima como uma mulher infiel que lhe exigia reconhecimento da

paternidade, o que representa uma forma de enquadrar seu ato no que é “socialmente

aceitável: punir quem trai”. Vale ressaltar que o crime aconteceu há treze anos, em uma

cidade pequena, com baixos índices socioeconômicos, onde a mulher atravessa considerável

subalternização. Os perfis da vítima, réu e testemunhas demonstram baixíssima escolaridade

(menos de quatro anos de estudo), sendo todos negros ou pardos e de religião católica.

O réu queria viver uma relação sem cobranças, daí a relutância em assumir uma

paternidade responsável, e, na sua mentalidade, não aceitava ser desafiado por uma mulher,

ou por uma família, que poderia processá-lo para reconhecer o filho e dar pensão. A dúvida

entre “uma mulher” ou “uma família” ocorre porque não se sabe ao certo se o intento de

processar Geam da Cruz em relação à paternidade partira da vítima ou de sua família. Como

ela era menor de idade e dependente dos pais, logo, relativamente capaz, o processo é obscuro

em relação a isto.

Merecem destaque os discursos do primeiro e do segundo promotor, na tentativa

de apelo à emoção para convencer o juiz do fato enquanto homicídio qualificado. O primeiro

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disse: “O réu é uma besta-fera impiedosa e perversa, fechou os ouvidos aos apelos de sua

indefesa vítima que implorou para não morrer”. O segundo, na mesma linha, declara: “Ele

embebedou a vítima, e após andarem pela mata, revelou seu intento criminoso, oportunidade

em que a vítima ajoelhou-se pedindo clemência, e Alam desferiu o golpe de facão no pescoço,

decepando-o, retalhando o corpo, causando-lhe morte instantaneamente”.

Os promotores não fazem menção ao real motivo do crime, apenas solicitam a

caracterização de torpe, por parte do juiz, e não discorrem sobre a idade da vítima, uma menor

que foi, na verdade, seduzida pelo criminoso a adentrar a mata com promessas de uma vida

feliz. A vítima estava apaixonada e, mesmo contrariando a família, continuava se encontrando

com Geam da Cruz, ao que parece, na esperança de viver com ele.

O processo não apresenta iniciativas de investigação sobre o paradeiro do réu

resta lá, simplesmente, esperando, adormecido, até ser extinto , não deixa claro quem

ofereceu a denúncia sobre seu suposto refúgio em outro estado, que poderia ser uma

testemunha anônima ou alguém da família da vítima: não se sabe. Observa-se, apenas, a carta

precatória da juíza remetida a um fórum de Osasco em São Paulo solicitando sua prisão em

uma revendedora de veículos situada no centro.

Impressiona-nos, neste caso, a morosidade processual, as lacunas nos

depoimentos, a pouca investigação em todos os sentidos e a falta de segurança das delegacias,

pois, em mais um caso, o réu foge sem deixar vestígios. A Justiça, na figura do juiz, não

inquire sobre estas fugas constantes e que ficam impunes. Neste caso, a situação é muito pior,

pois o réu ficou apenas cinco meses preso e, agora, está livre da Justiça, na categoria de réu

primário.

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3 OS CASOS DE INHAMBUPE: PERCORRENDO UMA DÉCADA, OS

CASOS DO INÍCIO DO SÉCULO XXI (2002)

Os casos mais recentes de assassinato de mulheres estavam guardados em

arquivos que indicavam atualidade; um deles estava ainda na sala da juíza pois havia recebido

um despacho recente e o escrivão gentilmente foi buscá-lo.

Enquanto analisava esses processos em um canto apertado da sala presenciei

várias queixas dos escrivães e oficiais de justiça da Vara Crime sobre a enorme quantidade de

processos sobre violência doméstica que chegavam, um disse: “Eu nunca vi homem bater

tanto em mulher como nessa cidade”. Outro falou “o pior é que às vezes a justiça faz o maior

rebuliço e elas voltam em lua de mel” e batia a mão na pilha de processos numa espécie de

desabafo pela enorme quantidade de trabalho com o mesmo tema.

Passados poucos minutos, chegam duas jovens negras que não tinham mais do

que dezoito anos, eram primas e as duas vinham buscar informações sobre processos de

violência doméstica envolvendo seus ex-companheiros. A que mostrava maior desenvoltura

disse: “Eu vim aqui saber por que o processo da minha prima ainda não teve a medida

protetiva, pois o meu já teve”.

O funcionário explicou que a intimação estava na mão do escrivão e ele ia

cumprir o mais rápido possível, haja vista que estava com uma enorme demanda de trabalho.

Inquirida sobre o motivo das denúncias, mais uma vez, a jovem desenvolta disse:

Na nossa família parece genético: todas as mulheres apanham dos maridos,

minhas tias, eu, minhas primas os homes batem sem motivo. O triste é que

procuramos ajuda na delegacia e os policiais tentam desconversar ou tratam

a gente com desdém, um deles me disse: Foi você que foi estapeada na

festa? Outro chamou minha prima no canto na tentativa de fazer ela desistir

da queixa pela segunda vez. Fomos humilhadas. Davam risinhos e olhares.

Intrigada com a situação, perguntei à escrivã que cadastrava os processos se tinha

como mapear o número de violências domésticas que chegavam naquela Vara e ela disse que,

como o processo de digitação e mapeamento dos autos por tema tinha sido recente (fato já

apontado nesta pesquisa anteriormente), só era possível mapear os casos de 2012 e 2013:

solicitei, então, que fizesse a busca para eu ter uma ideia da quantidade.

Após um clique, ela me informou que, de janeiro de 2012 a janeiro de 2013,

tinham dado entrada naquela instância 49 processos de queixas de violência doméstica. Uma

média de quatro processos por mês, número relativamente alto para uma população pequena.

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3.1 CASO 3: “É ASSIM QUE VOCÊ DIZ QUE NÃO SAI DE CASA!”

Edevan Lima 40 anos, vaqueiro, alfabetizado, com ensino fundamental séries

iniciais incompleto, negro, católico, residente no povoado de Tanquinho zona rural , no dia

17 de julho de 2002, assassinou, com golpes de faca, em plena Praça da Matriz, após a missa

noturna, a sua companheira Luíza Lima 39 anos, doméstica, analfabeta, negra, católica: este

crime chocou a cidade.

Edevan e Luíza, casados havia 22 anos e com seis filhos, viviam uma relação

turbulenta, pois, de acordo com as testemunhas de acusação, a vítima, que apanhava

constantemente, sofria ameaças para não denunciar as agressões. O réu, que tinha outra união

estável, à época do fato morava na casa dos seus genitores com uma jovem de apenas 20 anos

com quem tinha uma criança de sete meses.

Cansada das agressões e do fato de o marido não se separar da amante, além de

estar com graves problemas de saúde, pois sofria de doença de Chagas o que a deixava

inchada e debilitada, Luíza resolveu fazer um tratamento médico na cidade e foi morar em um

bairro periférico da zona urbana, com sua mãe, levando com ela os filhos menores.

No inquérito policial consta que o réu, furioso por não encontrar a vítima na

residência do casal, foi à cidade saber onde ela estava e, chegando à casa de sua sogra, foi

informado de que Luíza tinha ido à missa. Insatisfeito por ela ter saído, foi até à praça

portando um faca tipo peixeira e, quando a encontrou, disse: “É assim que você disse que não

sai de casa? E ela respondeu: Mas eu só vim à missa...”. Perante esta resposta e no meio da

praça lotada por transeuntes que passeavam no domingo à noite, Edevan proferiu várias

facadas em Luíza atingindo pescoço e pulmão, o que culminou em uma morte quase

instantânea por hemorragia.

3.1.1 Constituição do Inquérito, Depoimento das Testemunhas e Réu

Dois policiais foram a pé (cerca de dez minutos de caminhada) averiguar o

ocorrido, pois a única viatura da cidade estava com defeitos mecânicos. Chegando ao local

foram socorrer a vítima, que foi levada ao hospital, com muita dificuldade, em uma

caminhonete, pois a única ambulância estava em serviço atendendo a um chamado e ninguém

queria prestar socorro. Neste ínterim, avistaram o réu, apontado por testemunhas, escondido

atrás de uma árvore prestes a fugir em direção à rodoviária da cidade. Recebendo voz de

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prisão em flagrante, ele se entregou, ainda em posse da faca. Os dois policiais foram

acolhidos como testemunhas e, sobre o réu, um deles relatou:

Estava em estado de completa apatia, com sintomas visíveis de embriaguez;

ouvi o comentário de que o motivo do crime teria sido por causa de uma

crise de ciúmes, pois embora o flagranteado já estivesse separado da vítima,

que era sua esposa, atualmente vivendo com outra mulher na localidade

denominada Piçarra, continuava perseguindo-a.

Em depoimento na Delegacia, o réu afirmou que a vítima tinha saído de casa

alegando que faria um tratamento de saúde, situação informada pelo gerente da fazenda em

que trabalhava como vaqueiro que havia dado carona à vítima, o que o deixou enciumado,

pois ela nunca saía de casa. Descontente com a situação, relatou que passou o dia todo

“bebendo cachaça” em um bar próximo de sua residência. Começou, então, a pensar que eles

tinham um caso, pois, ao encontrá-la na Praça da Matriz, ela disse que não queria mais nada

com ele. Alegou que não tinha costume de brigar com a esposa, muito menos de bater,

dizendo que só a empurrou em duas oportunidades, e que tem união estável com outra mulher

com quem tem um filho.

A amante, Angélica Moreira 22 anos, negra, lavradora, com quatro filhos, vivia

com o réu há 1 ano e 8 meses e tinha com ele uma filha de sete meses , que também foi

arrolada como testemunha, disse saber que ele era casado, mas afirmou que quando se

conheceram ele lhe dissera que estava separado havia 8 dias.

Afirmou que moravam na casa dos pais do acusado e que Edevan não tinha o

hábito de beber; quando bebia, era nos finais de semana e em casa. Disse, ainda, que eles não

brigavam e que a vítima sempre perseguiu o réu; que acreditava que o motivo do crime

tivesse sido a separação; e que sabia que a vítima tinha grave problema de saúde no coração.

Os filhos mais velhos da vítima e uma prima a acompanhavam no dia do crime,

no entanto, no momento exato, apenas a prima estava com ela. Todos foram arrolados como

testemunha de defesa e afirmaram que réu e vítima viveram juntos por 22 anos, que sempre

brigaram e que ela era espancada brutalmente. Um dos filhos disse que, desde os oito anos,

viu sua mãe apanhar, “dormir no mato, escorraçada de casa” e que ela nunca dava queixa por

medo, pois o réu dizia: “Quando eu sair da cadeia mato todos que deram parte”.

No relatório, o delegado descreve a situação do réu:

Pego em flagrante, o réu no percurso até a delegacia nada falou, estando em

completa apatia, com visíveis sinais de embriagues, entretanto ouvi

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comentários de que a causa do crime tinha sido ciúmes dele por sua esposa,

embora já estivessem separados e ele mantivesse relação de concubinato

com outra mulher.

3.1.2 Ministério Público, Produção da Denúncia, Instauração do Processo e

Análise do Juiz

Em audiência perante o juiz, o réu alegou que não estava separado da vítima e que

ficou furioso ao chegar em casa e ver que ela tinha levado os pertences para a casa da mãe na

zona urbana.

Acreditava, mesmo que ninguém lhe tivesse dito, que a ex-mulher “mantinha um

caso” com o gerente da fazenda em que ele trabalhava, pois viu a vítima conversando com ele

uma vez e que este tivera uma amante em uma fazenda de Barreiras onde prestou serviço.

Argumentou, ainda, que, no dia do fato, bebeu “cerveja, misturada com catuaba e pinga”.

Disse não possuir advogado e nem condições de constituir um.

A prima da vítima, única pessoa que estava com ela no exato momento do crime,

disse que o réu se aproximou da vítima dizendo:

É assim que você não sai de casa? E ela respondeu: Eu só vim para missa,

e depois ele foi fazendo todo o serviço nela. Ela foi para cidade se tratar da

doença de chagas e eles não estavam separados, ele tinha muito ciúmes dela

até dos irmãos dela quando a cumprimentavam com abraços ele dizia: Não

sei pra que tanto abraço.

Os filhos mais velhos (um homem e uma mulher) depuseram novamente e

confirmaram o ciúme e a violência excessiva do pai contra a mãe, demonstrando que ela

nunca o denunciara por medo e que eles saíram de casa antes da maioridade, também por

medo e por não suportarem mais presenciar a mãe ser agredida, já que eles a defendiam e o

pai se enfurecia ainda mais.

A amante é conclamada pela defesa como testemunha e presta declarações, na

tentativa de desqualificar a vítima dizendo:

Ela gostava de intriga, já tentou me bater e disse que ia me matar, que minha

filha é um piolho de cobra, ouvi de Edevan na delegacia quando fui visitar

ele que ela na hora do acontecido estava acompanhada de um homem (acho

que era Zezinho o gerente da fazenda) e ele quando viu Edevan se aproximar

foi embora.

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Em face dessas alegações questiona a promotora de justiça: “Será que pretende o

acusado utilizar-se desse documento como algum meio de prova mesmo sem haver se valido

do contraditório. Adiante veremos”.

A defesa convoca três testemunhas de defesa, todas elas homens, vizinhos e

amigos do réu, na tentativa de demonstrar que ele era trabalhador, bom vizinho, que nunca

fizera nada que desabonasse sua conduta e que cometera o crime em um momento de

devaneio e raiva, que alegaram não saber falar mais detalhadamente sobre a convivência do

casal, pois isto era “particularidade dos dois” e que, como as casas na zona rural são muito

longínquas, eles não podem informar.

Compõe a denúncia o Promotor de Justiça9:

A convivência material sempre foi muito difícil já que o denunciado batia na

vítima e esta bem como seus filhos eram impedidos de procurar a polícia. A

vítima por vezes era impedida de ter gestos afetuosos com seus irmãos, o réu

conseguia ver maldade num abraço entre irmãos. A vítima pedia ao acusado

que deixasse sua amante e ele por vezes mentia dizendo que já havia

rompido aquele relacionamento. Estando seriamente doente a vítima teve

recomendações médicas de que viesse a cidade fazer um tratamento o que

foi feito por ela, que se hospedou na casa de seus genitores. No dia do fato, a

vítima foi à missa na companhia de parentes.

Após a exposição do caso, o promotor de justiça solicita a incursão do fato no art.

121, parágrafo 2º, inciso IV, art. 61, parágrafo 2º alínea “c” e art. 1º inc. I da Lei de Crimes

Hediondos.

Bem instruído, o defensor público rebate as alegações da acusação e, numa defesa

bem constituída, alega que o crime não pode ser qualificado como hediondo mediante

surpresa e impossibilidade de defesa da vítima, pois o casal vivia em crise conjugal e ameaças

de agressões permeavam a relação. Assim, a vítima já deveria esperar uma intenção negativa

por parte do réu ou deveria ter buscado ajuda anteriormente. A defesa utilizou várias

jurisprudências, ou seja, julgados anteriores, em vários tribunais de justiça, sobre fatos

parecidos que não foram tratados como hediondos e sim beneficiados com homicídio simples.

Sobre o fato, argumenta:

Constata-se que do quanto apurado, a narrativa da denúncia de ter o acusado

praticado o crime hediondo, qualificado mediante surpresa, há de ser

rejeitada. Efetivamente não se encontram presentes no caso em tela nenhuma

das formas que qualifiquem o homicídio [...]. Pois bem, Excelência, de toda

9 É importante ressaltar que, neste momento, o caso já está nas mãos de um novo promotor. Acredita-

se que o anterior tenha tirado licença. Este caso teve três promotores e cinco juízes diferentes.

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prova colhida nos autos, por todos os depoimentos testemunhais, não

ficou caracterizada a surpresa ou qualquer outro meio que dificultasse a

defesa da vítima. Diz a própria peça acusatória que a vítima vinha sendo

constantemente ameaçada de morte pelo acusado, outrossim, apurado

nos autos, que a vítima temia que essas ameaças se concretizassem, e

que no constante dos autos, o acusado ainda trocou palavras com a

vítima, antes do ocorrido. Ante toda esta situação, não pode se dizer que a

vítima foi colhida de surpresa pelo acusado, a vítima tinha razões próprias

para suspeitar do pronunciamento do acusado. Vale-se julgados sobre

situações parecidas (Tribunais de justiça do MS, PR e SP). O homicídio a

traição (homicídio proditoreim) é cometido mediante ataque súbito e

sorrateiro, atingindo a vítima, descuidada ou confiante, antes de perceber o

gesto criminoso (comentário do Código Penal Forense) (Grifo nosso).

O juiz se pronuncia em favor da defesa acatando a tese do homicídio simples, o

que diminui largamente a pena. Alegando que se o casal vivia em constante atrito, a vítima

deveria ter buscado proteção policial, conclui o juiz:

Da análise minudente das provas careadas aos autos verifica-se que a vítima

já vivia assustada sempre era espancada e ameaçada de morte pelo acusado

[...]. Diz a doutrina que a surpresa da vítima pode qualificar o delito quando

efetivamente comprovado que o ato é totalmente inesperado, impedindo ou

dificultando a defesa, encontrando-se essa circunstância na cognição e

vontade do agente, desta forma não há que se falar em qualificadora da

surpresa, uma vez que restou, patentemente comprovado nos autos

desentendimentos anteriores entre o casal. Menciono abaixo jurisprudência

pátria nesse sentido o qual comunga este juízo. DISCUSSÕES

ANTERIORES DE CASAL; INESISTÊNCIA DE SURPRESA – TJSP (RT

534/390) „Vivendo o acusado e vítima do homicídio às turras, com

frequentes discussões e agressões, não se configura a qualificadora de

surpresa por se tratar de evento possível, devendo a circunstância ser

excluída da sentença de pronúncia‟. Diante do exposto e de tudo quanto

consta dos autos, julgo procedente em parte a denúncia com fundamento no

art. 408 do CPP, pronuncio o acusado Edevan Lima, que seja submetido a

julgamento pelo Tribunal do Júri como incurso nas sanções do art. 121

„caput‟ o art. 61, parágrafo II alínea „c‟ todos do Código Penal Brasileiro.

O júri foi marcado para sete meses após o crime e, no exato dia, já com o

Conselho de Sentença composto, a defesa, astutamente, alegou que o réu sofria de transtornos

mentais e que estava com a capacidade de discernimento reduzida no dia do fato, pois havia

consumido altas doses de bebida alcoólica. Assim, solicita exame mental do réu para um novo

julgamento.

Sobre o fato, argumenta o juiz:

Sustentando a tese do art. 26 do CP, aduzindo a imputabilidade do acusado

na época do fato, seu patrono suscitou a imputabilidade do mesmo na época

do fato, desta forma restou impossibilitada a continuação do Tribunal do

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Júri, passando a dissolver o Conselho de Sentença e determinando que o

acusado seja submetido a exame de sanidade mental e para tanto

determino que extraia-se cópia dos presentes autos autuados em

registrando em autos apartados, devendo aqueles autos retornar

conclusos. (Grifo nosso).

Com base na decisão do juiz de suspender o júri e encaminhar o réu a um exame

de sanidade mental, a defesa recorreu a um pedido de habeas corpus, uma medida protetiva

para que o acusado respondesse pelo crime em liberdade enquanto aguardava o segundo

julgamento.

O réu foi levado a um Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico em

Salvador (HCTPS) e lá ficou por dois meses, sendo devolvido à Cadeia Pública Municipal de

Inhambupe para realizar os exames de sanidade mental em uma unidade do Centro de

Tratamento Psiquiátrico mais próximo, Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) de

Alagoinhas, sob a alegação de que o HCTPS da capital se encontrava com superlotação. Nos

novos autos do réu, haja vista que os anteriores são dados como conclusos, aparece uma

Portaria n° 02/2001 elaborada por um juiz que remete a uma lei estadual n° 7886/2001

que determina que os réus do interior que deverão ser submetidos a exames de sanidade

mental, realizarão os exames no CAPS mais próximo da origem do delito.

Nesse ínterim, o pedido de habeas corpus do réu ainda não fora julgado e o

processo se encontrava parado, e seu advogado busca em uma instância superior, recurso para

análise dos fatos. O desembargador indicado para julgar o mérito da causa solicita explicações

para o juiz da Comarca de Inhambupe sobre o processo, que responde:

Preliminarmente faz-se necessário informar que a Comarca de Inhambupe

está sem juiz titular desde 10/12/2004, no mês de janeiro do decorrente ano

estive de férias. Cumpre-me ainda informar que a comarca possui quase

5.000 processos na justiça comum, além de ser sede da 44º Zona Eleitoral

que integram os municípios de Inhambupe, Aporá e Sátiro Dias. Além disso,

houve a greve dos serventuários da justiça o que prejudicou o julgamento do

habeas corpus do réu como também da organização do novo julgamento.

Como o novo julgamento fora marcado, passados, porém, dois anos do fato, o

Desembargador julgou improcedente a solicitação de habeas corpus, acatando as justificativas

do juiz substituto de que estava próximo o novo julgamento, sendo desnecessário, portanto, o

réu esperar em liberdade. Vale ressaltar que, neste momento, o réu não estava mais fazendo

uso do defensor público, ou seja, havia contratado um advogado particular.

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Em mais uma tentativa de manobra do judiciário por parte da defesa, é feita nova

solicitação ao Desembargador, arguindo que o julgamento já marcado seja anulado sob a

alegação de que o acusado sofria de transtornos mentais e que, no dia do fato, estava bêbado,

devendo, assim, ser considerado inimputável, ou seja, não deveria responder pelos próprios

atos por estar sem capacidade de discernimento. Buscando sustentação em jurisprudências e

no laudo pericial supostamente realizado no réu, a defesa clama novamente pelo

cancelamento do júri e pela absolvição imediata, como demonstra a seguinte passagem:

À época do fato o réu era portador de perturbação de saúde mental e que em

virtude dessa perturbação não tinha ele a plena capacidade de entendimento

da ilicitude do fato ou de autodeterminar-se, possuía o mesmo, um histórico

de uso abusivo de bebidas alcoólicas desde jovem evidenciando-se ao longo

dos anos sintomas de transtorno mental e comportamento devido ao uso de

álcool CID 10F 10.2 embriagues patológica, pois ver jurisprudência.

CAPACIDADE REDUZIDA PELA EMBRIAGUES PATOLÓGICA, TJSP

(RT 411/412) „a embriagues patológica verifica-se nos predispostos, nos

tarados, nos filhos de alcoólatras. Nesses indivíduos extremamente

suscetíveis à bebidas alcoólicas, doses pequenas podem desencadear acessos

furiosos, atos de incrível violência, ataques convulsivos tornando-os

irresponsáveis por sua conduta. O paciente, sofre de manifesto

constrangimento ilegal por parte da autoridade judiciária questionada,

fato a ser coibido pelo presente habeas corpus, diante da flagrante

absolvição que deve imperar pelos motivos expostos. (Grifo nosso).

É imprescindível ressaltar que o laudo a que tanto a defesa faz alusão não aparece

nos autos, fato questionado uma vez pela Promotoria de Justiça e não respondido pela defesa,

mas não inquirido novamente pelo Ministério Público como forma de anular os atos da

defesa. Este lapso, configurado como inépcia jurídica, assim como outros, no caso em

questão, foram corroborados pelas trocas constantes de promotores e juízes no processo.

O Desembargador decide levar o caso a novo júri popular, dois anos e três meses

após o crime. Em sua defesa, o réu alega que não se lembra de nada, pois bebera o dia todo;

disse que portava uma faca, pois a utilizava para cortar fumo, e que ficou sabendo na cadeia

que esfaqueou e matou sua ex-companheira. Reitera que, anos atrás, levara uma pancada na

cabeça, que sente dores e toma constantemente analgésico e que, em consequência da

pancada, não se lembra dos depoimentos anteriores.

O Ministério Público, na voz do promotor de justiça, timidamente rebate as

alegações da defesa, conclamando as testemunhas de acusação, na tentativa de mostrar todo o

sofrimento da vítima em convivência com o réu que, além disto, mantinha uma amante jovem,

constituindo outra residência e filho. As representações socioculturais de casal, fidelidade,

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família e esposa boa dona de casa são enaltecidos. Diz o promotor: “A vítima tinha um bom

coração e por isso não denunciava o réu”.

O representante do Ministério Público requereu a condenação do réu pela prática

de homicídio simples, com o agravamento de ter o agente praticado o crime contra cônjuge,

nos termos do art. 121 caput e art. 61, inciso II, alínea e.

O júri foi composto de quatro mulheres e três homens e, para eles, foram

repassados os seguintes quesitos:

1) O réu Edevan Lima, qualificado nos autos, no dia 14 de julho de 2002,

por volta das 21h30minh, na Praça da Matriz, nesta cidade, utilizando-se de

uma faca tipo peixeira, que trazia consigo, deferiu golpes contra a vítima

Luíza Lima, atingindo-a no pulmão esquerdo, produzindo-lhe as lesões

tipificadas no laudo de exame cadavérico fls. 103/104?

2) Essas lesões por sua natureza e sede, foram a cauda da morte da vítima?

3) O réu Edevan Lima, ao tempo da ação em virtude de perturbação de saúde

mental, possuía a plena capacidade de entender o caráter ilícito do fato?

4) O réu Edevan Lima, ao tempo da ação, em virtude de perturbação de

saúde mental, possuía a plena capacidade de determinar-se de acordo com o

entendimento do caráter ilícito do fato?

5) A vitima Luíza Lima era esposa do réu Edevan Lima?

6) Há atenuantes em favor do réu?

7) Essas circunstâncias atenuantes consistem em ter o réu confessado

espontaneamente perante a autoridade, a autoria do crime?

De forma quase unânime, os jurados entenderam que o réu tinha total

discernimento sobre a reprovabilidade dos atos cometidos ao tempo da ação (6 votos sim), ou

seja, não aceitaram a justificativa de imputabilidade do réu causada pela ingestão de bebida

alcoólica ou por problemas de cunho mental. Confirmaram, por unanimidade, ser Luíza Lima

esposa do réu (7 votos sim) e verificaram como atenuantes ter o réu confessado

espontaneamente a autoria do crime.

O juiz prolatou, então, a sentença arguindo:

A personalidade do réu não parece ser voltada para o cometimento do

delito, sendo o único praticado e conhecido nos autos até a presente

data. As circunstâncias do crime não lhe são favoráveis, pois o conselho de

sentença reconheceu ressalvada a hipótese de BIS IN IDEM, que o réu

ceifou a vida de sua esposa à noite quando a mesma saía de uma missa na

igreja, deixando seis filhos (fls 24), demonstrando com tal atitude, seu total

descontrole e falta de compaixão pelo semelhante. Pelo que se denotou em

tela o comportamento da vítima em nada contribuiu para o desenlace do

comportamento de o réu. Tendo presente tais circunstâncias, além de

verificar a necessidade da reprovação, aliada a tese de prevenção e

recuperação do réu no delito praticado com fulcro nos art. 59 e 68 ambos do

CPB [...] fixo a pena base em oito anos de reclusão diminuída em seis meses

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pela confissão espontânea, art. 65, inciso III, alínea d do CPB, em sete anos e

seis meses cumpridos em regime semiaberto, art. 31 parágrafo 1º e 2º

alínea b do CP, com detração penal do tempo em que passou preso

provisoriamente. (Grifo nosso).

Em 2006, dois anos após o julgamento e quatro anos após o crime, Edevan Lima

continuava detido na Cadeia Pública Municipal aguardando ser remetido à Colônia Agrícola

de Execuções Penais da Capital do Estado onde deveria cumprir sua pena em regime

semiaberto. O advogado de defesa entrou com uma petição informando a ilegalidade da

situação e exigindo correção. O juiz respondeu à petição informando que, nas situações de

regime semiaberto, deve-se esperar apreciação ou autorização da Corregedoria Geral de

Justiça (CGJ) que remete o caso à Vara de Execuções Penais da Capital do Estado que, por

sua vez, transfere o detento a uma Colônia Penal ou similar. Objetivando que o detento não

tivesse mais prejuízo, o juiz autorizou que ele cumprisse o regime semiaberto na Cadeia

Pública Municipal enquanto aguardava liberação por parte da CGJ.

Devido à burocracia jurídica, assim como a dificuldades de vagas nas ditas

colônias agrícolas que tratam do regime semiaberto, Edevan Lima ficou cumprindo sua pena

na Depol local, sendo liberado às 05h00min horas e recolhido às 18h00min horas.

3.1.3 Análise dos Discursos e Falhas do Processo

O caso de Luíza Lima é o primeiro caso de Inhambupe, do século XXI, de

assassinato de mulher por cônjuge com resultado concluso e não difere muito dos casos

anteriores, resultantes de uma relação marcada por agressões e por medo de denúncia.

Vale ressaltar a fala do promotor que, durante o discurso de julgamento, alega que

a vítima não denunciava, porque “tinha um bom coração” quando, na verdade, os autos

denunciam, através da fala das testemunhas de acusação, que Luíza Lima não denunciava por

medo, haja vista que o réu dizia que quando saísse da delegacia mataria a todos, inclusive os

filhos que a apoiassem.

O caso, que chocou Inhambupe pela brutalidade cometida em um domingo de

missa na Praça da Matriz, assusta pela quantidade de lapsos: a viatura quebrada para averiguar

o caso, policiais correndo a pé para chegar ao local do crime, dificuldades para prestar socorro

à vítima por falta de ambulância, inépcia judicial e beneficiamento do réu.

A justiça, em nenhum momento, apresentou possibilidades de proteção a Luíza e

ainda a vitimou duplamente, ao não classificar o crime como hediondo, alegando que ela já

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deveria esperar pela reação do réu, pois “viviam as turras, não foi pega de surpresa”, palavras

do defensor público e acatadas pelo juiz.

Agora, pergunta-se: como uma pessoa imagina que será atacada em local

movimentado e acompanhada por parentes?

O defensor público, astuto, utilizou cinco páginas e diversas jurisprudências para

desqualificar o crime e alcançar a tese do homicídio simples com pena estupidamente menor,

enquanto o promotor o fez em duas laudas de forma resumida e sem muitas explicações,

batendo na tecla das representações socioculturais, buscando evidenciar as qualidades de boa

mãe e esposa de Luíza e que o réu era infiel e “dado a amantes, um adúltero”. A base da

acusação era, assim, demonstrar que a vítima se enquadrava nas representações aceitas

socialmente e não traía o marido.

A troca constante de promotor, a extrema quantidade de processos, como lembra o

juiz em resposta ao desembargador, e a falta de condições econômicas da família da vítima

para contratar um advogado auxiliar para o promotor assoberbado contribuíram para que o réu

não fosse punido adequadamente e que ressoasse a impunidade.

Em nenhum momento, até mesmo no que costuma ser o “teatral e apaixonado”

embate entre defesa e acusação, esta enfatizou a brutalidade da morte de Luíza, assassinada a

facadas perto dos parentes, subitamente. O promotor de justiça não atentou para a farsa do

laudo de insanidade mental, que não foi realizado: apenas existe, nos autos de quase

quinhentas páginas, um ofício remetendo o acusado para que realizasse o exame em uma

cidade próxima ao delito crime. O discurso bem formatado da defesa ludibriou a promotoria e

o juiz sobre a existência e a eficácia de um documento fictício, haja vista que a defesa até

apresentou a Classificação Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde

(CID) de casos de alcoolemia que provocam incapacidade de discernimento, assim como

jurisprudências de casos semelhantes.

O acusado, que disse desconfiar da conduta da vítima, pois a viu conversando

com o gerente da fazenda onde trabalhava, uma vez, acreditava que poderia influenciar o júri

ao seu favor se demonstrasse infidelidade por parte da ex-companheira, quando, na verdade,

os autos deixavam claro a sua personalidade ciumenta, agressiva e machista.

Edevan constituiu união estável com outra pessoa e mesmo assim se sentia “dono

de Luíza Lima”. A sua última conversa com a vítima demonstrou isto: “É assim que você

nunca sai de casa?” ao que ela responde: “Mas eu só vim à missa”. Luíza foi assassinada

publicamente, porque o réu ficou furioso ao ver que ela tomara coragem para sair de casa para

cuidar de si e ter o direito de ir a uma simples missa.

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No meio do processo, apareceu anexada uma certidão de venda de terras do réu a

uma pessoa física, fato que deve tê-lo auxiliado financeiramente para constituir um advogado

particular, mas, como ele pôde vender terras, se era casado civilmente com a vítima há 22

anos e tinham herdeiros? Este documento não é questionado e a venda é consumada.

O discurso do juiz ao prolatar a sentença merece análise detalhada: o processo

passa por cinco juízes diferentes, um desembargador e dois júris; o juiz argumenta que o réu

aparentava ter boa conduta e não ter propensão ao crime, mas diz que o conselho de sentença

julgara seu ato reprovável e desumano, haja vista que, quase por unanimidade, ele foi

considerado culpado em todos os quesitos, sendo reconhecido, apenas, o fato de ele ter

confessado espontaneamente.

O que chama a atenção é o fato de que mesmo tendo o Conselho de Sentença

julgado o réu culpado, o juiz justifica a pena abrandada por acreditar que o crime se enquadra

no rol das circunstâncias que atenuam a pena (art. 59), no entanto, não especifica o inciso. Um

homem que esfaqueia a companheira que morre quase instantaneamente se enquadra nos

artigo em questão?

O discurso do juiz parece incongruente com a realidade dos fatos, principalmente

quando ele faz menção ao princípio do BIS IN IDEM10

, para não julgar o réu duas vezes pelo

10

NO BIS IN IDEM Também usado no Direito Penal/Processual Penal, este princípio (não repetir

sobre o mesmo) estabelece que ninguém pode ser julgado duas vezes pelo mesmo fato (crime). O

“bis in idem” no Direito Penal seria a não observância desse princípio, apenando um indivíduo

pelo mesmo "crime" mais de uma vez, “bis in idem” nada mais é do que o mesmo duas vezes.

Inimputáveis Art. 26 É isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento

mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de

entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento Redução

de pena Parágrafo único A pena pode ser reduzida de um a dois terços, se o agente, em virtude

de perturbação de saúde mental ou por desenvolvimento mental incompleto ou retardado não era

inteiramente capaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse

entendimento.

Reclusão e detenção Art. 33 A pena de reclusão deve ser cumprida em regime fechado,

semiaberto ou aberto. A de detenção, em regime semiaberto, ou aberto, salvo necessidade de

transferência a regime fechado. §1º Considera-se: a) regime fechado a execução da pena em

estabelecimento de segurança máxima ou média; b) regime semiaberto a execução da pena em

colônia agrícola, industrial ou estabelecimento similar; §2º As penas privativas de liberdade

deverão ser executadas em forma progressiva, segundo o mérito do condenado, observadas os

seguintes critérios e ressalvadas as hipóteses de transferência a regime mais rigoroso: a) o

condenado a pena superior a 8 (oito) anos deverá começar a cumpri-la em regime fechado; b) o

condenado não reincidente, cuja pena seja superior a 4 (quatro) anos e não exceda a 8 (oito),

poderá, desde o princípio, cumpri-la em regime semiaberto.

Fixação da pena Art. 59 O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à

personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e consequências do crime, bem como ao

comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e

prevenção do crime: I as penas aplicáveis dentre as cominadas; II a quantidade de pena

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mesmo crime, ou seja, o fato de ter cometido o assassinato nas circunstâncias brutais e ser a

vítima sua cônjuge não é enfatizado como um agravante da pena, pois o juiz prefere levar em

consideração os art. 59 e 68 do CPB, beneficiando o réu e objetivando a “prevenção e

recuperação”. Ele supervalorizou o fato de o réu ser primário, de ter bom comportamento na

delegacia, de ter sido apontado pela defesa como homem trabalhador, de bons antecedentes e

confessado o crime espontaneamente, embora as testemunhas de acusação demonstrassem a

agressividade, o machismo, o ciúme infundado e a crueldade do acusado.

É imprescindível atentar que o juiz, podendo aplicar uma pena entre 6 e 20 anos,

aplicou a pena de 7 anos e seis meses em regime semiaberto, um fato que, aliado aos

desenlaces de casos anteriores provocou na população uma extrema sensação de impunidade,

haja vista que o regime semiaberto foi, em grande parte, cumprido na própria cidade, pelos

motivos já expostos. Causou na população espanto e desânimo ver o réu transitando durante o

dia, livremente, pelo mesmo local em que assassinou a ex-companheira, segundo relatos de

informantes.

Sobre os perfis de vítima, réu, testemunhas de defesa e acusação todos eram

negros, analfabetos ou semialfabetizados (ensino fundamental, séries iniciais) e católicos.

aplicável, dentro dos limites previstos; III o regime inicial de cumprimento da pena privativa de

liberdade; IV a substituição da pena privativa da liberdade aplicada, por outra espécie de pena, se

cabível.

Circunstâncias agravantes Art. 61 São circunstâncias que sempre agravam a pena, quando não

constituem ou qualificam o crime: e) contra ascendente, descendente, irmão ou cônjuge;

Cálculo da pena/Circunstâncias atenuantes Art. 65 São circunstâncias que sempre atenuam a

pena: I ser o agente menor de 21 (vinte e um), na data do fato, ou maior de 70 (setenta) anos, na

data da sentença; II o desconhecimento da lei; III ter o agente: a) cometido o crime por motivo

de relevante valor social ou moral; b) procurado, por sua espontânea vontade e com eficiência, logo

após o crime, evitar-lhe ou minorar-lhe as consequências, ou ter, antes do julgamento, reparado o

dano; c) cometido o crime sob coação a que podia resistir, ou em cumprimento de ordem de

autoridade superior, ou sob a influência de violenta emoção, provocada por ato injusto da vítima; d)

confessado espontaneamente, perante a autoridade, a autoria do crime; e) cometido o crime sob a

influência de multidão em tumulto, se não o provocou.

Art. 66 A pena poderá ser ainda atenuada em razão de circunstância relevante, anterior ou

posterior ao crime, embora não prevista expressamente em lei.

Art. 68 A pena-base será fixada atendendo-se ao critério do art. 59 deste Código; em seguida

serão consideradas as circunstâncias atenuantes e agravantes; por último, as causas de diminuição e

de aumento. Parágrafo único No concurso de causas de aumento ou de diminuição previstas na

parte especial, pode o juiz limitar-se a um só aumento ou a uma só diminuição, prevalecendo,

todavia, a causa que mais aumente ou diminua.

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3.2 “DEVERIA TER MATADO OS DOIS”

Arcênio Costa 56 anos, branco, funcionário público, semialfabetizado, casado

constituía uma casa na zona urbana com mulher e seis filhos. Também convivia em união

estável com Joana Silva, na localidade da zona rural denominada Colônia Nova, na casa da

genitora desta. Por volta das 21h:30, do dia 31 de janeiro de 2002, ele assassinou Joana Silva

20 anos, branca, lavradora, dois filhos , com seis disparos de revólver 38, no momento em

que a mesma se encontrava em um depósito na casa de vizinhos do casal. Arma em punho, o

réu arrombou a porta a pontapés e, ato contínuo, deflagrou os disparos: ela veio a falecer

minutos depois.

Joana Silva tinha o hábito de ir à casa do vizinho assistir a novela e foi ao

depósito pegar a bicicleta, seu veículo de transporte. Estava acompanhada por um amigo, que

também frequentava a casa para assistir televisão, quando os dois receberam os disparos: ele

conseguiu fugir com um tiro de raspão no braço, mas ela foi totalmente alvejada.

3.2.1 Constituição do Inquérito, Depoimento das Testemunhas e Réu

Na delegacia, foram depor apenas as testemunhas de defesa, pois o réu se evadiu

do local do crime, sendo inquiridos o dono da casa, sua esposa, o amigo e a mãe da vítima.

Disse o dono da casa que ouviu disparos e que, quando saiu à porta, viu a vítima

toda ensanguentada pedindo socorro; foi quando avistou o réu correndo atrás do amigo que

acompanhara a vítima. O réu desapareceu no mato e ele e sua esposa foram amparar a vítima

deitando-a no sofá: a esposa ficou cuidando da amiga agonizante enquanto ele e o outro rapaz

foram em busca de socorro. Andaram mais de 5 km de bicicleta e, em duas casas, não tiveram

êxito, pois os carros estavam sem gasolina. Depois de muita dificuldade, encontraram um

carro para prestar socorro, no entanto, Joana já estava sem vida.

A esposa do dono da casa afirmou que ficou com a vítima agonizante e que,

enquanto seu companheiro ia em busca de ajuda, o réu voltou ao local, colocou a arma em sua

boca, segurando-a pela gola da camisa, e disse: “Você é uma safada alcoviteira; eu devia fazer

com você o que fiz com ela”. Foi quando ele bateu no pé de Joana, que gemia no sofá, e disse:

“Sua puta, eu deveria ter matado os dois”. Alegou temer o réu, uma pessoa violenta e perigosa

que já bateu e ameaçou muita gente naquela região.

A mãe da vítima disse que a filha vivia em regime de concubinato com o réu, há

dois anos, que ela tinha dois filhos que não eram dele, mas do seu primeiro casamento, e que

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sabia que ele era casado com outra mulher com quem tinha seis filhos, em outra residência, na

zona urbana. Afirmou que o réu e sua filha tinham um bom relacionamento, se divertiam

muito e que ela os acompanhava quando saíam. No dia do ocorrido, esperava pelo casal em

sua residência, já que conviviam em sua casa, quando o réu adentrou violentamente e disse:

“Matei sua filha e agora vou matar você”. Disse saber que um homem da região andava

espalhando que sua filha tinha um relacionamento amoroso com um rapaz do povoado (o que

estava assistindo televisão com ela e a acompanhou até o depósito no dia do fato), no entanto,

negou que a filha mantivesse um caso, dizendo, inclusive, que o réu chegara um dia em casa

achando graça dessas histórias.

O suposto amante também foi chamado para depor, após ter realizado exame de

corpo de delito, que demonstrou um tiro de raspão desferido em seu braço. Afirmou que não

possuía com a vítima mais do que uma simples amizade e reiterou que fora até o depósito

ajudar a vítima a pegar a bicicleta que estava em local escuro. Disse que foi surpreendido com

um chute na porta e tiros, que atingiram Joana. Foram tantos tiros que o revólver descarregou

e que, quando o réu foi carregá-lo novamente, ele deu um pontapé na mão do mesmo,

correndo e, mesmo assim, ainda foi atingido no braço.

Todas as testemunhas de defesa alegaram ter medo do réu e estarem sendo

ameaçadas para não falarem a verdade em seus depoimentos. Disseram que o réu possui

diversas passagens pela polícia, que era frio e influente politicamente. A mãe e a amiga de

Joana confirmaram as ameaças a mão armada momentos após o assassinato e que, por causa

disto, passaram a fazer uso de calmantes.

Dois meses depois do assassinato, o réu se apresentou na delegacia acompanhado

por um advogado, alegando que, ao chegar à casa dos vizinhos, fora informado pela dona da

casa de que sua “amante” estava no depósito com um homem e, assim, desconfiou que a

vítima o estava traindo. Foi até o depósito e vendo que estava trancado, arrombou com um

chute e disparou tiros nas sombras, não sabendo a quem atingira.

O advogado de defesa arrolou seis testemunhas na tentativa de demonstrar que o

réu era trabalhador, como afirmado em um dos depoimentos: “Seu Arsênio é um homem

direito e trabalhador, tem bom comportamento na comunidade, é motorista na prefeitura,

pessoa de bem é calmo, matou por susto de ver a mulher com outro”.

Com base nas informações o delegado concluiu o inquérito em conjunto com o

laudo pericial que atestou morte por hemorragia aguda, perfuração de pulmão direito, fígado e

rim esquerdo, assim como os antecedentes criminais do acusado em que constavam crimes de

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lesões corporais (1983), invasão de domicílio (1985) e dano (1986). O crime atual foi

intitulado assassinato por ciúmes e o processo remetido ao Ministério Público.

3.2.2 Ministério Público, Produção da Denúncia, Instauração do Processo e

Análise do Juiz

O promotor de justiça instaurou o processo alegando que o crime fora praticado

mediante recurso que impossibilitou a defesa da vítima, afirmando: “Estando a vítima dentro

do depósito pegando a sua bicicleta para ir embora, foi surpreendida com a presença do

acusado que abriu a porta que havia se encostado com uma pesada e ato contínuo descarregou

a sua arma.” Ele solicita que o assassinato seja classificado como homicídio qualificado

mediante impossibilidade de defesa da vítima, art. 121, inciso 2º, parágrafo 4º, CPB.

Em contraponto, a defesa alegou violenta emoção e pediu a incursão do caso

como homicídio privilegiado11

:

Extrai-se claramente dos autos que o acusado entrou em choque perdendo

totalmente o controle emocional ao encontrar sua mulher às 22h00 dentro de

um depósito totalmente escuro, com a porta fechada, com um homem do

qual havia um boato que estava tendo um caso com a mesma [...]. Ora

excelentíssimo naquela oportunidade, tinha todos os motivos para

acreditar que sua mulher e o Sr Euclides não estavam pegando uma

bicicleta [...] naquele momento o réu foi dominado por uma violenta

emoção, ímpeto emocional ao encontrar sua mulher [...] servem de esteio

às informações prestadas pelas testemunhas de defesa, quais foram

veementes em afirmar a boa conduta do réu, trabalhadora de bom

comportamento na comunidade. Peço que seja ignorado a surpresa, pois a

vítima tinha plena consciência de que o denunciado poderia chegar. Nesse

sentido destacamos a jurisprudência „Além do procedimento inesperado é

necessário que a vítima não tenha razão para esperar nem suspeitar da

agressão (TJSP, RT 645/279, TJSC, RT, 612/362)‟. Solicito que o réu seja

incurso no art., 121, inciso 1º do CPB (HOMICÍDIO PRIVILEGIADO).

11

Homicídio simples Art. 121 Matar alguém: Pena reclusão, de 6 (seis) a 20 (vinte) anos.

Caso de diminuição de pena Homicídio Privilegiado § 1º Se o agente comete o crime

impelido por motivo de relevante valor social ou moral, ou sob o domínio de violenta emoção,

logo em seguida a injusta provocação da vítima, o juiz pode reduzir a pena de um sexto a um

terço. Homicídio qualificado § 2º Se o homicídio é cometido: I mediante paga ou promessa de

recompensa, ou por outro motivo torpe; II por motivo fútil; III com emprego de veneno, fogo,

explosivo, asfixia, tortura ou outro meio insidioso ou cruel, ou de que possa resultar perigo comum;

IV à traição, de emboscada, ou mediante dissimulação ou outro recurso que dificulte ou torne

impossível a defesa do ofendido; V para assegurar a execução, a ocultação, a impunidade ou

vantagem de outro crime: Pena reclusão, de 12 (doze) a 30 (trinta) anos.

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O juiz não acatou a tese da defesa de homicídio privilegiado e decidiu levar o réu

ao Tribunal do Júri com base nos art. 121, inciso 2º, parágrafo 4º e art. 10 da Lei n° 9493/97

(Porte ilegal de armas).

Oito meses após o crime, foi marcado o júri. Vale ressaltar que, por ter estáveis

condições financeiras e influência política, o réu utilizou vários advogados particulares que,

em algumas fases do processo, trabalharam em conjunto buscando uma melhor defesa e

brechas na lei em que pudessem enquadrar o caso.

O júri foi todo composto por mulheres, um fato incomum, e durou dois dias, com

um embate acalorado entre defesa e acusação, haja vista o bom preparo dos advogados

particulares. Foram propostos quatorze quesitos aos jurados, em duas séries, uma com doze e

outra com dois, outro fato incomum, a primeira versando sobre o crime e a segunda sobre o

porte ilegal de arma.

Primeira Série

1) O réu Arcênio Costa, no dia 31/01/2002, por volta das 21h00, na

localidade denominada Colônia Nova, neste município produziu vários

disparos de arma de fogo contra sua amante Joana Silva, causando-lhe as

lesões descritas no laudo de exame Cadavérico as fls. 62/62?

2) Essas lesões por sua natureza e sede ocasionaram a morte da vítima Joana

Silva?

3) O réu Arcênio Costa agiu em defesa da sua honra?

4) Defendeu-se o réu Arcênio Costa, sua honra de uma agressão atual?

5) Defendeu-se o réu Arcênio Costa de uma agressão iminente?

6) Essas agressões contra a honra do réu Arcênio Costa era injusta?

7) O réu Arcênio Costa, usou dos meios necessários para repelir a referida

agressão a sua honra?

8) O réu Arcênio Costa excedeu dolosamente os limites da legítima defesa?

9) O réu Arcênio Costa excedeu culposamente os limites da legítima defesa?

10) O réu Arcênio Costa agiu sob o domínio de violenta emoção logo

seguida a injusta provocação da vítima?

11) O réu Arcênio Costa agiu com emprego de recurso (surpresa) que tornou

impossível a defesa pela vítima?

12)Existem circunstâncias atenuantes em favor do réu

Segunda Série

1) O réu Arcênio Costa no dia 31/01/2002 por volta das 21h00 na localidade

denominada Colônia Nova, neste município, portava arma de fogo calibre

38, sem o devido porte legal?

2) Existem circunstâncias atenuantes em favor do réu?

No primeiro e segundo quesitos da primeira série, o júri entendeu, por

unanimidade, que o réu provocou a morte da vítima. Já o terceiro quesito causa espanto: por 4

votos sim, os jurados afirmaram acreditar que o réu agiu em defesa da sua honra. As

contradições passam a ser latentes no 4º e 5º quesitos, em contraponto ao anterior: por 1 voto

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sim contra 6 não, o júri afirmou que o réu não defendeu sua honra e, desta forma, ficaram

prejudicados os quesitos 6º ao 10º da primeira série. Negou, por maioria, a tese do homicídio

privilegiado proposta pela defesa no 11º quesito, surgindo outra contradição no 12º quesito: o

júri acreditou que o réu não agiu com surpresa, ou seja, a vítima deveria esperar pela

agressão? Quanto aos atenuantes em favor do réu, por unanimidade, foram negados.

O conselho de sentença, na segunda série, reconheceu por unanimidade que o réu

praticou o crime de porte ilegal de armas como também negou a existência de atenuantes em

favor do réu.

Como o corpo de jurados não qualificou o crime e, embora com queixas na

delegacia, que foram arquivadas, o réu era primário, o juiz estabeleceu uma pena de 9 anos e

seis meses, sendo 1 ano e seis meses pelo porte ilegal de arma, afirmando em sentença.

Infere-se dos autos ser o réu primário, porém sua conduta social não é das

mais exemplares, pois pela prova dos autos verifica-se que o mesmo

mantinha com a vítima relacionamento extraconjugal possuindo família

mulher e filhos e trabalhava como motorista na Prefeitura Municipal, não

possuindo bons antecedentes na comunidade. Agiu com dolo intenso

revelando personalidade agressiva e fria ao ceifar a vida de sua amante, com

apenas 20 (vinte) anos de idade, a circunstância do delito verifica-se quando

o réu após ter cometido fato delituoso ao fugir do local do fato sem prestar

socorro à vítima, retornou ao local do fato com arma na mão ameaçando

testemunha, e ainda chutou a vítima dizendo que queria matar os dois, em

seguida foi a casa da genitora da vítima, gritando que acabara de matar a

filha da mesma e queria mata-la também, demonstrando insensibilidade

tendo causado clamor na comunidade, as consequências do crime são

danosas, pois tirou a vida da vítima muito jovem, que deixou 02 (dois) filhos

menores órfãos, por outro lado não restou provado que a vítima tenha

contribuído para ocorrência do fato delituoso.

Não satisfeita com o resultado do júri, a defesa entrou com recurso e pediu revisão

do caso, com base no entendimento do quesito 3º, quando o júri reconheceu que o réu agiu em

defesa da honra, afirmando: “O réu se entregou espontaneamente, tendo como base o art. 65

do CPB, além do mais a honra é um bem jurídico, que a lei tutela, sendo a virtude que mais

dignifica o homem”.

O desembargador que julgou o caso em segunda instância decidiu pela diminuição

da pena com base no argumento de que o porte ilegal de arma não deveria ter sido julgado à

parte do crime e sim atribuída uma pena única. Em suma, ele utilizou a tese de que não se

pode julgar a mesma pessoa duas vezes pelo mesmo fato: o “no bis in idem”. Assim,

argumentou:

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A arma de fogo sem registro, e o apelante ser o proprietário, sem porte para

usá-la, estão intrinsecamente ligados neste homicídio. Mas, na verdade o

crime maior a absorverá. Tribunais Pátrios tem entendido que „[...] o delito

de porte ilegal de arma deve ser absorvido pelo delito grave de homicídio,

por constituir modo de preparação onde sua execução, diante da aplicação do

princípio da consunção‟. Portanto, a conexidade do delito de porte ilegal de

armas como delito de homicídio da competência do júri permite acolher-se a

pretendida absorção do ilícito de menor potencial pelo de maior gravidade

aplicação do princípio da consunção.

Com base nesta arguição, o desembargador decidiu diminuir a pena do réu em um

ano e seis meses e, assim, a pena final atribuída foi de 8 anos. No entanto, mais uma vez, o

empenho da defesa chamou a atenção, pois esta solicitou condicional por bom

comportamento.

Assim, exatos três anos após o crime, 31 de maio de 2005, foi concedido ao réu

liberdade condicional. Em 10 de junho de 2010, o juiz decretou cumprida a pena e finda a

punibilidade: logo, o réu passou apenas três anos preso. Atualmente convive com a esposa e

filhos na cidade e presta serviço de motorista com carro sublocado à Prefeitura Municipal.

3.2.3 Análise dos Discursos e Falhas do Processo

Neste caso, o que chama atenção é o discurso da defesa, a condição econômica do

réu que, além de agilizar o percurso da justiça, com vários advogados trabalhando na causa,

buscou subterfúgios para o abrandamento da pena.

Os discursos da defesa buscam caracterizar o crime como de valor social e moral,

levantando a ideia da “violenta emoção” e “legítima defesa da honra”, os mesmos discursos

utilizados por grandes defensores de criminosos passionais das décadas de 50 e 60, que

criaram a expressão “legítima defesa da honra”, visto que o nosso Código Penal reconhece

apenas a legítima defesa, também chamada de autotutela, quando a pessoa faz uso da força

para se defender de um perigo eminente.

A acusação buscou demonstrar a juventude da vítima como um agravante para o

crime, enquanto a defesa, a representação cultural de que matar por ciúmes justificaria a ideia

de “lavar a honra com sangue”. Em várias passagens, a defesa elevou a “honra masculina

como um valor social e jurídico a ser preservado”, arguindo, na apelação: “a honra é um bem

jurídico, que a lei tutela, sendo a virtude que mais dignifica o homem”.

O júri respondeu aos quesitos de forma confusa e equivocada, por não entender de

princípios jurídicos e, também, por ter sido induzido pelos argumentos da defesa, visto que,

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na maioria das vezes, condenou veementemente o crime mas, em situações chaves, como no

quesito 11º que qualificaria o delito e aumentaria a pena, votou contrariamente.

A influência política foi um fator decisivo em favor do réu, pois, tendo amigos

influentes no meio político, ele teve acesso a bons advogados como também recebeu apoio

moral e financeiro. Vale ressaltar que o autor do crime era conhecido por prestar serviços de

cabo eleitoral e de segurança a alguns políticos da cidade.

Por estar ainda casada judicialmente, embora não convivesse mais com o primeiro

marido com quem tivera dois filhos, e sim com o réu, a defesa não falou sobre a conduta da

vítima com medo de que a representação cultural sobre o fato de ser ela amante e o agravante

de ser acusada de traição pudesse prejudicar o caso; preferem, então, falar em um “uma jovem

que deixou dois filhos para criar”.

Arcênio era bem mais velho que a vítima, 36 anos de diferença, o que fortalecia

seus ciúmes, e tinha medo que ela o largasse. Ele também continuava convivendo com outra

família na cidade mesmo tendo relacionamento estável com a vítima, há mais de dois anos.

Além disto, os rumores da amizade de Joana com outro homem aguçaram a sua ideia de

posse, atitude machista e violenta.

O caso apresenta, em grande parte, pontos de convergência com os demais: os

envolvidos são semialfabetizados e católicos, no entanto, o réu é branco e de condições

econômicas razoáveis; a vítima também era branca, assim como a maioria das testemunhas de

acusação e defesa deste crime.

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4 CRIMES, DISCURSO E CULTURA

A análise do discurso, durante muito tempo foi marcada pela tríade língua-

história-memória; no entanto, com a abrangência dos Estudos Culturais nos últimos dez anos,

a cultura adentrou insistentemente nos estudos discursivos.

O discurso é objeto de reflexões no âmbito da Filosofia, da Linguística, do próprio

campo, que se pretende autônomo, da Análise de Discurso. Esta autonomia, a despeito de

insistências, não deve ser levada em consideração neste trabalho de dissertação onde se busca

a compreensão de que os discursos se organizam e se “desorganizam”, mas sempre

procurando nova organização e coerência interna para justificar “certezas e verdades”

constituídas histórico-culturalmente. Portanto, quem diz, sempre o faz a partir de um lugar e

de uma intenção.

Os processos analisados nos remetem a uma diversidade de pessoas, com vidas

diferentes, mas marcadas por sentimentos e experiências parecidas, ou seja, o que converge,

em todos os casos, é a forma como os crimes são praticados e os discursos proferidos. Estes

são discursos culturalmente construídos, sedimentados pela sociedade e materializados pelos

processos, perpetuados página por página, pelos atores jurídicos. Nesta perspectiva, os autos

emergem como um “lugar observatório” entre a cultura e o discurso.

Em todos os casos encontram-se homens que assassinaram as companheiras e que,

como justificativa para o fato, buscam levantar traições desqualificando a vítima e advogados

de defesa que intentam, nas brechas da lei, enquadrar o crime como de menor grau ou

potencial ofensivo e, portanto diminuir a pena. Observa-se aí, uma cultura extremante

misógina como lugar de inscrição dos sujeitos, assim como na história de Bentinho e Capitu

em Dom Casmurro, de Machado de Assis, em que tudo é baseado em suposições de traições.

A traição do homem pela mulher é condenada em nossa sociedade e, assim,

conjecturar sobre a existência de um amante para a vítima é uma forma de abrandar o crime e

coroá-lo com o discurso de crime cometido em busca da preservação de um “bem moral

tutelado juridicamente, a honra”, quando, na verdade, o que ocorreu é que todas estas

mulheres foram brutalmente silenciadas pelo simples fato de mostrarem a intenção de querer

findar a relação, na maioria dos casos, ou de exigir seus direitos, a exemplo do

reconhecimento de paternidade (Caso II).

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Como nos mostra Ferreira sobre a relação entre Análise do Discurso e cultura:

Para efeitos de análise do discurso propicia ainda que se pense a ordem do

discurso, compreendendo a ordem da história, a ordem da língua e a ordem

da cultura, cada um com forma de organização própria [...] as posições que

os sujeitos ocupam em uma dada formação cultural condicionam as

condições de produções discursivas, definindo o lugar por eles ocupados no

discurso. Ao funcionamento dessas formações culturais estariam

estritamente associadas as formações sociais e ideológicas. (FERREIRA,

2011, p. 60).

A cultura está marcada nos corpos e nas mentes e toma forma nos discursos,

caminhando no tempo. Se atentarmos para os discursos dos assassinos de mulheres das

décadas anteriores, como se pode verificar no trabalho de Corrêa, Morte em família:

representação jurídica de papéis sexuais (1983), referente às décadas de 50 e 60, em

comparação com estes observaremos que, no campo do discurso, pouca coisa mudou. As

mulheres ainda são acusadas de infidelidade e os réus buscam, em representações culturais, se

mostrar trabalhadores, bons maridos, enquanto as mulheres os traíam; as condenações

também não diferem muito, isto é, o abrandamento da pena e/ou a impunidade reinam.

O livro mais recente de Blay, Assassinato de mulheres e direitos humanos,

embora não trabalhe com discursos, também aponta para a busca de desqualificação da

mulher nos processos marcados pela cultura machista e pela impunidade e, ao final do livro,

ela clama por mudanças na cultura como forma de modificação no tratamento das mulheres.

“A violência contra a mulher está enraizada na cultura brasileira. É esta que precisa ser

alterada. As denúncias vêm de mais de um século. No começo do século XX, elas foram

conduzidas por escritoras, jornalistas, intelectuais e feministas” (2008, p. 215).

Em 2002, o Decreto n° 4.377, de 12 de setembro de 2002, promulgou a

Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, de

1979, da Organização das Nações Unidas (ONU) que observa, no seu artigo 1º, que a

igualdade entre homens e mulheres deve também abarcar o campo cultural.

Para os fins da presente Convenção, a expressão „discriminação contra a

mulher‟ significará toda a distinção, exclusão ou restrição baseada no sexo e

que tenha por objeto ou resultado prejudicar ou anular o reconhecimento,

gozo ou exercício pela mulher, independentemente de seu estado civil, com

base na igualdade do homem e da mulher, dos direitos humanos e

liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural

e civil ou em qualquer outro campo. (BRASIL, 2002, grifo nosso).

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O decreto intenta que precisam ser erradicadas as discriminações cometidas contra

as mulheres no âmbito cultural, pois reconhece que, sendo a cultura o campo das realidades

vividas, esta reproduz, através dos seus mecanismos, a desigualdade entre os sexos.

Nos processos, nos deparamos com frases como “saía com gatos e cachorros,

mulher ruim tem que morrer” (Caso I) e a “honra é a virtude que mais dignifica o homem”

(Caso IV). Quando estas frases foram proferidas, o que se buscava era demonstrar que o

homem tem a tutela sociocultural para matar quando diz estar defendendo sua honra. Nestes

casos, não se vê o crime como vingança perante uma separação, mas como um sentimento

justificável. No momento do assassinato da companheira, um réu disse “é assim que você diz

que não sai de casa?” (Caso III), frase que nos remete ao discurso religioso proferido por

padres da Igreja Católica no Brasil Colonial sobre a mulher casada que nunca deve se ausentar

do lar sem o consentimento do seu marido.

Os discursos materializados nos autos nascem de sujeitos com realidades

histórico-culturais próprias, e neles percebe-se um complexo processo de constituição e

produção de sentidos e não meramente a transmissão de informações. São processos de

identificação do sujeito, de argumentação, de subjetivação, de construção da realidade

(ORLANDI, 2007).

Pequenos fatos do cotidiano reproduzem discursos e atitudes machistas no campo

do direito e na sociedade. Observemos a seguinte situação: De acordo com a Lei n° 6.515/77,

Lei do Divórcio, quando uma mulher se casava juridicamente, ela tinha que entregar no

cartório a sua Certidão de Nascimento e passava a ter uma Certidão de Casamento, recebendo

o sobrenome do homem; já o homem continuava com o mesmo sobrenome e com a sua

Certidão de Nascimento, um fato que, inclusive, facilitou e facilita infrações com a de homens

que se casam mais de uma vez em municípios ou estados diferentes. Literalmente, é como se

a mulher perdesse a identidade anterior e passasse a ter uma nova identidade, a de mulher

casada, “pertencente a um homem” do qual ela recebe o sobrenome. Se o casal optasse pelo

contrário, isto denotaria um procedimento jurídico maior e mais caro.

Atualmente, embora o novo Código Civil, Lei n° 10. 406, de 10 de janeiro de

2002, em seu art. 1565, inciso 1º (que passou a vigorar apenas em 2003), permita aos

nubentes a escolha de quem recebe o sobrenome, podendo o homem receber o da mulher sem

custos adicionais, os cartórios, na sua grande maioria, ou desconhecem ou não informam aos

futuros cônjuges. Isto significa que a cultura jurídica há séculos praticada sob a égide do

costume é quem dispõe sobre o fato.

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São atitudes cotidianas praticadas e fortificadas pela cultura que parecem sem

importância, mas que contribuem para procedimentos, discursos e ações. A fidelidade

obrigatória foi mantida no novo Código Civil, art. 1566, inciso 1º, para ambos os cônjuges,

definida como lealdade, honradez, honestidade, integridade, pontualidade, constância,

firmeza, perseverança.

No mundo jurídico, os escritores e comentadores das leis são chamados de

doutrinadores, palavra que vem do latim docere e significa “aquele que ensina”. A estes se

recorre para entender uma demanda judicial, compreender o que os Códigos, Civil, Penal,

Tributário, Trabalhista etc., querem dizer sobre determinada lei.12

Considerados

decodificadores das leis vigentes, muitos processos a eles se remetem para explicar pareceres

e prolatar sentenças daí ser interessante trazer a definição de casamento e fidelidade que a

“corrente majoritária de doutrinadores” adota.

A fidelidade conjugal é exigida por lei, por ser o mais importante dos

deveres conjugais, uma vez que é a pedra angular da instituição, pois a vida

em comum entre marido e mulher só será perfeita com a recíproca e

exclusiva entrega dos corpos. Proibida está qualquer relação sexual

estranha. Por ser da essência do casamento, o dever de fidelidade não

pode ser afastado mediante pacto antenupcial ou convenção posterior ao

matrimônio, tendente a liberar qualquer dos cônjuges, por ofender a lei

e os bons costumes. O dever moral e jurídico de fidelidade mútua decorre

do caráter monogâmico do casamento e dos interesses superiores da

sociedade, pois constitui um dos alicerces da vida conjugal e da família

matrimonial. Consiste o dever de fidelidade em abster-se cada consorte de

praticar relações sexuais com terceiro. (DINIZ, 2006, grifo nosso).

Mesmo tendo a reforma do Código Penal Brasileiro (CPB), de 2005, abolido o

adultério como crime, o Código Civil pune com indenização por dano moral ou pagamento de

pensão alimentícia os cônjuges comprovadamente infiéis caso adentre com ação judicial a

parte que se diz afetada. Outro pensador do mundo jurídico define infidelidade como: “fato

que fere e perturba de modo mais profundo a vida da família. A infidelidade do marido ou da

12

A doutrina também pode ser chamada de Direito Científico, e consiste nos estudos desenvolvidos

pelos vários juristas, que objetivam entender e explicar todos os temas relativos ao Direito. Buscam

explicação e interpretação dos vários institutos e normas, de forma a se obter uma compreensão das

questões jurídicas, servindo de auxílio e subsídio. Dessa forma percebe-se que a doutrina jurídica

possui uma importância fundamental para o Direito, influenciando de maneira indireta na

elaboração das leis e nos julgamentos, pois fornece pontos de apoio tanto ao legislador e ao juiz,

em suas atividades intelectuais. A Jurisprudência (do latim: jus “justo”+prudentia “prudência”) é o

termo jurídico que designa o conjunto das decisões sobre interpretações das leis feita pelos

tribunais de uma determinada jurisdição.

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mulher representa a mais nítida manifestação de falência da moral familiar” (BEUDANT;

SILVA, 2007, p. 147).

É interessante observar o discurso desses pensadores sobre a infidelidade como

algo execrável: atentemos para esta ordem discursiva em uma sociedade marcada pela

subalternização da mulher, sexismo e misoginia, pois, mesmo sendo a fidelidade na lei, frise-

se, depois de 2002, uma cobrança mútua, ela continua recaindo e servindo de justificativa para

os crimes cometidos contra mulheres.

Voltando aos casos analisados neste trabalho: eles ocorreram entre agosto de 1996

e julho de 2002, momento em que ainda vigorava os Códigos Civil e Penal antigos que

continham leis desiguais entre os sexos13

. O Código Civil representava o homem como chefe

do lar e a mulher na condição de assistente enquanto o Código Penal condenava

criminalmente a infidelidade.

A reforma do Código Civil com base na Constituição Federal buscou legitimar a

igualdade entre homens e mulheres, no entanto, a forma como são construídos e interpretados

os textos relacionando casamento a honra, fidelidade e controle dos corpos ainda serve de

esteio e justificativa para os crimes que, no meio jurídico, são intitulados “passionais”.

O Caso III e IV merecem um destaque com relação à cobrança da fidelidade

conjugal apenas para a mulher, pois os réus viviam em regime de concubinato com a vítima,

isto é, tinham esposa e filhos em outras residências e, no entanto, a fidelidade discutida nos

autos em todos os discursos da acusação e defesa era relativa à vítima e não ao réu.

Vale repetir aqui trechos do já transcrito discurso da defesa do caso III: “encontrar

sua mulher às 22:00h dentro de um depósito totalmente escuro, com a porta fechada, com um homem

do qual havia um boato que estavam tendo um caso, “sua mulher e o senhor Epifânio trancados às

22:00h da noite”. É importante observar a repetição dos seguintes termos: “sua mulher”,

“depósito totalmente escuro”, “22h:00 da noite”, “tinham um caso”. Essa repetição discursiva

tem por intuito convencer o juiz e o corpo de jurados de que o crime é justificável pelo fato de

a vítima “ser infiel”. Neste caso, a fidelidade é uma cobrança não apenas para a esposa, mas,

também, para a amante. Quando diz “sua mulher” a defesa enfatiza a “posse” do réu sobre a

vítima, do “homem sobre a mulher”.

O julgamento está menos centrado em um crime contra a vida do que na

construção discursiva e imaginária do ocorrido: o jogo perante o júri consiste na

13

O Código civil foi totalmente reformulado pela lei 10.406 de 10/01/2002 passando a vigorar em

2003, enquanto o Código Penal teve em 1984 revogado apenas alguns de seus artigos, ele tem 72

anos vigorando no país.

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argumentação, no tempo das sessões, na forma de organização dos discursos para a persuasão

dos jurados.

O código penal permite várias interpretações, as quais tenderão a refletir a

posição ideológica dos juízes e dos jurados. Como é do primeiro que sai as

palavras mais importantes e ele é dotado de poder, o ajuste da pena refletirá

seus valores, embora revestidos de uma justificativa técnica. (BLAY, 2008,

p. 140).

É válido ressaltar que, nesta mesma linha de análise, fica claro que a posição

ideológica dos operadores do direito é que leva à escolha de argumentos e a apenar. Com

relação aos crimes discutidos neste trabalho, a defesa buscava a passionalidade configurada na

“violenta emoção” como motivo para o crime, as penas atribuídas pelos juízes, embora estes

demonstrassem em seus argumentos a reprovação do fato, foram brandas, e o júri, tendo

condenado os réus na maioria dos quesitos, em algumas votações, no entanto, se mostrou

contraditório, como já analisado. O que explicaria isto senão a manutenção de discursos

baseados em valores patriarcais hierárquicos que insistem em permanecer?

Foucault, em A ordem do discurso, demonstra que toda sociedade produz,

organiza procedimentos, redistribui e controla discursos e, nesta perspectiva, “o discurso não

é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que,

pelo que se luta, o poder do qual nos queremos nos apoderar” (2010a, p. 10).

A doutrina jurídica representa a vontade de verdade apoiada por um suporte

institucional, construindo e reproduzindo discursos. O sistema penal buscou seu suporte e

justificação na religião, na teoria do direito e também em outras áreas do saber como forma de

reforçar a palavra da lei. Foucault, por sua vez, demonstra que os discursos que acontecem no

correr dos dias têm sua profundidade na cultura.

Os discursos que se dizem no correr dos dias e das trocas, e que passam com

o ato mesmo que o pronunciou; e os discursos que estão na origem de certo

número de procedimentos novos de fala que retomam, os transformam ou

falam deles, ou seja, os discursos que indefinidamente, para além de sua

formulação, são ditos, permanecem ditos e estão ainda por dizer. Nós os

conhecemos em nosso sistema de cultura: são os textos religiosos ou

jurídicos, são também esses textos curiosos, quando se considera o seu

estatuto, e que chamamos de „literários‟; em certa medida textos científicos.

(FOUCAULT, 2010a, p. 22).

A linha de análise do discurso foucaultiana nos pontua que os discursos

processuais são uma categoria de “discursos reatualizáveis que se desorganizam e se

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organizam ao longo dos tempos, mas sempre buscando a manutenção da ordem de “certezas

construídas” e, mesmo com a reformulação da lei, continuam sustentando, através de seus

doutrinadores e operadores do direito, posturas sexistas e misóginas.

O crime emerge como um novo acontecimento na cidade, lastreado, no entanto,

por discursos recorrentes. Diz Foucault (2010a, p. 43) que “a Doutrina realiza uma dupla

sujeição: dos sujeitos que falam aos discursos e dos discursos ao grupo, ao menos virtual, dos

indivíduos que falam”, um ato de força entre quem profere e quem ouve. O suporte

institucional franqueia a palavra àquilo que pressupõe como verdade sobre o que é o

relacionamento de homens e mulheres, a traição e as representações culturais dos papéis

sexuais.

Participei como ouvinte de um júri ocorrido em setembro de 2010, um caso muito

parecido com os que analisei neste trabalho, em que o namorado assassinou a noiva alegando

que ela queria acabar o noivado pois o traía recorrentemente com outros, crime ocorrido em

Alagoinhas, cidade vizinha. Ouvi, atentamente, o discurso da defesa que buscava inocentar o

réu alegando que ele tinha sentimentos puros, queria constituir uma família enquanto ela

queria se divertir com homens, e defendia com veemência que a atitude da promotoria em

querer a condenação do réu representava um atentado à noção de família, ou seja, um caso

recente que mantém as mesmas práticas discursivas dos casos analisados em Inhambupe em

datas anteriores.

No livro A verdade e as formas jurídicas, Foucault (2003b) demonstra como as

praticas socioculturais de vigilância e punição influenciam as práticas jurídicas e como “a

verdade” foi produzida através dos tempos. Nesta concepção, a verdade tem uma história: na

Grécia antiga e na Idade Média, a verdade dos fatos era obtida através de depoimentos,

testemunhos e interrogações e, assim, quanto mais poder e status social o depoente tinha mais

suas alegações eram tidas como verdadeiras. Nesta ótica, a produção da verdade tem

intrínseca relação com os “laços de poder”.

É imprescindível observar que o inquérito surge na Idade Média, porém, na

sociedade moderna, em tese, recorre muito mais a provas, perícia, análise e composição dos

fatos, o que difere da sociedade medieval em que a prova era obtida quase exclusivamente

pelo flagelo corporal do acusado. Sobre o inquérito Foucault instiga:

O inquérito é precisamente uma forma política, uma forma de gestão de

exercício de poder que, por meio da instituição judiciária, veio a ser uma

maneira, na cultura ocidental, de autentificar a verdade, de adquirir coisas

que vão ser consideradas como verdadeiras e de as transmitir. O inquérito é

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uma forma de saber poder. É a análise dessas formas que nos deve conduzir

á análise mais estrita das relações entre os conflitos de conhecimento e as

determinações econômico-políticas. (FOUCAULT, 2003b, p. 78).

A composição do inquérito, os doutrinadores jurídicos e as jurisprudências são

utilizados pela defesa, insistentemente, nos casos de assassinatos de mulheres por cônjuges

como forma de tentar comprovar que “a violenta emoção de homens traídos leva ao crime” e

que a “honra é um principio jurídico de alta expressão”. No Caso III, busca-se a palavra de

médicos e psicólogos e, novamente, a doutrina jurídica e a jurisprudência para tentar

demonstrar que a insanidade mental do acusado na hora do fato se deu pelo uso constante de

álcool.

A palavra de doutrinadores e, consequentemente, a jurisprudência são manuseadas

como representação de uma verdade jurídica, daquilo que se considera como “certo e errado”

nesta esfera em uma determinada época.

Nesta obra, Foucault (2003b) retoma suas observações sobre o discurso14

demonstrando que a Análise do Discurso pressupõe o desvelamento de um jogo estratégico de

ação e reação, dominação e esquiva como também de luta. A peça processual é o discurso

transcrito, organizado de acordo com os procedimentos jurídicos e sua análise minuciosa faz

emergir este jogo, seja na arguição dos atores envolvidos (acusação, defesa, testemunhas e

juiz) seja no teatro de composição do júri (réplica, tréplica, considerações finais). O autor

mergulha em uma simbiose entre a invenção da verdade, a produção dos sujeitos do

conhecimento, a hermenêutica jurídica e a sociedade disciplinar.

Foucault nos leva a observar que as práticas socioculturais são levadas para dentro

do discurso processual e jurídico através dos “sujeitos do conhecimento” desta área e são

transformadas em “produções de verdades” que, de acordo com o seu manuseamento

discursivo, podem justificar o crime e abrandar a pena, fato reforçado pela burocracia e

desorganização estatal.

4.1 AS REAÇÕES EM TORNO DO ASSASSINATO DE MULHERES: CRIAÇÃO

DE POLÍTICAS PÚBLICAS

Em relação ao aparato de proteção à mulher pelos órgãos de competência do

Estado, é necessário tecer alguns comentários em relação às Delegacias Especializadas de

Atendimento às Mulheres, conhecidas pelas siglas DAMs ou DDM, à Lei n° 9099/95 –

14

Vale ressaltar que esta obra foi produzida após Vigiar e Punir.

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Juizados Especiais de Pequenas Causas e à Lei n° 11.340, de 7 de agosto de 2006 Lei Maria

da Penha.

As DAMs foram criadas, primeiramente, em São Paulo como forma de resposta às

veementes reivindicações dos movimentos feministas, na década de 1980, em torno da

violência contra as mulheres, movimento formado por grupos de mulheres de várias classes

profissionais intitulado “Quem ama não mata!”.

Sua distribuição é totalmente irregular e, de acordo com dados constantes no 2º

Plano Nacional de Políticas Públicas para as Mulheres de 2008 e na Pesquisa Nacional sobre

as Condições de Funcionamento das Delegacias Especializadas no Atendimento às Mulheres,

o total de DDMs somadas aos postos de atendimento especializado (sublocados em delegacias

comuns) perfazem um número de 404 estabelecimentos (MACHADO, 2010).

As casas abrigo, segundo este estudo, que foram criadas para atender mulheres

que estão em perigo de vida, são apenas 80, em todo o território nacional, uma quantidade

ínfima levando em consideração a dimensão geográfica do país, o número de habitantes

mulheres e a quantidade de municípios. Um dado interessante é que 40% destes órgãos estão

localizados no Estado de São Paulo e 13%, em Minas Gerais.

As condições de funcionamento também merecem destaque, pois 73,4% das

DDMs carecem de recursos tecnológicos, materiais e humanos especializados, 20% não

dispõem de uma linha convencional direta, 19,1% não possuem viaturas e 74% não dispõem

de coletes à prova de balas. Quanto à infraestrutura de pessoal, em apenas 15% há assistente

social e em 17%, psicólogas; 77% das DDMs não possuem plantão vinte quatro horas e nos

finais de semana (MACHADO, 2010, p. 21).

Foram as próprias delegacias que informaram, através de questionários

respondidos por funcionários que nelas atuam diariamente, as condições precárias de

funcionamento e que apontaram a necessidade de melhor infraestrutura material e humana de

trabalho. Mais de 94% dos entrevistados afirmam isto, embora reconheçam os avanços da

existência das DDMs para a sociedade, tendo como base o aumento das denúncias assim

como a confiabilidade das mulheres nestes órgãos, resposta dada por 58,3% dos funcionários.

No entanto faz-se urgente, segundo estes, a criação de mais locais desta natureza pelo país

como também equipá-los de forma adequada às exigências da contemporaneidade.

O trabalho de Machado (2010) representa uma importante pesquisa estatística

recente sobre as condições de funcionamento das DEAMs em todo país, um estudo minucioso

que demonstra não apenas as precárias condições de trabalho destas instituições como

também aponta caminhos propostos pelos próprios profissionais que nelas atuam.

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93

Em relação à cidade focalizada nesta dissertação, Inhambupe não possui DDM: o

que mais se aproxima de um atendimento à mulher é um departamento ligado à Secretaria de

Assistência Social, criado em 2004, por uma prefeita, a primeira na história do município, e

denominado Departamento da Mulher que oferece cursos profissionalizantes, distribuição de

enxovais maternos para mães de baixa renda e orienta mulheres em situação de violência

sobre seus direitos, de acordo com documentos que demonstram a sua missão no ato de

criação. Em seu quadro de trabalho, conta com uma assistente social, uma coordenadora

cargo comissionado e de confiança ou seja, muitas vezes, não são funcionários públicos

municipais efetivos que o exercem e um assistente administrativo. na história deste

departamento, apenas uma coordenadora era funcionária pública municipal.

Grande parte da população não alia as atividades do Departamento da Mulher à

questão do trato da violência de gênero. Este órgão, segundo entrevista concedida por

funcionários que ali já atuaram e que participaram da sua criação, tem o campo de atuação

ainda ligado a questões de cunho assistencial às mulheres, circundando questões econômicas:

doações, cursos de corte e costura, maquilagem, aproveitamento e manipulação de alimentos,

reciclagens, entre outros.

Nos casos de violência, as mulheres, em Inhambupe, continuam recorrendo à

Delegacia do município, que não tem um local específico para estas questões, ou à assistência

judiciária, na categoria Promotoria Pública e Defensoria Pública, a primeira quando envolve a

integridade física de crianças e adolescentes, ou seja, situações em que a relação conjugal põe

em rico a vida de menores. Só nestas condições é que o Ministério Público atua de forma

protetiva. Já a Defensoria Pública, assistência judiciária gratuita para aquelas desprovidas de

poder econômico, atua especificamente em situações de separação de corpos, a fim de prestar

orientação jurídica, bem como sobre a possibilidade de se realizar uma mediação para pôr fim

ao conflito familiar.

No momento, a única defensora pública do município foi transferida e, há um ano,

a comarca da cidade não conta com este serviço. Nos casos em que a assistência judiciária é

indispensável, o juiz aciona um advogado dativo, ou seja, fornecido pelo Estado, porém, será

sempre o juiz quem julgará as necessidades mais urgentes, ressaltando-se que, geralmente, os

advogados dativos são designados, haja vista a grande demanda, para aqueles que já se

encontram presos. Enfim, as mulheres em situação de violência de gênero em Inhambupe não

dispõem de serviço especializado.

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A cidade mais próxima de Inhambupe que conta com uma Delegacia

Especializada de Atendimento às Mulheres e uma casa abrigo é Alagoinhas, cidade

considerada metrópole regional, que fica a 56 km da cidade pesquisada. No entanto, segundo

entrevista concedida pela Delegada responsável, esta também carece de mais recursos

infraestruturais e humanos. Lélia Raimundi15

, delegada em exercício, assevera:

A principal expectativa é o reaparelhamento da Unidade Policial com o

aumento do quadro de servidores, haja vista hoje contarmos apenas com uma

delegada de polícia, três investigadores de polícia e dois escrivães de polícia,

bem assim a aquisição de uma viatura mais nova e a melhora na sua

estrutura física, para que possamos otimizar os nossos trabalhos,

desenvolvendo de forma mais célere a nossa missão que é „proteger e

servir!‟.

Para a Delegada, o enfrentamento à violência contra a mulher pressupõe a união

de forças e a implementação de políticas públicas entre União, Estado e Município:

Ações coordenadas e articuladas nos três níveis de governo, e com o

envolvimento do Poder Judiciário, do Ministério Público Estadual, da

Defensoria Pública e de organizações da sociedade civil, com o objetivo de

implementar o Pacto Estadual pelo Enfrentamento à Violência contra as

Mulheres. As estratégias para alcançar este objetivo incluem a adesão dos

governos municipais ao Pacto Estadual de Enfrentamento à Violência contra

a Mulher, visando a reestruturação da Rede Estadual de Serviços para

mulheres em Situação de Violência que, entre outros equipamentos, é

constituída por Centros de Referência, Delegacias Especializadas, Casa

Abrigo, Núcleos de Atendimento a Mulher – NAMs.

Observar o necessário aperfeiçoamento das DDMs suscita, ainda, outro

questionamento; em 26 de setembro de 1995, foi promulgada a Lei n° 9.099/95, com o intuito

de agilizar o atendimento a causas de “menor complexidade” (Art. 3º), nos casos cíveis e de

“infrações penais de menor potencial ofensivo” e nos casos criminais. A menor complexidade

é delimitada como “causas cujo valor não exceda quarenta vezes o salário mínimo” (Art. 3º,

inciso I). O menor potencial ofensivo é definido como “as contravenções penais e os crimes a

que a lei comine com pena máxima não superior a um ano” (Art. 61) e pode ter como pena a

“multa” (Art. 76, parágrafo 4º, inciso III).

A eficácia desta lei está muito mais ligada à resolução de querelas de ordem civil

como aluguéis atrasados, problemas de inadimplência, trânsito etc., questões que tramitam

15

DEUSDETE, Belmiro. Delegacia da Mulher de Alagoinhas comemora cinco anos. Gazeta dos

Municípios, ed. 315, Alagoinhas (BA), 30 jun. 2012. http://www.gazetadosmunicipios.com.br/wp-

content/uploads/2012/07/Gazeta-315.pdf.

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mais pelo campo do acordo, para que sejam resolvidas em tempo hábil e não inflem o

judiciário com processos de pequena monta. No que tange à violência contra a mulher, ela se

demonstrou inócua, pois os casos de espancamento, de agressão física em geral que chegavam

às DDMs eram transformados em crimes de pequeno potencial ofensivo e levados aos

Juizados Especiais Criminais (JESCRIMs), culminando em pagamentos de cesta básica.

Assim sendo, o infrator conta com um sentimento de impunidade. Para Blay, esta lei

desqualificava a denúncia.

Agressões, olhos roxos de socos e pancadas, ameaças contra a vida de

companheiras, tudo entrou numa vala comum do „pequeno potencial

ofensivo‟, tratadas como questões que poderiam ser fácil e rapidamente

resolvidas. Levadas aos Juizados Criminais, muitos juízes buscam a

conciliação ou atribuem uma pena pagável com uma cesta básica, um maço

de flores... Mais uma vez desqualificava-se a denúncia feita pela agredida e

se atenua a responsabilidade do agressor que, aliás, cumprida a pena, nada

mais constará de seu prontuário (2008, p. 230).

A lei em questão se inclui no grupo intitulado de Direito Penal Mínimo, que

representa uma tendência moderna da política criminal e se caracteriza pela

descriminalização, despenalização, descaracterização e informalização da justiça penal.

Porém, muitos são os questionamentos sobre a sua eficiência e eficácia, como demonstra a

passagem.

Com o juizado especial criminal, o Estado sai cada vez mais das relações

sociais. No fundo, institucionalizou-se a surra doméstica com a

transformação do delito de lesões corporais de ação penal pública

incondicionada para ação pública condicionada. Mais do que isso, a nova Lei

dos Juizados permite agora, o duelo nos limites das lesões, eis que não

interfere na contenda entre as pessoas, desde que os ferimento não

ultrapassem as lesões leves. O Estado assiste de camarote e diz: batam-se,

que eu não tenha nada com isso. É o neoliberalismo no Direito, agravando a

própria crise da denominada teoria do bem jurídico, própria do modelo

liberal individualista de Direito. (STRECK, 2004, p. 133).

Em torno das várias posições contrárias à Lei n° 9.099/95, que ficou popularmente

conhecida no mundo jurídico como “vele porrada”, está a ideia de que se privilegia a

mercantilização em lugar da coibição dos atos violentos, incentivando a impunidade e a não

satisfação da vítima. De acordo com Machado (2010, p. 44), o desafio da atualidade nesta

questão é ampliar a atuação qualitativa das DDMs, uma reivindicação das próprias Delegacias

que, sobre a lei, levantam a necessidade latente de revisão e a introdução de novas práticas

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nos Juizados Especiais, a exemplo de treinamentos na qualidade de especializações para

juízes e assessores no trato da “violência contra a mulher”.

Em 7 de agosto de 2006, foi criada a Lei n° 11.340/06, Lei Maria da Penha, que

surgiu com a expectativa de superar as deficiências da Lei n° 9990/95. A nova lei pressupõe

que toda violência doméstica contra a mulher é crime e deve ser registrada, gerando um

inquérito policial que deve ser remetido ao Ministério Público, o que caracteriza um avanço

na seara penal.

O nome da lei surgiu em homenagem à farmacêutica bioquímica cearense Maria

da Penha Maia Fernandez, que foi vítima de tentativa de homicídio por parte de seu marido, o

economista e professor universitário, Marco Antonio Heredia Viveiros, situação que a deixou

paraplégica e ele, em função de diversos recursos judiciais, solto, durante dezenove anos.

Inconformada com a impunidade, Maria da Penha levou seu caso ao Centro pela

Justiça e Direito Internacional (CEJIL), e o Comitê Latino Americano e do Caribe para a

Defesa dos Direitos da Mulher (CLADEM), à Comissão Interamericana de Direitos Humanos

(CIDH) da Organização dos Estados Americanos (OEA), que concluiu pela responsabilidade

do Estado Brasileiro, no caso, por violação aos direitos humanos.

É interessante observar que, por quatro vezes, a CIDH solicitou informações do

Brasil sobre a demora no julgamento do processo e como não obteve resposta, o país foi

condenado por negligência e omissão. O réu foi preso, em 2002, vinte e quatro anos depois do

fato, em função das pressões internacionais e, também, porque mesmo limitada por uma

deficiência física, fruto da violência sofrida, Maria da Penha não mediu esforços em busca de

justiça.

O Projeto de Lei (PL) n° 4.559/2004 que culminou na Lei Maria da Penha foi

elaborado a partir de um consórcio de Organizações Não Governamentais (ONGs) e discutido

pela Secretaria Nacional de Políticas Públicas para as Mulheres (SPM) e outras comissões de

direitos humanos e, em seguida, encaminhado, pelo Poder Executivo, ao Congresso Nacional.

É imprescindível ressaltar que esta lei se aplica a relações de violência de gênero

contra as mulheres, no âmbito doméstico familiar, entre pessoas ligadas por laços

consanguíneos ou por afinidade, sejam elas casadas ou não, estando incluídas também as

pessoas agregadas, a exemplo das empregadas domésticas, independentemente da orientação

sexual da agredida.

Mas, como ficam os casos de violência contra a mulher fora da situação doméstica

familiar, a exemplo do assédio sexual? estes continuam vinculados aos Juizados Especiais

Criminais, ou seja, à Lei n° 9.099/95.

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De acordo com a doutrina jurídica especializada na Lei Maria da Penha, esta foi

criada com o intuito de erradicar, em caráter definitivo, a representação social do papel de

dominação do homem sobre a mulher independente do sexo em que esta relação se

materialize. O seu artigo 8º enfatiza um conjunto articulado de ações da União, dos Estados,

do Distrito Federal e dos Municípios e, também, não governamentais, como assistência social

e o Sistema Único de Saúde (SUS) e campanhas preventivas, inclusive a colocação de temas

sobre direitos humanos no currículo escolar.

A Lei n° 11.340/2006 também oportuniza: no seu Art. 9°, parágrafo 1°, mediante

ordem judicial, a colocação da mulher em situação de violência, no cadastro de programas

assistenciais do governo federal e o afastamento do trabalho, quando necessário, por até seis

meses, com manutenção do vínculo empregatício (inciso II); no artigo 27, assistência

judiciária gratuita às declaradamente pobres; além disso, no Art. 12, inciso III, após denúncia,

via queixa crime, o prazo de 48 horas para o policial realizar os procedimentos de

investigação e remeter o caso ao juiz e ao Ministério Público para a concessão de medidas

protetivas de urgência.

A Lei Maria da Penha representa um grande avanço no esforço para erradicar a

violência de gênero contra as mulheres, mas, para que esta tenha êxito e não passe de “letra

morta”, termo utilizado no direito para leis inócuas, é necessário um melhor aparelhamento do

sistema judiciário: aumento das DEAMs, conjuntamente com estrutura física e humana

adequada, aumento na quantidade e especialização dos profissionais dos órgãos do judiciário

juízes, promotores, defensores, escrivães e assessores visando um atendimento específico

e humanizado.

A própria Lei, no seu art. 14, como, também, o Conselho Nacional de Justiça

(CNJ), na Resolução nº 9, de março de 2007, propõe a criação de Juizados de Violência

Doméstica e Familiar contra a Mulher, compostos por um aparato de profissionais

multidisciplinares (áreas psicossocial, jurídica e de saúde), mas isto não é o que se vê nas

comarcas do país, pois, na falta destes, as denúncias ligadas à Lei Maria da Penha são

encaminhadas para as Varas Criminais infladas com milhares de processos e, assim, prazos e

objetivos não são cumpridos ou cumpridos deficitariamente.

É urgente o melhor aparelhamento do sistema judiciário para que a Lei Maria da

Penha alcance os objetivos propostos. A criação dos Juizados de Violência Doméstica e

Familiar contra a Mulher se apresenta como um lugar mais adequado e célere para a resolução

dos casos de violência e para medidas protetivas que atuem de uma forma mais completa,

especializada, humanizada e que atenda à função social desta lei.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os femicídios não representam um assunto privado e sim uma questão de políticas

públicas que devem ser constituídas em relação a esta problemática social; problemática

social, sim, pela alta incidência numérica como também pela manutenção dos mesmos

argumentos justificadores dos crimes por décadas a fio nos processos.

O Estado enquanto detentor do poder jurisdicional, por falta de políticas públicas

adequadas e de transformações legislativas, se demonstra androcêntrico e perpetuador da

cultura patriarcal quando não viabiliza um aparato suficiente para coibir e punir os crimes e

proporcionar às mulheres um tratamento humanizado quando buscam a tutela jurisdicional.

Os processos, ao utilizarem a terminologia “passional”, tanto negam uma

tipificação penal mais adequada, como também escamoteiam o viés cultural e social dos

crimes. Os operadores do direito ainda buscam enquadrar o fato na esfera patológica ou de

privação de sentidos do assassino, ressaltando uma “possível infidelidade da mulher”, mesmo

na contemporaneidade quando os argumentos criminalizadores do adultério foram abolidos do

Código Penal.

Dos autos analisados, emerge que a raiz dos femicídios se encontra na cultura de

violência contra as mulheres cravada e perpetuada na nossa história; e esta não é uma

peculiaridade somente do nosso país. Desconstruir este processo de subalternização

memorizado no inconsciente e transposto na simbologia cultural por diversas instâncias é uma

tarefa social e que se faz urgente.

Nos casos aqui analisados, ocorridos na cidade de Inhambupe, Bahia, os homens

mataram por se sentiram “ofendidos” seja pelo término do relacionamento, pela cobrança de

direitos ou pela recusa da mulher em continuar com um companheiro machista e violento. Ao

serem confrontados pelas mulheres por suas atitudes, estes homens agiram com

comportamentos heteroagressivos silenciando-as, pois se achavam no direito de determinar os

rumos da convivência.

Enquanto pesquisadores, observa-se a resistência de valores antigos aquecidos por

uma mentalidade patriarcal. Mas, o que fazer para reverter esse quadro? O Estado precisa

instrumentalizar melhor o aparato de proteção às mulheres, principalmente àquelas que se

encontram em estado de violência, pois, com o reduzido número de delegacias, de casas

abrigos e de Juizados de Violência Doméstica e Familiar que tratem especificadamente deste

assunto, como recomenda a própria lei, o número de mulheres agredidas e assassinadas só

tende a crescer.

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Dados disponibilizados pelo Mapa da violência no Brasil: homicídio de mulheres,

publicado pelo Centro Brasileiro de Estudos Latino-Americanos (CEBELA) demonstra que,

no primeiro ano de vigência efetiva da Lei Maria da Penha, 2007, as taxas de assassinato de

mulheres experimentaram um leve decréscimo, voltando, imediatamente, a crescer de forma

rápida até o ano 2010, último dado atualmente disponível, igualando o máximo patamar já

observado no país, o de 1996, ou seja, 4,6 assassinatos para cada 100 mil mulheres, sendo

que, destes, 65% são ocasionadas por parceiros ou ex.

Neste contexto, a Bahia aparece como o sexto estado entre os que apresentam o

maior número de assassinatos; em relação aos municípios, só foram analisados os que

apresentam mais de 26 mil habitantes mulheres, o que prejudica uma visão mais aprofundada.

O município baiano de Porto Seguro aparece em terceiro lugar dentre os municípios

brasileiros com maior índice de femicídio.

Esta situação permite dizer que as políticas públicas embora já tenham se iniciado,

ainda são insuficientes tanto para prevenir quanto para erradicar o quadro de violência contra

as mulheres. De acordo com Mota (2012):

O Estado tem que criar leis no sentido de construir políticas que possam

impactar toda a sociedade, mudando valores. No caso do feminicídio,

defendo que ele seja incluído na Lei Maria da Penha e que se diferencie do

homicídio. É um desafio fazer isso, mas esse é um crime diferente por ser

um crime construído pela cultura. É preciso atribuir a ele uma penalidade

de crime hediondo bastante severa. O problema também é a impunidade.

Para as mulheres pesquisadas neste trabalho, o perigo não estava no ambiente

externo, mas dentro de seus próprios lares, em quem compartilhou ou compartilhava da sua

convivência íntima: e elas foram brutalmente silenciadas. Neste sentido, conclui-se que a

Secretaria Nacional de Políticas Públicas para as Mulheres, em conjunto com toda a

sociedade, necessita instigar mudanças no aparato estatal como um todo, para que este

trabalhe enfaticamente para a redução destas ocorrências; necessita-se da verdadeira atuação

do Estado no que deve ser a sua composição, uma composição harmônica e complementar

entre os poderes (legislativo, executivo e judiciário).

No que tange à melhor atuação do judiciário, esta perpassa pelo aumento e

capacitação de seu corpo funcional, pela criação de uma estrutura digna de trabalho e de

atendimento, em todos os seus níveis e instâncias, do policial ao delegado, do oficial de

justiça ao juiz. Em suma, a mudança deve atuar do cultural para o institucional e do

institucional para o cultural.

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