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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO DE MEDICINA SOCIAL ENCAMINHAMENTOS DE USUÁRIOS AO AMBULATÓRIO DE PSIQUIATRIA ELABORADOS POR MÉDICOS DE FAMÍLIA: ANÁLISE EM QUATRO MUNICÍPIOS DO LESTE DE MINAS GERAIS Felipe de Medeiros Tavares Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Saúde Coletiva, Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva – área de concentração em Política, Planejamento e Administração em Saúde, do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Orientador: Prof. Dr. Kenneth Rochel de Camargo Júnior Rio de Janeiro-RJ 2008

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  • UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIROINSTITUTO DE MEDICINA SOCIAL

    ENCAMINHAMENTOS DE USURIOS AO AMBULATRIO DE PSIQUIATRIA ELABORADOS POR MDICOS DE FAMLIA: ANLISE EM QUATRO

    MUNICPIOS DO LESTE DE MINAS GERAIS

    Felipe de Medeiros Tavares

    Dissertao apresentada como requisito parcialpara obteno do grau de Mestre em SadeColetiva, Programa de Ps-Graduao em Sade Coletiva rea de concentrao em Poltica, Planejamento e Administrao em Sade, do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

    Orientador: Prof. Dr. Kenneth Rochel de Camargo Jnior

    Rio de Janeiro-RJ

    2008

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  • C A T A L O G A O N A F O N T E U E R J / R E D E S I R I U S / C B C

    T231 Tavares, Felipe de Medeiros.Encaminhamentos de usurios ao ambulatrio de psiquiatria, elaborados por mdicos de

    famlia: anlise em quatro municpios do leste de Minas Gerais / Felipe de Medeiros Tavares. 2008.

    131f. Orientador: Kenneth Rochel de Camargo Jnior.

    Dissertao (mestrado) Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Instituto de Medicina Social. 1. Programa Sade da Famlia (Brasil) Teses. 2. Sade mental Teses. 3. Cuidados mdicos ambulatoriais Teses. 4. Protocolos mdicos Teses. I.Camargo Jnior, Kenneth Rochel de. II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Instituto de Medicina Social. III. Ttulo.

    CDU 613.86_______________________________________________________________________________

    2

  • Folha de Aprovao

    Aluno: Felipe de Medeiros Tavares

    Ttulo da Dissertao: ENCAMINHAMENTO DE USURIOS AO AMBULATRIO DE

    PSIQUIATRIA ELABORADOS POR MDICOS DE FAMLIA: ANLISE EM QUATRO

    MUNICPIOS DO LESTE DE MINAS GERAIS

    Aprovada em 28 de Abril de 2008.

    ___________________________________Orientador: Prof. Dr. Kenneth Rochel de Camargo JniorInstituto de Medicina Social

    ___________________________________Prof. Dr. Carlos Eduardo Freire Estellita-LinsFundao Oswaldo Cruz

    __________________________________Prof. Dra. Maria Ins NogueiraInstituto de Medicina Social

    ___________________________________Prof. Dr. Roseni PinheiroInstituto de Medicina Social

    3

  • O remdio mais usado em medicina o prprio mdico, que, como qualquer

    medicamento, deve ser conhecido na sua posologia, modo de usar e nos seus

    efeitos colaterais.

    Michael Balint

    4

  • Ao meu pai, Mrio Tavares, pelo exemplo de vida dedicada coletividade.

    minha amada Rachel Lisboa, pelo companheirismo, incentivo e tolerncia.

    5

  • Agradecimentos

    Ao estimado professor e amigo Jlio de Mello Filho, entusiasta da

    Psicossomtica, que muito me incentiva e estimula para a prtica de uma medicina

    mais humana. Agradeo por ter acreditado nos meus sonhos.

    Ao professor Kenneth Rochel Camargo Jnior, mestre querido e admirado por

    muitos, por ter me acatado como seu orientando. Como nos afirma Deleuze: no

    momento em que atingimos a idade adulta, nossos mestres so aqueles que nos

    tocam com uma novidade radical, aqueles que sabem inventar uma tcnica artstica

    ou literria e encontrar as maneiras de pensar que correspondem nossa

    modernidade, quer dizer, tanto s nossas dificuldades como a nossos entusiasmos

    difusos.

    professora Roseni Pinheiro, pelos excelentes momentos que nos

    proporcionou nos ricos debates estabelecidos em suas aulas. Voc me mostrou que

    possvel ser muito mais que um bio mdico !

    professora Maria Ins, pelas valiosas contribuies.

    Aos colegas do IMS, pelas preciosas dicas e pela rica convivncia que vocs

    me proporcionaram.

    A todos os meus professores, da alfabetizao ps-graduao, que por toda

    a minha vida sempre foram muito dedicados.

    Maristela, Janana e Beatriz, grandes irms, que sempre investiram parte

    das suas energias na minha formao, acreditando que um dia o irmozinho

    chegaria l...

    famlia Lisboa Silva, que me acolheu em todos os sentidos em Minas e na

    vida.

    Ao Dr. Henrique, ao Luis Arthur e Rosngela , pelas primorosas

    observaes na reviso do texto.

    Aos colegas de profisso que contriburam com sua participao nas

    entrevistas.

    Aos nossos pacientes, pela confiana.

    Aos gestores de sade dos municpios em que desenvolvemos o estudo,

    pelas portunidades que tm proporcionado no processo de ampliao dos servios

    de sade mental.

    6

  • diretoria do CISMIRECAR, representada pelo Sr. Jos Ronaldo, que est

    empenhado na reformulao das polticas de sade do Leste Mineiro nos ltimos

    anos, e que permitiu o desenvolvimento do estudo na regio. Agradeo pelas

    oportunidades e pela confiana.

    7

  • SUMRIORESUMOABSTRACTLISTA DE ABREVIATURAS E SIGLASTABELASTabela 1 Tempo de formao dos mdicos entrevistados -----------------------------------------82Tabela 2 Encaminhamentos de Caratinga ------------------------------------------------------------104Tabela 3 Distribuio de encaminhamentos dos mdicos do PSF psiquiatria, por municpio, no perodo de Julho de 2006 a Julho de 2007-------------------------------------106Tabela 4 Dados sobre os encaminhamentos nos municpios de Entre Folhas, Inhapim e So Sebastio do Anta ---------------------------------------------------------------------106Tabela 5 Nmero de mdicos de famlia identificados nos encaminhamentos----107Apresentao 1 Introduo ---------------------------------------------------------------------------------------------------152 - Polticas de Sade Mental no Brasil-----------------------------------------------------------------183 Formao Mdica e a Prtica no Programa Sade da Famlia --------------------------- 333.1 Consideraes sobre a Estratgia Sade da Famlia -----------------------------------------33

    3.2 Biomedicina e a Estratgia Sade da Famlia ---------------------------------------------------35

    4. Atendimento em Psiquiatria --------------------------------------------------------------------------444.1 Os Protocolos de atendimento em Sade Mental-----------------------------------------------48

    5 O Encaminhamento ao Psiquiatra------------------------------------------------------------------- 556 Descrio do Campo------------------------------------------------------------------------------------ 636.1- O Programa Sade da Famlia nos municpios estudados-------------------------------------63

    6.2- Servios de Sade Mental no Leste de Minas Gerais------------------------------------------- 67

    7 Trajetria Metodolgica------------------------------------------------------------------------------- -727.1 Local da pesquisa----------------------------------------------------------------------------------------72

    7.2 Entrevista com mdicos do PSF---------------------------------------------------------------------73

    7.3 Anlise dos encaminhamentos-----------------------------------------------------------------------75

    8 Apresentao e Discusso dos Resultados-----------------------------------------------------798.1 Entrevistas-------------------------------------------------------------------------------------------------79

    8.2 - Anlise dos encaminhamentos------------------------------------------------------------------------93

    9 - Concluso -------------------------------------------------------------------------------------------------108Bibliogrfia------------------------------------------------------------------------------------------------------115ANEXO I Mapa Rodovirio do Leste de Minas Gerais.--------------------------------------------126

    ANEXO II Instrumento de referncia e contra-referncia de Caratinga-MG-----------------127

    ANEXOS III e IV Instrumento de referncia e contra-referncia de Inhapim-MG---128 e 129

    ANEXO V Termo de consentimento livre e esclarecido ------------------------------------------130

    ANEXO VI Termo de aprovao do Comit de tica em Pesquisa (CEP) ------------------131

    8

  • RESUMOAs polticas de sade mental e sade da famlia so consideradas estratgias

    de reorganizao da prtica assistencial em sade. Ambas ainda se encontram em

    fase de implantao, e pretendem se opor ao modelo tradicional de sade que se

    baseia no atendimento individualizado e praticado majoritariamente por mdicos.

    O ambulatrio de psiquiatria foi recrutado como um dos primeiros dispositivos

    das polticas de sade mental substitutivos internao psiquitrica. A interlocuo

    entre os membros das equipes de sade da famlia e sade mental tem sido

    estimulada pelo Ministrio da Sade, por intermdio das equipes matriciais, Centros

    de Ateno Psicossocial e Ncleos de Apoio Sade da Famlia.

    Nesse mbito, este estudo procura analisar como os mdicos de famlia de

    quatro cidades do Leste mineiro vm agindo com relao ao atendimento de

    usurios com transtornos mentais, e para isso procedemos anlise dos

    encaminhamentos que estes mdicos realizavam para o ambulatrio de psiquiatria.

    Fizemos, tambm, entrevistas semi-estruturadas com os mdicos de famlia que

    atendem nos municpios estudados.

    Conclumos que a dificuldade dos mdicos em lidar com aspectos subjetivos

    do adoecimento constitui-se num desafio a ser contornado para que as suas prticas

    se ampliem para alm dos limites da racionalidade biomdica, de modo que o PSF

    se estruture como uma poltica revolucionria de sade. O vnculo frgil desses

    profissionais no permitiu que criassem laos comunitrios.

    Os protocolos de atendimento em sade mental no eram conhecidos pelos

    mdicos de famlia participantes do estudo. Da mesma forma, a falta de

    padronizao dos instrumentos de referncia e contra-referncia dificultou a

    comunicao entre os profissionais.

    9

  • Palavras-chave: sade mental; sade da famlia; servios ambulatoriais de sade; protocolos clnicos.

    ABSTRACT

    The mental health and family health politics are both considered a great skill

    for the reorganization of the health assistance practcies. These practicies are still on

    inplantation and intend to overcome the tradicional health model wich is based on the

    individual clinical practice of physicians.

    The psychiatry ambulatory was recruted as one of the first mechanisms from

    the mental health politics to substitute the psychiatry hospitals. The comunication

    between the membership of family and mental health staff has been encouraged by

    the Health State Department Ministry. In this way, this study analyses how family

    physicians from the contryside of Minas Gerais are acting about the people who have

    mental disorders. For this, we analised the guidings from those physicians to the psy-

    chiatry ambulatory and also interviewed them (with non-structured interviews).

    We concluded that is a challenge to overcome the practice of physicians, that

    saw difficulties on working with subjectives aspects of ilness.

    Also, the clinical guidelines on mental disorder are not well-known by the

    physicians interviwed. Fragile and transitory link between those physicians and the

    community was also observed. Non-padronization of reference versus against-refer-

    ence instruments made the comunication between the professionals difficult.

    Key-words: mental health; family health; clinical protocols; ambulatory care.

    10

  • Lista de Abreviaturas e Siglas

    ABRASCO Associao Brasileira de Ps-Graduao em Sade Coletiva

    ABP Associao Brasileira de Psiquiatria

    AP Ambulatrio de Psiquiatria

    APAC Autorizao para procedimento de alta complexidade

    Bireme Biblioteca Virtual em Sade

    CA Clnica Ampliada

    CAPS Centro de Ateno Psicossocial

    CAPS Ad Centro de Ateno Psicossocial - lcool e Drogras

    CEP Comit de tica em Pesquisa

    CERSAM Centro de Referncia em Sade Mental

    CID-10 Classificao Internacional de Doenas 10 verso (1993)

    CIS MIRECAR Consrcio Intermunicipal de Sade da Micro-Regio de Caratinga

    CMS Conselho Municipal de Sade

    CONSADE Consrcio Intermunicipal de Sade da Micro-Regio do Vale do Rio

    Doce

    DECS Descritores em Cincias da Sade

    EC Espaos de Convivncia

    EP Emergncias Psiquitricas

    ESF Equipe de Sade da Famlia

    GT Grupos Teraputicos

    HDA Histria da Doena Atual

    HD Hiptese Diagnstica

    IMS Instituto de Medicina Social

    INSS Instituto Nacional de Seguridade Social

    MS Ministrio da Sade

    OC Oficinas Comunitrias

    OMS Organizao Mundial de Sade

    OT Oficinas Teraputicas

    PSF Programa Sade da Famlia

    PMC Prefeitura Municipal de Caratinga

    RAISM - Rede de Ateno Integral Sade Mental de Sobral

    11

  • RP Reforma Psiquitrica

    SAMU Servio de Atendimento Mdico de Urgncia

    SES Secretaria Estadual de Sade

    SMS Secretaria Municipal de Sade

    SRT Servios Residenciais Teraputicos

    TMC Transtornos Mentais Comuns

    UERJ Universidade do Estado do Rio de Janeiro

    UNEC Centro Universitrio de Caratinga

    12

  • Apresentao

    O meu interesse por este tema iniciou-se durante a graduao, quando fazia

    estgios em servios de Psicologia Mdica e Psiquiatria, em diferentes contextos.

    Surgiu ento o interesse pelos aspectos psquicos do adoecimento humano. quela

    poca, observei que muitos casos atendidos pelo Psiquiatra se deviam a problemas

    do cotidiano, transformados em problemas mdicos. Tal experincia fez com que

    eu me dedicasse ao estudos destes aspectos do adoecimento, e encontrei

    embasamento terico para tal no campo da Medicina Psicossomtica. Realizando

    estgios em ambulatrios de psiquiatria e em instituies manicomiais, observei o

    modus operandi da integrao das propostas de Sade Mental na Ateno Bsica.

    Em Janeiro de 2006 iniciei atendimento nos ambulatrios de psiquiatria em

    sete municpios do Leste de Minas Gerais (Caratinga, Inhapim, Entre Folhas,

    Vargem Alegre, So Sebastio do Anta, Ubaporanga, Imb de Minas). Observei que

    a procura por atendimento psiquitrico bastante elevada nestes municpios, de

    modo que em todos eles, com exceo de Caratinga, sou o nico mdico que presta

    atendimento em psiquiatria.

    Assim, inserido neste contexto, em conversas informais com os colegas, notei

    que a rotatividade entre mdicos do Programa Sade da Famlia dos respectivos

    municpios elevada, por distintos motivos apontados por eles - alegavam o fato de

    os municpios serem distantes dos grandes centros, ou aguardavam uma vaga na

    Residncia Mdica enquanto faziam um caixa como mdicos de famlia.

    Nota-se que, em distintos contextos, existem dificuldades no estabelecimento

    do vnculo (considerado um dos pilares da estruturao das equipes de sade da

    famlia), sendo este muitas vezes inexistente. A noo de vnculo tornou-se

    13

  • deturpada, questo relevante principalmente quando se observa que existe uma

    lacuna conceitual na formao mdica, qual seja, a limitao do modelo biomdico

    em lidar com a demanda de sofrimentos psquicos, cujas consequncias so

    negativas ao usurio e tambm ao sistema de sade.

    Inserido no contexto de atendimento em que tenho de lidar com os

    encaminhamentos oriundos dos mdicos de famlia, considerei importante o estudo

    das questes contidas no processo de referenciamento de um usurio ao

    ambulatrio de psiquiatria, dada a elevada quantidade destes encaminhamentos.

    Como esta pesquisa foi realizada no cotidiano de instituies, espera-se que

    a mesma possa ser til para a identificao dos parmetros utilizados pelo mdico

    de famlia quando este elabora um encaminhamento ao ambulatrio de psiquiatria.

    14

  • Introduo

    A Sade Mental constitui um campo em constante desenvolvimento no mbito

    do Sistema nico de Sade. A dcada de 90 ficou marcada pela criao dos

    servios substitutivos hospitalizao psiquitrica, visando o incremento da

    resolutividade em sade mental. Destarte, criaram-se redes de cuidados compostas

    pelos ambulatrios de sade mental (psiquiatria; psicologia), os centros de ateno

    psicossocial (CAPS), os servios residenciais teraputicos (SRT), as oficinas

    comunitrias/ teraputicas (OF e OT), os grupos psicoteraputicos (GP), espaos de

    convivncia (EC), emergncias psiquitricas (EP), leitos psiquitricos em hospitais

    gerais, dentre outras atividades de base comunitria visando-se a (re)integrao

    psicossocial do usurio. (Amarante, 2001; Brasil, 2004).

    Segundo estimativas do Ministrio da Sade (MS) referentes demanda por

    servios de Sade Mental, 3% da populao necessita de cuidados contnuos, por

    possuir transtornos mentais severos e persistentes, 9% da populao requer

    cuidados eventuais, estes ltimos por possurem transtornos menos graves

    (totalizando aproximadamente 20 milhes de habitantes somente no Brasil).

    Estudo realizado nos EUA na dcada de 80 (ECA-Epidemiologic Catchment

    Area) revelou que 40 a 60% dos casos de sade mental so atendidos por mdicos

    generalistas, aspecto corroborado por trabalhos posteriores. Pesquisas brasileiras

    apontam que 38 a 56% dos pacientes atendidos em ambulatrios de clnicos gerais

    so portadores de transtornos mentais (Mari, 1987; Villano, 1995).

    Nos ambulatrios, a prevalncia de transtornos mentais chega a 60%, e as

    pesquisas indicam que os mdicos generalistas subestimam a presena de

    transtornos mentais em seus pacientes (Blat, 2006). Mari (ibidem) observou que

    15

  • numa amostra de clnicos gerais, 22 a 79% deles no foram capazes de identificar a

    presena de distrbios psiquitricos entre seus pacientes. A prevalncia de

    transtornos mentais na populao geral atinge de 30 a 60% nos ambulatrios gerais,

    sendo que as consequncias de tal subestimao pelos clnicos incluem persistncia

    do sofrimento do usurio, elevao dos custos e complicao de enfermidades

    clnicas (Blat, op cit, 2006).

    Cerca de 30% dos pacientes vistos por um mdico sofrem de depresso, de

    modo que 60% procuram tratamento inicialmente com um clnico geral. Consiste

    num desafio especial para o mdico clnico trabalhar com doena somtica e

    transtornos psicolgicos simultaneamente. A depresso, em muitos casos,

    mascarada e os pacientes apresentam apenas queixas somticas. (grifos nossos.

    OMS, 2000).

    Das situaes demandadas aos ambulatrios de ateno primria1, as mais

    frequentes so os Transtornos Mentais Comuns (TMC), tais como quadros

    depressivos e quadros de ansiedade menos graves, relacionados a fatores sociais e

    econmicos desfavorveis (Fortes, 2004). O aparecimento cada vez mais freqente

    de situaes de sofrimento psquico nas unidades de ateno primria correlaciona-

    se com baixa escolaridade, dificuldades scio-econmicas, conflitos familiares,

    subemprego e desemprego.

    De acordo com Joubert (2006), em apresentao proferida no 8 Congresso

    Brasileiro de Sade Coletiva:

    1 Neste texto, os termos ateno primria e ateno bsica sero tomados como sinnimos, cujo significado : assistncia sanitria essencial baseada em mtodos e tecnologias prticas, cientificamente fundados e socialmente aceitveis, postos ao alcance de todos os indivduos e famlias da comunidade mediante a sua plena participao e a um custo que a comunidade e o pas possam suportar, em todas e cada etapa do seu desenvolvimento, com um esprito de auto-responsabilidade e autodeterminao. (consulta ao Descritores em Cincias da Sade, da biblioteca virtual em sade BVS disponvel em: http://decs.bvs.br/cgi-bin/wxis1660.exe/decsserver/).

    16

  • apesar da tendncia em patologizar ou medicalizar, a maioria dos

    problemas mentais sofridos pelas populaes (por exemplo,

    ansiedade, depresso, violncia, abuso de drogas, estresse ps-

    traumtico) no so necessariamente provenientes de doenas

    orgnicas.

    Segundo o MS, 56% das equipes de sade da famlia referiram realizar

    alguma ao de sade mental, sendo as ESFs consideradas importantes recursos

    principalmente pela proximidade com a comunidade.

    Para Silva Filho (1985), o ambulatrio de psiquiatria apareceu como um

    dispositivo articulador dos novos contedos de ensino com as novas regras de

    cuidados com os doentes mentais.

    o ambulatrio deve ser visto como um dispositivo: um conjunto

    terico-prtico inserido na estrutura assistencial, tendo no contexto

    histrico e social do Brasil efeitos diretos e indiretos, procurando

    estabelecer os seus critrios de funcionamento, as condies de sua

    difuso e sua importncia na constituio de uma nova identidade

    profissional para os psiquiatras. (Silva Filho, op cit, p. 305).

    Assim, j no se concebe cotidianamente uma prtica em sade mental

    isolada de outras disciplinas e saberes, tampouco centrada na psiquiatria. Observa-

    se, na literatura, escassez de trabalhos acerca do processo de encaminhamento no

    mbito do Programa Sade da Famlia, de modo que o presente estudo torna-se

    relevante neste contexto.

    17

  • 2 - Polticas de Sade Mental no Brasil

    Os indivduos portadores de transtornos mentais foram, durante determinadas

    pocas, considerados uma ameaa para a sociedade, sendo excludos por meio da

    internao em instituies manicomiais, as quais possuam o papel de manter a

    ordem social. No sculo XV, eles eram chicoteados em pblico, expulsos das

    cidades, proibidos de entrar nas igrejas. O asilo, naquele tempo, consistia num

    espao moral da excluso (Foucault, 2005).

    No atendimento manicomial, o sujeito considerado louco era excludo do

    convvio social para que pudesse ser observado sem as interferncias do meio

    externo. Destarte, o manicmio emerge como local de controle e disciplina, por

    exercer uma funo normalizadora, conforme nos mostra Foucault (2005).

    Posteriormente, no sculo XVIII, ganha o status de local de cura. Para Amarante

    (1995), o asilo consistia num espao de excluso, sonegao e mortificao das

    subjetividades.

    Durante dois sculos o modelo asilar predominou, sendo o Hospital

    Psiquitrico elemento central no funcionamento das polticas de sade mental, de

    modo que houve, inclusive, significativa expanso do nmero de leitos psiquitricos

    no sculo XX. O modelo se esgotou principalmente aps a 2 Guerra Mundial,

    quando percebeu-se que este era inadequado como dispositivo de interveno

    tcnica, ao mesmo tempo em que a psiquiatria, sozinha, j no comportava os

    aspectos ligados loucura. Somente nos anos setenta do sculo XX que

    emergiram novos atores no campo da sade mental, que passam a defender uma

    18

  • poltica de sade mental centrada no usurio, cujo cuidado prestado pelos servios

    substitutivos deveria levar em considerao o acolhimento, o vnculo e a

    integralidade, e o usurio passa a ser visto como um indivduo com direito ao

    exerccio da cidadania. O processo ocorreu em diversos pases e chegou ao Brasil

    nos anos setenta por incluncia dos ideais do psiquiatra italiano Franco Basaglia

    (Arajo, 2006).

    As iniciativas de modificao das prticas institucionais psiquitricas no Brasil

    ficaram conhecidas como Reforma Psiquitrica, surgindo numa conjuntura poltica

    de redemocratizao. Para Amarante (2001), a reforma seria:

    processo histrico de reformulao crtica e prtica, que tem como

    objetivos e estratgias o questionamento e elaborao de propostas

    de transformao do modelo clssico e do paradigma da psiquiatria

    (...). [Possui como um dos seus princpios], uma crtica conjuntural

    ao subsistema nacional de sade mental, mas tambm e

    principalmente uma crtica estrutural ao saber e s instituies

    psiquitricas clssicas, dentro de toda a movimentao poltico-social

    que caracteriza a conjuntura da redemocratizao. (Amarante, op

    cit, p. 87).

    Para este mesmo autor, a Reforma tambm pode ser compreendida como um

    processo social complexo de transformao estrutural da viso da sociedade sobre

    a loucura (Amarante, 2005).

    Esta reformulao do modelo de atendimento em sade mental possui como

    marco inicial a deflagrao de denncias contra irregularidades na assistncia

    prestada nas instituies manicomiais do Rio de Janeiro, em meados dos anos

    setenta. Surge, em 1978, o Movimento de Trabalhadores de Sade Mental (MTSM),

    19

  • que reivindica melhores condies salariais e formao de recursos humanos na

    rea de sade mental, critica o autoritarismo das instituies bem como o modelo

    mdico centrado nas teraputicas biolgicas, e, ainda, reivindica melhorias nas

    condies de atendimento prestado (Amarante, 2001).

    Outros setores at ento distantes do ideal reformista aderem ao movimento,

    dentre eles a Associao Brasileira de Psiquiatria (ABP), prevalecendo o repdio ao

    uso da instituio psiquitrica como instrumento de represso.1

    Em 1987, no congresso de Trabalhadores de Sade Mental de Bauru SP,

    lanado o lema Por uma Sociedade sem Manicmios, quando cria-se o dia

    nacional de luta antimanicomial (18 de Maio). A partir deste episdio, ocorre uma

    ampliao neste movimento, com nfase no aspecto social, e no somente tcnico

    (Amarante, 1995).

    Outro marco no movimento de Reforma do modelo foi a Declarao de

    Caracas, que exortou os governos regionais a adotarem modificaes na prestao

    do cuidado em sade mental:

    A Declarao de Caracas foi assinada em 1990, e os dois grandes

    objetivos que seus signatrios se comprometeram a promover a

    superao do modelo do hospital psiquitrico e a luta contra todos os

    abusos e a excluso de que so vtimas as pessoas com problemas

    de sade mental - foram adotados como as grandes metas

    mobilizadoras de todos os movimentos de reforma de sade mental

    ocorridos na Amrica Latina e Caribe, a partir de 1990. (Brasil,

    2005).

    1 Para um aprofundamento dessa discusso, vide Amarante, 2001.

    20

  • As equipes de atendimento, outrora centralizadas no mdico psiquiatra,

    passam a agregar novos atores: psiclogos, assistentes sociais, pedagogos,

    oficineiros, recreadores, enfermeiros, favorecendo assim que outros aspectos

    ligados aos transtornos mentais, que no somente o orgnico possam ser

    abordados.

    Surgem os servios substitutivos, no contexto da desinstitucionalizao2,

    com intensa criao de redes de cuidados regionalizadas e territorializadas, tais

    como ambulatrios de psiquiatria e psicologia, Centros de Ateno Psicossocial

    (CAPS), Servios Residenciais Teraputicos (SRT), Oficinas Comunitrias (OC),

    Leitos Psiquitricos nos Hospitais Gerais, Centros de Convivncia, Clubes de Lazer.3

    O processo de desinstitucionalizao dos pacientes asilados e cronificados consiste

    justamente na criao e potencializao desses servios substitutivos.

    Em 2001, a OMS recomendava as seguintes aes no mbito da sade

    mental:

    a)- proporcionar tratamento na ateno primria;

    b)- garantir acesso aos medicamentos psicotrpicos

    essenciais;

    c)- garantir a ateno na comunidade (evitando internaes

    nos hospitais psiquitricos);

    d)- educao em sade;

    e)- envolvimento das comunidades, famlias e usurios nas

    decises polticas, programas e servios;

    2 Este termo agrega o significado de desospitalizar e desconstruir o ultrapassado modelo. Para Amarante (1995), desinstitucionalizao significa tratar o sujeito em sua existncia e em relao com suas condies concretas de vida. Isto significa no administrar-lhe apenas frmacos ou psicoterapias, mas construir possibilidades. O tratamento deixa de ser a excluso em espaos de violncia e mortificao para tornar-se criao de possibilidades concretas de sociabilidade e subjetividade. (...) A desinstitucionalizao um processo tico, de reconhecimento de uma prtica que introduz novos sujeitos de direito e novos direitos para os sujeitos. (p. 494).3 Para um aprofundamento sobre o funcionamento de cada um desses dispositivos, acessar: www.saude.gov.br/saudemental.

    21

    http://www.saude.gov.br/saude

  • f)- estabelecimento de polticas, programas e legislao

    nacionais;

    g)- formao de recursos humanos;

    h)- monitorizar a sade mental na comunidade (informao,

    indicadores de sade mental);

    i)- apoiar a pesquisa na rea de sade mental

    (OMS, 2001)

    Nos anos 90, com a implantao dos PSFs, a Sade Mental (SM) passa a se

    integrar com a Ateno Bsica, uma vez que grande parte dos problemas em sade

    mental pode ser resolvido neste nvel de assistncia, por meio do matriciamento4

    (Nunes, 2007). Os CAPS so os dispositivos estratgicos para a organizao da

    rede de ateno em SM, necessrios nos municpios com mais de 20 mil habitantes.

    Naqueles com populao inferior, imperiosa se faz a existncia de uma equipe de

    apoio matricial em SM. O Ministrio da Sade preconiza que a assistncia na rede

    bsica deva ser realizada atravs do apoio matricial s equipes da ateno bsica.

    O apoio matricial da sade mental s equipes de AB constitui-se num arranjo que

    visa dar suporte tcnico, onde a equipe de SM compartilha situaes de atendimento

    com a equipe de AB responsvel por determinado territrio. Cria-se assim uma co-

    responsabilizao pelos casos, que se materializa atravs de atendimentos

    4 A definio de matriciamento do Programa Paidia, elaborado por Gasto Wagner Campos, em Campinas, merece ser reproduzida: Entendemos por matriciamento a construo de momentos relacionais onde se estabelece troca de saberes entre os profissionais, de diferentes servios de ateno, envolvidos no cuidado dos usurios. Tem por objetivo garantir que as equipes das UBS e UR vinculem-se aos pacientes e responsabilizem-se pelas aes desencadeadas no processo de assistncia, garantindo a integralidade da ateno em todo o sistema de sade. Esta proposta de matriciamento exige uma reformulao do modelo assistencial vigente nos ambulatrios de especialidades, o qual est focalizado no atendimento individual ou em atividades de grupo e na prpria especialidade, e no no sujeito como um todo. necessrio garantir espaos nas agendas dos especialistas, onde eles matriciaro as equipes das UBSs, proporcionando capacitao em servio, atravs da discusso de casos e de consultas conjuntas ou, atravs da organizao de mutires e de seminrios. (disponvel em: http://www.campinas.sp.gov.br/saude/especialidades/matriciamento.pdf )

    22

    http://www.campinas.sp.gov.br/saude/especialidades/matriciamento.pdf

  • conjuntos, intervenes comunitrias e junto s famlias, bem como discusses

    conjuntas sobre determinados casos.

    a responsabilizao compartilhada dos casos exclui a lgica do

    encaminhamento, pois visa aumentar a capacidade resolutiva de

    problemas de sade pela equipe local. (Brasil, 2003, p.4)

    Em Janeiro de 2008, o Ministrio da Sade deu incio aos Ncleos de Apoio

    Sade da Famlia (NASFs), cujo objetivo ampliar a abrangncia e o escopo das

    aes da ateno bsica bem como sua resolubilidade, apoiando a insero da

    estratgia de Sade da Famlia na rede de servios e o processo de territorializao

    e regionalizao a partir da ateno bsica. (Brasil, 2008). A sade mental passou a

    ser relevante na abordagem das equipes dos NASFs.

    Em nosso trabalho, descreveremos a relao do ambulatrio de psiquiatria

    com a rede de cuidados da ateno bsica (PSF). Segundo Oliveira et al. (2006), os

    servios ambulatoriais realizam atendimento de referncia ambulatorial

    especializada, com consultas, medicao e acompanhamento de Equipe

    Especializada em Sade Mental: psiquiatra, psiclogo, assistente social,

    enfermagem e terapeuta ocupacional. O MS reconhece que, embora no disponha

    de dados estatsticos, os sofrimentos psquicos menos graves so objeto de trabalho

    dos ambulatrios e da ateno bsica (transtornos psicossomticos, dependncia de

    benzodiazepnicos, ansiedade, depresso).

    As aes de sade mental, conforme o MS, devem obedecer o modelo de

    redes de cuidado, com base no territrio e integrando-se a outras polticas de sade

    que convirjam para o estabelecimento de vnculos e acolhimento.

    So princpios da articulao entre SM e AB:

    - noo de territrio;

    - organizao da ateno sade mental em rede;

    23

  • - intersetorialidade;

    - reabilitao psicossocial;

    - multiprofissionalidade/interdisciplinaridade;

    - desinstitucionalizao;

    - promoo da cidadania dos usurios;

    - construo da autonomia possvel de usurios e familiares.

    (Brasil, 2003, p. 4)

    Estimula-se, assim, a prtica da interdisciplinaridade e a ampliao da clnica,

    onde dimenses outras, que no somente a biolgica, possam ser incorporadas s

    prticas dos sujeitos.

    (...) urge estimular ativamente, nas polticas de expanso, formulao

    e avaliao da ateno bsica, diretrizes que incluam a dimenso

    subjetiva dos usurios e os problemas mais graves de sade

    mental.

    (Brasil, op cit, p. 3)

    No caso dos municpios onde no houver CAPS, a equipe matricial dever ser

    composta pelos seguintes membros (MS, 2003, op cit ,p. 5):

    Mdico psiquiatra ou mdico generalista com capacitao em sade

    mental;

    Dois tcnicos de nvel superior (psiclogo, enfermeiro, assistente

    social, terapeuta ocupacional, etc.);

    Auxiliares de enfermagem;

    Nos municpios com menos de 20 mil habitantes, a equipe matricial

    poder ser mais simples, composta por um mdico generalista com

    capacitao em sade mental e um tcnico de sade mental de nvel

    superior.

    24

  • So responsabilidades compartilhadas entre as equipes de sade mental

    e ateno bsica, consoante o MS:

    a. Desenvolver aes conjuntas, priorizando: casos de transtornos

    mentais severos e persistentes, uso abusivo de lcool e outras

    drogas, pacientes egressos de internaes psiquitricas, pacientes

    atendidos nos CAPS, tentativas de suicdio, vtimas de violncia

    domstica intradomiciliar;

    b. Discutir casos identificados pelas equipes da ateno bsica que

    necessitem de uma ampliao da clnica em relao s questes

    subjetivas;

    c. Criar estratgias comuns para abordagem de problemas

    vinculados violncia, abuso de lcool e outras drogas, s

    estratgias de reduo de danos, etc. nos grupos de risco e nas

    populaes em geral;

    d. Evitar prticas que levem psiquiatrizao e medicalizao de

    situaes individuais e sociais, comuns vida cotidiana;

    e. Fomentar aes que visem difuso de uma cultura de

    assistncia no manicomial, diminuindo o preconceito e a

    segregao com a loucura;

    f. Desenvolver aes de mobilizao de recursos comunitrios,

    buscando construir espaos de reabilitao psicossocial na

    comunidade, como oficinas comunitrias, destacando a relevncia da

    articulao intersetorial (conselhos tutelares, associaes de bairro,

    grupos de auto-ajuda, etc);

    25

  • g. Priorizar abordagens coletivas e de grupos como estratgias para

    ateno em sade mental, que podem ser desenvolvidas nas

    unidades de sade, bem como na comunidade;

    h. Adotar a estratgia de reduo de danos nos grupos de maior

    vulnerabilidade, no manejo das situaes envolvendo consumo de

    lcool e outras drogas. Avaliar a possibilidade de integrao dos

    agentes redutores de dano a essa equipe de apoio matricial;

    i. Trabalhar o vnculo com as famlias, tomando-a parceira no

    tratamento e buscar constituir redes de apoio e integrao.

    (Brasil, 2003, p. 5).

    Em 2006, o 8 Congresso Brasileiro de Sade Coletiva, realizado no Rio de

    Janeiro, foi palco de intensos debates no mbito da sade mental. Dentre eles,

    destaque para aspectos referentes ao funcionamento das redes em sade mental

    (Pitta, 2006; Tfoli, 2006), as quais so compostas pelos CAPS, nas suas vrias

    modalidades, bem como os demais dispositivos de desinstitucionalizao e as

    escolas, ONGs e PSFs. O desafio garantir acesso ao cuidado, estendendo-o

    Ateno Bsica e inclusive aos servios de atendimento mdico de urgncia

    (SAMU). Em 2006 o pas j contava com 1123 CAPS, 426 residncias teraputicas,

    mais de 2000 beneficirios do Programa de Volta para Casa. quela poca, ainda

    dispnhamos de 40.000 leitos psiquitricos.

    A legitimao referente Reforma em Sade Mental teve importante avano a

    partir da promulgao da Lei 10216 em 20015. Ademais, vm crescendo os repasses

    financeiros para os projetos de assistncia extra-hospitalar em sade mental.

    Enquanto os gastos com internaes psiquitricas em 1997 atingiam 93% do

    montante de recursos destinados Sade Mental, em 2005 os recursos diminuram 5 Esta Lei trata da proteo e direitos das pessoas protadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial. Prope-se a extino progressiva do modelo psiquitrico clssico, com a substituio deste por outras modalidades de cuidado.

    26

  • para 54%, conquanto os gastos extra-hospitalares atingiram naquele ano 45% do

    total de recursos (Pitta 2006)6.

    Para Amarante (2005), a reforma consiste numa crise de modelo

    epistemolgico no mbito da crise paradigmtica de todas as cincias. O autor

    preconiza que as dimenses da reforma psiquitrica enquanto processo social

    complexo estariam assim subdivididas: dimenso terico-conceitual, dimenso

    tcnico-assistencial, dimenso jurdico-poltica e dimenso scio-cultural, e as suas

    premissas podem ser resumidas no quadro a seguir:

    Dimenses da reforma psiquitrica consoante Amarante (2006)dimenso terico-conceitual -Crise paradigmtica da cincia

    moderna

    * a cincia como produtora de Verdade

    *o mito da neutralidade dos saberes ditos

    cientficos

    *o papel do tcnico - aquele que executa

    as cincias, operadores do saber prticodimenso tcnico-assistencial A construo / inveno de novos

    servios, estratgias e dispositivos

    A transformao do papel e da

    funo dos tcnicos, dos usurios,

    familiares e comunidadesdimenso jurdico-poltica Cdigos civil, penal e sanitrio

    Conceito de periculosidade

    inimputabilidade

    Irresponsabilidade civil

    Custdia e tutela6 Apresenteo disponvel em: http://www.saudecoletiva2006.com.br/portugues/painel2208.php

    27

    http://www.saudecoletiva2006.com.br/portugues/painel2208.php

  • Sofrimento psquico e trabalho

    Educao

    Direitos sociais e humanos

    Cidadania dimenso scio-cultural Um novo lugar social para a

    loucura que no seja sinnimo de

    erro, irresponsabilidade,

    incapacidade, insensatez,

    desatino, defeito

    Incluso, solidariedade e cidadania(Amarante, 2006)

    Um dos princpios da Reforma organizar o tratamento em rede assistencial

    nos trs nveis de ateno, dentre os quais o ambulatrio de psiquiatria foi recrutado

    como um dos dispositivos substitutivos ao manicmio. Nesse mbito, os CAPS

    firmam-se como os articuladores dos servios comunitrios de sade mental, onde o

    PSF torna-se a base da referncia e contra-referncia. (Vieira, 2006).

    Preconiza-se que a integralidade deva pautar as aes em sade na

    contemporaneidade, uma vez que ela expressa um atributo das boas prticas em

    sade. A integralidade, para Pinheiro e Mattos (2001, 2005), deve ser compreendida

    no seu sentido mais amplo, de modo que as prticas em sade se dem no mbito

    da subjetividade. A prtica da integralidade no campo da sade mental materializa-

    se na negao do isolamento, na humanizao das prticas e integrao dos

    servios, visando assistncia integral do usurio. Vnculo e acolhimento so

    fundamentais para a materializao dessas prticas. (Arajo, 2006).

    28

  • No municpio de Sobral-CE, existe uma Rede de Ateno Integral Sade

    Mental de Sobral RAISM, bastante exitosa, sendo composta por um CAPS II, um

    CAPS Ad, SRT, Ambulatrio macro-regional de psiquiatria e USFs. O servio de

    sade mental de Sobral constitui um modelo para diversos municpios brasileiros.

    (Tfoli, 2006).

    Nesta rede, os medicamentos psiquitricos so distribudos nas prprias UBS,

    sendo que as situaes sob responsabilidade compartilhada pelas ESF so:

    transtornos mentais comuns; sofrimento psicossocial; transtornos mentais severos

    estabilizados; relao profissional-paciente. (Tfoli, op cit).

    O RAISM produziu importantes avanos no mbito da Ateno

    Compartilhada na Ateno Bsica:

    Maior efetividade

    Maiores mudanas clnicas

    Instrumento de educao permanente

    Aproximao entre psiquiatras e mdicos de famlia

    (Tfoli, 2006)

    As parcerias de integralidade em Sade Mental no territrio de Sobral incluem

    os alcolicos annimos, grupos de terapia comunitria, grupos de atividade fsica e

    massoterapia.

    O autor identificou dificuldades com relao formao de recursos humanos

    para o trabalho de integralidade em Sade Mental, quais sejam, psiquiatras e

    psiclogos excessivamente voltados para a doena mental e para o trabalho em

    hospital ou ambulatrio e falta de psiquiatras. Ressalta a inexistncia de uma poltica

    29

  • nacional de sade mental na ateno bsica apesar das experincias isoladas bem-

    sucedidas.

    Amarante (2006) coloca como desafios atuais da Reforma Psiquitrica no

    somente a ampliao do nmero de CAPS, como tambm de todos os novos

    dispositivos e recursos, alm da ampliao da clnica em oposio a uma ampliao

    restritamente medicalizadora. Deve-se garantir, outrossim, que todos os recursos

    financeiros outrora destinados s internaes sejam dirigidos para os servios

    substitutivos. O autor defende que os processos (na RP) devem ser construdos

    sempre com a participao de diferentes atores (usurios, familiares e comunidade).

    Durante o Congresso de Sade Coletiva de 2006, um grupo de participantes

    do movimento reuniu-se em defesa da RP, em virtude das reaes provocadas por

    declaraes de membros da Associao Brasileira de Psiquiatria (ABP) com duras

    crticas ao processo de reestruturao da assistncia psiquitrica vigente.

    Este mesmo evento produziu o Manifesto em Defesa da Poltica de Sade

    Mental e do Processo de Reforma Psiquitrica do Brasil.7 Diz o manifesto:

    A reforma psiquitrica vem convertendo servios antes centrados

    exclusivamente no hospital psiquitrico, para uma ateno em sade

    mental com as seguintes caractersticas:

    - servios coerentes com os avanos internacionais prescritos na

    Organizao Mundial da Sade e na Carta da ONU de 1991

    (Proteo das Pessoas Portadoras de Transtorno Mental e

    Desenvolvimento da Assistncia Sade Mental);

    - servios coerentes com a legislao do SUS, de uma ateno

    integral sade, de acesso universal, de base territorial, com

    equidade, integralidade, participao e controle social, princpios cuja

    7 Disponvel em http://www.abrasco.org.br/grupos/arquivos/20071226134149.pdf.

    30

    http://www.abrasco.org.br/grupos/arquivos/20071226134149.pdf

  • origem est na forte mobilizao dos segmentos sociais ligados

    sade e que foram aprovados na Constituio Federal de 1988;

    - servios abertos na comunidade e integrados ateno bsica em

    sade, que hoje atende cerca de 100 milhes de habitantes no pas;

    - novas modalidades de formao e exerccio profissional em sade

    mental abarcando as contribuies das diferentes disciplinas, com a

    democratizao do trabalho nas equipes multiprofissionais, visando

    dar conta da complexidade e das vrias dimenses do sofrimento

    psquico, do desenvolvimento da subjetividade e da qualidade de

    vida, num movimento de autonomia e emancipao.

    O documento ressalta os inmeros avanos que se consolidaram desde os

    anos setenta, quando 97% dos recursos destinavam-se s internaes psiquitricas,

    sendo que, atualmente, 50% vo para as atividades substitutivas. O manifesto atribui

    os ataques das entidades classistas a uma tentativa de retrocesso no SUS. No

    encerramento do Congresso, elaborou-se uma moo de apoio Reforma

    Psiquitrica.8

    A relao entre Sade Mental e Ateno Bsica configura-se por meio de um

    modelo de base comunitria, no territrio prximo s pessoas, isto , o lugar onde os

    indivduos vivem, trabalham, se relacionam. Neste modelo, devem ser buscados os

    recursos oriundos da prpria comunidade, quando ento a maior parte da demanda

    em sade mental passa a ser abordada no mbito do PSF. Vieira (2006) aposta na

    integrao entre as estratgias (PSF e SM):

    ambos se complementam e caminham num mesmo sentido

    conceitual e operacional: autonomia e participao. (...) definem o

    processo sade-doena de forma integral e apresentam novas

    8 Disponvel em: http://www.abrasco.org.br/grupos/arquivos/20061020114151.pdf.

    31

  • formas de cuidado, que visam a melhoria da qualidade de vida das

    pessoas a partir de um processo participativo. (Vieira, 2006, p. 20).

    No pretendemos, aqui, esgotar toda a discusso que envolve os avanos

    conquistados pela Reforma Psiquitrica. Uma abordagem mais detalhada de outros

    aspectos da RP ultrapassa os objetivos deste trabalho; para anlises aprofundadas,

    ver Amarante (2001, 2005, 2006).

    Passemos agora ao debate sobre a Estratgia Sade da Famlia.

    3 - Formao Mdica e a Prtica no Programa Sade da Famlia

    3.1- Consideraes sobre a Estratgia Sade da Famlia

    32

  • A Estratgia Sade da Famlia bem como a Sade Mental, so ambos programas

    que pretendem romper com o establishment do modelo biomdico, consistindo em

    estratgias de reorientao do modelo assistencial tradicional. O Programa Sade

    da Famlia consiste num modelo de reorientao da ateno bsica que visa a

    promoo, a preveno e a assistncia sade, elegendo a famlia e o seu espao

    social como ncleo bsico de abordagem do atendimento sade, rompendo

    portanto com o paradigma anterior, centrado no atendimento mdico individual

    (Favoreto, 2002; Guglielmi, 2006; Silva e Souza, 2001).

    O PSF teve incio em 1994, a partir do Programa de Agentes Comunitrios de

    Sade (PACS), que j existia desde 1991 com bons resultados no tocante reduo

    da mortalidade infantil no estado do Cear. O Programa Mdicos de Famlia, de

    Niteri-RJ1, tambm inspirou o PSF.

    O MS preconiza que cada ESF seja constituda por, no mnimo, 1 mdico, 1

    enfermeiro, 2 auxiliares/tcnicos de enfermagem e 4 agentes comunitrios de sade

    (ACS). Conforme a realidade local, outros profissionais podem ser incorporados

    equipe, que fica responsvel pelo atendimento de uma clientela adscrita, que varia

    entre 2450 a 4500 pessoas.

    Na definio do MS,

    1 Inspirado no modelo de Cuba, o programa prope: uma mudana do modelo de ateno vigente e proporcionar assistncia integral sade da populao, com nfase nas atividades de preveno e de promoo. O meio adotado para atingir tais objetivos foi a utilizao de mdicos generalistas e o investimento na capacitao e na educao continuada desses profissionais, que devem ser capazes de resolver cerca de 70% dos problemas de sade de sua rea de abrangncia. Alm disso, a equipe de sade tambm deve atuar no plano coletivo, com um olhar integral sobre o indivduo, sua famlia, a comunidade e as questes ambientais, sociais e econmicas que influenciam o estado de sade da populao da rea de cobertura, tais como educao, abastecimento de gua, esgotamento sanitrio, coleta de lixo, processo de urbanizao etc (Terra, 1988, p. 4). As equipes deste programa no dispunham do agente comunitrio, sendo compostas pelo mdico, enfermeiros, auxiliares e supervisores clnicos nas reas de pediatria, clnica, tocoginecologia, cirurgia, sade mental, epidemiologia, enfermagem e servio social (Silva e Souza, 2001; Terra, 1998).

    33

  • A Sade da Famlia entendida como uma estratgia de

    reorientao do modelo assistencial, operacionalizada mediante a

    implantao de equipes multiprofissionais em unidades bsicas de

    sade. Estas equipes so responsveis pelo acompanhamento de

    um nmero definido de famlias, localizadas em uma rea geogrfica

    delimitada. As equipes atuam com aes de promoo da sade,

    preveno, recuperao, reabilitao de doenas e agravos mais

    freqentes, e na manuteno da sade desta comunidade. A

    responsabilidade pelo acompanhamento das famlias coloca para as

    equipes de sade da famlia a necessidade de ultrapassar os limites

    classicamente definidos para a ateno bsica no Brasil,

    especialmente no contexto do SUS.2

    A Unidade Bsica de Sade (UBS) constitui-se na porta de entrada do sistema

    local de sade, estando vinculada a servios que dem suporte e garantam a

    referncia e contra-referncia. Atualmente, existem cerca de 26000 equipes de

    sade da famlia no pas, contudo nem todas funcionam conforme o previsto. A

    proposta do PSF, visto que se constitui num modelo assistencial baseado na

    preveno de doenas e na promoo da sade, dar mais racionalidade e

    eficincia ao SUS, ao resolver 85% dos problemas de sade da comunidade,

    desafogando os hospitais.3

    Os profissionais recebem remunerao diferenciada, ainda que os vnculos

    empregatcios sejam frgeis, fazendo com que a permanncia do profissional seja

    curta, principalmente do mdico. Este fato causa prejuzo no estabelecimento do

    vnculo com a populao (Silva e Souza, 2001; Silveira, 2004).

    32 ver referncias bibliogrficas (Brasil, 2004 [?]; 2003; s.d ).3 http://www.saude.gov.br

    34

  • O programa pretende modificar o contedo das prticas mdicas no sentido da

    humanizao, incorporando-se componentes sociolgicos, antropolgicos,

    epidemiolgicos e psicolgicos. O confronto aparece na medida em que o PSF tem

    como referncia a sade, enquanto a medicina referencia a doena. A proposta do

    PSF no basear-se somente na demanda espontnea, com nfase na medicina

    curativa, nos atendimentos individuais e tampouco no saber centrado no mdico.

    Isso requer ento a formao de recursos humanos diferenciados, capazes de

    abordar o sofrimento humano num contexto amplo, que englobe aspectos outros que

    no somente o biolgico (Favoreto, 2002; Silva e Souza, 2001).

    Oportuna se faz, neste ensejo, uma discusso acerca da racionalidade mdica

    dominante em nosso meio - a biomedicina, luz das concepes de Camargo Jr. e

    do grupo de pesquisas Racionalidades Mdicas do IMS-UERJ.

    3.2 Biomedicina e a Estratgia Sade da Famlia

    Os debates sobre a incorporao dos aspectos subjetivos do adoecimento na

    prtica mdica ganham espao na Sade Coletiva, uma vez que o modelo

    biomdico predominante mostra-se insuficiente para a atuao do mdico de famlia.

    A Estratgia Sade da Famlia pressupe (ao menos idealmente) que o mdico faa

    um atendimento integral ao paciente, incorporando aspectos psquicos e sociais do

    adoecimento, no permanecendo limitado ao organicismo.

    A Biomedicina (Medicina Ocidental Contempornea), surgiu no momento em que

    a medicina se tornou antomo-clnica, no sculo XVIII, com a incorporao da

    anatomia patolgica ao arsenal tcnico-cientfico da medicina. A atuao mdica

    passou, a partir de ento, a se focalizar principalmente no corpo, isto , nas leses e

    35

  • nas doenas, onde estas ltimas deixaram de ser vistas como um fenmeno vital

    passando condio de expresso de leses celulares. Tal concepo de doena

    passou a ser a categoria central do saber e da prtica mdica, ento a lgica da

    interveno mdica passou a ser evitar, retardar a progresso ou minimizar o dano

    causado pelas doenas.4 Nesta racionalidade, a medicina recorre cientificidade

    para conferir legitimidade s suas aes (Camargo Jr., 2005).

    So problemas identificados em relao ao modelo biomdico, segundo

    Camargo Jr (2007): a insatisfao de usurios e dos prprios mdicos, os custos

    elevados com tratamentos e exames (alm do uso excessivo destes), formao

    inadequada de recursos humanos, competio entre os profissionais da rea e

    desvalorizao dos aspectos subjetivos do adoecimento humano. Nesse mbito, a

    no-valorizao da subjetividade choca-se com um dos princpios do PSF, conforme

    j discutido.5

    (...) entendemos que a subjetividade do adoecimento, isto , a

    complexidade e a singularidade do sofrimento humano, e mais ainda,

    a sua dimenso fenomenolgica, experiencial, nunca chegou a ser

    objeto das cincias biomdicas (...). (Camargo Jr, 2006, p. 1095).

    Favoreto (2002), analisando a prtica mdica no PSF, ressalta que o modelo

    biomdico no auto-suficiente para dar respostas que venham ao encontro de

    uma viso mais totalizante do adoecer humano e do cuidado em sade (p. 85).

    Para Silva e Souza (2001), os indivduos procuram o mdico delegando ao mesmo o

    poder de traduzir o sofrimento, que interpretado por ele em termos antomo-4 Como exemplificao do poderio do discurso das doenas, a prria acepo de sade mental, de acordo com a OMS faz referncia ausncia de doena: o estado de bem-estar no qual o indivduo percebe as prprias habilidades, pode lidar com os estresses normais da vida, capaz de trabalhar produtivamente e est apto a contribuir com sua comunidade. mais do que ausncia de doena mental (consulta ao DECS; grifos nossos).5 Revelando-se iatrognico, uma vez que a prtica mdica envolve elevado grau de subjetividade, e aqui o mdico encontra grandes dificuldades quando no consegue traduzir o sofrimento em algo amparado pelo conhecimento cientfico.

    36

  • fisiolgicos. A biomedicina, assim, ofusca boa parte das dimenses da subjetividade

    que aparecem a cada encontro entre o mdico e o usurio: aspectos relacionados

    ao prprio adoecimento bem como as reaes do indivduo quanto teraputica e

    situaes de vida. (Schraiber, 1993).

    Assim, a biomedicina traduz-se num sistema em que a nfase recai sobre a

    doena e no sobre o doente, h uma centralizao do atendimento, que ocorre no

    ambiente hospitalar, e a poltica curativista.

    No rol de tcnicas teraputicas desta racionalidade, inclui-se a medicamentosa, a

    cirrgica, a fsica e a diettica, sendo as duas primeiras mais valorizadas pelos

    mdicos pelo fato de serem de domnio exclusivo da categoria (Camargo Jr., 2005).6

    As razes pelas quais esse modelo ainda se sustenta, se devem, entre outras

    coisas, pelo poder do complexo mdico-industrial em determinar os rumos da prtica

    mdica, representado principalmente pela indstria farmacutica, a qual financia as

    principais pesquisas cientficas em nosso meio (Luz, 2004).

    As instituies de ensino mdico do pas encontram-se pautadas pelo modelo

    biomdico, com a formao mdica se estruturando a partir do estudo antomo-

    patolgico, esquadrinhando o indivduo doente em partes e supervalorizando o

    objetivismo em detrimento da subjetividade, conforme pode-se verificar nos estudos

    sobre o saber mdico na contemporaneidade. Um dos conflitos da medicina reside

    justamente nas teorias generalizantes que se contrapem prtica pautada na

    individualidade.

    O mdico recm-formado, ao iniciar sua prtica, v-se diante de um grande

    desafio que abordar o sofrimento do usurio na sua integridade, pois teve um

    ensino baseado na objetividade da apresentao dos sinais e sintomas. Sente-se

    6 Assim como so mais valorizados os exames complementares caros e complexos, em detrimento da semiologia. Aqui reside um outro paradoxo desta racionalidade, j que o eixo semiolgico, menos legitimado socialmente, o que predomina na prtica cotidiana do mdico (Camargo Jr, 2005).

    37

  • confuso e, consequentemente irritado, quando no consegue enquadrar uma

    queixa principal conforme aprendera na Semiologia (Guedes, 2007). Camargo Jr.

    (1990) verificou que os manuais de medicina falam na necessidade de ver o

    paciente como um todo, porm isto nunca colocado em prtica. Observou, no

    estudo das prticas mdicas no ambulatrio de Medicina Integral, que os mdicos

    no davam oportunidade para que os pacientes falassem sobre situaes de

    sofrimento psquico.

    (...) quando os pacientes tentavam abordar assuntos outros que no

    suas doenas, os mdicos, seja l por que razo for, impediram que

    o desabafo se desenvolvesse. (Camargo Jr, 1990, p. 104).

    Assim, este mesmo autor (2003, 2007) defende um modelo no qual a

    subjetividade possa ser abordada, e, para tanto, o campo da Sade Coletiva dispe

    de inmeras maneiras novas de se pensar o adoecimento, tais como a proposta da

    Clnica Ampliada (Campos, 2007), a integralidade e a produo do cuidado visando

    a transformao do modelo tecnoassistencial (Pinheiro, 2005). Ao mesmo tempo, as

    prticas alternativas se propagam rapidamente no meio mdico, justamente porque

    abordam o indivduo como um todo, alm de algumas delas constiturem-se em

    prticas cuja linguagem de mais fcil acesso8.

    Para a produo do cuidado em sade e uma abordagem integral do indivduo

    doente, Favoreto (2002) sugere:

    so necessrias reflexes e atitudes que incorporem outros saberes

    e novos atores que transcendem o saber antomo-clnico e

    epidemiolgico como os das cincias sociais, da pedagogia, da

    psicologia e da psicossomtica para uma compreenso mais crtica 8 Esta uma das razes pelas quais os curandeiros ou tratadores fazem tanto sucesso entre a populao rural na regio em que realizamos o estudo de campo.

    38

  • e ampliada da dinmica social, cultural e poltica, evidenciada no

    cotidiano das comunidades. Tambm necessrio, o

    desenvolvimento continuado e contextualizado de novas posturas e

    habilidades tcnicas mais coerentes com a noo de cuidado em

    sade, capaz de produzir maior autonomia e bem-estar s pessoas

    que procuram os servios de sade.

    (Favoreto, 2002, p. 110-11).

    Dentre as propostas de transformao da racionalidade mdica ocidental,

    muito se discute sobre o modelo biopsicossocial, que agrega trs domnios tericos

    que supostamente traduzem o homem como um todo (biolgico, psicolgico e

    social). Para Camargo Jr (2005), contudo, tal discurso mostra-se controverso, na

    medida em que na prtica permanece subordinado ao discurso biolgico:

    a pretensa totalidade usualmente expressa condensando-se todos

    os termos em um s, como se a mera justaposio de discursos

    pudesse, por si s, abolir a fragmentao inerente ao prprio modelo

    de desenvolvimento disciplinar caracterstico da modernidade.

    Agregue-se a isso o fato de que os termos psico e social no

    passam de referncias genricas, subordinadas ao primado do

    discurso biolgico. (Camargo Jr., op cit, p. 185)

    Poucos profissionais que trabalham nas ESF do pas formaram-se com uma

    viso ampliada acerca do processo de adoecimento.9 A maior parte das Faculdades

    de Medicina orienta o ensino para uma prtica privada e para a formao de futuros

    especialistas. Isso pode ser verificado pelo reduzido nmero de mdicos

    9 Da o elevado nvel de estresse (burn-out) observado nas equipes.

    39

  • generalistas que lecionam nas escolas mdicas: no ciclo clnico, as disciplinas

    costumam ser ministradas por especialistas.10

    Ciente da necessidade de reformular o ensino mdico e o de outros profissionais

    de sade, com vistas a capacitar o aluno para o trabalho na ateno bsica, o

    Governo Federal lanou, em 2005, o programa Pr-Sade (Programa Nacional de

    Reorientao da Formao Profissional em Sade), cujos objetivos so11:

    Objetivo Geral: Incentivar transformaes do processo de formao,

    gerao de conhecimentos e prestao de servios populao,

    para abordagem integral do processo de sade doena, tendo como

    eixo central a insero dos estudantes na rede pblica de servios de

    sade.

    Objetivos Especficos:

    I - reorientar o processo de formao em medicina, enfermagem e

    odontologia de modo a oferecer sociedade profissionais habilitados

    para responder s necessidades da populao brasileira e

    operacionalizao do SUS;

    II - estabelecer mecanismos de cooperao entre os gestores do

    SUS e as escolas de medicina, enfermagem e odontologia, visando

    tanto melhoria da qualidade e resolubilidade da ateno prestada

    ao cidado quanto integrao da rede pblica de servios de sade

    formao dos profissionais de sade na graduao e na educao

    permanente;10 A graduao em medicina ainda , na maior parte das instituies de ensino do pas, dirigida para a formao de profissionais sem preocuparem-se com a realidade social e sanitria local. O curso mdico desenvolvido dentro das salas de aula e laboratrios, e, ao final, num hospital universitrio ou conveniado para a realizao do internato.11 vide referncias (Brasil, 2005).

    40

  • III - incorporar no processo de formao da medicina,

    enfermagem e odontologia a abordagem integral do processo sade-

    doena e da promoo de sade;

    IV - ampliar a durao da prtica educacional na rede pblica de

    servios bsicos de sade.

    (Brasil, 2005).

    Esse processo encontra-se interligado com a proposta de assistncia em

    Sade Mental na ateno primria, na medida em que um de seus eixos a

    produo de conhecimentos segundo as necessidades do SUS. Pretende

    diversificar os cenrios de prticas para que o aluno seja um gerador de reflexo e

    no de imitao, nas palavras de Chazan (2007).

    No eixo cenrios de prticas, destacamos o tem maior nfase no nvel

    bsico com possibilidade de referncia e contra-referncia, bem como o item que

    trata da insero precoce do aluno interagindo com a comunidade. O Pr-Sade

    pretende, assim, despertar um esprito crtico com anlise da prtica clnica.12

    No contexto da incorporao de novos saberes prtica outrora restrita

    biomedicina, surge tambm a Clnica Ampliada (CA), que consiste numa proposta de

    uma nova clnica, que permita lidar melhor com a singularidade do sujeito doente,

    sem abrir mo da categoria doena. Para Souza Campos (1997, 2005, 2007a,

    2007b), a concepo epistemolgica e organizacional da CA baseia-se na

    construo do trabalho clnico segundo um neo-artesanato, isto , a ampliao do

    objeto de trabalho da clnica. Agregaria-se ento, alm das doenas, os problemas

    de sade, enfim, as situaes que ampliam o risco ou a vulnerabilidade das

    12 Em Caratinga existe uma Faculdade de Medicina, que formou sua primeira turma em fins de 2007. Naquele curso os alunos recm-ingressados tm a oportunidade de conhecer o funcionamento do PSF no mesmo municpio. Na instituio, lecionamos a disciplina Trabalho de Campo, onde os alunos participam ativamente das atividades comunitrias.

    41

  • pessoas. Para o autor, a ampliao fundamental consiste na considerao dos

    sujeitos, o que ele denominou clnica do sujeito. Ademais, prope a ampliao da

    autonomia do usurio, no sentido da sua capacidade em lidar com sua prpria

    rede/sistema de dependncias. A CA tambm prope-se a lidar com as pessoas na

    sua dimenso social e subjetiva, incorporando elementos da histria de vida de cada

    sujeito, identificando fatores de risco e de proteo, valorizando o poder teraputico

    da escuta e da palavra, o poder de educao em sade e do apoio psicossocial. A

    proposta que a clnica possa incorporar conhecimentos de distintas reas:

    para que essa reforma seja possvel na prtica, a clnica necessitar

    de recorrer a conhecimentos j existentes em outras reas, sobre o

    funcionamento do sujeito quando considerado para alm de sua

    dimenso orgnica ou biolgica. A prtica clnica necessita de uma

    nova semiologia e de uma nova teraputica: parte desses

    conhecimentos pode ser buscada na sade coletiva, na pedagogia,

    psicologia, antropologia, cincias sociais e polticas e, at mesmo,

    em noes de Gesto e de Planejamento. (Campos, 2007a, p. 853)

    Para a efetiva constituio da CA, a estruturao do vnculo profissional de sade

    versus paciente imperioso, de modo que devem ser adotados todos os dispositivos

    para facilitar esta interao.

    O autor identificou os seguintes empecilhos para a estruturao da Clnica

    Ampliada (2007a):

    - excesso de demanda;

    - profissionais com mltiplos empregos;

    - insero dos profissionais nos hopsitais e nos ambulatrios de um modo que a

    ateno ao mesmo paciente no compartilhada pela mesma equipe durante todo o

    processo teraputico;

    42

  • - aumento do nmero de especialidades em sade, fragmentando o processo

    teraputico e com isso elevando o nmero de profissionais que intervm num

    mesmo caso.

    A necessidade de incorporao de uma certa capacidade de lidar com a

    subjetividade e de conhecimentos de psicologia na clnica mdica no nova. O

    prprio Balint j falava da importncia de se utilizar a psicologia na clnica, e

    posteriormente este conceito foi trabalhado pelo movimento da psicossomtica

    (Mello Filho, 2001).

    4 - Atendimento em Psiquiatria

    Os ambulatrios surgiram como um primeiro dispositivo substitutivo

    internao nos manicmios, por volta da dcada de 70. Embora no exista uma

    padronizao quanto ao funcionamento dos ambulatrios no mbito da Reforma

    Psiquitrica, o que se observa no cotidiano das instituies, que o ambulatrio

    43

  • contribui satisfatoriamente para o tratamento e desestigmatizao da doena mental

    no ambiente comunitrio.

    A existncia de um ambulatrio de psiquiatria no mesmo espao fsico

    destinado s demais especialidades1, permite que o indivduo portador de transtorno

    mental seja visto, frequente um ambiente heterogneo, circule entre outros usurios.

    Ademais, a presena do psiquiatra no mesmo ambiente dos demais

    profissionais de sade, contribui para a implantao da interconsulta, favorecendo

    assim uma aproximao com os demais trabalhadores dos servios de sade, pois

    muitos ainda vem este profissional com certo receio ou mesmo indiferena (Mello

    Filho, 2001).

    No ambulatrio de SM, imperiosa se faz a presena do psiclogo, o qual lida

    com psicoterapias individuais ou grupais, e do assistente social. Ressaltamos que as

    caractersticas do atendimento prestadas por estes profissionais no sero objeto de

    discusso em nosso estudo.

    O atendimento psiquitrico pode, por outro lado, contribuir para reforar a

    medicalizao na medida em que se constituir na nica alternativa disponvel num

    determinado local para a abordagem dos conflitos psquicos. O paciente cai

    novamente na rede de medicalizao quando lhe so prescritos psicofrmacos

    como nica alternativa de tratamento.2 Ainda assim, a demanda por aumento do

    nmero de consultas algo marcante na regio em que desenvolvemos a pesquisa,

    sendo a fila de espera uma conseqncia da represso da demanda.

    Cruz Filho (1983) identifica um processo de psiquiatrizao crescente a partir

    do momento em que os distrbios e conflitos passam a ser objeto de ao da

    psiquiatria quando o foco muda do confinamento para a penetrao nos espaos

    1 Referimo-nos aos Postos de Sade tradicionais.2 Aqui, aspectos institucionais podem contribuir para esta situao, em virtude, por exemplo, da falta de tempo disponvel para uma psicoterapia.

    44

  • comunitrios. A expanso dos servios de ambulatorio psiquitrico contribui para o

    aumento do consumo de psicofrmacos, instrumentos mais utilizados no arsenal

    teraputico da psiquiatria. Ocorre, portanto, acmulo de capital na indstria

    farmacutica. (Cruz Filho, 1983, p.18; p. 85).

    Outras crticas atuao do psiquiatra observadas na literatura so: reforo

    ciso mente-corpo; baixa resolutividade do tratamento psiquitrico; dificuldade de

    acesso; falta de vagas; uso de medicamentos em demasia pelo psiquiatra; falta de

    comunicao sobre os casos que lhe so encaminhados. H ainda descrena com

    relao aos tratamentos psiquitricos; crenas de que o encaminhamento ao

    psiquiatra causar problemas na relao mdico-paciente e com os familiares

    (Botega, 1989).

    O ambulatrio, para alguns tericos da reforma psiquitrica, j no mais se

    constitui no nico elemento norteador das polticas de assistncia em sade mental,

    nos dizeres dos reformistas que elaboraram a linha-guia de sade mental de Minas

    Gerais:

    (...) os ambulatrios de sade mental j no so servios

    preconizados pela Reforma Psiquitrica. Isso no retira a importncia

    do atendimento ambulatorial, ou seja, do atendimento dirio, semanal

    ou mensal dos portadores de Sade Mental (sic) que no requerem

    uma assistncia tipo permanncia-dia ou noite. O que se modifica a

    lgica desse atendimento, assim como o espao de sua realizao:

    deve fazer-se preferencialmente na unidade bsica de sade, seja

    pela equipe do PSF, nos casos mais simples, seja pela equipe de

    Sade Mental, nos casos mais complexos. (MG, 2006, p.65).

    Todavia, este mesmo documento refora as potencialidades do ambulatrios

    nos pequenos municpios;

    Por outro lado, geralmente em municpios menores, costuma haver

    ambulatrios de Sade Mental que podem funcionar ou mesmo j

    45

  • funcionam de uma outra maneira. So (ou podem tornar-se!) servios

    geis e acolhedores, que constituem uma referncia importante para

    a populao. Nestes casos, alm dos atendimentos individuais,

    costumam realizar oficinas, grupos e outras atividades com os

    usurios; acolhem casos mais graves, muitas vezes evitando a

    internao; atuam em equipe; tm uma relao mais viva e prxima

    com a cidade (...) em suma, dentro das limitaes de sua estrutura

    fsica e recursos humanos, funcionam mais como um CAPS e/ou

    Centro de Convivncia do que como um ambulatrio, no sentido

    estrito da palavra.

    (MG, op cit, p. 65)

    O profissional de sade mental (psiquiatra, psiclogo), ao receber um

    paciente encaminhado pelo clnico, avalia a relao mdico-paciente, vez que isso

    faz parte da sua abordagem, desencadeando muitas vezes insegurana, hostilidade,

    desconfiana e temor do mdico assistente de ser considerado incompetente por

    no estar resolvendo casos emocionais (Botega, 2006).

    O MS orienta que os municpios com populao inferior a 20 mil habitantes

    elaborem uma rede de cuidados em Sade Mental a partir da ateno bsica, pois

    no se justifica a implantao de servios de Sade Mental complexos nesses

    municpios, tais como Centros de Ateno Psicossocial. Assim, a equipe de sade

    mental torna-se responsvel pelos servios de superviso e capacitao das

    equipes de Sade da Famlia de maneira permanente.

    Os usurios dos servios de Sade Mental agora esto mais prximos da

    comunidade, o que exige, dentre outros aspectos, uma reconfigurao das posturas

    clnica, tica e cultural dos profissionais de sade, dos gestores, bem como da

    prpria comunidade.

    46

  • 4.1 - Os protocolos de atendimento em sade mental

    Os protocolos de atendimento na ateno bsica vm ganhando destaque

    entre os profissionais que atuam na rea. So elaborados por uma equipe

    multidisciplinar e visam maior eficincia da atuao profissional.

    47

  • J so amplamente utilizados pelas sociedades mdicas visando

    homogeinizao da prtica profissional, ao mesmo tempo em que constituem-se em

    valiosos mtodos de aprefeioamento e educao continuada.

    Contudo, os protocolos3 mdicos baseiam-se nas evidncias disponveis

    conforme a estrutura do mtodo cientfico/ medicina baseada em evidncias,

    cabendo ao profissional uma certa plasticidade na sua aplicao com base na sua

    prtica profissional. J os documentos desenvolvidos no mbito da sade pblica, se

    estruturam de acordo com a viso dos diferentes atores envolvidos no processo,

    sendo destinados, da mesma forma, a todos os profissionais envolvidos no cuidado,

    inclusive o mdico.

    No estado de Minas Gerais, a SES elaborou diversos protocolos dirigidos aos

    distintos nveis de complexidade, sendo os seguintes protocolos (ou linhas-guia)

    disponveis aos profissionais de sade: Ateno Sa de do Adulto ; Hansenase ;

    Ateno Sa de do Adulto ; Hipertenso e Diabetes ; Ateno Sa de do

    Adulto; HIV / AIDS; Ateno Sa de do Adulto - Tuberculose ; Ateno em

    Sa de Bucal ; Ateno Sa de do Adolescente ; Ateno Sa de do Idoso ;

    Ateno em Sa de Mental ; Ateno Sa de da Criana ; Ateno ao Pr-Natal,

    Parto e Puerprio; Protocolo de Assistncia Hospitalar ao Neonatal ; Protocolo de

    Febres Hemorrgicas; Protocolo Assistencial aos Portadores de Diabetes Mellitus

    Tipo 1 e Gestacional.4

    Periodicamente, os profissionais recebem treinamentos nos municpios-plo,

    acerca destes protocolos. Entretanto, no perodo em que a pesquisa foi realizada,

    no houve nenhum encontro regional que discutiu especificamente a Linha-guia de

    sade mental.

    3 Sinonmia: consensos, guidelines, linhas-guia.4 MG, 2006a.

    48

    http://www.saude.mg.gov.br/publicacoes/linha-guia/linhas-guia/Protocolo Assistencial do Portador de Dabetes Mellitus Tipo 1 e Gestacional.pdfhttp://www.saude.mg.gov.br/publicacoes/linha-guia/linhas-guia/Protocolo Assistencial do Portador de Dabetes Mellitus Tipo 1 e Gestacional.pdfhttp://www.saude.mg.gov.br/publicacoes/linha-guia/linhas-guia/Protocolo_febreshemorragicas.pdfhttp://www.saude.mg.gov.br/publicacoes/linha-guia/linhas-guia/Protocolo_febreshemorragicas.pdfhttp://www.saude.mg.gov.br/publicacoes/linha-guia/linhas-guia/assistencia_hospitalar_neonato.pdfhttp://www.saude.mg.gov.br/publicacoes/linha-guia/linhas-guia/Atencao ao Pre-Natal, Parto e Puerperio.pdfhttp://www.saude.mg.gov.br/publicacoes/linha-guia/linhas-guia/Atencao ao Pre-Natal, Parto e Puerperio.pdfhttp://www.saude.mg.gov.br/publicacoes/linha-guia/linhas-guia/Atencao a Saude da Crianca.pdfhttp://www.saude.mg.gov.br/publicacoes/linha-guia/linhas-guia/LinhaGuiaSaudeMental.ziphttp://www.saude.mg.gov.br/publicacoes/linha-guia/linhas-guia/LinhaGuiaSaudeIdoso.pdfhttp://www.saude.mg.gov.br/publicacoes/linha-guia/linhas-guia/LinhaGuiaSaudeAdolescente.pdfhttp://www.saude.mg.gov.br/publicacoes/linha-guia/linhas-guia/LinhaGuiaSaudeBucal.ziphttp://www.saude.mg.gov.br/publicacoes/linha-guia/linhas-guia/LinhaGuiaSaudeBucal.ziphttp://www.saude.mg.gov.br/publicacoes/linha-guia/linhas-guia/LinhaGuiaTuberculose.pdfhttp://www.saude.mg.gov.br/publicacoes/linha-guia/linhas-guia/LinhaGuiaHIVAIDS.pdfhttp://www.saude.mg.gov.br/publicacoes/linha-guia/linhas-guia/LinhaGuiaHIVAIDS.pdfhttp://www.saude.mg.gov.br/publicacoes/linha-guia/linhas-guia/LinhaGuiaHiperdia.pdfhttp://www.saude.mg.gov.br/publicacoes/linha-guia/linhas-guia/LinhaGuiaHanseniase.pdf

  • Como se trata de um Estado com vasta cobertura territorial, possuindo o

    maior contingente nacional de municpios (so 853 no total) e significativas

    desigualdades regionais, a gesto em sade no Estado est distribuda entre as

    Gerncias Regionais de Sade (GRS), sendo 28 as existentes no incio de 2008.

    Compete s GRS:

    I - implementar as polticas estaduais de sade em mbito

    regional;

    II - assessorar a organizao dos servios de sade nas regies;

    III - coordenar, monitorar e avaliar as atividades e aes de sade em mbito

    regional;

    IV - promover articulaes interinstitucionais;

    V - executar outras atividades e aes de competncia estadual no mbito

    regional;

    VI - implantar, monitorar e avaliar as aes de mobilizao social na regio.

    VII - exercer outras atividades correlatas.

    (MG, 2006b)

    Tais GRS possuem uma zona de abrangncia, de modo que a GRS de Coronel

    Fabriciano, a qual pertencem todos os municpios em que o estudo foi desenvolvido,

    abrange no total 33 municpios5.

    Existe, ademais, um protocolo regional de atendimento dirigido aos profissionais

    da ateno bsica que trata sobre o modo de lidar com usurios portadores de

    transtornos mentais. Na regio, encontramos somente um modelo de Protocolo

    sobre atendimento em sade mental no PSF, denominado Consade Mental, 5 At meados de 2006, as cidades pertenciam GRS de Governador Valadares. A opo pela

    migrao para Cel. Fabriciano se deu em virtude da sobrecarga daquela GRS.

    49

  • sendo este organizado pelo Consrcio Intermunicipal de Sade do Vale do Ao

    (CONSAUDE, [2003 ?]). Portanto, no um documento que se aplica aos

    municpios abrangidos pelo CISMIRECAR, objetos da pesquisa.

    Este protocolo foi elaborado com base nas diretrizes de atendimento em

    sade mental do municpio de Sobral, no Cear (Tfoli, 2005), e contempla os

    seguintes aspectos:

    - forma de lidar com o cliente portador de transtorno mental;

    - medicamentos mais usados em psiquiatria;

    - reconhecimento de um sujeito com transtorno mental;

    - local de atendimento dos casos menos graves;

    - casos que devem ser encaminhados ao servio de sade mental;

    - funcionamento do Consade Mental.

    Descreveremos a seguir as situaes consideradas como sendo menos

    graves, que devem ser atendidos pela equipe do PSF conforme este manual (pg.6):

    Casos a serem resolvidos pela ESF, conforme o manual Consade Mental:- queixas fsicas sem explicao mdica (enxaquecas, queimao na cabea,

    tonturas)- problemas emocionais ligados a situaes do dia-a-dia- problemas de relacionamento familiar- perda de contato social- abuso ou dependncia leve a moderada de bebidas alcolicas- ansiedade e depresso leves e moderadas (taquicardia, falta de ar, sensao de

    desmaio, suores frios)- quadros psicticos estabilizados

    O manual do Consade Mental tambm orienta sobre os casos que

    podem ser encaminhados para determinados grupos:

    Encaminhamentos- consultas de acolhimento pela equipe do PSF: conversas teraputicas

    50

  • - grupos de caminhada- grupos de AA na comunidade ou unidade de sade- grupos de queixas difusas ou de dependentes de benzodiazepnicos- grupos comunitrios (ex: idosos ou adolescentes)- centros culturais na comunidade- terapias comunitrias

    Finalmente, o manual destaca as condies que requerem atendimento

    psiquitrico de urgncia.

    Este documento no foi efetivamente trabalhado entre as equipes de sade

    dos municpios consorciados, conforme relato dos prprios coordenadores daquela

    instituio. Destarte, um documento de grande relevncia no mbito das

    transformaes na assistncia a que se prope reformular, pouca aplicabilidade

    prtica possui em virtude da sua no abordagem junto aos profissionais das

    respectivas ESF dos municpios.

    Em nossa pesquisa, encontramos um modelo de protocolo desenvolvido pela

    equipe do Ncleo de Estudos em Sade Mental da Universidade Federal do Mato

    Grosso (NESM-UFMT), cujo documento denominado Sade Mental na Sade da

    Famlia, que trata das diretrizes de atendimento para situaes de sofrimento

    mental no mbito do PSF. O documento prope, dentre outros assuntos, que cada

    membro da equipe do PSF possui uma responsabilidade e atribuio com relao ao

    usurio portador de transtorno mental. Destacam-se tambm os formulrios de

    busca ativa e acompanhamento dos casos de Sade Mental pela equipe do PSF

    elaborados pelos autores do documento.

    Os autores (Vieira, et al, 2006) propem os seguintes princpios gerais para

    a abordagem de portadores de transtornos mentais no PSF:

    - apoiar a famlia para que a mesma tenha condies de lidar de

    modo saudvel com o indivduo com sofrimento mental;

    51

  • - trabalho em equipe, com relao ao reconhecimento do usurio

    bem como planejamento da assistncia;

    (Viera, op cit, p. 23)

    Prope-se as seguintes aes aos membros da ESF: ouvir, acolher, incluir,

    comunicar-se claramente e respeitosamente, propor realizao de atividades em

    grupo na comunidade, estimular o autocuidado, informar.

    Este manual sugere que a deciso de se prescrever um medicamento seja

    discutida com o mdico psiquiatra dos servios de referncia.

    Finalmente, o manual descreve quais so as atribuies de cada membro da

    ESF. Com relao ao objeto do presente estudo, qual seja, o mdico de famlia, o

    manual orienta que o mdico deve:6

    - orientar, prescrever e acompanhar o uso de medicao

    psicotrpica, quando necessrio

    - discutir com o mdico especialista (psiquiatra) do servio de

    referncia em sade mental, o disgnstico e a indicao de

    medicamento psicotrpico;

    - acolher as pessoas, individualmente e na famlia;

    - fazer diagnstico sindrmico dos indivduos com transtornos

    mentais;

    - em situaes de violncia, assistir e proceder aos

    encaminhamentos para outros nveis de ateno no setor sade e

    outros setores sociais competentes;

    - avaliao das situaes de conflito familiar, tomar decises e

    encaminhamentos em questes que envolvem o sofrimento mental;

    - desenvolver atividades individuais e grupais de ateno/educao

    em sade que permitam expressar sentimentos e desenvolver

    autonomia (trabalho com grupos de usurios);

    - incentivar a criao/ continuidade de grupos comunitrios de auto-

    ajuda (familiares e de pessoas com transtornos mentais, AA, Ala-

    non);

    6 Para maiores informaes, vide Vieira et al, 2006, p. 48-52.

    52

  • - promover e incentivar a organizao e a participao de usurios e

    familiares em grupos e associaes de defesa dos direitos das

    pessoas com transtornos mentais;

    - participar de grupos e de movimentos sociais de expresso cultural

    relacionados sade mental. (Vieira et al, 2006, p. 50-52).

    Em Campinas-SP, a equipe de Sade desenvolveu um Protocolo de Sade

    Mental caracterizado por reforar um trabalho em equipe integrada e articulada. So

    diretrizes do protocolo, na perspectiva do apoio matricial:

    1. reunies semanais com as equipes do Paidia-PSF (apoio para discusso de casos) e

    regulador de fluxo dos pacientes encaminhados pelos Agentes de Sade Coletiva ou

    equipes do Paidia/PSF.

    2. projetos de atividades comunitrias que favoream a incluso social e/ou promoo de

    sade (hortas comunitrias, cuidadores ecolgicos, caminhadas, alfabetizao, centros de

    convivncias, atelier de artes plsticas, teatro, msica, passeios, frentes de trabalhos

    cooperativados, etc);

    3. acompanhamento dos usurios em residncias teraputicas, abrigos infantis e de idosos;

    4. disponibilidade para atividades itinerantes/equipe volante em diferentes unidades ou

    CAPS ou Oficinas;

    5. reunies mensais com usurios e familiares, para promoo de espaos associados.

    (Adaptado da Prefeitura Municipal de Campinas, 2001)

    O grande desafio que a lista de espera ou outras formas de represso da

    demanda se transforme e consiga ocupar os espaos coletivos de convivncia.

    A OMS desenvolveu em 2000 um manual dirigido aos clnicos gerais que

    aborda a preveno e manejo de casos de tentativa de suicdio. Existe, ainda um

    manual para profissionais da ateno primria7.

    7 No sero objeto de anlise neste estudo.

    53

  • 5 - O encaminhamento ao Psiquiatra

    Os estudos acerca do processo de encaminhamento de usurios atendidos

    por clnicos gerais ao psiquiatra, so na maior parte desenvolvidos em Hospitais

    Gerais (Magdaleno Jr, Botega, 1991). Nos hospitais, estruturaram-se servios de

    Interconsulta Psiquitrica ou Psiquiatria de Ligao, quando o psiquiatra atua

    respondendo a pareceres demandados por colegas de outras especialidades. Muitas

    vezes o psiquiatra requisitado para lidar com a ansiedade e angstia dos internos,

    residentes ou colegas.

    Nem todos os pacientes encaminhados ao ambulatrio de psiquiatria

    comparecem consulta, pois uma srie de aspectos esto envolvidos no processo

    de encaminhamento, tais como resistncia por parte do paciente a consultar-se com

    um mdicos de loucos e mesmo preconceito oriundo dos prprios mdicos

    encaminhadores (Botega e Cassorla, 1991; Botega, 2006; Kerr-Corra, 1985).

    Aspectos relacionados ao mdico encaminhador influenciam na quantidade

    de encaminhamentos feitos por ele, tais como tipo de formao mdica, senso de

    autonomia, grau de certeza e interesse por aspectos psicolgicos da prtica mdica

    (Botega 2006; Kerr-Corra, 1985).

    54

  • Diversos so os fatores que influenciam a deciso do mdico clnico para o

    encaminhamento ao mdico psiquiatra, tais como condies sociodemogrficas e

    clnicas do usurio (por exemplo,