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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE UERN Campus Avançado Profa. Maria Elisa de Albuquerque. Maia CAMEAM Programa de Pós-Graduação em Letras PPGL Doutorado Acadêmico em Letras Área de concentração: Estudos do discurso e do texto MEMÓRIA E IDENTIDADE AFRO-BRASILEIRA NAS HISTÓRIAS DE VIDA DAS REZADEIRAS NEGRAS DO QUATI Tese de Doutorado CIRO LEANDRO COSTA DA FONSÊCA PAU DOS FERROS/RN 2019

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE – UERN

Campus Avançado Profa. Maria Elisa de Albuquerque. Maia – CAMEAM

Programa de Pós-Graduação em Letras – PPGL

Doutorado Acadêmico em Letras

Área de concentração: Estudos do discurso e do texto

MEMÓRIA E IDENTIDADE AFRO-BRASILEIRA NAS HISTÓRIAS DE VIDA DAS

REZADEIRAS NEGRAS DO QUATI

Tese de Doutorado

CIRO LEANDRO COSTA DA FONSÊCA

PAU DOS FERROS/RN

2019

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CIRO LEANDRO COSTA DA FONSÊCA

MEMORIA E IDENTIDADE AFRO-BRASILEIRA NAS HISTÓRIAS DE VIDA DAS

REZADEIRAS NEGRAS DO QUATI

Tese de Doutorado

Tese apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em Letras – PPGL, da Universidade

do Estado do Rio Grande do Norte, Campus

Avançado Profa. Maria Elisa de Albuquerque

Maia, para a obtenção do título de Doutor em

Letras.

Orientador: Prof. Dr. Sebastião Marques

Cardoso

Pau dos Ferros/RN

2019

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Pedra Luz Turmalina Preta

Minha madrinha de cor negra, voz doce, semblante de guerreira, com seu rosário no

pescoço e turbante na cabeça. Em tom solene dirigia-me uma saudação carinhosa:

- Essa menina!

- Neguinha, como vai sua mãe?

E eu, bênção minha madrinha!

- Deus te cubra de fortuna.

Era tudo o que eu queria. Essa saudação enchia-me de esperanças. Sempre entendi

que fortuna era felicidade, alegria, saúde.

Por muitos anos fui protegida por minha madrinha de bênçãos e orações, seus

presentes sempre eram de sua cor, guardava espigas de milho de palhas quase preta bem

arroxeadas e lembrava-me:

- É para lhe dar sorte! Cor preta é proteção! Afastas quebrantos. Eu comia cada caroço com

tranqüilidade e firmeza para cumprir o ritual da promessa feita. Sempre guardava uma franga

para me presentear no meu aniversário, também de cor preta, pé rosco e dizia:

-Você não deve comer galinhas.

Jamais esquecerei uma infância sob bênçãos tão eficazes, mas o tempo passou,

madrinha Maria Nova foi envelhecendo, trabalhando na roça, fazendo suas romarias Juazeiro

(do Padim Ciço) e ao Canindé (de São Francisco das Chagas). E eu saí da Lagoa do Mato para

estudar. Houve uma ausência em nossas vidas, mas nunca separação definitiva.

Nossos encontros eram livres, mas descontraídos, na sua primeira doença, um nódulo

no queixo, vi a força da fé em seu semblante e em suas atitudes ao se submeter a uma cirurgia

que sarou rapidamente e a fez voltar as atividades agrícolas. Às vezes eu passava em frente à

sua casa e ela estava na roça, mesmo sob um forte sol do meio-dia e ia gritando:

- Já vou neguinha...

De repente aconteceu sua despedida terrena, não pude ir ao velório nem ao

sepultamento. Hoje quando passo em frente a sua casa rogo por sua bênção e a vejo como

uma Pedra Luz Turmalina Preta que tanta falta me faz, mas que está presente na paisagem da

Lagoa do Mato, comunidade onde nasci.

Eu, como primeira neta da família HERMÓGENES, recebi como padrinhos de

batismo meus avós paternos, foi a escolha dos meus pais. Aos seis anos descobri que poderia

ter uma madrinha e um padrinho de fogueira. E numa manhã de 24 de junho, fizemos nosso

juramento diante das cinzas da fogueira de São João, sob uma neblina santa:

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- São João disse e São Pedro confirmou que você fosse minha madrinha que São João

mandou!

- São João disse e São Pedro confirmou que você fosse minha afilhada que São João mandou!

A partir daí eu tinha minha madrinha Maria Nova e o meu padrinho João Camaleão

que era genro dela. E eu toda orgulhosa dessa intimidade de afilhada, frequentava sua casa e

levava minhas amigas e irmãos quando estavam com dor de dente ou machucavam-se para a

madrinha benzer. E ficávamos deslumbrados quando ela riscava no chão com uma faca em

volta do pé machucado, (desenho da silhueta do pé) e depois fazia três cruzes com a faca

dizendo:

- Carne triada, osso rendido. E jogava a infecção para o vento levar. Mais interessante ainda

era quando íamos cortar ínguas (pequena glândula na virilha, corpo ficava febril), ela dizia:

- Um, dois, três ínguas cortei...

Rezava sempre com uma faca cortando desenhos de cruzes no solo e jogando ao

vento o mal, as vezes dobrava folhas de ervas que não sei o nome. E aquele rosário no

pescoço fascinava a todo nós, era uma relíquia. Todos os negros e negras usavam e ficavam

nervosos se alguém ousasse mexer em seus rosários, ficavam furiosos.

Madrinha gostava de andar apoiada em uma vara verde (espécie de cajado), parecia

nos meus devaneios revolucionários, nossa Antônia Conselheira, era valente, falava alto,

brincava, cantava, dançava e eu não sei o porquê da sua casa ser um pouco afastada das outras

famílias, desde que a conheci sempre vivia sozinha, isolada, sem marido, cuidando das filhas,

usava marrom de promessa, gostava de uma biritinha, mas só para animar.

Após a sua morte descobri a dança de São Gonçalo e entendi um pouco mais sobre

sua devoção ao rosário (Nossa Senhora do Rosário). Bendito rosário que nos fascinava na

infância e nos causa arrepios na memória

Solange Batista da Silva (2016, p. 66-67).

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Dedicatória

Louvai o Senhor, rezador maior, tese minha irmã, com vossas palavras, sentidos e rezas, com vossa forma e capa, com as vozes das rezadeiras negras, dos narradores anônimos das comunidades afrodescendentes, com os ensinamentos dos mestres que a conduziram, com o auxílio dos amigos e colegas, com as mãos de todos que vos fizeram existir, louvai o Senhor presente em todas as culturas, com a riqueza de ritos formas de agradecimento de todos os povos que compõe o nosso Brasil. Ciro Leandro Da imitação do “Cântico das criaturas” de São Francisco de Assis e da dedicatória do livro Bagagem da poetisa Adélia Prado. Teu capelo será um chapéu rústico de palha de sertanejo, do devoto do Padre Cícero, do romeiro, o sol do sertão nordestino, a chuva predita pelos profetas populares, pelas rezadeiras, a voz-memória dos mestres e mestras da cultura popular. Teu anel de doutor será a sabedoria de vida aprendida destes, maior que o conhecimento acadêmico, feito do ramo protetor das rezadeiras. Tua beca será a força e a resistência dos sertanejos, dos negros que lutaram contra a escravidão, dos profetas que a cada chuva se refazem e renovam sua capacidade de vencer a dor e a morte. Não terás outros símbolos doutorais senão a resistência e a esperança do povo simples do sertão nordestino. Ciro Leandro, inspirado no poema de ordenação episcopal de Dom Pedro Casádaliga, bispo prelado de São Félix do Araguaia, uma vida dedicada às causas populares e a defesa dos povos indígenas. À memória da beata Maria Magdalena do Espírito Santo de Araújo, a Beata do Padre Cícero, que por ser afrodescendente numa sociedade marcada pelo racismo determinista do final do século XIX e início do século XX sofreu as piores humilhações pelas quais pode passar um ser humano. Pelo seu reconhecimento como mestra de cultura popular negra e justiça à sua importância para a religiosidade e a cultura popular afro-brasileira do Nordeste.

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Agradecimentos

Às muitas mãos que me conduziram até aqui.

À minha mãe pela vida e aos familiares que torceram por mim.

Aos mestres da cultura popular que foram colaboradores em toda a minha trajetória

de pesquisa, especialmente as rezadeiras Naldi, Lurdes e Cosma, cujas vozes-memórias são a

face desta pesquisa. A elas que dividiram comigo o seu tempo e a sua memória de vida, toda a

minha gratidão.

Aos mestres do Programa de Pós-Graduação em Letras que edificaram a base deste

trabalho com seus conhecimentos, os professores doutores Chales Ponte, Constatin Xypas,

Aparecida Costa, Manoel Freire, Gilton Sampaio, e todos que mesmo não tendo cursado suas

disciplinas, são incansáveis na luta pela qualidade do programa.

Ao meu orientador Prof. Dr. Sebastião Marques Cardoso que aceitou percorrer

comigo o longo caminho que atravessou o Atlântico negro até a comunidade do Quati, na

travessia da voz sagrada herdada dos antigos griots e perpetuada pelas rezadeiras e narradores

da cultura popular afro-brasileira.

Aos examinadores da qualificação professores Lílian Rodrigues e Roniê Rodrigues

pelas valiosas contribuições ao aprimoramento deste trabalho, e as membros da banca de

defesa os professores-doutores, Roniê, Lilian, Manoel Freire. Rosilda Alves, João Batista e

Savio Roberto pelas significativas contribuições e arguições.

Aos colegas de turma: Deda, Bevenuta, Érica, Mírian, Eliana, Elane, Jurema, Pedro,

pelo apoio e convívio.

À Elen por ter sido amiga e companheira de trabalhos, revisões, publicações, leituras,

pesquisas e desafios.

À Ana Luíza e Mateus André pelas encomendas envidas ao PPGL.

À Edneide por ter me acompanhado nas discussões pelas veredas da cultura popular

e na leitura de partes do trabalho.

A Rosamilton que se dispôs a fazer o abstract desta tese.

Aos colegas do Educandário Raízes do Saber pelo apoio no início do curso.

Á professora Solange Batista por ter sido a primeira guia das veredas afro-brasileiras

do Quati e da Lagoa do Mato, cicerone e oráculo desses caminhos míticos.

Aos amigos Jorge Cruz, George Cruz e Filipe Cavalcanti pela ajuda com as

filmagens durante a pesquisa de campo.

A todos os que fazem o Programa de Pós-Graduação em Letras – PPGL da

Universidade do Estado do Rio Grande do Norte, Campus de Pau dos Ferros, pela luta

incansável na busca da qualidade acadêmica.

À Capes pelo apoio financeiro da bolsa para a execução desta pesquisa.

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As histórias de vida estão povoadas de coisas perdidas que se daria tudo para encontrar: elas

sustentam nossa identidade, perdê-las é perder um pedaço da alma.

(Bosi, 2003, p. 27)

Conto: Pinóquio em Auschwitz

Vozes-Mulheres

A voz de minha bisavó

ecoou criança

nos porões do navio.

ecoou lamentos

de uma infância perdida.

A voz de minha avó

ecoou obediência

aos brancos-donos de tudo.

A voz de minha mãe

ecoou baixinho revolta

no fundo das cozinhas alheias

debaixo das trouxas

roupagens sujas dos brancos

pelo caminho empoeirado

rumo à favela

A minha voz ainda

ecoa versos perplexos

com rimas de sangue

e fome.

A voz de minha filha

recolhe todas as nossas vozes

recolhe em si

as vozes mudas caladas

engasgadas nas gargantas.

A voz de minha filha

recolhe em si

a fala e o ato.

O ontem – o hoje – o agora.

Na voz de minha filha

se fará ouvir a ressonância

O eco da vida-liberdade.

Conceição Evaristo

(Poemas de recordação e outros movimentos, p. 10-11).

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FONSÊCA, C. L. C.da. Memória e identidade afro-brasileira nas histórias de vida das

rezadeiras negras do Quati. .167 f. Tese (Doutorado Acadêmico em Letras) - Universidade

do Estado do Rio Grande do Norte. Pau dos Ferros, 2019.

RESUMO

Esse trabalho busca compreender a relação entre as histórias de vida das rezadeiras negras da

comunidade do Quati, Naldi, Lurdes e Cosma, no município de Luís Gomes no estado do Rio

Grande do Norte (Brasil) com a elaboração de uma identidade cultural afro-brasileira. Para

esse estudo, baseamo-nos nos estudos pós-coloniais, nos estudos sobre a memória, a

identidade e as culturas populares. Quanto à pesquisa de campo, esta foi norteada pelos

pressupostos da história oral na esteria das reflexões de Portelli e foi utilizada mais

especificamente a técnica da história de vida que respeita os contextos de vida das

entrevistadas e lhes oportuniza a liberdade de narrar a partir das suas escolhas conforme

Queiroz. A memória das rezadeiras está elaborada a partir de uma histórica hibridização das

culturas portuguesa, indígena e africana que se miscigenaram culturalmente ao longo da

história do Brasil. Como uma cultura rizomática na compreensão de Deleuze e Guattari e na

leitura de Glissant, ela é tecida na conexão de muitas linhas de raízes de diversas culturas.

Numa atitude de resistência aos modelos dominadores impostos desde a colonização pelo

branco católico, as rezadeiras elaboram e reelaboram suas práticas e manifestações culturais,

que constroem suas identidades revestidas e pertencimento ao povo afrodescendente. Também

o seu ofício tem o sentido enquanto prática social no reconhecimento do seu grupo, o que

elabora coletivamente a sua identidade de rezadeira e de transmissora e praticante da cultura

popular afro-brasileira. Dessa forma, compreendemos que as histórias de vida das rezadeiras

negras do Quati participantes deste trabalho são narrativas não apenas pessoais, mas da

história, da memória coletiva e da identidade do seu grupo social.

Palavras-Chaves: Rezadeiras negras; Comunidade Quati/Lagoa do Mato; Histórias de vida;

Cultura popular; Identidade afro-brasileira.

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FONSÊCA, C. L. C.da. Afro-Brazilian identity and memory in the life stories of black

women for praying of Quati. 167 p. Thesis (Doutorado Acadêmico em Letras) -

Universidade do Estado do Rio Grande do Norte. Pau dos Ferros, 2019.

ABSTRACT

This work aims to comprehend the relationship between the life stories of black woman for

praying of Quati community, Naldi, Lurdes and Cosma in Luis Gomes in Rio Grande do

Norte (Brazil) with the elaboration of an Afro-Brazilian cultural identity. For this research, we

base in the studies postcolonial, as well as, in the studies about memory, identity and popular

cultures. In relation to field research, it was directed by the assumptions of oral history in

reflection by Portelli, as well as, it was used the life history techniques that respects the

contexts of respondent’s lives and gives them the freedom to narrate from chooses according

to Queiroz. The memory of the woman for praying is elaborated from of a historical

hybridization of Portuguese, indigenous and African cultures that have been culturally mixed

race throughout the history of Brazil. As a rhizomatic culture in the understanding by Deleuze

and Guattari and in the reading by Glissant, it is woven in the connection of many rows of

roots of diverse cultures. In an attitude of resistance to dominant models imposed since

colonization by white Catholics, the woman for praying elaborate and rework their cultural

practices and manifestations, which build their identities and belonging to the afro-descendant

people. In addition, her mission has the meaning as a social practice in the recognition of her

group, which collectively elaborate her identity of woman for praying and of transmitter and

practitioner of Afro-Brazilian popular culture. Therefore, we understand that the life stories of

black woman for praying of Quati community that participated of this work are not only

personal narratives, but of the history, of the collective memory and of the identity of her

social group.

Keywords: Black woman for playing, Quati community/Lagoa do Mato, Life stories, Popular

culture, Afro-Brazilian identity.

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SUMÁRIO

1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS ......................................................................................... 11

2 CULTURA AFRO-BRASILEIRA, MEMÓRIA E IDENTIDADE ................................ 16

2.1 A cultura afro-brasileira: o despertar de um interesse ................................................... 16

2.2 A função social das rezadeiras na memória e identidade de um povo. ......................... 23

3 A PESQUISA DE CAMPO ................................................................................................. 45

3.1 A comunidade afro-brasileira do Quati .......................................................................... 45

3.2 A pesquisa de campo: vidas e histórias em vozes e letras .............................................. 59

3.3 Os caminhos da pesquisa: construindo histórias de vida ................................................ 71

4 VOZES NEGRAS DA MEMÓRIA: NARRATIVA E IDENTIDADE DAS

REZADEIRAS ........................................................................................................................ 76

4.1 O dom de ser rezadeira ................................................................................................... 76

4.2 As rezadeiras................................................................................................................... 88

4.3 Dona Naldi: entre rezas e memórias ............................................................................... 89

4.4 Dona Lurdes: um dom em que a pessoas acreditaram.................................................. 120

4.5 Dona Cosma: um serviço herdado e aprendido de suas ancestrais. ............................. 143

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................ 163

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................... 169

ANEXO 1 - Convenções utilizadas para a transcrição: ......................................................... 176

ANEXO 2 - Transcrição das entrevistas realizadas ............................................................... 177

FOTOS ................................................................................................................................... 194

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1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Atávica

Minha mãe me dava o peito e eu escutava,

o ouvido colado à fonte dos seus suspiros:

"Ô meu Deus, meu Jesus, misericórdia."

Comia leite e culpa de estar alegre quando fico.

Se ficasse na roça ia ser carpideira, puxadeira de terço,

cantadeira, o que na vida é beleza sem esfuziamentos,

as tristezas maravilhosas.

Mas eu vim pra cidade fazer versos tão tristes

que dão gosto, meu Jesus misericórdia.

Por prazer da tristeza eu vivo alegre.

(ADÉLIA PRADO, 2006, p 45)

A comunidade de Quati está localizada no município de Luís Gomes, no Alto Oeste

do Estado do Rio Grande do Norte, distante cerca de cinco quilômetros da zona urbana. Seus

moradores são predominantemente remanescentes dos povos negros. O folclorista potiguar

Luís da Câmara Cascudo, ao estudar os nomes das terras potiguares, vilas, municípios e sítios

históricos apresenta a seguinte referência sobre esse lugar: “Quati: - Lugar em Luís Gomes.

De qua-ti, o que riscado ou lanhado, o que tem riscos pelo corpo (TS). Procionídeo com

muitas variedades, Na sua solitária” (CASCUDO, 2002, p. 118, grifos do autor). Dividida

geograficamente em duas por uma estrada carroçal que a corta, do lado direito é chamada de

Lagoa do Mato e do esquerdo de Quati com referência a saída da cidade de Luís Gomes para

a comunidade. O grupo social que constitui a população é predominantemente negro e ao

longo da sua história encontra nas práticas culturais uma forma de rememorar os seus

antepassados e reavivar a história da comunidade.

Quando as pessoas se referem a esse grupo social formado pelos povos negros, não

fazem essa separação geográfica e territorial, unem as diversas famílias de descendência negra

numa só denominação, os negros do Quati, independente de que lado ou localização tenham

nascido, o que nos mostra a complexidade da questão da identidade, não como um lugar de

nascimento, mas como uma cultura com a qual um grupo se identifica. Assim, se identificar

ou se sentir pertencente aos negros do Quati não se restringe a uma questão de raça ou de

ascendência familiar, mas de cultura. A população também é formada por brancos que

convivem com as práticas da cultura negra, frequentam as rezadeiras e fazem parte de

atividades como bandas de música afro-brasileira, como assim se denominavam, o grupo

“Afro-Serrano” por estarem localizados numa serra e conviverem num sentido de

pertencimento a essa cultura. Percebemos então que brancos e negros convivem nessa

comunidade como uma só nação, traço que manifesta resistência ao preconceito externo

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contra esses povos, historicamente vindo da população urbana da sede do município e das

pessoas dos grandes centros e de maior poder aquisitivo.

O objetivo do nosso trabalho é compreender a elaboração de uma identidade afro-

brasileira das rezadeiras junto a sua comunidade, ao grupo social em que se inscrevem,

considerando a relação entre as suas rezas, as suas histórias de vida, e a memória social do

grupo. Memória esta que, ao longo da história, sofreu tentativas de silenciamento e neste

trabalho buscamos a sua compreensão pela voz de quem se faz representante do grupo,

narrador de sua memória e cultura constitutivas da identidade.

Possuir escravos era uma demonstração de poder para a as famílias brancas e donas

de fazendas. No seu livro de memórias, Chiquita Nunes Torquato (2012), ao relembrar o

passado de seus ancestrais em Luís Gomes, como seu avô o intendente João Filipe de

Andrade Nunes, comenta de forma sutil a presença dos ex-escravos na casa grande mesmo

após a abolição, como se fosse uma relação de amizade, compadrio e de bondade dos

senhores brancos em acolhê-los e não abandoná-los. O certo é que em troca das mínimas

condições de sobrevivência os negros continuavam a fazer as mesmas tarefas pesadas de

antes.

Numa sociedade historicamente dominada pelo homem branco, a cultura dos povos

negros ou afrodescendentes encontra obstáculos para a sua manutenção. Vista na maioria das

vezes de forma exótica, como uma cultura diferente da cultura de uma elite branca e como

uma sobrevivência do passado no presente a ser preservada para subordinação a uma elite

com uma postura e visão etnocêntrica, as rezas dos povos negros predominantemente foram

relegadas ao preconceito e ao silêncio. Assim pensamos seguindo a esteira de uma identidade

cultural proveniente deste caldo étnico em que o negro consegue conviver sem abdicar da sua

cultura e da sua história. Como sujeito de uma cultura própria, o negro realiza a transmissão

memorial da sua história por meio de bens simbólicos que não apenas a guarda, mas a reaviva

e dinamiza dentro de uma dinâmica e circularidade em que os seus rituais se deslocam e se

atualizam aos contextos sociais contemporâneos. Dentre esses rituais transmitidos pelos seus

ancestrais estão as rezas, as práticas culturais exercidas por mulheres negras geralmente

idosas e que negociam a sua identidade com o seu grupo social em que inscrevem a sua

história e a dos seus antepassados. Esse papel exercido no seio do grupo constituído

principalmente de remanescentes dos povos negros escravizados no passado elabora uma

função social de resistência. Estas não só reproduzem a história dos ancestrais por meio das

práticas e objetos culturais, como também reelaboram essas práticas que contribuem de forma

significativa para reforçar os laços de parentesco étnico e de identidade.

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Apesar dos traços da religiosidade popular das rezadeiras do Quati se apresentarem

também como católicos, herança deixada pelos colonizadores portugueses brancos que

predomina em seu meio social, muitas vezes como se este fosse a sua face principal para

evitar preconceitos e perseguições, este fato não as impede de exercer no seu grupo a função

social herdada da religiosidade de seus antepassados e nem as pessoas da religião

predominante deixam de procurá-las e visitá-las, de fazer seus pedidos de orações. Essas

práticas durante a colonização foram consideradas como bruxaria, feitiçaria e como uma

religião diabólica por não estarem inscritas no discurso centralizador católico. Pessoas da

comunidade de Quati, das comunidades vizinhas e da cidade procuram suas rezas sem deixar

sua vivência do catolicismo, numa relação de diálogo e sincretismo tão característica em um

país multicultural como o Brasil. Assim, as rezadeiras exercem sua função como resistência

de sua identidade e da identidade étnica e cultural do seu povo (RESENDE; SOUZA, 2005).

Esse sincretismo tão marcante na cultura brasileira é visível de maneira significativa no Quati,

que permite às rezadeiras e ao seu grupo se revestirem também de uma identidade católica,

mas sem perder de vista os vínculos e laços com a religiosidade africana. O hibridismo

cultural e religioso se dá na fusão que ocorre entre a religião do colonizador e as práticas,

crenças e rituais dos colonizados. Nesse cruzamento se encontram as rezas e as narrativas de

vida das rezadeiras. As rezas são saberes populares trazidos por seus ancestrais e que se

constituem como características afro-brasileiras da comunidade que conferem ao Quati uma

identidade própria, diferente das outras comunidades rurais do lugar.

A memória e o exercício das rezas conferem às rezadeiras e ao povo do lugar uma

identidade cultural afro-brasileira, como também essa prática e sua transmissão se constituiu

como uma forma de resistência aos traumas históricos pelos quais passaram os seus

antepassados diante da dominação e da descaracterização de sua cultura. A partir dessa

resistência essas rezas se reelaboram e se ressignificaram numa “reapropriação dos padrões da

dominação” (OLIVEIRA, 2003, p. 31). É nesse ponto híbrido e complexo que buscamos

reconhecer a elaboração de suas identidades enquanto agentes da cultura popular do seu povo

e sujeitos que se reconhecem membros não somente étnicos do grupo social do Quati, mas

agentes culturais representativos dos afrodescendentes que contribuíram para a formação da

nossa cultura brasileira.

A função social das rezadeiras persiste desde os tempos da colonização, quando

realizada nas senzalas na maior parte das vezes entre os próprios negros sem a participação

dos brancos e também às escondidas por medo dos senhores e da perseguição da Igreja

Católica. Essas mulheres moradoras do Quati são remanescentes dos antigos escravos e

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mantêm reavivadas as tradições dos antepassados e as mais velhas são as principais

responsáveis não só pelo exercício das práticas culturais, no caso as rezas, as orações e os

benzimentos, mas pela transmissão memorial desta tradição e da história do seu povo através

da oralidade.

Os velhos desde as tribos primitivas foram considerados os guardiões da cultura e a

sabedoria do seu povo, o responsável pela transmissão das tradições e pela continuação por

meio do ensinamento às novas gerações. Por meio da memória dos velhos do grupo, no caso

representada pelas rezadeiras, a criança como também os adultos recebem do passado o

legado cultural dos seus ancestrais, têm acesso por meio da oralidade aos acontecimentos da

história do seu povo que não se encontram na história escrita e cujo conhecimento se torna

possível por meio dessa socialização inserida nas suas raízes, nas histórias vividas dos

narradores. Somente nessa interação ultrapassam uma capacidade abstrata para lidar com os

dados do passado e passam a ter o sentido de memória, conforme Ecléa Bosi (1997). Dessa

forma, as crianças da comunidade ao frequentar as casas das rezadeiras sozinhas ou

acompanhadas dos seus pais não só têm acesso à prática cultural das rezas, mas um contato

maior com o passado do seu povo, as histórias e as tradições, pois também ouvem histórias,

conselhos e ensinamentos.

As rezas se constituem como práticas que trazem o passado para a comunidade não

de forma estática, preservada como um artefato folclórico e sobrevivente de forma deslocada,

mas é uma atividade inscrita no cotidiano, como uma das tarefas da rotina diária dessas

mulheres e das pessoas que a procuram para rezar. Quando os jovens e as crianças participam

das rezas, constroem de forma positiva a sua identidade negra e se integram a esse universo

reafirmando a sua cultura. Dessa forma, as rezadeiras são agentes significativos da cultura da

comunidade cuja elaboração da identidade interage com sua voz-memória.

A pesquisa de campo que originou o corpus deste trabalho foi norteada pelos

referenciais da história oral, sua ética e respeito às rezadeiras entrevistadas enquanto sujeitos

históricos que possuem a complexidade de sua trajetória de vida firmada em acontecimentos

que marcaram as suas histórias. E na apreensão destas utilizamos mais especificamente a

técnica da história de vida conforme foi apresentada por Queiroz (1991) com sua perpectiva

de caráter antroplógico que permitiu ás rezadeiras a liberdade de narrar e silenciar a partir das

suas escolhas.

Para isso, este trabalho se divide em capítulo 1, com as considerações iniciais, três

capítulos de contextualização da pesquisa, metodologia e análise, e o último com as

considerações finais. No capítulo 2, intitulado Cultura afro-brasileira, memória e identidade,

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rememoraremos o despertar do nosso interesse pela cultura dos povos afrodescendentes da

comunidade do Quati, a influência e a importância do trabalho escolar sobre a cultura popular

e a relação destas experiências com a elaboração deste trabalho. O surgimento da nossa ênfase

sobre as rezadeiras, principalmente as rezadeiras negras desta comunidade, e a escolha das

colaboradoras dessa pesquisa estão ancorados em sua relação com a identidade cultural e a

memória coletiva da comunidade onde sua função social se inscreve.

No capítulo 3, A pesquisa de campo, discutimos o percurso teórico-metodológico do

trabalho, a importância da história oral e da técnica da história de vida para apreensão da

literatura e da cultura orais das rezadeiras, além do relato das entrevistas e dos pontos

significativos da pesquisa de campo, suas dificuldades e a importância da história de vida no

trabalho com a memória.

No capítulo 4, Vozes negras da memória: narrativa e identidade das rezadeiras,

traçamos a análise do corpus através das categorias escolhidas para este trabalho que são:

memória, identidade afro-brasileira, rezas e história de vida, buscando apreender como se

constituem as relações entre a função social da rezadeira no seu grupo, a memória dos seus

ancestrais e o laço identitário tecido por meio das suas manifestações culturais e dos bens

simbólicos de que são agentes e as suas histórias de vida. Assim, compreendemos que as suas

rezas e benzimentos envolvidos na sua voz-memória popular estão inseridos na história da

comunidade, nas práticas cotidianas, na interação com o grupo social com o qual convivem e

de que forma as suas histórias de vida se inscrevem na identidade cultural e na memória do

seu povo.

Investigar as manifestações da cultura afro-brasileira a partir da voz de seus agentes é

compreender não apenas como ocorreu o processo de hibridização entre a cultura africana

trazida dos ancestrais escravizados em terras brasileiras e a cultura germinada aqui com a

mistura com o catolicismo branco e a cultura indígena, mas o papel social das rezadeiras no

cerne do seu grupo social. Assim, as rezas inscritas nas histórias de vida e a função social das

rezadeiras negras nos conduzem a essa reflexão sobre a elaboração de uma cultura afro-

brasileira resultado desse diálogo e de como as características ancestrais se reelaboraram a

partir de novos contextos.

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2 CULTURA AFRO-BRASILEIRA, MEMÓRIA E IDENTIDADE

Maricota era preta e magra, a carapinha repartida em trancinhas com uma fita amarrada na ponta

de cada trancinha. Não sei da Inês mas sei do seu namorado, tive vontade de responder. Ele tem

feição de cavalo e é trapezista no circo do leão desdentado. Estava sabendo também que quando ela

ia encontrar o trapezista, soltava as trancinhas e escovava o cabelo até vê-lo abrir-se em leque como

um sol negro. Fiquei quieta. Tinha procissão no sábado e era bom lembrar que eu ia de anjo com

asas de penas brancas (meu primeiro impulso de soberba) enquanto que as asas dos outros anjos

eram de papel crepom.

— Corta mais cana, pedi e ela levantou-se enfurecida: Pensa que sou sua escrava, pensa? A

escravidão já acabou!, ficou resmungando enquanto começou a procurar em redor, estava sempre

procurando alguma coisa e eu saía atrás procurando também, a diferença é que ela sabia o que

estava procurando, uma manga madura? Jabuticaba? Eu já tinha perguntado ao meu pai o que era

isso, escravidão. Mas ele soprou a fumaça para o céu (dessa vez fumava um cigarro de palha) e

começou a recitar uma poesia que falava num navio cheio de negros presos em correntes e que

ficavam chamando por Deus. Deus, eu repeti quando ele parou de recitar. Fiz que sim com a cabeça e

fui saindo, Agora já sei.

(Lygia Fagundes Telles, 2000, p.9)

2.1 A cultura afro-brasileira: o despertar de um interesse

A cultura afro-brasileira adentrou os espaços escolares por meio da proposição de

uma lei. Essa construção ocorreu a partir da orientação dada pelas Diretrizes Curriculares

Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura

Afro-brasileira e Africana, constituídas em 2004. Como também os Parâmetros Curriculares

Nacionais, de 1997, e a Lei de Diretrizes e Bases (LDB), de 1996, sugeriram que o legado

cultural afro-brasileiro fosse trazido às salas de aula bem como a história desses povos em seu

continente de origem. Como avanço maior, tivemos a promulgação da lei 10.639/03, que

altera as Diretrizes e Bases da Educação Nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de

Ensino a obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afro-Brasileira". A relação histórica

e cultural entre o Brasil e os Países do Continente Africano constrói uma identidade pela

importância desse laço histórico, cujo intercâmbio é enriquecedor para todos. Para o

movimento negro organizado, essas mudanças são o resultado da reivindicação das pessoas

que lutaram pelo reconhecimento da sua história e da sua cultura.

Apesar desse avanço gradativo da inserção do ensino de história e cultura africana e

afro-brasileira, o meu contato com universo narrativo do Quati ocorreu na escola

anteriormente a lei de 2004, experiência relatada no artigo “O ensino da literatura afro-

brasileira: relatos de experiência” (SILVA; FONSÊCA, 2017) em que narramos a atuação de

uma professora em suas aulas de Língua Portuguesa e Literatura Brasileira em que inseriu a

cultura popular dos agentes populares do Quati em comparação com a literatura escrita.

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Essa cultura é predominantemente vista como exótica, folclórica, principalmente por

parte de quem não é negro, ficando muitas vezes limitada a sua abordagem as datas

comemorativas como o dia 13 de maio, dia da Abolição da Escravatura, e o dia 20 de

novembro, Dia Nacional da Consciência Negra. Não que trabalhar a cultura afro-brasileira

não seja necessário, mas a sua compreensão deve ir além desses momentos. Assim, a visão de

que se trata de uma sobrevivência do passado num presente cada vez mais desfocado é

geradora da visão estereotipada. Porém, foi na sala de aula que a cultura afro-brasileira me

chegou, sem a necessidade da imposição da lei, por uma atitude de respeito e reconhecimento

da importância dessa cultura por parte de uma professora, cujo reconhecimento dos legados

africano e afro-brasileiro serve de exemplo aos outros professores e se fosse difundido na

educação não haveria a necessidade da lei. A prática da professora Solange Batista da Silva

quebrou a compreensão inadequada de que a cultura ligada à África e ao negro seja revestida

de negatividade.

Nas aulas de Língua Portuguesa do Ensino Médio com a professora Solange nos foi

apresentada uma cultura tão próxima geograficamente da cidade de Luís Gomes onde vivia

como distante em termos de conhecimento e de aproximação. Em suas aulas narrava as

histórias do povo do Quati, um povo negro marcado por uma cultura singular, própria, em que

narradores transmitiam pela oralidade a sua história, o legado dos seus antepassados negros e

onde falar ou perguntar sobre a escravidão era um assunto proibido e doloroso. Membros da

comunidade, como a senhora Mexica, sempre que perguntada sobre a escravidão se aborrecia

e mudava de assunto, como afirmava a professora Solange que nasceu e cresceu na mesma

comunidade, na Lagoa do Mato, e apesar disso não encontrava abertura para esses

questionamentos.

O poeta popular Joaquim Alves de Fontes, conhecido como Joaquim de Benvinda,

em entrevista a nós alunos do Ensino Médio contava que a memória de sofrimentos da época

da escravidão, de marcas físicas de castigos e capturas eram o motivo deste silêncio. Assim

compreendemos quando Paul Gilroy, em sua obra O Atlântico Negro (2001), reflete que, na

dinâmica das culturas e das identidades negras do Atlântico, estas não se dissociam da

experiência da escravidão como marco das suas histórias. Porém, a professora insistiu em

trabalhar a cultura do povo do Quati, em trazê-la à sala de aula e nas aulas de Literatura

Brasileira encontrava a oportunidade para relacionar a literatura erudita com a popular, em

que se inscreviam os agentes do Quati como rezadeiras e contadores de histórias. Narrava do

seu orgulho em ter como madrinha de fogueira a senhora Maria Nova, citada na epígrafe

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inicial deste trabalho, uma das vozes mais significativas daquela comunidade e de ter crescido

em meio às rezas, devoções, brincadeiras, farinhadas, convivendo com os povos

afrodescendentes e aprendendo com a sua cultura.

A presença negra na formação da população do município de Luis Gomes é marcante

desde a sua fundação quando o tenente-coronel Luís Gomes de Medeiros vindo de Caicó

encontrou a serra onde se localiza o município e deixou as terras aos cuidados do escravo

Jacó, fato presente na tradição oral e na bibliografia sobre a origem do município

(CARVALHO, 2010). Mesmo a presença negra sendo fundadora do município, pouco desta

cultura passava por um processo de reconhecimento por parte da escola e de pesquisadores.

No viés mais histórico e documental desse passado, há no Centro de Cultura Popular

“Escravo Jacó”, no acervo do professor Luciano Pinheiro de Almeida, cartas de alforria do

município, relatos sobre escravos do município, como do escravo Biró do sítio Monte Alegre

que foi torturado e enterrado vivo pelo seu dono Brequenfeld ao ser acusado de se relacionar

com a sua dona, a senhora Mariana, informações acompanhadas de uma pequena descrição da

presença negra no sítio Lagoa do Mato com a hipótese de que esta comunidade juntamente

com o Quati tenha sido um Quilombo, fato nunca comprovado por meio de uma pesquisa

antropológica. Esse pequeno acervo não é o suficiente para reavivar a história e a memória

dos povos negros do município, suas histórias de vida, sua cultura, apenas ilustram a ausência

de um trabalho mais aprofundado sobre essas comunidades e apresentam os símbolos do

poder colonizador, da escravidão, das torturas pelo olhar ainda da hegemonia branca, ao invés

de um acervo representativo da identidade dos indivíduos, de seu próprio reconhecimento

identitário.

Além dessas experiências escolares, a leitura de obras memorialistas sobre o

município de Luís Gomes e a região me despertou para as dificuldades em abordar a cultura

afro-brasileira dos povos negros do Quati, pois o olhar hegemônico das elites brancas

prevalece na visão que se construiu sobre esses povos, na história vista de cima.

Os negros foram historicamente discriminados pelas elites brancas. No município de

Luís Gomes, no Rio Grande do Norte, os negros, denominados “negros do Quati”,

constituem-se como o povo que sofreu uma espécie de segregação racial e social. Esse fato da

história dos negros também está representado simbolicamente em algumas produções

literárias. Mesmo após a abolição, muitos negros continuaram trabalhando para os

descendentes dos antigos donos dos seus antepassados, num regime de exploração não muito

diferente da escravidão, tendo a sua cultura e religiosidade desrespeitadas. Como podemos

ver, há uma situação semelhante na obra “Menino de Engenho” (2009), de José Lins do Rêgo,

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na naturalidade com que o narrador apresenta o fato de que as “negras do meu avô”

continuaram no engenho trabalhando de graça e em troca ganhando de comer e de vestir.

As negras do meu avô, mesmo depois da abolição, ficaram todas no

engenho, não deixaram a rua como elas chamavam a senzala. E ali foram

morrendo de velhas. Conheci umas quatro: Maria Gorda, Generosa, Galdina

e Romana. O meu avô continuava a dar-lhes de comer e vestir. E elas

trabalhavam com a mesma alegria da escravidão (REGO, 2009, p. 49).

Esta cordialidade foi descrita por Sérgio Buarque de Holanda, na obra “Raízes do

Brasil” (1995), e tanto na literatura de José Lins como na produção dos escritores

memorialistas do município de Luís Gomes comentadas neste trabalho, podemos perceber

ironicamente certo carinho do senhor pelo escravo que lhe serve bem, com a mesma alegria

da escravidão.

Na literatura historiográfica e memorialista da região do Alto Oeste potiguar e do

município de Luís Gomes, os negros foram citados e apresentados como serviçais, pessoas da

cozinha, que exerciam somente os trabalhos braçais e pesados da Casa-Grande dos seus

senhores, e que mesmo após a abolição, continuaram a servir aos brancos como seus patrões e

donos das terras onde moravam e trabalhavam, como relata Chiquita Nunes Torquato (2012) e

seu livro de memórias.

O jornalista Gaudêncio Torquato, ao abordar os descendentes dos povos negros do

Quati e do município, que trabalhavam para sua família, apresenta-os identificados apenas

como empregados, e reconhecidos pelo que produziam, não por sua história de vida e por sua

cultura e memória, numa relação de dominação e de superioridade de classes e de etnias,

como podemos ler a seguir:

Doca, estampa negra de cozinheira e mulher faceira, fazendo os quitutes

caseiros, abraçava-nos, comovida, sempre que recebia ganhava uns troco.

Era cheia de agrados, principalmente tapioca quentinha, que nos dava com

muito gosto. Alzira, que de auxiliar se tornou a chefe da cozinha, fiel e

atenciosa, se preocupava mais com a educação de minha irmã Sara. Imagem

forte é a de Marola, cabelos fartos, divididos em duas bandas, sempre

arrumados, que serviam de base para aguentar imensas trouxas de roupa,

tanto a suja, que levava para lavar, como a limpa, que trazia para engomar.

Por uns tempos, dona Chiquita, por conta de uma longa viagem, teve de

ouvir na volta a criança, Débora, referir-se a Marola como “mãe”.

A “veia” Tomásia, cara da mãe-África, que adorava pitar um cachimbinho:

sua filha, Chica, engomadeira, mãe de uma grande prole que tanto ajudou a

nossa casa, como os serviços do meu pai nas terras do São João, perto da

bolandeira (casa de farinha) onde moravam. A velha Bernardina, Bebi, mãe

de Marola, Augusta e Maria, cabelos ranos e desgrenhados, sempre sentada

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no chão ou num banco baixinho, melhor maneira para descansar o corpanzil.

Trabalhou com meu pai desde 1916, desde o início da sua vida em Luís

Gomes, ficando conosco até morrer. Era ela quem supria nossa farta mesa

com as melhores linguiças da região.

Eram pessoas afeitas às tarefas da nossa casa, acostumadas ao jeitão do

velho e aos cuidados de dona Chiquita. Estavam sempre por ali nos servindo,

atendendo aos nossos pedidos, fazendo troças e brincadeiras, cercando-nos

de amizade, carinho, solidariedade e, também, cumplicidade (um petisco

escondido, um quitute a mais) (TORQUATO, G. 2008, p. 85-86).

Neste sentido, a identidade dessas mulheres citadas, para o autor, restringe-se as suas

atividades domésticas, a culinária que produziam e que integrava a mesa farta dos patrões, e

não a sua cultura, memória e histórias de vida. A relação de poder entre patrões e empregadas

negras é abordada de forma sutil, como se fosse permeada de “carinho e amizade”, e não de

dominação, em que uma cultura se sobrepõe à outra. Dessa forma, está subjacente que estas

mulheres negras exerciam um trabalho mal remunerado, embora o jornalista e memorialista

queira apresentar uma ideia de naturalidade nessa exploração, como se esta relação de poder

devesse continuar, mesmo após a abolição da escravatura, numa ideologia ainda de senhor

para escravo.

Clóvis Moura (2000) quando escreve o termo cordialidade étnica, aborda a nossa

postura e o nosso comportamento com o negro, estes revestidos de fraternidade e de

democracia. Nessa crítica, o autor reflete que o negro é louvado pelo seu trabalho e sacrifício,

pela sua contribuição à pátria, mas sua escolha, por exemplo, como símbolo nacional ser tão

afastada dos padrões estéticos predominantes é contraditória. Para o autor, a postura

predominante no Brasil era de que o negro é igual desde que esteja em seu devido lugar, no

seu lugar invisível. Ele cita e comenta um fato ocorrido em 1941, quando um general escreveu

ao Ministro da Educação, em questão Gustavo Capanema, sobre a presença de artistas negros

em cassinos brasileiros e que, diante de turistas eram tratados como “símbolo nacional”, como

uma espécie de tipo nacional e padrão brasileiro diante de turistas estrangeiros. Nessa

encenação, até mesmo uma branca se metamorfoseou em negra, o que o general considerou

absurdo, ao contrário de se relembrar a dignidade das mães pretas e dos trabalhadores

escravos enquanto contribuidores em terras brasileiras, conforme o general reflete em sua

carta. Segundo Moura, esse “racismo invisível brasileiro” (2000, p. 25) se encontra em todos

os lugares e manifestações, subjacente e disfarçado de normal nas atitudes coletivas dos

brasileiros. Assim:

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O negro é para estar na cozinha, no campo trabalhando, nas favelas, nas

penitenciárias, nos lugares feitos para escondê-lo da nossa realidade. Mas, a

presença do negro como agente histórico e social da nossa realidade

machuca e incomoda não apenas a elite branca, mas muito não-branco que

interiorizou esta postura racista da nossa sociedade (MOURA, 2000, p. 25).

É esse o lugar “invisível” denunciado por Moura ao escolher esse adjetivo e que o

negro ocupa no relato de memórias de Gaudêncio Torquato, a cozinha, onde sua presença

enquanto agente histórico não tem espaço. No livro de memórias da mãe do jornalista, ela

relembra o período pós-abolição, pensando na mesma esteira desse autor citado

anteriormente, numa relação de poder em que o negro liberto continuava a servir na casa do

seu antigo senhor e dono. Subjaz a ideia de bondade dos senhores, como se fosse uma

caridade permitir essa permanência, e não uma atitude para usufruir dos serviços dos ex-

escravos:

O tenente fixou inicialmente as suas moradas em Luís Gomes e no Sítio

Monte Alegre, que era para ele, um lazer, com muitas fruteiras, muita cana

de açúcar, engenhos para fabricação de rapaduras e bolandeiras para

fabricação de farinha e goma. Ele lutava com muita gente, tinha vários

escravos. Eu me lembro muito bem de uma escrava, que permaneceu na

Casa Grande. Após a morte do meu avô, ela que se chamava Ursulina, me

levava muito nos seus braços (TORQUATO, C. N., 2012, p. 19).

Sabemos que a cultura negra, ao longo do tempo foi vista, e em muitos aspectos

ainda o é, como uma cultura inferior à do branco, sua religiosidade considerada demoníaca

por não fazer parte do discurso de centro da Igreja Católica. Podemos perceber o sincretismo

e a associação dos orixás dos negros aos santos católicos como uma hibridização necessária à

sobrevivência e à aceitação da religiosidade negra. Historicamente, há um esforço para apagar

as raízes africanas da cultura brasileira, abordando o negro a partir de um olhar e de uma

perspectiva europeia, branca e dominante, e conforme citamos o pensamento do jornalista

Gaudêncio Torquato, enquanto representativo da postura social diante do negro, esse é

colocado como um personagem social folclórico, alheio a sua realidade e condição étnico-

racial, e ao problema histórico que carrega. Esse fato nos mostra que a visão do negro

apresentada por autores brancos, como o jornalista em questão, é baseada em estereótipos,

resultado de uma “branquitude hegemônica”, como afirma Duarte (2012, p. 9). Pensando na

esteira do professor citado, é pertinente um olhar sobre a cultura negra a partir da sua

memória, da sua condição ética e social, o que pode contribuir para se tratar a cultura negra

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em sua plenitude. Dessa forma não se trata de enxergá-la numa postura panfletária, nem

reduzindo-a a uma cultura de excluídos que necessita ser resgatada por compaixão.

O jornalista Franklin Jorge, em sua obra O Livro dos Afiguraves (2015), reúne

memórias literárias que resultaram de uma longa pesquisa etnográfica e de entrevistas em que

buscou incluir uma diversidade de vozes. Nas memórias de Dona Chiquita Torquato, presente

no livro de Franklin Jorge, a sua voz enquanto narradora restringe mais uma vez a identidade

da negra Bernardina a uma mera empregada, como as negras do avô do menino de engenho

Carlinhos na obra Menino de Engenho, de José Lins do Rêgo. O ponto de vista de dona

Chiquita em O Livro dos Afiguraves confirma o tom senhorial presente também no seu

próprio livro de memórias e no livro de memórias escrito por seu filho Gaudêncio Torquato,

já citados e discutidos anteriormente neste capítulo. Vejamos:

A casa vivia cheia. Durante as festas da padroeira almoçavam, em nossa

casa, uma média de 120 pessoas, todos os dias. Havia uma pessoa só para

lavar a louça e às vezes não dava conta do serviço. Tínhamos uma

empregada, a negra Bernardina, só para preparar as carnes consumidas em

casa (JORGE, 2015, p. 140).

Em sua obra, o jornalista dá voz a vários personagens populares negros, pessoas

reais, que, ao serem entrevistados, se tornaram personagens literários, no sentido de

representativos simbólicos de sua sociedade. O autor, ao ouvir e dar voz aos membros das

comunidades afro-brasileiras, realiza, ao contrário dos outros livros memorialistas já citados

neste trabalho, o que segundo Rodrigues (2008, p. 35), os estudos da literatura popular

buscam compreender “um tecido narrativo, resultado de um viver, que garante ao indivíduo

uma identidade”. O jornalista Franklin Jorge também ouviu a senhora Joana D’Arc Lopes,

conhecida como Joanita, que assumia sua identidade afro-brasileira e afirmou na entrevista

transformada em memórias pelo jornalista: “Sou uma negra que não gosta de adular ninguém.

Já o homem que adula não merece confiança” (JORGE, 2015, p. 41). Em outra passagem de

sua voz-memória, no início da entrevista transformada em crônica pelo autor, a entrevistada

afirmou “Não gosto de fuxico nem de conversar besteira, apresenta-se num rompante. Toda

conversa minha é curta. Não faço floreios nem rapapés” (JORGE, 2015, p. 41). O autor e

entrevistador dos “afiguraves”, isto é, de pessoas marcantes na história e na cultura do

município de Luís Gomes, lhes dá voz, pois Joanita como era conhecida popularmente,

mulher negra e de identidade marcada pela resistência ao preconceito social e racial se

apresenta em ruptura com a submissão histórica dos povos afrodescendentes. Não adular

ninguém é não servir a hegemonia branca, por isso sua resistência na entrevista.

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O autor também relata a cultura dos negros moradores da Rua do Cachimbo Eterno,

na cidade de Luís Gomes, afastada do centro habitado pelos brancos. Esses negros tinham nos

versos de improviso do maracatu a sua cultura de resistência, em que glosavam os

acontecimentos históricos e sociais e criticavam as elites brancas, por exemplo. O autor

buscou esses personagens negros reais para apresentá-los por meio de suas próprias vozes,

como se reconheciam e como suas histórias de vida trazem as marcas do apartheid social que

sofreram.

Assim, a literatura de memória da região escrita por autores brancos, com exceção da

obra de Franklin Jorge que dá voz aos negros, apresenta a cultura afro-brasileira marcada pelo

viés folclórico, como se fosse normal os anos de servidão, o tratamento de uma cultura

simplificada apenas como braço, força de trabalho no campo e na cozinha mesmo muitos anos

depois da abolição. Compreender a cultura afro-brasileira iluminando o seu reconhecimento

através das vozes de seus agentes mais representativos é contribuir com o reconhecimento dos

povos negros como formadores da identidade nacional e suas manifestações, numa construção

que é tecida por suas histórias de vida.

2.2 A função social das rezadeiras na memória e identidade de um povo

Ao tratarmos das questões de memória e de identidade a partir das relações tecidas

entre os sujeitos e agentes da cultura popular afro-brasileira, mais especificamente as

rezadeiras das comunidades negras, o nosso trabalho busca uma compreensão dessa cultura

negra e da construção de uma identidade afro-brasileira. Assim a nossa perspectiva quer

envolver as rezadeiras do Quati e os outros moradores e membros do seu grupo social em um

reconhecimento das suas raízes, por meio da oportunidade de rememorar suas histórias de

vida e a memória do grupo. Nas histórias de vida das rezadeiras negras, na memória

transmitida por essas agentes pelo veio da oralidade, essas manifestações nos mostram a

dinâmica da cultura e do sentido de pertencimento que se reelaboram em diferentes

temporalidades e contextos.

Apesar da modernidade em que vivemos com a relativização das relações humanas,

em que muitos refletem o fim das manifestações da cultura popular, principalmente as que

pertencem ao campo da oralidade, de uma realidade dominada pela escrita e pelo eletrônico e

virtual e dos avanços da medicina moderna, por exemplo, os ritos, benzimentos e rezas

continuam a ser procurados pelos membros do grupo social do qual faz parte a rezadeira. Essa

prática popular rememora o saber ancestral dos griots, o guardião reconhecido pelo seu grupo

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e responsável pela transmissão memorial. As rezas, revestidas de uma atmosfera humana e

sagrada, são procuradas pelas pessoas ao final do dia de trabalho pesado ou num momento de

aflição e necessidade, se inscrevem nas práticas cotidianas de trabalho, de descanso, de

solidariedade. Assim, podemos perceber que a modernidade dialoga com as práticas

populares. Essa ressignificação das tradições ancestrais é o que ocorre com os rituais das rezas

herdados dos antepassados africanos e dos negros já nascidos no Brasil, que sobrevivem não

só em pequenos municípios do interior do Brasil, como o que será pesquisado neste trabalho,

mas também em grandes centros como Salvador, na Bahia. Isso nos é explicado por Ayala &

Ayala em seu livro Cultura popular no Brasil quando argumentam que os novos contextos

sociais não necessariamente extinguem as práticas culturais populares, mas as transformam.

Em suas palavras:

As práticas culturais populares, na verdade, se modificam, juntamente com o

contexto social em que estão inseridas, sem que isso implique

necessariamente sua extinção. Apesar disso, muitos estudiosos, até hoje,

continuam acreditando em seu iminente desaparecimento (AYALA &

AYALA, 1987, p. 20)

Numa cultura ocidentalizada como a nossa, com uma visão dominante sobre as

manifestações populares afro-brasileiras, que apesar de ser inscrita como uma cultura

brasileira e integrante da identidade nacional, estas são vistas como primitivas, exóticas, uma

sobrevivência de um passado distante e remoto num presente moderno e avançado. Porém, a

lógica social que rege as culturas populares se faz pela necessidade, seja esta de conforto

material ou espiritual. Como as manifestações da cultura e da literatura orais populares não

podem ser dissociadas dos contextos em que estão inscritos e fazem sentido, as rezas e

benzimentos das rezadeiras não são produtos isolados de suas histórias de vida, mas

pertencem ao agente que o pratica e à comunidade que o recebe.

Nessa dialética, ao abordar as diferentes temporalidades da literatura oral popular,

Ayala (2002) ressalta que os bens culturais estão inseridos em seus contextos de produção e

que estes se revestem do viés comunitário do tempo, ou seja, um cotidiano simbólico que

atribui sentido às visões de mundo presentes em momentos de trabalho, de festas e de

devoção. Nesse convívio aparentemente harmonioso, a herança cultural e religiosa trazida da

África sofreu perseguições e silenciamentos. Porém essa convivência não foi e nem é

harmoniosa, pois os sujeitos colonizados foram no passado coagidos pela ordem

(GLISSANT, 2014) e o catolicismo foi uma forma de silenciá-los. Embora exista uma

interação entre tradição e modernidade, entre os saberes ancestrais e as mídias, sabemos que

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essa troca se fez numa relação de dominação da cultura do colonizador e de resistência do

colonizado. As tecnologias chegam e influenciam as práticas das rezadeiras e de outros

agentes das culturas populares. Pude presenciar uma das minhas rezadeiras colaboradoras

assistir as novenas do Divino Pai Eterno pela Rede Vida de Televisão. Assim os bens de

consumo midiáticos podem influenciar sua religiosidade, pois estão a serviço das práticas

oficiais cristãs, como é o caso das redes católicas, isto é, no contato com a tecnologia essas

tradições se reelaboram.

Assim refletimos sobre o processo de globalização em que “Com o papel que a

informação e a comunicação alcançaram em todos os aspectos da vida social, o cotidiano de

todas as pessoas se enriquece de novas dimensões” (SANTOS, M., 2006a, p. 217). Para o

geógrafo citado a informação midiática alcança as pessoas em todos os aspectos do seu

cotidiano, como no caso a religiosidade das rezadeiras. Essa é a compreensão das relações

entre o espaço geográfico e a globalização pensada para o Milton Santos. A cultura midiática

se torna um dos elementos que exerce influência sobre a cultura popular, e pode lhe

acrescentar novas dimensões e novas informações que contribuam para a reelaboração das

manifestações vivenciadas no seio do grupo, muitas vezes numa tentativa da mídia de se

sobrepor a essa cultura com o acréscimo de novos pontos de vista.

Esses fatos nos mostram como a atuação das rezadeiras apresenta marcas de

resistência e de contestação à cultura dominante. Maria Ignez Novais Ayala também ressalta

que “Há muito tempo é difícil, eu diria impossível, descobrir alguém no Brasil que participe

exclusivamente de uma única cultura, seja ela popular, cabocla, indígena, por mais

aparentemente isolada que esteja” (2002, p.1). Assim, o isolamento das rezadeiras é apenas

aparente, elas conseguem dialogar também com a cultura midiática embora nem sempre isso

ocorra sem prejuízo para a sua cultura.

As rezas estabelecem uma significativa interação entre as diferentes gerações do

grupo através da transmissão memorial de uma sabedoria ancestral que dá coesão à

comunidade. Seguindo a esteira do pensamento de Zumthor (2001, p.139), a função social das

rezadeiras se assemelha a dos poetas porque por meio das suas manifestações orais em que “A

voz poética assume a função coesiva e estabilizante sem a qual o grupo social não poderia

sobreviver”. Essa coesão e sobrevivência, principalmente de uma cultura diaspórica e

historicamente escravizada encontra nas vozes das rezadeiras uma âncora, um porto seguro

que permite a transmissão das manifestações culturais e bens simbólicos próprios da

identidade cultural negra. Como parte integrante da literatura oral do Quati, as rezas se

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misturam às narrativas de vida das rezadeiras, e no momento social propício à essa

manifestação cultural, as rezadeiras transmitem a sua vivência, as suas experiências. Vejamos:

No caso da literatura oral, dá-se conselho, narra-se experiência de vida,

contam-se casos exemplares, utilizam-se adivinhas para estimular a

inteligência, atenção e rapidez das crianças, valendo-se do imaginário, de

recursos mnemônicos e outras sabedorias tidas como necessárias para bem

educar e estabelecer formas de comunicação com pessoas de gerações

diferentes (AYALA, 2002, p.1).

No contexto em que as produções da cultura popular são representações simbólico-

sociais da vida de seus produtores ou agentes, o nosso trabalho se inscreve na compreensão de

que a identidade das rezadeiras do Quati se constrói na sua representação através dos rituais

das rezas, orações e benzimentos, da memória e da história do grupo e como estas estão

subjacentes em suas histórias de vida. Observamos também o espaço social onde se situam os

rituais negros. Nesse sentido tentamos perceber como as narrativas de vida das rezaderias se

integram ao espaço social da comunidade em que atuam.

A atuação das rezadeiras negras não se restringe apenas ao caráter local e regional

dos rituais e da cultura negra dos povos do Quati, mas está envolvida numa compreensão

identitária mais ampla, de uma identidade construída entre a cultura negra herdada dos

africanos e a cultura brasileira tão híbrida e tecida com a contribuição de muitos povos e

culturas diversas, numa perspectiva de interpretar o viés afro-brasileiro do grupo, sua relação

com a história e as memórias dos antepassados negros num viés intercultural.

Assim, percebemos um diálogo entre a modernidade e a cultura popular, não sendo

necessário que uma exista em consequência da invalidação da outra, embora a cultura

dominada busque formas de resistência nesse diálogo marcadamente desigual. Nesse sentido,

as rezas se inscrevem nas práticas cotidianas dos grupos minoritários e na ritualização das

atividades diárias de trabalho e de folguedo, obedecendo a um tempo marcadamente

simbólico em que há o momento certo para determinadas tarefas e o momento de parar para

rezar. Como próximo ao anoitecer quando as rezadeiras deixam seus afazeres domésticos e da

roça para atender as pessoas que as procuram. Estas pessoas também param as suas atividades

para receber as rezas e benzimentos. As rezas dão sentido às tarefas diárias e marcam também

o calendário simbólico do ano, os dias da semana em que se praticam determinadas rezas e

rituais, o respeito ao período quaresmal, ao mês de maio e aos dias de santos, o que nos

mostra a histórica dominação do colonizador sobre a religiosidade herdada dos antepassados.

O Calendário Litúrgico da Igreja Católica Romana se transplantou culturalmente sobre os

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traços africanos pela presença da herança portuguesa. As práticas herdadas precisaram ser

ressignificadas de acordo com os atuais contextos e a atual história e vivência do grupo.

Por meio das narrativas de vida e das rezas dessas agentes da cultura popular afro-

brasileira, as presentes e futuras gerações podem e poderão conhecer as suas memórias, a

história e a cultura dos seus antepassados, como reflete Bosi: “Que interesse terão tais

elementos para a geração atual? Encontrarei uma linguagem que comova as pessoas de hoje,

para as quais seu nome pouco significa? As lutas pela memória, eis algo que todos temos

conhecimento de causa” (2007, p. 411). A cultura e a história dos povos afro-brasileiros

muitas vezes é tratada como exótica, desconhecida, assim como a dos povos indígenas, como

se não fizesse parte da cultura brasileira, atitude que contradiz o pensamento de Sílvio

Romero ao desenvolver ainda no século XIX o conceito de mestiçagem moral, ampliando

para uma mestiçagem cultural e literária (grifo meu). Para o crítico:

São as gerações crioulas que, deixadas de parte as nostalgias dos

progenitores, esqueceram-se delas para amar este país e trabalhar na

formação de uma pátria nova.

Esta pátria nova não é a oca do índio perdida no deserto, a palhoça do negro

esquecida nos areais da África, ou o casal do português que ficou pelas

encostas do Alentejo... A nova Pátria é o Brasil. (ROMERO apud

CANDIDO, 1978, p. 54, grifos do autor).

Dessa forma, Sílvio Romero (1978), embora esteja situado cronologicamente na

mesma época em que foi escrito “O Cortiço”, já pensava a literatura brasileira como a fusão

de três povos, português, indígena e negro, enfatizando a significativa contribuição das

gerações crioulas que deixaram de amar a sua pátria voluntaria ou involuntariamente para

amar e trabalhar na formação de um novo país.

Embora pensador de sua época e contexto histórico, situado nas teorias racistas do

século XIX e influenciado pelo determinismo, positivismo, eugenismo e realismo-

naturalismo, Romero contribui nos estudos críticos da literatura brasileira por reconhecer o

espaço dos povos negros na construção da identidade brasileira. O critico, apesar das

limitações do seu contexto vistas pelo olhar de hoje, transgrediu o mestiçagem física e moral

do brasileiro, sua mistura de sangue e de almas, considerado como negativo nessa fase, e

avançou para a compreensão de uma mestiçagem cultural e identitária. Em sua linha de

pensamento “Para Sílvio, o mais importante na diferenciação nacional é esta diferenciação

racial, com a criação do mestiço” (COUTINHO, 1974, p. 352). A categoria empírica do

mestiço no pensamento de Romero foi a metonímia da identidade nacional brasileira que não

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excluía a contribuição de nenhum dos povos formadoras da nação e, dessa forma, trouxe à

tona o viés africano da cultura e da literatura como elemento primordial da tradição e do

sentimento brasileiro.

Seguindo o pensamento de Sílvio Romero não podemos tratar a cultura afro-

brasileira como desprovida de valor, como distante e primitiva quando as vozes da memória

não só transmitem, mas reelaboram as narrativas ancestrais, as histórias de vida desde as

antigas até os membros das atuais gerações, o que reveste essa memória de resistência e lhe

confere uma dimensão identitária. A cultura hegemônica dos povos colonizadores inscrita na

tradição ocidental europeia dialoga com a tradição ancestral dos povos afrodescendentes, e

suas manifestações transitam a partir dos contextos reais que propiciam sentido para um

espaço mais amplo, uma identidade nacional. A forma como foi e é tratada a cultura e a

memória dos povos afrodescendentes pelos brancos objetivou e objetiva construir uma

superioridade não só da sua raça sobre a outra, mas principalmente de uma cultura

colonizadora sobre a outra colonizada. Assim a cultura dos negros tende a branquear ou

desaparecer, seguindo a esteira de Fanon (2008), construindo uma resistência que lhe permite

voltar a sua identidade para o outro de forma que seja mais aceita, menos reprimida. A

manifestação da voz por meio das narrativas, das rezas e rituais de benzimentos transita entre

a história e as tradições ancestrais e a visão da tradição ocidental europeia sobre esses bens

simbólicos, pois durante muito tempo a cultura afro-brasileira foi predominantemente vista

pelo olhar senhorial, distante do reconhecimento que os negros elaboram de si próprios e que

nessa dialética muitas vezes se revestiram de máscaras brancas, no termo proposto por Fanon

(2008) para não desaparecer.

Ao refletir sobre as lutas pela memória, Bosi (2007) relembra a colega de curso Iara

Iavelberg morta durante a ditadura militar, cuja memória é significativa não só para a geração

que a conheceu, mas para as próximas gerações que serão receptoras dessa transmissão

memorial e que terão interesse em conhecê-la. Assim a autora nos direciona para refletir

também sobre a memória dos antepassados negros cujos nomes podem despertar o interesse

das novas gerações. Os povos ancestrais e sua contribuição precisam ser relembrados, junto

com sua história, cultura e ensinamentos e que devido à ausência de trabalhos voltados a essa

cultura correm o risco de serem esquecidos, apagando assim traços de uma identidade de

relevância histórica não só para o Quati, mas para a região. Seguindo o mesmo pensamento, a

mesma autora nos apresenta uma justificativa para essa socialização com a memória e a

cultura dos antepassados em que as novas gerações podem sentir-se pertencentes a um grupo

e ancorado em um passado historicamente relevante. Dessa forma, a criança por meio da

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memória do grupo tem a oportunidade de se sentir pertencente a uma história, de fazer parte

de uma socialização com os valores ancestrais, e não um contato superficial com o passado

que lhe daria apenas uma visão abstrata do grupo e de sua história conforme Bosi (2007). A

psicóloga social reflete que, sem o contato dos mais novos com os dados do passado histórico

do seu grupo social, sem a transmissão pelos mais velhos da memória dos acontecimentos que

marcam a história do grupo, não se constitui uma significativa socialização com os mais

velhos da comunidade, que são os transmissores memoriais dos fatos por meio da oralidade.

As marcas da identidade dos povos afrodescendentes necessitam de um maior

aprofundamento sobre a presença negra na região do Alto Oeste do Rio Grande do Norte onde

se localiza o município de Luís Gomes, visto que inexistem estudos sobre esses povos e sua

cultura e memória numa perspectiva de novas temáticas de estudo e de novos métodos que

vão além da busca por fontes documentais escritas, como cartas de alforria, já que o nosso

trabalho tem como fonte a história oral das rezadeiras, mais especificamente dentro dessa

técnica a história de vida. Esta técnica de entrevista pode iluminar suas trajetórias de vida

inseridas dentro da história do seu povo, proporcionando um maior reconhecimento de suas

identidades e de diálogo com outras culturas numa ação que propicia também certo combate à

discriminação racial e cultural, numa perspectiva que traz à tona pessoas e suas histórias de

vida antes não ouvidas nem estudadas como integrantes da história e da cultura regional e

pertencentes a uma identidade nacional. As histórias de vida das rezadeiras, mulheres negras

que constroem suas trajetórias inscritas em um duro cotidiano de trabalho, e que foram

escolhidas dentre os membros do seu grupo para guardar e transmitir a sabedoria popular e os

segredos espirituais aos seus descendentes e as novas gerações da comunidade nos

oportunizam um conhecimento mais amplo sobre a cultura afro-brasileira. Pode-se surgir uma

nova visão sobre a diversidade étnico-racial da população regional e quebrar um silêncio

histórico sobre suas histórias e experiências.

A função social de guardiãs e transmissores da memória do seu povo é exercida pelas

rezadeiras do Quati e reconhecida pelos membros do seu grupo social, que as reconhecem

como representantes de sua identidade cultural. Além das rezas e dos rituais de benzimentos,

ao narrar suas lições de vida, seus conselhos e ensinamentos, as rezadeiras elaboram uma

literatura oral a partir da memória coletiva, das vozes ancestrais que lhes foram transmitidas e

tecem um laço com diferentes gerações do grupo, repassando aos mais jovens a história das

suas origens. Como reflete Maria Ignez Novais Ayala:

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No caso da literatura oral, dá-se conselho, narra-se experiência de vida,

contam-se casos exemplares, utilizam-se adivinhas para estimular a

inteligência, atenção e rapidez das crianças, valendo-se do imaginário, de

recursos mnemônicos e outras sabedorias tidas como necessárias para bem

educar e estabelecer formas de comunicação com pessoas de gerações

diferentes. (AYALA, 2002, p.1).

Como refletimos, a autoridade das rezadeiras vem da sua experiência de vida que não

se dissocia da memória ancestral nem da sua vivência cotidiana no seio do grupo. Essa

autoridade se relaciona com a do narrador de Benjamin (1993), o camponês sedentário que

conhece profundamente o grupo do qual faz parte. Elas não se constituem apenas como

testemunhos vivos de um passado distante, de uma cultura considerada que, para muitos, se

encontra perdida no tempo, mas suas vozes não se restringem apenas à religiosidade do grupo.

Através do domínio da tradição e da memória apreendida dos antepassados e da sua função

social na comunidade é que as rezadeiras se tornam agentes importantes na elaboração da

identidade. Embora as rezas sejam resultantes de uma diáspora cultural e religiosa negra,

herdadas de um passado distante, é o significado de suas práticas no presente que contribui

para o sentido de pertencimento dos membros do seu grupo. A identidade africana ancestral é

vivenciada por meio da memória e o rememorar da tradição. O enraizamento no passado

reelaborado no presente é também resultado da violência física e simbólica sofrida com a

diáspora e a escravidão, com o dilaceramento de suas culturas. Daí a preocupação com a

memória e as tradições negras presentes em seus bens simbólicos e culturais.

Como o tráfico negreiro e a diáspora foram fundantes para a constituição da

identidade cultural dos negros do Ocidente marcada por traumas históricos, segundo Gilroy

(2001), a construção de uma identidade diaspórica se constitui como um processo complexo

de desenraizamento e enraizamento posterior.

Diáspora (do grego diasporein: semear) significa a dispersão de pessoas [...].

A diáspora constitui um trauma coletivo de um povo que voluntária ou

involuntariamente foi banido da sua terra e, vivendo num lugar estranho,

sente-se desenraizado de sua cultura e de seu lar (BONNICI, 2005, p. 24).

Devido a esse desenraizamento histórico que se constitui como uma espécie de

trauma original, conforme os autores citados anteriormente, nos interessam mais o

deslocamento, o desenraizamento causado pela diáspora e as principalmente novas criações

culturais surgidas a partir dessas experiências do que a questão das origens. Nessa construção

política da identidade do negro no Ocidente se inscrevem as manifestações culturais afro-

brasileiras, que não se tratam de bens originais no sentido de estáticos, de se encontrarem

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conforme eram vivenciadas na África. A diversidade de vivências dos povos negros chegados

em terras estranhas, escravizados, distantes de suas tradições, de familiares e antepassados,

deu origem a novas criações culturais que, de forma híbrida, reúnem traços africanos,

indígenas e europeus. Nesse sentido, o desejo de reavivar as tradições vem do trauma da

diáspora e da escravidão, embora essas tradições ancestrais se encontrem reelaboradas a partir

do contexto das novas terras. De forma alegórica, podemos comparar as manifestações

culturais afro-brasileiras, dos negros distantes de sua terra natal, com os salmos cantados

pelos hebreus em momentos de escravidão no Egito e de exílio quando distantes da terra natal

ou no caminho de volta à Terra Prometida. Suas vozes rememoravam a memória do seu povo

e mesmo distante lhe davam um sentido de pertencimento, como as vozes dos narradores e

das rezadeiras que são carregadas de pertencimento, repletas de matrizes e raízes culturais de

seus antepassados.

Assim as narrativas orais, as rezas e rituais afro-brasileiros sofreram um processo

complexo de hibridização ao longo dos séculos em que as culturas ancestrais tanto receberam

traços do catolicismo europeu, da cultura indígena e da matriz africana. Nesse processo os

povos subjulgados, os negros e índios sofreram prejuízos e rupturas com relação a essa

mistura, o que, para Glissant (2005), se constituiu como um despojamento e silenciamento das

marcas constitutivas de suas vidas. Dentre essas marcas se encontram a língua e a religião. É

dessa fonte que bebem os saberes de nossas rezadeiras negras, dessa matéria-prima fundida

num caldeirão múltiplo de culturas e de identidades. Aqui o nosso interesse pelas origens não

busca uma pureza, mas a compreensão de que:

Nossas sociedades são compostas não de um, mas de muitos povos. Suas

origens não são únicas, mas diversas. Aqueles aos quais originalmente a

terra pertencia, em geral, pareceram há muito tempo – dizimados pelo

trabalho pesado e a doença. A terra não pode ser ‘sagrada’, pois foi ‘violada’

– não vazia, mas esvaziada. Todos que estão aqui pertenciam originalmente

a outro lugar. Longe de constituir uma continuidade com os nossos passados,

nossa relação com essa história está marcada pelas rupturas mais aterradoras,

violentas e abruptas. (HALL, 2009, p. 30).

Para o autor, é essa diversidade na composição e na formação das sociedades que lhe

confere complexidade. São muitos povos que as formam não apenas no sentido étnico, mas

principalmente em termos de pertencimento a um povo, a uma nação. Não se pode

reconstituir na inteireza a nação deixada para trás no Atlântico, buscar as origens de forma

pura, reencontrar laços sanguíneos exatos. Muitos desses laços foram desfeitos com a

travessia do mar, outros na chegada à terra, com a venda de escravos a donos diferentes, o que

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resultou numa doença psicológica chamada popularmente de banzo que provocou a morte de

muitos negros, decorrente da saudade da terra natal e dos parentes nunca mais vistos e

encontrados. Nesse sentido, não pode haver uma continuidade intacta do passado porque

houve prejuízos e rompimentos depois de tantos deslocamentos e a função social da memória

oferece um suporte ao sentimento de pertencimento, contribui para a construção de uma

identidade coletiva depois de tantas rupturas.

Assim as narrativas das rezadeiras do Quati, enquanto manifestação cultural híbrida,

resultado do diálogo e da influência do europeu, do indígena e do africano, apresenta para o

grupo social de afrodescendentes o reavivar da sua identidade ancestral reelaborada ao longo

da história. É a violação da identidade, a eliminação simbólica de um povo que antes

constituía uma nação, tinha um sentido de unidade e coesão, que reveste de significado as

tradições, os ritos e as narrativas, um retorno simbólico a terra sagrada de seus antepassados e

as suas histórias de vida já aportados em solo brasileiro. Expulsos, arrancados de suas terras, a

memória ancestral reelaborada pelas rezadeiras confere um sentido à reconstrução das

histórias de vida após os traumas da diáspora e da escravização dos negros. Não se trata de

uma questão de gênero, raça ou classe social, mas de uma coesão que ultrapassa essas

categorias e que conforme Hall “[...] as culturas sempre se recusaram a ser perfeitamente

encurraladas dentro das fronteiras nacionais. Elas transgridem os limites políticos” (HALL,

2009, p. 35). Assim, nessa comparação não podemos encurralar a cultura afro-brasileira

dentro de limites étnicos, raciais ou políticos, conforme critica Bhabha (2010) ao questionar a

metáfora progressista da coesão social moderna de muitos como um, em que muitos

pensadores das teorias do holismo cultural e da comunidade veem totalidades sociais,

experiências coletivas unitárias seja de classe, gênero ou raça.

Quando tratarmos neste trabalho de hibridismo, estaremos seguindo a esteira do

pensamento de Bhaba (2010) que valoriza o hibridismo enquanto elemento constitutivo dos

discursos pós-coloniais e de suas representações. Este conceito se faz compreender ao longo

deste estudo na visão das narrativas de vida das rezadeiras negras enquanto produto de uma

longa e histórica tradução cultural e se encontra melhor definido na página 159 deste trabalho.

São justamente as trocas entre diferentes culturas, sem a busca de uma pureza, seja

étnica ou cultural que é o ponto significativo da identidade afro-brasileira e que lhe confere

riqueza e complexidade na elaboração identitária. São múltiplas rotas que formam a cultura

afro-brasileira. Em terras africanas, a diversidade de povos, línguas e culturas já constituía

raízes significativas. Muitos grupos diferentes se juntaram na colonização, após se perderem

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no tráfico e na comercialização e a partir desse ponto se concentra a história dos povos negros

no Ocidente. Assim:

Nossos povos têm suas raízes nos – ou mais precisamente, podem traçar suas

rotas a partir dos – quatro cantos do globo, desde a Europa, África, Ásia;

foram forçados a se juntar no quarto canto, na ‘cena primária’ do Novo

Mundo. Suas ‘rotas’ são tudo ‘menos puras’. A grande maioria deles é de

descendência ‘africana’ – mas como teria dito Shakespeare ‘norte pelo

noroeste’. Sabemos que o termo ‘África’ é, em todo caso, uma construção

moderna, que se refere a uma variedade de povos, tribos, culturas e línguas

cujo principal ponto de origem comum situava-se no tráfico de escravos

(HALL, 2009, p. 30).

Em diálogo com outros teóricos do pensamento pós-colonial, compreensão esta que

norteia este trabalho, a cultura afro-brasileira herdada dos negros e miscigenada culturalmente

com a cultura do branco europeu e do índio nativo tem o seu legado nessa diversidade o seu

valor singular. Para um pesquisador isento de preconceitos, este conseguirá enxergar nesse

mosaico de elementos culturais que já existia antes da travessia do Atlântico em terras

africanas e aqui no Brasil se tornou muito mais diversos, pois, “No entanto, nada é mais

impressionante, para alguém isento de preconcepções, do que a extraordinária diversidade dos

povos da África e suas culturas [...]”. (APPIAH, 1997, p. 48).

O olhar pós-colonial pretendido sobre as histórias de vida das rezadeiras negras do

Quati segue a esteira da segunda acepção apresentada por Boaventura dos Santos Sousa

(2003) que visa uma compreensão inserida nos estudos literários e culturais dos processos de

contrução das identidades e da elaboração de sistemas de representação. Nesse processo se

inscrevem as manifestações da cultura popular afrobrasileira representadas neste trabalho

pelas narrativas de vida das rezadeiras. Elas se posicionam como narrativas surgidas do ponto

de vista dos sujeitos colonizados como resposta à narrativa dos colonizadores. O nosso

trabalho se ancora no entendimento de que:

O pós-colonialismo deve ser entendido em duas acepções principais. A

primeira é a de um peródo histórico, aquele que se sucede à independência

das colônias, e a segunda é a de um conjunto de práticas e discursos que

desconstroem a narrativa colonial escrita pelo colonizador do ponto de vista

do colonizado. Na primeira acepção o pós-colonialismo traduz-se num

conjunto de análises econônicas, sociológicas e políticas sobre a construção

dos novos Estados, sua base social, sua institucionalidade e sua inserção no

sistema mundial, as rupturas e continuidades com o sistema colonial, as

relações com a ex-potência colonial e a questão do neocolonialismo, as

alianças regionais etc. Na segunda acepção, insere-se nos estudos culturais,

linguísticos e literários e usa privilegiadamente a exegese textual e as

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práticas performativas para analisar os sistemas de representação e os

processos identitários. Nessa acepção o pós-colonialismo contém uma

crítica, implícita ou explícita, aos silêncios das análises pós-coloniais na

primeira acepção. Por me centrar neste texto nos sistemas de representação e

processos identitários, reporto-me ao pós-colonialismo na segunda acepção,

ainda que as análises próprias à primeira seam traziadas a cotejo (SANTOS,

B., 2003, p. 26).

Embora a compreensão de pós-colonialismo do citado autor trate da desconstrução

das narrativas coloniais escritas pelos colonizadores, para essa desconstrução é necessário nos

reportarmos a elas e às representações que historicamente foram construídas sobre os

colonizados. Dessa forma, traçamos ao longo deste trabalho um percurso também histórico

das culturas e da religiosidade afro-brasileiros com o intuito de melhor compreendermos

como as histórias de vida das rezadeiras se constituem enquanto narrativa pós-colonial e

representação identitária de resistência do colonizados.

Confirmando a diversidade africana abordada por Appiah (1997) enquanto

constitutiva da formação brasileira, não se pode num país miscigenado como o nosso Brasil

buscar uma cultura tradicionalmente comum, única, com vocabulário, língua, religião e outros

traços culturais, como também é impossível pensarmos numa raça comum. Não há espaço

para o unanimismo enquanto viés de compreensão, enquanto pressuposto de estudo da cultura

africana. Vejamos:

Não importa o que os africanos compartilhem, não temos uma cultura

tradicional comum, línguas comuns ou um vocabulário religioso e conceitual

comum [...], nem sequer pertencemos a uma raça comum; e, já que é assim,

o unanimismo não tem direito ao que é, a meu ver, seu pressuposto

fundamental (APPIAH, 1997, p. 50).

Retomando Stuart Hall (2009), as fronteiras rígidas impostas pelos Estados-nação

dentro das quais se espera que as culturas cresçam embora muito bem impostas segundo esse

autor, no caso do Brasil não impediu que florescessem as mais variadas formas de cultura e de

religiosidade. A religião herdada dos colonizadores se misturou às religiões africanas,

influenciou e foi influenciada numa hibridização que enriqueceu a cultura nacional. Embora

proibidos de cultuar os seus orixás e divindades trazidos da terra natal, a sua associação aos

santos católicos não impediu que se formasse uma cultura afro-brasileira representativa de

uma identidade não racial nem étnica, mas cultural e com uma identidade de resistência.

Como também se insere nessa perspectiva de transgressão das fronteiras rígidas do Estado, e

como forma de resistência a escravidão, a atuação das Irmandades de Nossa Senhora do

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Rosário dos Pretos que cuidavam dos negros doentes, enterravam os mortos e compravam

alforrias dos que ainda eram escravizados, buscando a construção de laços, apesar da

escravidão e do desenraizamento que sofreram com a diáspora. Assim a:

[...]Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos (as

irmandades são sociedades da religião católica destinadas à prática de culto

aos santos, com funções de assistência social e de lazer, de diferentes classes

sociais, inclusive os negros escravizados e seus descendentes nascidos; as

irmandades de Nossa Senhora do Rosário, padroeira dos africanos e seus

descendentes, tiveram importante papel na socialização dos mesmos no

Brasil, especialmente no que diz respeito às alforrias por compra) [...];

(Coleção O Brasil Somos Todos Nós, 2011.p. 41).

Nesses limites em que se espera que as culturas transgridam e floresçam (HALL,

2009) se encontra a devoção a Nossa Senhora Aparecida e a sua trajetória histórica para se

tornar a padroeira do Brasil. Narra a tradição que uma imagem de Nossa Senhora da

Conceição, padroeira de Portugal, devoção de origem portuguesa cultuada pelos brancos

colonizadores foi encontrado no leito do rio Paraíba do Sul em São Paulo por três pescadores.

A devoção à Virgem da Conceição era uma manifestação dos brancos, já que os negros

cultuavam Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos. Esse fato de segregação religiosa

está presente também na história da cidade de Pau dos Ferros:

Um acontecimento da nossa região que ilustra essa fase é o fato de os negros

de Pau dos Ferros, impedidos de frequentar a Matriz de Nossa Senhora da

Conceição, tiveram que construir uma igreja para realizar seus cultos e de

escolher um santo negro, no caso São Benedito. A capela é um símbolo

dessa resistência a opressão branca herdada da colonização e da capacidade

do povo afro-brasileiro de reelaborar sua cultura de forma a manter vivos os

seus laços ancestrais e identitários (FONSÊCA, 2016, s. p.).

Nessa linha de subversão e florescimento de novas culturas, estão o surgimento de

uma padroeira negra para o Brasil, Nossa Senhora Aparecida, oficializada nas primeiras

décadas do século XX, a beatificação do Padre Francisco de Paula Victor em 2015, o primeiro

beato negro ex-escravo brasileiro e a beatificação de Nhá Chica em 2013. Segundo Maria do

Carmo Nicoliello Pinho no informativo Nhá Chica de agosto de 2016, ao citar o professor

Antônio Gaio, a Beata Francisca de Paula de Jesus, Nhá Chica, primeira negra a ser

beatificada no Brasil, filha livre de uma escrava liberta, que cultuava Nossa Senhora da

Conceição, devoção à padroeira de Portugal herdada dos brancos e difundida ao longo da

colonização, e não Nossa Senhora do Rosário cultuada pelos negros, contrariando o viés

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oficial da religião católica, do catolicismo colonial herdado do europeu. Numa leitura atenta

dessa cultura diásporica, percebemos que “Portanto, é importante ver essa perspectiva

diaspórica da cultura como uma subversão dos modelos culturais tradicionais orientados para

a nação” (HALL, 2009, p. 36).

Para uma reelaboração identitária após os traumas da diáspora e da escravidão, a

construção de novas histórias de vida é complexa, principalmente numa terra cuja nação

apresenta modelos pertencentes a três matrizes culturais, como a nação brasileira que tem

origens que ultrapassam o viés étnico, e se desdobram numa perspectiva cultural e

memorialista de uma identidade que é uma mistura das matrizes indígena, portuguesa e

africana. Essas características geram uma cultura afrodescendente que, além da matriz

africana trazida com a diáspora, apresenta traços portugueses e indígenas. Daí a complexa e

difícil compreensão de uma cultura híbrida e a prudência em levantar determinadas questões

durante as entrevistas.

Em diferentes ocasiões, fosse, em pesquisa, em conversas informais ou mesmo em

rituais de benzimentos dos quais costumo participar, pude perceber, principalmente no caso

de dona Naldi, que o viés africano de suas manifestações não é revelado a todos os que

recebem as suas rezas. É um assunto considerado difícil devido à memória do terror racial e

da tentativa de eliminação dessa matriz por parte do colonizador branco, como refletiu Gilroy

(2001) que essa memória dolorosa é inseparável da construção da identidade dos negros no

Ocidente. Assim toda a história de vida de uma agente negra da cultura popular afro-brasileira

está marcada por uma dolorosa memória ancestral que infelizmente, no contexto atual, ainda

passa por preconceitos gerados desde a colonização, período em que os seus cultos eram

perseguidos e tiveram que se aclimatar ao catolicismo.

Os rituais das rezas nos mostram que a cultura afro-brasileira não se trata de um

folclore, de uma mera lembrança do passado que ainda chama a atenção no presente, mas de

laço atual que não só religa os saberes ancestrais como envolve os membros atuais do grupo

social em que se insere a rezadeira. A casa da rezadeira se torna um espaço de interação com

os membros do grupo, um espaço comunitário em que se constrói um cotidiano social, pois o

seu dom, a sua função é colocada a serviço dos seus, havendo a narração de experiências na

definição de Benjamin (1993), o conselho, a resposta para um problema. Geralmente as

rezadeiras são procuradas ao final do dia, próximo do anoitecer, momento comunitário

propício a narração, como se encerrasse um dia de trabalho com a ligação do homem com o

sagrado e o simbólico. Nesse contexto social, manifesta-se a literatura oral e os rituais das

rezas, Maria Ignez Novais Ayala (1997, p.161) explica que:

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É aí que ela tem sua possibilidade de existir. Precisa de um tempo em que as

pessoas se encontrem, conversem, troquem experiências, mesmo que seja

num rápido intervalo para lanche, para café ou para descanso das tarefas do

dia, à noitinha, quando se conta com um momento de folga, depois do

trabalho e das novelas da tevê. Não importa que hoje se disponha de pouco

tempo. O fundamental é que ocorra de modo constante e com certa

regularidade, para que se construa uma experiência, de base comunitária, que

a seu momento poderá, socializada, propiciar outras experiências

individuais. Caso contrário, essa literatura deixa de ser vivida de maneira

socializada para continuar latente, presente na memória e na solidão de quem

já a experimenta em situações anteriores mais intensas de convívio social e

de solidariedade.

Como as rezas e o seu contexto ritual e social são baseados na experiência

comunitária, nos relatos de vida, as rezaderias constroem um laço com a comunidade em que

deixam claro a sua função de agente da cultura popular, falam das pessoas que as procuram,

que frequentam as suas casas e acreditam em suas rezas, legitimando assim sua identidade

com base na aceitação social. É a partir dessas relações que se reconhecem como rezadeiras e

reconhecem os membros do seu grupo social como participantes dessa identidade tecida a

muitas mãos. Dessa forma:

Essa representação do sujeito pode ser percebida nos relatos orais e histórias

de vida dos artistas populares. É notório, nas narrativas, o interesse em

deixar a marca de sua atuação na comunidade, do seu papel na cultura da

cidade e da influência que exerceram no grupo que os rodeava, constroem

para si uma maneira de ver e representar sua existência. Para pensar a

relação memória/cultura popular não é importante saber se os relatos contêm

a legitimidade dos fatos, se há uma reinterpretação dos acontecimentos, ou

se a eles foram agregados valores de acordo com o interesse dos narradores.

O que importa é o modo pelo qual eles são expostos e o que marca sua

significância para a vida desses indivíduos. Herdeiros de suas tradições,

esses sujeitos demonstram consciência de seu significado no campo cultural

e, por isso, concretizam na sua narrativa o desejo de serem reconhecidos

pelo seu grupo (RODRIGUES, 2008, p.40).

A rezadeira dona Naldi destaca em seu relato de vida a função da sua avó dona

Tomásia no seu meio social. Essa cultura popular afro-brasileira exercida memorialmente

pelas rezadeiras como suporte de uma identidade pessoal ancorada na memória e na

identidade cultural de sua gente se inscreve na vida cotidiana, em atitude de solidariedade.

Nesse complexo jogo de identidades conflitantes, em que a identidade do colonizador branco

historicamente quis se declarar superior a dos povos negros desenraizados pelo tráfico e

massacrados pela escravização, em que a elaboração das identidades passa pelos modos de

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produção do poder, essa relação passa também pela resistência. Os processos identitários

ocorreram e ocorrem nessa complexa zona de contrato, de negociações culturais entre os

portugueses, os nativos do Brasil e os povos chegados da África através do tráfico negreiro.

O jogo de espelhos entre as identidades, nas relações de diferença em que não

podemos cristalizar oposições binárias, quem possui o poder para determinar as diferenças

também o tem para declarar sua superioridade diante das outras diferenças em que se espelha.

Nessa diferenciação desigual, as identidades subalternas podem ter a capacidade de resistir e

devem ser incentivadas a essa atitude diante de quem lhe declarou inferior. Nessa arena onde

ocorre a luta pela negação total do outro e pela disputa com a identidade subalterna do outro,

compreendemos o multiculturalismo como forma de dominação política e anulação da cultura

do outro. Nesse jogo de reflexos entre “Próspero e Caliban” (SANTOS, B. S., 2003), os

portugueses foram vistos ao longo da sua história por outros povos Europeus pelo viés do

mesmo etnocentrismo com que viram e trataram os índios nativos e os negros trazidos da

África.

A subjugação do outro forçada sobre as identidades subalternas que busca o

alheamento das suas raízes é constitutiva das identidades indígenas e negras no Brasil. Nessa

construção as culturas afro-brasileiras e ameríndias tiveram que aceitar uma lógica

emprestada e vinda de fora que lhes era estranha. Os seus rituais e crenças se revestiram de

outras dimensões, de uma dinâmica exterior que trabalhava para que a sua não mais

encontrasse um lugar. Nesse sentido:

O Outro é, sob esse aspecto, o que se mexe além duma fronteira, num “fora”

indefinido e indefinível, num exterior sem horizonte que é, na verdade, num

exterior sem horizonte que é, na verdade, um interior continuamente

recalcado, constantemente projetado para aquele externo que vira em

distância tranquilizadora o que se dá, pelo contrário, como inquitetante

proximidade. E mais profundamente, o que gera o Outro é mesmo essa

fronteira, é esse limite que separa um dentro concluso dum fora

inconcludente: borda trabalhada e instável, margem dilacerada e sempre

recomposta ao longo da história, e todavia linha sagrada e inelutável,

destinada a dividir o próprio do impróprio, a norma do desvio. Noções

relativas, repare-se, mutáveis e dependentes uma da outra, mas que servem,

contudo, para delimitar o âmbito dum modelo cultural (e ético, e religioso, e

antropológico...) exclusivo (FINAZZI-AGRO, 1991, p. 53)

.

A visão do autor com relação ao outro esclarece o lugar que lhe foi reservado ao

longo da história. A fronteira geradora do outro, o limite segregador embora bastante

trabalhado é instável, margem dilacerada que pode mudar e transitar entre o próprio e o

impróprio, estes que, apesar das tentativas de uma separação estável se misturaram. Em meio

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a essa complexidade, o outro se encontra inconcluso. De fora da fronteira ideal traçada pelos

padrões europeus, estes que relegaram ao algures toda a diversidade de povos, culturas e

pensamentos que, ao longo dos séculos, não se enquadrava em seus modelos e compunha ao

mesmo tempo uma feira de maravilhas e de horrores. Segundo o mesmo autor:

Do outro lado dessa fronteira ideal, a cultura europeia acumulou de fato,

durante séculos, tudo o que de imcompreensível, de excessivo, de ambíguo,

de irredutível ao Sentido, em suma, ela ia encontrando ou descobrindo no

seu caminho. O “algures” tornou-se, assim, uma espécie de fantásico,

ilimitado e emaranhado, bric-à-brac em que encontrou lugar um monte de

coisas heterogêneas. O louco, o judeu, a mulher, o negro, o que se supunha,

enfim, ligado ao instinto e às leis misteriosas do corpo, tudo isso entrou no

imenso domínio da Alteridade que acabou, assim, por se transformar numa

grande feira da Diversidade, povoada, com efeito, por objects féeriques e

montada além das muralhas, fora da cidadela, na anônima e desmedida

periferia do Idêntico. Feira das maravilhas e dos horrores, espaço

irreprimível da festa, do riso, do corpo, mas também vórtice ou abismo,

“lugar de trevas”, objeto de medo e de desejo, de repulsa e de atração

(FINAZZI-AGRO, 1991, p. 53 grifo do autor).

Nesse sentido, as práticas culturais e as crenças inscritas no universo do outro, como

a religiosidade do negro presente nas histórias de vida das rezadeiras e de muitos outros

agentes das culturas populares afro-brasileiras como os brincantes chamados de Negros do

Rosário, foram tratados historicamente como diabólicas e separadas dos ideais europeus,

antagonismo presente desde os relatos da “descoberta” do Brasil comprendido na metáfora do

Próspero e do Caliban (SANTOS, B. S., 2003) como dois processos distintos a partir dos

quais a identidade dominante se reproduz sobre a subalterna. Segundo Finazzi-Agro (1991)

também se insere nesse contexto o paganismo indígena e assim todo pluralismo cultural

estava subjugado pela marca diabólica da muliplicidade, esta que é constitutiva das

identidades das rezadeiras.

Essa dinâmica cultural nos mostra que não há espaços para os binarismos do

colonialismo hegemônico, oposições hierárquicas, pois pensar o Próspero português em suas

fraquezas é compreender que a identidade cultural é formada numa disputa cada vez mais

voraz de poder numa pluralidade de culturas e identidades que marcam o espaço da história

do colonialismo português. Na cultura das rezadeiras negras, a diversidade cultural não é um

emaranhado complicado de se compreender, mas o fertilizante na construção dos seus bens

simbólicos e culturais que contribui para a ressignificação dos traços das três culturas

formadoras, a africana, ameríndia e europeia. No olhar de Glissant, o neobarroco, diferente da

antiga estética barroca, se concentra no caldeirão que se tornou a cultura das Américas. A

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padroeira da América Latina é Nossa Senhora de Guadalupe, uma devoção católica europeia

aclimatada ao contexto da história ameríndia, pois a Virgem se apresenta como indígena. No

Brasil, temos o mesmo com a elaboração da devoção à Virgem Negra Nossa Senhora

Aparecida. Nesse sentido, o barroco que atravessou o Atlântico se revestiu de sincretismo, de

mestiçagem cultural. Assim “Quando o barroco atravessou os oceanos e chegou à América

Latina, os anjos e as virgens tornaram-se negros, Jesus Cristo tornou-se um índio e tudo isso

rompeu o processo de legitimidade” (GLISSANT, 2005, p. 111, apud, LIMA, T. M. de A.,

2007, p. 205). Nas narrativas de vida das rezadeiras negras do Quati e em seus rituais,

devoções e manifestações culturais encontramos as características da herança que lhe

conferem o viés neobarroco conforme foi pensado por Glissant.

No tocante à cultura afro-brasileira vivenciada pelas rezadeiras negras, na metáfora

de “Próspero e Caliban” pensada por Boaventura dos Santos Sousa (2003) o jogo de espelhos

com a cultura do colonizador se constituiu como uma influência mútua, pois tanto as agentes

populares foram influenciadas desde o catolicismo colonial como também o catolicismo

recebeu traços da cultura africana e da história do negro no Brasil, como é o caso da devoção

a Nossa Senhora Aparecida, uma Virgem Negra que se tornou símbolo desde o catolicismo

colonial da luta contra a escravidão; da devoção da Beata Nhá Chica, negra e filha de escrava,

a Nossa Senhora da Conceição, uma devoção dos brancos, quando o comum a sua época seria

a devoção a Nossa Senhora do Rosário, protetora dos negros, segundo Maria do Carmo

Nicollielo Pinho ao citar Prof. Antônio Gaio (PINHO, 2016); e das Irmandades de Nossa

Senhora do Rosário dos Homens Pretos, herança do catolicismo português que, apesar de ser

uma maneira de disciplinar os negros libertos ou cativos nas regras católicas, branqueando-os

no sentido dado por Fanon (2008) também se tornou uma organização de resistência.

Percebemos que a linha que separa o colonizador do colonizado, o dominante do dominado é

muito tênue.

O antagonismo dessas identidades conflitantes é produzido pela dominação geradora

das desigualdades. Nesse complexo contexto, as combinações se tornam conflitantes, e as

identidades subalternas encontram meios de resistir, atitude constitutiva desse tipo de

identidade. Constrói-se um jogo de poder entre superioridade e inferioridade em que

acontecem trocas entre os dois posicionamentos. Nessa compreensão:

A identidade é originariamente um modo de dominação assente num modo

de produção de poder que designo por “diferenciação desigual”. As

identidades subalternas são sempre derivadas e correspondem a situações em

que o poder de declarar a diferença se combina com o poder para resistir ao

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poder que a declara inferior. Na identidade subalterna a declaração da

diferença é sempre uma tentativa de apropriar uma diferença declarada

inferior de modo a reduzir ou eliminar sua inferioridade. Sem resistência não

há identidade subalterna, há apenas subalternidade (SANTOS, B., 2003, p.

30).

Nessa encruzilhada de identidades, há uma dinâmica de afirmações e negações, de

disputas entre a identidade dominante e a subalterna nuna tentativa de anulação desta última.

Assim a identidade subalterna consegue se inserir no fator político e social denominado

multiculturalismo e por meio dele entar na disputa com a identidade dominante, esta que

segundo o autor também só se torna fato político a partir dessa disputa. O colonizador em um

dado momento histórico foi também colonizado, dominado. Nesse sentido, o colonizador e o

colonizado, o “Próspero e o Caliban” tecem suas identidades ambivalentes elaborando o que

Boaventura dos Santos Sousa (2003) define como interidentidade, uma construção em

fronterias tênues, um limiaridade que elabora o que o autor chama de identidade originária.

Em sua compreensão:

A identidade dominante reproduz-se assim por dois processos distintos: pela

negação total do outro e pela disputa com a identidade subalterna do outro.

Quase sempre o primeiro conduz ao segundo. A identidade dominante e

mesmo matricial da modernização ocidental – Próspero/Caliban,

civilizado/selvagem – reproduziu-se inicialmente pelo primeiro processo e

depois pelo segundo. Em diferentes jogos de espelhos, os dois processos

continuam a vigorar. Do ponto de vista do diferente superior, porém, a

identidade dominante só se transforma em fato político na medida em que

entra em disputa com identidades subalternas. É esse o fato político que hoje

designamos por “multiculturalismo”. Em qualquer dos seus modos de

reprodução a identidade dominante é ambivalente, pois mesmo a negação

total do outro só é possível mediante a produção ativa da inexistência do

outro. Essa produção implica sempre o desejo do outro na forma de uma

ausência abissal, de uma carência insaciável. Tal ambivalência está bem

patente na representação da América no início da expansão europeia. A

maioria dos relatos da descoberta do novo continente e das narrativas de

viagens reflete uma peculiar fusão de imagens idílicas, utópicas e

paradisíacas com as de práticas cruéis e canibalísticas dos nativos. De um

lado, a natureza luxuriante e benevolente; do outro, a antropofagia repulsiva

(SANTOS, B., 2003, p. 30).

Como a identidade se origina num jogo de dominação e resistência, num processo de

diferenciação desigual em que uma busca subjugar a outra, é preciso que a identidade

declarada como inferior, no caso a afro-brasileira, se combine com o poder de quem assim a

declarou para não perder sua identidade. Não podemos demarcar uma linha abissal entre a

cultura do Velho Mundo, a dos nativos indígenas que habitavam o Novo Mundo e as culturas

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trazidas pelos povos diaspóricos. Assim se constrói o “multiculturalismo”, numa fundação

política da identidade, expressão essa tão comum nos estudos da cultura e que no sentido dado

por Boaventura de Sousa Santos se reveste da disputa entre a identidade dominante e a

subalterna. Nesse sentido, a cultura afro-brasileira, embora historicamente posicionada como

uma identidade subalterna foi elaborada por meio da resistência, não havendo dessa forma

subalternidade, pois a cultura dos negros não se construiu por acaso nem tão pouco de forma

totalmente submissa. Ela foi pensada para que não se apagassem as raízes ancestrais, a

memória da pátria deixada à força pelo tráfico negreiro e em solo brasileiro pelas tentativas

colonizadoras de se eliminar as marcas da identidade pela escravidão e pela conversão forçada

ao catolicismo. Por isso o sincretismo e a associação dos orixás aos santos e as práticas

católicas.

As histórias de vida das rezadeiras negras e de muitos agentes da cultura afro-

brasileiras, seja ela popular ou erudita, oral ou escrita, são resultado da transmissão das raízes

ancestrais constantemente reelaboradas pelos contextos de vida, pelas novas experiências

vividas socialmente no grupo. Como a identidade africana foi trazida sob os traumas

históricos da diáspora e do deslocamento e chegada ao Brasil sob a condição desumana da

escravidão, a luta contra a eliminação da identidade ancestral encontrou nas manifestações

orais e nas narrativas de vida a possibilidade de existir, de rememorar os antepassados e

reelaborar em solo brasileiro a identidade que atravessou o Atlântico e se hibridizou com a

cultura do colonizador e também dos nativos indígenas sem perder seus traços mais

peculiares. Como as rezadeiras negras têm no seu grupo uma função social que se assemelha a

dos griots, de transmissão da cultura da sua tribo, das tradições orais rememorando a história

e reacendendo o sentimento de identidade.

Bosi traz à tona Sartre quando afirma que a velhice é um irrealizável, isto é, “uma

situação composta de aspectos percebidos pelo outro e, como tal reificados (um être-pour-

autruí), que transcendem nossa consciência” (BOSI, 2007, p. 79, grifo da autora). Essa

compreensão também é aplicada à identidade negra, pois tanto a velhice quanto a negritude

nunca poderão ser assumidas enquanto exterioridade de forma existencial, isto é, tal como o

são para o outro, que está de fora da pessoa negra e do velho. Assim a velhice “É um

irrealizável como a negritude: como pode o negro realizar em sua consciência o que os outros

veem nele?” (BOSI, 2007, p. 79). Nessa comparação, fatores naturais como são a cor da pele

e a velhice são vistos com preconceito pelo olhar externo, pela visão do outro que não tem a

compreensão plena de quem vive na pele os conflitos de sua identidade, como também o

negro e o velho não assimilarão em suas consciências a identidade que lhes é imposta de fora.

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A identidade das rezadeiras enquanto agentes da cultura popular, das raízes

ancestrais do seu povo, é construída do âmbito individual para o social, coletivo, pois é no

reconhecimento dos membros do seu grupo social que se concentra com seu papel. Essa

construção tem como base a aceitação dos outros, como referência, os seus critérios de

aceitabilidade. No caso das rezaderias, a sua função de rememorar o passado do grupo,

reelaborando-o a partir da sua vivência, do seu cotidiano, em que exercem também a função

de narradoras, conselheiras, transmissoras da cultura oral afro-brasileira, dá sentido de

existência a sua prática, que não é uma função do passado, mas uma manifestação que se

atualizou e se tornou híbrida para uma melhor aceitação, fundindo-se com o catolicismo

branco e alguns rituais indígenas. Nessa negociação com os membros da sua comunidade, é o

reconhecimento de sua autoridade que legitima o seu papel e inscreve sua identidade pessoal

na coletividade. Dessa forma:

Se assimilamos aqui a identidade social à imagem de si, para si e para os

outros, há um elemento dessas definições que necessariamente escapa ao

indivíduo e, por extensão, ao grupo, e este elemento, obviamente, é o Outro.

Ninguém pode construir uma autoimagem isenta de mudança, de

negociação, de transformação em função dos outros. A construção da

identidade é um fenômeno que se produz em referência aos outros, em

referência aos critérios de aceitabilidade, de admissibilidade, de

credibilidade, e que se faz por meio da negociação direta com outros. Vale

dizer que memória e identidade podem perfeitamente ser negociadas, e não

são fenômenos que devam ser compreendidas como essências de uma pessoa

ou de um grupo (POLLACK, 1992, p.5).

No exercício da função de narradoras do seu grupo, é na memória do passado

reelaborada de acordo com o contexto do presente que as rezadeiras encontram sentido em

sua atuação na comunidade. Jovens, elas se dedicaram também aos trabalhos braçais e

domésticos, como dona Tomásia que era cozinheira na casa do senhor Gaudêncio Torquato,

mas, ao longo da vida e da convivência como dona Naldi, nos momentos mais íntimos exercia

a função de lembrar, de rememorar a sabedoria popular aprendida com os seus antepassados,

não deixando apenas para a velhice avançada o momento de ensinar a sua neta o ofício de

uma vida inteira. Quando as atividades cotidianas lhe permitiam, as rezas e orações iam sendo

ensinadas gradativamente à neta Naldi, como forma de perpetuar a memória ancestral e

transmitir a cultura da sua gente. Em sua história de vida, o cotidiano de trabalho deu a

narrativa e a memória um caráter artesanal, como metaforizou Walter Benamin (1993) ao

associar esse caráter às narrativas das experiências de vida, tecidas ao longo do convívio, nas

horas de trabalho, de folguedo, de descanso e de religiosidade. Justamente nas horas de

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descanso é que a memória de dona Tomásia aflorava e sua função de transmissora da

memória e da identidade cultural do seu povo afrodescendente se revestia de sentido, de

significado. Nessa divisão simbólica do tempo social:

Há um momento em que o homem maduro deixa de ser um membro ativo da

sociedade, deixa de ser um propulsor da vida presente do seu grupo, neste

momento de velhice social resta-lhe, no entanto, uma função própria: a de

lembrar. (BOSI, 2006, p.63)

Rememorar é retomar o chão da memória onde se ancora a identidade, dando-lhe

firmeza. Os marcos do tempo biográfico, como define Ecleá Bosi (2007) sobre os pontos

significativos das histórias de vida, são localizados na memória de acordo com a sua

importância, como o papel das narrativas, dos ensinamentos e experiências transmitidos pelos

antepassados, como o legado recebido pela rezadeira Naldi de sua avó dona Tomásia, a

descoberta do seu dom, o reconhecimento da sua função pelos membros do seu grupo social,

fato que legitima a sua autoridade e dá sentido ao seu papel de agente da cultura popular afro-

brasileira. É esse o laço que confere à rezaderia negra o seu lugar social na comunidade, de

transmissora da memória ancestral, de continuadora de uma prática que é característica do seu

povo afrodescendente e que apesar da influência católica soube resistir sem perder as suas

marcas identitárias. Tem razão Montenegro (1994, p. 19) ao afirmar que: “A memória

coletiva de um grupo representa determinados fatos, acontecimentos, situações; no entanto,

reelabora-os constantemente. Tanto o grupo como o indivíduo operam por transformações”.

Diversas transformações históricas e sociais influenciaram a atuação das rezadeiras

negras, numa riqueza simbólica e cultural que reúne traços característicos dos três principais

povos formadores da nação brasileira, o português, o indígena nativo e o negro africano. Sob

o signo dos três povos formadores da identidade brasileira, a memória das rezadeiras negras

representa a história do seu povo presente e antepassado, numa constituição identitária que, ao

longo dos acontecimentos, como o tráfico, a escravidão, a colonização, a abolição, o racismo

histórico sofrido, a imposição do catolicismo, todos esses fatos foram reelaborados pela

memória coletiva dos afrodescendentes que têm nas rezadeiras uma voz que reaviva a

identidade coletiva e se inscreve no cotidiano da sua gente, numa narrativa simbólica que por

meio das rezas rememora a história dos ancestrais e contribui para o reconhecimento da

identidade cultural pelos membros do grupo como também pelas outras culturas.

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3 A PESQUISA DE CAMPO

Se nunca deixou Natal por outra cidade, Cascudo no entanto, foi um viajante infatigável. Percorreu a

África e a Ásia muitas vezes, em busca de raízes da cultura brasileira. Seu “provincianismo

incurável” o levou a recusar proposta de grandes cargos, vagas em academias, cadeiras em

universidades famosas.

Não poder mais viajar não significa muito para quem “navegou demais” e aproveitou bem as

viagens. “Fui ao Índico, à Europa, oito vezes à África. Sempre em função de estudos, pesquisas.

Estudei a alimentação, a música, a dança, os mitos, a tradição, o idioma. Vivi a vida africana. Não

como branco civilizado, mas como negro honorário. Chegava num aldeamento negro e tinha uma

cadeira e um tapete. Era para o visitante.Eu cumprimentava e sentava. Resultado: domínio absoluto.

“Um brasileiro feliz. É o que sou”, confessa. “Compreendi minha vida e vivo aminha vida. Não vivi a

vida dos outros. Estudei o que amava. Pesquisei e discuti sobre os assuntos que queria escrever.

(OSAIR VASCONCELOS, 2008, p. 39)

3.1 A comunidade afro-brasileira do Quati

O sítio Quati se encontra citado dentre os topônimos do Estado do Rio Grande do

Norte pelo folclorista Luís da Câmara Cascudo em sua obra Nomes da Terra (1968). Essa

toponímia potiguar registra e descreve os lugares cujos nomes próprios concentram as nossas

histórias, memórias e identidade cultural. Como um lugar do município de Luís Gomes citado

no estudo de antropologia cultural e etnografia de Cascudo, historicamente o Quati é

localizado no lado esquerdo da estrada carroçal, e a Lagoa do Mato, localizada no lado direito

com referência à saída da cidade. Também a Revista do Instituto Histórico e Geográfico do

Rio Grande do Norte, ao apresentar os fatos históricos da formação do município de Luis

Gomes e suas características geográficas, cita entre as suas lagoas, a “‘Do Matto’, com 300

metros de cumprido por 250 de largo” (LIMA, N., 1990, p. 223). O nome da lagoa deu

origem ao nome do sítio Lagoa do Mato. São conhecidas como comunidades rurais

predominantemente afrodescendentes. Na cidade, seus habitantes ficaram conhecidos como os

“negros do Quati”, não havendo nenhuma divisão entre quem habita o Quati ou da Lagoa do

Mato.

Segundo a professora Maria Socorro de Figueirêdo, em mesa-redonda ocorrida no

dia 7 de novembro de 2016 no I Simpósio de Nacional de Literaturas de Língua Portuguesa

(SINALLIP), ocorrido no Campus Avançado “Professora Maria Elisa de Albuquerque Maia”,

da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte em Pau dos Ferros, que teve como tema

Figurações afro-brasileiras na cultura e na literatura, os negros do Quati eram conhecidos

como “Negros do Pote” e antigamente casavam-se entre si. Essa denominação certamente

vem da fabricação de louça, potes de barro fabricados pelos mesmos para serem vendidos na

comunidade e nas feiras, arte afro-brasileira conhecida também como louça de Santa Maria

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segundo a professora, e produzida pelos negros, fato descrito por Jorge quando em seu livro

descreve que na histórica feira-livre da cidade de Luís Gomes, na obra chamada de Bom Jesus

“Em torno do Mercado os loiceiros, vendedores da linda cerâmica Santa Maria, flandeiros

com a suas produções de bacias, lamparinas, panelas caçarolas, ralos” (2015, p. 32). Outra

forte característica dos membros da comunidade é o fato das mulheres andarem com vasos de

barro ou latas na cabeça com um equilíbrio peculiar e não derrubarem. Iam a pé até a cidade

de Luís Gomes ou andavam pela própria comunidade carregando água ou mantimentos, como

o fazia a senhora Maria Egídia, conhecida como Maria Gida, artesã do barro, louceira, como é

chamada no sertão a artesã que fabrica peças de barro e as vende, “loiceira” na variação

linguística local, segundo depoimento da professora Solange Batista. Durante os anos que

convivo com as pessoas do Quati, cheguei a ver na estrada uma senhora carregando uma

“trouxa na cabeça” num equilíbrio que só vi na região nas mulheres do Quati que realizam

essa proeza, embora algumas já sejam idosas.

Diversos narradores e poetas populares, como o senhor Joaquim Alves de Fontes,

conhecido como Joaquim de Benvinda, contam a memória deste povo, de seus habitantes

cujos nomes são metonímias da história: Pedro Ventura, Maria Nova, Mexica, Mãe Nila, que

dá nome a uma associação cultural, e Mãe Faba. Inicialmente, o nosso interesse na

comunidade era confirmar a possibilidade de seus habitantes serem remanescentes de um

quilombo e realizar o tombamento. Porém, a cultura da comunidade vai além dessa

perspectiva e suas manifestações, como reflete Maria Ignez Novais Ayala (1997, p.160) ao

comentar o pensamento de Xidieh e afirmar que este em suas reflexões “sempre alerta para a

complexidade oculta numa aparência singela”. Foi essa simplicidade aparente e silenciada que

nos chamou a atenção, pois os membros da comunidade de Quati não se limitavam a meros

possíveis descendentes de escravos. Embora ainda exista a suposição de um antigo quilombo,

sem uma devida comprovação antropológica, a memória deste povo tece uma gama de

manifestações populares ricas pela sua hibridização e diálogo com a cultura colonizadora sem

deixar de resistir. O próprio nome de sua banda de música, “Afro-Serrano” denota a

consciência de uma identidade afro-brasileira. As rezadeiras e seus traços de religiosidade

ancestral continuam a ser a marca característica do lugar e de sua gente.

Devido aos traços característicos físicos e culturais do povo do Quati, as pessoas da

cidade como também pesquisadores continuam atribuindo sua origem a um possível antigo

quilombo. São pessoas acessíveis desde que não se toque indevidamente no assunto da

escravidão, pois esta se revela uma ferida histórica presente nas memórias e nas experiências

de vida dos povos afrodescendentes. Muitos negros são casados com brancos, não havendo

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impedimento para essas uniões. Alguns membros da comunidade mantêm o costume de vir à

cidade à pé, até mesmo os mais velhos, embora a presença de motos e carrros já seja

constante. Há uma capela em honra a Nossa Senhora do Carmo, fundada há algumas décadas

pela religiosa carmelita Irmã Mírian Trajano, da Congregação das Irmãs Missionárias

Carmelitas, e a senhora Juliana Fernandes moradora da comunidade de Lagoa do Mato

juntamente com membros da comunidade que realiza todos os anos a sua festa de 6 a 16 de

agosto, como também se celebram as novenas e celebrações próprias do mês de maio com

encerramento na capela. Embora estes sejam traços da religião do colonizador, a cultura afro-

brasileira tem na resistência a sua marca. Por exemplo, no ano de 2012 no encerramento do

mês de maio dedicado à Nossa Senhora, a coroação da imagem, costume na religiosidade

popular nordestina, foi substituída pela coroação da senhora negra Maria Martins Ventura,

conhecida como Aiá, numa atitude de entronização simbólica da identidade coletiva e como

forma de subversão ao catolicismo historicamente imposto.

Embora com um acesso, de certa forma, difícil, as pessoas da cidade vão sempre à

comunidade como também os membros da comunidade vão quase diariamente à cidade. Há

um intercâmbio cultural e econômico. As panelas de barro vendidas na feira dominical da

cidade por dona Rita Laurintino representavam o artesanato do lugar transmitido

memorialmente por vozes e mãos ancestrais. As rezadeiras são conhecidas na comunidade e

pelas pessoas da cidade como era Maria da Conceição Ventura, conhecida como Maria Nova

falecida em 2010, que rezava em carne “triada”, era uma excelente narradora sedentária,

pensando na esteira de Walter Benjamin (1993), pois sempre viveu na Lagoa do Mato e

conhecia cada pessoa, era chamada para dar banho em crianças recém-nascidas por medo das

mães inexperientes de “quebrar o espinhaço da criança”, conforme ouvi o seu relato na última

visita que lhe fiz em 2010. Madrinha de fogueira de muitas crianças, o que revela o seu

reconhecimento no grupo. As colaboradoras deste trabalho, as rezadeiras Ana Naldi da Silva,

Maria de Lurdes Martins da Silva e dona Cosma Maria da Silva foram escolhidas não apenas

por serem descendentes das famílias do Quati e afrodescendentes, mas pela sua representação

na comunidade. Dona Lurdes e dona Cosma residem na parte pertencente à Lagoa do Mato.

Dona Naldi viveu em outros sítios, como o São João da Serra pertencente a Gaudêncio

Torquato, pai do jornalista citado neste trabalho, e na cidade. Hoje reside em Pau dos Ferros

devido à seca e à falta de empregos em Luís Gomes. Porém, não apenas o fato de ser

descendente dos negros do Quati/Lagoa do Mato, mas de sua voz-memória ser marcada pela

autoridade ancestral. Quando vem de Pau dos Ferros a Luís Gomes, visita o Quati dispondo as

suas rezas ao seu povo e a população da cidade e de outros sítios, conforme lhe foi ensinado

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que o dom recebido e a função para a qual foi eleita no grupo deve ser exercida em favor dos

seus e de qualquer pessoa que lhe procurar.

Dona Lurdes e dona Cosma rezam nas pessoas da comunidade e em toda pessoa que

as procuram, seja do seu grupo social, de comunidades próximas ou da cidade. É o seu dever

e não podem negar auxílio a quem lhes solicita. Cada uma tem a sua função, os problemas

para os quais têm a reza. Das rezadeiras mais antigas, o povo do Quati tem a memória e a

gratidão pela função que desempenharam, como pela falecida há muito tempo a senhora

Joaquina Catingueira, por dona Joana Barba conhecida também como Joana Baiba, senhoras

negras que dedicaram uma vida à função que lhes foi confiada. Das parteiras, a comunidade

rememora o ofício de dona Leonila, conhecida como Mãe Nila, e de Mãe Fába, matriarcas

não só de suas famílias, mas de todo o grupo.

O meu interesse inicial pelo Quati teve início nas aulas de Literatura Brasileira

durante o Ensino Médio no Colégio Comercial Luís Gomes entre os anos de 2000 a 2002 com

a professora Solange Batista. Como proposta de trabalho, ela nos pediu que entrevistássemos

pessoas antigas da cidade e das comunidades rurais. Em entrevista ao poeta popular Joaquim

de Benvinda, este narrou a história dos negros do Quati, de Pedro Ventura e da dificuldade em

conversar com eles sobre o passado da escravidão. Havia histórias de pessoas, de

antepassados, que possivelmente tinham marcas no corpo e falar deste assunto era doloroso,

as feridas históricas ainda estavam muito vivas nas histórias de vida desse povo. Nas aulas de

Literatura, a professora Solange sempre retomava a história dos negros do Quati,

principalmente quando a escola literária trabalhada permitia o diálogo, como a poesia

romântica de Castro Alves, que tratava da dor dos negros escravizados. Essa experiência foi a

base para um futuro trabalho acadêmico concretizado por meio desta tese que me permitiu

revisitar a cultura e os seus agentes cujo primeiro contato se deu ainda na educação básica.

As moagens no Quati, no engenho dos Hermógenes, família da professora Solange,

eram uma situação social propícia à narração e à cultura dos negros era sempre rememorada

por trabalhadores, alunos e visitantes. Como também o período em que participamos de um

projeto intitulado Viagem Nestlé pela literatura do qual não me afastei, embora no terceiro

ano do ensino médio, minha professora de Língua Portuguesa fosse outra e Literatura

Brasileira tenha sido retirada da grade curricular. No diálogo possível entre a literatura erudita

e a popular, a história oficial escrita e a oralidade proporcionada pelo repensar da Nova

História:

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Apesar de o currículo escolar privilegiar o cânone da literatura, a professora

conseguia relacionar a literatura erudita com a popular, e nessa se inscrevia a

literatura e a cultura dos povos do Quati. Em leituras como a da obra “Fogo

Morto”, de José Lins do Rego, em que a presença do negro é bastante

acentuada pelo autor, a professora Solange apresentava os principais

personagens do grupo social do Quati, como a Velha Totonha, narradora

criada por José Lins do Rego como metonímia dos negros contadores de

histórias que viviam nas fazendas, trabalhavam nos engenhos, e das negras

que eram amas de leite e transmitiam a sua cultura em forma de narrativas às

crianças que cuidavam. Os personagens negros do Quati, personagens reais

que transformavam suas experiências de vida em narrativas, eram parteiras,

rezadeiras, agricultores, artesãos que conheciam sua cultura ancestral e a

transmitiam, pela oralidade, ao seu povo. Como a comunidade é formada por

descendentes de negros e de brancos, criados em convívio, como no caso da

professora Solange Batista que era afilhada de fogueira da senhora Maria da

Conceição Ventura, conhecida popularmente como Maria Nova, com quem

conviveu e bebeu na fonte a cultura popular afro-brasileira, conhecendo os

rituais de rezas e benzimentos próprios dos povos negros, que faziam de

dona Maria Nova uma agente da cultura do seu povo (SILVA; FONSECA,

2017, p. 245-246).

A oralidade característica das manifestações culturais dos povos afrodescendentes, o

veio narrativo próprio dos povos negros para a transmissão memorial da cultura ancestral

estava presente nas aulas de literatura brasileira. Dona Maria Nova era a Velha Totonha das

comunidades de Quati e Lagoa do Mato e sua voz foi transplantada da sua comunidade para a

sala de aula que também se tornou sua comunidade de ouvintes através dos relatos e

experiências repassados pela professora Solange Batista. Após o trabalho em sala de aula, os

alunos conheceram a comunidade e sua narradora. Fomos até a Velha Totonha e seu

“engenho” narrativo conhecer as muitas histórias do seu povo. Nessa proposta de trabalho

com a literatura:

Assim, a professora conseguia incluir a literatura e a cultura afro-brasileira

na sala de aula, pois dona Maria Nova, sempre de rosário no pescoço, como

herança colonial das irmandades de Nossa Senhora do Rosário dos Homens

Pretos, tornava-se tão interessante aos olhos dos alunos, quanto a Velha

Totonha de José Lins. Suas histórias encantavam as aulas, que se

diferenciaram por ocorrerem em campo, em vistas à residência de dona

Maria, em entrevistas feitas pela professora e pelos alunos durante o projeto

Viagem Nestlè pela Literatura, ocorrido entre os anos de 2000 a 2002. Um

tema evitado durante as entrevistas, principalmente pela convivência da

professora com membros da comunidade, era a escravidão, pois essa página

da história se constitui como um trauma na memória coletiva, trauma que

não se dissocia da cultura negra, conforme Paul Gilroy (2002) em sua obra

‘O Atlântico Negro’. Essa experiência pedagógica oportunizou que os alunos

do município de Luís Gomes conhecessem a cultura afro-brasileira local,

desconhecida até então nas escolas, e que os alunos provenientes dessa

comunidade pudessem reconhecer a importância de sua cultura, elaborando

dessa forma um sentimento de pertencimento a uma cultura historicamente

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eliminada das escolas e da sociedade em geral. Nessa metodologia de

associar a literatura erudita à popular, o currículo nacional aos temas locais,

inovando os conteúdos das aulas para fora dos muros da escola, numa

pesquisa etnográfica por meio da história oral, a professora Solange Batista

não se restringiu às datas comemorativas em que os povos afrodescendentes

eram lembrados de forma vaga e superficial, mas como grupo não apenas

étnico, mas cultural (SILVA; FONSECA, 2017, p. 246-247).

Ressaltamos a contribuição da professora e de sua perspectiva de ensino para o

surgimento futuro deste trabalho, pois a interação com a literatura e a cultura sejam elas orais

ou escritas, eruditas ou populares, tem uma importante função na elaboração de uma

identidade cultural, desde a local até a nacional. Principalmente, quando estas literaturas e

cultura foram elaboradas pelos povos afrodescendentes em resistência ao silêncio e ao

massacre que lhes foi imposto ao longo da história. Muito da literatura considerada erudita,

como a do escritor José Lins do Rêgo, apresenta a contribuição dos narradores negros, como a

Velha Totonha, na obra Invenção e Memória, de Lygia Fagundes Telles (2000) no conto “Que

se chama solidão” em que a escritora narra a participação em sua história de vida da sua

pajem Maricota, negra que embalou a menina com suas histórias. Trazer à tona estas

influências na escola é reavivar a importância do negro na formação da cultura e da identidade

brasileira. Nesse sentido:

Embora os negros africanos tenham sido escravizados, sofrido maus-tratos e

submetidos a condições desumanas, jamais deixaram de propagar sua arte,

cultura, dança, e durante um longo período, contribuíram de modo

significativo para a construção da identidade brasileira. Desse modo, o da

cultura afro-brasileira e as discussões sobre os aspectos históricos e literários

afro-brasileiros em sala de aula contribuem para uma conscientização acerca

das relações étnicas e raciais. Assim torna-se fundamental que professores

trabalhem a história, a cultura afro-brasileira e indígena no âmbito

educacional, para que se discuta a importância e a influência desses povos

para a formação cultural brasileira, e se desconstrua o ponto de vista

negativo do negro no Brasil (SILVA; FONSECA, 2017, p. 237).

Também nas pesquisas de campo para a Lagoa de Pedra, para a feira de Cultura

Metamorfose Sertaneja, no final do ano de 2007, do Colégio Municipal Padre Osvaldo,

quando eu já estava graduado em Letras e continuava professor temporário de Língua

Portuguesa, além de aluno do Curso de Especialização em Literatura e Estudos Culturais,

durante a passagem pela estrada que divide o Quati e a Lagoa do Mato, a professora Solange

Batista que nasceu e foi criada na Lagoa do Mato, sempre mostrava as casas das pessoas

antigas e representativas da comunidade, retomando vozes ancestrais, histórias, do lugar.

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No projeto pedagógico em comemoração ao centenário de nascimento do escritor

João Guimarães Rosa intitulado “Caravana da Leitura percorre sertões e veredas da

Linguagem”, no início de 2007, junto com a professora Solange e demais professores de

Língua Portuguesa como eu, Sílvia Pinheiro e Ana Maria Limão tivemos contato com muitas

lendas e narrativas coletadas pelos alunos e assim muitas histórias sobre os povos negros do

Quati e da Lagoa do Mato. Dentre os narradores ouvidos pelo nosso grupo nesse projeto,

estavam dona Lucília Fonseca, parteira, dona Raimunda de Juliana e “Outro contador é

Joaquim Alves de Fontes, conhecido como Joaquim de Benvinda, que além de contar

histórias, é poeta, apesar de pouco ler e escrever, compõe cantos para aboiar” (FONSECA;

CARVALHO; RODRIGUES; RODRIGUES, 2011, p. 26). Este narrador transmite a memória

dos povos negros do Quati e da Lagoa do Mato por ter nascido e se criado nessas

comunidades e convivido por muito tempo com suas histórias e experiências de vida. Na

perspectiva da feira de cultura, o olhar sobre as rezadeiras do Quati se tornou um rico cabedal

para um futuro trabalho de pesquisa, pois:

As pesquisas realizadas na preparação do evento mostraram que a tecnologia

moderna chega ao sertão, mas as práticas populares continuam a existir e

fazer parte de muitas pessoas do município. Por exemplo, as mesmas pessoas

que procuram os médicos, também procuram as rezadeiras e benzedeiras em

casos de doenças, bem como as parteiras em caso de gravidez. A televisão,

moderna contadora de histórias, que conta e mostra ao mesmo tempo,

Investigações pedagógicas: reflexões sobre experiências educativas convive

com as histórias narradas na zona rural e também na zona urbana como

forma de passatempo e de ensinamento de valores, nas calçadas ou alpendres

das casas dos contadores”. (FONSECA, et. al. ,2011, p. 21-22).

Na dinâmica da história, conhecemos no final de 2007, a pesquisa Memória,

narrativa e identidade regional: um estudo sobre os contadores de histórias do Alto Oeste

Potiguar, coordenada pela professora Lílian de Oliveira Rodrigues, e que também se

constituiu como um passo decisivo no despertar desse trabalho. Mais tarde no decorrer de

2008, com uma parceria da pesquisa do grupo da professora Lílian Rodrigues com os

professores de língua portuguesa do Colégio Municipal Padre Osvaldo, nos unimos para

coletar estórias a partir das histórias de vida dos contadores, entre estas as narrativas dos

contadores sobre os povos do Quati, que nos foram repassadas pela professora Solange nos

nossos debates, embora não tenha dado tempo realizar a pesquisa na comunidade.

A partir do ano de 2012, por razões particulares, passei a frequentar a casa de dona

Naldir na cidade de Luís Gomes e de dona Lurdes na comunidade de Lagoa do Mato. Ao

receber os ritos de benzimentos, percebi a riqueza da oralidade subjacente a rezas e orações

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que não se limitavam à repetição de gestos e palavras. Havia uma complexa situação social

que justificava sua função inscrita na coletividade, baseada numa rede de trocas simbólicas e

sociais. O poder simbólico que lhes é atribuído provém da tradição e da memória.

Inicialmente, mesmo antes deste projeto de pesquisa surgir, dona Lurdes e dona Naldi já eram

minhas rezadeiras e eu já conhecia empiricamente os sujeitos deste trabalho. Geralmente

frequentava suas casas, na cidade, a de dona Naldi e, no sítio Lagoa do Mato, a de dona

Lurdes, às segundas-feiras, quartas e sextas, dias propícios aos ritos. Quando dona Naldi

viajava, era dona Lurdes que eu procurava para as rezas. Na maioria das vezes, suas casas

estavam cheias de pessoas, adultas e crianças à procura das rezas. Percebi que, apesar da

distância dos séculos da diáspora africana até os dias atuais, a religiosidade ancestral se

mantém cada vez mais viva, não numa perspectiva folclórica, de manutenção do passado num

presente apenas por apreciação exótica, como muitas danças e festas. O papel social das

rezadeiras seja nas cidades ou nas comunidades rurais é uma retribuição pelo dom que

receberam e pela tradição que lhes foi confiada. Segundo Gutemberg Costa (2009, p. 246)

“Elas não cobram pelo seu trabalho. Ninguém vá a uma rezadeira pensando que elas vão

cobrar pelos seus serviços. Não se fala em dinheiro”.

Costa ressalta a gratuidade do exercício da função das rezadeiras. Que ninguém

pague pelos seus rituais, assim como jamais ouvimos falar de um narrador popular legitimado

por seu grupo que cobrasse pelas suas narrativas, a não ser os que já folclorizados realizam

apresentações culturais A função de rezadeira, enquanto guardiã e transmissora da memória

do grupo se baseia na reciprocidade, na lógica social do dividir que rege as culturas populares.

E a retribuição do dom divino conforme acreditam terem recebido e dos ensinamentos que

lhes foram transmitidos pelos antepassados que motivam o compromisso das rezadeiras, como

exerceu sua função de cuidar dos mortos dona Maria José segundo Rodrigues (2006).

Vejamos:

Nas culturas populares, pude observar que essas trocas se constituem

baseadas na reciprocidade. Sendo assim, é possível tecer relações entre a

atitude de prestar, de forma beneficente, seu esforço de encaminhar os

mortos e a instituição de um dom, que é uma dádiva divina. Dessa forma,

como a função de curar com os benzimentos, cuidar dos mortos também

seria assumir um compromisso de exercer essa prática em favor dos seus e

daqueles que dela necessitam (RODRIGUES, 2006, p.252).

A função de rezadeira é intrínseca a de narradora. Rodrigues também esclarece em

seu trabalho as diferentes identidades da artista popular e a complexidade do seu papel social,

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pois Dona Militana é o nome de registro civil e artístico da romanceira, enquanto na

comunidade ela era conhecida como Dona Maria José. No estudo de Costa (2009), a agente

da cultura popular é apresentada com o nome de Militana, enfatizando que as duas atividades

de rezadeira e romanceira não se separam, pois as rezas se inscrevem nas narrativas. Segundo

Costa:

Dona Militana que é conhecida como romanceira, canta/conta o seu

romance, e é também uma rezadeira, embora não seja tão conhecida como

tal, pois a sua fama maior é mesmo a de romanceira. Percebemos ainda que

essas duas atividades, estão de certo modo entrelaçadas, uma vez que o

romanceiro tem suas origens na Idade Média, época em que nos traz motivos

de ordem religiosa. A religiosidade popular, as superstições, as crendices,

quem não as tem? (COSTA, 2009, p.246):

Dona Militana enquanto exímia conhecedora da cultura popular do seu povo reuniu

em sua atuação as funções de romanceira e de rezadeira, pois as narrativas, seus conselhos e

lições de vida, estão presentes nas atividades das rezas como veremos nos relatos de vida das

colaboradoras deste trabalho. A narrativa, seja em forma de romance, relato de vida, contos

orais populares, histórias da vida dos santos, traz as marcas da religiosidade e do universo

cotidiano do narrador, principalmente se este for um rezador ou uma rezadeira. Para o autor, a

religiosidade popular é constitutiva da identidade da artista. Como pudemos testemunhar no

convívio com as rezadeiras, o momento das rezas é sempre acompanhado de narrativas, de

lições de vida e conselhos, não se restringem às rezas e orações. A memória do grupo, a

transmissão das experiências é o contexto em que as rezas se inserem. Elas não se constituem

como um objeto isolado, uma manifestação à parte da dinâmica social. Como os descendentes

da África historicamente sofreram a marginalização da sua cultura, suas histórias de vida

foram, ao longo do tempo, silenciadas, numa tentativa de eliminação simbólica de suas

identidades. Seus sofrimentos e traumas gerados pelo contexto colonial da escravidão não se

destacam na história oficial, é na tradição oral que são transmitidos e encontram espaço de

resistência.

Conforme Fanon (2008), o conflito de muitas culturas negras no contexto pós-

colonial é branquear ou desaparecer. Esse desaparecimento passa pela violência do

silenciamento de suas histórias de vida, da omissão da contribuição dos povos

afrodescendentes para a cultura e a história do Brasil. Branquear no contexto das rezadeiras

do Quati foi todo o processo de cristianização dos negros, de imposição do catolicismo

português hoje vigente nas comunidades. Porém como forma de subversão à religião

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colonizadora, as rezas e ritos, envolvidos numa atmosfera de literatura oral e de memória,

contribuem para o reconhecimento do viés africano de suas identidades como uma maneira de

atualizar o passado ancestral com a vivência do presente. Apesar de posicionada como uma

cultura subalterna e marginalizada diante da branquitude hegemônica, conforme Duarte

(2012), que, da mesma forma que o negro apresentado pelo olhar de autores brancos se

representa como estereótipo, também a sua religiosidade revestida de traços africanos e

elaborada de maneira que os discursos de centro do branco hegemônico e católico não

prevaleça, é marginalizada e considerada muitas vezes como diabólica.

Nesse sentido, o papel social das rezadeiras negras numa comunidade

afrodescendente atua não somente no serviço que desempenham em ajudar os doentes, curar

mal-olhados, mas principalmente na elaboração da memória cultural do seu povo, num jogo

de trocas simbólicas em que elaboram também as suas identidades. Segundo Sebastião

Marques Cardoso (2014, p.90), “Em sujeitos colonizados ou colonizadores, reside, na base

constitutiva da identidade, um desejo de ocupar o lugar do Outro, de modo que essa

identidade é inicialmente construída com base nessa ‘relação’ conflituosa com o sujeito

externo.” Hibrididizar é caminhar na direção do outro. Assim, pensando ainda na esteira de

Fanon (2008) em que a identidade negra caminha em direção ao outro, ao elemento de fora da

sua cultura, as rezadeiras não desejam ocupar o lugar desse outro, mas ao construírem uma

cultura híbrida no sentido dado por Canclini (1997), misturando elementos católicos com

elementos africanos ancestrais, inserindo traços que formam o viés afro-brasileiro, constroem

uma identidade complexa com representações voltadas para o branco e para o negro. Essas

duas dimensões da identidade, conforme Cardoso (2014), uma voltada para o branco e outra

para o negro, é o núcleo complexo desse jogo em que se situa a identidade dessas mulheres

negras e de condição humilde numa sociedade ainda marcada pelos preconceitos racial e

cultural. Católicas, essas mulheres não se declaram membros de religiões de matrizes

africanas vivenciadas por grande parte dos afrodescendentes do Brasil, como a umbanda e o

candomblé, e a religião católica foi historicamente uma imposição para branquear a

religiosidade ancestral e eliminar a religião que atravessou o Atlântico.

Assim, pensarmos as relações entre a globalização e a “construção de um outro

mundo, mediante uma globalização mais humana” (SANTOS, M., 2006, p. 10) é

compreendermos como os contextos históricos dos povos afrodescendentes no Brasil

propiciaram o surgimento de novas manifestações culturais em novos espaços, construindo

uma nova história para esses povos cuja característica principal é a misturas de culturas.

Assim:

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Considerando o que atualmente se verifica no plano empírico, podemos, em

primeiro lugar, reconhecer um certo número de fatos novos indicativos da

emergência de uma nova história. O primeiro desses fenômenos é a enorme

mistura de povos, raças, culturas, gostos, em todos os continentes (SANTOS,

M., 2006, p. 10).

É nesse fenômeno primordial na construção de uma nova história, dessa mistura

intercontinental de culturas que se inscreve a função social das rezadeiras, principalmente

porque a maneira como agem e os traços religiosos e culturais que apresentam são singulares

por serem oriundos e próprias da história do Brasil.

A atuação das rezadeiras evidencia a cultura do negro, dá voz a sua identidade. Nesse

contexto, a comunidade afro-brasileira do Quati possui uma riqueza cultural que rompe o

silêncio hegemônico a que foram submetidos os afrodescendentes. Formada por

características que unem a África ao Brasil, com traços historicamente tecidos para compor a

afro-brasilidade, as manifestações culturais nos mostram a importância dos povos negros na

resistência de suas identidades. Sua memória transmitida oralmente pelas rezadeiras reaviva

uma cultura que, da diáspora africana até os dias atuais, não apenas resgata o passado, mas se

ressignifica e subverte a cultura branca hegemônica, elaborando a face de um povo que se

representa em diálogo com os traços colonizadores sem perder de vista seus traços mais

significativos.

Na compreensão da memória das rezadeiras do Quati e do seu diálogo com o

catolicismo, religião oficial do colonizador, o signo sincretismo é entendido como uma fusão

dos elementos e manifestações de duas religiões com adaptações de uma a outra. No caso dos

rituais das rezadeiras, estes se inscrevem melhor no conceito de culturas híbridas abordado

por García Canclini (1997), pois estas manifestações culturais não atravessaram o Atlântico

negro nem os séculos de forma estática, como também não foram assimiladas de forma

passiva. Daí a capacidade dos agentes das culturas populares, transmissores e narradores de

uma memória ancestral que se atualiza constantemente, de uma cultura que se branqueia,

compreendendo na esteira de Fanon (2008) para não desaparecer, como ocorreu com o

sincretismo da religiosidade africana com a católica portuguesa, para que a cultura trazida da

África pudesse sobreviver e tivesse a possiblidade de ser transmitida e rememorada. O

sincretismo se constituiu como uma negociação cara com o branqueamento da cultura

africana, com prezuízos para as raízes ancestrais, mas foi uma estratégia de sobrevivência que

permitiu o não apagamento do legado africano e a continuação dos seus ofícios ligados aos

elementos mágicos e ao culto dos orixás em solo brasileiro, ressignificados como pais e mães

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de santo, rezadores e rezadeiras. Apesar da dominação colonizadora, o sincretismo tem o seu

caráter de resistência para a preservação dos traços culturais da identidade africana e sua

reelaboração como identidade afro-brasileira.

Na obra Culturas Híbridas, estratégias para entrar e sair da modernidade, Garcia

Canclini reflete sobre o pensamento predominante de que as culturas populares permanecem

paradas no tempo, como se os contextos históricos e sociais não se modificassem e com isso

as culturas neles inseridas. Por exemplo, as rezadeiras do Quati não recebem incentivo

governamental para continuarem a atuar em suas comunidades, como ocorre com

determinados grupos parafolclóricos que se apresentam em festivais e não atuam em

contextos reais. Tampouco se apresentam em festas da comunidade. Sua função social não se

trata de uma tradição puramente resgatada e, para o antropólogo, “O problema não se reduz,

então, a conservar e resgatar tradições supostamente inalteradas. Trata-se de perguntar como

estão se transformando, como interagem com as forças da modernidade” (CANCLINI, 1997,

p. 218).

Nesse sentido, os povos negros chegados ao Brasil conviveram com os rituais

católicos e seus símbolos como terços, crucifixos, santos de devoções. A sua cultura de buscar

curas e soluções de problemas por meio dos elementos mágicos e da utilização de plantas é

uma herança diaspórica, trazida do negro malê originado da Nigéria e que se identificavam

como mandigueiros, cuja cultura e religiosidade deram origem ao candomblé e a umbanda,

formas de religiosidade afro-brasileiras que, no passado colonial, se revestiram de um

catolicimo popular que oportunizou o seu culto. Assim:

Dos negros malés, chegado na corrente negreira, vindos da Nigéria,

assimilamos o conceito do mágico e do demônio como causadores de

doenças. Mandingueiros, segundo sua autodenominação, sabiam o segredo

das plantas afrodisíacas e de sentido mágico protecional. Mais que a magia,

desenvolveram em terras brasileiras os candomblés e macumbas que,

deturpado no tempo e no espaço, transformaram-se em verdadeira religião

miscigenada com os princípios espíritas do kardecismo.

Os portugueses, simbolizando o velho continente europeu com todas as

influências do norte-africano e da bota itálica, trouxeram para o Brasil, ainda

jovem uma medicina incipiente e mal-acabada. Os médicos da Corte do

Infante Dom João VI eram, sem dúvida, os melhores. Entretanto, os médicos

destacados para as províncias, e até os que iniciaram as práticas nas maiores

cidades, no século XVI, não passavam de cristão novos, batizados à força do

medo da fogueira inquisitorial e que alinhavam os preceitos mais

rudimentares das práticas hipocráticas ao precário conhecimento da

medicina popular que não haviam aprendido (ARAÚJO, 2003, p.21-22).

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A Igreja Católica e a Coroa fizeram uso da religião para colonizar negros e índios.

Apesar do catolicismo imposto, os curandeiros negros hibridizaram as suas crenças e rituais,

não ocorrendo uma anulação da herança dos seus ancestrais nem uma justaposição dos ritos,

uma união perfeita, mas uma subversão por meio de uma reelaboração da cultura de diáspora

aos novos contextos brasileiros. A permissão do colonizador a esse sincretismo inicial fazia

parte de uma tentativa de dominação e, desde que prevalecesse o culto católico, os negros

podiam trazer as marcas de sua cultura diaspórica. Daí a associação de divindades africanas

com os santos católicos, como por exemplo de São Jorge a Ogum, o orixá guerreiro, de

Iemanjá a Virgem Maria, de Oxalá ao Nosso Senhor do Bonfim. É comum na casa das

rezadeiras encontrarmos uma mesa com imagens desses santos que foram sincretizados com o

catolicismo como forma de cultuar, de forma aceitável, os orixás e divindades de seus

antepassados sem afrontar a cultura dominante, como também as irmandades negras de Nossa

Senhora do Rosário dos Homens Pretos formavam grupos em que lutavam não apenas pela

sobrevivência e pela compra das alforrias, mas para não ter a sua identidade ancestral

eliminada.

A cultura e a religiosidade afro-brasileiras, como também produção da oralidade

originada dessa cultura se reelaboram a partir de uma reapropriação da cultura dominante,

principalmente do catolicismo europeu, essa reapropriação não ocorreu de forma inocente,

passiva. Ela foi intencionalmente elaborada para conviver com os dramas históricos do

tráfico, do desenraizamento de sua cultura ancestral e de sua terra natal. Baseada em Certeau,

Oliveira ressalta a criatividade dos fracos para subverter a dominação e parecer que estavam

assimilando sem resistência a cultura do dominador, elaborando dessa forma uma identidade

subalterna que se constrói sem uma atitude de resistência conforme Santos (2003).

As rezas inscritas em narrativas de vida de suas agentes culturais são uma atitude

responsiva, uma resposta aos múltiplos contatos que fermentam o caldeirão cultural da

memória coletiva da comunidade. Não se trata de uma assimilação passiva dos elementos de

outras culturas, mas de uma fusão que lhes conferiu uma melhor aceitação sem deixar de

manifestar a africanidade de sua cultura. Nesse sentido, Glissant (1997) ao desenvolver o seu

conceito de crioulização e sua leitura de uma identidade rizomática a partir do pensamento de

Deleuze e Guattari de que não há uma raiz principal, mas hastes e filamentos que parecem

raízes (DELEUZE; GUATTARI, 2004) e que se unem por intersecção. Compreendemos que

se construiu uma teia rizomática nas relações entre as culturas africana, indígena e europeia.

A teia rizomática é tecida pela mistura de culturas presente na memória e nas práticas

culturais dos universos das rezadeiras e que constitui, segundo Glissant (2005, p.16, apud.

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LIMA, T. M. de A., 2007, p. 44). “Um lugar que difrata e leva à efervescência da

diversidade” Assim, nessa efervescência, as rezas e narrativas das rezadeiras do Quati

constroem uma cultura compósita em que a raiz africana saiu em busca de outras linhas de

fuga, numa dinâmica rizomática.

A comunidade do Quati na esteira de Glissant é uma sociedade compósita em que

não se compreende uma raiz majoritária, e sim a poética das relações entre as muitas raízes, a

dinâmica dos contatos ao longo da história e como estes ocorrem nos dias de hoje. Sua

identidade cultural está sob o signo composto afro-brasileiro e dessa forma é compósita, pois

é formada por uma identidade como um rizoma, isto é, não uma raiz única e majoritária e sim

uma raiz em busca de outras raízes, de outras identidades (GLISSANT, 2005). Não há uma

raiz fixa, mas uma raiz em movimento de fuga em direção de outras. Segundo o autor a

crioulização ocorreu de forma desigual e é necessário um despertar valorativo da herança

africana para que ocorra uma intervaloração dos elementos heterogêneos que concorrem com

a cultura africana. No processo pensado por Glissant (2002) de uma crioulização desigual,

apesar da perseguição e do preconceito históricos, as narrativas de vida das rezadeiras

reforçam o valor da herança africana. Embora as rezas se constituam como uma cultura

híbrida se destaca a cultura africana como ponto de resistência que buscamos iluminar neste

trabalho por ela ter sido a mais perseguida e silenciada ao longo da nossa história. Por isso,

esse nosso olhar para as rezas e as narrativas de vida a partir de sua afro-brasilidade. Esse

entrelaçamento de culturas nos apresenta o diálogo histórico entrem as diversas raízes

culturais. Embora muitas pessoas tratem as manifestações e os rituais religiosos afro-

brasileiros com a denominação de religiões de matriz africana, o nosso olhar é de que foi

tecida uma teia de diferentes filamentos seguindo um “Princípio de conexão e

heterogeneidade: qualquer ponto de um rizoma pode ser conectado a qualquer outro e deve

sê-lo” (DELEUZE; GUATTARI, 2004, p.15).

É no centro das contradições entre a cultura europeia, branca, colonizadora que se

construiu e se constrói na atualidade a identidade híbrida brasileira, singular e única não no

sentido de homogênea, mas por sua riqueza de culturas e contrastes ser uma marca

significativa da nossa identidade nacional e a diferenciar das identidades de outros povos e

nações. Assim:

As igrejas de “Nossa Senhora do Rosário dos Pretos” espalhadas pelo país

evidenciam nossa reapropriação dos padrões da dominação, nosso São Jorge

ou nosso São Benedito, carinhosamente homenageados em algumas de

nossas cidades são produtos dos usos criativos que os “fracos” (CERTEAU,

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op. Cit.) fazem das regras que, aparentemente, seguem. É assim que essa

mesma europeidade se encontra com aqueles que, não tendo sido

“preservados”, insistem em estar aqui. No seio da contradição entre a riqueza

branca e Europeia e os seus outros é que existem muitos Rios de Janeiros,

muitos brasis que, sendo plurais, mantêm uma identidade única e singular

(OLIVEIRA, 2003, p.31).

Os rituais das rezas não são meramente reproduzidos, mas se reelaboram de acordo

com as histórias de vida da cada agente, de cada rezadeira. Cada experiência de vida tem as

suas marcas identitárias, cada uma delas tem o seu contexto de atuação e como foi eleita pelos

membros do seu grupo social para o exercício da cultura. As rezas se modificam assim como

as histórias de vida de seus agentes sociais, não podemos desconsiderar os processos e ver os

objetos como reproduzidos de um passado ancestral e intacto. Dessa forma, na esteira da

hibridização e da socialização pensadas por Canclini (1997, p.211) “Essa fascinação pelos

produtos, o descaso pelos processos e agentes sociais que os geram, pelos usos que os

modificam, leva a valorizar nos objetos mais sua repetição que sua transformação”. Dessa

forma, as rezas enquanto manifestações e objetos culturais não se constituem como uma mera

repetição, mas como uma reelaboração a partir das singularidades de cada história de vida de

suas agentes. Os usos das rezas não são estáticos, a dinâmica das relações sociais e as marcas

biográficas de cada rezadeira nos esclarecem que não se trata de uma preservação do objeto

cultural, mas da elaboração de uma identidade complexa reveladora de outros nuances da

identidade nacional, de muitos brasis e áfricas subjacentes na construção criativa dessa

identidade.

3.2 A pesquisa de campo: vidas e histórias em vozes e letras

Inicialmente, a pesquisa parte de uma revisão bibliográfica da área com o objetivo de

nos situar nos parâmetros teórico-metodológicos que norteiam os estudos culturais e das

identidades, e de teorias que tratam da memória e da narrativa e história de vida para a

compreensão do universo das rezadeiras. Porém, a história de vida se constitui além do

método que norteou este trabalho. Ela é a base da compreensão buscada sobre o papel das

rezadeiras em que suas manifestações culturais estão inscritas no seu cotidiano, na sua

dinâmica de vida. Nesse entendimento, a cultura popular se funde com a vida de seus

agentes, isto é, a rezadeira é a pessoa, com toda a complexidade que envolve o seu dia a dia, e

não uma identidade à parte. São as histórias de vida das rezadeiras que dão o sentido às suas

rezas e narrativas.

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Dessa forma, nos reportamos a autores que estudam a cultura popular e a memória

como Maria Ignez Novais Ayala (1988, 1997, 2002), Cascudo (2002); Bosi (2007); Costa

(2009); Xidieh (1996); Rodrigues (2006 – 2009); e sobre as rezadeiras como: Costa (2009);

Resende e Sousa (2005) (2004), e sobre identidade como Hall (2005), entre outros.

A partir das teorias necessárias para a nossa pesquisa, realizamos a

instrumentalização técnico-metodológica e a coleta de dados. Essa etapa da pesquisa se

caracterizou, essencialmente, por entrevistas com as colaboradoras do nosso estudo.

Buscamos conhecer o universo sócio-cultural em que estão inseridas, suas condições

materiais de vida, os ambientes em que é reconhecido como contador, e os fatos marcantes da

sua história de vida. Salientamos que fizemos a gravação em vídeo das entrevistas realizadas

para uma melhor apreensão do diálogo, em que ficarão preservados gestos, olhares, toda uma

linguagem não verbal que nos aporta ao universo de vida das nossas colaboradoras e que a

escrita não é capaz de registrar e repassar completamente.

A escolha da gravação em vídeo se justifica pela intenção de registrar o máximo

possível os detalhes importantes na análise da narrativa, como os gestos e os movimentos

expressos no momento em que o narrador fala sobre sua vida, o que a gravação apenas em

áudio não proporciona, buscando depois no processo de transcrição traduzir essa linguagem

não verbal para a linguagem verbal, aproximando-a do momento da narrativa para que o leitor

da linguagem escrita possa se aproximar da experiência vivenciada pelo pesquisador.

Segundo Maria José da Silva (2005, p.73) “O emissor do discurso oral, o contador de história,

além de usar o poder de sua retórica para prender a atenção do seu público-ouvinte, ainda

recorre ao olhar e a gesticulação; braços, mãos, corpo, tornam-se elementos integrantes desse

discurso no momento da performance (grifo da autora) ” . Esses componentes da performance

também são importantes na narração da história de vida e devem ser observadas pelo

pesquisador, embora nem sempre seja possível traduzi-lo em sua inteireza para a linguagem

escrita.

Após a coleta dos dados, fizemos as transcrições das entrevistas. Nessa etapa do

nosso trabalho, a transcrição foi realizada pelo próprio pesquisador, que conhece cada detalhe

das entrevistas, podendo relembrar e reviver cada momento das entrevistas. Isso é o mais

adequado nas palavras de Queiroz, porque

Ouvir e transcrever a entrevista constitui, para ele, um exercício de memória

em que a cena é revivida: uma pausa do informante, uma tremura de voz,

uma tonalidade diferente, uma risada, a utilização de determinada palavra

em certo momento, reavivam a recordação do estado de espírito que então

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detectou em seu interlocutor, revelam aspectos da entrevista que não haviam

sido lembrados quando efetuou o registro do dia no caderno de campo, ou

mesmo dão a conhecer detalhes que, no momento da entrevista, lhe

escaparam(QUEIROZ, 1991, p.87).

Outro fato importante a ser considerado foi a utilização do diário de campo em que

registrei as situações em que as entrevistas foram realizadas, sendo descrita no dia em que

ocorreram como requer o gênero diário, que foi indispensável tanto na transcrição como para

a compreensão das narrativas de vida e do contexto em que aconteceram as entrevistas.

Com relação ao ambiente e momento social das entrevistas, salientamos que estas

não se restringiram apenas ao dia da gravação. Conforme já descrevemos, foram anos de

convívio com as rezadeiras do Quati para que estas se sentissem tranquilas a relatarem suas

histórias de vida a partir de um núcleo tão complexo que é a cultura afro-brasileira, suas rezas

e função social herdada dos antepassados do grupo social, de familiares que eram referência

na cultura e na memória da comunidade. Esse contexto tornou propício a liberdade de

perguntar e de narrar, não ignorando as diferenças entre os universos do pesquisador e das

colaboradoras, mas ancorados na identificação construída ao longo da convivência e do

respeito às práticas e manifestações culturais populares. Nesse sentido, Portelli explica que:

Devemos, não obstante, fazer um esforço para criar um ambiente em que as

pessoas tenham condições de estabelecer os próprios limites e de tomar as

próprias decisões a esse respeito. Não o conseguiremos ignorando as

diferenças que nos tornam desiguais, nem paternalística (e desonestamente)

simulando uma igualdade que inexiste. Em vez disso, devemos deitar por

terra a diferença, encará-la menos como uma distorção de comunicação de

que como a própria base desta e situar a conversa no contexto da luta e do

trabalho, com o intuito de criar igualdade. Temos um interesse não apenas

ético, mas também profissional nesse processo (PORTELLI, 1997, p.20).

Embora eu já fosse um frequentador assíduo da comunidade ou até mesmo da casa

das rezadeiras, busquei basear meu trabalho no respeito a esse universo, atitude rara e

estranha para o grupo tantas vezes abordado a falar apenas da escravidão e se tinham

conhecimento de atrocidades e maus-tratos cometidos contra seus ancestrais. Porém, as

manifestações culturais e as histórias de vida dos afrodescendentes não se limitam à memória

da escravidão. A preocupação excessiva com o passado escravista originou uma compreensão

inadequada da cultura dos povos do Quati e gerou preocupação por parte de alguns

pesquisadores e gestores culturais em fazer uso dela apenas para tombamento e confirmação

de uma comunidade como quilombola. Também não consegui nem objetivava um

distanciamento durante a pesquisa em um universo que já se tornou parte do meu cotidiano

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pessoal e de pesquisador. Seria prejudicial a pesquisa naquele momento manter ou forçar um

distanciamento que não existe nas relações cotidianas. Como também não me envolvi com a

paixão que tenho pelo universo da pesquisa para que a empolgação não prejudicasse o

diálogo, busquei o equilíbrio entre a empatia e a objetividade, sem forçar uma impossível

neutralidade. Busquei tecer o dialogismo e a interação necessários a uma pesquisa ancorada

na história oral e mais especificamente na história de vida (PORTELLI, 1997).

Como a nossa pesquisava envolveu três colaboradoras e o seu norte era uma temática

complexa como o papel social das rezadeiras em meio ao seu grupo enquanto agentes da

cultura popular afro-brasileira, a elaboração de uma identidade na relação com os outros

membros da comunidade, foi realizada uma entrevista com cada uma. Porém, o fato de ter

sido apenas um encontro com cada colaboradora entrevistada não comprometeu a qualidade

das entrevistas pelo contato prévio que eu já possuía com elas e suas práticas culturais e

mesmo sendo apenas uma entrevista, esta não se constitui como depoimento e sim como

história de vida pela liberdade de narrar e a disposição de falar sobre suas vidas. Nesse

sentido, tem razão Montenegro (1994, p. 151) ao afirmar que “O fato de um pesquisador ter

um perfil da história de vida do entrevistado aumenta, de forma significativa, a compreensão

da própria memória do depoente”.

Apesar da gravação da entrevista com cada colaboradora ter ocorrido em um

encontro, prevaleceu como técnica de pesquisa a história de vida pela liberdade de narrar, a

proximidade gradativamente construída entre o pesquisador e as rezadeiras em anos de

convivência e a prática de intervir o mínimo possível nas falas das entrevistadas e o respeito

aos seus silêncios e escolhas sobre o que relatar de suas histórias de vida. Assim segundo

Queiroz:

A diferença entre história de vida e depoimento está na forma específica de

agir do pesquisador ao utilizar cada uma dessas técnicas, durante o diálogo

com o informante. Ao colher um depoimento, o colóquio é dirigido

diretamente pelo pesquisador; pode fazê-lo com a maior ou menos sutileza,

mas na verdade tem nas mãos o fio da meada e conduz a entrevista. Da

‘vida’ de seu informante só lhe interessam os acontecimentos que venham

inserir-se diretamente no trabalho, e a escolha é unicamente efetuada por

este critério. Se o narrador se afasta em digressões, o pesquisador as corta

para trazê-lo de novo ao seu assunto. Conhecendo o problema, busca obter

do narrador o essencial, fugindo do que lhe parece supérfluo e desnecessário.

(QUEIROZ, 1991, p.7):

Nesse sentido, embora a gravação das entrevistas tenha ocorrido em um único dia, a

pesquisa com as rezaderias foi ancorada na história de vida, pois além da liberdade de narrar

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havia o critério da confiança entre o pesquisador e as colaboradoras entrevistadas neste

trabalho. Daí surgiram muitos outros assuntos além da temática das rezas nas falas das

rezadeiras e que, pelo viés da história de vida, têm igual importância para a compreensão de

suas memórias individuais e coletivas. Até porque já trazido à luz neste trabalho a interação e

a socialização do pesquisador com as rezadeiras não se limitou aos dias das entrevistas, houve

e há uma convivência com essas mulheres e suas práticas culturais e religiosas que ultrapassa

a pesquisa e se insere numa relação de amizade, respeito e crenças comuns. Suas narrativas de

vida não foram ouvidas apenas na pesquisa. Foram ouvidas gradativamente até que percebi o

sentido que estas manifestações da cultura popular afro-brasileira apresentavam para a

comunidade e decidi ir além da relação cotidiana com as rezadeiras com o desenvolvimento

de uma pesquisa mais sistemática. O desenrolar deste trabalho confirmou o pensamento de

Rodrigues (2006) quando afirma que, em uma pesquisa no campo da oralidade e da cultura

popular, a história de vida é compreendida por meio da disposição e do interesse em ouvir que

se propõe a narrar e partilhar suas experiências com outras pessoas, membros de outros

grupos diferentes do entrevistado, como no caso do pesquisador.

As comunidades de Quati e Lagoa do Mato são detentoras do patrimônio cultural

afro-brasileiro, universo que só podemos compreender no convívio com suas práticas

cotidianas. Tanto durante a nossa troca de experiências entre eu e os membros da comunidade

ao longo dos últimos anos, como no decorrer desta pesquisa, percebemos que o povo

afrodescendente das comunidades não perdeu a sua identidade por mais que historicamente os

povos negros tenham sofrido os massacres da diáspora e da escravização. Ela se tornou uma

identidade compósita no entendimento de Glissant (2005). Para Barros (2008, p. 337) “Povo

sem história é povo sem consciência, morador sem cidade, árvore sem raiz, cidade sem face,

gerações sem identidade”. No caso das comunidades em estudo, há uma multiplicidade de

raízes culturais na formação da sua história e identidade que constitui a riqueza da sua face.

Com a tranmissão memorial da cultura dos antepassados, o povo do Quati não se inscreve nos

povo sem história e sem face descrito pela pensadora ao se referir a devastação do patrimônio

histórico sertanejo impulsionado pela modernidade e pelo capitalismo na cidade de Juazeiro

do Norte, terra do Padre Cícero. O Quati não perdeu sua história e é significativa a

contribuição de suas rezadeiras motivadas pela fé e devoções recebidas dos ancestrais e

reelaborada em suas histórias particulares de vida influenciadas pela socialização com a sua

gente. As narrativas e as rezas constroem o espaço simbólico onde as vozes ancestrais podem

reviver.

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O silêncio vivido durante a época da escravidão não mais abafa as vozes da memória

e o Quati se constitui como um sítio histórico da cultura afro-brasileira da região onde o

universo das rezadeiras negras reaviva um passado de resistência, revestido de uma atmosfera

encantada só alcançável pelo poder de suas vozes. Suas narrativas de vida inseparáveis das

rezas, orações e rituais de benzimentos, do conselho e das lições de vida cuja autoridade

conferida pela experiência se inscrevem no viés africano de sua cultura e história. Sua função

social no grupo foi herdada do griots, narradores africanos, e hoje recordam a riqueza da

mestiçagem cultural em que suas vidas se inscrevem. Suas casas procuradas e constantemente

visitadas pelos membros do seu grupo e pessoas da cidade como santuários vivos de uma

cultura e religiosidade que não apenas sobreviveu à colonização e ao preconceito, mas que

cotidianamente se renova e se ressignifica de acordo com as necessidades do grupo, sejam

estas de natureza prática com a medicina caseira ou simbólica como as narrativas e rezas,

ambas correspondem à necessidade de manter vivo e forte o laço identitário que une o grupo.

Esse universo não teria sido compreendido se a pesquisa se restringisse apenas às

entrevistas e não fossem anos de convivência com as rezadeiras. Por isso, nas pesquisas com

culturas populares e dentro delas com o universo específico da oralidade, a paciência é o

norte. A cultura é indissociável do cotidiano e é na lida diária que se reveste de sentido. Foi

preciso tempo e paciência para o estudo das narrativas de vida das rezadeiras e assim deve ser

em toda pesquisa nas culturas populares. Tem razão Xidieh ao afirmar que

A paciência é um dos melhores passos do método de pesquisa de campo e

que o grupo todo dentro do seu contexto sócio-cultural é o que realmente

importa, concedendo-se, evidentemente, certa importância àqueles

informantes por eleição, porém não absoluta importância. (XIDIEH, 1993, p.

24)

Como portadoras e transmissoras das tradições, do patrimônio imaterial dos negros

do Quati e Lagoa do Mato, as rezadeiras trazem em seus relatos e narrativas de vida a

memória dos ancestrais, a riqueza cultural muitas vezes perseguida. Por isso a cultura dos

negros é revestida das marcas dolorosas da escravidão e do preconceito racial, religioso e

cultural. Nas recordações das colaboradoras entrevistadas, suas rezas encontram sentido

enquanto prática social de resistência da memória afrodescendente. O histórico silêncio dos

membros da comunidade do Quati se deve, além dos traumas históricos da escravidão e do

racismo, à visão orientalista na esteira do pensamento de Said (2007) de que foi e é objeto a

história e a cultura destes povos afrodescendentes. O orientalismo de Said descreve e analisa a

postura eurocêntrica sobre diversos aspectos das culturas orientais, como a herança africana

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presente e constitutiva dos elementos culturais afro-brasileiros, de vê-la por um viés exótico

que contribui com a elaboração de estereótipos, legitimando assim uma dominação sobre

esses povos. O núcleo temático da escravidão é um dos pontos tratados sob o viés

eurocêntrico e do exotismo como se fosse somente essa a contribuição dos povos negros.

Quando a pesquisa com afrodescendentes foca apenas no passado escravagista, remexendo

em feridas históricas, a resposta será a recusa e o silenciamento por parte dos sujeitos. Sua

cultura não se restringe à memória da escravidão. Concordamos com o pensamento de

Canclini (1997, p. 211) quando afirma que “Essa fascinação pelos produtos, o descaso pelos

processos e agentes que os geram, pelos usos que os modificam, leva a valorizar nos objetos

mais sua repetição que sua transformação”. O descaso com os agentes e os processos sociais

que permeiam suas histórias de vida é o que gera o silêncio enquanto fuga e meio de se evitar

ainda mais sofrimento.

Embora a identidade cultural dos negros seja marcada e indissociável do trauma

histórico da escravidão, para fazer uso das palavras de Gilroy (2001), ela não se restringe as

lembranças deste passado. Sua cultura e história estão além desta fase e sob os signos da

resistência e da hibridização atravessaram os séculos. Sobre isso:

O silêncio dos moradores do Quati parece se firmar como modo de

reelaboração da identidade dessa comunidade. Ao reconstruir sua história,

esses moradores escolhem contar-se de um modo diferente daquele

legitimado pela História oficial. Dito de modo diferente, não lhes interessa

falar sobre a escravidão, condição miserável à que foram subjugados seus

antepassados. Esses sujeitos querem falar de si próprios, de suas lutas, de sua

coragem e de sua resistência aos preconceitos sofridos. Relembrar o passado

é, para esses sujeitos, silenciar uma identidade marcada pela opressão, pela

dominação do branco e reconstruir uma história de coragem, de força, de

trabalho (CARVALHO, 2010, p. 104-105).

Se o eixo central da pesquisa com as rezadeiras negras do Quati fosse a memória da

escravidão, por mais que a técnica da história de vida evite ser invasiva, ainda sim seria um

assunto delicado e difícil de se tratar. O modo de construírem a sua história, a sua identidade é

falar do seu papel na comunidade, de como encontraram e construíram espaços para dar

continuidade às práticas memoriais da cultura que lhes foram transmitidas. Falar das rezas, do

reconhecimento que recebem dos membros do seu grupo social, do processo de aprendizado

durante a transmissão memorial da função de rezadeira é a sua maneira particular de inscrever

a sua história pessoal por meio da memória e do poder de voz. Assim “a memória emana a

coerência de uma escritura e de uma inscrição do homem e de sua história pessoal e coletiva”

(ZUMTHOR, 1993, p.140). É o poder do seu discurso oral, da sua voz e memória que tece os

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laços com grupo e na história de um povo marcado pela opressão e dominação falar de sua

função na comunidade é o que lhes interessa e não falar do julgo a que foram submetidos os

seus antepassados. Suas lutas para continuar as tradições ancestrais no universo das culturas

populares, nas comunidades pobres do sertão nordestino, o serviço que prestam aos seus e a

quem as procura por acreditar em suas rezas é o que lhes confere a identidade com o grupo.

Assim “Ao falar de sua atuação na comunidade, do seu papel na cultura da cidade e da

influência que exerceram no grupo que os rodeava, constroem para si uma maneira de ver e

representar sua existência” (RODRIGUES, 2008, p. 40).

Falar das rezas, de quem as ensinou e confiou sua sabedoria popular para mais tarde

ocuparem o seu lugar é uma forma das rezaderias reconstruírem as suas histórias pessoais de

vida a partir do seu contexto social e por sua inserção numa memória coletiva. Embora as

rezas façam parte do seu cotidiano mais comum, ainda houve momentos delicados no

decorrer das entrevistas. Como quando perguntei a dona Naldi sobre orixás e ela se recusou a

falar sobre o assunto, fato sobre o qual discorro no terceiro capítulo deste trabalho. Falar de

sua atuação enquanto rezadeiras nas comunidades onde vivem é confirmar o pensamento de

Ecléa Bosi (2007, p.481) de que “A memória do trabalho é o sentido, é a justificação de toda

uma biografia”. O seu ofício de rezadeira ancora a sua identidade, reunindo luta, força,

coragem e resistência pessoal e cultural, individual e coletiva. É o seu papel no seio do grupo

que lhe confere autoridade e reforça o laço não só de parentesco, mas de um pertencimento

maior.

Na pesquisa de campo que resultou na escritura da obra Memória e Sociedade:

lembranças de velhos, Ecléa Bosi entrevistou dona Risoleta, uma descendente de mãe liberta

após a Lei do Ventre Livre e de pai filho de português com negra e vendido como escravo

pelo próprio pai, mas tratado como“mocamo de luxo”, isto é, nas palavras de Risoleta, citadas

por Bosi, um escravo que não apanhava e era melhor tratado por saber buscar coisas no

correio da cidade, servir de companhia para os moços da casa e tomar conta dos camaradas na

colheita do café. Foi liberto apenas quando veio a abolição. Iniciou seu relato de vida dizendo:

“Dou graças a Deus todos os dias, já está acabando esse ano santo e agradeço por estar

recordando e burilano meu espírito” ((BOSI, 2007, p. 363). Para dona Risoleta, a entrevista

foi uma oportunidade de recordar sua vida e a de seus antepassados. Mas foi a liberdade de

narrar proporcionada pela pesquisadora que lhe fez falar de sua identidade enquanto rezadeira,

pois após ficar cega e idosa, passou a ocupar o seu tempo em atender as pessoas com orações.

Falou de sua devoção a São Benedito, santo negro, italiano e filho de escravos, que lhe fazia

companhia nas horas duras de trabalho na cozinha enviando pessoas para ajudá-la: “Nessa

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vida tão dura a imagem fiel é a de são Benedito que intervém para mais uma vez para tirá-la

de mais um aperto – na cozinha, enviando-lhe uma porção de mãos para ajudá-la a fazer o

almoço mais depressa, no quarto evitando que perdesse a hora” (BOSI, 2007, p. 477). Falou

das promessas feitas a Santa Teresinha pela filha criança quando quebrou a perna, da devoção

a outro santo negro, africano, que foi escravizado Santo Antônio de Catigeró, do menino cego

que começou a enxergar graças aos seus pedidos, do menino do dedo doente que curou com

unção de azeite (BOSI, 2007). Embora não relate conhecimento sobre as histórias dos santos

negros, estes surgem no relato como fortes signos de sua identidade afrodescendente. Se o

foco da entrevista tivesse sido a memória da escravidão, a narrativa de vida não teria fluido

com tanta força. Da escravidão dona Risoleta falou sem precisar que fosse perguntado e

escolheu o que falar e o que não falar. Como as rezadeiras entrevistadas nesse trabalho, dona

Risoleta falou de si, de seu trabalho, reconstruindo uma vida de trabalho e a sua maneira de

representar o papel no grupo social.

As narrativas das rezadeiras tem na relação construída no grupo através do seu

ofício, a pedra angular de suas histórias de vida em torno da qual se firmam suas memórias e

as memórias do seu povo. A função de rezadeira e, por conseguinte, de narradora justifica

suas biografias. Assim: “A fusão do trabalho com a própria substância da vida se dá também

na memória dos entrevistados” (BOSI, 2007, p. 475). Não podemos comprender as rezas sem

a substância de suas histórias de vida e da relação social com os membros do seu grupo.

O uso da história de vida como técnica de pesquisa e como categoria empírica de

análise e compreensão das narrativas, pois será a partir da história de vida das rezadeiras que

traçaremos nossas reflexões sobre a memória e a identidade das entrevistadas, o que nos

reforça o laço existente entre as práticas culturais e o contexto de vida dos agentes da cultura.

A memória é intrínseca a sua vivência e experiências, ao convívio com a memória e com o

cotidiano do seu grupo. É no exercício da função de narradora e rezadeira que se tece a

memória e o sentimento comum. Somente a história de vida proporcionaria essa visão

dialógica capaz de abranger a dinâmica das culturas populares e da participação de seus

agentes e produtores na elaboração das memórias e das identidades culturais. Vejamos que

Assim, a característica dialógica do método me possibilitaria conhecer a

colaboradora da pesquisa por meio do relato individual de sua história.

Ouvindo a experiência de D. Maria José, pelo relato específico da história

oral chamada de história de vida, essa “ciência do indivíduo” me

possibilitaria manter a perspectiva critica almejada pelo trabalho,

conservando o propósito de privilegiar a fala da colaboradora para juntar as

peças que compõe o grande mosaico de sua memória revelando como as

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práticas culturais desse sujeito se vinculam a sua vida (RODRIGUES, 2006,

p. 64).

A história de vida enquanto ciência do indivíduo nos permitiu conhecer por meio dos

relatos individuais das rezadeiras os outros indivíduos que compõem as suas histórias e

integram o mosaico da história do seu povo. Suas falas juntam as peças da memória e unidas

neste trabalho dão forma e contornos às suas práticas culturais. Um ponto forte na elaboração

de suas identidades é a gratuidade do seu ofício, colocado à disposição dos seus e de todos

que as procuram, o que lhes confere legitimidade e respeito diante da comunidade, concepção

de serviço e atividade cultural à disposição do outro marcante nas falas de grande parte dos

agentes das culturas populares, como os repentistas que faziam apresentações gratuitas e

compreendidos pelo pensamento de Ayala ao comentar os relatos do poeta repentista Valença

concluiu que “Para ele a arte era uma dádiva divina que não devia ser utilizada como fonte de

recursos” (AYALA, 1988, p.101). Também para as rezadeiras o seu ofício não deve ser usado

como fonte de recursos econômicos.

O exercício do dom é uma forma de criar e fortalecer os laços com os membros do

grupo social, laços estes que ultrapassam o grupo local e integram todas as pessoas que

procuram as rezas, os conselhos e lições de vida, as narrativas e histórias, pois o exercício do

dom das rezas não se limita a esta prática. Estende-se ao conselho, às narrativas, às lições de

vida e são um patrimônio à disposição de todos que desejem usufruir dessa herança cultural.

Por meio da história de vida de dona Maria José pesquisada por Rodrigues (2006)

podemos traçar uma comparação de sua atuação na comunidade com os trabalhos das nossas

rezadeiras do Quati nas trocas simbólicas e sociais que regem a dinâmica das relações entre os

agentes das culturas populares e os membros do seu grupo. O significado e o sentido de

existência do trabalho das rezadeiras, de sua atuação e inserção no seio do grupo se revestem

de importância histórica, de uma atmosfera sagrada e simbólica para a comunidade e para a

história dos povos afrodescendentes no Brasil. As narrativas de vida das rezadeiras do Quati

são uma maneira de contar a história dos povos afro-brasileiros pelo olhar de quem vive essa

história, de quem descende de ancestrais afrodescendentes e se constituem como

protagonistas da história. Não mais uma história contada pelo viés oficial do branco, mas pela

voz que surge de dentro da própria comunidade negra.

As rezas não são uma forma de negociar com a sobrevivência cultural,

principalmente com a sociedade dominada pela branquitude hegemônica. São uma

manifestação de resistência que foi influenciada pelo catolicismo e que também influenciou a

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cultura do branco, pois as rezadeiras são procuradas por pessoas independente de sua cor.

Como uma tradição cultural de matriz africana, ameríndia e portuguesa, a negociação social

mediada pela cultura se relaciona ao cotidiano da comunidade, da vida comum dos seus

membros, como uma herança ancestral que tem como marca social o sentido de continuidade,

de transmissão memorial de uma identidade duramente construída ao longo da história e

permeada pelas histórias de vida.

As narrativas de vida e as rezas que nelas se inscrevem são manifestações culturais

do campo da oralidade que constituídas como uma maneira de resistência dos povos negros

merece o devido reconhecimento e que um dia ocupe o seu lugar como patrimônio imaterial

brasileiro pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. A comunidade de Quati

tem consciência da importância dessas manifestações. A pertinência do nosso trabalho se faz

pelo registro, estudo e divulgação desses bens simbólicos numa perspectiva mais interacional,

sociológica, que não os coloca como artefato folclórico que sobreviveu de um passado

distante e remoto ou que é relembrado de forma encenada. A nossa pesquisa desperta a visão

para a importância das rezarias na dinâmica cultural e social da comunidade como oferece

subsídios para que os professores da comunidade possam também trabalhar a identidade local

com os alunos oriundos do Quati e Lagoa do Mato através das nossas leituras, mas

principalmente nas vozes das próprias entrevistadas transcritas nesta pesquisa como uma

retribuição à cultura que nos foi ofertada pelos agentes do lugar. Nesse sentido:

O ato de usar a escrita como apoio da memória oral é procedimento que

permite a seguinte avaliação: aqueles que participam do universo da cultura

popular têm consciência de que a escrita é um poderoso instrumento e que

pode servir para guardar o oral do esquecimento. Pode parecer paradoxal

mas, neste caso, a escrita é posta a serviço da oralidade (AYALA, 2003, p.

117).

As vozes das rezadeiras, sua atuação enquanto agentes da cultura do seu povo, depois

de permitida a escuta pelo pesquisador e do uso da história de vida como norte desta relação

nos acorda para a complexa responsabilidade como o trabalho e como o material produzidos,

fotos, mídias em DVD com a gravação das entrevistas, que devem se constituir como um

acervo não só do pesquisador, mas da comunidade do Quati, dos seus professores, estudantes,

moradores, de outras rezadeiras e agentes populares que se inserem nessa identidade cultural.

Esta é uma retribuição social do nosso trabalho que contribui para o reconhecimento da

cultura entre os membros, para que as rezadeiras se reconheçam como sujeitos atuantes na

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vida do grupo e sejam reconhecidas de forma mais significativa pelos seus e por membros de

outras comunidades. Seguindo a esteira de Portelli (1997) a pesquisa contribuiu com:

O verdadeiro serviço que, acredito eu, prestamos a elas, a movimentos e a

indivíduos consiste em fazer com que sua voz seja ouvida, em levá-la para

fora, em pôr fim à sua sensação de isolamento e importância, em conseguir

que seu discurso chegue a outras pessoas e comunidades. (PORTELLI, 1997,

p.31, Grifos do autor)

As entrevistas com as rezadeiras devem compor um acervo para o conhecimento das

atuais e futuras gerações dos moradores do Quati sobre o passado de sua gente, sua cultura

ancestral e como essa cultura se transforma ao longo da história. Assim as vozes da memória

das rezadeiras que foram entrevistadas, das rezaderias antigas que lhes repassaram essa

prática e seus ensinamentos não se perderão no tempo e a escuta e leitura de suas falas

permitirá um aprofundamento no conhecimento das raízes da cultura dos antepassados, de

como as rezadeiras as reelaboram e como a essa representação pode influenciar no combate

ao preconceito racial, cultural e religioso, permitindo que o sentido dessas práticas seja

inserido cada vez mais na riqueza da memória coletiva e preenchendo os vazios deixados pela

ausência de um trabalho voltado a essa cultura. Sobre a pesquisa com narrativas, Ecléa Bosi

numa entrevista concedida para a revista Na Ponta do Lápis, conclui que:

Depoimentos que você colhe não devem ser simplesmente arquivados. Todo

depoimento existe para transformar a cidade em que ele floresceu. Escutar

uma narrativa desencadeia em você, ouvinte, compromisso com o narrador,

com a própria cidade em que a narrativa floresceu. Você é responsável. Por

exemplo, eu entrevisto pessoas muito idosas e sensíveis às transformações

urbanas. Isso desencadeia um compromisso com o plano diretor da cidade.

Em uma pesquisa que fiz verifiquei que a maioria dos idosos acidentados na

seção de ortopedia do Hospital das Clínicas de São Paulo não era caso de

médico, mas de advogado, por causa das calçadas da cidade, das casas

populares mal construídas (BOSI, 2009, p.24).

A coleta dos dados da pesquisa, das histórias de vida das rezadeiras desencadeia uma

responsabilidade com os narradores e com a comunidade onde foram colhidas as falas, pois o

trabalho está a serviço da comunidade, de futuros outros projetos e trabalhos para que os

planejamentos de educação e de políticas culturais incluam em suas prioridades a cultura dos

povos do Quati, tirando-os da invisibilidade histórica a que foram submetidos os povos

afrodescendentes. Como também a relação entre o entrevistador e os colaboradores das

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pesquisas não deve se encerrar com a conclusão do trabalho, pois eles dispuseram suas

histórias, suas vidas e são co-autores dos trabalhos. Assim:

O estudioso da memória deve ser uma pessoa preparada; não basta que

conheça metodologia de pesquisa. Ele precisa compreender o depoimento

como um trabalho do idoso, ele não pode registrar sem que o idoso tenha

conhecimento da narrativa. Por mais simples que seja, o idoso tem o direito

de reler aquilo que falou e ver se está de acordo. É uma questão ética. Entre

todos os conselhos de método que dou, o mais importante é a

responsabilidade pelo outro. Para a pessoa idosa, o depoimento sobre a sua

vida é um ato de amizade. O escutador tem que responder a esse ato de

amizade com outro ato de amizade. Ele se torna responsável eticamente pela

narrativa: é um pesquisador diferente dos outros porque também se torna

responsável pelo narrador e não pode abandoná-lo, tem de visitá-lo.

Recebemos do entrevistado uma coisa preciosíssima: ele nos dá alento, seu

tempo de vida (BOSI, 2009, p.25).

Dessa forma, o estudioso das histórias de vida e histórias de descendentes de povos

marcados pelo sofrimento histórico como o preconceito racial, a escravidão e a diáspora não

encerra sua pesquisa com o término do trabalho. Eticamente deve voltar à comunidade, visitar

seus colaboradores e contribuir para que o seu trabalho dê respostas à comunidade onde

floresceu.

3.3. Os caminhos da pesquisa: construindo histórias de vida

A história de vida enquanto técnica de pesquisa é a mais adequada à compreensão do

humano enquanto sujeito participante da construção deste trabalho, permitndo aos

entrevistados que falem de si e conduzam suas escolhas. Diferentemente de depoimentos pré-

estabelecidos pelo entrevistador, esta técnica permitir ao sujeito se reconhecer por meio das

escolhas sobre o que narrar e o que silenciar, elaborando assim sua representação e

identidade.

No campo da pesquisa em cultura popular, oralidade, religiosidade os caminhos são

escorregadios e os limites tênues entre os objetivos do pesquisador e a experiência de vida dos

nossos sujeitos, entrevistados de forma que não se invadem o que essas pessoas têm de mais

caro: suas histórias de vida, que aceitam gradativamente dividir conosco.

Com o aporte metodológico da história oral, iniciei o processo de entrevistas, fase

mais delicada da pesquisa, avisei por celular que visitaria a rezadeira Ana Naldi da Silva para

fazer a entrevista. Anteriormente, devido a nossa intimidade, pois sou frequentador de sua

casa desde a minha adolescência, já havia lhe explicado o propósito da entrevista e ela aceitou

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tranquilamente. Segundo Montenegro (1994), esse deve ser o primeiro passo do contato com

os colaboradores:

O início de toda entrevista deve ser marcada por uma conversa de

esclarecimento com o entrevistado para que este compreenda por que, para

que e para quem ele está registrando suas memórias. Após a concordância do

entrevistado em participar do trabalho, deve-se preencher uma ficha com o

nome completo, data e local de nascimento, endereço atual e data em que a

entrevista está sendo realizada (MONTENEGRO, 1994, p. 149, Grifos do

autor).

Chegamos a sua casa na cidade de Pau dos Ferros às dezenove horas no dia 09 de

novembro de 2015. Como era preciso gravar a entrevista, o que foi previamente acordado

com a colaboradora, convidei meu amigo Filipe Abrantes Cavalcanti, natural do município de

Luís Gomes, pessoa que é conhecida por dona Naldi desde que nasceu, pois era seu vizinho

na antiga rua em que morava em Luís Gomes e Naldi se sentia à vontade diante dele. Felipe

filmaria a entrevista enquanto eu fazia as perguntas.

Após conversa inicial por volta da dezenove horas e trinta minutos, iniciamos a

entrevista e por meio da técnica da história de vida, que deixa a pessoa entrevistada mais livre

para a sua narrativa. Porém a filmadora que eu havia levado deu problema e tivemos que

reiniciar a entrevista, retomando os assuntos já iniciados. Devido ao conhecimento com os

membros da sua família, pedi a sua nora Cristina que emprestasse o celular para a realização

da gravação. Dias depois, Filipe, que reside em Pau dos Ferros e é amigo da família da

colaboradora, passou na residência de dona Naldi e pegou a gravação, mais tarde passada para

um DVD. A conversa fluiu naturalmente devido ao clima de intimidade que existe entre mim

e a colaboradora Naldi, porém com a ética necessária aos estudos da história oral e da história

de vida recuei em alguns momentos da entrevista, como no ponto em que gostaria de saber

sobre o viés mais africano de sua manifestação cultural, conforme veremos mais adiante nas

análises deste trabalho e nas transcrições da entrevista.

A segunda entrevista deste trabalho aconteceu no sítio Lagoa do Mato, no município

de Luís Gomes, na residência da rezadeira Maria de Lurdes Martins da Silva. Também sou

frequentador de sua casa desde 2012, quando lá estive à procura de suas rezas e desde então

passei a ser um dos tantos membros da sua comunidade que reconhecem as suas rezas e os

seus ensinamentos de narradora. Conforme havia avisado e combinado dias antes cheguei à

tarde do dia 29 de fevereiro de 2016 em sua residência acompanhado do meu amigo Francisco

George da Cruz, morador do sítio Quati que é conhecido de dona Lurdes desde a infância,

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pois a mesma foi rezadeira da sua família, o que não lhe causaria constrangimento e que foi

pedido permissão dias antes quando combinamos o encontro. Conforme combinamos George

realizaria a filmagem enquanto eu conversaria com dona Lurdes, testamos inicialmente a

minha outra filmadora, mas a qualidade do vídeo e do áudio não estava satisfatória. Então

fizemos a gravação em vídeo do celular de George. Como na entrevista com Naldi, a conversa

ocorreu de forma espontânea. Esse fato explicado por Rodrigues (2006, p.64), como requisito

fundamental do pesquisador como deve ser “a disposição de ouvir e o interesse e o respeito

pelos pontos de vista daqueles que propõem partilhar suas experiências com um grupo que

extrapola seu meio social e familiar”. Embora eu seja receptor há anos das rezas de dona

Naldi e de dona Lurdes, não faço parte do seu meio social como os afrodescendentes de suas

comunidades, que cresceram com ambas e conviveram com o seu cotidiano mais comum.

A entrevista com a rezadeira Cosma Maria da Silva ocorreu na tarde de 28 de março

de 2016 na sua casa no sítio Lagoa do Mato, localizada próxima da estrada que divide a

comunidade do Quati e Lagoa do Mato, conforme acertado anteriormente. Apesar de dona

Cosma não ser, como se fala na comunidade, “minha rezadeira”, ou seja, de eu não frequentar

a sua casa à procura dos ritos e benzimentos como o faço nas casas de dona Naldi e de dona

Lurdes, a entrevista se deu de forma tranquila por eu ser frequentador da comunidade há

alguns anos. Meu amigo e morador da comunidade do Quati, José Jorge da Cruz, realizou a

filmagem em seu celular depois me repassando a gravação em DVD. Pelo fato de a

colaboradora saber que valorizo e frequento rezadeiras da comunidade, ela se sentiu à vontade

para falar de sua atuação enquanto agente da cultura popular do seu povo, do papel social de

suas rezas, que apresentam peculiaridades com relação as rezas das outras duas colaboradoras

deste trabalho. Também a presença de Jorge, conhecido da rezadeira não causou nenhum

constrangimento durante a entrevista.

Como a pesquisa no campo de uma cultura que, além de popular, é também oral e

afro-brasileira, nesse sentido três terrenos escorregadios que, ao longo da história, foram

excluídos da cultura oficial, dos estudos acadêmicos, vista como um artefato folclórico, fruto

de uma sobrevivência do passado no presente, como exótica, a cautela propiciada pela história

de vida se fez cada vez mais necessária. Também muitas pesquisas aconteceram de forma

invasiva, sem a devida cautela com os traumas e feridas históricas dos afrodescendentes,

como a escravidão e os maus-tratos desse período, como as pesquisas escolares analisadas pro

Carvalho (2010) em que o foco dos entrevistadores era a escravidão do passado e não a

identidade reelaborada pelos entrevistados afrodescendentes. Dessa forma, a melhor maneira

de se estudar a história de vida das rezadeiras do Quati foi o convívio natural com a sua

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tradição, com as suas manifestações culturais, pois quando comecei a frequentar as rezadeiras

ainda não pensava em fazer este trabalho. Foram anos de convivência com os ritos por

questões pessoais minhas e a partir daí surgiu a empatia com as rezadeiras, não foi uma

aproximação apenas para a pesquisa. Minha relação com elas se assemelha na religiosidade

afro-brasileira à relação entre os filhos e as mães-de-santo, de aproximação e de confiança,

conselho e transmissão de experiências. A partir dessa vivência é que se desenvolveu a

pesquisa de campo, em anos de interação com o universo das rezadeiras. Sem essa

aproximação, as entrevistas não teriam sido possíveis. Assim tem razão Xidieh (1967, p.24)

ao afirmar que “a paciência é um dos melhores passos do método de pesquisa de campo e que

o grupo todo dentro do seu contexto sócio-cultural é o que realmente importa, concedendo-se,

evidentemente importância àqueles informantes por eleição, não absoluta importância”. A

importância da voz-memória das rezadeiras do Quati seguindo a esteira do sociólogo é que

essa voz representa a identidade coletiva. Embora sejam eleitos representantes do grupo para

serem entrevistados, o seu contexto de vida se inscreve no seu meio social, no contexto

coletivo sem o qual as rezas não teriam sentido e significado e é necessária a paciência para

que o pesquisador possa perceber esses nuances da cultura. Há outras rezadeiras na

comunidade, como dona Tiquinha, irmã de Lurdes, mas nesse caso seria uma pesquisa

invasiva pelo fato de eu não ter a mesma aproximação e dela ser uma pessoa mais fechada na

comunidade. Outras rezadeiras como a senhora Chica Braba, de origem afrodescendente, e,

para muitos que conhecem sua origem afro-ameríndia, moradora da comunidade desde que

casou com um senhor da Lagoa do Mato, passou a exercer o ofício de rezadeira, quando

morava na cidade não exercia nem era conhecida por esse papel. Porém, estas menos

reconhecidas na comunidade do que as colaboradoras deste trabalho e devido ao meu pouco

contato com elas não foram escolhidas para serem entrevistadas.

Mesmo com os anos de convívio com as rezadeiras, o respeito e o cuidado durante as

entrevistas são imprescindíveis, como, por exemplo, quando indaguei dona Naldi sobre o viés

africano dos seus rituais e ela silenciou. Apesar da entrevistada saber que eu tinha

conhecimento dessa vertente do seu ofício, Naldi se recusou a falar sobre esse assunto e eu

não mais insisti, até porque não são todas as pessoas que procuram a suas rezas a quem ela

revela essa prática mais africana de sua atuação. Esta mesma, para os mais íntimos,

permanece predominantemente subjacente ao seu catolicismo. Daí a importância da liberdade

de narrar dos entrevistados proporcionado pela técnica da história de vida.

Como o nosso trabalho conta com a participação de três colaboradoras entrevistadas

e o cerne da nossa investigação, as narrativas de vida e a elaboração da identidade afro-

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brasileira, cada entrevista foi realizada num dia. Nesse sentido, tivemos na construção do

diálogo a liberdade de narrar, da técnica da história de vida.

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4 VOZES NEGRAS DA MEMÓRIA: NARRATIVA E IDENTIDADE DAS

REZADEIRAS

No Cachimbo Eterno moravam os mais pobres. A maioria das casas era de

taipa com teto coberto de palha de coqueiros. Tinha esse nome porque as

pessoas que habitavam essa rua cultivavam o hábito de fumar cachimbos,

sentados ou acocorados diante de suas casas. Era a rua dos negros

fumadores de cachimbo. Daí para rua do Cachimbo foi um pulo. Lá viviam

as rezadeiras, as parteiras, as cozinheiras. Não havia móveis nessas casas

muito pobres. As famílias comiam sobre esteiras ou sentavam no chão. Mas

era a rua do povo alegre.

(FRANKLIN JORGE, 2015, p. 29)

4.1 O dom de ser rezadeira

Uma categoria significativa para a compreensão das identidades das rezadeiras

negras do Quati é a sua vivência do que é tratado como um dom nas culturas populares, do

que é considerado como uma dádiva divina, de sua descoberta eleição entre os membros do

grupo para o seu exercício na comunidade. Sua vivência está ancorada num contrato social

com os membros do seu grupo. Nas culturas populares, a lógica social é regida pelo fato de

que quem é agraciado com um dom deve dispô-lo a serviço dos seus e de quem procurá-lo em

busca de ajuda. O dom e o seu exercício na comunidade são o alicerce da função das

rezadeiras, dentro de uma lógica social que os considera “em teoria voluntários, na verdade

obrigatoriamente dados e retribuídos” (MAUSS, 2003, p. 187). Assim a reza enquanto

prática do dom se torna uma obrigação social, uma retribuição social para quem reconhece o

dom que recebeu e foi eleito entre os membros do grupo social como digno dessa função.

Costa (2009) enfatiza a doação gratuita do dom das rezadeiras e que apesar da sua pobreza

material, elas não utilizam de suas práticas para melhorar suas condições financeiras. As

rezadeiras “São mulheres de pouquíssimos recursos finaceiros, pobres. 90% delas são

humildes. Cheguei à casa de muitas delas em hora de almoço e não vi nem a panela, nem o

carvão, como se diz, acesos” (COSTA, 2009, p. 245). O não usufruto da função para fins

financeiros é relatado por dona Naldi que foi ensinada por sua avó dona Tomásia a nunca

cobrar de ninguém pelas rezas.

Naldi: Até hoje, Ciro eu digo a tu, ói tem dia que eu tô necessitando muito duma coisa aqui em casa eu

num falo pra ninguém. De madrugada, quatro horas da manhã eu me acordo e rezo. E converso com

Deus o que tá faltando, que tá necessitando, Ciro ói aparece uma pessoa que eu num tô nem

imaginando; “Naldi eu tenho dez reais pra tu” “Naldi eu tenho vinte aqui reais pra tu” “Naldi eu tenho

aqui uma garrafa de feijão pra tu”. E aparece

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Ciro: Deus sempre mostra.

Naldi: Deus sempre mostra. (Transcrição 1 - 09.11.2015).

Nesta fala da rezadeira, podemos perceber que apesar de não cobrar a ninguém pelos

seus serviços, essa atitude é recompensada pelo doador do seu dom, Deus, que a recompensa

pelo silêncio das suas dificuldades, sem que isso seja desculpa para cobrar por suas práticas, e

não lhe deixa faltar o que precisa de mais urgente, respondendo às suas orações. É esse o

sentimento presente na história de vida da agente popular ao abordar sobre o dom. O relato de

Naldi confirma o fato testemunhado por Costa no seu convívio com o cotidiano das

rezadeiras. O dom origina um viés contratual com o grupo, constituindo um fenômeno social

que se institui nos campos da cultura popular e da religiosidade. A atuação das rezadeiras se

inscreve na “própria divisão social do trabalho” (MAUSS, 2003, p. 187). Apesar dos seus

afazeres domésticos, dos trabalhos para fins econômicos, o seu cotidiano é dedicado à missão

que lhe foi confiada. A transmissão do dom estabelece um viés contratual com a comunidade,

um fato social que tem a sua lógica própria e constitui um fenômeno complexo. O dom se

constrói a partir de um mercado simbólico desde as sociedades arcaicas que nos precederam,

segundo Mauss (2003), antes mesmo do surgimento da moeda, ele era utilizado como uma

espécie de moeda nas trocas sociais.

Tanto quem recebeu o dom o retribui exercendo-o como quem é ajudado por este

exercício deve retribuir de alguma forma, seja materialmente ou com sentimento de gratidão e

reconhecimento. Neste viés contratual, a rezadeira e outros agentes que regem sua vida a

partir do dom que receberam não podem deixar de fazer o que lhes foi solicitado. Por

exemplo, no relato de vida de Naldi, ela ressalta que quando esquece de cumprir a sua

obrigação de rezar por um pessoa, não consegue dormir por não ter cumprido a sua obrigação

durante aquele dia. Vejamos:

Naldi: Daí pra cá, desse tempo pra cá só encontrei felicidade na minha vida. Durmo bem, agora só

existe uma coisa Ciro, se eu disser “Ciro vou lá na tua casa rezar em você” se eu num for eu não

durmo direito. Éé quando vô durmir é sonhanu rezano em você, aparece as pessoa pra mim, umas

pessoa éé tem uma mulher que aparece sempre pra mim. ... É uma jove, sempre eu vejo Ciro essa jovi,

ela vem quando chega diz assim pra mim eu dusmino, eu dusmino eu ecuto: “Naldi eu cheguei”, aí eu

rá sei que, é porque eu fiquei deveno oração aquela pessoa e eu num fiz. Mas tirante dissaí. tô muito

bem. E sou muito feliz quando chega uma pessoa na minha casa pra eu rezar. Sou muito feliz Ciro.

(Transcrição 1 - 09.11.2015).

O relato da entrevistada enfatiza sua compreensão de que rezar por quem lhe pede se

trata de uma obrigação derivada do dom enquanto dádiva divina e das orações e função que

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lhe foi confiada por seus antepassados, no caso sua avó Tomásia, pois ela enquanto rezadeira

é representante da instituição religiosa do seu povo confiada pelos ancestrais e eleita entre os

seus para a dignidade da sua função social, como um contrato social que uniu ao longo da

história as pessoas de um mesmo clã, tribo ou família e que se constituíam não apenas como

indivíduos, mas como coletividades que mutuamente se obrigavam, trocavam e contratavam

(MAUSS, 2003). Na esteira de Mauss, a rezadeira é uma pessoal moral por estar presente ao

contrato e nesse sentido exerce uma liderança no grupo em torno da qual circula o que ele

chama de economia natural, isto é, uma teia social de relações de doações, trocas e

retribuições que rege a vida no grupo comunitário baseada nos ensinamentos dos ancestrais

coletivos ou individuais do grupo.

O exercício do dom obedece ao tempo comunitário (AYALA, 1997) como também a

uma relação afetiva e de identificação para que haja uma retribuição entre o doador do

presente e o seu destinatário. Mauss (2003, p. 188, grifos do autor) questiona “Qual é a regra

de direito e de interesse que, nas sociedades de tipo atrasado ou arcaico, faz que o presente

recebido seja obrigatoriamente retribuído? Que força existe na coisa dada que faz que o

donatário a retribua? Essa é a questão sobre a qual o antropólogo citado se debruça nas

sociedades antigas. Nas comunidades cujo mercado social circunda as práticas das rezadeiras,

tanto quem recebeu o dom tem a obrigação de dispô-lo a serviço dos membros do seu grupo

como quem recebe as rezas e os benzimentos de retribuir com a consideração e o

agradecimento. No relato de dona Naldi, podemos perceber a confiança de quem exerce o

dom de que o bem será retribuído e a rezadeira não será desamparada em suas necessidades.

Vejamos:

Naldi: É aprendi muita coisa com minha avó, experiência de, assim, de quando eu não tivesse nada na

minha casa, assim, de alimento pra mim nem pra meus filhos, eu não falasse, não relatasse pra

ninguém, nem se lastimasse. Eu falasse pra Deus e pedisse a Deus que no outro dia aparecia. Aí Ciro

eu ficava assim em dúvida, “Mãe Véa como é que a senhora diz que eu não diga pra ninguém, só diga

pra Deus, e como é que vai chegar na minha casa?” ela disse “ói minha fia, ele mostra um meio de

uma uma pessoa aparecer e lhe ajudar.” Pois num é mermo, Ciro! Tu acredita que é desse jeito?

Ciro: E até hoje a senhora faz?

Naldi: Até hoje, Ciro eu digo a tu, ói tem dia que eu tô necessitando muito duma coisa aqui em casa eu

num falo pra ninguém. De madrugada, quatro horas da manhã eu me acordo e rezo. E converso com

Deus o que tá faltando, que tá necessitando, Ciro ói aparece uma pessoa que eu num tô nem

imaginando; “Naldi eu tenho dez reais pra tu” “Naldi eu tenho vinte aqui reais pra tu” “Naldi eu tenho

aqui uma garrafa de feijão pra tu”. E aparece.

Ciro: Deus sempre mostra.

Naldi: Deus sempre mostra.

(Transcrição 1 - 09.11.2015).

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Apesar de abordar essa natureza das transações humanas nas sociedades antigas e

arcaicas, o mercado institucional e social constituído pelo dom ainda é regido pelas mesmas

obrigações de dar, receber e retribuir. A rezadeira Naldi recebe da divindade as benesses por

não utilizar o seu dom para fins econômicos. A dinâmica do dom constrói um contrato social

de doação e de retribuição, pois em seu relato de vida, Naldi enfatizou o pedido de sua avó

dona Tomásia “E uma coisa eu te digo, isso ela dizia minha fia não se negue sua oração pra

ninguém e nem cobre de ninguém nada, porque aí foi um dom que Deus lhe deu. Quando

Deus andou no mundo foi rezando e curando viu? Nunca cobrou nada de ninguém”. Essa

negociação constitui uma característica significativa da atuação das rezadeiras que se estende

tanto nas necessidades materiais, caso uma pessoa que foi atendida deseje retribuir com

alguma ajuda, como dinheiro ou alimentos de acordo com as suas condições econômicas.

Porém, o mais importante nessa relação é a gratidão enquanto sentimento, a consideração

esperada pela rezadeira por parte das pessoas em quem reza.

Nessa relação de retribuição de dádivas em que tanto a rezadeira agradece por ter

sido agraciada com o dom exercendo-o junto aos seus e a quem lhe solicitar ajuda como

também as pessoas ajudadas retribuem as bênçãos da rezadeira tanto com presentes materiais

como com os bens simbólicos do afeto, gratidão, amizade e consideração pela pessoa da

rezadeira, pois a ajuda material é recompensada pela divindade devido à dedicação da

rezadeira e lhe chega pelas mãos das pessoas atendidas. Nessa economia social da relação

tecida entre a rezadeira e os atendidos, percebemos: “A seguir, dois elementos essenciais do

potlatch propriamente dito são nitidamente atestados: o da honra, do prestígio, do mana que a

riqueza lhe confere, e o da obrigação absoluta de retribuir as dádivas sob pena de perder esse

mana, essa autoridade, esse talismã e essa fonte de riqueza que é a própria autoridade”

(MAUSS, 2003, p. 195, grifos do autor). A rezadeira Naldi pensa na esteira das obervações de

Mauss, pois pelo ensinamento que lhe foi transmitido pela avó Tomásia ela não pode cobrar

pela reza nem muitos menos negar a quem a procura. Em seu relato Naldi ressalta que sua avó

nunca cobrou e lhe transmitiu a mesma concepção de dádiva, de jamais cobrar por sua reza. A

cobrança financeira por suas rezas seria interpretada como uma ingratidão para com a

divindade que lhe escolheu para portadora do dom e com a escolha de sua avó para ser a

continuadora da sua função de rezadeira no grupo. Para Mauss, ela fugiria da obrigação

absoluta de retribuir a dádiva recebida e perderia sua autoridade, fonte da riqueza em nossa

compreensão simbólica, pois se trata do lugar de prestígio ocupado no seio da comunidade.

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Outro exemplo significativo desse contrato social nas comunidades do Quati e da

Lagoa do Mato foi a escolha de uma rezadeira da comunidade da Lagoa do Mato para ser

madrinha de fogueira da professora Solange Batista quando criança:

Por muitos anos fui protegida por minha madrinha de bênçãos e orações,

seus presentes sempre eram de sua cor, guardava espigas de milho de palhas

quase preta bem arroxeadas e lembrava-me:

- É para lhe dar sorte! Cor preta é proteção! Afastas quebrantos. Eu comia

cada caroço com tranqüilidade e firmeza para cumprir o ritual da promessa

feita. Sempre guardava uma franga para me presentear no meu aniversário,

também de cor preta, pé rosco e dizia:

-Você não deve comer galinhas (BATISTA, 2016, p. 66).

A relação entre a menina Solange e sua madrinha Maria Nova se constitui como um

contrato real na compreensão de Mauss (2003), composto de regras e mecanismos espirituais

que ditam essa relação de consideração, afeto e confiança em que “é evidente o que obriga a

retribuir o presente recebido” (MAUSS, 2003, p. 193). Na observação do antropólogo, nessas

relações ocorrem trocas de dádivas que despertam a obrigação de serem retribuídas, como

prestações sociais a serem pagas ao longo do convívio. Essas retribuições se constituem como

um sistema de dádivas contratuais que acompanha os momentos da vida, pois “esse sistema

de oferendas contratuais em Samoa estende-se muito além do casamento, acompanhando os

seguintes acontecimentos: nascimento de filho, circuncisão, doença, puberdade da moça, ritos

funerários, comércio” (MAUSS, 2003, p. 194). No caso do contrato estabelecido entre a

pequena Solange e sua madrinha, a rezadeira Maria Nova, o tempo simbólico no contexto

comunitário foi a noite de São João onde nas comunidades rurais do sertão nordestino, dia

ritual de experiências de inverno, de adivinhações, profecias, de comemoração dos santos

herdada dos portugueses. Assim:

A data coincide com o solstício de verão, quando os camponeses aguardam a

colheita: em toda a Europa se acendiam fogueiras, se dançava, se davam

saltos sobre as chamas.

O bom devoto pula a fogueira e não se queima (BOSI, 2003, p. 63).

Segundo a autora, essa tradição praticada pelos jesuítas causou muita admiração aos

índios. No Nordeste brasileiro, a noite de São João foi ressignificada e passou a ser um

momento social para criar laços de identidade como madrinha e afilhada, padrinho e afilhado

e relações de amizade e compadrio. Assim como nas sociedades estudadas por Mauss em que

presentes e oferendas marcam fases da vida e momentos simbólicos nas sociedades polinésias,

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na relação entre a afilhada de fogueira e sua madrinha rezadeira se constrói uma troca que

ultrapassa os presentes materiais, embora estes também fizessem parte do contrato social,

como as galinhas presenteadas no aniversário da afilhada e as espigas de milho de cor escura

que Maria Nova guardava para a afilhada comer como ritual de proteção, como um talismã e

um presente ofertado a quem goza de sua mais íntima amizade e consideração. A afilhada

passou a receber as bênçãos da sua madrinha de fogueira, uma proteção especial com ritos

que não eram ofertados a qualquer pessoa que procurasse o seu ofício de rezadeira:

Eu, como primeira neta da família HERMÓGENES, recebi como padrinhos

de batismo meus avós paternos, foi a escolha dos meus pais. Aos seis anos

descobri que poderia ter uma madrinha e um padrinho de fogueira. E numa

manhã de 24 de junho, fizemos nosso juramento diante das cinzas da

fogueira de São João, sob uma neblina santa:

- São João disse e São Pedro confirmou que você fosse minha madrinha que

São João mandou!

- São João disse e São Pedro confirmou que você fosse minha afilhada que

São João mandou!

A partir daí eu tinha minha madrinha Maria Nova e o meu padrinho João

Camaleão que era genro dela. E eu toda orgulhosa dessa intimidade de

afilhada, frequentava sua casa e levava minhas amigas e irmãos quando

estavam com dor de dente ou machucavam-se para a madrinha benzer. E

ficávamos deslumbrados quando ela riscava no chão com uma faca em volta

do pé machucado, (desenho da silhueta do pé) e depois fazia três cruzes com

a faca dizendo:

- Carne triada, osso rendido. E jogava a infecção para o vento levar. Mais

interessante ainda era quando íamos cortar ínguas (pequena glândula na

virilha, corpo ficava febril), ela dizia:

- Um, dois, três ínguas cortei...

Rezava sempre com uma faca cortando desenhos de cruzes no solo e

jogando ao vento o mal, às vezes dobrava folhas de ervas que não sei o

nome. E aquele rosário no pescoço fascinava a todos nós, era uma relíquia.

Todos os negros e negras usavam e ficavam nervosos se alguém ousasse

mexer em seus rosários, ficavam furiosos (BATISTA, 2016, p. 67).

A afilhada desfruta de um prestígio particular da rezadeira e essa proteção especial

que lhe é conferida provém da autoridade da agente popular, sua bênção é fonte de dádivas

gerada a partir da dádiva que recebeu para ser rezadeira e repassada quando a madrinha

responde ao pedido de bênção:

Minha madrinha de cor negra, voz doce, semblante de guerreira, com seu

rosário no pescoço e turbante na cabeça. Em tom solene dirigia-me uma

saudação carinhosa:

- Essa menina!

- Neguinha, como vai sua mãe?

E eu, bênção minha marinha!

- Deus te cubra de fortuna.

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Era tudo o que eu queria. Essa saudação enchia-me de esperanças. Sempre

entendi que fortuna era felicidade, alegria, saúde... (BATISTA, 2016, p. 66).

A relação entre madrinha e afilhada gerou entre a menina Solange e a senhora Maria

Nova uma dívida divina, um contrato revestido do caráter sagrado que uniu as duas histórias

de vida numa ligação que foi contantemente mantida e renovada, uma dívida que não

terminaria de ser paga e deveria ser presente por toda a vida. Nesse sentido a consideração e a

gratidão da afilhada para com a madrinha originada no batismo simbólico da fogueira de São

João se assemelham ao contrato social e sagrado dos afilhados do Padre Cícero Romão

Batista a quem os seus afilhados devem respeito e devoção pelas bênçãos recebidas. Essa

filiação enquanto lógica social, conforme Figueiredo (2002) ao citar o entendimento de

Lanna, não se limita a uma economia pura, isto é, de utilidade prática e econômica, mas para

Figueiredo constitui um princípio de comportamentos e atitudes, de gestos, hábitos, falas, de

veneração ao padrinho e obediência aos ritos em sua devoção como preceitos inscritos em seu

cotidiano, como o respeito ao dia da morte do Padre Cícero no dia 20 de cada mês, a adoção

do nome de Cícero para os filhos, entre outros costumes. Assim:

Podemos estar diante do que Lanna chamou de dívida-divina (Lanna 1995).

Gerada pelo batismo, esta dádiva sagrada contraída pelo afilhado ao

padrinho, só poderia ser retribuída por dádivas também sagradas, por parte

do afilhado. No caso em estudo vamos encontrar entre muitos agricultores,

principalmente naqueles mais velhos, através de suas falas, o sentimento de

estarem sempre em dívida (“o que meu padrinho fez por mim eu nunca vou

pagar” – José Olegário) e o compromisso explícito da manutenção

permanente das contra-oferendas sagradas (“meus velhos pais diziam sempre

que nós devemos oferecer a meu padrinho nossas alegrias e nossas dores. A

colheita boa e a ruim” ... Cícero José) (FIGUEIREDO, 2002, p. 67, grifos

do autor).

O contrato de retribuição do afilhado com o padrinho se transformou em culto de

devoção mesmo após a morte do padrinho, o Padre Cícero Romão, como uma manutenção do

pagamento da dádiva compreendida como dívida divina para o citado autor, como uma forma

de continuar a receber a sua proteção espiritual e manter o contrato uma vez firmado em torno

da dádiva. Nessa compreensão:

O culto da retribuição se confunde, na ótica dos romeiros-agricultores, com o

culto da devoção. A devoção mais do que nunca é um sentimento de ligação.

É esta ligação das comunidades com a presença protetora do padrinho que

nos ajuda a entender o significado da dívida-divina nesta formação

campesina, ao mesmo tempo em que dá pistas para a compreensão da

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construção do mundus camponês na Chapada do Araripe (FIGUEIREDO,

2002, p. 67, grifos do autor).

Para os afilhados do Padre Cícero, a devoção continua como pagamento da dívida

divina do afilhado com o padrinho. O princípio dessa reciprocidade entre ambos elabora a

dívida por toda a vida. Assim como o fazem os afilhados do Padre Cícero, o sentimento de

ligação entre Solange e sua madrinha Maria Nova, mesmo após a morte da rezadeira continua

pela gratidão a proteção que lhe foi oferecida quando vivia e hoje por meio da memória que

tece daquela que tanto lhe abençoou, também compreendido como uma espécie de culto de

devoção, continua o seu compromisso de retribuição da dádiva e permanente pagamento da

dívida sagrada.

Na esteira do poder mágico e religioso dos dons e dádivas, Mauss nos faz

compreender que dispor do dom é uma espécie de pagamento de tributo pelo agraciamento do

seu portador. Colocá-lo a serviço dos membros do grupo em que a dádiva floresceu e foi

aperfeiçoada é a natureza da troca social. A rezadeira dona Lurdes também se inscreve junto a

sua prima dona Cosma nessa teia social de obrigações e retribuições, numa transação humana

em que “tudo se mistura numa trama inextricável de ritos, de prestações jurídicas e

econômicas [...]” (MAUSS, 2003, p. 192). Com o reconhecimento de uma pessoa de que é

portadora de um dom e com o ensinamento buscado após essa tomada de consciência, ou pela

transmissão memorial da sabedoria dos mais velhos que nela reconhecem esse dom e a

necessidade do seu aperfeiçoamento para o futuro exercício, para esse estudioso o viés

voluntário dessa atuação vai se tornando obrigatório e interessado nas prestações sociais. Esse

interesse que não se restringe ao fator econômico, concentra-se no lugar social que será

ocupado pela rezadeira na vida do seu grupo.

Dona Lurdes, após alguns anos distante do seu lugar de origem, voltou decidida a

dispor do seu dom a serviço da sua comunidade do Quati e da Lagoa do Mato, o que ocorreu

após o despertar da dádiva no encontro com um baiano, um sujeito que lhe transmitiu os

saberes de um rezador mais velho, ensinando-lhe um remédio e como rezar em criança,

atividade que logo começou ao retornar para o sítio Lagoa do Mato. Desde jovem foi ensinada

a rezar por sua tia, Neném, mãe da rezadeira dona Cosma, mas foi o ensinamento do baiano

que lhe avivou o dom. Na natureza dessas negociações humanas, esse mercado simbólico e de

identidades é um fenômeno constitutivamente humano alicerçado em histórias de vidas. O

dom dos agentes populares é “uma das rochas humanas sobre as quais são construídas nossas

sociedades [...]” (MAUSS, 2003, p.188-189) e a base de sustentação de muitas outras rochas,

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a pedra fundamental desse construto social. A recepção de dona Lurdes em sua comunidade e

a fé das pessoas do lugar em sua nova atividade é uma moeda nessa troca simbólica e dentre

os seus trabalhos cotidianos o exercício do dom por meio das rezas originou em sua história

de vida um novo lugar na divisão social do trabalho na região do Quati e da Lagoa do Mato.

Vejamos:

Ciro: E ... a senhora começou a rezar nas pessoas aqui, começou a ser conhecida como rezadeira,

muita gente procura a senhora?

Lurdes: É é eu num sei se é a fé dele, acho que é a fé dele que né? Eu faço o que eu posso.

Ciro: Então tem, tem quase trinta anos que a senhora é rezadeira aqui?

Lurdes: Vinte e seis.

(Transcrição 2 - 29.02.2016).

O reconhecimento das pessoas faz a economia da dádiva funcionar na comunidade.

Consciente do seu papel, a rezadeira afirmou fazer o que pode, ou seja, reconhece o seu

esforço para colocar-se a serviço da dádiva em favor de quem precisa. Lurdes passou a ocupar

o espaço deixado pelas rezadeiras mais antigas a quem tanto admirava e o seu desejo de

também ser uma rezadeira é uma troca, um pagamento simbólico pela atuação dessas

mulheres em seu meio, servindo aos moradores das comunidades próximas por toda uma

vida. O interesse individual de Lurdes passou a ser um bem coletivo que se transformou num

serviço. A fé dos membros do seu grupo em suas rezas deu origem ao contrato com a

coletividade. Na relação com a trama inextricável de ritos, como descreve Mauss, observar as

rezadeiras mais velhas gerou em Lurdes o desejo e a obrigação de retribuir a dádiva do

serviço delas e se tornar uma sucessora no grupo, assim “Se o presente recebido, trocado,

obriga, é que a coisa recebida não é inerte. Mesmo abandonada pelo doador, ela ainda

conserva algo dele” (MAUSS, 2003, p. 198). Nessa esteira, a reza ensinada por Neném de

Faba à sua sobrinha Lurdes e a observância dos ritos das outras rezadeiras da comunidade

surgiu em Lurdes à identificação com o ofício e a vontade de ajudar as pessoas, o que nos

mostra como a dádiva dinamiza as relações na sociedade e que não existe inércia em se

tratando do exercício da dádiva, pois ela obriga a sua continuidade como centro das relações e

apesar do desaparecimento físico dos antepassados, das rezadeiras mais velhas, há

continuação por parte de quem recebeu os bens espirituais como uma prestação a ser paga. Ao

cumprir sua parte nessa negociação, a rezadeira se reveste de prestígio e de autoridade diante

dos membros da comunidade. Ao se tornar transmissora distribuidora dos bens espirituais e

das benesses herdadas e aprendidas com os ancestrais, voltar a sua terra para exercer o dom

constituiu uma troca pelos ensinamentos e pelo reconhecimento da sua atividade, uma

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retribuição tanto à origem espiritual da dádiva atribuída a Deus como pela fé depositada pelas

pessoas em sua atuação. Dessa forma, na lógica social que rege as relações tecidas nas

comunidades do Quati e da Lagoa do Mato em torno das dádivas recebidas e retribuídas:

Compreende-se logicamente, nesse sistema de ideias, que seja preciso

retribuir a outrem o que na realidade é parcela de sua natureza e substância;

pois, aceitar alguma coisa de alguém é aceitar algo de sua essência espiritual,

de sua alma; a conservação dessa coisa seria perigosa e mortal, e não

simplesmente porque seria ilícita, mas também porque essa coisa que vem da

pessoa, não apenas moralmente, mas fisica e espiritualmente, essa essência,

esse alimento, esses bens móveis ou imóveis, essas mulheres ou esses

descendentes, esses ritos ou essas comunhões, têm poder mágico e religiosos

sobre nós. Enfim, a coisa dada não é inerte. Animada, geralmente

individualizada, ela tende a retornar ao que Hertz chamava seu “lar de

origem”, ou a produzir, para o clã e o solo do qual surgiu, um equivalente

que a substitua (MAUSS, 2003, p. 200).

O dom no entendimento do autor é parte significativa da natureza de uma sociedade

e da essência espiritual de uma pessoa. As pessoas da comunidade que aceitaram dona Lurdes

como uma nova rezadeira reconheceram essa essência e o seu dom, que não poderia ser

conservado de forma inerte, mas uma vez reconhecido pelo portador, recebida à transmissão

memorial dos ensinamentos, a dádiva deve se tornar serviço. Nas sociedades estudas por

Mauss, a omissão da dádiva era considerada perigosa e mortal. No universo das rezadeiras

seria uma ingratidão com a divindade que concedeu a dádiva e com a sabedoria ancestral

ensinada pelos mais velhos e experientes para os membros do grupo que foram eleitos para a

continuidade do ofício, como também com as pessoas que passaram a reconhecer o papel da

rezadeira apresentando fé e reconhecimento em suas orações e benzimentos. Assim na

atmosfera social de dona Lurdes retornou ao seu lar de origem, como denomina Hertz na

citação de Mauss, para o clã e o solo que fertilizou a dádiva, onde o seu dom surgiu, para

retribuir ocupando o lugar que lhe é legítimo de sucessora das rezadeiras que faleceram ou

não rezam mais devido à velhice avançada.

A fé e o reconhecimento dos membros da comunidade do Quati e da Lagoa do Mato

nas rezas é uma face importante na identidade das rezadeiras, conforme também se apresenta

no relato de vida de dona Cosma, rezadeira que atende problemas físicos como carne triada e

desmentidura, isto é, torções nos músculos ou ossos, problemas tidos na comunidade como

sua especialidade, diferentemente de sua prima Lurdes que reza tanto em problemas físicos

como em males espirituais. Este fato foi frisado durante a entrevista da rezadeira Lurdes:

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Ciro: Cosma que é prima da senhora também é né rezadeira?

Lurdes: Corma reza de triadura,

Ciro: Como é que chama?

Lurdes: Carne triada.

Ciro: Carne triada né?

(Transcrição 2 - 29.02.2016).

Como Lurdes é rezadeira procurada em diversas situações, Cosma reforça que é

bastante procurada, que é difícil o povo ir para Lurdes. Embora afirme que essa procura

acontece de vez em quando, na sua narrativa de vida faz questão de marcar o reconhecimento

dos membros da comunidade pelo seu papel e a valorização da sua especialidade enquanto

rezadeira. Inclusive afirmou em sua fala que é mais procurada que a rezadeira Lurdes. Isso

reforça que as pessoas da comunidade tem fé em suas rezas. Vejamos:

Ciro: E hoje vem gente procurar a senhora aqui né?

Cosma: Aquii? Ahahaha (risos) de veizinquando chega gente aqui de veizinquando de veizinquando,

quair todo mundo por aqui Lurde reza ali (aponta ligeiramente com o dedo) mar é difíci o povo ir lá pa

Lurde, só vem pra cá pa mim rezar, só vem pra cá.

(Transcrição 3 - 28.03.2016).

Essa fé e essa procura elabora uma troca em que a dádiva está no centro dessas

relações. O dom sentido e reconhecido por Cosma ao ver sua tia Bia rezando gerou o desejo

de aprender o ofício. A dádiva da reza da sua tia teve continuidade no desejo da jovem

sobrinha ao revelar o seu desejo de se tornar também uma rezadeira e ao pedir que lhe

ensinasse as rezas como mostra de que a dádiva não é inerte e sim dinâmica e ao ser aceita a

pessoa que a transmite lhe entrega parte da sua vida, da sua essência e da sua alma conforme

Mauss. Sua tia, a rezadeira Bia, fazia essa entrega tanto para os membros das comunidades de

Quati e da Lagoa do Mato ao exercer o seu dom em favor destes como de maneira especial

sua essência constituída pela dádiva foi repassada para Cosma, como também o fez dona

Tomásia a sua neta Naldi e o baiano a Loudes. Cosma relatou que rezou nas pessoas desde os

quinze anos, fase da sua história de vida compreendida como um rito de iniciação e de

passagem, assim como as outras rezadeiras desta pesquisa que passaram por momentos de

preparação para o exercício do dom.

Outro ponto importante destacado em seu relato de vida é a obrigatoriedade do

serviço para quem foi agraciado pela dádiva. Essa concepção é tão forte nas culturas

populares e no universo humano das rezadeiras, segundo dona Cosma, reza não se paga nem

se pode dizer obrigado em agradecimento pela reza.

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Ciro: As pessoas reconhecem, procuram?

Cosma: Ééé. Eu me sinto bem quando chega uma pessoa aqui pa peu rezar né?... me sinto bem mermo.

Ciro: Aí essas rezadeiras nunca sim, cobraram pela reza não?

Cosma: Nããão, (balança com a cabeça também) paa assim, é é coisa dimi de, deu piquena que o povo

dizia né? Que reza ninguém se paga, reza ninguém se dá nem obrigado...

(SILÊNCIO)

Ciro: Ok Então...

Cosma: Reza não dá nem obrigado.

Ciro: Tem que, é que a pessoa recebe o dom e ee....

Cosma: Ééé ... reza não se paga ... né? ...Vejo dizer desde de quando era pequena que eu via ... o povo

dizer.

(Transcrição 3 - 28.03.2016).

Na compreensão das rezadeiras tanto cobrar pela reza como dizer obrigado constitui

uma ofensa a quem se dispôs a dedicar a vida a exercer o seu dom no grupo. A pessoa que

recebeu a reza pela dinâmica da cultura e da lógica social dessas sociedades não pode tratá-la

como uma mercadoria comercial que foi comprada. Porém, a retribuição através da amizade,

do respeito, da consideração e até de presentes materiais ou ajuda em dinheiro desde que

motivados pela retribuição no sentido de uma troca de dádivas, e não de um mero pagamento

por um serviço qualquer. A troca de dádivas estabelece um vínculo social e afetivo entre as

rezadeiras e as pessoas em quem rezam. A obrigação gerada pela dádiva se compara aos ritos

e cerimônias do potlatch das tribos australianas ou norte-americanas por ser composta de dois

momentos sociais que se complementa que integram pois a prestação total não implica

somente a obrigação de retribuir os presentes recebidos, mas supõe duas outras igualmente

importantes: obrigação de dar, de um lado, obrigação de receber, do outro” (MAUSS, 2003, p.

201). Receber e aceitar a dádiva por meio das rezas em si já constitui o sistema de trocas que

gera um vínculo espiritual e identitário, porém a retribuição seja material ou simbólica, afetiva

reforça a relação entre o doador e o receptor da dádiva. Segundo o autor, a palavra potlatch

significa, em seu sentido maior, nutrir e consumir, isto é, alimentar com os dons espirituais as

transações humanas tecidas pelas dádivas conferindo aos sujeitos envolvidos um sentimento

de identificação e assim construindo um sentido de identidade cultural.

Dessa forma, a vivência das dádivas nas comunidades onde atuam as rezadeiras do

Quati e da Lagoa do Mato inscreve suas histórias de vida na coletividade. As transmissões

memoriais por meio dos ensinamentos das rezadeiras e rezadores mais velhos ao serem

procurados ou ao reconhecerem em seu grupo de convívio pessoas agraciadas com o dom

movem a lógica social das sociedades onde o dom é compreendido como um bem comum que

deve estar a serviço de todos os que dele precisarem. A dádiva constrói uma aliança entre a

rezadeira e o seu grupo, uma comunhão espiritual gerada a partir da economia simbólica da

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doação de toda uma vida, das trocas e retribuições em que se partilham valores como

amizade, reconhecimento e gratidão, perpetuando entre os sucessores dessas agentes na

comunidade a continuidade não apenas da função, mas de toda a base identidade que alicerça

a complexidade da oferta e recepção da reza numa troca de dons e partilha de histórias de

vidas.

4.2 As rezadeiras

As rezadeiras negras do Quati são reconhecidas como guardiãs e transmissoras não

apenas da religiosidade ancestral, mas também da memória dos antepassados. É nessa função

que se inscrevem nas relações com o seu povo numa relação de trocas simbólicas.

Consideradas mulheres sábias e detentoras das vozes ancestrais, como guardiãs e

transmissoras de uma cultura que atravessou o Atlântico, sua continuidade é propiciada pela

oralidade, seus rituais e lições de vida constituem experiências que se revestem de sentido na

vivência coletiva. As rezas e ritos exercidos pelas rezadeiras negras não são apenas orações,

benzimentos, bens culturais isolados, mas se inserem nas histórias de vidas dessas agentes. As

rezas estão intrínsecas as narrativas de vidas e não são recitadas dissociadas de conselhos,

lições que se inscrevem no cotidiano das rezadeiras. É nesse sentido que o momento social

das rezas é o espaço propício à memória do grupo e uma forma de transmiti-la às novas

gerações, para que conheçam a cultura dos seus antepassados, suas origens e o diálogo que

originou uma identidade afro-brasileira.

A rezadeira é reconhecida como portadora de um dom, de uma dádiva divina, que lhe

foi transmitida e confiada por um ancestral e que deve ser posta a serviço dos membros do seu

grupo. Sob o signo da africanidade, suas vozes-memória representam não um passado

perdido, mas um diálogo entre as identidades do passado africano com o presente afro-

brasileiro.

As agentes populares que aceitaram ser entrevistadas neste trabalho são três: dona

Ana Naldi da Silva, dona Maria de Lurdes Martins, já apresentadas no capítulo metodológico.

São herdeiras e continuadoras da função social de seus ancestrais, apesar de devido às

dificuldades de suas vidas precisarem se distanciar geograficamente do seu lugar de origem,

como dona Naldi que mudou de cidade para Pau dos Ferros, mas continua a exercer o seu

dom em outros grupos, e dona Lurdes que teve a memória reavivada por um membro de outro

grupo, um baiano quando morava na zona rural do município vizinho de Uiraúna na Paraíba.

Lurdes voltou sua memória para as práticas culturais e religiosas de sua terra a Lagoa do Mato

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e compreendida a sua função se inseriu por meio da memória no seio da sua gente. Quando

retornou à sua terra pode cumprir a missão que lhe foi confiada. Dona Cosma exerce a sua

função em sua terra entre os seus conforme lhe foi confiado.

São elas as protagonistas desta pesquisa, as narradoras das histórias de vida que

constituem o cerne deste trabalho por meio das suas vozes materializadas nas entrevistas.

Suas histórias estão inscritas na história do seu povo, transmitem, elaboram e reelaboram suas

identidades em comunhão com a memória ancestral e as práticas culturais atuais da sua

comunidade.

4.3 Dona Naldi: entre rezas e memórias

A nossa primeira rezadeira entrevistada neste trabalho, a senhora Ana Naldi da Silva,

que relatou como ocorreu a sua iniciação para o exercício dessa função e como o seu dom

passou a ser um elo, uma coesão com o seu grupo social. Herdeira da tradição de sua avó

dona Tomásia, uma antiga rezadeira do município de Luís Gomes, Naldi é uma das rezadeiras

mais reconhecidas não só no município, mas em toda a região incluindo o sertão paraibano.

Assim:

Ciro: Então, a senhora aprendeu ... as rezas com?

Naldi: Minha vó, Tomásia.

Ciro: Sim, pode falar um pouquinho dela.

Naldi: Ela rezava. Ela me ensinava assim, pra dor de dente, ela começou me insinar pra dor dente. Se

você pegasse um peso muito pesado e sentisse uma dor assim (sinaliza para o peito), ela me ensinava

como rezava sabe?. Ela me insinava, e depois Ciro que ela me ensinou, que que dizer como era pra

fazer, é é, eu vivia assim eeu, de vida eu num fazia como eraa cumprino eu fiquei um pouco

perturbada, eu tinha mais ou menos uns 10 anos de idade. Ciro eu nããão dormia direito, quando ia

dormir era vendo muito santo, muita mata verde ... Muito santo. Eu andando nar aquela mata bem

estreitinha, aquelas varedinha e de um lado e outro mato bem verdim e santo. As imagens que eu

encontrava mais era ... ... era as imagens de São José, São Francisco, Senhora Aparecida, Nossa

Senhora da Conceição. Em cada passo que eu dava que encontrava as imagens no chão eu já

reconhecia que imagem era. ... Ali Ciro...

Ciro: A senhora via no chão né? Mesmo sem a imagem tá lá.

Naldi: No chão.

Ciro: Não era de gesso não, né?

Naldi: Não ... Pois, Ciro, ali eu me acordava e ficava procurando ... Ia dormir de novo Ciro e

começava. Aquelas rodinha, Ciro, assim, como cê pega uma corrente. Quando você pega uma corrente

(mostra no terço que ela usava no pescoço) que tem essas … ..., aí começava bem pequenininha,

aquelas correntinha e de repente se formava gran, desse tamanho (sinaliza com as mãos). Ali eu

tomava aquele susto eu conseguia dormir ... Então foi difícil ... Aí a minha mãe, me levou na casa dum

pessoal, eeu nem hoje sei quem era e quem sabia. Um homem rezador que tinha era foi longe numa

cidade fora de Luís Gomes uma cidadezinha fora de Luís Gomes um sítio. Aí meu irmão contou pra

eles que eu vivia assim que eu não dormia direito, e tudo, aí o homem foi e disse que eu era méida de

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nascença, eu já tinha o dom de rezar, que eu já nasci com esse dom. Então eu como num tava

desenvolvenu, então por isso aí que eu tava ficando perturbada.

Ciro: A senhora tava com treze anos ainda?

Naldi: Sim. Aí eu tinha que. Aí me ensinou, como era que eu fizesse, esse homem falou assim: “Vou

acabar de lhe ensinar o que você tá na metade. Você assista nove missa, nove comunhão”, você vai e

ensinou pra mim rezar, seis horas da manhã, doze horas do dia e seis da noite. Nove missa, e essas

nove penitência pra eu fazer. No sábado eu vesti branco, no sábado, e eu quando passasse esses nove

dias de penitência como eu tava fazeno, eu nunca podia negar a minha oração pra rezar em ninguém.

Ciro depois que eu fiz isso a minha irmã que morava aqui em Pau do Serro, trabalhava na casa de

Pedo Damião e eu vim pra aí, eu já viúva, já foi eu viúva, tá. Aí eu assisti tudo as missa aqui e as nove

comunhão, nove dias e cumpri. Daí pra cá, desse tempo pra cá só encontrei felicidade na minha vida.

Durmo bem, agora só existe uma coisa Ciro, se eu disser “Ciro vou lá na tua casa rezar em você” se eu

num for eu não durmo direito. Éé quando vô durmir é sonhano, rezano em você, aparece as pessoa pra

mim, umas pessoa éé tem uma mulher que aparece sempre pra mim. ... É uma jove, sempre eu vejo

Ciro essa jove, ela vem quando chega diz assim pra mim eu dusmino, eu dusmino eu ecuto: “Naldi eu

cheguei”, aí eu rá sei que, é porque eu fiquei devenu oração aquela pessoa e eu num fiz. Mas tirante

dissaí ... tô muito bem. E sou muito feliz quando chega uma pessoa na minha casa pra eu rezar. Sou

muito feliz Ciro. Realmente a minha linha é branca de pra criança, a minha linha é branca é de criança

mais eu rezo em todo mundo, todo tipo mermo ... Se você perder um objeto eu tenho minha oração pra

você encontrar... tá; se você quiser conseguir uma coisa assim, pedir uma ajuda a mim eu posso

também com as oração posso rezar e com a fé minha e a sua você consegue. É Só você ter fé em Deus

e confiar e acreditar naquela oração que eu tô fazeno.

(Transcrição 1 - 09.11.2015)

A narrativa de vida da rezadeira Ana Naldi apresenta como marco significativo à

descoberta do seu dom e da sua função na comunidade. A sua avó, dona Tomásia, citada no

livro de memória de Gaudêncio Torquato (2008, p. 86) numa perspectiva diferente do relato

de vida, apenas como “A veia Tomásia, cara da mãe-África, que adorava pitar um

cachimbinho: sua filha Chica, engomadeira, mãe de uma grande prole que tanto ajudou a

nossa casa, como os serviços do meu pai nas terras do São João, perto da bolandeira (casa de

farinha) onde moravam”. A visão ocidentalizada do memorialista, a partir do seu contexto de

filho dos patrões não lhe permitiu reconhecer que dona Tomásia era uma importante agente

cultural dos povos afrodescendentes, restringindo-a um simples serviçal doméstica. Tomásia

era um importante rezadeira na comunidade, mãe de Chica de Tomásia, como ficou conhecida

popularmente a mãe de dona Naldir rezadeira. Foi dona Tomásia a responsável pela

transmissão memorial da função a Naldi e a imagem que a nossa colaboradora tem da avó.

Bosi (2007) reflete que o lugar ocupado pelo sujeito no seio familiar, no convívio diário, não

se compara ao convívio social cheio de convenções, pois nesse universo particular, o sujeito

pode revelar uma outra face.

As rezas, a função destas no grupo social rememorado por dona Naldi lhe conferem

uma posição, um lugar no seio da comunidade que um dia foi ocupado por sua avó dona

Tomásia. Na tradição popular, uma mulher não poderia transmitir a sua função nem ensinar às

rezas a outra porque quebraria as suas forças, ou seja, suas rezas não teriam mais eficácia

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simbólica, para utilizar um termo de Pierre Bourdieu sobre o poder simbólico da linguagem.

Como o universo empírico desta pesquisa se inscreve no contexto de literatura e de cultura

orais, a memória se apresenta como o centro dessa socialização. A transmissão dos

ensinamentos por meio da oralidade é a função social da rezaderia no seu grupo, como de

diversos outros agentes da cultura popular, poetas, contadores de histórias. Há o pensamento

de que uma mulher não pode ensinar as rezas à outra nem lhe transmitir a função. No caso da

história de vida de dona Naldi, uma mulher mais velha, sua avó Tomásia, foi a responsável

pela transmissão da função no grupo social. Tomásia, a avó e portadora de uma rica

experiência na cultura do seu povo representa o critério predominante nas comunidades de

que as rezadeiras “são mulheres normalmente de idade” (COSTA, 2009, p.245). Esse traço

segundo o autor se dá pelo fato de que uma mulher mais velha, idosa, geralmente viúva, vive

em abstinência sexual, o que para o grupo lhe confere maior respeito e autoridade,

favorecendo o poder simbólico que lhe é reconhecido. Sobre a transmissão da função na

comunidade, o autor nos afirma que:

O dom, a descoberta: 90% ou mais delas são analfabetas. Elas não leram,

não pegaram orações em livros, não decoraram a partir de leituras, nem a

partir da escrita. Não. São analfabetas. Muitas não assinam nem o nome.

Enfim, aprenderam através da oralidade. Tiveram o dom de ouvir e de gravar

rapidamente centenas de orações ouvidas de outra pessoa do passado

(COSTA, 2009, p. 247).

Dona Naldi aprendeu o ofício com a sua avó Tomásia, esta que reconhecendo em sua

idade avançada a necessidade de transmissão da sua prática cultural decidiu ensinar à neta

ainda jovem aos treze anos porque foi chegado o tempo de não rezar mais em ninguém.

Embora o seu irmão Zé Pretim também exerça a função de rezador, Naldi afirmou não saber a

sua história, como ele aprendeu o ofício. O convívio com sua avó lhe conferiu a confiança

para a transmissão das rezas, visto que da família ela foi a única escolhida para suceder a

função da avó. Esse ponto da história de vida de Naldi dialoga com Costa que, ao entrevistar

rezadeiras, percebeu que:

Muitas delas me dizem que aprenderam de um homem. Algumas dizem que

foi de mulher. Mas normalmente, quando eu pergunto, elas dizem: mulher

que ensinar à mulher perde as forças. Então, ela acredita que não pode

repassar para outra mulher as suas rezas, o seu mundo místico. Ela tem que

passar para um homem, e um homem passar para uma mulher. No entanto,

há uma contradição, quanto a esse aspecto, pois muitas dizem que

aprenderam vendo e ouvindo as avós rezarem (COSTA, 2009, p. 247).

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Um fato que se assemelha ao pensamento predominante de que o saber popular deve

ser transmitido para o sexo oposto é a história de vida de Dona Maria José em que, na hora da

morte, o seu pai, Atanásio Salustino, responsável na sua comunidade por ajudar os

moribundos na hora da morte, tendo ajudado a sua esposa e na sua ausência para encomendar

sua irmã Petronila foi substituído por D. Maria José. No momento de sua morte, a função de

Seu Atanásio foi repassada para D. Maria José, que cuidou da encomendação do pai e, a partir

desse momento, assumiu a sua função na comunidade. Nesse relato de vida, uma mulher

aprendeu com um homem no convívio e na experiência de uma vida inteira e sem intervalo de

gerações. Vejamos:

Entre a morte da mãe e do pai, percebe-se que a função de cuidar do morto é

transmitida pelo pai a D. Maria José. A mãe é “encomendada” por ele, pois é

Seu Atanásio quem “bota a vela” responsável pela iluminação do caminho

de sua esposa. Herdeira da tradição, a D. Maria José coube a tarefa de prestar

os ritos ao pai. E mesmo em outros momentos, como no relato da morte de

sua tia Petronila, na ausência de Seu Atanásio (que pressentiu a morte da

irmã), D. Maria José foi a responsável por “cuidar” da moribunda, exercendo

o papel de substituta do pai (RODRIGUES, 2006, p. 250).

Dona Maria José, como era conhecida no seu grupo social, e reconhecida no meio

artístico como Dona Militana era uma agente da cultura popular que exercia diversas funções

na sua comunidade: narradora, romanceira, cuidava dos moribundos e cantava excelências

para encomendação dos defuntos e nessa gama de funções também era rezadeira, embora não

fosse tão reconhecida por essa função como era pelo viés artístico de cantar romances.

Segundo Gutemberg Costa, que adotou em sua pesquisa a denominação de rezadeira, por ser a

mais enfática, ao invés de curandeiros, com os quais afirma ter tido pouco contato, e a

categoria empírica de mulheres rezadeiras. O autor aborda também a diversidade de funções

da agente popular e afirma que a sua função de narradora e romanceira não se separa da

atuação como rezaeira, enfatizando ainda que a religiosidade popular é um traço característico

do povo brasileiro e de seus agentes populares.

No relato de vida de dona Naldi, a questão da passagem das rezas de uma mulher

para outra, no caso de sua avó Tomásia, não gerou o problema conhecido nas culturas

populares de quebra de forças, ou seja, de as rezas de quem transmitiu perder a sua eficácia,

porque sua avó não exerceria mais a função devido à idade avançada. Dona Tomásia não mais

rezava e precisa fazer a “passagem” das rezas, como podemos compreender à luz do

pensamento de Walter Benjamin (1993) em seu ensaio “O Narrador: considerações sobre a

obra de Nikolai Leskov” , em que, com a aproximação da morte, o narrador passa a sua

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experiência de vida, a sua função no meio social, os segredos do seu ofício, como uma

maneira de perpetuar a cultura e as vozes ancestrais. Nas culturas populares sente-se a

necessidade de transmissão da função e a sabedoria se torna transmissível segundo Benjanin.

Para a função de rezadeira, dona Naldir foi a escolhida por sua avó para exercer, ao contrário

do irmão Zé Pretim, que aprendeu as rezas noutro contexto:

Ciro: Que assim porque eu já tinha ouvido falar que mulher não passava pra mulher porque quebrava

as forças. Mas a senhora aprendeu com a avó da senhora e não quebrou as forças dela né?

Naldi: Não, porque ali já foi ela quem já passou pra mim. Que ela não rezava mais aí foi uma

passagem.

Ciro: Siiim ela não ia mais rezar. E assim da família ela só passou pra senhora?

Naldi: Só, só passou pra mim. Agora tem meu irmão Zé Pretim, ele reza mas eu não sei a história dele.

Éé não sei como, de onde veio e como foi, que que meu irmão Zé Pretim, que ele morava (…) João

Rosa e hoje ele mora cá na rua, construiu uma casa. Então ele reza mas a história dele eu não sei,

como foi.

Ciro: Como é a reza, é assim parecida com a da senhora, é não?

Naldi: É não. Eu num vô dizer que é porque eu não, eu, a dele o povo vai lá na casa dele procura rezar

mais eu não sei contar a história dele, eu sei da minha, a dele eu não sei como foi que surgiu porque

foi de pequena né, já nasci com esse dom, eu foi de pequena e meu irmão eu conheci ele rezando agora

com poucos tempos, poucos tempos.

Ciro: sim, não é de pequeno?

Naldi: Não, não. Éé, foi de um tempo desse pra cá.

Ciro: E assim a avó da senhora foi a transmissão, assim ela ensinou pra deixar pra alguém pra quando

ela partisse, né?

Naldi: Passou pra mim, ela disse “minha filha, eu não vou mais rezar em ninguém, que já tô de idade,

vou passar pra você, tudo o que eu sei das minhas oração eu vou passar pra você”. E era tão incrívi, éé

Ciro, que quando ela me ensinava hoje, amanhã ela ia perguntar, mandar eu rezar, do mesmo jeito eu

num faiava um, nem…

Ciro: Já tava na memória.

Naldi: Já tava na mimória. Tarra na mimória. Agradeço muito a Deus e amo ela, e peço sempre pra ela

mim ajudar cada vez mais. Peço sempre a ela, todo dia falo com ela.” Mãe véa me ajude cada vez

mais, a sinhora me ajudou, continue me ajudando na graça de Deus... pois é Ciro.

(Transcrição 1 - 09.11.2015).

O fato de uma mulher fazer a passagem de suas rezas para outra e de um homem

fazê-la para outro segundo a crença popular causa o que é chamado de quebrar as forças, isto

é, as orações e benzimentos perdem a sua eficácia, o seu poder de realização. Rodrigues

(2006) relata que Seu Atanásio repassou o seu ensinamento e a sua função para sua filha

Maria José, esta que já ocupando a função do pai colocou a vela em sua mão na hora da

morte, ofício antes realizado por ele que havia ajudado a esposa na hora da sua morte. Costa

(2009) também constatou o pensamento de que a passagem deve ser feita para o sexo oposto

para não perder o poder de efeito das orações, mas que muitas rezadeiras aprenderam com as

avós e passaram a exercer o ofício sem perder a força devido à transmissão de mulher para

mulher. Compreendemos, assim, que não pode ser passado para o mesmo sexo quando ainda

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se está exercendo a função, como se houvesse uma quebra do poder, uma divisão de forças,

mas quando a rezadeira se aproxima da morte ou a velhice não permite mais a atuação, a

função pode sim ser repassada para outra mulher.

Outro ponto significativo deste relato é a importância da memória para a transmissão

das rezas e das outras manifestações culturais populares, já que nesse universo predomina a

oralidade, já que nenhuma reza ou ensinamentos foram-lhes passados por escrito, o convívio

permitiu o aprendizado das rezas e, como disse Naldi, ouvia a reza e já estava na memória e

conforme Costa (2009) puderam ouvir e memorizar com rapidez as orações repassadas no

passado, o que se constitui como uma nunace do dom. Assim dona Tomásia foi guardiã e

transmissora dos seus saberes recebidos dos ancestrais e num contexto em que a escrita era

acessível apenas para poucos, foi a voz o suporte da sua cultura. O seu dom e as rezas

aprendidas com os antepassados por meio da voz a fez escolhida e preparada para que

também escolhesse uma sucessora. A função da rezadeira é para as escolhidas e é função das

mais velhas a transmissão que exige muita responsabilidade na escolha. Assim ela integra um

contexto em que:

Cada sertanejo é guardião de parte dos saberes e segredos de um mundo que

só pode ser alcançado pela voz. Contudo, cabe a alguns poucos escolhidos a

responsabilidade da transmissão memorial, da tradição e da criação no

domínio da oralidade. Dentre os escolhidos encontram-se os poetas e os

profetas (HÖFFLER, 2009, p. 194).

Nesse meio cultural, a função da rezadeira se reveste da mesma responsabilidade que

a dos poetas e profetas, pois estas agentes da cultura popular sertaneja, cujas práticas e

manifestações se inserem no universo oral, recebem a responsabilidade do exercício do dom,

do aprendizado da função e da transmissão desta para membros mais jovens do seu grupo

social e comunidade. As rezadeiras são escolhidas e também tem a responsabilidade de fazer

as futuras escolhas, pois a elas cabem a tranmissão memorial das tradições e da memória do

seu povo, como o fez dona Tomásia para a sua neta Naldi.

Em diálogo com o pensamento de Costa, o médico e pesquisador da cultura popular

Iaperi Araújo reflete a influência dos rituais afro-brasileiros e indígenas nas práticas da

medicina mágica popular, principalmente na religiosidade da macumba mais próxima das

matrizes africanas ou do catimbó mais relacionado à herança indígena. Já as rezadeiras e

benzedeiras como herança do catolicismo colonial, gradativamente foram adequando suas

crenças aos santos católicos, e como a cultura popular se trata de um fazer dentro da vida,

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como ressalta Ayala em seus diversos escritos, cada santo católico foi associado a uma

situação, a um problema, doença, como protetor e mediador da cura e solução, e a rezadeira

está atenta a essas necessidades do cotidiano de sua gente. Nessa compreensão, as práticas das

rezadeiras apresentam elementos de diversas culturas e não podemos limitá-las entre a

chamada medicina mágica e a medicina religiosa, pois apresenta elementos de ambas:

A medicina mágica utiliza o sobrenatural como elemento auxiliar para

diagnóstico e tratamento. Está muito vinculada aos ritos afro-brasileiros e

indígenas, especialmente os de macumba, candomblé ou umbanda e dos

catimbós. Difere essencialmente da medicina religiosa praticada pelas

benzedeiras e rezadeiras, tanto para cura como para prevenção dos males que

atacam os crentes, pois alia-se objetivamente aos santos da Igreja Católica e

ao seu poder de proteção, baseada nos conceitos de “Corte Celestial” através

dos quais cada santo é um pequeno deus com poderes sobre a saúde e as

doenças (ARAÚJO, 2003, p. 23-24).

No relato de vida da rezadeira dona Naldi, a descoberta do seu dom, como ela mesma

elabora em sua fala, está relacionada a sua religiosidade católica e aos ensinamentos de sua

avó dona Tomásia. A visão dos santos católicos como São José, São Francisco, Nossa

Senhora Aparecida, Nossa Senhora da Conceição representa a herança cultural católica legada

pelos colonizadores do nosso país. Nessa hibridização com as raízes ancestrais da cultura

africana de quem herdamos o elemento mágico das manifestações, a presença dos santos,

principalmente de Nossa Senhora da Conceição e de Nossa Senhora Aparecida. A Virgem da

Conceição era uma devoção portuguesa cultuada pelos brancos, pois os negros escravizados

cultuavam Nossa Senhora do Rosário dos Pretos. A Virgem de Aparecida se tornou uma

ressignificação do catolicismo colonial em que uma devoção branca se revestiu do contexto

das histórias de vida dos negros. Fundiram as duas denominações em Nossa Senhora da

Conceição Aparecida, para os negros a metonímia de uma identidade múltipla, pois uma

devoção de cor branca do colonizador ao receber o adjetivo de Aparecida ao signo Conceição

passou a ser símbolo da luta contra a escravidão. Aparecida era a Nossa Senhora da

Conceição dos negros. Como afrodescendente e neta de dona Tomásia, rezadeira que na casa

dos patrões brancos era reconhecida apenas como força braçal nos trabalhos domésticos, e

não como uma agente da sua cultura, dona Naldi tem a visão da imagem da Senhora

Aparecida juntamente com os outros santos como uma progressão histórica, uma troca

simbólica das culturas portuguesa com a história do negro em terras brasileiras. Como uma

espécie de máscara branca às avessas, na compreensão de Fanon (2008). Vejamos:

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Ciro: Então, a senhora aprendeu ... as rezas com?

Naldi: Minha vó, Tomásia.

Ciro: Sim, pode falar um pouquinho dela.

Naldi: Ela rezava. Ela me ensinava assim, pra dor de dente, ela começou me insinar pra dor dente. se

você pegasse um peso muito pesado e sentisse uma dor assim (sinaliza para o peito), ela me ensinava

como rezava sabe?. Ela me insinava, e depois Ciro que ela me ensinou, que que dizer como era pra

fazer, é é, eu vivia assim eeu, devida eu num fazia como eraa cumprino eu fiquei um pouco

perturbada, eu tinha mais ou menos uns 10 anos de idade. Ciro eu nããão dormia direito, quando ia

dormir era vendo muito santo, muita mata verde ... Muito santo. Eu andando nar aquela mata bem

estreitinha, aquelas varedinha e de um lado e outro mato bem verdim e santo. As imagens que eu

encontrava mais era ... ... era as imagens de São José, São Francisco, Senhora Aparecida, Nossa

Senhora da Conceição. Em cada passo que eu dava que encontrava as imagens no chão eu já

reconhecia que imagem era. ... Ali Ciro...

(Transcrição 1 - 09.11.2015)

Nas culturas populares, há o pensamento predominante de que o dom recebido como

dádiva divina deve ser posto a serviço dos membros do grupo social ao qual pertence, como

uma atitude de resposta e agradecimento à dádiva divina recebida. Em entrevista realizada

com o poeta e cantador de viola Antonio Florentino Valença, em sua obra No arranco do

Grito: aspectos da cantoria nordestina, Ayala (1988) aborda a gratuidade do dom nas

culturas populares. Falando de sua poesia e de sua atividade como ventríloquo, repentista e

cômico, o artista ressalta em depoimento à autora do livro que diverte as criancinhas pobres,

mas se cobrasse “eu ganharia muito mais, mas aí estaria vendendo o que Deus me deu. Porque

se dá de graça o que de graça se recebe, nem paguei para ser poeta e nem estudei para ser

poeta, nem para ser ventríloquo, então eu tenho o dever de dar de graça (...)” (AYALA, M. I.

N.,1988, p. 40). O poeta ainda ressalta que o dinheiro que ganha doa aos menos favorecidos,

não recebe cachê e dessa forma ganha muito mais. Segundo Ayala (1988), os agentes da

cultura popular possuem a concepção de que “a arte é uma dádiva divina que não deve ser

utilizada como fonte de recursos” (AYALA, M. I. N.,1988, p. 40).

A mesma lógica social rege a atuação das rezadeiras que não costumam cobrar por

seus atendimentos. Na minha convivência com dona Naldi, mesmo antes desta pesquisa

quando era minha rezadeira, testemunho o fato dela não cobrar por seu ofício, embora não

afirme verbalmente no seu relato de vida e eu não perguntar por prudência como parâmetro da

pesquisa em história de vida, pois ela poderia se sentir desrespeitada já que dessa informação

sou consciente.

Gutemberg Costa (2009) ressalta a gratuidade do exercício da função das rezadeiras.

Que ninguém pague pelos seus rituais, assim como jamais ouvimos falar de um narrador

popular legitimado por seu grupo que cobrasse pelas suas narrativas. A não ser os que já

folclorizados realizam apresentações culturais Nessa atmosfera de compreensão, o

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pesquisador reafirma em seus escritos que, apesar da predominante situação de pobreza

material, muitas vezes de fome, o exercício da função é gratuito: “Eu cheguei a algumas

regiões vendo que a situação era de total miséria, de fome mesmo.” (COSTA, 2009, p. 246).

A função de rezadeira enquanto guardiã e transmissora da memória do grupo se

baseia na reciprocidade, na lógica social do dividir que rege as culturas populares. E a

retribuição do dom divino conforme acreditam terem recebido e dos ensinamentos que lhes

foram transmitidos pelos antepassados que motivam o compromisso das rezadeiras, como

exerceu sua função de cuidar dos mortos dona Maria José segundo Rodrigues (2006).

A colaboradora Naldi buscou ressaltar em seu relato de vida o seu compromisso com

os membros da sua comunidade, com os que procuram as suas rezas, caso não cumpra a sua

função se sente em dívida com as pessoas que fazem parte do seu grupo social. Muitas

pessoas retribuem as rezas com presentes, alimentos, vivência relatada pelo autor e que,

muitas vezes, presenciei na casa de dona Naldi, ou algumas vezes ela pediu o dinheiro para

comprar velas ou outros materiais necessários aos rituais, porém nunca nenhum pagamento.

Conforme podemos ver a seguir:

Ciro: A mãe Tomásia ela rezava nas outras pessoas também assim como a senhora?

Naldi: Rezava, rezava.

Ciro: Era é rezadeira.

Naldi: Mãe véa era. Só que minha vó rezava, mas não era como hoje que tinha; sabe. Quando ela sabia

que tinha uma pessoa necissan necessitando de uma reza, assim, que tava com uma grande dor de

cabeça, que tava assim vomitando e tava com dor, ela ia lá e rezava. Sem ninguém mandar, sem

ninguém chamar, ela ia lá e rezava.

Ciro: Rezava na pessoa sem a pessoa dizer né?

Naldi: Sim. Sem a pessoa chamar ela ia lá e rezava. E ela pediu muito a mim “Minha fia você nunca se

negue você fazer a sua oração a ninguém, num, seja quem for lhe procurar.”

Ciro: Com quem ela aprendeu ela num dizia a senhora não. Aprendeu assim nas casas que ela convivia

né?

Naldi: Éé, ela, elaa aprendeu aa rezar, minha vó dizia que foi com quem ela foi criada com quem ela

conviveu só Ciro que eu não o nome dessas pessoas ela disse, mas não lembro mais.

(Transcrição 1 - 09.11.2015).

[...]

Ciro: E assim quem quem descobre o dom, o dom é gratuito, a avó da senhora nunca cobrou pelas

rezas?

Naldi: Não, nunca cobrou Ciro. E uma coisa eu te digo, isso ela dizia “minha fia não se negue sua

oração pra ninguém e nem cobre de ninguém nada, porque aí foi um dom que Deus lhe deu. Quando

Deus andou no mundo foi rezando e curando viu? Nunca cobrou nada de ninguém. Aí é assim, Ciro,

as pessoa me procura pra fazer as oração eu faço “Naldi, eu alcancei oh muié obrigado, você rezou, fez

oração pra mim agora alcancei o que eu queria, é quanto?” “mulher, né nada. Porque ninguém vende

as palavras de Deus por nada nesse mundo. (... ... ) pessoa assim, uma pessoa me dá dez reais, me dá

quinze reais, porque eu também eu gosto muito de ter minha velinha em casa, Ciro porque assim ciro,

se eu rezar pra você, ali eu gosto de ter uma velinha, acender pa seu anjo de guarda lhe proteger sabe?

E aí, mais deu cobrar tanto, isso eu não faço não, eu num tenho isso não.

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Ciro: E assim, as principais devoções da senhora hoje? Os principais santos que a senhora reza?

Naldi: Os santos? As imagens que você fala? Os santos?

Ciro: Os santos.

Naldi: Éé, é São José, que é meu protetor, que me protege de todas as ... ...É São José, Senhora

Aparecida e Nossa Sinhora da Conceição. É os santos mais de minha devoção, tem mais santos mas o

santo do meu dia mesmo é São José. É um santo que toda hora, eu fecho os olhos e tô vendo ele, ele

me ama e eu amo ele toda hora porque tudo o que eu peço, Ciro vou contar o que aconteceu comigo.

Eu me achei numa situação muito difícil lá em Luís Gomes e um filho muito doente em São Paulo,

pricisando de mim ajudar e querendo vir pra minha casa. Aí, Ciro, imaginei assim “eu vou na

prefeitura pedir uma ajuda pra mim mandar meu filho vim embora. ... Ciro, eu fui lá na prefeitura,

num tinha ninguém. Cheguei no “Dubas” viu? o prefeito tava no Dubas. Eu entrei lá aí contei minha

situação. Ele falou assim, o prefeito falou assim que não podia me ajudar no momento e que a

prefeitura tava sem condições de ajudar nessa situação aí. Ciro, ele me deixou muuuito triste. “Meu

Deus o quê que eu vou fazer, pa meu filho chegar até aqui?” Ciro eu fui lá po meu quarto, me

ajoelhei, rezei e pedi a Deus e abaixo de Deus, Nossa Senhora, o santo do meu dia foi São José. Me

ajoelhei lá no meu quarto, rezei e pedi. Pois, Ciro eu digo a você, eu digo a você que apareceu umas

muié lá em casa e me ajudaram. Me deru o dinheiro da passagem, me ajudaru na passagem, fui buscar

meu filho, quando eu cheguei com ele em Luís Gomes, elas ajudaru, procurau a medicação, procuraru

isso e aquilo, pa meu fi e ele ficou bonzinho e voltou pra lá.

(Transcrição 1 - 09.11.2015).

Na elaboração da sua identidade estão presentes as raízes ancestrais da cultura

portuguesa com o catolicismo colonial constantemente reelaborado, a matriz africana que

atravessou o Atlântico e a cultura nativa dos povos indígenas. Segundo o médico e

pesquisador da cultura popular, Iaperi Araújo, o uso de galhos de plantas nos rituais pelas

rezadeiras é uma herança da matriz indígena, eram os Janduís no litoral do Rio Grande do

Norte e os Cariris no interior, os detentores, os sabedores dos segredos das plantas, de seu uso

tanto medicinal como ritual na busca da cura de doenças.

As rezadeiras, especialistas em quebranto, mau-olhado, vento caído,

sinomínias de uma mesma patologia imprecisa, de origem provável na

desidratação, utilizam pequenos galhos verdes que por inúmeras cruzes

sobre a cabeça da criança enferma, vão murchando, por adquirirem o espírito

da doença que “fazia mal”. Rituais dos pajés que o catimbó nordestino

assimilou como herança da tradição oral (ARAÚJO, 2003, p.20)

Esse legado indígena se fundiu ao catolicismo europeu e à cultura africana,

elaborando-se assim uma cultura brasileira. Numa denominação do pesquisador Gutemberg

Costa “Mulheres que trabalham com galhos de plantas cultivadas em seus lares” (2009, p.

245). O trabalho com plantas consideradas medicinais ou mágicas, com poderes de cura ou de

proteção é uma herança indígena. E como herança da intolerância colonial com os rituais e

manifestações afro-ameríndias “Essas mulheres são discriminadas, inclusive por muitos

padres e religiosos” (COSTA, 2009, p. 245).

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Sobre a relação de dona Naldi com a sua comunidade, esta, segundo o relato de vida,

começou a ser difundida por sua mãe dona Chica de Tomásia, que avisava à vizinhança sobre

o ofício da sua filha, sobre o dom que recebera por dádiva e por ensinamento dos ancestrais e

que estava a serviço do grupo. É essa a lógica social constituinte das culturas populares, o

exercício de uma arte ou ofício que tece uma teia envolvendo os membros de um grupo. Um

dom e uma sabedoria que constroem os laços com o grupo e mediam as relações sociais, as

trocas simbólicas:

Ciro: E assim lá a senhora já atendia as pessoas?

Naldi: Já. Já. É aquele pessoal ali de Compade Bone, éé aquele pessoal ali de Judite, éé do povo de

Seu Nogueira, eraa ali o pessoal de Dona Zefinha de Seu Mané nesse tem, era o pessoal que era o

pessoal mais próximo e quando minha mãe ficou avisando às pessoas que eu nasci com aquele dom e

eeu oo, o homem falou que eu ia ficar feliz, eu comecei a rezano pessoal. Então era o pessoal de

cumpade Bone, Seu Nogueira, o pessoal de Dona Zefinha ali de Seu Mané, era o pessoal que morava

mais próximo de nós era esse povo que nóis tinha mais contato. Era o pessoal de João Ismael, ali

depois onde hoje é de Aldo, sabe? era as pessoa que a gente tinha contato, que morava perto e.

Ciro: E assim quando a senhora casou continuou atendendo em casa?

Naldi: Continuei atendenu, em casa. É, quando eu casei, é, meu marido se chamava Damião que ele

era fi daquela finada Antônia, irmã daquela Nem. Então ele era trabalhador trabalhava com o pessoal

de Seu Pretim, no Leite trabalhava lá em Seu Pretim lá no leite; depois da da Palmeira descenu cê sabe

o que é o leite né lá? Era lá onde ele trabalhava, e sempre ele fa, as pessoa perguntava e sempre ele

falava pras pessoa que eu rezava, aí, por ali as pessoas se chegava minha casa pa rezar. ... Eee eu acho

Ciro que eu comecei a rezar eu tinha mais ou menos uma faixa uns treze, uns doze ano por aí, e já hoje

eu conto sessenta e três anos. Graças a Deus.

Ciro: de reza quase cinquenta né?

Naldi: É.

Ciro: E assim a senhora teve contato, além da avó da senhora, com outras rezadeiras? Frequentou?

Naldi: Tive aqui em Pau do Serro, que foi o tempo que minha irmã morava aqui e eu tive contato. Essa

mulher, acho que, acho que muita gente lá em Luís Gomes conheceu ela. Era uma senhora que morava

com o pade Caminha, uma senhora já bem de idade, bem escura assim que nem eu. Ela também me

ensinou muita coisa

Ciro: E assim na infância a senhora teve contato assim com o pessoal do Quati?

Naldi: Tive. Tive muito contato e era aquele eu pequena mas a minha irmã, Francisca, casou com

Vicente Gi e tinha aquele pessoal de Pedo Vintura, então minha mãe, meu, andarra muito pra lá, tinha

muito contato divido minha mãe era, que tinha era chamava assim era Luzia, éé´muita gente ali que

me, que realmente ainda é famia de Mãe Véa, aquele pessoal dos Vintura ali inda é famia de minha vó

Tomáza. Minha mãe tinha muito contato éé Faba, era Luzia, era Brasilina, esse pessoal tudo tinha

contato.

Ciro: a senhora conheceu ele?

Naldi: conheci tudim, conheci tudim; só é tem as pessoa que eu num conheci que foi Mané Giba que

era o sogro da minha irmã, o pai de Sanzi, Mané Gido eu conheci, mais Antônia de Mané Giba, a mãe

de Vicente Gido, Chico Gido eu conheci, dona Antônia.

Ciro: E assim a senhora tem lembrança das rezadeiras lá do Quati desse tempo? Quem eram?

Naldi: Tenho lembrança não.

Ciro: Lembra não?

Naldi: Não. Não tenho lembrança. Sei que lá tinha

Ciro: lá já tinha né?

Naldi: lá já tinha, mais nunca cheguei a ter contato com elas não.

(Transcrição 1 - 09.11.2015).

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Sobre o papel da oralidade no ofício de rezadeira, dona Naldi se orgulha de sua

memória, de lembrar das suas orações transmitidas desde a infância por sua avó dona Tomásia

e outras transmitidas por uma rezadeira com quem também tinha contato, de não precisar de

livros nem de ler suas orações. Nessa evocação da importância da memória no desempenho de

sua função, a representação dessa capacidade de lembrar as orações ensinadas desde a

infância faz da memória um dom inseparável da dádiva de ser rezadeira, um depende do

outro, pois o ofício exige a função do lembrar e esse ponto no relato de vida de Naldi é

enfatizado porque “Uma lembrança é diamante bruto que precisa ser lapidado pelo espírito.

Sem o trabalho da reflexão e da localização, seria apenas uma imagem fugidia. O sentimento

também precisa acompanhá-la para que ela não seja uma repetição do estado antigo, mas uma

reaparição” (BOSI, 2007, p. 81). É justamente o sentimento e o apreço pelo dom da memória

e a consciência da sua importância que dá sentido à transmissão oral na história de vida de

Naldi. Ela sabe da função da memória e da oralidade na cultura do seu povo, principalmente

na transmissão da sabedoria popular pelos mais velhos aos continuadores da função no seio da

comunidade. Conforme podemos lê abaixo:

Ciro: E assim ao longo da vida da senhora, a senhora foi sempre aprendendo mais, né?

Naldi: Sempre aprendendo mais, sempre aprendendo mais. E sempre aprendendo mais que cada vez

que eu vinha praqui a Pau do Serro, eu, que eu encontrava essa encontrava mulher, que era muito

rezadeira aqui, sempre ela aumentava dizia mais ainda a sabedoria dela mais ainda que ela tinha, ela já

passarra pra mim. Ciro, eu fico éé, é coisa de Deus, que Ciro, eu decorar tudo na cabeça, e eu hoje

num esquecer um momento, das orações que eu aprendi até hoje. Hoje, o pessoal, a mioria eu fico

pensando, meu Deus como é que uma pessoa pega um ca, um livro uma coisa pra ler, vai se vai, vai

pra novena tem que tá lendo, e eu não preciso nada disso; nunca precisei, Ciro. É coisa de Deus. A

minha só na cabeça. Pergunte uma oração que minha vó me ensinou eu pequena que eu nunca me

esqueci, de jeito ninhum. Só, Ciro, uma coisa ela me disse, Naldi num ensine suas oração pra ninguém

não, porque é muito ruim, porque quebra as forças da oração. Pode ensinar, Ciro (faz gesto de não com

o dedo).

(Transcrição 1 - 09.11.2015).

A partir dessa fala de dona Naldi, compreendemos que um dos dons mais apreciados

pela cultura popular é o da memória, considerado como uma dádiva divina para os agentes.

Gutemberg Costa (2009) afirma que, em suas pesquisas, 90 porcento das rezadeiras eram

analfabetas. Nesse sentido, a oralidade representa um patrimônio imaterial afro-brasileiro já

que grande parte dos negros não era alfabetizada devido à escravidão, apenas aqueles que

serviam em atividades mais exigentes e não nos trabalhos braçais. É a oralidade o suporte da

memória coletiva e, na esteira de Benjamin (1993), sem essa fusão da memória com a tradição

oral, a experiência do narrar não seria possível. Nesse sentido, as rezadeiras podem ser

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comparadas ao griots, narradores africanos, transmissores das histórias que possuíam a função

de dar continuidade às tradições de suas tribos.

Desse fato surge a importância da memória e da oralidade, já que os ensinamentos

ancestrais das rezadeiras foram transmitidos pela voz-memória, e é por meio dessa voz que a

identidade se redesenha, que as funções são repassadas, que a possibilidade da continuidade

do legado ancestral se constitui. A essência da identidade cultural, da memória dos ancestrais,

de suas histórias e experiências de vida são transmitidas pelo narrador que sente a iminência

da morte, vivência que na história de vida de dona Naldi foi preparada ao longo do convívio

com sua avó dona Tomásia desde a infância. Foi nesse convívio que Naldi foi eleita para a

continuação do projeto de vida de sua avó, de construção do laço com o grupo social mediado

pelas rezas e pela passagem das experiências de uma vida inteira. Assim:

Os projetos do indivíduo transcendem intervalo físico de sua existência: ele

nunca morre tendo explicitado todas as suas possibilidades; Antes morre na

véspera: e alguém deve realizar suas possibilidades que ficaram latentes,

para que se complete o desenho de sua vida.

É a essência da cultura que atinge a criança através da fidelidade da memória

(BOSI, 2007, p.75).

A essência da cultura ancestral afro-brasileira atingiu Naldi desde a infância, por

meio dessa fidelidade da memória de que trata a psicóloga social Ecléa Bosi, quando aos

olhos da avó começou a ser formada para a função que exerceria em seu lugar. Também

Glissant compreende a sedimentação de culturas na elaboração das histórias do contador

crioulo e nesse ponto as histórias narradas pelas rezadeiras se assemelham às narrativas

crioulas. Os rituais e histórias de vida das nossas agentes entrevistadas são formadas de

derivas e acumulações como também são tecidas e narradas de forma circular com repetição

de temas transmitidos memorialmente para as novas gerações. Nessa dinâmica circular se

inscreve a transmissão do ofício de rezadeira. Assim:

A arte do contador de histórias crioulo é feita de derivas e ao mesmo tempo e

acumulações, com a presença desse lado barroco da frase e do período, essas

distorções do discurso onde o que é inserido funciona como uma respiração

natural, essa circularidade da narrativa e essa incansável repetição do tema

(GLISSANT, 1994, p.53).

Embora conviva com Naldi desde a minha adolescência e conheça sua história de

vida, a colaboradora não se sentiu à vontade para falar sobre a herança africana de sua cultura,

com relação ao culto dos orixás, e respeitei o seu silêncio e a sua recusa. A cultura de que esta

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rezadeira é agente em sua comunidade recebeu toda uma influência católica num contexto em

que ou branqueava ou desaparecia por causa das perseguições e da intolerância (FANON,

2008). Nesse sentido, ela encontra maior facilidade em relatar sua vida relacionada aos santos

católicos, embora ressignificados pela história do seu povo, pelas experiências traumáticas do

tráfico, dos massacres físicos e simbólicos, do desenraizamento e da escravidão, para Gilroy

(2001) inseparáveis da cultura e da identidade negra ocidental, como a devoção a Nossa

Senhora Aparecida, uma Virgem Negra, que surgiu em terras brasileiras, a padroeira

portuguesa Nossa Senhora da Conceição revestida da nova simbologia como Nossa Senhora

da Conceição Aparecida como símbolo de luta contra a escravidão. Nesse sentido, embora por

convívio com dona Naldi e mesmo sabendo de seu culto aos orixás e raízes africanas,

percebemos que a entrevistada silenciou quando chegamos nesse ponto de sua história de

vida. Como os parâmetros da história oral não permitem que insistamos numa temática

complexa em uma entrevista, parei de perguntar sobre o assunto. Em sua atuação como

rezadeira, Naldi revela sua identidade católica, mas é preciso muita intimidade e confiança

para que revele os seus rituais de matriz africana e os coloque a serviço da comunidade. Não

são todos os frequentadores de sua casa que sabem das suas devoções e rituais africanos.

Vejamos:

Ciro: E assim, com o tempo que a senhora além dos santos a senhora foi tendo contato também

contato com os Orixás né? Com a religião mais…

Naldi: Hurumm. Foi, foi.

Ciro: De raízes mais africanas né?

Naldi: Foi, foi.

Ciro: Mas isso aí já foi bem na frente?

Naldi: Já. Foi bem, bem na frente já. Foi bem já bem avançado, bem na frente, bem na frente. ... Pois

foi, Ciro foi no início não.

Ciro: Não foi no início não, né? Na descoberta do dom não?

Naldi: Não. Foi depois com um tempo que eu fui vendo, que eu também tinha que, sabe? Outras

pessoas do bem né? Que viviam nesse mundo fazendo o bem e ajudando as pessoas, então essas,

também me apareceru pra que eu também pudesse lutar com eles também.

Ciro: Desenvolver também né?

Naldi: Desenvolver também.

Ciro: A senhora pode dizer quem são os Orixás da Senhora?

Naldi: Não, não. Num pode dizer.

Ciro: Não pode dizer, né?

Naldi: Pois é Ciro e eu agradeço a Deus todo dia e pelos momento bom que Deus me deu e tá me

dando até hoje. Agradeço muito. Ciro, lá em Luís Gomes, eu chego lá me Luís Gomes, assim, as

pessoas que acreditam muito em Deus e confia muito nas orações. Quando chego lá em Luís Gomes o

pessoal já com aquela fé que tem em Deus e que acredita nas orações, eu chego lá ói se eu passar dois

dias lá rezando no povo eu não dou conta. Não dou conta. Digo a você. Ói fui sábado, cheguei lá de

tarde, fiquei a tarde todinha rezando nas pessoas. as pessoas que sabiam que eu tava em Luís Gomes,

eu tava numa casa “Naldi cê tá onde? Dá pra você vir aqui rezar em mim?” eu tava naquela casa

rezano, outa pessoa ligava e então tirei o dia assim, sabe? Vim findá nas Casinha...

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(Transcrição 1 - 09.11.2015).

Quando indagada sobre a sua relação com os orixás, como são chamadas as

divindades africanas, dona Naldi silencia apesar da minha tentativa. Como a história de vida

respeita o lugar de fala dos colaboradores entrevistados, não mais insisti, embora Naldi ainda

tenha admitido que o seu contato com a religiosidade ancestral africana ocorreu bem depois

do início do seu ofício de rezadeira, o seu silêncio sobre o assunto e a recusa em falar se

constitui como uma identidade de resistência, assim como acontece com os moradores do

Quati quando indagados sobre a escravidão em que o silêncio foi a maneira encontrada para

reconstruir a sua história diferente da elaborada pelo olhar oficial (CARVALHO, 2010).

Esse conflito entre a memória oficial e a memória escolhida pelos povos que

passaram por traumas históricos, como é o caso das rezadeiras negras e dos povos

massacrados em guerras está presente na história de vida de Naldi como de tantos agentes das

culturas populares afro-brasileiras. Essa memória se apresenta dividida, pois se inscreve a

partir do lugar social de quem a relembra. Em eventos como desfiles de escolas de samba,

Dias do Folclore e da Consciência Negra, a memória do culto aos orixás aparece como uma

parte exótica da nossa identidade, que se permitiu “celebrar” oficialmente. Percebemos que a

dinâmica da memória quando se refere ao assunto dos orixás se torna complexa, dividida

entre o viés folclórico de quem não viveu nem vive o preconceito religioso baseado na visão

eurocêntrica e celebra essa memória como festa num ambiente exótico e de curiosidade. Essa

apartação social da memória que marca a vida das agentes da cultura popular afro-brasileira

que lidam em seu cotidiano com os ritos ancestrais relacionados aos orixás, e da memória

celebrada pode ser comparada memória conflituosa do massacre de Civitella Val de Chiana

em que:

Esses acontecimentos geraram o que Giovanni Contini muito bem descreveu

como uma memória dividida. Contini identifica, por um lado, uma memória

“oficial”, que comemora o massacre como um episódio da Resistência e

compara as vítimas a mártires da liberdade; e, por outro lado, uma memória

criada e preservada por sobreviventes, viúvas e filhos, focada quase que

exclusivamente no seu luto, nas perdas pessoais e coletivas (PORTELLI,

1998, p. 104)

Assim como o grupo de Civitella se divide numa parte que celebra o massacre como

um acontecimento da Resistência, o grupo de defesa da vila que matou três soldados alemães

e em represália esses mataram cento e quinze civis em Civitella, a memória da rezadeira

também se difere da memória presente nas comemorações, nas festas folclóricas que celebram

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a cultura afro-brasileira e muitas vezes por meio de encenações e dramatizações que não se

aproximam da realidade de dor dos agentes que insistiram ao longo da história em cultuar as

divindades dos seus antepassados. Em Civitella, há uma memória oficial que celebra os fatos

históricos como um martírio e a real memória de dor e luto dos sobreviventes, dos filhos e das

viúvas que não se representa nas comemorações oficiais. No relato de vida de dona Naldi

marcado nesse momento pela recusa e pelo silêncio subjaz a memória da sua gente, dos seus

ascendentes cujas formas de manifestação religiosa foram perseguidas e reprimidas. Os orixás

tiveram que ser simbolizados por santos católicos ao longo da história, sincretizados e

ressignificados pelos santos cujo culto e devoção eram livremente permitidos. A rezadeira

falou com tranquilidade sobre a sua relação com os santos católicos. Vejamos:

Naldi: [...] Ciro eu nããão dormia direito, quando ia dormir era vendo muito santo, muita mata verde ...

Muito santo. Eu andando nar aquela mata bem estreitinha, aquelas varedinha e de um lado e outro

mato bem verdim e santo. As imagens que eu encontrava mais era ... ... era as imagens de São José,

São Francisco, Senhora Aparecida, Nossa Senhora da Conceição. Em cada passo que eu dava que

encontrava as imagens no chão eu já reconhecia que imagem era. ... Ali Ciro...

(Transcrição 1 - 09.11.2015)

A memória da rezadeira revela uma clara divisão entre os santos católicos e os orixás

da religiosidade africana. É uma memória dividida e carregada de traumas devido ao histórico

preconceito racial e cultural. Na intimidade de frequentador da sua casa e das suas rezas,

tenho conhecimento das suas práticas culturais religiosas ligadas aos orixás, mas no momento

da entrevista a sua recusa foi necessária agir: “Com o devido respeito às pessoas envolvidas, à

autenticidade de sua tristeza e à gravidade de seus motivos, nossa tarefa é interpretar

criticamente todos os documentos e narrativas, inclusive as delas” (PORTELLI, 1998, p.

106). A cautela recomendada por Portelli diante do impacto norteou essa parte da entrevista,

pois com a tristeza demonstrada pela entrevistada originou um desvio no relato de vida com

foco na gratidão que sente por ter sido agraciada com o dom e no reconhecimento das pessoas

pelo seu exercício.

Com a tristeza demonstrada pela entrevistada originou um desvio e a rezadeira

escolheu falar do seu dom e da sua relação com as pessoas, da sua casa tão cheia e da grande

procura pelas suas rezas, tanto que começa a atender na cidade e vai findar nas Casinhas, um

bairro periférico bem afastado do centro. Sobre as raízes africanas Naldi silenciou, embora

tenha admitido que o contato com a questão dos orixás ocorreu bem depois da descoberta do

dom e do seu exercício, bem na frente como relata em suas palavras. A experiência de

preconceito religioso vivido pelos agentes da cultura e da religiosidade afro-brasileira se

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compara às memórias traumáticas de Civitella. Assim “Alguém que nunca tenha passado por

uma experiência desse tipo jamais conseguirá sentir o que as pessoas de Civitella carregam

dentro de si” (PORTELLI, 1998, p. 106). A carga de dor da vivência do massacre de Civitella

por parte das testemunhas e sobreviventes comunga com a dor da rezadeira ao silenciar sobre

as suas raízes africanas. O sentimento que reveste esse norte das histórias de vida da rezadeira

e de tantos agentes da religiosidade afro-brasileira como pais e mães de santo dialoga com as

memórias da cidadezinha italiana. Á luz de Bosi (2007), ao pensar na esteira de Sartre,

entendemos que, assim como a velhice e a negritude se constituem como identidades

irrealizáveis, pois só podem ser compreendidas por quem de fato vive essa realidade. O olhar

de fora é incapaz de apreendê-la em sua intimidade. Há um terror, um ressentimento sentido

na alma do indivíduo que sofreu perseguição religiosa cuja forma de expressão se ancora no

silêncio e na recusa. Por isso a dificuldade de relatá-los, é um ponto sofrido da sua história de

vida difícil de exprimir e essa dificuldade de falar se compara às memórias de Civitella e à luz

do diálogo de Portelli com outros pensadores esclarece a dificuldade também do pesquisador

em lidar com o assunto e compreender essa elaboração da memória. Para o autor, “Assim,

Valeria Di Piazza se identifica plenamente com a relutância e a necessidade de se expressar

dos sobreviventes, e dedica seu trabalho ao dilema do ‘exprimível e inexprimível’ e a

dificuldade de comunicar e partilhar o luto e a perda” (PORTELLI, 1998, p. 106).

A elaboração das perdas, do luto, do ressentimento tece uma memória que se esquiva

de determinados acontecimentos que são considerados dolorosos para o narrador. Quanto ao

tema do viés mais africano da sua religiosidade e das suas práticas culturais, a fala da

rezadeira Naldi assume a mesma postura dos entrevistados negros moradores da cidade de

Luís Gomes e das comunidades do Quati/Lagoa do Mato quando perguntados sobre a

escravidão, atitude estudada por Carvalho (2010). O silêncio e a negação em falar desses

acontecimentos é uma maneira de elaborar a dor tanto transmitida pelos antepassados como a

ainda vivenciada pelos agentes da cultura afro-brasileira.

Numa atitude também de resistência, a recém-falecida mãe de santo baiana Mãe

Stella de Oxóssi defendeu em sua atuação a diferença entre os santos e os orixás, não

admitindo o sincretismo e associação entre eles por pertencerem a culturas diferentes. Para

ela, o catolicismo branco era diferente do candomblé afrodescendente. Essa era sua forma de

resistir e defender e militar em favor da cultura do povo negro e embora tenha escolhido se

posicionar ao invés de silenciar, sua atitude se irmana a de Naldi por construir um discurso

contra a dominação, como ocorreu em Civitella onde para Porltelli os posicionamentos não

são eternos e universiais, mas históricos e dessa forma dinâmicos e sujeitos às mudanças. O

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nuance apresentado pelo discurso de Mãe Stella está resistindo ao “universalismo genérico

para dotá-lo do poder conflitante de uma narrativa em contraposição a outras” (PORTELLI,

1998, p.110). Na esteira da compreensão da crioulização de Glissant (1997), a postura da mãe

de santo é uma resistência a “digênesis”, ou seja, ao longo processo de descaracterização

cultural, de desfiliação à herança religiosa dos seus ancestrais africanos em que se recusa a

substituir seus mitos originais por mitos de outras culturas, como a católica europeia. Numa

negação a esta tentativa gradativa que ocorreu ao longo da dominação colonizadora de

apagamento dos elementos africanos, Mãe Stella se recusou a sincretizar orixás e santos

católicos como se fossem signos de uma só religiosidade. Os orixás são associados à natureza,

como, por exemplo, Iemanjá ao mar, no sincretismo fundida com Nossa Senhora da

Conceição, uma devoção católica herdada dos portugueses. Essa insistência em firmar os

elementos ancestrais numa sociedade predominantemente católica se inscreve no que Glissant

chama de “despossessão” em seu ato de resistir e retornar as suas origens e seus horizontes

culturais ancestrais sem a interferência da cultura branca. Já a atitude da rezadeira Naldi em

silenciar sobre o culto dos seus orixás se trata de uma “auto-digênesis” na esteira de Glissant

por cultuar os mitos e deuses africanos de forma sigilosa, tornando o seu culto original

obscuro e inacessível num território de sombras e de silêncio.

Por possuir um significativo tempo de convívio com Naldi, ainda tentei insistir, mas

recuei e respeitei a sua recusa, pois compreendi a gravidade do tema para a rezadeira. Essa

complexidade conflituosa entre as raízes africanas do trabalho das rezadeiras vem da

perseguição e do preconceito e do terror sofridos pelos negros que são componentes

integrantes de suas identidades, conforme Giroy (2001), e que não apenas guarda marcas na

memória dos agentes, mas infelizmente ainda ocorrem devido à incapacidade de entender

experiências diferentes, como a das rezadeiras que conseguem entrelaçar tantas raízes

religiosas e culturais e conviver com um mosaico de influências. Muitas pessoas e

pesquisadores se escandalizam com vivências que ultrapassam os seus próprios modelos.

Sobre esse fato, o autor reflete que:

Não tenho certeza se essa incapacidade de entender outras experiências e

outros modos de pensar que não os próprios é uma prerrogativa do

pensamento leigo e progessitas (que, por outro lado, está bem ciente do

problema). Talvez o pensamento religioso, sobretudo o católico, não esteja

totalmente imune também. Lidar com experiências que não as próprias e

compreendê-las deve, também, constituir a essência mesma da experiência

antropológica (PORTELLI, 1998, p. 107)

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A culpa da negação em falar dos orixás não é da rezadeira, mas do tratamento

recebido ao longo da vida por parte de indivíduos que não aceitam culturas que fogem do

discurso de centro e vão além do controle social exercido pela cultura dominante baseada nos

padrões eurocêntricos, como o catolicismo. Portelli ressalta essa incapacidade do pensamento

religioso de não saber lidar com experiências que não as suas e do seu posicionamento não se

basear na compreensão constitutiva da experiência antropológica. Essa incompreensão gera

respostas como o silêncio da rezadeira e sua recusa em falar do que foi historicamente

rejeitado e quando relembrado pelo universo do seu outro, no caso o branco, é de forma

exótica que “celebra” a cultura afrodescendente em datas festivas, como Dia do Folclore, da

Consciência Negra, desfiles de carnaval e escolas de samba, porém sem conhecê-la e

compreendê-la em seus contextos reais de atuação, no cotidiano de seus agentes, sendo assim

representada no vazio de uma encenação do popular coforme criticou Canclini (1997).

O silêncio de Naldi protege um espaço sagrado da sua fé, cultura e memória, um

lugar impenetrável pelo outro, uma identidade que tem o poder de se contrapor às narrativas

dominantes sobre a sua cultura e sua gente e por meio do silêncio elaborar sua identidade,

resguardando o que é marcado pela dor e pelo preconceito e escolhendo falar da sua história

de vida a partir do seu dom e da sua atuação no seu grupo social como forma de construir um

novo olhar sobre suas memórias e a história do seu povo.

O silenciamento sobre as raízes africanas de dona Naldi vem uma identidade

alicerçada na memória da perseguição racial e religiosa. É o contexto desencadeador dessa

recusa em abordar um ponto tão marcante em sua história de vida. Muitas agentes negras da

cultura popular afro-brasileira embora sejam muitas vezes também filhas ou mães de santo,

conforme denominação da umbanda, devido aos preconceitos sofridos historicamente por seus

ancestrais, as dificuldades sofridas para cultuar seus orixás desde a escravidão, preferem ser

conhecida como rezadeiras, uma identidade de maior aceitação desde o passado até a

atualidade por sua ligação com o catolicismo. Uma religião que atravessou o Atlântico e

chegou em terras brasileiras sob o julgo da escravidão traz essa memória intrínseca.

O sagrado vale para cada um de acordo com a sua prática religiosa.

Infelizmente, no Brasil, as religiões de origem africana têm passado por

críticas, por dificuldades, problemas, sobretudo causados pela ignorância e

pelo preconceito de muitas pessoas, uma vez que os rituais afros vêm da

tradição de um povo que chegou ao Brasil sob o signo da escravidão. E

várias outras manifestações que têm raízes populares têm sido consideradas

marginais, e reprimidas, e criticadas (BENJAMIN, R., 2009, p. 215).

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Outro ponto significativo da sua história de vida e que atravessou os séculos de

colonização é a presença do rosário como símbolo da identidade afro-brasileira. Reza a

tradição oral dos povos afro-brasileiros que a identificação da cultura negra com rosário

ocorreu pela semelhança com os colares de contas que existiam na África. A versão é que o

rosário surgiu das lágrimas de Nossa Senhora, e numa identificação com o contexto de vida

dos povos negros, diante do sofrimento da escravidão, visto que se tornou a protetora dos

escravos. O uso do rosário ao pescoço é uma marca dos negros do Quati. Uma vez em

conversa informal com o senhor Pedro Bode, primo de dona Naldi e morador da Lagoa do

Mato, ele me afirmou que o rosário é uma maneira de dizer que a pessoa é uma ovelha

pertencente ao rebanho de Nossa Senhora, como se fosse um chocalho, já que historicamente

Nossa Senhora do Rosário é protetora dos negros desde a colonização e o seu culto e

organização de irmandades se constituiu como uma identidade. Como relata Naldi:

Ciro: Naldi, e o que o rosário representa pra senhora? Esse que a senhora usa. Eu sempre vejo a

senhora e muitas outras rezadeiras com o rosário.

Naldi: Ééé. Esse rosário, eu acredito em Deus que ele é minha proteção tá?. Assim, pra proteger né?

assim pra porque a pessoa que reza, Ciro, ele reza as pessoas também são muito perseguida, sabia? Ele

também é perseguido. Por mais que você procure fazer o bem, Ciro, por mais que você procure

ajudar, mais inziste sempre a perseguição. E esse rosário, eu acredito que ele me guarda sabe? Ele me

me, assim eu me ... ... esse rosário no meu pescoço eu tô me achando já, comé que diz? Protegida,

sabe?

Ciro: E a avó da senhora, usava também?

Naldi: Ah ela morreu com rosário. Morreu com rosário. Minha vó morreu com o rosário.

Ciro: E as outras rezadeiras que a senhora conheceu, todas elas usavam?

Naldi: Quando ela achava que ia cair alguma coisa ela só pegava no rosário e dizia aquelas palavras aí

guardava o rosário (pega no rosário e coloca dentro do vestido), minha vó era assim. Pois é, Tomáza,

foi quem criou aquele pessoal de Sr. Gaudêncio, a primeira família todinha foi minha vó e a segunda

família. ...

(Transcrição 1 - 09.11.2015).

A representação do rosário na religiosidade popular afro-brasileira refletida na fala

de dona Naldi é de um objeto considerado sagrado por sua história de resistência e usado

pelas rezadeiras como signo de proteção, de que se valiam as rezadeiras nas horas de aflição,

pois pegavam no rosário e diziam palavras sagradas de suas orações e rezas. Atitude esta que

se assemelha à representação propagada pelos devotos do Padre Cícero Romão Batista de

Juazeiro do Norte no Ceará, localizado no sertão sofrido do Nordeste sujeito à diáspora e ao

desenraizamento causados pelas secas e pela ausência de condições materiais. Difundido pelo

Padre Cícero, é ainda hoje um símbolo de resistência e de identidade sertaneja, como também

para os negros, um sinal de proteção e de salvação, como se apresenta na imagem da carroça

do profeta popular José Alves de Jesus:

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A imagem de Maria na carrocinha nos remete a José Alves de Jesus que

afirmava que Padre Cícero deixou a todas as ovelhas da mãe de Deus um

chocalhinho no pescoço, que deve ser usado sempre para chamar atenção de

Deus: o Rosário. Segundo ele. Ao rezá-lo, os Homens se lembram dos

mandamentos de Deus e não correm o risco de pecar.

O Rosário está ligado à imagem de Nossa Senhora. Uma das histórias

conhecidas em Juazeiro do Norte conta que as sementes das quais são feitas

o Rosário que cada romeiro traz junto ao peito nascem de uma planta que

brotou das lágrimas de Nossa Senhora, quando esta fugia do Egito com o

Meninno Jesus (HOFFLER, 2009, p. 201- 202).

Simbolicamente, há a crença popular de que o rosário foi feito das lágrimas de Nossa

Senhora na sua fuga para o Egito com o menino Jesus e São José devido à perseguição de

Herodes, título dado à Virgem de Nossa Senhora do Desterro nesse contexto do exílio. Assim

como os sertanejos do Nordeste brasileiro historicamente viveram em constante diáspora por

causa das secas e da fome e, por isso, encontram igualmente sentido no simbolismo do

rosário, os povos afro-brasileiros ao longo de sua história no Brasil com suas experiências

indissociáveis do deslocamento e do sofrimento causado pela diáspora e pela escravidão têm

no rosário uma representação identitária de resistência, pois as lágrimas da Virgem ao fugir

para o Egito se revestiram de outra significação, as lágrimas derramadas pelos escravos que

sofriam os mais cruéis castigos físicos além do desenraizamento, um dos mais cruéis traumas

de sua história. Daí a hibridização entre a religiosidade católica e a identidade cultural afro-

brasileira, nas palavras do autor a identidade cultural dos negros do Ocidente foi fundada na

memória da escravidão e do preconceito racial. É como se cada símbolo por mais simples que

possa parecer esteja relacionado à memória dolorosa da escravidão e a manutenção dos laços

entre os negros apesar da diáspora, mesmo que para isso fosse preciso uma adaptação a

cultura do colonizador. Porém, essa adaptação não se fez de forma passiva, cada manifestação

cultural foi reelaborada como resistência e construção de uma identidade historicamente

massacrada.

A festa do Rosário enquanto manifestação cultural afro-brasileira é uma marca em

muitas comunidades do sertão e do interior do Nordeste, como também a coroação dos Reis

de Congo, festa que apresenta um viés de carnavalização, de entronização dos negros e

destronamento do branco dominador, seguindo a esteira de Bakhtin (2003) sobre o viés

cultura popular em sua obra A cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto

de François Rebelais. As irmandades negras de Nossa Senhora do Rosário foram

historicamente responsáveis pela organização das festas do Rosário, tão significativas nos

estados nordestinos como o Rio Grande do Norte, onde ainda acontecem nas cidades de Caicó

e Jardim do Seridó (PEREIRA; DOZENA, 2015). Sobre esse contexto:

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De acordo com as pesquisas empreendidas por Cavignac (2008), as

irmandades negras presentes em todo o Brasil e a festa de Nossa Senhora do

Rosário das irmandades negras começaram a ocorrer no Nordeste a partir do

final do século XVII, com a coroação dos Reis de Congo em Recife de em

1674. No Seridó, as irmandades começaram a se formar com a cultura do

algodão no século XIX (PEREIRA; DOZENA, 2015, p. 45).

Na resistência cultural e religiosa dos povos africanos, os signos e símbolos foram

revestidos de novos sentidos ao longo da diáspora numa atitude de sobrevivência cultural. No

catolicismo, o rosário era o símbolo da vitória dos cristãos contra os muçulmanos.

Inicialmente a festa de Nossa Senhora do Rosário era chamada de festa de Santa Maria da

Vitória. Solenidade esta criada oficialmente pelo papa Pio V quando pediu aos cristãos que

rezassem o Rosário pela vitória dos cristãos (BISINOTO, 2017). Sobre essa batalha entre

cristãos e muçulmanos:

Lepanto era uma cidade da Grécia, com importante porto, junto ao Golfo de

Corinto. Nela se travou a famosa batalha naval, em que a esquadra cristã,

comandada por João da Áustria, derrotou os turcos mulçumanos. A vitória

foi obtida em 7 de outubro de 1571, impedindo assim a grande expansão do

império turco (BISINOTO, 2017, s.p.).

No contexto histórico das guerras entre cristãos e muçulmanos, a festa de Nossa

Senhora do Rosário foi criada e firmada por diversos papas como signo da vitória sobre os

muçulmanos, conforme podemos ver as modificações da festa e da devoção ao longo da

história:

Em 1573, o Papa Gregório XIII tornou a festa mariana obrigatória para a

diocese de Roma e para as Confrarias do Santo Rosário, sob o título de

Santíssimo Rosário da Bem-aventurada Virgem Maria.

Em 1716, o Papa Clemente XI inscreveu a festa no calendário romano,

estendendo-se para toda a Igreja. A celebração ocorria em datas diferentes,

conforme os costumes locais.

O Papa Leão XIII inscreveu a invocação “Rainha do Sacratíssimo Rosário”

na Ladainha Lauretana em 10 de dezembro de 1883.

Em 1913, o Papa Pio X fixou a data da celebração da festa em 7 de outubro

(BISINOTO, 2017, s.p.).

.

Porém, o mesmo rosário antes símbolo da derrota para os muçulmanos e signo

central da organização de confrarias e irmandades dos brancos e cristãos-católicos se torna em

terras brasileiras signo de resistência, sobrevivência e identidade dos povos afro-brasileiros,

numa ressignificação que lhes permitiu agrupamentos em irmandades católicas e uma forma

subjacente de rememorar as crenças e os costumes ancestrais ao associarem o rosário católico

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com o colar de contas africano e usado na religiosidade ancestral, como a muçulmana. Outra

informação sobre o contexto histórico da devoção dos negros ao rosário de Nossa Senhora é

que esta atravessou o Atlântico:

Nos navios negreiros, estava presente a imagem de Nossa Senhora do

Rosário [...], ligada à ocupação da África pelos portugueses. Tal devoção

havia sido difundida especialmente no Congo e veio para o Brasil nos navios

negreiros. Inúmeros missionários se encarregaram de difundir a devoção do

rosário (LIMA, D. V. B. de, 2014, p.80-81).

Nesta riqueza e no complexo significado do rosário para os povos afrodescendentes,

este foi aclimatado às histórias de vida dos negros, e as Festas do Rosário do interior do

Nordeste brasileiro, como na histórica cidade de Pombal na Paraíba, em que a imposição da

cultura branca católica se dava pela construção de igrejas para o culto dos colonizadores. As

primitivas igrejas eram depois trocadas por igrejas maiores e para não ficarem no abandono

foram transformadas em capelas, que muitas vezes eram destinadas aos povos negros. A

antiga Matriz passaria a ser denominada como Igreja de Nossa Senhora do Rosário. Após a

tranferência da devoção a Nossa Senhora do Bom Sucesso, título venerado pelos

colonizadores devido ao sucesso que obtiveram no massacre dos povos indígenas da região e

motivo primeiro do início da construção da primitiva capela. Segundo José Romero Araújo

Cardoso:

Até o final do século XIX os cultos católicos, direcionados a Nossa Senhora

do Bonsucesso, foram realizados na velha igreja em estilo barroco. Com a

construção de novo templo, concluído no início da década de noventa da

referida centúria, o recanto de oração dos cristãos da terra de Maringá à sua

padroeira, passou a se realizar na matriz inaugurada para receber a devoção

dos fiéis (CARDOSO J., 2015, s. p.)

Foi a atuação do negro Manoel Cachoeira que revestiu de identidade afro-brasileira a

festa do Rosário em Pombal que, junto ao bispo de Olinda, conseguiu tornar a festa oficial, já

que eram notórias as marcas da imposição do colonizador sobre as manifestações religiosas.

O sofrimento dos negros, as marcas do famigerado cativeiro geraram também uma resistência.

Foram necessárias três viagens a Pernambuco para que o fundador da festa do Rosário da

cidade de Pombal conseguisse o seu feito. Do diálogo de Manoel com o folclore negro foram

incorporadas à festa manifestações afro-brasileiras como o Reisado e os Congos, na própria

identidade da Irmandade do Rosário. Apesar da resistência da hierarquia católica com os

traços da cultura africana, na identidade dos negros do Rosário:

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Três culturas se fundem no ensejo da adoração ao Rosário. Inúmeras tribos

islamizadas foram trazidas da África para o Brasil, permanecendo traços

culturais destas em razão da presença do Tecebá, o Rosário islâmico, entre

os dedos da imagem de Nossa Senhora. Notar que o culto se destina mais

precisamente ao Rosário, símbolo da resistência dos descendentes dos filhos

de Alá. Em seguida, enquanto signo da imposição do colonizador católico

encontra-se a presença do cristianismo, com Nossa Senhora coadjuvando a

expressão de Fé, e, finalizando com as evidentes marcas da louvação que

denotam a influência da cultura negra, considerada pagã pela igreja Católica,

de certa forma, em diversos momentos (CARDOSO, J., 2015, s. p.).

Em se tratando do viés rizomático da cultura afro-brasileira e de sua elaboração

sincrética, a presença de elementos e traços islâmicos, católicos europeus, africanos e

ameríndios nos reforça a compreensão dessa identidade como compósita, em que embora ao

longo da colonização tenha havido a tentativa forçada de prevalecer o catolicismo, não há

uma raiz principal, mas rizomas. É um rosário rizomático formado por contas diversas, por

fios de múltiplas ramas e culturas, por “formas muito diversas desde sua extensão superficial

ramificada em todos os sentidos até suas concreções em bulbos e tubérculos” (DELEUZE;

GUATTARI, 2004, p. 15). Essa mestiçagem cultural de traços de povos tão antagônicos como

islamitas e católicos, negros e indígenas nos mostra a riqueza e a complexidade da cultura

popular e da religiosiade afro-brasileira escondida muitas vezes numa manifestação simples e

singela como a devoção ao rosário que passa despercebida (AYALA, 1997). Esse objeto

considerado sagrado se constiui como ponto significativo da memória dos povos

afrodescendentes que liga descendentes a ancestrais, atravessou os séculos até a atualidade

reelaborando os seus sentidos e significados. Como objeto de manifestação cultural e

religiosa, se inscreve numa encruzilhada de signos que puxam fios de muitas raízes. Assim o

rosário foi e é utilizado em diferentes contextos e nos confirma o pensamento de que “Ser

rizomorfo é produzir hastes e filamentos que parecem raízes, ou melhor, ainda, que se

conectem com elas penetrando no tronco, podendo fazê-las servir a novos e estranhos usos”

(DELEUZE; GUATTARI, 2004. p.25).

Sobre a subjugada visão que a Igreja Católica tem da cultura negra que trouxe pelo

Atlântico outros ritos ainda hoje presentes em manifestações culturais como a Festa do

Rosário, as rezas e narrativas, a simbologia do rosário de resistência dos islâmicos a

colonização em memória do Tecebá, essa espécie de rosário do Islamismo citado por José

Romero Araújo Cardoso (2015), Cascudo (2002) aborda que ocorreu porque a catequização

dos negros não interessava tanto a Igreja Católica. Para o autor, aconteceu de forma

sumarizada porque do negro interessava o corpo como força de trabalho e não a alma,

diferentemente do que ocorreu com os indígenas. Esse pode ser um dos motivos de uma maior

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resistência da cultura trazida da África que, embora ressignificada junto ao catolicismo, não

perdeu totalmente os seus traços, o que nos ajuda a compreender a fusão entre traços africanos

muçulmanos e pagãos com elementos culturais católicos europeus:

A catequese para o negro fora sumária, distraída, desinteressada das reais

conquistas da alma. A finalidade era manter o corpo obediente e produtor.

Alma, seria necessidade do homem branco. Unicamente a escravaria

contaminada pelo Islã deu trabalho a disciplinar-se nos eitos e bagaceiras ao

decorrer do Recôncavo baiano. As multidões pretas empurradas para a

mineração em Minas Gerais, zoas do ouro e diamantes, canaviais do Norte,

cafezais paulistas. Poderiam reagir à fome e maus-tratos. Jamais à violação

de crenças negras, diluídas no maquinalismo diário. Mesma situação em

Pernambuco, depois no Rio de Janeiro e São Paulo. Indígenas e negros não

defenderam os santos do seu sangue e cor. Não houve mártires da Fé,

esculpidos em bronze e ébano. Mantiveram as defesas mágicas e não atos

pragmáticos do culto tribal. Distinga-se a revivescência sudanesa como

atividade religiosa, notadamente complementar às práticas da liturgia branca,

ao terminar o século XIX. A África reforçava a memória dos seus exilados

filhos nas vitaminas das remessas incessantes. O indígena sofreu o ataque

maciço da catequese e fiscalização repressiva por todos os recantos de sua

geografia residencial. Seria a sensibilidade africana, e não ameríndia, a

detentora mais decisiva do catecismo cristão. Ainda agora, na África, o

Catolicismo avança com desoladora lentidão. Os “fiéis” são meras ilhas

heróicas (grafia do autor) no oceano, maometano, em constante preamar. Tal

não ocorreu no “degredo” brasileiro (CASCUDO, 2002, p. 345).

Segundo o autor José Romero de Araújo Cardoso (2015) no início da década de 1960

do século que passou, o padre Acácio Rolim se recusou a realizar a festa do Rosário por

considerá-la um espetáculo profano e herético promovido pela Irmandade do Rosário. Apesar

desse ato de racismo e intolerância religiosa e cultural, a população realizou a festa marcada

por significativa presença da comunidade. Já na atuação de outro sacerdote católico, o padre

Sólon a festa foi destacada como um expoente da cultura e da religiosidade da cidade. O apoio

da população local à festa se constitui como um marco do sincretismo, da elaboração de uma

identidade cultural híbrida em que não cabem mais ações de discriminação e rejeição a uma

cultura integrante da nossa identidade nacional.

Fato histórico semelhante à situação dos negros na cidade de Pombal ocorreu

também na cidade de Sousa no mesmo estado, quando os negros escravizados só adquiriram

um lugar para as suas práticas, embora já dominadas pelo catolicismo colonizador, quando foi

construída uma nova matriz e dessa forma os cativos puderam ter a sua própria capela, lugar

que se revestiu da identidade do Rosário dos Pretos.

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Situada no largo da Praça da Matriz, a primeira igreja de Sousa, em estilo

barroco, fora obra de Bento Freire entre 1730 e 1732. A Igreja de Nossa dos

Remédios foi o marco do núcleo do Jardim do Rio do Peixe.

Com a construção da atual Igreja Matriz de N. S dos Remédios, a pequena

Igreja perdeu a condição de Matriz na década de 1880 ´passando para o

domínio da Irmandade do Rosário dos Pretos formada por negros cativos da

Região, sendo denominada Igreja do Rosário dos Pretos (SOUSA, 2005, p.3)

Segundo o mesmo relato que se encontra na Agenda da Cidade de 2006/2007 na

atualidade, a Igreja do Rosário dos Pretos é cuidada pela Irmandade do Santíssimo

Sacramento. Compreendemos, assim, que o histórico local perdeu as referências da cultura

afro-brasileira, como ocorre em muitos lugares em que predomina a visão subjugada dessa

identidade. Essa discussão nos esclarece como o rosário se tornou um signo de resistência e

da identidade dos afrodescendentes, principalmente no universo da religiosidade popular,

como é o caso das rezadeiras que a usam no pescoço e o rezam como símbolo forte da história

do seu povo e de suas histórias de vida. O rosário enquanto objeto é um cordão formado por

contas, composto por três terços de cinquenta ave-marias cada, centralizado numa medalha

com a imagem de Nossa Senhora e iniciado numa medalha com uma imagem também

mariana ou num crucifixo, em que se marcam e contam as orações católicas do Credo, do Pai

Nosso, da Ave-Maria, do Glória ao Pai e da Salve Rainha, composto pela tradição católica ao

longo da história e que “Na sua forma atual o Rosário tem por autor S. Domingos, fundador

da Ordem dos Pregadores ou Dominicanos por uma revelação particular de Maria no ano de

1206” (ADUCCI, 1958 apud CARTAXO, 1975, p. 106). Nessa longa e complexa dinâmica

cultural, o rosário e os ritos e festas que o circundam se constituem como signos fortes para a

identidade cultural afro-brasileira.

Para Glissant (2002), essa mistura cultural que ocorreu tanto na Neoamérica como

nas outras Américas onde nos incluímos se assemelham as misturas que aconteceram em

outros lugares do mundo, originando novas culturas que ele denominou crioulização. O autor

também afirma que essa nova cultura é imprevisível. Assim se formaram as rezas e as

narrativas de vida das colaboradoras desse trabalho, a partir dessa mistura de culturas, deste

caldeirão que envolveu a cultura africana com seus rituais mágicos e o papel social do griot, a

religiosidade muçulmana também trazida da África e em solo brasileiro ressignificada na

devoção ao rosário, e os elementos indígenas com os quais os negros tiveram significativo

contato, além da imposição cultural branca. Nesse intercâmbio:

[...] las culturas del mundo, en contacto instantáneo y absolutamente

conscientes, se alteran mutuamente por medio de intercambios, de colisiones

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irremisibles y de guerras sin piedad, pero también por medio de progresos de

conciencia y de esperanza que autorizan a afirmar – sin que uno sea un

utópico o, más bien, admitiendo serlo – que las distintas humanidades

actuales se despojan con dificultad de aquello en lo que han insistido desde

antiguo, a saber: el hecho de que la identidad de un individuo no tiene

vigencia ni reconocimiento salvo que sea exclusiva respecto de la de todos

los demás individuos (GLISSANT, 2002, p. 17-18).

Para o autor, a crioulização só se constitui como tal quando os elementos culturais de

determinada manifestação se encontram em posição de igualdade. No caso das rezas e

devoções dos povos afrodescendentes no Brasil que ao longo da colonização e do período pós

foram bastante perseguidas e discriminadas, a crioulização se deu de uma maneira desigual.

As próprias rezadeiras e as pessoas que procuram suas rezas não diferem nem separam os

elementos de cada cultura, da africana, indígena e europeia e hoje apenas aparentemente

convivem harmoniosamente nos ritos. Das rezadeiras entrevistadas, apenas dona Naldi tem

um maior conhecimento da herança africana, como mostra o seu saber sobre os Orixás e o seu

silenciamento sobre o assunto ao ser indagada. As outras duas rezadeiras dona Lurdes e dona

Cosma trabalham, quase que inconscientemente, sua herança africana dentro das rezas. Esse

desconhecimento se deve à croulização desigual teorizada por Glissant e seu legado na

história dos povos afrodescendentes.

A colonização ocorrida no Brasil fez com que a cultura africana após atravessar o

Atlântico sofresse um violento silenciamento. Podemos perceber este silêncio na recusa de

dona Naldi em falar sobre a sua relação com os orixás, herança cultural e religiosa trazida

pelos povos negros que mais se aproxima da forma como era cultuada em terras africanas.

Falar sobre os santos católicos com a tranquilidade que não se pode falar dos orixás nos

mostra a repressão sofrida desde a colonização que ainda se reflete na identidade afro-

brasileira atual. Nesse sentido, “O ser se encontrava dessa maneira despojado de toda espécie

de elementos de sua vida cotidiana, mas também, e, sobretudo, de sua língua” (GLISSANT,

2005, p.19). Para o autor, a repressão e o silenciamento deixam o ser colonizado despojado de

si, da sua identidade ancestral e cultural. Mas a tentativa de colonização religiosa e cultural

dos povos diaspóricos os despojaram de sua língua, pois esta é desconhecida pelas rezadeiras

colaboradoras deste trabalho, mas não totalmente dos elementos culturais e de todo o seu

patrimônio e de suas tradições. Os traços africanos das rezas, como a presença da magia,

embora silenciados se hibridizaram com os traços católicos e se sobressaíram no meio dessa

mistura cultural.

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Nesse processo de hibridização, também as irmandades religiosas se constituíam

como uma forma de organização social de brancos e negros. Quanto aos negros escravizados,

estes se organizavam em torno da simbologia do Rosário, como ocorria no estado de Minas

Gerais na época da colônia. Aqui há uma divisão nas irmandades formadas por negros, pois os

forros se reuniam em torno da devoção a São José e não a Nossa Senhora do Rosário:

A convivência social organizava-se em torno das irmandades religiosas,

formadas por indivíduos que tinham especial devoção por um mesmo santo

católico. As irmandades agrupavam pessoas da mesma condição sócio-

econômica. Havia irmandades de escravos (Rosário), irmandade dos forros

(São José), irmandades dos senhores proprietários de lavras e terras

(Santíssimo Sacramento). Tal fato revela como aquela sociedade era

extremamente dividiva e hierarquizada – a posição do indivíduo variava

segundo a cor, a riqueza e o prestígio social. Entre os membros da

irmandade, porém, predominava o espírito de solidariedade e de amparo.

As irmandades responsabilizavam-se pela vida espiritual dos irmãos:

realizavam missas e procissões, preparavam os enterros (geralmente feitos

nos cemitérios da própria irmandade), promoviam as festas dos santos

padroeiros, cuidavam dos doentes, patrocinavam artistas e músicos.

Frequentemente também erguiam suas próprias igrejas ou altares nas igrejas

principais (GONÇALVES; ANTOR, s. d., p. 23-24).

Já em outros lugares do Brasil, como o Recife, os sacerdotes dos cultos afro-

brasileiros dos orixás chamados de babalorixás eram integrantes das confrarias de Nossa

Senhora do Rosário e Luiz de França dos Santos, agente da cultura que foi dirigente do

Maracatu Leão do Recife, se orgulhava de ter sido juiz da Irmandade de Nossa Senhora do

Rosário dos Homens Pretos (Coleção O Brasil Somos Todos Nós, 2011). Essa discussão

aprofunda o contexto histórico colonial e pós-colonial para a compreensão do significado do

rosário enquanto símbolo da história e da identidade não apenas das rezadeiras, mas de muitos

membros dos grupos sociais formados pelos povos afro-descendentes.

Os rituais das rezas herdados dos antepassados africanos e reavivados pelas atuais

rezadeiras de acordo com o contexto sócio-histórico contemporâneo da comunidade se

destacam na cultura não só local, mas regional, como uma das tradições que reúne em torno

de si a identidade negra como também ressignificam e reelaboram as antigas tradições em

diálogo com a cultura portuguesa, o que lhe dá um caráter de sincretismo religioso. Bosi no

seu estudo sobre a narrativa de vida de dona Risoleta, uma senhora paulista descendente de

escravos, nos apresenta que, após uma vida de trabalho, a entrevistada exerceu na velhice a

função social de rezadeira em diálogo também com o catolicismo, pois possuía em casa uma

imagem de São Benedito, santo negro e descendente de escravos, símbolo dessa intersecção

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cultural e religiosa. Como signo de sua identidade negra e da memória social do seu grupo, o

santo católico está presente ao lado das atividades laboriosas de dona Risoleta e sintetiza a

relação para as rezadeiras das rezas e ritos com as atividades e tarefas do trabalho cotidiano.

Para a colaboradora da pesquisa de Bosi, as rezas e orações se constituem como um trabalho

no seio do seu grupo e ritualizam o seu cotidiano e a sua função social: Segundo Bosi:

Depois que ficou cega, d. Risoleta é amparada pelas filhas e exerce os dons

da cura e da oração. Agora as pessoas a procuram confiando nos seus

poderes espirituais e não há quem não saia atendido e confortado. D.

Risoleta continua trabalhando: ‘Eu tenho muita vontade de servir alguém.

[...] Não faço outra coisa, agora que estou cega, atendendo pedidos de

oração’ (BOSI, 2007, p. 477).

Atender aos pedidos de oração é o elo entre a rezadeira e os membros do seu grupo

social. Assim, esse ritual ancestral coloca a rezadeira numa função não só de depositária da

sabedoria popular do seu grupo, mas de transmissora memorial dessa cultura e de agente da

história oral do grupo, termo usado aqui não no sentido de metodologia de pesquisa, mas de

história do grupo transmitido por meio da oralidade e que tem relação intrínseca com os

rituais das rezas e o papel simbólico que representa na comunidade e na vida das agentes e

praticantes desse bem simbólico e cultural. A função de rezadeira define a posição no grupo

dessas mulheres negras, pois as praticantes desse rito são escolhidas pelos mais velhos do

grupo, sejam homens ou mulheres para exercer desde a função de rezadeiras como também de

transmissoras da história e da cultura. Assim cada mulher rezadeira é guardiã dos tesouros

espirituais do grupo, dos seus saberes e segredos, cabendo-lhes a responsabilidade de realizar

a transmissão memorial da história, da cultura e da religiosidade do seu povo. A função pode

ser passada dentro do grupo familiar, de pai ou mãe para filha, de avô ou avó para neta, por

exemplo. Segundo outra compreensão dessa tradição se o homem passar as orações para outro

homem e uma mulher para outra mulher o transmissor perde as suas forças, ou seja, suas

orações e rezas perdem o poder e a eficácia. Porém, no estudo realizado no ritual do

Cambonde na comunidade do Açude, Serra do Cipó em Minas Gerais, a função é repassada

de mãe para filha, eleita dentre a do grupo familiar mais digna de exercer a função, sem que

haja na perda da eficácia da reza:

O papel social de rezadeira deve ser herdado com muita honra pelas futuras

praticantes, passando de mãe para filha como relata Maria: “Aí quando

minha mãe [...] tava pra morrê, aí ela chamo nós e falô ‘agora ocês... eu sei

que cês não qué ouvi isso, mai eu tenho que falá c’ocês, eu agora eu quero

deixar o cargo de rezá na mão de uma d’ocês. E eu tenho certeza que vai dá

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mais certo é Maria dos Milagres”. Este pedido da mãe, a antiga rezadeira, é

determinante para que a “eleita” seja oficialmente responsável por comandar

as rezas a partir de então (RESENDE; SOUZA, 2005, p.95).

A futura rezadeira dentro desse contexto sócio-histórico foi escolhida pela

experiência da sua mãe. Como aborda Benjamin (1993) em seu ensaio “O Narrador:

considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”, que é no momento da morte que o narrador,

aquele que conhece as tradições, os saberes e as experiências do seu grupo, transmite o seu

legado, a sua herança e os seus últimos conselhos e ensinamentos ao escolhido para continuar

a sua função social, como ocorreu no exemplo citado da senhora Maria, moradora da

comunidade do Açude que na hora da morte buscou garantir a continuidade dos rituais e da

sua cultura. Em outros contextos, a transmissão é realizada apenas de homem para mulher ou

o contrário, como é citado por Rodrigues (2006) ao relatar a em seu trabalho a transmissão da

função de ajudar os moribundos da comunidade passada por Seu Atanásio para a filha Maria

José.

Gutemberg Costa (2009), em seu artigo “Curandeiros e rezadeiras”, aborda que

optou como categoria de sua pesquisa mulheres rezadeiras. Também optei pela denominação

de rezadeiras pela maneira como são mais conhecidas na nossa região, aborda a realidade

atual dessa categoria no nosso Estado do Rio Grande do Norte e afirma que “Essas mulheres

geralmente são discriminadas por muitos padres e religiosos” (COSTA, 2009, p. 245). Daí a

necessidade de um trabalho em que possam se reconhecer a partir da sua identidade e de

combate à discriminação. Nesse sentido, os rituais das rezas, bênçãos e benzimentos são

exercidos por sociedades em existência, em situações reais de comunicação e interação social,

em que devemos considerar o seu processo de uso social e a relação existente entre os

praticantes e os seus receptores, dentro de sua atuação na comunidade. É a funcionalidade

social das rezas que as registra na memória das rezadeiras e dos membros do grupo que

reconhecem sua eficácia e as procuram.

As rezadeiras, embora alguns estudiosos pensem no fim de sua atuação com a

modernidade, continuam exercendo o seu papel e transmitindo a sua função, seja para

familiares, ou outros membros escolhidos dentro do grupo, sendo solicitados por sua gente

para rezar e benzer em diversos contextos sociais. Dessa forma, percebemos que, por meios

das rezas praticadas pelas mulheres negras moradoras do Quati, os laços de parentesco, de

identidade cultural, de história e relação com o passado dos ancestrais se constitui como uma

prática atuante e viva na cultura popular e continuamente reelaborada de acordo com novos

contextos e situações, pois as rezadeiras se inserem em situações sociais reais de comunicação

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e interação. As rezas, a história oral do grupo são formas de afirmação identitária de quem as

exerce e transmite e de quem as solicita, e é nessa perspectiva que o nosso estudo se

desenvolve.

O fato de dona Naldi ter migrado para Pau dos Ferros, em sua fala o lugar é chamada

de “Pau do Serro”, uma cidade de maior porte onde se distanciou geograficamente dos

membros do seu grupo social, apesar de ser bastante visitada sempre que as pessoas de Luís

Gomes que recebem suas rezas vão a esta cidade ou necessitam da sua ajuda, não constituiu

um distanciamento de sua identidade cultural. O espaço não se tornou um obstáculo ao

exercício de sua função social. Ao atender pessoas também em Pau dos Ferros, fato do qual

sou testemunha, ela ampliou sua rede de relações sociais e afetivas. Esse fato contraria de

certa forma o pensamento do geógrafo Milton Santos quando afirma que:

Vir para a cidade grande é, certamente, deixar para atrás uma cultura

herdada para se encontrar com uma outra. Quando o homem se defronta com

um espaço que não ajudou a criar, cuja história desconhece, cuja memória

lhe é estranha, esse lugar é a sede de uma vigorosa alienação (SANTOS, M.,

2006, p. 222).

Nesse sentido, a rezadeira Naldi não deixou para trás sua cultura herdada dos

antepassados, embora o seu deslocamento a defrontou com um lugar estranho à sua história de

vida e a sua memória. O novo lugar não se tornou sede de uma alienação. Não obstante a

mudança, a colaboradora encontrou gradativamente espaço para o seu ofício de rezadeira e

uma nova convivência foi construída no novo lugar. A longa convivência no seu lugar

familiar foi continuada por uma nova vivência em que a agente popular continuou ativa,

retomando por meio da memória e da prática de rezadeira as imagens que lhes são caras.

Assim:

Vivemos um tempo de mudanças. Em muitos casos, a sucessão alucinante de

eventos não deixa falar de mudanças, mas de vertigem. O sujeito no lugar

estava submetido a uma convivência longa e repetitiva com os mesmos

objetos, os mesmos trajetos, as mesmas imagens, de cuja construção

participava: uma familiaridade que era fruto de uma história própria, da

sociedade local e do lugar, onde cada indivíduo era ativo (SANTOS, M.,

2006a, p. 222).

Como traço característico da identidade dos agentes das culturas populares, a

rezadeira Naldi após ter vivenciado uma longa interação com os membros do seu grupo no

município de Luís Gomes, nos sítios onde nasceu e possui familiares, na cidade onde morou

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até sua ida para Pau dos Ferros, adaptou a sua função quando mudou de lugar. Passou a

construir uma nova convivência, reelaborando assim sua história de vida.

4.4 Dona Lurdes: um dom em que a pessoas acreditaram

A nossa segunda entrevistada é a senhora Maria de Lurdes Martins da Silva,

conhecida nas comunidades de Quati e Lagoa do Mato como Lourde de Pedro Chéu, nome

popular do seu esposo, referência comum nos nomes populares do sertão nordestino. Lurdes

cresceu em meio ao universo das rezadeiras negras de sua comunidade, pois ela é descendente

das famílias ancestrais do lugar, sobrinha, prima de outras rezadeiras mais velhas. O convívio

cotidiano ao longo da sua de vida foi fundamental para a descoberta do dom, como se fala nas

culturas populares. Porém, já vivendo num outro lugar a rezadeira narra que aprendeu a rezar

com um baiano que era cigano e que passou em sua casa pedindo esmolas. Na fala da

entrevistada fica subjacente que este baiano era um rezador, agente da sua cultura que

reconheceu em dona Lurdes uma pessoa portadora do dom. Com o início da sua função, dona

Lurdes foi também, segundo ela, melhorando, afastando as coisas ruins, pois na compreensão

das culturas populares, a pessoa que possui um dom e não o coloca à disposição dos seus não

se sente bem, muitas vezes até adoece, fato também narrado na história de vida da rezadeira

Naldi que passou a se sentir melhor após o início da sua função de rezar. Vejamos a fala da

colaboradora:

Ciro: Lurdes aí a senhora disse que a, cumé... aprendeu as rezas com um baiano, como a senhora

conheceu esse baiano, foi aqui?

Lurdes: Eu tava lá em casa aí ele passou... lá em casa, eu só sei que ele disse que era cigano né?. Aí ele

pidiu irmola, aí Pedo disse que não tinha irmola pa vagabundo, aí ele disse, eu tava deitada e ele disse

é isso mermo.

Ciro: A senhora morava aonde?

Lurdes: Na Paraíba

Ciro: Paraíba né?

Lurdes: Morei doze ano lá ainda né? Aí ele disse assim, ó você disse que não tem irmola pa dá e se eu

disser que tua mulé ta aí em estado como em cima duma cama e tem remédio pra ela, encontrou

remédio pra ela, vou ensinar remédio pra ela, ele te disse, o que é o remédio, ele disse pa ameba, eu

vou ensinar uu... criolim né? Criulim, muia um cordãozim (gesto demonstrativo com as mãos) e bota

dento dagua e vai pingando num copo d’água aí, o cordão moiado de criolino aí moia na agua e pinga

no copo. Fica no li é bem pretim, né? Aí fica branco, aí então fiquei boa da ameba com isso aí.

Ciro: Aí a senhora depois teve contato com esse baiano?

Lurdes: Num vi ele mair não, passou pedindo irmola, Tião disse que não tinha irmola pa vagabundo,

ele disse sua mulé ta aí em cima duma cama aí, ainda não encontrou remédio ainda a doença dela é no

intestino, é ameba, eu vou ensinar remédio pra ela, aí eu sai, ele ensinou o remédio, aí eu quebrei mie

pa ele levar, apanhei fejão, ele disse é isso mermu, num tinha nada pra me dá, vou levando mie,

feijão, cada uma bage tão graúda, a senhora trabalhou, trabalhei sinhô, apois a sinhora vai ficar

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boazinha com esse remédio. Aí ensinou como rezar de criança, ensinou, aí foi embora chegou lá do

oto lado, (som de batidas nas mãos) que eu curo aí deu um grito, será que eu robei? Pa dá pra ele, será

que robei? Que ele chegou ensinando remédio pra mim, porque disse que não tinha nada em sítio e

tinha, sabia quem era né? Às vezes Jesus (som de batidas nas mãos) bate na porta da gente, ... ... e a

gente aí num dá nada aquela pessoa, ta pensando que é né? Apois foi esse baiano que ensinou esse

remédio a eu, chegou lá em cima em Maria de Raimundo, era lugar seco, a menina da canela seca

pegou deu o ligume, sei o que lá e tal, trabalhou bem muito, ela vai morrer trabalhou demais sei o que

lá, eu dei o grito bem forte: será que eu robeiii (gritando)? Dento da roça pra eu, dá pro baiano... eu

vim buscar pra tu, venha vê mais agora, venha, venha vê pra você. Margarida entrou, Maria de

Raimundo disse eu acho é pouco ... ... acunha Lurde, eu gritei mais forte ainda.

Ciro: Mas assim essas rezas da senhora, de rezar nas pessoas, rezar em quebrante ele ensinou tudo a

senhora nesse dia ou ele ensinou só o remédio mesmo?

Lurdes: Ele ensinou o remédio, ensinou como rezar em criança, ele disse ói Maria a sinhora tem um

probrema, aí eu disse que é? ... ... siga dava vai rezar, eu gosto de uma reza, ... ... aí disse que eu pra

melhorar mesmo quando eu rezasse o Credo, o Pai Nosso e a Armaria, (conta nos dedos da mão) pa

tanger aquelas coisas ruim. ... ... aí comecei a rezar aí fui, fiquei mais melhor, eu fiquei melhor com a

reza dele.

(Transcrição 2 - 29.02.2016).

A rezadeira dona Lurdes teve significativa convivência com o universo diário das

rezaderias de sua comunidade, como sua tia Maria Nova, cuja memória marca este trabalho

por ser uma referência dos agentes populares do Quati e da Lagoa do Mato. As rezadeiras

mais idosas eram e são consideradas de maior respeito e de reza mais poderosa e eficaz, o que

segundo Gutemberg Costa:

Acredito que o fato de serem pessoas idosas favorece o poder mágico e

religioso que lhes é atribuído. Poder esse que se percebe reforçado, dentro

outros aspectos, pela idéia de abstinência sexual, uma vez que algumas

delas, sendo viúvas e idosas, não fazem parte de orgias, farras, festas

profanas, o que lhes propicia uma aura mágica (COSTA, 2009, p. 245).

A senhora idosa de que fala a seguir dona Lurdes é a rezadeira Joaquina, cuja função

no seio do grupo despertou na entrevistada o desejo de dar continuidade a essa prática.

Joaquina era moradora da comunidade de Lagoa do Mato, onde também mora dona Lurdes

hoje e onde moraram os pais dessa entrevistada durante toda a vida, numa casa próxima a casa

atual casa de Lurdes. Foi a observação da atuação de dona Joaquina que identificou Lurdes

com a vontade de também ser uma rezaderia, de se colocar a serviço dos membros do grupo.

Ciro: Mas antes, antes da senhora conhecer esse baiano a senhora já rezava nas pessoas?

Lurdes: Não eu tinha vontade de rezar e ... ... de pau e ficava bem.

Ciro: A senhora tinha vontade né?

Lurdes: Tinha vontade é.

Ciro: Mas a senhora tinha vontade porque via outras rezadeiras? Ou...

Lurdes: Era não era por que via uma velhinha aí queria dizer a coisa a eu e num falava, eu num sei ...

...

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Ciro: A senhora via essa velhinha mais...

Lurdes: Via a veinha mais, ela dizia que o nome dela era Joaquina.

Ciro: Mas ela era de ... de Lagoa do Mato?

Lurdes: Joaquina num sei

Ciro: Mas a senhora conheceu ela morando aqui né? Ela morava dona...

Lurdes: Conheci ela morando aqui, Dona Mamédia... da onde era Dona Mamédia era? (faz entonação

tentando lembrar) Telúzia ela até fala daonde que ela era.

Ciro: Mas ela morava aqui?

Lurdes: Morava aqui, aqui perto de Maria Nova, Margarida (aponta com o dedo)

Ciro: Simmm, morava perto de Maria Nova ...

Lurdes: Onde tem aquela mandioca era a casa dela ali... reta essa casa de Zé de Juvino, essa primeira

casa.

(Transcrição 2 - 29.02.2016).

Apesar de ter sido iniciada por um desconhecido que passou em sua casa, dona

Lurdes se identifica em seu relato de vida como uma continuadora da função em sua

comunidade. Embora a transmissão memorial da função de rezaderia por membros de sua

comunidade não tenha sido de forma direta, como dona Naldi que foi ensinada pela avó para

ser sua sucessora direta, o fato de dona Lurdes desejar ser também uma rezadeira em seu

meio, ao conviver com as práticas de dona Joaquina, observar o laço construído com as

pessoas das comunidades de Quati e Lagoa do Mato despertou na entrevistada a identidade

com a função social que desempenha até os dias de hoje. A rezadeira também se identificava

com o trabalho de Mãe Faba, sua avó materna, mãe da sua mãe conforme podemos ver no seu

relato de vida, que juntamente com Neném lhe ensinava a oração do Pai Nosso às seis horas,

hora considerada mágica, mística na cultura e na religiosidade popular. Segundo Cascudo

(2002, p.446) “As horas abertas (grifo do autor) são quatro: - meio-dia, meia-noite, às

Trindades, ao anoitecer e amanhecer, ao quebrar das barras”. Vejamos na fala da

colaboradora:

Ciro: Então Dona Lurdes a senhora tinha vontade de rezar quando via Dona Joaquina... mas nunca

tinha rezado antes?

Lurdes: Não, não só o Pai Nosso e quem ensinava era Neném com Mãe Faba ...

Ciro: Mãe Faba era rezadeira?

Lurdes: Mãe Faba era mãe da minha mãe, era parteira.

Ciro: Era parteira?

Lurdes: (balança a cabeça sinalizando um sim)...Era parteira minha mãe Fara ....

Ciro: Aí a senhora tinha vontade de rezar o pai nosso, mas não rezava nas pessoas não né?

Lurdes: Quem ensinava a nós era Neném a Mãe de Cosma, nós ia de 6 horas pra lá pra aprender o Pai

Nosso....

(Transcrição 2 - 29.02.2016).

Para o estudioso da cultura popular e do folclore, são nessas horas do dia que feitiços

e pragas se revestem de força e eficácia, que a morte age, a doença piora, horas em que o

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homem não encontra defesa e propícia aos trabalhos do mal e da destruição. Porém, no

catolicismo popular, na ressignificação elaborada pelas rezadeiras, essa foi a hora escolhida

pelas rezaderias para ensinarem orações as mais jovens, o que no contexto das superstições

populares no sertão nordestino tão discutidas por Câmara Cascudo, a hora deve ter sido

escolhida por ser no catolicismo considerada a hora da Ave-Maria, do anúncio do Arcanjo

Gabriel a Nossa Senhora segundo a tradição, trazendo dessa forma proteção aos orantes. A

cultura popular afro-brasileira não se separa do contexto de vida de seus agentes,

compreendida fora deste seria uma encenação, conforme reflete Canclini (1997). Às seis

horas assim é um momento social em que as tarefas da lida diária já se encerraram, propício à

narrativa, a transmissão das experiências de vida, da cultura ancestral, da religiosidade. Sobre

os momentos sociais, a divisão do cotidiano entre trabalho e o descanso, a vida prática e a

simbólica, Ayala (1997) explica que é nessa liturgia do cotidiano que se inscrevem as práticas

culturais como as rezas e as narrativas que as envolvem, o contato entre a rezadeira e a pessoa

por ela atendida.

O reconhecimento dos membros do grupo é um fator primordial para o exercício da

função de rezadeira. Sem esse reconhecimento não existe contexto social para essa função da

cultura popular. As pessoas que procuram as rezadeiras são significativas em sua história de

vida. Quando vivia na Paraíba, dona Lurdes não encontrou aceitação para a sua atuação de

rezaderia, pois as pessoas tinham medo, principalmente do poder sobrenatural da rezaderia

“descobrir as coisas”, por exemplo, quem praticou um roubo na comunidade, conforme

podemos ver no relato de vida a seguir:

Ciro: ...Ok e assim depois desse baiano a senhora começou a rezar nas pessoas lá na Paraíba ou

quando voltou pra cá pro Rio Grande?

Lurdes: Lá a maioria das pessoas ninguém aceitou tinha medo deu... Aí eu fui me peguei a nossa

Senhora de Aparecida pa abrir meus camim, e eu rezava o terço todo dia de 6 hrs, a santinha desse

tamain (indica o tamanho com as mãos) só que as pessoa tinha medo de mim ... a merma pessoa que

tinha medo de mim foi a pessoa que carregou a aliança do meu casamento, carregou, comprou, ....

carregou minha aliança comprou de pão e comeu, só que ela muito mintirosa. Aí quem tinha medo deu

rezando os terço com medo deu descobrir, só isso aí.

Ciro:- Simmm...

Lurdes: Aquela neguinha descobre um bucado de coisa,

Ciro: Isso lá na Paraíba ainda?

Lurdes: Na Paraíba, aquela neguinha preta... ela ta ali, mas no céu ela tá, ói vai descobrir as coisa. Aí

então tinha medo de mim, tinha medo de mim, ninguém queria rezar mais eu, quem chegava pa rezar

mais eu, era Maria Aparecida mermo nome da santa, madinha de Cleidivan meu que tá hoje em São

Paulo.

Ciro: Aí a senhora tinha quantos anos quando conheceu esse baiano?

Lurdes: Eu já tinha Cleidisvan, eu tinha trinta ee... faz oitenta e cinco ano, trinta e seis, trinta e sete ...

(conta nas mãos) trinta e nove ano eu tinha.

C: Aí depois a senhora demorou muito na Paraíba ou voltou a morar aqui?

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Lurdes: Nós só fiquemo lá ... (SILÊNCIO) doze ano só.

Ciro: Doze anos?

Lurdes: Vim pra cá em noventa.

Ciro: Noventa né?

Lurdes: Onze de maio de noventa, foi ... dia de domingo.

(Transcrição 2 - 29.02.2016).

O início da sua atuação como rezadeira ocorreu no seio do grupo familiar, rezando

no seu filho Cleidisvan contra quebrante, o chamado mau-olhado na cultura popular. A partir

desse fato veio o reconhecimento das suas rezas por parte dos membros da comunidade de

Quati e Lagoa do Mato. Esse é considerado um marco em sua trajetória de vida como

rezadeira ao voltar para a sua comunidade. Na compreensão das pessoas da comunidade, no

senso comum se a reza fosse ruim, para o mal, dona Lurdes não a exerceria sobre o seu filho.

Dái a comunidade passou a aceitar as rezas de dona Lurdes como parte de sua cultura e de

suas manifestações. Sobre a vivência desde a infância com o universo das rezadeiras, as raízes

culturais do seu povo, com uma história vivida em comum e o início do reconhecimento pela

comunidade do seu dom e da sua nova função, dona Lurdes nos relata a seguir:

Ciro: E?...Quando a senhora voltou a morar aqui como foi que as pessoas aceitaram a reza da senhora,

a senhora contou que tinha aprendido? As pessoas começou a procurar?

Lurdes: Rezando no menino meu, no Cleidisvan, botaram um quebrante nele aí ninguém descobriu, a

rente descobriu que ... a prantinha tinha que tá nele so de cuequinha, tinha que rezar nele só de cueca...

tava incricriado o menino viu? andava com ele no bornó assim, porque ele tano no braço num dava era

curtim (encena com os braços), aí butava ele no bornó assim, eu fiz o bornó, e carregava pa li, “homi

jogue isso fora”, falei assim: “jogue o seu, o meu deixe aqui comigo, tá no bornó”... quuando rezei

nele só de cuequinha ele começou a estirar as pernas, o povo até se assombrou, a menina aqui se

assombrou com ele se estirando... aaaaí, daí nos três dias o menino tava bonzim já, mago, fei ... aí eu;

leite de gado com ovo, batido, num tinha liquidificador (faz gestos com as mãos) não né?, aí sei que o

menino quando tinha três ano era desse tamain que não tinha quem dissesse que era aquele (encena o

tamanho) ... mas eu digo a você ... as pessoa ficava assim acreditando, aí ficaro aparecendo pá rezar,

eu fiquei rezando.

Ciro: Então assim, a partir daí foi que as pessoas começaram a conhecer a senhora como rezadeira?

Lurdes: Fooi, mai não é porque eu quero, isso é, é Deus mermo.

Ciro: Mas assim a senhora começou a sentir esse dom que a senhora tinha pra rezar ...

Lurdes: Derde de miudinha ...pode falar

Lurdes: Derde de miudinha ... de miudinha ... aí eu ficava gostano de ajudar, aí e minha mãe tu não

pode ajudar não tu é muito pequena e sei lá e tal apois não quer que eu ajude ninguém não então...

Ciro- Só pere aí assim a senhora queria ajudar a rezar?

Lurdes: Sim...

Ciro: Ajudar as rezadeiras ou a senhora mesmo rezar?

Lurdes: Assim a pes.., a galinha sofrendo, um bode, um cabrito uma coisa, mãe não deixava, aí meu

destino era o que? Selar um cavalo, montar e andar muito cavalo e nunca caí de cavalo ninhum ... Ali

in Antoin de Hermoge (aponta com a mão) eu corria muito, Colorau dizia assim vai cair, eu dizia sai

do mei se não eu passo pu cima, eu nunca caí do cavalo e caí duma jumenta, fiquei sem fala minha

mãe morreu e não sabe que eu fiquei sem fala desse jeito. Maria fez um chá me deu, tomei lá naquele

canto aculá, lá onde tá aquela, o carro vai passando, (aponta com a mão) tinha uma pinheira aculá né?

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e eu fiquei lá estirada, me acordei com o chazim na boca, a queda fo ... agora dum cavalo nunca eu caí,

celado e... chapéu na cabeça (dá voltas em torno da cabeça com a mão) e depoois meu.

Ciro: Aí assim a senhora pequena nunca tinha rezado né assim nas pessoas não?

Lurdes: Não não (balança com a cabeça dizendo que não) eu tinha vontade de rezar assim nos cabritos

in pinto, mãe dizia tá lezano o pinto vai morrer um sei que lá, e eu ....

Ciro: E assim depois que a senhora voltou pra aqui, aí muita gente começou a procurar a senhora?

Lurdes: Por causa que eu rezei em Cleidisvan ele se disincricriou... tarra todo incricriado, Deurdete pré

de Uiraúna chegou a vê o menino todo incricriado, aí quando eu fiquei andano lá, aí ei cadê o

Cleidivan o menino, tá qui, morreu? eu não, tá qui, mai é gordim, mais novo que parece fi de rico, eu

digo aqui é leite de gado que ele bebe leite de gado ee com ovo, da gema do ovo só a gema sabe, comé

que pode dá o meu, desse jeito, ela falava assim (sorri enquanto conta) ...

Ciro: E ... a senhora começou a rezar nas pessoas aqui, começou a ser conhecida como rezadeira,

muita gente procura a senhora?

Lurdes: Éé eu num sei se é a fé dele, acho que é a fé dele que né? eu faço o que eu posso.

Ciro: Então tem tem quase trinta anos que a senhora é rezadeira aqui?

Lurdes: Vinte e seis.

(Transcrição 2 - 29.02.2016).

Assim, a história de vida da rezadeira Lurdes é marcada por um forte sentimento de

identidade, pois desde a infância o convívio com as rezadeiras, algumas tias suas, foi o

responsável pela transmissão memorial da cultura do seu povo com as rezadeiras da sua

comunidade. Numa cultura marcada pela oralidade, em que não há uma história escrita dos

bens simbólicos de um povo e onde poucos dispõem de escolaridade, principalmente os mais

velhos, a criança dispõe das narrativas de vida dos agentes populares, como no caso as

rezadeiras mais antigas. Por ser a cultura afro-brasileira uma cultura de resistência cujos

traços foram historicamente massacrados pela cultura colonizadora, as raízes da cultura

ancestral são repassadas por meio do convívio diário, de uma socialização constante.

As práticas das rezadeiras obedecem, assim como a voz-poética, a um conjunto ritual

de gestos, palavras, tom de voz, em que cada signo é revestido de sentido. Há palavras

consideradas mais sagradas que a pessoa que recebe a reza não pode ouvir e a rezadeira as

pronuncia em voz baixa. Há gestos como traçar com a faca na marca do pé do doente no chão

cruzes para cortar íngua, isto é, glândula na virilha, como o fazia a rezadeira Maria Nova

(SILVA, 2016). O uso do ramo, a direção em que se faz o gesto de mandar os males embora,

o ato de quebrar e de jogar fora o ramo após a reza quando para este foi passado o mal, o

bocejar da rezadeira como sinal de mau-olhado. Todo esse universo ritualístico compõe a

performance dessas agentes em que a fé do receptor também integra o conjunto simbólico que

propicia a performance. Assim, a produção dessa performance, sua elaboração enquanto

discurso oral, ocorre “quando a comunicação e a recepção[...] coincidem no tempo”

(ZUMTHOR, 1997, p. 19). Esse tempo é comunitário, coletivo, em que o grupo reconhece o

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valor ritual da voz e dos gestos da rezadeira e a cultura adquire sentido na vida das pessoas a

vivenciam.

Quanto ao papel da rezadeira na comunidade, umas curam doenças, outras tiram

quebranto, orientam como a pessoa deve se proteger do “mau-olhado” numa hibridização

acompanhada de orações católicas como é o caso de dona Lurdes, que asperge com água o

ramo de uma planta do seu quintal para realizar o rito. Assim:

No dia-adia estas tradições religiosas populares se manifestam em atos de

purificação e de proteção, como são os que livram as pessoas do “mau-

olhado” e do “quebranto”, que são energias negativas.

Para se proteger, a pessoa deve usar uma figa ou a medalha de algum santo

que ajuda a “fechar o corpo”. As crianças, que são as mais vulneráveis,

devem carregar sempre uma pequena figa no braço direito, amarrada a uma

fitinha vermelha. Falhando a prevenção, a pessoa atingida deverá –procurar

uma rezadeira, para livrar-se do mau olhado.

Geralmente o ritual é feito com a aspersão de água com folha de arruda ou

de alecrim, acompanhada de orações católicas, como o pai-nosso, a ave-

maria e a salve rainha (PREZIA, 2007b, p.91-92).

Na esteira do pensamento de Glissant (2014), o uso das plantas pelas rezadeiras é

compreendido com um “trace”, ou seja, um vestígio da magia africana herdado dos ancestrais

que, no Brasil, também se associou ao uso feito pelos indígenas. Isso pode ser percebido no

uso dos ramos, galhos de plantas durante as rezas que murcham na crença de que o mal-

olhado passa da pessoa para o ramo. Esse é um vestígio recorrente nas práticas dos rituais das

rezas, um traço significativo da memória mística e religiosa africana. Nessa riqueza de ritos

que é o sincretismo a aspersão com a água, ato que presenciei muitas vezes quando dona

Lurdes rezou em mim molhando o ramo na água, esse fato deriva de uma tradição judaico-

cristã, como a água do batismo simboliza a purificação dos pecados, a regeneração humana e

o simbolismo de uma fonte de água é visto como fonte de vida (ELIADE, 1972). Isso nos

mostra a muliplicidade de culturas e rituais presentes nas práticas das rezadeiras, o que reforça

a crioulização e o caráter rizomático da sua cultura. Em sua obra Introdução a uma Poética da

Diversidade, Glissant (2005) destaca a América como um lugar onde há interação de tantas

culturas que se torna extravagante. Para o autor a vivacidade desse contato se deve

principalmente a diáspora africana. A América se tornou o lugar central das mais conhecidas

culturas do mundo. Sobre a crioulização no sentido de uma mestiçagem que produz o

inesperado, as rezas como estão constituídas nas práticas das rezaderias negras do Quati são

um produto originado nesse complexo de culturas. Porém, conforme o mesmo autor, embora

o Brasil assim como o Caribe tenha tido uma crioulização acelerada, os povos que chegaram

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ao local, ancoraram na dor os rastros e vestígios da cultura que atravessou o Atlântico. Assim

os povos diaspóricos tiveram uma disposição mais fácil com os outros. Nesses espaços sociais

se inscrevem as rezas, como a memória da terra natal que os africanos foram obrigados a

deixar, o contato com a cultura indígena irmanado pela dor e a mestiçagem cultural com o

europeu. Esse contato, conforme a compreensão de Glissant não foi harmonioso, o que

percebemos na forma como as rezaderias e outros agentes da cultura popular afro-brasileira

como membros das Irmandades de Nossa Senhora do Rosário, reelaboraram suas

manifestações culturais ao longo da história para evitar perseguições e preconceitos e não

deixar que apagassem os rastros e vestígios da cultura trazidos da África.

A compreensão do autor sobre a diversidade enxerga que o humano é constituído de

diferentes elementos. Essa heterogeneidade propicia uma relação intercultural e na

diversidade há a aceitação da diferença, ao contrário do que ocorre com o “mesmo” que o

elemento diferente é expurgado. Na “poética da relação” proposta por Glissant há um

enraizamento com o outro, com a sua cultura. A diversidade tece rizomas que se entrelaçam e

foi isso o que aconteceu com as culturas africana, indígena e europeia na elaboração dos

rituais e das rezas. São raízes diversas na constituição de suas manifestações culturais e

histórias de vida. Nesse sentido o humano “Ele não é ser, mas sendo e que todo sendo muda

[...] Um dia vamos admitir que não somos uma entidade absoluta, mas sim um sendo

mutável” (GLISSANT, 2005, p. 33). Nas vozes das rezadeiras se emaranham raízes negras,

indígenas e brancas, unidas por uma histórica teia de interculturalidade em que nenhuma

cultura é absoluta, e todas estão sujeitas à mutação. Essa mutação fermentou a incorporação

dos diversos traços que formaram os rituais, as rezas e as histórias de vida dos agentes da

cultura popular afro-brasileira.

Com relação ao complexo processo de mudança de que trata Glissant, intrínseco à

dinâmica das culturas populares afro-brasileiras, este também ocorre quando os agentes

migram para outro lugar. Assim a produção das manifestações culturais ocorre na

compreensão de que “A cultura, forma de comunicação do indivíduo e do grupo com o

universo, é uma herança, mas também um reaprendizado das relações profundas entre o

homem e o seu meio” (SANTOS, M., 2006a, p. 221). Nessa relação entre o homem e o

espaço, refletida pelo geógrafo Milton Santos, percebemos a interação entre os agentes da

cultura popular e o seu meio. Por exemplo, a rezadeira dona Naldi cuja história de vida foi

vista anterior a da rezadeira dona Lurdes, apesar de residir atualmente em Pau dos Ferros,

nesta cidade passou a exercer a mesma função de rezadeira, tornando-se conhecida para o seu

ofício. Apesar do deslocamento, “Por serem ‘diferentes’, os pobres abrem espaços para um

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debate novo, inédito, às vezes silencioso, às vezes ruidoso, com as populações e as coisas já

presentes” (SANTOS, M., 2006a, p. 221). Na esteira do pensamento do geógrafo, entendemos

que os ritos e as rezas, a sua identidade enquanto rezadeira permitiu à dona Naldi um novo

espaço e um novo debate com a população, com outra realidade em uma cidade maior do que

a sua cidade de Luís Gomes e os sítios onde morou, desenvolvendo “novas articulações

práticas e novas normas, na vida social e afetiva” (SANTOS, M., 2006a, p. 221).

A rezadeira dona Lurdes realiza as duas vertentes populares da reza, tanto à proteção

física quanto espiritual contra as energias negativas, reunindo em sua função e identidade de

agente popular as heranças africana, indígena e europeia, o que nos mostra a complexidade de

sua cultura. Lurdes desde criança sentiu o desejo de ser também uma rezadeira em sua

comunidade. Sem esta vivência, o ofício de rezadeira existente desde os ancestrais negros

como resultado de uma hibridização do catolicismo com as religiões trazidas da África não se

perpetuaria, principalmente após a morte dos mais velhos do grupo, e ficaria restrito a um

passado distante, abstrato, não constituindo a memória coletiva responsável pelo sentido de

pertencimento e identidade. A importância dessa transmissão nos é explicada por Ecléa Bosi

ao afirmar que:

A criança recebe do passado não só os dados da história escrita; mergulha

suas raízes na história vivida, ou melhor sobrevivída, das pessoas de idade

que tomaram parte na sua socialização. Sem estas, haveria apenas uma

competência abstrata para lidar com os dados do passado, mas não a

memória (BOSI, 2007, p. 73).

O que a mãe da entrevistada considerava como lezeira conforme podemos ver no

relato de vida, para a criança já era um mergulho na cultura do seu povo, nas raízes mais

significativas da herança africana presentes em sua comunidade transmitidas pelas rezadeiras

antigas mais velhas alicerçada nos valores vividos coletivamente em que essa transmissão

memorial das experiências de vida em comunidade se assemelha à transmissão realizada pelo

narrador na visão de Walter Benjamim (1993). As rezadeiras mais velhas são comparadas aos

camponeses sedentários, que nunca saíram de sua terra, conhecem os membros do grupo com

precisão, suas histórias de vida e suas manifestações culturais. Dona Lurdes saiu da sua terra

para a vizinha Paraíba, mas não perdeu o laço com o seu grupo. Sua memória da infância, do

desejo de se tornar uma rezadeira, do convívio com as rezaderias antigas como dona Joaquina,

Maria Nova, ficaram latentes até o aparecimento do baiano em sua casa, este cujas

características relembra o narrador viajante de Benjamin (1993) que sai em viagem

aprendendo e transmitindo experiências para um dia retornar a terra natal e repassá-las ao seu

povo.

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Quanto à volta de dona Lurdes à Lagoa do Mato e o seu início do papel social de

rezadeira, esta função se baseia no reconhecimento do grupo de sua autoridade e preparação

para o exercício da função, pois quando saiu da sua terra natal ainda não era uma rezadeira. É

o novo convívio com as rezas de dona Lurdes que constrói uma nova identidade para essa

colaboradora deste trabalho.

Após o encontro com o baiano e o seu retorno ao sítio Lagoa do Mato, a rezadeira

dona Lurdes iniciou a sua função social no espaço que lhe pertencia, entre os seus, familiares,

vizinhos. Na esteira da compreensão das realidades de espaço e tempo pensadas por Milton

Santos, o lugar não se limita ao espaço físico, mas ao cotidiano que nele se inscreve, as

relações construídas, seja na cidade ou no campo como é o caso de dona Lurdes. Por meio das

rezas, ela elabora uma comunicação com o grupo movida pela paixão humana, de forma

espontânea e criativa. O seu lugar de origem e ao qual retornou para morar se constitui como

uma referência em sua história de vida, que se ancora:

No lugar – um cotidiano compartido entre as mais diversas pessoas, firmas e

instituições – cooperação e conflito são a base da vida em comum. Porque

cada qual exerce uma ação própria, a vida social se individualiza; e porque a

contiguidade é criadora de comunhão, a política se territorializa, com o

confronto entre a organização e espontaneidade. O lugar é o quadro de

referência pragmática ao mundo, do qual lhe vêm solicitações e ordens

precisas de ações condicionadas, mas é também teatro insubstituível das

paixões humanas, responsáveis, através da ação comunicativa, pelas mais

diversas manifestações da espontaneidade e da criatividade (SANTOS,

2006a, p. 218).

O seu ofício de rezadeira passou a se sustentar no seu próprio meio geográfico tendo

como cerne as relações sociais com as pessoas do lugar que aos poucos foram lhe aceitando

como agente da cultura e da religiosidade popular afro-brasileira. Desse modo, o espaço

oferece a materialidade às relações entre a rezadeira e os membros da comunidade que a

procuram. Dona Lurdes foi se adaptando à nova função, assim como também às pessoas do

lugar, criando uma teia de solidariedade no interior do grupo que se recria nesse convívio

cotidiano. Nessas relações de proximidade:

Há uma variedade infinita de ofícios, uma multiplicidade de combinações

em movimento permanente, dotadas de grande capacidade de adaptação, e

sustentadas no seu próprio meio geográfico, este sendo tornado como uma

forma-conteúdo, um híbrido de materialidade e relações sociais. Desse

modo, as respectivas divisões proteiformes de trabalho, adaptáveis, instáveis,

plásticas, adaptam-se a si mesmas, mediante incitações externas e internas.

Sua solidariedade se cria e recria ali mesmo, enquanto a solidariedade

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imposta pela cooperação de tipo hegemônico é comandada de fora do meio

geográfico e do meio social em que incide (SANTOS, 2006a, p. 220).

Rememorar esse fato da volta e o início de sua aceitação e procura como rezadeira

numa comunidade onde a função é atribuída a poucos eleitos por ser considerada de muito

respeito e de necessidade na vida do grupo. Os afrodescendentes foram historicamente

desassistidos pelos poderes públicos dos cuidados com a saúde. Cabia às rezaderias, o

exercício da medicina popular com plantas e dos ritos de rezas na busca da cura das doenças.

Hoje o papel das rezadeiras continua como rito simbólico que tece os laços de identidade

tendo por base as relações sociais, o convívio cotidiano de trabalho e descanso. É essa a

memória que confere sentido ao ofício de dona Lurdes, relembrá-la é sentir-se enraizada no

seu povo, no seio do seu grupo social. Rodrigues nos esclarece que:

Para os artistas populares, o trabalho, os cantos e a vida de sofrimento e de

desafios mantêm viva uma identidade construída a partir de valores de

comportamento e convívio. As rezas, os adágios, os ditados, os cantos, as

narrativas de santos e os costumes revelados por sua memória descortinam

as nuances do universo popular para aquele que ouve/lê a fala desses

sujeitos. O real reconhecimento destes por culturas diferentes da sua passa

por conhecer esses aspectos da sua identidade. O exercício de relembrar e

contar sua vida faz com que essas pessoas, entre lugares e temporalidades

variadas, recuperem as marcas que as fazem sentir-se parte do seu grupo

social. (RODRIGUES, 2008, p.41)

Quanto à identidade religiosa das rezadeiras, o catolicismo herdado dos

colonizadores é a religião “declarada” pela rezadeira dona Lurdes e que também predominou

no relato de vida da rezadeira dona Naldi. Nesta hibridização entre o catolicismo branco e a

religiosidade popular, as rezas e ritos de benzimentos herdados dos antepassados, mais uma

vez, como no relato de vida de dona Naldi, também a fala de dona Lurdes apresenta a imagem

de Nossa Senhora Aparecida, a Virgem Negra Padroeira do Brasil aparece na memória como

signo principal da devoção dos povos afrodescendentes, juntamente com outras denominações

dadas à Virgem Maria como Nossa Senhora do Carmo, padroeira das comunidades de Quati e

Lagoa do Mato numa devoção introduzida pelas Irmãs Missionárias Carmelitas, quando

residiam na Paróquia de Luís Gomes, Senhora Santana, mãe da Virgem Maria e padroeira da

paróquia. A devoção à Virgem de Aparecida tem um sentido maior para os povos negros por

ter surgido durante o período da escravidão, na época de maior sofrimento. Seus ancestrais

herdaram e transmitiram a devoção, que como signo de uma identidade construída

historicamente é constantemente reelaborada. Vejamos no relato de vida a seguir:

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Ciro: E assim a religião da senhora é católica num é?

Lurdes: É Graças a Deus é.

Ciro: E assim quais são os santos que a senhora reza mais?

Lurdes: Nossa Senhora Aparecida, tem muita fé nela, que todo santo a rente tem fé né? que sempre

tem um que a gente se apega.

Ciro: E assim os santos que a senhora ... mais tem devoção?

Lurdes: Nossa Sinhora Aparecida, Nossa Sinhora Santana, Nossa Sinhora do Carmo, e o principal que

é Jesus Cristo porque ele tá no nosso meio toda hora né? ... Primeiro que tudo aquele lá de cima né

Jesus Cristo num é?

Ciro: E quando... a senhora começou a rezar /... e assim a senhora começou a rezar com devoção em

nossa senhora aparecida como foi? A senhora tinha vontade de rezar e ?...

Lurdes: Butaro a Santinha no mato aí eu tive dó dela pá começo-se assim foi, butaro no mato aí

disseru que num valia nada num sei que lá e aí foi isso truxe pra casa e foi isso, e ... ... lá todo dia eu

rezava e mode eu pedir uma; uma graça alcançada, eu alcançava, acendia uma velinha agradecia e era

assim, aí todo dia eu rezava acendia uma velinha e agradecendo aquilo que que alcancei, aí povo ficaro

com medo de mim, aquela ... ... num sabe com medo, com medo... desse tamain (encena com as

mãos) a Santinha inda truxe pra cá, depois que se acabôsse .... (levanta e vai buscar a imagem da

Santa) tenho mais aí tenho essa que Cidinha comprou.

Ciro: Certo.

Lurdes: Aí ela me deu, deu, ess, Santinha pa mim (é parecida com que a senhora deu.) era bem

miudinha, aí então tem ela maior porque cidinha deu, mai eu não tinha não ... eu pego a minha... eu ia

pegar mio mais não quer, chama chama. Pode deixar ela?

Ciro: Pode, pode.

Lurdes: Ela deu pa mim essa aqui.

Ciro: Mais aqui já muita gente era devota de Nossa Senhora Aparecida? A mãe da senhora? Não!?

Começou com a senhora, né?

(SILÊNCIO)

Lurdes: A minha mãe andava com eu muito in Aparecida, eu tinha vontade duma santinha eu não pe,

não pudia comprar ... ... dei um bain, pentiei ... calada... porque quando fui deitar mais pedo, a nega

sem futuro, só ... ... calada

Ciro: A senhora pode falar um pouquinho mais alto),

Lurdes: Aí eu fiquei calada, continuei banhei essa ... ... com sabão e fiquei né? rezando. Pedo não reza

não, mai tudo dele essa santa. Achei no riacho essa santa que jogaru até enterrada na area, talvez

brincadu com ela lá né? ...

Alguém: Alguma criança.

Lurdes: Foi adulto que jogou

Alguém: Foi adulto? ...

Lurdes: Zefinha...morava no Uiraúna aí a gente pra lá do Ritiro, daqui pra lá as direita, Zefinha

Alguém: eu já vi ela.

Lurdes: depois de Chica Pala, mãe de Neguim; povo de Chica Pala

Alguém: eu vi ela sabádo, eu tava lá em vera quando ela desceu.

(Transcrição 2 - 29.02.2016).

A rezadeira narra que ia com sua mãe em Aparecida. Este lugar se localiza na divisa

entre os estados da Paraíba e do Rio Grande do Norte, entre os municípios de Luís Gomes e

Uiraúna. Lá existe uma capela dedicada a Nossa Senhora Aparecida construída no início do

século XX, com a abolição da escravatura recente e o começo da devoção à Virgem Negra do

Brasil no sertão nordestino. Segundo conversamos com populares, como a senhora Maria de

Lourdes Barbosa Pereira, conhecida como Lourdes de Carrim, leiga já idosa que cuidou dos

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serviços da capela por muitos anos, havia uma significativa rejeição ao culto da imagem por

se tratar de uma imagem negra, muitos diziam “não vou rezar para uma negra dessas, fazer

promessa para uma negra”. Fato significativo para a memória da comunidade confirmado

também por dona Maria Madalena Ferreira, conhecida como dona Maria Pequena, a mais

velha zeladora da capela com mais de 90 anos. Uma das antigas imagens teve a sua cor

“clareada” para que as pessoas não rejeitassem mais o culto. Esse “branqueamento” da

imagem nos mostra a problemática do racismo numa sociedade que não compreendia a

mestiçagem como a marca histórica primordial da nossa identidade cultural brasileira.

Inclusive segundo Lourdes de Carrim chegaram a chamar a imagem de Sinhá Tomásia,

rezadeira e avó da nossa entrevistada Naldi, como forma de zombaria com a cor negra. Nessa

elaboração da identidade cultural dos povos afrodescendentes da Vila Aparecida e dos seus

outros moradores, essa devoção se inscreve:

No início do século XX, próximo a um antigo vilarejo chamado

popularmente de Feira do Pau que divide os estados do Rio Grande do Norte

e da Paraíba, uma família de descendência afro-brasileira cultuava uma

singela imagem da Virgem Mãe de Deus. Era a Imagem de Nossa Senhora

Aparecida numa época pós abolição dominada pelo racismo e pela

exploração do trabalho negro. Essa família de nome popular “Cupira”

morava nas terras do Sítio Alívio na parte próxima ao vilarejo pertencente ao

Rio Grande do Norte. Sua casa era a casa de Nossa Senhora, abrigava a

imagem e recebia seus devotos das localidades em torno do sítio. Lá ao redor

da pequena e primitiva imagem faziam suas orações e novenas e

encontravam na devoção a uma Virgem Negra a força para lutar contra o

preconceito.

A devoção cresceu e a Virgem precisou de uma casa própria para receber os

seus filhos e devotos. No ano de 1922 o então vigário da paróquia paraibana

de São João do Rio do Peixe, o padre Joaquim Cirilo de Sá, construiu uma

pequena capela para Nossa Senhora Aparecida em um terreno doado pela

família dos Valdivinos e por dois italianos que doaram terras suficientes para

a constituição do patrimônio da capela onde mais tarde muitas pessoas

construiriam suas casas povoando a antiga vila. [...]

A devoção cresceu e o antigo nome de Feira do Pau, devido ao lugar ser

conhecido por brigas e conflitos, deu lugar a Vila Aparecida pelo novo

sentido que a devoção revestiu o cotidiano do lugar. Em 1955 uma nova e

maior imagem de Nossa Senhora Aparecida foi doada à capela pela senhora

Luíza Pinto, conhecida como Dona Lulu, proprietária de uma fazenda que

originou parte da vila. Mas por sua cor negra a imagem foi rejeitada pela

população local, segundo os mais velhos como a senhora Maria Ferreira,

conhecida como Maria Pequena, antiga zeladora da capela hoje com mais de

90 anos, e a senhora Lourdes Pereira, as pessoas não queriam “rezar para

uma negra desta” e nem “fazer promessa para uma negra”, citando a fala das

pessoas, e a cor da nova imagem foi “clareada”. Este fato nos lembra o

pensamento de Frantz Fanon em seu livro “Pele negra, máscaras brancas”

sobre os conflitos psicológicos que passam os negros na elaboração de sua

identidade em relação aos referenciais do branco e o pensamento de Paul

Giroy em sua obra O Atlântico Negro ao afirmar que as culturas dos povos

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negros são indissociáveis dos traumas do tráfico negreiro, da escravidão e do

racismo.

Com o tempo, a simbologia da Imagem venceu o preconceito e a devoção à

Virgem Negra se tornou signo de resistência e de fé dos povos negros e o

resgate histórico de uma das mais antigas capelas de Nossa Senhora

Aparecida no Brasil (FONSÊCA, 2017, s.p.).

O contexto do final do século XIX e meados do século XX da devoção à Virgem de

Aparecida foi marcado por preconceito e rejeição, principalmente entre as pessoas brancas.

Entre os afrodescendentes a devoção à Virgem de cor negra se constituía como um signo de

resistência da identidade afro-brasileira, como podemos apreender nos relatos de vida de dona

Naldi e de dona Lurdes. Era essa a capela da Nossa Senhora Negra frequentada por dona

Lurdes e sua mãe, onde suas identidades encontravam suporte, embora na religião do

colonizador, mas já influenciada pela história traumática dos negros no Brasil. Com relação à

identificação com o catolicismo pela maior parte das rezadeiras, Costa descreve e explica que:

90% das que foram entrevistadas por mim, aqui, no Rio Grande do Norte,

são religiosas, católicas, têm uma fé, uma devoção grande, principalmente

no Padre Cícero, nos santos católicos. Eu só encontrei uma que disse ser

espírita. Não se denominou macumbeira. Confessou que era espírita, porém

um espiritismo assim, tipo kardecista, algo como magia branca, uma coisa

mais branda, no caso. Sem fazer mal a ninguém, sem trabalhar para o mal. E

uma confessou ser evangélica, mas normalmente são católicas.

Raramente, no altar delas, no altar popular, não tem uma imagem do Padre

Cícero ou do Frei Damião.

Muitas rezadeiras inclusive aproveitavam a ida de Frei Damião às cidades e

faziam-lhes visitas. Confessavam, enfim, tinham fé na presença do Frei

Damião, que não foi o único místico peregrino pelo sertão nordestino. Esse

sertão que já foi visitado pelo Padre Cícero, já tinha sido visitado por

Antônio Conselheiro, pelo padre Biapina e tantos outros capuchinhos

(COSTA, 2009, p. 247).

Um ponto significativo apresentado por Costa é o medo da rezadeira que se

confessou espírita de ser associada à macumba, instrumento que deu nome popularmente a

uma das vertentes da religiosidade afro-brasileira. Como historicamente as religiões de matriz

africana foram associadas ao mal, inclusive o termo pejorativo de “magia negra”, com a

palavra negra sempre relacionada a uma conotação negativa. Por isso, a insistência da

rezadeira entrevistada por Gutemberg Costa em afirmar que sua atuação é mais branda, leve,

uma espécie de magia branca, do bem. Por isso recorreu inclusive a identidade espírita, de

origem kardecista, orientação mais distante do que pode ser considerado macumba.

Inês Barbosa de Oliveira ao refletir sobre a diversidade cultural nas escolas e a

herança da colonização ilumina a nossa compreensão sobre o medo de uma rezadeira ser

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identificada como macumbeira, pois este papel social a partir dos padrões colonizadores e

brancos passou para a história como inferior, relacionado ao mal, ao erro. Nesse sentido, a

autora explica que:

Dos padrões estéticos da arte erudita aos conceitos que definem as

qualidades do bom cidadão, as “tradições” eurocêntricas têm legitimado sua

superioridade social através de direitos auto-outorgados de estabelecer o

bonito e o feio, o certo e o errado, o civilizado e o selvagem, ao longo da

história dessa interação (OLIVEIRA, 2003, p. 24)

A identidade católica das rezadeiras negras se situa num complexo jogo em que não

podemos pensar a sua cultura afro-brasileira como pura, sem constantes influências. Pois tem

razão Pollack (1992, p. 5) ao afirmar que “a memória e a identidade são valores disputados

em conflitos sociais”. Esse conflito que envolve um dos valores mais caros para os povos

negros que é a fé a religiosidade que atravessou o Atlântico negro e que em terras brasileiras

se reelaborou inscrita num difícil contexto devido à escravidão e à dominação com a tentativa

de cristianização da sua cultura ancestral.

Ao longo da história, a cultura e a religiosidade africana passaram por uma rica

hibridização sem perder os seus traços de resistência e se fundiu com a religiosidade dos

nativos indígenas e com a elaboração de um catolicismo popular, não a religião puramente

imposta pelos colonizadores, pois a situação de vida dos sertanejos pobres e dos indígenas

não se diferenciava da dos negros escravizados e mesmo após a abolição. Daí a cultura das

rezaderias apresentar traços do catolicismo popular, a devoção ao Padre Cícero, considerado

padrinho dos desamparados por sua história de vida, do costume das romarias. Semelhante ao

sofrimento e desenraizameto causados pela diáspora negra, o sertanejo que emigra devido à

fome causada pelas secas tem um contexto diaspórico, pois “A violência e o dilaceramento

ocasionados pela emigração parecem gerar um apego às tradições” (HOFFLER, 2006, p.

149). Como também a violência traumática da diáspora negra originou um apego aos

elementos culturais da África, misturados aos traços sertanejos. A sensação de deslocamento

de que trata Hall (2009) foi experimentada pelos povos negros ao longo da diáspora e da

escravidão, deslocamento geográfico e de pertencimento. Daí o apego dos negros às suas

tradições que se assemelham ao apego dos retirantes nordestinos em tempo de seca e êxodo.

Para Hall, em situação diaspórica, as identidades se tornam múltiplas, por isso a

complexidade e mistura nas identidades das rezadeiras, que atravessaram a história

subvertendo os modelos tradicinais que lhes foram impostos, já que o espaço da cultura

popular permite e é constituído pela subversão das tradições dominantes. É em meio à

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hibridização e à multiplicidade de suas identidades que as rezadeiras se constituem como

agentes populares da cultura que representam, exercendo uma espécie de liderança junto ao

seu povo, ao lado de Pajés indígenas, de beatos, num mestiçamento não só físico, mas

principalmente moral, como pensou Sílvio Romero (1978). Assim:

As tradições culturais do povo da Civilização da Seca, herdadas dos tapuias,

como o misticismo, o costume do aconselhamento, o costume do

apadrinhamento, o gosto pelo trabalho em mutirão e a prática do

nomadismo, foram muito bem aproveitadas pelos líderes religiosos. O

aconselhamento era praticado por todos os líderes religiosos, mas foi

Antônio Conselheiro que ficou coma “alcunha” de Conselheiro. O

apadrinhamento era uma prática exercitada por todos os padres e beatos, mas

o “Padim Ciço” foi escolhido para ficar com o título de “Padrinho do Povo”.

O trabalho em mutirão foi muito usado por todos eles, mas foi o Padre

Ibiapina quem mais construiu prédios usando o mutirão (22 Casas de

Caridade, 10 igrejas, 9 cemitérios, 4 hospitais e outras obras). A

peregrinação foi exercitada principalmente pelo Padre Ibiapina, Beato

Antônio Conselheiro e pelo Frei Damião. A maior parte destas

características culturais sertanejas foram herdadas dos tapuias, que eram

místicos, nômades, gostavam de pedir conselhos ao Pajé, nos assuntos

religiosos e de saúde, e ao Cacique sobre guerra e convivência social. Tudo

que os índios faziam era em mutirão. Caçavam, pescavam, coletavam frutas

e mel de abelha e guerreavam em mutirão.

Os tipos humanos da civilização da seca, à semelhança dos beatos,

penitentes, cangaceiros, jagunços, vaqueiros, jangadeiros, raizeiros,

curandeiros e repentistas violeiros possuem traços fisionômicos,

psicológicos e culturais dos nativos tapuias.

Estes são os motivos que originaram esta prática religiosas tão singular que é

praticada no Sertão do Nordeste do Brasil (MENDES, 2015, p. 42).

Para a rezadeira dona Lurdes, na dinâmica do convívio com o trabalho das rezadeiras

da sua comunidade desde a infância, numa prática cultural e religiosa que caracteriza o seu

grupo social desde os antepassados e que se renovou em novos contextos, a sua identificação

com o exercício foi se construindo. Assim a nossa colaboradora entrevistada elaborou junto

com as rezadeiras mais antigas e conhecidas, num grupo quase familiar, pois a maior parte das

rezadeiras eram tias, primas, a sua identidade, o sentimento de que pertencia a essa função e a

deveria exercer em favor dos seus, relatando que há vinte e seis anos constrói esse laço com a

comunidade.

Na circularidade do ofício de rezadeira na comunidade de Quati e Lagoa do Mato,

dona Lurdes relata em sua história de vida que desde criança ao ver a atuação das rezaderias

de sua comunidade, sentia o desejo de realizar a mesma função. Porém, esse desejo ficou

latente em sua memória até que na Paraíba ocorreu o encontro com o cigano que passou em

sua casa. O ensinamento do cigano lhe reavivou a identidade que possuía com a atuação das

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rezadeiras, a memória da infância e do convívio com as rezadeiras mais velhas. Sua ação não

teve início em sua própria comunidade, mas em outra, o seu dom não pode desabrochar entre

os seus, começando em outra comunidade. Mas quando retornou a sua terra não tinha

esquecido de suas raízes e o convívio com os membros do seu grupo se tornou um solo

favorável para o exercício da função. Aos poucos, o seu dom posto a serviço do grupo foi

sendo aceito e dona Lurdes se tornou continuadora da cultura em sua comunidade, exercendo

uma função tão cara e valorizada desde os seus antepassados até o contexto atual. Nesse

complexo jogo de memória e de identidade, Bosi explica-nos que:

Existem valores e diretrizes para a ação que às vezes não puderam

desabrochar no meio primitivo em que os vimos formulados. É possível que

limitações daquele grupo o fizessem guardar essa substância valorativa em

estado virtual. Um de seus membros, depositário de sua substância implícita,

pode vir a realizá-la em outro grupo onde encontrou solo favorável. Mas, é

possível também que esqueça as raízes distantes de sua ação atual. Seria

preciso que os membros do antigo grupo ainda estivessem perto dele,

reavivando-lhe a memória (BOSI, 2007, p. 408).

No caso da história de vida de dona Lurdes, não houve esquecimento de suas raízes

apesar do tempo que passou em outro estado, e foi justamente essa memória que foi propícia a

elaboração de sua identidade enquanto rezadeira mesmo quando não estava morando na

Lagoa do Mato. A memória das rezadeiras da sua comunidade e a identificação com as suas

práticas de origem foram fundamentais para a construção do seu papel social de rezadeiras até

a volta ao seio do grupo do Quati e da Lagoa do Mato para que seus membros a reconhecem

como agente dessa manifestação cultural.

Um dos pontos significativos na atuação das rezadeiras é o uso dos ramos de plantas,

o uso simbólico de diversos vegetais e a reza própria para cada necessidade do cotidiano dos

membros do grupo. Quando frequento as rezas de dona Loudes e de dona Naldi, sempre elas

pegam ramos próximos de suas casas, embora não tenham falado sobre isso nas entrevistas,

este fato é comum no cotidiano das rezaderias. Segundo Gutemberg Costa (2009, p. 247-248)

as rezadeiras atuam com “seu galho, mandando embora toda aquela enfermidade; apontando

sempre para o mar sagrado, enfim, mandando para o mar sagrado”. O mesmo autor ressalta

que as rezadeiras são “Mulheres que trabalham com galhos de plantas cultivadas em seus

lares” (COSTA, 2009, p. 245). Iaperi Araújo (2003) também reforça esse traço do uso de

galhos que vão murchando à medida que adquirem o espírito da doença que fazia mal à

criança, herança dos rituais indígenas dos pajés que tanto o catimbó nordestino como as

práticas das rezadeiras que foi repassada pela tradição oral. Construída como uma

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manifestação cultural híbrida de um povo cujas histórias de vida estão envolvidas numa

complexa miscigenação cultural, na compreensão de Sílvio Romero (1978). Os ritos das

rezadeiras elaborados a partir do catolicismo branco, da religiosidade indígena e da

religiosidade africana que atravessou o Atlântico Negro materializam essa miscigenação

cultural. Muitas vezes as frentes das casas, os quintais e muros das rezaderias estão repletos

de plantas consideradas sagradas, protetoras dos males e usadas para fins específicos de cada

doença, quebranto ou necessidade das pessoas que as procuram. No viés da herança católica

iniciada desde a colonização:

Uma tradição muito difundida até hoje, inclusive nos centros urbanos, é o

ramo bento, obtido no domingo de Ramos. A maioria das pessoas que vão à

missa nesse domingo, não o fazem com o objetivo de aclamar Jesus,

entrando triunfante em Jerusalém, mas para levar um amuleto para casa.

Nesse dia encontra-se muita planta com significado mágico, como a arruda,

o alecrim e a espada de São Jorge, influência da cultura africana.

Posteriormente, os ramos secos são queimados e a cinza atirada ao vento em

ocasiões especiais, sobretudo nas tempestades com trovões (PREZIA, 2007a,

p.92).

O autor ressalta a herança africana, a influência tão forte dessa cultura na simbologia

das plantas e no seu uso que é inseparável da atuação das rezadeiras. Benedito Prezia, ao

abordar o caráter mais primitivo da religiosidade popular (primitivo no sentido de relacionado

com a natureza, não no sentido pejorativo) em que as culturas ancestrais se desenvolvem e se

ressignificam até mesmo nos centros urbanizados, nos mostra que as rezas não se restringem

ao meio rural. A função social das rezadeiras, que pode ser associada nessa compreensão a

dos xamãs e pajés, condenada ao desaparecimento como o pensamento moderno se volta para

as manifestações das culturas populares, sobrevive não de forma folclórica, como uma sobra

de atraso do passado no tempo presente, mas como uma cultura que mantém laços

identitários. Apesar do avanço tecnológico e da medicina, as rezaderias atuam como forma de

reavivar a cultura do seu povo, mosaico vivo de muitas memórias, de se relacionar com a

cultura dos antepassados, com os traumas e feridas históricas da diáspora, da escravidão e

colonização, tendo como palco e bastidor o contexto de hoje. Para o autor:

Durante muito tempo o xamã, ou o pajé foi visto como uma pessoa ligada a

cultos primitivos, “arcaicos” e que seriam abandonados à medida que as

pessoas tivessem acesso às culturas “superiores”. Tal situação não ocorreu,

pois o xamanismo tem se desenvolvido muito nos países de alta tecnologia,

já que as pessoas vão buscar nas religiões ligadas à natureza respostas aos

problemas da vida moderna (PREZIA, 2007a, p.93).

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Assim, podemos perceber que os povos afrodescendentes não aceitaram

passivamente a cultura portuguesa, sem resistência e capacidade de recriar. Como exemplo,

Inês Barbosa de Oliveira (2003) aborda a capacidade de reapropriação dos padrões de

dominação, como a devoção a São Jorge e São Benedito em algumas cidades brasileiras, e

baseada no pensamento de Certeau, a autora comenta que essas transformações culturais são

fruto do uso criativo que os dominados, os mais fracos, fazem das regras que lhes foram

impostas. É o caso do uso do ramo pelas rezadeiras, numa fusão do trabalho com plantas

herdado dos nativos indígenas com o ramo bento da liturgia católica do Domingo de Ramos,

que na religiosidade popular se reveste de um caráter mágico de proteção típico dos

curandeiros e rezadeiras. Os povos afrodescendentes elaboraram uma reapropriação dos

padrões dominantes, num movimento dialético em que recriam a própria cultura e a dos seus

colonizadores numa atitude responsiva às imposições. Nesse sentido, os padrões impostos são

subvertidos para que não se perca no tempo o sentido de nação trazido dos ancestrais e os

membros do grupo diaspórico possam reelaborar suas próprias tradições. “Portanto, é

importante ver essa perspectiva diaspórica da cultura como uma subversão dos modelos

culturais tradicionais orientados para a nação” (HALL, 2009, p. 36). Para melhor

compreendermos essas adaptações e ressignificações dos padrões dominantes das culturas

vejamos que:

Entretanto, a partir desses contatos, estabelecidos a partir dos

“descobrimentos”, desdobramentos transformadores, criadores de culturas

diferentes das matrizes de origem ocorreram. A reflexão que pretendo

desenvolver fundamenta-se na ideia de que crenças, valores, conceitos e

produções culturais oriundas dos modos como essa interação ocorreu foram

sendo gestadas ao longo de uma história de criação simultânea de dominação

e desigualdade e de respostas da vítima” (Martins, 1993). Através tanto do

consumo de valores dominantes quanto de adaptações e usos (Certeau, 1994)

singulares que permitiram aos “descobertos” (Santos, 2002) recriar suas

próprias culturas bem como a de seus “descobridores”, as operações de

incorporação e transformação cultural podem ser entendidas como processos

cotidianos de aprendizagem, sobre os quais me deterei antes da discussão

principal (OLIVEIRA, 2003, p. 24-25).

Segundo a autora, o processo de reapropriação dos valores dominantes e os

desdobramentos dessa dinâmica se constituem como uma socialização constante. Seguindo a

esteira do pensamento pós-colonial de Boaventura dos Santos citado no texto da autora, os

descobertos ou no caso dos negros, os povos traficados, escravizados e posteriormente

“libertos” realizaram adaptações que lhes permitiram recriar suas manifestações culturais e

influenciar também a cultura dos seus colonizadores. Por exemplo, o culto e a devoção à

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Virgem Negra de Aparecida, um ponto significativo comum às histórias de vida das duas

rezaderias dona Lurdes e dona Naldi, hoje declarada oficialmente Padroeira do Brasil, que é

uma influência da cultura e da história dos negros sobre a religiosidade católica branca. É um

movimento de transformação cultural, de incorporação de elementos afro-brasileiros que

recriou não só a cultura dos negros, mas também dos brancos colonizadores.

Um momento caro à memória da nossa entrevistada dona Lurdes é o fato de sua irmã

Aparecida, chamada por ela de Cidinha, ter adoecido gravemente e os membros da

comunidade desacreditarem de sua recuperação:

Lurdes: É do jeito que vinher... do jeito que vinher eu tô rezando, ar pessoa até diz, eu vi morrer um

dia toda leprenta num sei que lá, posso butar a mão on on onde tenho medo de duença não, é bestera ,

tê medo de duença ... eu conheci um monte de gente dizendo Cidinha ia morrer, iam quebrar minhas

canela tarra num sei que, num sei que lá, tô com minhas canela bem direitinha aqui Cidinha tá só o

ouro, já interrou um monte já, tá tudo sadio, Cidinha tá tá boazinha, e mais tem essa, Cidinha tem

sorte, se Cidinha adoecer eu for com Cidinha qua ... ... /... cheguemo, carro... brigado aí meu

cunhado... simbora. Cidinha é assim, Cidinha tá só o ouro, ninguém pode julgar ninguém de nada.

(Transcrição 2 - 29.02.2016).

No relato de vida de dona Lurdes, esta fala é uma das mais marcantes, pois

rememora uma vertente importante da função social das rezadeiras, herdada da ancestralidade

indígena de sua cultura e papel no grupo em que se insere. No passado havia mulheres-pajés

que auxiliavam os pajés na realização de curas, traço herdado pelas rezadeiras que além de

tirar quebrantos cuidam também da saúde do corpo, exercendo o que o médico e pesquisador

da cultura popular Iaperi Araújo classifica como medicina religiosa:

A medicina mágica é especialmente aquela destinada a proteger as pessoas

das doenças ou estabelecer preceitos e fórmulas mágicas para a cura de seus

males. Difere essencialmente da medicina religiosa, exercida pelas

rezadeiras e curandeiras com a mesma finalidade de proteção e cura

(ARAÚJO, 2003, p. 73).

Embora o autor diferencie a medicina mágica da exercida pelas rezadeiras e

curandeiros, ambos foram bastante influenciados pelos ritos indígenas e afro-brasileiros. Da

mesma forma que as rezadeiras possuem características dos pajés auxiliares e principalmente

dos pajés andarilhos, pois dona Naldi relatou em sua história de vida que vai à casa das

pessoas quando é chamada para rezar, numa peregrinação em que sai de uma e já se dirige

para outra, na cidade e no campo. Inclusive testemunhei muitas vezes que, quando ela vem de

Pau dos Ferros a Luís Gomes, vai à zona rural, aos sítios Araras, Quati e Lagoa do Mato

atender as pessoas que depositam sua fé nas rezas e depois passa a atender na cidade, andando

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nas casas dos membros do seu grupo social. Dona Lurdes também realiza uma trajetória

semelhante à de dona Naldi, mas sua atuação se concentra predominantemente na comunidade

onde vive. Assim ambas as rezadeiras apresentam características tanto dos pajés mulheres

como dos pajés andarilhos, o que nos mostra a mestiçagem cultural de sua função. Na sua

função social como Pajé:

Ele é ajudado por pajés-auxiliares e também por mulheres pajés. Em

algumas comunidades elas têm importante papel. Entre os povos tupis da

época colonial, havia também o pajé andarilho, chamado karaíba, espécie de

missionário ambulante, que circulava pelas várias aldeias, exortando as

pessoas e fazendo curas. Na época colonial, foram chamados de profetas

(PREZIA, 2007a, p.93, Grifos do autor)

O fato da rezadeira dona Lurdes atribuir a cura e a melhora de sua irmã Cidinha às

suas rezas quando os membros da comunidade duvidavam da recuperação, se constitui como

reavivar de sua identidade como rezadeira, como agente da cultura popular e da religiosidade

do seu povo. Na esteira do pensamento de Rodrigues (2008), rememorar esse fato é reforçar a

identidade coletiva enquanto membro de um grupo, é isso que dá sentido à sua prática, o

reconhecimento de sua atuação pelos seus. Ayala (1997) afirma que a cultura popular, a

literatura oral, se faz presente em momentos de intenso convívio social e de solidariedade,

como é o caso das rezas no momento difícil da doença de membros da comunidade, como o

foi no caso da irmã da nossa entrevistada.

Nesse ponto da história de vida da nossa colaboradora dona Lurdes, sua identidade

está marcada pelo fato de suas rezas atuarem num momento de solidariedade necessário à sua

irmã Cidinha, quando os outros membros do seu grupo, da sua comunidade de Quati e Lagoa

do Mato, passaram a desacreditar de uma sabedoria ancestral, a perder um pouco da sua

identidade coletiva herdada dos antepassados negros, a irmã da rezadeira “fica boa”. Na fala

da rezadeira, este é um momento forte porque dispôs do seu dom, do seu papel social no seio

do grupo familiar. Embora as pessoas próximas duvidassem, ela persistiu porque:

Segundo Halbwachs em nenhum outro lugar da vida social a convenção

importa menos. Julgamos um parente pelo que ele é na vida diária e não por

seus status, dinheiro, prestígio. A face que ele mostra a outros grupos não é a

mesma que se expõe ao julgamento concreto dos seus (BOSI, 2007, p.426,

grifos da autora).

A psicóloga social segue a esteira do pensamento sociológico de Halbwachs ao

enfatizar a importância do sujeito no grupo familiar e a elaboração de sua identidade inscrita

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nesse contexto mais íntimo e peculiar. É importante ressaltar que a solidariedade das

rezadeiras num momento de doença de um membro do seu grupo social é um viés da herança

cultural indígena, visto que a sua função se constitui de uma mestiçagem cultural na esteira do

pensamento de Sílvio Romero (1978). Como uma cultura híbrida, na linha de Canclini (1998),

em que não buscamos uma separação do que é um elemento indígena, afrodescendente ou

branco europeu, mas a fusão destes na elaboração da memória e da identidade numa contínua

e constante elaboração das manifestações culturais. Nessa perspectiva dinâmica, dona Lurdes,

em sua função de rezadeira, apresenta características dos pajés indígenas e das mulheres

pajés. As rezaderias do Quati em termo de mestiçagem cultural no pensar de Sílvio Romero

(1978) se inscrevem num povo originado de um complexo caldeamento não somente étnico,

mas principalmente cultural que se fundiu também a uma identidade nordestina e sertaneja

marcada pela resistência às secas e à capacidade de se refazer. Assim:

A etnia nordestina foi originada do caldeamento étnico do branco

colonizador português (Cristão Novo), do negro que veio da África como

escravo e do índio que habitava a região. Os mestiços resultantes dessa

miscigenação interagiram com a terra quente e seca do sertão, com seu clima

semiárido tropical, com suas secas periódicas e catastróficas, com suas

chuvas reduzidas e altamente variáveis no tempo e no espaço, com seus rios

secos que só apresentam deflúvios durante o curto período de 3 a 5 meses,

com seus solos pobres, pedregosos ou excessivamente arenosos, com sua

vegetação raquítica, seca e espinhenta, dando como resultado o surgimento

de uma civilização ímpar, pioneira e intuitiva, que denominamos civilização

da seca (MENDES, 2015, p. 41).

A rezadeira dona Lurdes se insere na chamada civilização das secas, pois a mesma

foi criada na agricultura e atualmente trabalha no roçado junto com o seu esposo. Com a

cultura herdada de seus ancestrais aprendeu também a conviver com a terra e a dividir

simbolicamente o seu tempo cotidiano, pois são nos momentos de folga, de volta para casa

que se inicia a sua função de rezadeira, principalmente após às seis horas da noite quando o

seu povo já se recolheu em suas casas após um dia de trabalho. Suas rezas obedecem a um

tempo comunitário como é compreendido na esteira do pensamento de Ayala (1997).

No relato de vida de dona Lurdes, ela cita outras rezadeiras reconhecidas como

agentes da cultura em sua comunidade. Dentre elas dona Cosma, sua prima, que também é

colaboradora deste trabalho.

Lurdes: Não, não só o Pai Nosso e quem ensinava era Neném com Mãe Faba ...

Ciro: Mãe Faba era rezadeira?

Lurdes: Mãe Faba era mãe da minha mãe, era parteira.

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Ciro: Era parteira?

Lurdes: (balança a cabeça sinalizando um sim)...Era parteira minha mãe Faba ....

Ciro: Aí a senhora tinha vontade de rezar o Pai Nosso, mas não rezava nas pessoas não né?

Lurdes: Quem ensinava a nós era Neném a Mãe de Cosma, nós ia de 6 horas pra lá pra aprender o Pai

Nosso....

.......................................................................................................................................................

[...]

Ciro: Vinte seis anos... e assim da da infância da senhora quem eram as rezadeiras assim mais

conhecidas do Quati, da Lagoa do Mato?

Lurdes: Era Joaquina Catingueira uma, (SILÊNCIO) eee Luci de zé Nazaro duas ... a ota, ixe de

Lagoa de Dento né?

Ciro: É, e da família da senhora tinha muitas rezadeiras aqui? das antigas? quem era que era família

da senhora?

Lurdes: Maria Nova rezava

Ciro: Maria Nova rezava?

Lurdes: Cadê a ... ... a ota lembra não... Neném de Faba rezava

Ciro: A que ensinou a senhora a rezar o pai nosso?

Lurdes: Sim... acho que Corma aprendeu com ela né?

Ciro: Pronto era filha de Neném de Faba nera?

Lurdes: É e.

Ciro: No caso Mãe Faba não era rezadeira não, era parteira?

Lurdes: Minha vó era parteira...

Ciro: E assim a senhora tem outras irmãs que são rezadeira, outras primas quem são mais aqui?

Lurdes: Tiquinha ... quem é a ota minha Nossa Senhora.... lembro mair não, lembro mair não.

Ciro: Mais Tiquinha aprendeu com as rezadeiras daqui?

Lurdes: Num sei como foi que Tiquinha aprendeu não... eu só sei que eu aprendi...

Ciro: Cosma que é prima da senhora também é né rezadeira?

Lurdes: Corma reza de triadura,

Ciro: Como é que chama?

Lurdes: Carne triada.

Ciro: Carne triada né?

(Transcrição 2 - 29.02.2016).

Em seu relato de vida, dona Lurdes cita rezadeiras de seu grupo familiar, além de

outras conhecidas na comunidade, nos sítios vizinhos, como Luci de Zé Nazário. Tiquinha é

irmã da nossa entrevistada. Suas palavras se revestem de pertencimento quando destaca Mãe

Faba, sua avó materna, e Neném de Faba sua tia, com quem aprendeu a oração do Pai Nosso,

Cosma, sua prima também é rezadeira e colaboradora deste trabalho. No veio da memória

coletiva, a mesma função de rezadeira exercida por diferentes gerações de uma mesma família

aparece na memória de dona Lurdes por conviver no grupo com dona Cosma, saber de sua

atuação e de sua função que tece um laço de identidade com o mesmo papel social da

primeira. Assim:

Talvez seja possível admitir que um número enorme de lembranças

reapareça porque os outros nos fazem recordá-las, também se há de convir

que, mesmo não estando esses outros materialmente presentes, se pode falar

de memória coletiva quando evocamos um fato que tivesse um lugar na vida

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de nosso grupo e que víamos, que vemos ainda agora no momento em que

recordamos, de ponto de vista desse grupo (HALBWACHS, 2006, p.41).

Assim, a memória individual das rezadeiras está inscrita na memória social e coletiva

e função social dessas agentes da cultura popular é uma das referências da identidade do

grupo, um elemento cultural caro e significativo para o seu povo. Como representantes da

memória da comunidade, os fatos, as pessoas relatadas nas histórias de vida são significativas

não apenas para a entrevistada, mas para os membros do seu grupo. Daí a razão de dona

Lurdes rememorar as rezaderias mais velhas de sua família e da comunidade, os momentos de

vivencia coletiva em que aprendeu as orações, as rezadeiras que ensinaram e as que

aprenderam ao seu lado, são pontos onde a memória se ancora.

4.5 Dona Cosma: um serviço herdado e aprendido de suas ancestrais

Dona Cosma Maria da Silva é a terceira colaboradora deste trabalho. A rezadeira

mora numa casa localizada à margem da estrada que divide geograficamente as comunidades

de Quati e Lagoa do Mato. Sua entrevista não teve o mesmo tom de intimidade que construí

com dona Naldi e dona Lurdes por ela não ser minha rezadeira, ou seja, não construí com

dona Cosma o mesmo laço que teci com as outras duas, pois no momento em que procurei

suas rezas, ela me informou que a necessidade do momento não era própria da sua função,

que no caso indicou dona Lurdes, que eu conheci e não estava em casa neste dia. Mas como

visito constantemente a comunidade onde mora e sou frequentador das rezadeiras da

comunidade, dona Cosma em um relato de vida mais breve aceitou conversar sobre o seu

ofício na comunidade.

Ciro: Essa nossa entrevista é sobre as, as rezadeiras daqui do Quati, aí o interesse da nossa pesquisa é

a senhora falar sobre sua vida sobre a reza, sobre a sua infância com quem aprendeu ...

Cosma: Eu aprendi com uma tia minha ... uma tia minha, aprendi a rezar com ela. Via ela rezando, né?

Ciro: Ela era daqui do Quati?

Cosma: Eera, tia minha irmã de minha mãe morava ali, pra lá da quadra, pa li, pra lá do centro num

tem umas casinha ali, casa de Zezé de Faba, então ela era irmã de Zé de Faba, morava ali; tia minha.

Ciro: E como era o nome dessa da tia da senhora?

Cosma: Luzia.

Ciro: Luzia?!

Cosma: Era.

Ciro: Irmã da mãe da senhora e?

Cosma: Irmã de minha mãe, irmã de Zé de Faba, irmã de Maria Nova.

Ciro: Sim, irmã de Dona Maria Nova,

Cosma: - É é, é.

Ciro: E como era o nome da mãe da senhora?

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Cosma: Maria de Lurde.

Ciro: Maria de Lurdes né?...

Cosma: É.

Cosma: Aí eu aprendi rezar com ela.

(Transcrição 3 - 28.03.2016).

A rezadeira dona Cosma reforça os laços familiares da sua função, como foi

enfatizou também nos relatos das outras duas colaboradoras. Relatou que aprendeu com sua

tia, irmã de Zé de Faba, um dos nomes de muito conhecimento na comunidade, considerado

uma referência familiar. Quando se pergunta sobre família, sempre se refere a Zé de Faba,

Mãe Faba, Maria Nova, nomes onde se ancora a memória coletiva da comunidade e se

reforçam os laços de sangues e de identificação. Assim como Lurdes, sua função social no

grupo como rezadeira foi aprendida no seio familiar, embora dona Lurdes conforme já

relatamos tenha recebido a influência de um senhor baiano, foi no meio familiar e nas pessoas

mais próximas de sua comunidade o ponto mais significativo do desejo de continuar o

exercício dessa função no grupo.

Outro ponto historicamente marcante nas vidas das rezadeiras é a especificação de

seu ofício, ou seja, a função da sua reza nas necessidades dos membros da comunidade. A

epígrafe desta tese constituída de uma crônica de memória da professora Solange Batista

escrita a meu pedido para este trabalho sobre a sua madrinha Maria Nova, tia das

colaboradoras dona Lurdes e dona Cosma. Segundo a crônica memorialista da professora, sua

madrinha rezava em “carne triada”, essa era sua principal função enquanto rezadeira. Mas em

depoimento informal a professora me revelou que dona Maria Nova rezava discretamente em

mau olhado nas pessoas mais íntimas e próximas, como ela que frequentava a sua casa desde

criança. Assim, percebemos que as histórias de vida de cada rezadeira apresenta suas marcas

individuais embora estejam inscritas na memória coletiva, pois a manifestação cultural das

rezas é inseparável. Quando procurei dona Cosma para rezar numa necessidade particular, ela

me indicou dona Lurdes que rezava para o referido problema. Esse fato nos propicia a

compreensão de que as relações sociais na comunidade popular são tecidas na memória

coletiva e numa divisão das funções pelos agentes populares, como acontecia com os antigos

Pajés que eram auxiliados por outros e também por mulheres pajés (PREZIA, 2007a). Dona

Cosma nos relata que aprendeu a rezar com a sua tia Luzia:

Cosma: Aí eu aprendi rezar com ela.

Ciro: E ela rezava aqui no Quati em muita gente como era?

Cosma: Rezaaava, a casa dela era cheia de gente, o povo não pudia machucar um dedo (encena com os

dedos) que já corria pra lá, já corria pra lá pa rezar... ééé

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Ciro: E assim, qual era o tipo de reza dela ela rezava pra quê?

Cosma: Era assim pa dirmintidura, num sabe, é pa dirmintidura, mesmo caso meu, éé eu rezo pa

dirmintidura, eu num rezo in criança, aqui tem veiz chega o povo, ah issaqui, eu digo ói eu num sei

rezar in in minino que eu num vou dizer que eu rezo né? (risos)

Ciro: Eu lembro até uma vez que eu vim.

Cosma: Muito bem. (Risadas)

Ciro: Pra senhora rezar de mau olhado.

Cosma: Foii.

Ciro: E num; a senhora disse que não...

Cosma: Ééé, eu rezo, eu rezo pa dirmintiura e quem chega aqui que manda eu rezar eu num sei se é a

fé né? tem gente que só vei uma veiz...

Ciro: E essa tia da senhora sabe com quem ela tinha aprendido?

Cosma: Não num sei não quem ela aprendeu não né?

Ciro: Aí a senhora já conheceu ela rezando, já conheceu ela adulta?

Cosma: Jáá conheci, já conheci ela rezando já ... já conheci ela rezando ... e nóis papa praticamente se

criemo lá na casa dela.

Ciro: Ela morava ali?

Cosma: Morava ali, pra lá da rua (aponta com o dedo), pra lá do prédio, tinha uma casona lá, ela

morava lá, aí nóis fumo criado lá, bem dizer lá que meu pai morreu eu tinha cinco ano... aí era quatu

irmão, eu Damião, minha irmã que mora im São Paulo e um que morreu, mai véi. Aí minha mãe

trabaiava nas bulandera, aí nóis ficava lá, nóis fumo criada na casa dela, nóis só vinha pa casa nuis

sabádo e nur domingo.

Ciro: Mas ela escolheu a senhora pra passar as reza ou a senhora foi aprendendo com ela?

Cosma: Ééé eu vi ela rezano aí eu comecei eu eu vi os pé qui ela dizia eu, eu di, eu rezava num sabe,

aí um dia eu disse, Bia eu quero rezar, eu quero é rezar, aí ela disse e vô comé qui você quer rezar aí

eu digo eu quero que Bia me ensine que eu já sei... eu via os pé qui ela dizia num sabe aí eu já in na

cabeça eu já aprendia aquilo ali, aí o resto ela mim insinou ... ela mim insinou.

Ciro: E a senhora tinhas quantos anos quando?...

Cosma: Eu, eu tinha eu a. na faxa duns quinze ano quando ela mim insinou, quando ela mim insinou,

Ciro: Quinze anos né?

Cosma: É, era mocinha nova, aí a primera pessoa que eu rezei foi in Antoin de Noca aí (aponta com o

dedo) Antoin de Noca chegou com o pé inchado aqui haha (risos) aí reze aqui nim meu pé eu digo

num sei rezar não, aí eu peguei e rezei no pé de Antoin de Noca. Antoin só vei duas veiz eu num sei se

ele lembra disso, né? Só vei duas veiz, aí na ota veiz eu dis, eu disse Antoin tu nem vei mais rezar ele

disse não que eu já fiquei bom, ficou bonzim do pé, aí é assim eu num sei se é eu que sei rezar ou se é

a fé né? Mar tem gente que vem pa eu rezar só vem uma veiz e duas veiz.

Ciro: E ela assim, ela ficou feliz em passar pra senhora a reza?

Cosma: Ficooou sim, ficou, ficou feliz.

(Transcrição 3 - 28.03.2016).

O diálogo com a transmissão memorial das rezadeiras mais velhas nos mostra como

essa cultura é rizomática, pois as raízes se espalham permitindo conexões entre os diversos

pontos do rizoma. Nessa transmissão rizomática em que os saberes e os ofícios das rezaderias

se multiplicam numa identidade rizomática, outras histórias de vida se interligam e nesse

universo “não somos mais nós mesmos. Cada um reconhecerá os seus. Fomos ajudados,

aspirados multiplicados” (DELEUZE; GUATTARI, 2004, p. 15). As histórias de vida das

rezaderias fazem margem umas com as outras, ecos de vozes e memórias que se estendem e

se desdobram e dialogam, gernando mais ramificações do ofício de rezadeira ao despertar o

desejo e aspiração das gerações mais jovens pela função, como ocorreu com a jovem Cosma.

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As histórias de vida das nossas três colaboradoras trazem a força e o enraizamento do

grupo familiar. Dona Naldi aprendeu as rezas de sua avó Tomásia, intimamente chamada por

ela de “Mãe Véa”. Dona Lurdes era sobrinha de Neném de Faba, mãe da rezadeira dona

Cosma, que lhe ensinou a oração do Pai Nosso, e Cosma aprendeu de sua tia Luzia. Assim o

grupo familiar em que estão inscritas é uma metonímia do grupo social, da comunidade onde

nasceram e a que pertencem culturalmente. Porém, a coesão a família reforça a do grupo por

ser mais forte, ter sido relatada com maior ênfase nas histórias de vida. Foi na família que os

ensinamentos ancestrais foram transmitidos memorialmente e que foram preparadas para a

função de agentes da sua cultura. Mesmo dona Lurdes, que em sua história de vida, teve a

influência de um estranho, o baiano, foi no grupo que aprendeu as primeiras orações e que

exerce a sua função. Isso nos é explicado por Ecléa Bosi:

De onde vem, ao grupo familiar, tal força de coesão. Em nenhum outro

espaço social o lugar do indivíduo é tão fortemente destinado. Um homem

pode mudar de país, se brasileiro, naturalizar-se finlandês; se leigo, pode

torna-se padre; se solteiro, pode torna-se casado; se filho, pode torna-se pai;

se patrão, torna-se criado. Mas o vínculo que o ata à sua família é

irreversível: será sempre o filho da Antônia, o João do Pedro, o “meu

Francisco” para a mãe. Apesar dessa fixidez de destino nas relações de

parentesco, não há lugar onde a personalidade tenha mais relevo. Se como

dizem, a comunidade diferencia o indivíduo, nenhuma comunidade consegue

como a família valorizar tanto a diferença de pessoa a pessoa (BOSI, 2007,

p.425).

Nessa atmosfera da intimidade familiar, a rezadeira Cosma rememora sua avó

Joaquina na função de rezadeira da comunidade, como o fez nossa primeira entrevistada Naldi

ao relatar sobre dona Tomásia, e sua tia Luzia. Nessa teia de relações familiares, a

entrevistada se inscreve num grupo de rezadeiras cuja atuação é marcante na história da

comunidade do Quati e da Lagoa do Mato. Luzia, tia intimamente chamada por Cosma de

Bia, foi a responsável pelo aprendizado das rezas desta colaboradora quando esta ainda era

uma adolescente de quinze anos. Também enfatiza em sua voz-memória que a sua avó Maria

Joaquina era uma rezadeira. Nesse sentido, essa memória está ancorada no lugar ocupado por

elas na história de vida de Cosma e na história comum aos membros do Quati. A voz da

rezadeira Cosma é tecida da memória que penetra no convívio cotidiano, nas experiências

vividas coletivamente, trazendo para o presente à transmissão das vozes que no passado foram

as responsáveis pelos ensinamentos das rezas e dos exemplos de vida dessas agentes da

cultura popular afro-brasileira. A voz-memória de dona Cosma, assim como a voz poética

compreendida por Zumthor, “De fato, ela envolve toda a existência, penetra o vivido e

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mantém o presente na continuidade dos discursos humanos” (2001, p.140). Assim, em suas

relações na família e na comundade, Cosma relata:

Ciro: E assim das rezadeiras mais antigas daqui quem a senhora tem mais lembrança além da

da sua tia?

Cosma: Da minha tia? Assim, da merma reza da minha né?

Ciro: Sim.

Cosma: Porque tinha minha vó que era rezadeira também agora minha vó ela rezava in

criança.

Ciro: Aí como era o nome da vó da senhora?

Cosma: Joaquina.

Ciro: Joaquina o quê?

Cosma: Maria Joaquina.

Ciro: era conhecida era Joaquina Bezerra ou Joaquina Catinguera?

Cosma: Joaquina Catingueira; Joaquina Catinguera que morava numa casinha aí (aponta com

o dedo) ói ela eu sou famia de daqueli minino da rua de Manel Catinguera, Damião

Catinguera, cê conhecia Damião?.

Ciro: Conhecia, Damião,

Cosma: Damião era tii meu, ele era tii meu, era irmão de meu pai, aí minha vó morava ali

numa casinha que tem tem a casa de Maria de Noca qui a casa de Maria de Noca era de taipa

... desse lado, aí tem a cerca de Gabriel? Pra baixo assim (indica e aponta com as mãos) onde

tem aquela mandioca de Damião ali era a casinha dela, casinha de taipa .

Ciro: Então a senhora lembra dela, da ... ...

Cosma: lembro, lembro

Ciro: A tia, quem mais era rezadeira aqui?

Cosma: .... até de outras rezas também...

Cosma : Maria Nova também rezava

Ciro: Rezava pra quê?

Cosma: de, do mermo jeito meu de dirmintidura.

Ciro: Dismintidura né?

Cosma: É. Maria Nova rezava também... aí pronto só essar daqui né? desse tipo aí.

Ciro: Da família da senhora era.

Cosma: É é.

Ciro: A avó da senhora?

Cosma: Minha vó rezava in bebê.

Ciro: A tia?

Cosma: Minha duas tia, Luzia e Maria Nova ... que rezava.

Ciro: E assim hoje como que a senhora se sente rezando?

Cosma: Eu me sinto bem (risos).

Ciro: As pessoas reconhecem, procuram?

Cosma: Ééé. Eu me sinto bem quando chega uma pessoa aqui pa peu rezar né?... me sinto

bem mermo.

Ciro: Aí essas rezadeiras nunca sim, cobraram pela reza não?

Cosma: Nããão, (balança com a cabeça também) paa assim, é é coisa dimi de, deu piquena

que o povo dizia né? Que reza ninguém se paga, reza ninguém se dá nem obrigado...

(SILÊNCIO)

Ciro: Ok Então...

Cosma: Reza não dá nem obrigado.

Ciro: Tem que, é que a pessoa recebe o dom e ee....

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Cosma: Ééé ... reza não se paga ... né? ...Vejo dizer desde de quando era pequena que eu via

... o povo dizer. (Transcrição 3 - 28.03.2016).

A continuidade da tradição do ofício de rezadeira se apresenta como uma marca

presente no grupo familiar das nossas colaboradoras, que eram ensinadas por parentes

próximas como Naldi pela avó, Lurdes e Cosma por tias. Também o convívio com as

rezadeiras mais velhas na família e na comunidade, a observação da sua atuação e

performance, reforça o laço íntimo necessário ao aprendizado e ao exercício do ofício de

rezadeira. Esse ponto nos esclarece o porquê do aprendizado e da transmissão ocorrer de

forma mais circular no seio das relações familiares. Esse laço de parentesco impulsiona a

dinâmica da continuidade das práticas das rezadeiras, o que se constitui como identidade

comum às três entrevistadas e também no relato de dona Cosma é uma face intrínseca a sua

função:

Ciro: Aí hoje aqui de rezadeira só tem a senhora ?

Cosma: É é.

Ciro: Lurdes.

Cosma: Lurde.

Ciro: Tem mais?

Cosma: Não ... tem mar não.

Ciro: e da mesma família a senhora e Lurde né?

Cosma: é... da merma famia, (risos) nóis somo prima...

Ciro: ok. (entrevistador faz cena para parar a gravação)

Cosma: Somo prima eu e Lurde, nossar mãe era...

Ciro: Aí assim a senhora é prima legítima de...

Cosma: Lurde.

Ciro: Aí o nome da mãe dela era ? Cosma: Maria Martina

Ciro: E da mãe da senhora?

Cosma: Maria de Lurde, da minha mãe

Ciro: Todas elas filhas de, como era o nome da vó da senhora?

Cosma: Éé´... Maria Mafalda.

Ciro: Era ela que era da família de Zé de Faba?

Cosma - A mãe de Zé de Faba

Ciro: Simm, a mãe de Zé de Faba, simm.

Cosma: Eu sou sobrinha.

Ciro: Sim.

Cosma- Eu sou sobrinha de Zé de Faba, era mãe de Zé, minha mãe, a mãe de Lurde, a mãe da

mãe de Lurde, a mãe de Maria Nova. Maria Mafalda... minha vó.

Ciro: Certo e e assim, ela era parteira também? Parteira era mãe Nila né?

Cosma: Mãe Nila

Ciro: Era irmã dela?

Cosma - Mãe Nila era irmã dela dela... era parteira.

Ciro: No caso sua era avó da senhora que era chamada de Mãe Faba, não né?

Cosma: Mãe Faba

Ciro: Mãe Faba né?

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Cosma: Mãe Faba, é hahaha (risos).

Ciro:Ok.

Cosma: Era Mãe Faba, os que eu conheci da parte de meu pai mar os da parte da minha mãe

eu nao conheci não.

Ciro: Quer dizer que a senhora não conheceu os avós da parte da mãe não?

Cosma: Da minha mãe não

Ciro: Como era o nome deles?

Cosma: Era Pedro Vintura ee Maria Mafalda

Ciro: Maria Mafalda?

Cosma: Era ... num conheci não.

Ciro: Que Maria Mafalda era mãe Faba?

Cosma: Mãe Faba

Ciro: E da parte do pai da senhora?

Cosma: Era Joaquina e Zé Catinguera, chamava Zé Catinguera.

Ciro: Sim... no caso a avó da senhora que era rezadeira da parte...

Cosma: Da, do meu pai.

Ciro: Certo. Da parte da mãe da senhora já aprendeu com uma tia.

Cosma: Com minha tia.

Ciro: Irmã da mãe, né?

Cosma: Irmã da minha mãe. (Transcrição 3 - 28.03.2016).

A nossa rezadeira no diálogo durante a entrevista relembrou ao ser perguntada sobre

o dia em que a procurei e ela indicou que naquela necessidade particular a reza apropriada era

de dona Lurdes, sua prima e moradora próxima de sua casa. Cada rezadeira tem o seu papel

na comunidade. Desde o tempo da colonização “Benzedeiras desfaziam quebrantos com a

ajuda de rosários, como também de patuás e folhas de pinhão-roxo (NETO, 2009, p.33). Essa

é no caso uma das funções que identificam a atuação de dona Lurdes como rezaderia.

Conforme já foi relatado anteriromente na fala de dona Cosma, quando a procurei para a reza

de mau-olhado, ela me mandou à casa de dona Lourdes que rezava nesse contexto. Nesse

sentido, as rezadeiras respeitam o espaço social ocupado por sua função na comunidade em

que cada agente popular tem as suas especificidades de atuação. Em sua fala, dona Lurdes

também enfatiza que “Corma reza de triadura” (Transcrição 2 - 29.02.2016). Dona Cosma se

orgulha de ser procurada para rezar nos males físicos, em machucados ou torções chamados

por ela de “dirmintidura”, que o povo recorre às suas rezas mais do que às de dona Lurdes

quando a necessidade é mais física do que espritual, já que Lurdes reza nos dois casos e

Cosma é conhecida especificamente pela cura de males físicos.

Ciro: E hoje vem gente procurar a senhora aqui né?

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Cosma: Aquii? Ahahaha (risos) de veizinquando chega gente aqui de veizinquando de

veizinquando, quair todo mundo por aqui Lurde reza ali (aponta ligeiramente com o dedo)

mar é difíci o povo ir lá pa Lurde, só vem pra cá pa mim rezar, só vem pra cá. (Transcrição 3 - 28.03.2016).

Conforme já refletimos anteriormente a relação das rezadeiras com a busca da cura

para doenças físicas tem uma estreita relação com os saberes indígenas e afro-brasileiros

herdados dos antepassados. Dona Lurdes reza para males físicos e espirituais, como o mau-

olhado, a solução de problemas pessoais, mas dona Cosma tem o seu papel relacionado aos

problemas físicos como “carne triada”. Dona Cosma com orgulho relata que a casa da sua tia

vivia cheia de gente, que as pessoas não podiam machucar um dedo que já a procuravam. O

laço identitário de sua mãe com os membros do grupo social das comunidades de Quati e

Lagoa do Mato foi transmitido memorialmente para dona Cosma, que aprendeu as rezas e

mais tarde ocupou no grupo a função de sua tia na comunidade. Essa relação da rezadeira com

as necessidades do seu povo é que reveste de sentido à sua prática. Como legado cultural da

mestiçagem que originou a nossa identidade brasileira, as rezadeiras enquanto agentes da

cultura popular do grupo em que se inscrevem são continuadoras do papel desempenhado

pelos ancestrais indígenas e negros, principalmente nas comunidades do interior do Brasil,

urbanas ou rurais como no caso do Quati e da Lagoa do Mato, onde historicamente não havia

médicos e essa ausência era amenizada pelos saberes populares de pajés, parteiras,

benzedeiras e rezadeiras. Assim:

Hoje, no mundo rural e ainda no interior, há a figura do rezador e, sobretudo

da benzedeira, que substitui de certa forma o médico e o pajé e dá

continuidade à figura do pajé ou da mulher pajé, chamada pelos Guarani de

kunhã karaí. Muitos tratamentos populares, com rezas e à base de infusões

de ervas, têm-se revelado bastante eficazes. Quem não se lembra da reza

para buxo-virado, que somente reza forte consegue curar? (PREZIA, 2007a,

p.93, Grifo do autor).

Como a cultura popular é dinâmica e atuante dentro das relações coletivas de um

povo, a função social da rezadeira ou benzedeira, denominação dada conforme a variação

regional linguística e cultural é de agente de uma medicina popular, mas principalmente de

representante de sua cultura ancestral e transmissora da memória coletiva. Suas rezas estão

inseridas no cotidiano do seu povo, na vivência coletiva, e contextualizadas nas horas de

trabalho, de descanso, doença e de dor, de contato com o sagrado a partir das necessidades

materiais e espirituais. Assim, compreendemos o significado da atuação de dona Cosma não

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apenas na procura dos seus pela cura de dores e problemas físicos, mas sua manifestação

cultural encontra um sentido maior. Apesar da presença atual de médicos na comunidade,

inclusive o posto de saúde fica localizado próximo da casa da rezadeira em questão. Seu

ofício de rezadeira enquanto agente da cultura popular afro-brasileira é a revivescência do

laço identitário com os antepassados que lhe legaram essa função como continuadora de uma

cultura marcada pela diáspora, pelo sofrimento da escravidão e pela discriminação. Nesse

caldo de miscigenação cultural que surgiu nos tempos coloniais:

Muito provavelmente, como aponta Silva (2009), as benzedeiras surgiram no

Brasil com a colonização. Aos saberes trazidos, por exemplo, pelas

antecessoras das atuais recomponentes galego-portuguesas (espécie de

benzedeiras ibéricas), até hoje presentes nas zonas rurais da Galiza e de

Portugal, juntaram-se os saberes de índios autóctones brasileiros e dos

escravos africanos que para cá foram trazidos de 1530 ao final do século

XIX (CÂMARA, MINGO e CÂMARA, 2016, p. 226)

Assim, desde os tempos coloniais os povos ameríndios e afrodescendentes tiveram

suas culturas hidridizadas no sentido pensado por Canclini (1997), misturadas e miscigenadas

de forma que deu origem a agentes da cultura popular afro-ameríndia e da cultura dos

membros das camadas populares inscritos no chamado catolicismo popular. Nesse contexto,

rezadeiras, pajés e beatos se constituem como representantes de uma identidade cultural

multiétnica da qual também beberam na fonte membros da hierarquia católica romana que

mais tarde se identificaram muito mais com a cultura do seu rebanho como o Padre José

Antônio Maria Ibiapina que percorreu o Nordeste em missões e o Padre Cícero Romão

Batista, que protagonizou o “milagre do Juazeiro”, a transformação da hóstia em sangue na

boca da beata negra Maria Madalena de Araújo em Juazeiro do Norte no Ceará. Na esteira

dessa vertente compreendemos que:

O catolicismo popular que gerou tantos beatos e beatas como os heróis que

lutaram e tombaram em Canudos ou padres andarilhos amigos de indígenas e

caboclos, como Gabriel Malagrida ou rezadeiras e benzedeiras que se

apropriaram de conhecimentos multiétnicos, trouxe também padres mais

arraigados às tradições da igreja, como Cícero e Ibiapina. Ambos, contudo,

profundamente marcados pelo sentimento popular e pela percepção fina que

tinham do povo do Nordeste e de suas demandas e necessidades materiais e

espirituais (CAVALCANTI, 2016, p.10).

Ao refletirmos sobre o que afirma o autor acima citado, dentre as necessidades

materiais e espirituais do povo do Nordeste, dos afrodescendentes, dos agentes da cultura

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popular, está a de reavivar a cultura e a história dos seus antepassados marcadas por traumas

históricos, uma necessidade identitária que vem desde os tempos coloniais, pós-coloniais,

escravidão e pós-abolição da escravatura, e que assim atravessou os séculos até a atualidade.

Essa revivescência inscrita nos contextos sociais das comunidades populares sertanejas e

nordestinas, como é o caso das comunidades de Quati e Lagoa do Mato.

Como tratamos de uma cultura inscrita no universo da oralidade, principalmente

nessas comunidades mais afastadas dos centros de pesquisa que registram na história dita

oficial, escrita, os traços e manifestações culturais, as histórias de vida das rezadeiras e suas

rezas enquanto bens simbólicos de um povo e lições de vida ensinadas pelos mais velhos, a

transmissão memorial são a bobina que move a identidade coletiva. A diáspora e a escravidão

iniciaram a difusão de uma cultura africana que no Brasil se revestiu de novos traços e a

oralidade dessas culturas conduziu ao Novo Mundo em sua vasta grandeza territorial a

memória de um povo que atravessou o Atlântico negro, mas não esqueceu suas raízes.

As narrativas e histórias de vida nos mostram que as rezas não são uma manifestação

estática, tal e qual nos tempos passados, mas adquirem novos contornos pelo contexto de vida

de cada rezadeira, como é o foco deste trabalho. Daí a riqueza de rituais, de narrativas e de

histórias que compõem o mosaico identitário das comunidades afro-brasileiras em estudo.

Não somente as rezas foram repassadas, mas as narrativas de vida que integram a memória

cultural do Quati e da Lagoa do Mato. É aí que se revestem de sentido como laço social e

identitário de um povo.

As comunidades afro-brasileiras do sertão nordestino, da zona rural, por mais

afastadas e distantes que possam ser geograficamente possuem sua complexidade e

singularidade subjacente no modo simples como vivem suas manifestações (AYALA, M. I.

N., 1997). A identidade nacional do Brasil é formada por uma heterogeneidade, por traços

multiétnicos e assim multiculturais. Por isso, a cultura das comunidades de Quati de Lagoa do

Mato se concentra nas histórias de vida das suas rezadeiras a síntese da africanidade, da

herança ameríndia e do catolicismo do europeu branco que apesar das imposições históricas, o

legado dos povos negros e ameríndios se sobressai em sua memória e identidade. A

hibridização com o catolicismo não se deu sem resistência e os afrodescendentes

transformaram e reelaboraram a cultura ocidental imposta. O momento social de aprender

rezas não se restringia apenas a repassar às orações católicas, mas a acrescentarem a esse

catolicismo dominante os seus valores, necessidades de rememorar as origens, o legado

ancestral, e se inserirem sem perder o bem mais precioso que é a identidade coletiva, o que dá

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sentido às rezas no atual contexto da modernidade e da tecnologia. Trazendo essa reflexão

tanto para o campo da cultura como da educação:

Numa digressão que considero necessária para a discussão sobre a cultura,

ou as culturas, nas salas de aula, desenvolvo aqui essa ideia (grafia da

autora) através de um diálogo entre alguns “bens culturais” que permitem à

cultura ocidental se impor sobre as demais e os modos como, diante dessa

força, os “fracos” se inscrevem, transformando e adaptando esses bens -

enquanto valores – às suas necessidades e origens (OLIVEIRA, 2003, p. 26-

27).

A autora abrange em sua abordagem esse complexo diálogo tanto nas comunidades

como nas escolas. Como o nosso foco são as comunidades de vertente afrodescendente, a

diversidade cultural do Quanti e Lagoa do Mato presente nas narrativas de vida, nas rezas, na

literatura oral, nas festas religiosas, nos folguedos. As rezas não se apresentam como um culto

de matriz essencialmente africana como o candomblé que cultua deuses trazidos da África.

Enquanto manifestação da cultura e da literatura oral popular e afro-brasileira reforça os

laços, a história e a memória do seu povo ressignificados no contexto brasileiro, não

recordadas puramente como foram trazidas pelo Atlântico.

Nesse ponto de reforçar os laços do grupo se concentra a importância da transmissão

dos saberes ancestrais. Dona Naldi foi ensinada por sua avó Tomásia, dona Lurdes aprendeu

observando as rezadeiras antigas da comunidade e as orações católicas com sua tina Nenén de

Faba. Dona Cosma aprendeu com sua tia Luzia. Os hábitos ancestrais, os costumes africanos

modificados no Brasil se misturaram ao catolicismo em suas práticas culturais e superou a

perseguição aos costumes afro-brasileiros. A transmissão memorial do ofício se deu numa

fusão com as orações e devoções católicas trazidas da Europa pelos portugueses numa

reapropriação inteligente da cultura dominadora. Assim:

Mesmo perseguido, o povo afro-brasileiro não se desfez de seus hábitos e

costumes, apesar de ter os seus cultos e suas crenças menosprezados por

muito tempo aqui no Brasil. Uma das formas encontradas pelos negros para

não deixar de praticar suas crenças foi misturar as religiões de matriz

africana com o cristianismo europeu, dessa forma eles agradavam aos

brancos por estarem praticando o Catolicismo e, ao mesmo tempo,

fortaleciam suas tradições trazidas da África transmitindo-as às gerações

mais jovens (JESUS, 2017, p. 54).

A identidade elaborada sobre as rezadeiras varia de acordo com a região, como as

denominações de benzedeiras ou curandeiras que segundo Gutemberg Costa essas agentes

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“Recebem denominações populares de rezaderias, curandeiras, e, em alguns estados, como

Goiás e Minas Gerais, elas são chamadas de benzedeiras” (COSTA, 2009, p. 245). A

importância da transmissão oral tem sentido por sua maioria ser desse universo da oralidade e

que, por meio dela, foi iniciada em sua cultura ancestral, adquirindo os conhecimentos

necessários à sua prática popular no convívio com o seu grupo. Dessa forma:

Normalmente, a rezadeira, benzedeira ou curandeira, segundo Santos (2009),

caracteriza -se por ser uma mulher pobre, enxergada como sujeito histórico

que não possui muita cultura livresca. É necessariamente iniciada por uma

(s) antecessora (s), de quem herdou poderes de cura e conhecimento acerca

dos mistérios de suas práticas. (CÂMARA, MINGO e CÂMARA, 2016, p.

226).

As rezadeiras colaboradoras deste trabalho aprenderam o seu papel social no grupo

ainda jovens, como forma de perpetuarem as tradições trazidas, mas principalmente

ressignificadas, pelos contextos da comunidade e do grupo como também de suas histórias de

vida. Nesse sentido, a cultura afro-brasileira herdada dos antepassados negros e reelaborada

constantemente nas práticas comunitárias de convívio e solidariedade tem um significado

importante na construção do sentido de pertencimento, de identidade. As rezadeiras se

contituem como agentes da cultura popular do seu povo e de outros que se juntam às suas

práticas, pessoas vindas de outras comunidades como a cidade de Luís Gomes e outras

cidades até de estados vizinhos. Apesar de ser uma cultura construída sob os traumas do

tráfico negreiro e da escravidão (GILROY, 2001), suas manifestações e objetos culturais não

desapareceram apesar da perseguição e da cultura dominante que lhes foi imposta pelo

colonizador. Assim:

Ter uma identidade seria, antes de mais nada, ter um país, uma cidade ou um

bairro, uma entidade em que tudo o que é compartilhado pelos que habitam

esse lugar se tornasse idêntico e intercambiável. Nesses territórios a

identidade é posta em cena, celerada nas festas e dramatizada também nos

rituais cotidianos (CANCLINI, 2008, p. 190, grifo do autor).

Para o antropólogo, pertencer a uma dada comunidade, do local ao nacional,

pertencer a uma entidade é compartilhar saberes e vivências num lugar de trocas simbólicas,

de intercâmbio cultural. Nesse lugar híbrido da cultura, ser uma rezadeira do Quati não é

apenas estar inscrita numa identidade local, mas fazer parte da memória e da história de toda

uma nação formada de um mosaico multiétnico. As rezas não são apenas um objeto cultural,

um mero bem simbólico, mas um espaço conquistado sob o signo da resistência ao longo da

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história do Brasil. Os povos afrodescendentes em constante luta, numa dinâmica cotidiana

buscaram seu espaço na cultura, teceram uma revivescência da ancestralidade num

movimento dialético em que inscreveram o seu legado na identidade nacional, pois:

Há anos os afrodescendentes buscam seu espaço na cultura e na literatura no

Brasil. Não podemos abdicar de um legado que faz parte da história deste

país e que em meio às paredes das senzalas, à escuridão do porão e nos

campos das fazendas nossos negros africanos nunca deixaram morrer suas

raízes (SANTOS, M. 2013, p. 80).

As rezas da comunidade afrodescendente do Quati, indissociáveis das histórias de

vida de suas agentes populares, as rezaderias, fazem parte da cultura nacional e hoje não mais

ocupam as senzalas e os porões. Continuam atuando nas comunidades rurais do sertão

nordestino, nos bairros de identidade afro-brasileira, nas comunidades reconhecidas como

quilombolas. Nesses lugares as raízes culturais que atravessaram o Atlântico negro saíram da

escuridão e continuam inscritas no cotidiano das suas comunidades, nos momentos de

socialização. As narrativas de vida das rezadeiras confirmam o pensamento de que “Na maior

parte das vezes, lembrar não é reviver, mas refazer, reconstruir, repensar, com imagens e

idéias de hoje, as experiências do passado” (BOSI, 2007, p.55).

As narrativas de vida das rezadeiras negras do Quati podem ser associadas à

literatura africana que apresenta um forte teor de oralidade e de memória, como a obra do

guineense Abdulai Sila. Para melhor compreendermos o contexto de vida dessas mulheres

afrodescendentes está inserido nas redes da globalização, apesar de muitos pesquisadores e

folcloristas acreditarem que as comunidades rurais do interior do Nordeste brasileiro vivem

isoladas e suas manifestações são arcaicas, relíquias do período colonial, o catolicismo e a

cultura branca historicamente impostos também chega pelos meios de comunicação, muitas

assistem a canais católicos, a novena do Divino Pai Eterno da Rede Vida de Televisão, por

exemplo, mas estas informações e influências as afetam sem apagar os marcos e traços mais

característicos da cultura dessas comunidades mais afastadas. A força da opressão favoreceu

uma reelaboração das manifestações culturais, como suas histórias de vidas, narrativas, rezas,

crenças, um pensamento capaz de relacionar diferentes situações sociais e históricas. Essa é a

complexa elaboração de suas identidades afro-brasileiras, sem a falsa noção de uma

identidade essencialista, intocada. Refletimos que:

Por outro lado, essa situação de opressão e de miséria é também um dado

desencadeador de reflexão e conscientização, pois o sujeito local nota que,

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através dos fluxos de informações baseados em redes da própria

globalização, aquilo que o afeta é também algo que afeta os outros sujeitos

das comunidades do mundo todo.

Ora, essa percepção no sujeito de que a força que o oprime é, em termos

simbólicos, a mesma força que oprime um outro, em um outro local, poderá

favorecer um pensamento relacional e não essencialista sobre a própria

cultura e identidade. Assim sendo, quando um escritor, um sujeito engajado

à sua própria cultura, decide tratar de sua cultura por meios literários, ou

seja, poéticos, ele abandona a ideia de raiz como ideia majoritária, e seu

discurso opta, no seu lugar, por uma representação da conjectura cultural

onde vive motivada por um desejo de levar a comunicação de seu imaginário

ao imaginário do outro (CARDOSO, S., 2014, p. 105).

Tanto as rezadeiras, exímias narradoras da vida e da história do seu povo como os

escritores e poetas engajados à sua própria cultura tratam desta cultura e de sua memória por

meio de sua arte, seja ela escrita ou oral, erudita ou popular, de forma não essencialista, ou

seja, conscientes de que não é possível manter sua cultura intacta, preservada numa raiz

majoritária. O discurso literário de um sujeito inscrito na cultura do seu povo é elaborado na

relação entre a cultura e a memória e é motivado pelo desejo de transmissão do imaginário

coletivo ao outro, numa relação que na esteira de Glissant (1997), pode ser chamada de

rizomática.

Apesar da penetração da cultura ocidentalizada, da tentativa de uma hegemonia

branca, as narrativas de vida das rezadeiras negras do Quati inserida numa complexa poética

de relações nos mostram que apesar do confronto e da disputa, o resultado é o enriquecimento

mútuo das culturas envolvidas. Inscritas num tempo histórico que comporta diversas culturas

e categorias de tempo, no caso das rezadeiras o tempo é o comunitário, envolvidas

inicialmente pela colonização e hoje por uma colonização globalizada que oprime e explora

os que são considerados mais fracos, as manifestações culturais afro-brasileiras das rezas e

das narrativas coexistem com diferentes manifestações. Apesar da presença da tecnologia nas

suas casas, dos programas de televisão católicos, os bens simbólicos das rezadeiras convivem

com esse contexto de diferentes temporalidades. Assim:

Quando penso em temporalidades diferentes e presentes estou querendo

inverter o eixo do ponto de vista dominante, de modo a ressaltar, por um

lado, a proximidade e a simultaneidade temporal, por outro, formas de

resistência, confronto e contestação, mas também a penetração da dominação

que provoca subordinação aos interesses dominantes ou o diálogo com

diferentes criações culturais, que pode gerar trocas e resultados

enriquecedores para os diferentes tipos de cultura em coexistência, confronto

e disputa (AYALA, 1997, p.3).

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A mestiçagem cultural das narrativas de vida das rezadeiras, de seus ritos e rezas, se

assemelha com a crioulização apresentada em obras de escritores africanos como Abdulai

Sila. Tanto as obras escritas dos escritores africanos como as narrativas de vida das rezaderias

negras da comunidade de Quati encontram sentido por ser uma resistência às narrativas

dominantes, uma transgressão inscrita numa cultura híbrida. Pensando na esteira de Hall

(2009) e sua compreensão de cultura enquanto prática cotidiana de um povo em que este lhe

atribui valorização a partir de seus referenciais, a literatura e a cultura afro-brasileiras em suas

várias formas e manifestações são uma forma de afirmação diante de uma histórica hierarquia

cultural.

As manifestações culturais e as práticas rituais das rezadeiras se impuseram ao longo

do tempo em meio a uma inferiorização construída sobre os negros em que sua cultura foi

tratada como desterritorializada, como uma cultura sem chão para se reconstruir, flutuante

devido ao processo colonizador. Porém, as manifestações culturais afro-brasileiras, como as

narrativas e rezas, nos mostram que nenhuma cultura possui uma raiz majoritária, elas são

rizomáticas e crioulas segundo o pensamento de Glissant (1997). A formação de um

entroncamento dessas culturas híbridas resulta de um complexo e histórico processo de reação

aos modelos impostos pela hegemonia branca, pelos colonizadores, principalmente por se

tratar de uma realidade concreta, como é o caso das narrativas e das rezas inseridas no

cotidiano da comunidade.

As narrativas de vida das rezaderias negras são uma forma de o subalterno poder

falar (SPIVAK, 2010). Falar de suas histórias, de sua herança cultural, de sua identidade e de

produzir sua subjetividade sem a qual o grupo perderia a coesão que os une, de sua ligação

com o universo mítico, pois em sua função social primordial, como na cultura indígena cariri

“O rezador ou bisamu tinha um papel importante, não só como curandeiro, mas também como

intermediário da divindade (PREZIA, 2007b, p. 90, grifo do autor). Assim a função do

rezador ou da rezadeira por mais que esteja relacionada à cura de doenças ou solução de

problemas espirituais, sua intermediação com a divindade se faz por ser esse agente o

transmissor da cultura, da ancestralidade do seu povo, bem mais divino e sagrado para a

existência do grupo.

A hibridização constitutiva das culturas afro-brasileiras, seu viés rizomático, é

reforçada no caso do Brasil pela miscigenação presente em nossa população desde o início da

colonização, num processo duradouro que se enriqueceu ainda mais com a chegada de muitos

imigrantes. Fato constatado pelo sociólogo devido a:

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A presença de etnias e culturas diferentes se faz sentir desde os relatos que

acusam os primeiros do grupo europeu mais antigo no Brasil, representado

pelo português, até nas contribuições africanas e dos grupos europeus e

orientais mais recentemente ajustados e integrados à nossa sociedade

(XIDIEH, 1993, p. 123).

Em seu trabalho etnográfico sobre narrativas populares, Oswaldo Elias Xidieh,

pioneiro nos estudos brasileiros a partir de uma visão mais sociológica das culturas populares

e do folclore, no tocante ao sincretismo e à aculturação, o autor relata que parte significativa

das narrativas apresentam rituais de cura e esse fato se deve a um “processo de acumulação e

acomodação de traços mágico-religiosos de diferentes culturas” (XIDIEH, 1993, p. 123). Esse

traço constitutivo das muitas narrativas, contos etiológicos e lendas coletados e analisados

pelo sociólogo com narradores paulistas que é o viés mágico-religioso se dá com as

influências indígenas e afro-brasileiras, cujos registros de relatos são mais abundantes e

segundo o autor, do caboclo se registra muito pouco. Este conserva muito mais traços

lusitanos como, por exemplo, o culto das almas. Como herança do romantismo brasileiro, a

cultura do caboclo foi considerada de pouca nobreza e valor com a tentativa de representação

de um índio impossível. Como também há um traço depreciativo com o negro em muitas

narrativas com ditados jocosos de inferiorização, destacando-se como exceção a narrativa do

rei mago negro que apesar da trapaça dos dois reis brancos, consegue chegar primeiro ao

presépio e ganhar a coroa de ouro. Essa depreciação e tentativa de inferiorizar o elemento

afro-brasileiro é uma herança da colonização que as narrativas das rezadeiras e a permanência

da sua atuação e função nas comunidades, reelaborada e inscrita em novos contextos que

conseguem conviver e dialogar com os tempos modernos, resistem de forma rizomática, numa

reação histórica as imposições.

Essa característica mágico-religiosa das narrativas de vida das rezadeiras negras é

resultante do sincretismo, da hibridização das três culturas matrizes da formação nacional

brasileira, indígena, africana e portuguesa, o viés mágico mais africano e indígena e os traços

católicos lusitanos. Esse conjunto de traços tecidos em diversidade presente nas narrativas de

vida das rezadeiras do Quati não se trata de lembranças fragmentadas do passado, mas de uma

função social ancorada no veio narrativo. As narrativas e rezas como elementos memoriais

não são expressões autênticas, da cultura e do passado africano, mas a recuperação atualizada

das vozes ancestrais inserida no cotidiano da comunidade. As rezadeiras desconstruíram o seu

lugar de vítima enquanto afrodescendentes marcados pelos traumas da diáspora e da

escravização e assumiram o seu papel de sujeitos históricos responsáveis pela memória,

cultura e tradição, revisitando o passado com o olhar de um momento novo do presente. Em

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sua constituição identitária, tomaram de empréstimo também a religião, a língua e a cultura do

colonizador e, ao longo da história do seu povo e de suas histórias de vida, se legitimaram

enquanto agentes da cultura afro-brasileira no seu grupo.

Na esteira da compreensão pós-colonial em que ultrapassamos o pensamento de uma

cultura pura, de uma raiz majoritária e dominadora que se sobrepõe às outras, a cultura

popular afro-brasileira se moveu nos intertícios, nos entre-lugares, nas diferenças e nas

reações aos modelos sociais impostos e aos limites previamente estabelecidos. Nessa

articulação de diferenças culturais e produção de subjetividades individuais e coletivas, as

narrativas de vida das rezadeiras negras e suas rezas e ritos podem ser compreendidos como

uma estratégia elaborada de subjetivação, como novos signos de identidade. Assim:

O que é teoricamente inovador e politicamente crucial é a necessidade de

passar além das narrativas de subjetividades originárias e iniciais e de

focalizar aqueles momentos ou processos que são produzidos na articulação

de diferenças culturais. Esses “entre-lugares” fornecem o terreno para a

elaboração de estratégias de subjetivação – singular ou coletiva – que dão

novos signos de identidade e postos inovadores de colaboração e

contestação, no ato de definir a própria ideia de sociedade (BHABHA, 2010,

p.20).

Na esteira de Bhabha para compreendermos as narrativas de vida das rezadeiras

negras é pertinente não só focarmos na narrativa enquanto produção de subjetividade, mas

também e principalmente no processo de produção desse tecido narrativo, nos momentos e

contextos sociais que proporcionaram essa produção e nos acontecimentos históricos e

culturais representados na voz-memória. A compreensão de uma cultura híbrida oferecida por

Bhabha se reveste da ideia das diferenças como constitutivas de uma sociedade e de sua

cultura. Assim se teceram as narrativas das rezas negras e seus rituais, como resultado de uma

tradução cultural elaborada em séculos de história, diáspora, escravidão e abolição, luta e

resistência. Na trilha do pensamento de Bhabha as narrativas das rezadeiras se inscrevem em

seu sentido de hibridismo sem a promessa de uma clausura celebratória nem de

transcendência. As culturas se mesclaram, uma encontrou tradução na outra, seus traços se

fundiram e se miscigenaram.

Rosa Bezerra num estudo sobre a representação social do cangaço e de movimentos

sociais protagonizados pelos negros, como a Revolta dos Malês na Bahia, do massacre

indígena baseado na ideia de uma raça inferior, mutilada na alma no tom forte das palavras da

estudiosa, e esvaziada enquanto sujeito de direitos, os negros e índios foram, o que

impulsionou as pessoas a uma identificação mesmo que inconsciente com brancos e cristãos

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devido a representação do europeu enquanto superior. Nessa exclusão histórica que mutilou as

almas e as identidades indígenas e negras, numa violência real e simbólica, predominou sobre

o negro a visão eurocêntrica, o que negou seu direito à identidade. Ao discutir a visão do

pintor Rugendas, a psicóloga social reflete que:

Passando para o estudo da história do negro no país, nota-se também a visão

eurocentrista que percebia o negro como “raça inferior”, podendo ser

subjugado à força e vendido como mercadoria, como animal. O negro teve

também sua alma mutilada quando lhe foram negados os direitos à religião,

os costumes, a história, violando sua ideologia, seus mitos, seu modo de

vida. Rugendas acreditava na “verdadeira superioridade dos brancos sobre os

negros”. Ou seja, Rugendas percebia o negro digno de caridade, de piedade,

mas não como o outro, digno de respeito; na sua visão eurocêntrica, percebe

o negro como inferior ao branco (BEZERRA, 2009, p. 40- 41).

A autora Rosa Bezerra aborda a construção do pensamento histórico sobre o negro e

a elaboração da visão sobre ele a partir de critérios europeus, brancos e cristãos, o que lhe

negou o direito a “alma” durante muito tempo. Como a diferença é um elemento constitutivo

da identidade, Inês Barbosa de Oliveira aborda como a reação aos modelos impostos pela

cultura colonizadora, uma resistência que se faz na diferença, em processos constantes de

adaptação e modificação dos bens culturais e simbólicos que permitem a reinserção social de

práticas culturais consideradas como inferiores:

Nesse sentido, por um lado, em contextos multiculturais, muito da nossa

identidade se tece em oposição às identidades e forma de estar no mundo de

outros grupos sociais, sendo um dos modos pelo qual aprendemos a nos

inserir no mundo: diferenciando-nos dos “outros”. Numa história política e

cultural de transformação de diferenças em desigualdades, característica da

cultura burguesa e ocidental, vamos perceber processos de aprendizagem

que hierarquizam sujeitos e culturas. Valorizando os princípios fundadores

de umas em detrimento de outras, o que produz, por outro lado e

simultaneamente, processos de adaptação e modificação que permitem aos

supostamente inferiores reinserir-se socialmente, apesar da força com que

algumas dessas desigualdades se manifestam em nosso cotidiano

(OLIVEIRA, 2003, p. 26).

Foi esse processo de adaptação e de aprendizagem que permitiu às rezadeiras negras

se constituírem como agentes populares de sua cultura, da memória coletiva, representantes

de uma cultura híbrida que apresenta traços europeus, indígenas e africanos sem que a

histórica hierarquia dos sujeitos e das culturas se faça um obstáculo às suas práticas. Apesar

da valorização de uma cultura em detrimento das outras, no caso a branca e europeia em

detrimento da indígena e afro-brasileira, as manifestações culturais, narrativas, rezas e

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benzimentos dos sujeitos desta pesquisa transcenderam as desigualdades e se tornaram até os

tempos atuais uma atividade cotidiana, revestindo de simbolismo e identidade uma realidade

concreta. Essas atividades de religiosidade africana que foram perseguidas durante o período

colonial e pós-colonial brasileiro pelas elites brancas e católicas, como o foram pela

inquisição do Brasil colonial por serem vistas durante muito tempo como diabólicas e não se

enquadrarem nos discursos de centro e dominante, são o suporte em que se ancora a memória

de uma comunidade, de um grupo não apenas étnico, mas cultural que reaviva sua identidade

na voz-memória de suas rezadeiras.

Nas reflexões propiciadas por Ecléa Bosi com base no pensamento de Simone Weil:

Trata-se de um direito humano fundamental para Simone Weil: “Um ser

humano tem uma raiz por sua participação real, ativa e natural na existência

de uma coletividade que conserva vivos certos tesouros do passado e certos

pressentimento do futuro”. O desenraizamento é uma condição

desagregadora da memória: sua causa é o predomínio das relações de

dinheiro sobre outros vínculos sociais. Ter um passado, eis outro direito da

pessoa que deriva de seu enraizamento. Entre as famílias mais pobres a

mobilidade extrema impede a sedimentação do passado, perde-se a crônica

da família e do indivíduo em seu percurso errante. Eis um dos mais cruéis

exercícios da opressão econômica sobre o sujeito: a expoliação das

lembranças (BOSI, 2007, p. 443).

O papel social das rezadeiras negras do Quati garante aos membros do seu grupo o

direito a um passado, a uma memória. Suas narrativas e rituais além de conservarem os

tesouros ancestrais ressignificados na realidade de vida atual pressentem também um futuro

promissor para o seu povo em que suas tradições e bens culturais não serão esquecidos.

Embora as futuras gerações lhes deem novos sentidos e novas funções, a memória transmitida

pelas rezadeiras é um tesouro, fonte viva de identidade onde bebem os afrodescendentes de

diversas épocas e gerações. Suas práticas se constituem como uma condição agregadora da

memória coletiva, não permitindo o cruel desenraizamento já sofrido com a diáspora e a

escravidão. Elas tecem a crônica não só do grupo familiar, mas do grupo social e embora

ainda atingidas pela mobilidade, como dona Naldi que se mudou de Luís Gomes para Pau dos

Ferros em busca de melhores condições econômicas, mas nessa outra cidade continua

narrando e rezando, o desejo de ter um passado e de pertencer a um grupo lhe impulsionar a

narrar e a rezar. Narradoras de sua gente, as rezadeiras conferem aos seus o direito à memória,

a uma raiz, a um lugar no seio da coletividade e sua função é uma participação real, ativa e

natural na vida simbólica do grupo, dando também aos outros membros o mesmo direito.

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Na esteira do pensamento de Bhabha, as suas narrações, rezas, rito e orações são

manifestações culturais inscritas e inseparáveis de suas histórias de vida que resistiram e

resistem à condição colonial historicamente imposta aos seus antepassados. Em seu papel

social na dinâmica do grupo comunitário. Suas narrativas de vida elaboram uma imagem

autêntica, uma identidade construída num tecido social reelaborada a cada geração pelas

tramas da história. Nas bobinas que movem a memória das rezadeiras negras, embora até

certo ponto de forma inconsciente, sua identidade se torna autêntica por transcender a máscara

branca através da sua função social e conseguirem dar uma resposta a uma luta historicamente

desigual. A elaboração das identidades intrínsecas às rezas e narrativas é uma produção como

atitude responsiva de sobrevivência cultural de um povo massacrado por séculos.

A fé em Deus e nos seus santos e antepassados aparece como uma marca da

identidade das rezadeiras participantes deste trabalho. Elas acreditam na autoridade e na

função que exercem, de que foram investidas por suas ancestrais e no reconhecimento que

recebem dos membros do seu grupo social, o que lhes proporciona um lugar social como

agente da cultura e da religiosidade popular, estabelecendo um elo entre a cultura ancestral e

as práticas cotidianas do grupo e perpetuando assim o sentido de pertencimento sem o qual o

grupo não sobreviveria como tal. Suas histórias de vida são a história do seu povo, sua

memória e identidade nelas encontram solo propício e fecundo.

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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A psicóloga social Ecléa Bosi (2009) em entrevista à revista Na Ponta do Lápis

enfatizou a importância dos depoimentos colhidos para a transformação social do lugar onde

as narrativas surgiram. No decorrer desta escritura aconteceu o processo de reconhecimento

das comunidades do Quati (escrevo assim seguindo Câmara Cascudo embora outros escrevam

Coati) e da Lagoa do Mato como remanescentes de quilombos pela Fundação Palmares.

Apesar deste ato não ser o objetivo deste trabalho, os artigos que escrevemos sobre a memória

e a identidade afro-brasileira dos moradores do Quati e da Lagoa do Mato ao longo das

pesquisas deram a sua contribuição para esse reconhecimento. Como, por exemplo, o artigo

publicado em livro “O ensino da literatura afro-brasileira: relatos de experiência” (SILVA;

FONSÊCA, 2017) que tratou das relações entre o ensino da cultura afro-brasileira e os

agentes populares, narradores da comunidade. Outros artigos ainda em andamento ou já

publicados em jornais digitais sobre a cultura afro-brasileira do município de Luís Gomes e

sua zona rural, que embasaram esta tese e foram citados ao longo desta escrita, foram também

entregues à Fundação Palmares para melhor caracterizar os significados da cultura popular

afro-brasileira e o diálogo e a circularidade dessa cultura com a dos povos do Quati. Também

participamos de um projeto de iniciação científica orientado pela professora Solange Batista.

Assim:

Projeto de Iniciação científica, na área das ciências sociais.

Pesquisa realizada pelas alunas Rafaela Gomes da Silva, Nágila Aiane do

Nascimento e Maria Eduarda da Silva, estudantesd a 3ª série do ensino

médio da Escla Estadual Mariana Cavalcanti, sob a orientação da Professora

Solange Batista da Silva e cooreintação voluntária do Aluno de Doutorado

em Letras da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte, desenvolvido

durante o ano de 2017. O trabalho foi apresentado na Feira de Ciências da

Escola, mês de agosto; Feira Regional da 15ª DIREC/Pau dos Ferros, mês de

setembro; e Feira de Ciências para todos no Semiárido Potiguar na UFERSA

Mossoró/RN, no mês de outubro. Tem como objetivo, a partir do

levantamento histórico, catalogação de documentos oficiais, entrevistas,

depoimentos, relatos e AUTODEFINIÇÃO das comunidades, oficializar o

pedido à Fundação Palmares para a certificação dessas comunidades como

remanescentes de Quilombos (BATISTA, 2018, p. 82).

O compromisso construído entre narrador e ouvinte, colaborador e pesquisador.

Nesse sentido, cumprimos o sábio conselho da autora Ecléa Bosi discutido no capítulo

metodológico e não arquivamos os relatos de vida que conhecemos ao longo do convívio com

muitos narradores, colaboradores e professores pesquisadores que nos conduziram até o

universo empírico das rezadeiras do Quati. Assim, o caminho de construção deste trabalho

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seguiu ao lado do percurso para o reconhecimento das comunidades como remanescentes de

quilombos. Na esteira de Bosi, pudemos contribuir para a transformação do lugar onde

encontramos um ambiente propício à partilha de vidas, de suas histórias por meio das

narrativas. Além das rezadeiras entrevistadas neste trabalho, muitas outras vozes explícitas ou

subjacentes, do presente e do passado, que costuram a face afro-brasileira dos povos do Quati

e da Lagoa do Mato, vozes-memórias reelaboradas a partir da memória coletiva e da

transmissão oral dos saberes ancestrais. Nesse processo de reconhecimento que resultou na

autodefinição das comunidades enquanto remanescentes de quilombos:

Foram muitos anos para acontecer essa conquista e decisão por parte das

comunidades para a AUTODEFINIÇÃO, houve resistência, talvez medo, e

após o trabalho formalizado, passamos a contar com as parcerias que

contribuíram significativamente para o envio da documentação à Fundação

Palmares. São elas: Prefeitura Municipal, Associação Mãe Nila, Sec. De

Educação, Cultura e Desporto, Professor e Maestro Leandro Fernandes,

coordenador de Cultura Ozeano Paulino, Secretaria de Assistência Social,

pesquisador de Cultura Popular Ciro Leandro,e a brilhante contribuição da

professora Maria Carlos que orinetou o envio da documentação e

intermediou o diálogo entre nós e a Fundação Palmares, a comunidade

quilombola do Sobrado/ Portalegre-RN que nos recebeu e incentivou a

realização desta pesquisa, os habitantes das comunidades que colaborarm e

todas as etapas da pesquisa, levando em consideração que as pesquisadoras

são netas, bisnetas dos habitantes mais antigos das comunidades como

Mixica e Maria Nova. O grande Marco foi a reunião de AUTODEFINIÇÃO,

que aconteceu no mês de janeiro/2018, e em fevereiro/2018, foi enviada a

documentação (BATISTA, 2018, p. 84)

Na dinâmica da autodefinição, o mosaico de narrativas, das histórias de vida,

inscritas na teia do pertencimento enlaçam uma identidade comum. Ao lado dos narradores e

agentes da cultura popular como a falecida rezadeira Maria Nova tão citada no processo do

reconhecimento quilombola estão Naldi, Cosma e Lurdes cujas rezas e ritos de proteção e

benzimento não apenas guardam a memória do seu povo, mas movimentam as bobinas da

memória por meio da reelaboração do legado que lhes foi transmitido a partir das suas

histórias pessoais de vida sem que estas se afastem da história coletiva, pois os contextos

particulares se inscrevem no contexto social e comunitário. As rezas enquanto manifestações

da cultura popular afro-brasileira não se tratam de uma mera manutenção dos ritos e crenças

ancestrais, de um repasse estático que sobreviveu ao tempo, mas de uma constante atualização

dessa memória no cotidiano do presente, recebendo novos sentidos, sendo revestida de novos

significados devido aos novos contextos, como a mudança do lugar de morada que aconteceu

com as rezadeiras Naldi e Lurdes. As experiências de vida de cada colaboradora interferiram

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na sua maneira de atuar no grupo, nas trocas simbólicas de representações entre elas e os

membros do seu grupo social.

As rezas das entrevistadas inscritas nas suas histórias de vida alinhavam suas

relações com o grupo a que pertencem e que propiciaram a descoberta e o desenvolvimento

do seu dom e da sua função social na comunidade. Em seus relatos de fala apresentados neste

trabalho, pudemos compreender a importância do grupo para a sua representação enquanto

rezadeira e narradora, da representação que constrói de si para o grupo e do grupo para si

numa troca baseada no exercício do dom e do serviço de rezadeira. É na memória ancestral e

atual do grupo reavivada e ressignificada na sua atuação como rezadeira que se elaborou e se

elabora enquanto processo dinâmico do viver a sua identidade de agente da cultura popular

afro-brasileira, adjetivo que traduz a mestiçagem cultural na esteira de Romero (1978) de que

a identidade brasileira formada pelo conjunto das heranaças culturais portuguesa, indígena e

africana. Retomando o pensamento de Romero, a pátria brasileira não ficou na palhoça do

negro abandonada nos areais da África, na oca perdida do índio e nem nos portugueses que

ficaram nas encostas do Alentejo. Essa pátria enquanto identidade e pertencimento é uma

pátria compósita, formada por muitos rizomas entrelaçados dessas três culturas na

compreensão de pensadores como Glissant, Deleuze e Guatarri. A identidade das rezadeiras é

tecida de rizomas católicos, indígenas e africanos, numa mistura que nos ajuda a compreender

a formação cultural do Brasil.

Porém nesse caldeirão de memórias, a face que mais se revela esá voltada para a

magia herdada tanto da África como dos indígenas e o conhecimento do uso das plantas

medicinais e sagradas para proteção e a cura de doenças que lhes foram transmitidos

memorialmente. Essa face é múltipla, é afro-ameríndia e afro-brasileira, rizomas que se

conectam a muitos pontos. O ramo de plantas usado pelas rezaderias é rizomático,

simbolicamente é originado de diversos galhos e raízes. As contas do seu rosário de proteção

também são rizomáticos. Metonímia dessa identidade multicultural, ele se ressignificou ao

longo da história desde o seu sentido islâmico trazido da África, ao significado da devoção a

Nossa Senhora que ancorou a resistência dos negros escravizados e a sua união em

irmandades, festas e manifestações culturais que reforçavam seus laços. Assim também se

construíram as histórias de vida das rezadeiras Naldi, Lurdes e Cosma de forma rizomática,

originando sua cultura de muitas raízes como também espalhando muitas outras.

As vozes das antigas rezadeiras do Quati e da Lagoa do Mato têm ecos nas vozes das

nossas colaboradoras. As rezas revestidas de suas histórias de vida e das histórias de vida dos

antepassados, das pessoas que lhes transmitiram os ensinamentos sobre o dom e a função das

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rezas constroem na relação com os que procuram suas orações e com os outros membros da

comunidade. As rezas envolvidas nas narrativas de vida exercem a função coesiva da voz-

poética na compreensão de Zumthor (2001) que garante a sobrevivência do seu grupo.

Sobrevivência esta que alcança por meio da memória o Atlântico negro, a herança ancestral, o

diálogo com outras culturas em solo brasileiro, os bens simbólicos e culturais dos povos

afrodescendentes presentes na sua comunidade. Suas vozes e memórias conferem ao seu povo

o sentimento de identidade. No exercício da sua função de rezadeiras se atualizam as tradições

dos antepassados, ressignificam as memórias herdadas e transformadas por novos contextos,

redesenhando de forma dinâmica a face do seu grupo.

As histórias, os saberes populares, suas experiências de vida, os conselhos

constituem o bastidor dos relatos e as rezas e narrativas estão permeadas por suas histórias de

vida. O seu papel social de rezadeira se funde com a função de transmissoras da memória. E

função de lembrar que se apresenta no momento das rezas como práticas culturais

inseparáveis na elaboração das suas identidades. O papel de rezadeira posiciona as

entrevistadas no grupo, dando-lhe uma atmosfera quase sagrada na representação dessa

coletividade, detentora da memória e da dádiva divina, é a rezadeira quem socorre os aflitos

nos sofrimentos cotidianos e sem usufruir economicamente da sua prática. Essa dedicação de

uma vida inteira reforça o respeito e a consideração dos sujeitos por sua pessoa e é um dos

elementos mais significativos da identidade que comungam.

A representação das rezadeiras é um marco significativo para a elaboração da

identidade afro-brasileira do Quati e da Lagoa do Mato porque não só transmite a cultura e as

práticas dos seus antepassados como reavivam essa cultura como parte integrante do cotidiano

das comunidades. Ouvir suas vozes é poder compreender a dinâmica histórica e identitária

dos povos afrodescendentes não apenas do Quati, mas na história do Brasil em sua realidade

presente. As histórias de vida de Naldi, Lurdes e Cosma iluminam as histórias de vidas dos

membros do seu grupo social, dos seus antepassados, dos agentes populares do passado e do

presente, contribuindo para a construção do reconhecimento que resulta no sentimento de

identidade. Os relatos das colaboradoras trouxeram muitas vozes por elas representadas, como

Maria Nova, Dona Tomásia, dona Joaquina, Neném de Faba, Luzia e tantas rezadeiras e

narradores trazidos à tona na elaboração dos seus relatos como nomes fortes e influentes nas

suas histórias pessoais e na inserção destas na coletividade. As riquezas simbólicas que na

realidade dos povos do Quati cuja oralidade é uma forma de transmissão memorial alcançadas

pelo poder das vozes-memórias. As vozes das rezadeiras em suas práticas cotidianas, da reza,

do sábio conselho, do ensinamento de remédios caseiros, representam a esperança diante das

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dificuldades, pois sua “voz que, quando proferida, dá vida a sonhos de um mundo melhor.

Poesia/profecia que é errância, é esperança, projeção de um futuro (e por que não de um

passado?) cujas glórias e riquezas o presente desconhece” (HÖFFLER, 2006, p. 31).

As glórias e as riquezas conhecidas no tempo futuro é a manifestação do

ensinamento, pois graças aos ensinamentos das rezadeiras mais velhas, como suas avós e tias,

as entrevistadas puderam ofertar às pessoas do seu grupo as benesses e riquezas espirituais, os

bens simbólicos considerados mais sagrados e valiosos para as comunidades populares que é

o exercício do dom, da dádiva divina. Também a transmissão da memória realizada pelas

nossas colaboradoras projetam um futuro para os membros do seu grupo, para as

comunidades do Quati e da Lagoa do Mato. Narradoras por excelência na compreensão de

Benjamim (1993), elas transformam suas vidas em cultura, rezam e aconselham a partir de

suas experiências de vida, sabem o rito e a palavra adequada às necessidades da sua gente,

pois são exímias conhecedoras das suas vidas pelo convívio social e comunitário e possuem

experiências comuns. Como muitas narrativas projetaram o reconhecimento quilombola, as

histórias de vida das rezadeiras memorizadas neste trabalho não guardam simplesmente a

história e o passado das comunidades, mas narram sua cultura viva, atual e atuante,

mostrando-nos a capacidade das culturas populares de se reinventarem ao longo do

surgimento de novos contextos de vida. Como riqueza maior, estas histórias costuram e

alinhavam o seu pertencimento à comunidade afro-brasileira, a uma identidade que envolve

um sentimento local, regional e nacional.

Os relatos de vida das rezadeiras nos oportunizaram compreender a inserção de suas

memórias e identidades individuais no seio de uma coletividade. A comunhão entre as

rezadeiras e as pessoas atendidas dá sentido a sua prática. Suas narrativas de vida nos foram

oferecidas como dádivas a quem se confia e através desse tipo de pesquisa não nos limitamos

a oferecer-lhes o lugar de objeto, mas são elas sujeitas ativas e atuantes deste trabalho que nos

presentearam com suas memórias. Assim, segundo Bosi (2009, p. 25). “Recebemos do

entrevistado uma coisa preciosíssima: ele nos dá alento, seu tempo de vida”.

Como cultura de resistência, elas cultuam suas crenças, seus ancestrais, apesar da

imposição da cultura dos dominantes, marca revelada em suas falas pelo silêncio, pelo

sincretismo religioso, pelo valor dado aos ensinamentos recebidos. É o seu olhar sobre a

memória coletiva que este pretendeu mostrar, o valor das rezas e das narrativas de memória

para as rezadeiras, para o seu povo e para os estudos das memórias, da cultura popular e das

identidades, um valor historicamente negado e silenciado por uma sociedade muitas vezes

ainda preconceituosa e permeada do ranço racista herdada da colonização e da escravidão,

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como vimos nos exemplo das narrativas memorialistas escritas pelo viés da casa grande que

foram confrontadas nesta pesquisa com as histórias apresentadas pelas rezadeiras, estas

alicerçadas em seu lugar social na comunidade.

As vozes das rezadeiras, ao invés do silêncio e da imagem folclorizada ou

estereotipada dos agentes populares afrodescendentes, falam sobre si, suas histórias e as

histórias do seu povo. Num trabalho costurado a muitas mãos, numa melodia de muitas vozes,

a nossa tentativa de contribuição foi desenvolver nas comunidades de Quati e da Lagoa do

Mato o sentimento de pertencimento e valoração da sua cultura por meio de uma futura leitura

e conhecimento sobre as rezadeiras e a dinâmica cultural da comunidade. Nosso trabalho pode

servir também de referência para futuros trabalhos sobre a comunidade e os agentes das

culturas populares afro-brasileiras, pois ainda há muito o que se estudar sobre a contribuição

desses povos para a identidade nacional.

As rezas são as suas vidas. O universo da oralidade em que as rezadeiras foram

nascidas e educadas, as rezas aprendidas, as histórias dos sujeitos marcantes do Quati e da

Lagoa do Mato, o convívio social com a trama da cultura popular são a matéria-prima de suas

práticas culturais e de suas vidas. Praticantes e transmissoras da sua cultura, identificadas com

as tradições ancestrais, elas constroem o laço identitário com a sua comunidade

afrodescendente, com a cultura da região e com a história do nosso país cuja mestiçagem

cultural é um traço fundamental.

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ANEXO 1 - Convenções utilizadas para a transcrição:

CONVENÇÕES UTILIZADAS PARA A TRANSCRIÇÃO:

((anotações entre parênteses duplos)) Anotações da entrevistadora que indicam

gestos, comportamentos, referências e

contextos situacionais para uma melhor

compreensão do diálogo.

... Pausas breves

... ... Cortes na seqüência da narrativa

Trechos incompreensíveis que não

puderam ser transcritos.

(SILÊNCIO) Grandes pausas, que indicam reflexão e

momentos de hesitação.

Texto em itálico Marcações para, declamações e rezas.

/... Indicadores de corte na narrativa

♫ e texto em itálico Marcações dos momentos em que D.

Maria José canta.

Algumas informações necessárias:

1. As falas de outras pessoas no discurso das rezadeiras são representadas

entre aspas, mesmo quando antecedidas de verbo de elocução. Esse recurso foi

utilizado para diferenciar essas falas da fala de nossa colaboradora em situações

de discurso reportado.

2. Na narrativa, foram mantidas as seqüências conforme a variedade lingüística

das colaboradoras.

3. As marcas regionais foram conservadas por acreditarmos que personificam o

discurso narrativo.

4. O uso de pontos de interrogação e de exclamação juntos identifica trechos no

qual a pergunta é enfática ou retórica.

[?]

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ANEXO 2 - Transcrição das entrevistas realizadas

ENTREVISTAS COM A REZADEIRA ANA NALDIR

CIRO LEANDRO COSTA DA FONSECA

PAU DOS FERROS- RN

Entrevista 1

Entrevista realizada em 09 de novembro de 2015, na residência de dona Ana Naldir, na cidade

de Pau dos Ferros.

Cerca das 7 horas chegamos eu e meu amigo Filipe Abrantes Fernandes Cavalcanti para a

entrevista com a reazderia dona Naldir, conforme combinamos anteriormente. Por problemas

técnicos com a minha filmadora, a entevisa foi gravada na câmera do celular de Felipe e

algumas perguntas feitas anteriromente na gravação perdida forma repetidas, pois a entrevista

foi reiniciada. Como Felipe foi vizinho de dona Naldir na cidade de Luís Gomes desde que

nasceu, ela ficou à vontade para relatar a sua vida.

Entrevista - Naldi.

Ciro: Então, a senhora aprendeu ... as rezas com?

Naldi: Minha vó, Tomásia.

Ciro: Sim, pode falar um pouquinho dela.

Naldi: Ela rezava. Ela me ensinava assim, pra dor de dente, ela começou me insinar pra dor

dente. se você pegasse um peso muito pesado e sentisse uma dor assim (sinaliza para o peito),

ela me ensinava como rezava sabe?. Ela me insinava, e depois Ciro que ela me ensinou, que

que dizer como era pra fazer, é é, eu vivia assim eeu, de vida eu num fazia como eraa

cumprino eu fiquei um pouco perturbada, eu tinha mais ou menos uns 10 anos de idade. Ciro

eu nããão dormia direito, quando ia dormir era vendo muito santo, muita mata verde ... Muito

santo. Eu andando nar aquela mata bem estreitinha, aquelas varedinha e de um lado e outro

mato bem verdim e santo. As imagens que eu encontrava mais era ... ... era as imagens de São

José, São Francisco, Senhora Aparecida, Nossa Senhora da Conceição. Em cada passo que eu

dava que encontrava as imagens no chão eu já reconhecia que imagem era. ... Ali Ciro...

Ciro: A senhora via no chão né? Mesmo sem a imagem tá lá.

Naldi: No chão.

Ciro: Não era de gesso não, né?

Naldi: Não ... Pois, Ciro, ali eu me acordava e ficava procurando ... Ia dormir de novo Ciro e

começava. Aquelas rodinha, Ciro, assim, como cê pega uma corrente. Quando você pega uma

corrente (mostra no terço que ela usava no pescoço) que tem essas … ..., aí começava bem

pequenininha, aquelas correntinha e de repente se formava gran, desse tamanho (sinaliza com

as mãos). Ali eu tomava aquele susto eu conseguia dormir ... Então foi difícil ... Aí a minha

mãe, me levou na casa dum pessoal, eeu nem hoje sei quem era e quem sabia. Um homem

rezador que tinha era foi longe numa cidade fora de Luís Gomes uma cidadezinha fora de

Luís Gomes um sítio. Aí meu irmão contou pra eles que eu vivia assim que eu não dormia

direito, e tudo, aí o homem foi e disse que eu era méida de nascença, eu já tinha o dom de

rezar, que eu já nasci com esse dom. Então eu como num tava desenvolvenu, então por isso aí

que eu tava ficando perturbada.

Ciro: A senhora tava com treze anos ainda?

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Naldi: Sim. Aí eu tinha que. Aí me ensinou, como era que eu fizesse, esse homem falou

assim: “Vou acabar de lhe ensinar o que você tá na metade. Você assista nove missa, nove

comunhão”, você vai e ensinou pra mim rezar, seis horas da manhã, doze horas do dia e seis

da noite. Nove missa, e essas nove penitência pra eu fazer. No sábado eu vesti branco, no

sábado, e eu quando passasse esses nove dias de penitência como eu tava fazeno, eu nunca

podia negar a minha oração pra rezar em ninguém. Ciro depois que eu fiz isso a minha irmã

que morava aqui em Pau do Serro, trabalhava na casa de Pedo Damião e eu vim pra aí , eu já

viúva, já foi eu viúva, tá. Aí eu assisti tudo as missa aqui e as nove comunhão, nove dias e

cumpri. Daí pra cá, desse tempo pra cá só encontrei felicidade na minha vida. Durmo bem,

agora só existe uma coisa Ciro, se eu disser “Ciro vou lá na tua casa rezar em você” se eu num

for eu não durmo direito. Éé quando vô durmir é sonhano rezano em você, aparece as pessoa

pra mim, umas pessoa éé tem uma mulher que aparece sempre pra mim. ... É uma jove,

sempre eu vejo Ciro essa jove, ela vem quando chega diz assim pra mim eu dusmino, eu

dusmino eu ecuto: “Naldi eu cheguei”, aí eu rá sei que, é porque eu fiquei deveno oração

aquela pessoa e eu num fiz. Mas tirante dissaí ... tô muito bem. E sou muito feliz quando

chega uma pessoa na minha casa pra eu rezar. Sou muito feliz Ciro. Realmente a minha linha

é branca de pra criança, a minha linha é branca é de criança mais eu rezo em todo mundo,

todo tipo mermo ... Se você perder um objeto eu tenho minha oração pra você encontrar... tá;

se você quiser conseguir uma coisa assim, pedir uma ajuda a mim eu posso também com as

oração posso rezar e com a fé minha e a sua você consegue. É só você ter fé em Deus e

confiar e acreditar naquela oração que eu tô fazeno.

Ciro: A mãe Tomásia ela rezava nas outras pessoas também assim como a senhora?

Naldi: Rezava, rezava.

Ciro: Era é rezadeira.

Naldi: Mãe véa era. Só que minha vó rezava, mas não era como hoje que tinha; sabe. Quando

ela sabia que tinha uma pessoa necissan necessitando de uma reza, assim, que tava com uma

grande dor de cabeça, que tava assim vomitando e tava com dor, ela ia lá e rezava. Sem

ninguém mandar, sem ninguém chamar, ela ia lá e rezava.

Ciro: Rezava na pessoa sem a pessoa dizer né?

Naldi: Sim. Sem a pessoa chamar ela ia lá e rezava. E ela pediu muito a mim “Minha fia você

nunca se negue você fazer a sua oração a ninguém, num, seja quem for lhe procurar.”

Ciro: Com quem ela aprendeu ela num dizia a senhora não. Aprendeu assim nas casas que ela

convivia né?

Naldi: Éé, ela, elaa aprendeu aa rezar, minha vó dizia que foi com quem ela foi criada com

quem ela conviveu só Ciro que eu não o nome dessas pessoas ela disse, mas não lembro mais.

Ciro: E foi criada lá na...

Naldi: Baixa Grande.

Ciro: Na Baixa Grande, né?

Naldi: Na Baixa grande. Mamãe é da Baixa Grande e papai é da Paraíba.

Ciro: E assim, Dona Tomásia, o marido dela, senhora sabia de onde era?...

Naldi: seei.

Ciro: o marido de Dona Tomásia era da Baixa Grande também?

Naldi: Era, era, é da Baixa Grande também. Que era Raimundo Bode ... Raimun, éé era

conhecido por Raimundo Bode, que era o pai de Vicente Bode, éé era o pai de, de, de muita

gente que que conviveu por aqui, sabe. E o pai de minha vó, quando ele morreu ele é

enterrado, em Zé da Penha... enterrado em Zé da Penha (diz bem baixo)

...

Ciro: Aí como foi, a senhora pode repetir a história lá da roça que ela.?

Naldi: Sim. Pode ... pode, posso repetir. Ela era uma moça assim, já, ela disse que já tinha

bem uns trinta ano já ela disse, e era muito sofrido de roça, ela e Quitéria. E ela falou a mim e

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ela sempre dizia assim “minha fia quando for pedir as coisas a Deus cê saba como peça saba

como vai pedir.” Aí lá eu dizia assim “Por que mãe véa, a sinhora diz isso?” “Minha fia

porque eu vou contar a você. Eu tava numa roça brocano, assim era uma hora muito quente,

quando eu danei a foice no no pau, o pau vei e bateu no meu oio” (coloca a mão no olho). Ela

disse e foi uma dor muito grande. Ela foi e disse que olhou pro céu e disse que só queria que

Deus desse um marido pra ela nem que fosse pra dar uma saia pra ela ... Entendeu? Devido a

dor ser grande ... ... Aí ela disse que com poucos tempos apareceu esse viúvo que era por

nome Raimundo Bode ... Aí ela ficou com ele, mas com, só ficou nove mês com ele.

Ciro: O tempo de ter a mãe da senhora né?.

Naldi: Então quando ele, quando ele morreu ela ficou grávida de mamãe. Aí quando ela teve

mamãe, passou pra Quitéria que era irmã de mãe véa, e minha vó vivia no mundo

trabalhando.

Ciro: Então Quitéria era irmã?

Naldi: Quitéria era ...

Ciro: era tia da senhora?

Naldi: Era. Irmã de mãe véa.

Ciro: Sim Quitéria era irmã de Dona Tomásia né?.

Naldi: Era. Seno tia de mamãe.

Ciro: Também morava lá por seu Gaudêncio né, Dona Quitéria?

Naldi: Morava. Morava, porque quando saíram da Baxa Grande, divido esse movimento ela

me contava de Chico Preto, vinheram pra Luís Gomes.

Ciro: E Chico Preto ele quis matar a vó da senhora né?

Naldi: É e Chico Preto era um homem muito valente. Disse que ele, é aquele tempo lá disse

que era muito valente, maldoso, matava as pessoa, então ele fez uma cruz pra minha vó e

ainda cavou a cova pra matar minha avó.

Ciro: Só por perversidade?

Naldi: Por perversidade. Aí nesse tempo acho que era uma união era tão grande naquele

tempo lá que avisaram lá a minha vó e de lá foi onde; vinheram de lá pra cá. Pá resolver.

Ciro: Aí assim a senhora começou a rezar ainda jovem, né? Solteira.

Naldi: Solteira ainda. Solteira ainda.

Ciro: E a senhora morava onde nesse tempo?

Naldi: Nós morava, depois da Lagoa de Cima ... depois da Lagoa de cima, eu não sei se você

ouviu falar naquele pessoal de Bone, compade Bone, éé o finado Chaga.

Ciro: Ouvi falar lá do Alto dos Cândidos, né?

Naldi: Que era o pai de João de Chaga, não, você passano a Lagoa de Cima, tem o açude, aí

tem, passou do açude tem as casa, a casa que morava, que num foi meu pai morava; onde pai

morou trinta ano nesse canto. ... ... Seu Gaudêncio.

Ciro: E assim lá a senhora já atendia as pessoas?

Naldi: Já. Já. É aquele pessoal ali de Compade Bone, éé aquele pessoal ali de Judite, éé do

povo de Seu Nogueira, eraa ali o pessoal de Dona Zefinha de Seu Mané nesse tem, era o

pessoal que era o pessoal mais próximo e quando minha mãe ficou avisando às pessoas que eu

nasci com aquele dom e eeu oo, o homem falou que eu ia ficar feliz, eu comecei a rezano

pessoal. Então era o pessoal de cumpade Bone, Seu Nogueira, o pessoal de Dona Zefinha ali

de Seu Mané, era o pessoal que morava mais próximo de nós era esse povo que nóis tinha

mais contato. Era o pessoal de João Ismael, ali depois onde hoje é de Aldo, sabe? era as

pessoa que a gente tinha contato, que morava perto e.

Ciro: E assim quando a senhora casou continuou atendendo em casa?

Naldi: Continuei atendenu, em casa. É, quando eu casei, é, meu marido se chamava Damião

que ele era fi daquela finada Antônia, irmã daquela Nem. Então ele era trabalhador trabalhava

com o pessoal de Seu Pretim, no Leite trabalhava lá em Seu Pretim lá no leite; depois da da

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Palmeira descenu cê sabe o que é o leite né lá? Era lá onde ele trabalhava, e sempre ele fa, as

pessoa perguntava e sempre ele falava pras pessoa que eu rezava, aí, por ali as pessoas se

chegava minha casa pa rezar. ... Eee eu acho Ciro que eu comecei a rezar eu tinha mais ou

menos uma faixa uns treze, uns doze ano por aí, e já hoje eu conto sessenta e três anos. Graças

a Deus.

Ciro: De reza quase cinquenta né?

Naldi: É.

Ciro: E assim a senhora teve contato, além da avó da senhora, com outras rezadeiras?

Frequentou?

Naldi: Tive aqui em Pau do Serro, que foi o tempo que minha irmã morava aqui e eu tive

contato. Essa mulher, acho que, acho que muita gente lá em Luís Gomes conheceu ela. Era

uma senhora que morava com o pade Caminha, uma senhora já bem de idade, bem escura

assim que nem eu. Ela também me ensinou muita coisa.

Ciro: E assim na infância a senhora teve contato assim com o pessoal do Quati?

Naldi: Tive. Tive muito contato e era aquele eu pequena mas a minha irmã, Francisca, casou

com Vicente Gido e tinha aquele pessoal de Pedo Vintura, então minha mãe, meu, andarra

muito pra lá, tinha muito contato divido minha mãe era, que tinha era chamava assim era

Luzia, éé´muita gente ali que me, que realmente ainda é famia de Mãe Véa, aquele pessoal

dos Vintura ali inda é famia de minha vó Tomáza. Minha mãe tinha muito contato éé Faba,

era Luzia, era Brasilina, esse pessoal tudo tinha contato.

Ciro: a senhora conheceu ele?

Naldi: Conheci tudim, conheci tudim; só é tem as pessoa que eu num conheci que foi Mané

Gido que era o sogro da minha irmã, o pai de Sanzi, Mané Gido eu conheci, mais Antônia de

Mané Gido, a mãe de Vicente Gido, Chico Gido eu conheci, dona Antônia.

Ciro: E assim a senhora tem lembrança das rezadeiras lá do Quati desse tempo? Quem eram?

Naldi: Tenho lembrança não.

Ciro: Lembra não?

Naldi: Não. Não tenho lembrança. Sei que lá tinha

Ciro: lá já tinha né?

Naldi: lá já tinha, mais nunca cheguei a ter contato com elas não.

...

Ciro: E assim ao longo da vida da senhora, a senhora foi sempre aprendendo mais, né?

Naldi: Sempre aprendendo mais, sempre aprendendo mais. E sempre aprendendo mais que

cada vez que eu vinha praqui a Pau do Serro, eu, que eu encontrava essa encontrava mulher,

que era muito rezadeira aqui, sempre ela aumentava dizia mais ainda a sabedoria dela mais

ainda que ela tinha, ela já passara pra mim. Ciro, eu fico éé, é coisa de Deus, que Ciro, eu

decorar tudo na cabeça, e eu hoje num esquecer um momento, das orações que eu aprendi até

hoje. Hoje, o pessoal, a mioria eu fico pensando, meu Deus como é que uma pessoa pega um

ca,um livro uma coisa pra ler, vai se vai, vai pra novena tem que tá lendo, e eu não preciso

nada disso; nunca precisei, Ciro. É coisa de Deus. A minha só na cabeça. Pergunte uma

oração que minha vó me ensinou eu pequena que eu nunca me esqueci, de jeito ninhum. Só,

Ciro, uma coisa ela me disse, Naldi num ensine suas oração pra ninguém não, porque é muito

ruim, porque quebra as forças da oração. Pode ensinar, Ciro (faz gesto de não com o dedo).

Ciro: Que assim porque eu já tinha ouvido falar que mulher não passava pra mulher porque

quebrava as forças. Mas a senhora aprendeu com a avó da senhora e não quebrou as forças

dela né?

Naldi: Não, porque ali já foi ela quem já passou pra mim. Que ela não rezava mais aí foi uma

passagem.

Ciro: Siiim ela não ia mais rezar. E assim da família ela só passou pra senhora?

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Naldi: Só, só passou pra mim. Agora tem meu irmão Zé Pretim, ele reza mas eu não sei a

história dele. Éé não sei como, de onde veio e como foi, que que meu irmão Zé Pretim, que

ele morava (…) João Rosa e hoje ele mora cá na rua, construiu uma casa. Então ele reza mas a

história dele eu não sei, como foi.

Ciro: Como é a reza, é assim parecida com a da senhora, é não?

Naldi: É não. Eu num vô dizer que é porque eu não, eu, a dele o povo vai lá na casa dele

procura rezar mais eu não sei contar a história dele, eu sei da minha, a dele eu não sei como

foi que surgiu porque foi de pequena né, já nasci com esse dom, eu foi de pequena e meu

irmão eu conheci ele rezando agora com poucos tempos, poucos tempos.

Ciro: Sim, não é de pequeno?

Naldi: Não, não. Éé, foi de um tempo desse pra cá.

Ciro: E assim a avó da senhora foi a transmissão, assim ela ensinou pra deixar pra alguém pra

quando ela partisse, né?

Naldi: Passou pra mim, ela disse “minha filha, eu não vou mais rezar em ninguém, que já tô

de idade, vou passar pra você, tudo o que eu sei das minhas oração eu vou passar pra você”. E

era tão incrívi, éé Ciro, que quando ela me ensinava hoje, amanhã ela ia perguntar, mandar eu

rezar, do mesmo jeito eu num faiava um, nem…

Ciro: Já tava na memória.

Naldi: Já tava na mimória. Tarra na mimória. Agradeço muito a Deus e amo ela, e peço

sempre pra ela mim ajudar cada vez mais. Peço sempre a ela, todo dia falo com ela.”Mãe véa

me ajude cada vez mais, a sinhora me ajudou, continue me ajudando na graça de Deus... pois

é Ciro

Ciro: Só voltando aqui, os pais da senhora, o pai da senhora era da Paraíba?

Naldi: Era. Era. Papai é nasci, era nascido, natural da Paraíba. Ele nasceu na Capivara,

manicípio de Uiraúna.

Ciro: Aí o nome dele completo?

Naldi: Siverino Izidóro Ferreira de Lima. E o pai dele era Izidóro, agora o sobrenome dele é

que eu não sei, Ciro.

Ciro: E a mãe da senhora é da Baixa Grande né?

Naldi: É.

Ciro: Nome completo?

Naldi: É, Maria Francisca da Conceição.

...

Ciro: E ela assim, a irmandade dela era do Quati né, porque o pai dela o pai dela já era viúvo.

A irmandade da mãe da senhora né, irmã de Vicente Bode né?.

Naldi: É.

Ciro: Vicente Bode né?.

Naldi: Pronto, era Vicente Bode, era era era irmão de mamãe porque é assim, ele era viúvo, já

tinha ... ... com muito filho e com mamãe mermo, só foi, e com minha vó mermo só foi

mamãe. Só mamãe só. ... Eu acredito que

Ciro: De novo sobre a vó da senhora, pode dizer Felipe? Sobre avó da senhora que a senhora

disse que aprendeu muita coisa.

Naldi: É aprendi muita coisa com minha avó, experiência de, assim, de quando eu não tivesse

nada na minha casa, assim, de alimento pra mim nem pra meus filhos, eu não falasse, não

relatasse pra ninguém, nem se lastimasse. Eu falasse pra Deus e pedisse a Deus que no outro

dia aparecia. Aí Ciro eu ficava assim em dúvida, “Mãe Véa como é que a senhora diz que eu

não diga pra ninguém, só diga pra Deus, e como é que vai chegar na minha casa?” Ela disse “

ói minha fia, ele mostra um meio de uma uma pessoa aparecer e lhe ajudar.” Pois num é

mermo, Ciro! Tu acredita que é desse jeito?

Ciro: E até hoje a senhora faz?

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Naldi: Até hoje, Ciro eu digo a tu, ói tem dia que eu tô necessitando muito duma coisa aqui

em casa eu num falo pra ninguém. De madrugada, quatro horas da manhã eu me acordo e

rezo. E converso com Deus o que tá faltando, que tá necessitando, Ciro ói aparece uma pessoa

que eu num tô nem imaginando; “Naldi eu tenho dez reais pra tu” “Naldi eu tenho vinte aqui

reais pra tu” “Naldi eu tenho aqui uma garrafa de feijão pra tu”. E aparece.

Ciro: Deus sempre mostra.

Naldi: Deus sempre mostra.

Ciro: E assim quem quem descobre o dom, o dom é gratuito, a avó da senhora nunca cobrou

pelas rezas?

Naldi: Não, nunca cobrou Ciro. E uma coisa eu te digo, isso ela dizia “minha fia não se negue

sua oração pra ninguém e nem cobre de ninguém nada, porque aí foi um dom que Deus lhe

deu. Quando Deus andou no mundo foi rezando e curando viu? Nunca cobrou nada de

ninguém. Aí é assim, Ciro, as pessoa me procura pra fazer as oração eu faço “Naldi, eu

alcancei oh muié obrigado, você rezou, fez oração pra mim agora alcancei o que eu queria, é

quanto?” “Mulher, né nada. Porque ninguém vende as palavras de Deus por nada nesse

mundo. (... ... ) Pessoa assim, uma pessoa me dá dez reais, me dá quinze reais, porque eu

também eu gosto muito de ter minha velinha em casa, Ciro porque assim ciro, se eu rezar pra

você, ali eu gosto de ter uma velinha, acender pa seu anjo de guarda lhe proteger sabe? E aí,

mais deu cobrar tanto, isso eu não faço não, eu num tenho isso não.

Ciro: E assim, as principais devoções da senhora hoje? Os principais santos que a senhora

reza?

Naldi: Os santos? As imagens que você fala? Os santos?

Ciro: Os santos.

Naldi: Éé, é São José, que é meu protetor, que me protege de todas as ... ... . É São José,

Senhora Aparecida e Nossa Sinhora da Conceição. É os santos mais de minha devoção, tem

mais santos mas o santo do meu dia mesmo é São José. É um santo que toda hora, eu fecho os

olhos e tô vendo ele, ele me ama e eu amo ele toda hora porque tudo o que eu peço, Ciro vou

contar o que aconteceu comigo. Eu me achei numa situação muito difícil lá em Luís Gomes e

um filho muito doente em São Paulo, pricisando de mim ajudar e querendo vir pra minha

casa. Aí, Ciro, imaginei assim “eu vou na prefeitura pedir uma ajuda pra mim mandar meu

filho vim embora. ... Ciro, eu fui lá na prefeitura, num tinha ninguém. Cheguei no “Dubas”

viu? o prefeito tava no Dubas. Eu entrei lá aí contei minha situação. Ele falou assim, o

prefeito falou assim que não podia me ajudar no momento e que a prefeitura tava sem

condições de ajudar nessa situação aí. Ciro, ele me deixou muuuito triste. “Meu Deus o quê

que eu vou fazer, pa meu filho chegar até aqui?” Ciro eu fui lá po meu quarto, me ajoelhei,

rezei e pedi a Deus e abaixo de Deus, Nossa Senhora, o santo do meu dia foi São José. Me

ajoelhei lá no meu quarto, rezei e pedi. Pois, Ciro eu digo a você, eu digo a você que apareceu

umas muié lá em casa e me ajudaram. Me dero o dinheiro da passagem, me ajudaru na

passagem, fui buscar meu filho, quando eu cheguei com ele em Luís Gomes, elas ajudaro,

procurau a medicação, procuraro isso e aquilo, pa meu fi e ele ficou bonzinho e voltou pra lá.

Ciro: Aí a senhora fala do Santo do guia, um guia espiritual?

Naldi: São José, que é o santo do meu guia, de todas as horas.

Ciro: E o guia que a gente fala, é o anjo? O que é o guia?

Naldi: O guia, deixe eu dizer a você, é a força divina. É São José, porque eu peço a ele, com

as forças divinas dele me mostra. É São José mesmo.

Ciro: O próprio, o guia é o próprio?.

Naldi: É, Ele é meu guia de todas as horas da minha vida.

Ciro: E o santo que a senhora via quando tava…já eram eles, que quando a senhora tava pra

rezar, fechava o olho e via?

Naldi: Era eles...São José, São Francisco, Sinhora da Conceição e Sinhora Aparecida.

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Ciro: A senhora via assim, andando e?

Naldi: Eu andano e contano essas images. Ciro e era um canto tão lindo mesmo Ciro, um

canto tão bonito, tão verde. Eu andava assim e era bem estreitim, as varedinha era tão

estreito, que eu andava assim, todo espaço que eu andava encontrava as imagens ... E eu não

sabia porque (… ...) depois foi quando eu fui descobrir, porque eu já tinha nascido com aquele

dom, de rezar, e então tava precisando de me desenvolver e ajudar as pessoas nas minhas

orações. Ajudar as pessoas. ... E eu me sinto muito feliz.

Ciro: E assim , com o tempo que a senhora além dos santos a senhora foi tendo contato

também contato com os Orixás né? Com a religião mais…

Naldi: Hurumm. Foi, foi.

Ciro: De raízes mais africanas né?

Naldi: Foi, foi.

Ciro: Mas isso aí já foi bem na frente?

Naldi: Já. Foi bem, bem na frente já. Foi bem já bem avançado, bem na frente, bem na frente.

... Pois foi, Ciro foi no início não.

Ciro: Não foi no início não, né? Na descoberta do dom não?.

Naldi: Não. Foi depois com um tempo que eu fui vendo, que eu também tinha que, sabe?

Outras pessoas do bem né? Que viviam nesse mundo fazendo o bem e ajudando as pessoas,

então essas, também me aparecero pra que eu também pudesse lutar com eles também.

Ciro: Desenvolver também né?

Naldi: Desenvolver também.

Ciro: A senhora pode dizer quem são os Orixás da Senhora?

Naldi: Não, não. Num pode dizer.

Ciro: Não pode dizer, né?

Naldi: Pois é Ciro e eu agradeço a Deus todo dia e pelos momento bom que Deus me deu e tá

me dando até hoje. Agradeço muito. Ciro, lá em Luís Gomes, eu chego lá me Luís Gomes,

assim, as pessoas que acreditam muito em Deus e confia muito nas orações. Quando chego lá

em Luís Gomes o pessoal já com aquela fé que tem em Deus e que acredita nas orações, eu

chego lá ói se eu passar dois dias lá rezando no povo eu não dou conta. Não dou conta. Digo a

você. Ói fui sábado, cheguei lá de tarde, fiquei a tarde todinha rezando nas pessoas. as pessoas

que sabiam que eu tava em Luís Gomes, eu tava numa casa “Naldi cê tá onde? Dá pra você

vir aqui rezar em mim?” eu tava naquela casa rezano, outa pessoa ligava e então tirei o dia

assim, sabe? Vim findá nas Casinha ... ...

Ciro: Naldi, e o que o rosário representa pra senhora? Esse que a senhora usa. Eu sempre vejo

a senhora e muitas outras rezadeiras com o rosário.

Naldi: Ééé. Esse rosário, eu acredito em Deus que ele é minha proteção tá? Assim, pra

proteger né? Assim pra porque a pessoa que reza, Ciro, ele reza as pessoas também são muito

perseguida, sabia? Ele também é perseguido. Por mais que você procure fazer o bem, Ciro,

por mais que você procure ajudar, mais inziste sempre a perseguição. E esse rosário, eu

acredito que ele me guarda sabe? Ele me me, assim eu me ... ... esse rosário no meu pescoço

eu tô me achando já, comé que diz? Protegida, sabe?.

Ciro: E a avó da senhora, usava também?

Naldi: Ah ela morreu com rosário. Morreu com rosário. Minha vó morreu com o rosário.

Ciro: E as outras rezadeiras que as senhora conheceu, todas elas usavam?

Naldi: Quando ela achava que ia cair alguma coisa ela só pegava no rosário e dizia aquelas

palavras aí guardava o rosário (pega no rosário e coloca dentro do vestido), minha vó era

assim. Pois é, Tomasa, foi quem criou aquele pessoal de Sr. Gaudêncio, a primeira família

todinha foi minha vó e a segunda família. ...

Ciro: Morreu lá na casa de Seu Gaudêncio?

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Naldi: Era cozinheira, minha vó era cozinheira, era era conhecida em festa, quando havia um

casamento, era convidada pra fazer as festa, cozinhava muito bem. No tempo das festa de

Sinhora Santana, na casa de Dona Chiquita, ela tirava os nove dias de festa lá cozinhando.

Vinha muita gente de fora, de Natal, de fora aquele pessoal, e ela e Bernardina era quem

ficava lá os tempo todo cozinhando. E vó cozinhava muito bem, fazia lombo, era muito

gostosa a comida dela. Realmente, Ciro, eu digo a você outra vez, eu aprendi muitas coisas

que hoje sei, agradeço a Deus e a minha vó, Tomasa.

Ciro: Ela morreu já idosa?

Naldi: Mãe véa morreu, Ciro, eu ia te falar e você falou. Mãe véa morreu, eu acho que mãe

véa tinha uns 90 anos. Sabe porque esse tempo nem minha mãe tinha comé que diz; nesse

tempo aí atrás, Ciro, ninguém ligava de ter documento, de fazer documento, essas corra né?

Então quando minha vó quando morreu, minha vó tinha; eu acho que uns 90 anos. Nem

minha mãe nem meu pai, ééé sabia, ao certo, da idade de mãe véa.

Ciro: Ela faleceu aonde?

Naldi: Ela faleceu na minha casa. Eu morava comigo. Que quando eu fiquei viúva Ciro, eu

casei no primeiro casamento, que eu fiquei viúva, ela não quis morar com mamãe nem quis

morar só, escolheu pá morar mais eu. Eu morava na rua, naquela casa que hoje é de Guerreiro,

eu morava com ela que, ho aquela casa é de meu pai, aí nesse tempo eu não tinha casa,

moradia, fui morar no sítio na casinha de Mundico, no beiço da estrada minha vó morreu ali.

Tomáza morreu ali.

Ciro: Qual era essa casa de Mundico hoje no sítio Oliveira?

Naldi: Desceu a Lagoa de Cima, tem uma casinha assim de lado, era onde eu morava e onde

ela morava comigo. Você sabe onde é.

Ciro: sei, sei

Naldi: Antes de chegar lá em Zezito, uma casinha assim po lado do nascente (faz gesto com a

mão).

Ciro: Era aquela né?

Naldi: É aquela casinha que existe lá hoje, que eu morava com ela, onde ela morreu. Pois é,

foi lá.

Entrevista 2

Entrevista realizada em 29 de fevereiro de 2016, no Sítio Lagoa do Mato em Luís Gomes.

Já tendo avisado a dona Lurdes dias antes, cheguamos à tarde do dia 29 de fevereiro de 2016

em sua residência eu e meu amigo Francisco George da Cruz, morador do sítio Quati, também

conhecido de dona Lurdes desde a infância, pois a mesma foi rezadeira da sua família, o que

não lhe causaria constrangimento e que foi pedido permissão dias antes quando agendamos a

entrevista. Confrme combinamos George realizaria a filmagem enquanto eu entrevistaria com

dona Lurdes. Primeiramente testamos a minha outra filmadora, mas a qualidade do vídeo e do

áudio não estava satisfatória. Então realizamos a gravação em vídeo do celular de George.

Como na entrevista com dona Naldi, a conversa ocorreu de forma espontânea. A gravação da

entrevista depois me foi entregue por Jorge Cruz, irmão de George, que a coletou do celular.

Entrevista - Lurdes

Ciro: Lurdes aí a senhora disse que a, cumé... aprendeu as rezas com um baiano, como a

senhora conheceu esse baiano, foi aqui?

Lurdes: Eu tava lá em casa aí ele passou... lá em casa, eu só sei que ele disse que era cigano

né?Aí ele pidiu irmola, aí Pedo disse que não tinha irmola pa vagabundo, aí ele disse, eu tava

deitada e ele disse é isso mermo.

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Ciro: A senhora morava aonde?

Lurdes: Na Paraíba

Ciro: Paraíba né?

Lurdes: Morei doze ano lá ainda né? Aí ele disse assim , ó você disse que não tem irmola pa

dá e se eu disser que tua mulé ta aí em estado como em cima duma cama e tem remédio pra

ela, encontrou remédio pra ela, vou ensinar remédio pra ela , ele te disse, o que é o remédio,

ele disse pa ameba, eu vou ensinar uu... criolim né? Criulim, muia um cordãozim (gesto

demonstrativo com as mãos) e bota dento dagua e vai pingando num copo d’água aí, o cordão

moiado de criolino aí moia na agua e pinga no copo. fica no li é bem pretim né? Aí fica

branco, aí então fiquei boa da ameba com isso aí.

Ciro: Aí a senhora depois teve contato com esse baiano?

Lurdes: Num vi ele mair não, passou pedindo irmola, Tião disse que não tinha irmola pa

vagabundo, ele disse sua mulé ta aí em cima duma cama aí, ainda não encontrou remédio

ainda a doença dela é no intestino, é ameba, eu vou ensinar remédio pra ela, aí eu sai, ele

ensinou o remédio, aí eu quebrei mie pa ele levar, apanhei fejão, ele disse é isso mermu, num

tinha nada pra me dá, vou levando mie, feijão, cada uma bage tão graúda, a senhora

trabalhou, trabalhei sinhô, apois a sinhora vai ficar boazinha com esse remédio. Aí ensinou

como rezar de criança, ensinou, aí foi embora chegou lá do oto lado, (som de batidas nas

mãos) que eu curo aí deu um grito, será que eu robei? Pa dá pra ele, será que robei? Que ele

chegou ensinando remédio pra mim, porque disse que não tinha nada em sítio e tinha, sabia

quem era né? Às vezes Jesus (som de batidas nas mãos) bate na porta da gente, ... ... e a gente

aí num dá nada aquela pessoa, ta pensando que é né? Apois foi esse baiano que ensinou esse

remédio a eu, chegou lá em cima em Maria de Raimundo, era lugar seco, a menina da canela

seca pegou deu o ligume, sei o que lá e tal , trabalhou bem muito, ela vai morrer trabalhou

demais sei o que lá, eu dei o grito bem forte: será que eu robeiii (gritando)? Dento da roça pra

eu, dá pro baiano... eu vim buscar pra tu, venha vê mais agora , venha , venha vê pra você.

Margarida entrou, Maria de Raimundo disse eu acho é pouco ... ... acunha Lurde, eu gritei

mais forte ainda.

Ciro: Mas assim essas rezas da senhora, de rezar nas pessoas, rezar em quebrante ele ensinou

tudo a senhora nesse dia ou ele ensinou só o remédio mesmo?

Lurdes: Ele ensinou o remédio, ensinou como rezar em criança, ele disse ói Maria a sinhora

tem um probrema, aí eu disse que é? ... ... siga dava vai rezar, eu gosto de uma reza, ... ... aí

disse que eu pra melhorar mesmo quando eu rezasse o Credo, o Pai Nosso e a Armaria, (conta

nos dedos da mão) pa tanger aquelas coisas ruim. ... ... aí comecei a rezar aí fui , fiquei mais

melhor, eu fiquei melhor com a reza dele.

Ciro: Mas antes, antes da senhora conhecer esse baiano a senhora já rezava nas pessoas?

Lurdes: Não eu tinha vontade de rezar e ... ... de pau e ficava bem.

Ciro: A senhora tinha vontade né?

Lurdes: Tinha vontade é.

Ciro: Mas a senhora tinha vontade porque via outras rezadeiras? Ou...

Lurdes: Era não era por que via uma velhinha aí queria dizer a coisa a eu e num falava, eu

num sei ... ...

Ciro: A senhora via essa velhinha mais...

Lurdes: Via a veinha mais, ela dizia que o nome dela era Joaquina.

Ciro: Mas ela era de ... de Lagoa do Mato?

Lurdes: Joaquina num sei.

Ciro: Mas a senhora conheceu ela morando aqui né? Ela morava dona...

Lurdes: Conheci ela morando aqui, Dona Mamédia... da onde era Dona Mamédia era? (faz

entonação tentando lembrar) Telúzia até fala daonde que ela era.

Ciro: Mas ela morava aqui?

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Lurdes: Morava aqui, aqui perto de Maria Nova, Margarida (aponta com o dedo)

Ciro: Simmm, morava perto de Maria Nova ...

Lurdes: Onde tem aquela mandioca era a casa dela ali... reta essa casa de Zé de Juvino, essa

primeira casa.

Ciro: Sim.

Ciro: Pronto?

Alguém: Pronto.

Ciro: Então Dona Lurdes a senhora tinha vontade de rezar quando via Dona Joaquina... mas

nunca tinha rezado antes?

Lurdes: Não, não só o Pai Nosso e quem ensinava era Neném com Mãe Faba ...

Ciro: Mãe Faba era rezadeira?

Lurdes: Mãe Faba era mãe da minha mãe, era parteira.

Ciro: Era parteira?

Lurdes: (balança a cabeça sinalizando um sim)...Era parteira minha mãe Faba ....

Ciro: Aí a senhora tinha vontade de rezar o Pai Nosso, mas não rezava nas pessoas não né?

Lurdes: Quem ensinava a nós era Neném a Mãe de Cosma, nós ia de 6 horas pra lá pra

aprender o Pai Nosso....

Ciro: ...Ok e assim depois desse baiano a senhora começou a rezar nas pessoas lá na Paraíba

ou quando voltou pra cá pro Rio Grande?

Lurdes: Lá a maioria das pessoas ninguém aceitou tinha medo deu... Aí eu fui me peguei a

nossa Senhora de Aparecida pa abrir meus camim, e eu rezava o terço todo dia de 6 hrs, a

santinha desse tamain (indica o tamanho com as mãos) só que as pessoa tinha medo de mim ...

a merma pessoa que tinha medo de mim foi a pessoa que carregou a aliança do meu

casamento, carregou, comprou, .... carregou minha aliança comprou de pão e comeu, só que

ela muito mintirosa. Aí quem tinha medo deu rezando os terço com medo deu descobrir, só

isso aí..

Ciro- Simmm...

Lurdes: Aquela neguinha descobre um bucado de coisa,

Ciro: Isso lá na Paraíba ainda?

Lurdes: Na Paraíba, aquela neguinha preta... ela ta ali, mas no céu ela tá, ói vai descobrir as

coisa. Aí então tinha medo de mim, tinha medo de mim, ninguém queria rezar mais eu, quem

chegava pa rezar mais eu, era Maria Aparecida mermo nome da santa, madinha de Cleidivan

meu que tá hoje em São Paulo.

Ciro: Aí a senhora tinha quantos anos quando conheceu esse baiano?

Lurdes: Eu já tinha Cleidisvan, eu tinha trinta ee... faz oitenta e cinco ano, trinta e seis,trinta e

sete ... (conta nas mãos) trinta e nove ano eu tinha.

C: Aí depois a senhora demorou muito na Paraíba ou voltou a morar aqui?

Lurdes: Nós só fiquemo lá ... (SILÊNCIO) doze ano só.

Ciro: Doze anos?

Lurdes: Vim pra cá em noventa.

Ciro: Noventa né?

Lurdes: Onze de maio de noventa, foi ... dia de domingo.

Ciro: E?.... Quando a senhora voltou a morar aqui como foi que as pessoas aceitaram a reza

da senhora, a senhora contou que tinha aprendido? As pessoas começou a procurar?

Lurdes: Rezando no menino meu, no Cleidisvan, botaram um quebrante nele aí ninguém

descobriu, a rente descobriu que ... a prantinha tinha que tá nele so de cuequinha, tinha que

rezar nele só de cueca... tava incricriado o menino viu? andava com ele no bornó assim,

porque ele tano no braço num dava era curtim (encena com os braços), aí butava ele no bornó

assim, eu fiz o bornó, e carregava pa li, “homi jogue isso fora”, falei assim: “jogue o seu, o

meu deixe aqui comigo, tá no bornó”... quuando rezei nele só de cuequinha ele começou a

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estirar as pernas, o povo até se assombrou, a menina aqui se assombrou com ele se estirando...

aaaaí, daí nos três dias o menino tava bonzim já, mago, fei ... aí eu; leite de gado com ovo,

batido, num tinha liquidificador (faz gestos com as mãos) não né?, aí sei que o menino

quando tinha três ano era desse tamain que não tinha quem dissesse que era aquele (encena o

tamanho) ... mas eu digo a você ... as pessoa ficava assim acreditando, aí ficaro aparecendo pá

rezar, eu fiquei rezando.

Ciro: Então assim, a partir daí foi que as pessoas começaram a conhecer a senhora como

rezadeira?

Lurdes: Fooi, mai não é porque eu quero, isso é, é Deus mermo

Ciro: Mas assim a senhora começou a sentir esse dom que a senhora tinha pra rezar ...

Lurdes: Derde de miudinha ...pode falar.

Lurdes: Derde de miudinha ... de miudinha ... aí eu ficava gostano de ajudar, aí e minha mãe

tu não pode ajudar não tu é muito pequena e sei lá e tal apois não quer que eu ajude ninguém

não então...

Ciro- Só pere aí assim a senhora queria ajudar a rezar? )

Lurdes: Sim...

Ciro: Ajudar as rezadeiras ou a senhora mesmo rezar?

Lurdes: Assim a pés.., a galinha sofrendo, um bode, um cabrito uma coisa, mãe não deixava,

aí meu destino era o que? Selar um cavalo, montar e andar muito cavalo e nunca caí de

cavalo ninhum ... Ali in Antoin de Hermoge (aponta com a mão) eu corria muito, Colorau

dizia assim vai cair, eu dizia sai do mei se não eu passo pu cima, eu nunca caí do cavalo e caí

duma jumenta, fiquei sem fala minha mãe morreu e não sabe que eu fiquei sem fala desse

jeito. Maria fez um chá me deu, tomei lá naquele canto aculá, lá onde tá aquela, o carro vai

passando, (aponta com a mão) tinha uma pinheira aculá né?, e eu fiquei lá estirada, me

acordei com o chazim na boca, a queda fo ... agora dum cavalo nunca eu caí, celado e...

chapéu na cabeça (dá voltas em torno da cabeça com a mão) e depoois meu.

Ciro: Aí assim a senhora pequena nunca tinha rezado né assim nas pessoas não?

Lurdes: Não não (balança com a cabeça dizendo que não) eu tinha vontade de rezar assim nos

cabritos in pinto, mãe dizia tá lezano o pinto vai morrer um sei que lá, e eu ....

Ciro: E assim depois que a senhora voltou pra aqui, aí muita gente começou a procurar a

senhora ?

Lurdes: Por causa que eu rezei em Cleidisvan ele se disincricriou ... tarra todo incricriado,

Deurdete pré de Uiraúna chegou a vê o menino todo incricriado, aí quando eu fiquei andano

lá, aí ei cadê o Cleidivan o menino, tá qui, morreu?, eu não, tá qui, mai é gordim, mais novo

que parece fi de rico, eu digo aqui é leite de gado que ele bebe leite de gado ee com ovo, da

gema do ovo só a gema sabe, comé que pode dá o meu, desse jeito, ela falava assim (sorri

enquanto conta) ...

Ciro: E ... a senhora começou a rezar nas pessoas aqui, começou a ser conhecida como

rezadeira, muita gente procura a senhora?

Lurdes: É é eu num sei se é a fé dele, acho que é a fé dele que né? Eu faço o que eu posso.

Ciro: Então tem, tem quase trinta anos que a senhora é rezadeira aqui?

Lurdes: Vinte e seis.

Ciro: Vinte seis anos... e assim da da infância da senhora quem eram as rezadeiras assim mais

conhecidas do Quati, da Lagoa do Mato?

Lurdes: Era Joaquina Catingueira uma, (SILÊNCIO) eee Luci de zé Nazaro duas ... a ota, ixe

de Lagoa de Dento né?

Ciro: É, e da família da senhora tinha muitas rezadeiras aqui? Das antigas? Quem era que era

família da senhora ?

Lurdes: Maria Nova rezava

Ciro: Maria Nova rezava?

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Lurdes: Cadê a ... ... a ota lembra não... Neném de Faba rezava.

Ciro: A que ensinou a senhora a rezar o Pai nosso?

Lurdes: Sim... acho que Corma aprendeu com ela né?

Ciro: Pronto era filha de Neném de Faba nera?

Lurdes: É é.

Ciro: No caso Mãe Faba não era rezadeira não, era parteira ?

Lurdes: Minha vó era parteira...

Ciro: E assim a senhora tem outras irmãs que são rezadeira , outras primas quem são mais

aqui?

Lurdes: Tiquinha ... quem é a ota minha Nossa Senhora.... lembro mair não, lembro mair não.

Ciro: Mais Tiquinha aprendeu com as rezadeiras daqui?

Lurdes: Num sei como foi que Tiquinha aprendeu não... eu só sei que eu aprendi...

Ciro: Cosma que é prima da senhora também é né rezadeira ?

Lurdes: Corma reza de triadura,

Ciro: Como é que chama?

Lurdes: Carne triada .

Ciro: Carne triada né?

(SILÊNCIO)

Ciro: E assim é mais em adulto?

Lurdes: É do jeito que vinher... do jeito que vinher eu tô rezando, ar pessoa até diz, eu vi

morrer um dia toda leprenta num sei que lá, posso butar a mão on on onde tenho medo de

duença não, é bestera , tê medo de duença ... eu conheci um monte de gente dizendo Cidinha

ia morrer, iam quebrar minhas canela tarra num sei que, num sei que lá, tô com minhas

canela bem direitinha aqui Cidinha tá só o ouro, já interrou um monte já, tá tudo sadio,

Cidinha tá tá boazinha, e mais tem essa, Cidinha tem sorte, se Cidinha adoecer eu for com

Cidinha qua ... ... /... cheguemo, carro... brigado aí meu cunhado... simbora. Cidinha é assim,

Cidinha tá só o ouro, ninguém pode julgar ninguém de nada.

Ciro: E assim a religião da senhora é católica num é ?

Lurdes: É Graças a Deus é.

Ciro: E assim quais são os santos que a senhora reza mais ?

Lurdes: Nossa Senhora Apare, tem muita fé nela, que todo santo a rente tem fé né? que

sempre tem um que a gente se apega .

Ciro: E assim os santos que a senhora ... mais tem devoção?

Lurdes: Nossa Sinhora Aparecida, Nossa Sinhora Santana, Nossa Sinhora do Carmo, e o

principal que é Jesus Cristo porque ele tá no nosso meio toda hora né? ... Primeiro que tudo

aquele lá de cima né Jesus Cristo num é?.

Ciro: E quando... a senhora começou a rezar /... e assim a senhora começou a rezar com

devoção em nossa senhora aparecida como foi? A senhora tinha vontade de rezar e ?...

Lurdes: Butaro a Santinha no mato aí eu tive dó dela pá começo-se assim foi, butaro no mato

aí disseru que num valia nada num sei que lá e aí foi isso truxe pra casa e foi isso, e ... ... lá

todo dia eu rezava e mode eu pedir uma; uma graça alcançada, eu alcançava, acendia uma

velinha agradecia e era assim, aí todo dia eu rezava acendia uma velinha e agradecendo

aquilo que que alcancei, aí povo ficaro com medo de mim, aquela ... ... num sabe com medo,

com medo... desse tamain (encena com as mãos) a Santinha inda truxe pra cá, depois que se

acabôsse .... (levanta e vai buscar a imagem da Santa) tenho mais aí tenho essa que Cidinha

comprou.

Ciro: Certo.

Lurdes: Aí ela me deu , deu, ess, Santinha pa mim (é parecida com que a senhora deu.) era

bem miudinha, aí então tem ela maior porque Cidinha deu, mai eu não tinha não ... eu pego a

minha... eu ia pegar mio mais não quer, chama chama. Pode deixar ela?

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Ciro: Pode, pode.

Lurdes: Ela deu pa mim essa aqui.

Ciro: Mais aqui já muita gente era devota de Nossa Senhora Aparecida? A mãe da senhora?

Não!? Começou com a senhora né?

(SILÊNCIO)

Lurdes: A minha mãe andava com eu muito in Aparecida, eu tinha vontade duma santinha eu

não pe, não pudia comprar ... ... dei um bain, pentiei ... calada... porque quando fui deitar

mais pedo, a nega sem futuro, só ... ... calada

Ciro: A senhora pode falar um pouquinho mais alto),

Lurdes: Aí eu fiquei calada, continuei banhei essa ... ... com sabão e fiquei né ? rezando. Pedo

não reza não, mai tudo dele essa santa. Achei no riacho essa santa que jogaru até enterrada na

area , talvez brincadu com ela lá né? ...

Alguém: Alguma criança.

Lurdes: Foi adulto que jogou.

Alguém: Foi adulto? ...

Lurdes: Zefinha...morava no Uiraúna aí a gente pra lá do Ritiro, daqui pra lá as direita,

Zefinha

Alguém: Eu já vi ela.

Lurdes: Depois de Chica Pala, mãe de Neguim; povo de Chica Pala.

Alguém: Eu vi ela sabádo, eu tava lá em vera quando ela desceu.

Ciro: E assim Dona Lurde, Maria Nova era reza, rezava na pessoa igual a senhora ?

Lurdes: Maria nova rezava de carne criada e era partera, da melhor partera, quem pegou

Celhim de Tikinha foi,Tikinha ia ter Celhim sozinha, aí a pena ela cortou o imbigo.

C: Aí Maria Nova era tia da senhora, prima?

Lurdes: Irmã da minha mãe.

Ciro: Sim era tia da senhora né?

Lurdes: Era... e minha mãe também se pricisava ainda pegava menino ... eu peguei dois na

Paraíba ... ... vinha.. pá pego na hora e boto mai no mundo.

Ciro: Certo.

Lurdes: (dá uma risada) Eu não deixo morrer nããão, parto colado, butarra no carro ... pu

Uiraúna ... ... parto colado, sangue cuáia morre morre, morre na hoora.

Ciro: Recebia as pessoas pra rezar, você rezadeira?

Lurdes: Sim, sim. Com certeza... fazer coisa com raiva num adianta não, com raiva num

adianta não.

(gesto do entrevistador para encerrar a filmagem)

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Entrevista 3

Entrevista realizada no dia 28 de março de 2016, na residência da senhora Cosma no Sítio

Lagoa do Mato em Luís Gomes

A entrevista com a rezadeira Cosma Maria da Silva ocorreu na tarde do dia 28 de março de

2016 na sua casa no sítio Lagoa do Mato, localizada próxima da esrada que dvide a

comunidade me Quati e Lagoa do Mato, conforme acertado anteriormente . Apesar de dona

Cosma não ser, como se fala na comunidade, “minha rezadeira”, ou seja, de eu não frequentar

a sua casa a procura dos ritos, a entrevista se deu de forma tranquila por eu ser frequentador

da comunidade há alguns anos. Chegamos eu e meu amigo José Jorge da Cruz, irmão de

George que fez a filmagem de dona Lurdes, para a entrevista, Jorge realizou a filmagem do

seu celular, depois me passando a gravação. Por ser também morador dão sítio Quati a sua

presença não causou nenhum problema na entrevista.

Entrevista – dona Cosma

Ciro: Essa nossa entrevista é sobre as, as rezadeiras daqui do Quati, aí o interesse da nossa

pesquisa é a senhora falar sobre sua vida sobre a reza, sobre a sua infância com quem

aprendeu ...

Cosma: Eu aprendi com uma tia minha ... uma tia minha, aprendi a rezar com ela. Via ela

rezando né?

Ciro: Ela era daqui do Quati?

Cosma: Eera, tia minha irmã de minha mãe morava ali, pra lá da quadra, pa li, pra lá do centro

num tem umas casinha ali, casa de Zezé de Faba, então ela era irmã de Zé de Faba, morava

ali; tia minha.

Ciro: E como era o nome dessa da tia da senhora ?

Cosma: Luzia.

Ciro: Luzia?!

Cosma: Era.

Ciro: Irmã da mãe da senhora e..?

Cosma: Irmã de minha mãe, irmã de Zé de Faba, irmã de Maria Nova.

Ciro: Sim, irmã de Dona Maria Nova,

Cosma: - É é, é.

Ciro: E como era o nome da mãe da senhora?

Cosma : Maria de Lurde.

Ciro: Maria de Lurdes né?...

Cosma: É.

Cosma: Aí eu aprendi rezar com ela.

Ciro: E ela rezava aqui no Quati em muita gente como era?

Cosma: Rezaaava, a casa dela era cheia de gente, o povo não pudia machucar um dedo

(encena com os dedos) que já corria pra lá, já corria pra lá pa rezar... ééé

Ciro: E assim, qual era o tipo de reza dela ela rezava pra quê?

Cosma: Era assim pa dirmintidura, num sabe, é pa dirmintidura, mesmo caso meu, éé eu rezo

pa dirmintidura, eu num rezo in criança, aqui tem veiz chega o povo, ah issaqui, eu digo ói eu

num sei rezar in in minino que eu num vou dizer que eu rezo né? (risos)

Ciro: Eu lembro até uma vez que eu vim.

Cosma: Muito bem. (Risadas)

Ciro: Pra senhora rezar de mau olhado.

Cosma: Foii.

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Ciro: E num; a senhora disse que não...

Cosma: Ééé, eu rezo , eu rezo pa dirmintiura e quem chegaaqui que manda eu rezar eu num

sei se é a fé né? tem gente que só vei uma veiz...

Ciro: E essa tia da senhora sabe com quem ela tinha aprendido?

Cosma: Não num sei não quem ela aprendeu não né?

Ciro: Aí a senhora já conheceu ela rezando, já conheceu ela adulta?

Cosma: Jáá conheci, já conheci ela rezando já ... já conheci ela rezando ... e nóis papa

praticamente se criemo lá na casa dela.

Ciro: Ela morava ali?

Cosma: Morava ali, pra lá da rua (aponta com o dedo), pra lá do prédio, tinha uma casona lá,

ela morava lá, aí nóis fumo criado lá, bem dizer lá que meu pai morreu eu tinha cinco ano... aí

era quatu irmão, eu Damião, minha irmã que mora im São Paulo e um que morreu, mai véi.

Aí minha mãe trabaiava nas bulandera, aí nóis ficava lá, nóis fumo criada na casa dela, nóis só

vinha pa casa nuis sabádo e nur domingo.

Ciro: Mas ela escolheu a senhora pra passar as reza ou a senhora foi aprendendo com ela?

Cosma: Ééé eu vi ela rezano aí eu comecei eu eu vi os pé qui ela dizia eu, eu di, eu rezava

num sabe, aí um dia eu disse, Bia eu quero rezar, eu quero é rezar, aí ela disse e vô comé qui

você quer rezar aí eu digo eu quero que Bia me ensine que eu já sei... eu via os pé qui ela

dizia num sabe aí eu já in na cabeça eu já aprendia aquilo ali, aí o resto ela mim insinou ... ela

mim insinou.

Ciro: E a senhora tinhas quantos anos quando?...

Cosma: Eu, eu tinha eu a.. na faxa duns quinze ano quando ela mim insinou, quando ela mim

insinou.

Ciro: Quinze anos né?

Cosma : É, era mocinha nova, aí a primera pessoa que eu rezei foi in Antoin de Noca aí

(aponta com o dedo) Antoin de Noca chegou com o pé inchado aqui haha (risos) aí reze aqui

nim meu pé eu digo num sei rezar não, aí eu peguei e rezei no pé de Antoin de Noca. Antoin

só vei duas veiz eu num sei se ele lembra disso, né? Só vei duas veiz, aí na ota veiz eu dis, eu

disse Antoin tu nem vei mais rezar ele disse não que eu já fiquei bom, ficou bonzim do pé, aí

é assim eu num sei se é eu que sei rezar ou se é a fé né? Mar tem gente que vem pa eu rezar só

vem uma veiz e duas veiz.

Ciro: E ela assim, ela ficou feliz em passar pra senhora a reza?

Cosma: Ficooou sim, ficou, ficou feliz .

Ciro: E hoje vem gente procurar a senhora aqui né?

Cosma: Aquii? Ahahaha (risos) de veizinquando chega gente aqui de veizinquando de

veizinquando, quair todo mundo por aqui Lurde reza ali (aponta ligeiramente com o dedo)

mar é difíci o povo ir lá pa Lurde, só vem pra cá pa mim rezar, só vem pra cá.

Ciro: E assim das rezadeiras mais antigas daqui quem a senhora tem mais lembrança além da

da sua tia?

Cosma: Da minha tia? Assim, da merma reza da minha né?

Ciro: Sim.

Cosma: Porque tinha minha vó que era rezadeira também agora minha vó ela rezava in

criança.

Ciro: Aí como era o nome da vó da senhora?

Cosma: Joaquina.

Ciro: Joaquina o quê?

Cosma: Maria Joaquina.

Ciro: era conhecida era Joaquina Bezerra ou Joaquina Catinguera?

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Cosma: Joaquina Catingueira; Joaquina Catinguera que morava numa casinha aí (aponta com

o dedo) ói ela eu sou famia de daqueli minino da rua de Manel Catinguera, Damião

Catinguera, cê conhecia Damião?.

Ciro: Conhecia, Damião,

Cosma: Damião era tii meu, ele era tii meu, era irmão de meu pai, aí minha vó morava ali

numa casinha que tem tem a casa de Maria de Noca qui a casa de Maria de Noca era de taipa

... desse lado, aí tem a cerca de Gabriel? Pra baixo assim (indica e aponta com as mãos) onde

tem aquela mandioca de Damião ali era a casinha dela, casinha de taipa .

Ciro: Então a senhora lembra dela, da ... ...

Cosma: lembro, lembro

Ciro: A tia, quem mais era rezadeira aqui?

Cosma: .... até de outras rezas também...

Cosma : Maria Nova também rezava

Ciro: Rezava pra quê?

Cosma: de, do mermo jeito meu de dirmintidura.

Ciro: Dismintidura né?

Cosma: É. Maria Nova rezava também... aí pronto só essar daqui né? desse tipo aí.

Ciro: Da família da senhora era.

Cosma: É é.

Ciro: A avó da senhora?

Cosma: minha vó rezava in bebê.

Ciro: A tia?

Cosma: Minha duas tia, Luzia e Maria Nova ... que rezava.

Ciro: E assim hoje como que a senhora se sente rezando?

Cosma: Eu me sinto bem (risos)

Ciro: As pessoas reconhecem, procuram?

Cosma: Ééé. Eu me sinto bem quando chega uma pessoa aqui pa peu rezar né?... me sinto

bem mermo.

Ciro: Aí essas rezadeiras nunca sim, cobraram pela reza não?

Cosma: Nããão, (balança com a cabeça também) paa assim, é é coisa dimi de, deu piquena

que o povo dizia né? Que reza ninguém se paga, reza ninguém se dá nem obrigado...

(SILÊNCIO)

Ciro: Ok Então...

Cosma: Reza não dá nem obrigado.

Ciro: Tem que, é que a pessoa recebe o dom e ee....

Cosma: Ééé ... reza não se paga ... né? ...Vejo dizer desde de quando era pequena que eu via

... o povo dizer.

Ciro: Aí hoje aqui de rezadeira só tem a senhora ?

Cosma: É é.

Ciro: Lurdes.

Cosma: Lurde.

Ciro: Tem mais?

Cosma: Não ... tem mar não.

Ciro: e da mesma família a senhora e Lurde né?

Cosma: é... da merma famia, (risos) nóis somo prima...

Ciro: ok. (entrevistador faz cena para parar a gravação)

Cosma: Somo prima eu e Lurde, nossar mãe era...

Ciro: Aí assim a senhora é prima legítima de...

Cosma: Lurde.

Ciro: Aí o nome da mãe dela era ? Cosma: Maria Martina

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Ciro: E da mãe da senhora?

Cosma: Maria de Lurde, da minha mãe.

Ciro: Todas elas filhas de, como era o nome da vó da senhora?

Cosma: Éé´... Maria Mafalda.

Ciro: Era ela que era da família de Zé de Faba?

Cosma - A mãe de Zé de Faba

Ciro: Simm, a mãe de Zé de Faba, simm.

Cosma: Eu sou sobrinha.

Ciro: Sim.

Cosma- Eu sou sobrinha de Zé de Faba, era mãe de Zé, minha mãe, a mãe de Lurde, a mãe da

mãe de Lurde, a mãe de Maria Nova. Maria Mafalda... minha vó

Ciro: Certo e e assim, ela era parteira também? Parteira era mãe Nila né?

Cosma: Mãe Nila.

Ciro: Era irmã dela?

Cosma - Mãe Nila era irmã dela dela... era parteira.

Ciro: No caso sua era avó da senhora que era chamada de Mãe Faba, não né?

Cosma: Mãe Faba

Ciro: Mãe Faba né?

Cosma: Mãe Faba, é hahaha (risos).

Ciro:Ok.

Cosma: Era Mãe Faba, os que eu conheci da parte de meu pai mar os da parte da minha mãe

eu nao conheci não.

Ciro: Quer dizer que a senhora não conheceu os avós da parte da mãe não?

Cosma: Da minha mãe não.

Ciro: Como era o nome deles?

Cosma: Era Pedro Vintura ee Maria Mafalda

Ciro: Maria Mafalda?

Cosma: Era ... num conheci não.

Ciro: Que Maria Mafalda era mãe Faba?

Cosma: Mãe Faba

Ciro: E da parte do pai da senhora?

Cosma: Era Joaquina e Zé Catinguera, chamava Zé Catinguera.

Ciro: Sim... no caso a avó da senhora que era rezadeira da parte...

Cosma: Da, do meu pai.

Ciro: Certo. Da parte da mãe da senhora já aprendeu com uma tia.

Cosma: Com minha tia.

Ciro: Irmã da mãe, né?

Cosma: Irmã da minha mãe.

Ciro: Pode fechar.

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FOTOS

O Fotógrafo

Difícil fotografar o silêncio.

Entretanto tentei. Eu conto:

Madrugada a minha aldeia estava morta.

Não se ouvia um barulho, ninguém passava entre as casas.

[...]

Tive outras visões naquela madrugada.

Preparei minha máquina de novo.

Tinha um perfume de jasmim num beiral de um sobrado.

Fotografei o perfume.

Manoel de Barros.

As fotos abaixo foram tiradas durante a pesquisa de campo. A foto 01 foi tirada por Filipe

Abrantes Cavalcanti no dia 09 de novembro de 2015, em Pau dos Ferros na residência da

rezadeira Ana Naldi da Silva, durante a entrevista. A foto 02 foi tirada por Francisco George

da Cruz, no sítio Lagoa do Mato, na residência da rezadeira Maria de Lurdes Martins da Silva

no dia 29 de fevereiro de 2016. A foto 03 foi tirada no sítio Lagoa do Mato por José Jorge da

Cruz no dia 28 de março de 2016 na frente da residência da rezadeira Cosma Maria da Silva.

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Foto 01 - Ciro e a rezadeira Naldi na sala da sua casa

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Foto 02: Ciro e a rezadeira Lurdes na sala da sua casa

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Foto 03: Ciro e a rezadeira Cosma na frente da sua casa