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UNIVERSIDADE DO EXTREMO SUL CATARINENSE - UNESC CURSO DE HISTÓRIA MORGANA VIEIRA MODOLON A DITADURA MILITAR EM CRICIÚMA: ASPECTOS DA REPRESSÃO E RESISTÊNCIA CRICIÚMA 2013

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  • UNIVERSIDADE DO EXTREMO SUL CATARINENSE - UNESC

    CURSO DE HISTRIA

    MORGANA VIEIRA MODOLON

    A DITADURA MILITAR EM CRICIMA: ASPECTOS DA REPRESSO E

    RESISTNCIA

    CRICIMA

    2013

  • MORGANA VIEIRA MODOLON

    A DITADURA MILITAR EM CRICIMA: ASPECTOS DA REPRESSO E

    RESISTNCIA

    Trabalho de Concluso de Curso, apresentado para

    obteno do grau de Licenciatura e Bacharelado, no

    curso de Histria da Universidade do Extremo Sul

    Catarinense, UNESC.

    Orientador: Prof. Msc. Tiago da Silva Coelho

    CRICIMA

    2013

  • MORGANA VIEIRA MODOLON

    A DITADURA MILITAR EM CRICIMA: ASPECTOS DA REPRESSO E

    RESISTNCIA

    Trabalho de Concluso de Curso aprovado pela

    Banca Examinadora para obteno do Grau de

    Licenciatura e Bacharelado, no Curso de Histria da

    Universidade do Extremo Sul Catarinense, UNESC.

    Cricima, 10 de Dezembro de 2013.

    BANCA EXAMINADORA

    Prof. Tiago da Silva Coelho Mestre (UNESC) Orientador

    Prof.(a) Marli de Oliveira Costa Doutora (UNESC)

    Prof.(a) Marli Paulina Vitali Mestra (SATC)

  • RESUMO

    O presente trabalho busca analisar alguns aspectos das represses e das resistncias existentes

    em Cricima entre 1964 e 1975, perodo que vai do golpe militar at a Operao Barriga

    Verde (OBV). A cidade de Cricima sempre teve grande atuao poltica e social, muito por

    canta das lutas travadas entre operrios e donos de mineradoras. Durante o golpe a cidade

    respondeu ao chamado de resistncia e decretou greve geral, porm o que ocorreu aps este

    perodo pouco trabalhado e discutido. Volta-se a falar de Cricima somente no que tange a

    OBV. Assim sendo, os acontecimentos deste entretempo ficam silenciados, como se a

    represso tivesse acabado com as resistncias na cidade. Assim, o presente trabalho tem por

    objetivo dar visibilidade s personagens que foram emudecidos durante o regime por meio da

    represso. Buscando demonstrar que mesmo com a perseguio e represso por parte do

    Estado, havia aqueles que se opunham ao regime vigente e defendiam outros ideais. Nesse

    sentido, investigado alguns momentos da resistncia, durante o golpe at a implementao

    da OBV, tentando compreender as razes do interesse do regime militar por Cricima. Para

    cumprir tal tarefa utilizado fontes bibliogrficas, jornais e entrevistas. A perseguio aos

    membros do Sindicato dos Mineiros de Cricima e tambm aos militantes comunistas filiados

    ao Partido Comunistas Brasileiro (PCB), exps a cidade nvel nacional como a Cuba

    brasileira. Tal fato trouxe ateno especial regio durante um dos momentos mais violentos

    do perodo militar, foram presos 42 militantes comunistas na OBV, sendo que destes 13

    tinham vnculo direto com a cidade do carvo.

    Palavras-chave: Operao Barriga Verde. Ditadura Militar. Cricima. Resistncia.

  • LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

    AI-1

    AI-5

    ALN

    AP

    ARENA

    CBCA

    CGT

    CLT

    CSN

    DNPM

    ESG

    EUA

    IBAD

    IPES

    MDB

    MNR

    MR8

    OBV

    PCB

    PC do B

    PTB

    UESC

    UDN

    VPR

    Ato Institucional 1

    Ato Institucional 5

    Aliana Libertadora Nacional

    Ao Popular

    Aliana Renovadora Nacional

    Companhia Brasileira Carbonfera Ararangu

    Central Geral dos Trabalhadores

    Cdigo de Legislao Trabalhista

    Companhia Siderrgica Nacional

    Departamento Nacional de Produo Mineral

    Escola Superior de Guerra

    Estados Unidos da Amrica

    Instituto Brasileiro de Ao Democrtica

    Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais

    Movimento Democrtico Brasileiro

    Movimento Nacionalista Rural

    Movimento Revolucionrio 8 de Outubro

    Operao Barriga Verde

    Partido Comunista Brasileiro

    Partido Comunista do Brasil

    Partido Trabalhista Brasileiro

    Unio de Estudantes Secundaristas de Cricima

    Unio Democrtica Nacional

    Vanguarda Popular Revolucionria

    http://pt.wikipedia.org/wiki/Instituto_Brasileiro_de_A%C3%A7%C3%A3o_Democr%C3%A1ticahttp://pt.wikipedia.org/wiki/Instituto_de_Pesquisas_e_Estudos_Sociais

  • SUMRIO

    INTRODUO .......................................................ERRO! INDICADOR NO DEFINIDO.

    1. OS AGENTES ARTICULADORES E O GOLPE DE 1964 ........................................ 18

    1.1. O PR-GOLPE NA CAPITAL DO CARVO .............................................................. 25

    2. AS RESISTNCIAS POSTERIORES AO GOLPE ..................................................... 30

    2.1. AS RESISTNCIAS NA CIDADE DE CRICIMA ..................................................... 37

    3. A OPERAO BARRIGA VERDE ............................................................................. 45

    CONSIDERAES FINAIS ............................................................................................. 57

    REFERNCIAS ................................................................................................................. 60

    ANEXOS..................................................................................................................................64

  • 11

    INTRODUO

    Nos ltimos tempos se encontram em destaque nos veculos miditicos

    especialmente aqueles disseminados via internet acontecimentos que suscitam uma reflexo

    histrica voltada a 1964. Tais reflexes foram intensificadas com a criao da Comisso

    Nacional da Verdade (CNV), criada pela Lei 12.528/2011 e instituda em 16 de maio de 2012,

    que trouxe para debate assuntos voltados ditadura civil militar brasileira1.

    Isso se deu, especialmente, devido aos objetivos da Comisso Nacional da Verdade,

    que tem por finalidade apurar violaes de Direitos Humanos ocorridas entre 18 de setembro

    de 1946 e 5 de outubro de 19882, perodo em que abrange a ditadura militar, instaurada no

    Brasil em primeiro de abril de 1964 e depois de um processo de abertura gradual, chegou ao

    fim em 1984.

    A histria pode ser contada de diversas formas. Sabendo-se que entre 1964 e 1984 o

    Brasil viveu um perodo de ditadura, onde havia censura em grande escala e o regime buscava

    imprimir controle sobre o imaginrio e o cotidiano, pode-se compreender que a histria desse

    perodo tende a ser fortemente vinculada ao Estado e limitada por ele, se enquadrando nos

    paradigmas de uma histria tradicional, no sentido de que tem sempre se concentrado nos

    grandes feitos dos grandes homens, estadistas, generais ou ocasionalmente eclesisticos. Ao

    resto da humanidade foi destinado um papel secundrio no drama da histria3. Assim sendo,

    as representaes construdas sobre o perodo da ditadura militar precisam e vm sendo

    reconstrudas na busca de visibilizar sujeitos at ento esquecidos.

    Nesse sentido, a Comisso Nacional da Verdade mais do que investigar as violaes

    de direitos humanos, busca construir novas as representaes sobre o perodo da ditadura

    militar, visibilizando sujeitos muitas vezes negligenciados pela histria, ou lembrados apenas

    como agitadores, ou terroristas e subversivos. Renegando a outro papel, tambm os

    responsveis pela tortura e morte daqueles que divergiam da forma de pensar do regime e que

    ainda hoje se encontram impunes, amparados pela Lei de Anistia, elaborada logo no fim do

    perodo ditatorial, uma das vantagens da abertura gradual.4

    1COMISSO Nacional da Verdade. Disponvel em: http://www.cnv.gov.br/index.php/institucional-acesso-

    informacao/a-cnv. Acessado em: 15 de novembro de 2013. 2Ibidem. 3BURKE, Peter. A escrita da histria: novas perspectivas. So Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista,

    1992, p. 12. 4LEI de Anistia. Disponvel em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L6683.htm. Acessado em: 17 de

    dezembro de 2013.

    http://www.cnv.gov.br/index.php/institucional-acesso-informacao/a-cnvhttp://www.cnv.gov.br/index.php/institucional-acesso-informacao/a-cnvhttp://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L6683.htm

  • 12

    Tais acontecimentos da atualidade remetem a reflexes voltadas ao perodo ditatorial,

    trazendo tona a necessidade de novas pesquisas, que busquem preencher as lacunas e

    visibilizar indivduos que foram calados pela ditadura.

    Partindo dessa perspectiva, o presente trabalho se faz necessrio, pois pode-se

    observar que o perodo da ditadura civil militar brasileira um tema um tanto esquecido pela

    historiografia em Santa Catarina e Cricima. Em geral, as obras existentes sobre a ditadura

    militar em Cricima concentram-se nos eventos que envolvem o golpe civil militar e a

    Operao Barriga Verde5 (OBV), deixando de lado os acontecimentos entre um episdio e

    outro. Nesse sentido, o presente trabalho busca responder qual a relao existente entre os

    acontecimentos que se sucederam ao golpe militar de 1964 em Cricima e a perseguio aos

    comunistas na OBV, visto que nesse perodo a Cidade de Cricima foi vista como a Cuba

    brasileira6.

    Motivados por essa problemtica, o presente trabalho tem como objetivo, dar

    visibilidade a esse perodo to importante e sombrio da histria brasileira, na cidade de

    Cricima. Trazendo tona personagens que foram silenciados durante o regime por meio da

    represso, mostrando alguns aspectos de sua resistncia. Para isso, tendo em vista a existncia

    de alguns trabalhos que abordam alguns aspectos do golpe e a OBV, este trabalho busca

    investigar, como se deu a relao entre resistncia e opresso em Cricima, entre o golpe e a

    OBV, tentando compreender quais razes levou a ditadura a se interessar por Cricima

    prendendo um grande nmero de militantes polticos da cidade durante a OBV.

    Para isso, preciso pesquisar os sujeitos reprimidos pela ditadura e ampliar a

    compreenso desse perodo, no se limitando a documentos oficiais, pois esses expressam

    uma viso tambm oficial dos fatos, colocando sob os holofotes, grandes estadistas e

    militares. Dialogar com fontes diversificadas se faz necessrio para retirar de um papel

    secundrio milhares de brasileiros, cuja histria ainda hoje incerta. Afinal a ampliao do

    conceito de histria e da compreenso do sujeito, tambm se reflete nas fontes a serem

    utilizadas, como afirma Burke:

    5A OBV foi uma operao militar desencadeada por rgo do Estado para investigar e prender os responsveis

    pela reestruturao do PCB em Santa Catarina. 6Tal expresso foi retirada da entrevista do senhor Ciro Manoel Pacheco para afirmar que a cidade de Cricima

    era um lugar de luta de classes e encontra-se subentendida em documentos oficiais, como o processo jurdico (ACE 019108/89) onde os responsveis pela investigao afirmam que Cricima um reduto de comunistas

    devido a extrema explorao e as precrias condies de vida em que os trabalhadores se encontram. Nesse

    sentido, importante perceber a ambigidade nas origens do termo, cabendo questionar se o termo Cuba

    brasileira partiu dos movimentos resistentes ou foi imposto pela direita de forma pejorativa.

  • 13

    O movimento da histria vista de baixo tambm reflete uma nova determinao para

    considerar mais seriamente as opinies das pessoas comuns sobre seu prprio

    passado do que costumavam fazer os historiadores profissionais. O mesmo acontece

    com algumas formas de histria oral. Neste sentido, tambm a heteroglossia

    essencial nova histria.7

    Devido a isso, neste trabalho, sero utilizadas alm de fontes bibliogrficas, fontes

    documentais e orais. Uma vez que se busca visibilizar movimentos silenciados por

    instituies oficiais, recursos como a histria oral so de suma importncia, pois apesar de a

    histria oral no ser a histria vivida, ela consiste no registro de um depoimento da histria

    vivida, um registro de experincias de pessoas comuns. A histria oral um procedimento

    metodolgico que busca, pela construo de fontes e documentos, registrar, atravs de

    narrativas induzidas e estimuladas, testemunhos8, configurando um meio de se compreender

    a histria e pode, por tanto, exibir a perspectiva dos sujeitos esquecidos pelos registros

    oficiais.

    Alm disso, ao refletir sobre a ditadura civil militar brasileira indispensvel a

    compreenso de alguns conceitos, pois os conceitos norteiam a abordagem terica implcita

    em cada anlise histrica. Nesse sentido, faz-se necessrio compreender primeiramente o que

    define uma ditadura, o que nos leva a adentrar nos campos da histria poltica.

    A histria poltica entre o sculo XIX e XX desfrutou de grande prestgio, no

    entanto, com as renovaes nos paradigmas da histria, a histria poltica sofreu profundas

    crticas e passou por um perodo de descrdito. Posteriormente, com a valorizao da histria

    cultural, a histria poltica ampliou seu campo de pesquisa, se apropriando de novos

    conceitos, como por exemplo, o imaginrio, penetrando nos costumes e comportamentos, e

    fugindo de uma histria apena factual que era centrada apenas nos agentes mais evidentes de

    processos significativamente complexos. Segundo Ren Remond A esfera do poltico

    absorve problemas ou questes que no se colocavam antes e que alis, em alguns casos,

    tornam a sair dela. Os contornos so pouco ntidos, mas hoje em dia poucos domnios

    escapam da poltica9.

    Nesse universo ampliado, uma das perspectivas apresentadas a de cultura poltica,

    que pode ser compreendida como algo alm de simples nmeros, eleies e figuras, mas

    perceptvel nas prticas cotidianas de sujeitos onde compartilham ideologias e experincias de

    7BURKE, op. cit., p. 16. 8DELGADO, Luclia de Almeida Neves. Histria oral memria, tempo, identidades. Belo Horizonte:

    Autentica, 2006, p. 15. 9REMOND, Ren. LINHARES, Maria Yedda (Trad.). Por que a histria poltica? Conferencia. Revista de

    Estudos Histricos, Rio de Janeiro, vol. 7, n. 13, p. 7-19, 1994, p. 17.

  • 14

    pessoas comuns, visto que, a experincia surge porque homens e mulheres (e no apenas

    filsofos) so racionais e refletem sobre o que acontece a eles e ao seu mundo10

    . E apesar de

    ser um conceito polissmico, Rodrigo Pato S Mota, define cultura poltica como sendo,

    Um conjunto de valores, tradies, prticas e representaes polticas partilhado por

    determinado grupo humano, que expressa uma identidade coletiva e fornece leituras

    comuns do passado, assim como fornece inspiraes para projetos polticos

    direcionados ao futuro.11

    Dentro dessa perspectiva, acredita-se que os agentes polticos so movidos por mais

    do que simplesmente idias e interesses, de acordo com Rodrigo Pato S Mota:

    A aplicao do conceito de cultura poltica supe a convico de que os homens

    agem tambm movidos por paixes e sentimentos, como medo, dio e esperana;

    so mobilizados por meio de representaes e imaginrios que constroem mitos e

    heris exemplares, bem como inimigos odientos; e tomam decises por influencia de

    valores construdos em torno da famlia, nao ou religio.12

    Por meio desta concepo, levam-se em considerao os mais diversos sujeitos e

    vozes em sua totalidade e como produtos da cultura em que esto inseridos, permitindo uma

    compreenso mais ampla do perodo da ditadura civil militar brasileira.

    Para isso, deve-se compreender que o conceito de ditadura muito mais amplo, do

    que tido pelo senso comum, onde visto simplesmente como o modelo antagnico

    democracia. Tal conceito maior do que um simples antagonismo e pode se estender para

    alm da poltica. Segundo Marilena Chau, por exemplo, o autoritarismo produto da

    sociedade e possui diversas manifestaes polticas, tendo como uma de suas utilidades,

    encobrir as divises sociais, naturalizando-as.

    A diviso social das classes naturalizada por um conjunto de prticas que ocultam

    a determinao histrica ou material da explorao, da discriminao e da

    dominao, e que, imaginariamente, estruturam a sociedade sob o signo da nao

    una e indivisa, sobreposta como um manto protetor que recobre as divises reais que

    a constituem. Porque temos o hbito de supor que o autoritarismo um fenmeno

    poltico que, periodicamente, afeta o Estado, tendemos a no perceber que a

    sociedade brasileira que autoritria e que dela provm as diversas manifestaes

    do autoritarismo poltico.13

    10THOMPSON, E. P. A misria da teoria. Rio de Janeiro: Zahar, 1984. p.16. 11MOTTA, Rodrigo Patto S. Culturas polticas na Histria: novos estudos. Belo Horizonte: Fino Trao, 2009,

    p. 21. 12MOTTA, Rodrigo Patto S. Ruptura e continuidade na ditadura brasileira. In. Autoritarismo e cultura poltica.

    ABREU, Luciano Amarone. MOTTA, Rodrigo Patto S. (Org). Porto Alegre: Edipucrs, 2013, p. 11. 13CHAU, Marilena. Brasil: mito fundador e sociedade autoritria. So Paulo: Fundao Perseu Abramo, 2000,

    p. 57.

  • 15

    No caso da ditadura civil militar brasileira, um regime autoritrio, onde os dirigentes

    do Estado eram os controladores das armas ao invs de imbudos de autoridade legitimada

    democraticamente, o conceito de ditadura pode ser compreendido a partir de uma reflexo

    sobre o poder, como um modelo de governo que, por no possuir um poder legitimo e

    reconhecido socialmente, utiliza a violncia para se legitimar, empreendendo-a contra seus

    inimigos. Como afirma Hannah Arendt Politicamente falando, insuficiente dizer no serem

    o poder e a violncia a mesma coisa. O poder e a violncia se opem: onde um domina de

    forma absoluta, o outro est ausente. A violncia aparece onde o poder esteja em perigo.14

    No perodo ditatorial brasileiro a violncia foi uma caracterstica efetiva, dirigida

    contra os inimigos criados pelo prprio Estado e que supostamente ameaavam a Ptria (a

    democracia, a cristandade e a famlia) e se personificavam no comunismo e em todos aqueles

    que contestavam de algum modo o governo vigente.

    No entanto, o regime sempre se manteve atrs de mscaras, apresentando-se como

    guardio da democracia e da paz social, de modo que, apesar de a violncia ser calamitosa a

    mesma no se fazia notria, aparecia de formas veladas ou sendo encoberta. Isso porque o

    regime desenvolveu mecanismos de controle que configuravam atravs da represso, o

    autoritarismo do Estado.

    A represso vai alm dos efeitos do poder, reunindo em si vigilncia e punio de

    modo imperceptvel, que ao mesmo tempo amedronta e persuade. Segundo Michel Foucault, a

    represso parte das relaes que permeiam o poder, indo alm de uma conseqncia

    indissocivel do poder. Para Foucault, o poder no somente repressivo, mas consiste em

    rede produtiva, que alm de reprimir produz saberes que a legitima:

    O que faz com que o poder se mantenha e que seja aceito simplesmente que ele

    no pesa s como uma fora que diz no, mas que de fato ele permeia, produz

    coisas, induz ao prazer, forma saber, produz discurso. Deve-se consider-lo como

    uma rede produtiva que atravessa todo o corpo social muito mais do que uma

    instncia negativa que tem por funo reprimir.15

    Nesse sentido, a represso encontra-se em meio s relaes de poder como o

    simples efeito e a simples continuao de uma relao de dominao. A represso seria a

    prtica, no interior desta pseudo-paz, de uma relao perptua de fora16

    .

    Por tanto, durante a ditadura foram desenvolvidos mecanismo e engrenagens,

    visveis ou no, que permitiam o controle. A violncia empreendida contra aqueles que se

    14

    ARENDT, Hannah. Da violncia. So Paulo: tica, 1988, p. 30. 15FOUCAULT, Michel. Microfsica do poder. Rio de Janeiro: Edies Graal, 1979, p.174. 16Ibidem, p.100.

  • 16

    contrapunham ao sistema gerava terror e o medo, que j eram suficientes e eficientes

    enquanto mecanismos de controle e como uma forma de represso. A imagem criada do

    Brasil como pas em desenvolvimento tambm faziam parte das relaes de poder que

    desenvolviam a represso, pois mostravam a nao que as atitudes violentas adotadas pelo

    governo estavam dando resultado.

    No entanto, mesmo dentro deste contexto onde o terror, a violncia e a alienao

    imperavam, houve grupos que se organizaram em instituies oficiais e/ou clandestinas para

    resistir, possvel compreender tambm que a partir do momento em que h uma relao de

    poder, h uma possibilidade de resistncia. Jamais somos aprisionados pelo poder: podemos

    sempre modificar sua dominao em condies determinadas e segundo uma estratgia

    precisa17

    . Assim, no Brasil e em particular na cidade de Cricima, existe a possibilidade de

    observar essas aes de opresso e resistncia a partir dos desdobramentos do golpe at os

    eventos empreendidos pela Operao Barriga Verde.

    Com base em tais conceitos, para atingir os objetivos propostos, o presente trabalho

    no captulo inicial, intitulado Os agentes articuladores do golpe de 1964, ir ambientar em

    cenrio nacional alguns fatores essenciais para a compreenso do golpe de 1964, identificando

    os setores envolvidos no mesmo e sua motivao, fazendo uso apenas de fontes bibliogrficas.

    Para a partir de ento, apontar como a ditadura comandou o Brasil durante seus 21 anos,

    analisando seus momentos de maior notoriedade, como sua legitimao com a implantao do

    Ato Institucional18

    1 (AI-1), seu endurecimento, buscando reprimir as resistncias existentes,

    no pensamento comunista, na figura do Partido Comunista e nas esquerdas armadas, at seu

    enrijecimento, com o Ato Institucional 5 (AI-5).

    No subttulo O pr-golpe na capital do carvo, sero apontados aspectos da

    construo do imaginrio anticomunista em Cricima a partir da analises de artigos do jornal

    Tribuna Criciumense no perodo em que foi articulado o golpe, buscando identificar os

    interesses existentes por de trs dessa construo.

    No segundo captulo, tambm subdividido em duas partes: As resistncias

    posteriores ao golpe e As resistncias na cidade de Cricima, primeiramente ser descrita

    a repercusso nacional do golpe, identificando os movimentos de resistncias que ganharam

    visibilidade nacionalmente e a represso que se seguiu aos mesmo. E em seguida, ser

    analisada a repercusso do golpe na cidade de Cricima, atravs das tenses, da represso e

    17

    FOUCALT, (1979) op. cit., p. 241. 18Os Atos Institucionais foram decretos de natureza jurdica que vigoravam acima da constituio podendo

    modificar ou anular leis estabelecidas pela mesma.

  • 17

    das resistncias, dando destaque a atuao do Sindicato dos Mineiros de Cricima e a atuao

    de sujeitos ligados ao mesmo. No entanto, sem esquecer outros movimentos sociais. Para isso,

    alm das fontes bibliogrficas, sero utilizadas duas entrevistas com militantes polticos

    ligados a esquerda na cidade e um processo judicial.

    No captulo final do trabalho, as anlises se focaro no processo mais violento da

    represso em Santa Catarina, a Operao Barriga Verde, nesse momento ser analisado o

    processo que desencadeou OBV e as prises, para isso sero utilizadas fontes bibliogrficas,

    fontes orais e atas de apurao das eleies de 1974.

  • 18

    1. OS AGENTES ARTICULADORES E O GOLPE DE 1964

    H aproximadamente 49 anos, o Brasil viveu um dos mais turbulentos episdios de

    sua histria. Entre 1964 e 1984 estabeleceu-se no Brasil uma ditadura militar, apoiada por

    setores da sociedade civil.

    O golpe de 1964 no aconteceu casualmente, foi parte de um processo, que em

    anlises mais profundas, levaria em considerao o comportamento de alguns grupos e a

    estrutura da sociedade brasileira, desde 1930, ou antes. Contudo, mesmo nas anlises mais

    simplistas, ao discutir o golpe de 1964 e a ditadura preciso levar em considerao a atuao

    de diversos elementos, compostos por mais de um grupo social, civil e militar, com atuao

    direta ou indireta ao longo do processo.

    Primeiramente, preciso levar em considerao a penetrao do capital estrangeiro

    na economia brasileira. A partir da dcada de 1950, o governo brasileiro passou a possuir um

    modelo econmico mais dependente. Mesmo em momentos anteriores, a dependncia do

    capital estrangeiro, principalmente norte-americano, foi ameaada poucas vezes, de forma que

    nunca chegou a representar um perigo de fato.

    Exemplos desses perodos podem ser observados, por exemplo, no governo de

    Vargas durante o Estado Novo (1937-1945), quando aps instaurar uma ditadura com o apoio

    militar, ao adotar medidas de nacionalizao, Vargas passou a sofrer presso externa e de

    agentes conservadores, at sua deposio. Desse modo,

    Mesmo diminutas e incipientes, as conquistas nacionalistas que o Estado Novo

    trouxera feriam os interesses norte-americanos. Setores afinados com os Estados

    Unidos passaram a conspirar para a deposio de Getlio.19

    No entanto, importante salientar que no contexto do golpe de 1964 e da guerra fria,

    os nacionalistas, apesar de representarem um impasse aos interesses estrangeiros, no se

    enquadravam como um problema. Afinal, os nacionalistas tambm possuam uma postura

    fortemente anticomunista.

    Para os nacionalistas, o comunismo representava a dominao do Brasil por

    ideologias estrangeiras, que tinham suas bases firmadas na luta entre duas classes dentro de

    uma nao, pois na ideologia comunista no de grande relevncia a unidade nacional, mas

    sim o prevalecimento de uma classe sobre outra atravs da revoluo proletria.

    Assim, a luta de classe no era admitida em um estado totalmente nacionalista; os

    19Brasil nunca mais. Petrpolis: Vozes, 1987, p. 56.

  • 19

    brasileiros integralmente deveriam construir uma nao sem cises, e qualquer ameaa de

    destruir essa hegemonia deveria ser considerada uma ameaa de destruir a ptria20

    . Por tanto,

    para os nacionalistas, o comunismo conduziria a nao perda da identidade nacional, atravs

    da diviso da nao em classes antagnicas e conflitantes. Nessa perspectiva, em 1964,

    tambm os nacionalistas foram aliados dos militares.

    Entre 1950 e 1954, Vargas voltou ao poder eleito democraticamente, mais uma vez

    apoiado em propostas nacionalistas, mas os interesses norte americanos j tinham cravado

    em solo brasileiro uma pesada ancora, de difcil remoo21

    .

    A postura nacionalista de Vargas, novamente trouxe uma srie de presses sobre o

    seu governo, desta vez as tenses eram conduzidas por um comando militar, que outrora o

    havia apoiado e que nesse contexto planejava novamente sua deposio. No entanto, em um

    gesto imprevisto, Vargas no abriu mo do controle do Estado, resistindo at as ltimas

    conseqncias. Optou por tirar sua prpria vida, desencadeando reaes populares que

    retardaram um golpe militar apoiado pela direita conservadora, que j estava articulado. De

    acordo com as anlises apresentadas no livro Brasil nunca mais:

    O ato inesperado desencadeou enrgicas manifestaes populares em todo o pas,

    dirigidas contra smbolos da presena do capital norte-americano no Brasil. A

    indignao popular amedrontou a direita militar, que se viu obrigada a interromper

    sua conspirao e aguardar nova oportunidade.22

    Dez anos depois, no contexto do golpe de 1964, a dependncia econmica brasileira

    ainda era significativa, grandes companhias multinacionais e mesmo nacionais dominavam

    a economia, sendo que, os interesses americanos formavam o maior grupo individual de

    investidores estrangeiros, com aproximadamente a tera parte do total do capital

    transnacional23

    . Ou seja, a dependncia econmica brasileira ainda se apoiava

    principalmente em capital norte americano.

    O modelo dependente favoreceu a formao de uma elite orgnica composta por

    indivduos que ocupavam cargos de diretoria, gerncia ou atuavam como tcnicos nas

    indstrias principalmente multinacionais e pelo poder econmico que detinham, possuam

    influncia sobre o governo. Eles se tornariam tambm a vanguarda da classe capitalista,

    20TORRES, Mateus Gamba. "A Justia nem ao Diabo se h de negar": A represso aos membros do Partido

    Comunista Brasileiro na Operao Barriga Verde (1975-1978). 2009.188 f. Dissertao (Mestrado em Histria) Universidade do Estado de Santa Catarina, Florianpolis, p. 46. 21Brasil nunca mais, op. cit., p. 56. 22Ibidem, p. 57. 23DREIFUSS, Ren Armand. 1964: a conquista do Estado. Petrpolis: Vozes, 1981, p. 57.

  • 20

    sistematizando interesses particulares em termos gerais, isto , tornando-os nacionais24

    .

    Eram,

    elites locais ligadas organicamente por laos scio-culturais, padro de vida,

    aspiraes profissionais, interesses decorrentes da sua condio de acionista e

    atitudes econmico-polticas. Estabelecia-se como resultado uma liderana

    internacional de empresrios e membros das diretorias das empresas, dependentes

    dos centros transnacionais e afastados, por tanto, dos presentes problemas sociais de

    seus pases de origem e de suas solues bsicas. Como membros de uma burguesia

    internacional, eles se preocupavam como o crescimento, e no com a independncia nacional.25

    Associados a essa elite, estavam os militares e alguns intelectuais. Esses grupos,

    contavam com veculos essenciais de disseminao ideolgica, sendo eles a Escola Superior

    de Guerra26

    (ESG) e o complexo composto pelo Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais27

    (IPES) e o Instituto Brasileiro de Ao Democrtica28

    (IBAD).

    A Escola Superior de Guerra, criada desde 1948, defendia idias favorveis

    estabilizao do Estado pelo autoritarismo, um dos pontos de sustentao de suas teorias

    encontrava-se na Doutrina de Segurana Nacional, que tinha suas bases na ameaa que a

    subverso comunista representava e, portanto, precisava ser contida. Alm disso, defendia a

    abertura da economia aos capitais estrangeiros, pois era fortemente influenciada pelo

    pensamento norte-americano. O pensamento desenvolvido e disseminado pela ESG exclua

    teoricamente e evitava qualquer mudana estrutural, permitindo, no entanto, uma

    modernizao conservadora29

    .

    A ESG possuiu um papel importante no golpe de 1964, pois a partir de 1963, ESG

    transformou-se na clula pensante aglutinadora das foras que deram o golpe30

    , excluindo

    qualquer participao das camadas populares, a ESG representava uma ligao entre os

    militares brasileiros e a elite, simultaneamente ligando-os aos interesses norte-americanos:

    24DREIFUSS, op. cit., p.72. 25Ibidem, p.72.

    26A Escola Superior de Guerra criada desde 1948 um instituto de altos estudos de poltica, estratgia e defesa,

    integrante da estrutura do Ministrio da Defesa. A Escola Superior de Guerra possua uma estreita relao com o

    governo norte americano, fazendo treinamentos nos EUA e recebendo apoio financeiro, nivelando sua forma de

    pensar com os interesses estadunidenses. 27O Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais fundado oficialmente em 1962 foi resultado da fuso de grupos de

    empresrios organizados no Rio e em So Paulo e rapidamente ganhou a adeso de empresrios de outros

    estados, representava um elemento aglutinador do pensamento anti Goulart, promoveu e financiou campanhas

    anti Goulart. 28O Instituto Brasileiro de Ao Democrtica foi um instrumentos utilizado pelos EUA para promover a

    disseminao da cultura norte americana. Criado em 1959, recebia doaes de empresrios brasileiros e norte americanos. O objetivo era combater o comunismo no Brasil e influir nos rumos do debate econmico, poltico e

    social do pas.

    29Ibidem, p.80. 30CHIAVENATO, Jlio Jos. O golpe de 64 e a ditadura militar. So Paulo: Moderna. 1995, p. 45.

    http://pt.wikipedia.org/wiki/Instituto_de_Pesquisas_e_Estudos_Sociaishttp://pt.wikipedia.org/wiki/Instituto_Brasileiro_de_A%C3%A7%C3%A3o_Democr%C3%A1tica

  • 21

    A ESG como centro nodular de doutrinao para os militares de uma forma

    especifica de desenvolvimento e segurana nacional baseado nas premissas do capitalismo, era tambm um instrumento para o estabelecimento de ligaes

    orgnicas entre militares e civis, tanto no aparelho estatal quanto nas empresas

    privadas. Os industriais e tecno-empresrios ligados estrutura multinacional

    transmitiam e recebiam treinamento em administrao poltica e objetivos

    empresariais. (...) Compartilhando a ideologia de segurana nacional de seus

    equivalentes, esses empresrios via a disciplina e a hierarquia como componentes

    essenciais de um sistema industrial.31

    Assim como a ESG e sua doutrina de segurana nacional, o complexo IPES-IBAD,

    teve grande importncia no processo que desencadearia o golpe de 1964, visto que, foi forjado

    com o intuito de difundir material ideolgico anticomunista e contrrio as polticas

    trabalhistas, sendo conduzida pelas elites.

    O IBAD se expunha nas campanhas de forma mais direta que o IPES, mas as duas

    instituies atuavam com interesses em comum. O IPES era composto por dirigentes de

    empresas e profissionais liberais com as mais distintas convices, o que os unificava, no

    entanto, eram suas relaes econmicas multinacionais e associadas, o seu posicionamento

    anticomunista e a sua ambio de readequar e reformular o Estado32

    , do mesmo modo, o

    IBAD era um grupo de ao expressando os interesses da elite.

    Ambos funcionavam como um meio de organizao da elite contra as polticas

    trabalhistas e sociais do governo Joo Goulart, infiltrando-se politicamente, fazendo

    propaganda e desmobilizando as camadas populares e a classe mdia. Assim,

    A elite orgnica se empenhava na fuso dos militantes grupos antigovernistas que se

    encontravam dispersos. Ela instituiu organizaes de cobertura para operaes

    encobertas (penetrao e conteno) dentro dos movimentos estudantis e operrios e

    desencorajou a mobilizao dos camponeses. Estabeleceu ainda uma bem

    organizada presena poltica no Congresso e coordenou esforos de todas as faces

    centro-direita em oposio ao governo e esquerda trabalhista. A elite orgnica

    tambm estabeleceu o que pode ser considerado como efetivo controle da mdia

    audiovisual e da imprensa de todo o pas. No curso de sua oposio s estruturas

    populistas, ao Executivo nacional-reformista e as foras sociais populares, o

    complexo IPES/IBAD se tornava o verdadeiro partido da burguesia e seu estado

    maior para ao ideolgica, poltica e militar.33

    A classe mdia no pertencia nem a elite e nem ao operariado, mas via no

    desenvolvimento do capitalismo brasileiro uma possibilidade de ascender economicamente e

    manter estvel e seguro seu modo de vida. Eram habitantes comuns de uma cidade da

    31

    DREIFUSS, op. cit., p.80. 32Ibidem, p.163. 33Ibidem, p.164.

  • 22

    Amrica Latina, porm no operrios ou as elites, mas sim a classe mdia, a classe que os

    altos poderes do pas costumam chamar de a opinio publica34

    . De certa forma, a opinio

    pblica se moldava de acordo com o pensamento das elites disseminado efetivamente por seus

    veculos de propaganda, unindo-se a seus interesses. Desse modo, as elites insuflavam uma

    forte mobilizao entre os membros da classe mdia em defesa do anticomunismo e seus

    prprios interesses.

    Esse grupo de pessoas de poder aquisitivo razovel, mostrava-se importante para a

    manuteno da economia dependente, pois era responsvel pelo consumo dos bens suprfluos

    produzidos na indstria, como afirma Dreifuss:

    Contrariamente ao modelo de investimentos dos Estados Unidos em muitos outros

    pases latino americanos, as aes americanas em companhias de utilidade pblica e

    companhias de minerao no Brasil eram relativamente poucas em relao aos

    investimentos americanos na produo de maquinrio, automotores e utilidades domesticas. [...] Esses investimentos eram feitos em sua maior parte em indstrias

    cuja produo ajustava-se a um mercado consumidor de classe mdia e no tanto

    para exportao.35

    Globalmente, o mundo ainda encontrava-se em meio a Guerra Fria, bipolarizado

    pelas foras capitalistas e socialistas, EUA e Unio Sovitica respectivamente. O avano da

    ideologia socialista e a Revoluo Cubana, recente e vitoriosa, aumentavam o interesse e a

    presena norte-americana na Amrica Latina.

    Em 1964, no panorama em que aconteceu o golpe, encontrava-se no poder Joo

    Goulart com a proposta das reformas de base, que longe de representar um perigo ordem

    vigente, propunham criar condies para a acelerao do estabelecimento do capitalismo no

    Brasil, com pequenas melhorias para a populao mais pobre e sua maior participao em

    alguns setores da economia.

    As reformas de base eram amplamente apoiadas por diversos movimentos sociais,

    mas principalmente pelos trabalhadores organizados nos sindicatos que passaram a se

    articular ainda mais consistentemente com a criao da Central Geral dos Trabalhadores

    (CGT). Esse CGT foi recebido pela direita afastada do governo como um espantalho que

    comprovava a iminncia da revoluo comunista no Brasil.36

    Aes como, por exemplo, a reforma agrria, a nacionalizao e desapropriao de

    alguns setores da indstria, como o caso das refinarias de petrleo, acabaram por amedrontar

    34

    TORRES, op. cit., p.40. 35DREIFUSS, op. cit., p.57. 36Brasil nunca mais, op. cit., p. 57.

  • 23

    ainda mais a elite e a classe mdia em seu conservadorismo. Esses grupos percebiam tais

    medidas como indicativos de um governo comunista. Alm disso, em um pas de herana

    rural, a redistribuio das terras independente de como acontecesse ameaava o poder poltico

    de quem as possua at ento. Assim, esses grupos se colocavam contra o governo

    principalmente por medo de alteraes na ordem estabelecida e perda de seus privilgios:

    A burguesia financeira e industrial, por sua vez, aderiu a essa posio retrgrada por

    recear alteraes no modelo de economia dependente brasileiro. [...] Ora, essa

    burguesia estava aliada aos interesses externos e satisfeita com seus privilgios.37

    Somando-se a isso, na Igreja Catlica iniciavam-se tambm movimentos contrrios

    ao governo e suas reformas. Em So Paulo, a materializao disso se deu com a tomada das

    ruas pela Marcha da Famlia com Deus pela Liberdade. Era uma forma de expor que um

    grupo razoavelmente grande da sociedade era favorvel a mudanas no governo, ou seja,

    cerca de 500 mil pessoas desfilaram pelas ruas da cidade em 19 de maro, em uma

    demonstrao de que os partidrios de um golpe poderiam contar com uma significativa base

    de apoio38

    .

    Desse modo, pode-se entender que a Marcha da Famlia com Deus pela Liberdade

    foi uma resposta, uma forma dos agentes articuladores do golpe medirem foras com aqueles

    que representavam uma ameaa a hegemonia das elites e a vertiginosa escalada da classe

    mdia, foi uma forma de conter a ameaa comunista. A fasca que incendiou o movimento

    conservador saiu do pronunciamento de Joo Goulart, durante o comcio das reformas39

    , ou

    seja, o estopim para o desencadeamento da Marcha da Famlia com Deus pela Liberdade se

    originou do impacto causado pelas propostas de base anunciadas no pronunciamento de Joo

    Goulart de 13 de maro de 1964 e na afronta que ele/elas representavam as elites.

    Isso porque, para a Igreja Catlica, o comunismo era colocado em uma balana de

    juzo de valores e avaliado como uma representao do mal, inclusive associado ao diabo, ao

    atesmo e a destruio da instituio familiar patriarcal. Quando na realidade, representava

    uma ameaa ao poder da Igreja Catlica apenas por se apresentar como um novo conjunto de

    regras morais, o que limitaria a atuao e, conseqentemente, o poder da Igreja Catlica na

    sociedade. Ou seja:

    publico e notrio que a Igreja Catlica um dos grupos de poder que possuem,

    37

    CHIAVENATO, op. cit., p. 18. 38FAUSTO, Boris. Histria concisa do Brasil. So Paulo: Edusp, 2002, p. 255. 39TORRES, op. cit., p.41.

  • 24

    desde a poca colonial, maior influencia na vida social e poltica brasileira. O

    comunismo seria um conjunto de idias que poderia contrapor a todo o sistema de

    crenas que possuam os catlicos, constitua-se em um sistema de valores que

    fomentava uma nova moral a ser instituda na sociedade e no deixaria a religio

    encontrar espao para se expandir.40

    Nesse contexto, os militares se viam e eram vistos pelos segmentos da sociedade

    civil que os apoiavam, como os nicos capazes de salvar a ptria da desordem comunista,

    vvida na gesto de Joo Goulart e nos movimentos sociais das camadas populares. Nesse

    sentindo, fazendo uso da ideologia da segurana nacional, desenvolvida e propagada pela

    ESG, implantando o terror com base na ameaa comunista, os militares apresentavam-se

    como os nicos portadores de integridade moral e capacidade de organizao suficiente para

    salvar a ptria e o povo. Segundo Mateus Gamba Torres, a considerao do militar como

    grupo mais preparado a assumir o comando de uma nao pode ser analisado como um dos

    aspectos fundamentais para a tomada do poder pelas armas em 196441

    .

    Todos esses agentes atuaram na consolidao do golpe, o presidente Goulart no

    mediu bem as consequncias de sua ao no comcio de 13 de maro, desagradando os

    interesses econmicos da elite e dos EUA. Tambm deixando descontentes os militares que

    temiam pela quebra de hierarquias dentro da sociedade, fato intensificando pela atuao do

    presidente durante a revolta de marinheiros. Onde marinheiros e fuzileiros navais se

    organizaram para protestar contra a priso de companheiros por razes polticas. O

    movimento era considerado inadmissvel e foi reprimido pelos militares, no entanto, o

    Presidente anistiou os rebeldes, tal prtica foi interpretada como um sinal de que o Presidente

    pretendia enfraquecer as Foras Armadas um dos mais tradicionais argumentos

    anticomunistas era que a ao revolucionria pressupunha a destruio das instituies

    militares42

    .

    A ideologia anticomunista, que j englobava esses dois grupos mobilizou tambm a

    Igreja Catlica, que por sua vez contribuiu para uma articulao maior da oposio. Alm

    disso, a elevada inflao da poca e a instabilidade do quadro poltico favoreciam a pregao

    da direita junto s classes mdias, em favor de mudanas profundas que trouxessem um

    governo forte43

    , um governo que defendesse seus interesses e lhes permitisse maiores

    condies de ascender social e economicamente.

    40Ibidem, p.44. 41

    TORRES, op. cit., p.27. 42Ibidem, p.27. 43Brasil nunca mais, op. cit., p. 58.

  • 25

    1.1. O PR-GOLPE NA CAPITAL DO CARVO

    A histria do Golpe Militar em Cricima se confunde com a histria do carvo, pois

    a cidade possuiu por muito tempo uma forte relao e dependncia econmica com o

    desenvolvimento da indstria carbonfera e seus trabalhadores e trabalhadoras. As duas

    atividades que deram base economia da cidade at 1960 foram basicamente a agricultura e a

    minerao, apenas a partir de 1960 que esse quadro comea a mudar. Segundo Terezinha

    Gascho Volpato,

    A vida econmico-produtiva de Cricima comeou a se diversificar nos anos de 1960. Outros ramos industriais, inexpressivos at ento passaram a ter significado

    econmico e social junto com as duas atividades tradicionais a agricultura e a

    minerao. Comearam a se desenvolver as indstrias cermicas de pisos e azulejos,

    dos quais Cricima hoje o maior produtor da Amrica Latina. Alm deste, o ramo

    de calados e de couro; mecnicos-metalrgicos; de coque; de transporte; de

    alimentos; da construo civil; de servios; de plsticos.44

    A indstria carbonfera sempre foi extremamente dependente das polticas pblicas

    nacionais, configurando um sistema patrimonialista de dominao, o que atraia muitos

    mineradores para o meio poltico. Como afirma Jos Paulo Teixeira, indicando que os donos

    da cidade entre 1930 e 1980 eram os mineradores:

    As carbonferas CBCA Companhia Brasileira Carbonfera Ararangu e Prospera

    (ex-CSN e atual Nova Prospera) so as que melhor expressam o modelo de

    dominao que predominou na cidade, durante dcadas. Mesmo se tratando de

    empresas com regime jurdico diferentes (uma publica e outra privada), ambas se

    desenvolveram sob o sistema patrimonialista de dominao, isto , pela forte

    presena do Estado e suas ligaes com os interesses privados e polticos locais.45

    Em contrapartida ao engajamento poltico dos mineradores, durante algum tempo,

    perpassando o perodo do golpe militar, Cricima tambm foi conhecida, segundo Ciro

    Pacheco, como a Cuba Brasileira. Isso porque equivalentemente ao engajamento poltico

    dos mineradores, os mineiros de Cricima se articulavam poltica e socialmente dentro de seu

    sindicato, o Sindicato dos Mineiros de Cricima, tornando-o um cone de luta, resistncia e

    militncia.

    Entre 1957 e 1964 o Sindicato dos Mineiros de Cricima vivenciou uma fase de

    militncia combativa, segundo Terezinha Gascho Volpato:

    44

    VOLPATO, Terezinha Gascho. Vidas marcadas: Trabalhadores do carvo. Tubaro, SC: Ed. UNISUL, 2001,

    p. 20. 45TEIXEIRA, Jos Paulo. Os donos da cidade. Florianpolis, SC: Ed. Insular, 1996, p. 112.

  • 26

    O perodo compreendido entre dezembro de 1957 31 de maro de 1964

    representou, na histria do trabalhismo sindical dos mineiros de Cricima, a fase de

    militncia na defesa dos interesses imediatos da classe operria.46

    A fase de militncia do Sindicato dos Mineiros de Cricima no foi um fenmeno

    isolado, apesar de o sindicalismo brasileiro ter sido mantido fortemente sob a vigilncia e

    tutela do Estado. De acordo com Volpato, o Sindicato dos Mineiros de Cricima seguia uma

    tendncia nacional, pois os sindicatos, em mbito nacional, passaram a ser ocupados por

    lderes operrios que contestavam a estrutura sindical garantida pela CLT47

    .

    Em Cricima, em simetria com o que acontecia nas demais localidades brasileiras,

    no perodo que antecedeu o golpe civil militar, a imprensa, que em geral era controlada por

    membros da elite, como por exemplo, o Jornal Tribuna Criciumense e a Rdio Eldorado,

    realizaram um importante papel na construo do imaginrio coletivo, apontando para a

    existncia do inimigo comunista. Nessa abordagem, entende-se que o imaginrio faz parte de

    um campo de representaes e, como expresso do pensamento, se manifesta por imagens e

    discursos que pretendem dar uma definio da realidade48

    . Desse modo, o imaginrio no o

    real de fato, nesse sentido, o imaginrio uma relao entre o exposto e as entrelinhas, ou

    entre o significante e o significado, um elemento que busca dar sentido ao real, como afirma

    Sandra Jatahy Pesavento:

    No domnio da representao, as coisas ditas, pensadas e expressas tem um outro

    sentido, alm daquele manifesto. Enquanto representao do real, o imaginrio

    sempre referencia a um outro ausente. O imaginrio enuncia, se reporta e evoca

    outra coisa no explicita e no presente. 49

    Assim, a imprensa criciumense teve um papel importante na construo de

    representaes, alm do real, ou seja, um imaginrio que legitimasse a perseguio ao inimigo

    do Estado e da ordem, que se personificava na figura do comunista, contribuindo tambm

    para legitimar aes que se concretizariam posteriormente em prises e torturas.

    Para construo desse imaginrio, algumas publicaes ganharam destaque no Jornal

    Tribuna Criciumense, como por exemplo, o artigo datado de 26 de junho a 06 de Julho de

    46VOLPATO, Terezinha Gascho. A pirita humana: os mineiros de Cricima. Florianpolis: Ed. UFSC,

    Assemblia Legislativa do Estado de Santa Catarina. 1984, p. 114. 47VOLPATO, (1984) op. cit., p. 121. 48

    PESAVENTO, Sandra Jatahy. Em busca de uma outra histria: imaginando o imaginrio. Revista Brasileira de

    Histria: Representaes, v. 15, n. 29, p.9-27,1995. p. 15. 49Ibidem, p. 15.

  • 27

    1963, intitulado O povo contra a reforma50

    . O texto indicava que em sua totalidade, a

    populao criciumense no aprovava as reformas de base do Presidente Goulart, cabendo

    nesse aspecto, questionar qual povo o Jornal Tribuna Criciumense representava, ou qual parte

    do povo havia sido consultada para que o Jornal afirmasse em seu ttulo que o povo era contra

    as reformas de base.

    Nesse artigo, o jornal se posicionava firmemente contra as reformas de base, dando a

    entender que toda a populao criciumense compartilhava da mesma posio. Defendendo

    que as reformas de base eram uma prerrogativa do comunismo e que partindo delas o Brasil

    seguiria o exemplo de Cuba, tornando-se comunista. O texto d a entender que o comunismo

    se efetiva custa da violao de direitos constitucionais e naturais da populao, deste modo,

    sendo algo negativo e anticristo, como podemos observar no seguinte pargrafo:

    Ora, perguntamos ao Sr. Goulart: Com que direito, ou, baseado em que lei (divina

    ou humana) a terra deve pertencer a quem trabalha? Com essa lgica chegaramos

    concluso de que as fabricas pertencem aos operrios, as casas aos pedreiros e

    carpinteiros que as construram ou a seus inquilinos, maneira do que acontece em

    Cuba no regime Castrista, no primeiro momento da revoluo. Dizemos num

    primeiro momento porque logo a seguir tudo passou para as mos do Estado, como

    no poderia deixar de acontecer em um regime comunista. Onde iramos com esse

    raciocnio?51

    Sabendo o Jornal Tribuna Criciumense durante a dcada de 1960 passou a pertencer

    ao Sindicato dos Mineradores de Cricima52

    , compostos pelos donos das mineradoras e

    consequentemente considerados por Jos Paulo Teixeira os donos da cidade nesse perodo,

    pode-se conjecturar que o Jornal Tribuna Criciumense pertencia a elite orgnica pensada

    por Dreifuss, onde por medo das transformaes que o governo Goulart poderia representar,

    foi partidria do golpe de 1964. Nesse sentido, pode-se perceber o carter tendencioso da

    noticia em oposio ao governo Goulart ao tentar caracteriz-lo como comunista.

    Alm disso, notria a imagem que o jornal Tribuna Criciumense tenta transmitir

    dos mineradores, visto que a minerao era uma das principais atividades econmicas da

    regio. possvel observar uma srie de artigos jornalsticos no decorrer de 1962 e 1963

    sobre aumentos salariais dados espontaneamente pelos mineradores ou a busca para

    oferecer aos mineiros melhores condies de trabalho e de vida, sem a necessidade de greve

    50O povo contra a reforma. Jornal Tribuna Criciumense, 26 de junho a 06 de Julho de 1963. Disponvel em:

    Arquivo Histrico Municipal Pedro Milanez, Cricima, SC. 51O povo contra a reforma. Jornal Tribuna Criciumense, 26 de junho a 06 de Julho de 1963. Disponvel em:

    Arquivo Histrico Municipal Pedro Milanez, Cricima, SC. 52CAMPOS, Sebastio Netto. Uma biografia com um pouco da histria do carvo catarinense. Santa Catarina:

    Insular, 2001, p. 114.

  • 28

    por parte dos trabalhadores. O artigo do dia 05 de fevereiro de 1962 chamava ateno j no

    titulo da noticia: Vinte por cento: Aumento aos mineiros. Bonificao espontnea concedida

    aos mineiros com validade desde 1 de Dezembro de 196153

    .

    A sbita bondade noticiada dos donos das minas exclua outras formas de presso

    dirigidas pelo Sindicato dos Trabalhadores do Carvo e pelos mineiros sobre os empresrios.

    No entanto, esse no era um cenrio real, pois apesar de no haver paralisaes e greves, o

    sindicato se mantinha atuante, por exemplo, segundo Volpato:

    Em 1962 no houve sequer uma paralisao. Contudo, havia muita negociao e

    tomadas de posio bem definidas da categoria. Houve realizao de muitas

    assemblias gerais para tomadas de decises. Havia, em media, uma assemblia por

    ms.54

    Buscava-se construir a imagem do comunista inescrupuloso, anticristo e

    antidemocrtico a exemplo dos acontecimentos em nvel nacional de modo que, j algum

    tempo antes de 1964, preparava-se terreno para um golpe militar. A ttica usada, tanto em

    Cricima como no resto do pas foi o exerccio de desmoralizao do governo que tinha

    frente da Presidncia da Repblica Joo Goulart, enquadrando-o nesses quesitos.

    O temor representado por Goulart pode ser percebido na nota publicada em 8 de

    setembro de 1962, intitulado As foras militares no permitem o golpe55

    . O texto aponta

    para o perigo eminente de um suposto golpe inconstitucional que estaria sendo articulado e

    que seria impedido pela interveno das foras armadas, de modo que, os militares

    incorporaram o papel de salvadores da nao contra o perigo comunista. O texto um aviso,

    de modo que no apresenta nenhum tipo de evidncia concreta da existncia de um golpe

    comunista ou de um golpe militar como alternativa e tambm no cita o nome de Goulart,

    deixando apenas subentendido.

    Seguindo a mesma linha, em um artigo de 20 a 27 de julho de 1963, no qual o jornal

    Tribuna Criciumense expe a entrevista do jornalista paulistano Jairo Pinto de Araujo

    presidente do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Estado de So Paulo o ttulo

    53VINTE por cento: Aumento aos mineiros. Bonificao espontnea concedida aos mineiros com validade desde

    1 de Dezembro de 1961. Jornal Tribuna Criciumense, 26 de junho a 06 de Julho de 1963. Disponvel em:

    Arquivo Histrico Municipal Pedro Milanez, Cricima, SC. 54VOLPATO, Terezinha Gascho. A pirita humana: os mineiros de Cricima. Florianpolis: Ed. UFSC,

    Assemblia Legislativa do Estado de Santa Catarina. 1984. p. 120. 55AS foras militares no permitem o golpe. Jornal Tribuna Criciumense, 08 de setembro de 1962. Disponvel

    em: Arquivo Histrico Municipal Pedro Milanez, Cricima, SC.

  • 29

    tambm chama ateno: Brasil democrtico vencer essa crise56

    . No decorrer da matria, o

    jornalista afirma que:

    Estes homens que a esto, desgovernando o Brasil, passaro. Mas o Brasil eterno

    e h de superar essas crises pr fabricadas com as quais eles procuram esconder a

    realidade e justificar solues anti-democrticas e anti-crists que pretendem impor

    ao povo.57

    No texto acima citado, pode-se notar como o jornal percebia o governo do ento

    presidente Joo Goulart, antidemocrtico e anticristo, transparecendo a imagem de um

    governo prestes a dar um golpe antidemocrtico, posteriormente impedido pela

    revoluo. Ao publicar o artigo, exaltando o entrevistado, conclui-se que o jornal

    compartilhava de sua viso, nesse sentido, o artigo funciona como um aviso para que a

    populao ficasse atenta as intenes do governo: antidemocrtico, anticristo e comunista.

    Alem disso, aps o golpe militar, a imprensa de Cricima na figura do jornal Tribuna

    Criciumense, inicia um perodo de apoio ao regime, apresentando uma srie de matrias que

    apontam para os benefcios trazidos pelos militares. Ttulos, como por exemplo, A fortuna

    do presidente deposto58

    , Governo foi moderado nas cassaes59

    , A Revoluo tem

    compromisso com a grandeza da ptria60

    , Bom para o Brasil, bom para Cricima61

    , 1964:

    j pgina da histria62

    ou A Revoluo e a paz social63

    .

    Contando com essas reflexes, no prximo capitulo ser desenvolvido um panorama,

    a partir de uma reviso bibliogrfica, de aspectos da ditadura no Brasil aps o golpe, pensando

    a partir da perspectiva dos movimentos sociais e da represso. Alm do cenrio nacional,

    sero analisados ngulos das resistncias em Cricima no momento posterior ao golpe, tendo

    como principal fonte a memrias de dois militantes polticos.

    56BRASIL democrtico vencer essa crise. Jornal Tribuna Criciumense, 20 27 de julho de 1963. Disponvel

    em: Arquivo Histrico Municipal Pedro Milanez, Cricima, SC. 57Ibidem. 58A fortuna do presidente deposto. Jornal Tribuna Criciumense, 27 04 de julho de 1964. Disponvel em:

    Histrico Municipal Pedro Milanez, Cricima, SC. 59GOVERNO foi moderado nas cassaes. Jornal Tribuna Criciumense, 27 04 de julho de 1964. Disponvel

    em: Histrico Municipal Pedro Milanez, Cricima, SC. 60A Revoluo tem compromisso com a grandeza da ptria. Jornal Tribuna Criciumense, 06 13 de junho de

    1964. Disponvel em: Histrico Municipal Pedro Milanez, Cricima, SC. 61BOM para o Brasil, bom para Cricima. Jornal Tribuna Criciumense, 09 16 de janeiro de 1965. Disponvel

    em: Histrico Municipal Pedro Milanez, Cricima, SC. 621964: j pagina da histria. Jornal Tribuna Criciumense, 09 16 de janeiro de 1965. Disponvel em:

    Histrico Municipal Pedro Milanez, Cricima, SC. 63A Revoluo e a paz social. Jornal Tribuna Criciumense, 21 26 de dezembro de 1964. Disponvel em:

    Histrico Municipal Pedro Milanez, Cricima, SC.

  • 30

    2. AS RESISTNCIAS POSTERIORES AO GOLPE

    O golpe aconteceu de fato em 31 de maro de 1964, com o deslocamento de tropas

    militares de Minas Gerais para o Rio de Janeiro. As resistncias foram insuficientes para

    cont-lo e o presidente se manteve inerte, segundo algumas verses, por ter conhecimento da

    Operao Brother Sam, que consistia no apoio direto dos EUA por via martima aos golpistas.

    A legitimao do golpe se deu apenas em 9 de abril de 1964, com a implantao do

    Ato Institucional 1 (AI-1). O AI-1 reforava o Poder Executivo, cargo ocupado pelo Marechal

    Humberto Castello Branco, dando incio a cassao de inmeros parlamentares

    democraticamente eleitos e a suspenso de seus direitos polticos por dez anos. Apesar de

    mais discreto que atos institucionais posteriores, o AI-1 deixa clara a ideia de reconstruo

    nacional e de restaurao da ordem. Tudo isso a ser feito pelos comandos militares64

    .

    Estavam inauguradas a ditadura militar e suas diversas formas de represso.

    Os Atos Institucionais serviram para legitimar uma ditadura que era inconstitucional.

    O AI-1, o primeiro de um total de dezessete, demonstrava que inicialmente a inteno dos

    militares, ou pelo menos uma parte deles, era tomar o poder, organizar a casa e sair de cena,

    como j havia acontecido em outros momentos da histria, a exemplo da prpria proclamao

    da Repblica. No entanto, o prazo do primeiro Ato Institucional expirou e outros foram

    criados para substitu-lo e auxili-lo, demonstrando que a ideia inicial de devolver o poder a

    sociedade civil em um regime democrtico estava longe de tornar-se realidade.

    Alm disso, o AI-1 deixava transparecer uma preocupao da ditadura existente em

    seus primeiros anos, demonstrando uma tentativa de parecer um regime constitucional, no

    uma ditadura a revelia da Constituio. A ditadura era em seus primeiros anos, uma ditadura

    mascarada. Havia em meio aos militares uma tenso entre a chamada linha dura e os

    castelistas, inicialmente os castelistas estiveram no controle do Estado, na figura de

    Castelo Branco, mas era preciso controlar as tenses que ainda existiam e a sucesso de

    Castelo Branco, em 1967, abriu as portas para a linha dura. No entanto, tanto nos anos mais

    brandos da ditadura, como na linha dura, a represso era a principal ferramenta que o Estado

    utilizava para governar. Como analisa Elio Gaspari:

    Durante os 21 anos de durao do ciclo militar, sucederam-se perodos de maior ou

    menor racionalidade no trato das questes polticas. Foram duas dcadas de avanos e recuos, ou, como se dizia na poca, aberturas e endurecimentos. De 1964 a

    1967 o presidente Castello Branco procurou exercer uma ditadura temporria. De

    64TORRES, op. cit., p.39.

  • 31

    1967 a 1968 o marechal Costa e Silva tentou governar dentro de um sistema

    constitucional, e de 1968 a 1974 o pas esteve sob um regime escancaradamente

    ditatorial. De 1974 a 1979, debaixo da mesma ditadura, dela comeou-se a sair. Em

    todas essas fases o melhor termmetro da situao do pas foi a medida da prtica da

    tortura pelo Estado. Como no primeiro dia da Criao, quando se tratava de separar

    a luz das trevas, podia-se aferir a profundidade da ditadura pela sistemtica com que

    se torturavam seus dissidentes.65

    importante lembrar que a ditadura prendeu arbitrariamente e torturou desde o

    primeiro momento, e no somente depois de 196866

    . No entanto, de todos os momentos

    decorridos da ditadura, o ano de 1968 representou um perodo de grande importncia,

    especialmente por sua carga de violncia.

    Segundo Mateus Gamba Torres, o movimento estudantil brasileiro no ano de 1968

    associou-se a um combate mais organizado do regime, com protestos mais radicais67

    . Alm

    do quadro geral, onde a arbitrariedade do regime intervinha desmedidamente nas

    universidades, com deposies e indicaes nas reitorias, demisses e punies de professores

    e a proibio de discusses consideradas subversivas. Pode-se entender que, um dos fatores

    que contribuiu para o fortalecimento dessa organizao foi a morte do estudante Edson Luis

    decorrente de um enfrentamento entre a Polcia Militar e estudantes, em 28 de maro de 1968.

    Os policiais invadiram o restaurante alegando que se tratava de um covil de

    agitadores e estudantes profissionais quando, na realidade, era apenas um refgio de pessoas

    que no tinham onde comer68

    . Armados com pedras, os estudantes foram parados pelas balas

    da policia. Edson Luis tornou-se um mrtir porque concentrou a indignao da populao,

    ele haveria de se tornar encruzilhada de todas as raivas69

    , mais especificamente, levou as

    ruas as insatisfaes guardadas desde 1964:

    Havia quatro anos a poltica brasileira estava torta, deformada pela ditadura e pelas

    conseqentes presses que eram exercidas direita e esquerda pelas dissidncias

    do regime e da oposio. A partir da morte de Edson Luis, a contrariedade foi para a

    rua.70

    A partir da morte do estudante Edson Luis sucederam-se agitaes em todo o Rio de

    Janeiro, estendendo-se pelo restante do Brasil. O enterro do estudante mobilizou um grande

    65GASPARI, Elio. Ditadura envergonhada. So Paulo: Companhia das Letras, 2002a. p. 129. 66FICCO, Carlos. Espionagem, polcia poltica, censura e propaganda: os pilares bsicos da represso. In:

    FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucilia de Almeida Neves.O tempo da ditadura: regime militar e movimentos

    sociais em fins do sculo XX. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2003. p. 169. 67 TORRES, op. cit., p.93 68

    GASPARI, (2002a) op. cit., p. 277. 69Ibidem. p. 278. 70Ibidem. p. 278.

  • 32

    numero de pessoas, sensibilizadas com o fato que trazia luz as barbries cometidas pela

    ditadura, como afirma Zuenir Ventura:

    Em 68, a morte de algum, mesmo a de um jovem desconhecido, podia levar o pas

    a uma crise e o povo indignao, como levou naquela sexta feira, 29, em que 50

    mil pessoas acompanharam o corpo de Edson Lus Lima Souto ao Cemitrio So

    Joo Batista.71

    O governo respondeu violentamente s manifestaes, a ponto de atacar na porta da

    Igreja Catlica as pessoas que saam da missa de stimo dia de Edson Luis, causando ainda

    mais indignao, fazendo com que aqueles que se haviam ofendido com o assassinato e se

    fizeram respeitar no enterro foram humilhados na sada da missa72

    .

    A represso e a excessiva violncia empreendidas contra todas as agitaes e na

    missa de stimo dia de Edson Lus, no foram suficientes para conter, naquele momento, o

    movimento estudantil. Ao contrrio, serviram para dar mais visibilidade e apoio esquerda

    pacfica. O ponto alto das manifestaes foi a Passeata dos Cem Mil, que tomou

    significativamente as ruas do Rio de Janeiro, contando com apoio de alguns segmentos da

    Igreja Catlica, polticos que outrora apoiaram a ditadura, artistas e no apenas estudantes

    pobres e desconhecidos, mas a classe mdia, como descreve Elio Gaspari:

    Havia nela a ala dos artistas, o bloco dos padres (150), a linha dos deputados. AIa

    abenoada pelo cardeal do Rio de Janeiro, o arquiconservador d. Jaime Cmara, que

    em abril de 1964 benzera a Marcha da Vitria. Muitas pessoas andavam de mos

    dadas. Todo o Rio de Janeiro parecia estar na avenida. [...] Personagens sados da

    crnica social misturavam-se com estudantes sados do DOPS.73

    Havia um crescimento no apenas nas atividades do movimento estudantil, mas em

    diversos movimentos sociais:

    No movimento operrio a agitao comeou com uma greve dos metalrgicos em

    Osasco, em meados do ano de 1968, a primeira greve operria desde o inicio do

    regime militar. Tudo isso sinalizou aos linha dura que medidas mais enrgicas

    deveriam ser tomadas para controlar as manifestaes de descontentamento de

    qualquer ordem.74

    Nesse contexto, a esquerda dividia-se: de um lado, estavam aqueles que sob a

    influncia do Partido Comunista e de uma liderana de intelectuais esquerdistas procurava-se

    71VENTURA, Zuenir. 1968: o ano que no terminou. So Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2008. p. 93. 72

    GASPARI, (2002a) op. cit., p. 283. 73Ibidem, p. 296. 74TORRES, op. cit., p.93.

  • 33

    manter a legalidade da mobilizao75

    e um outro lado, onde no corao da esquerda, velhas

    dissidncias e novas lideranas mostravam-se dispostas a brigar com a polcia76

    , partindo

    para a luta armada.

    Alm disso, para reprimir os movimentos sociais que comeavam a se fazer

    perceber, o governo brasileiro instaurou o Ato Institucional nmero 5, que impedia qualquer

    possibilidade de atuao dos movimentos sociais, s restava o enfrentamento armado77

    .

    Com o AI-5, a ditadura se despiu de qualquer mscara de legalidade ou democracia e

    demonstrou suas reais intenes, novamente o ditador passou a ter poderes ilimitados,

    restabeleciam-se as demisses sumrias, cassaes de mandatos, suspenses de direitos

    polticos [...] um artigo permitia que se proibisse ao cidado o exerccio de sua profisso.

    Outro patrocinava o confisco de bens78

    . O regime passou a se apresentar no mais como

    temporrio, o AI-5 ao contrrio dos atos anteriores, no tinha prazo de vigncia79

    . Eram os

    Anos de Chumbo:

    Escancarada, a ditadura firmou-se. A tortura foi o seu instrumento extremo de

    coero e o extermnio, o ltimo recurso da represso poltica que o Ato

    Institucional n 5 libertou das amarras da legalidade. A ditadura envergonhada foi

    substituda por um regime a um s tempo anrquico nos quartis e violento nas prises. Foram os Anos de Chumbo.80

    importante ressaltar, que a opo pela luta armada anterior a esse momento, j

    em 1962 encontrava-se nas discusses do Partido Comunista. Segundo Denise Rollemberg,

    No Brasil em 1962, havia ocorrido uma ciso no PCB, resultando na formao do

    PC do B. Nas origens do conflito, o abandono do enfrentamento violento, as crticas

    ao stalinismo e a defesa da luta armada.81

    Houve tambm, uma tentativa comandada por Leonel Brizola, que se encontrava

    exilado no Uruguai, de criar guerrilhas rurais para resistir ao Golpe. Contando com amplo

    apoio Cubano e das Ligas Camponesas que existiam no Brasil antes de 1964 e principalmente

    composto por ex-militares se consolidava o Movimento Nacionalista Rural, o MNR.

    Baseando na teoria do foco guerrilheiro, suas aes:

    75GASPARI, (2002a) op. cit., p. 282. 76Ibidem, p. 283. 77ROLLEMBERG, Denise. Esquerdas revolucionrias e luta armada. In: FERREIRA, Jorge; DELGADO,

    Lucilia de Almeida Neves.O tempo da ditadura: regime militar e movimentos sociais em fins do sculo XX. Rio

    de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2003. p. 48. 78 GASPARI, (2002a) op. cit., p. 340. 79

    FAUSTO, op. cit. p. 265. 80GASPARI, Elio. Ditadura escancarada. So Paulo: Companhia das Letras, 2002b. p. 12. 81ROLLEMBERG, op. cit., p. 65.

  • 34

    ensaiaram a implantao de cinco focos, com destaque para o de Capara, no

    Esprito Santo. Isolados, a populao local ganhou a presena inexplicvel daqueles 14 homens na serra, denunciando-os para a polcia militar do estado. Em abril de

    1967, sem que houvesse enfrentamento, a tentativa de foco tornou-se pblica e seus

    integrantes foram presos. A partir da, Brizola desmobilizou o que seriam os outros

    focos do MNR.82

    Um fator importante na dissidncia da esquerda brasileira foi a grande divergncia de

    idias, existiam inmeros grupos adeptos de diferentes correntes revolucionrias. Em 1968, o

    que houve foi um fortalecimento da opo pela luta armada. A luta armada deve ser

    compreendida alm de uma forma de resistncia ao golpe, pois a esquerda revolucionria

    brasileira, de modo geral, se constituiu dentro de uma conjuntura que colocava a democracia

    como um modelo burgus de governo, as tradies e a cultura poltica no haviam sido

    gestadas segundo referncias democrticas83

    .

    A esquerda armada lutava pela derrubada de um sistema, fortemente influenciada por

    tradies marxistas, defendia a implantao do socialismo atravs da revoluo e a derrubada

    da classe burguesa e seu modelo desigual e dependente. Nesse sentido, a democracia existente

    no Brasil no era vista como um modelo democrtico de fato, mas sim voltada a um seleto

    grupo, negligenciando a maioria. Portanto, a democracia burguesa, liberal, era parte de um

    sistema que se queria derrubar. Aps a revoluo, o socialismo seria o caminho para se chegar

    verdadeira democracia, da maioria, do proletariado84

    .

    Ou seja: O sentido essencial da luta armada no estava na resistncia ditadura

    militar; Era anterior a ela: tratava-se, antes de um projeto poltico de combate a ordem poltica

    e econmica vigente antes de 1964.85

    Devido ao caminho tomado pela esquerda revolucionria com base no pensamento

    marxista, surgiu uma srie de organizaes que durante todo o perodo em que atuaram, o

    fizeram na clandestinidade. Apareceram no cenrio nacional, grupos de resistncia armada de

    ao principalmente na urbana, como a Ao Libertadora Nacional (ALN), a Ao Popular

    (AP), a Vanguarda Popular Revolucionria (VPR) e o Movimento Revolucionrio 8 de

    Outubro (MR-8), entre outros.

    Todos esses grupos praticavam aes apontadas pelo Estado como terrorismo, ao

    mesmo tempo em que o Estado praticava prises no comunicadas, seqestros, torturas,

    82ROLLEMBERG, op. cit., p. 60. 83

    Ibidem, p. 47. 84Ibidem, p. 48. 85Ibidem, p. 54.

  • 35

    invases, etc. No entanto, o terrorismo dos grupos revolucionrios era encarado, em seu

    interior como uma forma de resistncia e sobrevivncia em meio represso, alm de um

    instrumento para a derrubada do regime, as aes nas cidades visavam desapropriao,

    segundo o vocabulrio e as concepes das organizaes, de dinheiro e armas para preparar a

    guerrilha rural e como meio de propaganda da luta86

    . De modo que, devido ao Brasil ser

    um pas de maioria agrria, para a grande parte desses grupos revolucionrios, havia uma

    valorizao da guerrilha rural e as aes urbanas eram apenas meios de viabiliz-las.

    Alm da prtica de desapropriao, era comum o justiamento, que consistia na

    execuo de pessoas que representavam ou estavam ligadas ao Estado Militar e a represso.

    Os seqestros ganharam destaque por ser uma forma de negociar com a Ditadura, uma

    demonstrao de poder, que servia principalmente para libertar presos polticos e tornar

    pblica a existncia da luta armada e dos presos polticos brasileiros. Pode-se dizer que os

    seqestros eram uma forma simblica de derrotar o regime, pois:

    A ousadia destas aes invertia ou aparentemente invertia a correlao de foras

    entre represso e guerrilha, criando a iluso de que alguns guerrilheiros podiam

    vencer os que estavam no poder e as suas potncias capitalistas, simbolizadas por

    seus diplomatas.87

    No entanto, o sucesso das aes armadas elevou o moral dos guerrilheiros e dos

    dirigentes da luta armada, dando-lhes a sensao de possuir mais poder do que realmente

    possuam. Os grupos de guerrilha urbana ainda no estavam prontos para conduzir a situao

    que se seguiu a seus grandes feitos, pois com o crescimento das aes de luta armada tambm

    cresceu a represso do Estado aos grupos que as empreenderam e a todos aqueles que

    poderiam estar envolvidos, de modo que, a esquerda armada acabou sofrendo com a perda de

    inmeros militantes, diminuindo o seu contingente que mesmo anteriormente j no era

    extraordinariamente elevado. Desse modo,

    As aes espetaculares davam esquerda armada uma iluso acerca das suas reais

    condies no enfrentamento. Ao xito dos seqestros, seguiu-se uma represso

    brutal s organizaes, desencadeando inmeras prises e morte de militantes.88

    Aps o sucesso em uma srie de aes, o elemento surpresa com o qual contavam as

    organizaes de luta armada comeou a desaparecer. Tornando-se conhecidos da represso, os

    militantes da esquerda armada passaram a enfrentar as armadilhas que a represso impunha,

    86

    Ibidem, p. 67. 87Ibidem, p. 68. 88Ibidem, p. 69.

  • 36

    tendo de prever e encarar a represso que j esperava por suas aes. Uma das consequncias

    imediatas foi a diminuio do nmero de militantes, que bem verdade nunca foi altamente

    significativo. O quadro comeava a mudar para os grupos da esquerda armada, como afirma

    Elio Gaspari

    Ao longo de 1969 as organizaes esquerdistas brasileiras que se lanaram em atos

    terroristas foram submetidas ao primeiro grande teste que a existncia lhes reservava. Na infncia de sua formao, qualquer grupo revolucionrio beneficia-se

    da falta de informaes da polcia, da capacidade de surpreender seus alvos e do

    apoio de uma rede de militantes cuja fidelidade proporcional segurana que lhe

    faculta a mstica de segredo da organizao. uma fase de esplendor, na qual o

    romantismo dos primeiros tiros se confunde com a sensao de onipotncia

    oferecida pela perplexidade do inimigo. Parece ser a prova factual da clarividncia

    da opo poltica. Na fase seguinte, quando o governo consegue prender

    combatentes, prevenir aes e intimidar o grande crculo da militncia desarmada,

    d-se um teste de madureza para o grupo. Alguns no vivem alm dele, como o

    Colina e o MR-8. Quase todos os outros, mesmo sobrevivendo, j no se organizam

    como a revoluo precisa, mas como a represso condiciona, produzindo uma rotina de gato-e-rato.89

    Ainda que a intensificao da represso ter contribudo para o silenciamento da

    esquerda armada importante acrescentar, que sua derrota no foi decorrente apenas desse

    fato, uma vez que, as vanguardas armadas forjaram-se isoladas, dissociadas das grandes

    massas e do apoio popular, ou seja, a luta armada foi derrotada, uma vez que no houve uma

    relao de identidade entre o seu projeto e os movimentos sociais90

    .

    Apesar disso, as aes de luta armada no cessaram ao final de 1968 com o AI-5, ao

    contrrio, 1969 foi o ano de seus grandes feitos, como por exemplo, o seqestro do

    embaixador norte-americano Charles Burke Elbrick. As atuaes da resistncia armada

    somente diminuram consideravelmente no final de 1973, com o fim da Guerrilha do

    Araguaia.

    Em geral, o ano de 1968 deve ser compreendido em todo em seu visvel significado,

    pela luta armada, que apesar de ser anterior, ganhou fora por ser a nica alternativa de

    resistncia aps o AI-5. O AI-5 que por sua vez, desmascarou a ditadura dita democrtica, foi

    considerado necessrio para conter os movimentos estudantis e seus mrtires; os movimentos

    artsticos e suas produes que contagiavam os jovens; e todos os movimentos sociais que

    tomavam as ruas pelas mais variadas razes. A violncia, as prises, os seqestros e as

    torturas no comearam aps 1968, mas ali se institucionalizaram. O ano 1968 foi a resposta

    das resistncias, violenta ou no, a violncia de Estado existente no Brasil desde o incio do

    89

    GASPARI, (2002b) op. cit., p. 57 90ROLLEMBERG, op. cit., p. 52.

  • 37

    golpe.

    2.1. AS RESISTNCIAS NA CIDADE DE CRICIMA

    O golpe civil militar de 1964 repercutiu em todo o Brasil e na cidade de Cricima

    no foi diferente. Houve aqui tambm resistncia do movimento estudantil e sindical, de

    modo que at mesmo alguns reflexos da luta armada chegaram cidade. Para o presidente do

    Sindicato dos Mineiros de Cricima, Jorge Feliciano, Cricima foi a cidade que resistiu ao

    golpe at a ltima hora91

    .

    Com a deflagrao do golpe civil militar, a Central Geral dos Trabalhadores (CGT)

    decretou greve geral em todo o pas. O Sindicato dos Mineiros de Cricima acatou as ordens

    da CGT, alm disso, apesar da censura aos meios de comunicao, em Cricima a Rdio

    Difusora continuava funcionando ativamente, servindo como um instrumento de resistncia

    da classe operria. Segundo entrevista concedida pelo senhor Ciro Pacheco,

    No golpe de 64, o Sindicato de Cricima era um sindicato atuante. Isso conhecido a

    nvel de Brasil. Inclusive, era considerado pelo militares, Cricima era uma Cuba,

    era um regime de Fidel Castro, que no tinha nada disso, [sic]. Ento deram o golpe

    e ns fizemos a greve geral... Quando se deu o golpe ns paramos. Enquanto o

    Sindicato tinha voz ainda, a Rdio Difusora tava no ar, ns paramos. Ficou tudo

    parado.92

    Ciro Pacheco afirma que, no momento em que foi deflagrado o golpe, a Rdio

    Difusora estava no ar convocando os trabalhadores para a greve geral. Como uma forma de

    prevenir represso, ele e um companheiro, com o jipe do Sindicato foram em direo a

    Tubaro averiguar a proximidade em que os militares estavam. Ciro afirma ainda, que para os

    militares, os membros da direo do sindicato estavam aguardando armados pela chegada dos

    militares cidade:

    Difusora no ar. Convocando os trabalhadores [sic]. E ai a coisa fechou mesmo, eu

    no era muito de poltica, eu estava na base. A eu peguei, eu e um primo, Vamos

    Jorge?. Fomos a Jaguaruna ver se o Ernesto tava vindo, que era pra proteger os

    companheiros. Que a gente no sabia [sic]. A chegamos em Jaguaruna, eles estavam

    vindo, ns voltamos, o jipe quebrou na viagem, pegamos uma carona e viemos

    embora. E a, tudo bem, entraram. Pra ele, ns estvamos todos armados dentro da

    chapa. Viemos embora, cada um pra sua casa e a foi todo aquele barulho, da

    revoluo, do golpe n.93

    91FELICIANO, Jorge Joo. Entrevista concedida Janete Tichs. Em 20 de outubro de 1992, p. 2. 92

    PACHECO, Ciro Manoel. Entrevista concedida Marli de Oliveira Costa. Balnerio Rinco, SC. Em 22 de

    setembro de 2012, p. 11. 93Ibidem, p. 11.

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    De acordo com a entrevista do sindicalista Jorge Feliciano, concedida a Terezinha

    Gascho Volpato, alm do Sindicato, os mineiros que ouviram pela Rdio tambm aderiram a

    greve. Segundo narra Jorge Feliciano:

    O Sindicato dos Mineiros de Cricima acatou a palavra de ordem da CGT. Pela

    manh do dia 1 de abril, quando o sindicato foi as empresas mineiras, a fim de fazer parar o trabalho, algumas delas cujo os operrios ouviram pela rdio a palavra de

    ordem da CGT, j estavam paradas.94

    Nota-se em todos os depoimentos, o valor dado rdio, sendo esta a Rdio

    Difusora. Em entrevista, Ciro Pacheco afirma que a Rdio Difusora era uma rdio considerada

    a rdio dos trabalhadores. A Rdio Eldorado era considerada a rdio dos patres, que de fato

    era95. Segundo Rodrigo Garcia da Rosa, a Rdio Difusora foi criada como um veculo de

    comunicao voltado ao operariado, uma alternativa a Radio Eldorado, que representava os

    interesses elitistas dos mineradores da regio e transmitia isso em sua programao. Para

    Rosa,

    Na dcada de 1960, o municpio passou a possuir uma outra rdio que servia como

    um elo de ligao entre os trabalhadores e a defesa de seus interesses. A rdio em

    questo era Rdio Difusora de Cricima, que pertencia ao Deputado Federal Doutel

    de Andrade do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB).96

    Durante o golpe, a Rdio Difusora no s estava no ar, mas serviu como um

    mecanismo de resistncia. No caso do movimento estudantil em Cricima, segundo Ana

    Maria Bristot em entrevista concedida Marli Paulina Vitali, na chegada da Revoluo

    Cricima, um grupo de estudantes preparou uma recepo memorvel aos militares, que

    chegavam de trem e eram recebidos com uma chuva de ovos lanados de cima do prdio da

    Rdio Difusora. De acordo com os relatos de Ana Maria Bristot:

    Quando os militares entraram em Cricima, eu fiquei em cima do prdio da Rdio

    Difusora, que estava instalada ao lado da Igreja Matriz de So Jos. Ali tem at hoje

    a Galeria Benjamin Bristot. No primeiro andar funcionava a Rdio Difusora.

    Quando eclodiu a revoluo, que veio de Florianpolis, depois Tubaro, depois

    Cricima, eu via os milicos saltando dos trens. Ns fizemos uma espcie de

    94FELICIANO apud VOLPATO, Terezinha Gascho. A pirita humana: os mineiros de Cricima. Florianpolis: Ed. UFSC, Assemblia Legislativa do Estado de Santa Catarina. 1984, p. 120. 95

    PACHECO, op. cit., p. 22. 96ROSA, Rodrigo Garcia da. A mais popular: histria da Rdio Difusora de Cricima 1962-1977.50f.

    Monografia (Ps-Graduao em Histria) Universidade do Extremo Sul Catarinense. Cricima, p. 16.

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    barricada l na Rdio Difusora. Cada um levou um monte de ovos e jogvamos nos

    milicos.97

    Enquanto a Rdio Difusora se posicionava em favor dos operrios, havia a Rdio

    Eldorado em defesa dos interesses patronais. As duas Rdios disputavam alm da audincia,

    espaos polticos. A Rdio Eldorado pertencia ao minerador udenista Diomcio Freitas98

    ,

    segundo Rodrigo Garcia da Rasa, este veculo de comunicao se apresentou para a cidade

    de Cricima como uma emissora elitista, atrelada aos interesses dos mineradores99

    .

    Em entrevista, ao narrar a greve geral que se seguiu ao golpe, Jorge Feliciano afirma

    que quando chegou a notcia do golpe, aglomeraram-se no centro da cidade somente entre

    mineiros ativos e aposentados cerca de seis mil pessoas. Contando com o apoio da Rdio

    Difusora, o Sindicato seguia articulando a greve. Um dos objetivos da greve era resistir ao

    golpe na cidade, mantendo os movimentos sociais vivos e os militares afastados, para

    aguardar o apoio de Leonel Brizola e dos exrcitos vindos de Porto Alegre. De acordo com

    Jorge Feliciano, a greve foi comandada da Rdio Difusora que havia sido tomada por

    trabalhadores.

    Tomamos conta da Rdio e ficamos comandando a greve da Rdio. A polcia pedia

    pra ns no deixar fazer desordem. [...] A cidade estava sob nosso controle. A

    polcia achava que ns tnhamos armas, mas ns no tnhamos. que na assemblia

    eu havia dito que ns tnhamos armas. E a foi um deus nos acuda porque todo mundo queria arma. Eu dizia que no estava na hora. Foi uma obra pra segurar o

    pessoal. Eu disse que tnhamos armas porque se a polcia descobrisse que ns no

    tnhamos e dentro da assemblia sempre tinha um policial infiltrado ela invadia o

    sindicato. Dez policiais nos colocariam correr. Tive que blefar, fui obrigado. Para

    manter o movimento de p. Nossa esperana era que o exercito de Porto Alegre

    chegasse, repetindo o episdio de 1961. Por isso aguardvamos, por isso resistimos,

    os trabalhadores ficavam no sindicato, em frente a Rdio Difusora, na praa.100

    Nem a polcia nem o Exrcito invadiram a cidade e acabaram com a manifestao,

    pois acreditavam que era uma manifestao armada e que os militantes polticos possuam

    ligaes com o presidente Joo Goulart. Isso configura mais um elemento que aponta para o

    quanto a cidade de Cricima era reconhecida no que diz respeito a resistncia, indicando que

    as pessoas envolvidas no movimento se disponham a resistir at as ltimas consequncias,

    97BRISTOT Apud VITALI, Marli Paulina. Unio dos estudantes secundrios de cricima (UESC): entre o

    conservadorismo e a resistncia. 154f. Dissertao (Mestrado em educao Universidade do Extremo Sul

    Catarinense. Cricima, p. 122. 98 Diomicio de Freitas foi um importante poltico da direita criciumense filiado a Aliana Liberal, foi um dos membros fundadores da UDN em Cricima e durante o regime militar atuou pela ARENA, um grande

    empresrio e dono de um significativo nmero de minas de carvo na regio sul catarinense. 99ROSA, op. cit., p. 16. 100FELICIANO, op. cit., p. 4.

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    enfrentando o regime e seu exrcito.

    Jorge Feliciano afirma que Cricima esperava que o exrcito de Porto Alegre

    repetisse o feito da campanha da legalidade que havia acontecido anos antes, logo aps a

    renncia de Jnio Quadros, quando os exrcitos de Porto Alegre fizeram trincheira entre

    Cricima e Iara. Segundo Jorge Feliciano:

    O exrcito de Tubaro se deslocou at Jaguaruna. De l, eles mandavam emissrios,

    pedindo que fechssemos a Rdio. Ns devolvamos pedindo que eles viessem

    fechar. Eles no vinham porque achavam que ns estvamos armados. A greve, s

    de mineiro, que com aposentado juntava perto de seis mil pessoas na Praa.

    Ficamos nessa at dia 02 de abril. Man