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1 UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ – UNIVALI CENTRO DE EDUCAÇÃO SUPERIOR – CES VII CURSO DE DIREITO NÚCLEO DE PRÁTICA JURÍDICA COORDENAÇÃO DE MONOGRAFIA A REALIZAÇÃO ILUSÓRIA DA TUTELA JURISDICIONAL AOS DIREITOS DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE NOS CASOS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA Monografia apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de bacharel em Direito, sob a orientação do Prof. MSc. Rogerio Dultra dos Santos. ACADÊMICA: CLARISSE WAGNER DA COSTA São José (SC), junho de 2005

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UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ – UNIVALI CENTRO DE EDUCAÇÃO SUPERIOR – CES VII CURSO DE DIREITO NÚCLEO DE PRÁTICA JURÍDICA COORDENAÇÃO DE MONOGRAFIA

A REALIZAÇÃO ILUSÓRIA DA TUTELA JURISDICIONAL AOS DIREITOS DA

CRIANÇA E DO ADOLESCENTE NOS CASOS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA

Monografia apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de bacharel em Direito, sob a orientação do Prof. MSc. Rogerio Dultra dos Santos.

ACADÊMICA: CLARISSE WAGNER DA

COSTA

São José (SC), junho de 2005

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UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ – UNIVALI CENTRO DE EDUCAÇÃO SUPERIOR – CES VII CURSO DE DIREITO NÚCLEO DE PRÁTICA JURÍDICA COORDENAÇÃO DE MONOGRAFIA

A REALIZAÇÃO ILUSÓRIA DA TUTELA JURISDICIONAL AOS DIREITOS DA

CRIANÇA E DO ADOLESCENTE NOS CASOS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA

CLARISSE WAGNER DA COSTA

A presente monografia foi aprovada como requisito parcial para a obtenção do grau

de bacharel em Direito no curso de Direito na Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI.

São José, 16 de junho de 2005.

Banca Examinadora:

______________________________________________________

Prof. MSc. Rogerio Dultra dos Santos – Orientador

______________________________________________________

Profa. MSc. Clarice Paim Arnold - Membro

______________________________________________________

Prof. Esp. Osvaldo Alves de Castro Filho – Membro

3

Dedico este trabalho de conclusão do Curso de

Direito àqueles que a seu tempo e a seu modo, me

inspiraram a acreditar que nenhum obstáculo

impediria que eu alcançasse o melhor, pois aos

olhos de Deus, a tudo sou capaz.

Dedico também, àqueles que lutam por uma

sociedade melhor, por uma Justiça Social e

especialmente, a todos aqueles que têm como

compromisso de vida a defesa dos direitos da

criança e do adolescente.

4

AGRADECIMENTOS

Primeiramente, a Deus, por derramar Sua graça em minha vida e por Ser o

sustentáculo da minha força e da minha sabedoria;

Ao meu pai Lauro, pelos ensinamentos de vida e pela credibilidade na minha

capacidade, orgulho da minha vida;

À minha mãe Ângela, pela oblação às minhas realizações, pela trajetória de

amor, de dedicação e de perseverança, um exemplo de vida;

À minha avó Angelita, pelas palavras doces de esperança e pelo conforto de

seu colo, amor da minha vida;

À pequena Maria Luiza, por iluminar a minha vida, por trazer muitas alegrias e

por me fazer acreditar na concretização dos meus sonhos, absolutamente tudo na minha vida;

Ao Fabiano, pelo apoio, compreensão e incentivo constante, por ter resgatado a

minha felicidade e por me fazer acreditar que no amor, tudo pode, tudo crê e tudo espera,

minha verdadeira e eterna paixão;

A toda minha família, por ser uma verdadeira “família” e por poder trazer um

pouco de cada um dentro de mim e levar os frutos de suas sementes para minha vida, a

construtora dos meus valores;

Aos meus amigos e colegas, especialmente ao Gustavo, pelo carinho, à Magali,

pela confiança, companheira invicta destes cinco anos de batalha, à Catarina, pelo apoio, a

quem eu admiro e especialmente, à Débora, pela sincera amizade e por ter compartilhado

desesperos e conquistas, nesta dura caminhada;

Ao meu orientador, Rogerio, por sua humildade intelectual, por sua importante

contribuição na minha formação acadêmica, pela compreensão nos momentos difíceis que

passei, pela ajuda essencial à elaboração deste trabalho, por ter sido muitas vezes meu

psicólogo e por ser além de professor, meu amigo;

5

Ao Dr. Gercino Gérson Gomes Neto, Promotor de Justiça da Infância e

Juventude de Florianópolis, pela confiança e incentivo no estágio, pelo auxílio a esta

pesquisa, pela experiência de vida demonstrada, pela sua simplicidade e pelo seu carinho,

magnífica pessoa, um lutador pelo reconhecimento e efetividade dos direitos da infância e

juventude;

Aos professores, por contribuírem para minha formação intelectual e

profissional, peculiarmente, àqueles que se tornaram amigos, à Professora Rosângela Barreto

Laus, pelo apoio e amizade e à Professora Clarice Paim Arnold, pelo auxílio e confiança,

também batalhadora pelos direitos da criança e do adolescente.

A todos, o meu sincero e honroso, agradecimento.

CLARISSE

6

“Menininha do meu coração,

eu só quero você, a três palmos do chão.

Menininha não cresça mais não,

fique pequenininha na minha canção.

Senhorinha levada, batendo palminha,

fingindo assustada do bicho-papão.

Menininha que graça é você,

uma coisinha assim começando a viver.

Fique assim, meu amor, sem crescer,

porque o mundo é ruim, é ruim e você,

vai sofrer de repente uma desilusão,

porque a vida é somente o teu bicho-papão.

Fique assim, fique assim, sempre assim,

e se lembre de mim pelas coisas que eu dei.

E também, não se esqueça de mim,

Quando você souber enfim de tudo que eu amei.”

“Menininha” de Vinícius de Morais

7

SUMÁRIO

RESUMO

ABSTRACT

INTRODUÇÃO..................................................................................................................10

1 O SISTEMA PENAL CONTEMPORÂNEO ...........................................................13

1.1 A RELAÇÃO ENTRE A LEGALIDADE E O PROCESSO DE CRIMINALIZAÇÃO13

1.2 A DINÂMICA DO SISTEMA PENAL CONTEMPORÂNEO....................................19

1.3 A ESTRUTURA ORGANIZACIONAL DO SISTEMA PENAL CONTEMPORÂNEO

....................................................................................................................................24

2 A TUTELA JURISDICIONAL AOS DIREITOS DA CRIANÇA E DO

ADOLESCENTE NOS CASOS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA ..........................28

2.1 A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA OU INTRAFAMILIAR, SUAS CAUSAS E SUAS

CONSEQÜÊNCIAS NO DESENVOLVIMENTO DA CRIANÇA E DO

ADOLESCENTE ........................................................................................................29

2.2 AS PREVISÕES LEGAIS RELATIVAS À TUTELA.................................................32

2.2.1 No ordenamento jurídico brasileiro..........................................................................32

2.2.2 No ordenamento jurídico internacional....................................................................39

2.3 AS INSTITUIÇÕES ENCARREGADAS DA TUTELA .............................................41

3 A DINÂMICA DA TUTELA JURISDICIONAL AOS DIREITOS DA CRIANÇA

E DO ADOLESCENTE NOS CASOS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA................48

3.1 PROCEDIMENTOS LEGAIS RELATIVOS À TUTELA ...........................................49

3.2 OS DÉFICITS INSTITUCIONAIS E OS DÉFICITS DE GARANTIA AOS DIREITOS

DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE......................................................................54

3.3 A VINCULAÇÃO DAS CARACTERÍSTICAS DO SISTEMA PENAL

CONTEMPORÂNEO COM A REALIZAÇÃO ILUSÓRIA DA “TUTELA”..............58

CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................................63

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ..............................................................................67

ANEXOS.............................................................................................................................72

8

RESUMO

A tutela jurisdicional é o tema desta monografia, cujo objeto traduz-se na análise do

sistema penal contemporâneo como mecanismo assecuratório aos direitos da criança e do

adolescente nos casos de violência doméstica. A problemática incidente à realização deste

trabalho tangenciou-se na verificação da eficácia do procedimento tutelar aos interesses do

infante nas ocorrências de agressões no âmbito familiar, cujo resoluto restou demonstrado ao

comparar o mecanismo protetivo prescrito na Lei n. º 8.069/90 com àquele que

cotidianamente é efetivado. Para isso, tornou-se necessário resgatar, desde as promessas

declaradas pela Dogmática Penal até a operacionalização do sistema repressor. Tratou-se

também, acerca da violência intrafamiliar, abrangendo suas causas e conseqüências no

desenvolvimento dos seres em peculiar desenvolvimento. Abordou-se a história

contemporânea sobre a conquista do infante no reconhecimento de sua cidadania,

colacionando do ordenamento jurídico internacional, a Doutrina da Proteção Integral e o

Princípio da Prioridade Absoluta, adotados pela Constituição Federal de 1988 e pela Lei n. º

8.069/90. Mencionou-se ainda, acerca das instituições protetivas, abrangendo as principais

agências atuantes em Florianópolis. E, a partir de estudos doutrinários, legislativos e de

entrevista, confirmou-se à hipótese levantada, de que o mecanismo de defesa dos direitos da

infância e adolescência nas ocorrências de violência doméstica é ineficaz, em virtude da

inutilização pelos segmentos competentes das normas previstas na Lei n. º 8.069/90 e da

ausência de uma política de prevenção efetiva. Nas últimas considerações encontra-se a

síntese do presente trabalho, bem como as conclusões extraídas através desta pesquisa.

9

ABSTRACT

The jurisdictional guardianship is the subject of this monograph, whose object

expresses the analysis of the criminal system contemporary as assuring mechanism to the

interest of the children in the cases of domestic violence. The problematic incident of this

work is the verification of the effectiveness of the procedure to tutor to the interests of the

infant in the occurrences of aggressions in the familiar scope, whose remained demonstrated

when comparing the protection mechanism prescribed in Law n. º 8.069/90 with the that one

that daily is accomplished. For this, one became necessary to rescue, since the promises

declared for the Criminal Science until operate of the repressor system. It’s also treated, about

domestic violence, enclosing its causes and consequences in the development of the beings in

peculiar development. It’s approached history contemporary on the conquest of the infant in

the recognition of its citizenship, comparing of international the legal system, the Doctrine of

the Integral Protection and the Principle of the Absolute Priority, adopted for the Brazilian

Federal Constitution of 1988 and Law n. º 8.069/90. It was still mentioned, concerning the

protection institutions, enclosing the main operating agencies in Florianópolis. And, from

doctrinal, normative studies and of interview, confirmed it the hypothesis raised, of that the

mechanism of defense of the interest of infancy and adolescence in the hypotheses of

domestic violence is inefficacious, because of the disable for the competent segments of the

norms foreseen in Law n. º 8.069/90 and of the absence of one politics of attendance it

accomplishes. In the last notes it meets synthesis of the present work, as well as the

conclusions extracted through this research.

10

INTRODUÇÃO

Este trabalho de conclusão de curso constitui-se na convalidação dos anos dedicados

ao estudo do Direito, sob a perspectiva de analisar a tutela jurisdicional aos direitos inerentes

à criança e ao adolescente nos casos de violência doméstica, cujo propósito principal é

verificar a efetividade do sistema penal contemporâneo, como mecanismo protetivo aos

interesses do infante nas ocorrências de agressões no âmbito familiar.

Impõe-se, todavia, a esse horizonte de estudo, uma breve introdução, a fim de que se

procure demonstrar a formulação do problema, a hipótese desenvolvida, os objetivos gerais e

específicos, a justificativa de sua elaboração, a estrutura delineada no transcorrer desta

monografia, bem como, eventuais esclarecimentos que porventura possam surgir acerca do

tema abordado.

São quatro, portanto, os objetivos que concorrem na constituição dos outros

elementos anteriormente citados. O geral, que consiste em verificar a eficácia da tutela

jurisdicional aos direitos da infância e da adolescência nos casos de violência doméstica. Os

objetivos específicos que compreendem: definir a tutela jurisdicional aos interesses inerentes

à criança e ao adolescente nas hipóteses de agressões intrafamiliares, na sua amplitude, sob o

cotejo dos ordenamentos jurídicos brasileiro e internacionais, juntamente com a doutrina

específica ao tema; destacar as instituições ou agências responsáveis pela proteção ao infante

nessas ocorrências, abrangendo suas principais atribuições nesse contexto; e, delinear o

procedimento assecuratório adotado nesses casos, previsto na legislação estatutária, enlaçando

também, o mecanismo atualmente exercido no Município de Florianópolis, Estado de Santa

Catarina.

Almejando alcançar essas finalidades haverá a preliminar necessidade de aprofundar

o conhecimento sobre o complexo sistema penal contemporâneo, objeto a ser examinado no

primeiro Capítulo. A importância dada a esse estudo genérico, deve-se ao fato do assunto

compreender a base fundamental e teórica para toda a pesquisa a ser elaborada.

Desta forma, o primeiro Capítulo compor-se-á por três subcapítulos, sendo que o

primeiro, tratará acerca do Princípio da Legalidade e sua necessidade obrigatória para

legitimar sistema repressivo a operacionalizar o processo de criminalização. Englobará

também, as promessas declaradas pela dogmática jurídico-penal ou ciência criminal, de

racionalização do poder de punir estatal e de segurança jurídica na administração da justiça

penal e, destacará ainda, a sua relevância para a efetivação do mecanismo tutelar.

11

O segundo subcapítulo abordará acerca das formas de atuação do sistema penal

contemporâneo frente à criminalidade, como a seletividade de bens ou pessoas, a etiquetação

ou Teoria da Rotulação (Labelling approach) e a estigmatização. Salientarão também, as

conseqüências procedentes dessa errônea e preconceituosa operacionalização, expostas no

cenário criminal e social atualmente vivenciado.

E, ainda, no terceiro subcapítulo tratar-se-á sobre a estrutura organizacional do atual

mecanismo criminal, destacando as agências ou segmentos que o compõe e suas contribuições

para a eficácia do sistema repressivo por intermédio do exercício harmônico de suas

atividades.

Assim, tratando-se a violência doméstica de um crime, compete ao sistema penal

assegurar os direitos da infância e da adolescência nessas ocorrências. No entanto, para que

seja impulsionada essa atuação, torna-se necessário que hajam normas legais previstas no

tocante às agressões intrafamiliares, tanto de forma protetiva à criança e ao adolescente como

punitiva ao agente ativo do delito.

Ocupar-se-á o segundo Capítulo, preliminarmente, do crime de violência doméstica

ou intrafamiliar, mencionando sinteticamente suas diversas causas, suas formas de ocorrência

(física, sexual, psicológica, abandono e negligência) e seus efeitos no desenvolvimento de um

ser humano peculiar, compondo desta forma, o primeiro subcapítulo a ser abordado.

Ressalta-se que essa peculiaridade só se concretizou para o ordenamento jurídico

pátrio, com a promulgação da Constituição Federal no ano de 1988. E, esta, calcada em

legislações internacionais, introduziu a Declaração dos Direitos Fundamentais da Criança e do

Adolescente, ao estabelecer a “Doutrina da Proteção Integral” e o “Princípio da Prioridade

Absoluta”, que foram ratificados com a promulgação da Lei n. º 8.069/90.

A abordagem das previsões legais existentes, tanto a nível interno, classificadas em

protetivas aos direitos da infância e juventude e punitivas aos pais ou responsáveis pela

conduta desviante, como externo, constituir-se-á o segundo subcapítulo. Logo, no momento

em que ocorrer o descumprimento dessas normas citadas, o sistema penal, por intermédio da

atividade de suas diversas agências ou instituições, possui a legitimidade como parte ativa

para preservar a incolumidade física e mental do infante.

O terceiro subcapítulo do segundo capítulo limitar-se-á a mencionar as principais

instituições encarregadas de colocar em funcionamento todo o aparato legal anteriormente

citado, como a sociedade em geral, o Conselho Tutelar, os profissionais da área médica e

educacional, os psicólogos, os auxiliares, a família, o Ministério Público, o Magistrado, dentre

outros. Salientará também, as funções inerentes a cada um desses segmentos, revelando, por

12

conseguinte, a relevância do bom desempenho de suas atividades na órbita assecuratória aos

interesses do infante.

O último Capítulo objetivará em seu primeiro subcapítulo, com base nos preceitos

previstos no Estatuto da Criança e do Adolescente, analisar acerca dos procedimentos

estabelecidos para proteger o infante quando da ocorrência de agressões no âmbito familiar.

Já o segundo subcapítulo, destacará os principais déficits institucionais e seu resultado

gerador de deficiências de garantia aos interesses da infância e juventude, através do estudo

da legislação e de entrevista e incluirá, nesse intróito, o mecanismo cotidianamente utilizado

no Município de Florianópolis, Estado de Santa Catarina.

O intuito da realização da referida análise caracterizou-se como a pedra angular para

a formulação do problema incidente no presente estudo, pois anteriormente à elaboração desta

monografia, ao comparar o procedimento previsto na Lei n. º 8.069/90 com àquele que

realmente é efetivado, surgiu a seguinte indagação: O sistema penal contemporâneo, como

mecanismo repressivo-tutelar aos direitos inerentes à infância e adolescência nas ocorrências

de violência doméstica, é eficaz?

Como hipótese de pesquisa desenvolvida, afirma-se a inexistência de uma tutela

jurisdicional efetiva que assegure ao infante a não violação de seus direitos fundamentais nos

casos de agressão intrafamiliar. Esta afirmação restar-se-á devidamente demonstrada no

decorrer do terceiro Capítulo, especialmente, quando será ressaltada, a conseqüência dos

déficits institucionais e de garantias ao infante no âmbito sócio-penal, momento este que se

poderá correlacionar as funções, as formas e os efeitos de atuação do sistema penal com a

“ilusória” proteção certificada por muitos como eficaz.

O desenvolvimento de todos esses assuntos anteriormente mencionados que formam

o sustentáculo estrutural da presente monografia será elaborado com base em estudos

legislativos e doutrinários, cujos autores e obras estarão previstos nas citações diretas e

indiretas e também, ao final nas referências bibliográficas e por intermédio da entrevista

anexada.

13

1 O SISTEMA PENAL CONTEMPORÂNEO

Este primeiro capítulo abordará a temática do sistema penal contemporâneo, base de

toda pesquisa a ser realizada e desenvolver-se-á em três subcapítulos distintos e

correlacionados, que compreendem: o primeiro, abrangerá preliminarmente, acerca do

Princípio da Legalidade, destacando sua função legitimadora na órbita do sistema repressor,

proporcionando a este, a operacionalização do processo de criminalização.

Em seguida, abordar-se-á sobre as promessas declaradas pela dogmática jurídico-

penal ou ciência penal, de racionalização do poder de punir estatal e de segurança jurídica na

administração da justiça penal, salientando ainda, neste subcapítulo, a vinculação entre o

paradigma da ciência do direito penal com o mecanismo criminal.

No segundo subcapítulo, explanar-se-á acerca da dinâmica do moderno sistema

penal, abrangendo inicialmente, acerca do processo de criminalização, tanto primária como

secundária. Após, ressaltar-se-á sobre as principais formas de atuação do mecanismo

repressor em face da criminalidade, como a seletividade, a rotulação ou etiquetamento e a

estigmatização, mencionado também neste subcapítulo, as conseqüências oriundas dessa

operacionalização, que abarcam desde a ocorrência de uma Cifra Negra da Delinqüência até à

ineficácia do sistema penal contemporâneo no combate à violência.

E, o terceiro subcapítulo, tratará acerca da estrutura organizacional do atual sistema

penal, abordando as principais agências ou segmentos que o compõe, iniciando com atividade

do legislador e finalizando com as atribuições da execução penal, destacando ainda, a

importância da atividade harmônica entre as instituições tutelares visando a produção de em

um sistema repressivo eficaz.

1.1 A RELAÇÃO ENTRE A LEGALIDADE E O PROCESSO DE CRIMINALIZAÇÃO

Em linhas gerais, entende-se por sociedade o “agrupamento de pessoas que mantêm

entre si relações convencionais, políticas, econômicas, sociais, culturais, obedecendo a regras

14

comuns de convivência, sob um ordenamento jurídico que as rege.” 1 O homem, dentro dessa

sociedade, interage com outros da mesma espécie, com alguns de forma mais próxima e com

outros de maneira afastada, sendo que dessas interações, formam-se grupos. Estes se

subdividem em grupos dominantes e grupos dominados, o que acaba resultando na estrutura

de poder de cada comunidade.2

Essa estrutura de poder controla socialmente as condutas das pessoas que formam a

comunidade, desde os grupos que se localizam mais afastados do centro de poder,

denominados “marginalizados”, pois ficam à margem da sociedade, até os grupos que se

encontram perto do centro de decisões.3 “Esta ‘centralização -marginalização’ tece um

emaranhado de múltiplas e protéicas formas de ‘controle social’ (influência da sociedade

delimitadora do âmbito de conduta do indivíduo).” 4

Existem diversos tipos de “controle social” na comunidade, entre eles: os “difusos”,

como por exemplo, o político, o econômico, o educativo, o religioso etc e também, os

“especializados”, como por exemplo, no âmbi to jurídico, o complexo sistema penal.5

Portanto, o sistema penal consiste em um subsistema de controle social, ou seja, um controle

sociopenal.6 Para ZAFFARONI e PIERANGELI, o sistema penal stricto sensu consiste no

controle social punitivo institucionalizado, que na prática abarca a partir de quando se detecta ou supõe detectar-se uma suspeita de delito até que se impõe e executa uma pena, pressupondo uma atividade normativa que cria a lei que institucionaliza o procedimento, a atuação dos funcionários e define os casos e condições para esta atuação. Esta é a idéia geral de “sistema penal” em um sentido limitado, englobando a atividade do legislador, do público, da polícia, dos juizes, promotores e funcionários e da execução penal.7

Analisando esse conceito, tem-se que o “controle social punitivo institucionalizado”

possui como pressuposto para sua atuação a existência de um Direito Penal, isto é, de uma

legislação penal, que estabeleça normas regentes das condutas dos indivíduos em uma

1 GUIMARÃES, Deocleciano Torrieri; MIRANDA, Sandra Julien. Dicionário Jurídico. 4ª ed. atualizada. São Paulo: Rideel, 2000, p. 170. 2 Cf. ZAFFARONI, Eugênio Raul; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro: Parte Geral. 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 61. Todas as citações desta monografia apresentar-se-ão com grifo no original. 3 Cf. ZAFFARONI, Eugênio Raul; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro, p. 61. 4 ZAFFARONI, Eugênio Raul; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro, p. 61. 5 Cf. ZAFFARONI, Eugênio Raul; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro, pp. 61 e 62. 6 Cf. ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão de segurança jurídica: do controle da violência à violência do controle penal. 2ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 33. 7 ZAFFARONI, Eugênio Raul; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro, p. 71.

15

determinada sociedade. Esse ordenamento jurídico deve prescrever o sentido, o alcance e as

finalidades da norma, a fim de que haja uma prática racional e segura do Direito Penal.8

Esse requisito de atuação está diretamente relacionado ao Princípio da Legalidade,

que corresponde ao brocado em latim nullum crimem, nulla poena sine lege, que consiste no

fato de que não há crime, nem pena, sem lei anterior escrita e estrita que o defina.9 Logo, a

partir desse Princípio, a norma se torna a “única fonte incriminadora do Estado” 10 e por essa

razão, visa principalmente, como caráter normativo, a racionalização do poder de punir.11

Em decorrência dessa legitimação de atuação do sistema penal estar vinculada à

legalidade, o Direito Penal possui um caráter programático, ou seja, define normas legais,

estabelecendo-as no ordenamento jurídico para que sejam cumpridas pelo sistema penal frente

à sua violação.12 Essas regras devem ser obedecidas literalmente, não facultando ao

Magistrado aplicá-las da maneira que melhor lhe convenha. Assim, a “p ena não pode

perseguir outro objetivo que não seja o que persegue a lei penal e o direito penal em geral: a

segurança jurídica.” 13

A garantia de segurança jurídica e a racionalização do poder de punir, mencionadas

anteriormente, constituem as promessas declaradas pela Dogmática Jurídico-Penal.14 Esta

também denominada “Jurisprudência -Penal” é concebida pelos membros da comunidade

científica, os penalistas, como sendo a “Ciência do Direito Penal” 15, consistindo, portanto, em

um dos métodos de interpretação do Direito Penal.

Trata-se de uma ciência normativa e não causal-explicativa, em razão de ter como

objeto de análise não os fatos (“ser”), mas as normas (“dever -ser”) penais relativas aos delitos

e às penas.16 A Dogmática-Penal é evidenciada por ANDRADE, como sendo uma

8 Cf. ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão de segurança jurídica, p. 126. 9 Cf. CUNHA, Rosa Maria Cardoso da. O caráter retórico do Princípio da Legalidade. Porto Alegre: Síntese, 1979, p. 56. 10 CUNHA, Rosa Maria Cardoso da. O caráter retórico do Princípio da Legalidade, p. 29. 11 Cf. CUNHA, Rosa Maria Cardoso da. O caráter retórico do Princípio da Legalidade, p. 32. 12 Cf. ZAFFARONI, Eugênio Raul; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro, p. 91. 13 ZAFFARONI, Eugênio Raul; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro, p. 103. 14 A Dogmática Jurídico-Penal constitui a espécie do gênero Dogmática Jurídica. Cf. ANDRADE, A ilusão de segurança jurídica, p. 103. A “Dogmática -Jurídica pode ser concebida, precisamente, como um paradigma científico peculiar que, definido e compartilhado pela comunidade jurídica, configura, há mais de um século, o modelo “normal” e oficial de fazer Ciência (...).” ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão de segurança jurídica, p. 42. 15 Cf. ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão de segurança jurídica, p. 112. Para ANDRADE, a Ciência constitui: “um consenso ou um conju nto de compromissos teóricos básicos existentes num dado grupo humano: a comunidade científica. É sempre definido pela existência de um “paradigma” (...). um paradigma define, portanto, toda a maneira de cultivar a ciência. Além de regras, linguagem, valores, etc., o procedimento científico requer todo aquele estilo de pensamento e ação constituído pelo paradigma.” ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão de segurança jurídica, p. 41. 16 Cf. HUNGRIA, Nelson; FRAGOSO, Heleno Cláudio. Comentários ao Código penal. Vol. 1. Tomo 1. São Paulo: Forense, 1980, pp. 105 a 107.

16

Ciência do “dever -ser” que tem por objeto o Direito Penal positivo vigente em dado tempo e espaço e por tarefa metódica (técnico-jurídica, de natureza lógico-abstrata) a “construção” de um “sistema” de conceitos elaborados a partir da “interpreta ção” do material normativo, segundo procedimentos intelectuais de coerência interna, tendo por finalidade ser útil à vida, isto é, à aplicação do Direito.17

Essa “tarefa metódica técnico -jurídica de natureza lógico-abstrata”, supracitada,

constitui para HUNGRIA e FRAGOSO, o chamado “ tecnicismo jurídico-penal” 18, que

corresponde ao método de estudo utilizado pela Dogmática-Penal para a interpretação da

norma. Assim, possuindo a Ciência Penal, como único objeto de interpretação a lei, ela

constrói um sistema de princípios e conceitos elaborados a partir do conhecimento preciso e

exato da norma.19 “Tal método é de natureza lógico -abstrata, o que bem se compreende já

que, se a norma jurídica tem por conteúdo deveres, para conhecê-los bastam sua consideração

e estudo, nada havendo para observar ou experimentar.” 20

Acerca deste método de interpretação, ressalta ANDRADE, que

na sua tarefa de elaboração técnico-jurídica do Direito Penal vigente, a Dogmática, partindo da interpretação das normas penais produzidas pelo legislador e explicando-as em sua conexão interna, desenvolve um sistema de teorias e conceitos que, resultando congruente com as normas, teria a função de garantir a maior uniformização e previsibilidade possível das decisões judiciais e, conseqüentemente, uma aplicação igualitária (decisões iguais para casos iguais) do Direito Penal que, subtraída à arbitrariedade, garanta essencialmente a segurança jurídica e, por extensão, a justiça das decisões.21

Desse modo, com base na interpretação técnico-jurídica da normativa criminal e

frente a sua transgressão, a Dogmática-Penal permite colocar em prática todo o aparato do

sistema penal. Para LUHMANN, citado por ANDRADE, a relação existente entre a Ciência

Penal e o sistema penal, é que aquela “ocupa uma posição funcional ‘dentro’ ou no ‘interior’

do sistema jurídico, exercendo uma função imanente a ele, trata-se de uma instância ‘do’

sistema que medeia o tráfego jurídico entre a programação (‘dever-ser’) e operacionalização

(‘ser’).” 22

Como já foi mencionado anteriormente, a Dogmática Jurídico-Penal, possui duas

grandes funções oficialmente declaradas, sendo elas: a racionalização e a segurança jurídica.23

17 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão de segurança jurídica, p. 117. 18 HUNGRIA, Nelson; FRAGOSO, Heleno Cláudio. Comentários ao Código penal, pp. 105 a 107. 19 Cf. NORONHA, E. Magalhães. Direito Penal: introdução e parte geral. Vol. 1. São Paulo: Saraiva, 1979, pp. 16 e 17. 20 NORONHA, E. Magalhães. Direito Penal, pp. 16 e 17. 21 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão de segurança jurídica, p. 27. 22 LUHMANN, Nicklas. Legitimação pelo procedimento. Tradução por Maria da Conceição Corte-Real. Brasília: UnB, 1980, p. 20 Apud: ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão de segurança jurídica, p. 126. 23 Cf. ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão de segurança jurídica, p. 118.

17

Estas, segundo o paradigma dogmático, se traduzem “em promessa de racionalização do

poder punitivo estatal e segurança jurídica na administração da Justiça Penal.” 24

Sob essa lógica, entende ANDRADE, que a Ciência do Direito Penal possui uma

função essencialmente prática: “racionalizar a aplicação judicial do Direito Penal. A esta

função que se considera oficialmente declarada e perseguida pelo paradigma denominaremos

de função instrumental racionalizadora/garantidora.” 25

Logo, tendo um indivíduo desobedecido o ordenamento jurídico que rege a sua

comunidade, ele estará sujeito a uma pena correspondente à prática de tal conduta

estabelecida pela lei penal, sendo essa conduta definida como crime.26 “Analiticamente,

portanto, o crime é uma conduta (ação ou omissão) típica, antijurídica e culpável.” 27 A

respeito desta definição, destaca ANDRADE:

Nesta definição tripartida, a tipicidade representa, genericamente, a adequação de um fato determinado à descrição que dela faz um tipo legal; a antijuridicidade, a contrariedade deste fato com todo o ordenamento jurídico e a culpabilidade, a reprovação do sujeito que poderia ter atuado de outro modo, ou seja, conforme o ordenamento jurídico.28

Partindo dessa definição, obtém-se que, para a caracterização do fato como crime, é

necessária a presença de três elementos: a tipicidade, a antijuridicidade e a culpabilidade.

CIRINO DOS SANTOS analisou cada um desses elementos, sendo que para ele, a tipicidade

ou a teoria do tipo decorre basicamente do Princípio da Legalidade. Trata-se, portanto, da

integração entre a conduta do agente, podendo essa ser uma ação ou omissão com o tipo penal

previsto em lei. Estes tipos penais podem ser classificados em: dolosos de ação, culposos de

ação e dolosos e culposos de omissão de ação.29

Os tipos dolosos de ação30 possuem como elemento caracterizador o dolo. Este é a

vontade do agente em praticar a ação delituosa, tendo a consciência do dano ao bem jurídico

24 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão de segurança jurídica, p. 118. 25 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão de segurança jurídica, pp. 26 e 27. 26 Para DORNELLES: “Não existe um conceito uniforme sobre o crime. O crime pode ser entendido de diversas formas. E cada maneira de explicar o crime vai ser fundamentada a partir de diferentes concepções sobre a vida e o mundo. O crime pode ser visto como uma transgressão à lei, como uma manifestação de anormalidade do criminoso, ou como produto de um funcionamento inadequado de algumas partes da sociedade (grupos sociais, classes, favelas etc.) Pode ser visto ainda como um ato de resistência, ou como o resultado de uma correlação de forças em dada sociedade, que passa a definir o que é crime e a selecionar a clientela do sistema penal de acordo com os interesses dos grupos detentores do poder e dos seus interesses econômicos.” DORNELES, João Ricardo W. O que é crime. São Paulo: brasiliense, 1988, pp. 17 e 18. 27 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão de Segurança Jurídica, p. 129. 28 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão de Segurança Jurídica, p. 129. 29 Cf. SANTOS, Juarez Cirino dos. Teoria do crime. São Paulo: Acadêmica, 1993, pp. 23 a 33. 30 De acordo com o artigo 18, inciso I, do Código Penal (Lei n. º 2.848 de 1940): Trata-se de crime doloso aquele em que o agente quis o resultado e assumiu o risco de produzi-lo. Cf. BRASIL. Código Penal: Decreto-lei n. º 2.848, de 7-12-1940. 11ª ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 63.

18

e/ou violação da norma como resultado de tal prática. Os tipos culposos de ação31 se

caracterizam quando o agente possui o dever de cuidado para não praticar a conduta e mesmo

assim a pratica, apesar de ter essa, o resultado previsível. Já no que tange a última

classificação, os tipos estão previstos em lei de forma negativa e não positiva, isto é, a

previsão legal não estabelece como delituosa a ação do agente (exemplo: matar alguém, art.

121 do CP), mas sim, a “não ação” do agente quando este tinha o dever legal de praticá -la

(exemplo: omissão de socorro, art. 135 do CP), podendo ser essa “não ação” tanto dolosa

quanto culposa.32

O segundo elemento caracterizador do crime é a antijuridicidade. Esta ocorre quando

a conduta do agente, podendo ser ação ou omissão, é contrária à lei. A antijuridicidade não se

caracteriza quando restam comprovadas as excludentes de ilicitudes (legítima defesa, estado

de necessidade, estrito cumprimento do dever legal, exercício regular do direito,

consentimento do ofendido com o ato etc).33

A culpabilidade é o último elemento a ser analisado. Ela se concretiza quando a

conduta praticada pelo agente é culpável, ou seja, quando a ação contrária ao Direito possui

um “valor” rele vante que representa a sua reprovação. Não ocorre a culpabilidade, por

exemplo, nos casos em que os agentes são inimputáveis (menoridade penal, doença mental

etc), mesmo que a ação praticada seja típica e antijurídica.34

CIRINO DOS SANTOS estabelece acerca da Teoria do crime, a diferenciação entre

os elementos que o compõe, sendo que para ele, “o conteúdo da vontade é matéria do tipo; o

valor da vontade é objeto da antijuridicidade; a capacidade e a formação da vontade são

componentes da culpabilidade.” 35

Ainda de acordo com o entendimento de CIRINO DOS SANTOS, a tipicidade não

cumpre função indiciária da antijuridicidade, isto é, não indica indícios de que tal conduta é

contrária à lei, apenas indica que a ação é contrária à concepção predominante da sociedade,

todavia, não estar prevista em lei.36

Assim, frente o ordenamento jurídico penal e na ocorrência de um crime (típico,

antijurídico e culpável), o sistema penal, através de suas agências (vide subcapítulo 1.3) e com

base nas promessas da Dogmática Jurídico-Penal, visa coibir a criminalidade, aplicando ao 31 Conforme o artigo 18, inciso II, do Código Penal (Lei n. º 2.848 de 1940): Trata-se de crime culposo aquele em que o agente deu causa ao resultado por imprudência, negligência ou imperícia. BRASIL. Código Penal, p. 63. 32 Cf. SANTOS, Juarez Cirino dos. Teoria do crime, pp. 23 a 48. 33 Cf. SANTOS, Juarez Cirino dos. Teoria do crime, pp. 49 e 50. 34 Cf. SANTOS, Juarez Cirino dos. Teoria do crime, pp. 59 a 61. 35 Cf. SANTOS, Juarez Cirino dos. Teoria do crime, pp. 61 e 62. 36 Cf. CUNHA, Rosa Maria Cardoso da. O caráter retórico do Princípio da Legalidade, p. 66.

19

agente ativo da conduta criminosa uma pena correspondente à prática de tal ação. É acerca

das formas de atuação do sistema penal em face da criminalidade e as conseqüências dessa

atuação, que se ocupa o próximo subcapítulo.

1.2 A DINÂMICA DO SISTEMA PENAL CONTEMPORÂNEO

Em conseqüência do que fora abordado anteriormente, conclui-se que o Princípio da

Legalidade marca um postulado no interior do sistema penal, pois com base nele, é que a

Ciência do Direito Penal deve (ou pelo menos deveria) impedir a arbitrariedade na aplicação

do Direito Penal quando da ocorrência de ação delituosa, assegurando assim, a Justiça e por

conseqüência desta, a segurança jurídica da sociedade.37

Entretanto, atualmente, é notório o aumento da criminalidade decorrente de um

“controle social punitivo institucionalizado” ineficaz frente à violência. Essa ineficácia é

resultado da inutilização do paradigma dogmático pelo sistema penal, o que gerou o fracasso

das funções declaradas pela Dogmática-Penal, acarretando a “deslegitimação” do sistema

repressivo.38

Na realidade, o sistema penal, hoje, ainda é o legitimado ativo para a aplicação da

pena, todavia, ele não cumpre com as promessas declaradas pela Ciência do Direito Penal,

não podendo se falar, portanto, em segurança jurídica na sociedade, nem tão pouco em

racionalização do poder de punir estatal, haja vista, não se basear no Princípio da Legalidade

para incriminar os indivíduos. As formas como o sistema penal atua no “combate” da

criminalidade são as principais responsáveis por seu aumento. E, é a respeito dessas formas e

de suas conseqüências, que se traduz este subcapítulo.

Primeiramente, torna-se necessário ressaltar como se dá o processo de criminalização

que inspira o sistema repressivo atual. Para BISSOLI FILHO, não existe uma criminalidade a

priori, cuja existência seja pré-constituída ao indivíduo sem interferência do sistema penal,

mas sim, que seja oriunda desse, o qual gera todo este processo de criminalização.39 De

acordo com sua ideologia, o processo se constrói em três etapas:

37 Cf. CUNHA, Rosa Maria Cardoso da. O caráter retórico do Princípio da Legalidade, p. 58. 38 Cf. ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão de Segurança Jurídica, p. 182. 39 Cf. BISSOLI FILHO, Francisco. Estigmas da criminalização: dos antecedentes à reincidência criminal. Florianópolis: Obra Jurídica, 1998, p. 19.

20

a) a definição legal de crimes e outras normas pelo Legislativo, que atribui à conduta criminal (criminalização primária) b) a seleção das pessoas que serão etiquetadas, num continnum pela Polícia-Ministério Público e Justiça (criminalização secundária) e c) estigmatização, especialmente através da prisão, como criminosos, entre todos aqueles que praticam tais condutas.40

Nessas três etapas supracitadas, a seletividade, como forma de atuação do sistema

penal, se insere principalmente na criminalização primária e secundária. Naquela, ela incide

na seleção dos bens jurídicos a serem tutelados, bem como na seleção das condutas que

violaram esses bens, tipificando-as em lei. Esse processo de seleção, tanto de bens como de

condutas, não se baseia em um consenso da população, mas recai sobre àqueles cujos

interesses não são relevantes para a “alta” sociedade, os mais fracos. 41

Na criminalização secundária, a seletividade atua por intermédio do sistema

repressivo como um mecanismo de seleção de pessoas, geralmente as de baixa renda, a fim de

que sejam taxadas como criminosas, independentemente de terem as mesmas, praticado ou

não condutas tipificadas em lei. Acerca dessa etapa do processo de criminalização, comenta

ZAFFARONI e PIERANGELI, que

na grande maioria dos casos, os que são chamados de "delinqüentes" pertencem aos setores sociais de menores recursos. Em geral, é bastante óbvio que quase todas as prisões do mundo estão povoadas de pobres. Isto indica que há um processo de seleção das pessoas às quais se qualifica como "delinqüentes" e não, como se pretende, um mero processo de seleção de condutas ou ações qualificadas como tais.42

Reforçando o que fora anteriormente mencionado por BISSOLI FILHO, no que

tange ao processo de seleção de bens, ressalta ANDRADE, a respeito do processo de seleção

de pessoas a serem consideradas delinqüentes:

Uma conduta não é criminal "em si" ou "per si" (qualidade negativa ou nocividade inerente) nem seu autor um criminoso por concretos traços de sua personalidade (patologia). O caráter criminal de uma conduta e a atribuição de criminoso a seu autor depende de certos processos sociais de "definição", que atribuem a mesma um caráter, e de "seleção", que etiquetam um autor como delinqüente.43

Para BISSOLI FILHO, o processo de seleção de pessoas efetivado pelo sistema

penal, se dá através da atuação das agências que compõem sua estrutura organizacional. Para

ele, os três principais segmentos que colaboram na criminalização secundária são: a Polícia

(Militar, Civil e Federal), o Ministério Público (no momento da deflagração ou arquivamento

40 BISSOLI FILHO, Francisco. Estigmas da criminalização, pp. 19 e 20. 41 Cf. BISSOLI FILHO, Francisco. Estigmas da criminalização, pp. 180 e 181. 42 ZAFFARONI, Eugênio Raul; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro, p. 58. 43 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão de segurança jurídica, p. 205.

21

de peças processuais, como a denúncia ou inquérito policial) e pelo Poder Judiciário (ao

prolatar a sentença, seja ela condenatória ou absolutória).44

Tendo conhecimento acerca da seletividade (seleção de bens jurídicos e/ou pessoas)

e da maneira como ela se realiza, passa-se a analisar a conseqüência dessa, que consiste na

segunda forma de atuação do “controle social punitivo institucionalizado” no processo de

criminalização secundária do ser humano: o etiquetamento ou Teoria da Rotulação (Labelling

approach).45

Esse mecanismo é estudado por BECKER, citado por BISSOLI FILHO, que

prescreve ser a sociedade como uma das causadoras do processo de criminalização, não que

ela seja a culpada pelo indivíduo praticar uma conduta criminosa46 em virtude de seu status

social, mas por ela ser quem cria as normas (criminalização primária) e quem seleciona as

pessoas (criminalização secundária) para serem classificadas como delinqüentes

(seletividade), ou ainda, na linguagem utilizada pelo autor, para considerá-las “estranhas”. 47

Os seres “estranhos” à comunidade compreendem àqueles que praticaram algum

desvio, isto é, alguma conduta segundo a qual a sociedade reagiu classificando-a como

criminosa. Logo, o indivíduo que pratica tal conduta é “etiquetado”, ou seja, recebe uma

etiqueta de que a partir daquele momento, o mesmo será considerado um ser criminoso, tanto

por si mesmo como pela comunidade. Para BISSOLI FILHO, a etiqueta faz

com que o indivíduo perca sua identidade (restando invisível para si próprio) e adquira outra identidade (aquela imposta pela etiqueta), tornando-se, em relação a esta mais visível ao grupo. Assim, existe uma grande diferença entre dizer uma mentira e ter uma reputação de mentiroso. A etiqueta, ou seja, o nome do papel que se exerce, faz algo mais do que significar um ato determinado cometido pelo desviado. Na verdade, evoca um conjunto de imagens características daquela etiqueta. Sugere a alguém que se comporte como aquelas pessoas que pertencem são grupo relacionado com a etiqueta.48

Chama-se também de Teoria da Rotulação, por tratar-se tanto a etiqueta como o

rótulo, de instrumentos de identificação de “objetos” e para o sistema pena l, de pessoas. Estas,

44 Cf. BISSOLI FILHO, Francisco. Estigmas da criminalização, p. 181. 45 Cf. BISSOLI FILHO, Francisco. Estigmas da criminalização, p. 44. 46 Explica DORNELLES acerca da conduta criminosa ou desviante: “Uma conduta dentro do esperado pelos outros, ou dentro das normas e convenções previstas para o bom desempenho do papel representado, passa a ser considerada para o grupo social, em que estamos socializados, uma conduta normal. Esperada socialmente, portanto. O contrário seria não seguir o texto, seria uma conduta desviante. Aquela que não é esperada pelas pessoas e pela sociedade, dentro dos padrões culturais predominantes num determinado período histórico.” DORNELES, João Ricardo W. O que é crime, p. 16. 47 Cf. BECKER, Howard S. Outsiders: studies in the sociology of deviance. New York: The Free Press, 1997, pp. 03 a 08 Apud: BISSOLI FILHO, Francisco. Estigmas da criminalização, p. 171. 48 BISSOLI FILHO, Francisco. Estigmas da criminalização, p. 184.

22

após serem rotuladas, incorporam a descrição contida na etiqueta, se transformando, portanto,

naquilo que ela prevê. Esse procedimento é denominado de auto-etiquetas (auto-identidades).

Tendo estas se concretizado, torna-se cada vez mais difícil o indivíduo se “des -

etiquetar”, formando um ciclo -vicioso, em que o selecionado comete crimes e é rotulado e

este novamente comete infrações e é etiquetado e assim por diante, correspondendo dessa

forma, às carreiras criminais.49

Não existe possibilidade de se falar em reabilitação ou ressocialização do desviante,

quando o mesmo foi selecionado e etiquetado. Esta “etiquetação” é concretizada por

intermédio de outra forma de atuação do sistema repressivo, a chamada estigmatização. Esta

recolhe os “etiquetados” e os “selecionados” e os classificam no rol dos suspeitos

permanentes da criminalização.50

O estigma, portanto, “representa um traço que pode chamar a atenção e afastar

aquele que o detém das relações sociais com os ‘normais’, destruindo a possibilidade de que

outros atributos seus sejam por estes percebidos.” 51 O estigma reforça no ser humano que

praticou conduta criminosa, o seu papel de ser “estranho” à sociedade. E, assim como ocorre

no processo de etiquetamento, a pessoa que recebe o estigma se transforma naquilo que o

próprio estigma lhe sugere.52

Todas essas formas de atuação do sistema penal contemporâneo supracitadas tentam

coibir a criminalização, todavia de maneira arbitrária e preconceituosa, inutilizando portanto,

o paradigma antes proclamado pela Dogmática-Penal, passando o sistema penal a funcionar

como uma “ação filtradora”, que ao invés de enfocar sua ação nas condutas que violam a

norma (ação delituosa), dá destaque sempre, a certas e determinadas pessoas que praticaram

tais condutas.53

Essa “ação filtradora” é movida pela discricionariedade seletiva dos agentes que

compõem a estrutura organizacional do sistema penal. A atuação desses segmentos gera

conseqüências alarmantes no cenário da criminalidade, pois, estatisticamente, não se pode

graduar a violência a fim de que se revele a realidade criminal, haja vista, se basearem essas

estatísticas, somente nos criminosos já processados ou condenados.54

49 Cf. BISSOLI FILHO, Francisco. Estigmas da criminalização, pp. 20 e 21. 50 Cf. ZAFFARONI, Eugênio Raul; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro, p. 74. 51 BISSOLI FILHO, Francisco. Estigmas da criminalização, p. 191. 52 Cf. BISSOLI FILHO, Francisco. Estigmas da criminalização, p. 193. 53 Cf. ZAFFARONI, Eugênio Raul; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro, p. 70. 54 Cf. DORNELES, João Ricardo W. O que é crime, p. 44.

23

Um exemplo clássico da conseqüência da seletividade seria a “Criminalidade de

Colarinho Branco” ou também chamado de “ White-Collar Criminality.” 55 Esta criminalidade

ocorre em razão do fato criminoso não ser convencional, ou seja, a pessoa que o pratica

encontra-se fora da linha de preocupação das agências do sistema penal, em virtude de sua

forma de atuação.56 DORNELLES comenta acerca do Crime de Colarinho Branco:

É um crime realizado por um tipo de pessoa que goza de uma imagem positiva perante a sociedade. (...) O delinqüente de “colarinho branco” não é uma pessoa estigmatizada socialmente. Por fim, percebe-se uma imunidade dessas pessoas porque o sistema penal não foi organizado para combater esse tipo de delinqüência não-convencional. Ao contrário, o sistema penal existe para controlar, reprimir e punir o crime convencional, normalmente praticado por pessoas de baixa renda.57

A imunidade que goza o indivíduo que pratica tal delito deve-se ao fato de que sua

conduta desviante não provocou uma reação social, logo, sua ocorrência não possui caráter

valorativo em termos de estatísticas criminais.58 Dessa forma, estas apontam somente os

crimes convencionais, consistindo essa criminalidade, em uma criminalidade legal. Esta “é a

que aparece registrada nas estatísticas oficiais, quando se condena alguém por um crime.” 59

Em contrapartida, existe a criminalidade denominada aparente, que compreende

aquela “detectada pela polícia, e mesmo pela Justiça, mas que não resulta na condenação de

alguém responsável pelo crime. O crime fica sem solução, embora a sua existência seja

conhecida pelas autoridades.” 60 Alguns dos motivos que colaboram para o aparecimento da

criminalidade aparente podem ser: a corrupção, o tráfico de influências, o arquivamento do

inquérito policial pela Polícia e pelo Ministério Público etc.

Esse tipo de criminalidade revelou a existência de um tipo de criminalidade oculta

que não chega ao conhecimento da sociedade.61 É a denominada “Cifra Negra da

Delinqüência” ou também chamada de “Cifra ou Zona Obscura”. 62 Esta é o resultado da

“diferença entre o total de crimes cometidos na soci edade (criminalidade real) e os crimes

conhecidos das autoridades (criminalidade aparente e criminalidade legal).” 63

Conforme o entendimento de ANDRADE, a Cifra Negra da Criminalidade consiste

nos “delitos não perseguidos, que não atingindo o limiar conhe cido pela polícia (pois não se

55 Cf. ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão de segurança jurídica, p. 261. 56 Cf. DORNELES, João Ricardo W. O que é crime, p. 49. 57 DORNELES, João Ricardo W. O que é crime, p. 48. 58 Cf. DORNELES, João Ricardo W. O que é crime, p. 42. 59 DORNELES, João Ricardo W. O que é crime, p. 45. 60 DORNELES, João Ricardo W. O que é crime, p. 45. 61 Cf. DORNELES, João Ricardo W. O que é crime, p. 45. 62 Cf. ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão de segurança jurídica, p. 261. 63 DORNELES, João Ricardo W. O que é crime, p. 45.

24

realizam nas ruas por onde ela passa), nem chegam a nascer como fato estatístico.” 64 Como

exemplos de crimes que compõe essa criminalidade, estão: os crimes sexuais, o estelionato, os

crimes de colarinho branco, os crimes praticados dentro do âmbito familiar etc.

Em virtude da forma de atuação dos diversos segmentos do sistema repressivo e

devido às conseqüências dessa atuação, constata-se, um aumento tanto da criminalidade como

da criminalização, sendo que os principais colaboradores para o aumento dessa Cifra Negra

da Delinqüência, são: o policial, o judicial (principalmente o Ministério Público, pois possui

como atribuição essencial à Justiça, a denúncia) e o penitenciário.65 Assim, para ANDRADE,

o processo que leva ao aparecimento e aumento desta zona obscura, consiste no seguinte:

Nem todo o delito cometido é perseguido; nem todo o delito perseguido é registrado; nem todo o delito registrado é averiguado pela polícia; nem todo o delito averiguado é denunciado; nem toda denúncia é recebida, nem todo o recebimento termina em condenação.66

A fim de que a criminalidade oculta transforme-se numa criminalidade real, ou seja,

“a verdadeira quantidade de crimes cometidos em determinado espaço e tempo” 67 e que o

“controle social puni tivo institucionalizado” seja efetivo no combate à delinqüência, torna -se

necessário a harmonia das atividades das diversas agências que formam sua estrutura e é

acerca dessa estrutura organizacional que será abordada a seguir.

1.3 A ESTRUTURA ORGANIZACIONAL DO SISTEMA PENAL CONTEMPORÂNEO

Como fora mencionado até então, para que o sistema penal seja “novamente”

legitimado à coibição da criminalidade e aplique as promessas declaradas pela Dogmática

Jurídico-Penal, torna-se prescindível o trabalho harmônico e justo dos segmentos que compõe

sua estrutura organizacional. É sobre esse mecanismo que se atém este subcapítulo.

Assim, em linhas gerais, entende-se por sistema: o “conjunto ordenado de meios de

ação ou de idéias tendentes a um resultado.” 68 O sistema penal não se distancia desse

conceito, uma vez que é constituído por diversos segmentos, sendo que cada um desses 64 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão de segurança jurídica, p. 263. 65 Cf. ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão de segurança jurídica, p. 262. 66 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão de segurança jurídica, pp. 262 e 263. 67 DORNELES, João Ricardo W. O que é crime, p. 45. 68 ROSA, Ubiratan; OLIVEIRA, Ana Tereza Pinto de; NIGRO, Irene Catarina. Dicionário Compacto da Língua Portuguesa. 1ª ed. São Paulo: Rideel, 1993, p. 461.

25

realiza uma determinada atividade, que desempenhadas em conjunto pelo menos deveriam

atingir as promessas declaradas pela dogmática jurídico-penal.

No tocante à estrutura organizacional do sistema penal contemporâneo, entende

ANDRADE:

Na estrutura organizacional do moderno sistema penal, podem-se distinguir, pois, duas dimensões e níveis de abordagem: a) uma dimensão definicional ou programadora do controle penal que define as regras do jogo para as suas ações e decisões e os próprios fins perseguidos, que define, portanto, o seu horizonte de projeção; b) uma dimensão operacional que deve realizar o controle penal com base naquela programação. O sistema é, pois, um conceito bidimensional que inclui normas e saberes (enquanto programas de ação ou decisórios), por um lado, e ações e decisões, em princípio racionalizadas, por outro. 69

Analisando a abordagem acima, tem-se que o “poder legislativo é, de qualquer modo,

a fonte básica da programação do sistema” 70, haja vista, sua dimensão definicional ou

programadora, de criação da legislação penal (Direito Penal), a qual estabelece apenas normas

a serem cumpridas, como se fosse um “dever -ser”, dependendo, no entanto, de uma dimensão

operacional para se realizar, o “ser”. 71

Essa dimensão operacional, que segundo ANDRADE, compõe a estrutura

organizacional do sistema penal contemporâneo, é constituída por distintos segmentos,

compreendendo entre esses, os básicos, sendo eles: o policial, o judicial e o executivo.72 Para

ZAFFARONI e PIERANGELI:

Trata-se de três grupos humanos que convergem na atividade institucionalizada do sistema e que não atuam estritamente por etapas, posto que têm um predomínio determinado em cada uma das etapas cronológicas do sistema, podendo seguir atuando ou interferindo nas restantes. Assim, o judicial pode controlar a execução, o executivo ter a seu cargo a custódia do preso durante o processo, o policial ocupar-se das transferências de presos condenados ou informar acerca da conduta do liberado condicional.73

Para ANDRADE esses segmentos citados por ZAFFARONI e PIERANGELI são

denominados “agências”, sendo para àquela os principais meios para a operacionalização do

sistema penal: “ a Polícia, a Justiça e o sistema de execução de penas e medidas de segurança,

no qual a prisão ocupa o lugar central. O sistema penal existe, pois, como a articulação

funcional sincronizada da Lei penal-Polícia-Justiça-Prisão e órgãos acessórios.” 74

69 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão de segurança jurídica, p. 175. 70 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão de segurança jurídica, p. 175. 71 Cf. ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão de segurança jurídica, p. 175. 72 Cf. ZAFFARONI, Eugênio Raul; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro, p. 71. 73 ZAFFARONI, Eugênio Raul; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro, p. 71. 74 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão de segurança jurídica, p. 175.

26

As funções desempenhadas por cada agência que forma o sistema penal, são mais

precisamente explicadas por CIRINO DOS SANTOS:

O sistema penal (como todo sistema) existe como articulação funcional de vários elementos sincronizados: a lei penal (criminalização e ritualização), a justiça criminal (aplicação penal), a polícia e a prisão (repressão penal) e órgãos acessórios. Assim respectivamente: a) a definição legal de crimes e penas e dos rituais de aplicação (Poder Legislativo); b) a verificação de fato concretos adequados às matrizes legais de crimes, com metodologia conhecida como teoria do crime, conforme rituais judiciais, com a aplicação (...) de penas, no processo oficial de criminalização (Poder Judiciário); c) a prisão dos autores de crimes (anterior ou posterior à criminalização oficial), a realização de investigações e de exames preliminares informativos da criminalização oficial (...) e a execução penal, como retribuição equivalente do crime (Poder Executivo).75

Diante dos entendimentos acima destacados em relação à estrutura organizacional do

sistema penal atual, entende BISSOLI FILHO que

o sistema penal é composto pelo aparato total de normas, instituições, saberes, ações e decisões direta ou indiretamente relacionados com fenômeno criminal. Abrange não somente as agências legislativas (responsáveis pela criação das normas), instituições policiais, Ministério Público, Poder Judiciário e Sistema Prisional (responsáveis pela imposição ou aplicação das normas), como também inúmeras outras agências que concorrem para a aplicação das leis penais, dentre elas os órgãos públicos e agentes financeiros e econômicos que têm o dever de noticiar a prática de crimes (Polícia Ambiental, Banco Central, Vigilância Sanitária, Defesa do Consumidor, etc), a Ordem dos Advogados, a Medicina Legal, a Psiquiatria Forense, as Perícias Forenses, e aquelas responsáveis pela produção e reprodução dos saberes que envolvem o sistema penal, o que se faz principalmente através das Escolas de ensino jurídico.76

Compreende ANDRADE, que dentre os segmentos/agências supramencionados,

“não se pode excluir do sistema penal o público, que na condição de denunciante, tem o poder

de operacionalizar o próprio sistema e na condição de opinião pública e ‘senso comum’

interage ativamente com ele.” 77 Para ZAFFARONI e PIERANGELI:

O público exerce um poder seletivo importantíssimo, pois com a delação tem em suas mãos a faculdade de pôr em funcionamento o sistema. Costuma-se afirmar que também controla o funcionamento, o que em boa parte não é mais que uma ficção. É óbvio que, quando o público se retrai, as denúncias diminuem e o sistema se vê impedido de criminalizar mais pessoas.78

Desta forma, havendo uma política de atendimento eficaz entre as diversas agências

do sistema penal, haverá como se afirmar à eficácia deste. Um sistema repressivo eficaz se

traduz na utilização correta das promessas declaradas pela Dogmática Penal. Sendo esta eficaz

75 SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal: a nova parte geral. Rio de Janeiro: Forense, 1985, pp. 25 e 26. 76 BISSOLI FILHO, Francisco. Estigmas da criminalização, p. 55. 77 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão de segurança jurídica, pp. 175 e 176. 78 ZAFFARONI, Eugênio Raul; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro, p. 72.

27

e o mecanismo criminal também, pode-se afirmar que a tutela jurisdicional está sendo

devidamente cumprida.

Assim, a finalidade do primeiro capítulo é servir como base para toda a pesquisa

ainda a ser realizada, tratando, portanto, o próximo capítulo, acerca da tutela jurisdicional aos

direitos da criança e do adolescente, abordando as previsões legais existentes nos casos de

violência doméstica, traduzindo esta, como objeto da monografia, demonstrando como o

sistema penal visa preservar a infância e adolescência contra as condutas delitivas.

28

2 A TUTELA JURISDICIONAL AOS DIREITOS DA CRIANÇA E DO

ADOLESCENTE NOS CASOS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA

Em síntese, entende-se por sistema penal, o mecanismo de coibição da criminalidade,

que engloba desde as atividades do legislador até as dos encarregados da execução penal,

utilizando-se para tanto, do Direito Penal, que através do Princípio da Legalidade e baseado

nas promessas declaradas pela Dogmática Jurídico-Penal, legitima-o praticar a Justiça.

Analisou-se no capítulo anterior, além da vinculação entre a legalidade e o processo

de criminalização e a estrutura organizacional do mecanismo repressivo, as formas com que

este atua em face às transgressões da lei, sendo que essa errônea operacionalização originou-

se da não utilização das promessas do paradigma dogmático, acarretando dentre outras

conseqüências, a insegurança jurídica.

Nesse contexto de insegurança jurídica é que se insere a questão de proteção

jurisdicional aos direitos da criança e do adolescente nos casos de violência doméstica, em

virtude de essa tutela funcionar a partir dos mesmos princípios que norteiam à atuação do

sistema penal contemporâneo, como a seletividade, a cifra negra da delinqüência, a

criminalidade aparente, a rotulação, a estigmatização, a criminalidade real, entre outras

citadas no primeiro capítulo.

Logo, através desse capítulo, objetiva-se traçar um panorama da tutela jurisdicional

aos direitos da infância e juventude nas ocorrências de agressões intrafamiliares e realizar-se-

á a partir de três subcapítulos: primeiramente, abrangerá sobre a violência doméstica imposta

à criança e ao adolescente, mencionando seu conceito, suas principais causas, suas formas de

incidência e suas conseqüências no desenvolvimento do infante.

No segundo subcapítulo, tratar-se-á acerca das previsões legais existentes no

ordenamento jurídico brasileiro, diferenciando-as entre normas protetivas à infância e

adolescência e punitivas aos pais ou responsáveis pela conduta delitiva, destacando em

seguida, os preceitos assecuratórios estabelecidos nas legislações internacionais. E, o último

subcapítulo, abordará sobre as principais instituições ou agências encarregadas do controle e

da fiscalização dos interesses do infante.

29

2.1 A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA OU INTRAFAMILIAR, SUAS CAUSAS E SUAS

CONSEQÜÊNCIAS NO DESENVOLVIMENTO DA CRIANÇA E DO

ADOLESCENTE

Entende-se por “violência” latu sensu, o ato pelo qual o agente (s) impõe sua força

física e/ou moral em face de outrem (s), com intuito de coagi-lo a praticar ou não, algo de sua

vontade, acarretando danos para a vítima, tanto materiais como imateriais.79 Dessa forma, a

violência doméstica, como “violência” stricto sensu, é o exercício de uma conduta típica que

tem por escopo a eliminação da vontade alheia, correspondente no presente estudo, à criança e

ao adolescente, cujo resultado é o desconhecimento de sua humanidade como sujeitos de

direitos.

A fim de que caracterize a agressão intrafamiliar, torna-se necessário que o agente

ativo possua em relação à vítima, alguma forma de domínio sobre a mesma. Compreende,

portanto, uma relação de poder, em que o mais forte utiliza seu poderio sobre o mais fraco,

ficando este, totalmente dominado por aquele. É o que ocorre nos casos de violência dos pais,

responsáveis e/ou familiares impostas às crianças e aos adolescentes.80

As professoras da Universidade de São Paulo, Dra. Maria Amélia Azevedo e Viviane

Guerra, responsáveis pelo Laboratório de Estudos da Criança da USP (LACRI), definem a

violência doméstica como sendo

todo ato ou omissão praticado por pais, parentes ou responsáveis contra crianças e/ou adolescentes que – sendo capaz de causar dano físico, sexual e/ou psicológico a vítima – implica de um lado, numa transgressão do direito que crianças e adolescentes têm de ser tratados como sujeitos e pessoas em condição peculiar de desenvolvimento.81

De acordo com o artigo 2º do Estatuto da Criança e do Adolescente: “Considera -se

criança, para efeitos desta Lei, a pessoa até doze anos de idade incompletos, e adolescente

aquela entre doze e dezoito anos de idade.” 82 Assim, a agressão intrafamiliar constitui

qualquer ato ou omissão, tentado ou consumado, praticado contra seres humanos inseridos na

79 Cf. GUIMARÃES, Deocleciano Torrieri; MIRANDA, Sandra Julien. Dicionário Jurídico, p. 197. 80 Cf. BERTUSSI, Mariana. Abuso sexual na infância e adolescência. Disponível em: <http://www.mp.sc.gov.br/portal/ca/cij/doutrina/bertussi_mariana_abusosexual.htm>. Acesso em: 13 set. 2004. 81 NEUMANN, Marcelo Moreira. O que é violência doméstica. Disponível em: <http://www.violenciasexual.org.br/textos/PDF/violencia_domestica_marcelo_neumann.pdf>. Acesso em: 06 maio 2004. 82 MARÇURA, Jurandir Norberto; CURY, Munir; PAULA, Paulo Afonso Garrido de. Estatuto da Criança e do Adolescente Anotado. 3. ª ed. revista e atualizada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 21.

30

faixa etária mencionada, que acarrete danos físicos e/ou psicológicos às vítimas e a

transgressão do poder-dever de proteção de seus agressores.83

A violência doméstica pode ser classificada como física, psicológica, sexual e inclui-

se nessas formas, a negligência e o abandono.84 O abandono compreende a ausência

temporária (abandono parcial) ou permanente (abandono total) do seio familiar do

responsável pela criança ou adolescente, capaz de colocá-los em situação de risco.

Como tipo culposo do delito, a negligência constitui o ato pelo qual os pais e/ou

responsáveis pelo infante, privam-no de cuidados essenciais para seu desenvolvimento sadio.

Como por exemplo, a privação de alimentos, medicamentos e higiene básica.85

A violência física imposta à criança e/ou adolescente é o ato praticado por um

agressor (s) com idade superior a do infante, que utiliza sua força anatômica, uma vez ou

repetitivamente, com intuito (dolo) de ofender a integridade física, de forma leve à

gravíssima, apta a ocasionar a morte.86

Inserida nessa forma de agressão física, encontra-se o abuso sexual.87 Este é “todo

ato ou jogo sexual, de cunho homo ou heterossexual, entre um ou mais adultos e uma criança

menor de 18 anos, tendo por finalidade estimular sexualmente a criança ou utilizá-la para

obter estimulação sexual sobre sua pessoa ou sobre outra pessoa.” 88

E, a última forma de violência a ser mensurada é a psicológica, que compreende

todas as “atitudes, palavras e ações dirigidas para e nvergonhar, censurar e pressionar a criança

de forma permanente.” 89 Essa é a maneira mais obscura da violência doméstica, pois não

apresenta conseqüências visíveis imediatas.

As causas da ocorrência de agressão no âmbito familiar contra o infante são diversas

e dependem de fatores psicológicos, sociais, econômicos, culturais e patológicos dos pais e

responsáveis, como por exemplo: o estresse, o desemprego, uma gravidez indesejada etc.

Todavia, dentre esses, não se pode afirmar que a baixa renda constitui em si, um fator 83 Cf. NEUMANN, Marcelo Moreira. O que é violência doméstica. Disponível em: <http://www.violenciasexual.org.br/textos/PDF/violencia_domestica_marcelo_neumann.pdf>. 84 Cf. NEUMANN, Marcelo Moreira. O que é violência doméstica. Disponível em: <http://www.violenciasexual.org.br/textos/PDF/violencia_domestica_marcelo_neumann.pdf>. 85 Cf. NEUMANN, Marcelo Moreira. O que é violência doméstica. Disponível em: <http://www.violenciasexual.org.br/textos/PDF/violencia_domestica_marcelo_neumann.pdf>. 86 Cf. NEUMANN, Marcelo Moreira. O que é violência doméstica. Disponível em: <http://www.violenciasexual.org.br/textos/PDF/violencia_domestica_marcelo_neumann.pdf>. 87 Cf. NEUMANN, Marcelo Moreira. O que é violência doméstica. Disponível em: <http://www.violenciasexual.org.br/textos/PDF/violencia_domestica_marcelo_neumann.pdf>. 88 BERTUSSI, Mariana. Abuso sexual na infância e adolescência. Disponível em: <http://www.mp.sc.gov.br/portal/ca/cij/doutrina/bertussi_mariana_abusosexual.htm>. 89 NEUMANN, Marcelo Moreira. O que é violência doméstica. Disponível em: <http://www.violenciasexual.org.br/textos/PDF/violencia_domestica_marcelo_neumann.pdf>.

31

determinante para tal ocorrência. A pobreza, apenas é considerada, por serem numerosos os

casos relatados nessa classe, no entanto, não condiz, que nas classes média e alta não ocorram

violência. Nessas, as agressões ocorrem da mesma forma que nas famílias pobres, entretanto,

o conhecimento de tais casos é muito inferior. As crianças violentadas por pais ricos, não são

levadas para serem atendidas em Hospitais Públicos, possuem para tanto, médicos

especialistas e particulares que mantém o sigilo.90

No Brasil, no ano de 2002, as pesquisas indicaram que 165 crianças e adolescentes

sofrem de abuso sexual por dia, ou seja, 07 infantes a cada hora. As conseqüências dessas

agressões são ilimitadas e causadoras de grandes abalos, tantos emocionais e físicos, como

por exemplo: a vergonha excessiva, o isolamento, a baixa auto estima, o comportamento

sexual inadequado para sua idade, às regressões a estados de desenvolvimento anterior, a

alternância de humor, a dificuldade de concentração, a depressão, o medo de que a agressão

ocorra novamente, a perda da confiança em outras pessoas, o sentimento de culpa etc.91

Essas conseqüências são alarmantes, em virtude de constituírem os infantes seres que

requerem cuidados essenciais, pois é nessa fase que a personalidade se forma. Como afirma a

Dra. Maria Amélia de Azevedo do LACRI: “Uma pessoa agredida na infância via de regra se

torna um adulto agressor.” 92 Para ela, essa situação

cria um ciclo contínuo de violência, que se transmite de geração para geração. Essa criança vai repetir este padrão com os irmãos menores, com os colegas da escola, mostrando-se muitas vezes inapta ao convívio social, ou simplesmente reproduzindo este padrão em seus próximos relacionamentos afetivos, com sua mulher ou marido, com seus filhos.93

Além dessas conseqüências, existem indicadores físicos nos infantes que

demonstram a ocorrência das agressões domésticas, entre eles: queimaduras de cigarros e

hematomas em locais cobertos pela roupa, orelha deformada por puxões (Síndrome da orelha

de lata), lesões e sangramentos na cabeça (Síndrome do bebê sacudido), fraturas múltiplas e

em fases de recuperação diferente, sonolência excessiva causada por drogas para dormir dadas

constantemente pelas mães, dificuldades para caminhar, infecções urinárias, intróito vaginal

alargado, aparecimento de doenças sexualmente transmissíveis, entre outras.94

90 Cf. NEUMANN, Marcelo Moreira. O que é violência doméstica. Disponível em: <http://www.violenciasexual.org.br/textos/PDF/violencia_domestica_marcelo_neumann.pdf>. 91 Cf. CENTRO CRESCER SEM VIOLÊNCIA. Violência doméstica contra crianças e adolescentes. Santa Catarina: IOESC (Imprensa Oficial do Estado de Santa Catarina), p. 36. 92 BERTUSSI, Mariana. Abuso sexual na infância e adolescência. Disponível em: <http://www.mp.sc.gov.br/portal/ca/cij/doutrina/bertussi_mariana_abusosexual.htm>. 93 BERTUSSI, Mariana. Abuso sexual na infância e adolescência. Disponível em: <http://www.mp.sc.gov.br/portal/ca/cij/doutrina/bertussi_mariana_abusosexual.htm>. 94 Cf. CENTRO CRESCER SEM VIOLÊNCIA, Violência doméstica contra crianças e adolescentes, p. 36.

32

Ante o exposto, conclui-se que a criança e o adolescente, apesar de serem titulares de

direitos especiais, prioritários e fundamentais ao seu bom desenvolvimento, ainda sofrem

diariamente com as transgressões de seus interesses. É acerca das principais previsões legais

existentes no ordenamento jurídico brasileiro e no ordenamento jurídico internacional, no

tocante à tutela aos seus direitos quando da ocorrência de violência doméstica, que se atém o

próximo subcapítulo.

2.2 AS PREVISÕES LEGAIS RELATIVAS À TUTELA

Contemporaneamente, podem ser encontradas inúmeras previsões legais em diversos

ordenamentos jurídicos no país e nas legislações internacionais em relação à proteção aos

direitos da criança e do adolescente nos casos de agressões intrafamiliares. Todavia, os

dispositivos estabelecidos a nível nacional, caracterizam-se por pretenderem ser protetivos aos

infantes e punitivos95 aos pais ou responsáveis pela prática das condutas desviantes. É acerca

dessas classificações e do reconhecimento internacional aos direitos da infância e

adolescência, que se limita este subcapítulo.

2.2.1 No ordenamento jurídico brasileiro

Conceitua-se norma jurídica lato sensu, o “preceito o brigatório de direito que pode

ser exigido por meio de força física ou coerção.” 96 As normas jurídicas protetivas são aqueles

preceitos prescritos em lei, que estabelecem direitos a determinados sujeitos, devendo ser

assegurados pelo Estado e pela sociedade.

95 A abordagem das normas punitivas no subcapítulo 2.2 será a título meramente exemplificativo, haja vista serem inúmeras as previsões legais a serem aplicadas ao agente ativo do delito de violência doméstica previstas no ordenamento jurídico nacional e também, em virtude da repressão não compreender numa causa solucionadora de tais ocorrências. Esta hipótese levantada confirmar-se-á através das argumentações explanadas em todo o transcorrer da presente pesquisa. 96 GUIMARÃES, Deocleciano Torrieri; MIRANDA, Sandra Julien. Dicionário Jurídico, p. 124.

33

No tocante ao infante, o reconhecimento para o ordenamento jurídico pátrio das

normas protetivas de seus direitos, ocorreu em 1988, quando foi promulgada a Constituição

Federal. Esta, calcada em normas internacionais (vide subcapítulo 2.2.2), introduziu a

Declaração dos Direitos Fundamentais da Criança e do Adolescente, ao proclamar a

“Doutrina da Proteção Integral” e o “Princípio da Prioridade Absoluta” 97, preconizando estes,

que

fosse dada prioridade absoluta para a criança e para o adolescente, com a primazia ou preferência a suas causas em qualquer política social pública, atribuindo o dever de proteção de todos os seus direitos não somente ao Estado, mas também à família e à sociedade civil.98

A partir dessa ideologia, restou retificado o que prescrevia o Código de Menores de

1979, o qual adotava políticas assistencialistas e repressivas, considerando a criança e o

adolescente como meros destinatários das ordens dos adultos, a ponto de serem tratados como

simples objetos, que estavam sujeitos à institucionalização caso violassem o ordenamento

jurídico.99

Logo, com a consagração da “Doutrina da Proteção Integral” e do “Princípio da

Prioridade Absoluta”, houve uma quebra no paradigma de que os infantes não eram

considerados cidadãos, estabelecendo, portanto, uma nova Ordem Constitucional, a qual

“atribuiu à criança e ao adolescente a condição de sujeitos de direitos, declarando -lhes

proteção especial e prioridade imediata e absoluta na busca da eficácia plena do direito dos

quais os mesmos passaram a ser titulares.” 100

Acerca desses direitos fundamentais estabelecidos neste novo padrão de valores,

dispõe o caput do artigo 227 da Constituição Federal de 1988:

É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.101

97 Cf. MARTINS, Daniele Comin. Estatuto da Criança e do Adolescente & Política de Atendimento: a partir de uma perspectiva sociojurídica. Curitiba: Juruá, 2003, pp. 46 e 47. A respeito da “Doutrina da Proteção Integral” comenta: “A doutrina da proteção integ ral inspira-se na normativa internacional, materializada em tratados e convenções, especialmente os seguintes documentos: a) Convenção das Nações Unidas Sobre os Direitos da Criança; b) Regras Mínimas das Nações Unidas para Administração da Justiça da Infância e da Juventude (Regras de Beijing); c) Regras Mínimas das Nações Unidas para a Prevenção da Delinqüência Juvenil (Diretrizes de Riad)”. MARÇURA, Jurandir Norberto; CURY, Munir; PAULA, Paulo Afonso Garrido de. Estatuto da Criança e do Adolescente Anotado, p. 21. 98 MARTINS, Daniele Comin. Estatuto da Criança e do Adolescente & Política de Atendimento, p. 48. 99 Cf. MARTINS, Daniele Comin. Estatuto da Criança e do Adolescente & Política de Atendimento, p. 47. 100 MARTINS, Daniele Comin. Estatuto da Criança e do Adolescente & Política de Atendimento, p. 47. 101 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Organização: Anne Joyce Angher. 11º ed. São Paulo: Rideel, 2005, p. 117. Vide o artigo 226, § 8º da CF/88. A “Doutrina da Proteção Integral” e o “Pr incípio

34

Dessa forma, a Carta Magna estabeleceu genericamente os direitos fundamentais à

infância e adolescência. E, em 1990, como Lei especial, foi promulgado o Estatuto da Criança

e do Adolescente, revogando o Código de Menores de 1979 até então em vigor. Com isso,

adotou o caráter protetivo aos infantes, regulamentando os direitos já previstos nos

ordenamentos constitucionais e internacionais.102 Em relação à criação do Estatuto da Criança

e do Adolescente, comenta MARTINS:

O Estatuto da Criança e do Adolescente, por outro lado além de positivar ordinariamente direitos materiais da infância e juventude, estabeleceu novas formas de buscar-se a eficácia dos mesmos não só por meio da previsão de procedimentos processuais para a defesa desses direitos, como também através das novas formas de articulação que propõe entre o Estado e a sociedade civil, num sistema amplo de viabilização e garantia de direitos.103

Ainda para MARTINS, esse “sistema amplo de viabilização e ga rantia de direitos”

seria sustentado por três eixos: o primeiro, seria a adoção da “Doutrina da Proteção Integral” à

criança e ao adolescente, amparando-os tanto materialmente como espiritualmente; o

segundo, consistiria no dever de vigilância do próprio ECA, a fim de que os direitos ali

consagrados fossem concretizados, atuando nesse ponto também a sociedade; e, o terceiro,

relaciona-se com o dever de responsabilidade na violação dos direitos individuais e coletivos

previstos na legislação estatutária, sendo essa responsabilização dada aos agentes de proteção

(Secretarias de Segurança Pública, o Ministério Público, os Conselhos de Direitos da Infância

e Adolescência, os Conselhos Tutelares e Centros de Defesa da Criança e do Adolescente e as

Associações legalmente constituídas).104

Ressalta-se que, tanto a Constituição Federal de 1988 como o ECA, prevêem a

“Doutrina de Proteção Integral”, disposta no caput do artigo 227, como também no artigo

1º105 e caput do artigo 4º, das respectivas legislações supracitadas. Já o “Princípio da

Prioridade Absoluta” está assegurado pelo caput do artigo 227 da Carta Magna e pelo artigo

da Prioridade Absoluta” estabelecidos neste dispositivo constitucional foram ratificados no artigo 4º, caput, da Lei n. º 8.069/90 (ECA). MARÇURA, Jurandir Norberto; CURY, Munir; PAULA, Paulo Afonso Garrido de. Estatuto da Criança e do Adolescente anotado, p. 22. 102 Cf. MARTINS, Daniele Comin. Estatuto da Criança e do Adolescente & Política de Atendimento, pp. 32 e 33. 103 MARTINS, Daniele Comin. Estatuto da Criança e do Adolescente & Política de Atendimento, pp. 49 e 50. 104 Cf. MARTINS, Daniele Comin. Estatuto da Criança e do Adolescente & Política de Atendimento, p. 50. 105 Dispõe o artigo 1º da Lei n. º 8.069/90: “Esta Lei dispõe sobre a proteção integral à criança e ao adolescente.” MARÇURA, Jurandir Norberto; CURY, Munir; PAULA, Paulo Afonso Garrido de. Estatuto da Criança e do Adolescente anotado, p. 21.

35

4º, caput, da Lei n. º 8.069/90, sendo as garantias desse Princípio, estabelecidas no parágrafo

único do artigo 4º106, da legislação anteriormente mencionada.

Inserido nessa “Doutrina”, encontra -se o direito adquirido pelos infantes de

permanecerem resguardados frente a qualquer forma de violação de seus interesses e no

tocante a essa pesquisa, refere-se à proteção dada nas hipóteses de violência doméstica.

Acerca dessa norma assecuratória, estabelece o artigo 5º do Estatuto da Criança e do

Adolescente: “Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência,

discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer

atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais.” 107

Nota-se que esse dispositivo legal, se preocupou, única e exclusivamente, em deixar

a salvo os infantes contra todas essas formas de violência, possuindo, portanto, apenas o

caráter protetivo, pois em seu final, remete à legislação punitiva e conseqüentemente esta,

com caráter punitivo, a competência para punir quando da ocorrência tentada e consumada de

qualquer das formas previstas no artigo.

Assim, no momento em que essas normas assecuratórias são desrespeitadas, o

sistema penal atua na coerção do agente transgressor através da aplicação de uma punição. As

principais normas punitivas existentes no direito nacional, que devem ser aplicadas nos casos

de violência doméstica estão previstas no Decreto-Lei n. º 2.848 de 1940, que deu origem ao

Código Penal.

No que tange ao objeto desta monografia, o artigo 129, estabelecido na Parte

Especial do Código Penal trata acerca do crime de lesão corporal, definindo CAPEZ, como

sendo a “ofensa à integridade corporal ou saúde, isto é, como todo e qualquer dano

ocasionado à normalidade funcional do corpo humano, quer do ponto de vista anatômico, quer

do ponto de vista fisiológico ou mental.” 108

106 Dispõe o parágrafo único do artigo 4º da Lei 8.069/90: “A garantia de prioridade compreende: a) primazia de receber proteção e socorro em quaisquer circunstâncias; b) precedência de atendimento nos serviços públicos ou de relevância pública; c) preferência na formulação e na execução das políticas sociais públicas; d) destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à infância e à juventude.” MARÇURA, Jurandir Norberto; CURY, Munir; PAULA, Paulo Afonso Garrido de. Estatuto da Criança e do Adolescente anotado, p. 22. 107 MARÇURA, Jurandir Norberto; CURY, Munir; PAULA, Paulo Afonso Garrido de. Estatuto da Criança e do Adolescente anotado, p. 23. No tocante à proteção dos direitos dos infantes frente à ocorrência de agressões, ressalta, ainda, o artigo 18 da Lei 8.069/90: “É dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor.” MARÇURA, Jurandir Norberto; CURY, Munir; PAULA, Paulo Afonso Garrido de. Estatuto da Criança e do Adolescente anotado, p. 32. 108 CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal: parte especial. 4ª ed., revista, atualizada de acordo com as Leis 10.741/03, 10.763/03, 10.826/03 e 10.886/04. Vol. 2. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 128.

36

Ainda, comenta CAPEZ, que a ação nuclear deste delito consiste no verbo “ofender”

à integridade física e/ou mental do indivíduo, sendo, portanto, o objeto jurídico do mesmo,

preservar, não somente a vida do indivíduo, mas também sua incolumidade. O titular

exclusivo para a propositura da ação penal, é o Representante do Ministério Público, por tratar

o bem jurídico tutelado, de um bem público indisponível.109

Os meios utilizados na execução do crime de lesões corporais são os mesmos do

delito de homicídio, não sendo necessário, nesse caso, o emprego de força física para sua

consumação. E, a respeito desta, por tratar-se de crime de dano, o momento consumativo é

aquele em que ocorre a efetiva ofensa à integridade, caracterizando-se em um delito

instantâneo, não importando para tanto, o tempo de duração da lesão. Aceita-se, todavia, a

tentativa do crime, não incidindo esta, nas formas culposas e preterdolosa.110

Analisando esse artigo, tem-se que tal delito consiste em um crime comum, em que

qualquer pessoa pode ser o sujeito ativo, como também o passivo, tornando-se necessário para

a prática do mesmo, o dolo. O crime de lesões corporais pode ser classificado em quatro

formas: o simples (art. 129, caput, do CP), o qualificado (art. 129, §§ 1º, 2º e 3º, do CP), o

privilegiado (art. 129, § 4º, do CP) e o culposo (art. 129, § 6º, do CP).111

Além destas, a Lei n. º 10.886, promulgada no dia 17 de junho de 2004, “inovou” 112,

ao acrescentar no artigo 129 do CP, os parágrafos 9º e 10º. Estes foram criados com o intuito

de atribuir reprimendas mais severas aos sujeitos ativos das agressões intrafamiliares, em

virtude de seu poder (de fato, de domínio e/ou econômico) prevalecer sobre os demais

membros da família.113 É o que prescreve:

Ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem: Pena - detenção, de três meses a um ano. (...) Violência Doméstica § 9o Se a lesão for praticada contra ascendente, descendente, irmão, cônjuge ou companheiro, ou com quem conviva ou tenha convivido, ou, ainda, prevalecendo-se o agente das relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade: Pena – detenção, de 6 (seis) meses a 1 (um) ano. § 10. Nos casos previstos nos §§ 1o a 3o deste artigo, se as circunstâncias são as indicadas no § 9o deste artigo, aumenta-se à pena em 1/3 (um terço).114

109 Cf. CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal, pp. 129 e 132. 110 Cf. CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal, pp. 132 a 134. 111 Cf. CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal, p. 135. 112 Essa inovação incide apenas na legislação material e não no plano real como tentativa de coibição da prática do delito de violência doméstica, em virtude de se caracterizar ínfima a pena e, portanto, não severa ao agente ativo, como também, em razão de que a repressão não é causa solucionadora dessas ocorrências e sim, apenas a educação dos pais ou responsáveis. 113 Cf. CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal, p. 149. 114 BRASIL. Código Penal, pp. 93 e 94. Os parágrafos 1º, 2º e 3º, que se refere o parágrafo 10º, tratam-se das lesões corporais de natureza grave e das lesões corporais seguida de morte.

37

Anteriormente a Lei n. º 10.886/04, a violência praticada no âmbito doméstico era

definida apenas como agravante genérico, previsto no artigo 61, inciso II, alíneas “e” e “f” do

Código Penal.115 Atualmente, esse tipo de agressão constitui uma qualificadora da pena

prevista no caput do artigo 129 do CP, a qual aumenta a pena mínima de três meses para seis

meses, todavia, ter permanecido a pena máxima em um ano de detenção. Configura desta

forma, uma infração de menor potencial ofensivo116 sujeita, portanto, à transação penal117,

cuja competência da Ação é do Juizado Especial Criminal, se na Comarca houver. Sendo este

competente, tem-se que a sanção de detenção a priori cominada ao agressor poderá ser

substituída por uma pena restritiva de direitos ou multa, a ser proposta pelo Ministério

Público, conforme prevê o artigo 76 da Lei n. º 9.099/95 (Lei dos Juizados Especiais Cíveis e

Criminais).

Apesar das “inovações” trazidas com a Lei n. º 10.886/04, manteve -se ainda, a

necessidade nos casos de violência doméstica da representação do ofendido118, sendo que

esta, dificilmente é realizada quando se trata de crimes intrafamiliares, por ser o agressor um

membro da família. E, mais, a pena a ser aplicada em tais casos é tão ínfima que nem sequer

intimida a não ocorrência de tal delito.

Ressalta-se que o parágrafo 9º do artigo 129 do CP não se aplica em relação aos

parágrafos 1º, 2º e 3º do mesmo dispositivo. Acerca disto comenta CAPEZ, afirmando que

não incide “por uma razão óbvia: a pena nele cominada é muito inferior de maneira que seria

extremamente vantajoso agredir um parente, cônjuge ou companheiro de modo grave ou

gravíssimo. A qualificadora só incide em lesões dolosas leves.” 119

Além do artigo 129, o Código Penal prevê ainda, no artigo 136, outro dispositivo que

se relaciona diretamente ao delito de violência doméstica praticada contra a criança e ao

adolescente. Trata-se do crime de maus-tratos, que dispõe: 115 De acordo com o artigo 61 do Código Penal compreendem circunstâncias agravantes: “São circunstâncias que sempre agravam a pena, quando não constituem ou qualificam o crime: (...) II - ter o agente cometido o crime: (...) e) contra ascendente, descendente, irmão ou cônjuge; f) com abuso de autoridade ou prevalecendo-se de relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade; (...) h) contra criança, maior de 60 (sessenta) anos, enfermo ou mulher grávida; (...).” BRASIL. Código Penal, p. 75. 116 Segundo o parágrafo único do artigo 2º, da Lei n. º 10.259/01 (revogou tacitamente o artigo 61 da Lei n. º 9.099/95): “Consideram -se infrações de menor potencial ofensivo, para os efeitos desta Lei, os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a dois anos, ou multa.” BRASIL. Código de Processo Penal: Decreto-Lei n. º 3.689, de 3/10/1941. Atualizado pela Lei n. º 10.628, de 24/12/2002 e acompanhado de legislação complementar, súmulas e índices. 18ª ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 495. 117 A transação penal está prevista no artigo 76 da Lei n. º 9.099/95, que estabelece: “Havendo representação ou tratando-se de crime de ação penal pública incondicionada, não sendo caso de arquivamento, o Ministério Público poderá propor a aplicação imediata de pena restritiva de direitos ou multas, a ser especificada na proposta.” BRASIL. Código de Processo Penal, p. 390. 118 Cf. CAPEZ, Fernando. Curso de direito Penal, p. 129. 119 CAPEZ, Fernando. Curso de direito Penal, pp. 150 e 151.

38

Expor a perigo a vida ou a saúde de pessoa sob sua autoridade, guarda ou vigilância, para fim de educação, ensino, tratamento ou custódia, quer privando-a de alimentação ou cuidados indispensáveis, quer sujeitando-a a trabalho excessivo ou inadequado, quer abusando de meios de correção ou disciplina: Pena – detenção, de 2 (dois) meses a 1 (um) ano, ou multa. § 1. º Se do fato resulta lesão corporal de natureza grave: Pena – reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos. § 2. º Se resulta a morte: Pena – reclusão, de 4 (quatro) a 12 (anos). § 3. º Aumenta-se a pena de um terço, se o crime é praticado contra pessoa menor de 14 (catorze) anos. 120

Para CAPEZ, trata-se de crime de perigo, em que se protege “a vida e a saúde

humana daquele que se encontra sob a autoridade, guarda ou vigilância do sujeito ativo, para

fins de educação, ensino, tratamento ou custódia.” 121 Isso é o objeto jurídico do delito em

questão, que visa reprimir os abusos de autoridade ou os abusos do poder de correção e

disciplina impostas, no caso desse estudo, aos infantes.

A ação nuclear do crime consiste no verbo “expor” um ser humano a uma situação de

risco iminente a sua vida ou saúde. A “exposiç ão” pode ser realizada de diversas maneiras,

entre elas: a privação de alimentos e de cuidados necessários à vítima, compreendendo esses,

na modalidade omissiva do delito, ressaltando, porém, que se tal privação for permanente ou

absoluta, descaracteriza o crime de maus-tratos e passa a enquadrar no delito de homicídio.

Outras formas de execução da exposição são aquelas em que se sujeita a pessoa a trabalho

excessivo ou inadequado ou ainda, quando os pais e/ou responsáveis legais utilizam

imoderadamente do meio corretivo.122

Por tratar-se de crime próprio, o sujeito ativo do crime de maus-tratos é aquela

pessoa que com dolo expõe um outro indivíduo que se encontra “sob sua guarda, autoridade

ou vigilância para fins de educação, ensino, tratamento ou custódia.” 123 Logo, o sujeito

passivo é este, que se encontra sob essa situação, devendo “haver necessariamente uma

relação subordinativa entre o agente e a vítima.” 124

Na falta dessa legitimidade, o ato, mesmo com um fim educativo ou corretivo, não se

enquadra na tipicidade de maus-tratos, podendo constituir outros crimes previstos no Código

Penal. E, ainda, praticando o agente um ato dentro do âmbito familiar, o mesmo incorre nas

circunstâncias agravantes previstas no artigo 61 do mesmo diploma legal.125

120 BRASIL. Código Penal, p. 95. 121 CAPEZ, Fernando. Curso de direito Penal, p. 210. 122 Cf. CAPEZ, Fernando. Curso de direito Penal, pp. 210 e 211. 123 CAPEZ, Fernando. Curso de direito Penal, p. 212. 124 CAPEZ, Fernando. Curso de direito Penal, p. 212. 125 Cf. MIRABETE, Júlio Fabbrini. Manual de Direito Penal: Parte Especial. Vol. 2. 18ª ed. Revista e atualizada até maio de 2001. São Paulo: Atlas, 2001, pp. 141 a 143.

39

Ao contrário do delito previsto no artigo 129 do CP, anteriormente analisado, o

artigo 136 da mesma legislação, não permite nas modalidades omissivas a tentativa, não

podendo desta forma haver a tentativa de maus-tratos ocasionados por privação de alimentos

ou cuidados essenciais. O momento consumativo dá-se, portanto, com a ocorrência de um

dano instantâneo ou permanente, à vítima, em virtude de uma conduta praticada

habitualmente (crime continuado – reiteração) pelo agente ativo.126

Embora haja diferenciação entre os artigos 129 e 136 do CP, estes constituem alguns

dos diversos dispositivos punitivos existentes na legislação penal127, os quais prevêem

sanções a serem aplicadas aos agentes ativos do crime de violência doméstica. Além das

normas protetivas e das normas punitivas explanadas nesse subcapítulo, existem normas e

princípios que reconhecem internacionalmente, os direitos da criança e do adolescente frente a

qualquer forma de violação de seus interesses. Essas legislações assecuratórias internacionais

serão abordadas em seguida.

2.2.2 No ordenamento jurídico internacional

A luta pelo reconhecimento internacional dos direitos dos infantes iniciou em 1924,

quando foi proclamada pela primeira vez uma legislação, que de forma genérica, mencionou

os direitos da criança e do adolescente, a denominada “Carta da Liga sobre a Criança”,

correspondendo a um “direito internacional privado uniformizado”, intitulado de Declaração

de Genebra dos “Direitos da Criança”. 128

Esta Declaração estabeleceu um marco no ordenamento jurídico internacional,

servindo de base às legislações posteriores. Logo, no ano de 1948, foi proclamada a

“Declaração Universal dos Direitos Humanos”, a qual prescrevia direitos fundamentais às

pessoas humanas e deveres essenciais aos Estados-Membros signatários.129

126 Cf. CAPEZ, Fernando. Curso de direito Penal, pp. 213 e 214. 127 Exemplificando esses dispositivos punitivos, pode o agente ativo do crime de agressões intrafamiliares incorrer no art. 133, que trata do crime de abandono de incapaz; no art. 213, que estabelece o delito de estupro; no art. 244, que prescreve o crime de abandono material; no art. 246, que prevê o delito de abandono intelectual, entre outros, todos dispostos no Código Penal brasileiro. 128 Cf. DOLINGER, Jacob. Direito Internacional Privado: Parte Especial. Direito Civil Internacional. Vol. 1 – A família no direito internacional. Tomo segundo – A criança no direito internacional. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, pp. 80 e 81. 129 Cf. DOLINGER, Jacob. Direito Internacional Privado, p. 80.

40

No que tange às crianças e aos adolescentes, essa Declaração reconheceu que os

mesmos gozam de proteção especial de seus direitos130, estabelecendo com isso, uma das

principais fontes para as posteriores instituições da “Doutrina da Proteção Intergral” e do

“Princípio da Prioridade Absoluta” no ordenamento jurídico nacional.

Baseada nessa Declaração e na de Genebra, em 1959, foi proclamada a “Declaração

dos Direitos da Criança”, a qual estabeleceu Princípios de proteção à integridade física e

mental dos infantes, como por exemplo: o direito a um desenvolvimento sadio, de que seus

interesses fossem assegurados acima de tudo, de crescer no seio familiar, de proteção contra

quaisquer formas de negligência, crueldade e exploração, entre outros.131

No ano de 1989, foi proclamada a “Convenção sobre os Direitos da Criança”, que

prescreveu especificamente, normas assecuratórias à infância e adolescência nos casos de

agressões intrafamiliares, como também estabeleceu medidas que devem ser adotadas pelos

Estados-Partes nessas situações, abrangendo à tutela contra a exploração e abusos sexuais e

determinou ainda, diretrizes para que o infante vitimizado obtivesse a recuperação da

incolumidade física e emocional.132

Em 1990, foi realizado o “Oitavo Congresso das Nações Unida s sobre Prevenção do

Delito e Tratamento do Delinqüente”, o qual estabeleceu diretrizes para a prevenção da

delinqüência juvenil, bem como, prescreveu normas acerca do bem-estar da comunidade.

Estas diretrizes foram denominadas de Riad, através da Resolução n. 45/112.133

Assim como as Declarações e a Convenção abordadas anteriormente, as Diretrizes de

Riad visam assegurar à criança e o adolescente em face da violência doméstica, dispondo que

somente o infante que tiver sofrido maus-tratos, lesões físicas ou emocionais e que se

encontrar em situação de risco iminente por culpa dos pais e/ou responsáveis, pode ser

internado em instituições a fim de que se preserve ao máximo sua integridade.134

E, ainda, essas Diretrizes prescreveram Princípios com intuito de que fosse o tema

“violência doméstica”, suas causas e conseqüências, levado a conhecimento da sociedade em

130 A respeito desta proteção especial, vide art. 25, n. º 2, da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948. 131 No tocante a estes Princípios, vide os preceitos 2º, 6º e 9º, da Declaração dos Direitos da Criança, de 1959. 132 Acerca desta norma protetiva aos infantes e das medidas a serem adotadas pelos Estados-Partes nos casos de violência doméstica, vide o arts. 9º, n. º 1; 19; 20; 34 e 39 da Convenção sobre os Direitos da Criança, de 1989. 133 Cf. MARÇURA, Jurandir Norberto; CURY, Munir; PAULA, Paulo Afonso Garrido de. Estatuto da Criança e do Adolescente anotado, pp. 285 a 287. 134 Cf. MARÇURA, Jurandir Norberto; CURY, Munir; PAULA, Paulo Afonso Garrido de. Estatuto da Criança e do Adolescente anotado, pp. 294 e 295. No tocante a este Princípio, vide o de n. º 45, do n. º V “Política Social”, das Diret rizes de Riad (Resolução 45/112 de 1990).

41

geral, visando um aumento de delações a esse respeito e conseqüentemente, uma coibição da

prática desse delito.135

No entanto, para que todas estas normas assecuratórias e repressivas, tanto a nível

interno como externo, supramencionadas, possam ser concretizadas, torna-se necessário

acionar o “controle social punitivo institucionalizado”. E, a fim de que seja este

operacionalizado é essencial a atuação das diversas agências ou segmentos que o compõe,

conforme foi mencionado no subcapítulo 1.3. No tocante a essas instituições atém-se o

subcapítulo seguinte.

2.3 AS INSTITUIÇÕES ENCARREGADAS DA TUTELA

Baseado no que fora até então abordado, tem-se que, a partir da promulgação da

Constituição Federal de 1988, sendo esta calcada na legislação internacional e ratificada pela

Lei n. º 8.069/90, os infantes adquiriram a cidadania, passando a ser titulares de direitos

especiais e prioritários, por se tratarem de seres em peculiar desenvolvimento.

Além dos dispositivos protetivos e repressivos anteriormente mencionados, o artigo

141 do Estatuto da Criança e do Adolescente estabelece ser direito do infante, o acesso à

Justiça, ao Poder Judiciário, ao Ministério Público e à Defensoria Pública. Segundo

VERONESE, o “acesso à Justiça, que não pode ser entendido como mera capacidade de

ingressar em juízo, tem em seu fundamento a necessidade de maior conscientização por parte

das camadas populares, com intuito de se alcançar uma justiça social.” 136 A acessibilidade da

Justiça, portanto, constitui no exercício do direito de cidadania do infante.

Os artigos 227, caput, da Carta Magna de 1988 e 4º, caput, da Lei n. º 8.069/90,

prescrevem também, acerca dos sujeitos responsáveis pelo sistema assecuratório, ressaltando

ser dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do Poder Público zelar pela

preservação dos direitos da criança e do adolescente, inclusive de deixá-los a salvo de

qualquer forma de violência que atente contra seus interesses.

135 Cf. MARÇURA, Jurandir Norberto; CURY, Munir; PAULA, Paulo Afonso Garrido de. Estatuto da Criança e do Adolescente anotado, p. 295. Acerca destes preceitos, vide o Princípio n. º 48, do n. º V “Política Social”, das Diretrizes de Riad (Resolução 45/112 de 1990). 136 VERONESE, Josiane Rose Petry. Interesses Difusos e Direitos da Criança e do Adolescente. Belo Horizonte: Del Rey, 1997, p. 17.

42

Os preceitos supracitados abordam amplamente os agentes responsáveis pela

proteção jurisdicional aos direitos do infante. Especificamente, na Cidade de Florianópolis

(SC), as instituições encarregadas desta atribuição nos casos de violência doméstica são: a

família, os profissionais da área da educação e da área médica, a Polícia, o Conselho Tutelar,

o Projeto Sentinela, o Ministério Público e o Poder Judiciário.

De um certo ponto de vista seria contraditório afirmar que a família possui um papel

extremamente importante nos casos de violência doméstica contra a criança e o adolescente,

em virtude do ato ser praticado em seu âmbito. Todavia, a entidade familiar constitui a base

fundamental para um desenvolvimento sadio do infante e é seu dever proporcionar esse

ambiente à criança. Mas nos casos de agressões intrafamiliares, ocorre à quebra desta

instituição “família”, passando um membro (s) a transgredir os direitos e o outro (s) a protegê -

los.

Nessas hipóteses, em razão da relação de poder existente, os mais fracos começam a

omitir tais ocorrências, por se tratar o agressor (s) um componente da “família” ou por

estarem sendo ameaçados pelo mais forte. Esse é um dos fatores que caracterizam a violência

doméstica como um crime silencioso.

Compondo esse mecanismo assecuratório, os auxiliares da Justiça da Infância e

Juventude integram a equipe interprofissional, prevista no artigo 150 da Lei 8.069/90. Como

por exemplo, os profissionais da área médica (psiquiatras, pediatras etc), os psicólogos, as

assistentes sociais, os profissionais da esfera da educação, os vizinhos e outros, cujas

competências estão dispostas no artigo 151 do Estatuto da Criança e do Adolescente, sendo

algumas delas: fornecer laudos, desenvolver trabalhos de aconselhamento, orientação,

encaminhamento, prevenção etc.

A obrigatoriedade da delação dos casos de agressões intrafamiliares às autoridades

competentes está prevista no artigo 13 do ECA, que dispõe: “Os casos de suspeita de maus -

tratos contra a criança ou adolescente serão obrigatoriamente comunicados ao Conselho

Tutelar da respectiva localidade, sem prejuízo de outras providências legais.” 137 O desrespeito

a este preceito acarreta sanções administrativas aos agentes tutelares.138

137 MARÇURA, Jurandir Norberto; CURY, Munir; PAULA, Paulo Afonso Garrido de. Estatuto da Criança e do Adolescente anotado, p. 28. 138 Acerca dessa sanção administrativa, prescreve o artigo 245 da Lei n. º 8.069/90: “Deixar o médico, professor ou responsável por estabelecimento de atenção à saúde e de ensino fundamental, pré-escola ou creche, de comunicar à autoridade competente os casos de que tenha conhecimento, envolvendo suspeita ou confirmação de maus-tratos contra criança e adolescente: Pena – multa de três a vinte salários de referência, aplicando-se o dobro em caso de reincidência.” MARÇURA, Jurandir Norberto; CURY, Munir; PAULA, Paulo Afonso Garrido de. Estatuto da Criança e do Adolescente anotado, p. 209.

43

Dessa forma, a suspeita ou a confirmação de maus-tratos no aluno (a), detectada pelo

professor (a), em um estabelecimento de ensino fundamental, em creches e pré-escolas,

deverá ser comunicada ao Conselho Tutelar através dos dirigentes da escola, não obstante a

comunicação à autoridade judiciária competente, ao membro do Ministério Público ou ainda,

à autoridade policial.139

O Conselho Tutelar, como órgão permanente, autônomo e não jurisdicional, é o

encarregado de fiscalizar o cumprimento dos direitos dos infantes140, exercendo atribuições141

que “visam articular a comunidade às ações governamentais, a fim de solucionar os

problemas infanto-juvenis.” 142 Portanto, o primeiro órgão a ser procurado para denunciar as

agressões intrafamiliares, é o Conselho Tutelar.

Após a delação, os conselheiros podem atender os pais ou responsáveis pela criança

e/ou adolescente, aplicando se for o caso, as medidas protetivas a estes, previstas no artigo

101, como também empregando àqueles, as medidas “repressivas” previstas nos incisos I a

VI, do artigo 129, todos do ECA.143 É importante salientar, que esse Órgão não deve ser

considerado um abrigo para os infantes que sofrem de violência doméstica, nem tão pouco

possui competência judiciária para resolver tais casos.144

Como instituição auxiliar, o Projeto Sentinela, financiado pelo Governo Federal e

Estadual, instituído a nível Municipal tem por objetivo assistir psicológica e socialmente os

infantes vitimizados pela agressão no âmbito familiar. Todas as suas atribuições,

desenvolvidas por psicólogos, assistentes sociais e educadores, visam amenizar as seqüelas

deixadas pela violência.145 Trata-se, portanto, de um colaborador no cumprimento das

atribuições competentes ao Conselho Tutelar.

Em Florianópolis (SC), esse Projeto é dividido em outros três programas: o SOS

Criança, que funciona como disque-denúncia de maus-tratos; o MEL, que atua

139 A respeito, vide o artigo 56, inciso I, do Estatuto da Criança e do Adolescente. 140 A definição de Conselho Tutelar está prevista no artigo 131 da Lei n. º 8.069/90. 141 No tocante às atribuições do Conselho Tutelar, vide os artigos 136 e após, 101 e 129 do Estatuto da Criança e Adolescente. 142 MARTINS, Daniele Comin. Estatuto da Criança e do Adolescente & Política de Atendimento, p. 64. 143 Cf. GOMES NETO, Gercino Gérson. Conselhos Municipais de Direitos, Conselhos Tutelares e Fundos para a Infância e Adolescência. Disponível em: <http://www.mp.sc.gov.br/portal/ca/cij/doutrina/06_gercino_palestrasCT.htm>. Acesso em: 18 nov. 2004. 144 Cf. O GIRASSOL, Jornal. Números estarrecedores. Disponível em: <http://www.ogirasssol.com.br/aprender47/aprender1.htm>. Acesso em: 03 out. 2004. 145 Cf. O GIRASSOL, Jornal. Projeto Sentinela e Centro de Recepção e Triagem ajudam na recuperação de traumas. Disponível em: <http://www.ogirasssol.com.br/aprender47/aprender5.htm>. Acesso em: 27 dez. 2004.

44

preventivamente junto às comunidades; e o Acorde, que oferece o acompanhamento

psicológico às crianças e aos adolescentes vítimas de violência sexual.146

O Ministério Público e o Poder Judiciário da Infância e Juventude atuarão nos casos

de descumprimento pelos pais e/ou responsáveis das medidas aplicadas pelo Conselho

Tutelar. Nessas hipóteses, este promoverá a representação ao Magistrado para a efetivação da

medida ou a representação ao Promotor de Justiça para a concretização das medidas cabíveis

em sua órbita competente.147

Ressalta-se que, independentemente de representação à Justiça Especializada, a

autoridade policial registrará a ocorrência e encaminhará os autos do Inquérito Policial à

Justiça Comum. E lá, o Ministério Público Criminal tem a prerrogativa de oferecer a

denúncia148, incorrendo o agressor nas penas previstas nos dispositivos explanados no

subcapítulo 2.2.1.

O Ministério Público, como parte integrante da Justiça Especializada da Infância e

Juventude, possui uma estreita ligação quando se tratam de direitos inerentes à criança e ao

adolescente, por constituírem estes, direitos sociais e individuais indisponíveis, em que o

Órgão Ministerial tem legitimidade ativa para tutelar, conforme dispõe o artigo 127, caput, da

Constituição Federal de 1988: “O Ministério Público é instituição permanente, essencial à

função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime

democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.” 149

As competências inerentes ao Ministério Público, no âmbito de proteção da infância

e juventude, não se exaurem com as funções tradicionais de fiscalização do atendimento

prestado à criança e ao adolescente, de zelo pelo efetivo respeito às garantias legais

asseguradas e de promoção de medidas judiciais e extrajudiciais cabíveis taxadas no artigo

201 da Lei n. º 8.069/90, mas incluem todas as atribuições às quais a Lei Orgânica local do

Parquet conferir aos seus Representantes.150

O Promotor de Justiça deve se especializar, pois na órbita de atendimento às crianças

e aos adolescentes, o mesmo se desprende das tradicionais funções cumpridas na esfera

comum e passa a atuar como um ombudsman, ou seja, um defensor dos infantes. Para isso,

146 Cf. AN Capital. Projeto Sentinela. Disponível em: <http://an.uol.com.br/ancapital/2004/abr/16/1ger.htm>. Acessão em: 15 jan. 2005. 147 Cf. Cf. GOMES NETO, Gercino Gérson. Conselhos Municipais de Direitos, Conselhos Tutelares e Fundos para a Infância e Adolescência. Disponível em: <http://www.mp.sc.gov.br/portal/ca/cij/doutrina/06_gercino_palestrasCT.htm>. 148 Salienta-se que nas ações públicas condicionadas, torna-se necessário para o oferecimento da denúncia, a representação do ofendido, conforme prevê o artigo 24 do Código de Processo Penal. 149 BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil, p. 71. 150 Cf. MARTINS, Daniele Comin. Estatuto da Criança e do Adolescente & Política de Atendimento, p. 66.

45

torna-se necessário proporcionar a esses seres em desenvolvimento o acesso livre sempre que

precisarem.151 Esses papéis desempenhados são

realmente úteis à comunidade. O atendimento direto à população e à criança e ao adolescente, bem como a visita a instituições de atendimento como creches, lares e até mesmo escolas, entre outras, aproximam o Parquet da realidade social e das necessidades da comunidade, tornando mais fácil sua atuação efetiva através dos mecanismos jurisdicionais que ele tem a sua disposição, instrumentos poderosos para a proteção dos direitos de crianças e adolescentes.152

Entre as diversas agências de proteção dos direitos da infância e adolescência, o

Poder Judiciário integra um dos meios de atuação do sistema penal na luta pela defesa dos

direitos dos infantes, pois é através do Juiz, que se aplica à punição ao agente transgressor.

Todavia, o Juízo encarregado de tal função, é o Comum e não o Especializado.153 A este, cabe

apenas a titularidade da proteção judiciária acerca das medidas “re pressivas” 154 impostas aos

pais e/ou responsáveis pela pratica da agressão, não competindo, portanto, à aplicação da pena

ao agressor.155

A Justiça Especializada da Infância e da Juventude constitui um sistema tutelar,

composto por: Juizes, Promotores de Justiça, Advogados e técnicos, “que através de ações

articuladas promovem a justiça garantindo, e restabelecendo os direitos da criança e do

adolescente.” 156 Cada um desses integrantes possuem funções determinadas pelo ECA, sendo

que o exercício harmônico da atividade competente a um deles, reforça o exercício das

atividades dos outros.

O Magistrado, componente desta Justiça Especializada, cumpre funções processuais,

tanto administrativas como jurisdicionais. Quando desempenha atividades administrativas

“estar á procedendo à fiscalização de entidades, de locais de diversões públicas e outras,

objetivando prevenir a ameaça ou violação dos direitos assegurados pelo Estatuto.” 157 No

entanto, quando desempenha “função jurisdicional refere -se ao julgamento, ao ato de

151 Cf. MARTINS, Daniele Comin. Estatuto da Criança e do Adolescente & Política de Atendimento, p. 67. 152 MARTINS, Daniele Comin. Estatuto da Criança e do Adolescente & Política de Atendimento, p. 67. 153 Esta competência especializada atribuída pelo Poder Judiciário ao Magistrado se dá em razão da matéria que está sendo tratada: infância e adolescência. 154 Acerca destas medidas “repressivas”, vide o artigo 129 do Estatuto da Criança e do Adolescente. 155 Cf. MARTINS, Daniele Comin. Estatuto da Criança e do Adolescente & Política de Atendimento, p. 62. 156 GOMES NETO, Gercino Gérson. O sistema de garantias dos direitos das crianças e o Estatuto da Criança e do Adolescente, a Constituição da República e a Convenção sobre o Direito da Criança, aprovada pela Assembléia-Geral da ONU em 20 de novembro de 1989. Disponível em: <http://www.mp.sc.gov.br/portal/ca/cij/doutrina/05_gercino_sistemagarantias.htm>. Acesso em: 23 jun. 2004. 157 GOMES NETO, O sistema de garantias dos direitos das crianças e o Estatuto da Criança e do Adolescente, a Constituição da República e a Convenção sobre o Direito da Criança, aprovada pela Assembléia-Geral da ONU em 20 de novembro de 1989. Disponível em: <http://www.mp.sc.gov.br/portal/ca/cij/doutrina/05_gercino_sistemagarantias.htm>.

46

julgar” 158 o adolescente que comete ato infracional e também, ao de aplicar as medidas

“repressivas”.

Logo, o Juiz da Infância e Juventude é aquele designado pela Lei de Organização

Judiciária local, com competência para julgar causas decorrentes da violação das normas da

Lei n. º 8.069/90, cujas decisões devem ser sempre fundamentadas de modo que sua postura

seja de um “ser humanamente criativo e inquieto, no sentido de querer com a mente e com o

coração o cumprimento dos direitos pertencentes às crianças e aos adolescentes.” 159

Para MARTINS, o Magistrado que atua na proteção de direitos de seres especiais em

desenvolvimento, deve, conseqüentemente, tornar-se um agente especializado de acordo com

os Princípios estabelecidos pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, sendo necessário para

isso, “abandonar as práticas anteriores e, extrapolando a mera atividade de apreciação

probatória ou de presidência de audiências de instrução ou de julgamento, deverá passar a ter

contato efetivo com crianças e adolescentes” 160, bem como “com suas famílias, escola e

demais instituições vinculadas ao problema” 161 da violência doméstica.162

A função do Juiz, no âmbito da infância e juventude, é de extrema importância,

porque o próprio ordenamento estatutário, encarrega o Magistrado da tutela jurisdicional de

pessoas em peculiar desenvolvimento e não apenas de direitos a elas inerentes.163 Para

PAULA, “o juiz é um dos construtores da cidadania na medida em que valida direitos sociais,

garantindo a concretude dos direitos fundamentais.” 164

Assim, a criança e o adolescente possuem um sistema assecuratório composto por

várias instituições, cada qual encarregada de determinadas funções, que harmonicamente

exercidas, comprometem-se a proteger contra qualquer forma de transgressão de seus direitos.

Acerca da atuação conjunta das agências, ressalta FERRAJOLI, citado por CARVALHO:

A experiência ensina que nenhuma garantia jurídica pode sustentar-se somente sobre normas; que nenhum direito fundamental pode concretamente sobreviver se

158 GOMES NETO, O sistema de garantias dos direitos das crianças e o Estatuto da Criança e do Adolescente, a Constituição da República e a Convenção sobre o Direito da Criança, aprovada pela Assembléia-Geral da ONU em 20 de novembro de 1989. Disponível em: <http://www.mp.sc.gov.br/portal/ca/cij/doutrina/05_gercino_sistemagarantias.htm>. 159 VERONESE, Josiane Rose Petry. Interesses Difusos e Direitos da Criança e do Adolescente, p. 206. 160 MARTINS, Daniele Comin. Estatuto da Criança e do Adolescente & Política de Atendimento, p. 68. 161 MARTINS, Daniele Comin. Estatuto da Criança e do Adolescente & Política de Atendimento, p. 69. 162 Cf. MARTINS, Daniele Comin. Estatuto da Criança e do Adolescente & Política de Atendimento, pp. 68 e 69. 163 Cf. PAULA, Paulo Afonso Garrido de. Direito da criança e do adolescente e tutela jurisdicional diferenciada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 66. 164 PAULA, Paulo Afonso Garrido de. Direito da criança e do adolescente e tutela jurisdicional diferenciada, p. 67.

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não é sustentado por uma atuação por parte de quem é seu titular, e pela solidariedade das forças políticas e sociais para com essa atuação. 165

Desta forma, para que se atinja a plena efetividade da tutela jurisdicional aos direitos

da infância e da juventude, torna-se necessário que as atividades das instituições formem em

consonância, uma política preventiva e assistencialista eficaz, envolvendo as atribuições de

todos os colaboradores do sistema penal contemporâneo, a fim de que ocorra a tentativa de

combate a essa realidade cruel, que assola o cotidiano da criança e do adolescente.

É acerca dos procedimentos adotados para tutelar o direito inerente aos infantes nos

casos de violência doméstica, previstos no Estatuto da Criança e do Adolescente, bem como a

comparação do mesmo com o procedimento que realmente é efetivado cotidianamente, o qual

acarreta déficits tanto institucionais como garantidores e as conseqüências procedentes dessas

deficiências no mecanismo criminal, que tratará o próximo capítulo.

165 FERRAJOLI, Luigi. Diritto e Ragione: Teoria del Garantismo Penale. 5ª ed. Roma: Laterza, 1998, p. 986 Apud: CARVALHO, Salo de. Pena e Garantias. 2ª ed. Revista e atualizada. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. xxv.

48

3 A DINÂMICA DA TUTELA JURISDICIONAL AOS DIREITOS DA CRIANÇA

E DO ADOLESCENTE NOS CASOS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA

Compendiando os capítulos abordados, obtém-se que, somente com a promulgação

do ordenamento constitucional no ano de 1988, houve o reconhecimento formal da cidadania

à infância e à adolescência, passando os mesmos a serem titulares de direitos. Essa conquista,

principiada em normas internacionais, estabeleceu no âmbito nacional a “Doutrina da

Proteção Integral” e o “Princípio da Prioridade Absoluta” aos interess es inerentes à criança e

ao adolescente.

Ratificando essa ideologia e revogando a legislação menorista, o ECA, como

ordenamento especial, vislumbrou materialmente a quebra do estigma “menor”, termo

anteriormente reputado para denominar criança e adolescente, concedendo a estes, a qualidade

de serem tratados como seres em peculiar desenvolvimento. Além disso, seus preceitos

estabeleceram a descentralização166 da responsabilidade pela preservação dos direitos dos

infantes, deixando de recair apenas ao Estado, enlaçando também, à família e à sociedade em

geral.

Nos casos de violência doméstica, a Lei n. º 8.069/90 prevê procedimentos a serem

adotados por esses agentes protetivos no exercício de suas atribuições legais, com o intuito de

preservar ao máximo os interesses dos infantes nessas ocorrências. Esse mecanismo

assecuratório, nada mais é, do que o próprio sistema penal contemporâneo. Assim, ante toda

pesquisa realizada, resta explanar acerca da operacionalização do “controle social punitivo

institucionalizado” nas hipóteses de agressões intrafamiliares.

Logo, este terceiro capítulo desenvolver-se-á em etapas, que compreendem: primeira,

abrangerá o procedimento tutelar prescrito no Estatuto da Criança e do Adolescente a ser

aplicado nas ocorrências de violência doméstica, englobando neste subcapítulo, a atividade

das instituições protetivas; segunda, tratará acerca dos déficits institucionais oriundos da

inutilização do mecanismo assecuratório estabelecido na legislação estatutária e suas

conseqüências na órbita de garantias inerentes à infância e à juventude; e, terceira, abordará a

vinculação das características do sistema penal contemporâneo, mencionadas no primeiro

capítulo, com a proteção dada ao infante nos casos de agressões intrafamiliares, salientando

neste subcapítulo, o caráter ilusório da tutela jurisdicional.

166 Cf. MARTINS, Daniele Comin. Estatuto da Criança e do Adolescente & Política de Atendimento, p. 62.

49

3.1 PROCEDIMENTOS LEGAIS RELATIVOS À TUTELA

A atuação do “controle social punitivo institucionalizado” nos casos de violência

doméstica iniciou com a elaboração pelo legislador do Estatuto da Criança e do Adolescente.

E, estando, portanto, concretizado o “dever -ser”, isto é, o ordenamento estatutário, sobejava -

se a sua aplicação, ou seja, o “ser”. Essa efetivação se dá com o exercício harmônico das

atribuições desempenhadas por cada uma das agências encarregadas na proteção aos infantes.

Partindo dos dispositivos previstos na Lei em questão, tem-se que a

operacionalização do sistema repressivo-tutelar é impulsionada por intermédio da delação dos

casos de agressões intrafamiliares às autoridades competentes. Isso ocorre, quando a criança

e/ou adolescente violentado procura por si próprio ajuda nas entidades tutelares.

Estas podem ser: a Delegacia Especializada, os Projetos atuantes nessa área que

porventura foram implantados no Município, os Conselhos Tutelares, o Disque-Denúncia, os

Hospitais, a escola em que o infante estuda, os vizinhos, os familiares, o Ministério Público e

o Poder Judiciário.

Pode-se citar outras formas de execução de denúncias nessas situações, entre elas: as

efetivadas pelo responsável do infante agredido, as realizadas pelos vizinhos ou familiares que

têm o conhecimento de tais ocorrências, as registradas pelo Disque-Denúncia, as comunicadas

pelos Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente, as originadas dos atendimentos

médicos167 nos Hospitais Públicos ou em Clínicas Particulares, como também, as

concretizadas pelos professores168 dos vitimizados que suspeitam da violência doméstica.

A legislação estatutária prevê que nos casos em que haja suspeita ou confirmação de

agressões intrafamiliares imposta às crianças e aos adolescentes, seja o Conselho Tutelar, o

primeiro local a ser comunicado, a fim de que o mesmo tome as providências que lhe são

cabíveis.169 Desta forma, as delações realizadas por qualquer agente protetivo, devem

primeiramente ser levadas ao conhecimento do Conselho Tutelar do Município.

Quando o procedimento ocorre da maneira abordada, o(s) conselheiro tutelar faz o

atendimento ao infante e o encaminha diretamente para o Hospital encarregado, que

167 No tocante a omissão da delação dos casos de violência doméstica praticada contra a criança e o adolescente pelo profissional da área da saúde, vide o artigo 245 da Lei n. º 8.069/90. 168 Acerca da atribuição obrigatória de denunciar as ocorrências de agressões intrafamiliares concedida ao professor, vide o artigo 56, inciso I e em relação à omissão desta responsabilidade, vide o artigo 245, ambos do Estatuto da Criança e do Adolescente. 169 No que tange a esse preceito, vide o artigo 13 da Lei n. º 8.069/90.

50

geralmente é o Hospital Infantil, se na localidade houver, e lá, são realizadas: a anamnese

detalhada do caso; o exame físico completo, com a descrição das lesões encontradas,

verificando nos casos de violência sexual, as genitálias; os exames radiológicos (ultra-

sonografia, ressonância magnética, tomografia computadorizada, RX etc); o exame de área

específica por especialistas; o atendimento psiquiátrico ou psicológico pós-traumático; como

também, a internação, se necessária.170

Caso a violência doméstica seja detectada preliminarmente pelos profissionais da

área da saúde, em atendimentos emergenciais ou rotineiros, em nível hospitalar ou particular,

a presunção ou a afirmação dessas ocorrências deverá ser encaminhada obrigatoriamente ao

Conselho Tutelar Municipal, sob pena de sanção. Da mesma forma, ocorre com os

profissionais da área da educação. Nota-se que esse procedimento ocorre também, quando

esses agentes tutelares são os primeiros a ter conhecimento das agressões intrafamiliares.

Voltando ao primeiro procedimento mencionado, enquanto a criança e o adolescente

são atendidos pelos profissionais da área da saúde, o Conselho Tutelar comunicará a

Delegacia de Proteção Especializada (Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente)

acerca do caso.

A autoridade policial ao tomar conhecimento do fato acionará o IML (Instituto

Médico Legal) a fim de que este realize o laudo pericial171, que será juntado ao Auto de

Inquérito Policial ou Auto de Prisão em Flagrante. Assim, apurar-se-á o fato delitivo e após,

far-se-á o registro do respectivo Boletim de Ocorrência.

É competência da Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente encaminhar à

Justiça Comum o Auto de Inquérito Policial ou o Auto de Prisão em Flagrante. Estes serão

distribuídos para as Varas Criminais, se na Comarca houver ou para a Vara Única,

competindo ao Promotor de Justiça denunciar ou requerer o arquivamento do caso ao Juiz

Criminal, fundamentando sempre este, a sua decisão.

Quando o Representante do Ministério Público denuncia o fato, adota-se o

procedimento determinado pela pena máxima do crime delatado, seguindo as previsões legais

de seu trâmite, para que ao final, seja o agressor(s) punido penalmente pelo ato praticado.

170 Cf. ABRAPIA, Associação brasileira multiprofissional de proteção à infância e adolescência. Abuso Sexual: mitos e realidades. 3ª ed., revisada, ampliada e atualizada. Rio de Janeiro: Autores & Agentes & Associados, 2002, p. 33. 171 Em se tratando a agressão intrafamiliar de um crime material, que deixa vestígios (ressalvado a violência psicológica, cuja materialidade é de difícil comprovação), torna-se obrigatório o exame de corpo de delito para a posterior deflagração da ação penal, sob pena de nulidade processual, conforme prescrevem os artigos 158 e seguintes do Código de Processo Penal. BRASIL. Código de Processo Penal, p. 41.

51

Portanto, a condenação criminal nos casos de agressões intrafamiliares, não é de competência

da Justiça da Infância e Juventude e sim, do Poder Judiciário Comum.

Paralelamente a esse percurso referido, tramita na Justiça da Infância e Juventude

outro procedimento. Assim, quando o Conselho Tutelar recebe uma denúncia de violência

doméstica, o conselheiro realiza o atendimento à criança e ao adolescente violentado, bem

como aos seus pais ou responsáveis, inclusive àquele que praticou a conduta desviante.

Desta forma, o conselheiro possui a atribuição de aplicar certas medidas, medidas

estas de proteção à criança e ao adolescente vitimizado e de “repressão” 172 aos pais e aos

responsáveis pelo infante. Estas, estão previstas nos incisos I à VII, do artigo 129 do ECA,

sendo elas: “o encaminhamento a programa oficial ou comunitário de proteção à famí lia; a

inclusão em programa oficial ou comunitário de auxílio, orientação e tratamento a alcoólatras

e toxicômanos; o encaminhamento a tratamento psicológico ou psiquiátrico; o

encaminhamento a cursos ou programas de orientação; a obrigação de matricular o filho ou

pupilo e acompanhar sua freqüência e aproveitamento escolar; a obrigação de encaminhar a

criança ou adolescente a tratamento especializado; e, a advertência.”

Já as medidas protetivas aos infantes, cuja aplicação compete ao Conselho Tutelar,

estão previstas nos incisos I à VII, do artigo 101, da Lei 8.069/90, destacando entre elas: “o

encaminhamento aos pais ou responsável, mediante termo de responsabilidade; a orientação,

apoio e acompanhamentos temporários; a inclusão em programa comunitário ou oficial de

auxílio à família, à criança e ao adolescente; a requisição de tratamento médico, psicológico

ou psiquiátrico em regime hospitalar ou ambulatorial; o abrigo em entidades” etc.

As medidas anteriormente citadas devem ser aplicadas sempre que houver a

transgressão dos direitos da infância e juventude, inserindo nessa violação, a falta, a omissão

ou o abuso dos pais ou responsáveis, conforme prevê o inciso II, do artigo 98, do Estatuto da

Criança e do Adolescente.

Deve-se ressaltar, que a intuição da legislação estatutária, ao estabelecer à aplicação

das medidas protetivas e repressivas nesses casos, é a de fortalecer os vínculos familiares e

comunitários. Consiste em um direito fundamental inerente ao infante de permanecer e

172 O intuito de colocar entre aspas a expressão “repressivo” é o de destacar que as medidas aplicadas aos pais ou responsáveis nos casos de violência doméstica, previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente, não possuem o caráter repressivo/punitivo como as penas criminais sentenciadas pela Justiça Comum. Todas as medidas “repressivas” mencionadas no decorrer desta monografia compreendem àq uelas aplicadas pela Justiça da Infância e Juventude, cujas finalidades são reabilitar os agentes ativos desse crime à convivência familiar, como também adverti-los (“chamar a atenção”) pela prática da conduta delitiva.

52

desenvolver-se no seio da família natural173 e excepcionalmente, em famílias substitutas174,

asseguradas sempre à criança e ao adolescente, a convivência familiar e social.175

A medida aplicada pelo conselheiro tutelar não precisa ser homologada pelo Juiz da

Infância e Juventude, todavia, estarem garantidos os direitos processuais de ampla defesa e do

contraditório aos pais, aos responsáveis, à criança ou adolescente, ou ainda, ao Município, que

não aceitou ou não se conformou com tal medida aplicada. Cabe, no entanto, recurso contra a

decisão do Conselho Tutelar, devendo o mesmo ser interposto junto à Justiça da Infância e

Juventude, por ser competência única do Juiz tal apreciação, que possui a faculdade de alterar

ou não, a deliberação do Conselho Tutelar.176

A efetivação das medidas aplicadas far-se-á pelos próprios profissionais que atendem

no Conselho Tutelar, pelos psicólogos e orientadores, pelos médicos e também através do

auxílio dos Projetos de Proteção aos Direitos da Infância e Juventude implantados no

Município.

As funções inerentes ao Promotor de Justiça e ao Magistrado, ambos componentes da

Justiça Especializada, no que tange aos casos de violência doméstica, iniciam-se com o não

cumprimento das medidas aplicadas aos pais, aos responsáveis, às crianças, aos adolescentes e

ao Município pelo Conselho Tutelar. Nada obsta, que sejam estes agentes responsáveis por

outras atribuições previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente.

Nas hipóteses da não concretização das medidas aplicadas, o Conselho Tutelar, após

esgotar todos os procedimentos do seu âmbito de competência177, encaminhará ao Juiz e ao

Representante do Órgão do Ministério Público, uma Representação pelo não cumprimento da

medida aplicada, a fim de que os mesmos tomem as devidas providências.

Uma das funções do Promotor de Justiça nos casos de agressões intrafamiliares

imposta às crianças e aos adolescentes é de dar andamento àqueles procedimentos iniciados

pelo Conselho Tutelar e que não deram resultado pelo fato da medida por ora deliberada não

ter sido executada.

Ao receber a Representação encaminhada pelo Conselho Tutelar, o Membro do

Ministério Público assume a titularidade da ação, podendo requerer que seja cumprida a

173 Acerca do conceito de família natural, vide o artigo 25 do Estatuto da Criança e do Adolescente. 174 No que tange à família substituta, vide os artigos 28 e seguintes da Lei n. º 8.069/90. 175 A este respeito, vide os artigos 04, 19 e seguintes e 100, todos do Estatuto da Criança e do Adolescente. 176 No tocante a possibilidade de recurso contra as medidas deliberadas pelo Conselho Tutelar, vide o artigo 137 do Estatuto da Criança e do Adolescente. 177 Acerca das atribuições do Conselho Tutelar, vide o artigo 136 da Lei n. º 8.069/90.

53

medida ou ainda, dependendo do caso, instaurar um processo para a destituição do Poder

Familiar.178

Essa perda do Poder Familiar pode ser concedida liminarmente179 pela autoridade

judiciária competente. Isso quer dizer que, quando se trata de denúncia de uma ocorrência

grave, como por exemplo, de abuso sexual ou de maus-tratos severos aos infantes, o

Representante do Ministério Público pode requerer ao Magistrado de imediato a destituição

do Poder Familiar, sem a necessidade anterior da realização do atendimento pelo Conselho

Tutelar Municipal.180 Ressalta-se que, a decisão deverá visar sempre o melhor interesse da

criança e do adolescente.

Ao Promotor de Justiça, ainda compete, o requerimento da execução da medida

cautelar, prevista no artigo 130 do Estatuto da Criança e do Adolescente, que prescreve o

afastamento do agressor da moradia comum, nos casos em que se verificam as hipóteses de

violência intrafamiliar.

Como toda e qualquer medida liminar, esta, deverá conter os pressupostos de

admissibilidade, fumus boni iuris e periculum in mora, para ser deferida. Salienta-se nessa

situação, que o bem-estar do infante deverá ser prioritário, assim como a reabilitação do

agente ativo do delito à entidade familiar, pois consiste isso em um direito do infante em

desenvolver-se em um ambiente sadio e cercado por sua família.

Tudo o que fora explanado até agora nesse capítulo, trata-se do procedimento

assecuratório previsto na Lei n. º 8.069/90, para os casos de violência doméstica contra a

criança e o adolescente. Desta forma, se as instituições tutelares mencionadas cumprissem

com todas as suas atribuições de acordo com o trâmite legal estabelecido, poder-se-ia afirmar

a existência de um sistema penal eficaz no combate a esse crime, por tentar preservar ao

máximo a integridade física e mental do infante.

No entanto, no plano real, esse mecanismo tutelar não é devidamente executado

pelas agências assecuratórias, gerando em decorrência, déficits institucionais e

conseqüentemente, deficiências na garantia dos direitos inerentes a esses seres em peculiar

desenvolvimento.

Essas “falhas” existentes, podendo assim afirma r, caracterizam o “controle social

punitivo institucionalizado” como astucioso, sendo capaz de engambelar acerca da eficácia da

178 No que tange ao procedimento de destituição do Poder Familiar, vide os artigos 155 e seguintes do Estatuto da Criança e o do Adolescente. 179 A respeito desta liminar, vide o artigo 157 da Lei 8.069/90. 180 Cf. GOMES NETO, Gercino Gérson. Entrevista I, pp. 72 e 73.

54

tutela dos direitos da infância e juventude. É acerca desses déficits que se atém o próximo

subcapítulo.

3.2 OS DÉFICITS INSTITUCIONAIS E OS DÉFICITS DE GARANTIA AOS DIREITOS

DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE

Como fora abordado nos capítulos anteriores, o sistema penal, como mecanismo de

proteção aos direitos da criança e do adolescente nos casos de violência doméstica, é

composto estruturalmente, por diversas agências. No âmbito dessa pesquisa, esses segmentos

são denominados instituições, sendo que através do desempenho de suas atividades, tutelam a

incolumidade física e mental do infante.

As atribuições outorgadas às instituições protetivas estão estabelecidas no Estatuto

da Criança e do Adolescente, como fora mencionado no subcapítulo 2.3 do presente trabalho.

E, o procedimento assecuratório a ser cumprido por esses agentes nas hipóteses de agressões

intrafamiliares, também encontra respaldo na respectiva lei mencionada, como fora destacado

no subcapítulo 3.1.

Em que pese todo esse aparato legal, o “controle social punitivo institucionalizado”

não é eficaz na tutela e no combate a essa realidade cruel que assola o cotidiano da criança e

do adolescente. Essa ineficácia é resultado da dissonância das atividades exercidas pelas

agências assecuratórias e do descumprimento, por parte das mesmas, do procedimento

prescrito no ECA.

A inefetividade do sistema repressor-tutelar é, portanto, originada das “falhas” ou

déficits da operacionalização dos seus segmentos. No Município de Florianópolis, constatou-

se, por intermédio das informações obtidas na entrevista realizada com o Promotor de Justiça

da Infância e Juventude, Dr. Gercino Gérson Gomes Neto, a insuficiência generalizada do

sistema protetivo ao infante nos casos de violência no âmbito familiar. É a respeito dessas

“deficiências” e das conseqüências destas, quanto às garantias aos direitos da criança e do

adolescente, que se limita este subcapítulo.

Preliminarmente, ressalta-se que, a falta de funcionários na Justiça para realização

dos atendimentos a todos os casos de violência doméstica imposta contra a criança e o

55

adolescente, consiste na opinião do entrevistado, o maior problema do Município de

Florianópolis atualmente.181

Para ele, existem diversos programas de atendimento assistenciais aos vitimizados e

aos violentadores implantados na cidade, todavia, o número de profissionais é ínfimo para a

atentar a demanda. Salienta-se também, a desqualificação desses funcionários para efetuar

corretamente as orientações. Isso não quer dizer, que as causas da ineficácia do mecanismo

protetor sejam somente essas.

Contribuem para essa insuficiência, a desestruturação do Município e do Estado para

a execução dos encaminhamentos que são deliberados.182 Isto é, o Conselho Tutelar aplica as

medidas protetivas e “repressivas” de sua órbita de competência, no entanto, em razão de

haverem muitas ocorrências e conseqüentemente, muitas medidas impostas, o processo de

concretização é muito lento, o que acaba por gerar uma fila de espera para os atendimentos

psicológicos e médicos.

De acordo com a informação do entrevistado, existe uma desorganização do

Conselho Tutelar Municipal, afirmando ainda, que os profissionais que agem nessa

instituição, “estão muito burocratizados na Capital, muito atrás de gabinete, muito atrás de

escrivaninha de gabinete e menos na rua. E, eu acho que a função deles seria outra, ir atrás do

problema e não esperar que o problema caia no colo.” 183

Em outras palavras, a função do Conselho Tutelar, além da fiscalização do

cumprimento das medidas, é a de resolver (ou pelo menos tentar resolver) os problemas que

envolvam a criança e o adolescente. Como fiscalizar ou operacionalizar as ações

governamentais implantadas, de forma passional, sem atuação direta? Essa indagação consiste

no déficit institucional que permeia a atividade do Conselho Tutelar.

A falta de celeridade do procedimento e o seu incorreto cumprimento caracterizam

outras falhas de atuação do sistema penal. A lentidão do mecanismo deve-se ao fato da

inexistência de uma política de prevenção eficaz184, que leve o conhecimento ao público em

geral, da forma com que se tutela o infante nos casos de agressões intrafamiliares. Muitas

vezes, o que ocorre não é a carência de informação, mas sim, a ausência de interesse da

sociedade em adquirir e colocar em exercício a instrução proporcionada, em virtude de no

181 Cf. GOMES NETO, Gercino Gérson. Entrevista I, p. 72. 182 Cf. GOMES NETO, Gercino Gérson. Entrevista I, p. 72. 183 GOMES NETO, Gercino Gérson. Entrevista I, p. 73. 184 Cf. GOMES NETO, Gercino Gérson. Entrevista I, p. 72.

56

crime de violência doméstica incidir a relação de poder entre o agressor (dominante) e a

vítima, bem como àqueles que desejam delatar (dominados).

Esse desinteresse ocasiona conseqüências, como por exemplo, ao realizar a denúncia,

o agente protetivo, não sabendo para quem a mesma deve ser dirigida, ou prefere não delatar

por não ter conhecimento ou a faz para qualquer local. Na primeira hipótese levantada, a

sociedade agindo dessa forma estará omitindo tais ocorrências e na segunda situação, ao levar

o conhecimento do ato a qualquer instituição e não diretamente à competente, gera a

morosidade do sistema, ou seja, se a denúncia é feita ao Juiz da Infância e Juventude, este,

deverá encaminhar ao Conselho Tutelar, a fim de que sejam tomadas as providências cabíveis,

por ser este a agência inicialmente competente.

Outra questão levantada ao entrevistado foi acerca da função do Representante do

Ministério Público na instauração do processo de verificação de situação de risco do infante.

Ao respondê-la, afirmou que tal procedimento, ainda realizado, não está mais previsto no

ordenamento jurídico brasileiro, desde a revogação do Código de Menores de 1979.

Sustentou, que consiste em um erro que vem se propagando há anos, ressaltando, ser uma

“falha” grave do sistema por comodismo. 185

Diz-se comodidade, porque quando ainda vigia a legislação menorista, tal processo

era prescrito, sendo da competência do Promotor de Justiça para instaurá-lo, ou seja, quando

havia uma delação sobre a suspeita ou confirmação de agressões intrafamiliares ao infante, o

Ministério Público “abria” um processo para pri meiro certificar que tais ocorrências eram

verdadeiras, para após, aplicar as medidas necessárias.

Com a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente, tal procedimento

restou revogado, pois houve uma reestruturação do sistema protetivo, em virtude de sua nova

ideologia assistencialista e não somente repressiva, tornando obrigatória a criação dos

Conselhos Tutelares, bem como das demais entidades assecuratórias. Desta forma, àquela

competência antes dada ao Promotor de Justiça, passou a ser atribuição dos conselheiros

tutelares dos Municípios.

Não existe, portanto, no plano ideal o processo de verificação de situação de risco da

criança e do adolescente. Assim, quando o Conselho Tutelar toma o conhecimento da

ocorrência de violência doméstica, imediatamente deverá aplicar as medidas protetivas e

“repressivas” anteriormente mencionadas e somente após esgotar todos os seus procedimentos

para que tais deliberações sejam cumpridas e ainda não forem, deverá encaminhar as

185 Cf. GOMES NETO, Gercino Gérson. Entrevista I, pp. 72 e 73.

57

Representações ao Ministério Público e ao Juiz da Infância e Juventude, dependendo do

caso.186

Esse é o caminho que deveria ser seguido, mas que na realidade não é. As denúncias

ainda são encaminhadas ao Promotor de Justiça e ao Juiz da Infância e Juventude e o

Conselho Tutelar em muitas ocasiões encaminha ao Ministério Público o caso mesmo antes

de esgotar o rol de suas atribuições.187 E, em virtude disso, ainda são realizados os processos

de verificação de situação de risco, pois é muito mais cômodo ao conselheiro tutelar passar

adiante o problema, do que tentar resolvê-lo.

Outro déficit institucional nos casos de violência doméstica praticada ao infante é a

falta de uma Vara Específica de Crimes contra a Criança. Volta à tona, a questão da

necessidade de uma Justiça Especializada que englobe todas as transgressões aos interesses

inerentes à infância e à adolescência. Como fora mencionado pelo entrevistado, em alguns

Estados da Federação já existe tal Vara, citando o Estado de Pernambuco.188

Essas “falhas” institucionais que tornam o sistema rep ressivo-tutelar ineficaz não são

as únicas encontradas em todo o mecanismo, mas compreendem as mais relevantes. A

ocorrência desses déficits e a sua manutenção geram em decorrência, deficiências que

incidem na garantia do direito que a criança e o adolescente possuem de serem resguardados

contra qualquer forma de violação de seus interesses.

Desta forma, apesar do infante ter conquistado sua cidadania, tanto a nível nacional

como internacional e possuir todo um ordenamento jurídico assistencialista especializado,

com normas que devem ser efetivadas em caráter prioritário às demais, salienta-se que tal

reconhecimento como sujeito de direito foi meramente formal por ter incorrido apenas na

esfera material e não na prática cotidiana.

Essa situação que vem se alastrando desde a promulgação do Estatuto da Criança e

do Adolescente, construiu uma tutela jurisdicional de cunho ilusório aos interesses da criança

e do adolescente nos casos de agressões intrafamiliares, sendo provocada, especialmente, pela

forma com que o sistema penal contemporâneo atua em face da ocorrência de tal delito.

Ocorre desta forma, uma ligação entre as características da operacionalização do sistema

repressivo com a inefetividade assecuratória aos interesses do infante, sendo que esta, é

resultado daquela. É acerca dessa vinculação que se ocupa o próximo subcapítulo.

186 Cf. GOMES NETO, Gercino Gérson. Entrevista I, pp. 72 e 73. 187 Cf. GOMES NETO, Gercino Gérson. Entrevista I, pp. 72 e 73. 188 Cf. GOMES NETO, Gercino Gérson. Entrevista I, p. 75.

58

3.3 A VINCULAÇÃO DAS CARACTERÍSTICAS DO SISTEMA PENAL

CONTEMPORÂNEO COM A REALIZAÇÃO ILUSÓRIA DA “TUTELA”

Analisou-se no primeiro capítulo desta pesquisa, o sistema penal contemporâneo em

sua amplitude, resgatando desde as promessas declaradas pela Ciência do Direito Penal até as

conseqüências resultantes do processo de criminalização.

Cumpriu-se destacar, que a ineficácia do sistema criminal é provida pela inutilização

das funções dogmáticas, de racionalização do poder de punir estatal e da segurança jurídica na

administração da justiça, por parte das agências que o estruturam. Esses segmentos operantes

no processo de criminalização, tanto primária como secundária, atuam diversamente do que

sustenta a Dogmática Penal e em decorrência disso, suas formas de operacionalização acabam

por gerar um aumento tanto da criminalidade como da criminalização.

Primeiramente, neste subcapítulo serão abordadas novamente as formas de atuação

do sistema penal contemporâneo frente às transgressões do ordenamento jurídico, no entanto,

não genericamente, mas especificamente, salientando as conseqüências da operacionalização

do mecanismo repressor sob o óbice da agressão intrafamiliar imposta às crianças e aos

adolescentes e ressaltando a vinculação dessas formas de atuação com a deficiência da tutela

jurisdicional aos interesses do infante, justificando o porquê que tal proteção é denominada

ilusória.

A partir de estudos doutrinários189 e da entrevista realizada190, afirma-se que apesar

do delito de violência doméstica praticada contra o infante provocar aparentemente uma

reação social, nota-se que o agente ativo ainda goza de uma certa “imunidade” penal e esta, é

resultado de diversos fatores, entre eles, o caráter desarmônico entre a Justiça Comum e o

meio probatório nesse tipo de crime.191

Como já foram mencionados nos subcapítulos anteriores, existe uma necessidade

urgente de que seja criada uma Vara Específica acerca de crimes contra a criança e o

adolescente. Essa carência deve-se ao fato de que nesses tipos criminais, os sujeitos tutelares,

incluindo nestes, desde os funcionários e auxiliares do Poder Judiciário como do Ministério

Público, até mesmo os próprios Magistrados e Promotores de Justiça, devem ser

especializados.

189 A respeito desse estudo doutrinário, vide o Capítulo 1 desta monografia. 190 No tocante à entrevista, vide anexo. 191 Cf. GOMES NETO, Gercino Gérson. Entrevista I, pp. 74 e 75.

59

Ser especialista nessa área significa saber a forma com que uma criança violentada

deve ser atendida, quais os procedimentos que precisam ser adotados, quais as medidas que

obrigatoriamente devem ser aplicadas em determinados casos e como aplicá-las, como fazer

com que crianças e adolescentes, pais e responsáveis, entendam a respeito da necessidade do

cumprimento da medida deliberada, como proceder num interrogatório de um violentador de

infantes, como colher e valorizar os depoimentos dos vitimizados etc. É preciso que os

agentes tutelares possuam além de dom, uma séria capacitação para exercer suas atividades

nessa área.

Sabe-se que a maioria das instituições assecuratórias existentes no âmbito da Justiça

da Infância e da Adolescência, ou não possuem profissionais capacitados ou quando os

possuem, são em números reduzidos, incapazes de atender a enorme demanda.192 No tocante à

esfera criminal comum, não há como se falar em capacidade especializada dos agentes

tutelares, pois na mesma Vara, em que são distribuídos mensalmente, centenas de processos

que visam à condenação de criminosos como traficantes de drogas, homicidas, assaltantes,

dentre outros, são distribuídos também, processos em que o acusado responde por agressões

praticadas contra o infante. Portanto, torna-se indiferente um processo cujos sujeitos são

adultos e outro, que os sujeitos passivos são seres em peculiar desenvolvimento.

Principalmente, no que tange aos crimes de abusos sexuais praticados contra a

criança e o adolescente, existe uma grave dificuldade na valoração da prova, em que pese

nesses delitos, o meio probatório advir apenas do depoimento de um infante.193 Ora, um Juiz

que é titular de uma Vara Criminal há anos, muitas vezes não se convencerá com as palavras

de uma criança ou de um adolescente vitimizado. E, como preceitua o vocábulo em latim in

dubio pro reo, ou seja, na dúvida a decisão ou sentença será favorável ao réu. O valor que é

dado à prova proporcionada pela criança ou pelo adolescente é ínfimo, pois os profissionais

atuantes nessa área não são capacitados para oferecer tal valoração.194

No momento que se insere no âmbito criminal, o crime de violência doméstica

imposta contra o infante, dificilmente aparecerá registrado nas estatísticas oficiais que

delimitam o grau de criminalidade e de criminalização de determinada sociedade, ou seja, a

prática desse delito está longe de ser considerada uma criminalidade legal, pois nesta, só

insere-se àqueles delitos em que houver a condenação do sujeito ativo e como, na maioria das

192 Cf. GOMES NETO, Gercino Gérson. Entrevista I, p. 72. 193 Cf. GOMES NETO, Gercino Gérson. Entrevista I, p. 74. 194 Cf. GOMES NETO, Gercino Gérson. Entrevista I, p. 74.

60

vezes, quando se trata de agressões no âmbito familiar, os violentadores permanecem

impunes, não há como balizar as ocorrências a este respeito.195

Apesar das ocorrências desse tipo de delito não se inserirem na criminalidade legal,

as mesmas compreendem a chamada criminalidade aparente, que para DORNELES, são

àquelas que são detectadas pelo sistema assecuratório, mas que em razão de suas

peculiaridades, ficam sem soluções. Essa criminalidade caracteriza os crimes domésticos

impostos ao infante, pois muitas vezes os agentes que deveriam tutelar tem o conhecimento,

mas não procuram resoluções. As causas que influenciam essa inércia já foram destacadas no

desenvolver dessa pesquisa.196

A conseqüência lógica que incide nos crimes de agressões intrafamiliares contra a

criança e o adolescente, por constituir tais ocorrências em uma criminalidade aparente, é a

denominada Cifra Negra da Delinqüência, também abordada no primeiro capítulo. Essa Zona

Obscura, como chamou DORNELES, é o resultado dessa criminalidade aparente, pois esta

não constitui àquela que realmente é registrada nas estatísticas criminais, que, por

conseguinte, necessitam da condenação do agente ativo.197

Pode-se afirmar com toda certeza que os crimes de violência doméstica contra a

criança e o adolescente compõe essa Cifra Negra da Criminalidade e em virtude dos delitos

que são incluídos por ela não serem solucionados, a infância e a juventude ainda sofrem com

a insegurança jurídica de seus direitos em que peses todo o aparato legal previsto. Essa

caracterização é procedente das formas com que o sistema penal contemporâneo

operacionaliza em face à criminalidade.

Comenta ANDRADE, no tocante a esse delito que compõe a Cifra Negra da

Delinqüência, que

embora nascendo e acessado pela polícia, o delito nem sempre é objeto de denúncia, julgamento e condenação. A elaboração social e judicial do delito vai tornando-se cada vez mais precisa em cada nível, até chegar à condenação de uma pessoa; mas também vai aumentando, em cada nível, a cifra obscura. (...) Assim também a passagem do crime de instância a instância (Polícia-Ministério Público-Justiça-Administração penitenciária), isto é, o processo de criminalização é, em todas as suas fases, criador de cifras negras e, por isso redutor dos contingentes de criminalidade.198

195 Cf. DORNELES, João Ricardo W. O que é crime, pp. 42 a 45. 196 Cf. DORNELES, João Ricardo W. O que é crime, p. 45. No tocante as causas que favorecem o aparecimento da criminalidade aparente vide o subcapítulo 1.2. 197 Cf. DORNELES, João Ricardo W. O que é crime, p. 45. 198 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão de Segurança Jurídica, p. 263.

61

Um exemplo da ineficácia das propostas do sistema repressor em face à violência foi

à promulgação da Lei n. º 10.886/04, que inclui os parágrafos 9º e 10º, no artigo 129, do

Código Penal, estabelecendo penas diferentes para as lesões corporais resultantes de violência

doméstica, conforme foi abordado no subcapítulo 2.2.1. Tal inclusão não inovou e nem tão

pouco estabeleceu penas mais severas aos sujeitos ativos do delito, apenas aumentou três

meses a pena mínima abstrata quando se trata de lesões corporais de natureza leve.199

Desta forma, o agente que praticar o delito em questão contra uma criança ou

adolescente, poderá ser condenado a uma pena que pode variar de seis meses a um ano de

detenção, conforme prevê o dispositivo acrescentado. Como se trata de crime de menor

potencial ofensivo, em virtude da pena cominada ser menor que dois anos, de acordo com que

prescreve a Lei n. º 10.259/01, sendo tal processo será encaminhado ao Juizado Especial

Criminal, se na Comarca houver, estando sujeito à transação penal e às “regalias” que a

respectiva legislação estabelece, podendo o agressor ser condenado no máximo à prestação de

serviços à comunidade ou a uma cesta básica.

Um pai ou responsável que abusa sexualmente de uma filha ou filho, que porventura

é condenado às sanções mencionadas, logo após o cumprimento das mesmas e ao retornar

para seu ambiente familiar, retornará a praticar o mesmo delito e assim sucessivamente, até

que um dia essa filha será uma mulher ou esse filho um homem, que terão sua própria prole e

que começarão a praticar o mesmo crime que a vida inteira foram vítimas, pois conviveram

em um ambiente violento e adquiriram para si essa educação.

Não adianta, portanto, acreditar que a imposição de uma pena criminal a sujeito ativo

de um delito de violência doméstica, coíba o mesmo ou outros indivíduos de praticar a mesma

conduta desviante. O cumprimento da pena não reabilita o agressor a uma convivência

familiar sadia e amorosa. Conforme o Promotor de Justiça da Infância e Juventude de

Florianópolis, nos casos de agressões intrafamiliares contra crianças e adolescentes, a única

solução para os pais ou responsáveis violentadores é a educação.200

Para tentar amenizar o cotidiano do infante que é vítima de violência doméstica,

torna-se necessária à intervenção por intermédio das instituições encarregadas que propaguem

uma política de prevenção e de atendimento eficaz, sendo que nesta, tanto o agressor como

agredido devem ser reeducados e reabilitados à convivência sócio-familiar, através de

orientações psicológicas e psiquiátricas eficazes, de programas estabelecidos a nível

199 Em relação a essa crítica vide o subcapítulo 2.2.1. 200 Cf. GOMES NETO, Gercino Gérson. Entrevista I, p. 75.

62

municipal que proporcionem aos mesmos uma integração, uma melhor visão da realidade e

principalmente uma educação.

Para o entrevistado, a única forma existente para tentar solucionar a questão das

agressões intrafamiliares praticadas contra os infantes, é a aplicação de uma medida

preventiva, isto é, a capacitação de Juízes, de Promotores de Justiça e da Polícia, para

investigar e punir severamente os agressores. Para ele, essa medida deveria ser aplicada nos

casos de abusos sexuais, todavia, nos outros casos de violência doméstica, somente a

educação solucionaria.201

Discordando desse entendimento, entende-se que educar é o único caminho a ser

adotado pelas instituições encarregadas da tutela jurisdicional aos direitos da criança e do

adolescente nos casos de violência doméstica, para se tentar amenizar as conseqüências dessas

situações, bem como intentar reeducar os pais ou responsáveis pelo ato criminoso a não

reincidir na prática, a fim de que tais ocorrências não construam um hábito familiar.

Para que isso ocorra, o Poder Público deverá viabilizar uma quantidade de recursos a

essa área especializada, para que se possa reestruturar o sistema assecuratório dos interesses

do infante nas hipóteses de agressões intrafamiliares, sendo necessário a essa reorganização,

uma “reciclagem” ou uma capacitação dos profissionais atuantes nesse âmbito, bem como a

criação de uma Vara específica de crimes contra a criança e a obrigatoriedade a nível

municipal, estadual e federal, de proporcionar essa educação.

Somente com a adoção de algumas medidas de caráter imediato e com o apoio de

todas os sujeitos que exercem sua atividade profissional nessa área da infância e juventude, é

que se poderá sustentar que o sistema penal contemporâneo deixará de ser inefetivo e passará

a tutelar com eficácia tanto os vitimizados como os violentadores, ressocializando-os, para

que nenhuma criança ou adolescente precise ser retirado do seio familiar e que se possa

proporcionar a mesma, um ambiente sadio e amoroso para o seu completo desenvolvimento

como um verdadeiro cidadão.

201 Cf. GOMES NETO, Gercino Gérson. Entrevista I, p. 75.

63

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Antes de alinhar as considerações finais aguçadas pela dedicação empenhada no

decorrer desta monografia, faz-me necessário salientar acerca da relevância da elaboração de

um trabalho de conclusão de curso, não só como requisito obrigatório para a formação

acadêmica, nem tão pouco, exclusivamente para a formação profissional, mas sim, para a

formação intelectual, que instiga e demonstra a capacidade ideológica de cada ser humano.

No tocante aos apontamentos a serem realizados acerca das conclusões finais

extraídas da execução da presente pesquisa, far-se-ão de acordo com análise sintética e crítica

das partes estruturais que a compõe.

O estudo e a elaboração do primeiro capítulo desta monografia foi de suma

importância para o entendimento do tema delimitado e para a confecção do problema

levantado e da hipótese desenvolvida, haja vista, constituírem os princípios norteadores da

operacionalização do sistema penal contemporâneo, a base fundamental e teórica dos

argumentos explanados no transcorrer deste trabalho.

Por se tratar de um assunto complexo e de difícil compreensão, poucos são os

acadêmicos que tiveram a oportunidade de adentrar em seu conhecimento. Procurou-se

inicialmente, destacar a forma com que o “controle social punitivo institucionalizado” deveria

atuar frente às transgressões do ordenamento jurídico nacional.

Por ora, restou demonstrado que o mecanismo repressivo torna-se legitimado a coibir

a violência por intermédio do Princípio da Legalidade (Direito Penal), que sustenta que

somente com a violação legal poderá ser ativada a operacionalização do sistema tutelar. Essa

operacionalização é incitada pelas promessas declaradas advindas da dogmática penal

(racionalização do poder de punir estatal e segurança jurídica na administração da justiça

penal).

Esses ideais mencionados, todavia, não possuem valor vigorante, pois no momento

atualmente vivenciado e em virtude das desigualdades evidenciadas aos Direitos Humanos,

não conseguiria o paradigma dogmático assegurar suas funções. Ocorre desta forma, a

inutilização das promessas da Ciência Penal, por estas não se adequarem à realidade social.

A atividade do sistema criminal neste óbice viabiliza um aumento tanto da

criminalidade como da criminalização em decorrência da aplicação inversa da ideologia

prescrita pela dogmática penal. As formas como é operacionalizado o mecanismo repressor

(seletividade, etiquetação ou rotulação, estigmatização, criminalidade aparente, cifra negra da

delinqüência, crimes do colarinho branco, criminalidade legal etc) ressaltam, portanto, a

64

incapacidade de controlar a violência e a deficiência do garantismo aos direitos, ou seja, a

insegurança jurídica.

Neste contexto de insegurança jurídica é que se inseriu a questão de proteção aos

interesses inerentes à infância e à adolescência contra as ocorrências de violência doméstica

ou intrafamiliar, abordada no segundo capítulo. Tratou-se preliminarmente, a respeito do

crime de agressões intrafamiliares, abrangendo seu conceito, as causas que influenciam seu

aparecimento e as conseqüências trágicas que incidem no desenvolvimento de um indivíduo

em peculiar desenvolvimento.

Mencionou-se sobre a conquista no plano material, da criança e do adolescente no

âmbito nacional, com a promulgação da Constituição Federal de 1988, a qual baseada nas

Convenções e Declarações internacionais, instituiu a “Doutrina da Proteção Integral” e o

“Princípio da Prioridade Absoluta”, elevando os infantes à condição de sujeitos de direitos.

Essa Declaração dos Direitos Fundamentais à infância e à juventude foi ratificada

com a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente, em 1990. Apesar de ser

mundialmente reconhecida, como uma legislação modelo nessa esfera assecuratória, restou-se

criticada por não conseguir colocar em prática todos os preceitos na qual prescreve. O alcance

almejado por tais normas, ainda se limita ao plano ideal.

Como objeto de estudo do segundo capítulo, convencionou-se mensurar no que tange

as instituições encarregadas de prestar essa tutela jurisdicional ao infante, destacando entre

elas, as atribuições dos profissionais da área da saúde e da educação, os membros dos

Conselhos Tutelares, os Representantes do Ministério Público e o Poder Judiciário, no papel

do Magistrado.

Objetivou-se com essa abordagem salientar os papéis cabíveis a cada um desses

segmentos, de acordo com a legislação estatutária e com o ordenamento jurídico

constitucional e a relevância que deve ser concedida ao desempenho de cada uma daquelas

atribuições, realçando entre estas, as da órbita de competência dos conselheiros tutelares, dos

médicos e dos professores, por serem as pessoas mais próximas do infante vitimizado.

À elaboração do terceiro capítulo, tornou-se necessária à aproximação à prática

dessas funções mencionadas, a fim de que proporcionasse um entendimento acerca da

realidade cotidiana. Desta forma, primeiramente, foi explanado sobre o procedimento relativo

à proteção da criança e do adolescente nas hipóteses de agressões intrafamiliares estabelecido

nos dispositivos preceituados pela Lei n. º 8.069/90.

Esse apontamento estendeu-se desde a denúncia dos casos de violência doméstica

imposta ao infante, passando pela aplicação das medidas protetivas e repressivas pelo

65

Conselho Tutelar municipal e finalizando, com a interferência do Promotor de Justiça e do

Juiz, ambos pertencentes à Justiça da Infância e Adolescência.

Dando continuidade à pesquisa, fez-me indispensável comparar esse procedimento

legal com àquele vivenciado na prática e a partir desse relacionamento, surgiram às

considerações finais inevitáveis de mencionar. Dentre todas àquelas abordadas no ínterim do

terceiro capítulo, destacou-se algumas, que em geral vieram a confirmar que o mecanismo

executado diariamente quando da ocorrência de violência doméstica não condiz com àquele

previsto em lei.

Salienta-se algumas causas da inutilização do correto procedimento que acarretam a

deficiência tutelar e paralelamente, a ineficácia do sistema criminal, entre elas: a falta de

profissionais qualificados para atuar nessa esfera é ínfima para atentar a grande demanda,

sendo necessário um aumento no número e uma melhor capacitação desses agentes; a

utilização de procedimentos já revogados pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, como a

instauração do processo de verificação de situação de risco pelo Ministério Púbico, que

ocasiona a lentidão do sistema e cuja competência foi atribuída ao Conselho Tutelar; a

inexistência de uma Vara especializada em crimes contra a criança, a fim de que seja

realmente concretizado um atendimento especializado, valorando melhor o meio probatório e

em conseqüência uma efetividade na preservação, a ideologia ultrapassada, mais ainda

sustentada por muitos sujeitos tutelares de que a “repressão” ainda é a melhor forma de tentar

combater a ocorrência de conduta delitiva; e, entre outros.

Essas causas geram no cenário criminal algumas conseqüências, como a inserção dos

crimes de violência doméstica praticada contra a criança e o adolescente na esfera da cifra

negra da delinqüência, por compreenderem esses delitos na criminalidade aparente, que

consiste naquela que em muitas situações se desconhece suas ocorrências e em outras quando

os agentes protetivos possuem tal conhecimento, omitem-se ou não fazem nada para

solucionar.

Para que os delitos de agressões praticadas no âmbito familiar contra os infantes

deixem de fazerem parte dessa zona obscura da criminalidade, são imprescindíveis que sejam

tomadas algumas atitudes para tentar suprimir algumas causas que acarretaram a deficiência

do mecanismo assecuratório, como a viabilização de recursos por parte dos governos

estaduais e federais, com intuito de que se possa realizar uma reorganização do sistema

repressivo-tutelar.

Essa reestruturação deverá abranger desde uma melhor capacitação dos profissionais

atuantes nessa esfera jurisdicional, a fim de que a política de atendimento a ser executada seja

66

condizente com a peculiaridade do ser humano em questão; que seja criada uma Vara

específica nesse âmbito para que ocorra uma maior celeridade na proteção; e, que sejam

criados programas que visem prevenir a ocorrência de violência doméstica, como também

àqueles que objetivem efetivar a tutela, como o programa APOMT que está sendo implantado

atualmente.

O exercício das propostas a serem estabelecidas por esse programa visará

diagnosticar precocemente as ocorrências de agressões intrafamiliares imposta à infância e à

adolescência, com o auxílio da delação por parte dos profissionais da área médica e da esfera

educacional, com o intuito de proporcionar um atendimento tanto aos vitimizados quanto aos

violentadores, objetivando principalmente, a reintegração de ambos os sujeitos ao seio

familiar, reabilitando-os e educando-os a conviverem como uma família.

Concluiu-se que para concretizar todo o aparato legalmente previsto através da

operacionalização eficaz de um sistema penal protetivo, torna-se necessário, além do que fora

abordado, que cada pessoa colabore com o bom desempenho de suas atribuições e com a luta

incessante para garantir os direitos da criança e do adolescente, haja vista, a cidadania não

consistir apenas na atividade e na preservação dos interesses de cada indivíduo, refletindo

também, em proporcionar ao outro esse direito. Somente com isso, poderá se afirmar que o

infante foi elevado à condição de verdadeiros cidadãos.

67

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71

ANEXOS

72

ENTREVISTA I

Entrevista realizada no dia 29 de abril do ano de 2005, às 13:30 horas, na Promotoria

de Justiça da Infância e Juventude da Comarca da Capital (SC), com o Promotor de Justiça em

exercício, Dr. Gercino Gérson Gomes Neto.

Clarisse - Há quanto tempo o Senhor ocupa o cargo de Promotor de Justiça da Infância e

Juventude?

Dr. Gercino - Na Capital, quatro anos e três meses. Como exclusivo Promotor de Justiça da

Infância e Juventude, eu atuo há dez anos. E, sou Promotor há vinte anos.

Clarisse - Quais foram os primeiros desafios encontrados ao se deparar com uma Justiça

Especializada?

Dr. Gercino - Primeiro, que a Justiça Especializada eu só acabei encontrando em

Florianópolis, porque este era o único lugar que tinha a Vara da Infância e Juventude. Os

desafios foram: a falta de funcionários na Justiça e não no Ministério Público e a falta de

estrutura do Município e do Estado para atender os encaminhamentos que teriam que ser

dados, bem como a ausência de uma política de prevenção.

Clarisse - Desta forma, os profissionais são desqualificados para atuar nesta área?

Dr. Gercino - De alguma forma até sim. Mas o maior problema é a falta de número. Poucos

profissionais para a grande demanda. Este é o grande problema de Florianópolis. Existem

programas, mas que não atendem a demanda.

Clarisse - Nos casos de violência doméstica contra a criança e o adolescente, qual o papel do

Ministério Público? Este é encarregado da instauração do processo de verificação de situação

de risco do infante?

Dr. Gercino - O processo de verificação, na verdade não existe no ordenamento jurídico

brasileiro. Isto é um erro que vem se estendendo desde o fim do Código de Menores. Na

verdade o que teria que ser feito é o seguinte: quem faz o atendimento é o Conselho Tutelar,

ele esgotou o procedimento dele, ele teria que dar os encaminhamentos, mas dentro do

sistema certo, que é representação ao Juiz pelo descumprimento das medidas aplicadas,

representação porque o Município não atendeu a requisição de serviço médico, psicológico

etc, representação ao Promotor de Justiça para que se ele entender seja o caso de destituição

73

de poder familiar. Então seria este o caminho. E o quê que se fez aqui muitos anos e que agora

está se tentando acabar, a chamada verificação de risco. Ela não existe no Estatuto da Criança

e do Adolescente. Por que? A porta de entrada deveria ser as ações já feitas pelo Conselho

Tutelar e que não deram resultado, ou não precisa ser feita pelo Conselho Tutelar, mas aí você

entra direto com o quê? Com a destituição do poder familiar, que seria um caso grave de

abuso sexual, não vai precisar ser atendido pelo Conselho Tutelar, no caso de maus-tratos

severos, não precisa. A criança entrou no sistema através do atendimento no Hospital ou da

denúncia que chegou da escola ou do Conselho Tutelar ou diretamente, você já instaura um

procedimento para a destituição do poder familiar, não precisa esperar a ação do Conselho

Tutelar. Então, a função do Promotor é dar andamento as representações que o Conselho

Tutelar iniciou em Juízo, aí o Promotor assume a titularidade destas representações, ajuizar a

destituição de poder familiar, lá no crime, o Promotor oferecer denúncia e pedir a preventiva

contra o agressor e aqui, ainda na Infância, aplicar a regra do 130, que é requerer o

afastamento liminar do agressor do lar familiar.

Clarisse - Isto, então, caracteriza-se uma falha do sistema?

Dr. Gercino - É uma falha do sistema por comodismo.

Clarisse - Por comodismo, por não estar previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente?

Dr. Gercino - Exatamente. É uma falta por comodismo grave. Diria grave.

Clarisse - E as medidas que são aplicadas pelo Conselho Tutelar aos pais?

Dr. Gercino - Sim.Vai até a advertência.

Clarisse - E estas que são aplicadas são eficazes?

Dr. Gercino - Eu não tenho uma estatística, mas eu acho que não é muito eficaz. Parcialmente

eficaz, eu diria. Eu acho que falta uma certa organização ao Conselho Tutelar, eles estão

muito burocratizados na Capital, muito atrás de gabinete, muito atrás de escrivaninha em

gabinete e menos na rua. E, eu acho que a função dele seria outra, ir atrás do problema e não

esperar que o problema caia no colo.

Clarisse - E as medidas protetivas, quem aplica?

Dr. Gercino - Também é o Conselho Tutelar, sempre, quase sempre.

74

Clarisse - Mas como é que é feita está aplicação?

Dr. Gercino - O conselheiro atende.

Clarisse - É preciso pedir a homologação de tal medida aplicada?

Dr. Gercino - Não, não tem que pedir a homologação. O Conselho Tutelar aplica a medida e

ela pode ser revista se alguém ficar contra a medida, os pais ou a própria criança ou

adolescente ou o Município, recorrem contra a decisão do Conselho Tutelar junto à Justiça da

Infância e Juventude. Só pode alterar a deliberação do Conselho Tutelar, o Juiz da Infância e

Juventude.

Clarisse - Então não precisa de homologação?

Dr. Gercino - Não, aplicou, está aplicado. Ele é que pode representar em Juízo se a pessoa que

recebeu a medida não der cumprimento a ela.

Clarisse - E os agressores são punidos no âmbito penal?

Dr. Gercino - Não, não, muito pouco.

Clarisse - E a respeito daquela Lei n. º 10.886/04, que acrescentou ao Código Penal em seu

artigo 129, dois parágrafos, instituindo a punição nos casos de violência doméstica?

Dr. Gercino - Eu acho que ainda são muito pouco punidos os agressores. O maior problema

ainda é uma falta de sintonia entre a Justiça Criminal e a prova, vamos assim dizer de crimes

sexuais. Ainda a valoração da prova, ainda ela é muito difícil, porque tem que ser muito

baseada no próprio depoimento da vítima e aí, infelizmente a gente cai numa dificuldade,

como as penas tem que ser severas e são, as pessoas então, resistem muito em aplicar a pena,

com medo de estar errando. Então, a impunidade é muito grande neste meio.

Clarisse - Como faz para melhorar isto?

Dr. Gercino - Capacitação de Juizes e Promotores e melhor aparelhamento das Polícias para

investigar. É a única forma de resolver esta questão.

Clarisse - Então, terá que haver uma medida preventiva?

Dr. Gercino - Sim. Capacitar Juízes e Promotores para punir severamente. Para compreender

o que é um crime sexual.

75

Clarisse - O Senhor acha que esta medida coibiria a prática do delito?

Dr. Gercino - Ajuda. Diminui. Por que? Porque o abusador sexual, estima-se que abusa de até

cinqüenta a oitenta crianças até ser preso. Então, se há uma maior investigação da Polícia, se

leva mais a sério, mas fácil de punir.

Clarisse - Sim, mas isto somente no crime de abuso sexual?

Dr. Gercino - Sim.

Clarisse - E na violência doméstica?

Dr. Gercino - Só educação. Educar os pais, o que o MP agora está fazendo com o Programa

chamado APOMT, que é o diagnóstico precoce dos casos de abusos e maus-tratos, através de

denúncia do sistema de saúde e dos professores. Que são as pessoas que mais têm contato

com os nossos filhos depois de nós mesmos.

Clarisse - Este programa visa a capacitação destes profissionais?

Dr. Gercino - Sim, para eles aprenderem a diagnosticar precocemente quando a criança pode

estar sendo vítima destes abusos ou maus-tratos.

Clarisse - E, se houvesse Vara Específica para Crimes contra a Criança?

Dr. Gercino -Também seria ótimo, excelente. É o ideal. Em alguns Estados da Federação,

como Pernambuco, existe.

Clarisse - Assim, todos os casos seriam encaminhados para lá?

Dr. Gercino - Sim e os profissionais que iriam atuar ali teriam uma especialização maior, até

para compreender melhor e entender melhor, o depoimento de uma criança, valorar melhor a

prova.

Clarisse - É, sem esta capacitação torna-se complicado de valorar a prova.

Dr. Gercino - Sim, para aplicar a Lei em cima de uma situação desta se você não tem

segurança e se você não tem segurança é porque você não está capacitado adequadamente

para entender. Só seis por cento dos casos, a criança inventa. Nas noventa e quatro por cento é

verdade.

Clarisse - Este APOMT, portanto, é uma política pública que está sendo implantada agora?

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Dr. Gercino - Sim. Que está sendo implantada agora, que na verdade, nada mais é do que

regulamentar o cumprimento do Estatuto, que não é feito. Só isso.

Dr. Gercino - E a rotina é assim: a criança foi vítima de abuso. Ou ela procura ajuda ou

alguém da família ou um vizinho denuncia. E, esta denúncia vai aonde? Na Polícia, vai no

Conselho Tutelar ou vem aqui para nós. Certo? A criança hoje, em Florianópolis, que tem

protocolo de atendimento e o adolescente, elas são levadas até quinze anos de idade direto

para o Hospital Infantil, com mais de quinze anos, se for menina para a Maternidade Carmela

Dutra e se for menino para o Hospital Universitário. E lá, é feito todo um atendimento

especializado, exames, para saber se a criança não contraiu doença sexualmente

transmissíveis, além da perícia, o IML vai no local, a Delegacia vai no local registrar o BO e o

Conselho Tutelar é acionado. A criança tem o protocolo de atendimento, recebe medicação

preventiva, inclusive para o HIV, porque se nas primeiras setenta e duas horas após o contato

e que se houve a transmissão do vírus, se a pessoa iniciar o tratamento nas primeiras setenta e

duas horas, vai negativar, não vai contrair a doença. Aí tem que tomar a medicação

antiretroviral durante trinta dias. Isto está tudo previsto no protocolo. O atendimento mais

humanizado, porque ela vai ser acolhida no Hospital, vai ser atendida pelo pessoal da

Delegacia, não vai ter que se humilhar numa Delegacia de Polícia, numa situação tão

constrangedora e aí o mecanismo é disparado. Se der para prender em flagrante o agressor, se

prende, se não der se instaura o inquérito, se comunica então à Justiça da Infância e

Juventude, o MP pode ajuizar então uma ação de destituição de poder familiar. Normalmente

esta comunicação vem via Conselho Tutelar e aí tramita, paralelamente, a destituição do

poder familiar e o inquérito ou lá o flagrante, para que o adulto seja responsabilizado. São

coisas que correm separado. Vem da Delegacia e vai ser encaminhado diretamente para a

Vara Criminal e a notícia é levada ao Conselho Tutelar, que traz ao Promotor da Infância e

Juventude que ajuíza a ação de destituição de poder familiar. E é muito comum dar certo aqui

e não dar certo lá. Infelizmente, Justamente por falta de capacitação dos profissionais que

atuam na Justiça Criminal.

Clarisse - Então, poderia afirmar que o sistema penal meio é falho?

Dr. Gercino - Com certeza. Meio não, diria bastante falho, nesta área. Bem falho e falha

também a Polícia, o trabalho também não é bom da Polícia, a coleta de provas também não é

boa. É uma falha do sistema como um todo.