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UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ
JAIME PEREIRA DE ANDRADE NETO
PATERNIDADE SOCIOAFETIVA : possibilidade de revogação?
Biguaçu 2010
1
JAIME PEREIRA DE ANDRADE NETO
PATERNIDADE SOCIOAFETIVA : possibilidade de revogação?
Monografia apresentada à Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI, como requisito parcial a obtenção do grau em Bacharel em Direito.
Orientadora: Profa. MSc. Helena Nastassya Paschoal Pitsica
Biguaçu 2010
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JAIME PEREIRA DE ANDRADE NETO
PATERNIDADE SOCIOAFETIVA: possibilidade de revogação?
Esta Monografia foi julgada adequada para a obtenção do título de bacharel e
aprovada pelo Curso de Direito, da Universidade do Vale do Itajaí, Centro de
Ciências Sociais e Jurídicas.
Área de Concentração: Direito de Família
Biguaçu, dia de novembro de 2010.
Profa. MSc. Helena Nastassya Paschoal Pitsica UNIVALI – Campus de Biguaçu
Orientadora
Prof. MSc. Renato Heusi de Almeida UNIVALI Membro
Prof. MSc. Pedro Joaquim Cardoso Júnior UNIVALI Membro
3
Dedico este trabalho aos meus pais,
Porfírio e Iricéia (in memoriam), a minha
esposa Thais e ao nosso filho Gabriel.
4
AGRADECIMENTOS
A Deus, por estar sempre comigo guiando e orientando meus passos.
A minha orientadora Profa. MSc. Helena Nastassya Paschoal Pitsica, que de
forma solícita sempre esteve à disposição com dedicação e paciência
contribuindo sobremaneira para o desenvolvimento e conclusão deste
trabalho.
A minha família, por estar sempre ao meu lado apoiando e ajudando nesta
caminhada, em especial as minhas irmãs Julicéia e Patrícia, e as minhas
sobrinhas Julianne e Bárbara.
E a todos que, direta ou indiretamente, contribuíram para a conclusão deste
curso.
Meu profundo agradecimento.
5
Paternidade não é roupa que se veste e desveste, segundo a vontade de cada um
ou segundo a mudança das estações.
Silmara Juny Chinelato
6
TERMO DE ISENÇÃO DE RESPONSABILIDADE
Declaro, para todos os fins de direito, que assumo total responsabilidade
pelo aporte ideológico conferido ao presente trabalho, isentando a Universidade do
Vale do Itajaí, a coordenação do Curso de Direito, a Banca Examinadora e a
Orientadora de toda e qualquer responsabilidade acerca do mesmo.
Biguaçu, novembro de 2010.
Jaime Pereira de Andrade Neto
7
RESUMO
A presente monografia de conclusão do curso de Direito dispensou análise ao
instituto da Paternidade Socioafetiva e a possibilidade de sua revogação. Devido às
contínuas transformações ocorridas na sociedade brasileira, a relação paterno-filial
incorre em profundas mutações, nascendo uma nova forma de constituição familiar,
com base no afeto, amor e carinho. Neste sentido, se investigou a constituição da
paternidade socioafetiva mediante a posse de estado de filho, bem como, em que
casos deveriam ser reconhecidas estas relações de afeto e se caberia a
possibilidade de sua revogação uma vez constituída. Ao passo que esta nova forma
de constituição familiar insere-se no meio social afetando as relações interpessoais,
ingressa-se no mérito da prestação jurisdicional em respostas às insurgências
levadas ao seu decisium, vendo-se o Poder Judiciário obrigado a dispor sobre a
questão ainda sem positivação expressa no ordenamento jurídico. Ao examinar os
princípios norteadores da família e os dispositivos legais pertinentes à matéria,
verificou-se que o melhor interesse da criança deve prevalecer sobre todas as
formas de opressão que possam ser intentadas ao seu direito de estado de filiação,
o que dará substrato para a conclusão deste trabalho e resposta à hipótese
anteriormente levantada, qual seja, a possibilidade de revogação da paternidade
socioafetiva, uma vez estabelecida. O método utilizado para a realização deste
trabalho foi o dedutivo.
Palavra-chave : paternidade, paternidade socioafetiva, filiação, revogação.
8
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 9
1 FILIAÇÃO NO BRASIL .............................. ............................................................ 11
1.1 A filiação no Direito brasileiro .............................................................................. 14
1.2 A constitucionalização da filiação ........................................................................ 20
1.3 Tratamento legal atual da filiação no ordenamento jurídico brasileiro ................. 25
2 PATERNIDADE SOCIOAFETIVA ........................ .................................................. 31
2.1 Princípio da Dignidade da Pessoa Humana ........................................................ 36
2.2 Princípio do Melhor Interesse da Criança ............................................................ 39
2.3 Da Posse de Estado de Filho .............................................................................. 42
3 PATERNIDADE SOCIOAFETIVA: POSSIBILIDADE DE REVOGA ÇÃO? ........... 49
3.1 Revogação .......................................................................................................... 50
3.2 Entendimento jurisprudencial no reconhecimento da paternidade socioafetiva .. 51
3.3 Da (im)possibilidade de revogação da paternidade socioafetiva ......................... 59
CONCLUSÃO ......................................... .................................................................. 67
REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 71
9
INTRODUÇÃO
O presente trabalho tem por objetivo o estudo do instituto da paternidade ou
maternidade socioafeiva e seus efeitos jurídicos, uma vez caracterizada a posse de
estado de filho.
Desta forma, o que se buscará são respostas ao problema suscitado na
pesquisa, qual seja: Há possibilidade de revogação da paternidade socioafetiva
constituída?
A importância da pesquisa ocorre pelo fato de ser o Direito de Família
influenciado pelas intensas transformações ocorridas ao logo dos anos em resposta
às mudanças ocorridas na sociedade.
Paternidade socioafetiva é um exemplo de uma nova forma de
relacionamento familiar que apoiado em laços afetivos irá constituir um novo
paradigma da relação paterno-filial, sendo objeto de várias discussões.
Primeiramente, o enfoque a ser analisado será o da filiação no ordenamento
jurídico brasileiro, porém, antes de entrar no tema do primeiro capítulo se fez
necessário analisar as raízes históricas do Direito brasileiro, em especial no que diz
respeito ao Direito de Família e Filiação.
Por outro lado, não se pode negar a forte herança portuguesa sobre a
formação do Direito brasileiro, o qual nasceu impregnado da cultura e costumes
lusitanos.
Destaca-se que o modelo familiar de outrora, dita entidade patriarcal, com
chefia absoluta do pater familiae, aos poucos foi cedendo espaço a uma nova forma
de pensar e visualizar a família.
Passou-se por um período histórico em que o afeto, carinho e amor eram
suprimidos em detrimento de um suposto modelo familiar que transparecia a “paz
familiar”.
A esposa e os filhos passaram de meros elementos caracterizadores da
família e tornaram-se verdadeiros integrantes da sociedade, tendo seus direitos
cada vez mais reconhecidos e protegidos.
10
Analisa-se a filiação no Código Civil brasileiro de 1916 e verifica-se que o
tema era tratado tão somente pelo vínculo biológico, fazendo forte distinção entre os
filhos havidos ou não na constância do casamento.
O legislador ao inserir a distinção entre filho legítimo e ilegítimo, positivou no
ultrapassado Código Civil, uma discriminação imputada aos filhos que ficaram à
mercê da situação jurídica dos pais.
Foi com a constitucionalização do Direito de Família, ou seja, com o
tratamento dado pela Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 que se
inaugurou uma nova visão sobre o tema.
O texto constitucional de 1988 trouxe em seu bojo uma nova realidade
social, ao afirmar ser a família a base da sociedade, tendo especial proteção do
Estado, revelando princípios e diretrizes norteadores do atual Direito de Família.
Seguindo os paradigmas ventilados pela Constituição da República
Federativa do Brasil de 1988, editaram-se dispositivos legais, a exemplo da Lei nº
8.069 - Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e ainda, o Código Civil
brasileiro de 2002, que seguiram o preceito maior de proteger os interesses da
criança.
Brota na sociedade uma nova família, em que o sentimento de afeição serve
para configuração da Paternidade Socioafetiva, a qual será o tema do segundo
capítulo.
Esta nova forma de relação paterno-filial insere-se no núcleo familiar
dispensando laços sanguíneos e exigindo-se para sua constituição afeto e amor.
Princípios como o da Dignidade da Pessoa Humana, o do Melhor Interesse
da Criança e a Posse de Estado de Filho, aliados à doutrina e jurisprudência pátria
regulam esta nova situação estabelecida sob laços de fraternidade.
O terceiro e derradeiro capítulo versará sobre a possibilidade de revogação
da paternidade afetiva, uma vez constituída.
Os dados do presente trabalho embasaram-se na pesquisa bibliográfica com
a utilização da legislação pertinente ao tema, além do entendimento jurisprudencial
dos Tribunais brasileiros.
Para a realização deste trabalho acadêmico utilizou-se o método dedutivo.
11
1 FILIAÇÃO NO BRASIL
Antes de tratar do tema na legislação vigente se faz necessário tecer breve
comentário sobre as raízes do Direito brasileiro, em especial no que diz respeito ao
Direito de Família e Filiação.
Importante se mostra analisar a situação da família sob a ótica do Direito
romano, uma vez que “Roma não é toda a antiguidade, mas resume a antiguidade.
É o grande livro da história antiga.” Assim nos descreve Márcio Antônio Boscaro.1
Nos primeiros tempos do desenvolvimento do Império Romano a situação vivida pelo grupo familiar era do poder de que detinha o chefe de cada família – paterfailiais – no sentido de regular a composição da mesma, nela admitindo o ingresso de estranhos e dela excluindo seus próprios descendentes.
Por sua vez, Jacqueline Filgueras Nogueira2 esclarece que a família
contemporânea sofreu forte influência da família romana e da família canônica, e
que o modelo de família daquela época era estruturada sob o comando e rigidez do
pater familias.
Na antiga Roma, a família era organizada sob o princípio da autoridade do pater familias, ascendente comum mais velho, e abrangia quantos a ele estavam submetidos, independente dos vínculos de consaguinidade, uma vez que exercia autoridade sobre todos os seus descendentes, esposa e mulheres casadas com seus descendentes. O pater era o chefe político, sacerdote e juiz em sua casa, exercia poder sobre todos os filhos, a mulher e os escravos, podendo dispor livremente deles, inclusive com o direito de vida e de morte. A família era uma unidade econômica, religiosa, política e jurisdicional.
As características da família romana influenciaram o modelo Português que,
por seu turno nos revelou a noção de família sob este paradigma.
Como o Brasil ficou vinculado, em determinado momento histórico, aos
ditames de Portugal, todos os costumes e tradições portuguesas passaram a fazer
1 BOSCARO, Márcio Antônio. Direito de filiação. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,
2002, p. 19. 2 NOGUEIRA, Jacqueline Filgueras. A Filiação que se constrói: o reconhecimento do afeto
como valor jurídico. São Paulo: Memória Jurídica Editora, 2001, p. 25.
12
parte da sociedade e do cotidiano brasileiro, incluindo, por conseqüência, seu
sistema de normas e imposições, assim nos revela Thiago Felipe Vargas Simões.3
A cronologia das Ordenações (sistema de normas) do reino português assim
se sucedeu na história: 1 Ordenações Afonsinas; 2 Ordenações Manuelinas; 3
Ordenações Filipinas, assim são denominadas pois apregoadas em fama de seus
mandantes.
O marco na história jurídica luso-brasileira se deu no reinado de D. Afonso,
no qual foram exaradas as Ordenações Afonsinas.
Antônio dos Santos Justo,4 descreve um pouco mais da herança vinda do
Direito português:
Quando, em 22 de Abril de 1500, a armada comandada por Pedro Álvares Cabral chegou à Terra de Vera Cruz, o Direito Português estendeu a sua vigência a um território mais, com sensibilidade às condições específicas da grande Nação de que todos (Brasileiros e Portugueses) nos orgulhamos. Vigoravam, então, em Portugal, as Ordenações Afonsinas e diversa legislação extravagante que rapidamente iriam também aplicar-se ao Brasil.
As Ordenações Afonsinas vieram, juntamente com a descoberta do Brasil,
como legislação a ser aplicada.
Posteriormente, surgem as Ordenações Manuelinas, época em D. Manuel
reinou, vigendo a partir do ano de 1521.
Por fim, em meados de 1603 surgem as Ordenações Filipinas unindo todos
os textos legais compilando-os em um só compêndio.
Com clareza André Luiz Pedro André,5 acrescenta que:
As Ordenações levaram o nome de seus mandantes régios e três foram essas compilações: a Afonsina de 1447 , ordenada por Afonso IV possuía cinco livros que versavam sobre Direito Administrativo (Livro I), Direito Constitucional (Livro II), Processo Civil (Livro III), Direito Civil (Livro IV), e Direito e processo Criminal (Livro V); as Ordenações Manuelinas datam de 1521 e foram elaboradas no reinado de D. Manuel, mantendo a mesma sistematização das Ordenações Afonsinas; e, finalmente as Ordenações Filipinas , que apesar de sua vigência ter iniciado em 1603, no reinado de Filipe II, sua elaboração iniciou-se em 1583, sob a égide de Filipe I. Sua sistematização de assuntos é a mesma das Ordenações anteriores,
3 SIMÕES, Thiago Felipe Vargas. A família afetiva : afeto como formador de família. 2007,
p. 1. 4 JUSTO, Antônio dos Santos. O direito brasileiro: raízes históricas. Revista do direito
comparado luso-brasileiro , n. 20, 2002, p. 3. 5 ANDRÉ, André Luiz Pedro. As ordenações e o direito privado brasileiro . 2007, p. 2.
13
onde encontramos cinco livros, subdivididos em títulos e parágrafos. (destaque nosso)
E ainda, Antônio dos Santos Justo6 pincela o retrato da história lusitana que
paira sobre a cultura brasileira hodiernamente, ao afirmar que:
A História dos dois Povos une-se e a História Jurídica torna-se comum. Cimenta-a uma só cultura manifestada na língua, na literatura, na poesia, na arte, no direito, na sensibilidade lusitana!
Devido a herança portuguesa o Direito brasileiro nasceu impregnado da
cultura e costumes lusitanos, mesmo com a independência, o Brasil transmudou
muito a concepção política, social e jurídica de Portugal.
Sobre o assunto André Luiz Pedro André7 melhor esclarece:
É importante ressaltar que a independência do Brasil não trouxe uma ruptura imediata da ordem jurídica herdada de Portugal nos seus aspectos dominantes. Apesar da criação de uma nova concepção política após a independência, o Direito Privado e principalmente o Direito Civil, permaneceu sofrendo menos alterações e consequentemente resultando numa maior sensibilidade ao elemento histórico, onde pode-se compreender a vigência de parte das Ordenações Filipinas até a segunda década do século XX.
Como visto, as Ordenações Filipinas fizeram parte do Direito brasileiro até
meados do século XX, somente com a edição do Código Civil brasileiro de 1916 é
que o Brasil passou a editar mandamentos próprios desvinculando-se cada vez mais
das influências portuguesas.
Neste sentido esclarece Lenio Luiz Streck, citado por Jacqueline Filgueras
Nogueira,8 ao afirmar que:
[...] nosso Código é de 1917, que revogou as Ordenações do Reino, editadas pelo Rei Felipe no final do século 16 e início do século 17. Ou seja, em plena República, continuamos a usar, durante quase 30 anos, uma legislação feita por colonizadores séculos antes. Quando de sua promulgação, a família era (?) estritamente patriarcal. Por isso, a mulher (esposa) foi colocada como uma ‘colaboradora’, ‘do lar’, como a maioria das mulheres se qualifica ao preencher fichas de cadastro. O direito dos filhos ilegítimos ao reconhecimento legal somente surgiu no final da década de 40 e o divórcio só foi autorizado no Brasil, depois de uma grande batalha, no ano de 1977.
6 JUSTO, Antônio dos Santos. O direito brasileiro: raízes históricas. Revista do direito
comparado luso-brasileiro , n. 20, 2002, p. 3-4. 7 ANDRÉ, André Luiz Pedro. As ordenações e o direito privado brasileiro . 2007, p. 3. 8 NOGUEIRA, Jacqueline Filgueras. A Filiação que se constrói : o reconhecimento do afeto
como valor jurídico. São Paulo: Memória Jurídica Editora, 2001, p. 36.
14
O reconhecimento dos direitos da mulher e dos filhos como membros
integrantes da família, bem como da sociedade, vai se desvencilhando de um
aspecto colonizador, sendo, cada vez, mais amparado na legislação pátria.
1.1 A filiação no Direito brasileiro
Partindo do conceito de filiação, assim definido por José Bernardo Ramos
Boeira,9 como sendo: “[...] filiação é a relação de parentesco que se estabelece entre
pais e filhos, sendo designada, do ponto de vista dos pais, como relação de
paternidade e maternidade”, e completando com o pensamento de Caio Mário da
Silva Pereira,10 que afirma ser a filiação, a relação com maior destaque no Direito de
Família, pontua:
Das relações de parentesco, a mais importante é a que se estabelece entre pais e filhos. [...] no centro do Direito de Família, como razão primária de toda uma disciplina, ergue-se, sobranceiramente, a idéia básica da filiação. Nos estudos que envolvem a convivência familiar sobrepõe-se o binômio filiação-paternidade ou filiação-maternidade. Especificamente considerada, a filiação é a relação jurídica que liga o filho a seus pais. Estabelecendo-se entre pessoas das quais uma descende da outra é considerada como “filiação propriamente dita”, quando visa o lado do filho; e, reversamente, encarada pelo lado do pai se chama “paternidade” e pelo lado da mãe, “maternidade”.
Importante destacar que o modelo de família da época colonial é bem
diferente do que se vivencia hoje, a família de outrora era patriarcal e hierarquizada
com chefia exclusiva do pater famílias.
A respeito da filiação na família patriarcal do século XX Paulo Luiz Netto
Lobo,11 afirma que:
9 BOEIRA, José Bernardo Ramos. Investigação de paternidade : posse de estado de filho.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999. p. 29. 10 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. vol. v, 16 ed. Rio de Janeiro:
Editora Forense, 2006, p. 314 e 315. 11 LOBO, Paulo Luiz Netto. Princípio jurídico da afetividade na filiação. Disponível em
<http://www.ibdfam.org.br/artigo/>. Acesso em: 10 ago. 2010.
15
A família patriarcal perpassou a história deste país e marcou, profundamente, a formação do homem brasileiro. Suas funções mais evidentes eram econômico-patrimoniais, políticas, procracionais e religiosas. A função de realização da comunidade afetiva, que passou a ser determinante ao final do Século XX, era secundária. A filiação biológica, desde que originada na família matrimonializada, era imprescindível para o cumprimento dessas funções e papéis, notadamente de preservação da unidade patrimonial.
Ainda neste sentido, colaciona as palavras de Ana Surany Martins Costa:12
A família do Código Civil de 1916 era hierarquizada, patriarcal, matrimonializada e transpessoal, de forte conteúdo patrimonialista que colocava a instituição em primeiro lugar. [...] São traços da família colonial: chefia exclusiva pelo homem, que exercia tanto o papel de pai como o de marido; a mulher desempenhava o papel esposa e mãe e os filhos deviam um respeito ao pai, que era o mesmo devido a um patrão e ao Estado.
Esta família é traduzida por Orlando Gomes,13 em sua estrutura hierárquica
como:
Patriarcal e hierarquizada, a família do início do século XX era fundada exclusivamente no casamento. A mulher e os filhos ocupavam uma posição de inferioridade no âmbito familiar e, por isso, deviam respeito e obediência ao marido, que era o chefe da família.
Resta que o modelo de família adotado pelo Código Civil brasileiro de 1916
teve como paradigma adjetivos como: patriarcal, hierarquizada, econômico,
matrimonizada.
Sob o argumento de uma suposta “paz familiar” (que se entendia que seria
abalada com o público reconhecimento de que um adultério ou mesmo de que
relações incestuosas teriam sido praticadas por um de seus membros), não se
reconheciam aos filhos extramatrimoniais direitos elementares à sobrevivência,
como alimentos, relegando-os à execração pública, em virtude de um
comportamento então tido como altamente reprovável praticado por seus pais ao
gerá-los e que se convencionou manter em sigilo.14
12 COSTA, Ana Surany Costa. Filiação socioafetiva : uma nova dimensão afetiva das
relações parentais. Instituto brasileiro de direito de família. Disponível em <http://www.ibdfam.org.br/artigo/>. Acesso em: 10 ago. 2010.
13 GOMES, Orlando. O novo direito de família. Porto Alegre: Fabris. 1984, p. 65. 14 BOSCARO, Márcio Antônio. Direito de filiação. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,
2002, p. 65.
16
Não se pode deixar de falar da influência que a igreja exerceu sobre a
formação da família nos moldes do Código Civil brasileiro de 1916, conforme se
verifica nos ensinamentos de Eduardo de Oliveira Leite, citado por Jacqueline
Filgueras Nogueira:15
Foi a igreja quem, de forma sistemática e implacável categorizou os filhos, em função da existência ou não de casamento. A partir desta categorização decorreu a discriminação em filhos legítimos, ilegítimos, em naturais e espúrios, em incestuosos e adulterinos, e assim por diante.
E ainda, do mesmo autor:
A influência religiosa (legada pela igreja), o modelo sócio-político (transplantado de Portugal) e a política legislativa importada da França (vis Code Civil) geraram o Código Civil, de cunho acentuadamente patriarcal, tradicional, que divide as funções entre homem e mulher na família e que impõe esquemas de comportamento próprio a cada membro familiar e que, certamente, discrimina todos os filhos oriundos de relações não necessariamente vinculadas ao casamento. Ou seja, a posição do filho depende diretamente do Estado dos pais.
Notadamente, este foi um período em que valor como afeto, carinho, amor
eram negados em prol do paradigma de família adotado pela sociedade da época,
especialmente no que diz respeito aos filhos gerados fora do matrimônio.
Sobre o assunto traz-se ensinamento de Silvio de Salvo Venosa:16
O Código Civil de 1916 centrava suas normas e dava proeminência à família legítima, isto é, aquela derivada do casamento, de justas núpcias. Elaborado em época histórica de valores essencialmente patriarcais e individualistas, o legislador do início do século passado marginalizou a família não provinda do casamento e simplesmente ignorou direitos dos filhos que proviessem de relações não matrimoniais, fechando os olhos a uma situação social que sempre existiu.
Ainda sobre a filiação no Código Civil brasileiro de 1916, Márcio Antônio
Boscaro17 elucida que, muito embora esta legislação não permitisse o
15 NOGUEIRA, Jacqueline Filgueras. A Filiação que se constrói : o reconhecimento do
afeto como valor jurídico. São Paulo: Memória Jurídica Editora, 2001, p. 31. 16 VENOSA, Silvo de Salvo. Direito de família. Estudo comparado ao código civil de 1916.
3 ed. atual. de acordo como o novo código civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 61.
17 BOSCARO, Márcio Antônio. Direito de filiação. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 62.
17
reconhecimento dos filhos incestuosos, já se comentava sobre tal possibilidade, uma
vez que o projeto (do Código em comento) de Clóvis Beviláqua tratava do assunto:
Com a entrada em vigor do Código Civil no ano de 1917, tornou-se impossível o reconhecimento de filhos incestuosos e adulterinos. Aliás, insta salientar que esse retrocesso em relação à legislação então vigente sobre o assunto não se deveu a Clóvis Beliláqua, já que em seu primitivo projeto era prevista, em algumas hipóteses, a possibilidade de investigação de paternidade ilegítima e, para efeitos de sucessão, aos filhos legítimos seriam equiparados os legitimados, os naturais reconhecidos e os adotivos.
Isto posto, resta analisar o Código Civil brasileiro de 1916 e verificar como
era disposto o instituto da filiação neste ultrapassado codex.
É bem verdade que o referido código tratava da filiação biológica fazendo
distinção entre filhos legítimos e legitimados, assim dispunha o então revogado
artigo 337,18 ao tratar dos filhos legítimos, in verbis: “São legítimos os filhos
concebidos na constância do casamento, ainda que anulado (art. 217), ou mesmo
nulo, se contraiu de boa fé (art. 221).”
Depreende-se do exposto que legítimos eram os filhos havidos dentro do
casamento, ainda que anulado ou mesmo nulo, caso o matrimônio houvesse sido
contraído de boa-fé.
Já para os filhos concebidos fora do casamento o Código Civil brasileiro de
1916 os denominavam de ilegítimos, mas que, todavia, poderiam ser legitimados
pelo casamento posterior dos pais, equiparando-os aos filhos legítimos.
Neste sentido, manifesta-se Luiz Edson Fachin:19
O legislador estruturou um sistema de estabelecimento da filiação que atendesse ao aspecto de diferenciação entre os filhos: para os legitimamente concebidos, todos os “favores” legais; para os concebidos de forma ilegítima, todos os “desfavores” da lei.
Mister se faz ressaltar os ensinamentos de Silas Silva Santos,20 ao abordar
com clareza o assunto em tela:
18 BRASIL. Lei nº 3.071, de 1º de janeiro de 1916. Código Civil. Disponível em
<http://www.planalto.gov.br/legislação>. Disponível em: 10 ago. 2010. 19 FACHIN, Luiz Edson. Estabelecimento da filiação e paternidade presumida . Porto
Alegre: Sérgio A. Fabris, Editor, 1992. p. 62. 20 SANTO, Silas Silva; NEGAO, Sônia Regina; GUIMARÃES, Angélica Bezerra Manzano.
Paternidade e paternidade socioafetiva. Disponível em <http://www.gontijoamilia.adv.br/2008/artigos_pdf/Silas_Silva_Santo/Paternidade.pdf>. Disponível em: 10 ago. 2010.
18
A legitimação era um benefício dado pela lei, concedendo a condição de legítimo ao filho originariamente ilegítimo. Mas, para que isso acontecesse, era necessário, após o nascimento da criança, que se realizasse o casamento dos pais. Ademais, se fazia necessário, também, que os genitores não fossem anteriormente casados com terceiras pessoas e que não trouxessem consigo nenhum outro tipo de impedimento. Era somente dessa forma que os genitores poderiam reparar seu erro e reabilitar o filho perante a sociedade. Não sem razão é que a legitimação era considerada uma obra solidária dos pais para com os filhos.
A adoção de premissa discriminatória é destacada por José Bernardo
Ramos Boeira,21 ao afirmar que:
[...] a classificação decorre da posição jurídica dos pais, extremando-se os filhos gerados por pessoas casadas – filhos legítimos – daqueles provenientes de relações extramatrimoniais – filhos ilegítimos – derivando daí histórica e odiosa discriminação, justificada pela proteção legislativa à chamada família legítima, estabelecida por união matrimonializada, em detrimento dos filhos nascidos de relação extraconjugal.
Ressalta-se que os filhos ilegítimos ainda podiam ser naturais ou espúrios.
Os filhos ilegítimos naturais eram considerados quando nascidos de pessoas
entre as quais não houvesse impedimentos matrimoniais.
Caso no momento da concepção houvesse algum impedimento, os filhos
ilegítimos eram denominados de espúrios, os quais por seu turno classificavam-se
em adulterinos ou incestuosos.
Isto posto, traz-se as palavras de Renato Maia,22 ao afirmar que:
Os filhos ilegítimos eram considerados filhos naturais, quando derivados de relação extramatrimonial entre pessoas sem impedimento legal para o casamento; e espúrios, se fruto de relação entre pessoas com impedimento legal para o casamento. A designação de filhos espúrios compreendia tanto os filhos adulterinos, isto é, oriundos de relação adulterina, onde pelo menos um dos pais, no momento da concepção, se encontrava casado com terceira pessoal, como os filhos incestuosos, provenientes de relação sexual entre parentes próximos.
Desta forma, os filhos ilegítimos espúrios adulterinos eram caracterizados
quando os dois genitores ou apenas um deles era casado com pessoa estranha à
relação. E os filhos ilegítimos espúrios incestuosos quando havia laço de parentesco
natural ou afim ou civil entre os pais desta criança.
21 BOEIRA, José Bernardo Ramos. Investigação de paternidade : posse de estado de filho.
Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 1999, p. 30. 22 MAIA, Renato. Filiação paternal e seus efeitos. São Paulo: SRS Editora, 2008, p. 24.
19
Neste sentido Guilherme Calmon Nogueira da Gama23 ensina:
[...] os filhos espúrios, independentemente de serem adulterinos ou incestuosos, se encontravam excluídos de qualquer tutela, já que nem mesmo a investigação da paternidade e/ou maternidade lhes era possível.
Destaca-se que o Código Civil brasileiro de 1916, em seu artigo 358 proibia
expressamente o reconhecimento, tanto dos filhos adulterinos como dos filhos
incestuosos, ficando clarividente a proteção e conservação ao modelo patriarcal da
família de outrora e expressando a face mais severa da discriminação com os filhos
espúrios.
Mister se faz trazer as palavras de Renato Maia24 ao comentar a
discriminação contida no artigo 358 do passado Código Civil brasileiro de 1916.
Mas em relação aos adulterinos e incestuosos é que a discriminação se apresenta de uma maneira muito mais constrangedora. Prova disso pode ser observada na redação do artigo 358 (revogado) do Código Civil de 1916, onde este proclamava a impossibilidade de reconhecimento dos mesmos.
Complementa, ainda, o raciocínio, Renato Maia, ao afirmar que o
ultrapassado código penalizava os filhos ilegítimos, como se fosse possível atribuir
às crianças os atos de seus pais:
Quando, na edição do Código Civil de 1916 e legislações ordinárias posteriores, classificou-se os filhos, distinguindo-os entre legítimos e ilegítimos, ficando estes, dependentes de qual categoria se enquadrariam para serem reconhecidos ou não, como se estes pudessem pagar pelas atitudes de terceiros, sendo que culpa alguma poderia lhes ser atribuída, pois em nada tinham contribuído para a dissemelhança que portavam.
Com a promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil de
1988, o tema filiação sofreu grande evolução que repercutirá sobre todo o
ordenamento jurídico brasileiro, como adiante verificar-se-á.
23 GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. A nova filiação : o biodireito e as relações
parentais: o estabelecimento da parentalidade-filiação e os efeitos jurídicos da reprodução assistida heteróloga. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p.372.
24 MAIA, Renato. Filiação paternal e seus efeitos. São Paulo: SRS Editora, 2008, p. 28.
20
1.2 A constitucionalização da filiação
Com a Constituição da República Federativa do Brasil em 1988 inaugurou
uma nova forma de pensar sobre a família.
Sobre o assunto se traz o ensinamento de Sérgio Gischkow Pereira:25
Trata-se de buscar um Direito de Família mais adequado às novas realidades sociais de convivência humana e buscar uma estrutura familiar menos produtora de psicopatologias, porque menos opressora, mais autêntica, mais sincera, menos impregnada de hipocrisias e falsidades, mais regada pela afeição, mais igualitária, mais solidária. Nosso direito apenas está se deixando orientar pelos princípios jurídicos do Direito de Família atual.
Sílvio de Salvo Venosa,26 ao abordar o Direito de Família na Constituição da
República Federativa do Brasil de 1988, descreve que:
No direito brasileiro, a partir da metade do século XX, paulatinamente, o legislador foi vencendo barreiras e resistências, atribuindo direitos aos filhos ilegítimos e tornando a mulher plenamente capaz, até o ponto culminante que representou a Constituição de 1988, que não mais distingue a origem da filiação, equiparando os direitos dos filhos, nem mais considera a preponderância do varão da sociedade conjugal.
E continua o mesmo autor ao afirmar que a Constituição da República
Federativa do Brasil de 1988 ao ser promulgada, trouxe proteção à família fundada
não só no casamento, mas também àquela fundada na união de fato e adotiva:
A Constituição de 1988 consagra a proteção à família no art. 226, compreendendo tanto a família fundada no casamento, como a união de fato, a família natural e a família adotiva. De há muito, o país sentia necessidade de reconhecimento da célula familiar independente da existência de matrimônio.
25 PEREIRA, Sérgio Gischkow. A Igualdade jurídica na filiação biológica em face do
novo sistema de direito de família no brasil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 392.
26 VENOSA, Silvo de Salvo. Direito de família. Estudo comparado ao código civil de 1916. 3 ed. Atual. De acordo como o novo código cilvil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 29.
21
Para Carlos Alberto Bittar,27 o texto constitucional de 1988 marcou o Direito
de Família trazendo várias modificações, em especial o da igualdade de direitos
entre homem e mulher e o da paridade entre os filhos, dentre outros.
A longa evolução suportada pelo direito de família no Brasil encontrou na Constituição de 1988 marco fundamental em que se cunhou a ideologia ora prosperante na matéria e que mudou sensivelmente o direito legislativo. Mas, erigida em época subseqüente a grandes transformações, encontrou situação fática bem-definida, em nível externo, com a nova regulamentação familiar assinalada, absorvendo então para nosso País, o sentido geral dos novos tempos, em tema de relações familiares.
E ainda:
Com efeito, os câmbios socioeconômicos familiares já eram sentidos em nosso País, tendo se alterado, profundamente, em especial nos grandes centros urbanos, o relacionamento familiar, coerente, de há muito, com os princípios que ora o governam, a saber: o da igualdade de direitos entre homem e mulher; o da paridade entre filhos; o da prevalência da afeição e do consenso mútuo nas relações de caráter pessoal; e o da aceitação da união estável, para os devidos efeitos jurídicos.
A família transmutou de um núcleo hierarquizado e centralizado na figura do
marido-pai para uma gestão familiar baseada na afetividade recíproca, dividindo as
responsabilidades familiares por todo o grupo familiar que a partir de então se unem
pelo sentimento de respeito e de afeição, assinala Carlos Alberto Bittar.28
José Bernardo Ramos Boeira29 afirma que a Constituição da República
Federativa do Brasil de 1988 passou a tutelar a família como unidade nuclear, na
medida em que cumpra seu papel definido no texto constitucional:
É de se reconhecer pelo Texto Constitucional que a “família-instituição”. Tutelada em si mesma, foi substituída pela “família-instrumento” voltada para o desenvolvimento da personalidade de seus membros. Tem-se uma família funcionalizada à formação e desenvolvimento da personalidade de seus integrantes; nuclear, democrática, protegida na medida em que cumpra o seu papel educacional, e na qual o vínculo biológico e a unicidade patrimonial são aspectos secundários.
27 BITTAR, Carlos Alberto. Direito de família. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
2006, p.34. 28 BITTAR, Carlos Alberto. Direito de família. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
2006, p. 34-35. 29 BOEIRA, José Bernardo Ramos. Investigação de paternidade : posse de estado de filho.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999. p. 29.
22
Com o advento da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, a
igualdade entre os filhos foi consagrada, nos esclarece Jacqueline Filgueras
Nogueira:30
A Constituição de 1988 consagrou o fim da longa caminhada em busca da igualdade da filiação, mudando radicalmente o direito de família. Destacam-se os principais artigos, 226, que incluiu no contexto constitucional o conceito de entidade familiar, e o 227, que redimensionou a idéia de filiação.
Continua a autora:
Ao que tange à filiação, finalmente acaba com a Lei Magna a tão desprezível discriminação, elevando todos os filhos à igualdade, proibida a utilização por quem quer que seja das designações que há anos foram utilizadas: de filhos legítimos, adotivos, legitimados, ilegítimos, espúrios, adulterinos e incestuosos, sendo doravante todos simplesmente filhos.
Segundo Luiz Roberto de Assumpção: “A Constituição Federal deu à noção
jurídica de família um sentido mais amplo e plural, constituída e estruturada nos
laços de afeto e amor, restando valorizado seu aspecto social”.31
Da mesma forma com que solidificou as premissas acima, a Constituição da
República Federativa do Brasil de 1988,32 no artigo 227 consagrou os princípios
basilares de proteção à filiação como o do melhor interesse da criança, in verbis:
Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
Já o parágrafo 6º do citado artigo da Constituição da República Federativa
do Brasil de 1988 trouxe avanços indeléveis para o Direito de Família ao abolir a
discriminação dos filhos ilegítimos, nele está insculpido o princípio jurídico da
igualdade jurídica entre os filhos:
§ 6º - Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação.
30 NOGUEIRA, Jacqueline Filgueras. A Filiação que se constrói : o reconhecimento do
afeto como valor jurídico. São Paulo: Memória Jurídica Editora, 2001, p. 39. 31 ASSUMPÇÃO, Luiz Roberto de. Aspectos da paternidade no novo código civil . São
Paulo: Saraiva, 2004, p. 34. 32 BRASIL. Constituição (1988) . Disponível em <http://www.planalto.gov.br/legislacao>.
Acesso em: 10 ago. 2010.
23
No mesmo entendimento seguiu a Lei nº 8.069 de 1990 (Estatuto da Criança
e do Adolescente – ECA) que em seu artigo 2033 acabou reproduzindo o disposto no
artigo 227 § 6º da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988,
reafirmando a vedação de qualquer tipo de discriminação entre os filhos.
Ao tratar do assunto defende Sérgio Gischkow Pereira:34
O artigo 227, §6º, da CF é magnífico pelo que representa de avanço no Direito de Família pátrio. Quebra uma das mais deploráveis hipocrisias naquele ramo do Direito, de efeitos perniciosíssimos, consistente em ‘punir’ os filhos ilegítimos por eventos no tocante aos quais não têm eles qualquer responsabilidade.
Neste mesmo diapasão cita-se as palavras de Maria Berenice Dias:35
A Constituição Federal de 1988, num único dispositivo, espancou séculos de hipocrisia e preconceito [...] Consagrou a igualdade dos filhos, havidos ou não do casamento, ou por adoção, garantindo-lhes, os mesmos direitos e qualificações. Essas profundas modificações acabaram derrogando inúmeros dispositivos da legislação em vigor, por não recepcionados pelo novo sistema jurídico. Após a Constituição Federal o Código Civil perdeu o papel de lei fundamental do direito de família.
O Código Civil brasileiro de 1916 não mais refletia a realidade da sociedade
brasileira, seus dispositivos referentes ao Direito de Família estavam ultrapassados.
A necessidade de amoldar a nova realidade social à legislação era
imperiosa, foi a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 que
revolucionou o Direito de Família, como descreve Thaís Rachel de Souza:36
Por fim, a Carta Constitucional de 1988 revolucionou o Direito de Família, colocando abaixo as suas estruturas já corroídas pelo tempo, edificando novos pilares, mais sólidos e resistentes. Com a inclusão de um dispositivo constitucional, promoveu-se uma reviravolta no Direito de Família e se modificou o instituto em que se acreditava imutável: o reconhecimento da filiação. Graças à ousadia do constituinte, hoje os filhos devem ser tratados de igual maneira perante a legislação brasileira, não comportando mais qualquer distinção, não devendo estes sofrerem mais com o estigma social da discriminação, possibilitando aos magistrados um
33 Art. 20. Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por doação, terão os
mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação.
34 PEREIRA, Sérgio Gischkow. A igualdade jurídica na filiação biológica em face do novo sistema de direito de família no brasil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 250.
35 DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias . Porto Alegre: Livraria do Advogado. 2005. p.27
36 SOUZA, Thaís Rachel de. A evolução da legislação brasileira pertinente à filiação matrimonial e extramatrimonial à luz da Constituiçã o da republica federativa do brasil e do código civil . Revista da OAB/SC. n.121- Dezembro/2005. p. 13.
24
leque maior de possibilidade ao proferir as sentenças, sempre com à equidade entre os filhos.
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 terminou com o
período de exclusão e de tratamento diferenciado a respeito dos filhos,
independentemente do tipo de vínculo existente entre os pais e da espécie de
origem do parentesco, estabeleceu a igualdade, buscando vedar a diferenciação dos
filhos havidos fora da relação matrimonial.
Colaciona-se passagem de César Moacir Pena Júnior37 ao afirmar que a
constitucionalização gerou um novo modelo familiar:
O novo modelo de família, portanto, é produto da constitucionalização do ordenamento jurídico, que privilegia os valores da dignidade da pessoa humana, tornando mais amplo o conceito da unidade familiar, cujo objetivo é o desenvolvimento da personalidade e a busca da felicidade de cada um dos seus componentes.
Nas palavras de Ingo Wolfgand Sarlet:38
Assim, constitui pressuposto essencial para o respeito da dignidade da pessoa humana a garantia da isonomia de todos os seres humanos, que, portanto, não podem ser submetidos a tratamento discriminatório e arbitrário, razão pela qual não podem ser toleradas a escravidão, a discriminação racial, perseguições de motivos de religião, sexo, enfim, toda e qualquer ofensa ao princípio isonômico na sua dupla dimensão formal e material.
O princípio que vem ao encontro dos novos valores que embasam o Direito
de Família é o princípio da dignidade da pessoa humana, disposto no artigo 1º,
inciso III Constituição da República Federativa do Brasil de 1988,39 que aliado ao
princípio da igualdade entre os filhos garantem a todos os filhos o direito a terem o
mesmo tratamento independente de terem sido gerados ou não na constância do
casamento, ou de terem ou não vínculo biológico com os pais:
Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: [...] III - a dignidade da pessoa humana;
37 PENA JÚNIOR, Moacir César. Direito das pessoas e das famílias : doutrina e
jurisprudência. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 9. 38 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentai s na
constituição federal de 1988 . Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001. p. 89 39 BRASIL. Constituição (1988) . Disponível em <http://www.planalto.gov.br/legislacao>.
Acesso em: 10 ago. 2010.
25
Carlos Roberto Gonçalves, citando Gustavo Tepedino,40 destaca que:
A milenar proteção da família como instituição, unidade de produção e reprodução dos valores culturais, éticos, religiosos e econômicos, dá lugar à tutela essencialmente funcionalizada à dignidade de seus membros, em particular no que concerne ao desenvolvimento da personalidade dos filhos.
Foi neste sentido que a Constituição da República Federativa do Brasil de
1988 em preservação a dignidade da pessoa humana pôs fim às desigualdades e
discriminações entre os filhos, destarte, não se pode mais denominar os filhos como
legítimos e ilegítimos, naturais, espúrios, adulterinos ou incestuosos, posto que
todos os filhos, independentemente de sua origem são passíveis dos mesmos
direitos.
1.3 Tratamento legal atual da filiação no ordenamen to jurídico brasileiro
Conforme dito no item anterior, somente com a promulgação da Constituição
da República Federativa do Brasil de 1988, se consagrou a igualdade entre os filhos
gerados dentro ou fora da relação matrimonial, assim disposto no parágrafo 6º do
artigo 227 do referido diploma constitucional.
Seguindo a mesma linha da equidade da filiação, em 1990 foi promulgada a
Lei nº 8.069 - Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA),41 que disciplina os
interesses da criança e do adolescente, consagrando a igualdade da filiação, bem
como o direito ao seu reconhecimento, assim está disposto em seus artigos 26 e 27,
in verbis, respectivamente:
Art. 26. Os filhos havidos fora do casamento poderão ser reconhecidos pelos pais, conjunta ou separadamente, no próprio termo de nascimento, por testamento, mediante escritura ou outro documento público, qualquer que seja a origem da filiação. Art. 27. O reconhecimento do estado de filiação é direito personalíssimo, indisponível e imprescritível, podendo ser exercitado
40 TEPENDINO, Gustavo apud GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. V. VI,
Direito de família . São Paulo: Saraiva, 2005. p. 78. 41 BRASIL. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Estatuto da criança e do adolescente.
Disponível em: http://planalto.gov.br/legislacao>. Acesso em: 23 ago. 2010.
26
contra os pais ou seus herdeiros, sem qualquer restrição, observado o segredo de Justiça.
O referido dispositivo legal se perfaz com um verdadeiro guardião da criança
e do adolescente ao lhes garantir todos os direitos fundamentais referentes à pessoa
humana, além de propiciar um desenvolvimento saudável.
Maria Cristina Crespo Brauner citada por Elisabeth Nass Anderle42 afirma
que:
Referido diploma legal veio reconhecer a criança como sujeito de direitos, garantindo-lhe proteção integral, reafirmando a igualdade entre os filhos, sejam eles resultantes de uniões matrimonializadas ou não, proibindo qualquer tipo de discriminação.
Seguindo a evolução legislativa, no ano de 2002 entrou em vigor o atual
Código Civil brasileiro que também embasado nas orientações da Constituição da
República Federativa do Brasil de 1988, trouxe diversas modificações,
principalmente no que tange ao instituto da filiação, abolindo também qualquer forma
de discriminação quanto aos filhos nascidos ou não do enlace matrimonial, bem
como da adoção.
Assim nos esclarece Carlos Alberto Bittar:43
A Constituição de 1988 imprimiu novas bases ao direito de família, dentro da diretriz protetora da mulher e dos filhos, exigindo, consequentemente, a adaptação do direito infraconstitucional, o que se deu com a edição do Código Civil de 2002. Fê-lo em consonância com a nova visão da realidade fática, em que se procurou afastar dos filhos a nódoa decorrente de deslizes cometidos pelos pais, e consistentes nos vários qualificativos atribuídos à prole, em razão de sua origem, com as conseqüentes restrições de direitos no corpo da codificação de 1916 e de leis especiais expedidas ao longo dos tempos.
Arremata o mesmo autor:44 “Como ápice da evolução legislativa, o Código
Civil de 2002 trouxe regulamentação cuja tônica é a absoluta igualdade entre os
filhos, independentemente de sua origem.”
Outra importante alteração efetivada pelo Código Civil brasileiro de 2002 foi
a mudança do termo utilizado para designar o título do Capítulo II, Subtítulo II, do
42 BRAUNER, Maria Cristina Crespo apud ANDERLE, Elisabeth Nass. A posse de estado
de filho e a busca pelo equilíbrio das verdades da filiação . Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=3520>. Acesso em: 23 ago. 2010.
43 BITTAR, Carlos Alberto. Direito de família. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006, p. 193.
44 ______. Direito de família. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006, p. 193.
27
Livro IV (DO DIREITO DE FAMÍLIA), que no Código Civil de 1917 tratava “Da filiação
legítima” e “Da legitimação”, e agora, trata tão-somente “Da Filiação”.
Neste sentido o artigo 1.596 do referido texto infraconstitucional estabelece
que “Os filhos, havidos ou não da relação de casamento, ou por adoção, terão os
mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias
relativas à filiação.” 45
Sobre as inovações positivadas no Código Civil brasileiro de 2002, afirma Marco Antônio Boscaro:46
No primeiro desses artigos, já vem claramente declarada a impossibilidade da distinção de direitos ou de qualificações, entre espécies de filhos, conforme sejam ou não havidos de relação de casamento, ou por adoção, proibindo designações discriminatórias, tudo de conformidade com a norma insculpida em nossa vigente Magna Carta, em seu artigo 227, § 6º.
O Código Civil de 2002 ainda em suas modificações acresceu em seu artigo
1.597 outros três incisos nas hipóteses de presunção de concepção no casamento,
que antes eram tratadas no artigo 33847 do Código Civil brasileiro de 1916.
Art. 1.597. Presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos: I - nascidos cento e oitenta dias, pelo menos, depois de estabelecida a convivência conjugal; II - nascidos nos trezentos dias subsequentes à dissolução da sociedade conjugal, por morte, separação judicial, nulidade e anulação do casamento; III - havidos por fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido o marido; IV - havidos, a qualquer tempo, quando se tratar de embriões excedentários, decorrentes de concepção artificial homóloga; V - havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia autorização do marido.48
45 BRASIL. Código Civil (2002) . Disponível em: <http://planalto.gov.br/legislacao>. Acesso
em: 23 ago. 2010. 46 BOSCARO, Márcio Antônio. Direito de filiação. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,
2002, p. 159. 47Art. 338. Presumem-se concebidos na constância do casamento: I - os filhos nascidos 180
(cento e oitenta) dias, pelo menos, depois de estabelecida à convivência conjugal (art. 339); II - os nascidos dentro nos 300 (trezentos) dias subseqüentes à dissolução da sociedade conjugal por morte, desquite, ou anulação.
48 BRASIL. Código Civil (2002) . Disponível em: <http://planalto.gov.br/legislacao>. Acesso em: 23 ago. 2010.
28
O referido artigo (1.597) traz as presunções de paternidade e prevê que
também presumem-se concebidos na constância do casamento, os filhos havidos
por fecundação artificial homóloga,49 mesmo que falecido o marido; os filhos
havidos, a qualquer tempo, quando se tratar de embriões excedentários,50
decorrentes de concepção artificial homóloga; e os filhos havidos por inseminação
artificial heteróloga,51 desde que tenha prévia autorização do marido.
Estas presunções de paternidade vêm perdendo, ao longo do tempo, sua
aplicabilidade na prática, pois, em conseqüência do avanço da ciência em busca da
verdade biológica consegue-se através da realização de exames de DNA uma prova
muita mais concreta quanto à paternidade, principalmente nos casos do inciso I e II
do artigo citado.
Neste sentido é o entendimento de Flávio Tartuce e José Fernando Simão:52
Justamente diante desta possibilidade de prova em contrário, os dois primeiros incisos do artigo 1597 têm pouca relevância prática na atualidade, justamente diante do exame de DNA, que traz certeza quase absoluta quanto a paternidade. Ora, que aplicador do direito fara uso dessas presunções relativas quando se tem prova das mais efetivas nos casos em questão? Diante dessa realidade é que se tem afirmado que a presunção pater is est perdeu a sua relevância prática. Entre a adoção dessa presunção e a realização do exame o juiz, com certeza fará a opção pela segunda.
Segundo Renato Maia53, o Código Civil de 2002 ao reproduzir os parâmetros
que estabelecem a filiação por presunção (incisos I e II do artigo 1.597) cometeu um
erro, pois prioriza tão somente a prole advinda do matrimônio: 49 MARQUES, Alessandro Brandão. Questões polêmicas decorrentes da doação de
gametas na inseminação artificial heteróloga. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/Doutrina/texto.asp?id=4267>. Acesso em: 25 out. 2010. Define a expressão: “Fala-se em inseminação artificial homóloga quando o material genético pertence ao casal interessado.”
50 DIAS, Danilo. Embriões excedentários e suas sonsequências. <http://www.artigonal.com/legislacao-artigos/embrioes-excedentarios-e-suas-consequencias-429997.html>. Acesso em: 25 out. 2010. Assim define embriões excedentários: “[...] a utilização de uma quantidade bastante considerável desses embriões pode implicar na existência de embriões, excedentes, ou seja, aqueles que sobram e que não precisarão mais der utilizados naquela fecundação. São os embriões excedentários.”
51 MARQUES, Alessandro Brandão. Questões polêmicas decorrentes da doação de gametas na inseminação artificial heteróloga. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/Doutrina/texto.asp?id=4267>. Acesso em: 25 out. 2010. Preceitua o autor: “A inseminação artificial será heteróloga quando o espermatozóide ou o óvulo utilizado provém de um doador estranho ao casal; nesses casos, está se falando na chamada doação de gametas.”
52 TARTUCE, Flávio, Simão, José Fernando. Direito civil, v. 5, direito de família . São Paulo: Método, 2007. p. 291.
29
Embora esteja gravada a filosofia do compêndio em preservar os direitos e reconhecer a igualdade da prole, peca o novo código, quando mantêm no artigo 1597 certos parâmetros de estabelecimento da filiação que priorizam a prole advinda do matrimônio (em que pese a distinção também constar mantida em legislações européias já modernizadas).
Conforme dito acima, no Código Civil brasileiro de 2002 encontram-se os
incisos III, IV e V do artigo 1.597 que constituem inovações em face ao direito
anterior que, não previa tais situações.
Os incisos III e IV prevêem que haverá presunção de paternidade dos filhos
havidos por fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido o marido, e a
qualquer tempo, quando se tratar de embriões excedentários, respectivamente.
O inciso IV, por seu turno, prevê a presunção de paternidade quanto aos
filhos havidos a qualquer tempo, quando se tratar de embriões excedentários,
decorrentes também de concepção artificial homóloga.
E, por fim, traz o inciso V a presunção de paternidade dos filhos havidos por
inseminação artificial heteróloga.
Outro dispositivo da atual legislação civil é o artigo 1.593 ao estabelecer que
“O parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consangüinidade ou de outra
origem .”54 (destaque nosso)
Ao determinar que o parentesco familiar pode ocorrer de “outra origem” o
legislador deu margem para a caracterização de outras formas de relação familiar,
onde pode-se estabelecer a paternidade socioafetiva.
Neste contexto insere-se passagem de Fernanda Aparecida Corrêa Otoni,55
para quem:
[...] o Civil de 2002, não traz um dispositivo que trata exclusivamente da filiação socioafetiva, embora seja possível entender pela sua presença no nosso ordenamento. O art. 1593 é um dos exemplos de veiculação de vínculos socioafetivos, pois, quando se refere ao parentesco natural ou civil que resultar "de outra origem", está se referindo implicitamente a paternidade socioafetiva.
53 MAIA, Renato. Filiação paternal e seus efeitos. São Paulo: SRS Editora, 2008, p 25. 54 BRASIL. Código Civil (2002) . Disponível em: <http://planalto.gov.br/legislacao>. Acesso
em: 23 ago. 2010. 55 OTONI, Fernanda Aparecida Corrêa. A filiação socioafetiva no direito brasileiro e a
impossibilidade de sua desconstituição posterior . Disponível em <http://www.ibdfam.org.br/artigo/>. Acesso em: 23 ago. 2010.
30
A referida expressão contida no artigo 1.593 trouxe grande avanço para o
Direito de Família, em especial no que concerne à filiação, ao estabelecer discussão
nas Jornadas de Direito Civil e erigir o Enunciado nº 256,56 in verbis: “1.593: A posse
do estado de filho (parentalidade socioafetiva) constitui modalidade de parentesco
civil.”
Como se pode verificar, o Código Civil brasileiro de 2002 avançou em
direção a um Direito de Família contemporâneo, de acordo com a realidade social
atual, e, portanto, mais solidário, igualitário, libertário.
Desta feita, consagra-se um Direito de Família que prestigia os laços de
afeto e autenticidade nas relações, permitindo uma legislação mais próxima de
resolver os conflitos que surgem das diversas formas de relacionamentos existentes
entre os ocupantes de uma sociedade, ao ser estudado no próximo capítulo.
56 III Jornada de direito civil . Brasília, dez. 2004. Coord. Geral Ministro Ari Pargendler.
Disponível em: <http://daleth.cjf.jus.br/revista/enunciados/IIIJornada.pdf>. Acesso em: 2 nov. 2010.
31
2 PATERNIDADE SOCIOAFETIVA
Como visto no capítulo anterior, a forma de pensar na família foi
transmutando e amoldando-se às novas características da sociedade. Assim não foi
diferente ao instituto da filiação. Passa-se de um estágio em que a família era
hierarquizada sob o comando do pater famílias em que não se reconheciam aos
filhos extramatrimoniais direitos elementares à sobrevivência, como os alimentos.
Sobre as mudanças ocorridas na moderna família brasileira, Maria Helena
Diniz57 esclarece:
O que realmente ocorre é uma mudança nos conceitos básicos, imprimindo uma feição moderna à família, mudança esta que atende às exigências da época atual, indubitavelmente diferente das de outrora, revelando a necessidade de um questionamento e de uma abertura para pensar e reparara todos esses fatos.
Brota na sociedade uma nova família, em que o sentimento de afeição serve
como substrato e base para esse novo modelo familiar.
Ao revelar que as relações familiares contemporâneas imprimem novos
elementos, consagrando princípios da Constituição da República Federativa do
Brasil de 1988, Caio Mário da Silva Pereira58 leciona que:
O Direito Brasileiro na contemporaneidade tem indicado novos elementos que compõem as relações familiares, transcendendo os limites fixados pela Carta de 1988, mas incorporando, também, seus princípios.
E continua o mesmo autor:
Consolida-se a família sócio-afetiva em nossa Doutrina e Jurisprudência uma vez declarada a convivência familiar e comunitária como Direito Fundamental, a não-discriminação de filhos, a co-responsabilidade dos pais quanto ao exercício do poder familiar e o núcleo monoparental reconhecido como entidade familiar. Convocando os pais a uma “paternidade responsável”, assumiu-se uma realidade familiar concreta onde os vínculos de afeto se sobrepõe à verdade biológica, após as conquistas genéticas vinculadas aos estudos do DNA.
A presunção de que a maternidade é certa e que o marido da mãe é pai dos
filhos, bem como, a certeza da filiação oriunda dos exames de DNA, sem 57 DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. 5 vol. 22 ed. rev. e atual. de
acordo com a reforma do CPC. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 23. 58 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. vol. v, 16 ed. Rio de Janeiro:
Editora Forense, 2006, p. 39.
32
desmerecer sua importância para o Direito, perdem espaço para configuração deste
novo paradigma acolhedor de amor, carinho e afeto.
A origem biológica é dispensável ao que se exige desta nova relação
familiar, pois outros valores são muito mais relevantes. Os vínculos de afeto que se
fundam entre pais e filhos se sobrepõem a qualquer forma de imposição, seja legal
ou biológica.
Destaca-se que o vínculo de afeto com a criança pode originar tanto do lado
paterno quanto materno. O fato de denominarmos a relação fundada na afetividade
de “paternidade socioafetiva”, não se pode deixar crer que somente o pai possa ser
o titular da referida relação. A maternidade socioafetiva também é parte integrante
neste cenário socioafetivo.
Ao comentar sobre as novas situações familiares após a Constituição da
República Federativa do Brasil de 1988, Roberto Paulino de Albuquerquer Júnior,59
acrescenta que: “[...] esta intensa renovação da disciplina das situações familiares,
ganha significado relevo o estudo detido da paternidade e maternidade
socioafetivas.”
Destaca, o mesmo autor, que os juristas devem abandonar as velhas
concepções sobre o Direito de Família e admitir esta onda de renovação que se
apresenta em um novo cenário frente aos velhos conceitos de paternidade.
Princípios como da Dignidade da Pessoa Humana, o Melhor Interesse da
Criança, bem como, a Posse de Estado de Filho são determinantes para configurar
a Paternidade Socioafetiva.
Sobre as mudanças ocorridas com a família, Renato Maia60 afirma que o
modelo tradicional cedeu espaço para um modelo de núcleo individual, valorizando
as relações afetivas:
Outro fator relevante a ser considerado é a evolução da própria família. A família, ao se transformar daquele modelo tradicional, romano, patriarcal, para o modelo de núcleo individual como ora se apresenta, passou a valorizar as relações afetivas entre seus membros. Entende-se que não é mais o indivíduo que existe para a família e para o casamento, mas é a família e o casamento que existem para o seu desenvolvimento pessoal, em busca de uma aspiração à felicidade.
59 ALBUQUERQUER JUNIOR, Roberto Paulino. A filiação socioafetiva no direito
brasileiro e a impossibilidade de sua desconstituiç ão posterior. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=10456>. Acesso em: 17 out. 2010.
60 MAIA, Renato. Filiação paternal e seus efeitos. São Paulo: SRS Editora, 2008, p. 172-173.
33
E ainda, Renato Maia61 acrescenta que a presunção de paternidade (pater is
est quem nuptiae demonstrant) perde espaço para a busca da verdade biológica e
esta, por sua vez, não se revela fundamental à configuração da paternidade ligada
pelos laços da afetividade.
Se a paternidade se constitui pelo fato, o pai pode não ser aquele a quem a lei presuntivamente atribui a paternidade. Essa verdade jurídica (paternidade legal) emerge da presunção pater is est quem nuptiae demonstrant – cujo caráter praticamente absoluto foi consagrado pelo sistema clássico – deve ceder à busca da verdadeira paternidade, do ponto de vista biológico (paternidade biológica).
Finaliza Renato Maia ao afirmar que a verdadeira paternidade, baseada na
afetividade não se explica pelo laço biológico ou pela presunção, mas sim pelo
comportamento diário, de forma duradoura, passando à sociedade a aparência de
que, aquele ser sob seus cuidados é seu filho, pouco importando se oriundo de laço
sanguíneo, adotivo ou afetivo.
Porém, a verdadeira paternidade pode também não se explicar apenas na autoria genética da descendência. Pai também é aquele que se revela no comportamento cotidiano, de forma sólida e duradoura, capaz de estreitar os laços da paternidade numa relação psico-afetiva. Aquele, enfim, que além de poder emprestar seu nome de família, trata o indivíduo como seu verdadeiro filho perante o ambiente social.
Ao conceituar paternidade socioafetiva, Juliana Brito Mendes de Barros62
esclarece que trata-se de uma relação pautada na afetividade, onde amor e carinho
ocorrem no convívio diário, ao se buscar a felicidade plena de seus membros.
A paternidade socioafetiva surge então como sendo aquela emergente da construção afetiva, através da convivência diária, do carinho e cuidados dispensados à pessoa. Surge dentro do conceito mais atual de família, ou seja, de família sociológica, unida pelo amor, onde se busca mais a felicidade de seus integrantes.
No mesmo raciocínio, segue Belmiro Pedro Welter,63 para quem a filiação
afetiva ocorre mesmo em não havendo traços biológicos ou jurídicos.
61 MAIA, Renato. Filiação paternal e seus efeitos. São Paulo: SRS Editora, 2008, p 173. 62 BARROS, Juliana Brito Mendes de. Filiação socioafetiva. Disponível em:
<http://intertemas.unitoledo.br/revista/index.php/ETIC/article/view/1472/1405>. Acesso em: 24 out. 2010.
34
[...] a filiação afetiva se dá nos casos em que, mesmo não havendo vínculo biológico ou jurídico (adoção) os pais criam uma criança por mera opção, denominado filho de criação, estando amparada essa situação de fato na jurisprudência: “A despeito da ausência de regulamentação em nosso direito quanto à paternidade sociológica, a partir dos princípios constitucionais de proteção à criança (art. 227 da CF), assim como da doutrina da integral proteção, consagrada na Lei n. 8.069/90 (especialmente arts. 4º e 6º), é possível extrair os fundamentos que, em nosso direito, conduzem ao reconhecimento da paternidade sócio afetiva, revelada pela posse de estado de filho, como geradora de efeitos jurídicos capazes de definir a filiação” (AC. 598300028,7ª C. Cív., TJRS, Porto Alegre, Rela. Maria Berenice Dias, J. 18.11.1998, In: CD Júris Síntese, 29, ago./2001).
É no trato diário desempenhando o papel de pai e mãe que nasce o suporte
fático da filiação socioafetiva, assim nos descreve Roberto Paulino de Albuquerquer
Júnior:64
O desempenho perene da função de pai ou de mãe, com a criação de laços afetivos recíprocos com a criança e o desempenho das atividades de educação e cuidado passa a ser visto como suporte fático da filiação [...].
A prática do afeto na relação paterno-filial é quem vai dar o suporte fático
para a construção de um novo modelo social, é pois, o trato diário com a criança,
desempenhando a função de pai, cuidando e dispensando carinho que pode-se
entender como a verdadeira paternidade.
Paternidade esta que não necessita do laço biológico para sua
caracterização, surge da função do “pai social”, cercada de amor, dedicação,
respeito, atenção e carinho, é desta forma que Maria Cristina de Almeida65 aponta a
nova paternidade:
O novo posicionamento acerca da verdadeira paternidade não despreza o liame biológico da relação paterno-filial, mas dá notícia do incremento da paternidade socioafetiva, da qual surge um novo personagem a desempenhar o importante papel de pai: o pai social, que é o pai de afeto, aquele que constrói uma relação com o filho, seja biológica ou não, moldada pelo amor, dedicação e carinho constantes.
63 WELTER, Belmiro Pedro. Igualdade entre filiação biológica e sócio afetiva. Revista
brasileira de direito de família . Porto Alegre: Síntese/IBDFAM, ano IV, n. 14, jul/ago/set. 2002.
58 ALBUQUERQUER JUNIOR, Roberto Paulino. A filiação socioafetiva no direito brasileiro e a impossibilidade de sua desconstituiç ão posterior. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=10456>. Acesso em: 17 out. 2010.
65 ALMEIDA, Maria Cristina de. Investigação de paternidade e dna : aspectos polêmicos. Porto Alegre: Livraria do Advogado. 2001, p.159
35
Por vezes, resta evidente que o vínculo biológico entre pai e filho fica
mitigado frente aos laços afetivos, onde a verdadeira paternidade é a social e não a
biológica, sendo caracterizada pelo indivíduo que se reveste do papel de pai ao
proteger o melhor interesse da criança. Assim nos descreve Juliana Brito Mendes de
Barros,66 ao definir a verdade sociológica:
Entende-se por verdade sociológica, a constatação de que ser pai ou mãe, não se pauta apenas no vínculo genético com a criança, mas naquela pessoa que cria, educa, dá amor, carinho, dignidade e condição de vida, realmente exercendo a função de pai ou de mãe levando em consideração o melhor interesse da criança.
Destaca, a mesma autora, que sob o prisma psicológico o relacionamento
afetivo, com base no amor não nasce do vínculo sanguíneo, mas sim do convívio
diário ao passar para a criança que aquele ser que se apresenta como seu pai ou
sua mãe vai lhe proporcionar proteção e afeto:
Do ponto de vista psicológico o amor entre uma criança e seu pai não ocorre em razão de vinculo de sangue, mas sim da convivência, do afeto e da certeza de proteção que aquela pessoa lhe proporciona.
É possível perceber que o novo paradigma da família contemporânea se
depara com a questão da paternidade socioafetiva.
Paternidade esta em que muitas das vezes estão ausentes os laços
biológicos, sendo necessário amoldar a legislação ao caso concreto, uma vez que o
presente assunto ainda não se encontra expressamente positivado no ordenamento
jurídico brasileiro.
Neste contexto, emergem os princípios da Dignidade da Pessoa Humana, o
Melhor Interesse da Criança e a Posse de Estado de Filho, que, aliados à doutrina e
jurisprudência pátria regulam esta nova situação estabelecida sob laços de
fraternidade, amor e carinho.
66 BARROS, Juliana Brito Mendes de. Filiação socioafetiva. Disponível em:
<http://intertemas.unitoledo.br/revista/index.php/ETIC/article/view/1472/1405>. Acesso em: 24 out. 2010.
36
2.1 Princípio da Dignidade da Pessoa Humana
Dentre os princípios que servem de substrato para proteção da família,
encontra-se previsto no inciso III do artigo 1º da Constituição da República
Federativa do Brasil de 1988,67 o princípio da Dignidade da Pessoa Humana:
Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I - a soberania; II - a cidadania; III - a dignidade da pessoa humana; [...]
Sobre a importância do princípio em comento, Alexandre de Morais68 afirma
que a dignidade da pessoa é um mínimo de garantia ao ser humano, sendo
invulnerável:
[...] a dignidade da pessoa humana: concede unidade aos direitos e garantias fundamentais, sendo inerente às personalidades humanas. Esse fundamento afasta a idéia de predomínio das concepções transpessoalistas de Estado e Nação, em detrimento da liberdade individual. A dignidade é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que, somente excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos.
67 BRASIL. Constituição (1988) . Disponível em <http://www.planalto.gov.br/legislacao>.
Acesso em: 29 set. 2010. 68 MORAES, Alexandre de. Direito constitucional . 13 ed. São Paulo: Atlas, 2003, p.50.
37
Ao comentar sobre o referido princípio Maria Berenice Dias69 afirma que:
É o princípio maior, fundante do Estado Democrático de Direito, sendo afirmando já no primeiro artigo da Constituição Federal. A preocupação com a promoção dos direitos humanos e da justiça social levou o constituinte a consagrar a dignidade da pessoa humana como valor nuclear da ordem constitucional.
A mesma autora, continua ao afirmar que o princípio da dignidade da pessoa
humana liga-se ao Direito de Família favorecendo a igualdade a todas as entidades
familiares:
O direito de família está umbilicalmente ligado aos direitos humanos, que têm por base o princípio da dignidade da pessoa humana, versão axiológica da natureza humana. O princípio da dignidade humana significa, em última análise, uma igual dignidade para todas as entidades familiares. Assim, é indigno dar tratamento diferenciado às várias formas de filiação ou aos vários tipos de constituição de família com o que se consegue visualizar a dimensão do espectro desse princípio que tem contornos cada vez mais amplos.
Elencado com um dos fundamentos da Constituição Federativa do Brasil de
1988, o princípio da Dignidade da Pessoa Humana constitui base para o Direito de
Família, garantido a realização plena a todos os membros de um grupo familiar.
Neste sentido, Maria Helena Diniz70 ensina que este princípio “[...] constitui
base da comunidade familiar (biológica ou socioafetiva), garantindo, tendo por
parâmetro a afetividade, o pleno desenvolvimento e a realização de todos os seus
membros, principalmente da criança e do adolescente (CF, Art. 227).”
O princípio da dignidade da pessoa humana serve de substrato aos demais
princípios constitucionais, posto que dele emergem os demais direitos e garantias
fundamentais, como ensina Ingo Wolfgang Sarlet:71
Na sua essência todas as demandas na esfera dos direitos fundamentais gravitam, direta ou indiretamente, em torno dos tradicionais e perenes valores da vida, liberdade, igualdade, fraternidade (solidariedade), tendo, na sua base, o princípio maior da dignidade da pessoa humana.
69 DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias . Porto Alegre: Livraria do
Advogado. 2005. p. 59. 70 DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. 5 vol. 22 ed. rev. e atual. de
acordo com a reforma do CPC. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 22. 71 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 1998. p. 41.
38
Nos ensinamentos de Flávio Tartuce72 ao afirmar que: “O princípio da
dignidade da pessoa humana é o ponto de partida do novo Direito de Família
Brasileiro. Trata-se daquilo que se denomina princípio máximo, ou superprincípio, ou
macroprincípio, ou princípio dos princípios”.
Adverte Ingo Wolfgang Sarlet73 que o princípio em comento deve trazer
respeito ao ser humano, lhe garantindo condições mínimas de existência e caso tais
preceitos não forem seguidos estar-se-á diante de verdadeiras injustiças e arbítrios:
[...] onde não houver respeito pela vida e pela integridade física do ser humano, onde as condições mínimas para uma existência digna não forem asseguradas, onde a intimidade e identidade do indivíduo forem objeto de ingerências indevidas, onde sua igualdade relativamente aos demais não for garantida, bem como onde não houver limitação do poder, não haverá espaço para a dignidade da pessoa humana, e esta não passará de mero objeto de arbítrio de injustiças. A concepção de homem-objeto, como visto, constitui justamente a antítese da noção da dignidade da pessoa humana.
Neste sentido, o princípio da Dignidade da Pessoa Humana deve orientar os
demais princípios que norteiam o Direito de Família, pois defende a realização plena
do indivíduo e consagra o direito de ser feliz em si mesmo.
Por outro lado, não se pode deixar que o aspecto econômico e o progresso
material mitiguem os direitos humanos, pois se estaria diante de um retrocesso à
igualdade do ser humano, assim nos adverte Dalmo de Abreu Dallari:74
Existe uma dignidade inerente à condição humana, e a preservação dessa dignidade faz parte dos direitos humanos. O respeito pela dignidade da pessoa humana deve existir sempre, em todos os lugares e de maneira igual para todos. O crescimento econômico e o progresso material de um povo têm valor negativo se forem conseguidos à custa de ofensas à dignidade de seres humanos.
Este é o posicionamento de Moacir Cesar Pena Júnior75 ao defender que o
princípio em análise é a mola central para construção de uma sociedade justa e
72 TARTUCE, Flávio. Novos princípios do direito de família brasileiro. Jus Navegandi,
Teresina, ano 10, n. 1069, 5 jun. 2006. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=8468. Acesso em: 27 mai. 2008.
73 SARLET, Ingo Wolfgang. Eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 106
74 DALLARI, Dalmo de Abreu. Direitos Humanos e Cidadania . São Paulo: Moderna, 1998. p. 106.
75 PENA JÚNIOR, Moacir César. Direito das pessoas e das famílias: doutrina e jurisprudência. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 10.
39
igualitária, onde a razão da vida paira no amor, na igualdade, na dignidade e na
solidariedade entre seus integrantes.
Desta forma, o princípio da dignidade da pessoa humana serve de apóio
para as relações interpessoais, implicando na valorização individual de cada
integrante do grupo familiar.
Destaca-se que tal princípio não se aplica somente às relações familiares,
mas sim a todas as relações pessoais, valorizando e respeitando o ser humano em
sua plenitude, pondo a salvo de qualquer discriminação que possa sofrer.
É, pois, um princípio que infla o ser humano com respeito, honra, moral,
espancando qualquer forma de discriminação a sua dignidade.
2.2 Princípio do Melhor Interesse da Criança
Este princípio esta previsto no artigo 227, caput, da Constituição da
República Federativa do Brasil de 1988,76 onde prevê a obrigação da família, da
sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem proteção
aos seus direitos fundamentais, além de pretegê-los de toda forma de discriminação,
negligência e exploração.
Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
Salienta-se que referida proteção também esta prevista no Estatuto da
Criança e Adolescente – ECA, Lei nº 8.069/1990,77 em seu artigo 6º, ao estabelecer
que a interpretação desta lei levar-se-á em conta a condição peculiar da criança.
Art. 6º Na interpretação desta Lei levar-se-ão em conta os fins sociais a que ela se dirige, as exigências do bem comum, os direitos
76 BRASIL. Constituição (1988) . Disponível em <http://www.planalto.gov.br/legislacao>.
Acesso em: 29 set. 2010. 77 BRASIL. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Estatuto da criança e do adolescente.
Disponível em: <http://planalto.gov.br/legislacao>. Acesso em: 29 set. 2010.
40
e deveres individuais e coletivos, e a condição peculiar da criança e do adolescente como pessoas em desenvolvimento.
Ambos dispositivos visam a proteção integral da criança, favorecendo seu
desenvolvimento físico, mental, moral e social.
O Código Civil brasileiro de 2002, de forma implícita, também reconhece o
presente princípio, pois ao tratar da guarda dos filhos estabelece nos artigos 1.583 e
1.58478 que, frente ao caso concreto se busque a melhor condição para a criança, in
verbis:
Art. 1.583. A guarda será unilateral ou compartilhada. [...] § 2º A guarda unilateral será atribuída ao genitor que revele melhores condições para exercê-la e, objetivamente, mais aptidão para propiciar aos filhos os seguintes fatores: I – afeto nas relações com o genitor e com o grupo familiar; II – saúde e segurança; III – educação.
O artigo supra transcrito além de buscar o melhor interesse da criança ainda
atribuirá a guarda dos filhos ao genitor que melhor propicie afeto, saúde, segurança
e educação.
Nota-se que a diretriz contida no referido artigo se encaixa perfeitamente no
conceito de paternidade socioafetiva, o qual defende que a verdadeira paternidade é
aquela construída sobre o afeto, ao atribuir à criança saúde, segurança e educação
para seu crescimento sadio e pleno.
Igual preocupação com a criança confere o artigo 1.584 do mesmo código
em comento, ao conceder a guarda ao genitor que melhor atenda às necessidades
da criança:
Art. 1.584. A guarda, unilateral ou compartilhada, poderá ser: [...] II – decretada pelo juiz, em atenção a necessidades específicas do filho, ou em razão da distribuição de tempo necessário ao convívio deste com o pai e com a mãe.
78 BRASIL. Código Civil (2002) . Disponível em: <http://planalto.gov.br/legislacao>. Acesso
em: 23 ago. 2010.
41
§ 1º Na audiência de conciliação, o juiz informará ao pai e à mãe o significado da guarda compartilhada, a sua importância, a similitude de deveres e direitos atribuídos aos genitores e as sanções pelo descumprimento de suas cláusulas. § 2º Quando não houver acordo entre a mãe e o pai quanto à guarda do filho, será aplicada, sempre que possível, a guarda compartilhada. § 3º Para estabelecer as atribuições do pai e da mãe e os períodos de convivência sob guarda compartilhada, o juiz, de ofício ou a requerimento do Ministério Público, poderá basear-se em orientação técnico-profissional ou de equipe interdisciplinar. § 4º A alteração não autorizada ou o descumprimento imotivado de cláusula de guarda, unilateral ou compartilhada, poderá implicar a redução de prerrogativas atribuídas ao seu detentor, inclusive quanto ao número de horas de convivência com o filho. § 5º Se o juiz verificar que o filho não deve permanecer sob a guarda do pai ou da mãe, deferirá a guarda à pessoa que revele compatibilidade com a natureza da medida, considerados, de preferência, o grau de parentesco e as relações de afinidade e afetividade.
Neste sentido manifesta Flávio Tartuce79 ao afirmar que: “[...] a guarda
deverá ser atribuída a quem revelar melhores condições para exercê-la (art. 1.584
do CC).”
Conclui o mesmo autor que o termo “melhores condições constitui uma
cláusula geral, uma janela aberta deixada pelo legislador para ser preenchida caso a
caso.”
Este princípio é de inquestionável aplicabilidade em situações específicas
em que se exige um parâmetro para determinar o que é melhor para a criança
visando a proteção integral da criança e do adolescente.
Manifesta-se neste sentido Ana Surany Martins Costa,80 ao afirmar que:
[...] o princípio do melhor interesse do menor revela-se como um parâmetro que visa analisar o que é bom para um menor, mormente, nos processos de concessão de guarda, uma vez que se presta à proteção integral da criança e do adolescente.
79 TARTUCE, Flávio. Novos princípios do direito de família brasileiro. Jus Navegandi,
Teresina, ano 10, n. 1069, 5 jun. 2006. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=8468. Acesso em: 27 mai. 2008.
80 COSTA, Ana Surany Costa. Filiação socioafetiva : uma nova dimensão afetiva das relações parentais. Instituto brasileiro de direito de família. Disponível em <http://www.ibdfam.org.br/artigo/>. Acesso em: 29 set. 2010.
42
Ao priorizar os interesses das crianças, este princípio norteará a atuação dos
magistrados na resolução de conflitos, Paulo Luiz Netto Lobo81 discorre sobre o
princípio protetor dos interesses do menor ao afirmar que:
O princípio impõe a predominância do interesse do filho, que norteará o julgador, o qual, ante o caso concreto, decidirá se a realização pessoal do menor estará assegurada entre os pais biológicos ou entre os pais não-biológicos. De toda forma, deve ser ponderada a convivência familiar, constitutiva da posse do estado de filiação, pois ela é prioridade absoluta da criança e do adolescente (art. 227 da Constituição Federal).
Encerra-se mais um princípio que servirá de base para configurar a
paternidade socioafetiva, frente ao melhor interesse da criança.
2.3 Da Posse de Estado de Filho
O “status” de filho perante à sociedade é o elemento que vai caracterizar a
Paternidade Socioafetiva. Ao definir posse do estado de filiação, Paulo Luiz Netto
Lobo82 assim se manifesta:
A posse do estado de filiação constitui-se quando alguém assume o papel de filho em face daquele ou daqueles que assumem os papéis ou lugares de pai ou mãe ou de pais, tendo ou não entre si vínculos biológicos.
Conforme visto, a posse de estado de filho se estabelece pela vontade
daquele que assume por um ato voluntário, o papel de genitor ou genitora.
Fernanda Aparecida Corrêa Otoni83 esclarece que a posse de estado de
filho é o elemento caracterizador da paternidade socioafetiva.
A posse de estado de filho, elemento caracterizador da paternidade socioafetiva, é decorrente da função de pai e/ou mãe, bem como do
81 LOBO, Paulo Luiz Netto. Direito ao estado de filiação e direito à origem
genética: uma distinção necessária. Disponível em <http://www.ibdfam.org.br/artigo/>. Acesso em: 10 ago. 2010.
82 LOBO, Paulo Luiz Netto. Direito ao estado de filiação e direito à origem ge nética: uma distinção necessária. Disponível em <http://www.ibdfam.org.br/artigo/>. Acesso em: 10 ago. 2010.
83 OTONI, Fernanda Aparecida Corrêa. A filiação socioafetiva no direito brasileiro e a impossibilidade de sua desconstituição posterior . Disponível em <http://www.ibdfam.org.br/artigo/>. Acesso em: 30 set. 2010.
43
querer ser filho de alguém, ou seja, a partir do momento em que um casal (ou uma só pessoa) se dispõe a cuidar da criança tratando-a como filho através do carinho, do respeito, da convivência, presente estará a posse de estado de filho. A paternidade se faz, se constrói e esta construção irá refletir na afetividade. Daí a ideia de que o estado de filho afetivo não se dá com o nascimento e sim com a manifestação da vontade.
O elemento da consanguinidade não interessa ao campo da afetividade, pois
a idéia de filho afetivo não ocorre com a gestação e sim com o ato de vontade em
reconhecer o indivíduo como filho.
Destaca-se que não há hierarquia entre as origens da filiação, a paternidade
biológica não se sobressai à paternidade afetiva.
Caio Mário da Silva Pereira,84 ao discorrer sobre as relações de afeto
defende que estas devem ser assumidas no mundo jurídico.
Situações peculiares devem ser assumidas no mundo jurídico como relações de afeto com força própria para uma definição jurídica: o “filho de criação”, quando comprovado o “estado de filho afetivo” (posse de estado de filho), a adoção judicial, o reconhecimento voluntário ou judicial da paternidade ou maternidade e a conhecida “adoção à brasileira”.
Continua o mesmo autor, que, ao citar Belmiro Pedro Welter nos revela uma
discordância sobre o termo “posse de estado de filho”, sugere denominar esta
relação de “estado de filho afetivo”, pois o vínculo estabelecido entre pai e filho é de
amor e ternura e não posse ou propriedade.
Belmiro Pedro Welter discorda de parte da Doutrina e da Jurisprudência ao esclarecer que não se trata de posse de estado de filho, mas sim de “estado de filho afetivo, cujo vínculo entre pais e filho, com o advento da Constituição Federal de 1988, não é de posse e domínio, e sim de amor, de ternura, na busca da felicidade mútua, em cuja convivência não há mais nenhuma hierarquia”.
Outras características que se encontram na posse de estado de filho dizem
respeito ao nome, trato e a fama, ou seja, elementos que caracterizam a relação
paterno-filial perante à sociedade.
Melhor esclarece tais características Leonardo Barreto Moreira Alves85, ao
descrever que o verdadeiro pai é aquele quem empresta seu nome ao filho, o trata
84 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. Vol. V, 16 ed. Rio de
Janeiro: Editora Forense, 2006, p. 40. 85 ALVES, Leonardo Barreto Moreira. Reformas legislativas necessárias no direito de
família e das sucessões estão por vir. Disponível em: <http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=9961&p=1>. Acesso em: 24 out. 2010.
44
como seu verdadeiro descendente lhe provendo sustento e educação, aparentando
à sociedade que existe entre ambos uma relação de paternidade.
Nesse trilhar, considera-se pai quem empresta ao seu filho o seu próprio sobrenome (nome), o trata como seu filho, provendo inclusive a sua educação e sustento, e este àquele como seu pai (tratamento), bem como o público em geral (sociedade, família e autoridades públicas) reconhecem a relação de paternidade existente entre eles (fama).
O nome consiste no uso do nome da família ou do pai.
O trato se baseia no exercício diário das atividades de pai ou mãe e filho, de
forma recíproca e perene.
Já a fama, é a exposição da relação entre pais e filhos no meio social, ou
seja, é a alcunha de ser chamado de filho de “sicrano”.
Ao comentar sobre os elementos caracterizadores da posse de estado de
filho, elucida Alberto Chamelete Neto,86 ao afirmar que:
A posse de estado de filho repousa em uma triplicidade de fatores, os quais são: a) nomen, que se manifesta no uso, pelo filho, do patronímico do suposto pai; b) tractus, que reflete o tratamento dispensado pelo suposto pai ao filho, ou o comportamento daquele em relação a este. Indica uma admissão íntima de paternidade, visto que o sujeito trata o filho como se filho de fato fosse como se soubesse ser o verdadeiro pai; c) fama, que é o aspecto ostensivo e externo da posse de estado, é o fato de o filho receber, no meio social, o status de filho. É a sua reputação pública.
O nome, embora faça parte dos pilares da posse de estado de filho, não é
um requisito essencial para configurar a relação socioafetiva, pois, como esclarece
Roberto Paulino de Albuquerque Júnior:87 “O nomen consiste no uso do nome da
família. Não é, porém, um requisito dos mais essenciais, uma vez que como é óbvio
a informalidade da situação pode fazer com que o filho não porte o nome dos pais.”
Ao comentar sobre o trato, Jacqueline Filgueras Nogueira88 afirma ser este o
elemento de maior relevância na relação social: “O tratamento é o elemento clássico
de maior valor, porquanto reflete a conduta que é dispensada ao filho, garantindo-lhe
86 CHAMELETE NETO, Alberto. Investigação de paternidade e dna . Curitiba: Juruá, 2005.
p. 63. 87 ALBUQUERQUER JUNIOR, Roberto Paulino. A filiação socioafetiva no direito
brasileiro e a impossibilidade de sua desconstituiç ão posterior. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=10456>. Acesso em: 17 out. 2010.
88 NOGUEIRA, Jacqueline Filgueras. A Filiação que se constrói: o reconhecimento do afeto como valor jurídico. São Paulo: Memória Jurídica Editora, 2001, p. 115.
45
o indispensável à sobrevivência, como a manutenção, educação, instrução, a
formação dele como se humano.”
A fama, por sua vez, compreende a exteriorização da relação de convivência
de pai e filho, onde cada indivíduo desta relação assume a função que lhe compete.
Ao abordar as características do estado de posse de filho, José Bernardo
Ramos Boeira89 resume:
Assim, deve o indivíduo ter sempre usado o nome do pai ao qual ele identifica como tal; que o pai tenha tratado como seu filho e tenha contribuído, nesta qualidade, para a sua formação como ser humano; que tenha sido constantemente, reconhecido como tal na sociedade e pelo presumido pai.
Os elementos particulares da posse de estado de filho podem assumir
diferentes graus de importância frente ao caso concreto. Neste sentido nos alerta
Renato Maia:90
Tem-se aqui registrar que dependendo de cada caso, pode-se ter os elementos ensejadores da posse de estado de filho em graus de intensidade mais ou menos presente, que, igualmente, faz com que a situação fática, posse de estado de filho, sofra uma variação de força para mais ou para menos.
Ao se deparar com esta realidade fática – paternidade ou maternidade
socioafetiva, o juiz deve sopesar os princípios que dão azo à efetivação desta
relação e averiguar se os pilares da posse de estado de filho dão base para decretar
o reconhecimento desta relação socioafetiva.
Abrem-se parênteses para abordar um tema de grande importância para o
Direito de família, a denominada “adoção à brasileira”.
A necessidade do destaque ocorre por ser um evento muito comum na
sociedade brasileira, onde abrange os casos em que, mesmo sabendo não ser o pai
ou a mãe da criança, a pessoa registra o filho com seu, de forma livre e consciente,
sem observância às exigências legais para a adoção, assim comenta Cléver
Jatobá:91
Outra circunstância que merece destaque alude aos casos em que a pessoa, mesmo tendo consciência de não ser o pai (ou mãe) biológico, decide registrar a criança como seu filho e construir no
89 BOEIRA, José Bernardo Ramos. Investigação de paternidade : posse de estado de filho.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999. p. 63. 90 MAIA, Renato. Filiação paternal e seus efeitos. São Paulo: SRS Editora, 2008, p. 182. 91 JATOBÁ, Clever. Filiação socioafetiva : os novos paradigmas da filiação. Disponível em
<http://www.ibdfam.org.br/artigo/>. Acesso em: 30 set. 2010.
46
convívio o vínculo afetivo de filiação. Esta circunstância ficou conhecida na doutrina como "adoção à brasileira", pois, mesmo desatrelado da verdade biológica, agasalha o aspecto registral dando status de filiação civil, o que, analogicamente, tem-se reportado à adoção sem atender às suas solenidades legais do respectivo processo judicial.
Mesmo estando latente o vínculo afetivo na “adoção à brasileira”,
transmitindo à sociedade em forma de afeto e amor sobre aquele ser, a referida
conduta encontra-se tipificada no artigo 242 do Código Penal brasileiro, quando dos
crimes contra o estado de filiação, in verbis:
Art. 242 - Dar parto alheio como próprio; registrar como seu o filho de outrem ; ocultar recém-nascido ou substituí-lo, suprimindo ou alterando direito inerente ao estado civil: Pena - reclusão, de dois a seis anos. Parágrafo único - Se o crime é praticado por motivo de reconhecida nobreza : Pena - detenção, de um a dois anos, podendo o juiz deixar de aplicar a pena. (destaque nosso)
Nota-se, porém, no parágrafo único do referido artigo que se o crime for
praticado por motivo de nobreza a pena será reduzida, além de ser facultado ao
magistrado deixar de aplicar a pena.
Mesmo sendo crime, a “adoção à brasileira” pode ganhar “status” de
nobreza, momento em que, frente ao prudente arbítrio do magistrado a pena deixa
de ser imposta àquele que praticou a adoção de forma irregular.
Destaca-se que os laços afetivos brotam da convivência diária,
consubstanciando-se a posse de estado de filho, independente do descumprimento
do ato registral, e por tal razão, os interesses da criança devem ser priorizados em
detrimento ao processo formal de adoção.
Sobre a “adoção à brasileira” esclarece Paulo Luiz Netto Lobo92 que:
O declarante ou declarantes são movidos por intuito generoso e elevado de integrar a criança à sua família, com se a tivessem gerado. Contrariamente à lei, a sociedade não repele tal conduta; exalça-a.
Continua o mesmo autor ao abordar o dilema do julgador frente ao caso
concreto:
92 LOBO, Paulo Luiz Netto. Direito ao estado de filiação e direito à origem ge nética: uma
distinção necessária. Disponível em <http://www.ibdfam.org.br/artigo/>. Acesso em: 18 out. 2010.
47
Nessas hipóteses, mesmo de forma ilegal, atende-se ao mandamento contido no art. 227 da Constituição, de ser dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança o direito à convivência familiar, com absoluta prioridade, devendo tal circunstância ser considerada pelo aplicador, ante o conflito entre valores normativos (de um lado, o atendimento à regra matriz de prioridade da convivência familiar; de outro, os procedimentos legais para que tal se dê, que não foram atendidos)
Desta forma, o magistrado para embasar sua decisão, além de ressaltar o
melhor interesse da criança, encontra guarida no artigo 227 da Constituição da
República Federativa do Brasil de 198893 ao assegurar à criança, com absoluta
prioridade, direito à convivência familiar, in verbis:
Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
A paternidade originada da relação perene de amor e afeto entre pai ou mãe
e seu filho encontra-se reluzente na sociedade brasileira.
Princípios como dignidade da pessoa humana, o melhor interesse da criança
e a posse de estado de filho, este sobre os pilares do nome, trato e fama, constituem
argumentos convincentes para o reconhecimento e valoração desta nova relação
que se apresenta para o Direito.
Relação esta que dispensa vínculos biológicos ao estabelecer uma nova
forma de constituição social, neste sentido nos revela Sérgio Rezende de Barros:94
Enquanto a família biológica navega na cavidade sangüínea, a família afetiva transcende os mares do sangue, conectando o ideal da paternidade e maternidade responsável, hasteando o véu impenetrável que encobre as relações sociológicas, regozijando-se com o nascimento emocional e espiritual do filho, edificando a família pelo condão umbilical do amor, do afeto, do desvelo, do coração e da emoção, (re)velando o mistério insoldável da filiação, engendrando um verdadeiro reconhecimento do estado de filho afetivo
93 BRASIL. Constituição (1988) . Disponível em <http://www.planalto.gov.br/legislacao>.
Acesso em: 18 out. 2010. 94 BARROS, Sérgio Resende de. A Ideologia do afeto. Revista brasileira de direito de
família . Porto Alegre: Síntese, Belo Horizonte: IBDFAM, v. 4, n.14, jul.-set., 2002. p. 136.
48
Conforme visto, amor, respeito, carinho, afeto distribuídos de forma
recíproca, contínua e perene são os verdadeiros substratos para esta nova entidade
familiar.
Resta saber se frente ao reconhecimento da paternidade socioafetiva, há
possibilidade de sua desconstituição posterior. Tema a ser tratado no próximo
capítulo.
49
3 PATERNIDADE SOCIOAFETIVA: possibilidade de revoga ção?
Neste capítulo analisar-se-á o problema posto em discussão, no que
concerne a possibilidade de revogação da paternidade socioafetiva após seu
reconhecimento.
Como visto nos capítulos antecedentes, o tema paternidade e filiação no
Direito brasileiro sofreu profundas transformações no que concerne a sua
constituição.
Emerge-se de uma paternidade autoritária que não reconheciam filhos
nascidos fora do casamento para uma relação baseada no afeto e amor.
Como visto, a discriminação entre a origem dos filhos foi positivado na
legislação brasileira, somente foi abolida com a promulgação da Constituição da
República Federativa do Brasil de 1988.
Nota-se que o processo legislativo de proteger e salvaguardar o direito do
indivíduo, em especial o da criança, se dá pela contínua transformação e evolução
que ocorre na sociedade ao exigir proteção às novas formas de constituição social.
Diante das várias vicissitudes das relações interpessoais, os integrantes de
uma sociedade buscam abrigo e amparo, por ser uma questão natural do ser
humano.
Na relação paterno ou materno-filial, tema do presente trabalho, é natural o
filho procurar abrigo e amparo na figura do pai e este dispensar amor e carinho à
figura do filho.
É neste contexto que a paternidade originada sobre os laços de afeto vem
ganhando cada vez mais espaço e exigindo a tutela jurisdicional.
Exige-se, destarte, do magistrado que, frente ao caso concreto aplique o
direito, o qual não se encontra devidamente positivado.
É necessário analisar o caso concreto sob o prisma dos princípios protetores
da família e da filiação, bem como averiguar se as características da posse de
estado de filho encontram-se latentes na relação paterno-filial.
De outro norte, não são poucos os casos em que ocorre a denominada
“adoção à brasileira” onde, por ato voluntário e livre de qualquer constrangimento, a
50
pessoa registra como seu filho que sabe não ser seu, conduta tipificada no Código
Penal brasileiro.
Restou evidente que o reconhecimento da paternidade socioafetiva emerge
da convivência pautada na afetividade recíproca entre pai e filho, destarte, nada
mais normal do que vislumbrarmos a possibilidade de seu desaparecimento com o
passar do tempo. Todo o amor, carinho, afeto, cumplicidade podem padecer com o
cotidiano. Mas, afinal, desaparecendo estes elementos caracterizadores da relação
fraternal, também desaparecem a paternidade e filiação socioafetiva?
Ao comentar sobre as relações interpessoais, Roberto Paulino de
Albuquerquer Júnior95 cogita a possibilidade de desconstituição do estado de filho:
Com efeito, se afetividade e convivência são elementos essencialmente fáticos, é natural cogitar da possibilidade de seu desaparecimento a posteriori. As vicissitudes das relações interpessoal, em sua imprevisibilidade, não raro contemplam situações de desentendimento, e o que era afeição se converte em indiferença ou desafeto. [...] Existe desconstituição posterior do estado de filho em decorrência da interrupção da convivência e do afeto?
Porém, antes de adentrar ao tema principal deste capítulo, importante
compreender o instituto da revogação.
3.1 Revogação
Revogar é cessar a existência de uma norma ou ato que até então eram
vigentes, assim descreve Maria Helena Diniz96 ao comentar o artigo 2º da Lei de
Introdução ao Código Civil:97 “Revogar é tornar sem efeito uma norma, retirando sua
obrigatoriedade.”
58 ALBUQUERQUER JUNIOR, Roberto Paulino. A filiação socioafetiva no direito
brasileiro e a impossibilidade de sua desconstituiç ão posterior. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=10456>. Acesso em: 17 out. 2010.
96 DINIZ, Maria Helena. Lei de introdução ao código civil interpretada. 12 ed. adaptada à lei n. 10.406/2002. São Paulo: Saraiva, 2007, p.69.
97 BRASIL. Decreto-Lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942. Lei de introdução ao código civil brasileiro. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/legislação>. Acesso em: 10 ago. 2010.
51
A revogação, por sua vez é um gênero que contêm suas espécies, melhor
esclarece o assunto André Franco Montoro,98 ao lecionar que a revogação pode ser
total ou parcial:
“A revogação pode ser “total”; denomina-se, então, ab-rogação e consiste em tornar sem efeito toda a lei. Ou pode ser “parcial”, denomina-se propriamente “derrogação”, e consiste em tornar sem efeito uma parte da lei ou noma. A derrogação, por sua vez, pode limitar-se a tornar sem efeito uma parte da lei (revogação pura e simples) ou substituí-la por outro texto (chama-se então “modificação” ou “reforma” da lei).”
Além das espécies acima tratadas, Maria Helena Diniz,99 adverte que a
revogação ainda poderá ser expressa ou tácita:
Expressa, se a norma revogadora declarar qual a lei que está extinta em todos os seus dispositivos ou apontar os artigos que pretende retirar. [...] Tácita, quando houver incompatibilidade entre a lei nova e a antiga, pelo fato de que a nova passa a regular parcial ou inteiramente a matéria tratada pela anterior [...].
Esclarecido o que vem a ser revogação, adentra-se ao tema deste capítulo:
diante da constituição da paternidade socioafetiva há a possibilidade de sua
revogação, ou seja, há perspectiva de sua desconstituição posteriormente?
3.2 Entendimento jurisprudencial no reconhecimento da paternidade socioafetiva
A jurisprudência100 pátria vem reconhecendo a paternidade social apoiada
na doutrina e nos princípios delineados no capítulo anterior, bem como na posse de
estado de filho.
98 MONTORO, André Franco. Introdução à ciência do direito. 26 ed. rev. e atual. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 65. 99 DINIZ, Maria Helena. Lei de introdução ao código civil interpretada. 12 ed. adaptada à
lei n. 10.406/2002. São Paulo: Saraiva, 2007, p.71. 100 “[...] conjunto de decisões uniforme de juízes e tribunais sobre uma dada matéria.”
Definição segundo DINIZ, Maria Helena. Dicionário jurídico. 3 ed. rev. atul. e aum. São Paulo: Saraiva, 2008, p.30.
52
Sobre o posicionamento do Poder Judiciário diante da relação socioafetiva
Eduardo Cambi101 afirma que, na dúvida entre a verdade biológica e a social,
sempre deverá prevalecer a que melhor tutele o princípio da dignidade da pessoa
humana e proteja os interesses da criança.
O Judiciário não pode ignorar as mudanças do comportamento humano no campo do direito de família. O fetichismo das normas há de ceder à justiça do caso concreto, quando o juiz tem que optar entre o formalismo das regras jurídicas e a realização humana e mais socialmente útil do direito. Na dúvida, há sempre que escolher a solução que melhor tutele a dignidade da pessoa humana. Nesse dilema entre privilegiar a verdade biológica e a sócio-afetiva, ainda que sobre aquela não paire quaisquer dúvidas em razão do exame de DNA, é possível ficar com a segunda em detrimento da primeira.
Não se pode duvidar da importância que o exame de DNA trouxe para o
Direito de Família na descoberta da origem biológica, porém, a certeza quase
absoluta deste exame, em nada veio a acrescer diante de uma relação consolidada
pelo afeto e ternura dispensados no convívio diário. A paternidade ou maternidade
socioafetiva nasce das relações de afeto e não do vínculo sanguíneo.
A precisão do exame é de grande importância para os casos que inexista
relação afetiva ente pai e filho e que não se conheça a origem biológica da criança,
caso contrário, deverá prevalecer a relação social, mesmo que em detrimento da
biológica, frente ao melhor interesse da criança e em homenagem ao princípio da
dignidade da pessoa humana.
Neste sentido, colaciona decisão do Tribunal de Justiça do Estado de Santa
Catarina, ao declarar a prevalência da paternidade socioafetiva sobre a biológica em
vista do princípio da dignidade da pessoa humana:
[...] RECONHECIMENTO DA PATERNIDADE - EXISTÊNCIA DE PATERNIDADE SOCIOAFETIVA E GENÉTICA - PREVALÊNCIA DAQUELA - MATÉRIA DE ORDEM PÚBLICA - PATERNIDADE PARA FINS EXCLUSIVAMENTE BIOLÓGICOS - MANUTENÇÃO DO REGISTRO CIVIL - SENTENÇA REFORMADA. [...]
101 CAMBI, Eduardo. O paradoxo da verdade biológica e sócio-afetiva na ação negatória
de paternidade, surgido com o exame do DNA, na hipó tese de "adoção à brasileira" . Revista de Direito Privado, São Paulo, n. 13, p. 85-89, jan a mar de 2003.
53
No conflito entre Paternidade Socioafetiva e biológica - matéria de ordem pública -, prevalece aquela por melhor acolher o princípio constitucional da dignidade humana. Existindo Paternidade Socioafetiva simultaneamente com a Paternidade biológica, deve esta ser acolhida parcialmente para fins exclusivamente genéticos, sem parentalidade ou conseqüência sucessória, mas mantendo-se aquela até então existente. Apelação Cível n. 2005.000406-5, de Araranguá. Relator: Monteiro Rocha. Juiz Prolator: Pedro Aujor Furtado Junior. Órgão Julgador: Quarta Câmara de Direito Civil. Data: 01/08/2008.102 (destaque nosso)
No caso do acórdão acima transcrito, ao ingressar com Ação de
Investigação de Paternidade c/c Alimentos, a autora (filha) alega que sua genitora
manteve relacionamento amoroso com seu pai biológico (requerido) vindo a nascer
desta relação.
Frente a ausência material e afetiva do pai biológico que sequer a registrou
como sua filha, o novo companheiro da genitora a registrou como sua filha, mesmo
sabendo da sua origem biológica. Passando mais de dez anos do registro civil a
requerente ingressa com a presente demanda.
O juízo de primeira instância julgou procedente em parte o pedido da autora
para conhecer a paternidade biológica, alterando os registros dos seus avós
paternos.
Ao ser analisado o recurso de apelação, por unanimidade de votos, a quarta
câmara de direito civil decidiu reconhecer a paternidade biológica da autora tão
somente para fins genéticos, sem qualquer vínculo parental ou sucessório,
mantendo a paternidade socioafetiva existente, pois negar o reconhecimento da sua
origem biológica seria como fechar os olhos para o princípio da dignidade da pessoa
humana e negar seu o direito da personalidade.
Ao manifestar sobre o direito à origem genética, assim se manifesta Paulo
Luiz Netto Lobo:103
O estado de filiação, decorrente da estabilidade dos laços afetivos construídos no cotidiano de pai e filho, constitui fundamento
102 SANTA CATARINA. Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Apelação Cível n.
2005.000406-5, de Araranguá. Relator: Monteiro Rocha. Juiz Prolator: Pedro Aujor Furtado Junior. Órgão Julgador: Quarta Câmara de Direito Civil. Data: 01/08/2008. Disponível em <http://app.tjsc.jus.br/jurisprudencia/acpesquisa!pesquisar.action>. Disponível em: 25 out. 2010.
103 LOBO, Paulo Luiz Netto. Direito ao estado de filiação e direito à origem genética: uma distinção necessária. Disponível em <http://www.ibdfam.org.br/artigo/>. Acesso em: 22 out. 2010.
54
essencial da atribuição de paternidade ou maternidade. Nada tem a ver com o direito de cada pessoa ao conhecimento de sua origem genética . (destaque nosso)
Conclui o autor, que não se pode confundir estado de filiação (estado de ser
filho) com reconhecimento da origem genética (de quem eu nasci), pois a primeira
apóia-se no Direito de Família, e a segunda no direito à personalidade, sendo,
portanto, coisas distintas.
A questão paira sobre a possibilidade de se buscar paternidade biológica
diante da paternidade socioafetiva já constituída.
Tanto a doutrina quanto a jurisprudência vêm trilhando no caminhado da
possibilidade de ingressar com demanda judicial no reconhecimento da origem
biológica, pois trata-se de um direito inerente à personalidade da pessoa.
Ao comentar sobre a possibilidade de reconhecimento da paternidade
biológica frente à socioafetiva, Maria Berenice Dias104 esclarece:
O direito de conhecer a verdadeira identidade integra o conceito de dignidade da pessoa humana. No entanto, gerando a adoção vínculo de filiação socioafetiva, a declaração da paternidade não surte efeitos registrais, o que impede benefícios de caráter econômico. De qualquer forma, seja para satisfazer mera curiosidade, seja em respeito ao direito de conhecer a origem biológica, ou mesmo para efeitos médicos é possível obter a declaração da paternidade genética sem desconstituir a filiação gerada pela adoção.
Neste sentido, é possível o reconhecimento da origem genética em
homenagem ao princípio da dignidade da pessoa humana, no entanto, quando a
busca pela paternidade natural se depara com uma relação de afeto já constituída,
deve-se analisar de forma acurada as peculiaridades de cada caso e preservar a
relação socioafetiva. O reconhecimento biológico, portanto, não surtirá efeitos
registrais ou econômicos, servindo apenas para fins médicos e de conhecimento
genealógico e até mesmo como ressalva quanto aos impedimentos matrimoniais.
Ao reconhecer a paternidade social, o Tribunal de Justiça do Estado do Rio
Grande do Sul, assenta que a referida paternidade é um ato de opção, com base no
amor e afeto por aqueles que desejam ser: pai e filho nesta relação, onde, no caso a
104 DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias . Porto Alegre: Livraria do
Advogado. 2005. p. 398.
55
seguir transcrito, via ação declaratória, o filho pleiteia o reconhecimento da
paternidade afetiva do pai já falecido:
AÇÃO DECLARATÓRIA. ADOÇÃO INFORMAL. PRETENSÃO AO RECONHECIMENTO. PATERNIDADE AFETIVA. POSSE DO ESTADO DE FILHO. PRINCÍPIO DA APARÊNCIA. ESTADO DE FILHO AFETIVO. INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE SOCIOAFETIVA. PRINCÍPIOS DA SOLIDARIEDADE HUMANA E DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. ATIVISMO JUDICIAL. JUIZ DE FAMÍLIA. DECLARAÇÃO DA PATERNIDADE. REGISTRO. A paternidade sociológica é um ato de opção, fundan do-se na liberdade de escolha de quem ama e tem afeto, o que não acontece, às vezes, com quem apenas é a fonte gerat riz . Embora o ideal seja a concentração entre as paternidades jurídica, biológica e socioafetiva, o reconhecimento da última não significa o desapreço à biologização, mas atenção aos novos paradigmas oriundos da instituição das entidades familiares. Uma de suas formas é a "posse do estado de filho", que é a exteriorização da condição filial, seja por levar o nome, seja por ser aceito como tal pela sociedade, com visibilidade notória e pública. Liga-se ao princípio da aparência, que corresponde a uma situação que se associa a um direito ou estado, e que dá segurança jurídica, imprimindo um caráter de seriedade à relação aparente. Isso ainda ocorre com o "estado de filho afetivo", que além do nome, que não é decisivo, ressalta o tratamento e a reputação, eis que a pessoa é amparada, cuidada e atendida pelo indigitado pai, como se filho fosse. O ativismo judicial e a peculiar atuação do juiz de família impõe, em afago à solidariedade humana e veneração respeitosa ao princípio da dignidade da pessoa, que se supere a formalidade processual, determinando o registro da filiação do autor, com veredicto declaratório nesta investigação de paternidade socioafetiva, e todos os seus consectários. Apelação provida, por maioria. (Apelação Cível Nº 70008795775, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: José Carlos Teixeira Giorgis, Julgado em 23/06/2004).105
Para o Tribunal gaucho deferir o pleito de reconhecimento da paternidade
socioafetiva foi imprescindível o reconhecimento da posse de estado de filho, ou
seja: “[...] a exteriorização da condição filial, seja por levar o nome, seja por ser
aceito como tal pela sociedade.”
O Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, no acórdão abaixo
transcrito, revela o entendimento de reconhecer a maternidade socioafetiva nos
casos que o afeto e amor preponderem sobre o aspecto biológico:
APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DECLARATÓRIA. MATERNIDADE SOCIOAFETIVA. PREVALÊNCIA SOBRE A BIOLÓGICA. RECONHECIMENTO. RECURSO NÃO PROVIDO.
105 RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Apelação Cível nº
70008795775, Relator: José Carlos Teixeira Giorgis. Órgão Julgador: Sétima Câmara Cível. Data: 23/06/2004. Disponível em <http://www1.tjrs.jus.br/busca/?tb=juris>. Acesso em: 25 out. 2010.
56
1. O art. 1.593 do Código Civil de 2002 dispõe que o parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra origem. Assim, há reconhecimento legal de outras espécies de parentesco civil, além da adoção, tais como a paternidade socioafetiva. 2. A parentalidade socioafetiva envolve os aspecto sentimental criado entre parentes não biológicos, pelo ato de convivência, de vontade e de amor e prepondera em relação à biológica. 3. Comprovado o vínculo afetivo durante mais de trinta anos entre a tia já falecida e os sobrinhos órfãos, a maternidade socioafetiva deve ser reconhecida. 4. Apelação conhecida e não provida, mantida a sentença que acolheu a pretensão inicial. Apelação Cível TJMG: 1.0024.07.803827-0/001(1). Numeração Única: 8038270-04.2007.8.13.0024. Relator: Caetano Levi Lopes. Data do Julgamento: 04/05/2010. Data da Publicação: 09/07/2010.106
Questão peculiar na jurisprudência mineira paira sobre o fato do
reconhecimento da maternidade socioafetiva envolver a tia já falecida e os sobrinhos
órfãos, prevalecendo, sobretudo, o laço de afeto, amor e carinho dispensando por
mais de 30 anos.
Sobre a importância do afeto nas relações hodiernas, Cleber Affonso
Angeluci,107 afirma que: “Negar, nos dias atuais, o valor e a relevância ao afeto,
consiste negar sua necessidade para a implementação da dignidade humana, ou
seja, negar o princípio fundamental do Estado brasileiro.”
A seguir colaciona-se acórdão do Tribunal de Justiça gaucho em que os
irmãos do falecido pai (tios da criança) ingressam com ação de anulação de registro
de nascimento, alegando que seu irmão não era pai biológico do sobrinho.
Em que pese a ausência de traços sanguíneos a verdade socioafetiva deve
prevalecer vez que configurada a posse de estado de filho e por caracterizar a
vontade do pai falecido:
EMBARGOS INFRINGENTES. ACAO DE ANULACAO DE REGISTRO DE NASCIMENTO MOVIDA POR IRMAOS DO FALECIDO PAI. NO CONFLITO ENTRE A VERDADE BIOLOGICA E A VERDADE SOCIOAFETIVA, DEVE ESTA PREVALECER,
106 MINAS GERAIS. Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Apelação Cível nº
1.0024.07.803827-0/001(1), Relator: Caetano Levi Lopes. Órgão Julgador: Segunda Câmara Cível. Data do Julgamento: 04/05/2010. Disponível em <http://www.tjmg.jus.br/juridico/jt_/inteiro_teor.jsp?tipoTribunal=1&comrCodigo=24&ano=7&txt_processo=803827&complemento=1&sequencial=0&palavrasConsulta=Apelação cível. Ação declaratória. Maternidade socioafetiva.&todas=&expressao=&qualquer=&sem=&radical=>. Acesso em: 25 out. 2010.
107 ANGELUCI, Cleber Affonso. Amor tem preço? Revista cej , Brasília, n. 35, p. 47 a 53 out. – dez. de 2006, p. 4.
57
SEMPRE QUE RESULTAR DA ESPONTANEA MATERIALIZACAO DA POSSE DE ESTADO DE FILHO. O FALECIDO PAI DO DEMANDADO REGISTROU-O, DE MODO LIVRE, COMO FILHO, DANDO-LHE, ENQUANTO VIVEU, TAL TRATAMENTO, SOANDO ATE MESMO IMORAL A PRETENSAO DOS IRMAOS DELE (TIOS DO REU) DE, APOS SEU FALECIMENTO, E FLAGRANTEMENTE VISANDO APENAS MESQUINHOS INTERESSES PATRIMONIAIS, PRETENDER DESCONSTITUIR TAL VINCULO. DESACOLHERAM OS EMBARGOS. ( 8 FLS ). (Embargos Infringentes Nº 70004514964, Quarto Grupo de Câmaras Cíveis, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Luiz Felipe Brasil Santos, Julgado em 11/10/2002).108
Destaca-se do referido acórdão que o interesse dos tios em desconstituir a
paternidade do sobrinho estava pautando em requintes puramente patrimoniais, não
merecendo, pois, prosperar tal insurgência.
Em recente julgado, o Superior Tribunal de Justiça manteve o vínculo
socioafetivo da mãe que registrou a filha como sua, mesmo sabendo não ser a
verdadeira genitora da criança, constituindo a denominada “adoção à brasileira”.
No referido acórdão, de relatoria da ministra Nancy Andrighi, foi destacado
que a ausência de qualquer vício na vontade da mãe em registrar a criança foi
determinante para solucionar o caso.
DIREITO CIVIL. FAMÍLIA. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE ANULAÇÃO DE REGISTRO DE NASCIMENTO. AUSÊNCIA DE VÍCIO DE CONSENTIMENTO. MATERNIDADE SOCIOAFETIVA. SITUAÇÃO CONSOLIDADA. PREPONDERÂNCIA DA PRESERVAÇÃO DA ESTABILIDADE FAMILIAR. [...] A par de eventual sofisma na interpretação conferida pelo TJ/SP acerca do disposto no art. 348 do CC/16, em que tanto a falsidade quanto o erro do registro são suficientes para permitir ao investigante vindicar estado contrário ao que resulta do assento de nascimento, subjaz, do cenário fático descrito no acórdão impugnado, a ausência de qualquer vício de consentimento na livre vontade manifestada pela mãe que, mesmo ciente de que a menor não era a ela ligada por vínculo de sangue, reconheceu-a como filha, em decorrência dos laços de afeto que as uniram. Com o foco nessa premissa – a da existência da socioafetividade –, é que a lide deve ser solucionada.
No decorrer de seu voto, a relatora alerta, outrossim, que o Estado jamais
pode penalizar a criança por ato praticado por pessoa que lhe ofereceu amparo,
exaltando, para tanto, o princípio do melhor interesse da criança. 108 RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Embargos
Infrigentes nº 70004514964 . Relator: Luiz Felipe Brasil Santos. Órgão Julgador: Quarto Grupo de Câmaras Cíveis. Data do Julgamento: 11/10/2002. Disponível em <http://www1.tjrs.jus.br/busca/?tb=juris>. Acesso em: 25 out. 2010.
58
[...] Nessa hipótese, descabe imposição de sanção estatal, em consideração ao princípio do maior interesse da criança, sobre quem jamais poderá recair prejuízo derivado de ato praticado por pessoa que lhe ofereceu a segurança de ser identificada como filha.
Ressaltou ainda, que mesmo ausente os elementos genéticos, a filiação
socioafetiva deve ser reconhecida e amparada juridicamente.
[...] Assim, ainda que despida de ascendência genética, a filiação socioafetiva constitui uma relação de fato que deve ser reconhecida e amparada juridicamente. Isso porque a maternidade que nasce de uma decisão espontânea deve ter guarida no Direito de Família, assim como os demais vínculos advindos da filiação. Como fundamento maior a consolidar a acolhida da filiação socioafetiva no sistema jurídico vigente, erige-se a cláusula geral de tutela da personalidade humana, que salvaguarda a filiação como elemento fundamental na formação da identidade do ser humano.
Mesmo diante do caso de “adoção à brasileira”, pois a mãe registrou a filha
com sua, conquanto não era, a ministra relatora assevera que a relação baseada no
trato materno-filial deve ser amparada pelo Direito.
[...] Dessa forma, tendo em mente as vicissitudes e elementos fáticos constantes do processo, na peculiar versão conferida pelo TJ/SP, em que se identificou a configuração de verdadeira “adoção à brasileira”, a caracterizar vínculo de filiação construído por meio da convivência e do afeto, acompanhado por tratamento materno-filial, deve ser assegurada judicialmente a perenidade da relação vivida entre mãe e filha. Configurados os elementos componentes do suporte fático da filiação socioafetiva, não se pode questionar sob o argumento da diversidade de origem genética o ato de registro de nascimento da outrora menor estribado na afetividade, tudo com base na doutrina de proteção integral à criança.
Por fim, os ministros da terceira turma do Superior Tribunal de Justiça,
mantiveram o reconhecimento voluntário da maternidade, pois ausentes elementos
que comprovassem alguma forma de vício na vontade em reconhecer aquele ser
como sua filha, restando comprovada a ligação socioafetiva entre mãe e filha.
[...] Mantém-se o acórdão impugnado, impondo-se a irrevogabilidade do reconhecimento voluntário da maternidade, por força da ausência de vício na manifestação da vontade, ainda que procedida em descompasso com a verdade biológica. Isso porque prevalece, na hipótese, a ligação socioafetiva construída e consolidada entre mãe e filha, que tem proteção indelével conferida à personalidade humana,
59
por meio da cláusula geral que a tutela e encontra respaldo na preservação da estabilidade familiar. (REsp 1000356/SP, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira turma, julgado em 25/05/2010, DJe 07/06/2010).109
Importante destacar que para o reconhecimento da paternidade ou
maternidade socioafetiva é imprescindível a comprovação do vínculo afetivo na
relação paterno-filial entre todos os integrantes do grupo familiar, não cabendo
discriminação entre um filho ou outro.
Como se depreende dos acórdãos acima transcritos, a jurisprudência pátria
vem reconhecendo a paternidade socioafetiva ao entender preenchidos os requisitos
elementares na relação paterno-filial.
Princípios como a dignidade da pessoa humana, o melhor interesse da
criança, a posse de estado de filho, bem como todos os dispositivos inerentes à
filiação embasam os acórdãos estudados.
3.3 Da (im)possibilidade de revogação da paternidad e socioafetiva
Reconhecida a paternidade pelos laços afetivos indaga-se da possibilidade
de sua desconstituição posterior.
Indubitável é a proteção dispensada pela Constituição da República
Federativa do Brasil de 1988 à família. O artigo 226 do referido diploma
constitucional prevê o princípio da proteção à família, afirmando ser esta a “celular
mãe da sociedade”, in verbis: “Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial
proteção do Estado.”110
Logo em seguida, no caput do artigo 227, a Constituição da República
Federativa do Brasil de 1988 elenca o princípio do melhor interesse da criança,
109 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n 1000356/SP , Reletora
Ministra NANCY ANDRIGHI. Órgão Julgador: Terceira Turma. Data Julgamento: 25/05/2010. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/SCON/pesquisar.jsp?newsession=yes&tipo_visualizacao=RESUMO&b=ACOR&livre=paternidade socioafetiva>. Acesso em: 25 out. 2010.
110 BRASIL. Constituição (1988) . Disponível em <http://www.planalto.gov.br/legislacao>. Acesso em: 19 out. 2010.
60
afirmando ser dever da família, da sociedade e do Estado proteger a criança com
absoluta prioridade, afastando-a de qualquer forma de discriminação:
Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
E ainda, o parágrafo 6º, do artigo 227, do texto constitucional estabelece o
princípio da igualdade entre os filhos, afastando qualquer forma de discriminação
havida na origem dos filhos: “§ 6º - Os filhos, havidos ou não da relação do
casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas
quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação.”
Por fim, o artigo 1.609 do Código Civil brasileiro de 2002 afirma ser
irrevogável o reconhecimento do filho havido fora do casamento: “Art. 1.609. O
reconhecimento dos filhos havidos fora do casamento é irrevogável e será feito. [...]”
Como se pode notar, os textos legais que protegem e regulam o Direito de
Família seguem no sentido de salvaguardar a relação paterno-filial oriunda do
aspecto afetivo.
Neste sentido, segue o entendimento jurisprudencial do Tribunal de Justiça
do Estado de Santa Catarina:
NEGATÓRIA DE PATERNIDADE. NULIDADE DE REGISTRO CIVIL. RECONHECIMENTO VOLUNTÁRIO DA PATERNIDADE AFIRMADO PELO PRÓPRIO APELANTE. DECLARAÇÃO DE VONTADE IRREVOGÁVEL (ART. 1.609 DO CCB/02). AUSÊNCIA DE VÍCIOS DE CONSENTIMENTO. PREVALÊNCIA DA REALIDADE SOCIOAFETIVA SOBRE A BIOLÓGICA. EXTINÇÃO DA AÇÃO SEM RESOLUÇÃO DO MÉRITO. SENTENÇA MANTIDA. RECURSO DESPROVIDO. Apelação Cível n. 2009.043459-0, de Chapecó. Relator: Edson Ubaldo. Juiz Prolator: Ermínio Amarildo Darold. Órgão Julgador: Câmara Especial Regional de Chapecó. Data: 10/06/2010.111
111 SANTA CATARINA. Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Apelação Cível n. 2009.043459-0, de Chapecó. Relator: Edson Ubaldo. Juiz Prolator: Ermínio Amarildo Darold. Órgão Julgador: Câmara Especial Regional de Chapecó. Data: 10/06/2010. Disponível em <http://app.tjsc.jus.br/jurisprudencia/acpesquisa!pesquisar.action>. Disponível em: 02 nov. 2010.
61
No acórdão catarinense acima transcrito, extrai-se que o pai registral uniu-se
à mãe de sua filha sabendo que sua companheira já estava grávida, vindo a registrar
a criança como sua filha.
No entanto, vislumbrando possibilidade de furtar-se de suas obrigações
paternas, ingressou com ação negatória de paternidade c/c anulação de ato jurídico,
pleito que foi julgado extinto sem julgamento de mérito em primeira instância, bem
como, teve seu apelo desprovido sob o fundamento de ausência de erro ou falsidade
do registro de sua filha, o qual, via de regra, é ato irrevogável, assim extrai-se do
acórdão: “É pacífico o entendimento de que o reconhecimento da paternidade de
forma voluntária é perpétuo e irrevogável, nos termos que preconiza o artigo 1.609,
do Código Civil.”
Mesmo posicionamento segue o Tribunal de Justiça do Estado do Rio
Grande do Sul em que o pai socioafetivo registrou os filhos como seus, típica
“adoção à brasileira”, e que, ao se separar da companheira e visando deixar de
pagar pensão alimentícia, ingressou com pedido de anulação de registro civil,
alegando não ser o pai biológico das crianças, para tanto, requereu exame de DNA.
Ao apreciar o apelo, o Tribunal gaucho negou provimento ao recurso
mantendo a sentença de 1º grau que inacolheu o pleito do pai socioafetivo,
mantendo a relação social:
NEGATÓRIA DE PATERNIDADE. ANULAÇÃO DE REGISTRO CIVIL. PROVA PERICIAL FRUSTRADA. LIAME SOCIOAFETIVO. 1. O ato de reconhecimento de filho é irrevogável (art. 1º da Lei nº 8.560/92 e art. 1.609 do CCB). 2. A anulação do registro civil, para ser admitida, deve ser sobejamente demonstrada como decorrente de vício do ato jurídico (coação, erro, dolo, simulação ou fraude). 3. Em que pese o possível distanciamento entre a verdade real e a biológica, o acolhimento do pleito anulatório não se justifica quando evidenciada a existência do liame socioafetivo. 4. Inexistência de prova do vício induz à improcedência da ação. Recurso desprovido. (Apelação Cível Nº 70015877756, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves, Julgado em 27/09/2006).112
Ao ser reconhecida a paternidade socioafetiva, em que pese, via “adoção à
brasileira”, de forma voluntária e livre de qualquer vício, este ato se concretiza no
mundo jurídico tornando-se irrevogável. 112 RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Apelação Cível n .
70015877756. Relator: Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves. Órgão Julgador: Sétima Câmara Cível. Data do Julgamento: 27/09/2006. Disponível em <http://www1.tjrs.jus.br/busca/?tb=juris>. Acesso em: 25 out. 2010.
62
Colaciona-se outro acórdão do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande
do Sul, onde fica claro que descabe revogabilidade do ato de registro da paternidade
socioafetiva, diante da ausência de vício de vontade e pela relação afetiva entre a
autora e o pai registral:
APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE CUMULADA COM ALIMENTOS E AÇÃO NEGATÓRIA DE PATERNIDADE. PAI REGISTRAL E PAI BIOLÓGICO. INEXISTÊNCIA DE VÍCIO DE VONTADE NO REGISTRO CIVIL DA AUTORA. EXISTÊNCIA DE PATERNIDADE SOCIOAFETIVA. IRREVOGABILIDADE DO ATO REGISTRAL. Para que seja possível a anulação do registro civil deve ser demonstrado um dos vícios do ato jurídico ou a ausência da relação de socioafetividade. No caso, descabe a anulação do registro civil da menor pela inexistência de qualquer dos vícios do ato jurídico e pela relação socioafetiva existente entre a autora e o pai registral. Recurso desprovido. Apelação Cível Nº 70030657563, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Ricardo Raupp Ruschel, Julgado em 28/10/2009).113
Este também é o entendimento do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná,
que desproveu apelo do requerente (pai registral), afirmando ser irrevogável o
reconhecimento da paternidade socioafetiva, caso em que não há precedentes para
arrependimento posterior.
APELAÇÃO CÍVEL - DIREITO DE FAMÍLIA - AÇÃO NEGATÓRIA DE PATERNIDADE - APELANTE QUE RECONHECEU ESPONTANEAMENTE A PATERNIDADE DA APELADA, SABENDO QUE NÃO ERA SUA FILHA BIOLÓGICA - ADOÇÃO À BRASILEIRA PRETENSÃO DE ALTERAÇÃO DO REGISTRO CIVIL, SUPRIMINDO A PATERNIDADE - IMPOSSIBILIDADE - RECONHECIMENTO ESPONTÂNEO IRREVOGÁVEL - ART. 1.609, DO CC - CARACTERIZAÇÃO DE PATERNIDADE SÓCIO-AFETIVA INADMISSIBILIDADE DE ARREPENDIMENTO - PRECEDENTES JURISPRUDENCIAIS - RECURSO DESPROVIDO. Apelação Cível n.º 369.889-1 - Vara Cível e anexos - Comarca de São Mateus do Sul. Apelante: A. L. C. D. Apelada: I. C. D. C. D. (Representada). Relator Convocado: Antonio Loyola Vieira.114
113 RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Apelação Cível n.
70030657563. Relator: Ricardo Raupp Ruschel. Órgão Julgador: Sétima Câmara Cível. Data do Julgamento: 28/10/2009. Disponível em <http://www1.tjrs.jus.br/busca/?tb=juris>. Acesso em: 25 out. 2010.
114 PARANÁ. Tribunal de Justiça do Paraná. Apelação Cível n. 369.889-1. Relator: Antonio Loyola Vieira. Órgão Julgador: Décima Segunda Câmara Cível. Data do Julgamento: 21/70/2007. Disponível em <http://www.tj.pr.gov.br/portal/judwin/consultas/jurisprudencia/JurisprudenciaDetalhes.asp?Sequencial=1&TotalAcordaos=1&Historico=1&AcordaoJuris=565223>. Acesso em: 25 out. 2010.
63
Extrai-se do acórdão paranaense, de relatoria do Desembargador Antonio
Loyola Vieira, trecho em que fica evidente o posicionamento de irrevogabilidade do
ato de reconhecimento da paternidade socioafetiva, haja vista que a criança não
pode ficar desprotegida frente às instabilidades do relacionamento dos seus pais,
por tratar-se de questão de dignidade da pessoa humana.
Inobstante, da mesma maneira que a adoção é irrevogável, também o é a paternidade sócio-afetiva. Não pode o "filho sócio-afetivo" ficar sujeito ao humor e vontade de seu "pai sócio-afetivo". Uma vez reconhecida tal paternidade, não há espaço para arrependimento. Trata-se de uma questão de dignidade da pessoa humana, sendo que o filho não pode ficar à mercê dos caprichos do seu pai. Considerando que houve um reconhecimento voluntário da paternidade, o registro civil é inalterável.
O fato de uma pessoa registrar uma criança como se fosse sua filha, mesmo
sabendo não ser, configurando a típica “adoção à brasileira” e depois de findo o
relacionamento com a mãe da criança, procura o Poder Judiciário para desconstituir
tal ato, alegando não ser o pai biológico da criança, configurando arrependimento,
ou mesmo, buscando livrar-se das responsabilidades da paternidade, deve ser
rechaçado pelo judiciário, pois a grande prejudicada, sem sombras de dúvidas é a
criança, que ao longo do tempo constituiu naquela pessoa a figura de pai e não pode
ter toda a sua vida, registros, históricos, lembranças, de uma hora para outra
apagadas, neste sentido manifesta-se Arnaldo Rizzardo:115
[...] uma pessoa reconhece o filho e depois de um determinado período volta atrás, dizendo que realizou o ato por princípios de humanidade, ou por ter-se unido à mãe do mesmo. Cabe, num lance inicial, lembrar que ninguém pode invocar a própria torpeza, ou beneficiar-se de uma ilegalidade praticada conscientemente. Seria absurdo admitir que o autor da falsidade, fazendo-se passar por pai, viesse depois desconstituir a própria afirmação consubstanciada em documento público.
Cumpre-nos examinar decisão do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de
Janeiro ao manifestar-se sobre paternidade socioafetiva, afirmando que paternidade
não é relação biológica e sim afetiva.
DIREITO DE FAMÍLIA. NULIDADE DE REGISTRO DE NASCIMENTO. ALEGAÇÃO DE EXISTÊNCIA DE VÍCIO DE CONSENTIMENTO E AUSÊNCIA DE VÍNCULO SOCIOAFETIVO ENTRE O AUTOR E A MENOR. EXAME DE DNA COMPROVANDO QUE AUTOR NÃO É PAI BIOLÓGICO DA RÉ. AUSÊNCIA DE
115 RIZZARDO, Arnaldo. Direito de família . Rio de Janeiro: Aide, 1994, p.662.
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COMPROVAÇÃO DE EXISTÊNCIA DE VÍCIO CAPAZ DE INVALIDAR O REGISTRO DE NASCIMENTO. Vínculo socioafetivo comprovado pelos depoimentos em audiência e pelos estudos sociais e psicológicos. Em que pese a inexistência de ascendência biológica, o interesse maior a ser protegido é o da menor, para que não venha a sofrer ainda mais, por ter como referência paterna o autor, considerando-o como seu pai em vista do histórico familiar. Paternidade não é relação biológica, mas socioafetiva. Recurso desprovido. 0021478-22.2004.8.19.0066 (2009.001.70357) – Apelacao. Des. Alexandre Camara - Julgamento: 13/01/2010 - Segunda Camara Civel. TJRJ.116 (destaque nosso)
Depreende-se do acórdão fluminense que, uma vez caracterizado o vínculo
socioafetivo, mesmo estando ausentes os laços biológicos, deve prevalecer o
interesse do menor e manter a relação social.
Após a leitura das várias decisões jurisprudências brasileiras, bem como
apoiado na doutrina colacionada, resta evidente que a verdadeira relação entre pai e
filho pauta-se no afeto, na convivência perene de amor e carinho, pouco importando
se pulsa nas veias o mesmo sangue, o que realmente deve prevalecer é a felicidade
mútua, e em homenagem ao princípio do melhor interesse da criança, alicerçado na
dignidade da pessoa humana e na construção sadia da personalidade da criança.
Deve ser afastada toda e qualquer forma de discriminação ou mácula que
possa sofrer a criança. Neste contexto, uma vez reconhecida, por ato de livre
vontade, a paternidade socioafetiva, diante da caracterização da posse de estado de
filho, onde o amor, carinho, respeito, afeto são sobrepostos a qualquer óbice
procedimental que possa aparecer, a plena felicidade e a realização da criança
devem ser salvaguardados e protegidos contra qualquer ato que afronte a relação
paterno (materno) – filial.
Ações que visam a desconstituição da paternidade socioafetiva, pura e
simplesmente por requintes patrimoniais ou financeiros são rechaçados pelo Poder
Judiciário, conforme visto dos julgados acima transcritos.
O pai, que registrou a criança como seu filho, embora não fosse, comete
crime por desobedecer ao correto procedimento de adoção, na maioria das vezes
116 RIO DE JANEIRO. Tribunal do Rio de Janeiro. Apelação Cível n. 0021478-
22.2004.8.19.0066 (2009.001.70357). Relator: Alexandre Camara. Órgão Julgador: Segunda Câmara Cível. Data do Julgamento: 13/01/2010. Disponível em <http://www.tjrj.jus.br/scripts/weblink.mgw?MGWLPN=JURIS&LAB=CONxWEB&PORTAL=1&PORTAL=1&PGM=WEBPCNU88&N=200900170357&Consulta=&CNJ=0021478-22.2004.8.19.0066>. Acesso em: 25 out. 2010.
65
ganha o perdão judicial por caracterizar restar caracterizado ato de nobreza, agora
arrependido pelo fim do relacionamento com a mãe da criança ou para livrar-se das
responsabilidades da paternidade ou ainda, por arrependimento posterior não pode
requerer a anulação do registro da criança alegando não ser o verdadeiro pai
biológico.
Sobre a possibilidade de desconstituição da paternidade de um filho, melhor
esclarece Belmiro Pedro Welter,117 ao citar Zeno Veloso:
[...] permitir que o pai, a seu bel-prazer, pudesse, a qualquer tempo, desfazer o reconhecimento da paternidade de um filho seria extremada injustiça, caracterizando um gesto “reprovável, imoral, sobretudo se o objeto é fugir do dever de alimentos, ou para evitar o agravante de parentesco num crime, por exemplo.
Conforme visto anteriormente, o ato de reconhecimento da filiação é
irrevogável, em que pese ser imprescritível a ação de reconhecimento de
paternidade, a desconstituição do registro da criança é totalmente desaconselhável
por acarretar consequências nefastas ao desenvolvimento sadio da criança e afetar
a sua plena realização ao ver desconstituído todo o seu histórico familiar.
A criança não pode responder pelo comportamento inadequado dos pais, o
Estado, por sua vez, não pode punir a criança com atos que certamente irão
influenciar negativamente no seu desenvolvimento social e psíquico.
Uma vida inteira não pode ser apagada pelo capricho do pai arrependido,
alegando a própria torpeza ao requerer a anulação do registro da criança sob
alegação de não ser o seu pai biológico.
Oportuno trazer passagem de Silmara Juny Chinelato,118 para quem:
[...] paternidade não é ato retratável que possa depender do humor de quem o praticou ou do estado do relacionamento entre os pais do filho reconhecido. Não é como roupa que se veste e desvete, segundo a vontade de cada um ou segundo a mudança das estações, que, transportada para o universo das relações familiares, equivale a mudança de paixões. O cotidiano rico e diversificado desse universo indica que o legislador foi sábio em prestigiar a irrevogabilidade do reconhecimento.
117 WELTER, Belmiro Pedro. Igualdade entre filiação biológica e sócio afetiva. Revista
brasileira de direito de família . Porto Alegre: Síntese/IBDFAM, ano IV, n. 14, jul/ago/set. 2002.
118 CHINELATO, Silmara Juny; AZEVEDO, Antônio Junqueira de. (Coord.) Comentários ao código civil: vol. 18. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 136-137.
66
Posta assim a questão, surge a imperiosa necessidade de se acolher um
dos maiores direitos da criança, a de ter uma pai.
Desta forma, uma vez estabelecida a paternidade socioafetiva, caracterizada
pela posse de estado de filho, não se pode requerer sua revogação.
No entanto, se deve resguardar o direito da criança em buscar sua origem
biológica, por constituir direito a sua dignidade humana, inalterando a paternidade
socioafetiva constituída.
67
CONCLUSÃO
Este trabalho teve como objetivo principal analisar o instituto da paternidade
socioafetvia, e ainda, verificar a possibilidade de sua revogação uma vez constituída.
No contínuo processo de transformação pelo qual passa a sociedade, novas
formas de relacionamento emergem ao buscar a união e a felicidade de todos os
seus membros.
A relação paterno-filial seguiu nesta onda de transformações e passou de
um caráter totalmente biológico e matrimonial, onde os parentes eram definidos por
laços sanguíneos, para um aspecto afetivo.
O Código Civil brasileiro de 1916 herdou muito do conceito de família
patriarcal, onde o pater familiae era chefe e detentor de todo o poder sobre o seu
núcleo familiar, inclusive com poder de vida e morte.
O modelo de família de outrora era constituído tão somente pelo casamento
e os filhos, ditos legítimos, eram os concebidos durante o matrimônio. A este
exemplo de família eram característicos aspectos de autoritarismo, patriarcal,
hierárquico e patrimonialista.
Ares de transformação e valorização atingiram o Direito de Família, que
transmudou do aspecto conservador e discriminador ao imprimir novos valores que
melhor se adequavam à realidade social vivenciada.
Com a promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil de
1988 determinou-se o marco de revitalização das relações familiares no Direito
brasileiro em homenagem à dignidade da pessoa humana.
A família passou a ser tutelada pelo Estado como base da sociedade,
ultrapassando as fronteiras do casamento ao abrir margem para outras formas de
constituição familiar.
A discriminação sobre a origem da filiação estabelecida no ultrapassado
Código Civil foi abolida, ao estabelecer a igualdade entre os filhos, deixa-se de
existir os rótulos apregoados em virtude da situação jurídica dos pais.
Segue à evolução legislativa constitucional a Lei nº 8.069 - Estatuto da
Criança e do Adolescente (ECA) e, posteriormente, o Código Civil brasileiro de 2002,
que, também seguindo as diretrizes da Constituição da República Federativa do
68
Brasil de 1988 reafirmou a absoluta igualdade entre os filhos, independente da sua
origem.
Percebe-se que a constitucionalização do Direito de Família trouxe
significativos avanços às relações familiares, prestigiando e protegendo seus
integrantes.
A relação entre pai, mãe e seu filho passa-se a pautar sobre o afeto, o qual
indubitavelmente caminha para consolidar-se como direito fundamental, ao lado da
liberdade, igualdade e dignidade.
Com base na nova realidade que traz o afeto para a configuração da relação
paterno-filial, foi desenvolvida a presente pesquisa, que se comprometeu em
analisar o instituto da paternidade socioafetiva e suas conseqüências jurídicas, bem
como, buscar responder o problema suscitado.
Neste sentido, a paternidade constituída fundamentalmente sobre o afeto é
uma realidade que se impõe hodiernamente, razão pela qual a imperiosa
necessidade de se trilhar os caminhos que irão conduzir à resposta da questão
inicialmente ventilada: há possibilidade de revogação da paternidade socioafetiva,
uma vez constituída?
Entende-se por paternidade socioafetiva a relação entre pai ou mãe e filho
construída sobre laços de afeto, amor, carinho e respeito, de forma diária e
duradoura onde cada qual deseja assumir seu papel: o pai de ser pai; e o filho de
ser filho, visando à felicidade plena de seus membros.
Destaca-se, que por vezes, o vínculo biológico da relação parental fica
suprimido pelos laços de amor, emergindo a verdadeira paternidade, pois conforme
preceitua o provérbio popular: “pai é quem cria”.
Desta feita, o vínculo afetivo não se origina do sangue, mas, do
relacionamento vivido diariamente, encontrando a criança na figura do pai o seu
“porto seguro”, sabendo que pode confiar naquela pessoa.
Importante se faz salientar, que o reconhecimento da paternidade social não
obsta que a criança tenha acesso a sua origem biológica. Tratar-se de um direito
inerente a personalidade e a dignidade da pessoa humana, não invalidando,
contudo, a relação já sedimentada pelo laço do afeto.
Ressalta-se que não há hierarquia entre os tipos de constituição da
paternidade, seja biológica (laços sanguíneos), afetiva (socioafetiva) ou jurídica
69
(adoção), o que irá determinar a prevalência será a que melhor acomodar o
desenvolvimento da criança.
Neste contexto, encontra-se a paternidade constituída no dia a dia,
alicerçada sobre afeto, amor e carinho, a qual terá, sem sobras de dúvidas,
prevalência sobre as demais. Afinal, não se pode comprar amor e afeto ou mesmo,
não se pode obrigar que uma pessoa tenha feição e ame uma criança, mesmo
havendo entre elas laços sanguíneos, ao contrário, estes elementos brotam onde
lhes for mais propício.
Como o reconhecimento da filiação através da paternidade socioafetiva não
esta expressamente positivada no ordenamento jurídico brasileiro, tanto a doutrina
quanto a jurisprudência fundamentam o seu posicionamento nos princípios da
dignidade da pessoa humana, do melhor interesse da criança, bem como na posse
de estado de filho.
A posse de estado de filho ganha suma importância por revelar o status de
filho para a sociedade, a qual passará a ver que naquela relação encontram-se a
figura do pai e a do filho.
No entanto, para que se estabeleça a posse de estado de filho afetivo, é
necessário o reconhecimento de outras características, quais sejam: nome, trato e
fama.
O nome ocorre quando o pai empresta o seu nome ao filho; o trato se refere
ao tratamento dispensado na relação entre pai e filho, cada qual assumindo seu
papel, e a fama se caracteriza pela exposição desta relação frente à sociedade.
No decorrer do presente trabalho tratou-se de um tema bastante corriqueiro
na sociedade e que constitui uma das mais comuns formas de reconhecimento da
paternidade afetiva, a denominada “adoção à brasileira”, sendo caracterizada pelo
fato de uma pessoa registrar uma criança como sua, de forma livre e consciente,
mesma sabendo que a verdade biológica não lhe é inerente.
Destaca-se, que tal prática constitui crime contra o estado de filiação,
estando tipificada no Código Penal brasileiro.
Em que pese o descumprimento do procedimento regular, se ao olhar do juiz
o ato de registro transparecer aspectos de nobreza, pode o magistrado deixar de
aplicar a pena.
Restou evidenciado que a paternidade socioafetiva, originada da relação
perene de afeto, encontra-se inserida no seio da sociedade, sendo agasalhada pelo
70
Poder Judiciário, porém, é de fundamental importância sua positivação na legislação
brasileira.
No último capítulo, se buscou responder a indagação da presente pesquisa
com base no posicionamento da doutrina e da jurisprudência dos Tribunais
brasileiros.
Conclui-se, que uma vez estabelecida a paternidade socioafetiva,
caracterizada pela posse de estado de filho, inviável será sua revogação, o que,
todavia, não invalida o conhecimento da origem biológica da criança para fins
médicos ou biológicos, mantendo a paternidade afetiva até então existente.
71
REFERÊNCIAS
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