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1 UNIVERSIDADE ESTADUAL DE FEIRA DE SANTANA DEPARTAMENTO DE LETRAS E ARTES – DLET ESPECIALIZAÇÃO EM ESTUDOS LITERÁRIOS Prof. Jorge Araújo JOÃO BOSCO DA SILVA ([email protected]) A LUNETA MÁGICA EM CAPÍTULOS (Livro de Joaquim Manuel de Macedo) FEIRA DE SANTANA 2012

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE FEIRA DE SANTANA DEPARTAMENTO DE LETRAS E ARTES – DLET ESPECIALIZAÇÃO EM ESTUDOS LITERÁRIOS

Prof. Jorge Araújo

JOÃO BOSCO DA SILVA ([email protected])

A LUNETA MÁGICA EM CAPÍTULOS (Livro de Joaquim Manuel de Macedo)

FEIRA DE SANTANA 2012

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I Na Introdução, Simplício, um jovem ingênuo e órfão se apresenta como uma

pessoa marcada pelo infortúnio. Míope física e moralmente, não distingue um girassol de uma violeta. Sempre escravo das ideias dos outros.

II Simplício conta que aos doze anos de idade ficou órfão de pai e mãe. Via pelos

olhos da mãe e a pensar pela inteligência do pai, ficando nas trevas dos olhos e da razão.

O irmão mais velho tomou conta dos seus bens, a tia Domingas tomou conta da sua pessoa, e a prima Anica talentosa e inteligente que se criou com ele.

Ele confiava muito no zelo da tia Domingas, porque ela é uma senhora que anda sempre de rosário e em orações, mas nunca deu nem dá um vintém de esmola ao pobre que lhe bate à porta.

III Ele fala sobre seus dezoito anos de idade, quando começou a compreender todas

as proporções da sua desgraça dupla da falta dos olhos e da inteligência. Os mestres ganharam dinheiro, mas quase que perdeu todo o meu tempo com

eles. Um professor após quatro anos de ensino deu-se por satisfeito quando o fez ler, escrever e a fazer as quatro espécies da aritmética.

Sobre a sua miopia, após o resultado de dez conferências e de vinte tratamentos diversos de nada adiantou, apenas não ficou mais cego com a luz de tanta ciência.

O seu irmão Américo, que é um santo homem dizia: —Consola-te, mano; tudo tem compensação: a tua miopia é uma desgraça; mas

porque és míope não vês como são bonitos os bordados da farda de um ministro de estado, e, portanto, não te exasperas por não poder ostentá-los.

IV Simplício continua destacando as consolações do mano Américo sobre a sua

miopia física e sobre a miopia moral pedia para que ele agradecesse a Deus o infortúnio, pois está livre de desgostos, de responsabilidades e de tormentos. Que alma santa a do seu irmão! A ele Simplício fica devendo o favor de tomar conta da fortuna.

V Simplício lembra das consolações da sua tia, conforme suas ideias religiosas,

como se a sua miopia física fosse um imenso beneficio da providência, porque dos pobres de espírito é o reino do céu. Essa lógica seria capaz de levá-la a rezar para que ele se tornasse surdo, mudo e paralítico. Por isso ele nunca disse amém a essas consolações místicas.

A terceira fonte de consolações era a prima Anica que se empenha em agradar-lhe e às vezes faz ouvir apólogos.

Ao se aproximar de um jardim, ela colheu duas flores, uma rosa d'Alexandria, e uma angélica, e deu-as a Simplício para que ele as reconhecesse. Um espinho da rosa feriu a ponta do seu nariz. Anita aproveita e chama a atenção para que ele repare, compreenda e aproveite a miopia das flores que enfeitam e enchem de magia os salões das sociedades, que ele não frequenta, são as jovens formosas que se assemelham à rosa d'Alexandria, com os espinhos que despedaçariam o coração. Portanto, contenta-te com a angélica que é suave ao tato com o perfume do amor e da virtude. Em casa ela tira o espinho do seu nariz.

Moça que não for bonita não deve extrair espinho da ponta do nariz de homem míope.

VI Ele conta que foi incluído na lista dos jurados da sua freguesia pelo juiz de direito,

declarando que ele tinha condição exigida pela lei, mas ele ficava alheio a tudo isso, convencido pelo mano Américo e pela tia Domingas que ate o senso comum lhe

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faltava. Mesmo assim mudou de opinião com íntima e mal disfarçada alegria. Um juiz de direito não erra e por consequência ele ficou convencido de que ele tinha realmente senso comum. Sentiu-se cheio de orgulho pela convicção legalmente autorizada de que tinha senso comum, e apoderado de irresistível vaidade com a presunção de ser igual a muitos magistrados, deputados, senadores, ministros e conselheiros de estado.

VII Simplício relata a primeira convocação do júri, quando seu nome foi o primeiro a

ser sorteado. A sua tia Domingas levou um dia inteiro repetindo: "o primeiro na primeira. . . ".

Ele não cabia em si de contente. O mano Américo hesitava, porém conveio o direito do cidadão jurado. Logo no primeiro processo o seu nome não pareceu suspeito nem ao advogado do réu, nem ao da justiça pública.

Na consulta secreta um bom velho quis iluminá-lo o espírito, fazendo-o ler uns artigos do seu Manual dos Jurados. Teve de confessar miopia física de Ler, pedindo-lhe que lesse os artigos.

—Pobre moço, disse ele a Simplício; já procurou o Reis?... —O Reis? quem e o Reis? —O senhor como vota? —Votarei de modo que o réu seja necessariamente absolvido. —Então tem certeza de que ele é inocente? —Deve sê-lo sem a menor dúvida. —Por quê?... —Porque não menos de dois compadres e de três amigos meus se empenharam

para que eu o absolvesse. —E tem razão: não posso acreditar que dois compadres e três amigos de um juiz

fizessem a este a injúria. O bom velho, meu novo amigo, exerceu no conselho os direitos do mano

Américo, porque votou por si e por mim. O réu foi absolvido por dois votos, tendo a sua miopia moral decidido a sentença.

Saiu do júri com a convicção de que ou não tinha senso comum ou é preciso mais alguma coisa além para que o cidadão seja bom jurado.

VIII O bom velho vai levá-lo à casa do Reis, um representante do espírito do século,

que começou plebeu e ficou nobre pela constância no trabalho e pelo encanto do progresso. Chama-se Reis porque não é um rei; mas tem o poder de muitos reis.

—Mas então o Reis que é? é mágico?... —Não sei; suponha que seja o diabo; o certo é que ele tem, e isso é o que mais

lhe importa, o segredo de dar vista de águia aos míopes mais infelizes, aos míopes quase cegos.

E o governo não compra uma luneta dessas? O velho desatou a rir. A simplicidade de um pobre de espírito está sempre exposta às falsas

interpretações dos maliciosos. O fato é a presunção do direito, e para mim a infalível resolução do problema. Na sua inocência não podia pensar de outro modo. O ministro de estado é sábio, ou pelo menos estadista, a ponto de tirar o chapéu se passasse de carro um ministro de estado em sinal de respeito.

IX Eles chegam ao armazém do Reis. O bom velho expôs as proporções da miopia

física de Simplício e pediu remédio para ela. —Não tenho recurso que lhe aproveite, respondeu-me com tristeza profunda. Mas

mandei contratar na Europa um artista de merecimento superior para os trabalhos das

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minhas oficinas, e chegou-me no ultimo paquete um armênio de habilidade extraordinária; mas que me desagrada por ter pretensões a muito sabido em magia.

—Ainda uma esperança! Exclamou. Poderia eu falar-lhe? —Vou mandá-lo chamar. —Entender-me-á ele?... —Fala perfeitamente todas as línguas em que lhe falam.

X Eles seguem para a casa das oficinas; porque o armênio não gostava de mostrar-

se no armazém. O armênio encarou-o fixamente e falou: - Duvidam do meu poder, e vou prová-lo: eis o triunfo; infiltrarei o ceticismo na

alma de um inocente mancebo eis o mal. Darei uma luneta mágica hoje mesmo e amanhã, à meia-noite. Alertou:

—Será a tua próxima convicção de que é melhor ser cego, do que ver demais. XI

Ele volta da casa do Reis e se acha em solidão e a sentir espinhos na consciência por ter procurado na magia remédio contra a sua miopia física. Resolveu consultar as três consciências mais sãs do mundo.

Ao mano Américo perguntou: —Se encontrasses um mágico que te oferecesse um talismã com a virtude de te

assegurar a vitória em todas as eleições de deputados, e de te fazer subir ao ministério, que farias?

—Para servir a minha pátria, e dedicar-me todo a ela, eu aceitaria o talismã, e o traria sempre comigo.

A Anica perguntou: —Se houvesse um feiticeiro, que por artes diabólicas possuísse e te quisesse dar

o segredo da formosura e da vida em constante primavera até cem anos de idade, que farias?

—Abraçava o feiticeiro, tomava-lhe o segredo e pedia-lhe que te desse, mesmo por artes diabólicas, melhores olhos para que visses a minha formosura encantada.

A tia Domingas perguntou: —Se lhe aparecesse um homem suspeito de se ter vendido ao demônio, e lhe

apresentasse o bilhete de loteria em que uma hora antes houvesse saído a sorte grande, que faria?

—Somente pelo gosto de enganar o demônio, comprava o bilhete, e recebendo o prêmio, gastava metade em obras de misericórdia.

Estas respostas sossegaram o seu espírito. Foi ao gabinete do armênio à meia-noite.

XII Na porta do armazém encontrou com o Reis. Faltavam dez minutos para a meia-

noite. —Vamos ter com o armênio, disse o Reis. Avançamos por um longo corredor; o velho levava-me pela mão e a mão do velho

estava enregelada e trêmula. O Reis repetiu duas vezes: —Isto não passa de uma comédia, que nos fará rir amanhã: a verdadeira magia

está nas maravilhosas realidades das ciências físicas Chegaram ao fim do corredor e antes de bater a uma porta esta imediatamente se

abriu. Ele não viu coisa alguma. —Como é bom não ver! disse com sua voz Cavernosa.

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O gabinete do armênio estava todo pintado de negro, com uma mesa servia de altar da magia.

— Entrai, disse o armênio, tudo está pronto. Nós tremíamos e os sinos deram o sinal de meia-noite.

—É a hora, disse ele, e tomando a espada, brandiu-a no ar, e as luzes se apagaram.

Ficaram em completa escuridão. A operação mágica adiantava-se, o armênio começou a exaltar-se e bradou com força: Cashiel! Schaltiel! Aphiel! Zarabiel!...

De repente uma faisca se desprendeu da flama da lâmpada e foi, como pequena seta de fogo vivo, cravar-se e estremecer no fundo da concavidade do vidro que estava sobre o anel de ouro. O armênio tocou com a ponta da espada na faisca que fazia ferver a bolha de vidro no fundo da concavidade, e disse com acento dominador:

—Fica aí! A salamandra microscópica dobrou-se, como fugindo à ponta da espada, e o fogo

da lâmpada de rubro que era se tornou pálido. —Fica ai! tornou ele com voz mais forte ainda. E a salamandra foi se mergulhando na bolha de vidro fervente, e a flama da

lâmpada principiou a vacilar. —Fica aí! bradou o armênio pela terceira vez. E a salamandra desapareceu de todo na bolha do vidro que se abateu e sumiu-se

sem deixar vestígios. Sem dizer-nos uma só palavra, sem parecer ocupar-se das presenças, o armênio

armou o vidro em um aro de ouro, e no ponto em que o aro circular se liga ao anel destinado ao cordão pendurador, imprimiu sinistro selo, uma letra cabalística, com um sinete de forma triangular, e enlaçou no anel da luneta um cordão finíssimo, em que se entrançavam cabelos de todas as cores, e de diversos animais.

Estava terminada a mágica operação. O armênio me entregou a luneta, e disse-me então:

—Triunfo, e faço mal; mas posso prevenir o mal: criança! tu és inocente e bom, eu me compadeço de ti; escuta. Dou-te uma luneta mágica; verás por ela, quanto desejares ver, verás muito: mas poderás ver demais. Criança! dou-te um presente que te pode ser funesto: ouve-me bem! não fixas esta luneta em objeto algum, e sobretudo em homem algum, em mulher alguma por mais de três minutos; três é o número simbólico, e para ti será o número simples, o da visão da superfície e das aparências; não a fixes por mais de três minutos sobre o mesmo objeto, ou aborrecerás o mundo e a vida.

O armênio disse ainda: —Esta luneta é a maravilha da magia: por ela verás demais no presente, e

poderias ler no futuro; mas o teu coração é bom, e a tua alma é pura, criança; além do número de três minutos está a visão do mal, que o meu poder de mágico não te pode impedir; porque a visão do mal é a vingança da salamandra escrava; mas a fixidade dessa luneta além do número de treze minutos é a vidência do futuro, e essa eu ta impeço, Cashiel! Schaltiell Aphiel! Zarabiel! eu ta impeço, criança louca: essa luneta fixada além de treze minutos se quebrará em tuas mãos!

E tendo assim falado, empurrou-nos rudemente para fora do gabinete, e trancou-nos a porta.

Fim da Introdução

Visão do Mal

I

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O mágico recomendara que Simplício não fixasse a luneta sobre o mesmo objeto por mais de três minutos, porque daria a visão do mal, em que a salamandra cevaria a vingança da sua escravidão encantada.

Mesmo assim ele pretende experimentar uma vez a visão do mal. II

Ele nunca tinha visto a aurora! Ouvira várias descrições. É a aurora, é a rosa do céu que, antes de tudo mais, queria ver.

III Como é bela, esplêndida, fresca, sublime a aurora! Ele estava embevecido a olhar

a aurora pela luneta mágica. Esqueceu o tempo a olhá-la... passou dos três minutos. . . as rosas foram se

apagando e viu uma nuvem negra, feia, horroroso, preparando uma tempestade violenta. Viu o sol, mas não sentiu nem a luz da majestade, nem o seu calor. Recuou assombrado... abandonou a luneta mágica e exclamou:—Meu Deus!... como a aurora e enganadora e falsa!... e como o sol é feio, terrível e mau!!!

IV O armênio tem razão: a visão do mal é um tormento; ver muito é um erro; ver

demais e um castigo. Agora fixou a luneta nas flores, nos passarinhos, nas borboletas, nas folhas das

arvores. Fixando a luneta ele sentia medo e curiosidade; medo de esquecer o tempo e de

chegar à visão do mal, e curiosidade teimosa, insistente, insidiosa e cada vez mais forte dessa mesma visão do mal. Nesse instante a prima Anica entrou no jardim.

V Anica não é feia, nem bonita; abre muito os olhos, porque os tem pequenos e sem

o fogo do sentimento; seu rir é triste, sua cintura delicada. Retirou a luneta antes de passar o terceiro minuto, mas sentiu o impulso da

curiosidade irresistível. Fitou a luneta sobre a prima Anica. Passados três minutos, não lhe viu mais o

rosto nem a figura, viu o coração que era uma pedra de gelo e a alma era o espírito reduzido como o seu olhar sem sentimento.

Encontrou a sua imagem na alma de Anica: ele era em sua alma uma hipótese de marido.

Desviou a luneta da mulher, campo árido, deserto infindo de áreas estéreis sem um só oásis consolador. Mulher-cálculo, mulher-aritmética, mulher sem sentimento, mulher sem amor, mulher-egoísmo. A mulher-monstro que calunia a mulher criada por Deus; é um assombro que se faz admirar pela hediondez.

A prima Anica tornara-se repulsiva, ou repugnante. Jurou que nunca mais fixaria nela a luneta mágica.

VI Ele nunca sentira amor pela prima Anica; mas votava-lhe amizade fraternal, e

experimento verdadeira mágoa, reconhecendo que não mais podia estimá-la como dantes, por ter devassado a alma, e descoberto a verdade dos seus sentimentos.

O mano Américo e a tia Domingas entraram no Jardim dirigindo gracejos a Anica. Lançou a luneta sobre o mano Américo, passando três minutos: era apenas um ambicioso vulgar!

Não esquecendo que era seu irmão, Américo não o ama, mas olha-o com piedade. Enriquecer é a sua ideia.

Fitou e observou por dez minutos a tia Domingas. É uma senhora de sessenta anos, gorda, simpática, e perseguida de ataques erisipelatosos. A visão do mal mostrou a hipocrisia de sua face: a tia Domingas é invejosa e má; detesta as moças

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porque é velha. Se lamenta da insuficiência da verba concedida por Américo para a manutenção da família.

Tem no mundo um amor, é sua filha; aborrece Américo; mas finge que o estima para ver se consegue casar Anica ou com ele ou com Simplício, a quem ela não ama, mas tolera-o.

A tia Domingas é santa pela cara, e condenada pelo coração. Retirou a sua minha luneta e saiu da janela e murmurou tristemente que perdeu a

confiança nos parentes, e o amor que sentia por eles!!! VII

Ele já compreende e reflete que já sabe meditar. Não é mais o pupilo perpétuo do mano Américo. A visão do mal o emancipou. Dói-lhe ter perdido a suave, a deleitosa crença da lealdade do amor dos parentes; dói-lhe porém acabo de perdê-la.

VIII A miopia moral, a ignorância completa do mal, a inocência conservaram-no até

esta manhã franco, simples, sem uma nuvem de suspeita na alma, sem desconfiança dos outros, e com o coração aberto, transparente aos olhos de todos.

O conhecimento do mal vai operando modificação de idéias e de sentimentos. Aprendeu a mentir e fingir, para esconder de Américo, da tia Domingas, de Anica

e de todos, a principal virtude da luneta: por meio dela distingue melhor, mas ainda imperfeitamente os objetos.

IX Tem na mente uma providência que é necessária tomar em breves dias; retirar do

mano Américo a gerência da sua fortuna. Achará um procurador zeloso, prudente e honrado que se incumba deste negócio.

Sente-se agora enjeitado e sem família, a visão do mal rompeu os laços que o ligavam aos seus três e únicos parentes.

Quer procurar uma mulher jovem, bela e pura, formosa e santa; quer um anjo, para formar uma família, sendo que a luneta mágica pode ajudar, lendo os segredos de todas as almas.

À mesa do almoço a luneta causou surpresa, possibilitando que ele encontrasse um palito sem pedir que o ajudassem. Isso fez com que o mano Américo ficasse espantado, a tia Domingas se benzesse e a prima Anica consertasse o laço do seu fichu. Deram-lhe parabéns.

X Noutro dia chegando à sala do júri propôs a usar o privilégio de ter a visão do mal,

mas não foi sorteado. Durante o julgamento ele fitou a luneta do advogado, quando reconheceu que ele

estava convencido da inocência do réu que acusava. —Como é, perguntei a si mesmo, que um advogado ostenta a mentira e o dolo

demonstrando o contrário do que pensa e do que sente, para ganhar a soma, porque contratou a acusação ou a defesa?...

XI Num intervalo entre os processos o amigo Sr. Nunes sentou-se perto dele. Era ele

que devia ter ido à casa do Reis, onde encontrou o armênio. Perguntou-lhe sobre a luneta.

—É admirável, meu amigo. Estupendamente mágica. Ao se virar de costas, ele pôs novamente a luneta em ação, olhando o velho

Nunes pelas costas durante sete minutos, vendo perfeitamente o homem: Enormíssimo tratante, afável, obsequiador, loquaz, insinuante, sabe um por um todos os segredos das traficâncias que desmoralizam o povo: tem falsificado documentos, rasgado e sumido folhas de autos, já furtou a firma de um juiz, aluga-se, quando não lhe convém vender-se, e vende-se apenas lhe chegam ao preço; surrava os escravos sem piedade.

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Tem sido eleitor por todos os partidos, e votado como eleitor nos candidatos que lhe compraram os votos por dinheiro.

Teve horror do execrável Nunes, a quem mais nunca daria o nome de velho amigo.

Saiu do júri mais sombrio e abatido do que os réus que por ele acabavam de ser condenados.

XII Simplício não procurou mais o velho Nunes, e passou a se mais cauteloso na

escolha do procurador e de uma possível noiva. Durante quatro dias com a luneta magica analisou trinta e tantos procuradores

sempre de mal a pior. No último dia foi ao Passeio Público, onde a população da cidade pode ir gozar das árvores, da respiração purificadora do ar, das flores encanto e perfumes.

Ouviu o ruído do arrastar de vestido e sons murmurantes de vozes argentinas e sentiu a presença de mulheres, voltando-se para contemplá-las.

XIII Eram cem as senhoras que por ali passavam. Simplício sentou-se em um dos

bancos de mármore fixando a sua luneta. Na sua frente, estava sentada junto de um venerando ancião a mais formosa donzela.

Vestira-se de branco! Tinha os cabelos negros, os olhos pretos. O seu corpo esbelto e cintura de proporções delicadíssimas. Levantou-se a convite do ancião, sem dúvida seu pai, e ao fim de alguns minutos tornou a sentar-se naquele mesmo lugar.

O rosto é o espelho da alma e essa donzela era o símbolo do amor e da pureza dos anjos. Alguém a chamou de Dona Rosinha. Rosa; tinha o nome da rainha das flores. – Ela fez vinte anos ontem, mas ainda não se casou. Disseram.

Ele fitou a luneta por mais de três minutos e ela percebeu aquela contemplação. Por acaso ou de propósito deu a seu corpo flexível uma atitude de gracioso abandono, que me deixava apreciar todos os seus encantos.

No fim de três minutos a luneta revelou os segredos de sua alma à visão do mal. Era demônio das contradições absurdas na alma de uma mulher de vaidade descomedida e inveja violenta e cruel.

Rosa julgava-se a mais encantadora e bela das mulheres. Invejosa, aborrecia todas as senhoras. Ao casar-se havia de impor-se absoluta dominadora do marido, seu escravo. Ele via tudo isto e ainda tinha mais tempo para ver naquele coração desgraçado o horror. Deixou cair a luneta, e amaldiçoando a inveja, e maldizendo da vaidade, fugiu, correndo para fora do terraço.

XIV Na saída do terraço ele se bateu contra outro homem. — Ah! senhor! Não tem olhos é doido? — Perdão! Respondeu Simplício. Sou míope e venho doido, porque encontrei ali

um demônio com aparência de querubim. — Quem é míope deve usar óculos, e quem anda com o diabo deve procurar o

inferno e não um Passeio Público! Uma voz feminina exclamou: —Mano! O senhor se desculpou tão cortesmente que a sua amabilidade merece

nosso agradecimento. —Obrigado, minha senhora. Falo Simplício. Fixando nela luneta ele viu um lindo rosto de mulher que sorriu tão facilmente e

olhou com tão clara garridice, que antes de cinco minutos causava desgosto. Coitadinha! Era uma menina que os pais colocaram por cinco anos num famoso

colégio, cuja diretora, antiga florista de Paris, chegara ao Rio de Janeiro anunciando

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prodígios de sua educação de internato para meninas. Quantos perigos, meu Deus, há nos colégios internatos de meninas!

Agradeceu à sua luneta mágica por essa lição. XV

Que dia infeliz! Começou de manhã pelos procuradores e acabou à tarde, com duas jovens formosas, que a princípio pareciam dois anjos, mas depois se mostraram criaturas condenadas. A luneta é implacável e cruel: além da visão das aparências ainda não concedeu uma contemplação suave.

Até o beija-flor, que tem língua como a serpente, mas assassino e destruidor, matando a cada dia dezenas e dezenas de insetos inocentes. Acreditai na luneta mágica: tende medo dos beija-flores!

XVI Até no próprio beija-flor a luneta encontrou maldades e perversão!!! Deixou aquele Passeio Público, maldizendo da vida, detestando o homem, a

mulher, toda criação, pedindo a Deus a morte. Que noite de horror e desespero ele passou.

O seu último sentimento na tormentosa vigília foi desgosto da vida e repugnância a toda a humanidade.

XVII Desenganos e desilusões com a tríplice traição dos únicos parentes. Fora de casa

a descoberta da maldade e perfídia de todos os homens e de todas as mulheres. Separou-se de homens tão indignos, tornando ainda mais profundo o deserto e a

noite da vida. XVIII

Um dia ele viu uma elegante senhora dar duas moedas de ouro a um mísero leproso na escada de uma igreja, enxugando lágrimas na face. Simplício fixou a luneta nela.

Viu que o disfarce era mentira, a caridade ostentação; as lágrimas pérolas expostas pelo artifício da hipocrisia. Dominava o marido, negando ceia aos escravos, compensando a penúria da alimentação com castigos ferozes e de torturas repugnantes.

Outro dia ele viu um padre que não arredava do chão os olhos e expressão suave, de conforto espiritual e boca de perdão.

Viu com a luneta por mais de três minutos que os olhos de conforto espiritual eram vulcões de concupiscência, a boca do perdão era também de seduções vergonhosas fora do templo.

XIX Noutra ocasião, passando pela Rua dos Barbonos viu uma casa consagrada ao

mais piedoso e santo mister, armado em sua parede que se chama—roda dos enjeitados.

Não era possível que até naquele local fosse descoberto o mal. Fitou a luneta na roda por mais de três minutos: inicialmente a roda da piedade pareceu protetora do vicio e da desmoralização. Havia no berço da roda cem lúgubres histórias. Recuando espantado, preferiu a miopia à visão do mal, e chegou a pensar que para os enjeitados era melhor a sepultura, do que a roda.

XX Não havia para Simplício na terra nem consolação, nem luz de esperança. Se não

fosse a profunda fé em Deus e a educação católica, o caminho dele seria o suicídio, porque a visão do mal o levara ao desespero.

Para qualquer lado que ele fitava a luneta, via somente falsas aparências de corações corrompidos pelos vícios, ou enegrecidos pelo crime. Por todos os homens e todas as mulheres ainda piores que os homens.

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A visão do mal causava já certa espécie de terror. Foi assim que ele passou mais outro mês que se arrastou como um século

XXI O armênio tinha razão: a visão do mal é um poder fatalíssimo, uma faculdade que

aniquila a paz, o sossego, as afeições, a vida do desgraçado que tem esse poder; mas agora é muito tarde.

Ele vivia já sem crenças, sem esperança, sem confiança em algum homem, em alguma mulher.

XXII Num determinado dia ele recebeu uma carta (1/04/1868) do Reis, que não era

mais seu amigo, bem amigo de homem algum. Ele não tinha voltado à casa de Reis nem como dever de cortesia ou

agradecimentos, e também ao armênio pelo favor da luneta mágica. Detesta o armênio e desconfia do Reis. O melhor seria esquecê-los.

A luneta mostrou que o armênio é concentrado e rude e o Reis é expansivo e obsequiador. Sem falar no que a luneta mostraria no intimo de qualquer deles.

Na carta, Reis fala sobre a falta da visita de Simplício. Há dois dias que no seu armazém os fregueses e desconhecidos querem saber notícias sobre a luneta mágica. Muitos zombam do caso.

Outros, e infelizmente não são poucos, protestam todos contra o perigo social que pode resultar de tão fatal e assombroso poder de encantamento.

Outros querem comprar lunetas iguais à sua, perseguindo e perturbando o seu sossego.

Reis disse que deve aos fregueses e ao público em geral explicações sobre tudo que se prepara e se faz, se imita, se aperfeiçoa, se inventa e se realiza nas oficinas, e se vende no seu armazém ou dele sai. Pediu que Simplício possibilitasse que ele fornecesse esses esclarecimentos e informações.

XXIII Para Simplício a carta não foi agradável, mas mesmo sabendo que a falta de

resposta seria uma grosseria, ele decidiu fazer de conta que não recebera a carta. O velho Nunes que assistira a cena dos trabalhos mágicos do armênio e a quem

ele confiara imprudente o segredo do poder miraculoso da luneta magica, tornou-se traidor e propalador do segredo. Simplício não deu a menor importância àquela revelação traidora.

Saiu andando e reparou que muitas pessoas fugiam de encontrá-lo ou lhe voltavam as costas, e as senhoras se retiravam apressadas das janelas. Tudo por culpa do velho Nunes.

Numa praça com multidão de vozes continuou o seu passeio, mas antes de três minutos a Praça achou-se deserta, e no jardim apenas a estátua equestre e ele.

Dirigiu-se ao café vizinho à praça, conhecido como a casa do Braga. A sala estava lotada de fregueses. Ao sentar pediu um café. Um servente rude e mal-educado disse que não havia mais café, e muito agradeceria, se ele não tornasse a aparecer ali.

Ás oito horas da noite foi ao teatro. Mal acabara de sentar-se, ouviu dizer: "é ele!" Outras vozes soara em tom baixo e se repetiram: "é ele! "

O sussurro transformou-se em ruído e em desordem com gritos: "fora! fora! fora!". Um porteiro veio humildemente pedir que se retirasse. Ele saiu imediatamente,

ardendo em cólera, ferido pela reprovação de todos, e ao som dos aplausos escarnecedores, festejando a sua vergonhosa retirada.

XXIV Nos dias seguintes ele continuou aparecendo em público e experimentando

condenação. Numa tarde ele tentou passear em Niterói, mas os passageiros o ameaçaram de jogá-lo ao mar.

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No hotel negaram-lhe até um jantar. O cocheiro de um carro da praça não atendeu ao seu chamado. Ele era sempre

ameaçado. Numa noite foi a um baile de casamento. Quando apareceu na sala começou uma

agitação, as senhoras encheram-se de terror, e cobriram os rostos com os leques e os lenços e a noiva esteve a ponto de desmaiar; os homens jogavam pragas e o dono da casa mostrava evidentes sinais de contrariedade. Ele não suportou a pressão e fugiu desesperado, chorando com raiva da humanidade.

XXV Em toda parte ele era enxotado, de toda parte repelido. Quando aparecia,

ninguém o tolerava. Tornou-se uma lepra moral. Dizia: - Oh, meu Deus! Meu Deus! Eu sou católico e é somente por isso que não

me mato. Perdão, meu Deus! Oh!... Como é bom não ver!!! XXVI

Por algumas vezes naquela noite furioso quase quebrou a luneta mágica, mas a vergonha não deixou.

o confesso, nunca tive animo bastante para realizar o meu pensamento. Chorou por quase toda a noite.

XXVII Na manhã seguinte estava com os olhos inchados, a cabeça atordoada, e o rosto

inflamado. Pela manhã entrou no seu quarto o Sr A.., dono da casa que ele fora expulso na noite.

—Está doente? Perguntou. —Um pouco; sofri muito esta noite. Estou sofrendo por causa do velho Nunes,

que espalhou a notícia da luneta magica, com a qual chego à visão do mal e descubro os segredos e as maldades e vícios, e as pessoas ficam temendo que eu conheça as suas perversidades.

O Sr A... disse que não era aquilo. —Meu amigo, a população é muito civilizada e não acredita no poder da sua

luneta mágica. Os que fogem dividem-se em duas classes: uma é formada pelos pobres de espírito que ainda prestam fé a feiticeiros e artes mágicas. A outra é a dos garotos que ousam rir e zombar de infortúnios e males a que todos estamos sujeitos. O povo acredita que você foi arrastado pelo malvado armênio a pensar e se deixar dominar pela inacreditável mania de imaginar ver o que não vê, o que não é real. As vítimas da sua luneta são ridicularizadas e por isso faz com que todos o evitem. Cumpri-me dar-lhe estas explicações. Ninguém está dando a mínima importância a sua luneta mágica. Se quiser, posso ajudá-lo a tratar da sua saúde alterada pelo excesso de imaginação.

XXVIII Portanto, ele estava definitivamente declarado doido pela opinião pública. Aquela

humanidade perversa e infame engenhara o mais seguro dos meios para livrar-se de mim.

A sua voz agora é a voz suspeita: a voz do doido. - Meu Deus! estarei eu realmente doido?... —Água! água! Quem me dá água?

XXIX Noutro dia vi entrar o mano Américo, a tia Domingas, a prima Anica, e meia hora

depois o médico da família. A prima Anica perguntou: - Ele está mesmo doido, senhor doutor? Ao que o médico respondeu: - Veremos. O doutor lhe sangrou o braço esquerdo. Viu tudo sem poder dizer que estava

vendo. Deixaram dois escravos ao pé do leito, para conter o doido, se fosse necessário. Dormiu talvez mais de vinte e quatro horas.

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Quando acordou ainda estava com a luneta presa aos seus dedos. XXX

Mesmo afirmando que ele estava doido, se sentia no pleno e perfeito gozo de suas faculdades mentais.

A opinião pública que dizem ser a rainha do mundo decretou que me acho vitima de alienação mental. Vítima, sim. Alienado, não. Doido porque tinha o privilégio de descobrir o mal que se dissimula e a máscara de hipocrisia com a luneta mágica.

Na sociedade a maior prova, o mais seguro sintoma de loucura é dizer a verdade sem rebuço, mesmo quando a verdade pode ser desagradável ou ofensiva.

XXXI E em certos casos de que vale a consciência ao homem contra a guerra teimosa

e perversa dos outros homens? Os falsos amigos dizem para ele: "trate-se! creia que a sua cabeça não está boa..."

O homem mais forte cede exasperado à convicção de todos, e em breve prazo começa a duvidar de si... E desde que começa a duvidar de si, começa a enlouquecer... Mas ele há de reagir!

XXXII Era dia, e ele estava lá cansado de refletir e de esperar. Fraco, abatido e

apreensivo. Do que se lembrar? Da luneta mágica? Era muito natural. Com cuidado desatou a luneta mágica e fitou o teto da casa. O teto era de telha

vã, e a casa já contava de existência meia dúzia de lustros. A luneta mostrou uma multidão de insetos comuns, ele apreciou os três minutos da visão das aparências. Na visão do mal viu imensa corte de demônios em corpos tão pequenos!

XXXIII Viu um grilo em sua natureza maléfica de produzir maior dano, com seus élitros

cantos, atormentando a humanidade. Como esses homens cruéis, estafadores da cortesia alheia. Para ele os grilos são mais frequentes nas assembleias legislativas, do que no seu sótão.

XXXIV Viu também um gafanhoto, outro malvado e ainda muito pior. Vivo é o inimigo do

jardim, do pomar e da lavoura; dotado de infernal gula devora flores e folhas. Morto, o gafanhoto é em certas circunstâncias muito pior e nisso tem por igual o

seu irmão grilo. Em face da emigração ou praga e multidão deles morrem e causam imensa putrefação.

Os grilos e os gafanhotos não são melhores que os homens. XXXV

Viu uma pulga é uma parasita e cheia de sangue que vive à custa de muitos quadrúpedes e que não pouco persegue o homem.

A pulga é um demônio que faz inveja a muita gente sem generosidade. XXXVI

Viu um mosquito, outro monstro sanguinário dez vezes mais bárbaro que a pulga. A natureza deu ao mosquito facetas imperceptíveis e inumeráveis aos olhos, pois o mosquito enxerga muito mais do que os afamados estadistas do Império do Brasil, que são míopes.

XXXVII Viu o cupim, que não é sanguinário, mas é malvado e prejudicial à sociedade. A visão do mal mostrou que ele estraga, aniquila mais cabedais do que certos

ministros da fazenda e de obras públicas que temos tido no império do Brasil. Esse maldito inseto acaba com os carpinteiros, os livreiros, os alfaiates e as modistas etc. Em dois anos arruma-se uma casa e em dois meses tudo vira pó. É, portanto, um inseto-monstro que deve ser posto fora da lei.

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XXXVIII Viu uma aranha. Feio bicho que dominava o teto do seu sótão no centro da

imensa teia de mil fios onde a aranha se ostentava soberana. O sistema da centralização política e administrativa estava ali perfeitamente

realizado pela aranha. Era exatamente como a administração, a polícia e a guarda nacional do Brasil. Mas a aranha ia em perversidade muito além desse domínio escravizador do

telhado. Como todos os insetos carnívoros, caça, mata e devora outros insetos. Mata

outros insetos da sua própria espécie, semelhante ao que fazem os homens. XXXIX

Mudando a luneta de direção, viu metade do corpo de um rato que o olhava esperto, e com ar que de zombaria. Antes de que pudesse estudá-lo com a sua luneta, o tratante fugiu. Portanto, foi o único animal que não foi possível estudar tanto quanto ele desejava. Por quê?...

Seria por que os ratos tem no Brasil o privilégio de escapar à justa curiosidade, e às justíssimas diligências perseguidoras de quem os deve apanhar, e pôr em boa guarda?...

XL Ouvi rumor de pessoas subindo a escada do sótão e ouviu distintamente a voz do

médico. Escondeu imediatamente a luneta e fingiu que dormia um sono tranquilo. Desconfiou que a visão do mal é mordaz; mas os homens merecem ser tratados

assim. XLI

Reconheceu as vozes do doutor, do mano Américo da tia Domingas, e da prima Anica.

O Doutor tomou-me o pulso com a maior delicadeza para não lhe despertar. Tocou-lhe a fronte, passando por ela a palma da mão, e examinou-me o calor dos pés.

—Do mais grave perigo está salvo. Disse o Doutor. —A noticia não pode ser mais agradável, disse o mano Américo; mas eu receio

muito alguma recaída por causa da luneta que supõe seja mágica. —Luneta que é obra do diabo! exclamou a tia Domingas. —Luneta aleivosa e má, acrescentou a prima Anica. O Doutor pediu para que não acreditassem no poder mágico da famosa luneta.

Simplício está iludido por essa mágica, tornando-se vitima da sua própria imaginação. —Então ele está realmente doido, senhor doutor? perguntou Anica. —Cuidado, minha senhora. Ele teve apenas uma congestão cerebral e

conseguimos acudi-lo a tempo, mas qualquer imprudência pode ainda ser fatal. Ainda bem que ele está dormindo e não ouviu o que falaram.

XLII Abrindo os olhos, fez de conta que despertava. Agradeceu ao doutor, que lhe disse que nem todos os homens são maus. Ele

compreendeu a alusão e ficou em silêncio. Jurou que não conversarei com seus parentes. Anica achou que seria uma

ingratidão. Ele falou ao doutor que a sua luneta estava escondida, pois era o único tesouro

que possuía no mundo, para não roubá-la. O doutor mandou que ele confiasse mais nos parentes que o amam, e que eles são os primeiros e verdadeiro tesouro.

E quem garantia que os parentes não iriam roubá-la? O doutor se ofereceu para ser esse fiador. Com essa garantia, ele desatou a luneta, e apresentando-a, fixou-a ousadamente, observando as quatro pessoas que estavam diante dele.

13

Enquanto o médico ria, o mano Américo, a tia Domingas, e a prima Anica mostravam-se desapontados.

XLIII Este médico será uma exceção entre os homens? Será bom e honesto? Com a luneta ele há de estudar o seu doutor, numa ocasião oportuna.

XLIV Passados uns cinco dias ele já se sentia perfeitamente restabelecido, mas o

médico ainda administrava colheres de um remédio preparado. Nesse quinto dia foi suspensa.

Encontrou no médico um protetor e o defensor dos direitos de posse absoluta da luneta mágica. Estimou e amou o excelente doutor, pois foi quem sustentou que ele não estava doido, e não tinha receio da luneta, que de tão agradecido decidiu não fitar a luneta no doutor. Preferiu viver enganado com ele a descobrir os seus repugnantes sentimentos.

XLV Mesmo assim, o seu irmão ainda insistia em considera-lo doido, conservando

sempre no seu quarto um ou dois escravos de sentinela. Somente no sétimo dia de tratamento o doutor despediu as malditas sentinelas. O médico disse que ele já estava bom e despediu-me do tratamento. Ele

agradeceu. Como prova imediata a sua gratidão o médico pediu para que fixasse nele a sua

luneta. Viu e foi dizendo o que via: Cabelos castanhos e crespos, fronte soberba, olhos pequenos, mas brilhantes e incisivos no olhar, nariz aquilino, faces pálidas, lábios grossos e eróticos, pouca barba, mãos finas e delicadas, corpo bem feito, e... oh!... a visão do mal! —Não!

—Eu o exijo. Disse o doutor. —Bela inteligência, e estudo profundo desvirtuados pela ambição do ganho, e

pelo embotamento da sensibilidade ... prolonga os tratamentos para multiplicar as visitas, e dobrar os lucros... é materialista e incrédulo, não admite alma e nem reconhece Deus. O senhor é fonte de erros e perversidades.

O médico desatou em estrondosas gargalhadas e saiu do quarto. XLVI

O doutor que fora tão bom, tão leal para com ele. Esse homem que ele quisera que fosse uma exceção entre os homens, era indigno da minha estima pelo seu ruim caráter.

Isso porém não lhe espantou, somente afligiu, mas ele já estava preparado para o desengano cruel. Ele já desconfiava do médico.

E o seu próprio futuro? Por quais provações ainda irá passar?... XLVII

É impossível ser feliz. Ele aborrece a todos, e todos o aborrecem. Iria sucumbir num primeiro golpe. O médico que o tratou diz que ele não é doido; mas confessa que é maníaco. A distinção não o salva. Ficará para sempre fechado no seu quarto. Arrancarão à força a sua luneta mágica Que horrível esta situação.

XLVIII E de que lhe serve mais a luneta fatal. Se a arrancarem, se a quebrarem, mesmo

assim ficará com a ciência que ela lhe deu. O armênio lhe proibiu fixar a luneta mágica por mais de treze minutos sobre o

mesmo objeto, porque ele começaria a visão do futuro. Era isso que ele mais aspirava. O armênio alertou que a visão do futuro era negada e a luneta magica se

quebraria entre os dedos, se a fixasse sobre o mesmo objeto por mais de treze minutos. Seria para enganá-lo?

Quis fazer a experiência. O que poderia acontecer de pior?

14

XLIX O desejo impetuoso, irresistível da visão do futuro dominou-me absolutamente. Num momento de inspiração fitou a luneta na imagem do seu rosto refletida no

espelho. L

Viu-se pálido, abatido, desfigurado, outro e muito diferente do que eu ainda era um mês antes. Ficou ansioso esperando pelo fim dos treze minutos. De súbito estremeceu violentamente quando chegou à visão do mal.

Viu a sua perversidade. Viu que era o mais infame caluniador e inimigo dos seus parentes. Viuu que respira o mal, vive do mal, semeia o mal, ultrajando a Deus, o criador.

Viu-se tão imundo que desejou cuspir no seu próprio rosto. Soltou um grito de pavor e quebrou em pedacinhos a luneta. Caiu na cama

chorando desabridamente, e por entre dolorosos soluços, bradando em alta voz: — Perdão!... perdão!

Fim da Primeira Parte

Segunda Parte Introdução

I Simplício ficou oito dias sem sair de casa, maldizendo a sua infelicidade.

Alcançado beneficio tão grande, tesouro tão precioso, aquilo que se me afigurara impossível desejei mais!

Quis ter e gozar a visão do mal, a que o armênio sabiamente me aconselhara não expor-me, esclarecendo-me sobre os seus perigos.

Mas desejou e quis ter, e tive essa visão fatal, e por ela tornei-me o homem mais desgraçado, quebrando em suas mãos a luneta mágica.

Antes de ter a visão do futuro detestou o que viu de horror de si próprio. Os seus olhos ficaram sem luz, nas trevas.

Noutro tempo ele era como um cego de nascença, infeliz, mas vivendo no mundo da luz. Agora é outro tipo de cego, que cegou depois de ter visto, e que sabe tudo quanto perdeu com a cegueira!

Maldita seja a insaciabilidade do desejo, que envenena a vida do homem. II

A notícia da destruição da luneta mágica foi muito festejada pelos meus três parentes e se espalhou pela cidade, tranquilizando a população.

A tia Domingas mandou apanhar todos os pedaços da luneta e lançá-los ao mar. A prima Anica era a única que poderia fazê-lo sorrir, se ainda houvesse no seu

coração um resto de confiança para essa moça interesseira e egoísta. Ele lhe perseguiu cruelmente para que ele lhe confiasse em segredo todas as revelações que ele recebera da visão do mal relativamente às senhoras do seu conhecimento.

III Quando foram passados oito dias, ele se levantou e foi se debruçar à janela que

abria para o jardim. Sentiu o frescor suave das auras, o perfume das flores, e ouviu o ruidoso acordar da cidade.

Passou o dia de silenciosa amargura, e se arrependeu de haver quebrado a sua luneta mágica.

Pensou em voltar ao famoso armazém de instrumentos óticos da Rua do Hospício, em busca de outra luneta. Pensava apenas no vexame e no medo.

IV

15

Para que ele conseguisse seu intento, passaria pelo caminho tortuoso e venceria o vexame para se apresentar na casa do Reis.

Não tem homem que não seja mais ou menos egoísta e até sacrifica simples consideração de delicadeza para obter seu intento.

Teria de pedir perdão com humildade a Reis, mesmo sabendo do medo de sair à rua, expondo-se às zombarias, vaias, e perseguição da gente que lhe detestou ou ainda o detesta por causa da visão do mal.

V Refletindo bem, a notícia da destruição ou despedaçamento da luneta mágica

cessou o motivo da perseguição que moviam contra mim. E lá vão oito dias! Oito dias valem oito anos para memória e para as impressões mais fortes do povo

da nossa capital. Em oito dias regenera-se o político que a opinião pública irritada condenou. Em oito dias do réu se faz o juiz do pleito em que fora réu. Em oito dias a sociedade ligeira, inconstante, mudável, seria capaz de santificar o

diabo. Não há atividade de opinião que resista à extensão, à eternidade de oito dias na

nossa capital. O povo brasileiro é a certos respeitos um pouco povo francês. Pensando assim, iria perder o medo e sair a rua, e depois de amanhã iria à casa

do Reis. VI

Ao cair da tarde saiu caminhando vagarosamente, e com atenção dissimulada, porém viva, ouviu frases como:

—Míope ou antes cego, como dantes! Perdeu o encanto... Que encanto! Caluniavam o pobre rapaz...

—Foi vítima da mais cruel perseguição. Coitado! A opinião pública é deslumbrante, mas leve e fugitiva. Sentou-se em um dos bancos de pedra do jardim da Praça da Constituição.

Ninguém reparava nele. Sentiu a isolado pela indiferença de todos. É triste, miséria da humanidade!

Ele já havia experimentado a distinção torturadora da aversão popular. Sentiu-se abatido, desprezado, reduzido à invisível nulidade pela indiferença com que me deixavam nem olhado naquele banco. Nesse momento alguém o tocou com a mão no ombro, e me disse ao ouvido:

—Até que enfim nos encontramos! VII

Era o Reis. Reconheceu imediatamente pela voz do Reis. —Perdão! Balbuciou. Fui um ingrato, perdão! —Seja prudente, disse-lhe ele; conversemos em voz baixa; não convém que o

reconheçam. Será que a visão do mal não desmentiria as aparências de tanta bondade, e

generoso caráter deste homem. —Então inutilizou a sua luneta? Perguntou o Reis. Sim. Respondeu-lhe. Reis conjecturou: se a magia fosse uma realidade, e ele quisesse explorá-la,

ganharia milhões em poucos meses. Tornando o seu armazém em oficina encantada. Ofereceria produtos como óculos que façam ver a longas distâncias; pequenos espelhos que reproduzam a imagem do rosto jovem de uma velha; binóculos que mostre todo o passado por uma lente e pelo outra todo o presente da vida intima da pessoa que se observa etc. Seria extraordinário!

O armênio pensa na possibilidade desse comércio, e já na hora que soube que a luneta foi quebrada, foi ter com Reis.

16

O armênio está sempre no seu gabinete no fundo do armazém do Reis esperando por você. Ele tem certeza de que o senhor nos procuraria amanhã. Ele assegura que dará outro novo e infalível recurso para vencer a sua miopia.

Simplício iria a que horas amanhã? Irá logo depois da meia-noite. Ele quer, deseja e pede uma segunda experiência do poder desse armênio que se presume mágico, e se julga capaz de realizar impossíveis.

O Reis levantou-se e, depois de me apertar a mão, retirou-se. VIII

Ficou ali refletindo. Iria de novo recorrer a magia igual à da poderosa luneta, mesmo se expondo novamente às perseguições do povo. Sofrendo sempre, como o proscrito dos homens! A magia poderia também livrá-lo da reprovação publica e torná-la mesmo se não em estima ao menos em tolerância ou indulgência?

Se conseguisse uma segunda luneta mágica tão admirável como foi a primeira, anunciará pelos Jornais a existência do armênio nas oficinas do Reis, e a diversidade dos instrumentos mágicos.

IX A noite se adiantava, deixando o jardim, pensou em não se recolher em casa.

Ficou andando de cima para baixo e de baixo para cima. Ouvindo os ruídos das ruas, da orgia das mulheres impudicas, e velhos ricos, e jovens viciosos. Ouviu alguns sinos batendo três horas da madrugada. Dirigiu-se à Rua do Hospício onde o Reis o esperava à porta de sua casa.

X Entrou fatigado do longo passeio, pedindo licença para descansar alguns

momentos. Depois de descansar foram ver procurar o armênio. O armênio adiantou alguns passos e dirigindo-se a eles disse: —Criança! não te acuso pelo que fizeste: a tua desobediência aos meus

conselhos era um fato previsto pela magia; es homem, tinhas de errar, como erraste. —Não errarei outra vez, balbuciei humildemente, —Errarás sempre, e tornarás a desobedecer-me. O altar está pronto e nos

espera. Mas ao primeiro passo, o armênio levantou a lâmpada e disse: —Trazes vestidos de cor preta, que e antipática a Júpiter, cujo dia é hoje.,, O armênio saiu do armazém para ir ao seu gabinete. O mágico em breve tornou a

aparecer, trazendo uma túnica de pano branco bordada de triângulos de prata. Ele cumprindo as ordens do mágico tirou a roupa que era de cor preta, e vestiu a túnica branca, seguindo em silêncio o mágico.

XI A porta do gabinete magico abriu-se em par a um simples aceno da mão direita

do armênio. O ambiente estava resplendente de luz, e todo ornado das mesmas figuras e símbolos da cabala.

A mesa que servia de altar da magia mostrava-se coberta com um imenso pano branco. O chão era tapizado de peles de leão, conservando o aspecto exterior das cabeças das feras.

Nesse instante um galo cantou seguidamente três vezes. O armênio levantou-se e bradou: "Uriel! Zadklel! Gehudiel!... Oriphiel! . . . " E na parede sobre o altar esses quatro nomes surgiram em caracteres de fogo, como as palavras proféticas no festim de Baltazar.

Sobre um triângulo o armênio colocou o vidro côncavo e nele a luneta. O galo cantou de novo três vezes. O mágico ouvindo o piar de uma coruja,

empunhou uma espada e manejou-a no espaço, exclamando: "Zadklel! Zalriel!

17

Oriphiel!". O armênio radiante e ufanoso levantou o braço e firmou a vara mágica uma polegada acima do vidro côncavo.

E no fim de quatro minutos ainda uma faísca brilhante se desprendeu do vidro azul. O armênio retirou da extremidade do vidro azul, enlaçou no anel da luneta um fio de cabelo loiro, que engrossou subitamente, tomando a forma e proporções de um trancelim de ouro.

E entregando-lhe a luneta, falou: —Dou-te pela segunda vez uma luneta mágica: veras por ela quanto desejares

ver; veras muito; mas poderás ver demais. Atenção: não fixes esta luneta em nenhum objeto ou em homem ou mulher por mais de três minutos, porque terá a visão do bem, o que será a vingança do silfo que escravizei para teu serviço. Sei que hoje mesmo me desobedecerás.

—Não! Juro que não! Disse ele. Mal acabou de falar, o armênio deitou-se no seu leito e imediatamente dormiu.

XII O amigo Reis o levou do gabinete do armênio para o armazém. Na saída ele lembrou que se esqueceu de pedir ao armênio um encanto que o

pusesse a salvo de possível perseguição popular. Lá de dentro o armênio disse: - Nada receie.

Despediu-se, já era dia. Fim da Introdução

Visão do Bem

I O armênio fez uma nova luneta igual ou superior a primeira. Agora sim, Simplício

já pode se considerar feliz. Fez o primeiro ensaio da nova luneta mágica, fitando-a de longe e às ocultas sobre os três parentes.

Com a mão trêmula sentou-se à mesa do almoço em companhia dos meus três parentes, prendeu a um dos olhos por dois minutos a luneta mágica.

—Oh! temos nova luneta? disse sorrindo o mano Américo. —É verdade, e ótima, como... a outra. —Como a outra não, observou a tia Domingas; esta me parece diferente e não

me faz mal aos nervos. —Como me acha? Perguntou Anica. —Lindos cabelos, e rosto a que um sinalzinho azul na face esquerda dá tal

encanto... Anica interrompeu-me desatando a rir de evidente satisfação da sua vaidade de

moça. Ele estava assombrado com a mudança da luneta mágica, que não era como a

outra, e que em vez da visão do mal, continha o poder da visão do bem. O armênio o salvara. Era um verdadeiro mágico.

II Após o almoço e depois de abraçado e felicitado pelos três parentes, de quem

ainda continuava a desconfiar muito, voltou ao seu quarto com a alma repleta de consolação, de alegria, e de entusiasmo, como um candidato da oposição que se vê eleito deputado depois de uma dissolução da câmara temporária, ou como um mancebo namorado que após resistências cruéis da família da amada, recebe a decisão de ser o noivo.

A visão do bem era uma coisa que não podia fazer mal. Ele já havia sofrido tanto, vendo em tudo, em todos a parte do mal, que ver o bem poderia ser uma agradável compensação, como jurara obedecer fielmente aos conselhos do armênio, e portanto, venci, esmaguei o meu desejo de ver o bem.

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A visão do bem deve ser deliciosa, mas ele não a quer. É homem de juízo, e de força de vontade: não quer, e não terá a visão do bem.

III O amigo Reis é incrédulo; ele, porém, não é egoísta e não quer para ele apenas

os milagres que o armênio realiza. Para que todos possam ter proveito das mágicas, ele redigiu uma noticia para

denunciar a existência do armênio e da sua extraordinária habilidade em magia, obrigando o amigo Reis satisfazer os seus fregueses. É um serviço que ele julgava prestar ao país e ao mundo. Entusiasmado fixou a luneta, tomou a pena e escreveu:

NOTÍCIA IMPORTANTE "O abaixo-assinado, possuidor de uma nova e não menos admirável luneta

magica que, por grande favor obteve do Sr. J. M. dos Reis, em cujas oficinas na casa de instrumentos físicos etc., a Rua do Hospício n.º 71 trabalha um armênio que é profundamente amestrado em magia, julga do seu dever publicar um segredo que não convém ser por mais tempo guardado.

'O Sr. J. M. dos Reis, teimando em não acreditar na magia, nega-se a aproveitar-se dos oferecimentos do armênio prejudicando assim os seus interesses e os do público.

"Informo pois que o armênio, a quem devo a luneta mágica, se propõe a preparar para que o Sr. J. M. dos Reis exponha a venda no seu armazém vidros e instrumentos óticos de assombrosas condições; espelhos que refletem a imagem dos velhos com o viço da mocidade passada, óculos, binóculos e lunetas que fazem ver o que se passa e o que há a muitas centenas de léguas de distancia, no leito dos rios, no fundo dos mares, no seio da terra..."

- Oh!... que fiz eu? Que estou vendo?... meu Deus!... é a visão do bem!... Escrevendo, esqueceu o tempo e passaram mais de três minutos, e hoje mesmo

ele desobedecera aos conselhos. Pecou involuntariamente mas viu como é bela e suave a visão do bem! A notícia escrita transpirava em todas as linhas, de todas as palavras, de todas as sílabas o amor da humanidade. Em tudo e em todos somente sentimentos nobres e doces virtudes. Que prazer estava experimentando!

Ah! por que o armênio havia de aconselhar-me a não usar da visão do bem? Que mal pode provir do bem?...

Sentindo-se feliz, completou a notícia, acrescentando: "Ao público, e especialmente aos fregueses do Sr. J. M. dos Reis cabe o direito

de à força de pedidos, empenhos, e reclamações coagi-lo a vencer a sua incredulidade, e a aproveitar os oferecimentos do armênio mágico para facilitar ao público e aos seus fregueses todos os instrumentos óticos e maravilhosos espelhos encantados pela magia".

Datou, assinando-a mandou tirar três cópias, para que no dia seguinte aparecesse em todas as gazetas diárias da cidade do Rio de Janeiro.

IV Que mal pode vir do bem? O armênio aconselhou que ele se abstivesse da visão

do bem, declarando-a tão perigosa como a visão do mal; ele porém involuntariamente infringiu esse preceito do mágico. O que aconteceu tinha de acontecer. A visão do bem foi tão agradável!

E impossível que ele se torne desgraçado por ver o bem. Disse: Perdão, armênio! Doravante vou desobedecer-te intencionalmente. Visão do bem! eu te quero, eu te adoro.

V Fixou a luneta e cheguei-me à janela do quarto, vendo a prima Anica debruçada à

janela do seu. Era nela que melhor experimentaria a visão do bem.

19

E fitei a prima Anica, que parecia estar meditando. Passaram os três minutos, e o coração e a alma de Anica se abriram. Oh! como fora caluniadora e perversa a visão do mal!

Anica é um anjo de inocência e simplicidade, e ao mesmo tempo uma senhora de juízo reto e de exemplar virtude, suave, meiga, e reúne todos os dotes para felicitar um esposo.

Encontrou a sua imagem na alma de Anica. Viu na alma de Anica também a imagem do mano Américo, somente afagada por

inocente afeição fraternal. De súbito ela volveu os olhos para a minha janela, percebeu que eu a fitava com

a minha luneta mágica e sorriu-se docemente. Foi como um raiar de aurora. Estava crendo nos amores que de repente conquistam e escravizam os corações,

como o da prima Anica aceitar a sua mão e ser a sua esposa será a santa companheira na viagem pela terra e nos gozos da vida.

VI Ele poderia pedir a tia Domingas a mão da prima Anica em casamento, mas se

conteve, porque precisava ser autorizado pela futura noiva. Durante todo o dia continuou estudando a tia Domingas, e o mano Américo pela

visão do bem, pois efetivamente a visão do mal tinha sido a visão do diabo, fazendo-o ver o contrário da verdade.

A tia Domingas era uma santa mulher. O mano Américo é o tipo da dedicação fraternal, negociando e explorando em seu

favor. Mesmo aumentando a sua própria fortuna, mas quanto a isso ele nada tinha a dizer. Ele seria ingrato se desconhecesse o que devia ao mano Américo.

Ele casaria com a prima Anica. A tia Domingas seria o gênio protetor da família e o anjo da caridade. O mano Américo continuaria a ser o árbitro e o regulador dos negócios da família.

Abençoado sela o armênio. Abençoada seja a luneta magica que lhe deu a visão do bem.

VII À noite resolveu ir à casa e espetáculo Alcasar Lírico. Chegando ao teatro

francês, sentou-se num bom lugar. Passou a examinar o teatro com a sua luneta. Viu nele o contrário do que me

informavam! Era um ponto de reunião de todas as classes da sociedade, o jubiloso recurso de entretimento para os homens pobres que não podem pagar outro menos barato.

Passou imediatamente a observar os espectadores de ambos os sexos, e antes deles as atrizes ou artistas.

Todas as atrizes francesas são prodígios. Teve medo de apaixonar-me por todas. Desviou a luneta mágica para o rosto de uma jovem que estava sentada ali perto,

linda e com uns vinte anos de idade. Entre ele e ela estava sentado um velho de sessenta anos pelo menos.

Perguntou-lhe: —Quem é esta... mulher? —É a Esmeralda? —Esmeralda? E o seu nome de batismo? —É uma rapariga da classe que adotou esse nome de guerra, pela paixão e

preferência pelas pedras desse nome. Ele desistiu de continuar fitando-a.

VIII O velho o convidou para uma festa.

20

Á meia-noite o velho, dez alegres moças e outros tantos mancebos rodeavam esplêndida mesa, sendo que Esmeraldo era a mais bela e petulante que todas as suas companheiras. A bela moça embebedava-se! Uma verdadeira orgia e depravação de costumes.

Apenas ele e o velho não estavam bêbados. O velho tomava vinha com água e ele bebia água com vinho.

Ele fixou a sua luneta mágica sobre a Esmeralda embriagada, vendo além dos seus dotes físicos, a gentileza que o vinho e a petulância apenas anuviavam. Passados os três minutos, começou a visão do bem.

Viu com surpresa e enternecimento na alma da embriagada a história do seu passado e dos tormentos de sua vida. Era uma menina de coração angélico, mimoso tipo de sensibilidade, fora muito cedo vitima do crime; era pobre e órfã e uma parenta corrompida preparou-lhe sinistro sono, e vendeu-lhe a um monstro a inocência e a pureza.

Ninguém a despreza tanto como ela mesma se despreza. Queria casar. Quando está só em casa e vê passar uma jovem com o vestido branco e a virginal coroa de noiva no carro que a conduz à igreja, Esmeralda se ajoelha, chora, e reza; chorando por si, e orando pela noiva.

—Não olhes tanto para a Esmeralda, disse-lhe o amigo. Corres o risco de ficar verde.

Subitamente Esmeralda virou-se com um olhar flamejante, e bradou: —Conhaque! conhaque! conhaque!

Ele correu e arrebatou da mão a garrafa e exclamou: —Basta! a senhora não deve tomar mais conhaque! Então ela foi embora, no meio de gargalhadas e cambaleando, apoiada no braço

do velho. IX

Naquela noite ele dormiu mal. Sonhava com a prima Anica, e Esmeralda. Foi então que ele começou a sentir o primeiro inconveniente da visão do bem:

agora amava igualmente as duas moças. Anica era pura; Esmeralda manchada pelo vicio mais torpe. Anica era sóbria, como as senhoras educadas e apenas em jantar cerimonioso

experimentava pouca bebida. Esmeralda gostava da embriaguez. Anica era respeitada por todos. Esmeralda era o escárnio de muitos e insulto da

moral pública. A visão do bem, isto é, o modo de ver e de aceitar as coisas sempre pelo lado

bom, sempre pelas regras da desculpa, do perdão, do bem e do otimismo na humanidade. A visão do mal é o extremo oposto.

Portanto a visão do bem o fazia adorar a Esmeralda e a prima Anica, fazendo-o hesitar sobre a preferência entre uma senhora honesta e a outra mulher perdida e petulante. Era um tormento e a visão do bem começava a lhe fazer mal.

X No dia seguinte, durante o almoço, Anica reparou a sua preocupação,

perguntando o podia ser a causa daquela melancolia. Disse-lhe que tinha dormido mal. Logo depois foi visitar o amigo Reis, e dar-lhe conta da força e poder maravilhoso

da luneta mágica. O Reis o recebeu com a sua habitual e natural amabilidade. Contou-lhe tudo

quanto se passara no dia antecedente em relação à nova luneta mágica. Sempre depois de três minutos de observação sentia que a visão do bem abria o

seu olhar para a parte boa da alma das pessoas.

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Fitando o homem por nome de Nunes. Viu o lado bom daquele homem. Pediu perdão ao velho e bom amigo! Anteriormente a visão do mal lhe tinha pintado o senhor com horríveis cores! A visão do mal que era aleivosa e malvada!

—Tudo isso está passado. Perdoou-lhe. Ele agora pediu a Reis que queria agradecer ao armênio. Ao chegarem à porta do

misterioso gabinete o armênio apareceu, como se os estivesse esperando. Falou que não queria ser incomodado e mandou-lhe que fosse gozar a visão do bem. E trancou-nos a porta.

O velho Nunes falou, sorrindo: —Positivamente a magia não tem escola de boa educação. Deve ser porque o armênio está ressentido pela desobediência, pois tinha

aconselhado a Simplício que se abstivesse da visão do bem. Ao que ouviu do armênio: — Enganas-te, criança. O que aconteceu devia

acontecer. XI

Voltaram ao armazém e sentaram para conversar. O velho Nunes convidou o amigo Reis para jantar na sua casa. Precisamente as três horas da tarde. O Reis esquivou-se cortesmente ao convite, declarando que devia sua presença a um hóspede.

O velho Nunes e Simplício saíram. XII

Foi servido o jantar às três horas da tarde na casa do velho Nunes. Estava quatro à mesa, Simplício, Nunes, sua mulher, a Sra. D. Eduvirges, e a sua filha, D. Ana (chamada pelos pais como Nicota).

D. Eduvirges ainda bonita, era o tipo da matrona do nosso país, boa, afável e recatada.

Nicota estava com vinte e três anos, era morena, bela, agradável, jubilosa, e tinha uns olhos negros, que me pareceram crateras de lavas apaixonadas. Eu nunca tinha visto olhos como esses. A visão do bem tornou patentes a alma e o coração de Nicota. Inocente, suave, meiga, nascida para obediência de seu pai e do esposo que a amasse, modesta e religiosa, ingênua e simples. Nicota fez-lhe esquecer durante o jantar a prima Anica e a Esmeralda.

Levantou da mesa do jantar embriagado de amor. Se ele não tivesse contemplado com a luneta mágica a Anica e a Esmeralda na noite passada, podia ser que no final do jantar ele se curvaria ao velho Nunes e pediria a sua filha em casamento.

Agora o coração sensível lutava por três imagens de moças queridas. Ele amava Anica... Amava Esmeralda... Amava Nicota... A preferência, a escolha entre elas era impossível... Por isso ele sofria muito...

XIII Estava sendo caracterizado que a própria visão do bem não é isenta de

inconvenientes, pois que pela visão do bem ele via que cada uma delas também o amava e estavam apaixonadas por ele!

Neste mês já fui doze vezes a casa de Esmeralda, com um amor exclusivamente platônico. Ela era interesseira e arruinadora dos que a frequentavam, mas ainda não havia lhe imposto qualquer despesa. O tentar oferecer-lhe uma joia, ela não aceitou e pediu-lhe que assinasse uma lista de donativos para salvar da miséria uma numerosa família. Ele assinou e deu em dobro da maior quantia doada naquele papel.

A Esmeralda é o gênio do bem. A visão do bem lhe dava a certeza de que Esmeralda preferiria morrer de fome a tomar para compra de seu pão a menor das quantias dadas por aqueles subscritores beneficentes.

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Tinha certeza de que o seu dinheiro foi religiosamente empregado em socorro daquela miserável família.

XIV Às onze horas da manhã ele voltou mais uma vez à casa do velho Nunes, o pai

da Nicota. O velho não estava, mas a esposa e a filha o receberam com os corações

abertos. Uma hora da tarde o velho Nunes chegou, dominado por dolorosa comoção,

contando o segredo a D. Eduvirges, saiu de novo muito aflito. Ela ficou com os olhos rasos de lágrimas, e Nicota olhava para a mãe com tanta ternura que também quase o fez chorar.

Perguntou a D. Eduvirges do que se tratava. Ela explicou que era sobre um depósito de dez contos de réis, que o velho Nunes estava devendo, mas não estava podendo pagar, e o prazo foi dado somente até hoje. Aquilo seria uma desonra, e que poderia até mata-lo de desgosto.

Nicota entrou em pranto e soluços. Quando o velho Nunes voltou triste, vieram mais três homens fazer a cobrança. Foi uma oportunidade para mostrar a sua amizade para com a família. Simplício

nem sabia que gozava tanto crédito no Rio de Janeiro. Assinou como sacador e endossante uma letra de dez contos de réis para vencimento em trinta dias.

O velho Nunes jurou que antes de quinze dias pagaria aquela divida, abraçando o amigo Simplício. Beijou a mão de D. Eduvirges e a testa de Nicota. Que família de anjos! Ele ficou feliz.

Ficou para jantar com aquela boa e santa gente e na mesa bebeu vinho no mesmo copo de Nicota. Era como se ele sentisse um beijo de Nicota.

Saiu da casa do velho Nunes como um rei saindo do templo, após celebrar uma sagração.

XV Num determinado dia ele resolveu visitar a Casa de Correção e apreciou tudo,

pela perfeição. A administração, a secretaria e livros de escrituração, as obras, o método

penitenciário adotado, a alimentação e tratamento dos presos e o zelo dos empregados. A princípio ficou satisfeito, mas depois examinou com a luneta pela visão do bem todos os condenados e ficou horrorizado da cegueira, ignorância, ou perversidade da justiça pública, dos tribunais e juízes.

Todos aqueles infelizes condenados são inocentes dos crimes que lhes imputam e ainda se distinguem por virtudes raras e moralidade exemplar.

Deu vontade de soltar um brado de revolta e excitar as pobres vitimas à resistência, às armas, e à vingança, mas foi voltando para casa, mesmo dominado por pensamentos perigosos, e revolucionários, desejoso de uma profunda transformação social.

De súbito parou e viu um grupo de cinco homens conversando na rua. Conheceu que três eram desembargadores e dois eram juízes de Direito. Fitou sobre eles a luneta mágica e viu que todos eram sábios, íntegros, justiceiros, escrupulosos e até aquele momento sem nenhuma condenação injusta. A confusão foi grande já que os condenados eram inocentes. Aquilo era uma contradição.

XVI O amigo jovem da minha idade Damião, com quem se relacionou na casa de

Esmeralda, o levou a uma casa onde joga o lansquenê três vezes por semana, os cavalheiros da mais fina educação.

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O dono da casa é casado com uma senhora que toca piano e tem uma cunhada que possui surpreendente voz de contralto e canta como a Stoltz. O seu nome é Hermínia, faceira e linda. Foi a trigésima quarta senhora por quem se apaixonou.

Damião o aconselhando que saísse ou jogasse. O dever da cortesia o ordenava entrar no jogo.

Perdeu todo dinheiro que na carteira levava. Deixou o jogo e ao sair da casa encontro outro jogador infeliz, que chamou os jogadores de gatunos e refinados ladrões. Inclusive Damião.

Simplício assegurou que todos eram homens honrados E as senhoras pudicas e recatadas? O companheiro de infelicidade desabou uma

gargalhada e disse que não há esposa, nem cunhada. São damas dos baralhos do lansquenê, namorando os tolos.

Entrou em casa pensando em Hermínia e sua irmã como duas flores. Principalmente Hermínia, uma flor, um botão de rosa do paraíso.

XVII Percebendo um dia a prima Anica pensativa e triste, compreendeu que era

preciso consolá-la, comprando um mimo, mas voltou para casa aflito, pela indecisão entre os seus pensamentos e a visão do bem, aborrecido porque não foi capaz de trazer-lhe um mimo sequer.

Oh! Não há sabedoria de homem que possa comparar-se com a sabedoria do armênio.

O armênio me avisou e não mentiu. A visão do bem pode fazer mal. XVIII

À medida que os dias se iam passando, a visão do bem se tornava mais imponente, absoluta e desastrada.

Era aconselhável que não saísse com a luneta, porque, por exemplo, se com ela tentava escolher as vestes, todas eram boas e não sabia mais como vestir-me. Ou na comida... ou nas danças nas festas ... etc.

Durante três minutos a luneta mágica só oferecia a visão das aparências, depois desse tempo é que era o perigo, que uma forte vontade tornava-o escravo da admiração por atributos e dotes. Isso era o bem mais maléfico que se pode imaginar. A visão do bem chegou a parecer pior, mais funesta, do que a visão do mal.

Vivia mergulhado no bem e não podia desfrutá-lo. Ficava com os olhos no céu e o coração no inferno.

XIX Ao desejar possuir um bom cavalo de passeio, Simplício falou com Damião e ele

o apresentou a um vendedor bem recomendado. Depois de examinar o animal achou-o formosíssimo e o negociante jurou que o cavalo era sem defeito, uma grade aquisição.

Comprou a preço caríssimo e mandou recolher a uma cocheira. No dia seguinte o dono da cocheira disse que o pobre animal era cego e aberto dos peitos.

Revoltou-se, e fixando a luneta mágica, examinou de novo e reconheceu que ele havia cegado de súbito e adoecido na noite passada, conservando ainda assim todos os dotes que o vendedor exaltara.

Ficou com o prejuízo, mas honrando o testemunho leal, verdadeiro, consciencioso do negociante do cavalo.

XX Viu-se constantemente cercado de amigos. Pagou-lhes jantares e emprestou

dinheiro, que não restituíram. Pagou flores, coroas e ovações em honra de atrizes dos diversos teatros. Jogou na praça associando-se com um inglês, que pela visão do bem era o

homem mais probo do mundo, mas as oscilações dos fundos públicos e ações dos

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bancos e de companhias foram tais, que perdeu alguns contos de réis e o sócio inglês ganhou o dobro do seu prejuízo.

Contribuiu e subscreveu liberdades de escravos, obras de instituições filantrópicas, benefícios teatrais em favor de cegos e aleijados, socorros para indigência etc.

Na última quinzena ouviu apreciações terríveis mostrando que foi vitima dos mais pérfidos enganos, e perversos abusos de confiança, calúnia, e maldade dos homens “puríssimos”.

XXI Alheio aos negócios e não conhecendo bem o valor do dinheiro, porque o seu

irmão tomou conta da fortuna, e sabiamente a dirigiu, ele, no último mês e meio gastou além da conta, seguindo pela visão do bem. O erro aconteceu porque a lição da visão do mal lhe deu de que sabia e podia compreender as coisas, mas como não era possível gastar, não aprendeu a guardar, gastando sem limites comprando tudo o que desejava.

A vida econômica deslizava-se plácida e suavemente pela visão do bem, empregando dinheiro acertadamente, como apenas algumas migalhas da minha inesgotável riqueza.

Porém um dia arrebentou a primeira bomba de uma girândola de loucuras, conforme disse o mano Américo.

XXII A girândola de loucuras foi que o prazo da letra aceita pelo velho Nunes, e que

ele endossou, foram-lhe exigir o pagamento. Em casa com ele, o mano Américo tomou o documento e vendo a sua assinatura escreveu sem hesitar uma ordem para imediatamente ser paga e remida não sei como e por quem. Ele disse que Simplício havia caído como vitima do velhaco Nunes.

Mas por meio da luneta mágica o velho Nunes é uma probidade. Américo disse que se Deus permitir, espera que aquela seja a única bomba de alguma girândola de loucuras.

A visão do bem não podia tê-lo enganado. O amigo Nunes é probo como e além de tudo é o pai de Nicota.

XXIII Quando Américo entrou para jantar, ele estava com a luneta fixada no rosto. O

irmão mandou que ele quebrasse aquela luneta miserável, e avanço sobre ele, mas ele a escondeu, sendo ajudado pela tia Domingas e a prima Anica.

Américo explicou que Simplício estava louco, acabando com o dinheiro, fazendo avultados empréstimos a velhacos, jogando e deixando-se roubar no jogo, pagando jantares etc.

Ele disse que a fortuna era dele e que tinha idade bastante para fazer tudo. Não está normal. Bradou a tia Domingas. Não devemos deixar o primo sair à rua, observou Anica. Com medo, Simplício entrou no gabinete do mano Américo, trancando a porta,

que de tanta precipitação, a chave saiu da fechadura e foi cair longe da porta. XXIV

Do escritório fixou a luneta mágica pela abertura da chave e estudou os seus odientos parentes. O irmão, tia, e a prima Anica, se mostraram três querubins, então radiantes de fogo não de cólera, mas de verdadeiro amor, de sublime interesse por ele.

Descobriu também o animo do irmão quebrar a luneta mágica, mas decidiu salvar a todo transe a luneta mágica.

Ele estava vestido decentemente para sair à rua, subiu na janela do gabinete e saltou na rua, correndo como um preso, que escapa e foge da cadeia.

XXV

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Quando se achou longe de casa, instintivamente procurou a luneta mágica, e no bolso do paletó ainda encontrou sua carteira, onde ainda tinha guardado alguma reserva de centos de mil-réis.

Duplamente satisfeito, teve fome. Dirigiu-se a um dos nossos melhores hotéis e pediu o jantar.

Ao sentar-se apareceu Damião e mais seis outros amigos que foram ao seu auxílio. Com lágrimas de reconhecimento agradeceu a demonstração de estima, convidando-os para jantar. Acabado o jantar ele queria descansar, os amigos deixaram-no só, retirando-se a rir não sei mesmo de quê. Antes de se recolher apareceu o dono do hotel ou chefe da casa e disse:

—Sr. Simplício, esses sujeitos que saíram são todos parasitas e exploradores. O jantar custa cento e trinta mil-réis, e eles desceram a escada a rir.

Fixou a luneta sobre aquele homem e, com espanto, a visão do bem fez reconhecer que era verdade. Ficou surpreso, perplexo, indeciso, triste e aborrecido.

Pagou o jantar e foi se deitar, despertando às duas horas da madrugada e ficou acordado até o amanhecer.

A visão do mal o expôs a ser trancado por doido no hospício de Pedro II, a visão do bem o expõe a ser declarado néscio, ou idiota.

Uma o fez passar por doido; outra, por néscio ou doido, mas a consequência é a mesma. Mesmo assim, ele tinha de defender a luneta mágica.

E certo que começou a ter algumas desconfianças à infalibilidade das revelações da visão do bem.

As contradições entre a inocência dos condenados e as sentenças dos magistrados; os sentimentos dos amigos que ontem jantaram com ele etc.

O erro dos homens é patente: quem vive e procede com acerto, era ele. XXVI

Levantou-se às dez horas da manhã e ao acabar de almoçar, ouviu o sinal de meio-dia. Chegou o amigo Reis, a quem depositava confiança sem limites. Apertaram as mãos e se sentaram juntos.

—Temos sofrido muito ambos, e pelo mesmo erro, disse-me o Reis. Eu errei, deixando-o entregar-se a um pretendido mágico; o senhor errou acreditando exageradamente nele. O senhor é o divertimento de muitos, e o objeto da compaixão dos homens graves, que acreditam indispensável que sua família o sujeite a mais zelosa curadoria... Seu irmão foi hoje a nossa casa e queixou-se da maléfica influência das duas lunetas mágicas saídas das minhas oficinas; tive de reconhecer a minha responsabilidade e, pedindo perdão, assegurei que mais nunca permitiria ao armênio outra operação mágica para facilitar-lhe nova luneta. O seu irmão ainda disse que antes de três dias seria nomeado seu curador, e que empregará até a força para recolhê-lo ao seio da família. . . Já avisei severamente ao armênio, de que eu o despediria para sempre se praticasse uma vez mais as suas pretendidas artes mágicas. Quanto ao senhor, volte para o santo asilo da sua família, e deixe-se dirigir e guiar por seu irmão. Boa tarde!

XXVII Em três dias acabará a liberdade, o mesmo prazo que se concedia aos

condenados à morte. O seu irmão é o melhor dos homens, e símbolo do amor fraternal. A visão do bem da minha luneta será como a do mal acesa pelo demônio?... Será

infernal pelo excesso de mostrar sempre o bem em todos e em tudo? Saiu sem destino, levando fixada a luneta e entrou na Rua Direita, no Boulevard

Carceller foi se sentar à sombra da árvore mais vizinha da Igreja do Carmo. Sentiu que as senhoras o contemplavam embevecidas e perdidas de amor. Que sensações deliciosas!

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De súbito chegou-se a mim um mancebo com o semblante abatido e acabou pedindo-me o óbolo de caridade para enterrar o filhinho. Logo depois apareceu outra três moças esmolando para missas pedidas.

Fitou com a luneta cada uma delas, encontrando em seus corações a mais santa piedade, e profundo sentimento religioso. Ele já estava doido de paixão por todas elas, e todas elas também por ele, coitadinhas!

Depois das moças veio uma velha que confessou ser viúva pobre, com seis filhos, que até aquela hora não tinham almoçado... Deu-lhe esmola.

Após se chegou um cavalheiro de maneiras muito distintas, e da mais perfeita cortesia. Disse ter comido pastéis e bebido cerveja, mas tinha esquecido a carteira em casa. Entregou-lhe a quantia necessária para pagar a despesa que fizera.

Em seguida avançavam dez ou doze rapazes ao mesmo tempo. Naquele momento um venerando ancião, tomando-lhes os passos, censurou os rapazes que foram embora.

Disse a Simplício: —Mancebo inexperiente! Não vê e não sente que está sendo vítima da zombaria.

Não jogue fora o seu dinheiro. Aquelas pessoas a quem você ajudou estão ali dentro da confeitaria rindo às gargalhadas, comendo e bebendo à sua custa.

Fixou a luneta e viu o velho respeitável e sincero. —Infeliz moço! Retire-se à sua casa e diga a seus parentes que cuidem mais e

melhor do senhor. A sua situação piorava. Saiu andando e entrou em precipitados passos na Rua do

Ouvidor. O se nome era repetido em tom de compaixão por alguns, em tom de escárnio

por outros. Ele ia indo... sempre... quase a correr: deviam na verdade julgar-me desvairado.

De repente parou e ouviu uma voz argentina, suave, melodiosa exclamara: —Como corre o bom anjo! É pena que não me visse! Segundo a regra

morreríamos de amor um pelo outro, e ele me pagaria o jantar. . . Era uma jovem no mais belo frescor da idade: vinte anos não mais, dezoito anos

não menos; cabeleira de ouro com enchentes de anéis a inundar-lhe as espáduas nuas e alvejantes... colo nu, e seios quase de todo à mostra.

Esperou três minutos contemplando-a bonita para aborrecê-la escandalosa e infame... Meu Deus! A visão do bem lhe mostrou o que ela era... um anjo!...

Insensivelmente meus joelhos se iam curvando, quando de todos os lados estrondaram gargalhadas, inclusive da criatura angélica. Saltou para dentro de um carro e fugiu.

Em desespero ele fugiu para o hotel. XXVIII

Não saiu mais nesse dia e deu ordem para dispensar qualquer visita. A tarde, a noite e a manhã seguinte não saiu também. Estava se achando nos últimos dias da posse e uso da primeira luneta mágica.

A sentença está lavrada e era irrevogável: amanhã o mano Américo, em sua extrema bondade, receoso de que ele esbanjasse o resto da fortuna, o privará da luneta mágica que dá a visão do bem.

Pagou o que devia no hotel e foi procurar o velho Nunes, o bom Damião e mais quinze ou vinte, e pediu algum dinheiro emprestado ou o pagamento do que lhe deviam. Ninguém o ajudou.

Ao se dirigir ao banco, ele tomou o Jornal do Comércio e mostrou a notícia assinada pelo irmão, que não seria paga divida alguma contraída por Simplício.

Recorreu ainda a dois outros amigos que o deviam somas importantes. Nada.

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Fixou a luneta mágica sobre cada um deles e nenhum deles era mau: o primeiro voltou as costas por vergonha de não poder servir. O outro, pobre infeliz, afetado de uma moléstia cérebro-espinhal, tinha perdido a memória.

Na rua passava numeroso préstito de carruagens; quis vê-lo passar. Era um enterro.

XXIX Naquela negra tristeza de espírito desejou estudar o cadáver e fixou nele a luneta

mágica. Viu um caixão de madeira coberto de ricos estofos pretos e de galões de ouro,

dentro um cadáver já em corrupção, fétido, repugnante... Iodo e pó da terra e nada mais.

Logo depois a felicidade, a incomparável felicidade da morte!... Viu, senti, compreendi a morte, que se patenteou tal qual é a visão do bem! Viu a morte—mal julgada, caluniada pelos homens. Não há dor, nem moléstias ou

privações. Pela morte o escravo é livre, a criança e a virgem são anjos, o desgraçado é feliz,

o mudo tem voz, o paralítico voa, o surdo ouve segredos, o cego vê nas trevas, um desgraçado é feliz!...

A morte é Jordão que lava as culpas... É glória... É luz... Após o préstito passar ele deixou cair a luneta mágica. Achou-se consolado, forte

e invencível. Almejava morrer, para começar a viver uma vida de delícias!... Abraçou a ideia do

suicídio. XXX

Estava na Rua dos Barbonos, fim da das Mangueiras. e principio da dos Arcos. A breve distancia estava a ladeira do morro de Santa Teresa. Local de muitos

suicídios. Tomado pela ideia da morte, começou a subir a ladeira. Não tinha punhal, nem

veneno, nem revólver. A visão do bem o levava à morte. Disseram que no sitio famoso do Corcovado havia enorme precipício.

Depois de longa marcha ouviu a voz de um homem que caminhava adiante e que cantava uma rude cantiga com acompanhamento de viola, que ele próprio executava. Era um guarda do aqueduto.

Trocamos a saudação de—boa noite. Seguiu cantando. —O canto anima o trabalho e ilude a fadiga, disse o guarda. Quando acabou a cantiga, Simplício perguntou-lhe: —Que pensa da vida? —Que custa a viver. —Que pensa dos homens? —Bem e mal: nem confio nem desconfio, e julgo que é melhor não pensar neles. —Por quê? —Porque todo tempo é pouco para cada um pensar em si, na sua família, no seu

trabalho, e nas contas que deve a Deus. Admirava a sabedoria do guarda do aqueduto, e compreendi perfeitamente o seu

amor, o seu apego à vida pelo encanto da esposa e dos filhos. Ensinou o fácil caminho que me levaria ao Corcovado, deu-me —boa noite— e

desapareceu, metendo-se por um trilho quase encoberto pelo mato. XXXI

Lavado de suor e arfando de fadiga chegou finalmente a alto ermo do Corcovado. Sentou-se; quis pensar na morte e não pude, porque meus olhos se cerraram, e

dormiu. Despertou ao primeiro raio do sol e se levantou.

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Pensou consigo mesmo: Já que iria morrer mesmo, por que não experimentar a visão do futuro?

O suicídio era fácil: um abismo estava cavado abaixo de seus pés; atirar-se a ele e não morrer era impossível...

Experimentar a visão do futuro era igualmente muito simples: bastava-me fixar a luneta mágica por mais de treze minutos sobre algum objeto.

Fixou a luneta mágica sobre a cidade do Rio de Janeiro e viu. . . Durante os três primeiros minutos: força vital, prodígios de riqueza do solo do

Império, majestade da natureza e em grande número de homens incapacidade, inveja, capricho, nepotismo, vaidade comprometendo tudo, sacrificando tudo, perdendo tudo no culto do egoísmo, e de ruins paixões.

Depois de três minutos até treze: a mesma e ainda mais surpreendente opulência de tesouros naturais etc.

Além de treze minutos: a visão do futuro... primeiro e de súbito imensa e compacta nuvem negra cobrindo todo o horizonte e logo através dela vivíssimo e penetrante raio de luz que me feriu e deslumbrou, que me fez recuar e cair por terra, quebrando-se em migalhas a luneta mágica de encontro a uma pedra! Era ainda cedo para ver o mundo abaixo dos meus pés e em torno do Corcovado. Achou-se em trevas; mas ergui-me de pronto, e sem hesitar corri para o abismo e bradando:

—Adeus!... Saltou o parapeito, arrojando-se ao profundo precipício... Mas duas mãos possantes suspenderam-me pelas orelhas, que o contiveram por

momentos no espaço entre a vida e a morte, e, sempre pelas orelhas, me tiraram da boca do abismo, e me depuseram no chão.

—Ainda é cedo, criança! disse a voz rouca do homem que me salvara, puxando-me as orelhas.

Reconheci o homem pela voz. Era o armênio. Fim da Segunda Parte

Epílogo

I Ao levantar-se, procurou com os olhos o armênio: —Obrigado! —Bom sinal! observou este; o teu coração voltou-se para Deus. Morreste louco, e

renasceste ajuizado. Ele desabou a chorar. O armênio disse: —Criança adoidada: já te puxei bastante as orelhas; mancebo infeliz, quero agora

consolar-te. Adivinhei o teu criminoso intento e vim aqui salvar-te do suicídio, e dar-te nova, terceira e última luneta mágica.

—Confias pois muito em mim? —Muito. —Não há confiança sem fundamento que ao menos se suponha seguro, e tu nem

sequer sabes como me chamo, o que não me admira, porque nem sabes o teu verdadeiro nome.

—Eu o conheço pelo armênio, o mais sábio dos mágicos, e sei que recebi na pia batismal o nome de Simplício.

—Erro duplo! não há aqui armênio nem Simplício. —Então como nos chamamos? —Eu me chamo Lição. —E eu? —Tu te chamas Exemplo. — Ah! —Escuta-me.

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II O armênio começou a falar. —A exageração degenera os sentimentos, desvirtua os fatos, desfigura a

verdade. "Exagerar é mentir. "No mundo há o bem e o mal, como há na vida o prazer e a dor. "Mas o bem é o bem, o mal é o mal como eles são e não podem deixar de ser

para a humanidade que e imperfeita: perfeito bem, absoluto mal não há para ela. "O bem absoluto é Deus; mal absoluto não existe, não pode existir; porque seria o

mal sem arrependimento, e sem perdão e portanto um limite à onipotência de Deus, o absurdo na verdade eterna.

"Assim pois acontecimento, ser da criação, homem absolutamente maus ou absolutamente bons não são possíveis, nem se compreendem.

"Estudar o mundo e os homens, observando-os pela enfezada lente as doutrinas, ou prevenções, as tuas duas lunetas exageraram.

"Ora exagerar é mentir. "Mancebo, a verdadeira sabedoria ensina e manda julgar os homens, aceitar os

homens, aproveitar os homens, como os homens são. "A imperfeição e a contingência da humanidade são as únicas idéias que podem

fundamentar um juízo certo sobre todos os homens. "Fora dessa regra não se pode formar sobre dois homens o mesmo juízo. "Cada qual é o que é; cada qual tem as suas qualidades, e seus defeitos. "A sociedade que aceite cada homem com as suas qualidades e os seus defeitos,

explorando umas e outras em seu proveito. "As próprias plantas venenosas são úteis: a ciência faz do veneno mais violento

um meio destruidor de moléstias, regenerador da saúde, conservador da vida. "A educação do homem que é a base mais importante e a essencial da ciência

social pode explorar em beneficio da sociedade, dirigindo-os convenientemente, os próprios defeitos correspondentes às qualidades estimáveis de cada um.

"Mancebo! para te levar à verdade já te lancei duas vezes no caminho do erro. "Erraste acreditando no mal, erraste acreditando no bem, que te mostraram tuas

duas lunetas, que exageraram o mal e o bem, ostentando cada uma o exclusivismo falaz do seu encantamento especial.

"Erraste pelo exclusivismo; porque o exclusivismo é o absurdo do absoluto no homem.

"Erraste pela exageração; porque exagerar é mentir." III

Ele escutara com respeitoso silêncio o armênio que ainda disse: —Resolvi dar-te hoje a mais preciosa, mas também a última das lunetas mágicas

que de mim terás. A visão do bom senso. —Então juro que conservarei a luneta do bom senso por toda a minha vida. —Fá-la-ás em pedaços e intencionalmente. —Por quê? —Porque é melhor não ver. —Oh! não... —Vou dar-te a luneta.

IV .........................................................................................................................................................

V

—Fixe a luneta! gritou com sua voz ronca o armênio.

30

Obedeceu e viu diante dele o mágico melancólico e carrancudo, e o meu amigo Reis agradável e risonho.

O armênio desapareceu descendo apressado a montanha. O Reis abraçou-me: e disse: —Aquele homem é irresistível; adivinhou o ato que o senhor ia praticar, e

prometeu-me salvá-lo sob duas condições: a primeira seria dar-lhe uma terceira última luneta mágica, com a visão do bom senso; a segunda que eu consentisse vender no meu armazém lunetas mágicas com a visão do bom senso. Claro que aceitou, para salvar a vida do amigo.

VI Já havia passado um mês inteiro de visão do bom senso. Quantas lunetas do

bom senso terá o armênio preparado magicamente para o armazém do Reis? E este a quantos amigos as terá confiado? . . .

Se o Reis quer teimar no seu prejudicialíssimo sigilo, deve ao menos, e embora muito em segredo, oferecer sete lunetas mágicas com a visão do bom senso para uso dos membros do ministério e do governo do Brasil.

Não posso falar, não posso escrever, não posso dizer o que a visão do bom senso me está ensinando há um mês.

Quando o meu amigo Reis me desligar do juramento que fiz, escreverei o livro da—visão do Bom Senso.

Mas até lá... segredo. FIM

REFERÊNCIA: MACEDO, Joaquim Manuel de. A luneta mágica. São Paulo: Ática, 1990.