UNIVERSIDADE ESTADUAL DE FEIRA DE SANTANA - UEFS … · 2019. 12. 9. · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE...
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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE FEIRA DE SANTANA - UEFS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO MESTRADO EM HISTÓRIA
LEVI SENA CUNHA
SONHOS DE PROGRESSO: URBANIZAÇÃO E REPRESENTAÇÕES
SOBRE EUNÁPOLIS (1970-1988)
Fonte: Eunápolis de um canteiro de obras ao maior povoado do mundo. Grande
Bahia. Feira de Santana-Ba, nov./1985. p. 1.
Feira de Santana
2019
LEVI SENA CUNHA
SONHOS DE PROGRESSO: URBANIZAÇÃO E REPRESENTAÇÕES
SOBRE EUNÁPOLIS (1970-1988)
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
graduação em História da Universidade Estadual
de Feira de Santana como requisito para
obtenção do título de mestre em História.
Orientadora: Dra. Ana Maria Carvalho dos
Santos
Feira de Santana
2019
Ficha catalográfica - Biblioteca Central Julieta Carteado - UEFS
C978s Cunha, Levi Sena
Sonhos de progresso: urbanização e representações sobre Eunápolis
(1970-1988) / Levi Sena Cunha. - 2019.
171 f.: il.
Orientadora: Ana Maria Carvalho dos Santos.
Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual de Feira de
Santana Programa de Pós-Graduação em História, 2019.
1. Urbanização - Eunapólis (BA). 2. Eunapólis (BA) - História. I. Santos, Ana Maria Carvalho dos, orient. II. Universidade Estadual de Feira de Santana. III. Título.
CDU: 711.122(814.22)
Clemilda Santana dos Reis de Jesus – Bibliotecária CRB5/1641
SONHOS DE PROGRESSO: URBANIZAÇÃO E REPRESENTAÇÕES
SOBRE EUNÁPOLIS (1970-1988)
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em História da Universidade Estadual
de Feira de Santana como requisito para obtenção do título de mestre em História
Orientadora: Dra. Ana Maria Carvalho dos Santos
BANCA EXAMINADORA
Data de aprovação: 30/ 08/ 2019
______________________________________________________
Profa. Dra. Ana Maria Carvalho dos Santos (Orientadora) – UEFS
______________________________________________________
Prof. Dr. Clóvis Frederico Ramaiana Moraes Oliveira - UEFS
______________________________________________________
Profa. Dra. Lina Maria Brandão de Aras - UFBA
AGRADECIMENTOS
Realizar a empreitada de escrever um trabalho de conclusão de mestrado não é coisa
fácil de conseguir. Uma caminhada dura para se fazer sozinho. Tomando as sábias palavras do
poeta baiano (Raul Seixas), ―nunca se vence uma guerra lutando sozinho‖. É com esse
sentimento que venho, através desse texto, agradecer, em algumas poucas palavras, àqueles
que me acompanharam durante essa fase, compartilhando minhas angústias e alegrias, num
caminho de aprendizados constantes. A todos, os meus agradecimentos.
À minha família, os primeiros mestres e mestras que tive contato. Meu pai e minha
mãe, ―seu‖ Roger e dona Rosângela, pelo carinho e ensinamentos que me acompanharam em
Feira de Santana e me acompanharão aonde quer que eu vá. Vocês me possibilitaram trilhar
os caminhos por mim percorridos para concretizar essa pesquisa: condições materiais de
estudar; ter a experiência de vida entre a roça e da cidade, conhecendo e reconhecendo os
saberes pertencentes a esses dois mundos, talvez sem essa vivência não fosse possível a
realização desse trabalho.
Agradeço à vó Carlota, uma das pessoas mais sábias que já conheci, pelas palavras
estimulantes nos momentos inesperados das horas mais difíceis. A Taminha, minha
companheira mais terna, irmã e amiga de todas as horas, obrigado pelo incentivo. Às minhas
tias/mães e tios/pais pelo carinho com que me acompanharam durante toda a vida além das
jornadas entre Salvador, Feira de Santana, Ibicaraí e Eunápolis.
À Dandara (Pretinha), namorada, amiga, companheira, (coorientadora), algumas
palavras são poucas para definir minha gratidão, sem você não teria conseguido finalizar mais
esse ciclo. Sou muito grato por tê-la ao meu lado nessa caminhada.
Ana Maria, pelas orientações, atenção, paciência e tranquilidade durante todo o
processo de cumprimento de créditos e de escrita, o que me fez confiante para conseguirmos
finalizar mais essa etapa. Obrigado pela amizade. Tive sorte de tê-la como orientadora!
Aos professores Lina Maria Brandão Aras e Clóvis Frederico Ramaiana Moraes
Oliveira, pela disponibilidade de participação na banca de qualificação e defesa da
dissertação. Obrigado pelas orientações que tanto ampliaram as possibilidades quanto ao
potencial dessa pesquisa, observações que contribuíram em muito para a construção dessa
dissertação. Em especial, a Clóvis, com quem tive a oportunidade de cursar uma disciplina e
trocar boas ideias sobre o fazer historiográfico.
Gratidão aos professores do mestrado, Rinaldo César Nascimento Leite, Andréa da
Rocha Rodrigues, José Augusto Ramos da Luz e Ana Maria Carvalho dos Santos com quem
pude compartilhar de boas discussões nas aulas, que muito contribuíram para ampliar os
horizontes de historiador. Especialmente a Rinaldo pelo acolhimento desde as aulas até à
experiência de estágio docente no ensino superior, a vivência e os conselhos foram de muita
valia para a minha formação como professor. Obrigado também a Julival, sempre solícito ao
lidar com os trâmites burocráticos do Mestrado.
À família que acabei por construir no cotidiano das aulas no Módulo 7, na Biblioteca
Julieta Carteado, na fila do RU e na boemia no Feira Seis. Vitor e Ramón, companheiros de
república, aulas, divagações e discussões teóricas. Patrícia, Gilvânia, Marcos, Girlei, Alane,
Claudio, Fabiano, Edna, Naiara, Carla, Mariela, vocês fizeram essa caminhada em Feira de
Santana mais leve e divertida.
Obrigado a Maria Sandra Gama pela atenção, leituras e revisão de textos e indicações
de leituras. À Francisco Cancela pelas indicações de leituras e pelas conversas que
possibilitaram uma melhor compreensão sobre a história dos indígenas na região. À Célia
Santana, pelas conversas que tanto me estimularam a continuar e ampliaram as possibilidades
quanto à pesquisa. À Ivanice Ortiz pelo apoio e incentivo. Vocês dão sentido à frase: ―Você
sai da UNEB, mas a UNEB não sai de você‖.
Ao compadre Ciro Lins pelas revisões de texto, discussões historiográficas (na maioria
das vezes regadas a muita cerveja), obrigado pela parceria. Aos compadres do Bando
Estrovenga e do Siri Cismado (Reginho, Cesinha, Bruno, Gazão, Aldinho, Rodrigo), sem
vocês esses anos seriam ―sérios demais‖, nossos batuques de ―rock rural‖ deram mais sentido
a esse TCC. Ao 4º siri, Rodrigo (Gordura), pela ajuda com os mapas.
Ao amigo Cornélio, pela disponibilidade em viabilizar informações sobre os indígenas
residentes em Eunápolis. Ao Cacique Juvenal Costa Vales e aos Tupinambás de Eunápolis
pelo acolhimento e confiança em cederem valiosas informações sobre a história dos indígenas
no Extremo Sul da Bahia.
Aos amigos do Ponto de Cultura Viola de Bolso, especialmente à Sumário e ―seu‖
Wilson, nossas prosas foram fundamentais para compreender um pouco mais sobre o
cotidiano do antigo povoado de Eunápolis. À Neide Gonçalves e ao professor Ronaldo
Pereira, pelo acesso a documentos em seus arquivos particulares sobre a história de Eunápolis.
À Renaielma, pela revisão e normatização dos textos.
Aos arquivos públicos de Santa Cruz Cabrália, Câmara de Vereadores de Porto
Seguro, Câmara de Vereadores de Eunápolis, Biblioteca do Estado da Bahia (Salvador),
Biblioteca da SEI (Salvador), e seus funcionários.
À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES),
cuja bolsa possibilitou a feitura desse trabalho. O presente trabalho foi realizado com apoio da
CAPES - Código de Financiamento 001.
Esse trabalho é dedicado a três mulheres
fortes e sábias:
Carlota Martins Cunha e
Amazildes Nunes Sena (in memoriam), minhas
avós, e
Rosângela Nunes Sena,
minha mãe.
Aquarela do tempo
Na fumaça do tempo,
Eu vejo um passado verde
Amadurecendo pouco a pouco,
Não envelhecido pelo tempo,
Nem amedrontado pelo tempo,
Sim, aprendendo com o tempo.
Tempo de cores mil,
Azul do céu, azul anil.
Sinto o cheiro do tempo de menino
Na cor do tempo que me lembro,
O tempo todo fazendo e desfazendo.
E eu vou seguindo e construindo
A história do meu tempo.
Regiomar Silva
RESUMO
Este trabalho tem como objetivo estudar o processo de urbanização do povoado de Eunápolis
entre os anos de 1970 e 1988. Durante a temporalidade abordada, o extremo sul da Bahia
passou pelo programa de integração nacional, promovido pelo governo federal em conjunto
com o governo do estado, projeto que previa desenvolver a regiões ainda pouco exploradas
economicamente. Acompanhando os rumos tomados para a região, o povoado, que, nesse
período, pertencia a Porto Seguro e Santa Cruz Cabrália, também foi projetado através de
diretrizes e ações pensadas pelo Poder Público municipal e estadual para o seu
desenvolvimento ordenado. Na dinâmica de criar uma paisagem citadina, espaços foram
remodelados, práticas e sujeitos foram silenciados, a partir de enunciados produzidos pelas
instâncias de governança e pela imprensa, com o propósito de legitimar os caminhos
progressistas que deveriam ser trilhados. O intuito é problematizar como ele foi projetado
como polo urbano regional e como as representações difundidas sobre o progresso e o atraso
tiveram influência na manutenção de alguns de seus espaços.
Palavras-chave: Urbanização. Enunciação. Desenvolvimento. Representação. História.
ABSTRACT
This work is a study of the urbanization process of Eunápolis between 1970 and 1988. During
that time frame, the far southern Bahia went trough the national integration program,
promoted by the federal government together with the state government. This project
envisioned to develop the regions not so economically exploited. Following the path taken by
the region, Eunápolis, which belonged with Porto Seguro and Santa Cruz Cabrália by then,
has also been projected trough actions and policies thought by the city and the state
governments for its ordinated development. In order to create a urban environment, spaces
have been remodelled, subjects and practices have been silenced, stem from statements
produced by governing instances and the press, with the objective of legitimating the
progressive paths that were supposed to be trodden. The intention is discussing how it was
projected as a region's urban center, and also how the disseminated representations about the
progress and the backwardness influenced the maintenance of some of its spaces.
Key words: Urbanization. Enunciation. Development. Representation. History.
LISTA DE ABREVIATURAS
ABNT Associação Brasileira de Normas Técnicas
APBCEB Arquivo Público da Biblioteca Central do Estado da Bahia
APMCVE
Arquivo Público Municipal da Câmara de Vereadores de Eunápolis
APMSCC
Arquivo Público Municipal de Santa Cruz Cabrália
ARENA Aliança Renovadora Nacional
BNB
Banco do Nordeste do Brasil S.A.
BNH
Banco Nacional da Habitação
BRALANDA
Brasil Holanda Indústria S.A
CEAME
Centro Eunapolitano de Assistência ao Menor
CEDURB
Companhia de Desenvolvimento Urbano
CEPEDES
Centro de Pesquisa e Documentação do Extremo Sul
CEPLAC
Comissão Executiva do Plano da Lavoura Cacaueira
CPM
Código de Posturas Municipais
CVRD
Companhia Vale do Rio Doce
DEPIN
Departamento de Polícia do Interior
DESENBANCO Banco de Desenvolvimento do Estado da Bahia
EMBASA
Empresa Baiana de Águas e Saneamento S.A
FIBGE
Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
FIDENE
Fundo de Investimentos para o Desenvolvimento Econômico e Social do
Nordeste
FLONIBRA
Florestas Nipo Brasileiras Empreendimentos Florestais S.A.
FUNAI
Fundação Nacional do Índio
HDBN Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional
IBDF Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal
IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
INAMPS
Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social
INPS
Instituto Nacional de Previdência Social
IPAC
Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural
DERBA Departamento de Estradas e Rodagens da Bahia
MDB Movimento Democrático Brasileiro
PDS
Partido Democrático Social
PLANDEU
Plano Diretor Urbano de Eunápolis
PLANHAP
Plano Nacional de Habitação Popular
PM
Polícia Militar
PROFILURB
Programa de Financiamento de Lotes Urbanos
SEPLANTEC
Secretaria do Planejamento Ciência e tecnologia
SFH
Sistema Financeiro de Habitação
SPI
Serviço de Proteção ao Índio
SUDENE
Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste
UFM
Unidade Fiscal Municipal
LISTA DE TABELAS
Tabela 1 - Utilização das terras no Extremo Sul da Bahia, 1970-1985................
54
Tabela 2 - População residente por situação de domicílios 1970-1991, Extremo
Sul da Bahia.........................................................................................
60
Tabela 3 - Crescimento demográfico de Eunápolis de 1951 a 1986.....................
70
Tabela 4 - Utilização dos Imóveis em Eunápolis em 1975...................................
126
Tabela 5 - Renda individual da população economicamente ativa em Eunápolis
no ano de 1975.....................................................................................
128
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura 1 - Representação cartográfica do Extremo Sul da Bahia........................
15
Figura 2 - Processo de diminuição da cobertura vegetal no Extremo Sul da
Bahia, 1945-1990.................................................................................
53
Figura 3 - Fluxo de comércio do Extremo Sul da Bahia......................................
64
Figura 4 - Núcleo emergente do Bairro Rosa Neto..............................................
80
Figura 5 - Núcleo urbano original do povoado de Eunápolis...............................
82
Figura 6 - Propaganda de venda de materiais de construção................................
89
Figura 7 - Fotografia da feira na Avenida Santos Dumont..................................
99
Figura 8 - Charge sobre a volta de ―Bigode de Ouro‖.........................................
120
Figura 9 - Praça Frei Calixto................................................................................
145
Figura 10 - Fonte luminosa na Praça da Bandeira..................................................
148
Figura 11 - Avenida Porto Seguro..........................................................................
152
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO .................................................................................................... 13
2 SOB OS DITAMES DO “PROGRESSO”: O EXTREMO SUL DA BAHIA,
EUNÁPOLIS E SUA PROJEÇÃO COMO “CAPITAL REGIONAL” .........
29
2.1 UM BREVE RELATO SOBRE A PRESENÇA INDÍGENA NO EXTREMO
SUL BAIANO ........................................................................................................
31
2.2 ―A RECUPERAÇÃO DA CAPITANIA DE PORTO SEGURO‖: O
DESENVOLVIMENTO E SEUS FRUTOS ..........................................................
40
2.3 UM ―POLO REGIONAL‖ .................................................................................... 62
3 A PRODUÇÃO DO ESPAÇO URBANO EUNAPOLITANO: NUANCES
DA PLANIFICAÇÃO E NORMATIZAÇÃO DOS USOS DOS ESPAÇOS
PARA A CONSOLIDAÇÃO DA CIDADE IDEAL .........................................
67
3.1
A CIDADE E A ILUSÃO: CONFLITOS E CONTRADIÇÕES NA
FORMAÇÃO DO CENTRO URBANO ...............................................................
68
3.2 O PLANO E A CIDADE: UM PROJETO DE URBANIZAÇÃO PARA O
POLO REGIONAL ................................................................................................
75
3.3 A CIDADE E A LEI: A PROJEÇÃO DO ESPAÇO EUNAPOLITANO E
SEUS USOS............................................................................................................
94
4 DISCURSO, REPRESENTAÇÕES E IMAGINÁRIO SOBRE “O MAIOR
POVOADO DO MUNDO” ..................................................................................
108
4.1 ―CORRIDA AO OURO EM CAMPOS DE FAROESTE‖:
REPRESENTAÇÕES DA VIOLÊNCIA EM EUNÁPOLIS ................................
110
4.2 O SONHO DE GRANDEZA DO ―MAIOR POVOADO DO MUNDO‖ .............
125
4.3 DO ―LIXO AO LUXO‖: AS REPRESENTAÇÕES DOS ESPAÇOS
URBANOS DO POVOADO .................................................................................
132
CONCLUSÃO .............................................................................................................. 155
REFERÊNCIAS ............................................................................................................ 159
FONTES ........................................................................................................................ 164
13
1 INTRODUÇÃO
Quem vai a Olinda com uma lente de aumento e procura com atenção pode
encontrar em algum lugar um ponto não maior que a cabeça de um alfinete que um
pouco ampliado mostra em seu interior telhados antenas claraboias jardins tanques,
faixas através das ruas, quiosques nas praças, pistas para as corridas de cavalos.
Aquele ponto não permanece imóvel: depois de um ano, já está grande com um
limão; depois, como um cogumelo; depois, como um prato de sopa. E eis que se
torna uma cidade de tamanho natural, contida na primeira cidade: uma nova cidade e
impele-a para fora.1
Reza a narrativa de fundação do povoado de Eunápolis que no dia 5 de novembro de
1950 foi realizada uma missa campestre, a primeira missa acontecida no povoado, ministrada
pelo padre Emiliano Gomes Pereira e considerada como marco de fundação do povoado, no
local onde hoje se localiza a Praça da Bandeira. Em seu sermão, o padre vaticinou que: ―[...]
aqui, surgirá um grande povoado, onde cristãos gritarão bem alto os nomes de Jesus, da Bahia
e do Brasil; e que ‗será um grande centro progressista‘‖2, como se, numa profecia, essas
palavras selassem o destino promissor de Eunápolis.
Discursos como o da citação no parágrafo anterior, que fazem a ligação de Eunápolis
com o enunciado de progresso3, foram reproduzidos em diversos meios difusores, como
jornais e revistas, principalmente entre as décadas de 1970 e 1980, projetando um imaginário
de grandeza e crescimento acelerado para o povoado.
O processo de desenvolvimento econômico do Extremo Sul baiano desencadeou um
grande contingente populacional que se deslocou da zona rural da região e de outras cidades e
lugarejos, bem como de outros estados brasileiros para Eunápolis. A relação do fluxo campo-
cidade fez-se presente na formação do povoado, bem como a vontade do poder público
estadual e municipal de modelar o povoado com caracteres urbanos, tanto nas práticas e nos
usos dos espaços da urbe como na produção de suas materialidades.
O objetivo deste trabalho é analisar como o povoado foi projetado como importante
centro urbano regional, tanto discursiva, através dos meios impressos, como materialmente, a
partir das transformações urbanas. Nossa intenção é traçar a formação do povoado,
1 CALVINO, Ítalo. As cidades invisíveis. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. p. 119.
2 PREFEITURA MUNICIPAL DE SANTA CRUZ CABRÁLIA (Bahia). Eunápolis (O maior Povoado do
Mundo). Revista A VOZ DOS MUNICÍPIOS, 1984, p. 49. 3 Progresso, nesta pesquisa, é entendido como um termo de cunho capitalista, um avanço ligado ao
desenvolvimento e às melhorias. Para o Novo Dicionário Aurélio, progresso se refere à acumulação de aquisição
de bens materiais e de conhecimentos objetivos capazes de transformar a vida social e de conferir-lhe maior
significação e alcance no contexto da experiência humana; civilização, desenvolvimento. In: FERREIRA,
Aurélio. Século XXI: o dicionário da língua portuguesa. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. p.1646.
14
problematizando as representações difundidas sobre ele e de que forma foram utilizadas como
instrumentos políticos.
Antes de partir mais diretamente para a discussão do objeto deste trabalho em si,
gostaria de tecer, em poucas linhas, algumas considerações sobre o meu envolvimento com a
temática aqui abordada, ou seja, em termos certeaunianos, o meu ―lugar social‖. Segundo
Certeau, toda produção historiográfica parte de um lugar social, onde foram tecidas as
experiências, as intenções e os posicionamentos do pesquisador, bem como as estruturas
institucionais que lhe permitam a prática da pesquisa e a materialização desse resultado em
forma de escrita. A isso o autor chamou de prática historiográfica. 4
Como filho de uma professora e de um pequeno agricultor, os diálogos entre o rural e
o urbano estiveram presentes em toda nossa trajetória de vida, tida, em boa parte, na
interiorana Ibicaraí, uma pequena cidade do sul da Bahia, distante aproximadamente 245
quilômetros de Eunápolis, via BR 101. Morar na cidade, intercalado com o convívio na roça,
dinâmica entre as duas realidades que mantém entre si uma relação de interdependência, fez
parte da experiência de quem vos escreve.
O contato inicial com o nosso objeto de estudo deu-se ao mesmo tempo em que
acessamos a academia, em Eunápolis, no campus XVIII da Universidade do Estado da Bahia
(UNEB). Esta relação se estende desde a graduação até o mestrado, na Universidade Estadual
de Feira de Santana (UEFS), em que, entre o cotidiano experienciado através do morar em
Eunápolis, as andanças em arquivos e as boas conversas em busca de informações, surgiram
os questionamentos que deram origem a esta dissertação.
Eunápolis encontra-se na região definida geograficamente como Extremo Sul da
Bahia. Atualmente, o município faz divisa com os municípios: ao norte, com Belmonte,
Itapebi e Itagimirim; ao leste, com Santa Cruz Cabrália e Porto Seguro; a oeste, com
Guaratinga; e ao sul, com Itabela (Figura 1, a seguir).
4 In: CERTEAU, Michel. A Escrita da História. Tradução: Maria de Lourdes Menezes. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 1982.
15
Figura 1 – Representação cartográfica do Extremo Sul da Bahia5
Fonte: Malina6
Segundo Lacerda7, a área que pertence atualmente ao município passou a ser ocupada
por não indígenas desde os primórdios da década de 1940, afirmação que também está
presente nos relatos de Moisés Reis8. Durante as décadas de 1950-1980, principalmente após a
conclusão das obras da BR-101 em 1973, a região passou a receber um grande contingente de
migrantes de outros municípios baianos e estados brasileiros.
Neste contexto, o povoado destacou-se como polarizador9 de demandas migratórias do
Extremo Sul baiano, chegando a superar em número as populações dos seus municípios sedes,
o que o tornou foco de disputas pelos espaços rurais e urbanos. Esse espaço esteve dividido
até o ano de 1988, ano de sua emancipação, entre as cidades de Santa Cruz Cabrália e Porto
5 Adaptações do original feitas por Levi Sena Cunha.
6 MALINA, Léa Lameirinhas. A territorialização do monopólio no setor celulístico-papeleiro: a atuação da
Veracel Celulose no Extremo Sul da Bahia. 2013. Dissertação (Mestrado em Geografia Humana) – Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013. p. 169. 7 LACERDA, Alcides. O Fundador de Eunápolis, Sessenta e Quatro e os Anjos da Traição. Radami: Editora
Gráfica, 2003. 8 QUEIROZ, Jeová Franklin de. Revista Eunápolis. Fortaleza: Banco do Nordeste do Brasil, 1985.
9 COMPANHIA DE DESENVOLVIMENTO E AÇÃO REGIONAL (CAR). Política de desenvolvimento para
o extremo sul da Bahia. Salvador, 1994, p. 21. (Série cadernos CAR, 3).
16
Seguro, onde, após anos de litígio entre as municipalidades, foi fixado, em 1965, que a
primeira era responsável pela administração de 80% e a segunda 20% do povoado.
Os conflitos no povoado não se restringiram ao litigo entre os dois municípios. As
disputas entre fazendeiros, grileiros, posseiros, indígenas e migrantes pela posse de terras
permearam a sua história. Com a instalação de fazendeiros e a chegada de uma massa de
migrantes, ocorreram diversas contendas pelo uso de áreas rurais e urbanas na região de
Eunápolis.
Uma das primeiras ondas de apropriação conflituosa das terras por migrantes,
iniciadas nos primeiros anos da década de 1950, resultou na intervenção do secretário de
Viação e Obras do Estado da Bahia, Eunápio Peltier de Queirós, quando fora adquirida pelo
Departamento de Estradas e Rodagens da Bahia (DERBA) uma área de algumas das fazendas,
com o intuito de amenizar as contendas agrárias. O ato do secretário rendeu-lhe posição
emérita na memória do povoado, que recebeu o nome10
de Eunápolis ou cidade de Eunápio,
em sua homenagem.
Mesmo com a ação do governo de comprar as terras e redistribuí-las, as contendas não
findaram por aí; entre elas, as mais tensas de que se tem registro ocorreram em 1957, entre os
anos de 1962 e 1964, e em 1975.11 O cenário conflituoso de Eunápolis também foi percebido
em outros espaços do Extremo Sul baiano, como aponta Alves12 e D‘Icarahy13. Ambos tratam
como objeto de estudo as disputas por terra ocorridas no extremo sul da Bahia, sendo que a
primeira aborda a temporalidade entre 1964-1985; e, a segunda, entre os anos de 1975 e 1989.
Experiências conflituosas não se restringiram somente ao Extremo Sul da Bahia. Em
outros estados do Nordeste brasileiro, também se acirraram as disputas por terras, como em
Pernambuco entre as décadas de 1950-60, quando trabalhadores rurais se articulam em ligas
camponesas contra os interesses das elites agrárias.14
As disputas pelos espaços no povoado que iam se configurando não impediram a sua
expansão urbana e nem a chegada de melhorias. Investimentos no desenvolvimento da urbe
por parte do poder público de Porto Seguro e de Santa Cruz Cabrália, principalmente deste
10
Antes de receber o nome de Eunápolis, o povoado foi chamado de Sapucaeirinha, Quilômetro 64, Nova
Floresta e Ibiapina. In: GUERRA, Teoney. Revista Eunápolis Passado, presente e futuro. Eunápolis:
Secretaria Municipal de Educação, Cultura e Esporte, 2010. 11
SANTIAGO, Luís. O Vale dos Boqueirões: História do Vale do Jequitinhonha. Almenara: Boca das
Caatingas, 1999, p. 98. v.1. 12
ALVES, Leonardo do Amaral. Experiências forjadas a ferro e fogo: religiosidade, organicidade e luta pela
terra no Extremo Sul da Bahia no contexto da ditadura civil-militar (1978-1985). 2017. Dissertação (Mestrado
em História) – Universidade Estadual de Feira de Santana, 2017. 13
D‘ICARAHY, Leonardo Dantas. O Sonho da Terra: Trabalhadores Rurais e o Surgimento do MST na Bahia
(1975-1989). 2018. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2018. 14
MONTENEGRO, Antonio Torres. História, Metodologia, Memória. São Paulo: Contexto, 2010.
17
último, tendo em vista a transferência da sede dos seus poderes executivo e legislativo para
Eunápolis.15
Um conjunto de transformações urbanas foram projetadas e empreendidas pelos
poderes públicos municipais e estaduais, com a pretensão de alçar Eunápolis como lugar de
progresso. Entre as décadas de 1970 e 1980, o povoado vivenciou a instalação da rede
elétrica; a chegada da água encanada; o calçamento de ruas; a construção de equipamentos e
de novos espaços (como a rodoviária, o ginásio de esportes, hospitais e escolas); o
melhoramento das praças e das feiras livres; entre outras ações. Neste mesmo período, o
povoado alçou uma considerável alavancada econômica, tendo como base a extração e o
beneficiamento da madeireira, o comércio e a agropecuária, além de uma explosão
demográfica.
Eunápolis passava por um processo de transformação de suas estruturas urbanas em
conjunto com o crescimento econômico local e regional. Para o urbanista Singer, a
―urbanização estaria associada a uma visão de desenvolvimento em que ela seria um processo
inexorável‖.16 Singer acreditava que o desenvolvimento econômico seria uma ferramenta de
transformação social, não geradora de exclusão/marginalização urbana, caminhando assim de
mãos dadas com a urbanização. O problema é de que forma ele se dá.17
Para além das intervenções em sua estrutura física, a projeção do povoado também
ocorreu no campo do discurso, no qual o jogo de forças se deu, no sentido de controlar a
produção discursiva sobre o povoado. Documentos impressos de origens diversas
reproduziram falas sobre o urbano, buscando construir uma visão sobre o povoado, assim
como ditando quais estéticas e quais vivências deveriam compor sua paisagem. Nossa
intenção é de ―rachar, abrir as palavras, as frases e as proposições para extrair delas os
enunciados‖,18 buscando, assim, problematizar a produção de ―verdades‖ que proporcionaram
formas de ver o que foi dito como ―o maior povoado do mundo‖.
O enunciado encontra-se ligado a um referencial que não se constitui de coisas, de
fatos, de realidades, ou de seres, mas de leis que ordenam as possibilidades. As regras que
caracterizam a formulação enunciativa são voltadas para os objetos que nela se encontram
nomeados, designados ou descritos, e também para as relações afirmadas ou negadas, que dão
15
Levi Sena Cunha aponta em sua pesquisa algumas das transformações urbanas ocorridas no povoado de
Eunápolis entre as décadas de 1970 e 1988. CUNHA, Levi Sena. Cidade e Memória: Urbanização e Conflitos
na Eunápolis dos anos de 1970 a 1988. 2014. Monografia (Graduação em História) – Universidade do Estado da
Bahia, campus XVIII, Eunápolis, 2014. 16
SINGER, Paul. Urbanização e desenvolvimento. Belo Horizonte: Autêntica Editora; Editora Fundação
Perseu Abramo, 2017. p. 8. 17
Ibid. 18
DELEUZE, Gilles. Foucault. São Paulo: Brasiliense, 2006. p. 61.
18
a esses elementos condição de existência. Na função que exerce, o referencial do enunciado
forma o ―lugar, a condição o campo de emergência, a instância de diferenciação dos
indivíduos ou dos objetos, dos estados de coisas e das relações que são postas em jogo pelo
próprio enunciado‖; é ele quem possibilita o aparecimento do que dá sentido à frase e valor de
verdade à proposição, ou seja, o enunciado autoriza a existência e a legitimidade do ato de
fala.19
A condição para que haja enunciado se liga à existência de linguagem. Ela tem o poder
de ―designar, de nomear, de mostrar, de fazer aparecer, de ser lugar do sentido e da verdade‖,
sendo que cada época reúne, à sua maneira, as linguagens em função de seu corpus. As
visibilidades têm a ver com o que é evidenciado, dado a ver, colocado sob luzes. Os locais de
visibilidade têm sua condição de visível atrelada ao agenciamento de coisas e combinações de
qualidades, a um jogo de formas de luz que distribuem o ―claro e o obscuro, o opaco e o
transparente, o visto e o não visto‖.20
Combinados entre si, o dizível e o visível determinam as condições para a constituição
dos saberes alocados em determinado momento histórico; ―o saber é um agenciamento
prático, um ‗dispositivo‘ de enunciados e visibilidades‖.21 Para Foucault, existe o primado da
enunciação sobre o visível, o que não torna o visível redutível historicamente. Segundo ele, as
dizibilidades são determinantes, enquanto as visibilidades são determináveis, ou seja, há o
primado da primeira sobre a segunda.
Ancorados nos estudos sobre enunciação propostas por Michel Foucault, foi possível
pensar a produção discursiva sobre Eunápolis. O nosso caminho será trilhado percorrendo as
veredas traçadas pelos enunciados que constituíram os saberes e determinaram formas de ver
o urbano. É sabido que, na sociedade moderna, não se pode dizer tudo, não se tem o direito de
falar tudo, nem por qualquer um, ou sobre qualquer tema e em qualquer circunstância.
Existem exclusões e interdições que controlam a produção discursiva, revelando as relações
de força que a envolvem. Neste sentido, concordamos com Foucault quando ele supõe que:
[...] em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada,
selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que têm
por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório,
esquivar sua pesada e temível materialidade. 22
19
FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012. p. 111. 20
DELEUZE, Gilles. Foucault. São Paulo: Brasiliense, 2006. p. 66. 21
Ibid. 22
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso: aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de
dezembro de 1970. 20. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2010. p. 9.
19
O poder de controle da produção discursiva sobre Eunápolis, que interdita ou autoriza
a fala, obstrui ou ilumina visibilidades, bem como legitima ou deslegitima saberes, os quais
são contemporâneos ao seu tempo e modificam-se de acordo com as transformações
históricas, produzindo, assim, formas de ver e de dizer o povoado, correspondentes à sua
época.
Tomando como objeto de análise a produção discursiva encontrada em literaturas de
circulação local e em outras regiões, fotografias e documentos podem ser tomados como
instrumentos de produção de visões sobre o nosso objeto. Esses escritos, em especial os
emitidos pelo Estado, funcionam também como instrumentos de ordenamento do povoado –
no caso do ordenamento urbano, as Posturas Municipais e o Plano Diretor Urbano de
Eunápolis (PLANDEU) exercem função disciplinar fundamental –, criando diretrizes para os
usos dos espaços e produzindo sensibilidades.
As narrativas articuladas por entidades e pessoas com o poder de fala, como
jornalistas, memorialistas, políticos e escritores diversos, veicularam um conjunto de
representações. Acreditamos que o conceito de representação utilizado, a partir da noção de
Chartier, seja a manifestação de como os atores sociais pensam que a sociedade é ou como
gostariam que esta fosse.23
O conjunto de dizibilidades exploradas pela imprensa, enunciando as vontades
daqueles que idealizaram o modelo de desenvolvimento para Eunápolis, foram presentes no
cotidiano de habitantes do povoado, bem como no de outras localidades. Essa produção
discursiva agiu configurando um imaginário urbano sobre o povoado, a partir das
representações de lugar da promissão ou o ―maior povoado do mundo‖, assim como o lugar
violento e de contradições entre o ―progresso‖ e o ―atraso‖.
Nossa concepção de imaginário parte das noções de Pesavento, que afirma que ―o
imaginário urbano, como todo o imaginário, diz respeito a formas de percepção, identificação
e atribuição de significados ao mundo, o que implica dizer que trata das representações
construídas sobre a realidade — no caso, a cidade‖.24 Analisaremos o imaginário sobre
Eunápolis, como uma forma de projeção do povoado almejado através das concepções acerca
do mesmo.
O imaginário funciona como um motor que impulsiona as ações humanas, ou seja, é
―esse agente de atribuição de significados à realidade, é o elemento responsável pelas criações
23
CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. 2. ed. São Paulo: Difel, 2002. 24
PESAVENTO, Sandra Jatahy. Cidades visíveis, cidades sensíveis, cidades imaginárias. Revista Brasileira de
História, v. 27, n. 53, jan.-jun., 2007, p. 11-23. Associação Nacional de História São Paulo, Brasil. p. 15.
20
humanas‖.25 Consideramos que as representações sobre a condição agigantada de Eunápolis
evidenciam algumas ações, por parte do poder público, para a manutenção dessa imagem
sobre seu espaço urbano.
Para entendermos a disseminação de concepções sobre o crescimento de Eunápolis,
levantamos a hipótese da articulação de grupos políticos que evidenciaram o discurso de
grandeza do povoado com o intuito de se vincular ao discurso de progresso. Neste sentido,
Chartier auxilia-nos a entender o jogo de representações criado através da proliferação de
discursos proferidos em jornais e revistas sobre o desenvolvimento do povoado, em que eles,
―[...] embora aspirem a universalidade de um diagnóstico fundado na razão, são sempre
determinadas pelos interesses de grupo que as forjam‖26. Não é do interesse deste trabalho
afirmar que a narrativa de ―maior povoado do mundo‖ foi criada por grupos políticos do
período tratado, mas relacionar os discursos com a posição de quem se apropria deles.
Os atores políticos, a todo o tempo, buscaram realizar a manutenção dos espaços, dos
seus usos e das práticas cotidianas dos sujeitos que os ocupavam com o objetivo de embelezar
o povoado, dando a ele ares de um importante centro progressista. A modificação nos espaços
urbanos realizada pelos grupos gestores tem por objetivo criar uma imagem sobre a cidade,
inscrevendo, em suas páginas, como num texto, seus ideais políticos, arquitetônicos e
paisagísticos; bem como apagando delas o que destoasse desse projeto de cidade ideal.
Pensando a cidade como se fosse um texto, existe a importância da manutenção da
escrita em seus espaços:
[...] a escrita teve por missão conjurar contra a fatalidade da perda. [...]
Paradoxalmente, seu sucesso poderia criar, talvez, outro perigo: o de uma
proliferação textual incontrolável, de um discurso sem ordem e sem limites. O
excesso de escrita, que multiplica os textos e abafa o pensamento sob o acúmulo de
discursos, foi considerado um perigo tão grande quanto seu contrário, assim como o
esquecimento também o é para a memória.27
Neste sentido, monumentos, personagens, acontecimentos são inscritos, rememorados
enquanto outros são apagados, silenciados, esquecidos pelo projeto que se almejava para a
cidade. Ainda pensando a cidade como uma inscrição no espaço, Orlandi corrobora com a
discussão quando fala da existência de uma ―política do silêncio‖ em que, ao registrarmos
25
Ibid., p. 11. 26
CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. 2. ed. São Paulo: Difel, 2002, p. 17. 27
CHARTIER, Roger. Inscrever e apagar: cultura escrita e literatura nos séculos XI-XIII. São Paulo: Editora
UNESP, 2007. p. 9.
21
algo, ―apagamos necessariamente outros sentidos possíveis, mas indesejáveis, em uma
situação discursiva dada‖.28
Em se tratando de Eunápolis, alguns elementos foram preservados: a Praça da
Bandeira foi reformada na década de 1980 e recebeu o busto e o nome de Eunápio Peltier; a
Praça Frei Calixto, mais conhecida como Praça da Matriz, também reformada na década de
1980; o Ginásio de Esportes Antônio Carlos Magalhães e a Rodoviária Demétrio Couto
Guerrieri, inaugurados na década de 1980; a Avenida Porto Seguro, evocada em reportagens
como representante do progresso eunapolitano. Os monumentos preservados reforçavam uma
narrativa que consolida a memória do lugar, assim como o enunciado corrente nos meios de
comunicação como o desenvolvimento do povoado que ―cresce da noite para o dia e hoje tem
seu lugar de merecido destaque‖.29
Em oposição ao que deveria representar a cidade, há os espaços e sujeitos que foram
apagados no espaço e nas narrativas sobre história do povoado: o cemitério do Pequi, que
cedeu lugar à Praça do Pequi; a ―Feira do Fato‖ e a ―Favela do Fato‖, que foram urbanizadas,
lugares onde surgiu a proposta, por parte do Poder Público de Santa Cruz Cabrália, de uma
parte dos seus moradores e feirantes serem realocados para outros espaços; e o silenciamento
dos povos indígenas, habitantes originários de toda a região do extremo sul e, em especial, do
povoado.
A fim de realizar uma produção historiográfica sobre o nosso objeto de estudo, é
interessante que seja feita uma breve reflexão sobre o conhecimento histórico já produzido
sobre Eunápolis. O diálogo com experiências anteriores é uma especificidade da historiografia
na qual:
O caráter auto-reflexivo do conhecimento histórico talvez seja o maior diferenciador
da História no conjunto das ciências humanas. [...] Não nos é dado supor que
partimos de um ―ponto-zero‖, decretando a morte cívica de todo um elenco de
pessoas que, em diversas gerações, e à luz delas voltou-se a este ou aquele objeto
que porventura nos interessa atualmente. Devido a uma característica básica do
conhecimento histórico, que é a sua própria historicidade, temos de nos haver com
todas as contribuições dos que nos antecederam. Essa propriedade eleva a crítica
historiográfica a fundamento do conhecimento histórico.30
28
ORLANDI, Eni Pucinelli. As formas do silêncio: no movimento dos sentidos. 6. ed. Campinas: Editora da
Unicamp, 2007. p. 73. 29
DA SUCURSAL Extremo Sul por Elber Suzano. Eunápolis é um povoado abençoado duplamente. A Tarde.
p. 15, 4 nov. 1985. APBCEB. 30
MALERBA, Jurandir. Teoria e história da historiografia. In: MALERBA, Jurandir (org.). A história escrita:
teoria e história da historiografia. São Paulo: Contexto, 2006. p. 15.
22
No levantamento das pesquisas na área da História que versam sobre Eunápolis e
região, encontramos algumas monografias de conclusão de curso que se aproximam de nossa
temática. Esses estudos são resultado do desenvolvimento de trabalhos de conclusão de curso
(TCCs) da graduação em História, localizada no Departamento de Ciências Humanas e
Tecnologias (DCHT) campus XVIII da Universidade do Estado da Bahia - UNEB, que foram
possibilitados pelo processo de interiorização das universidades públicas.
Quanto a dissertações de mestrado e teses de doutorado em História sobre nosso
objeto, ainda não tivemos contato com nenhuma, para além das que estão sendo produzidas.
Isto nos leva a deduzir que, mesmo com avanços da interiorização dos cursos de pós-
graduação, – vale dizer que nossa pesquisa pela Universidade Estadual de Feira de Santana
(UEFS) foi possibilitada por esse processo –, que permitiram e permitem a maior
acessibilidade aos estudantes não residentes na capital de participarem de programas de
mestrado e doutorado, ainda há poucas pesquisas na área. Contudo, esta lacuna insere nossa
pesquisa como uma importante contribuição à historiografia baiana, pois analisa uma região e,
mais especificamente, uma cidade que esteve na periferia das discussões históricas e
historiográficas dos cursos de pós-graduação no nível de mestrado e doutorado.
Estudos relacionando a história de Eunápolis sobre diversas temáticas e
temporalidades vêm sendo desenvolvidos pelos estudantes da UNEB31. Dentre esses
31
Ver LIMA, André de Jesus. A cidade das mulheres: o poder feminino no candomblé da cidade de Eunápolis
(1970 – 2014). 2015. Monografia (Graduação em História) – Universidade do Estado da Bahia, DCHT campus
XVIII, Eunápolis, 2015; QUEIROZ, Marcos Oliveira de. Porque o reino é do senhor: disputas eleitorais no
extremo sul da Bahia um olhar sobre a Assembleia de Deus em Eunápolis (1988-2012). 2017. Monografia
(Graduação em História) – Universidade do Estado da Bahia, DCHT campus XVIII, Eunápolis, 2017; SANTOS,
Lecival Alves dos. Expansão do protestantismo em Eunápolis 1950-1980. 2013. Monografia (Graduação em
História) – Universidade do Estado da Bahia, DCHT campus XVIII, Eunápolis, 2013; ALMEIDA, Ezequiel de
Oliveira. História e Religiosidade: A igreja Assembleia de Deus e a implantação do protestantismo cristão em
Eunápolis-BA. 2010. Monografia (Graduação em História) – Universidade do Estado da Bahia, DCHT campus
XVIII, Eunápolis, 2010; CANCIAN, Maria Rosa; BARBOSA, Nilson Rodrigues. História de vida de Iracy
Pereira dos Reis 1970 a 2008. 2010. Monografia (Graduação em História) – Universidade do Estado da Bahia,
DCHT campus XVIII, Eunápolis, 2010; REIS, Ariorlando Melgaço. Moisés Reis: Uma História de Vida. 2010.
Monografia (Graduação em História) – Universidade do Estado da Bahia, DCHT campus XVIII, Eunápolis,
2010; REBOUÇAS, João Rafael Santos. Memória e narrativa em O fundador de Eunápolis: a escrita da
história como leitura da experiência do tempo. 2015. Monografia (Graduação em História) – Universidade do
Estado da Bahia, DCHT campus XVIII, Eunápolis, 2015; PEREIRA, Orsione Alves. Entre músicas, danças e
santos: festa de São Cosme e Damião em Eunápolis – um elo entre a história e a memória coletiva. Monografia
(Graduação em História) – Universidade do Estado da Bahia, DCHT campus XVIII, Eunápolis, 2015; CUNHA,
Ana Paula Lima. Eunápolis: Processo de Formação Identitária da Emancipação aos dias atuais (1988- 2010).
2010. Monografia (Graduação em História) – Universidade do Estado da Bahia, DCHT campus XVIII,
Eunápolis, 2010; ARAÚJO, Maria Marineide de. Prostituição Feminina em Eunápolis na década de 1960: Do
Prostíbulo à Vida Familiar. 2009. Monografia (Graduação em História) – Universidade do Estado da Bahia,
DCHT campus XVIII, Eunápolis, 2009; OLIVEIRA, Maria Eunice Marques Santos. Por elas os sinos
dobravam: Concursos de Transformistas em Eunápolis (1985-1999). 2018. Monografia (Graduação em
História) – Universidade do Estado da Bahia, DCHT campus XVIII, Eunápolis, 2018; SILVA, Regiomar Santos.
GABIARRA: história e memória através de um contador de causos. 2015. Monografia (Graduação em História)
– Universidade do Estado da Bahia, DCHT campus XVIII, Eunápolis, 2015; SAMPAIO, Rizia Rocha.
23
Trabalhos de Conclusão de Curso, alguns discutiram mais diretamente o domínio da história
urbana, trilhando pelos caminhos do patrimônio histórico e da modernização urbana.
Entre esses trabalhos, inclui-se o artigo de conclusão de curso escrito por Sacramento
e Silva: ―O Cruzeiro de Eunápolis: marco simbólico político e religioso‖. Seu texto abordou
O Cruzeiro que existiu na Praça da Bandeira, que funcionou como marco da fundação do
povoado, abrigando a primeira missa ministrada pelo Padre Emiliano Gomes Pereira, em
1950. 32
Utilizando-se de relatos orais, documentos cedidos pela Diocese de Eunápolis e
publicações sobre a História da cidade, a pesquisa objetivou analisar o monumento como
significante político e religioso, relacionando-o com o Cruzeiro erguido na primeira missa
realizada em 1500 pelo Frei Francisco Henrique de Coimbra na costa da então denominada
―Terra de Santa Cruz‖. Os autores problematizaram o Cruzeiro enquanto patrimônio
eunapolitano, a partir de sua relação simbólica com a história e a memória local.
Outro estudo unebiano que se desenvolveu com a temática em torno da memória e do
patrimônio histórico de Eunápolis foi o artigo de conclusão de curso ―Igreja de Nossa Senhora
Auxiliadora: um patrimônio da cultura e da história de Eunápolis-BA‖, escrito por Andrade e
Gomes. 33 A pesquisa usou fontes orais, documentação da Diocese de Eunápolis, publicações
locais e documentos do Legislativo Federal para abordar sobre a Igreja de Nossa Senhora
Auxiliadora, inaugurada em 1959, como um marco para a expansão da fé católica em
Eunápolis e para a existência da possibilidade de seu esquecimento com a construção da
Paróquia Nossa Senhora Auxiliadora localizada em outro espaço da cidade.
Partindo para outra perspectiva de estudo sobre a cidade que foge da noção de
patrimônio, Rocha, com o artigo de conclusão do curso de título: ―E no apagar dos lampiões,
surge a energia elétrica: Eunápolis e as transformações advindas do processo da chegada da
Lembranças, História e Memória da Comunidade da Colônia. 2013. Monografia (Graduação em História) –
Universidade do Estado da Bahia, DCHT campus XVIII, Eunápolis, 2013; GRADIL, Eulino Pires; COSTA,
Márcia Thayane Gomes. Um olhar sobre a história local: histórico da Associação Sos Vida-Nossa Senhora do
Amparo. 2010. Monografia (Graduação em História) – Universidade do Estado da Bahia, DCHT campus XVIII,
Eunápolis, 2010; ROBERTO, Elane de Souza; RAMOS, Sônia Siqueira Jardim. História e Morte: Gabiarra e
seus rituais fúnebres na década de 50. 2009. Monografia (Graduação em História) – Universidade do Estado da
Bahia, DCHT campus XVIII, Eunápolis, 2009; MORAIS, Marisa Martins de Oliveira. Entre linhas e agulhas:
costurando a memória dos alfaiates de Eunápolis (1990-2010). 2017. Monografia (Graduação em História) –
Universidade do Estado da Bahia, DCHT campus XVIII, Eunápolis, 2017; RAMALHO, Marcio.
Implementação da Lei 10.639/03 em Eunápolis: Limites e possibilidades. Monografia (Graduação em
História) – Universidade do Estado da Bahia, DCHT campus XVIII, Eunápolis, 2017. 32
SACRAMENTO, Jadson Reis; SILVA, Jario Francisco. O Cruzeiro de Eunápolis: marco simbólico político
e religioso. 2010. Monografia (Graduação em História) – Universidade do Estado da Bahia, DCHT campus
XVIII, Eunápolis, 2010. 33
ANDRADE, Franklin Souza de; GOMES, Viviane Moreira. Igreja de Nossa Senhora Auxiliadora: um
patrimônio da cultura e da história de Eunápolis-BA. 2010. Monografia (Graduação em História) – Universidade
do Estado da Bahia, DCHT campus XVIII, Eunápolis, 2010.
24
energia elétrica (1966- 1975)‖, conduz sua problemática versando sobre as transformações na
dinâmica urbana a partir da instalação da rede de energia elétrica.
Através da chegada da eletrificação pública, com a Companhia de Eletricidade do
Estado da Bahia (Coelba), Rocha traça um paralelo entre os anos anteriores às instalações e as
modificações posteriores, tendo a rede elétrica como um agente modernizante do contexto
socioeconômico do povoado. Para realização do estudo, foram utilizadas como fontes:
periódicos, publicações locais, fotografias, dados estatísticos do IBGE e depoimentos de
moradores. 34
Os dois primeiros trabalhos elencados corroboram com nossa pesquisa por discutirem
a história do povoado, abordando a questão da memória em torno dos monumentos urbanos, o
que se aproxima dos nossos debates; enquanto o terceiro nos ajudou a pensar as
transformações urbanas como agentes modificadores da dinâmica socioeconômica e das
práticas da população. O nosso trabalho distancia-se destes, quando propõe discutir, de uma
forma mais ampla, as transformações, abrangendo a região do Extremo Sul Baiano, como esse
processo influenciou no desenvolvimento do povoado e como o este foi projetado sob o
discurso progressista discursiva e materialmente.
Outro fator que destaca nossa pesquisa das demais já realizadas recai sobre a
diversidade de fontes usadas: jornais, revistas, documentos cartoriais, documentos
administrativos municipais, fotografias, o livro de registros de decretos lei, correspondências,
o Código de Posturas Municipais (CPM), o PLANDEU e fontes bibliográficas.
Para problematizarmos nosso objeto de estudo, é necessário recorrermos às fontes e
―interrogá-las‖. March Bloch deixou-nos legados importantes quanto ao trato das fontes. Ele
possibilitou novos horizontes ao pesquisador, quando referenciou que tudo o que o homem
deixa como vestígio de sua existência é passivo de análise. Bloch chamou também a atenção
dos historiadores sobre a ilusão de que cada problema só pode ser respondido por uma espécie
particular de documento.35 Confortados pelas possibilidades colocadas por Bloch, nos
debruçamos sobre um montante diverso de fontes.
O conjunto de impressos trabalhados nos forneceu um arcabouço narrativo sobre o
povoado. Desse montante, usamos uma variedade de periódicos de circulação local, regional,
estadual e de outros estados. Infelizmente não foi possível o acesso a uma série contínua de
34
ROCHA, Messias Santos. E no apagar dos lampiões, surge a energia elétrica: Eunápolis e as
transformações advindas do processo da chegada da energia elétrica (1966- 1975). 2017. Monografia (Graduação
em História) – Universidade do Estado da Bahia, DCHT campus XVIII, Eunápolis, 2017. 35
BLOCH, Marc Leopold Benjamin. Apologia da história, ou, O ofício do historiador. Tradução: André
Telles. Rio de janeiro: Zahar, 2001.
25
jornais locais. O acesso a séries de periódicos locais, mesmo assim não contemplando todos
os exemplares publicados ao longo dos anos de circulação, deu-se recentemente através do
contato com o acervo particular do professor Ronaldo Pereira Santana. Em seu arquivo,
tivemos o contato com edições do ano de 1988 do Clarim, de origem eunapolitana, e de O
Independente, contendo exemplares produzidos entre os anos de 1985 e 1988, com alcance
regional.
A consulta ao acervo particular de Neide Gonçalves foi de suma importância para o
acesso a documentos que versassem sobre Eunápolis. Lá foram encontrados exemplares de
jornais baianos, como os jornais A Tarde, Eunápolis News, Clarim, O Independente; além de
edições de revistas baianas, como A voz dos municípios e Atualidades.
Através do Arquivo Público Municipal da Câmara de Vereadores de Eunápolis
(APMCVE) tivemos acesso a outros jornais baianos, cujo uso se deu de forma espaçada, por
conta dos exemplares encontrados. Dentre eles, alguns não foram conservados na íntegra,
sendo recortadas somente as reportagens que interessassem a quem os preservou. Tivemos a
oportunidade de labutar, para além dos já citados anteriormente, com os periódicos: Jornal
Cometa; CIP (Itabuna); Grande Bahia; Folha de Nanuque; Folha de Itamaraju; Correio da
Bahia; A Tarde; Interbahia; Eunápolis News; O século.
―Garimpamos‖ no acervo do jornal A Tarde, disponibilizado pelo Arquivo Público da
Biblioteca Central do Estado da Bahia (APBCEB), localizada na cidade de Salvador. O acesso
a esse conjunto documental nos possibilitou analisar a produção e a circulação discursiva
sobre Eunápolis em uma esfera para além das produções locais, sob a visão dos redatores de
um dos jornais de maior alcance dos baianos.
Em visita ao site da Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional (HDBN), exploramos
o acervo digitalizado de jornais de outros estados brasileiros, nele constatamos a presença de
reportagens que tematizavam o ―maior povoado do mundo‖ em suas páginas. Essa janela que
se abriu nos oportunizou analisar a circulação dos enunciados sobre o nosso objeto para além
da Bahia.
Além de jornais, usamos como fontes revistas que tiveram sua circulação restrita ao
município e região e outras de alcance nacional, como é o caso da revista Veja, que fez uma
reportagem sobre Eunápolis em uma edição lançada em novembro de 1978. Em se falando de
revistas, analisaremos algumas publicações que trazem reportagens sobre os municípios
baianos, entre elas as edições das revistas: Atualidades, Voz dos Municípios de Minas Gerais;
Eunápolis, publicada pelo Banco do Nordeste do Brasil (BNB); e Eunápolis. Passado,
presente e futuro, de Eunápolis.
26
Documentos administrativos do Poder Público de Santa Cruz Cabrália, como ordens
de pagamento da prefeitura, decretos-leis de 1979 e o Código de Posturas Municipais (CPM)
de 1977, ajudaram-nos a analisar de que forma o município buscava disciplinar a conduta e a
estética no povoado. Estudamos o PLANDEU de Eunápolis de 1977, visando entender como
o Governo do Estado da Bahia pensou a projeção do povoado, buscando soluções para os
problemas locais.
Como literatura memorialística, foram utilizados os livros: ―O Fundador de Eunápolis,
Sessenta e Quatro e os Anjos da Traição‖, do ex-prefeito Alcides Lacerda (1929-2006); e uma
publicação de 1984 da Prefeitura Municipal de Santa Cruz Cabrália/Bahia (sob a
administração de Arnaldo Moura Guerrieri), em conjunto com a Revista ―A Voz dos
Municípios‖, de título ―Eunápolis (O maior Povoado do Mundo)‖. Usamos também o livro
―Eunápolis, de mata a cidade‖, publicado em 1998 e de autoria do Professor Geraldo Magela
Ribeiro; e ―Porto Seguro: de aldeia de pescador a aldeia global‖, de Romeu Fontana. Estas
publicações, em conjunto, auxiliaram na construção de um pano de fundo para entendermos o
cotidiano no povoado.
As fontes iconográficas foram utilizadas, para além do seu caráter ilustrativo, mas
como fonte de interpretação em que podemos observar a paisagem, a intencionalidade de seu
uso, o contexto em que elas foram realizadas e quem as realizou; pois a ―imagem não fala por
si só, é necessário que as perguntas sejam feitas‖.36 É preciso que o pesquisador se atente para
as dizibilidades contidas nesse tipo de documento, indagando sobre as enunciações
produzidas no texto imagético.
Lançamos mão da análise de fotografias. Segundo Kossoy, a fotografia consiste em
um artefato que contém um fragmento do passado, o que ele considera chamar de segunda
realidade, resultado do registro imagético de uma primeira. Esse registro é resultado da
trajetória que atravessa três estágios para a concretização de sua existência: o olhar e a
intencionalidade de quem a registra; a materialização do artefato; e os caminhos percorridos
por ela – as intervenções (como anotações e rabiscos em sua face), aqueles que a viram e as
emoções que neles foram despertadas, assim como a moldura que a emoldurou.37
Se a imagem resulta de uma intencionalidade que a materializa, ela é passivel de um
filtro cultural, fazendo-se escolhas do que dela deve ser mostrado para determinado público a
quem o autor visou atingir. Logo, o pesquisador deve estar atento às intencionalidades dessa
36
MAUAD, Ana Maria. Através da imagem: fotografia e história interfaces. Tempo, Rio de Janeiro, v. 1, n. 2, p.
83, 1996. 37
KOSSOY, Boris. Fotografia e História. 5. ed. São Paulo: Ateliê Editorial, 2014.
27
produção, bem como aos meios utilizados para a sua materialização e ao pensamento de quem
as realizou.38
Nossa análise consiste na percepção de que a imagem não traz em si uma verdade
histórica, mas sim uma representação sobre determinado acontecimento no tempo e no
espaço. Como documento que traz informações sobre determinada realidade, é necessário,
como lembra Kossoy,39 chamar a atenção de que, em sua análise, ela seja submetida ao
cruzamento com outras fontes históricas, de outras naturezas, para uma melhor interpretação
dos fatos, uma leitura mais ampla do contexto em que foi produzida, bem como a construção
narrativa mais concisa por parte do pesquisador.
Pensando a narrativa histórica como a elaboração de um enredo baseado na
problematização do historiador para com o objeto, nós nos aproximamos de Durval Muniz de
Albuquerque Junior, quando ele sugere que sua concretização depende da habilidade de quem
a escreve, envolvendo imaginação e os significados atribuídos ao passado pelo historiador.
Albuquerque Junior exemplifica a produção historiográfica usando a metáfora de uma
tessitura:
Este trabalho de tessitura é, no entanto, obra da mão de quem tece, da imaginação e
habilidade de quem narra. Não podemos pensar que a história escreve a si mesma,
que fatos se impõem ao historiador, que se impõem como evidência. Pensar assim
seria pensar a possibilidade de o bordado fazer-se a si mesmo.40
Pensando também como um tecelão da historiografia, para realizar a sua escrita, são
necessários os instrumentos de trabalho. Assim como a linha e a agulha são importantes para
a tessitura, as fontes, a metodologia e a teoria são instrumentos fundamentais para o nosso
labor enquanto historiadores.
Fazendo uma analogia com a ―operação historiográfica‖ certeauniana, a nossa escrita
perpassará pela análise do espaço urbano eunapolitano como uma articulação entre um ―lugar
social‖, uma ―prática‖ e uma ―escrita‖. Entendemos que o objeto se constitui a partir de um
―lugar de produção socioeconômico, político e cultural (...) é em função deste lugar que se
instauram os métodos, que se delineiam uma topografia de interesses‖.41 O lugar exerce um
papel de definir o conjunto de regras que dizem da ―permissão‖ ou ―interdição‖ sobre a
produção do espaço, delimitadas por um jogo de forças entre os grupos ali situados. Esse
38
Ibid. 39
Ibid. 40
ALBUQUERQUE JUNIOR, Durval Muniz de. História: a arte de inventar o passado. Ensaios de teoria da
história. Bauru, SP: Edusc, 2007. p. 31-32. 41
CERTEAU, Michel. A Escrita da História. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982. p. 66-67.
28
―lugar social‖ se articula com uma prática de produção desse espaço através dos usos
efetivados pelos sujeitos, o que acaba por resultar nas inscrições e nos apagamentos sobre esse
espaço.42
A analogia feita anteriormente funcionará como eixo para a organização da nossa
escrita. A escrita desta dissertação se divide em três capítulos. No primeiro capítulo,
analisaremos a inserção de Eunápolis no contexto da campanha nacional desenvolvimentista
difundida pela ditadura civil militar. O intuito é problematizar o progresso ocorrido no
Extremo Sul da Bahia com a passagem da BR-101, a exploração madeireira em larga escala e
o desenvolvimento do turismo, além de como o povoado se projeta economicamente nesse
contexto como polo regional.
Neste momento, analisaremos também o desenvolvimento da agricultura, com base na
expansão do latifúndio monocultor como principal desencadeador de conflitos agrários na
região, bem como o grande fomentador do êxodo rural, que expulsou uma grande parcela da
população do campo para a cidade, fomentando assim o crescimento demográfico das cidades
e povoados do Extremo Sul da Bahia, em específico Eunápolis. Evidenciaremos também a
presença dos povos indígenas na região e em Eunápolis, historicamente apagados nas
narrativas oficiais.
No segundo capítulo, será estudada a estrutura urbana do povoado que tanto atraiu
migrantes de dentro e de fora do estado da Bahia. Analisaremos como o Governo do Estado
tentou ordenar os espaços e os hábitos através do Plano Diretor Urbano de Eunápolis e como
o Poder Público Municipal de Santa Cruz Cabrália buscou disciplinar a dinâmica urbana do
povoado.
No terceiro capítulo, analisaremos as narrativas em publicações que acabaram por
divulgar representações em torno da violência e do progresso do povoado dentro da
temporalidade proposta. Voltaremo-nos também para a discussão de como estas
representações foram utilizadas para a manutenção de espaços urbanos e para a projeção
política de atores locais.
Assim, esta dissertação lança seu olhar sobre a formação do povoado de Eunápolis
como uma produção que tanto problematizou a temática como também procurou ampliar as
possibilidades daqueles que são atraídos pela história das cidades e, em especial, pela história
da cidade que um dia foi chamada de ―O maior povoado do mundo‖.
42
Ibid.
29
2 SOB OS DITAMES DO “PROGRESSO”: O EXTREMO SUL DA BAHIA,
EUNÁPOLIS E SUA PROJEÇÃO COMO “CAPITAL REGIONAL”
Mas o dragão continua a floresta devorar
E quem habita essa mata, prá onde vai se mudar?
Corre índio, seringueiro, preguiça, tamanduá
Tartaruga: Pé ligeiro, corre-corre tribo dos Kamaiurá
No lugar que havia mata, hoje há perseguição
Grileiro mata posseiro só prá lhe roubar seu chão
Castanheiro, seringueiro já viraram até peão
Afora os que já morreram como ave-de-arribação
Zé de Nana tá de prova, naquele lugar tem cova
Gente enterrada no chão
Pois mataram índio que matou grileiro que matou posseiro
Disse um castanheiro para um seringueiro que um estrangeiro
Roubou seu lugar43
Nosso primeiro capítulo se inicia abordando como se deram as transformações
ocorridas na região do Extremo Sul baiano no contexto do projeto de desenvolvimento
brasileiro da segunda metade do século XX. O intuito é percorrer o caminho da reorganização
social a partir do crescimento econômico, que se acentua principalmente depois da construção
da BR-101, analisando a inserção de Eunápolis como centro urbano receptor de demandas
populacionais.
Para compreender a dinâmica das transformações ocorridas no Extremo Sul da Bahia,
é necessário fazer alguns recuos temporais, que se distanciam em muito do corte central
proposto pela pesquisa, como, por exemplo, o breve levantamento histórico sobre a presença
indígena na região e sua luta por territórios, desde o início da colonização portuguesa ao
século XX. Como a discussão do capítulo perpassa pela questão fundiária, os povos
originários não poderiam estar de fora, como também outras populações consideradas como
não indígenas, que disputaram e ainda disputam a posse de terras na região.
A aceleração econômica ocorrida no Brasil a partir da primeira metade do século XX
proporcionou o deslocamento constante das fronteiras agrícolas, criando novas povoações e
modificando a paisagem de toda região. Segundo Koopmans: ―Até meados da década de
cinqüenta (sic.), todas as sedes municipais estavam localizadas no litoral, com baixa
43
SAGA da Amazônia. Intérprete e Compositor: Vital Farias. In: SAGAS Brasileiras. Intérprete: Vital Farias.
Compositores: Vital Farias e Salgado Maranhão. Araponga/ Lança/ Polygram, 1982. 1 LP, faixa 6.
30
densidade demográfica, e se estendiam até a divisa com Minas Gerais‖44. A maior parte do
Extremo Sul constituía-se com alto percentual de Mata Atlântica densamente preservada,
reduto de povos indígenas, ainda pouco povoadas por não indígenas, uma grande extensão de
terras devolutas, pertencentes ao governo da Bahia. Com poucas povoações, a extensão
interiorana permanecia ainda pouco habitada por não indígenas. Com o intuito de efetivar a
implantação de um projeto de desenvolvimento para a região o governo federal em conjunto
do governo do estado da Bahia incentivou a instalarem empresários e fazendeiros nessas
paragens, com o intuito de colonizar toda essa área até então não aproveitada
economicamente em todo o seu potencial.
É importante termos em mente o valor simbólico para o projeto de nação em
construção, pois seu litoral ficou marcado pelo desembarque das primeiras naus portuguesas a
chegarem ao continente americano, o lugar do ―Descobrimento do Brasil‖. Localidade
esquecida, sem uma ligação mais dinâmica com o resto do país, cuja realidade só foi
modificada após a concretização das obras da BR-101, que potencializou o turismo o
comércio e a exploração mais intensa dos seus recursos naturais.
O objetivo geral deste primeiro texto é problematizar a noção de desenvolvimento
pretendido pelo governo do estado e pelo governo federal para a região. Para tanto,
analisaremos as posições díspares dos grupos que estiveram envolvidos no processo de
implantação do projeto desenvolvimentista no século XX, que a todo o momento atravessava
a questão da posse de terras. Entre os grupos submetidos ao processo, localizam-se: os
indígenas, os posseiros, os latifundiários e os da indústria madeireira e de celulose. Como
veremos, a região adentra o século novecentista com um capital produtivo heterogêneo,
voltado em sua maioria para a agricultura de consumo interno, ameaçado pela intensificação
da ocupação e pelo planejamento de integração regional.
A concepção de planejamento abordada parte da noção de Francico de Oliveira de que
o Estado entra em cena com o intuito de intervir nas contradições entre a reprodução do
capital em escala nacional e regional. Nesta situação, o Estado tem a função de mediador, mas
não age como tal, sendo ele passivo de ser capturado ou não pelas esferas mais influentes da
reprodução do capital, levando a uma homogeneização da produção regional, o que
caracteriza a integração nacional. 45 Logo, o planejamento do projeto de desenvolvimento para
44
KOOPMANS, José. Além do eucalipto: o papel do Extremo Sul. 2. ed. Teixeira de Freitas: Centro de Defesa
dos Direitos Humanos, 2005. p. 29. 45
OLIVEIRA, Francisco. Elegia para uma re(li)gião: SUDENE, Nordeste, Planejamento e conflito de classe.
3. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981.
31
o extremo sul firmou-se na implantação do latifúndio monocultor, concomitante com a
supressão da produção agrícola diversificada.
A análise do projeto desenvolvimentista para o Extremo Sul da Bahia nos leva a
alguns nos levam a algumas questões que norteiam as indagações sobre as pretensões das
instancias de governança federal e estadual para o desenvolvimento econômico e social local:
1ª) Quais os objetivos da promoção do progresso?; 2ª) Para quem as ações
desenvolvimentistas foram projetadas e aplicadas?; 3ª) Como se deu o processo de
transformação?
Na sequência, tentaremos responder a estas perguntas a partir da análise de:
periódicos; documentos expedidos por órgãos municipais, estaduais e federais;
correspondências; e estudos já desenvolvidos sobre a região. Além das indagações anteriores,
também buscaremos problematizar a inserção do povoado de Eunápolis no contexto
desenvolvimentista regional.
2.1 A PRESENÇA INDÍGENA NO EXTREMO SUL DA BAHIA
Durante a exploração econômica e a ocupação do Extremo Sul da Bahia por não
indígenas, os povos indígenas foram fortemente impactados pelo processo de reorganização
socioeconômica regional. Após quatro séculos de colonização europeia na América, os povos
originários do Brasil continuaram sendo vitimados pela ampliação do latifúndio e pela
implantação da indústria madeireira no século XX nessa região da Bahia. Mas, ainda que
expulsos de suas terras, perseguidos e alvejados pelas práticas ofensivas e violentas do Estado
brasileiro, empresas e fazendeiros, esses povos foram e são protagonistas da resistência em
torno da luta pela retomada de terras e da demarcação de reservas indígenas.
Para compreendermos melhor a questão indígena em relação à posse de terras no
Extremo Sul baiano, recuaremos aos primeiros séculos da colonização portuguesa, de forma
breve, e avançaremos progressivamente até o século XX, a fim de realizar um apanhado de
uma parcela da história desses povos na região.
Os primeiros relatos sobre o contato de indígenas com não indígenas em solo
brasileiro estão descritos na Carta de Pero Vaz de Caminha (1500). Outros registros, como os
documentos escritos pelos missionários jesuítas sobre a presença desses povos no litoral do
que hoje são Belmonte, Santa Cruz Cabrália, Porto Seguro e outras porções da costa no século
XVI, não deixam dúvidas de que pertenciam ao grupo tronco linguístico dos Tupis ou, mais
especificamente, eram Tupiniquins. Como habitantes do litoral, sujeitos à vivência inicial da
32
colonização, esses grupos foram os primeiros a serem subjugados, enquanto os colonizadores
não estenderam seu domínio ao interior, território de outras etnias denominadas
genericamente em tupi pelos portugueses como Aymorés, grupos estes que levariam mais
alguns séculos para serem dominados.46
Segundo Sampaio47
, a teoria do linguista de Urban48
permite entender o contexto dos
grupos étnicos que habitavam a região anteriormente ao processo de colonização portuguesa.
Para ele, a região hoje compreendida pelo Sul da Bahia, pelo leste e Nordeste de Minas Gerais
e pelo Espírito Santo, banhada pelas bacias dos rios Doce, Pardo, Mucuri, Jequitinhonha e de
Contas, foi originalmente lugar de concentração de grupos do tronco linguístico Macro-jê.
Esta hipótese explica a diversidade linguística encontrada na região, compreendendo as
famílias dos Botocudos, Maxacalí, Puri, Kamacã, possivelmente Pataxós e talvez outras
línguas isoladas. Os Tupis, vindos do sul, avançaram no sentido costa Leste e Nordeste do
Brasil, expulsando diversas famílias do tronco Macro-jê para regiões interioranas,
consolidando assim o seu domínio sobre a costa, alguns séculos antes da chegada dos
portugueses no século XVI.
Ao caminhar do século XVI, após o início da colonização dessa porção da América
pelos portugueses, foi dada a partida ao projeto civilizatório em torno dos índios, tendo a
Companhia de Jesus como protagonista da conquista cultural dos ―gentios da terra‖, como os
jesuítas coletivamente os chamavam. Com o intuito de cristianizar os povos nativos, os
missionários buscavam se inserir nos aldeamentos, agregar indígenas não aldeados e, usando
de práticas de dominação ideológica e da repressão, eliminar os costumes como a
antropofagia, a nudez e o incesto, considerados ―selvagens‖ pelos cristãos.49 Estas ações
tiveram a intenção de transformar os indivíduos vistos como sendo ―bárbaros e indômitos, que
parecem aproximar-se mais à natureza das feras do que à dos homens‖50, em ―criaturas de
Deus‖, possibilitando, assim, a salvação de suas almas.
Aos índios resistentes à fé católica e aos que se mantiveram hostis aos portugueses e
seus aliados foi autorizada a escravização a partir das guerras justas.51 Neste contexto, o
46
SAMPAIO, José Augusto Laranjeiras. Breve história da presença indígena no extremo sul baiano e a questão
do território pataxó do monte pascoal. Cadernos de História, v. 5, n. 6, p. 1-72, jul. 2000. p. 32. 47
Ibid., p. 33. 48
URBAN, Greg. A história da cultura brasileira segundo as línguas nativas. In: CUNHA, Manuela Carneiro da
(org.). História dos índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. 49
CUNHA, Rejane Cristine Santana. O Fogo de 51 – reminiscências pataxó. 2010. Dissertação (Mestrado em
História Regional e Local) – Universidade do Estado da Bahia, DCH – Campus V, Santo Antônio de Jesus,
2010. 50
ANCHIETA, José de apud CUNHA, op.cit., p. 26. 51
Ibid.
33
contato com os brancos nos aldeamentos missionários teve grande parcela de responsabilidade
pelo alastramento de epidemias europeias que levaram à morte populações inteiras de
indígenas aldeados e não aldeados.52
No século XVIII, foi encampada pelo rei de Portugal, D. José I, com o auxílio de
Sebastião José de Carvalho e Melo, futuro marquês de Pombal, uma série de medidas,
visando dar um novo formato à dinâmica colonial. Esta reforma teve como base três pilares: a
defesa do território; a expansão econômica; e o fortalecimento do poder central. Segundo
Cancela, a reforma Josefina,
Com vistas a integrar a região ao sistema colonial, determinou sua transformação em
um polo produtor de gêneros alimentícios para abastecer os principais centros
urbanos da colônia, fomentando a dilatação da ocupação territorial, a expansão das
atividades agrícolas e extrativistas e a construção de canais de comunicação terrestre
com o Rio de Janeiro.53
Foi então criada a Ouvidoria de Porto Seguro para a administração do governo
temporal na capitania, que pouco tempo antes havia sido incorporada à Capitania da Bahia.
No texto, com a ―Instrução‖ para a criação da ouvidoria, assinada por José Sebastião de
Carvalho e Melo em 1763, encontravam-se recomendações de ordem prática ―que apontava
questões relacionadas ao governo civil, à ocupação territorial, à produção econômica e ao
relacionamento com os povos indígenas‖.54 Para a concretização deste empreendimento, ―o
aproveitamento da população indígena se converteu em uma condição inexorável‖55, sendo
necessário que estes fossem integrados à sociedade colonial.
O conjunto de medidas veio com a crítica ao antigo sistema colonial baseado na
escravidão e servidão dos indígenas aldeados. Este foi modificado a partir da exclusão dos
jesuítas da administração temporal dos aldeamentos em 1759, que foram transformados em
vilas, sendo assim criadas seis delas ao todo56. No projeto reformista, foi concedida a
liberdade aos índios, sendo estes submetidos ao processo civilizatório em contato com os
52
SAMPAIO, José Augusto Laranjeiras. Breve história da presença indígena no extremo sul baiano e a questão
do território pataxó do monte pascoal. Cadernos de História, v. 5 n. 6 p. 1-72, jul. 2000, p. 33. 53
CANCELA, Francisco. Os Índios e a Colonização na Antiga Capitania de Porto Seguro: Políticas
Indigenistas e Políticas Indígenas no tempo do Diretório Pombalino. Jundiaí: Paco Editorial, 2018. p. 17. 54
Id. O trabalho dos índios numa ―terra muito destituída de escravos‖: políticas indigenistas e políticas indígenas
na antiga Capitania de Porto Seguro (1763-1808). In: História (São Paulo), v. 33, n. 2, p. 514-539, jul./dez.
2014. ISSN 1980-4369, p. 517. 55
Id. Os Índios e a Colonização na Antiga Capitania de Porto Seguro: Políticas Indigenistas e Políticas
Indígenas no tempo do Diretório Pombalino. Jundiaí: Paco Editorial, 2018. p. 17. 56
Entre as seis vilas criadas estavam: a Vila Nova São Mateus (atual São Mateus, estado do Espírito Santo), em
1764; a Vila Nova do Prado (atual Prado), em 1764; a Vila Nova de Belmonte (atual Belmonte), em 1765; a
Nova Vila Viçosa (atual Nova Viçosa), em 1768; a Nova Vila de Porto Alegre (atual Mucuri), em 1769; a Vila
Nova de Alcobaça (atual Alcobaça), em 1772.
34
colonos portugueses, de forma que deveriam deixar seus costumes e suas práticas e se tornar
os próprios agentes da colonização. Ao final, caberiam aos indígenas ―as funções de
camponês, povoador e vassalo – o que, em outros termos, significava produzir para o mercado
colonial, atuar na ocupação do território e defender os interesses da monarquia portuguesa‖.57
Para o controle e melhor aproveitamento das populações indígenas, foi criado o
Diretório dos Índios, principal documento legislador da política indigenista no reinado de D.
José I, contendo uma série de instruções com o intuito de ordenar e disciplinar a conduta dos
índios para a antiga Capitania de Porto Seguro. Este código foi produzido em 1757, no estado
do Grão Pará, estendido para o estado do Brasil em 1759, e foi construída uma medida
complementar na década de 1760, pelo segundo ouvidor de Porto Seguro José Xavier
Monteiro, adaptando-o à realidade temática da região.58
Segundo Cancela59, para o sucesso do projeto reformista Josefino: ―A mão de obra
indígena se transformou, portanto, na peça fundamental do sistema produtivo que emergiu na
antiga Capitania de Porto Seguro no fim do período colonial‖. Mesmo com a aplicação da
política indigenista em Porto Seguro, alguns grupos indígenas resistiam ao trabalho
obrigatório e à dominação cultural em paragens dos luso-brasileiros.
Fugas eram empreendidas para outras povoações além do próprio afastamento dessas,
adentrando para os sertões da região. Outras situações causavam terror aos moradores das
vilas da antiga capitania, em momentos que índios habitantes dos sertões da antiga capitania
desferiram investidas usando de ações bélicas e de ―rapinas‖ às lavouras, quando ―Atacavam,
com frequência, povoações, fazendas e plantações destruindo, roubando e queimando o que
podiam‖, chegando, em algumas situações, a atentarem contra a vida de ―roceiros e viadantes
que perambulavam pelas estradas e matas próximas das vilas‖.60 Com o intento de conter os
ataques, foram organizadas entradas, objetivando afastar os chamados índios hostis das
proximidades.
Os conflitos entre índios do sertão e os habitantes das povoações adentraram o século
XIX. Em meados do século, como medida de contenção dos saques às fazendas da região e na
tentativa de ―civilizar‖ esses bravios através da ação missionária, foi criada uma aldeia às
margens do Rio Corumbau, na Vila do Prado, em 1861.
57
CANCELA, Francisco. Os Índios e a Colonização na Antiga Capitania de Porto Seguro: Políticas
Indigenistas e Políticas Indígenas no tempo do Diretório Pombalino. Jundiaí: Paco Editorial, 2018. p. 80. 58
Ibid. 59
Id. O trabalho dos índios numa ―terra muito destituída de escravos‖: políticas indigenistas e políticas indígenas
na antiga Capitania de Porto Seguro (1763-1808). História (São Paulo). v. 33, n. 2, p. 514-539, jul./dez. 2014,
ISSN 1980-4369, p. 525. 60
CANCELA, Francisco. Os Índios e a Colonização na Antiga Capitania de Porto Seguro: Políticas
Indigenistas e Políticas Indígenas no tempo do Diretório Pombalino. Jundiaí: Paco Editorial, 2018. p. 315.
35
Para Carvalho61, tudo indica que esta aldeia seja a de Barra Velha, símbolo da disputa
e da retomada de terras pelos povos indígenas do Extremo Sul da Bahia no século XX.
Complementando a tese de Carvalho sobre a criação da aldeia de Barra Velha, Sampaio62
firmula a hipótese da intenção do presidente da província da Bahia concentrar os índios em
um único espaço como estratégia para limitar a possibilidade legal de os índios reivindicarem
as extensões de terra que ocupavam antes da criação da aldeia.
Em sua formação, a Aldeia de Barra Velha abrigou não só Pataxós, mas também
Maxacalís, trazidos do interior da região; Botocudos, das vizinhanças; Tupiniquins,
provenientes da Vila de Trancoco e de Vila Verde; e Kamakãs – Meniãs –, de Belmonte.
Ainda que existisse uma diversidade étnica, o etnônimo Pataxó prevaleceu, por conta de a
população aldeada ser constituída por uma maioria pertencente a este grupo, além de estar
situada num território tradicional Pataxó. Os Pataxó de Barra Velha ―romperam o século XX,
muito certamente, como a única comunidade indígena na região e aí viveram isolados‖ 63; o
único provável contato que tiveram foi através da relação regular com populações próximas
ao seu entorno e com os poucos povoados vizinhos.
A aldeia localizada nos limites meridionais do município de Porto Seguro, no Parque
Nacional do Monte Pascoal, entre os rios Caraíva e Corumbau, foi palco do episódio
conhecido por ―Fogo de 51‖, que começou com a Revolta de 51 e perdurou por praticamente
todo o século XX, ―com lutas pela recuperação do território tradicional do Monte Pascoal‖.64
O início do conflito deu-se quando, na década de 1940, o governo federal, com a
intenção declarada de criar um monumento nacional que remetesse ao ―Descobrimento do
Brasil‖ e que conservasse a fauna e a flora local, incluiu as terras pertencentes à Aldeia de
Barra Velha no projeto de tombamento, prevendo a desapropriação das terras indígenas para a
criação do Parque Nacional do Monte Pascoal. O Parque foi criado pelo decreto 12.729, de 19
de abril de 1943.65 Em seguida, equipes técnicas visitaram a região e delimitaram a área da
aldeia como pertencente ao perímetro do que deveria ser desapropriado e integrado ao parque.
Não obtendo garantias do Serviço de Proteção ao Índio (SPI) de manterem a posse de suas
61
CARVALHO, Maria Rosário de. Os Pataxó Meridionais: Uma breve recensão Histórico-bibliográfica. In:
SILVA, José Luis Caetano da (org.). Tradições étnicas entre os Pataxó no Monte Pascoal: Subsídios para uma
educação diferenciada e práticas sustentáveis. Vitória da Conquista: Núcleo de Estudos em Comunicação,
Culturas e Sociedades. NECCSos-edições UESB. 2008, 500 p. 62
SAMPAIO, José Augusto Laranjeiras. Breve história da presença indígena no extremo sul baiano e a questão
do território pataxó do monte pascoal. Cadernos de História, v. 5, n. 6, p. 1-72, jul. 2000. 63
Ibid., p. 35. 64
CUNHA, Rejane Cristine Santana. O Fogo de 51 – reminiscências pataxó. 2010. Dissertação (Mestrado em
História Regional e Local) – Universidade do Estado da Bahia, DCH – Campus V, Santo Antônio de Jesus,
2010, p. 54. 65
O Parque Nacional de Monte Pascoal foi implantado de fato em 1961.
36
terras, um grupo de indígenas, em companhia de dois forasteiros, realizaram um saque a uma
propriedade em Corumbau, desencadeando uma violenta investida policial. Os conflitos
deram origem a uma série de perseguições generalizadas aos índios por parte de proprietários
de terras e agentes policiais, obrigando a população de Barra Velha e a de outros grupos a se
dispersarem pela região.66
Em seguida ocorreu um longo jogo de disputa e resistência entre os Pataxó de Barra
Velha e o Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal (IBDF), pelo uso e demarcação
do território indígena legal. Na década de 1960 o IBDF propôs indenizar os índios pelas suas
benfeitorias para que eles se retirassem da área. Uma grande parte dos índios resistiu, mesmo
sendo impedidos de cultivarem nas terras. Na década de 1970, com a mediação da recém-
criada Fundação Nacional do Índio (FUNAI), foi estabelecido um acordo com o IBDF,
permitindo aos indígenas plantarem em áreas de capoeira, onde não houvesse matas. Essa
situação só se resolveu em 1980, quando foi cedida uma área de extensão total de 8.627
hectares, demarcada em 1981 e reconhecida pela FUNAI como ―área indígena‖, através da
Portaria 1393/E, de 1º de setembro de 1982.67
Fazendo um breve retorno à questão da dispersão de uma parcela da população de
Barra Velha, a possibilidade de perda do território para a implantação do Parque Nacional
Monte Pascoal (PNMP), além da repressão empreendida contra os indígenas durante toda a
história da aldeia, mas, em específico, após delineamento da área do parque, coagiu alguns
grupos a procurarem outras localidades para a sobrevivência. O êxodo da aldeia proporcionou
concentração de índios em diversas localidades da região, inclusive em áreas urbanas.
Entre as aldeias somam-se dez ao todo: Barra Velha, demarcada em 1981, também
conhecida como ―aldeia mãe‖, por conta das outras serem originárias a partir dela, localiza-se
no território indígena de Barra Velha; Boca da Mata, criada em 1981, localizada nas margens
do Córrego do Cemitério, ocupa uma área pertencente ao território indígena de Barra Velha;
Meio da Mata, criada em 1987, que dista seis quilômetros da anterior, também localizada no
território indígena de Barra Velha; Imbiriba, aldeia formada desde os anos de 1920 e
alimentada por grupos que deixaram Barra Velha após o ―Fogo de 51‖, localizada próxima ao
povoado de Itaporanga, ao qual deu origem; Aldeia Velha, localizada na margem esquerda do
estuário do Rio Buranhém, em frente à cidade de Porto Seguro, a aldeia consiste em um
antigo assentamento, do qual seus ocupantes foram expulsos nas décadas de 1960-70 e,
66
SAMPAIO, José Augusto Laranjeiras. Breve História da Presença Indígena no extremo sul baiano e a questão
do território pataxó do Monte Pascoal. Cadernos de História, v. 5, n. 6, p. 1-72, jul. 2000. 67
Ibid.
37
depois de disputas e retomadas, consolidou-se na década de 1990; Coroa Vermelha, surgida
em 1972, localiza-se a oito quilômetros da sede municipal de Santa Cruz Cabrália, às margens
da BR-367; Mata Medonha, fruto da dispersão de Barra Velha, a aldeia foi criada em 1951, às
margens do Rio Santo Antônio, município de Santa Cruz Cabrália; Belas Águas, constituída
na década de 1970 por remanescentes de Barra Velha, localiza-se no Norte do município do
Prado; Corumbauzinho, ocupa uma área entre a aldeia de Belas Águas e o limite sul do
Parque; Trevo do Parque, surgida a partir da demanda de comercialização de artesanatos,
localiza-se no trevo de acesso da BR-101 e BR-498, no município de Itamaraju.68
Investidas contra os indígenas na parte Norte do Extremo Sul da Bahia foram
registradas, mais especificamente nas proximidades do Rio Jequitinhonha, através do relato
do cacique Juvenal Costa Vales69, em entrevista concedida a Brasileiro70. O cacique conta
sobre lideranças políticas que agiram a mando de coronéis e fazendeiros, expulsando seus
antepassados ―no bico da carabina‖71, entre os anos de 1902, 1930, 1950, 1960 e 1970,
responsáveis pela destruição da Vila de Brasilinha, pertencente ao município de Itapebi,
localidade onde se refugiavam índios destituídos de suas terras. Como resultado das
violências sofridas, o grupo se dispersou, migrando para outras localidades da região.
É importante não desconsiderarmos a existência de outros grupos espalhados na
região, vivendo em fazendas, cidades e povoados, cultivando pequenas glebas de terras ou
servindo de mão de obra nas fazendas e nos centros urbanos sem serem identificados e sem se
identificarem como índios. A hipótese sustenta-se, principalmente se pensarmos que boa parte
das vilas, que em determinada temporalidade se tornaram cidades, surgiram a partir de
aldeamentos missionários e que, durante séculos, esses aldeamentos agregaram índios de
diversas origens. Boa parte desses indivíduos e seus descendentes se mantiveram camuflados,
ressabiados pelo violento processo histórico de dominação e extermínio, resultado do projeto
civilizatório que os fizeram se distanciar do reconhecimento como indígenas, muitos desses
68
SAMPAIO, José Augusto Laranjeiras. Breve história da presença indígena no extremo sul baiano e a questão
do território pataxó do monte pascoal. Cadernos de História, v. 5, n. 6, p. 1-72, jul. 2000. 69
O cacique Juvenal da Costa Vales lidera o grupo que se autointitula Tupinambá, reivindicando terras entre os
municípios de Itapebi, Itagimirim, Itarantim e Potiraguá, conforme Brasileiro (BRASILEIRO, Sheila.
Comunidade Tupinambá no Vale do Jequitinhonha, município de Itapebi, Bahia. p. 223-242. In: CARVALHO,
Maria Rosário de; CARVALHO, Ana Magda (org.) et al.: Índios e caboclos: A história recontada. Salvador:
EDUFBA, 2012, 269 p. ISBN 978-85-232-1208-7. Em documento expedido como registro de atendimento pela
Coordenação Técnica Local em Eunápolis ao pesquisador Levi Sena Cunha, a FUNAI afirma que o cacique
lidera um grupo de índios urbanos na cidade de Eunápolis, em que se encontram desprovidos de territórios
reconhecidos oficialmente e nem habitam alguma terra que reivindiquem. Registro de Atendimento. Ministério
da Justiça, Fundação Nacional do Índio, Coordenação regional do Sul da Bahia, Coordenação Técnica Local,
Eunápolis-BA, em 15 de fevereiro de 2018. Ver anexo A. 70
Ibid.
71 Termo utilizado pelo cacique Juvenal Costa Vales para definir a ação de expulsão dos indígenas de suas terras.
38
possivelmente designados pela terminologia genérica de posseiros e trabalhadores rurais e
urbanos.72
Após o episódio do ―Fogo de 51‖, ocorreu o esvaziamento da aldeia de Barra Velha e
os destinos dos sobreviventes foram diversos. Caçados pelas redondezas, muitos indígenas
tiveram de buscar sobreviver em outros espaços, submetendo-se muitas vezes à condição
subumana, ao serem explorados em fazendas de café e cacau da região.73
A dispersão de indivíduos pertencente a grupos de índios pela região também foi
evidenciada no trabalho de Brasileiro,74 quando o cacique Juvenal da Costa Vales, a partir de
sua pesquisa em torno de um ―resgate étnico‖ em toda região, em prol da emergência étnica
de sujeitos, que, em sua maioria, ―não se consideravam índios‖, referenciou grupos que se
refugiaram em localidades como Eunápolis, Porto Seguro, Arraial d‘Ajuda e Belmonte.
Segundo ele, os indivíduos que vieram a compor o grupo sob sua liderança tiveram origem
em três matrizes étnicas: Tupinambá, Botocudo e Camacã. Esses grupos habitavam as áreas
pertencentes à Bahia e Minas Gerais, entre os rios Jequitinhonha, Buranhém e Frades, tendo
que se deslocar constantemente em busca de alimentos e proteção contra fazendeiros que
ameaçavam sua permanência.75
Na luta por reconhecimento enquanto indígenas, os povos nativos passaram também
por problemas quanto à identificação pelo Estado brasileiro dessa população como tal, o que
dificultou o caminhar das políticas públicas de obtenção de terras para esses povos. A
assimilação dos indígenas, a partir da perspectiva do Estado, passou por projetos de
caracterização dos sujeitos formadores da sociedade brasileira. Tais projetos refletiram na
metodologia utilizada nos censos demográficos em determinados períodos. Por exemplo, a
metodologia utilizada na obtenção de dados usada nos censos 1940 e 1950, em que foram
contabilizados os indivíduos que não falavam habitualmente o português no lar, entre esses
72
Ao afirmarmos que alguns dos indígenas não aldeados podem ter sido assimilados como posseiros,
trabalhadores rurais e urbanos, não afirmamos que todos esses eram indígenas, apenas que muitos desses
indivíduos pertenciam a algum grupo étnico de origem indígena. Reconhecemos a presença de povos não
indígenas que ocuparam esses espaços, mas nosso objetivo é problematizar a trajetória dos índios na região. 73 Rejane Cristine Santana, em sua dissertação de mestrado, elenca Itabela, Porto Seguro e Alcobaça, na região
do Rio Pardo e Rio das Palmeiras, como localidades receptoras de populações indígenas provenientes de Barra
Velha, mas podemos identificar outras localidades a partir da pesquisa de Sampaio, como Itaporanga, Santa Cruz
Cabrália, Prado e Itamaraju. In: CUNHA, Rejane Cristine Santana. O Fogo de 51 – reminiscências pataxó.
2010. Dissertação (Mestrado em História Regional e Local) – Universidade do Estado da Bahia, DCH – Campus
V, Santo Antônio de Jesus, 2010; SAMPAIO, José Augusto Laranjeiras. Breve história da presença indígena no
extremo sul baiano e a questão do território pataxó do Monte Pascoal. Cadernos de História, v. 5, n. 6, p. 1-72,
jul. 2000. 74
BRASILEIRO, Sheila. Comunidade Tupinambá no Vale do Jequitinhonha, Município de Itapebi, Bahia. p.
223-242. In: CARVALHO, Maria Rosário de; CARVALHO, Ana Magda (org.) et al. Índios e caboclos: A
história recontada. Salvador: EDUFBA, 2012. 269 p. ISBN 978-85-232-1208-7. p. 224.
75
Ibid.
39
grupos, foi mensurada a população indígena, sendo identificada como tal a partir do critério
do uso da língua nativa. Outro exemplo foi o censo de 1960, em que foi utilizado o quesito
―cor‖ para a identificação dos indígenas, mas os questionários só foram aplicados nas aldeias,
ou seja, a localização geográfica foi o determinante para obtenção de dados.76 Ambas as
formas de reconhecimento desconsideraram indígenas que perderam traços culturais
originários durante o violento processo de dominação cultural, como a língua nativa, que
habitavam as cidades, ou que, mesmo residindo na zona rural, não eram aldeados.
Na década de 1950, estimava-se uma população de 34% de brancos, 27% de pretos e
39% de pardos no Extremo Sul da Bahia.77 A priori, os percentuais indicam uma presença
majoritária de pardos na região. Entre esses dados estão contabilizados os indivíduos
indígenas, sem a preocupação de reconhecimento como tal, somente com a categoria de
―pardo‖, não especificação que dificulta a análise qualificada dessas populações da região,
mas, ainda assim, não impossibilita de pensarmos que, hipoteticamente, eram numerosas,
tanto nas cidades quanto no campo.
A terminologia ―parda‖ foi utilizada pelo Estado brasileiro para denominar os
indivíduos que não fossem classificados nem como brancos, nem como negros e nem com
índios, correspondente a uma mistura de cores, enquadrando, como tal, grupos heterogêneos e
reforçando o discurso de mestiçagem, a partir dos projetos de uniformização da população,
reflexo do projeto de integração dos indígenas à sociedade brasileira, vigente em praticamente
todo o século XX.78
Além da dificuldade em mensurar os indígenas, fica evidenciado um processo de
apagamento dos povos indígenas, quanto à produção desses dados. A falta de dados
específicos sobre os índios em conjunto com as demais violências sofridas por esses povos
ocasionou a dispersão e o silenciamento de sua presença em determinadas localidades antes
habitualmente ocupadas por eles.
Dito isto, podemos ir um pouco além das teses apresentadas anteriormente, se
lançarmos o olhar na perspectiva de que no próprio jogo de poderes pela posse das terras, o
enunciado que legitima determinado grupo, coloca os envolvidos nas disputas em escalas de
legalidade ou ilegalidade no acesso a terra. O usuário tradicional da terra poderia ser
descaracterizado como tal e colocado como simples invasor, já que, em boa parte da história,
76
IBGE. Os indígenas no Censo Demográfico 2010. Brasília, 2010. Disponível em:
http://www.ibge.gov.br/indigenas/indigena_censo2010.pdf. Acesso em: 22 de jul. 2019. 77
DEELEN, Pe. G. J. Estudos Sócio-Religiosos Nº 4: Diocese de Caravelas, Bahia. Parte I - Estudo Sócio-
Econômico. Centro de Estatística Religiosa e Investigações Sociais. Rio de Janeiro, 1966. p. 95. 78
OLIVEIRA, João Pacheco de. Horizontes Antropológicos. Porto Alegre, ano 3, n. 6, p. 61-84, out. 1997.
40
os indígenas foram relacionados diretamente com os aldeamentos, sendo só considerado como
tal o índio que vivia em aldeia. Neste sentido, possivelmente era taxado como posseiro o
indígena que usasse de posse da terra sem registro em cartório e que não habitasse em uma
aldeia, junto com outra porção de não indígenas que detinham a posse das terras através do
uso, e não de uma escritura legal ou ilegal de propriedade.
2.2 ―A RECUPERAÇÃO DA CAPITANIA DE PORTO SEGURO‖: O
DESENVOLVIMENTO E SEUS FRUTOS
A recuperação da outrora Capitania de Porto Seguro constitui hoje um imperativo
nacional, não somente pela exuberância das matas e riquezas do solo para a
utilização agro-pecuária, como, principalmente por ser, no Brasil, o ―habitat‖ natural
do dendê cujo óleo tanto carece nossa siderurgia e que somos obrigados a adquiri-lo,
na África, dispendendo divisas. Um outro fator, o histórico deve também ser
considerado porque foi em Porto Seguro, que o Brasil despontou para o mundo.79
Terras férteis, bem providas de madeiras de lei, ainda não desbravadas, como
descreveu Pero Vaz de Caminha em sua Carta à El Rei de Portugal, D. Manuel, em 1500: ―tal
maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo‖80. Um paraíso perdido. O
discurso de riquezas ainda inexploradas compõe o cenário com narrativas de isolamento e
abandono das municipalidades da região da ―outrora Capitania Porto Seguro‖81, encampada
como o lugar do desembarque dos portugueses.
Na narrativa, é construída uma paisagem fértil e necessitada de investimentos para que
possa ser engrenada no processo de desenvolvimento da economia nacional. Esse discurso
funcionou como mecanismo introdutório ao projeto de expandir as fronteiras agrícolas,
modernizar a agricultura e integrar regiões ainda isoladas, como o Extremo Sul da Bahia, à
dinâmica de crescimento econômico brasileiro, projeto este que se punha em andamento no
segundo governo de Getúlio Vargas (1937-1945), com o início das obras da BR-101, em
1944, e se intensifica com os governos militares (1964-1985), quando ela é inaugurada em
1973.
79
CAPITANIA de Porto Seguro: A sua recuperação. A Tarde, ano 50, Caderno 1, n. 16699, 30 mar. 1962. p.
5.APBCEB. 80
MINISTÉRIO DA CULTURA. Fundação Biblioteca Nacional, Departamento Nacional do Livro. A CARTA
de Pero Vaz de Caminha. Disponível em: Chrome-
xtension://oemmndcbldboiebfnladdacbdfmadadm/http://objdigital.bn.br/Acervo_Digital/livros_eletronicos/carta.
pdf. Acesso em: 28 fev. 2018. 81
A antiga Capitania de Porto Seguro corresponde ao que hoje constitui o território da região do Extremo Sul da
Bahia.
41
A intenção era recolonizar a região tão pouco explorada, introduzi-la nos caminhos do
progresso que o Brasil buscava caminhar. Gostaria de chamar a atenção de como o discurso
na citação do jornal A Tarde, que coloca o Brasil como surgido, ou melhor, ―despontado para
o mundo‖ a partir da chegada dos portugueses em 1500 e com a inserção do país nos trilhos
do capital mercantil. Neste sentido, a partir da ótica do narrador, a história do Brasil só teve
relevância por conta da colonização portuguesa. Todo o passado vivido pelos povos nativos
foi desconsiderado e as formas de organização social existentes na capitania foram tidas como
não desenvolvidas, sendo essencial a sua ―recuperação‖ através da intervenção de agentes
externos.
É necessário refletirmos sobre o discurso, partindo da perspectiva de que ele tem o
poder de colocar algo ou alguém em evidência enquanto apaga outros; sendo assim, neste
momento, a proposta de desenvolvimento para a nação sob a ótica do Estado nacional é que
pretende ser legitimada. Nesse caso, o modelo a ser seguido baseia-se na exploração das
riquezas dentro da lógica da produção capitalista, introduzido pelo sistema colonial, e não no
modo de vida dos povos tradicionais. Ganha ênfase a necessidade da antiga Capitania de
Porto Seguro ser ―redescoberta‖, não por sujeitos locais, mas sim por conquistadores
provenientes de outras regiões e pelo capital internacional.
Em outras publicações82 também ressoaram manchetes sobre a situação de abandono
da região pelas autoridades competentes. O descaso por parte do Estado que causou o
isolamento e o não aproveitamento do potencial produtivo agropecuário, madeireiro e
turístico dos municípios e povoações do Extremo Sul da Bahia, denunciados em campanhas
desenvolvimentistas ao longo do século XX, noticiaram os passos lentos em que caminhava o
progresso nessa parte da Bahia, constituindo-se como importante ferramenta de disseminação
da imagem de atraso da região, bem como do requerimento de mudança.
O ritmo do Extremo Sul da Bahia indicava um lento caminhar, distanciando-se do
desenvolvimento dos grandes centros do país. Num período relativamente curto de trinta anos,
entre as décadas de 1950 e 1970, a economia brasileira modernizou-se a ponto de congregar
padrões de produção e de consumo próximos a de países considerados mais desenvolvidos.83
Enquanto o Brasil buscava se modernizar a passos largos, nas narrativas encontradas em
periódicos não cessavam o abandono e o isolamento de municipalidades do Extremo Sul da
82
FREITAS, João Almeida. Capitania de Porto Seguro, fatores econômicos. A Tarde, ano 50, n. 16702, p. 5, 03
abr. 1962.; Idem. Discriminação e Opróbio. A Tarde, ano 50, n. 16820, 23 ago 1962; Idem. Recuperação
econômico-social do Sul Bahiano (sic.). A Tarde, ano 50, n. 16834, 10 set. 1962. APBCEB. 83
MELLO, João Cardoso de; NOVAIS, Fernando A. Capitalismo Tardio e sociabilidade moderna. In:
SCHWARCZ, Lilia Moritz. História da vida privada no Brasil: contrastes da intimidade contemporânea. São
Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 563.
42
Bahia por falta de incentivos públicos, como se a onda de progresso que se alastrava por
outras regiões da Bahia e do Brasil tardasse a lhes atingir.
Chamo a atenção para a importância de nos atentarmos para o modo como é montado
o cenário da região a partir das narrativas dos jornais. A imprensa cumpre a função de moldar
a opinião pública e, assim, legitimar ou deslegitimar projetos que se queira implantar. Não é
intenção discutir se a imagem enunciada nos jornais seja real ou não, mas que ela pode ser
produto da intencionalidade discursiva por trás dos impressos. Ou seja, as reportagens sobre
as condições desoladoras das cidades do extremo sul baiano fazem parte do conjunto de ações
para a concretização do projeto desenvolvimentista para a região.
Em uma carta publicada no jornal A Tarde, direcionada ao presidente João Goulart,
General J. Almeida Freitas reclama sobre as condições das municipalidades regionais:
Pôrto Seguro marco histórico do Brasil, é apenas, um relicário abandonado, porque
até o turismo lhe é defeso; Belmonte é hoje uma ilha continental onde se vai de
avião ou saveiro; Canavieiras cidade tradicional está às escuras desde vários anos;
Santa Cruz Cabrália é uma homenagem platônica ao Almirante Português e
Caravelas possui a glória de ser quase quadricentenária.
Essas cidades mal servidas por péssimas estradas não têm energia elétrica, porque a
existente, quando funciona mal chega para a iluminação; não possuem água
encanada, nem esgoto nem escolas primárias e secundárias suficientes (Pôrto Seguro
e Santa Cruz de Cabrália não tem ginásio), nem escolas técnico-profissionais ou
agro-pecuárias e nem faculdades; assistência à maternidade, à infância e à saúde são
mais que precárias. Em síntese, essas cidades nada têm do conforto, que o progresso
apraz conceder aos centros populacionais.84
O esquecimento da região, segundo o autor, consistia na falta de uma estrutura básica
para os moradores e possíveis visitantes, em que essas localidades são mantidas ―em estado
primitivo ou precário‖, de modo que ―não pode haver progresso‖.85 O discurso sobre o
abandono por parte das autoridades, o isolamento, a carência de atividades econômicas
lucrativas e o despovoamento foi evidenciado em escritos que discorrem sobre Porto Seguro
durante os quatro séculos que se seguiram após o ―Descobrimento do Brasil‖ e foi retomado
ao longo do século XX, com intuito de torná-lo o ―lugar de origem‖ do Brasil.86
Em meio aos discursos sobre a importância da região para a memória nacional, sobre
os símbolos do ―Descobrimento‖, é possível perceber também a narrativa sobre o pouco
aproveitamento do potencial do solo para a produção agrícola do local. A região é evidenciada
como uma possível solução para problemas sociais ligados à falta de alimentos:
84
RECUPERAÇÃO econômico-social do sul bahiano. A Tarde, ano 50, n. 16834, 10 set. 1962. p. 5. APBCEB. 85
Ibid. 86
AGUIAR, Leila Bianchi. Porto Seguro, “berço da nacionalidade brasileira”: patrimônio, memória e
história. Dissertação (Mestrado em História Social) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro,
2001. p. 58.
43
A fome existe na Bahia e no Nordeste sendo uma de suas causas o não
aproveitamento dessa região privilegiada cuja situação geográfica clama por sua
imediata utilização (sic). Se ela não é celeiro da Bahia, o fato reside tão somente no
abandono a que foi relegada não obstante ser do conhecimento popular que se
plantando tudo dará devido ao clima ameno e à abundância de água. 87
Um espaço com alta concentração de terras potencialmente produtivas ainda pouco
utilizadas por não indígenas, assim era desenhada essa parte da Bahia em jornais da década de
1960. De fato, o uso do solo nesse período não atendia às demandas que impunham a
modernização da economia baiana. Na década de 1960, o governo do estado empenhava-se
em consolidar a indústria na Bahia, processo que teve início nos idos da década de 1950 e vai
se concretizar nos anos 1970 com a implantação do Complexo Petroquímico de Camaçari
(CPC)88. Ainda segundo Pessoti89, o governo da Bahia lançou mão em atrair o empresariado
do eixo Sul-Sudeste para investir na industrialização no estado, concedendo incentivos fiscais,
o que resultou na instalação de um número expressivo de empresas e fábricas. Dentro deste
contexto, era imprescindível integrar o Extremo Sul à dinâmica de outras regiões do estado.
Para não termos uma tela do Extremo Sul pintada somente com pincéis do periódico
baiano – jornal A Tarde –, é importante visitarmos outros escritos sobre a região na primeira
metade e no início da segunda metade do século XX. Em algumas páginas do seu livro, o
padre José Koopmans disserta sobre o uso da terra e as relações que se estabeleciam através
das vivências rurais:
Era uma sociedade de pequenos produtores, de posseiros ou de camponeses e
pescadores. A maior parte morava na zona rural era formada de camponeses que
viviam da produção familiar, cultivando em suas roças sobretudo produtos
alimentícios. Era uma economia de subsistência ou tradicional. Mesmo assim não
eram totalmente excluídos do mercado. Na maioria das vezes, cada um usava um
pequeno pedaço de sua terra para cultivar produtos destinados ao ―mercado‖.
[...]
Os negócios geralmente fortaleciam os laços sociais entre as duas partes. Não era
raro que o comprador e o vendedor se tornassem compadres. Este tipo de ligação
existia até pouco tempo, mesmo depois de a região ter ficado muito ocupada. Quase
todos os produtores do interior que vendiam seus produtos nas feiras das cidades
87
CAPITANIA de Porto Seguro: a sua recuperação. A Tarde, ano 50, Caderno 1, n. 16699, 30 mar. 1962. p. 5.
APBCEB. 88
PESSOTI, Bruno Casseb; PESSOTI, Gustavo Casseb. A economia baiana e o desenvolvimento industrial: uma
análise do período 1978-2010. REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO (RDE), ano XIII, n 22.
Salvador, 2010. Disponível em: https://revistas.unifacs.br/index.php/rde/article/viewFile/1514/1199. Acesso em:
17 fev. 2019. 89
PESSOTI, Gustavo Casseb. As políticas de atração de investimentos industriais e o desenvolvimento industrial
da Bahia no período do regime militar brasileiro. In: ZACHARIACHES, Grimaldo Carneiro (org.). Ditadura
Militar na Bahia: histórias de autoritarismo, conciliação e resistência. Salvador, EDUFBA, 2014. p. 151-181.
44
tinham compadre na rua. Nos dias de feira, nos povoados e nas vilas, as casas dos
comerciantes eram invadidas pelos ―compadres‖.90
Através do relato de Koopmans, é possível ter uma noção de como se davam as
relações sociais e econômicas locais. Como a produção se organizava em torno do
minifúndio, objetivando atender em primeira instância as necessidades familiares, a
comercialização de excedentes consistia em uma alternativa para se ter acesso a
complementos das demandas familiares de produtos que não eram cultivados nas roças.
Artigos industrializados, alimentos e utensílios não produzidos em casa, eram possíveis de ser
encontrados, ainda que de maneira escassa, nas feiras, lugar este onde a compra, a venda e a
troca estabeleciam e ―fortaleciam laços sociais‖, como o de ―compadrio‖.
Para Pedreira91, esboçava-se a mão de obra familiar no cultivo em pequena escala de
café, milho, feijão, mandioca, batata, inhame e outras hortaliças, além da criação de pequenos
animais como galinhas, porcos e, eventualmente, uma vaca leiteira, intimamente ligada ao
consumo familiar e à comercialização dos excedentes. A estadia próxima ao mar, a rios e a
matas permitia o uso da pesca e da caça como complemento alimentar.
A experiência da labuta diária justifica a necessidade de auxílio de algum ―compadre‖
em meio à condição de isolamento, em que alguns produtos eram escassos ou quem sabe a
possibilidade de haver poucos braços para a execução de determinados serviços
estabelecessem e fortalecessem as relações de solidariedade entre vizinhos, que primavam
sobre o comércio e a possibilidade de acúmulo de capital: ―Quando um matava o porco, outro
vizinho não tinha, tinha que dar um quarto a ele [...] Não vendia não, não vendia nada! Era
tudo repartido com os vizinhos.‖.92 As relações sociais e financeiras desenvolvidas no
contexto rural apresentado caracterizavam-se como uma ―reprodução da economia
camponesa‖. Essa situação de ocupação e uso da terra relegou ao Extremo Sul baiano a
condição de ―marginal‖ em relação aos avanços econômicos do país.93
A condição de zona de fronteira aberta com grandes extensões, poucas propriedades e
baixa produtividade a nível de mercado forneceu condições propícias para que as terras se
90
KOOPMANS, José. Além do eucalipto: o papel do extremo sul. 2. ed. Teixeira de Freitas: DDH – Centro de
Defesa dos Direitos Humanos, 2005, p. 30. 91 PEDREIRA, Márcia da Silva. O complexo florestal e o extremo sul da Bahia: Inserção competitiva e
transformações socioeconômicas na região. 2008. Tese (Doutorado em Ciências Sociais em
Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade) – Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Rio de
Janeiro, 2008. p. 78-79. 92
MIRANDA, Moema M. Marques de. O Extremo Sul da Bahia e a Avassaladora Chegada da Modernidade. Rio
de Janeiro: FASE/IBASE, 1992, p. 13 [Relatório de Pesquisa] apud Ibid., p. 96. 93
COMPANHIA DE DESENVOLVIMENTO E AÇÃO REGIONAL-CAR (BA). Política de desenvolvimento
para o extremo sul da Bahia. Série Cadernos CAR, 3. Salvador, 1994. p. 16.
45
mantivessem com baixo valor monetário. No entorno do que veio a se tornar o povoado de
Eunápolis, em meados da primeira metade do século XX, por exemplo, loteavam-se e
comercializavam-se áreas de mata em ―troca de qualquer coisa‖,94 é o que relata Alcides
Lacerda sobre os negócios de Joaquim Quatro, personagem de seu romance O Fundador de
Eunápolis, Sessenta e Quatro, as Treze Marias, e os Anjos da Traição.
Joaquim Sacramento Bitencourt, apelidado de Joaquim Quatro, trocava áreas por ―[...]
espingarda velha, peles de animais selvagens, arroz, feijão, dias de serviços braçais, jumentos,
cangalhas, porcos, e até mesmo pequenas quantias de dinheiro, e até algumas rezes, isto já
mais adiante‖.95 Segundo Lacerda, o mineiro Joaquim Quatro chegou nessas paragens ermas
em 1942 e se apossou de ―4 áreas de terras que ele chamava de ‗minhas fazendas‘‖.96 O relato
de Lacerda chega a aparentar exagero, mas indica o baixo valor das terras na região, o que
permitiu o acesso mais facilitado aos agricultores com baixo poder aquisitivo.
A possibilidade de aquisição de terras, assim como de alimentos e produtos
industrializados também girava sobre uma lógica própria de relações monetárias e de
constituição de ramificações solidárias, em que outras formas de pagamento eram preferíveis.
Outra passagem do livro de Lacerda exemplifica a sobreposição das relações afetivas às
relações de mercado em torno da posse de terras:
[...] Joaquim Sacramento Bitencourt, quando gostava de alguma pessoa e via
naquela criatura uma pessoa diligente, ele até dava pedaços pequenos de terra, às
vezes de mais de um ou de dois alqueirões de matas virgens, beneficiando aquela
pessoa e constituindo, daquela forma, mais um parceiro e fiel amigo (...).97
Começaremos a análise da citação pela parte mais óbvia, quando Joaquim considera
mais importante estabelecer laços de amizade do que propriamente de comércio, preferindo
dar pedaços de terra ao vendê-los a pessoas que conquistassem sua afeição. Ele evidencia a
importância de se constituir esse tipo de relação naquele tempo e espaço. O trecho permite-
nos ter uma dimensão, para além da noção das relações sociais, da abundância de terras ainda
desocupadas por posseiros e/ou fazendeiros, para além do próprio Joaquim. Diante da
paisagem de muitos alqueirões de matas ainda virgens, possivelmente era de relevância para a
sobrevivência dos indivíduos desenvolverem a cooperação, baseando-se na construção de
parcerias.
94
LACERDA, Alcides. O Fundador de Eunápolis, Sessenta e Quatro, as Treze Marias, e os Anjos da
Traição. Radami: Editora Gráfica, 2005. p. 33. 95
Ibid., p. 33. 96
Ibid., p. 23. 97
Ibid., p. 33.
46
Com grandes extensões de matas e uma grande variedade de madeiras de lei, a
extração e o comércio da madeira foram as principais práticas econômicas desenvolvidas na
região, sendo reforçadas pela estrada de ferro Bahia-Minas. Implantada no final do século
XIX, a ferrovia possibilitou o escoamento da madeira, em boa parte proveniente de Mucuri,
pelo Porto de Caravelas. A atividade madeireira possibilitava a simbiose entre madeireiros e
pecuaristas, sendo que os primeiros não tinham interesse na propriedade da terra; ao extraírem
a madeira, abriam as matas, facilitando a formação de pastagens para a criação de gado. 98
Os pecuaristas utilizavam-se também da mão de obra de lavradores, como
agregados/meeiros, para ―limpar‖ a terra, derrubando matas e capoeiras onde eram colocadas
roças99, geralmente de milho, mandioca ou feijão; e, em seguida, entregavam a área com
pastagem, fazendo desses agregados nômades, buscando constantemente outros espaços para
plantar. A possibilidade de camponeses cultivarem terras também utilizadas por fazendeiros
não eximiu os conflitos entre ambos, em geral a expansão da atividade pastoril caracterizava-
se pela compra e legalização fraudulenta das terras e da expulsão de posseiros. Na expansão
da pecuária houve grande influência de criadores de outras regiões do estado – principalmente
Itapetinga e Planalto da Conquista – e nordeste de Minas Gerais, a pecuária se adentrou pelo
interior, sentido contrário à costa. Já a produção cacaueira, que também se desenvolveu na
região, seguiu o caminho diverso à criação de gado, consolidando-se ao longo da costa.100
A campanha desenvolvimentista dependia tanto da utilização das terras de forma
produtiva como também do ―aparelhamento dos meios de transporte das mercadorias e de
outros imprescindíveis ao desenvolvimento da região‖.101 Estrategicamente localizada entre o
Sul, o Sudeste e o Nordeste do país, faltava, segundo as narrativas, a iniciativa do governo
federal de implementar equipamentos que possibilitem o fluxo do transporte, impulsionar a
ocupação e o beneficiamento das terras e recursos naturais, além de investimentos na área do
turismo.
Comungando com os ideais da integração da região, lideranças políticas locais
solicitavam a construção e o melhoramento de portos e estradas de rodagem para o
desenvolvimento das municipalidades. A concretização de obras que viabilizassem a ligação
das municipalidades com o restante do estado e do país tornou-se bandeira da reivindicação.
98
COMPANHIA DE DESENVOLVIMENTO E AÇÃO REGIONAL-CAR (BA). Política de desenvolvimento
para o extremo sul da Bahia. Série Cadernos CAR, 3. Salvador, 1994. p. 17. 99
Termo utilizado como sinônimo de plantação. 100
PEDREIRA, Márcia da Silva. O complexo florestal e o extremo sul da Bahia: inserção competitiva e
transformações socioeconômicas na região. 2008. Tese (Doutorado em Ciências Sociais em Desenvolvimento,
Agricultura e Sociedade) – Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2008. 101
COMPANHIA DE DESENVOLVIMENTO E AÇÃO REGIONAL-CAR (BA). Política de desenvolvimento
para o extremo sul da Bahia. Série Cadernos CAR, 3. Salvador, 1994. p. 16.
47
Um exemplo desse empenho foi a carta enviada ao presidente Juscelino Kubitscheck de
Oliveira, pelo prefeito de Santa Cruz Cabrália, Sidrach Carvalho. Nela ele depositou suas
esperanças nas realizações efetivadas pelo governo federal, escrevendo:
Animado por tais propósitos, venho hoje, à presença de V. Excia. para ventilar o
assunto da construção do pôrto de Bahia Cabrália, e da rodovia que partindo da
Corôa Vermelha, neste Município, demande à cidade de BRASÍLIA futura capital
do Brasil, cuja rodovia já está planejada com a denominação de BR-48,102
como se
vê do plano anexo, que remeto para a apreciação de V. Excia.
A Abertura dessa estrada trará maior progresso para toda região do norte e oeste
mineiro, além do sul e oeste deste Estado da Bahia, pois o porto de Bahia Cabrália,
mesmo como está, é considerado um dos melhores do Brasil.103
A narrativa de Sidrach comunga com o pensamento do governo de Juscelino
Kubitscheck, que, fundamentado no lema de promover o desenvolvimento do Brasil de ―50
anos em 5‖, acreditava que a chegada do progresso, tanto para o extremo sul da Bahia quanto
para outras divisas do país, dependia da construção de rodovias. Com o discurso de
modernizar a economia brasileira, Juscelino Kubitscheck, através do seu plano de metas,
previa investir na edificação de Brasília, na indústria de base, na construção civil, nos setores
da alimentação, educação e transporte. É importante salientar que, junto com os investimentos
na construção de rodovias, deu-se a impulsão da indústria automobilística, a partir da abertura
do mercado nacional para empresas montadoras estrangeiras e nacionais.104
A implantação de um sistema rodoviário tinha por estratégia também promover a
integração nacional, em que a construção de Brasília viabilizaria um ponto central por onde
passariam ou de onde irradiariam os grandes eixos rodoviários do país. Neste sentido, ―para
que esse programa tivesse êxito, teriam de ser ligadas, umas às outras, as diferentes unidades
da federação, proporcionando-lhes, por fim, acesso fácil à nova capital‖. 105 Para tanto, surgiu
a ―ideia do cruzeiro viário‖ em que os grandes eixos se interligariam, promovendo assim a
conexão entre a capital federal, as capitais estaduais e os pontos extremos do país,
evidenciando a importância da construção da BR-48 na integração de regiões como o Extremo
Sul da Bahia com o resto do país.
102
A BR-48 constituiu-se como projeto embrião do que veio a ser a BR-367. 103
Ofício nº 25/57. Redigido pelo Prefeito Sidrach de Carvalho e endereçada ao presidente da República
Juscelino Kubitscheck de Oliveira. 28 maio 1957. APMSCC. 104
MELLO, João Cardoso de; NOVAIS, Fernando A. Capitalismo Tardio e sociabilidade moderna. In:
SCHWARCZ, Lilia Moritz. História da vida privada no Brasil: contrastes da intimidade contemporânea. São
Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 590-591. 105
PEREIRA, Luiz Andrei Gonçalves; LESSA, Simone Narciso. O processo de planejamento e desenvolvimento
do transporte rodoviário no brasil. In: CAMINHOS DE GEOGRAFIA. ISSN 1678-6343 versão online. p. 31.
Disponível em: http://www.ig.ufu.br/revista/caminhos.html. Acesso em: 11 ago 2019.
48
O movimento turístico, ainda incipiente, consistia em poucos viajantes, eventuais
marinheiros que desembarcavam nas cidades litorâneas. Os fluxos mais significativos
consistiam nas festividades religiosas que concentravam romeiros de diversas partes do país,
como as festas de Nossa Senhora D‘Ajuda e de Nossa Senhora da Pena, as duas realizadas em
Porto Seguro.106 A locomoção entre as localidades da região, bem como entre outras regiões,
eram dificultosas por conta da pouca estrutura viária como estradas, portos, aeroportos e
ferrovias.
Quanto ao transporte marítimo e fluvial, acontecia por meio de embarcações que
viajavam pela costa e interior adentro, pelos rios navegáveis. Em se falando de portos de
transporte de pessoas e cargas em maior volume como madeira e cacau, tinham destaque os
de Belmonte e Caravelas. O primeiro fazia a ligação da costa com o interior através do Rio
Jequitinhonha a partir do uso de canoas e batelões, bem como através de navios que
circulavam pela costa do Extremo Sul e eram responsáveis pela conexão com os portos de
Salvador e Ilhéus.107
O porto de Caravelas tinha o papel de fazer a ligação com o interior através da linha
ferroviária Bahia-Minas, importante ponto de escoamento da madeira extraída na região para
os principais consumidores do sudeste e Europa.108 Ademais, os portos de menor porte
funcionavam como suporte para a pesca e como entreposto comercial com a capital, como os
de Porto Seguro, Santa Cruz Cabrália e Alcobaça.109
Enquanto não se abriam rodovias na região, o avião era o transporte de cargas e
pessoas mais rápido e eficiente entre as cidades. Sua utilização deu-se a partir da construção
de pistas de pouso, pequenos aeroportos que permitiram voos estaduais e interestaduais, é o
que nos mostra o anúncio do ―Serviço Aéreo Condor‖, publicado no Jornal Oficial de
Belmonte, em que ele ofertava a escala de voos de Belmonte para ―Ilhéus‖, ―Bahia‖,
―Recife‖, ―Fortaleza‖, ―Therezina‖, ―Belem‖, ―Victoria‖ e ―Rio de Janeiro‖.110 Ainda havia os
serviços do ―Correio aéreo Militar‖ fazendo o percurso do ―Rio de Janeiro a Ilheus e vice-
106
MURICY, Ivana Tavares. O Éden terrestre: a construção social de porto Seguro como cidade turística.
2001. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2001. p. 24. 107
ROCHA, Artur Bahia. Atividade portuária em Belmonte: do apogeu à estagnação (1930-1960). 2013.
Monografia (Graduação em História) – Universidade Estadual da Bahia, campus VIII, Eunápolis, 2013. 108
DEELEN, Pe. G. J.; DONIDA, D. A. Estudos sócio-religiosos: Diocese de Caravelas, Bahia. Parte I –
Estudo Sócio-Religioso. Rio de Janeiro: Centro de Estatística Religiosa e Investigações Sociais, 1966. 109
CARVALHO NETO, Sidrach. Santa Cruz Cabrália: cinco séculos de história. Salvador: Secretaria da
Cultura e Turismo, 2004. 110
O HOMEM moderno aproveita 2 vezes por semana na ―linha norte‖ o serviço aéreo Condor. Jornal Oficial,
Da República – Belmonte, ano 16-51, n. 153, s/p, sábado, 9 nov. 1940. AMIB.
49
versa‖, obedecendo às escalas no ―Rio de Janeiro‖, ―Vitoria do Espirito Santo‖, ―S. Mateus‖,
―Caravelas‖, ―Porto Seguro‖, ―Belmonte‖, ―Canavieiras‖ e ―Ilheus‖.111
Havia poucas estradas e permaneceram por boa parte do século XX em péssimo estado
de conservação. Alcides Lacerda, em seu livro O Fundador de Eunápolis, Sessenta e Quatro,
As Treze Marias e os Anjos da traição, mencionou ―grandes e pequenas veredas por onde
transitavam tropas, o gado, os pedestres e os cavaleiros, raros, até o meado de 1942‖,
caminhos utilizados por quem circulava da região nordeste de Minas Gerais, passando pelo
interior do Extremo Sul baiano até chegar ao litoral.112 A abertura de estradas teve grande
influência dos madeireiros que as utilizavam para o escoamento da madeira.113
Ainda na década de 1940, tiveram início as obras de construção da BR-101, sendo
inaugurada em 1973. Essa rodovia se constituiu como um dos eixos rodoviários mais
importantes de articulação do Centro-Sul com o Norte-Nordeste do país, e uma promessa da
chegada do tão requerido progresso para as cidades da região. A BR-101 e a BR-367 – mais
especificamente o trecho que liga Porto Seguro à BR-101 – contribuíram também com a
consolidação do projeto de reconhecimento de Porto Seguro como berço da nação e impulsão
ao turismo:
[...] Não é preciso comentar que a região do descobrimento viveu durante 467 anos
relegada ao esquecimento e ao abandono, isso porque só em 1968 é que começou a
remoção da montanha que escondia um potencial turismo abandonado, voltando a
ser redescoberto com o advento do asfalto nas rodovias BR-101 e BR-367.114
(grifo
do autor)
O grande divisor de águas para a consolidação do projeto de integração do extremo
Sul da Bahia foi a BR-101, pois, a partir de sua inauguração em 1973, a região tomou outros
rumos em se falando de crescimento econômico e demográfico. Para Pedreira115, o
―movimento de integração econômica e de expansão do capitalismo e da industrialização no
país atinge o Extremo Sul da Bahia nos anos 1960, tendo como marco principal a construção
da BR-101‖. O evento de sua inauguração foi marcado pela elevação de toda a cidade de
Porto Seguro como monumento nacional pelo decreto 72.107, de 18 de abril de 1973, que
111
CORREIO AÉREO MILITAR. Jornal Oficial, Da República – Belmonte, ano 16-51, n. 153, s/p, sábado, 9
nov. 1940. AMIB. 112
LACERDA, Alcides. O Fundador de Eunápolis, Sessenta e Quatro e os Anjos da Traição. Radami:
Editora Gráfica, Feira de Santana, 2003. p. 22. 113
KOOPMANS, José. Além do eucalipto: O papel do Extremo-Sul. 2. ed. Teixeira de Freitas: DDH – Centro
de Defesa dos Direitos Humanos, 2005, p. 39. 114
TURISMO: Como Vamos. Jornal SÉCULO. p. 3, 10 out. 1974. APMCVE. 115
PEDREIRA, Márcia da Silva. O complexo florestal e o extremo sul da Bahia: inserção competitiva e
transformações socioeconômicas na região. 2008. Tese (Doutorado em Ciências Sociais em Desenvolvimento,
Agricultura e Sociedade) – Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2008.
50
contribuiu para o crescimento do turismo e da especulação imobiliária com a abertura das
estradas de acesso.116
A inauguração da BR-101 foi um momento culminante de um conjunto de
intervenções117
por parte do governo federal no intuito de ―integrar aquele recanto pátrio ao
progresso onde levou o asfalto, no dia 22 de abril de 1973‖ (grifo do autor) e contou com a
presença do governo militar na figura do general Emílio Garrastazu Médici.118 É
imprescindível notarmos que o evento foi pensado para a data em que se comemoraram os
473 anos da chegada de Pedro Álvares Cabral.
No ano de 1973, o general Médici assinou dois decretos com o intuito de incentivar o
turismo no Brasil, através de projetos que promovessem a estruturação de bases para o seu
desenvolvimento. O primeiro decreto ―dispõe sobre a delimitação de zonas prioritárias de
interesse turístico‖119, traçando assim um recorte espacial para os investimentos; já o segundo
declara 1973 o ―Ano Nacional do Turismo‖. 120
Foram selecionados três projetos pela Empresa
Brasileira de Turismo (Embratur), de acordo como objetivo de priorizar ―zonas de maior
interesse turístico‖121
. As propostas aprovadas abarcavam o eixo sudeste-nordeste. O
primeiro, o ―Turis‖, contemplou a região compreendida ―entre as cidades do Rio de Janeiro e
Santos‖; o ―Tursa‖ correspondia ao trecho ―entre as cidades do Rio de Janeiro e Salvador‖,
ambas localizadas no trajeto da BR-101; o terceiro, ―Turcen‖, voltava-se para o território de
Fernando de Noronha. 122
A promoção do turismo às regiões selecionadas aconteceria, em sua maior parte,
através da propaganda dos meios de comunicação que venderiam a imagem das maravilhas
pouco exploradas do litoral brasileiro. A campanha foi realizada não só nacionalmente, mas
116
AGUIAR, Leila Bianchi. Porto Seguro, “berço da nacionalidade brasileira”: patrimônio, memória e
história. 2001. Dissertação (Mestrado em História Social) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de
Janeiro, 2001. p. 71. 117
Segundo Leila Bianchi Aguiar, a partir de 1930 o governo Federal realizou um conjunto de ações visando
legitimar a cidade de Porto Seguro como berço da nação brasileira que culminaram com a comemoração dos 500
anos em 2000, projeto esse de consolidação de uma identidade nacional. Ações como: a ―revoada Porto Seguro‖
de 1939, em comemoração dos 439 anos da chegada dos portugueses; em 1940, o então presidente Getúlio
Vargas nomeou uma comissão com representantes do Ministério da Marinha, da Sociedade de Geografia do Rio
de Janeiro, do Ministério da Guerra e do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), para realização de
estudos que determinassem o local exato do descobrimento do Brasil; a criação do Parque Nacional do Monte
Pascoal através de decreto número 242, de 29 nov. 1961; o SPHAN, a partir de 1958, passou a realizar estudos
relacionados ao patrimônio de Porto Seguro; em 1965, o SPHAN liberou verbas para restauração do Paço
Municipal; em 1968, o conjunto arquitetônico da cidade alta de Porto Seguro foi tombado pelo SPHAN. Idem. 118
TURISMO... Ibid. 119
GOVERNO faz de 73 Ano Nacional do Turismo. A Tarde. 02 fev. 1973, p. 5. APBCEB. 120
Ibid. 121
Ibid. 122
Ibid.
51
também internacionalmente, através do programa ―conheça o Brasil‖, a ser desenvolvido no
exterior, além da instalação de agências de divulgação na Europa.123
O Extremo Sul baiano, isolado durante séculos, agora poderia ser acessado pelo
mundo por conta da BR-101, mas como um ―Éden terrestre‖124. Para se chegar até ele, ―o
caminho mais indicado para quem deseja seguir um roteiro sempre ao lado do mar e que
oferece praias bonitas e acolhedoras, testemunhas dos primeiros passos da nossa história.‖.125
Além das belezas naturais, como as da cidade de ―Caravelas lugar de praias virgens,
tranquilas e ensolaradas‖126
, há o contato com lugares que remetem a um passado
monumentalizado, consolidador de uma memória nacional e quem sabe até o turista ―talvez
tenha oportunidade de encontrar alguns pataxós, últimos remanescentes dos índios que
receberam Cabral‖127, na visita ao PNMP. ―É um roteiro fascinante‖ 128, reforça o repórter.
Reportagens como essa foram veiculadas nas mais diversas mídias a nível nacional e,
possivelmente, internacional, promovendo a imagem de um paraíso recém-descoberto, o que
potencializou o fluxo turístico da região.
Para além da propaganda em torno das belezas naturais da região, o turismo foi
movimentado por conta do elemento histórico de Porto Seguro. No ano de 1974, foram
estimados 30.131 visitantes, ao município e, destes números, cerca de 90% dos turistas foram
motivados por razões históricas. A partir da década de 1980, o fluxo de visitantes aumentou,
transformando-se em polo turístico de destaque nacional, apoiando-se no turismo de lazer,
vinculado às riquezas naturais, bem como à vida noturna e seus ―agitos‖, consagrando-se
como a ―Terra da Lambada‖.129
Os ditames do progresso chegados após a concretização da BR-101 não foram de todo
benesses para a região. O aumento no fluxo de pessoas visitando e se fixando nos municípios
também trazia consigo transformações. Muricy130 exemplifica esse quadro, quando aborda as
mudanças ocorridas na cidade de Porto Seguro com a expansão do turismo a partir da década
de 1970. Ela registra os impactos nos hábitos das pessoas, na paisagem, na organização
espacial e social urbana sob a influência do capital turístico na comunidade local através da
123
GOVERNO faz de 73 Ano Nacional do Turismo. A Tarde. 02 fev. 1973, p. 5. APBCEB. 124
Ver MURICY, Ivana Tavares. O Éden terrestre: a construção social de porto Seguro como cidade turística.
2001. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais). Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2001. 125
BR-101: Turismo de ponta a ponta. A Tarde. p. 3, 13 jan. 1988. APBCEB. 126
Ibid. 127
Ibid. 128
Ibid. 129
SUPERINTENDÊNCIA de Estudos Econômicos e Sociais da Bahia Celulose e turismo: Extremo Sul da
Bahia. Série estudos e Pesquisas, 28. Salvador: 1995. p. 45. 130
Ver MURICY, Ivana Tavares. O Éden terrestre: a construção social de Porto Seguro como cidade turística.
2001. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2001.
52
especulação imobiliária, na competição com empresas especializadas no atendimento aos
turistas, na alta dos preços de produtos e serviços, causando a exclusão dos grupos do centro
da cidade e formando as periferias.
A implantação do turismo enquanto atividade econômica expressiva para a região nos
anos 1970 contribuiu para a descaracterização de sua imagem de paraíso. Conjuntamente com
o turismo em larga escala, a expansão das atividades madeireiras como recurso para o
desenvolvimento regional trouxe sérias consequências em torno do desmatamento.131 O
escoamento da madeira foi facilitado pela construção da BR-101, impulsionando as frentes de
extração e a indústria madeireira provenientes dos estados do Espírito Santo e Minas Gerais.
O apoio à exploração madeireira veio por parte do governo estadual através da
implantação de um polo madeireiro no início da década de 1970 em Itabela, distrito de Porto
Seguro até 1989 quando se emancipou. Sua implementação deu-se de forma a adotar
estruturas para o beneficiamento da madeira, extraída na região, atividade que tinha a
finalidade de aproveitar os toros na própria região. Itabela chegou a ter cerca de 74 unidades
em funcionamento por volta de 1986, transformando a matéria prima na própria região.132
A ―Zona Industrial de Itabela‖133 estruturou-se com ramificações de empresas também
no povoado de Eunápolis, onde, entre 1972 e 1975, foram instaladas 20 indústrias
madeireiras134. Segundo o Jornal do Brasil:
A zona madeireira compreende toda a região administrativa -17, englobando
Itamaraju (Itamaraju, Medeiros Neto, Itanhém, Alcobaça, caravelas, Guaratinga,
Ibirapuã, Lagedão, Mucuri, Nova Viçosa, Porto Seguro, Prado e Santa Cruz
Cabrália) e Itagimirim. Mede 27 mil 814 quilômetros quadrados e conta com 385
mil habitantes aproximadamente.135
Todavia, a exploração madeireira tomou novas proporções com a implantação do
projeto de Distrito Industrial que atenderia a toda a região do extremo sul. Mesmo com os
números relatados sobre a quantidade de unidades em funcionamento no polo, havia a
tendência de criação de novas unidades. Devemos nos atentar também para a existência de
serrarias itinerantes que acompanharam o movimento de esgotamento das matas,
131
SUPERINTENDÊNCIA..., op.cit., p. 48. 132
COMPANHIA DE DESENVOLVIMENTO E AÇÃO REGIONAL-CAR (BA). Política de desenvolvimento
para o extremo sul da Bahia. Série Cadernos CAR, 3. Salvador, 1994. p. 50 133
ITABELA é o pólo do Extremo Sul. Bahia. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, ano 1974, n. 00240 (1), 4 dez.
1974. p. 23. Disponível em:
http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=030015_09&PagFis=21452&Pesq=Eun%C3%A1polis.
Acesso em: 16 nov. 2017. 134
SECRETARIA DO SANEAMENTO E DESENVOLVIMENTO URBANO. Plano Diretor da Cidade de
Eunápolis. v. Síntese. Salvador, jun. 1977. p. 19. 135
ITABELA..., op. cit. p.23.
53
popularmente conhecidas como ―pica-pau‖.136 Tomando como exemplo, a quantidade de
serrarias em funcionamento em Eunápolis, alguns jornais noticiaram números maiores do que
fora referendado pelo PDU de Eunápolis, a exemplo do carioca Jornal do Brasil de 1975: ―O
Espírito Santo já é um deserto‖ – declarou –―e no Sul da Bahia existem mais de 100 serrarias
na cidade de Eunápolis trabalhando a todo vapor num processo irreversível que é a destruição
da flora‖. 137
Em toda a região se configurou a extração de madeiras, fenômeno que passou a
ameaçar o ecossistema da Mata-Atlântica. Através da análise da Figura 2 (a seguir), é possível
termos ideia dos estágios de avanço do desmatamento no extremo sul da Bahia. Nela, as áreas
de coloração verde representam os espaços cobertos pela mata nativa; já as de cor clara, as
áreas utilizadas em atividades econômicas ligadas ao cultivo da terra:
Figura 2 - Processo de diminuição da cobertura vegetal no Extremo Sul da Bahia, 1945-1990
Fonte: ALMEIDA, Thiara Messias de. Cultivo de Eucalipto no Extremo Sul da Bahia: Modificações no uso
da terra e socioeconômicas. 2009. Dissertação (Mestrado em Desenvolvimento Regional e Meio Ambiente) –
Universidade Estadual Santa Cruz, Ilhéus-BA, 2009, p. 56.
A Figura 2 evidencia o quadro evolutivo do desmatamento no espaço de tempo de 45
anos, mais especificamente entre os anos de 1945 e 1990. Observando a imagem é possível
notar que, quanto mais próximo da finalização das obras da BR-101, na década de 1970, é
quando se localizam os maiores índices devastação da área verde. Junto com a derrubada das
matas, concilia-se a expansão da pecuária, da agricultura e do cultivo de florestas plantadas;
136
SECRETARIA..., op.cit., p. 18. 137
JORNAL DO BRASIL. Nacional, Rio de Janeiro, ano 75, n. 00066, 13 jun. 1975. 1° Caderno, p. 12.
Disponível em:
http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=030015_09&PagFis=21452&Pesq=Eun%C3%A1polis.
Acesso em: 16 nov. 2017.
54
esta última já presente na região como alternativa de reflorestamento. Todos passaram a
ocupar os espaços deixados pelas florestas nativas.
A afirmação de conciliação da extração madeireira com outras formas de uso da terra
pode ser identificada através da leitura dos dados apresentados na Tabela 1:
Tabela 1 - Utilização das terras no Extremo Sul da Bahia, 1970-1985
Uso da terra 1970 1975 1980 1985
Área (ha) % Área (ha) % Área (ha) % Área (ha) %
Lavouras
permanentes
70.183 3,24 60.884 3,08 103.083 4,94 137.908 5,67
Lavouras
temporárias
69.600 3,21 93.267 4,71 81.225 3,94 98.213 4,04
Pastagens
naturais
435.554 20,10 502.577 25,41 747.066 35,82 658.242 27,07
Pastagens
plantadas
712.982 32,90 768.170 38,83 535.374 25,67 812.011 33,39
Matas e
florestas
naturais
656.513 30,30 354.906 17,94 374.451 17,95 379.383 15,6
Matas e
florestas
plantadas
2.936 0.14 8.544 0,43 30.760 1,47 53.457 2,2
Terras em
descanso e
produtivas
não utilizadas
219.047 10,11 189.809 9,60 212.791 10,2 292.601 12,03
Total 2.166.815 100 1.978.157 100 2.085.750 100 2.431.815 100
Fonte: ALMEIDA, Thiara Messias de. Cultivo de Eucalipto no Extremo Sul da Bahia: Modificações no uso
da terra e socioeconômicas. 2009. Dissertação (Mestrado em Desenvolvimento Regional e Meio Ambiente) –
Universidade Estadual Santa Cruz, Ilhéus, 2009. p. 57.
Ao observarmos os dados da Tabela 1, chegamos aos idos de 1970 a 1985, em que é
possível perceber um decréscimo de 656.513 para 379.383 das florestas naturais, as quais
deixaram de cobrir 30,30% para somente 15,6% das terras. Enquanto isso, neste mesmo
período, as culturas que substituíram o espaço deixado pelas matas aumentaram o seu volume,
sendo o destaque para a ocupação da região por pastagens naturais e plantadas, com 53% da
área total em 1970, chegando a ter 64,24% em 1975, e uma pequena queda até os 60,46% em
1985.
Enquanto a pecuária liderava os índices trazidos pela Tabela 1, as lavouras
permanentes e temporárias, as florestas plantadas, as terras em descanso e produtivas não
55
utilizadas ocupavam de forma secundária a porcentagem no uso das terras. As lavouras na
década de 1970 cobriram cerca de 6,45%, com um pequeno crescimento no percentual
chegando aos 9,71% em 1985; já as florestas plantadas obtiveram os menores percentuais
com 0,14% das terras em 1970, expandindo o índice para 2,2% em 1985. Quanto às terras em
descanso e não produtivas, elas também passaram por um leve aumento em suas áreas de
10,11%, em 1970, para 12,03%, em 1985. O aumento das áreas de cultivo e pecuária
significou a diminuição das áreas de matas e florestas nativas.
Buscando uma solução que atendesse as demandas do mercado madeireiro, frente ao
desmatamento e às grandes empresas que adentravam a região, além de tentar manter o
projeto de implantação de um Distrito Industrial Madeireiro e diante da possibilidade da falta
de matéria-prima, o governo federal estimulou, através de incentivos fiscais, o
reflorestamento a partir do plantio de eucalipto e pinus. Essa medida fez parte de um pacote
de ações visando incentivar a implantação da agroindústria na região Nordeste; para tanto,
seriam concedidas isenções e incentivos através da Superintendência do Desenvolvimento do
Nordeste (SUDENE), do BNB, do Fundo de Investimentos para o Desenvolvimento
Econômico e Social do Nordeste (FIDENE)138, além do licenciamento e acompanhamento do
IBDF.
O Plano Diretor da SUDENE para o ano de 1961, instituído pela Lei 3.995/61, passava
a dar preferência à agroindústria em detrimento de outras atividades, quando se tratasse do
desenvolvimento do Nordeste. No ano de 1963 o Decreto 4.239 aprovou a segunda etapa do
Plano Diretor do Desenvolvimento do Nordeste, para os anos de 1963, 1964 e 1965, e dá
outras providências. Este decreto criou ―o Fundo de Investimentos para o Desenvolvimento
Econômico e Social do Nordeste (FIDENE) operando na forma desta lei, para garantir a
exeqüibilidade financeira dos projetos e obras, previstos no artigo 5º, que a SUDENE
considerar prioritárias, relevantes ou de interesse para a economia do Nordeste‖.139 De acordo
com o artigo 13º, os empreendimentos agrícolas e industriais que se instalarem na área
compreendida como de atuação da SUDENE, até o ano de 1968, teriam isenção nos impostos
de renda não restituíveis de até 10 anos, podendo se prolongar por até 15 anos, a depender da
localização e dos rendimentos desvantajosos do empreendimento, mediante o parecer da
Secretaria Executiva da SUDENE aprovado pelo seu Conselho Deliberativo.140
138
CARVALHO, Marcia Maria Andrade de. A “ambientalização” do discurso empresarial no extremo sul
da Bahia. 2006. Tese (Doutorado em Planejamento Urbano e Regional) – Instituto de Planejamento Urbano e
Regional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2006. p. 78-79. 139
Ibid. p. 78. 140
Ibid.
56
Em 15 de setembro de 1965 foi instituído o novo Código Florestal, a partir da Lei
4.771-65. O texto da lei deixou um tanto confusa a noção de floresta, sendo usado tanto para
definir uma plantação de árvores quanto um conjunto diverso de espécies de árvores nativas
da região. Essa mesma lei determina que os estabelecimentos oficiais de crédito deveriam
conceder priorizar os projetos de florestamento e de reflorestamento, bem como a aquisição
equipamentos necessários aos serviços. Ficaria a cabo do Conselho Monetário Nacional,
órgão disciplinador do crédito e das operações creditícias, ―estabelecer as normas para os
financiamentos florestais, com juros e prazos compatíveis, relacionados com os planos de
―florestamento‖ e ―reflorestamento‖ aprovados pelo Conselho Florestal Federal.‖141
Os estudos de Luna e Klein142 mostram como os governos militares articularam
mudanças na política econômica nacional – as quais tiveram interferência direta no Extremo
Sul da Bahia em meados das décadas de 1970/80 –, sendo que os interesses giraram em torno
de beneficiar a iniciativa privada e o capital industrial. Entre os objetivos, concentraram-se
em: viabilizar a concentração fundiária e a monocultura expansiva; possibilitar o crescimento
do mercado exportador, além de garantir maior rentabilidade aos exportadores; e facilitar o
acesso ao crédito, benefícios e subsídios fiscais para o setor privado, prevendo assim um
aumento da produção.
Tais medidas, também direcionadas ao setor rural, foram tidas como uma impulsão
para o aumento da produção de alimentos, tendo em vista o arrocho salarial, bem como a
inflação que afetou diretamente a classe trabalhadora, primando pela promoção do
crescimento da produção agroindustrial voltada para a exportação. Segundo os autores, ―No
Brasil poucos projetos privados se iniciavam sem anuência de alguma instituição
governamental para obter crédito, licença para importação ou subsídios fiscais‖.143
Em sua esfera, o governo do estado também estabeleceu planejamento e apoio ao
desenvolvimento da pecuária, projetos de reflorestamento e polos açucareiros na Bahia,
prevendo o crescimento de polos industriais através das Diretrizes para a Ação
Governamental, no governo Roberto Figueira Santos (1975-1979), e as Diretrizes e Metas do
segundo governo Antônio Carlos Magalhães (1979-1983).144
141
Ibid., p. 79. 142
LUNA, Francisco Vidal; KLEIN, Herbert S. Transformações econômicas no período militar (1964-1985). In:
REIS, Daniel Aarão; RIDENTI, Marcelo; MOTTA, Rodrigo Patto Sá. A ditadura que mudou o Brasil: 50 anos
do golpe de 1964. Rio de Janeiro, Zahar, 2014, p. 92-111. 143
Ibid., p. 96. 144 MALINA, Léa Lameirinhas. A territorialização do monopólio no setor celulístico-papeleiro: a atuação da
Veracel Celulose no Extremo Sul da Bahia. 2013. Dissertação (Mestrado em Geografia Humana) – Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013. p. 183.
57
Os incentivos disponibilizados pelo estado capitanearam empresas do sul e do sudeste
brasileiro, além de parcerias com empresas estrangeiras, que se estabeleceram no extremo sul
da Bahia durante 1970 e 1980, visando a exploração da madeira para indústria de móveis, de
celulose e carvoeira. Nessas décadas se instalaram, apossando-se, nem sempre de forma legal,
de extensas porções de terra na região, empresas voltadas para a produção de papel a base de
celulose, como a Aracruz Florestal S.A., as subsidiárias da Companhia Vale do Rio Doce
(CVRD): a Flonibra Empreendimentos Florestais S.A. e a Brasil Holanda Indústria S.A.
(Bralanda).145
O programa de industrialização através da exploração madeireira e o aumento da
produtividade agrícola serviram de mecanismos para o projeto de integração do Extremo Sul
baiano à economia nacional sob o prisma dos incentivos à instalação da agroindústria, esse
que primou pelo acúmulo de grandes extensões de terras, modificando a estrutura
socioeconômica baseada na diversidade cultural dos pequenos produtores, os quais, em boa
parte, não possuíam titulação das terras das quais usufruíam. O ideal de desenvolvimento
pretendido pelo planejamento do governo militar não dava aos pequenos produtores rurais que
já se encontravam na região as mesmas condições de produção oferecidas às empresas que
pleiteavam se instalar.
Segundo Carvalho,146 os estudos do Programa de Desenvolvimento de Áreas
Integradas do Nordeste – POLONORDESTE –, realizados em 1976, apresentaram as
características físicas da região, as culturas já existentes, além de suas potencialidades e
empecilhos ao desenvolvimento da produção econômica. O programa evidencia um conjunto
de culturas como da mandioca, cacau, feijão, azeite de dendê, piaçava, todas elas consideradas
em estágio ―rudimentar de produção, comparados com aqueles racionais e de grande
produtividade é apontado como fator que teria limitado as atividades produtivas na região‖,147
sendo esses fatores considerados como de atraso ao desenvolvimento rural da região.
O programa POLONORDESTE evidenciou a pouca ou nenhuma intervenção de
organismos governamentais em organizar e estruturar diretrizes as atividades produtivas em
torno das culturas minifundiárias da região. A educação profissionalizante bem como
orientações quanto ao associativismo, cooperativismo, embora necessárias, não foram
aplicadas. Ao crédito rural, somente tinha acesso uma limitada faixa de agricultores que
145
Ibid., p. 187. 146
CARVALHO, Marcia Maria Andrade de. A “ambientalização” do discurso empresarial no extremo sul da
Bahia. Tese (Doutorado em Planejamento Urbano e Regional) – Instituto de Planejamento Urbano e Regional,
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2006. p. 81. 147
Ibid., p. 81.
58
tinham suas terras legalizadas. Toda essa situação punha os posseiros e outros que não tinham
a posse legalizada, pequenos produtores e extrativistas necessitados do auxilio técnico para o
crescimento produtivo, à margem do programa de desenvolvimento regional.148
Alves149, ao analisar boletins da Diocese de Caravelas, expõe os reclames de pequenos
proprietários que não gozavam dos benefícios concedidos pelo governo baiano a grandes
produtores. Os escritos dizem das dificuldades encontradas pelos pequenos ao tentarem
conseguir empréstimos junto às agências financiadoras estatais, como também o auxílio de
assistência técnica por parte dos órgãos públicos competentes, além de empecilhos para
regularizarem suas terras.
O impedimento dos trabalhadores de usufruírem dos benefícios legados ao grande
capital criou um óbice de se enquadrarem ao projeto de desenvolvimento regional, baiano e
brasileiro do período. Os posseiros tornaram-se descartáveis a partir do momento em que não
produzem ao nível estipulado para a região a ponto de atingir as expectativas do grande
capital. Diga-se de passagem, por não serem incorporados ao sistema de produção em larga
escala, tendo disponíveis ferramentas para isso, ou de forma mais significativa, por se
tornarem entraves para a implantação do modelo de desenvolvimento fundamentado no
latifúndio monocultor agroexportador.
Neste contexto, os posseiros, por se situarem no meio do caminho do dito progresso
encabeçado por multinacionais e grandes fazendeiros, sendo ainda desprotegidos pelo Estado,
tornaram-se alvos da grilagem de terras.
[...] cabe considerar que era uma iniciativa que vinha de cima e não por pressuposto
as expectativas da população local, de maneira que não havia a participação dos
habitantes locais nas decisões governamentais para a industrialização regional.
Podemos verificar a ausência e o silenciamento das vozes locais em tal projeto,
quando o informativo diocesano denuncia que houve ―inúmeros casos de grilagem e
expulsão‖ das populações rurais das suas terras.150
É visível que o projeto em andamento endossava o processo de concentração de terras,
baseado na expulsão dos pequenos agricultores do campo, acarretando o acúmulo de riqueza,
a homogeneização da produção e a não distribuição da renda. A impossibilidade de
participação da população rural nas decisões deixou-os à mercê das decisões tomadas em
148
Ibid. 149
ALVES, Leonardo do Amaral. Experiências forjadas a ferro e fogo: Religiosidade, organicidade e luta pela
terra no extremo sul da Bahia no contexto da ditadura civil-militar (1978-1985). 2017. Dissertação (Mestrado em
História) – Universidade Estadual de Feira de Santana, Feira de Santana, 2017. 150
ALVES, Leonardo do Amaral. Experiências forjadas a ferro e fogo: Religiosidade, organicidade e luta pela
terra no extremo sul da Bahia no contexto da ditadura civil-militar (1978-1985). 2017. Dissertação (Mestrado em
História) – Universidade Estadual de Feira de Santana, Feira de Santana, 2017. p. 75.
59
esferas que não compartilhavam dos anseios dos indivíduos que já se encontravam explorando
de forma tradicional os recursos da região a várias gerações, como é o caso dos indígenas,
pescadores, remanescentes quilombolas, agricultores, grupos estes que tiveram suas terras e
seus modos de vida ameaçados pelo desenvolvimento.
A expulsão da população rural de suas terras, executada pelos que se consideravam
novos donos das propriedades, quase nunca acontecia de forma pacífica. Como boa parte das
terras eram pertencentes ao Estado – terras devolutas –, aconteciam constantemente conflitos
entre posseiros e grileiros pela posse de áreas agricultáveis. Sobre a chegada avassaladora dos
grupos responsáveis pela expansão da agroindústria na região e das formas de obtenção de
terras, Koopmans relata-nos que:
Parte dessas terras estava ocupada por pequenos produtores, que não tinham
documentação legal de sua posse, a não ser um recibo de compra. Foram inúmeros
os conflitos das terras, quase todas as fazendas têm sua história sangrenta, e muitos
posseiros foram roubados, expulsos de suas terras, pois os novos ―invasores‖ sempre
arranjavam documentos ―legais‖ e mais velhos do que aqueles apresentados pelos
posseiros. Outros venderam suas terras por um preço muito baixo, pois não tinham
idéia de que com a abertura da região, haviam valorizado bastante. Os novos
ocupantes vieram pra valer.151
A disputa pela posse rural configurou um cenário violento e de combate de forças
desiguais entre pequenos e grandes produtores. As estratégias utilizadas pelos grandes
fazendeiros e pelas empresas madeireiras e de celulose152 foram diversas: utilização de
―intermediários que se diziam corretores‖ e utilizavam do convencimento para a venda das
terras; o isolamento do pequeno proprietário em meio a eucaliptais; o uso da violência por
meio de jagunços e da força política e policial como mecanismo de coação contra os
posseiros, para que vendessem ou abandonassem as terras; o conchavo com cartórios, para
forjarem títulos de propriedade.153
151
KOOPMANS, José. Além do eucalipto: o papel do extremo sul. 2. ed. Teixeira de Freitas: DDH – Centro de
Defesa dos Direitos Humanos, 2005. p. 56. 152
Segundo Carvalho, as plantações de eucalipto foram iniciadas na região na década de 1970. CARVALHO,
Marcia Maria Andrade de. A “ambientalização” do discurso empresarial no extremo sul da Bahia. Tese
(Doutorado em Planejamento Urbano e Regional) – Instituto de Planejamento Urbano e Regional, Universidade
Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2006. 153
Sobre as estratégias de obtenção das propriedades utilizadas pelos fazendeiros e as empresas que pleiteavam
as áreas usadas pelos pequenos agricultores no extremo sul da Bahia, ver: ALVES, Leonardo do Amaral.
Experiências forjadas a ferro e fogo: Religiosidade, organicidade e luta pela terra no extremo sul da Bahia no
contexto da ditadura civil-militar (1978-1985). 2017. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade
Estadual de Feira de Santana, Feira de Santana, 2017; KOOPMANS, José. Além do eucalipto: o papel do
extremo sul. 2. ed. Teixeira de Freitas: DDH – Centro de Defesa dos Direitos Humanos, 2005.
60
Alves154 concluiu que, mesmo diante das tentativas de desarticulação dos agentes
militares locais e das investidas objetivando tomadas de terras por parte dos grileiros, os
camponeses ameaçados resistiram e organizaram-se com o apoio de padres diocesanos de
Caravelas. Abordaremos, de forma mais incisiva, os conflitos agrários na região no III
capítulo, mais especificamente os acontecimentos noticiados em torno de Eunápolis, o objeto
direto desta pesquisa.
O programa de desenvolvimento regional impulsionava o latifúndio e a expulsão de
uma grande parcela da população rural do campo. Os dados disponíveis na Tabela 2 dão uma
dimensão da dinâmica populacional no extremo sul da Bahia na relação campo e cidade:
Tabela 2 - População residente por situação de domicílios 1970-1991, Extremo Sul da Bahia
Crescimento Populacional do Extremo Sul da Bahia
Rural Urbana Total
1970 1980 1991 1970 1980 1991 1970 1980 1991
324.275 332.061 205.092 91.757 124.395 328.127 416.032 456.463 533.219
Fonte: ALMEIDA, Thiara Messias de. Cultivo de Eucalipto no Extremo Sul da Bahia: Modificações no uso
da terra e socioeconômicas. 2009. Dissertação (Mestrado em Desenvolvimento Regional e Meio Ambiente) –
Universidade Estadual Santa Cruz, Ilhéus, 2009. p. 83.
Conforme os dados da Tabela 2, a população total da região teve um crescimento
vegetativo significativo entre as décadas de 1970 e 1980, cerca de 40.431 pessoas,
aproximadamente 9,7% em apenas dez anos. Já no intermédio entre 1980 e 1991, os números
quase que duplicam, chegando aos 76.756 no último ano, um aumento de aproximadamente
16,7%. Este aumento pode ser explicado pela migração inter-regional e interestadual, sendo o
desenvolvimento econômico um atrativo para trabalhadores, comerciantes, agropecuaristas e
industriais de outras regiões.
Em relação à dinâmica demográfica campo-cidade, é possível estabelecer uma relação
entre as Tabelas 1 e 2, considerando a expansão do latifúndio e o movimento populacional da
região. A leitura das duas décadas iniciais, representadas na Tabela 2, evidencia uma queda
nos números da população rural de 7.786 pessoas, aproximadamente 2,4%, no período
intermediário entre 1970 e 1980, enquanto a urbana cresce em 32.638, aproximadamente
35,5%. Entre 1980 e 1991, a população rural decresce em 126.969 residentes, percentual
aproximado de 38,2%, e a população urbana aumenta em 203.732, aproximadamente 163,7%,
ou seja, os dados mostram que, nesses onze anos, ocorreram os maiores registros de êxodo
rural e crescimento nas cidades do Extremo Sul baiano. De acordo com a Tabela 1, os maiores 154
ALVES, Leonardo do Amaral. op.cit.
61
índices de expansão da agroindústria ocorreram na década de oitenta, o que nos faz relacionar
o desenvolvimento deste com o êxodo rural.
Índices como estes evidenciam as consequências do processo de industrialização e
modernização da economia regional, haja vista que os investimentos governamentais para
uma nova organização se estruturavam no campo e nas cidades. A nova roupagem da
agricultura incentivada pelo governo militar, voltada para a formação de latifúndios
monocultores e modernização da agricultura, fomentou a extinção de boa parte dos
minifúndios, cujo cultivo se dava de forma diversificada; além de relações tradicionais que se
estabeleceram ao longo de gerações, como a de parceria/agregação e a de relações de
solidariedade, concomitantemente com a expansão e a modernização do criatório bovino e dos
eucaliptais.
Pedreira155 analisa a estratégia de desenvolvimento do Extremo Sul da Bahia,
fomentada pelo governo federal e estadual, a partir da implantação do complexo florestal-
celulósico e as modificações socioeconômicas ocorridas na região como consequências. A
autora problematiza a noção de desenvolvimento, colocando em perspectiva a dinâmica da
ocupação e do cultivo da terra antes e depois do processo de integração regional à economia
nacional156. O andamento do projeto levou o progresso, resultando: na ação da especulação
imobiliária que inflacionou os valores das áreas agricultáveis; no aumento das áreas de
plantação de eucalipto; na modernização e expansão da pecuária, associadas à ausência de
políticas públicas, colocando limites às probabilidades de expansão e reprodução das bases de
cultivo tradicionais do campesinato, causando transformações ―na organização social,
aprofundando o processo de desterritorialização das comunidades e desagregação das relações
sociais‖157 mantidas a quase um século e, com isso, implicando na evasão da população rural
para os centros urbanos.
Com a nova estrutura que se dimensionava, foram reduzidas as possibilidades de
permanência no campo a níveis que obrigaram a uma parcela considerável de indivíduos a
procurarem abrigo nas cidades da região. Cabe salientar também a maior facilidade de
155
PEDREIRA, Márcia da Silva. O complexo florestal e o extremo sul da Bahia: inserção competitiva e
transformações socioeconômicas na região. 2008. Tese (Doutorado em Ciências Sociais em Desenvolvimento,
Agricultura e Sociedade) – Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2008. 156
A autora coloca a década de 1960 como marco na intensificação do processo de integração do Extremo Sul da
Bahia à economia nacional. 157
PEDREIRA, Márcia da Silva. O complexo florestal e o extremo sul da Bahia: inserção competitiva e
transformações socioeconômicas na região. Tese (Doutorado em Ciências Sociais em Desenvolvimento,
Agricultura e Sociedade) – Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2008. p. 113.
62
deslocamento de pessoas e bens possibilitado pela BR-101; bem como, a redução das
distâncias e o aumento do fluxo humano entre as localidades rurais e urbanas.
O êxodo rural associado aos chegantes, provenientes de outras regiões da Bahia e de
outros estados, aumentou em muito a população do Extremo Sul – com foi visto na Tabela 2 -
, e redimensionou a hierarquia dos centros regionais. Após a concretização das obras da BR-
101, os polos atrativos populacionais deixaram de ser as urbes litorâneas e passaram a ser as
interioranas, com predominância dos núcleos que margeavam a rodovia como Teixeira de
Freitas, Itamaraju e Eunápolis. Estes centros, principalmente Teixeira de Freitas e Eunápolis,
atraíram uma grande massa humana movida pelo anseio de trabalho, melhores estruturas nas
áreas de saúde e educação, ofertas de bens e serviços capitaneados por esses dois povoados. O
caminhar do ―progresso‖ na região acabou por transformar Eunápolis (um simples povoado)
em um ―polo regional‖.
2.3 EUNÁPOLIS: UM ―POLO REGIONAL‖
Em sua formação como um importante centro urbano da região, Eunápolis encontrou-
se atada à reestruturação socioeconômica fundiária do Extremo Sul. Para compreendermos
como se deu a sua inserção no contexto de transformação regional e, atrelado a isso, o seu
crescimento, é preciso que seja feita a reflexão sobre o processo que levou à possibilidade do
povoado ser considerado como um ―polo regional‖. É com esse intuito que este subtópico se
desenvolve.
Por polarização, compreendemos como a
capacidade dos centros urbanos de exercer influência sobre outras localidades, de
modo a induzir mudanças no caráter econômico e social das relações intermunicipais
e inter-regionais. A cidade pólo é, assim, capaz de gerar e irradiar inovações para a
região sob o seu domínio, uma vez que exerce forte atração para concentrar recursos
e investimentos.158
A concentração de investimentos, que não são distribuídos de forma igual para as
outras cidades, leva em consideração a localização, o tamanho, a função, bem como a
disponibilidade de bens e serviços, proporcionando, assim, um crescimento centralizado que
irradia para as demais localidades de contato. A rapidez com que ocorre o crescimento de um
158
COMPANHIA DE DESENVOLVIMENTO E AÇÃO REGIONAL-CAR (BA). Política de desenvolvimento
para o extremo sul da Bahia. Série Cadernos CAR, 3. Salvador, 1994. p. 21.
63
núcleo urbano depende da relação estabelecida de oferta e procura por serviços urbanos
especializados sobre a área atendida pelas cidades centrais, o que acaba por gerar uma
hierarquia entre as urbes envolvidas.159 Eunápolis, por sua localização estratégica em relação
às estradas de acesso ao litoral e ao interior, teve um crescimento do seu comércio,
favorecendo a instalação de serviços de estrutura básica, o que dinamizou as relações
socioeconômicas regionais e inter-regionais, colocando o povoado em destaque em relação a
outras municipalidades.
O povoado dispunha de uma estrutura urbana precária, mas, ainda assim, com recursos
e com infraestrutura mais avantajada que outras municipalidades próximas. Durante as
décadas de 1970-80, Eunápolis exerceu a função de um centro polarizador, por conta do laço
de dependências em relação a outros centros criado em seu entorno. Cidades circunvizinhas
contavam com o comércio, os bens e os serviços ofertados para o provimento de suas
necessidades, o que contribuiu com o constante fluxo de transeuntes e a dinamização do seu
crescimento.
Eunápolis dividiu com Teixeira de Freitas o protagonismo sobre a economia regional a
partir de 1970, sendo evidenciada a preponderância do comércio em ―varejo em relação ao
atacadista (...) exercendo relações de troca em suas áreas, notadamente de bens de consumo
imediato‖. A interação mercantil entre o povoado e as demais localidades dava-se através das
casas de comércio, onde eram efetuadas vendas por meio de atacado e varejo de forma
simultânea: ―geralmente são casas de médio porte, que distribuem mercadorias em pequenas
quantidades para as casas varejistas da área rural‖.160
A concretização da malha viária regional, que teve como artéria central a BR-101,
proporcionou uma maior dinâmica entre as localidades do Extremo Sul da Bahia e outras
regiões, facilitando assim o fluxo de pessoas e mercadorias. Na década de 1970, ano de
inauguração da BR-101, Eunápolis mantinha um raio de alcance nas relações comerciais
estabelecidas que iam para além da região do extremo sul e do próprio estado da Bahia. É o
que nos mostra a Figura 3 a seguir:
159
ALMAS, Rondinaldo Silva das. Atividades de serviços na Bahia: uma análise espacial com base nos
indicadores de especialização e polarização. Economia regional, XI Encontro de Economia Baiana – set. 2015, p.
387- 411. Disponível em: http://www.eeb.sei.ba.gov.br/pdf/2015/er/atividades_de_servicos_na_bahia.pdf.
Acesso em: 10 mar. 2019. 160
CENTRO DE PLANEJAMENTO DA BAHIA; SECRETARIA DE PLANEJAMENTO CIÊNCIA E
TECNOLOGIA. Programa de Desenvolvimento Regional Integrado de Teixeira de Freitas. Versão preliminar
sujeita a revisão e complementação de dados. 1976, s/p.
64
Figura 3 –Fluxo de comércio do Extremo Sul da Bahia
Fonte: SEPLANTEC (1976)
161
161
SECRETARIA DE PLANEJAMENTO CIÊNCIA E TECNOLOGIA - SEPLANTEC. Programa de
Desenvolvimento Regional Integrado de Teixeira de Freitas. Versão preliminar sujeita a revisão e
complementação de dados. Salvador, 1976. s/p. (adaptado)
65
Mesmo com a existência de sedes municipais e centros comerciais com estruturas
urbanas mais antigas, tiveram destaque regional os povoados de Teixeira de Freitas e
Eunápolis, já na década de 1970. Com o alcance inter-regional e interestadual, os povoados
chegaram a manter relações mercantis com cidades, povoados e localidades vizinhas e de
outros estados do Nordeste e do Sudeste do Brasil.
As atividades desenvolvidas nesses centros se referem à compra e venda de produtos
semi-industrializados e industrializados, adquiridos nos grandes centros - como Belo
Horizonte, Uberlândia, Governador Valadares, Montes Claros e Nanuque (em Minas Gerais);
Vitória e Colatina (no Espírito Santo) e no Rio de Janeiro – a atacado e revendendo a varejo
nas localidades mais próximas, e ainda na Bahia – como Porto Seguro e Santa Cruz Cabrália,
Itabela, Monte Pascoal, Itamaraju, Teixeira de Freitas –, não descartando também a interação
com Itabuna, Ilhéus e Salvador.162 Não podemos excluir também municípios mineiros,
próximos à divisa com o estado, que dependiam também da oferta de bens e serviços
eunapolitanos.
Para além das relações comerciais, na década de 1970 a concentração de equipamentos
e a oferta de serviços foram responsáveis por atrair para o povoado um grande contingente
populacional de localidades próximas. Em se tratando de serviços institucionais estatais e
privados, Eunápolis aglutinava uma estrutura que aprofundou mais ainda a rede de
dependência quanto a outras localidades.
Cidades como Porto Seguro, Santa Cruz Cabrália, Guaratinga e Itamaraju, por não
disporem de serviços do Banco do Brasil e/ou Bradesco, cujas agências mais próximas se
encontravam no povoado, mantiveram com ele uma relação de dependência para a realização
de trâmites burocráticos e econômicos. Da mesma forma, só que em menores proporções,
dava-se a carência dos serviços contábeis em Santa Cruz Cabrália, que a condicionava a
empresas de contabilidade de Eunápolis.163 No povoado, também constavam escritórios
regionais de órgãos como a Comissão executiva Plano da Lavoura Cacaueira (CEPLAC), a
Empresa Baiana de Água e Saneamento (EMBASA), além das inúmeras empresas comerciais
de grande porte que têm suas sedes no sul do país.164
Através da concentração de equipamentos e serviços, Eunápolis conseguiu estender
seu perímetro de influências para além dos limites regionais. Essa ampliação foi facilitada por
162
SECRETARIA DO PLANEJAMENTO CIÊNCIA E TECNOLOGIA – SEPLANTEC. Programa de
Desenvolvimento Regional Integrado de Teixeira de Freitas. Versão preliminar sujeita a revisão e
complementação de dados. 1976, s/p. 163
Ibid. 164
Id. Projeto Eunápolis 1ª Etapa, Listagem dos Imóveis. Salvador: Governo do Estado da Bahia, 1975. p. 07.
66
conta da rede de estradas, bem como a BR-101 que diminuiu o tempo de transporte entre as
localidades, potencializando o fluxo de pessoas e mercadorias. A dinâmica migratória a partir
da demanda por mercadorias e serviços, como também a expulsão de pessoas do campo em
decorrência da expansão dos latifúndios e a busca por emprego foram responsáveis pelo
aumento vegetativo, transformando o povoado numa espécie de ímã populacional. Por conta
do crescimento rápido e desordenado, o povoado desenvolveu uma estrutura urbana
heterogênea, o que mobilizou o Estado junto com os municípios, buscando modificá-la
através do planejamento urbano e de sua normatização.
67
3 A PRODUÇÃO DO URBANO: NUANCES DA PLANIFICAÇÃO E
NORMATIZAÇÃO DOS USOS DOS ESPAÇOS EUNAPOLITANOS PARA A
CONSOLIDAÇÃO DE UMA CIDADE CONCEITO
Na tentativa de consolidar o lugar idealizado, monumentos, sujeitos e práticas que
destoassem do projeto de um povoado/cidade deveriam ser sujeitados à eliminação dos
espaços urbanos pelos poderes públicos. Segundo Certeau, a ―cidade-conceito‖ é ―lugar de
transformações e apropriações, objeto de intervenções, mas sujeito sem cessar enriquecido
com novos atributos: ela é ao mesmo tempo a maquinaria e o herói da modernidade‖.165
Assim, alinhar ruas, casas e pessoas, passava pelos propósitos de transformar o espaço urbano
de acordo com a visão de desenvolvimento pretendida pelos governantes.
Para o ordenamento de Eunápolis, os poderes públicos traçaram estratégias para que
pudessem ser concretizados os ―sonhos de progresso‖. Em 1977, o governo do estado da
Bahia elaborou o Plano Diretor Urbano de Eunápolis (PLANDEU) e, no mesmo ano, o
Código de Posturas Municipais (CPM) foi implementado pela prefeitura de Santa Cruz
Cabrália. Ambos os documentos enunciavam como deveriam ser moldadas tanto a estética
urbana como a conduta da população ao usar os espaços urbanos.
Segundo o PLANDEU, tratava-se de uma ―reorganização segundo novos padrões‖,
tendo em vista a ―peculiaridade da realidade envolvente‖, ou seja, planejar ações incisivas
sobre a organização urbana do povoado. Com o planejamento, foi objetivado homogeneizar
um espaço heterogêneo que se expandiu de forma rápida, por conta da grande quantidade de
chegantes de diversas origens, em terras que se tornaram objeto de disputa entre estes e
fazendeiros. A aglomeração que deu origem ao povoado, por conta de seu histórico de
formação de ritmo acelerado, caracterizou-se como um fenômeno urbano peculiar no contexto
nacional, assim como Itabela,166 outro distrito pertencente a Porto Seguro.167
Tendo dito isto, o objetivo deste capítulo é analisar a formação e o crescimento
eunapolitano com base nos grupos populacionais que ocuparam o espaço urbano em busca de
melhores condições de vida e os principais problemas estruturais – acesso à saúde, educação,
moradia e trabalho – encontrados por estes. Em seguida, abordaremos o PLANDEU, como foi
projetado o povoado, a partir da perspectiva do governo do estado. E, por último,
analisaremos o CPM de Santa Cruz Cabrália e suas leis para o ordenamento urbano.
165
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1, Artes de fazer. 21. ed. Petrópolis: Vozes, 2014. p. 161. 166
Itabela, distrito pertencente a Porto Seguro, emancipou-se no ano de 1989. 167
PLANO DIRETOR URBANO DE EUNÁPOLIS, Volume síntese. Apresentação. Salvador, 1977.
68
3.1 A CIDADE E A ILUSÃO: CONFLITOS E CONTRADIÇÕES NA FORMAÇÃO DO
CENTRO URBANO
Em dois anos, a população de Eunápolis passou de 30 mil para 65 mil habitantes.
Legiões de mineiros, capixabas, baianos de todos os pontos do Estado chegavam e
continuam a chegar, mala nas costas, em busca de emprego e de enriquecimento
fácil.
(...)
As contradições são flagrantes. Há os que conseguem enriquecer rapidamente e
formam hoje a casta dos novos-ricos, e há os que não fizeram fortuna e vivem como
biscateiros ou machadeiros. O povoado é a 15a. concentração populacional da
Bahia, e por não ser ainda município cresceu com suas próprias forças, mas sem
qualquer fiscalização governamental, praticamente sem serviços públicos.168
Desde os seus primeiros passos como povoado e com maior intensidade na década de
1970, Eunápolis passou a receber uma grande quantidade de migrantes vindos de muitas
regiões da Bahia e do Brasil, atraídos pela possibilidade de melhores condições de vida no
centro urbano que se esboçava em meio às transformações socioeconômicas do Extremo Sul
da Bahia. Tendo suas esperanças alimentadas pelo discurso que dizia de desenvolvimento e
progresso, os recém-chegados procuravam uma estrutura urbana que os fornecesse condições
básicas de moradia, trabalho, saúde e educação, ou quem sabe realizar o sonho de ficar rico.
Diante dos desejos, eis o desencanto. Essas aspirações eram quase que inacessíveis à
grande parte da população, pois se tratava de grupos de baixa renda. Mesmo que boa parte da
população que se estabeleceu no povoado buscasse serviços e equipamentos urbanos, escassos
na região, e que ele fosse considerado como um polo receptor referência na região, Eunápolis
não detinha, nem em quantidade, nem em qualidade, aparelhos públicos que atendessem ao
grande número de pessoas que procuravam por esses serviços.
Com a intensificação da exploração madeireira, a instalação do polo industrial para
beneficiamento dos toros, além do crescimento do comércio local, o povoado passou a ser um
ponto de referência para os trabalhadores e suas famílias que buscavam se estabelecer em
cidades da região.
A polarização exercida pelo povoado foi fundamental na composição da sua
população quanto à origem dos habitantes. Tendo como referência os ―chefes de família‖,
apenas 2,87%, aproximadamente, nasceram em Eunápolis; a maior parte dos residentes, cerca
de 61,33%, procederam de outras regiões da Bahia; e aproximadamente 17,16%, tiveram
168
EUNÁPOLIS: Na extinção da madeira, o crescimento de uma cidade sem lei. Jornal do Brasil. Rio de
Janeiro, n. 43, p. 39, 21 maio 1975. Disponível em:
http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=030015_09&PagFis=21452&Pesq=Eun%C3%A1polis
extraído. Acesso em: 16 nov. 2017.
69
origem em outro estado, enquanto 18,63% são oriundos da região. No tocante a pessoas que
vieram de fora da Bahia, tiveram destaque Minas Gerais, com 9,57%, e Espírito Santo, com
3,7%, enquanto 3,89% foram oriundos de outros estados do país.169
Os 18,63%, aproximadamente, que nasceram em municípios do Extremo Sul da Bahia,
em sua maioria, tiveram origem na zona rural de Porto Seguro e Santa Cruz Cabrália. Este
fato se deu
não só pela maior proximidade do povoado com a zona rural desses municípios mas,
sobretudo, pela desestruturação do sistema organizacional da economia regional,
devido, principalmente, à expansão das frentes extrativistas da madeira, que atraíram
grande parte da população originada do campo.170
Segundo o diagnóstico do seu Plano Diretor Urbano, o povoado contou com um
contingente migratório de indivíduos com o nível de renda baixo em sua maioria,
aproximadamente 62,09%, com o motivo principal da procura por emprego. Entre os
migrantes, encontravam-se também os que declararam ter emprego certo e se transferiram
para Eunápolis, aproximadamente 4,91%; e os que contavam com promessa de emprego,
aproximadamente 2,87%. Os quase 30,13% restantes dividiram-se entre os que se deslocaram
para gerenciar alguma filial, montar negócio próprio, diferenciando-se radicalmente dos
grupos anteriores por terem uma renda mais elevada.171 Através dos percentuais apresentados,
é possível ter noção da estratificação social na formação de Eunápolis, os números dialogam
com as possibilidades de acesso à estrutura urbana do povoado.
Quanto à estrutura ocupacional dos trabalhadores, 70,67% do total populacional
correspondem aos dependentes, ou seja, pessoas que não desempenham nenhuma função
remunerada. O restante, aproximadamente 30,33%, trabalhava e recebia rendimentos, sendo
que, desses números, aproximadamente 75,88% eram relativos aos homens e 24,12% às
mulheres.172 Em relação ao público que desenvolvia ou não atividades remuneradas, o plano
não discrimina quais grupos se enquadravam na categoria de economicamente inativos, o que
dificulta nossa leitura quanto aos índices de desemprego.
Sobre as possibilidades de emprego e levando em consideração o sexo dos
profissionais assalariados, apenas um percentual pequeno representa as mulheres que
participavam ativamente de atividades consideradas geradoras de renda, ou seja, na realidade
169
PLANO DIRETOR URBANO DE EUNÁPOLIS. Diagnóstico e Metodologia. Salvador, 1977, v.1, p. 95. 170
Ibid., p. 95. 171
Ibid., p. 97. 172
Ibid.
70
eunapolitana da década de 1970, as mulheres ainda se mostravam pouco incluídas no mercado
formal de trabalho.
Os dados enquadram os trabalhadores ligados às áreas do comércio173 (22,50%),
ocupações técnicas e de ofício174 (32,82%), agropecuária175 (13,83%), indústria (5,84%),
transporte e comunicações (4,85%), biscateiros (20,08%).176 A oferta de serviços dialoga
diretamente com a renda dos habitantes. Tomando como base a Tabela 3, chegamos aos níveis
de renda da população economicamente ativa, que são, de forma geral, considerados baixos:
Tabela 3 - Renda individual da população economicamente ativa em Eunápolis no ano de 1975
Faixa de renda – salário mínimo regional
177 %
Até 0,5 12,70
0,5 – 1,0 17,52
1,0 – 1,5 23,28
1,5 – 2,0 11,48
2,0 – 3,0 18,30
3,0 – 4,0 4,43
4,0 – 5,0 0,50
5,0 – 8,0 6,68
8,0 – 11,0 1,05
11,0 – 15,0 1,77
15,0 – 20,0 0,45
Mais de 20 1,74
Total 100,00
Fonte: CPE/SEPLANTEC (1975 apud PLANDEU, 1977, p. 99)
A distribuição dos níveis salariais pode nos indicar outras nuances do mundo dos
trabalhos em Eunápolis. Primeiro, chama a atenção à quantidade de trabalhadores que
recebiam até 0,5 salários mínimos, somando o percentual aproximado de 12,70%. Avançando
mais um pouco, e adicionando à conta os números do período anterior, chegamos ao
percentual de aproximadamente 83,28% dos empregados que se encontravam na faixa salarial
de até 3,0 salários mínimos, o que correspondia a Cr$ 1.128,00 em valores da época; os
16,72% restantes se encaixavam no grupo que vai de 03 a mais de 20 salários mínimos,
173
Na atividade comerciária, o PLANDEU destaca os proprietários: agricultores; pecuaristas; industriais;
comerciantes de pequeno, médio e grande porte; quitandeiros; açougueiros e barraqueiros. Em seguida, destaca-
se a categoria de balconista, considerada como participante. 174
Como a categoria de ocupações técnicas e de ofício destacam-se: pedreiros; carpinteiros; encanadores;
pintores; eletricistas; serventes e faxineiros. 175
Entre a mão de obra que lida com a pecuária, enquadram-se: os trabalhadores de enxada; trabalhadores da
pecuária; madeireiros e lenhadores; ―boias-frias‖. 176
PLANO DIRETOR URBANO DE EUNÁPOLIS. Diagnóstico e Metodologia. Salvador, 1977, v.1, p. 97-98. 177
O salário mínimo regional no ano de 1975 correspondia a Cr$ 376,00. In: PLANO..., op.cit., p. 99.
71
considerando também que 1,74% recebiam mais de 20 salários mínimos. Em termos de
distribuição de renda em torno do salário, ela se acentuava na desigualdade econômica.
As informações relativas às pessoas que desempenhavam alguma função remunerada
cruzadas com os níveis da renda individual nos possibilitaram chegar a algumas conclusões.
A primeira, a de que a maior quantidade de trabalhadores, aproximadamente 66,73%, que
engendravam o grupo dos que trabalhavam com ocupações técnicas e de ofício, agropecuária
e biscateiros dependiam de contratos temporários, de menor remuneração e, hipoteticamente,
ocupavam o grupo de faixa salarial mais baixa, de até 03 salários mínimos.
Esta hipótese não isenta a possibilidade de participação de empregados do comércio,
da indústria ou das áreas de transportes e comunicações, acontece que um percentual deles,
principalmente das três últimas áreas, possuía um nível de qualificação que podia elevar o
valor da remuneração, o que talvez os enquadrasse na faixa salarial mais elevada, de 03 a 20
salários mínimos. Em relação ao comércio, a porcentagem engloba, além de funcionários,
pequenos, médios e grandes proprietários de estabelecimentos comerciais, pecuaristas,
agricultores e industriais. É importante notarmos também que a porcentagem de 20% dos
considerados como biscateiros revela uma graúda quantidade de subempregos.
Com a renda baixa, durante boa parte da década de 1970, a maior parte da população
do povoado encontrava-se, também, em estado de vulnerabilidade quanto aos serviços
públicos básicos, como saúde e educação, já que esses eram preponderantemente ofertados
pelo setor privado. Em idos de 1977, o povoado dispunha de escolas e oferta de cursos, sendo
doze escolas de 1° grau mantidas pelas prefeituras de Porto Seguro e Santa Cruz Cabrália e
quatro colégios particulares que ministram o ensino de segundo grau.178 O plano evidencia que
a população de Eunápolis tinha por característica um grande percentual de jovens, já que
aproximadamente 61% da população tinham menos de 21 anos, e apenas ―4.856 indivíduos
eram estudantes, sendo que, destes, somente 3.726 frequentavam algum tipo de escola
regular‖.179 Esses números sinalizam que a população jovem eunapolitana se encontrava em
estado de carência de escolarização, principalmente por conta da pouca inserção do setor
público na localidade.
178
Foram os colégios que ministravam o ensino de segundo grau em Eunápolis: o Centro Promocional de
Eunápolis, mantido pelos Capuchinos; o Colégio James Wrigt, que ofertava cursos primário, ginasial, normal,
técnico em administração e contabilidade; Colégio José de Freitas Ramos, que oferecia curso primário e ginasial;
e o Colégio Sete de Setembro. O documento consultado não apresenta todos os estabelecimentos de ensino do 1°
grau. In: PLANO DIRETOR URBANO DE EUNÁPOLIS: Diagnóstico e Metodologia. Salvador, 1977, v.1, p.
125. 179
Ibid., p. 27.
72
Em relação à infraestrutura de saúde oferecida à população, o quadro apresentado pelo
diagnóstico do plano também não era dos mais animadores, pois havia a insuficiência de
equipamentos públicos. Na área da saúde, em 1975 Eunápolis dispunha de três hospitais
particulares180, um hospital estadual que ainda se encontra em fase de construção e três postos
de saúde mantidos pelas prefeituras Santa Cruz Cabrália, Porto Seguro e governo do estado da
Bahia.181 É certo o fato de que por boa parte dos equipamentos de saúde estavam a serviço de
uma parcela da população que podia pagar pelo serviço particular, restringindo em muito o
acesso da população de baixa renda, mas que não desqualifica o povoado como polarizador
regional.
Os equipamentos de saúde localizados no povoado eram responsáveis pelo
atendimento de pessoas provenientes de ―Itabela, Guaratinga, Itamaraju, Teixeira de Freitas,
Santo Antonio do Jacinto (MG), Porto Seguro, Santa Cruz Cabrália, Itagimirim, Itapebi e
outros‖. 182
O acesso dado à população era representado por alguns postos de atendimento
ambulatorial e,
A medicina é totalmente privatizada: os três hospitais (total de oitenta leitos)
recusam-se a fazer convênios com o Inamps183
em nome do ―bom atendimento‖,
como alega o dr. José Moreira Cordeiro Neto, proprietário da Clínica João
Gualberto. Doze dos treze médicos que trabalham em Eunápolis só atendem
pacientes mediante pagamento adiantado da consulta, que custa 300 cruzeiros. É
comum, nos hospitais locais, pessoas acidentadas serem recusadas por falta de
pagamento adiantado.184
A reportagem da revista Veja, de 28 de novembro de 1978, dimensionou a
acessibilidade ao atendimento médico em Eunápolis, onde a consulta custava Cr$. 300,00.
Essa cifra, cruzada com as informações prestadas pelo PLANDEU185 sobre os valores dos
atendimentos particulares que iam de Cr$ 150,00 a Cr$ 200,00, caracteriza o quanto era
limitada a possibilidade de atendimento de boa parte população, já que o salário mínimo
regional girava em torno de Cr$ 367,00.
180
Os hospitais que ofereciam serviços de saúde em Eunápolis foram apresentados como sendo: o Hospital Padre
João Roberto de Magalhães; o Hospital Maternidade de Eunápolis; e do terceiro não é mencionado o nome no
documento. In: PLANO..., op.cit., p. 126. 181
Ibid., p. 95. 182
PLANO..., op.cit., p. 128. 183
Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social. 184
CIDADES. O povoado sem sorte Desventuras de Eunápolis, que pertence a dois municípios e não é servido
por nenhum. Revista Veja. Editora Abril, n. 534, p. 68, 28 nov. 1978. 185
PLANO DIRETOR URBANO DE EUNÁPOLIS. Diagnóstico e Metodologia. Salvador, 1977, v.1, p. 127.
73
No povoado, foi constatada a ausência de assistência médica pelo Instituto Nacional
de Assistência Médica da Previdência Social (INAMPS),186 vinculado ao Instituto Nacional de
Previdência Social (INPS), órgão que prestava serviços médicos aos seus associados, ou seja,
trabalhadores contribuintes com carteira assinada. Criado na década de 1970, o INAMPS
aplicava no estado, através de uma superintendência regional, recursos de acordo com o
volume arrecadado e o número de contribuintes, assim, os estados de economia mais
desenvolvida localizados nas regiões Sul e Sudeste do Brasil detinham os maiores montantes
em detrimento das outras regiões menos ricas.187
Corroborando com a citação da Veja, o PLANDEU afirma que, em entrevistas
realizadas, observou-se a falta de interesse dos médicos locais em realizar convênio com o
INPS, evidenciando ―que o mercado local é amplo, tanto que vem atraindo novos
investimentos particulares no setor‖, 188 mercado esse provavelmente impulsionado pela
ausência de equipamentos públicos de saúde. A situação narrada caracteriza a exclusão de
uma grande parcela da população regional e local dependente dos serviços, além da
necessidade de um hospital público.
Segundo o PLANDEU, até o ano de seu lançamento, em 1977, o hospital estadual
ainda se encontrava em fase de construção.189 Em uma edição lançada em 1981, a revista
Atualidades fez uma matéria sobre a visita do governador Antônio Carlos Magalhães e sua
comitiva ao povoado onde foi inaugurado o Hospital Regional de Eunápolis.190
O quadro de precariedade no serviço de saúde obrigava as pessoas que não acessavam
a assistência médica, aproximadamente 40,14% da população, a criar táticas de sobrevivência
em caso de doenças. Outros 19,53% compravam remédios sem prescrição médica ou não
declararam suas ações diante do cenário eunapolitano. Entre os que recorriam aos ―chás ou
remédios caseiros‖, aos ―entendidos‖ ou ―consultavam vizinhos‖, somavam-se
aproximadamente 21,08%.191 Este percentual nos leva a refletir sobre a permanência de
saberes populares provenientes das culturas de matriz africana e indígena, frente ao avanço
mercadológico da medicina científica, bem como indivíduos que representavam esses grupos.
186
Com a criação do Sistema Único de Saúde (SUS) em 1988, o INAMPS foi extinto na década de 1990. In:
MINISTÉRIO DA SAÚDE. O Sistema Público de Saúde Brasileiro. Seminário Internacional Tendências e
Desafios dos Sistemas de Saúde nas Américas, São Paulo: Brasil, 2002. Disponível em:
http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/sistema_saude.pdf. Acesso em: 30 mar. 2019. 187
MINISTÉRIO DA SAÚDE. O Sistema Público de Saúde Brasileiro. Seminário Internacional Tendências e
Desafios dos Sistemas de Saúde nas Américas, São Paulo: Brasil, 2002. Disponível em:
http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/sistema_saude.pdf. Acesso em: 30 mar. 2019. 188
PLANO DIRETOR URBANO DE EUNÁPOLIS: Diagnóstico e Metodologia. Salvador, 1977, v.1, p. 128. 189
Ibid., p. 28. 190
EUNÁPOLIS e a emancipação. Atualidades, ano V, n. 38, p. 23-24, 1981. 191
PLANO..., op.cit. p. 94.
74
A cura dos que não podiam pagar ou resistiam em não frequentar clínicas, farmácias e
hospitais baseava-se na consulta aos conhecedores das ervas medicinais, rituais, rezas
pertencentes a tradições ancestrais.
O universo da medicina popular coloca em ênfase as benzedeiras, as rezadeiras, os
raizeiros, os sacerdotes, as entidades espirituais e as diversas outras autoridades
desconsideradas pelos saberes científicos. A exemplo da influência desses saberes que
envolviam a liturgia em sua operação, Pereira192 analisa a festa de Cosme e Damião em
Eunápolis e sua relação com a memória e a identidade da comunidade do Juca Rosa, bairro
onde ela acontece. Segundo a autora, o acontecimento da festa, que envolve reisado, samba de
couro e cordão de caboclo, surgiu a partir da cura de uma criança em estado de moléstia,
através de promessa feita aos santos Cosme e Damião. Com a cura do filho mais velho, o
senhor Valderlino e a dona Zilda realizam a folia em devoção aos santos milagreiros, na
periferia da cidade, no dia 27 de setembro, desde 1980. O surgimento da festa por conta da
cura efetivada através dos saberes e crenças populares, permite compreender as possibilidades
criadas pelos que, de algum modo, não consultaram a medicina local.
Outro problema saltava à frente dos migrantes: a posse das terras. A questão fundiária
foi motivo de disputa durante décadas no povoado de Eunápolis, tendo como fator principal o
estabelecimento do centro urbano em terras monopolizadas, tituladas em nome de poucos
latifundiários. Os conflitos entre os trabalhadores que pretenderam consolidar moradia e os
fazendeiros locais permearam a história do povoado, entre esses os mais tensos ocorreram em
1957, entre os anos de 1962 e 1964, e o de 1975. Em um contexto regional onde violentas
contendas eram frequentes entre grileiros e posseiros, a luta da população pelo direito à posse
dos terrenos teve um desfecho marcante na memória do povoado.193
Todavia, a conjuntura que foi traçada anteriormente em relação ao contexto
socioeconômico que envolvia a população eunapolitana e/ou de municípios que dependiam da
estrutura ofertada pelo povoado permite a análise das condições encontradas em Eunápolis
pelos grupos provenientes do campo e da cidade.
O povoado atraiu gente das mais diversas origens, mas, ao mesmo tempo, não deu o
suporte a esse público. A condição que se impusera a esses grupos, em exclusividade aos mais
vulneráveis economicamente, funcionava como um mecanismo de controle das massas.
Primeiro, como mecanismo de esvaziamento do campo, desocupando as terras, dando assim
192
PEREIRA, Orsione Alves. Entre músicas, danças e santos: festa de São Cosme e Damião em Eunápolis -
um elo entre a história e a memória coletiva. 2015. TCC (Graduação em História) – Universidade do Estado da
Bahia, Campus XVIII, Eunápolis, 2015. 193
O tema em torno da violência no povoado e suas representações serão melhor exploradas no capítulo terceiro.
75
espaço ao crescimento do latifúndio, voltado para a agricultura monocultora de exportação.
Segundo, ao levarmos em consideração a lei da oferta e da procura, chegamos à hipótese de
que a política de atração atuou como promotor de uma fartura da mão de obra barata para os
serviços urbanos, rurais e industriais que exigissem pouca qualificação em sua execução, em
sua maioria, serviços braçais. Esses sujeitos que passaram a ocupar as periferias
eunapolitanas, haja vista que eram impossibilitados do acesso a terra na região, tornaram-se
reféns da condição em que se encontravam, ou seja, reféns do centro urbano.
Nesse compasso, Eunápolis cresceu com um misto de culturas provenientes de outros
centros urbanos e do campo. Por conta dessa heterogeneidade que passou a fazer parte e
caminhar junto com sua expansão, tanto o poder público municipal quanto o estadual sentiram
necessidade de criar mecanismos que moldassem os hábitos, os costumes e a estética da sua
área urbana, homogeneizando-a e trazendo-lhe assim ares do dito progresso.
3.2 O PLANO E A CIDADE: UM PROJETO DE URBANIZAÇÃO PARA O POLO
REGIONAL
A conformação urbana e o aumento vegetativo constante tiveram impacto direto na
expansão do povoado, dando uma cadência de crescimento rápido e constante. Segundo o
plano,
O povoado de Eunápolis caracteriza-se hoje como fenômeno urbano de pouca
similaridade no contexto nacional, face ao ritmo acelerado com que se processou a
ocupação do solo, motivando em consequência a criação de um modelo
organizacional específico, apoiado numa estrutura sócio-econômica bastante
complexa.194
A disparidade socioeconômica dos grupos que no povoado se instalaram proporcionou
uma caracterização estética, desde a organização da cidade até a arquitetura das casas,
considerada pelos poderes públicos como necessitada de diretrizes para o seu ordenamento,
em outras palavras um Plano Diretor. O objetivo deste texto é delinear como a Secretaria do
Saneamento e Desenvolvimento Urbano do estado da Bahia projetou Eunápolis através da
elaboração do PLANDEU.
Nossa análise parte da perspectiva de que o plano perpassa pela ótica do Estado, como
ele idealizou a projeção da cidade, dentro de uma lógica própria que previa o ordenamento, a
hierarquização, a remodelação, a expansão e/ou a contenção dos espaços. Para a concretização
194
PLANO DIRETOR URBANO DE EUNÁPOLIS. Volume síntese. Salvador, 1977. Apresentação, s/p.
76
de seus objetivos, foram indicadas medidas de instalação e/ou relocação de equipamentos e
monumentos, e pessoas, enfim, a busca por uma estruturação urbana ideal.
Numa tentativa de organizar o desenvolvimento eunapolitano, o governo do estado da
Bahia, na gestão de Roberto Figueira Santos (1975-1979), através da Secretaria do
Saneamento e Desenvolvimento Urbano e Companhia de Desenvolvimento Urbano (Cedurb),
autorizou a elaboração o PLANDEU, publicado em 1977. Houve também a parceria com o
Banco Nacional da Habitação (BNH) e o Banco de Desenvolvimento do Estado da Bahia
(Desenbanco) como órgãos financiadores do plano.195
Os planos diretores em sua essência ―despertam grandes esperanças como
investimentos de ordenação, regulação e racionalização do desenvolvimento geral das
cidades‖.196 Esses anseios nortearam as políticas para o urbano durante o Regime Militar,
neste sentido, foi exigido por lei que cada municipalidade aprovasse seu Plano Diretor, como
referência para suas ações futuras. Baseando-se nessas exigências, o governo da Bahia
elaborou o PLANDEU publicado em 1977, acompanhando as tendências do período, a partir
das diretrizes provenientes do II Plano Nacional de Desenvolvimento (PND) publicado em
Diário Oficial no ano 1974.
Para Singer197, a possibilidade de moldar o futuro através da projeção entusiasmou os
governos militares, no sentido de que a segurança oferecida pelo plano expressava a
capacidade de transformar o destino das cidades. Segundo o autor, ao tratar do primeiro Plano
Diretor para a cidade de São Paulo, elaborado em 1970, todos os planos diretores na América
Latina fracassaram ―não por serem errôneos, mas por tomarem os desejos pela realidade‖.198
Tomando como referência o que foi dito por Singer, é essencial pensarmos que o
planejamento contido no documento representa idealizações, quiçá utópicas, e que nem tudo o
que idealizado pela Secretaria do Saneamento e desenvolvimento Urbano do estado da Bahia
para Eunápolis tenha sido concretizadas.
Ao iniciarmos a análise do PLANDEU, é preciso refletir sobre o lugar de produção e
como fora produzido. Sendo elaborado pelo governo estadual e enviado para as
municipalidades, o plano exerceu uma relação de poder no sentido vertical, em que,
195
O material – dividido em três tomos: o volume síntese; o volume I, diagnóstico e metodologia; e o volume II,
proposições – foi homologado pela Cedurb (Companhia Estadual de Desenvolvimento Urbano), elaborado pela
empresa Consórcio Serete/ Incrementa e pela subcontratada COTA-Engenheiros Assessores Ltda. E o projeto foi
financiado pelo BNH (Banco Nacional de Habitação) e pelo DESENBANCO (Banco de Desenvolvimento do
Estado da Bahia). 196
SINGER, Paul; JUSTO, Marcelo Gomes (org.). Urbanização e desenvolvimento. Belo Horizonte: Autêntica
Editora; São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2017. p. 148. 197
Ibid. 198
Ibid., p. 149.
77
possivelmente, deixou de considerar a participação dos usuários do povoado em sua
construção, legando somente a grupos de engenheiros, arquitetos, administradores,
economistas, advogados – possivelmente todos os técnicos que confeccionaram o plano
diretor eram de fora de Eunápolis -, representantes do poder público, entre outros, a cúpula de
uma cidade letrada, em termos de Ángel Rama199, que exerceu e exerce a ―peculiar função de
produtores, de consciências que elaboram mensagens‖, intelectuais citadinos que
desempenham sua especificidade como ―desenhistas de modelos culturais, destinados à
constituição de ideologias públicas‖. 200 O documento do PLANDEU não diz da participação
da administração municipal de Eunápolis (Santa Cruz Cabrália/Porto Seguro), nem foi
encontrada alguma outra fonte que diga da participação desta na construção do plano, o que
levanta a hipótese da não participação desses, e isto confirma a caracterização unilateral e de
ordem hierárquica ―de cima para baixo‖.
O PLANDEU traz em seus dois volumes, mais o volume síntese, um diagnóstico do
povoado, levantando informações sobre seu histórico, sua estrutura urbana contemporânea ao
período diagnosticado, os problemas encontrados, além de fazer proposições para resolução
de tais problemas. É essencial pensar no plano como um projeto do governo do estado da
Bahia para o povoado, uma idealização, em que as proposições poderiam ser executadas ou
não pelos poderes públicos de Santa Cruz Cabrália e Porto Seguro, municipalidades
administradoras de Eunápolis.
Entre os problemas identificados pela equipe responsável, encaixavam-se as questões
institucionais e fundiárias como maiores entraves ao seu desenvolvimento, sendo este último
o classificado como mais grave.201 Do enquadramento institucional, a primeira questão
levantada foi de que o povoado de Eunápolis, ―do ponto de vista político – territorial‖ aparece
oficialmente ―incluído na condição genérica de zona rural‖. Isto porque, segundo o plano, no
período de sua publicação (1977), existiam apenas duas categorias para os núcleos urbanos: a
de cidade – sede municipal; e a de vila – atribuída à sede do distrito. Como Eunápolis não se
enquadrava em nenhuma das duas categorias, era reconhecida pelo Estado brasileiro como
199
Rama define a cidade letrada ou cidade das letras como um conjunto de intelectuais e burocratas citadinos
responsáveis pela elaboração de leis, códigos e outras linguagens que realizaram e realizam a manutenção dos
hábitos, dos costumes e da ordem pública nas cidades americanas através da escrita, configurando uma forma de
dominação ideológica em torno da cidade. In: RAMA, Ángel. A cidade das letras. Tradução: Emir Sader. São
Paulo: Boitempo, 2015. 200
RAMA, Ángel. A cidade das letras. Tradução: Emir Sader. São Paulo: Boitempo, 2015. p. 42. 201
PLANO DIRETOR URBANO DE EUNÁPOLIS. Diagnóstico e metodologia. Salvador, 1977, Introdução. v.
1.
78
área rural, mas, ainda assim, constituindo-se como um ―dinâmico aglomerado
populacional‖.202
Arrolada como povoado, Eunápolis enquadra-se no rol de localidades que não
dispunham de status legal e que possuíam uma quantidade mínima de 10 habitações, as quais
não tinham proprietário único da terra, além de não ser sede de circunscrição
administrativa.203Esta situação ―esdrúxula‖ 204 não levou em consideração as dimensões
concretas do povoado, já que ele se encontrava entre os maiores núcleos urbanos do Extremo
Sul da Bahia.
Segundo o PLANDEU, esta condição vinha acarretando danos ao desenvolvimento da
―cidade-povoado‖ e também ao estado, como: a desconsideração da concentração urbana
existente, sendo sua população contabilizada como rural; omissão da localidade, quando os
elementos coletados se basearem formalmente na divisão político territorial do estado; a
possibilidade de distorção nos estudos que levarem em consideração a rede urbana oficial;
desconhecimento legal do núcleo constituído do povoado por parte do governo federal para
investimentos nos setores urbanos; a precariedade dos equipamentos públicos de atendimento
às necessidades básicas; inibição do poder público de arrecadar impostos, bem como a
realização de investimentos.205
Outra situação que trouxe agravantes ao desenvolvimento ordenado do povoado se deu
por conta da divisão político-administrativa do seu tecido urbano entre os municípios de Porto
Seguro e Santa Cruz Cabrália. Após anos de disputas, foi determinado, em 1965, que os
limites entre as duas municipalidades estava em 20% no território de Porto Seguro e 80% em
Santa Cruz Cabrália, sendo imprecisa a linha demarcatória entre as duas porções.206
Como solução para as duas problemáticas institucionais da divisão territorial, o
PLANDEU propõe o reconhecimento político-administrativo de Eunápolis e a precisão na
demarcação dos limites intermunicipais. Para a relevância de Eunápolis como núcleo urbano,
foi recomendada a transferência da sede administrativa de Santa Cruz Cabrália para o
povoado, elevando-o a sede administrativa municipal,207 coisa que já havia acontecido desde o
início da década de 1970, quando ―o poder executivo e legislativo é transferido para o
202
Ibid., p. 2. 203
Ibid., p. 3. 204
Ibid., p. 4. 205
PLANO DIRETOR URBANO DE EUNÁPOLIS. Diagnóstico e metodologia. Salvador, 1977. v. 1. p. 4. 206
Ibid., p. 5. 207
Essa medida foi pensada considerando uma série de restrições à emancipação definidas pelo decreto federal da
LC n. 1, de 9 de novembro de 1967, que ―sustou a proliferação de municípios e o uso de sua instituição como
expediente político-eleitoreiro‖, enquadrando Eunápolis nesse conjunto de observações que impossibilitava sua
emancipação político-administrativa. In: PLANO..., op.cit., p. 7.
79
povoado‖,208 mesmo não havendo um reconhecimento do governo do estado da Bahia nem da
União. Essas indefinições legavam ao povoado dificuldades quanto ao ordenamento e à
expansão do núcleo urbano, como também quanto aos investimentos nos setores públicos de
atendimento à população.
Para além das questões territoriais e da legitimação da área urbana, a estrutura
fundiária emperrou o processo de ordenamento e, principalmente, a ampliação dos bairros,
além de consistir um foco de tensões sociais. De início, a titulação da área do povoado
aconteceu nos primórdios da década de 1950, sob o interesse dos irmãos Ivan, Solon e Jaime
de Almeida Moura, em uma área de 1.326 ha, repartida entre os três títulos. No ano de 1962,
após adquirir as propriedades de Jaime e Solon de Almeida Moura, Edmundo Borges de
Souza, em sociedade com Arquimedes de Oliveira Martins, loteou uma parte dessas
propriedades em nome da Centauro Imobiliária.209A concentração das terras em mãos de
poucos proprietários se tornou objeto de conflitos nos anos que se seguiram, a partir da
instalação dos migrantes que vieram a constituir o povoado.210
No ano de 1954, o Departamento de Estradas e Rodagens da Bahia (DERBA) adquiriu
uma gleba de 100 ha que foi loteada e distribuída para a população local da época, mas, ainda
sim, não foi objeto de transferência da posse do DERBA para os novos proprietários. Com o
crescimento populacional e, consequentemente, do número de habitações, outras propriedades
vieram a ser alvo de novos assentamentos, propriedades ao norte como a de José Domingues
da Costa, Moisés Reis, e José Rosa, ―sendo que este último proprietário tem se mostrado
simpático ao processo de urbanização e expansão física do povoado‖.211
Nas posses de José Rosa, Figura 4, surgiu um assentamento conhecido pela toponímia
de Juca Rosa ou Rosa Neto, distante cerca de 2km do centro do povoado, deixando um
―imenso vazio urbano‖ entre os dois núcleos, consequência da ―rigidez e inelasticidade‖212 na
oferta de terrenos para o desenvolvimento do núcleo urbano original.
208
CARVALHO NETO, Sidrach. Santa Cruz Cabrália: cinco séculos de história. Salvador: Secretaria de
Cultura e Turismo, 2004. p. 61. 209
PLANO DIRETOR URBANO DE EUNÁPOLIS. Diagnóstico e metodologia. Salvador, 1977. v. 1. p. 25-26. 210
Ibid., p. 24. 211
Ibid., p. 26. 212
Ibid., p. 25-26.
80
Figura 4 - Núcleo emergente do Bairro Rosa Neto
Fonte: PLANDEU (1977)213
Por volta do ano de 1971, o bairro contava com a população de 4.000 pessoas
residentes em terrenos loteados e comercializados pelo proprietário, não dispondo de
equipamentos ou infraestrutura de uso público.214 No Rosa Neto ou Juca Rosa, o proprietário
destinou uma parte de suas terras para o assentamento residencial, em que as habitações eram,
em sua maioria, de taipa e madeira, cobertas com telhas de cerâmica ou taubilhas215, e tinham
chão de terra batida. O comércio no bairro estava voltado para a venda de alimentos, sendo
realizado na própria residência. É importante frisar a completa inexistência de equipamentos
de utilidade pública voltados para atender a população local.216
Na imagem que representa a planta do bairro situado às margens da BR-101 (Figura
4), em sua adjacência se encontrava o aeródromo, este que funcionou como ponto de pouso e
decolagem de aviões de pequeno porte. O afastamento do Bairro do Centro pode ser explicado
pelas condições de aquisição de terrenos na região central e proximidades, por famílias com
baixo poder aquisitivo, construindo
muitas vezes em glebas rurais, mais baratas que as áreas urbanas, onde a capacidade
de pagamento da massa trabalhadora consegue custear a compra de um terreno ou o
aluguel. Ademais, ao contrário dos parcelamentos regulares, esses empreendimentos
213
Ibid., p. 38. 214
PLANO DIRETOR URBANO DE EUNÁPOLIS. Diagnóstico e metodologia. Salvador, 1977. v.1. p. 25-26. 215
―Tabuinhas‖ ou ―taubilhas‖ são ―lascas de madeira dispostas em escamas‖ usadas na cobertura de casas. In:
INSTITUTO DO PATRIMÔNIO ARTÍSTICO E CULTURAL – IPAC/BA. Inventário de Proteção do Acervo
Cultural da Bahia. Monumentos e Sítios do Litoral Sul. Salvador: Secretaria da Indústria, Comércio e Turismo,
1988. v. 5. p. 293. 216
PLANO DIRETOR URBANO DE EUNÁPOLIS. Proposições. Salvador, 1977. v. 2. p. 16.
81
ainda deixam de cumprir as exigências de implantação de determinado nível de
infraestrutura, de manutenção de áreas verdes e de licenciamento junto aos órgãos
públicos, o que colabora para tornar mais acessíveis os preços dos imóveis.217
Os problemas institucionais, os de ordem fundiária, em conjunto com a forma de
ocupação do solo e os conflitos decorrentes desse processo, resultaram numa configuração
específica da organização e estrutura urbana do povoado. É imprescindível pensarmos que a
carência do povoado de equipamentos de uso público – mesmo sendo considerado como um
dos centros regionais que oferecia melhores recursos de equipamentos e serviços –
provavelmente estava atrelada à sua situação institucional, por não ser reconhecido pelo
governo do estado como centro urbano que demandasse por investimentos.
A organização dos espaços pode ser vista como espelho da situação da posse das
terras. A propriedade dos terrenos, tanto do espaço construído como o de possível expansão
do tecido citadino, em mãos de poucos titulares, a dificuldade de titulação das terras
redistribuídas pelo DERBA e a especulação imobiliária crescente favoreceram o
desenvolvimento de conflitos no povoado em torno do uso das terras e o estrangulamento
quanto ao desenvolvimento da localidade.
No sentido de resolver a questão da expansão futura do povoado, foi pautado o
estabelecimento de vetores de crescimento, visando à integração do Bairro Rosa Neto, com a
compra ou desapropriação de áreas intermediárias de proprietários resistentes à urbanização,
bem como ao desenvolvimento de mecanismos legais que estabelecessem um padrão de
urbanização e nível socioeconômico das respectivas comunidades.218
O governo do estado, através do planejamento, definiu a função de cada localidade da
cidade, os grupos que deveriam habitar as localidades, a paisagem e os equipamentos
possíveis mediante as condições encontradas e numa perspectiva futura, o que se pretendia
projetar para cada bairro. É com o intuito de percebermos como o planejamento priorizou
determinados setores citadinos que passamos, em seguida, a localizar as zonas do povoado,
caracterizando-as a partir da ótica do PLANDEU e, assim como já foi feito anteriormente
sobre o Centro, refletir sobre uma possível remodelação de espaços determinados pelo plano.
De forma mais específica, o plano lançou seu olhar sobre o povoado e fez uma leitura
da heterogeneidade que compunha a rede urbana. Com base na estratégia de zoneamento,
217
LORENZETTI, Maria Silvia; ARAÚJO, Suely Mara Vaz Guimarães de. Política Urbana e habitacional. In:
GANEM, Roseli Senna (org.). Brasília: Câmara dos Deputados, Edições Câmara, 2015. p. 218. Disponível em:
http://bd.camara.gov.br/bd/bitstream/handle/bdcamara/21119/politicas_setoriais_ganen.pdf?s
equence=1. Acesso em: 19 maio 2018. 218
PLANO DIRETOR URBANO DE EUNÁPOLIS. Diagnóstico e metodologia. Salvador, 1977. v. 1. p. 25-26.
82
partindo de pressupostos socioeconômicos e de barreiras físicas, ele traçou um mapa
setorizado:
Figura 5 - Núcleo urbano original do povoado de Eunápolis
Fonte: PLANDEU (1977c)219
A planta apresentada na Figura 5 representa como se constituiu a parte física do
povoado, com suas ruas e bairros já consolidados em 1977. A setorização dos espaços
estende-se acompanhando os limites estabelecidos pela BR-101(no sentido horizontal da
figura) e pelo Córrego do Gravatá (no sentido vertical da figura). Partindo das referências
oferecidas pelo posicionamento do mapa, no Setor 1 se encontra o Bairro do Centro, limitado
pela margem esquerda do Córrego do Gravatá e pela margem superior da BR- 101, e o
primeiro núcleo estabelecido. No Setor 2, o Bairro Dr. Gusmão, segundo núcleo a estabelecer-
se seguindo a direita do Córrego Gravatá e à margem superior da BR-101. O Setor 3, que
compreende o Bairro do Pequi, um dos agrupamentos mais recentes que se delimitou na parte
inferior da BR-101; e, entre a BR-367 e o Córrego do Gravatá, o Bairro do Riacho Grande –
219
PLANO DIRETOR URBANO DE EUNÁPOLIS. Proposições. Salvador, 1977. v. 2.
83
anos mais à frente passou a ser chamado de Moisés Reis. Já o Setor 4, também de ocupação
mais recente, encontra-se na margem inferior da BR-101 e à direita do Córrego do Gravatá.220
De acordo com o seu histórico de ocupação e muito por conta das condições fundiárias
de propriedade do solo, houve uma estratificação. Nela, cada setor teve suas peculiaridades
quanto ao desenvolvimento. A divisão na qual o plano se apoia não se baseia somente nas
barreiras naturais (estradas, declividades, córregos), mas também nos níveis socioeconômicos
dos grupos neles residentes, nos usos dados aos estabelecimentos, nos tipos de edificações
desde sua estrutura, divisão interna e material usado na construção. Assim, sua análise passa
também pela organização socioeconômica já estabelecida e pela estética dos espaços. Neste
momento, faremos uma descrição dos setores com o intuito de desenhar como cada setor
estava estruturado em 1977, para analisarmos as projeções idealizadas pelo PLANDEU.
Começaremos pelo Bairro do Centro. Este setor (1) concentrou a maior parte dos
equipamentos urbanos221 de saúde, educação, casas de comércio e serviços (representando
cerca de 90% desses equipamentos no povoado), além da maioria das praças do povoado. A
população economicamente mais abastada também residia nesse espaço, com predominância
da renda familiar com média de 5 a 20 salários mínimos regionais222. Nele se encontravam as
―habitações de melhor padrão construtivo da cidade, várias consideradas casas de luxo,
notadamente ao longo das ruas da Colônia e Castro Alves‖, sendo que boa parte dessas
residências ―situam-se no meio de lotes arborizados, emprestando ao setor uma configuração
mais agradável‖.223
Predominavam no bairro casas construídas de alvenaria, telhados duas águas e com
telhas de cerâmica, dividindo o espaço com casas de taipa ou madeira, revestidas de tabuinhas
e telhados de meia água. É possível perceber, nessas duas citações, que, além de um padrão de
renda elevado, há contrastes sociais e, se levarmos em consideração os materiais usados na
construção, o texto também evoca a estética do lugar como um fator de relevância para a
caracterização diferenciada dos outros bairros.
O Setor 2, compreendendo o Bairro Dr. Gusmão, era predominantemente de uso
residencial, sendo constituído em conjunto com as moradias, bem como as casas comerciais e
de serviços de pequeno porte. Boa parte desses estabelecimentos, oficinas, borracharias, lojas
220
O PLANDEU Volume Síntese considera o Rosa Neto como o setor 4; já o Volume II, de Proposições,
desconsidera o Rosa Neto como um setor do zoneamento urbano. Optamos por seguir as afirmações do Volume
II do Plano. 221
Termo técnico que designa os bens públicos ou privados (escolas, hospitais, postos de saúde, praças,
parques,), estabelecidos em espaços urbanos e disponíveis ao uso público ou privado. 222
Segundo o PLANDEU, o salário mínimo regional, em 1975, era de Cr$ 376,00. 223
PLANO DIRETOR URBANO DE EUNÁPOLIS. Proposições. Salvador, 1977. v. 2. p. 8.
84
de autopeças, pensões, localizavam-se às margens da BR-101. Já na periferia, sentido norte,
acompanhando a BR-101, encontravam-se as serrarias e as carvoarias, parte definida como
zona industrial. Outra característica das edificações consistiu na função mista das residências,
pois também abrigavam pontos comerciais como quitandas.224
Pensando que a ―estratificação da população reflete, nitidamente, no padrão
construtivo das habitações‖,225 as habitações em boa parte eram de taipa e madeira. Essa
situação tendia a mudar somente nas proximidades da Praça Dr. Gusmão – único equipamento
de lazer do bairro – e ao longo da BR-101 onde o padrão do material utilizado nas construções
era de melhor consistência. A renda familiar no Bairro do Gusmão era de até 5 salários
mínimos, a população residente nessa cercania encontrava-se em ―uma quase absoluta
carência de equipamentos de saúde, lazer e educação, contando apenas com duas construções
escolares de reduzida capacidade‖.226
O Setor 3, Bairro do Pequi, junto com o Setor 4, área do Riacho Grande, apresentavam
os setores com renda familiar mais baixa do povoado, sendo de 0 a 3 salários mínimos. A
ocupação do solo deu-se em maior quantidade para o uso residencial, sendo também
composta por estabelecimentos voltados para atender as demandas dos usuários da rodovia,
com postos de gasolina, lojas de autopeças, oficinas, restaurantes, garagens de ônibus e etc.
No setor, encontravam-se os dois cemitérios do povoado, existindo a ―absoluta inexistência de
equipamentos e serviços públicos‖. O padrão das construções das moradias é baixo, prova
disso é que a predominância era de casas de taipa cobertas com telhas de cerâmica ou
taubilha.227 O Riacho Grande, Setor 4, possuía os mesmos caracteres de uso do solo que o
Setor 3, ocupado por populações de baixa renda de 0 a 3 salários mínimos, situação idêntica
ao Bairro do Pequi.
Eunápolis tinha um quadro desuniforme em relação ao material com o qual as casas
foram construídas, o que refletia a diversidade socioeconômica e cultural de sua população.
Casas de tijolos avizinhavam-se junto às de taipa, de adobe e de madeira, sendo que essa
realidade tendia a se diferenciar quando afastada do centro do povoado, nas periferias, onde
moravam as pessoas de baixa renda, as casas de tijolos eram praticamente inexistentes. Em
1975, predominavam as construções de taipa, cerca de 47,70% das casas erguidas,
224
Ibid. 225
PLANO DIRETOR URBANO DE EUNÁPOLIS. Proposições. Salvador, 1977. v. 2. p. 12. 226
Ibid. 227
Ibid., p. 16.
85
acompanhada das de tijolos com aproximadamente 39,33%; as de madeira, 6,22%; e as de
palha, 0,05% das construções.228
Além de expressar o nível econômico dos moradores dos bairros, os elementos
utilizados na confecção das moradias dizem da vivência e origem dos sujeitos, como também
da disponibilidade de matéria-prima para a construção. As casas de madeira e as tabuinhas
representavam a abundância do material a ser utilizado na construção de moradias. Já as
edificações de alvenaria diziam do poder de aquisição da população mais abastada do
povoado. A predominância de casas de taipa, de adobe e palha se insere como indício de que
uma grande parte dos habitantes tiveram origem ou experienciaram a vivência rural.
A taipa consiste numa antiga técnica de construção em que as paredes são erguidas
utilizando o barro úmido ―socado à mão‖ em moldes contra as frestas de uma estrutura feita
com varas ou galhos de árvore. Constituindo-se de uma forma de produção artesanal em que
as casas são elaboradas usando de ―coisas que a terra dá‖, o processo também envolvia a
oralidade e o trabalho coletivo em forma de festividade, que congregava determinada
quantidade de indivíduos em torno do labor como forma de sociabilidade e cooperação.229
Da mesma forma que a taipa, o adobe consiste numa produção artesanal em que se
mistura barro cru com areia, estrume e fibra vegetal, ou ainda crina de animal. Depois de
retirado, o barro molhado era misturado aos outros elementos e, diferente do tijolo, cozido em
forno. Em seguida, o adobe secava, tomava consistência à sombra e, depois, ao sol.230 Há
registros de que, na confecção do adobe e da taipa, eram realizados festejos e trabalhos
comunitários em sua feitura.231
Oliveira232 escreveu sobre a festa de cumeeira em Feira de Santana-BA, manifestação
da cultural que acontecia com a finalização do trabalho coletivo em zona rural ou urbana. Nos
documentos consultados sobre Eunápolis, não foi possível encontrar indícios de celebrações
comunitárias que acontecessem durante a atividade ou na finalização dos trabalhos de
edificação, o que não impede que elas tenham ocorrido.
228
SECRETARIA DO PLANEJAMENTO CIÊNCIA E TECNOLOGIA – SEPLANTEC (Bahia). Projeto
Eunápolis 1ª etapa, listagem dos imóveis. Salvador, 1975. p. 9-10. 229
CASA DE TAIPA. Ficha de Catalogação das Práticas – Patrimônio Imaterial, código [003]. Disponível em:
http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/003%20Casa%20de%20taipa.pdf. Acesso em: 05
abr. 2019. 230
Adobe (construção artesanal). In: INSTITUTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO
NACIONAL. Centro Nacional de Folclore e cultura Popular. Tesauro de Folclore e Cultura Popular Brasileira.
Brasília, [2004]. Disponível em: http://www.cnfcp.gov.br/tesauro/00001858.htm. Acesso em: 05 abr. 2019. 231
CASCUDO, Luís Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e
Cultura, 1954. 232
OLIVEIRA, Clóvis Ramaiana Moraes. Canções da cidade amanhecente: urbanização, memória e
silenciamentos em Feira de Santana, 1920-1960. Salvador: EDUFBA, 2016. p. 165-174.
86
Mesmo não encontrando fontes que relatem sobre festejos na edificação eunapolitana,
Lacerda nos apresenta situações de trabalho coletivo em que Joaquim Sacramento Bittencourt,
ou melhor, Joaquim Quatro, reunia companheiros em torno da construção de ―choças para
colocar agregados nas terras com o intuito de fundar uma povoação‖, sendo essas ―casas de
tábuas, cobertas de tabuinhas e de barro batido‖.233 O autor faz referência a uma temporalidade
em que o trabalho coletivo e a solidariedade faziam parte do cotidiano de um povoado ainda
pouco habitado, já que boa parte de suas construções eram feitas e doadas aos seus, além
disso, o estreitamento dos laços afetivos como pagamento representava uma moeda de troca
entre campesinos, o adjutório.
Fazendo um relato de situações diretamente ligadas ao mundo campesino, onde
moradia e ―roça‖ coexistiam no mesmo espaço e eram necessárias para a sobrevivência dos
moradores, a narrativa de Lacerda diz do uso de matérias-primas não industrializadas
encontradas na localidade como elementos fundamentais para a construção de moradias,
como o barro, a água e a madeira, elementos utilizados na taipa, técnica aplicada pelos
personagens do romance. Tanto o adobe quanto a taipa e a tabuinha estão ligados a saberes
tradicionais que remontam a culturas africanas e europeias, uma multiplicidade de saberes e
fazeres representantes das matrizes étnicas da formação do povoado. Esse tipo de construção
não era somente encontrado na zona rural, mas também em periferias de grandes cidades.234
Representantes de saberes indígenas são os poucos casebres de palha que ainda se
encontravam no povoado, o que não os limita a esse horizonte de materialidade, sabendo que
o processo de vivência cultural entre etnias de diferentes grupos ocorreu e que disso
resultaram as interações e as apropriações. Para fazer o ―mucambo de palha‖, forma de
construção característica de moradias de pescadores da região do extremo sul baiano,
utilizava-se de palhas de palmeiras e cipó em sua edificação, material encontrado na região de
Eunápolis.235
De acordo com Velame,236 a técnica da taipa passou a ser utilizada pelos Pataxós a
partir do seu processo de sedentarização, em meados da década de 1940, com a criação das
reservas indígenas e ambientais no extremo sul da Bahia. Os Kijeme, forma de habitação
originária desses povos, antes confeccionada com palha de piaçava, passaram a também
233
LACERDA, Alcides. O Fundador de Eunápolis, Sessenta e Quatro, As treze Marias e Os Anjos da
Traição. Feira de Santana: RADAMI, 2003. p. 179. 234
INSTITUTO DO PATRIMÔNIO ARTÍSTICO E CULTURAL – IPAC/BA. Inventário de Proteção do
Acervo Cultural da Bahia, Monumentos e Sítios do Litoral Sul. Salvador: Secretaria da Indústria, Comércio e
Turismo, 1988. v. 5. 235
Ibid. 236
VELAME, Fábio Macêdo. KIJEMES: Arquiteturas Indígenas Pataxós da Resistência ao Espetáculo. VI
ENECULT: Encontro de estudos multidisciplinares em cultura. Facom-UFBa: Salvador, 2010.
87
serem feitas de barro, através da técnica da taipa, o que sugere ampliarmos o seu leque
arquitetônico. A utilização tanto da palha quanto da taipa levantam maiores indícios sobre a
possível influência também dos indígenas nos padrões construtivos das povoações que
tiveram esses grupos em sua composição, entre elas Eunápolis.
O povoado transformou-se junto com o seu crescimento, traçando um caminho em que
a construção de ―choças‖ relatadas por Lacerda não teriam mais espaço. Acompanhando esse
movimento contínuo, modificaram-se tanto sua estética quanto os modos de moldá-la.
Segundo o Instituto do Patrimônio Artístico Cultural (IPAC), num inventário sobre
monumentos e sítios do litoral sul publicado em 1988, tanto a taipa quanto a casa de palha
eram sistemas construtivos em extinção, o que significava que novas formas construtivas
ocupavam o espaço deixado por elas.237
Assim como em outros núcleos da região, uma nova temporalidade apropriava-se do
povoado, buscando opor, de forma mais acirrada, o campo e a cidade, dinâmica essa que
conduz ao apagamento dos traços da ruralidade e do antigo, na tentativa de afastá-los do
povoado, dando-lhe conotações mais urbanas – e porque não dizer mais modernas. O barro, a
madeira e a palha, elementos conseguidos na natureza, de baixo ou nenhum custo, deram
lugar a materiais comprados no mercado da construção civil como ferro, concreto, tijolos e
telhas.
Nesse ínterim, os saberes tradicionais ligados à oralidade e da técnica de construção
comunitária passaram a ser apagados do texto urbano, enquanto outro saber se inscrevia nas
ruas do povoado: o conhecimento técnico científico, a palavra escrita e, de forma integral, o
trabalho cronometrado e assalariado. O capital transformou relações em que o antigo mestre
detentor dos saberes da utilização da palha, da taipa, das taubilhas e do adobe foi substituído
pelos do engenheiro, pelo arquiteto e pelo mestre de obras.
Em meio a essa dinâmica, o Plano Diretor insere-se como um mecanismo que tentou
normatizar as obras de edificação em Eunápolis. Tendo como base as expectativas de
mudanças para o urbano, o documento propõe a instituição do Código de Edificações, a partir
do qual foram estabelecidas ―normas disciplinadoras para projetar, construir e reformar
edificações de qualquer natureza‖,238 enunciando como deveria ser inscrito e/ou reescrito o
povoado em linhas progressistas.
237
INSTITUTO DO PATRIMÔNIO ARTÍSTICO E CULTURAL - IPAC/BA. Inventário de Proteção do
Acervo Cultural da Bahia. Monumentos e Sítios do Litoral Sul. Salvador: Secretaria da Indústria, Comércio e
Turismo, 1988. v. 5. 238
PLANO DIRETOR URBANO DE EUNÁPOLIS. Proposições. Salvador, 1977. v. 2. p. 199.
88
Com o estabelecimento do código, em caso de construção ou reforma seriam todos os
habitantes da urbe submetidos à cidade letrada. Logo, estariam dependentes da avaliação de
um ―profissional legalmente habilitado‖, mediante a apresentação de um projeto embasado
nas ―normas vigentes da ABNT‖ e no pagamento das taxas exigidas pelo poder público e
privado.239 O legislativo proposto pelo PLANDEU definia quem, como e onde poderia ser
construído.
O Código de Edificações propunha a condução da expansão do povoado. Tendo como
base saberes científicos, acompanhando essa trajetória, surgiram empresas pautadas no novo
modelo de construção civil, enunciadas através das construções discursivas dos periódicos
locais como condutores do progresso pelas veredas da região. Seguindo essa linha de
pensamento, o anúncio do Jornal Cometa em 1986 chama a atenção para uma construtora
tomada como referência na região:
No início desta década [1980], a situação da engenharia civil no Extremo Sul do
Estado não tinha chegado a uma ideal formação. A partir daí, a situação se
modificou com a fixação de técnicos como Eduardo Coitinho e Hugo Seguchi, dois
jovens que conquistaram o mercado e estão a serviço da região.
[...]
Como todas as grandes empresas de construção civil, a ENARC está assistida por
empregados técnicos (acima de 10), e por computador que fazem da empresa o
orgulho do povoado-cidade, graças à atuação e à determinação do Dr. Eduardo José
Coitinho, seu idealizador, que, junto com o Dr. Hugo Seguchi, arquiteto, se
empenham em colocar beleza, comodidade e qualidade em todas as obras, seja em
residências praianas ou fazendas, em praças e jardins públicos. A ENARC ESTÁ
CONSTRUINDO O PROGRESSO DESTE LADO DE CÁ DA BAHIA.240
O texto diz dos passos para o desenvolvimento no extremo sul da Bahia, confiados
agora às mãos de técnicos e à indústria da construção civil. Os saberes que levariam toda a
região ao progresso estariam no empenho da juventude letrada. Como o próprio PLANDEU
exigiu ―profissionais habilitados‖ para aprovação de obras e não mais aqueles que tiveram seu
conhecimento baseado na experiência prática e na oralidade, desconhecedores do mundo das
letras.
Produtora de um conjunto de obras em Eunápolis e nas cidades de Guaratinga,
Belmonte, Itagimirim e Porto Seguro, a ENARC simboliza o modelo de construção que se
pretendia para a região, munida de régua, esquadro, compasso e computador, diga-se de
239
Ibid., p. 199-200. 240
ENARC Construtora Ltda., construindo o progresso do Extremo Sul da Bahia. Jornal Cometa. Ano I, n. 3, p.
5, Eunápolis, jun. 1986. APMCVE.
89
passagem, novidade para a época, conjugados com ferro e cimento, esboçavam conhecimento
especializado para construir ―o progresso deste lado de cá da Bahia‖.
A contratação de construtoras marca a transformação dos modos de fazer e da
referência de beleza, comodidade e qualidade agora ditadas pelas normas do mercado das
obras particulares e públicas. Atrelado a esse conjunto enunciativo do que é belo, cômodo, de
boa qualidade e seguro, tem-se o crescimento da oferta e diversidade de materiais de
construção e utensílios domésticos no povoado, como é possível ver na Figura 6:
Figura 6 - Propaganda de venda de materiais de construção
Fonte: PROPAGANDAS... (1984)241
Antes de iniciar a análise relacionada aos artigos ofertados no anúncio, gostaria de
tratar do lugar onde foi produzido o jornal: Almenara-MG. O jornal produzido no Sudeste do
Brasil evidencia o raio de influência exercido pelo comércio eunapolitano, visto que não se
restringe somente ao seu território nem ao Extremo Sul da Bahia, mas chega a alcançar outros
estados.
O texto propagandista sobre uma loja eunapolitana, publicado no ano 1984, traz em
suas linhas uma fartura de produtos ligados ao comércio da construção civil. Materiais que,
diferente dos utilizados por Joaquim Sacramento Bittencourt e seus companheiros, não
poderiam ser acessados nos barreiros, nos campos, nem nas matas, muito menos nos rios da
região, menos ainda poderiam ser conseguidos sem dinheiro. O capital transformara os modos
de fazer a tal ponto, que construir dependia muito mais das condições financeiras do que da
disposição dos indivíduos e das relações desenvolvidas, era necessário comprar os materiais e
pagar pelos serviços. A nota também enuncia quais os materiais que deveriam compor a
paisagem eunapolitana, qual a estética teriam os monumentos públicos e privados, além de
quais ferramentas seriam usadas pelos trabalhadores braçais que labutassem com edificações,
241
PROPAGANDAS. Jornal Vigia do Vale: Almenara, 26 nov. 1984. p.11. APMCVE.
90
dialogando diretamente com o discurso de progresso em torno do texto sobre a ENARC
construtora. Fios elétricos, peças metálicas, ferramentas de ferro, o azulejo, o mármore, o
plástico, assim como o vidro, o cimento, entre outros, simbolizavam os novos rumos que o
povoado tomava em busca do tão almejado desenvolvimento.
Fazendo análise do discurso embutido no Código de Edificações proposto no
PLANDEU, nas determinações do que concerne à fundação e estruturas, paredes, cobertura e
piso os termos que mais aparecem são ―tijolo‖ e ―concreto‖, dando o indicativo de quais
materiais deveriam ser usados em suas feituras. O tijolo em especial se torna uma referência
para se levantar paredes:
§2° - Em geral, as paredes deverão ser construídas de tijolos.
§3° - Quando não tiverem de ser construídas de tijolos, será obrigatória a fixação das
espessuras das paredes, tomando-se por base as daquele material, bem como a
comparação das qualidades físicas, quanto ao isolamento térmico e acústico e à
capacidade de resistência aos agentes atmosféricos.
Parágrafo Único - As paredes de armários e de cabinas de chuveiros, quando não
suportam cargas, bem como as de meia altura, poderão ter espessuras de um quarto
de tijolo.242
Quanto a outros materiais usados em localidades onde ―o padrão construtivo das
habitações é baixo, predominando como material construtivo a taipa‖,243 estariam relegados ao
desuso de acordo com as diretrizes do plano, assim como suas técnicas de aplicação. Saberes
antes fundamentais para edificação das moradias, a partir de então foram colocados em risco
de esquecimento pelo legislativo.
Outro artigo colocaria em xeque os saberes indígenas aplicados na confecção de casas,
em que, ao realizar a cobertura das edificações, ―deverão ser empregados materiais
impermeáveis e imputrescíveis, de reduzida condutibilidade térmica, incombustíveis e
resistentes à ação dos agentes atmosféricos‖244, o que exclui a palha do hall de possibilidades
como material construtivo. Na perspectiva do PLANDEU, era exigido um padrão para
Eunápolis que excluísse conhecimentos de culturas tradicionais e elementos que fugiam dos
moldes da economia de mercado, em detrimento dos modernos materiais dos saberes técnico-
científicos instituídos pela indústria da construção civil.
O alinhamento do padrão das moradias do povoado precisaria seguir o modelo do
casario de melhor nível construtivo localizado no Bairro do Centro. Não só quanto aos
valores estéticos, mas também quanto à distribuição dos equipamentos, a narrativa do plano 242
CÓDIGO DE EDIFICAÇÕES: Capítulo III – Compartimentos e áreas mínimas. Seção quarta – Parede,
Art. 42. In: PLANO DIRETOR URBANO DE EUNÁPOLIS. Proposições. Salvador, 1977. v. 2. p. 216. 243
PLANO DIRETOR URBANO DE EUNÁPOLIS, op.cit., p. 16. 244
CÓDIGO DE EDIFICAÇÕES..., op.cit., p. 218.
91
arquiteta uma hierarquização dos espaços de acordo com os elementos que designam uma
estratificação relacionada a valores econômicos, sociais e sanitários. A disposição dos setores
perpassa pela estratégia de zoneamento, de separar os núcleos do povoado de acordo com os
níveis socioeconômicos de cada setor criando um sistema de segregação urbana
hierarquizada, onde foi possível optar ―pelo privilegiamento hierárquico do núcleo central e
do Setor 3, a partir da especialização das funções‖245. Neste sentido, em cada núcleo foi
selecionada uma área de 7% do seu total, sendo ela destinada à localização de equipamentos
comunitários, com exceção ―do núcleo Central onde foi reservada uma área superior à dos
demais‖.246
A todo o momento a construção do povoado se mostrava contraditória, pois, ao
mesmo tempo em que fazia o discurso de integração, na prática realizava a segregação. Essas
duas tendências dicotômicas passavam por uma racionalidade sustentada em uma estratégia
de classe, dentro da ação de planificação urbana, visando a apartamento de grupos sociais.
Segundo Lefebvre, o termo zoning (zoneamento), na ―representação urbanística‖, tem
conotação de separação, ―isolamento em guetos arranjados‖.247 As instituições públicas e
privadas agem tentando absorver a cidade:
O Estado age sobretudo por cima e a Empresa por baixo (assegurando a habitação e
a função de habitar nas cidades operárias e os conjuntos que dependem de uma
―sociedade‖, assegurando também os lazeres, e mesmo a cultura e a ―promoção
social‖). O Estado e a Empresa, apesar de suas diferenças e às vezes seus conflitos,
convergem para a segregação.248
Trazendo para o contexto eunapolitano, o planejamento buscava alçar suas estratégias
de zonear os setores, utilizando-se de mecanismos que criavam nichos, onde cada zona
pudesse prover seus habitantes, evitando a necessidade da integração desses com outros
bairros. Nesse processo de hierarquização dos setores, nem todos seriam beneficiados da
mesma forma.
Em Eunápolis, o Centro foi eleito como bairro privilegiado em relação aos demais
setores, onde o planejamento deveria proporcionar tal condição de infraestrutura. Sendo o
Bairro do Centro o melhor organizado, concentrando os grupos de melhor condição
financeira, uma ―configuração mais agradável‖249, aos olhos do PLANDEU, casas de luxo,
elementos que não são destacados quando se trata dos outros setores, provavelmente os
245
PLANO..., op. cit., p. 46. 246
PLANO DIRETOR URBANO DE EUNÁPOLIS. Proposições. Salvador, 1977. v. 2. p. 47. 247
LEFEBVRE, Henri. O direito à cidade. São Paulo: Centauro, 2001. p. 103. 248
Ibid., 2001. p. 99. 249
PLANO..., op. cit., p. 8.
92
terrenos mais valorizados. Mas, ainda assim, metaforizando Carlos Drummond de Andrade,
―tinha uma pedra no meio do caminho‖ trilhado por Eunápolis rumo ao progresso: a região
Córrego do Gravatá.
Com seu conjunto de habitações de taipa e madeira que o margeava, essa área do
córrego ―manchava‖ a paisagem do Centro, ameaçando o caminhar do desenvolvimento
urbano local, portanto uma ―área problema‖. Essa forma de ocupação se estendia por toda a
faixa das margens do Córrego do Gravatá que se alongava entre os bairros do Centro,
Gusmão, Pequi e Riacho Grande. Por conta da estrutura fundiária, que monopolizou o acesso
à terra, proporcionou um crescimento compacto, em que uma parcela da população teve de se
assentar ao longo dessa região, ―adaptando-se às peculiaridades do sítio urbano, circundado
por vales profundos e cortado pelo Córrego do Gravatá‖.250
Visando o reordenamento, a valorização dos terrenos e a regularização da situação
fundiária do Centro, o PLANDEU recomendou a imediata regularização das posses,
adquiridas pelo DERBA em 1954, e a transferência desta área para o domínio da
SEPLANTEC. Nessa área, deveria ser feita a
alienação dos lotes a preço de mercado (com a única exceção daqueles ocupados por
habitações de baixa renda que, em vista da valorização da área, poderiam, inclusive
ser remanejados); [...] utilização da receita obtida com a alienação da área do
DERBA para aquisição do remanescente da área urbana do povoado a fim de
atender à população com até 5 salários mínimos de renda familiar‖, de acordo com o
PLANHAP251
e o PROFILURB.252
(SFH253
; BNH254
).255
A proposta tendia a manter no Centro somente aqueles que tivessem condições de
concorrer a preço de mercado, possibilitando a permanência no local a um grupo de renda
elevada, em detrimento daqueles de baixa renda, que não detinham as condições de alienar os
250
PLANO DIRETOR URBANO DE EUNÁPOLIS. Proposições. Salvador, 1977. v. 2. p. 38. 251
O Plano Nacional de Habitação Popular (Planhap) foi instituído em 1973, numa tentativa do governo Federal
de resolver o problema do déficit da habitação popular em torno da população de baixa renda. Em seu primeiro
ano, buscou atender a população de até três salários mínimos, em cidades com mais de cinquenta mil habitantes,
em um horizonte de dez anos. A partir de 1975, objetivou atender a população com renda de até 5 salários
mínimos. De caráter ―elitizado‖, suas aplicações concentravam-se no limite máximo, e às vezes chegando a
extrapolar esse limite, por meio de ―subterfúgios na comprovação de renda‖. apud LORENZETTI, Maria Silvia;
ARAÚJO, Suely Mara Vaz Guimarães de. Política Urbana e habitacional. In: GANEM, Roseli Senna (org.).
Brasília: Câmara dos Deputados, Edições Câmara, 2015. p.224-225. Disponível em:
http://bd.camara.gov.br/bd/bitstream/handle/bdcamara/21119/politicas_setoriais_ganen.pdf?s
equence=1. Acesso em: 19 maio 2018. 252
Ibid. Programa de Financiamento de Lotes Urbanos (Profilurb), objetivava beneficiar as famílias de renda
inferior aos valores que eram requisitado pelo Planhap, ou sem renda regular. 253
Ibid. Sistema Financeiro de Habitação (SFH), criado na década de 1960, contava com grandes recursos e
transformou o BNH em um grande agente da construção civil. 254 Ibid. O BNH surgiu na década de 1960 como um grande marco, a nível federal, para o institucionalização da
política nacional de habitação. 255
PLANO DIRETOR URBANO DE EUNÁPOLIS. Diagnóstico e metodologia. Salvador, 1977. v.1. p. 29.
93
terrenos; estes deveriam ser relocados para outros espaços que não o centro da cidade. Este
planejamento para o Centro indica uma ação de reorganização social em uma localidade que,
de acordo com os interesses governamentais, deveria ser direcionada para a população de
maior renda.
A especulação imobiliária crescente nessa área dificultou o acesso a essas terras,
legando-as a famílias de alta renda com condições financeiras para adquiri-las. O cuidado em
valorizar o espaço e em selecionar seus residentes pode ser interpretado como uma ação que
une os interesses do governo do estado, das municipalidades e donos de terrenos locais.
Segundo Milton Santos, a sociedade em funcionamento acaba por criar ―sítios sociais‖
que agem transformando seletivamente os lugares, buscando torná-los atrativos ou não para
determinados grupos. Para ele,
É desse modo que as parcelas da cidade ganham ou perdem valor ao longo do
tempo. O planejamento urbano acrescenta um elemento de organização ao
mecanismo de mercado. O marketing urbano (das construções e dos terrenos) gera
expectativas que influem nos preços.256
O plano chama a atenção sobre a necessidade de intervenção nas ―áreas problemas‖,
assim considerada as construções ao longo do Córrego do Gravatá pelo estado de
insalubridade em que se encontravam. Como caracterização das moradias, ele as reconhece
como ―Pique‖, que consiste na ―coexistência de usos comercial e residencial, no exemplo
mais alarmante de miséria‖.257 Nesse caso, para os técnicos contratados pelo governo do
estado e possivelmente para alguns grupos locais as áreas que prestavam uma aparência feia
ao Bairro do Centro e desvalorizavam terrenos de uma zona de destaque no povoado estavam
sujeitas a passar por uma remodelagem, sob a necessidade de padronização da estética desse
espaço.
Diante das observações referidas pelo PLANDEU, a urbanização do Córrego do
Gravatá foi alvo de apropriação e intervenções de algumas gestões administrativas da
Prefeitura de Santa Cruz Cabrália. No tocante ao saneamento do local e da transferência de
moradores para outros bairros, foi encampado um projeto de remodelagem dessa área, na
década de 1980, pelo prefeito santa-cruzense Arnaldo Moura Guerrieri, feito que será
aprofundado no terceiro capítulo.
256
SANTOS, Milton. A Urbanização Brasileira. 5. ed., 3 reimpr. São Paulo: Editora da Universidade de São
Paulo, 2013. p. 107. 257
PLANO DIRETOR URBANO DE EUNÁPOLIS. Proposições. Salvador, 1977. v. 2. p. 16.
94
Para além do planejamento do governo do estado da Bahia para Eunápolis, as próprias
municipalidades também elaboraram mecanismos de ordenamento dos hábitos e costumes,
com o intuito de modelar os modos de fazer da população local. Instrumentos como o Código
de Posturas Municipais tiveram papel fundamental na concretização dos ideais de Santa Cruz
Cabrália para o povoado.
3.3 A CIDADE E A LEI: A PROJEÇÃO DO ESPAÇO EUNAPOLITANO E SEUS USOS
Os projetos do poder público não se contentaram somente em tentar regularizar a
situação fundiária e institucional de Eunápolis, consideradas como fundamentais para o seu
desenvolvimento ou ―remodelação‖, faltava também ordenar os usos dos espaços públicos e
os hábitos da população. Além de modificar a estética urbana, era necessário também moldar
as práticas da população que frequentava a urbe, ligadas a um cotidiano que dialogava com as
vivências no campo. Com esse intuito, foi criado um instrumento específico que se atentasse
para disciplinar a conduta dos praticantes da urbe, as Posturas Municipais.
O Código de Posturas Municipais (CPM) de Santa Cruz Cabrália, instituído no ano de
1977, segundo a implementação da Lei 1.109 de 21 janeiro de 1977,258 cumpriu o papel de
estatuto para o controle urbano na territorialidade compreendida por sua municipalidade, o
que incluía Eunápolis. No intuito de analisar as estratégias tecidas pelo poder público de
controlar a vida urbana através da legislação e, assim, aplicar um projeto de urbe para
Eunápolis, apoiamo-nos nas Posturas Municipais santa-cruzenses, acreditando na maior
atuação sobre o povoado, por conta de sua posse sobre a maior porção – 80%, mesmo que em
fronteiras mal definidas. Além disso, a transferência da administração pública de Santa Cruz
Cabrália para Eunápolis, aproximadamente de 81 quilômetros de distância, certamente tornou
sua atuação sobre o povoado mais incisiva.
Em nossa análise das Posturas Municipais vigentes no povoado, acreditamos que as
normas urbanas funcionaram como um determinante para as formas de apropriação dos
espaços, regulando a sua produção e delimitando as fronteiras de poder em Eunápolis.
A lei organiza, classifica e coleciona os territórios urbanos, conferindo significados
e gerando noções de civilidade e cidadania diretamente correspondentes ao modo de
vida e à micropolítica familiar dos grupos que estiveram envolvidos em sua
258
Art. 292. In: LIVRO DE REGISTRO DE POSTURAS DA CÂMARA MUNICIPAL DE SANTA CRUZ
CABRÁLIA. 21 jan. 1977. s/p.
95
formulação. Funcionando, portanto, como referente cultural fortíssimo na cidade,
mesmo quando não é capaz de determinar sua forma final.259
Mesmo que a lei funcione como uma ―espécie de molde da cidade ideal ou desejável‖,
ela não tem o poder de atuar em todos os territórios da cidade, configurando espaços ―dentro e
fora da lei‖, com ―cidadania plena e cidadania limitada‖, e delimitando, assim, fronteiras. É
essa conformação que permite a produção de uma heterogeneidade, quando a lei não opera no
sentido de homogeneizar a cidade. É nesse caso que ela se manifesta mais poderosa,
relacionando as diferenças culturais de forma hierarquizada.260 Desta forma, o poder público,
com o intuito de projetar o povoado como um lugar símbolo do desenvolvimento regional,
submete a população ao conjunto de normas de policiamento sobre as condutas urbanas, como
nos mostra o Artigo 1° do CPM:
Art. 1°- Este Código contém as medidas de polícia-administrativa a cargo do
município de proteção a saúde, ordem pública e proteção ao verde, prevenção de
incênio e combate ao fogo e dos estabelecimentos comerciais e industriais
estatuindo as necessárias relações entre o Poder Público local e os munícipes.261
As normas para a boa conduta dos munícipes abarcaram uma diversidade de instâncias
da vida urbana que iam desde a estética e higiene públicas, passando pelos incidentes e pelos
procedimentos de fabricação e comercialização. A estratégia traçada pela municipalidade
buscava dominar e direcionar a vida da população local de acordo com o projeto de cidade
sob os ditames do progresso. O conjunto das leis que regimentavam o CPM tinham por
intencionalidade tornar dóceis os sujeitos que vivenciavam o cotidiano urbano de Eunápolis,
sendo que
[...] no centro dos quais reina a noção de ―docilidade‖ que une ao corpo
manipulável. É dócil um corpo que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que
pode ser transformado e aperfeiçoado. [...] em qualquer sociedade, o corpo está
preso no interior de poderes muito apertados, que lhe impõem limitações, proibições
ou obrigações.262
Era necessário legislar também instrumentos com o objetivo de controlar as práticas
culturais que desviavam, no sentido de discipliná-las, trazê-las para o âmbito do projeto de
civilidade previsto para Eunápolis. Para isso, foi instituído, dentro do código, o mecanismo de
259
ROLNIK, Raquel. A cidade e a lei: legislação, política urbana e territórios na cidade de São Paulo. 2. ed. São
Paulo: Studio Nobel: Fapesp, 1999, p. 13. 260
Ibid., p.14. 261
LIVRO DE REGISTRO DE POSTURAS DA CÂMARA MUNICIPAL DE SANTA CRUZ CABRÁLIA.
Introdução. 21 jan. 1977, s/p. 262
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: o nascimento da prisão. 42. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014. p.134.
96
coerção, além de referenciar os sujeitos da relação de forças entre o Poder Público e os
munícipes, ou seja, disciplinadores e possíveis infratores:
Art. 2°- Ao Prefeito, e em geral aos servidores municipais incumbe velar pela
observância dos preceitos deste código.
Art. 4º - Será considerado infrator todo aquele que cometer, mandar, constranger ou
auxiliar alguém a praticar, e ainda, os encarregados da execução das leis que tendo
conhecimento da infração, deixarem de autuar o infrator.263
Art. 15° - Dará motivo à lavratura do auto de infração qualquer violação das normas
deste Código que for levada ao conhecimento do Prefeito, Secretários, ou dos chefes
de Serviços, por qualquer servidor municipal ou qualquer pessoa que a presenciar,
devendo a comunicação ser acompanhada de prova ou testemunha.264
As penalidades aplicadas aos infratores iam desde a advertência, multa, apreensão do
produto, suspensão de vendas e/ou fabricação de produtos, proibição ou interdição de
atividades, observada a legislação federal a respeito, à cassação de alvará de licença do
estabelecimento.265 Para o cálculo das multas, eram utilizadas como base as Unidades Fiscais
Municipais (UFMs), que podiam variar de 10 a 100 do valor das UFMs.266 Infelizmente as
fontes consultadas não visibilizaram o quantitativo equivalente das UFMs em Cruzeiros,
impossibilitando termos ciência do valor de cada unidade na moeda vigente.
Para especularmos sobre as tentativas de disciplinar os hábitos da população e a
remodelagem dos espaços, é preciso ter uma noção de qual era o contexto do cotidiano do
povoado antes e durante a publicação das Posturas Municipais. Compreender a dinâmica do
povoado permite-nos refletir sobre as investidas do poder público com pretensão de regulá-lo.
O CPM em si não nos permite compreender o ―dia a dia‖ eunapolitano em meio às tentativas
de controle pela prefeitura santa-cruzense, para alcançarmos esse objetivo, usaremos uma
variedade de fontes entre escritos memorialísticos, periódicos, fotografias e revistas.
Neste sentido, as vivências no povoado, em finais da década de 1960 e nos anos
iniciais da década de 1970, transitavam entre o campo e a cidade com um limiar muito tênue,
no qual os modos de fazer rurais se misturavam aos elementos da vida urbana. Até a chegada
das estradas e, principalmente, da BR-101, fundamentais para a circulação dos automóveis, a
melhor fluidez de produtos, tecnologias e informações, o contato e transporte com outras
localidades, tudo isso era realizado no lombo de animais. Um exemplo disso são as tropas que
263
LIVRO..., op.cit. 264
Art. 15. Capítulo III: Dos Autos de Infração. In: LIVRO DE REGISTRO DE POSTURAS DA
CÂMARA MUNICIPAL DE SANTA CRUZ CABRÁLIA, op.cit. s/p. 265
Ver os incisos de I ao VI, Art. 5°, do Cap. II: Das Infrações e das Penas. In: LIVRO..., op.cit. 266
Ver §1º, Art. 7º, do Cap. II: Das Infrações e das Penas. In: LIVRO..., op.cit.
97
faziam a ligação do litoral com o interior do país, levando e trazendo mercadorias, pessoas no
em cavalos e mulas, ou conduzindo gado.
Essa realidade é relatada na lida diária de Pedrinho e de sua família, personagens do
romance O Fundador de Eunápolis, Sessenta e Quatro, as Treze Marias e os Anjos da
Traição, de Lacerda:
[...] Pedrinho, quando não estava viajando na tropa de Antonio Bravo, vinha ficar no
64267
em casa de seus pais ajudando o irmão Adão que continuava tomando conta
das armadilhas e das caçadas, enquanto sua mãe costurava as roupas dos
garimpeiros, lavava e passava e seu pai tirava tabuinhas nas matas e fazia casebres
por ali para garimpeiros que iam chegando aos poucos [...]268
As atividades descritas na citação dizem de um momento do povoado em que o uso de
tropas era essencial para o seu abastecimento de produtos não encontrados na região,
principalmente os industrializados (como querosene, tecidos, ferramentas e utensílios
domésticos), além de animais trazidos de outras localidades. Não só o transporte utilizando
animais, como também as práticas de utilização das condições de sobrevivência oferecidas
pelas matas e a necessidade de cultivar os saberes provenientes da forte presença indígena na
região possibilitavam o convívio diário, algo essencial às pessoas que ainda estavam
condicionadas ao mundo em que o ―progresso‖ começava a chegar.
Caçar e montar armadilhas para obtenção de animais silvestres, ainda abundantes na
região, muitas vezes fazia parte do sustento das famílias mais pobres que, por sua vez, não
tinham condições de ter acesso à carne comercializada nas feiras locais, ou mesmo criar
animais que lhes abastecessem. Existia também o comércio de peles de animais que se
constituía como uma fonte de renda possível aos caçadores e criadores locais.
Como boa parte das casas era feita de madeira ou de taipa e cobertas por peças de
madeira, principalmente as dos grupos de poder aquisitivo mais baixo, a extração de tabuinhas
usadas na construção civil consistia também em mais um exemplo de sobrevivência, tendo as
florestas como principal fonte de recursos. O aumento da população tendeu a insuflar as
transformações, de acordo com as demandas que foram surgindo e a especialização dos
serviços, como a oportunidade de costurar e lavar não somente para a família, mas também
para os trabalhadores que vinham de fora e, muitas vezes, não traziam mulher nem filhos
consigo.
267
Essa nomenclatura se refere ao povoado antes de ser chamado de Eunápolis. 268
LACERDA, Alcides Góbiras. O Fundador de Eunápolis, Sessenta e Quatro, as Treze Marias e os Anjos
da Traição. Feira de Santana: Radami, 2003. p. 169.
98
Como relatou Lacerda, a mãe de Pedrinho tinha a possibilidade de trabalhar para fora,
ajudando na renda de casa, possivelmente utilizando algum riacho ou fonte próxima, por
conta de não haver água encanada com acesso a todos durante o período estudado. Enfim,
hábitos comuns ao meio rural que dialogavam com o crescimento da urbe.
Outro relato interessante para compreensão da importância do mundo rural para o
funcionamento do povoado vem através do relato de Moisés Reis:
Com a abertura das estradas, o povoado tornou-se mais conhecido. Os viajantes que
antes transitavam pela antiga estrada mineira (estrada que vinha de Minas Gerais,
passando por Gabiarra, Sapucaieira, Campo do Alecrim, Queimadinhas, Queimada
Grande até Porto Seguro), agora, ao chegarem à Sapucaieira, pegavam a picada da
BA-2 até o povoado. E de lá seguiam pela rodagem até Porto Seguro. Muitos
deixavam a tropa (de burros) descansando e desciam de caminhão. [...] Os tropeiros
que faziam tal rota foram responsáveis por grande parte do progresso de Eunápolis.
Foram verdadeiros heróis.269
A rota descrita pelo narrador faz parte do trajeto feito pelos que viajavam do interior
de Minas Gerais para o litoral da Bahia (no caso da narrativa, Porto Seguro). Eunápolis se
encontrava no entremeio do percurso e logo fazia parte do trânsito de tropeiros que,
constantemente, intermediavam o contato entre as localidades visitadas.
Note que Moisés Reis deixa evidenciado o destaque para as estradas, e os elementos
possíveis com ela, como o automóvel. Os tropeiros, depois de um dado momento, não
chegavam a ir mais montado em animais até Porto Seguro, deixando os burros no povoado,
pois o caminhão serviria de montaria até o final do trajeto. O autor não deixa explicito qual
temporalidade a que se refere, mas o que nos interessa, mais que datas, são os acontecimentos
e as transformações, ou seja, o automóvel que assumia o lugar dos cavalos e mulas e o
motorista o lugar do tropeiro.
É possível especularmos sobre a postura que assume o autor em colocar os cavaleiros
que ―Não respeitavam chuva ou sol, nem peso ou tamanho do volume‖, como figuras heroicas
de outrora, responsáveis por ―grande parte do progresso de Eunápolis‖, agora fadadas a serem
aos poucos substituídas por veículos motorizados.270 Passando pela possibilidade de sua
substituição, com a modernização das técnicas e tecnologias, outro agravante ameaçava a
permanência da cultura tropeira na região e no povoado.
269
BANCO DO NORDESTE DO BRASIL S.A. (BNB). Eunápolis. Ministério do Interior, ago 1984, p. 24. 270
BANCO DO NORDESTE DO BRASIL S.A. (BNB). Eunápolis. Ministério do Interior. ago 1984. p. 24.
99
O CPM, em seu artigo 163, diz que ―Não será permitida a passagem ou
estacionamento de tropas ou rebanhos na cidade‖271, a partir de então seria uma questão de
controle dos usos da cidade, onde a infração deste artigo acarretaria em ―multa
correspondente ao valor de cinco (05) UFMs‖272. As Posturas evidenciam um movimento de
desruralização da urbe, através da legislação que pretendia afastar e/ou invisibilizar sujeitos,
saberes e práticas do povoado, tentando separar o rural do urbano.
Uma imagem publicada no Jornal do Brasil, em 1975, mostra um pouco do cotidiano
da feira do Centro que ocorria na Avenida Santos Dumont, mais especificamente na ―Praça da
Lavoura‖. A Figura 7 representa um típico dia de comércio intenso, possivelmente um dia de
feira, em que um grande contingente de pessoas se acumulava na rua. Ao fundo, encontram-se
lojas e barracas responsáveis pela venda dos mais diversos produtos vindos do campo ou de
outros centros industrializados. Em meio à multidão, crianças dirigem carros de mão
provavelmente vendendo ou transportando os produtos ali comprados por um público
consumidor, em destaque na fotografia dois cavaleiros se deslocam em suas montarias. Esse
momento consiste na troca de experiências entre habitantes do campo, do povoado e de outras
localidades, o encontro entre realidades que se entrecruzam nesse espaço de sociabilidade.
Figura 7 - Fotografia da feira na Avenida Santos Dumont
Fonte: Jornal do Brasil, 1975
273
271
LIVRO DE REGISTRO DE POSTURAS DA CÂMARA MUNICIPAL DE SANTA CRUZ CABRÁLIA.
Capítulo V: Das Medidas Referentes aos Animais. 21 jan. 1977, s/p. 272
Ibid. Artigo 168. 273
EUNÁPOLIS: Na extinção da madeira, o crescimento de uma cidade sem lei. Jornal do Brasil. Rio de
Janeiro, ano 43, p. 39, 21 maio 1975. Disponível em:
http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=030015_09&PagFis=21452&Pesq=Eun%C3%A1polis.
Acesso em: 16 nov. 2017.
100
Após a imagem, em sequência, a reportagem faz uma reflexão num subtítulo sobre os
contrastes do povoado tão dotado de modernidade, mas ainda atrelado a elementos de uma
estrutura rural: ―O povoado em dia de feira, a maior da região. Apesar dos carros de luxo, o
cavalo ainda é dos principais meios de transporte‖.274 Note a posição em que a fotografia foi
registrada, colocando cavalos e cavaleiros superpostos à feira; esse destaque dado a essas
figuras diz da intencionalidade de quem a tirou, ou seja, de mostrar a ruralidade que habitava
o povoado.
O texto imagético, em conjunto com a citação, dá ênfase à imagem de contraditório do
meio urbano eunapolitano. Mesmo com uma frota de automóveis crescente, segundo um
vendedor entrevistado pelo jornal, cerca de 100 carros por mês275, o transporte equestre foi
considerado como o mais utilizado pela população local, certamente por se tratar de um
recurso de mais fácil acesso à população sem condições financeiras de adquirir um carro,
maioria entre os moradores.
Com o intento de controlar e modificar os hábitos de quem dependia dos cavalos,
mulas e jumentos para o transporte e trabalho em Eunápolis, foi disposto um conjunto de
regulações sobre a presença desses animais na zona urbana:
Art.156 - É proibido embaraçar o trânsito ou molestar os pedestres por tais meios
fios como:
IV – amarrar animais em postes, árvores, grades ou portas;
V – conduzir ou conservar animais sobre passeios ou jardins.276
Art.158 - Os animais encontrados nas ruas, praças estradas ou caminhos públicos
serão recolhidos ao depósito da municipalidade.
Art.159 - O animal recolhido, em virtude do disposto neste capítulo, será retirado
dentro do prazo máximo de 7(sete) dias mediante pagamento da multa e da taxa de
manutenção respectiva, por cabeça.277
Art. 245 - Fica proibida a formação de pastagens nas zonas urbanas do Município.278
.
Como num cerco, o poder público buscou disciplinar os usuários do povoado,
principalmente das populações menos abastadas, mais dependentes dos costumes campesinos.
Com a implementação desse legislativo em 1977, a cena vista na Figura 7, publicada em
1975, tendia a ficar mais rara, pois boa parte das práticas que possibilitavam o uso tradicional
274
Ibid. 275
Ibid. 276
LIVRO DE REGISTRO DE POSTURAS DA CÂMARA MUNICIPAL DE SANTA CRUZ CABRÁLIA.
Capítulo IV: Do Trânsito Público. 21 jan. 1977, s/p. 277
LIVRO DE REGISTRO DE POSTURAS DA CÂMARA MUNICIPAL DE SANTA CRUZ CABRÁLIA.
Capítulo V: Das Medidas referentes aos Animais. 278
Ibid. Título IV: Proteção ao Verde. Capítulo III: Dos Licenciamento e Serviços.
101
da tração animal passou a ser limitada no meio urbano. Medidas como essa levam a ponderar
sobre outras situações, como a tentativa de controlar a presença de sujeitos que viviam nas
roças e dependiam de cavalos para se deslocar para o povoado, mas, por não terem local para
prender seus animais, tinham que amarrá-los em locais, a partir de então, proibidos, o que
possivelmente gerou conflitos.
Sem a possibilidade de amarrar seus cavalos em lugares possíveis a ameaça de
recolhimento dos animais que forem encontrados em ambientes públicos e a proibição de
formar pastagem em zona urbana, resta-nos interpretar que o pensamento da municipalidade
era eliminar tais hábitos do cotidiano citadino, sendo passivos de multa os infratores da lei.279
As proibições contidas nos artigos 158° e 159° também passam a colidir com práticas
costumeiras de criar animais soltos que faziam parte da complementação alimentar de uma
parte da população. A criação de porcos no meio urbano foi elencada como mais um
agravante para as condições higiênicas no cotidiano da feira que acontecia na Rua do Bueiro,
pelo Plano Diretor, ―onde é grande o número de porcos‖.280 Atraídos pelos restos de alimentos
que se acumulavam no local, os suínos e, possivelmente, outros animais (como cães)
misturavam-se ―aos compradores e às crianças que brincavam no local‖281, ajudando a
caracterizar a insalubridade do espaço.
Com a previsão de controlar cenas como a articulada anteriormente sobre a circulação
de animais na zona urbana como um problema a ser combatido, a prefeitura santa-cruzense
elabora os seguintes artigos contidos no CPM:
Art.160 - É permitida a criação ou engorda de porcos e caprinos, no perímetro
urbano da sede, distritos, vilas e povoados desde que obtenham licença prévia da
secretaria de saúde do Município, e não sejam situados em zona residencial.
Parágrafo Único – Aos proprietários de cevas atualmente existentes em zonas
comerciais e residenciais na sede do município, distritos, vilas e povoados, fica
estipulado o prazo de 180 (cento e oitenta) dias a contar da data da publicação desta
lei, para a remoção dos animais.
Art.161 – É proibida a criação no perímetro urbano da sede municipal de qualquer
espécie de gado.
279
O CPM institui os valores de 02 UFMs aos infratores do artigo 156, 05 UFMs aos infratores dos artigos 158 e
159, e 03 UFMs aos do artigo 245°. Cf. LIVRO DE REGISTRO DE POSTURAS DA CÂMARA MUNICIPAL
DE SANTA CRUZ CABRÁLIA. 21 jan. 1977, s/p. 280
PLANO DIRETOR URBANO DE EUNÁPOLIS. Proposições. Salvador, 1977. v. 2. p. 6. 281
Ibid.
102
Art. 162 - Os cães que forem encontrados nas vias públicas da cidade, distritos e
povoados serão apreendidos e recolhidos aos depósitos da Prefeitura.282
Em relação aos cães, quando um deles é encontrado em ambiente público e recolhido
pelos representantes do poder público, o dono, querendo reavê-lo, era obrigado a retirá-lo em
até ―dez dias, mediante o pagamento da multa e das taxas respectivas‖, caso contrário o
animal seria sacrificado.283 O infrator de qualquer dos artigos acima teria de arcar com a multa
no valor de cinco UFMs.284
Ainda que a vontade do poder público fosse de eliminação de práticas ligadas ao
mundo rural, algumas astúcias buscavam caminhar no limiar das possibilidades ainda cabíveis
no convívio das áreas urbanas. Driblando as tentativas de transformação da vida cotidiana
urbana, podemos perceber táticas de permanência de tradições quando ainda hoje vemos
animais soltos nas ruas do então município de Eunápolis. Isso nos leva a crer sobre a
deficiência das municipalidades quanto à fiscalização e manutenção da ordem em seu
território, com relação aos hábitos ―roceiros‖.
As medidas repressivas buscavam não só policiar os hábitos dos usuários do povoado,
mas também caracterizá-lo como um ambiente urbanizado. Elementos que pudessem
configurar uma paisagem rudimentar, ruralizada, acabaram por ser coibidos no perímetro
urbano, sendo ―terminantemente proibida a construção de cercas de arame farpado com frente
para as vias públicas‖.285 Nas áreas urbanas, os proprietários de terrenos eram ―obrigados a
murá-los dentro dos prazos fixados pela Prefeitura, bem como a executar o passeio‖286.
Não cabiam mais à estética do que seria visível aos transeuntes das ruas e avenidas
estacas de madeira nem arame farpado, e sim o concreto e tijolos. As cercas só eram
permitidas se permanecessem em áreas ―divisórias entre propriedades‖287, provavelmente
locais visíveis somente aos seus próprios donos, o que manteria certo padrão à fachada dos
logradouros, assim como a obrigatoriedade da construção de passeios; ainda assim, em
terrenos que não fossem confrontantes com residências, cabendo um acordo entre vizinhos,
282
LIVRO DE REGISTRO DE POSTURAS DA CÂMARA MUNICIPAL DE SANTA CRUZ CABRÁLIA.
Capítulo V: Das Medidas referentes aos Animais. Título III: Dos Costumes, Policiamento e Ordem Pública. 21
jan. 1977, s/p. 283
Ibid., Parágrafo Único. 284
Ibid., Art.168. 285
LIVRO DE REGISTRO DE POSTURAS DA CÂMARA MUNICIPAL DE SANTA CRUZ CABRÁLIA.
Capítulo XIII: Dos Muros, Cercas e Passeios. 21 jan. 1977, s/p., Art. 226. 286
Ibid., Art. 222. 287
LIVRO DE REGISTRO DE POSTURAS DA CÂMARA MUNICIPAL DE SANTA CRUZ CABRÁLIA.
Capítulo XIII: Dos Muros, Cercas e Passeios. 21 jan. 1977, s/p., Art. 223.
103
visando a preservação da privacidade entre ambos.288 O mesmo se aplicava a terrenos baldios:
esses que podiam ameaçar a aparência citadina tinham de ser ―fechados com muros de
alvenaria ou outros materiais similares, devendo em qualquer caso ter uma altura mínima de
um metro e oitenta centímetros‖289.
Nem todos os artigos do código condiziam com a realidade encontrada pela população
eunapolitana, principalmente quanto à acessibilidade da população carente à infraestrutura,
como, por exemplo, o serviço de água encanada nas residências. Segundo o PLANDEU, em
diagnóstico realizado em 1975 somente 59% da população utilizava do abastecimento de água
realizado pela EMBASA no povoado. A tarifa mínima cobrada pelo uso do serviço
representava um total de 3,64% sobre o salário mínimo regional, enquanto as pessoas com até
3 salários mínimos representavam 83,32% do total, o que caracteriza a dificuldade de uma
parcela da população em pagar pelo serviço.290
Sobre o problema de estrutura do povoado, a revista Veja, de novembro de 1978, teceu
os comentários de que: ―Água encanada é privilégio de pouco mais da metade da população e
não há sistema de esgotos sanitários, galerias de águas pluviais e coleta de lixo‖.291 Ainda
segundo o PLANDEU, as populações que não tiveram acesso à água fornecida pela
EMBASA buscaram sanar suas necessidades utilizando cisternas, córregos ou poços, muitas
das vezes contaminados.292 Com o argumento de preservar a higiene pública, o inciso I do
artigo 29 proibiu o ato de ―lavar roupa em chafarizes, fontes ou tanques situados nas vias
públicas‖293, o que deixa evidente que, em alguns termos, o legislativo também era
contrastante em relação à realidade de Eunápolis.
Lacerda faz menção a uma grande quantidade de aguadas, nascentes, riachos, lagoas e
brejos, no território de Eunápolis, que, com o avanço da urbanização, passaram a fazer parte
da vida urbana. Entre elas, ele destaca uma de uso coletivo, o Córrego da Biquinha, situada
288
Sobre as fronteiras entre residências, o art. 225 define: ―Os proprietários dos muros confrontantes de
residências serão obrigados a construí-los com altura mínima de hum metro e oitenta centímetros (1,80m),
objetivando a salvaguarda da privacidade, salvo acordo prévio entre os confinantes, devendo a Prefeitura ser
cientificada do mesmo‖. E, conforme o art. 227, em caso de infração de qualquer tópico disposto no capítulo,
―Será aplicada multa correspondente ao valor de 05 (cinco) UFMs‖. 289
Ibid. Art. 224. 290
PLANO DIRETOR URBANO DE EUNÁPOLIS. Diagnóstico e metodologia. Salvador, 1977, v. 1. p. 104. 291
O povoado sem sorte Desventuras de Eunápolis, que pertence a dois municípios e não é servido por nenhum.
Cidades. Veja, Editora Abril, n. 534, p. 68, 28 nov. 1978. 292
PLANO..., op.cit., p. 105-106. 293
Art. 29. Capítulo II: Da Higiene das Vias Públicas, Título II: Da Proteção a Saúde, Capítulo I: Das
Disposições Gerais. In: LIVRO DE REGISTRO DE POSTURAS DA CÂMARA MUNICIPAL DE SANTA
CRUZ CABRÁLIA, 21 jan. 1977, s/p.
104
nas proximidades da Praça da Bandeira, onde as pessoas apanhavam água ―para todo o
necessário‖.294
Outra aguada também é destacada pelo professor Geraldo Magela Ribeiro como fonte
de abastecimento para o povoado, a nascente do ―Buracão‖. Localizada às margens do
entroncamento da BR-101 com a BR-367, essa aguada tinha utilidade diversa para a
população, sua água, além de ser comercializada em barris, os ―carotes‖, que eram levados até
a casa dos fregueses no lombo de animais.295
É bem possível que lugares como a ―Biquinha‖, o ―Buracão‖, entre outras fontes de
água, não só fossem frequentados por lavadeiras de ganho, ou que lavassem as roupas da
própria família, mas por pessoas que fossem lavar utensílios domésticos, pegar água para o
consumo de casa, entre outros. Proibir o acesso às aguadas das vias públicas para aqueles que
delas necessitassem e ainda não possibilitar os serviços de águas à população pobre do
povoado caracteriza a contradição entre o projeto de ordenamento com a realidade da
população carente do povoado.
Talvez as lavadeiras, além de ―sujarem‖, pensando a partir da ótica do poder público,
as fontes de água com seu uso para os afazeres domésticos, também ―contaminassem‖ a
paisagem das vias públicas, no sentido da vontade de uma separação dos afazeres domésticos,
legados à vida privada nas próprias residências, e a condenação dessas práticas feitas no
cotidiano público. Ainda quem sabe mascarar a lavagem de roupas como fonte de renda,
atividade que, muitas das vezes, contribuía com as despesas da casa ou as mantinha, deveria
ser erradicada dos espaços públicos. Possivelmente a prática já não era bem quista pelo poder
público e por outros grupos sociais influentes para a permanência nos logradouros do
povoado.
Para além dos empecilhos dispostos ao ofício como fonte de renda, foi também
colocado um ponto no modo de vida dos utilitários das fontes. Os lugares que davam acesso a
uma ampla utilização por parte da população, como as fontes de água, possibilitavam a
construção de espaços de sociabilidade, onde saberes eram compartilhados e experiências
forjadas entre seus usuários. Esses, a partir do novo legislativo, teriam de construir outros
lugares para obtenção de renda e de convivência.
O ofício de lavadeira, assim como o uso do urbano, estava tomando novos contornos.
Além de restringir o ambiente diferente do habitual, o das aguadas públicas ao recinto privado
294
LACERDA, Alcides. O Fundador de Eunápolis, Sessenta e Quatro, as Treze Marias e os Anjos da
Traição. Feira de Santana: RADAMI Editora Gráfica, 2003. p. 343. 295
RIBEIRO, Geraldo Magela. EUNÁPOLIS: de mata a cidade. Eunápolis: Gráfica Caçula Ltda., 1998.
105
das residências, as técnicas e as tecnologias assim como os modos de fazer também se
modificaram, acompanhando as novas tendências do mercado e da indústria.
Acompanhando a modificação da estética urbana, voltando à proibição dos
cercamentos frontais dos terrenos e à modernização dos modos de construir e da indústria de
tecnologia e produtos da construção civil, outros ofícios também se transformam para adaptar-
se a esse processo macro do desenvolvimento urbano. No caso das lavadeiras, era comum o
hábito de colocar as roupas para secarem em cercas nas dependências urbanas296, prática que,
com a proibição, estaria limitada ao interior dos terrenos. Com a medida proibitiva, costumes
como o uso de cercas como varais, assim como a própria cerca de frente dos terrenos, tendiam
a desaparecerem gradualmente do cenário urbano, dando lugar aos muros de tijolos.
Ainda em relação a problemas enfrentados em Eunápolis quanto à questão da
preservação e limpeza das reservas hídricas do povoado, o periódico Jornal Cometa traz, em
suas páginas, denúncias sobre a poluição de águas utilizadas pela população e o incômodo
causado aos moradores:
Com a instalação do Matadouro Mary Ann Ltda., Eunápolis recebeu seu grande
―presente de grego‖. Após seis anos de funcionamento, o matadouro vem
ocasionando problemas de saúde à população do bairro Santa Lúcia no seu
abastecimento d‘água conforme denúncia de moradores que condenam o matadouro
dizendo que os dejetos enviados através do Córrego Grande estão poluindo toda
água que serve para o consumo. As denúncias na edição n° 1 do Jornal Cometa,
quando se apontou o fato e a entrevista a moradores da área. As denúncias do
matadouro não param por aí. Elas recrudesceram quando se verificou que estão
utilizando uma lagoa não muito distante do centro de Eunápolis como depósito para
o sangue do gado abatido durante todo o período de seis anos.
Moradores do bairro Centauro Oeste já se ressentem, apesar da distância de mais de
3 km, e estão se queixando que o mau cheiro exalado da lagoa impede de fazer as
suas refeições matinais, continuando durante todo o dia. As crianças, segundo
Milemon Lacerda, estão com doenças desconhecidas não identificadas pelos
médicos que também condenam a empresa em manter atividade o matadouro Mary
Ann, atribuindo às doenças manifestadas nas crianças como influência do estado da
lagoa.297
A denúncia realizada pela reportagem trata de uma ação do matadouro local, que, ao
realizar o despejo dos dejetos, acabou por poluir aguadas importantes que serviam para o uso
de uma parcela da população eunapolitana. Situações como esta, além de transgredirem as
posturas municipais no artigo 30°, visto que ―É proibido comprometer, por qualquer forma, a
296
Sobre o hábito de estender roupas para secar em cercas na zona urbana de municípios baianos, ver: SANTA
BARBARA, Reginilde Rodrigues. O caminho da autonomia na conquista da dignidade: sociabilidades e
conflitos entre lavadeiras em Feira de Santana – Bahia (1929-1964). 2007. Dissertação (Mestrado em História) –
Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2007; CARVALHO, Philipe Murilo de. Itabuna – Uma cidade em
disputa: Tensões e conflitos urbanos no sul da Bahia (1930-1948). Jundiaí: Paco Editorial, 2012. 297
POPULAÇÃO, temendo pela saúde, pede fechamento do matadouro Mary Ann Ltda. Jornal Cometa,
Eunápolis (BA), ano I, n. 3, p. 11, jun. 1986. APMCVE.
106
limpeza das águas destinadas ao consumo público e particular‖298, ainda ameaçava a saúde e o
bem-estar dos moradores das localidades próximas às aguadas. A multa pela infração do
artigo 30° equivale ao valor de três UFMs.299
Passados oito anos desde a publicação do CPM, a reportagem do Jornal Cometa de
1986 evidencia quão defeituosa era a fiscalização da ordem urbana pela administração
pública. As situações que fugiam do controle do município (como a violação de regras
instituídas pela legislação santa-cruzense) e a infraestrutura oferecida pelo povoado (como
falta de esgotamento, serviço de água tratada que não alcançava a toda a população e coleta de
lixo irregular e inconstante) foram duramente criticadas por médicos locais, atestando a essas
condições a proliferação de doenças que afligiam a população. Surtos de verminose e
amarelão, entre outros, atingiam números consideráveis de casos em Eunápolis.
Para o médico Presciliano Domingos David, diretor do hospital particular João
Gualberto, em Eunápolis a
[...] falta de uma rede de esgotos, saneamento básico e campanhas de esclarecimento
na zona rural, segundo Dr. David, os grandes motivos para que quase totalidade da
população de Eunápolis sofra de amarelão, principalmente, e outras doenças. [...]
Mostrando-se adepto da medicina preventiva, o diretor do João Gualberto afirma
que de ―nada adianta você curar uma verminose porque daqui há um mês ela estará
novamente com o paciente‖. Para Dr. David, ―o que se tem que fazer é aparelhar as
cidades de infra-estrutura sanitária e conscientizar a população rural das condições
mínimas de higiene‖. [...] segundo o diretor do hospital, a ameba, existe em 80 por
cento da população de Eunápolis, vem através da água poluída, frutas e verduras mal
lavadas ou lavadas com a mesma água [...]300
O discurso médico reforça a problemática apresentada anteriormente no que se refere à
higiene e à estrutura deficiente do povoado. Os tentáculos representantes do poder público
não alcançavam tudo o que propunha policiar e disciplinar em Eunápolis, fugia-lhe do
controle a multiplicidade de situações encontradas na realidade diversa de Santa Cruz
Cabrália ou qualquer outro núcleo urbano pertencente à municipalidade, o que não quer dizer
que sua atuação fosse ausente. A análise sobre a atuação e/ou a autuação da prefeitura em
disciplinar os indivíduos transgressores das regras não compete ao nosso trabalho, o que na
realidade demandaria outra pesquisa para abarcar as discussões provenientes desse outro
estudo.
298
Art. 30. Capítulo II: Da Higiene das Vias Públicas, Título II: Da Proteção A Saúde. In: LIVRO DE
REGISTRO DE POSTURAS DA CÂMARA MUNICIPAL DE SANTA CRUZ CABRÁLIA, 21 jan. 1977, s/p. 299
Ibid., Art. 33. 300
Dr. David vê três tuberculosos, por dia lhe pedindo socorro. 28° Aniversário de fundação de Eunápolis.
Jornal da Bahia. Salvador, 4 e 5 de nov. de 1978. p. 2. Arquivo particular do pesquisador.
107
Diante das nuances proporcionadas pelo cruzamento das narrativas provenientes das
várias fontes consultadas, podemos concluir que a prefeitura de Santa Cruz Cabrália mesmo
que se propunha a aplicar um projeto de controle das práticas dos munícipes e modelagem da
paisagem, através das posturas municipais, não conseguiu abarcar todas as nuances de
Eunápolis. Em um meio urbano, permeado pela ruralidade, além das condições ofertadas pela
estrutura do povoado, as vontades políticas estavam muito aquém da consolidação da cidade
ideal, mas, ainda assim, consolidava-se o discurso ufanista sobre o ―maior povoado do
mundo‖.
108
4 DISCURSO, REPRESENTAÇÕES E IMAGINÁRIO SOBRE “O MAIOR
POVOADO DO MUNDO”
Eunápolis nasceu sob a égide do trabalho
Para crescer e desenvolver
Com todo punho e ação
Como uma árvore frutífera
Hoje sob o amparo da Educação
(...)
Vinha gente de toda parte
Investir no Povoado promissor
Acreditando no sucesso
Só o trabalho é que constrói
A cidade do Progresso!
O povoado cresceu e tornou-se
O Maior Povoado do Mundo
Com desenvolvimento sem-par
Emancipou-se em 12 de maio de 1988
Motivo para festejar.301
Mesmo que o trecho do poema de autoria do professor Raimundo Rodrigues da
Silva302
date de um período posterior ao corte temporal desta pesquisa, suas palavras
conformam uma das imagens que foram veiculadas sobre Eunápolis. A paisagem de um
povoado de desenvolvimento ―sem-par‖, ―cidade do Progresso‖, nascido e fundamentado no
trabalho, sendo, assim, uma ―árvore frutífera‖ para aquele que apostasse no sucesso e tivesse
disposição para o trabalho, não se atendo somente à escrita do poeta.
Os enunciados de progresso se propagaram em jornais, revistas e outros tipos de
publicações que circularam em cidades da Bahia e de outros estados brasileiros, entre as
décadas de 1970 e 1980, noticiando o crescimento do lugar, que ainda não havia deixado de
ser um povoado.
O desenvolvimento também trouxe consigo uma herança de incongruências a essas
paragens através da apropriação de terras pelo latifúndio e pela indústria madeireira, seus
conflitos e resquícios de destruição da paisagem admirável relatada na Carta de Pero Vaz de
Caminha. O cenário socioeconômico desigual do povoado em formação foi uma forte marca
desse processo violento e profundo.
Os idealizadores do futuro eunapolitano projetaram-no tanto materialmente como também na
mentalidade das pessoas que conviviam com as narrativas sobre o povoado, através da escrita
301
SILVA, Raimundo Rodrigues da. Eunápolis em Prosa & Versos. ―Guia Cultural‖. Itabuna: Mesquita, 1999.
p.11-12. 302
As poucas informações que obtivemos sobre Raimundo Rodrigues da Silva foram provenientes do Guia
Cultural, Eunápolis em Prosa & Versos, de sua própria autoria. Professor Raimundo, como também é conhecido,
chegou a Eunápolis em 1967 - não tivemos ciência de qual município é natural. É autor de peças teatrais,
poesias, crônicas, e também humorista e romancista. SILVA, Raimundo Rodrigues da. Eunápolis em Prosa &
Versos. ―Guia Cultural‖. Itabuna: Mesquita, 1999.
109
de autores de diversas naturezas. Diante das mãos de jornalistas, romancistas e poetas que
publicizaram acontecimentos e interpretações sobre Eunápolis, não foram articuladas somente
as narrativas otimistas sobre o desenvolvimento acelerado, mas também o outro lado do
progresso, visto que as angústias em torno da violência, do aumento da criminalidade e da
pobreza foram materializados nos registros. Ou seja, são noções contraditórias sobre o
povoado, por meio das quais foram justapostos: progresso e atraso, riqueza e pobreza, vício e
virtude, moderno e antiquado, belo e feio, entre outros aspectos.
Os discursos que corriam nas páginas panfletárias, por vezes em tom ufanista,
construíram concepções sobre o povoado, noções essas que, pelo alcance das publicações,
fizeram parte do imaginário popular de quem teve contato com essas narrativas. Nesse
aspecto, os meios de dizibilidade tiveram papel fundamental na construção de visões sobre a
cidade, cumprindo assim a função de influenciadores nas concepções populares. Os jornais
funcionam ―como veículos de formação de opinião pública‖, cuja retórica carregada de
artifícios tem o poder de criar ―imagens fortes, carregadas de adjetivos, cores‖ que contribuem
para com o convencimento dos sujeitos a enxergarem o mundo de determinada forma.303
Acreditamos que os periódicos são criados com intenções discursivas, assim como os
demais escritos analisados. Seus escritores são partidários, carregados de parcialidade em seus
discursos. É preciso, portanto, que o pesquisador esteja atento tanto ao lugar onde é redigido o
texto, como também a que público ele visa atingir, que realidade é pretendida e quais os
objetivos se quer alcançar com as afirmações e/ou com as negações. A partir de tais análises,
é possível ter uma aproximação do ideal de espaço que se almeja construir.
Pretendemos analisar o discurso encontrado em jornais, revistas e livros publicados
que acabaram por consolidar um imaginário fundamentado em representações sobre
Eunápolis. O imaginário baseia-se numa dimensão do real, acontecimentos que, sujeitos ao
discurso veiculado em recursos midiáticos e obras literárias, criam uma sensibilidade, uma
realidade para além do visível, do material, podendo, assim,
Assumir uma força maior para a existência que o real concreto. A representação guia
o mundo, através do efeito mágico da palavra e da imagem, que dão significado à
realidade e pautam valores e condutas. Estaríamos, pois, imersos num ―mundo que
se parece‖, mais real, por vezes, que a própria realidade e que se constitui numa
abordagem extremamente atual, particularmente se dirigia ao objeto ―cidade‖.304
303
PESAVENTO, Sandra Jatahy. Uma outra cidade: o mundo dos excluídos no final do século XIX. São Paulo:
Nacional, 2001, p. 33. 304
Id. O imaginário da cidade: visões literárias do urbano – Paris, Rio de Janeiro, Porto Alegre. 2. ed., Porto
Alegre: Ed. Universidade: UFRG, 2002, p. 8.
110
Pretendemos analisar como as narrativas sobre Eunápolis projetaram noções de um
povoado ideal e de um povoado imperfeito, baseado nos discursos sobre o desenvolvimento
econômico e do crescimento da violência. Propomo-nos também a problematizar os casos de
criminalidade como produto do cenário de desigualdade socioeconômica, dinamizada pela
falta de infraestrutura e de serviços básicos acessíveis a toda a população, principalmente aos
mais vulneráveis, e a disparidade na distribuição da renda. Buscaremos, também, analisar
como as dizibilidades difundem representações de atraso e progresso atreladas a espaços
urbanos, tendo interferência nas transformações urbanas, assim como são utilizadas por
sujeitos participantes da vida política do povoado a seu favor.
4.1 ―CORRIDA AO OURO EM CAMPOS DE FAROESTE‖: REPRESENTAÇÕES DA
VIOLÊNCIA EM EUNÁPOLIS
Mas Eunápolis, principalmente por ser o mais importante acampamento de toda a
região, começou a se desenvolver com mais rapidez e logo, era o centro abastecedor
de toda a região e o maior pólo para o comércio e a extração de madeira,
principalmente do jacarandá. E para aí convergiram pessoas de outras cidades e de
outros estados, principalmente, do norte do Espírito Santo, começando assim, uma
verdadeira corrida ao ouro em campos de faroeste e, numa escalada às vezes brutal,
que era possível haver quase todos os dias um crime em suas ruas.305
Eunápolis, como centro convergente de populações oriundas de diversas localidades,
atraídas pelo discurso de desenvolvimento econômico, foi palco de conflitos diversos,
principalmente por conta da distribuição da renda de forma desigual e da disputa pela posse
de terras. Cenário este que o escritor Romeu Fontana chamou de uma ―verdadeira corrida ao
ouro em campos de faroeste‖.306
Neste momento, analisaremos as narrativas que circularam no período estudado e
divulgaram a imagem do povoado como epicentro do crime na região do Extremo Sul da
Bahia, onde a pistolagem era praticada por jagunços e pistoleiros, na maioria das vezes, a
mando de políticos, fazendeiros e grileiros que ditavam as regras às quais boa parte da
população estava submetida. Livros de memorialistas locais, periódicos e revistas,
destacaram, em seus textos, fortes indícios de um contexto violento em que se encontrava o
povoado, apontando para os motivos da criminalidade que, em sua maioria, indicou a disputa
em torno da questão fundiária.
305
FONTANA, Romeu. Porto Seguro: de aldeia de pescador a aldeia global. S/data, p. 62. 306
Idem.
111
Uma historiografia recente teceu um panorama da história agrária do Extremo Sul da
Bahia no século XX, em que violentos conflitos foram acontecimentos constantes na região.
Entre esses trabalhos, merecem destaque as pesquisas dos historiadores Alves307 e
D‘Icarahy308. O primeiro pesquisou sobre o envolvimento de párocos da diocese de
Caravelas/Teixeira de Freitas, entre os anos de 1978 e 1985, na organização do movimento do
campo frente à expansão do latifúndio e do monocultivo na região. Amaral evidenciou a
violência cometida por agentes da polícia e pistoleiros a mando de grileiros, empresários e
fazendeiros contra posseiros, pescadores e trabalhadores rurais em municípios da região.
D‘Icarahy enveredou-se pela história do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem
Terra (MST) na Bahia, tendo como recorte espacial específico o Extremo Sul do estado. No
percurso, ele estudou os litígios em torno da posse de terras: investidas de policiais e
pistoleiros mandados por grileiros, empresários, fazendeiros e políticos, que desembocaram
na expulsão de posseiros e pequenos proprietários; as articulações que possibilitaram o
surgimento do MST na região e, a partir daí, as primeiras ocupações de terras na Bahia; bem
como os conflitos que se seguiram em torno das desapropriações e reintegrações de posse.
Durante o período do governo militar os casos de perseguição, tortura,
desaparecimento e morte fizeram parte do cotidiano de muitos dos trabalhadores rurais que
conseguiram se organizar ou não. Na pesquisa realizada por Carneiro e Cioccari309 sobre
perseguição, tortura, desaparecimento e mortes dos trabalhadores rurais em todo o Brasil,
foram apresentados cinco casos de assassinato de trabalhadores rurais no Extremo Sul da
Bahia: o lavrador Antônio França de Oliveira, morador do município de Porto Seguro, morto
em 1977, devido a conflitos envolvendo a ameaça de expulsão de 100 famílias de posseiros,
pelo grileiro João Anastácio Filho; o posseiro Petronílio Costa Farias, morador de Vale
Verde, município de Porto Seguro, expulso de suas terras pela Bralanda Reflorestamento,
morto a pauladas em Eunápolis em 1979; Boaventura, posseiro do município de Itapebi,
morto a pauladas num conflito com grileiros ocorrido em 1983; os posseiros João Fortunato
dos Santos e Hildo Fortunato dos Santos, pai e filho, mortos em 1983, na localidade de
Cumuruxatiba, município de Prado, num conflito com a polícia, que defendia interesses da
Bralanda Reflorestamento; Augusto Dias, índio Pataxó destribalizado e trabalhador rural, foi
307
ALVES, Leonardo do Amaral. Experiências forjadas a ferro e fogo: religiosidade, organicidade e luta pela
terra no extremo sul da Bahia no contexto da ditadura civil-militar (1978-1985). 2017. Dissertação (Mestrado em
História) – Universidade Estadual de Feiras de Santana, Feira de Santana, 2017. 308
D‘ICARAHY, Leonardo Dantas. O Sonho da Terra: Trabalhadores Rurais e o Surgimento do MST na Bahia
(1975-1989). 2018. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2018; 309
CARNEIRO, Ana; CIOCCARI, Marta. Retrato da Repressão Política no Campo – Camponeses torturados,
mortos e desaparecidos. Brasília: MDA, 2010.
112
morto em 1985 pelo capataz da Fazenda Santa Helena, após ter reivindicado indenização por
tempo de trabalho e por ter morado na fazenda, enquanto o latifundiário se recusou a pagar.
As pesquisas narram experiências que possibilitam um entendimento mais amplo do contexto
conflituoso que envolvia a região onde Eunápolis estava inserida e das imagens enunciadas
pelos periódicos.
O desenvolvimento do Extremo Sul baiano a partir do investimento de capitais
estrangeiros, a implantação da indústria madeireira e o aumento da quantidade de latifúndios
foram elementos que influenciaram no desfecho das disputas pela posse das terras na região.
Os conflitos armados entre posseiros e grileiros em que a força beligerante pairava, somados
ao fluxo de pessoas mais dinamizado por conta das estradas e as desigualdades
socioeconômicas acentuadas reforçaram a imagem de uma região marcada pela violência.
Foram muitos os casos de criminalidade a circularem na mídia jornalística. Essas
informações exerceram a função de criar um imaginário sobre o que foi noticiado. Em 01 de
abril de 1987, o jornal A Tarde publicou uma reportagem de título: ―Índice de criminalidade
aumenta no sul da Bahia‖. Ederivaldo Benedito, correspondente da Sucursal Sul em Itabuna,
aliou o texto a uma análise feita pelo cientista social Selem Rachid Asmar. Este último, por
sua vez, ―reconheceu que a região cacaueira sempre se caracterizou pela violência dos seus
habitantes‖, permeado por uma realidade desigual historicamente construída, iniciado na
década de 1930 em que ocorreu a ―concentração de renda nas mãos de poucos; e, por outro
lado, uma miséria absoluta em torno de muitos‖. Entre os eixos de atuação criminosa do sul
baiano,310 estavam elencados o eixo entre Porto Seguro, Teixeira de Freitas e Eunápolis, como
trecho ―onde ainda figura o tráfico de drogas e o crime organizado‖. 311
D‘Icarahy trouxe, em sua pesquisa, um recorte de notícia da revista Veja, de 12 de
outubro de 1981, que dizia que a violência era uma marca do Extremo Sul do período, sendo
considerada como uma ―zona perigosa‖. A revista afirmou que, na região, chegavam a ter
cerca de duas mortes por dia, configurando índices que só eram superados pelos da Baixada
Fluminense, no Rio de Janeiro, se forem levados em consideração os níveis brasileiros. Na
matéria, o povoado de Eunápolis apareceu como sendo o centro do crime, onde a venda de
armas era tão comum quanto a de produtos de uso cotidiano, anunciados em mercados:
310
A reportagem referencia como áreas de foco de desenvolvimento do crime, para além do trecho Porto Seguro-
Eunápolis-Teixeira de Freitas, os eixos Ilhéus-Itabuna, Jitaúna-Ipiaú, Pau-Brasil-Camacã-Itajú do Colônia. 311
BENEDITO, Ederivaldo. Cidades. Índice de criminalidade aumenta no sul da Bahia. A Tarde. p.13, 01
abr.1987. APBCEB.
113
―sabonete, alimentos utensílios e armas de todo o tipo‖.312 Através da Veja, e de outros
mecanismos de comunicação em massa circulavam a nível nacional a imagem de um povoado
onde a violência se espraiava cotidianamente de forma banalizada.
Alarmantes índices de homicídio caracterizaram o povoado para os leitores do Jornal
do Brasil, o qual cita que os frequentadores dos cinemas de Eunápolis ―não veem muita
diferença entre o enredo de filmes como A Honra Se Lava Com Sangue e Dá-lhe Duro,
Trinity com o seu cotidiano‖. Os filmes de ―Fair West‖, ou na tradução abrasileirada como
―Bangue-bangue‖, sucessos nas décadas de 1970 e 1980, foram usados na alusão a uma
realidade dita cinematográfica eunapolitana, em que o número de assassinatos, segundo
delegado José Matos, era de um por semana.313
O conjunto de publicações da imprensa estadual e de outros estados usou da metáfora
do faroeste ao descrever o povoado com toda a estrutura para tal. Neste cenário próximo do
descrito em filmes da corrida do oeste norte americano em que figuravam personagens
recorrentes nessas histórias – como os pistoleiros, os contratantes da pistolagem, fazendeiros,
políticos, empresários que visavam manter o controle local através do uso da violência; o
xerife, em boa parte dos casos, submetia-se ao mando dos contratantes; e o outro extremo da
disputa (pequenos proprietários, posseiros, indivíduos que se sujeitavam ou desafiavam o
poder dos coronéis).
Em reportagens sobre as investigações envolvendo assassinatos acontecidos na região
do Extremo Sul baiano, caracterizados como ―mortes por empreitada‖, ou seja, executadas por
pistoleiros contratados por mandantes locais, em troca de pagamento e/ou favorecimentos
diversos, jornais chegaram a falar em uma organização criminosa denominada como
―sindicato do crime‖ ou ―sindicato da morte‖. Em meio a uma considerável quantia de casos
noticiados, escolhemos alguns que mais nos chamaram a atenção.
Um dos casos permitiu o enveredamento nas tramas registradas pelo que o periódico
nomeou por ―sindicato da morte‖. O jornal A Tarde, de 22 de dezembro de 1985, publicou a
matéria de título ―O sindicato da morte está vivo no extremo sul‖, em que foi relatado um
julgamento que encheu as dependências do salão nobre da Comissão Executiva do Plano da
Lavoura Cacaueira (CEPLAC) em Eunápolis, onde o réu, o pistoleiro João Virgílio Ribeiro, o
312
ZONA perigosa. Aumenta a violência no sul do Estado. Revista Veja, São Paulo, 12 out. 1981. (apud
D‘ICARAHY, Leonardo Dantas. O Sonho da Terra: Trabalhadores Rurais e o Surgimento do MST na Bahia
(1975-1989). 2018. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2018. p. 48. 313
EUNÁPOLIS: Na extinção da madeira, o crescimento de uma cidade sem lei. Jornal do Brasil. Rio de
Janeiro, ano 43, p. 39, 21 maio 1975. Disponível em:
http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=030015_09&PagFis=21452&Pesq=Eun%C3%A1polis.
Acesso em: 16 nov. 2017.
114
―Boca Murcha‖, foi acusado pela morte do contador da filial da cervejaria Brahma em
Eunápolis Antônio Pereira dos Santos, assassinado no dia 26 de janeiro de 1980, na porta de
casa, Centro de Eunápolis, quando chegava do trabalho.314
Segundo uma nota do jornal A Tarde lançada alguns dias antes do julgamento de
―Boca Murcha‖, aquele evento se constituía como de grande importância por ser o primeiro
júri popular a acontecer em Eunápolis. O texto diz que o réu foi acusado de coautoria do
crime, sendo ele ―intermediário entre mandantes e pistoleiro que tomaram parte no
assassinato.‖315
O andamento narrado no jornal sobre o julgamento indiciava o nível de coordenação
do organismo em que o acusado, João Virgílio Ribeiro,
um homem pobre e de hábitos moderados, chegou ao salão do júri acompanhado de
três advogados [...[ Além de dois bons advogados, alguém, que não foi o réu,
mandou buscar em São Paulo, o jurista Sérgio Eid, para defender o criminoso [...]316
As evidências apontavam para o envolvimento de atores de nível econômico mais
expressivo que o do réu, já que o indivíduo julgado supostamente não teria condições de arcar
com os encargos financeiros do esquema montado para a sua defesa. O desfecho do caso
revelou uma complexa rede de relações entre chefes da política local e a prática de pistolagem
em crimes de mando na região, em prol da manutenção do poder local. A investigação policial
concluiu que o contador foi morto a mando de pessoas influentes da região, quando
pretendiam incriminar pelo assassinato um fazendeiro adversário político dos autores
intelectuais do crime.
Outro pistoleiro de nome Pedro Miranda foi preso na cidade de Belmonte em junho de
1984. Ele confessou a intenção de matar o prefeito de Belmonte, Luiz Guimarães, além da
participação no homicídio do contador Antônio Pereira, apontando como mandantes Jesus
Moura, ex-prefeito de Guaratinga, e Samuel Gomes Lima, político influente da região.317 Os
dois mandantes estiveram presentes no julgamento de ―Boca Murcha‖, sendo que o primeiro
tentou participar como advogado de acusação, o que caracterizou um complô para absolver o
réu, mas logo foi afastado. Já o segundo, Samuel Gomes Lima, liderança política do PDS em
314
MIRANDA, Alberto. Sindicato da morte está vivo no extremo sul. A Tarde, p. 14, 22 dez. 1985, p. 14. 315
Primeiro júri de Eunápolis será dia 28. A Tarde, 24 de nov. 1985. p. 17. APBCEB. 316
MIRANDA, Alberto. Sindicato da morte está vivo no extremo sul. A Tarde, p. 14, 22 dez. 1985, p. 14.
APBCEB. 317
MIRANDA, Alberto. Sindicato da morte está vivo no extremo sul. A Tarde, p. 14, 22 dez. 1985, p. 14.
APBCEB.
115
Santa Cruz Cabrália,318 foi submetido a interrogatório, contradizendo-se quando questionado
pelos advogados de acusação sobre a autoria intelectual do crime.319
O criminalista, ao desfiar um ―rosário de mortes horríveis cometidas pelo ―Sindicato
do Crime‘‖, envolvendo arquétipos que se aproximavam das narrativas amadianas em
episódios de tocaias e emboscadas como os pistoleiros/jagunços320, os mandantes/coronéis e
um considerável número de vítimas, a narrativa do jornal conclui que a ―presença de gente
assim, na região, foi que levou importante órgão de comunicação do Sul, a apontar Eunápolis
como um dos pontos mais violentos do País, superando até a baixada Fluminense, no Rio de
Janeiro.‖. Ao final de um tenso julgamento o acusado foi condenado a treze anos na
penitenciária Lemos Brito, em Salvador.321
Sobre os dois líderes políticos citados pelo jornal como mandantes do crime, não foi
possível encontrar mais jornais ou outros documentos que evidenciassem o desfecho do caso.
Todavia, pensando no prestígio político e no poder econômico de ambos é possível que não
tenham sido penalizados pela justiça local, ficando legada a punição somente aos pistoleiros.
Após a morte do contador uma queima de arquivos foi realizada, ocasionando no
homicídio de seis suspeitos de envolvimento direta e indiretamente no caso. Na lista fúnebre,
estavam os pistoleiros Belarmino Ribeiro da Silva, o ―Cobézinho‖, Sebastião Canuto Batista,
Pedro Miranda, João Carrero, Samuel Preto e Humberto Miranda.322 A matança,
possivelmente, foi deliberada pelos autores intelectuais, apagando os rastros que poderiam
levar os investigadores aos mandantes.
Sebastião Canuto Batista, um dos participantes do assassinato do contador, teve sua
morte noticiada pelo jornal A Tarde de 18 de março de 1980. O homem ―magro, branco, olhos
claros, fala mansa, considerado um dos principais elementos do crime organizado no sul da
Bahia‖, carregava consigo um extenso currículo de delitos cometidos. Entre eles, foi elencado
o envenenamento de quase 200 índios no Pará, de onde era natural, a mando de um
fazendeiro, após ter se estabelecido em Eunápolis, a 15ª Diretoria Regional de Polícia com
318
Questionada a posição política de Samuel Lima. Jornal Koragem. mar./1986, p. 5. APMCVE. 319
MIRANDA, Alberto. op.cit. 320
Segundo Edmilton da Silva, existe uma diferença entre jagunços e pistoleiros: mesmo que ambos
normalmente trabalhassem por dinheiro, os primeiros estavam mais intimamente ligados aos seus chefes, e
podiam exercer outras funções como trabalhador rural, lavrador, peão, ao contrário dos pistoleiros, que eram
contratados para execução de serviços a mando do contratante. Os casos citados em nossa pesquisa mais se
aproximam da atuação de pistoleiros, por conta da evidência de contratações destes para a execução de crimes.
In: SILVA, Edmilton. Representações da violência na região do Contestado entre o Espírito Santo e Minas
Gerais (1940-1962). 2019. Dissertação (Mestrado em História) – Centro de Ciências Humanas e Naturais da
Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2019. 321
MIRANDA, Alberto. op. cit. 322
MIRANDA, Alberto. Sindicato da morte está vivo no extremo sul. A Tarde, p. 14, 22 dez. 1985, p. 14.
APBCEB.
116
sede em Itabuna estimou que ―ele foi responsável por mais de 30 assassinatos, muitos deles
ainda totalmente impunes‖.323
Em realidade, a morte de Sebastião Canuto e seu lugar-tenente João Carrero,
assassinados no interior do Bar Brasil no povoado de Eunápolis, no extremo sul do
estado, significa nada mais que uma queima-de-arquivo e possível substituição dos
executores de crime de mando naquela região, que realizam serviços para influentes
chefes políticos e proprietários de terras.324
O assassinato de Sebastião Canuto e o do seu comparsa teve como acusado outro
membro do sindicato, o ―Idelcy Nogueira, processado várias vezes por crimes de mando, mas
atualmente em liberdade, depois que a própria Justiça relaxou sua prisão preventiva‖.325As
articulações elaboradas pelo ―sindicato do crime‖, ao mesmo tempo em que se ramificavam,
alimentavam-se dos seus, dando lugar a novos atores, movimentando assim o mercado da
morte a serviço dos poderosos. Metaforizando o contexto narrado no periódico com a
personagem da mitologia grega da Hidra, quanto mais se cortavam as cabeças dos criminosos,
mais surgiam outros pistoleiros para substituí-los. Eunápolis era considerada um potencial
esconderijo dessas figuras, utilizadas como tentáculos mantenedores do poder político e do
latifundiário local.
Relatos da existência de uma organização criminosa de mesmo nome apareceram em
pesquisas sobre a violência no estado do Espírito Santo. Entre as décadas de 1950 e 1960, foi
registrada pela imprensa do estado a existência de um ―sindicato do crime‖, uma organização
criminosa, cuja atuação se deu através dos crimes de mando em torno da política local e da
posse de terras.326
Segundo Silva327, ao analisar as representações sobre a violência na região do
Contestado mineiro-espirito-santense, zona fronteiriça e litigiosa328 entre o norte do Espírito
Santo e o leste de Minas Gerais, entre os relatos de figuras de fama, jagunços, pistoleiros e
policiais, temidos pela prática de violência que executavam, agindo sob o comando de
coronéis, surgiu uma organização que ficou conhecida como ―sindicato do crime‖ do Baixo
323
Ibid. 324
―Sindicato do crime‖ planeja novas execuções em Eunápolis. A Tarde, Terça-feira, 18 de março de 1980, p.
11. APBCEB. 325
MIRANDA, Alberto; op. cit., p. 14. 326
ANJOS, Erly Euzébio dos. A Pistolagem entre Nós: Crimes de mando na Violência do Espírito Santo. In:
SINAIS – Revista Eletrônica. Ciências Sociais. Vitória: CCHN, UFES, n. 04, v. 1, dez. 2008. p. 186-217. 327
SILVA, Edmilton. Representações da violência na região do Contestado entre o Espírito Santo e Minas
Gerais (1940-1962). 2019. Dissertação (Mestrado em História) – Centro de Ciências Humanas e Naturais da
Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2019. 328
O litígio entre Minas Gerais e Espírito Santo sobre a área contestada durou cerca de 163 anos, entre 1800 e
1963, quando foi assinado o Acordo do Bananal, entre os dois governos. In: SILVA, op.cit.
117
Guandu. Essa organização estendeu suas ações pelo Vale do Rio Doce e todo o norte
capixaba, até 1964, quando seu principal líder, o coronel Bimbim, faleceu, e os grupos
envolveram-se numa violenta luta entre si pela liderança do sindicato.
O uso da nomenclatura de ―sindicato do crime‖ por jornais baianos para designar a
organização criminosa no Extremo Sul da Bahia e, em especial, em Eunápolis, pode estar
relacionado com o uso do mesmo termo por jornais capixabas para tentar representar
organização criminosa no Espírito Santo. Possivelmente houve uma apropriação do termo
para representar a rede criminosa que era tecida nesse lugar de fronteira com o norte do
Espírito Santo e leste mineiro – região onde se estendeu o domínio do sindicato – e que sofreu
grande influência de migrantes dessas áreas. Essa hipótese se sustenta principalmente pelas
características dos crimes narrados nos jornais, envolvendo a posse das terras e o poder
político local, muito próximas das atividades do sindicato capixaba.
Um ano após o assassinato do contador no Centro de Eunápolis, foi noticiada no jornal
A Tarde, no dia 24 de novembro de 1981, uma sequência de assassinatos ligados ao sindicato
do crime, além da possibilidade de uma invasão de pistoleiros capixabas ao povoado de
Eunápolis:
Dois bárbaros assassinatos no povoado de Itabela e três homens ―condenados à
morte‖ e acuados dentro de um escritório, numa rua central de Eunápolis além da
ameaça de invasão desse ultimo povoado por pistoleiros capixabas, são as
consequências da morte do pistoleiro Aurelino Cardoso, o ―Polição‖, abatido a tiros
de espingarda, no dia 4 passado, pelo posseiro Ojackson Martins.329
Segundo o jornal, os acontecimentos tiveram inicio a partir de tentativas de grilagem
de terras. No relato dos posseiros Silvio Carvalho dos Santos e Ojackson Martins, ambos
possuíam terras no município de Santa Cruz Cabrália desde 1973, onde cultivavam mandioca,
cereais e cacau. Em 1976, vindo do Espírito Santo, José Maurício Marcondes comprou posses
na região e, em seguida, passou a invadir terras próximas das posses de Silvio e Ojackson,
usando de violência para expulsá-los. Não obtendo sucesso, o grileiro contratou os serviços de
―Polição‖, que vivia na fazenda de Idelci Nogueira, já citado anteriormente sob a acusação de
matar Sebastião Canuto e João Carreiro.330
―Polição‖ então passou a ameaçar e a perseguir os posseiros, que, em dado momento,
decidiram matar o seu algoz. Como retaliação, cerca de ―40 homens foram contratados para
matar os dois posseiros‖, que buscaram guarnição no escritório do advogado Arnaldo Pereira
329
SINDICATO do crime: Eunápolis ameaçada de invasão. A Tarde, p. 15, 24 nov. 1981, p.15. APBCEB. 330
Ibid.
118
Soares, localizado na Avenida Porto Seguro, Bairro do Centro em Eunápolis. O advogado,
acreditando que o contingente policial disponível no povoado era insuficiente para conter a
onda de violência que os ameaçava, decidiu então levá-los a Salvador, apresentando os
posseiros no Departamento de Polícia do Interior (Depin) como assassinos de ―Polição‖ em
uma ação de legítima defesa, contando sua versão dos fatos e pedindo garantias de vida. Em
resposta, o diretor do Depin garantiu o envio de reforços ao povoado na tentativa de evitar que
os três fossem mortos. Ao retornarem a Eunápolis, continuaram mantendo-se acuados no
escritório de Arnaldo Pereira Soares, chegando a contratar os serviços de segurança particular
de um sargento reformado da polícia. 331
Na sequência dos acontecimentos, foi morto no povoado de Itabela o lavrador Nilson
Correia Moreira, o ―Nilsão‖, que trabalhava para os posseiros Ojackson e Silvio, sendo
considerado uma provável vítima do ―sindicato do crime‖. As consequências do assassinato
deram título à matéria, que anunciava: ―Eunápolis estava ameaçada de invasão‖, pois sua
família radicada em Linhares, Espírito Santo, havia informado ―a ida de diversos pistoleiros
para aquele povoado, a fim de vingá-lo‖. A possibilidade de confronto entre os pistoleiros
capixabas com os responsáveis pelo homicídio de Nilsão foi noticiada como ―uma verdadeira
‗guerra‘‖ em Eunápolis.332
O episódio da grilagem das terras e do cerco aos posseiros em Eunápolis chegou a ser
noticiado pelo carioca Jornal do Comércio.333Além de ameaças, houve também a tentativa de
sequestro da esposa de um dos posseiros, a queima das posses e os trabalhadores ameaçados
por homens armados, bem como a tentativa de atear fogo ao escritório onde estavam
Ojackson e Silvio, para que saíssem e fossem mortos.334
No dia 28 de novembro, o jornal A Tarde anunciou que havia aumentado o número de
policiais e a presença do delegado de Itamaraju dando proteção aos posseiros e ao advogado.
Ainda que tivesse sido reforçada a segurança no povoado, os matadores continuaram a
espreitar suas vítimas, sendo vistos nas proximidades do prédio onde se encontrava o
escritório que serviu de abrigo aos posseiros. Sabendo do risco de morte eminente, outro
posseiro, o Humberto Viana, que estava foragido diante de ameaças à sua vida e havia
331
Ibid.15. 332
Ibid. 333
POSSEIROS pedem proteção contra pistoleiros, na Bahia. Jornal do Comércio, Rio de Janeiro, p. 8, 14 nov.
1981. Disponível em:
http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=364568_17&pesq=Eun%C3%A1polis&pasta=ano%20198. Acesso em: 16 nov. 2017. 334
ADVOGADO ainda corre risco de fuzilamento em Eunápolis. A Tarde, p. 14, 25 nov. 1981. APBCEB.
119
retornado a Eunápolis, resguardou-se no escritório de Arnaldo Pereira Soares, juntando-se aos
outros posseiros e ao advogado, somando ao todo quatro refugiados.335
Infelizmente não foram encontrados documentos que dessem sequência aos
acontecimentos, o que impossibilitou o acesso ao desenrolar do caso. Entretanto, mesmo
tendo certa restrição quanto à continuidade do episódio que levasse a um final, foi possível
fazer leituras da enunciação de violência a partir dos fatos narrados nos jornais do período.
O cerco aos posseiros foi um entre tantos outros eventos a disseminar o terror nas
páginas de periódicos baianos e de outros estados. Tanto neste caso como no homicídio do
contador Antônio Pereira dos Santos, o que chamou a atenção foi a articulação entre os
sujeitos que desenvolviam ações criminosas a mando de terceiros e que foram nomeados e
noticiados como pertencentes ao ―sindicato do crime‖ ou ―sindicato da morte‖.
Toda a grande produção midiática em torno da violência e apoiada em acontecimentos
acabou por difundir o sentimento de medo em relação ao cotidiano eunapolitano.
Concordamos com Carvalho336, quando afirma que as emoções básicas são socialmente
construídas, assim como o medo, através de um jogo discursivo. Os discursos em torno do
acontecido ajudaram a consolidar a imagem de um povoado violento, no qual a insegurança
pairava sobre seus moradores. O medo funcionava também como instrumento de manutenção
do poder, pois, por medo de morrer, poucos desafiavam os chefes coronéis locais e os
matadores afamados.
A presença marcante da pistolagem em Eunápolis, sob a égide de organizações, como
essa que agia no Extremo Sul da Bahia, alimentava as representações sobre o povoado de que
era uma ―terra sem lei‖, um ―Far West‖ brasileiro, lugar onde, nas palavras do advogado
Arnaldo Pereira Soares, a ―situação vigente na região é o desafio do poder ilegal ao poder
constituído‖.337
Alguns documentos se referem também ao estado de carência de estrutura para o
desempenho da segurança, assim não era ―possível combater o crime‖ sem que o Estado
proporcionasse as ―condições mínimas, como viaturas funcionando, armamentos e munições
em quantidade superior a dos bandidos‖.338 Em nossas buscas foi encontrada uma quantidade
335
EUNÁPOLIS: Polícia agora vai dar garantia aos posseiros. A Tarde, p. 13, 28 nov. 1981. APBCEB. 336
CARVALHO, Wagner Ribeiro de. O medo como uma questão discursiva. In: BULHÕES, Ligia Pellon de
Lima (org.). Linguagens, práticas discursivas e sociedade. Salvador: EDUNEB, 2012. 352p. 337
Advogado ainda corre risco de fuzilamento em Eunápolis. A Tarde, p. 14, 25 nov. 1981, p. 14. APBCEB. 338
A SEGURANÇA está insegura. Clarim. Eunápolis, p. 8, nov. 1987. APMSCC.
120
considerável de jornais e revistas339, em diversas temporalidades, que publicaram notas sobre
a precariedade em que se encontravam as instituições policiais em Eunápolis.
Garimpando arquivos da região, entre os documentos, uma charge se sobressaiu. Em
uma folha com a assinatura do autor (Beto) e a identificação do ano (1988) em que foi
produzida, foi feita uma alusão ao personagem que faltava ao cenário do ―Bang bang‖
eunapolitano, o xerife, representado pela Figura 8.
Figura 8 - Charge sobre a volta de ―Bigode de Ouro‖
Fonte: Não foram encontradas referências sobre a publicação
O documento contendo a charge, por não ter uma indicação precisa que explicite a sua
publicação, em que meio midiático ela tenha sido publicada, ou, até mesmo, se tenha sido de
fato publicada, impede uma especulação do seu alcance sobre algum público.340 Ainda assim,
não impede que seja feita a análise da imagem como uma forma de representação da realidade
339
EM EUNÁPOLIS, morreram 21. Jornal da manhã. Eunápolis, 16 jan. 1979; ADVOGADO ainda corre risco
de fuzilamento em Eunápolis. A Tarde, p. 14, 25 de novembro de 1981, p. 14; O POVOADO sem sorte:
desventuras de Eunápolis, que pertence a dois municípios e não é servido por nenhum. Veja. São Paulo: Abril
editora, p. 69, 29 nov. 1978. 340
Buscamos informações sobre a referência no rodapé da imagem, ―42 Tempo Paralelo 17‖, e o autor e não
obtemos êxito.
121
satirizada. A imagem tem muito a dizer sobre as representações que foram criadas sobre o
povoado e seus personagens emblemáticos.
Em primeiro lugar, o ―xerife‖. Com estrela no peito, disparando para o alto com seus
revolveres, cartucheira cruzando o peito, esporas em suas botas, traz em si um misto de
elementos simbólicos do cangaço e dos personagens de filmes de ―Fair West‖ norte-
americanos, filmes estes, populares no momento, que possivelmente influenciaram nos traços
do autor ao compor o personagem e a paisagem.
As poucas informações sobre ―Bigode de Ouro‖ foram obtidas através do periódico
eunapolitano Clarim. Em uma reportagem do jornal sobre um assassinato em torno da disputa
por terras em Eunápolis, em que o sargento aposentado da Polícia Militar, Antônio Pereira da
Silva, o ―Bigode de Ouro‖, foi consultado, tendo em vista que o sargento já teve o acusado
―preso por vadiagem várias vezes quando Delegado de Polícia deste povoado‖.341
―Bigode de Ouro‖ representava o policiamento no povoado efetuado de forma
truculenta, em que o ordenamento era feito através da violência e do medo. Dentro do
contexto narrado pelo texto imagético em conjunto com o discurso dos jornais, exercia-se a
violência nas duas esferas do controle social tanto a polícia na figura de ―Bigode de Ouro‖
quanto nos crimes analisados nesta pesquisa.
O texto imagético compõe, junto com narrativas dos jornais, uma forma de difusão das
representações sobre o povoado, que, de acordo com o acervo divulgado, dizem de um
povoado que caminhava por vias violentas.
Entre os criminosos evidenciados nos jornais, alguns sujeitos habitaram o imaginário
popular por feitos inacreditáveis, valentia, excesso de violência ou inteligência em suas ações.
Um desses casos é o de ―Prego‖. As informações que temos sobre esse personagem e algumas
de suas ações são registros em jornais sobre o cenário de sua morte. A sua fama era de que, ao
praticar delitos, ele escapava sem que a polícia conseguisse lhe ter acesso.
Agnaldo Sampaio, mais conhecido como ―Prego‖, ―com as suas façanhas deixou a
polícia exposta a críticas porque as investigações e as tentativas de prender o marginal eram
nulas‖; em todas as investidas nunca conseguiam alcançar o bandido, que ―escapava sem
deixar rastro‖.342 Junto com a destreza de fugir da polícia, Prego era acompanhado também da
fama de coragem e valentia ao lidar com as situações que ameaçavam sua atuação. Em uma
de suas façanhas, pouco tempo antes de ser morto, ele se empenhou em assaltar um bar -
341
CASTELO DE TERROR de Terezino pode cair com a morte do major Castilho. Clarim, p. 8, nov. 1987.
APMSCC. 342
POLÍCIA mata Prego, o terro (sic.) do extremo sul. Jornal Cometa, ano I, n. 3, p. 11, jun.1986. APMCVE.
122
crime que, diga-se de passagem, fazia parte do hall de delitos mais praticados por ele – em
Eunápolis. Na tentativa de praticar o delito, Prego foi cercado por policiais e, ao se ver
encurralado, ―abriu caminho a bala e fugiu‖.343
A morte desse personagem, após ter sido alvejado por seus algozes, foi noticiada no
jornal A Tarde:
O assaltante e estuprador Agnaldo Sampaio Filho, o ―Prego‖ foi morto com vários
tiros de revólveres por agentes da Polícia Civil, no povoado de Eunápolis. A
Secretaria de Segurança Pública informou que ―Prego‖ foi alvejado depois de
assaltar um bar e fazer diversos disparos de escopeta, a esmo, pondo em risco a vida
de inúmeras pessoas.344
Os jornais locais também noticiaram a morte de Prego. Estampada na primeira página
do Jornal Cometa de julho de 1986, em letras garrafais, estava anunciado: ―POLÍCIA MATA
PREGO, O TERROR DO EXTREMO SUL‖. Em tom comemorativo, o periódico comenta
que os moradores da zona norte de Eunápolis ficaram aliviados com o ocorrido.
Segundo o mesmo periódico, quando de sua morte, o ―negrinho‖ teria 24 anos de
idade, ―solteiro, sem morada [...] homem pequeno, preto, rosto coberto de espinhas‖. ―Prego‖
é caracterizado como uma figura desforme do padrão virtuoso, a imagem de um criminoso.345
Em sequência, o jornal reforça a descrição do perfil do indivíduo, evidenciando a formatação
de estereótipo do bandido, com feições grotescas, e pele negra, assim como o fazem ao
registrar suas feições enquanto ―criança tímida, negra e feia nascido pelas bandas de Juca
Rosa‖.346 Em seu discurso, o periódico alia aspectos físicos do sujeito à sua ligação com o
banditismo, evidenciado pela descrição dos traços das classes perigosas que em muito se
aproxima das teorias eugenistas, principalmente pelo enfoque no quesito cor do indivíduo.347
O texto ainda diz de um lugar de origem do criminoso, a periferia, em que o Juca Rosa é
colocado como o bairro de onde Prego partiu para ―desfrutar o reinado do banditismo de
Eunápolis chegando a ser a figura mais temida do submundo do crime do Extremo Sul da
Bahia‖.348
Assim como o seu corpo ficou exposto no necrotério regional, onde curiosos
verificaram os boatos sobre a captura póstuma do ―famoso Prego, o terror da periferia do
343
LADRÃO morto. A Tarde, p. 12, 10 jun. 1986. APBCEB. 344
Ibid. 345
POLÍCIA mata Prego, o terro (sic.) do extremo sul. Jornal Cometa, ano I, n. 3, p. 11, jun.1986. APMCVE. 346
Ibid. 347
Mesmo que a abordagem deixe a brecha, não é nossa intenção discutir o conceito de raça. 348
Ibid.
123
grande povoado‖ 349, a notícia de sua morte em folhas dos tabloides locais possivelmente foi
local de visita daqueles que procuravam guardar memórias do acontecido.
Outros casos nos chamam a atenção, como o de Everaldo Lopes Oliveira, o ―Vevéu‖.
Em passagem pela 7ª Delegacia em Salvador por furto em um apartamento no Bairro da
Pituba, ―Vevéu‖ foi registrado nas páginas policiais. Ele, ―filho de pais pobres, sempre
conviveu no crime no povoado de Eunápolis‖ carregava em seu histórico outras detenções,
por furto na Rua do Gravatá em Eunápolis, de onde, segundo o próprio, diz ter sido obrigado
a viajar para salvador, ―expulso pelo juiz de Menores‖.350
Jovens como ―Prego‖ e ―Vevéu‖, nascidos nos bairros mais pobres, em sua maioria
filhos de famílias carentes, passaram a atormentar o cotidiano eunapolitano. Boa parte dos
marginalizados são resultado das contradições sociais existentes na sociedade eunapolitana
em que o progresso não chegou para todos. Entre as causas mais frequentes da marginalidade
social são elencadas a falta de uma estrutura urbana como orientação educacional e
ocupacional, condições precárias de moradia, a não qualificação da mão de obra, a submissão
a subempregos e ao trabalho ilegal e/ou de oferta irregular, o desemprego.351
Levando em consideração que a sociedade eunapolitana possuía indicadores que se
enquadravam entre os pontos enumerados como causadores da exclusão social, fica
evidenciado que uma parcela da juventude se encontrava à margem do processo de
desenvolvimento da cidade. Com a ausência de políticas públicas efetivas para a redução das
desigualdades sociais e econômicas, algumas medidas foram tomadas por grupos sociais em
conjunto com setores do poder público. Neste sentido, foram promovidas ações sociais, como
a instituição do Centro Eunapolitano de Assistência ao Menor (CEAME), para tentar remediar
a situação desarmonizada pela desigualdade de oportunidades:
A questão do menor abandonado começa a preocupar a comunidade sem que coisa
alguma venha sendo feita para a recuperação dessas crianças. A existência de um
órgão, fundado há oito meses, ainda não foi sentida: trata-se da Ceame – Centro
Eunapolitano de Assistência ao Menor – que até agora tem proporcionado apoio a
crianças entre 8 a 14 anos de idade, ainda assim dando-lhes apenas instrução dirigida
para que se tornem guardas-mirins, para o apoio ao trânsito da cidade.352
A fim de redirecionar os garotos de rua, dando-lhes uma função social, que não a
delinquência, no formato de sentinelas mirins, prestando serviços à comunidade. Em uma
349
Ibid. 350
BANDIDO iniciante no crime pega seis meses. A Tarde, ano 75, p.13, 17 nov. 1986. APBCEB. 351
GULLO, Álvaro de Aquino e Silva. Violência urbana: um problema social. Tempo Social; Rev. Social. USP,
S. Paulo, p. 105-119, 1998. 352
MENOR abandonado é preocupação para o povoado de Eunápolis. A Tarde, ano 74, p. 10, 08 jan. APBCEB.
124
reportagem comemorativa do 37° aniversário de fundação de Eunápolis, a equipe da revista
Alô Bahia visitou a sede da guarda mirim, em que, segundo o redator, é a ―única do gênero da
Bahia, com 80 jovens como seus prepostos‖353. Podemos deduzir que essa iniciativa tenta
remediar a situação deficitária em que se encontrava o combate à criminalidade no povoado,
como estratégia para amenizar a entrada de jovens marginalizados na criminalidade.
Instituindo uma guarda mirim, o município de Santa Cruz Cabrália buscava dar uma
resposta à sociedade quanto ao histórico de estrutura de segurança pública que não se fazia
suficiente para conter a onda criminosa que assolava o povoado e região. Com o intuito de
participar das ações da CEAM, alguns membros da elite eunapolitana, como os da Loja
Maçônica ou os do Lions Club Santa Cruz, propunha atacar os problemas da população
carente, a partir da formação intelectual da criança.354
Para além dos assassinatos de encomenda, assaltos a estabelecimentos comerciais, o
roubo, a receptação de veículos roubados, assaltos a motoristas e o tráfico de drogas também
se faziam noticiar nas folhas dos periódicos estaduais. Em 1975, ―o desbaratamento de uma
quadrilha no Rio de Janeiro veio comprovar aquilo de que o delegado já suspeitava: Eunápolis
é ponto receptor de carros roubados em outros‖.355 Ou, ainda, os ataques a passantes, carros de
passeio foram evidenciados em 1988. Segundo o jornal A Tarde, publicado em julho de 1988,
viajantes que costumavam trafegar pela BR 101, em especial no trecho entre Eunápolis e
Teixeira de Freitas, evitam arriscar-se, pois ―nem os ônibus estão escapando da ação dos
marginais‖.356
O contexto de desenvolvimento de forma rápida, bem como a subalternidade às
administrações de Porto Seguro e Santa Cruz Cabrália geraram, para o povoado, condições
peculiares de crescimento. Todavia, diante do quadro que foi se delineando desde a
distribuição de renda desigual, passando pela infraestrutura que não atendia às demandas da
população dependente de serviços básicos, a distribuição das terras beneficiando poucos,
Eunápolis manifestara um ambiente propício para a expansão de uma onda de violência que
chegou a caracterizar toda a região Sul e Extremo Sul em manchetes de periódicos e revistas.
353
Revista Alô Bahia, edição especial em homenagem ao 37° aniversário de Eunápolis, O maior povoado do
mundo. Administração Arnaldo Guerrieri. 1987. Por conta do seu estado de conservação, a identificação da
revista só foi possível através da leitura do texto. APMCVE. 354
MENOR abandonado é preocupação para o povoado de Eunápolis. A Tarde, ano 74, p. 10, 08 jan. APBCEB. 355
EUNÁPOLIS: Na extinção da madeira, o crescimento de uma cidade sem lei. Jornal do Brasil. Rio de
Janeiro, ano 43, p. 39, 21 maio 1975. Disponível em:
http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=030015_09&PagFis=21452&Pesq=Eun%C3%A1polis.
Acesso em: 16 nov. 2017. 356
VIOLÊNCIA aumenta no Extremo Sul. A Tarde, 10 jul. 1988. APBCEB.
125
Esse acervo documental, dizendo de um cotidiano violento, constitui-se como um veículo das
representações de lugar violento a Eunápolis.
Ao lado dos enunciados de violência e os de progresso do lugar, foram evidenciados,
em jornais da Bahia e de outros estados do país, o que possivelmente permeou o imaginário
dos leitores desses mecanismos de comunicação. Assim como fora evidenciado nos meios
impressos, o crescimento eunapolitano, fundamentando representações sobre o seu
desenvolvimento, fora também projetado. O povoado como uma cidade referência para o
futuro assim como Porto Seguro e Santa Cruz Cabrália foram projetados como referências
históricas do berço da nação.
4.2. O SONHO DE GRANDEZA DO ―MAIOR POVOADO DO MUNDO‖
Eunápolis tornou-se, principalmente a partir da década de 1970, um importante polo
regional, que congregou em seu entorno uma grande quantidade de outros centros urbanos. A
partir da implantação de equipamentos como hospitais, escolas, agências bancárias, lojas e
outros serviços, esses últimos aumentavam a possibilidade de emprego, assim como o
trabalho com a extração e o beneficiamento de madeira e agropecuária, impulsionaram o
crescimento populacional do povoado, chegando a saltos numéricos significativos.
Ao mesmo tempo em que os crimes foram manchete de jornais sobre o povoado, fora
também trabalhado o discurso sobre o seu crescimento, como um expoente do
desenvolvimento no Extremo Sul da Bahia. Notas sobre o tamanho do povoado, números
demográficos exorbitantes, histórias de fortunas que foram feitas pelos novos eunapolitanos,
destaques quanto ao comércio avantajado e a produção agropecuária e madeireira fizeram
parte das colunas de revistas e jornais de circulação estadual e nacional.
A produção discursiva sobre as grandezas do povoado, que foi divulgada pelas mídias
impressas, criou a imagem de um povoado em amplo progresso, funcionando como
contraponto à imagem de lugar violento. Representações sobre o desenvolvimento, a riqueza
se misturou à marginalidade e ao crime, transparecendo assim as contradições de um
desenvolvimento que não era de acesso a toda a população.
Para termos uma ideia, a Tabela 4 faz uma estimativa do significativo crescimento
demográfico:
126
Tabela 4357 - Crescimento demográfico de Eunápolis de 1951 a 1986
Eunápolis Ano 1951 1970 1976 1986
População 120 14.728 27.560 45.615
52.490 Fonte: PLANDEU (1977)
358
Como é possível notarmos na Tabela 4, Eunápolis acabou por atingir índices de
crescimento demográfico impressionantes. A sua população no ano de 1951 era de 120
pessoas, passando a ter um crescimento de 14.608 habitantes em dezenove anos (1951-1970),
o que chega a ser aproximadamente um aumento de 12.000%. Entre 1970 e 1976 acrescenta-
se cerca de 12.832, aproximadamente 100% em apenas seis anos. Chamo a atenção para a
divisão da célula referente ao período localizado entre 1976 e 1986, onde dispostos dos
índices demográficos, o primeiro faz uma projeção pessimista e o segundo otimista para o
povoado num período de dez anos.
O leitor atento perceberá que a pesquisa de dados do PLANDEU foi realizada em
1976 e publicada em 1977, logo os números de 1986 são projeções futuras com base de
cálculo nas densidades contemporâneas aos levantamentos. No primeiro, apresentando de
forma pessimista o índice de 45.615, há a previsão do aumento em 18.055 habitantes, 65%
aproximadamente, passando dos 27.560 para os 45.615. Já o segundo, com 52.490, previu, de
maneira otimista, o aumento de 24.930 pessoas, representando o crescimento de 90%.
O aumento demográfico expressivo fundamentou o discurso dos periódicos sobre o
desenvolvimento avantajado de Eunápolis. A exemplo da disseminação das representações
sobre o tamanho do povoado chamou-nos atenção uma nota do jornal A Tarde, publicada em
30 de julho de 1978:
Eunápolis, único povoado, que, dentro de aproximadamente três anos, já contará
com 100 mil habitantes, segundo dados da Seplantec, além de ser considerado maior
centro urbano de todo o Extremo Sul da Bahia, superado apenas por Itabuna e
Ilhéus, ainda não foi elevado à categoria de comarca, continuando sujeito às
prefeituras de Porto Seguro e Santa Cruz Cabrália que pouco têm feito pela
localidade. 359
357
Para a criação da Tabela 4, foram utilizadas duas referências encontradas no Plano Diretor Urbano de
Eunápolis Volume Síntese: uma tabela já existente encontrada na p. 26 e outra referência à população de 1951
encontrada na p. 22. O Plano também alerta sobre o fato do povoado não ser considerado como zona urbana, não
tendo assim um histórico de dados demográficos registrados nos Censos Demográficos uma projeção da
Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (FIBGE), o que impede a aplicação de projeção
confiável. O levantamento demográfico foi realizado pela Consórcio SERETE/INCREMENTA, com dados-base
apoiados na pesquisa de Uso do Solo e na restituição, em escala 1:2000, de levantamento aerogramétrico –
agosto/1976. 358
PLANO DIRETOR URBANO DE EUNÁPOLIS. Volume síntese. Salvador, 1977, p. 22-26. 359
EUNÁPOLIS carece da atenção dos poderes públicos. A Tarde, 30 jul. 1978. (No recorte de jornal não foi
possível identificar a página onde se encontra a reportagem.). In: APMCVE.
127
Os números encontrados em jornais sobre a demografia eunapolitana entre as duas
décadas variam entre 60 mil – esse principalmente em meados de 1970 -, 100 mil, 120 mil,
chegando a 150 e 160 mil habitantes. É como narra o jornal Grande Bahia, de Feira de
Santana, publicado em novembro de 1985, contratado pelo então prefeito Arnaldo Moura
Guerrieri para fazer uma matéria comemorativa dos 35º aniversário de fundação de Eunápolis,
―o maior povoado do mundo, com seus 150 mil habitantes‖.360
Cifras essas que, se comparadas às apresentadas pela Tabela 3, cerca de 52.490, como
uma previsão otimista para 1986, chegam a um déficit expressivo. Não é intenção dessa
pesquisa verificar a veracidade das afirmações, mas analisar como o discurso de grandeza
ganha maior difusão durante a periodicidade estudada. É possível notarmos também que o
autor é tomado pelo discurso pró-emancipação do povoado, porém não é de nosso interesse o
aprofundamento nesse tema, pois ele demanda outra pesquisa.
Ainda sobre os índices apresentados pela Tabela 4, os números colocaram o povoado,
na década de 1970, próximo das 15 cidades baianas ―com mais de 20.000 habitantes cada‖,
em quantidade de habitantes da Bahia. O Plano Diretor Urbano de Eunápolis (PLANDEU)
chama a atenção para a singularidade do caso em que, de ―687 cidades e vilas legalmente
instituídas no Estado da Bahia, apenas 42 das cidades ultrapassavam, em 1970, a faixa dos
10.000 habitantes‖, e enfatiza que esta marca, dentro da mesma década, não foi alcançada por
nenhuma das 351 vilas.361
Os dados populacionais exerceram influência direta nos espaços urbanos, ou seja, o
crescimento da população relaciona-se com a quantidade de imóveis utilizados em Eunápolis.
A Tabela 5 dá-nos uma dimensão do número dessas construções e seu estado de uso:
360
GRANDE BAHIA. Eunápolis de um canteiro de obras ao maior povoado de mundo. Feira de Santana – Ba, p.
2, nov.1985 In: APMSCC. 361
PLANO DIRETOR URBANO DE EUNÁPOLIS. Volume síntese. Salvador, 1977, p. 2.
128
Tabela 5 - Utilização dos Imóveis em Eunápolis em 1975
Utilização do Imóvel Quantidade
Residencial 5.084
Comercial 453
Serviços 272
Residencial/Comercial 214
Residencial/Serviços 50
Residencial/Comercial/Serviços 4
Comercial/Serviços 9
Industrial 55
Total de imóveis ocupados 6.141
Fonte: Pesquisa Direta CPE/SEPLANTEC, outubro/1975362
Assim como os dados demográficos sobre o povoado impressionam, os números de
construções também permitem que imaginemos as proporções da área construída e os usos a
ela atribuídos. Nessa listagem de imóveis fornecida pela SEPLANTEC, ficaram de fora cerca
de 554 ainda em construção, 120 fechados e 59 em ruína, por não estarem sendo utilizados, o
que nos faz chegar ao denominador total de 6.874 edificações. 363 O ―Cadastro Econômico e
Imobiliário de EUNÁPOLIS, procedido pelo projeto CIATA‖, que teve início no ano de
1983, mostra o desenvolvimento do ―maior povoado do mundo‖ indicando que os prédios
cadastrados chegam a 10.695 e os terrenos a 8.079, o que nos dá um total de 18.774 espaços
já utilizados e passíveis de utilização.364
A quantidade de construções também circulou em jornais do Rio de Janeiro, onde o
senhor Elivar Moura Ferreira, Prefeito de Santa Cruz Cabrália, em entrevista ao Jornal do
Brasil, em maio de 1975, afirma que o ―crescimento do povoado é contínuo. Quatro casas são
construídas a cada dois dias e um novo quarteirão surge a cada 15 dias‖.365 Junto com o
discurso de avanços da construção civil, o de pujança do comércio serviu de base para o
enunciado de progresso sobre Eunápolis, o que nos conta ainda o Jornal do Brasil:
O movimento comercial é enorme. Eunápolis conta com 72 hotéis, 14
supermercados, três agências bancárias, uma das quais do Banco do Brasil, grandes
lojas sofisticadas, com modernas vitrinas e artigos importados, e uma feira que é a
maior da região. O momento é de euforia, e as dificuldades econômicas dos grandes
centros não parecem afetar o povoado. Estamos instalados aqui há seis meses e já
estamos vendendo 10 automóveis por mês. Guardadas as proporções, é um
362
In: GOVERNO DO ESTADO DA BAHIA. Projeto Eunápolis 1ª Etapa: Listagem de Imóveis. Salvador,
outubro-1975, fl. 08. 363
GOVERNO..., op. cit. 364
PREFEITURA Municipal de Santa Cruz Cabrália (Bahia) (Administração Arnaldo M. Guerrieri).
EUNÁPOLIS (O maior Povoado do Mundo). In: Revista “A VOZ DOS MUNICÍPIOS”, 1984. p. 35. 365
EUNÁPOLIS: Na extinção da madeira, o crescimento de uma cidade sem lei. Jornal do Brasil. Rio de
Janeiro, ano 43, p. 39, 21 maio 1975.
http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=030015_09&PagFis=21452&Pesq=Eun%C3%A1polis.
Acesso em: 16 nov. 2017.
129
movimento maior que o da nossa matriz em Itabuna, uma cidade de 170 mil
habitantes – comenta o Sr. Raimundo Rocha da Silva, gerente da firma Comércio
Silveira S.A. 366
Essa reportagem nos possibilita identificar o grau de alcance da imagem de lugar de
progresso, que não se deixa afetar pela crise que assola os ―grandes centros‖, não se restringe
somente à Bahia, alcançando outros estados. O comércio de lojas sofisticadas, vitrinas e
produtos modernos, bem como artigos importados possivelmente se mostrava atraentes para
os moradores das localidades no entorno do povoado, bem como a feira, em palavras do
repórter, ―a maior da região‖, movimentavam a compra e venda na região.
O comércio de atacado e varejo era um dos pontos fortes da economia eunapolitana.
Tal potência mercantil foi noticiada em periódicos baianos como título de nota, afirmando
que: ―Quem entra no comércio não sai mais. O dinheiro corre solto. São 1.200 casas
vendendo e comprando de tudo‖.367 Seja a disposição para venda de eletrodomésticos,
alimentos, materiais para construção, veículos, o mercado do povoado chegava a convergir
municípios vizinhos e cidades do estado de Minas Gerais.
Segundo o Senhor Raimundo Rocha da Silva, gerente da firma Comércio Silveira S.
A., em entrevista ao Jornal do Brasil de 21 de maio de 1975, o comércio de carros no
povoado, onde a empresa havia se instalado há seis meses, acontecia de maneira tão dinâmica
que chegava a superar as vendas da empresa matriz, instalada em Itabuna, uma cidade com o
número de habitantes maior do que Eunápolis.368 Três anos mais tarde, foi feito um registro no
Jornal da Bahia que corroborou com a afirmação anterior sobre a vendagem de carros em
uma entrevista com o proprietário da Capevel, uma concessionária da Volkswagen. Na
reportagem, Ademário Gaspar ―assegura que os veículos de que dispõe já não atendem ao
mercado consumidor [...] sua empresa atende, diariamente, cerca de dez interessados em
comprar carros ‗mas só podemos fornecer 25 Volks novos e 15 usados por mês‘‖. Ainda,
segundo ele, a sua empresa tinha condições de vender no mínimo ―40 carros por mês‖. A
reportagem segue enfatizando que existiam, para além da Capevel, mais três lojas
366
Ibid. p. 39. 367
QUEM entra no comércio não sai mais. O dinheiro corre solto. São 1.200 casas vendendo e comprando de
tudo. Jornal da Bahia, p. 3, 4-5 nov. 1978. Arquivo pessoal do pesquisador. 368
EUNÁPOLIS: Na extinção da madeira, o crescimento de uma cidade sem lei. Jornal do Brasil. Rio de
Janeiro, ano 43, p. 39, 21 maio 1975.
http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=030015_09&PagFis=21452&Pesq=Eun%C3%A1polis.
Acesso em: 16 nov. 2017.
130
representantes da Fiat, Ford e Chevrolet, sem contar as três outras responsáveis pela venda de
tratores.369
Eunápolis passou a ser considerada como um ―Eldorado‖370 escondido nas matas do
Extremo Sul da Bahia. O povoado atraiu um contingente de pessoas que acreditavam poder
acumular fortuna em pouco tempo. Casos de empreiteiros, comerciantes e médicos,
madeireiros que, chegando pobres ao povoado, conseguiram enriquecer. Notícias que
possivelmente aguçaram o desejo empreendedor de outros migrantes.
Um desses casos foi o de José Araújo Santana, o ―Araujão‖, um ex-empreiteiro do
DERBA, que ―Chegou pobre ao povoado e em poucos anos era um forte pecuarista. Depois,
trocou seu ramo pela hotelaria. Hoje, riquíssimo, é um dos caciques da truculenta política
local‖. Ou a história do ―vertiginoso enriquecimento‖ de José Abraão e João Gualberto,
ambos médicos que chegaram ―em condições de montar apenas modestos consultórios, são
donos dos dois hospitais particulares do povoado‖. Outro caso, o do dono da loja Marabá, que
―Começou com uma lojinha de duas portas e hoje, entre outros bens, tem inclusive uma
fábrica de tecidos‖. 371
O Jornal do Brasil também teceu críticas ferrenhas aos novos ricos, falando de seus
hábitos espelhados nos da população de São Paulo e Rio de Janeiro, que num ―povoado que
não dispõe sequer de assistência previdenciária, ostenta casas suntuosas, com piscinas‖,
citando o caso do médico José Abraão. Em seguida, o repórter continua afirmando que entre
os ―hobbies dos novos ricos estão o de passar com seus carros de luxo no lamaçal das ruas do
povoado, ou em caríssimos iates, nas praias do Extremo-Sul do Estado‖. Um episódio
apontado pelo jornal como folclórico se deu quando ―Um desses novos ricos chegou a
comprar um avião, só para manter relações sexuais no ar. Queria saber a sensação que
dava‖.372
Em meio aos casos de sucesso financeiro, alguns de tonalidade um tanto excêntrica, a
evidência em sua maioria gira em torno do discurso progressista econômico. Mesmo que
369
QUEM entra no comércio não sai mais. O dinheiro corre solto: São 1.200 casas vendendo e comprando de
tudo. Jornal da Bahia, p. 3, 4 e 5 nov...., p. 3. 370
O termo fora utilizado pelo ―Jornal do Brasil‖ para definir Eunápolis fazendo uma analogia ao mito do ―El
Dorado‖, a cidade indígena que escondia tesouros e que, no período da colonização da América, atraiu muitos
exploradores. In: EUNÁPOLIS: Na extinção da madeira, o crescimento de uma cidade sem lei. Jornal do
Brasil. Rio de Janeiro, ano 43, p. 39, 21 maio 1975. Disponível em:
http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=030015_09&PagFis=21452&Pesq=Eun%C3%A1polis.
Acesso em: 16 nov. 2017. 371
Ibid. 372
EUNÁPOLIS: Na extinção da madeira, o crescimento de uma cidade sem lei. Jornal do Brasil. Rio de
Janeiro, ano 43, p. 39, 21 maio 1975. Disponível em:
http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=030015_09&PagFis=21452&Pesq=Eun%C3%A1polis.
Acesso em: 16 nov. 2017.
131
houvesse mazelas estruturais a serem resolvidas, o ―dinheiro corria solto‖. As publicações
sobre pessoas que chegaram pobres e que conseguiram acumular riquezas no povoado
ostentavam o discurso de progresso restrito a uma pequena parcela da população e somavam-
se ao de desenvolvimento representado pela presença das instituições financeiras.
Com quatro bancos instalados, Bradesco, Bamerindus, Banco do Brasil, Banco
Econômico, a movimentação bancária em Eunápolis superava todas as expectativas. Em
entrevista ao Jornal da Bahia, os gerentes das agências bancárias chegaram a afirmar que
―qualquer previsão nesta terra é ultrapassada em pouco tempo‖. Segundo eles, as agências do
povoado eram comparadas às de grandes centros interioranos da Bahia, como Feira de
Santana, Ilhéus, Itabuna e Ipiaú, chegando a superar, em determinados momentos, algumas
delas.373
Pensando os jornais como mecanismos essenciais para a construção e veiculação
discursiva de representações, sobre sujeitos, objetos e lugares, os periódicos foram
fundamentais formuladores e divulgadores da imagem de ―maior povoado do mundo‖,
―eldorado‖, ―terra da promissão‖, lugar onde o ―dinheiro corria solto‖. Mesmo que elas
dividam espaço com outras que enunciem o atraso, a enunciação em torno do
desenvolvimento tem o poder de sobrepor o primeiro nas mídias impressas.
Os casos supracitados possivelmente povoaram o imaginário de quem teve contato
com as matérias de jornal. Exemplos do desenvolvimento eunapolitano, veiculados nos
periódicos, acabaram por criar uma imagem progressista do povoado, mas a balança do
capital não era favorável a todos, pois, enquanto alguns conseguiram enriquecer, outros já não
tiveram a mesma sorte. Neste sentido, o ―maior povoado do mundo‖ também projetou cenas
que representaram o desequilíbrio socioeconômico e seus agravantes, visto que, ao lado dos
novos ricos, também habitavam a miséria, a pobreza e a violência.
Difundir representações sobre o povoado como um grande centro progressista, através
da produção discursiva a respeito do seu desenvolvimento, alinhava-se com o momento
vivenciado pelo país sob a regência de um governo militar. O discurso em torno do
crescimento eunapolitano compactuava com o de ―milagre econômico‖ brasileiro, que
fundamentou a imagem de ―Brasil grande‖, produzida tanto por mídias impressas como de
áudio e audiovisuais do período.374
373
Há banco que bate até recorde de movimento. Jornal da Bahia, p. 13, 4 e 5 nov. 1978. Arquivo pessoal do
pesquisador. 374
Sobre o tema, ver PALHA, Cássia Louro; BARBOSA, Marialva Carlos. Memória e brasilidade militante nas
telas eletrônicas da ditadura militar. VII Encontro Nacional de História da Mídia – mídia alternativa e
alternativas midiáticas, Fortaleza: 2009. Disponível em: chrome-
132
O conjunto enunciativo estudado configurou os sonhos de progresso pelos grupos que
detinham o poder de articulação dos meios de comunicação impressos, a fim de projetar o
povoado discursivamente engajado com a política desenvolvimentista nacional. Essas
representações, tanto de atraso como de progresso, também foram reproduzidas nos espaços
urbanos, sendo utilizadas como projeção da imagem de atores políticos, como também para a
manutenção de determinados lugares do povoado.
4.3 DO ―LIXO AO LUXO‖: AS REPRESENTAÇÕES DOS ESPAÇOS URBANOS DO
POVOADO
Neste momento do texto, faremos um passeio por alguns espaços da cidade através de
escritos e fotografias. Como um flâneur, buscaremos observar como esses lugares foram
dispostos pela imprensa, difundindo representações de atraso e/ou progresso sobre eles. Para
tanto, lançaremos mão de jornais, revistas e fotografias que materializaram uma produção
discursiva sobre determinados lugares da urbe.
A produção discursiva sobre Eunápolis, veiculada pelas mídias sociais, e as
representações que a partir dela são criadas, ao mesmo tempo em que se veem atreladas a
interesses políticos, tiveram o poder de interferência na materialidade. Deve-se levar em
consideração que: ―mesmo as representações colectivas mais elevadas só tem uma existência,
isto é só o são verdadeiramente a partir do momento em que comandam actos‖.375 Tendo as
representações como um fator de impulsão da ação humana, deve ser tratada com atenção a
possibilidade de que o seu uso teve de incentivar intervenções no meio urbano eunapolitano
com o intuito de moldar o mundo social.
Alcaides locais tiveram papel importante nas transformações urbanas, no sentido de
que utilizaram do discurso de progresso para promoverem sua atuação e deslegitimarem a de
adversários políticos sob a legitimação da manutenção das representações sobre o povoado.
Não só foram produzidas representações sobre a atuação dos políticos que disputavam o poder
local, mas, também, sobre ruas, bairros e pessoas, figurantes que destoavam do projeto de
cidade que era pretendido para o povoado.
extension://oemmndcbldboiebfnladdacbdfmadadm/http://www.ufrgs.br/alcar/encontros-nacionais-1/encontros-
nacionais/7o-encontro-2009-1/Memoria%20e%20brasilidade%20militante%20nas%20telas%20eletronicas.pdf.
Acesso em: 05 jun. 2019. 375
MAUSS, Marcel apud CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. 2. ed. São
Paulo: Memória e Sociedade: Difel, 2002. p. 18.
133
Segundo Pesavento, ao estudar a cidade de Porto Alegre no século XIX, o processo de
―exclusão‖ e ―cidadania‖ na cidade se dá a partir de um ―padrão de referência identitários
construído por um grupo tendo por base os marcos da coesão social e pertencimento‖376 e
acentuando-se na diferença entre os sujeitos e lugares. Sobre os vários grupos e lugares que
compõem a urbe, são formuladas representações baseadas na materialidade com referência na
alteridade.
Os grupos considerados diferentes, os ―excluídos‖, geralmente as camadas mais
pobres da sociedade, compostas por pretos e pardos, e os lugares que os abrigam, por
destoarem das normas constituídas pelos grupos dominantes, são sujeitos à coerção para que
se enquadrem nos padrões de ―cidadania‖ estabelecidos pela sociedade. Daí surge a noção de
marginal, ou seja, aquele que não se enquadra nas normas instituídas socialmente.377
Eunápolis, assim como várias outras áreas urbanas, passou pelo processo de
remodelação com base em preceitos higienistas e estéticos, para que sua paisagem se
alinhasse com as representações progressistas sobre seu crescimento. Neste movimento,
espaços e pessoas que destoassem dos valores instituídos pelos grupos dirigentes deveriam ser
removidos. Para a concretização dos sonhos de progresso almejados, os periódicos e as
revistas desempenharam papel fundamental para a legitimação ou deslegitimação da atuação
ou da não atuação da administração municipal no tocante à manutenção dos espaços.
O jornal CIP378 realizou uma denúncia sobre o descaso das administrações municipais
de Santa Cruz Cabrália e Porto Seguro em relação à sua atuação em Eunápolis. Numa nota
publicada em 9 de maio de 1978, o periódico afirmou que além de ser o ―maior povoado do
mundo‖ também era o ―mais sujo e esburacado do mundo‖. Em seguida, continuou sua
arguição:
Visitantes quando chegam a Eunápolis ficam estarrecidos diante de tanto lixo em
pleno centro, que apelidaram o grande povoado como ―terra das crateras‖. Os
buracos, que escondem um carro torna impossível o trânsito, enquanto o cheiro
fétido dos dejetos cria um clima de revolta nos proprietários de restaurantes,
lanchonetes, bares e similares, ocasionando até problema de saúde para a
população.379
376
PESAVENTO, Sandra Jatahy. Uma outra cidade: o mundo dos excluídos no final do século XIX. São Paulo:
Companhia Editorial Nacional, 2001. p. 18. 377
Ibid. 378
O exemplar do periódico, localizado no APMCVE, foi recortado pelo seu antigo portador antes de ser doado
para arquivamento, o que impede de termos acesso às referências mais específicas sobre este, como: se o título
(CIP) é realmente o do jornal ou apenas de uma coluna deste e da cidade a qual pertence. APMCVE. 379
CIP, Itabuna, 9 maio 1978, p. 12. APMCVE.
134
A narrativa jornalística diz de um povoado contraditório, em que sua expansão não é
acompanhada por sua estrutura e higiene. Merece destaque também a preocupação de quem
redige o texto quanto à visibilidade que os visitantes tinham da localidade, muitos desses que
já o apelidavam de ―terra das crateras‖, onde o estado de higiene ameaça tanto o comércio
quanto a saúde da população. Quanto ao lixo e à sujeira espalhados pelas ruas, essa não foi a
única nota reproduzida em periódicos baianos. O contexto narrado aparece em outros jornais,
entre eles o Jornal da Manhã: 380
O prefeito Gobira, como gosta de lixo, vive juntando os restos que sobram das casas
e vai fazendo em cima do mesmo, a sua plataforma. Juntando lixo, e fazendo o seu
pé de meia. ―Afinal ninguém é de ferro‖. O ―pé sujo‖, como é conhecido o prefeito,
vai dando os seus pulos. É do MDB, mas trabalha pela Arena, na esperança de que
continuará mandando e desmandando numa terra onde só tem vez o marginal, e ele,
o prefeito.381
Em uma manchete que tratou do crescimento da criminalidade, o autor realizou a
mesma narrativa de acúmulo de lixo da citação do jornal anterior, mas desta vez fazendo a
conexão da situação com os gostos e as intenções políticas do prefeito que acabou por legar
ao povoado o abandonado, ―sem polícia, sem prefeito, sem nada‖.382 Segundo a redação, o
prefeito utilizava o estado de mazela em que se encontrava o povoado para articular-se
politicamente, tentando aliar-se ao partido ao qual se fazia oposição, num jogo de interesses.
Ainda que nos faltem maiores informações sobre o histórico do jornal, ou o posicionamento
político de seus redatores, não é demais arriscar uma análise sobre as intenções de quem o
escreve. Mas, antes, é importante tecer algumas considerações sobre o alcaide do qual trata o
texto jornalístico.
Alcides Góbiras Lacerda, filiado ao Movimento Democrático Brasileiro (MDB),
cumpriu dois mandatos como prefeito de Santa Cruz Cabrália (1971-1972 e 1977-1982),
enfrentando oposição de grupos políticos locais da Aliança Renovadora Nacional (ARENA),
que, naquele momento, se alinhavam com o governo federal de cunho militar.383 Deve ser
levado em consideração que, durante os mandatos de Lacerda, o governo municipal foi
380
O exemplar do periódico, Jornal da manhã, localizado no APMCVE, foi recortado pelo seu antigo portador
antes de ser doado para arquivamento, o que impede de termos acesso às referências mais específicas sobre este,
como: número da página, qual o município ao qual o mesmo tem sede e qual a autoria da redação. 381
EM EUNÁPOLIS morreram 21 po... (parte recortada da folha). Jornal da manhã. 16 jan.1979, s/p.
APMCVE. 382
Ibid. 383
REBOUÇAS, João Rafael Santos. Memória e narrativa em o Fundador de Eunápolis: a escrita da História
com leitura da experiência do tempo. 2015. Monografia (Graduação em História) – Universidade do Estado da
Bahia, campus XVIII. Eunápolis, 2015.
135
oposição ao governo estadual na figura de Antônio Carlos Magalhães (ACM), partidário do
ARENA.
Em vista do contexto de oposição partidária entre as duas esferas de governança
podemos levantar a hipótese de uma produção midiática de ataques à administração de
Lacerda em apoio aos governos do estado e federal, ou até mesmo aos grupos opositores
locais. Infelizmente, em nossas buscas, não foi possível encontrar outros exemplares dos dois
jornais, que permitissem traçar uma linearidade ideológica seguida por seu grupo editorial,
mas não nos furta a possibilidade de especular sobre seu discurso.
Outro documento fala do abandono de Eunápolis sob a administração de Alcides
Lacerda, desta vez em uma revista. A revista Atualidades, de 1979, acusa o prefeito, como
sendo o ―maior entrave ao melhor desenvolvimento de Eunápolis‖, considerando sua
administração como um ―descalabro‖.384 Em sua reportagem, enquanto tecia elogios ao grupo
arenista local, como indivíduos que reivindicavam a favor do desenvolvimento e da
emancipação junto ao governo do estado, ataca ferrenhamente a gestão do então prefeito
emedebista santa-cruzense. Este último, segundo o texto, graças a sua ―alienação‖, uma
―grande quantidade de lixo é depositada nas ruas pela própria prefeitura e por ordem do seu
alcaide Góbiras, um personagem que lembra D. Quixote de La Mancha, no mal sentido‖.385 Os
meios de publicidade do dizer evidenciam as tentativas de atrelar representações de atraso
através do uso da representação de lugar da sujeira e do lixo à figura do prefeito partidário do
MDB local.
Em entrevista concedida ao jornal Eunápolis News, Alcides Lacerda fez algumas
considerações sobre as dificuldades encontradas pela sua gestão quanto à dotação
orçamentária do município. Segundo ele, os problemas são provenientes de débitos contraídos
pela gestão anterior, Arnoldo Pereira Lima (1967-1970), candidato arenista que, além da
arrecadação de impostos, cobre com dificuldades as despesas da prefeitura e do funcionalismo
público, mas, ainda assim, realizou convênios e projetando obras.386
Sobre a situação do lixo em Eunápolis, Lacerda afirma que o município ―não dispõe
de veículos e máquinas e, com duas caçambas, não pode dar vasão, só sendo possível na base
do mutirão‖. Quando foram contratados os serviços de uma empresa em espaços de três
meses, como ele mesmo disse, a limpeza acontecia na base do ―quebra galho‖.387 Na tentativa
384
EUNÁPOLIS, o maior povoado do mundo, a cidade do futuro. Atualidades: Expediente, ano III, n. 6, Rio de
Janeiro: Editora Três Poderes, 1979. p. 15. APMCVE. 385
Ibid., p. 17. 386
ALCIDES Lacerda implanta energia nos bairros. Eunápolis News. p. 3, 25 fev. 1978.APMCVE. 387 Idem. p.3.
136
de explicar-se através do periódico local, o alcaide arrisca acusar a representação do ARENA,
colocando sobre ele parte da responsabilidade sobre o desequilíbrio quanto aos débitos
públicos e, consequentemente, das mazelas públicas, o que inclui o lixo nas ruas do povoado.
Segundo Charaudeau, o poder político também se constitui como parte interessada na
opinião pública, o que faz lançar suas influências ―na construção da agenda midiática, e de
maneira geral, no jogo de manipulação‖.388 A partir da constatação de Charaudeau, o que se
percebe é que boa parte da produção discursiva sobre o estado de atraso e mazelas ditas sobre
povoado, em determinados meios impressos e em um dado período, é enunciada a partir de
disputas políticas, em apoio ou ataque às representações partidárias.
Vale ressaltar que esta pesquisa não tem a intencionalidade de comprovar a veracidade
das informações, mas, sim, de problematizar a construção discursiva das publicações sobre o
desenvolvimento urbano do povoado como formadoras e difusoras de representações.
Contudo, o cenário descrito por jornais e revistas locais e de outros estados é de que, ainda
que houvesse crescimento do povoado, sua estrutura urbana se constituía deficiente.
As representações de atraso também recaíram sobre determinados espaços
eunapolitanos que, de alguma forma, não condiziam com os projetos de desenvolvimento para
o povoado e, menos ainda, dialogavam com outros espaços ditos representantes do progresso
do povoado.
Paralelo com o progresso de Eunápolis, anda a miséria, a fome e todas as
necessidades. Nos bairros e até em ruas próximas do Centro a situação não é de toda
agradável. Para citar, a menos de 500 metros da ostentação, ou seja, do Centro, a
existência da Praça da Liberdade e a Rua 13 de Maio, duas feridas crônicas onde os
seus moradores vivem vida de cão, alguns sem emprego e outros apenas ganhando o
salário mínimo que não atende as suas mínimas necessidades.
As famílias ali residentes são acima de tudo gente. [...] Para alguns, sair do local é a
benção, principalmente moradores do final da Rua 13 de Maio, local enlameado sem
esgotos sanitários, onde famílias passam fome e as crianças, doentes, precisam de
atendimentos médicos. Tudo isso, por insuficiência de médicos gratuitos, trabalho e
outros graves problemas, atribuídos ao não assentamento das famílias tradicionais
trabalhadores agrícolas.
Não bastasse, existem em torno de Eunápolis, bairros, onde dezenas de pessoas
sofrem o mal horrível da fome. Nos bairros Juca Rosa, Cajueiro, Minas Gerais,
Centauro Leste a pobreza latente. 389
Na citação, chama-nos a atenção a maneira como o autor traça um fio tênue que separa
os espaços urbanos de acordo com o quadro socioeconômico de seus moradores e a estrutura
urbana que lhes é proporcionada. De um lado, o Centro, representante do desenvolvimento
388
CHARAUDEAU, Patrick. Discurso das mídias. 2. ed., 2. reimpr. São Paulo: Contexto, 2013. p. 257. 389
VAMOS atender ao S.O.S. dos irmãos carentes. Jornal Cometa, Eunápolis, ano I, n. 3, p. 2, jun. 1986.
APMCVE.
137
urbano, onde se concentram a maior parte da elite eunapolitana, as melhores casas e edifícios
construídos e a maior concentração de equipamentos urbanos públicos e particulares. E, do
outro, ruas e bairros periféricos onde a população de baixa renda é submetida a condições
precárias de higiene, de moradia e acesso à saúde, uma verdadeira discordância com o ideal
de progresso; como o próprio redator colocou, eram ―feridas crônicas‖ que necessitavam de
tratamento.
Cajueiro, Minas Gerais, Centauro Leste, 13 de Maio, Praça da Liberdade e Juca Rosa,
segundo o discurso da imprensa, eram esses espaços considerados como lugares que
transpareciam o aspecto de atraso ao desenvolvimento, pois a ―miséria‖, a ―fome‖ e o
―desemprego‖ habitavam o cotidiano dos moradores. A nota também chama a atenção sobre a
origem desses que se encontravam em tal estado de desatenção: eram famílias oriundas da
zona rural, trabalhadores agrícolas não assentados em território urbano. Corroborando com
essa afirmação, D‘icarahy relata sobre populações de trabalhadores rurais, conhecidos como
boias-frias, ocupando as periferias de povoados como Eunápolis, Itamaraju e Teixeira de
Freitas.390
Toda essa condição de mazela social à qual se encontrava submetida a população
periférica eunapolitana torna propícia a proliferação da violência e da criminalidade, tomando
como referência o Bairro do Juca Rosa, denunciado como o reduto da infância de ―Prego‖,
personagem ligado ao crime já citado anteriormente neste capítulo.
Personagens e episódios violentos proliferaram-se em outros periódicos, atrelando a
periferia de Eunápolis à condição de reduto da violência. Dessa vez, o Bairro do Pequi é
colocado em evidência por conta da atuação de criminosos. O personagem da denúncia pelo
Clarim é ―Gilsão de cor parda, mais nocivo do que o famoso Prego [...] seu campo de
atuação, [...] é por toda Eunápolis, principalmente, no bairro do Pequi‖, considerado pelo
jornal como ―Clínico Geral‖ do crime, ou seja ―Assassino, assaltante, arrombador, estuprador
e outras taras do mundo do crime‖.391
A ação de sujeitos como o ―Gilsão‖, ―Vevéu‖ e ―Prego‖, disseminadas em
publicações, atribuindo a sua atuação às periferias eunapolitanas disseminou a imagem de
violência sobre esses espaços. Não menos importante, o jornal, ao descrever bandidos,
utilizando a cor, geralmente identificados como pardos ou negros, atrela também a cor do
indivíduo ao crime, bem como ao lugar onde é praticado.
390
D‘ICARAHY, Leonardo Dantas. O Sonho da Terra: Trabalhadores Rurais e o Surgimento do MST na Bahia
(1975-1989). 2018. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2018. 391
POLÍCIA procura Gilsão. Jornal Clarim, Eunápolis, ano 1, n. 7, p. 8, nov. 1987, p. 8. APMSCC.
138
Outros dois periódicos trataram da violência ocorrida na região do meretrício
eunapolitano. Segundo o jornal A Tarde, de 30 de novembro de 1976, um homem morto e
dois soldados da Polícia Militar feridos, ―foi o resultado de uma diligência realizada na zona
do baixo meretrício de Eunápolis, Extremo Sul da Bahia, pela polícia local, solicitada para
deter dois desordeiros que embriagados faziam desordens.‖.392 A segunda nota, publicada dois
anos depois, em 6 de junho de 1978, também pelo jornal A Tarde, disse que:
Embora grande número de assaltos, agressões e contos do vigário sejam cometidos
em plena luz do dia, é a noite que a situação se agrava devido ao intenso movimento
registrado na zona do meretrício, considerado dos maiores da região [...]393
As duas notas fazem ligação direta da violência e da baderna com o lugar onde
acontecia a prostituição. Consideradas como lugar de encontros dos diversos grupos sociais da
zona urbana, rural e de outras localidades, os bordéis do povoado concentravam grande
número de indivíduos, regados pela boemia e embriagados pelos gozos proporcionados nas
―casas de luz vermelha‖.394 Por congregarem considerável quantidade de homens e mulheres
em torno dos prazeres noturnos, nas ruas onde se encontravam os prostíbulos,
desentendimentos eram comuns, bem como acertos de contas entre rivais e emboscadas.
Sendo assim, seus registros são mais comumente encontrados nas páginas de ocorrência
policial.
Araújo395 afirma que, durante as décadas de 1960 e 1970, a maior parte dos prostíbulos
eunapolitanos agrupava-se no Bairro do Pequi. A afirmação da historiadora foi constatada
pelos estudos emitidos em 1975 pela SEPLANTEC. Foi listada a quantidade de ―54 casas
voltadas para este tipo de atividade com aproximadamente 160 pessoas ocupadas‖.396 Segundo
o documento, no Bairro do Pequi se concentrava a ―prostituição pobre praticada nos barracos
de madeira‖, que eram utilizados tanto como residência como para o meretrício e para o
comércio de feira, com ressalva para a Rua Cristóvão Colombo, onde a ―prostituição
apresenta aspectos menos decadentes‖, misturando prostíbulos, bares e boates.397
392
TIROTEIO em Eunápolis com um marginal morto. A Tarde, Salvador, 30 nov. 1976. p. 14. APBCEB. 393
FALTA de viaturas faz aumentar violência no povoado de Eunápolis. A Tarde, Salvador, 6 jun. 1978. p.5. 394
Prostíbulo, segundo definição do Dicionário Informal. Disponível em:
https://www.dicionarioinformal.com.br/casa+da+luz+vermelha/. Acesso em: 13 jun. 2019. 395
ARAÚJO, Maria Marineide. Prostituição feminina em Eunápolis na década de 1960 “do prostíbulo à
vida familiar”. 2009. Monografia (Graduação em História) – Universidade do Estado da Bahia, campus XVIII,
Eunápolis, 2009. 396
SECRETARIA DE PLANEJAMENTO CIÊNCIA E TECNOLOGIA – SEPLANTEC. Governo do Estado da
Bahia. Projeto Eunápolis, 1ª etapa, listagem de imóveis. Salvador, 1975. p. 14. 397
Ibid.
139
Os espaços e as pessoas que neles conviviam eram colocados à margem por grande
parte da sociedade eunapolitana. Foi o que contou um entrevistado à Cunha398 em sua
pesquisa, mais especificamente sobre a Rua Cristóvão Colombo. Segundo ele, muitas
mulheres, casadas e solteiras, eram proibidas por seus familiares de passarem pela ―rua do
brega‖, por conta se ser um ambiente de frequentação ―das mulheres da vida‖, além de ser
conhecido também pela violência decorrente das sociabilidades estabelecidas no local.
O diagnóstico do documento tece a paisagem de um bairro em que a boa parte da
população se encontrava marginalizada econômica e socialmente e, como tática de
sobrevivência, a prostituição dividia espaço com outras práticas cotidianas, como o comércio
e a própria moradia. Araújo399 observou que boa parte das suas entrevistadas recorreram a essa
atividade por conta da desestruturação familiar, liberdade de escolha, prazer sexual e miséria
social. O último fator ratifica o que já foi observado no segundo capítulo sobre o nível de
vulnerabilidade em que se encontravam os moradores do Bairro do Pequi, a partir dos dados
apresentados pelo PLANDEU.
Enunciados por periódicos e pelo PLANDEU, outros espaços também foram
evidenciados como lugar do atraso, como a Rua 13 de Maio. A rua, tema exclusivo de uma
nota do jornal Cometa, já havia sido notícia em outra página do mesmo tabloide, citada no
início desse subcapítulo, junto a outras ruas onde os alardes do progresso ainda não haviam
chegado. Vamos ao texto:
Não basta tanto progresso, quando as classes menos favorecidas estão morrendo de
fome, sem emprego, saúde e morada. Esta alusão é feita pelos moradores da Rua 13
de Maio, em Eunápolis, onde a vida ali, em contraste com o nome, é uma escravidão
das necessidades. Falta saúde, os moradores na sua maioria estão desempregados e
sem ajuda dos órgãos do governo estadual e municipal para saírem da miséria em
que se encontram.400
A nota publicada em junho de 1986 tomou a tonalidade de denúncia nas letras do
redator. Já que falamos da redação, vale começarmos pela posição política do jornal, expressa
em uma nota curta que disse da sua conduta de oposição. Seu fundador foi o ex-prefeito
Alcides Góbiras Lacerda, já citado nesse texto como alvo de ataques quando ainda cumpria o
mandato. Lacerda, militante do PMDB, oposição ao então prefeito de Santa Cruz Cabrália,
398
CUNHA, Ana Paula. EUNÁPOLIS: processo de formação identitária da emancipação aos dias atuais (1988-
2010). 2010. Monografia (Graduação em História) – Universidade do estado da Bahia, campus XVIII,
Eunápolis, 2010. p. 68. 399
ARAÚJO, Maria Marineide, op.cit. 400
13 DE MAIO, rua da escravidão e da agonia. Jornal Cometa, Eunápolis, ano I, n. 3, p. 9, jun. 1986.
APMCVE.
140
Arnaldo Moura Guerrieri do PDS, e ao governador da Bahia, também do PDS, João Durval
Carneiro. Mesmo que haja um cenário de troca de farpas entre políticos locais, não deixa de
ser evidenciada a não assistência do poder público com a localidade e seus moradores.
Em outro escrito, Lacerda relata sobre a construção de casebres em um período que
remonta aos primórdios do povoado e fala de um trecho do traçado da BA-2, projeto inicial da
BR-101 que cortava o povoado passando pela Rua 13 de Maio.401 Segundo a narrativa do
autor, a rua pode ser considerada como uma das mais antigas do povoado, neste sentido,
percebe-se que, enquanto outras casas e ruas do Centro conseguiram se modernizar, ela,
provavelmente por conta do baixo poder aquisitivo da população que se instalou, além de
poucas ou nenhumas atuações do poder público, permaneceu com sua estrutura antiga e
precária.
O título da reportagem, ―13 de Maio, a rua da agonia e da escravidão‖, como o próprio
autor já escreveu, fez uma alusão aos moradores que se encontravam submetidos à agonia da
condição de ―escravidão das necessidades‖. A condição de miserabilidade se liga à estética e à
insalubridade, visto que as ―casas de tábuas estão caindo, carecendo de melhorias‖, as
crianças estão ―pálidas, doentes, com fome e sem abrigo neste inverno‖, além do desemprego
e a fome que rondavam também os demais habitantes.402 O tão sonhado progresso, que pairava
na vizinhança, as ruas do Centro, era uma realidade distante daquela localidade.
Consideradas como parte integrante do conjunto de casebres que foi chamado por
jornais e pelo PLANDEU de ―Favela do Fato‖, a Rua 13 de Maio e outras duas ruas formam o
arrabalde de outro espaço que deu nome à favela, a ―Feira do Fato‖. 403 Até a década de 1980,
a feira do Bairro do Centro funcionava somente na Avenida Santos Dumont com a Duque de
Caxias, na Praça da Lavoura já mencionada no 2º capítulo. No adentrar da década, ela passou
a acontecer também no centro da ―Favela do Fato‖.404
Tanto a feira quanto a favela margeavam o Córrego do Gravatá, região já descrita
como zona problema pelo plano, localizava-se entre os bairros do Centro e do Gusmão, mais
401
LACERDA, Alcides Góbiras. O fundador de Eunápolis, Sessenta e Quatro, as 13 Marias e os Anjos da
Traição. Feira de Santana: Radami, 2003. p. 153. 402
13 DE MAIO, rua da escravidão e da agonia. Jornal Cometa, Eunápolis, ano I, n. 3, p. 9, jun. 1986.
APMCVE. 403
Ao longo do PLANDEU, o leitor irá encontrar referências à feira como: ―Feira do fato‖ e ―Feira do osso‖; de
forma que, a depender da fonte que será explorada, esta poderá utilizar um nomenclatura diferente, mas tratando
de um mesmo lugar. 404
CUNHA, Ana Paula. Eunápolis: processo de formação identitária da emancipação aos dias atuais (1988-
2010). 2010. Monografia (Graduação em História) – Universidade do estado da Bahia, campus XVIII,
Eunápolis, 2010. p. 66.
141
especificamente no eixo das ruas do Bueiro, D. Pedro II e 13 de Maio. Sobre a feira, o plano
traceja sua caracterização:
[...] ladeando o Córrego Gravatá, localiza-se a feira da rua do Boeiro, voltada para o
atendimento ao consumidor local de baixa renda. Os artigos mais vendidos são osso
e bucho que ficam expostos em barracas de madeira, nas piores condições possíveis
de higiene. Devido à lama, lixo e restos de carne acumulados no local, é grande o
número de porcos e urubus, que se misturam aos compradores e às crianças que
brincam no local.405
De acordo com a estética que delineou o Bairro do Centro, as condições
socioeconômicas da população já estabelecidas na Rua do Bueiro destoavam das ruas de
famílias mais abastadas. Como os produtos comercializados eram voltados para a população
de baixa renda, ainda existe a possibilidade de as famílias mais abastadas, habitantes do
Centro, frequentarem outros espaços, bem como o ―mercado de carne, utilizado
exclusivamente na comercialização deste produto‖, além de diversas outras barracas
espalhadas pela cidade.406
As condições em que se encontrava a feira, além de emprestarem uma aparência
desagradável ao Centro do povoado, também entravam em desacordo com o legislativo
urbano, como podemos perceber cruzando a narrativa do PLANDEU com o texto do Código
de Posturas Municipais de Santa Cruz de Cabrália:
Art. 97 - Nenhum alimento poderá ser exposto à venda sem estar convenientemente
protegido contra poeira, insetos e outros animais.407
Art. 103 - Será obrigatório e rigoroso asseio nos estabelecimentos industriais e
comerciais de alimentos.408
O cenário insalubre da feira, onde se misturavam animais, lama, lixo e pessoas,
colocava-se na contra mão das Posturas Municipais, ferindo os artigos que zelavam pela
higiene no comércio de alimentos. Cotidianamente, este ambiente participava da vida dos
moradores do Centro e do Gusmão, afinal ela se encontrava entre os dois bairros. Além da
feira, estendia-se ao seu redor uma área com grande quantidade de casas de ―baixíssimo
padrão construtivo‖, consideradas como ―zona problema‖. Nessa parte do povoado, ―a falta de
405
PLANO DIRETOR URBANO DE EUNÁPOLIS. Proposições. Salvador, 1977. v.2. p. 5-6. 406
Ibid., p. 5. 407
LIVRO DE REGISTRO DE POSTURAS DA CÂMARA MUNICIPAL DE SANTA CRUZ CABRÁLIA.
Título II: Da proteção à saúde. Cap. XI: Da Vigilância pública dos alimentos destonados ao consumo humano,
21 jan. 1977, s/p. 408
Ibid.
142
controle permite a sua ocupação por populações de baixa renda, agravando os problemas já
existentes‖409, a ―Favela do Fato‖.
O espaço urbano que andava na contramão em que caminhava o tão almejado
progresso, a ―Favela do Fato‖, que recebeu essa toponímia por conta de sua localização, o
entorno da ―Feira do Fato‖, acabou por entrar como conjunto de intervenções planejadas para
Eunápolis, no governo do prefeito de Santa Cruz Cabrália Arnaldo Moura Guerrieri (1983-
1988). Sob o slogan ―mais ação e menos conversa‖, o Guerrieri, filiado do PDS, prometia
tirar Eunápolis ―do lixo para o luxo‖.
―Do lixo para o luxo‖, lema da campanha de Guerrieri, remete-nos às críticas lançadas
sobre Alcides Lacerda, do MDB, no seu primeiro mandato (1971-1972). Retomando as
análises feitas sobre a produção discursiva na gestão do ex-prefeito, foi veiculado em revistas
e jornais o acúmulo de lixo nas ruas de Eunápolis, fruto do descaso administrativo e das
pretensões políticas de Lacerda. Aproveitando-se dessa imagem de atraso criada sobre o
governo de Lacerda, Guerrieri cria seu slogan, a fim de referenciar a sua administração como
a que romperia com esse atraso causado por administrações anteriores e que conduziria
Eunápolis nos caminhos do progresso.
O calçamento de ruas, a inauguração do Hospital Regional, do Hospital Maternidade
Stela Reis, do Ginásio de Esportes e do Colégio Heloína Barradas, a construção da rodoviária,
a reforma de praças e a doação do terreno onde se localizava o campo de pouso para o
Departamento de Aviação da Bahia fizeram parte das obras empreendidas pela gestão,
somadas à proposta de saneamento do ―Córrego do Gravatá‖.410
Através da imprensa, Guerrieri usou de habilidade, buscando atrelar seu mandato a um
conjunto de obras que legaria a Eunápolis representações que dissessem do desenvolvimento.
Um grande acervo de jornais e revista foi produzido sobre o seu desempenho como gestor à
frente do município de Santa Cruz Cabrália, em sua maioria anunciando as obras
empreendidas no povoado de Eunápolis. Sua imagem como ―um dos homens fortes da
política interiorana baiana‖, o prefeito que ―correspondeu à confiança do seu povo e realizou
um governo que podemos qualificar até agora de ‗quarente anos em quatro‘!!‖, foi corrente
em tabloides do período.411
Usando de lemas como ―mais ação e menos conversa‖, ―do lixo
ao luxo‖ e ―quarenta anos em quatro‖, este último apropriado a partir do programa de governo
409
PLANO..., op.cit., p. 12. 410
CUNHA, Levi Sena. Cidade e Memória: Urbanização e Conflitos na Eunápolis dos anos de 1970 a 1988.
2014. Monografia (Graduação em História) – Universidade do Estado da Bahia, campus XVIII, Eunápolis, 2014. 411
Edição especial em homenagem ao 37° aniversário de Eunápolis, o maior povoado do mundo. Grupo
Tribuna do Interior/ Revista Alô Bahia: Santa Cruz Cabrália/Eunápolis, 1987. p. 3
143
do presidente Juscelino Kubitschek (cinquenta anos em cinco), o alcaide santa-cruzense
anunciava a remodelação do povoado como fruto do seu trabalho.
O programa de governo encabeçado por Arnaldo Moura Guerrieri dialogava com
algumas das determinações do PLANDEU, buscando remodelar os espaços à medida que
destoassem do ideal pretendido, encampando a política de higienização dessas áreas tanto dos
costumes como da estética. Como proposta para sanear a área que margeava o córrego, a
caracterizou como ―zona especial‖, o plano determinou: a limpeza de suas margens,
eliminando todos os resíduos sólidos já depositados; após a limpeza, a canalização do leito do
rio, a partir de estudos específicos, para evitar maiores danos; por último, a realocação da
população residente nas margens.412 Essa área deveria, após o conjunto de ações, ser integrada
à área verde do povoado a qual já fazia parte, mas os usos da população deram um outro
sentido ao espaço.
Em uma edição especial, o jornal Grande Bahia de 1985 foi contratado pela prefeitura
de Santa Cruz Cabrália para realizar uma reportagem sobre o aniversário de 35 anos no
povoado, fazendo um enredo focado nos feitos da gestão ―mais ação e menos conversa‖, em
que são relatadas as intenções do prefeito quanto à feira e à favela:
A ―favela do fato‖, que empresta uma feia aparência ao centro de Eunápolis, fruto de
uma anomalia administrativa, vai desaparecer. Em seu lugar surgirá uma importante
praça, que abrigará a feira-livre semanal, e um viaduto ligando as ruas adjacentes ao
vale. As obras fazem parte de um arrojado projeto do prefeito Arnaldo Guerrieri, que
inclui ainda a transferência das quase 70 família para o bairro Moisés Reis e a
construção de uma Central de Abastecimento, com 120 boxes, onde os vendedores
de fato poderão atuar.413
Em linhas gerais, a reportagem faz o discurso de urbanização do Centro de Eunápolis,
eliminando da localidade espaços e sujeitos destoantes do projeto apresentado pelo
PLANDEU e empreendido pelo poder público municipal. O plano era higienizar o local,
abolindo a ―anomalia‖ criada em outras gestões, a ―Favela‖ e a ―Feira do Fato‖, que, além de
emprestarem uma ―feia aparência‖ ao Bairro do Centro, ainda se constituíram como um
―verdadeiro foco de tuberculose e de outras doenças‖.414 Como solução, o poder público
propôs a transferência das famílias para o Moisés Reis, bairro periférico de Eunápolis, e a
feira para o Bairro do Centauro, onde seria construído o Centro de abastecimento. Sabe-se
412
PLANO DIRETOR URBANO DE EUNÁPOLIS. Proposições. Salvador, 1977. v. 2. p. 102. 413
EM LUGAR da favela uma moderna praça e um viaduto. Jornal GRANDE BAHIA: Feira de Santana, p. 3,
nov. 1985. APMSCC. 414
Ibid.
144
que, ―nas intensas relações espaciais não existem vazios, ainda que momentâneos‖, 415 logo,
além de invisibilizar os moradores pobres, os agentes históricos projetaram para que no lugar
da feira fosse construída uma praça e um viaduto que ligasse o centro à BR-101, estendendo-
se ao longo do Córrego do Gravatá. Para realização da empreitada, foram levantados, junto
com a Caixa Econômica Federal, Cr$27 milhões de cruzeiros.416
A necessidade manifesta da transferência da população pobre residente no Córrego
Gravatá representou um importante passo para remodelar a zona considerada mais importante
do povoado, atitude essa que possibilitaria a retirada de uma barreira no caminho do
desenvolvimento urbano local, através da guetificação. O embelezamento da morada das
elites eunapolitanas, assim como o afastamento da população indesejada para essa localidade
foram objeto dos sonhos de progresso dos poderes públicos locais e, provavelmente, com o
apoio de uma parcela da população.
Os documentos consultados sobre as intervenções municipais não permitem saber
sobre o momento de concretização das obras de urbanização da feira e da favela, nem sobre o
destino da população que seria transferida. Em entrevista cedida ao grupo Tribuna do Interior
e a Revista Alô Bahia, em uma publicação conjunta homenageando os 37 anos do povoado, o
prefeito Arnaldo Moura Guerrieri afirma ter realizado a drenagem do Córrego do Gravatá,
obra mostrada inclusive em fotografia, junto com a drenagem da Avenida Porto Seguro,
Avenida 15 de Novembro, Praça da Lavoura e Praça da Bandeira.417
De fato, foi construída uma central de abastecimento no Bairro do Centauro e um
prédio onde se realiza hoje a feira aberta semanal, no mesmo local onde se encontrava a
―Feira do Fato‖ e, ainda hoje, existem casas de comércio e moradia nas referidas ruas do
entorno da feira e ao longo do Córrego do Gravatá. No entanto, a documentação obtida não
possibilitou uma melhor demarcação das intervenções urbanas projetadas por Guerrieri, nem
quando, nem por qual gestão foram realizadas.
Para além dos espaços eunapolitanos que transparecessem uma imagem de atraso,
também obtiveram destaque na imprensa outros que enunciassem o progresso do lugar. Esses,
em específico, foram tratados de forma diferenciada pelos jornais e revistas como também por
parte do poder público, sendo apresentados como símbolos do desenvolvimento e da memória
415
OLIVEIRA, Clóvis Ramaiana Moraes. Canções da cidade amanhecente: urbanização, memórias e
silenciamentos em Feira de Santana, 1920-1960. Salvador: EDUFBA, 2016. p. 137. 416
RECURSOS da CEF para macrodrenagem do Gravatá em Eunápolis. A Tarde, Municípios, Salvador, ano
74, n. 24685, p. 6, 09 fev. 1986. APBCEB. 417
TRIBUNA DO INTERIOR. Revista Alô Bahia. Edição Especial em Homenagem ao 37º aniversário de
Eunápolis, o maior povoado do mundo, Administração Arnaldo Guerrieri. Eunápolis, p. 4-7, 1987. APMCVE.
145
social, sendo assim merecedores de atividades que os mantivessem belos ou os
embelezassem.
Não é intenção desta pesquisa enveredar-se pela discussão de preservação patrimonial,
mas, ainda sim, não nos furtamos de passar por ela. Concordamos com Canclini quando ele
afirma haver na cidade a consagração de determinados bairros, objetos e saberes por grupos
dominantes, por serem gerados por estes ou por contarem com um aparato que lhes possibilita
melhor controlá-lo, definindo assim quais bens merecem ser preservados.418
Ao longo da trajetória, espaços e monumentos foram remodelados, construídos,
destruídos ou preservados, dentro da perspectiva da manutenção de uma imagem sobre o que
era o povoado e o que queriam que fosse. A imagem da qual nos referimos pode ela ser
construída através de intervenções, configurando uma materialidade, como também a partir de
textos escritos e iconográficos.
Entre os monumentos preservados e merecedores de atenção dos poderes públicos está
a Praça Frei Calixto, representada na fotografia da Figura 9:
Figura 9 - Praça Frei Calixto
Fonte: PREFEITURA MUNICIPAL DE SANTA CRUZ CABRÁLIA (BAHIA) (administração
ARNALDO M. GUERRIERI). EUNÁPOLIS (O maior Povoado do Mundo). Revista “A VOZ
DOS MUNICÍPIOS”, p. 31, 1984.
418
CANCLINI, Néstor Garcia. O patrimônio cultural e a construção imaginária do nacional. In: Revista do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, n. 23, p. 97, 1994. Este artigo é uma reelaboração do texto ―Los
usos sociales del patrimônio cultural‖. In: FLORESCANO, Enrique (org.). El patrimônio cultural de México:
FCE, 1193.
146
Na imagem, estão representados, à frente, a Praça Frei Calixto419; ao fundo, a Igreja
Matriz Nossa Senhora Auxiliadora; mais ao fundo e ao lado da igreja, está o Colégio CPE
(Colégio Promocional de Eunápolis). A fotografia foi publicada em 1984, em edição conjunta
entre a prefeitura de Santa Cruz Cabrália e a revista A Voz dos Municípios, sobre os 34 anos
de fundação do povoado.
De acordo com Andrade e Gomes, a primeira capela a abrigar a imagem de Nossa
Senhora Auxiliadora, padroeira de Eunápolis, bem como os fiéis e as missas em torno da
santa, foi inaugurada em 1959. Essa capela se localizava no cruzamento entre a Avenida
Santos Dumont, a Rua da Colônia e a Rua Doutor Gravatá. Em meados da década de 1960,
freis capuchinhos, entre eles o Frei Calixto, assumiram a direção da religiosidade católica
local e construíram uma igrejinha em substituição à capela, e, mais tarde, em 1966 deram
início à construção da Igreja Matriz Nossa Senhora Auxiliadora.420 Não foram encontrados
registros da inauguração da Igreja, nem da Praça Frei Calixto, mas as evidências levam a crer
que foram construídas em conjunto.
Uma das Praças mais representadas em fotografias que ilustraram as páginas de jornais
e revistas sobre o desenvolvimento eunapolitano, esse espaço simbolizou dois marcos
importantes no caminhar do povoado: o progresso e o cristianismo. O segundo ponto, o
cristianismo, foi bastante visibilizado nas publicações relacionadas à administração pública do
período da foto, ano em que Arnaldo Moura Guerrieri era prefeito, como enuncia a nota
explicativa abaixo da Figura 9: ―Praça Frei Calisto, com a Igreja, que representa o
monumento-símbolo da fé cristã de toda a população de EUNÁPOLIS – O Maior Povoado do
Mundo‖.421
A citação que acompanha a fotografia tem muito a dizer sobre o projeto de urbe e de
sensibilidade para sua população. Pairava sobre o período ditatorial militar a noção de que a
sociedade brasileira se apoiava no tripé ―Deus, pátria e família‖, pelo progresso da nação e
combate ao comunismo; neste sentido, era necessária a manutenção e afirmação do poderio da
419
Em algumas fontes aparece Frei Calixto, com ―x‖; em outras, Frei Calisto, com ―s‖. Diante das duas formas
de escrever o nome do frei, optamos pela escrita com ―x‖ por ser a mais recorrente. 420
ANDRADE, Franklin Souza de; GOMES, Viviane Moreira. Igreja de Nossa Senhora Auxiliadora: um
patrimônio da cultura e da história de Eunápolis-BA. 2010. Artigo (Graduação em História) – Universidade do
Estado da Bahia, campus XVIII. Eunápolis, 2010. 421
PREFEITURA MUNICIPAL DE SANTA CRUZ CABRÁLIA (BAHIA) (administração ARNALDO M.
GUERRIERI). EUNÁPOLIS (O maior Povoado do Mundo). Revista “A VOZ DOS MUNICÍPIOS”, p. 31,
1984.
147
cristandade em suas bases municipais.422 A consolidação de monumentos que representassem
desenvolvimento atrelado à fé era importante nesse momento; é o que demonstra o discurso
que liga a fé da população cristã ao ―maior povoado do mundo‖.
No processo de embelezamento desses espaços símbolos do povoado, foi realizada
uma remodelação da praça. Para realização da obra, a prefeitura de Santa Cruz Cabrália
contratou, em janeiro de 1985, a ENARC Construtora, pelo valor de Cr$ 95.000.000
cruzeiros. No contrato, estava prevista a utilização de pedra portuguesa, iluminação e postes
p-5008, parque infantil, bancos e jardineiras.423 Em meio à inauguração de outros
monumentos, como o ―belo Ginásio de Esportes‖, a Praça Frei Calixto juntou-se a outras
praças, como a da Bandeira, formando um conjunto de ―belas praças e jardins e belíssimas
fontes luminosas‖.424 Obras como essas, noticiadas pela imprensa, tiveram a intencionalidade
de tornar Eunápolis ―uma bela cidade‖.425
Adornar a cidade e impor aspectos que dialoguem com crescimento do povoado,
afirmando valores e sujeitos que digam das políticas desenvolvimentistas do momento
histórico, eram as intenções do poder público diante da remodelação dos espaços que
remetam a valores condizentes com o momento político local e nacional. Neste contexto do
povoado, as praças tiveram atenção especial por parte do poder público:
Praça da Bandeira com a sua fonte luminosa e aquário para conservação de
espécimes variadas de peixes ornamentais e a nova Praça frei Calisto, onde
prevaleceu o bom gosto das linhas do arquiteto Hugo Seguchi, enriquecendo o
visual, com iluminação sofisticada e fonte luminosa que atrai a curiosidade pública
se tornando a praça mais visitada pela juventude do povoado.426
Por sua visibilidade e seu poder de representar anseios e memórias, as praças têm o
poder de enunciar os projetos pretendidos para constituição dos espaços e vivências urbanas.
Por se tratar de um espaço onde se estabeleciam sociabilidades diversas entre os passantes e
os que se demoravam no local, ocorriam também interações visuais dos transeuntes e leitores
das publicações sobre Eunápolis com o lugar a partir da sua paisagem.
422
SANTANA, Ediane Lopes de. Campanha de desestabilização de Jango: as ―donas‖ saem às ruas!. In:
ZACHARIADHES, Grimaldo Carneiro (org.). Ditadura militar na Bahia: novos olhares, novos objetos, novos
horizontes. Salvador: EDUFBA, 2009. p. 20. 423
PREFEITURA MUNICIPAL DE SANTA CRUZ CABRÁLIA. Contrato de empreitada para realização
de obra pública. Eunápolis, 17 jan. 1985. APMSCC. 424
TRIBUNA DO INTERIOR. Revista Alô Bahia. Edição Especial em Homenagem ao 37º aniversário de
Eunápolis, o maior povoado do mundo, Administração Arnaldo Guerrieri. Eunápolis, p. 10. 1987. APMCVE. 425
Ibid. 426
ENARC Construtora Ltda., construindo o progresso do Extremo Sul da Bahia. Jornal Cometa, Eunápolis,
ano I, n. 3, p. 5, jun. 1986. APMCVE.
148
As praças assumem muitas das vezes a função de ―cartão de visitas‖ representante da
municipalidade, estavam sujeitas a constantes ações embelezadoras. Neste sentido, tanto a
Praça Frei Calixto quanto a Praça da Bandeira foram vinculadas pela imprensa ao progresso
do povoado. Também mencionada na citação do Jornal Cometa, a Praça da Bandeira foi outro
lugar no Bairro do Centro – diga-se de passagem, a Praça da Bandeira se localiza próximo à
Praça Frei Calixto – também mereceu destaque no contexto de remodelação de espaços
promovida por Guerrieri. Este espaço em específico constituiu-se como palco de eventos
políticos, culturais, além de ser um monumento representante do ato de fundação do povoado,
atrelando assim a ele um lugar de destaque para a memória eunapolitana.
Figura 10 - Fonte luminosa na Praça da Bandeira
Fonte: Revista Eunápolis: Passado presente e futuro. Secretaria Municipal de Educação, Cultura e
Esporte. Eunápolis, p. 6, 5 nov. 2010
A imagem da Praça da Bandeira apresentada na Figura 10 foi fotografada, segundo a
revista Eunápolis: Passado presente e futuro, na década de 1980, provavelmente após as
reformas executadas em meados do período. Na análise da imagem, comecemos pela escolha
do ângulo pelo fotógrafo. No sentido oeste-leste, o autor buscou retratar uma visão da urbe
por detrás da praça, em que conseguiu enquadrar o aspecto sereno e bucólico da fonte
luminosa com a ―selva de pedras‖ ao seu entorno e o movimento urbano de uma das avenidas
mais dinâmicas do povoado, a Avenida Porto Seguro, ao fundo. É bem possível que ele
quisesse mostrar a interação entre o belo, a tranquilidade e o urbano dinâmico através do
cenário demonstrado no retrato.
149
Ao mostrar visitantes adultos e crianças no entorno da fonte, provavelmente
observando os peixes ornamentais427 e o jacaré428 que lá foram colocados, esse último que
contribuiu para consolidação de outro topônimo popular para o espaço, o de Praça do Jacaré,
tenta mostrar admiração da população com a paisagem recém-modelada, a consolidação de
um local de passeio familiar, um possível ponto turístico.
No canto, à direita do leitor, o busto de Eunápio Peltier de Queiróz representa a
afirmação da memória sobre a fundação do povoado, atrelada, através do monumento, à
figura que cedeu seu nome para compor o do povoado (Eunápolis), como também à praça,
sendo nomeada pelo poder público como Praça Eunápio Peltier de Queiróz. Personagem
vinculado ao progresso nas narrativas sobre a história eunapolitana pela sua intervenção junto
ao governo da Bahia para compra das terras via DERBA, buscando conter as disputas
espaciais na formação do povoado.
Em 05 de novembro de 1950, foi celebrada uma missa campal, no espaço em que,
anos mais tarde, foi construída a Praça Eunápio Peltier de Queiróz, mais conhecida como
―Praça da Bandeira‖. A missa celebrada pelo padre Emiliano Gomes Pereira entrou para a
história como fundação do povoado. Durante a homília, o clérigo profere o vaticínio de que
―...aqui, surgirá um grande povoado, onde cristãos gritarão bem alto os nomes de Jesus, da
Bahia e do Brasil‖, discurso que soa com a intenção de selar o destino de ―grande centro
progressista‖ 429 do povoado.
A Praça da Bandeira é também considerada como um símbolo de fundação do
povoado, a partir da narrativa do lugar onde ocorreu a ―Primeira Missa‖, ministrada pelo
Padre Emiliano Gomes, em 5 de novembro de 1950. No local (hoje encontro da Avenida
Porto Seguro com as Rua 5 de Novembro, Pedro Álvares Cabral e Doutor Gravatá), foi
erguido um Cruzeiro em representação à Primeira Missa ocorrida em Coroa Vermelha, em
Santa Cruz Cabrália.430 Essa representação teve um caráter todo especial na política de
427
O Jornal Cometa noticiou a ornamentação da Praça da Bandeira com ―espécimes variadas de peixes‖.
ENARC Construtora Ltda., construindo o progresso do Extremo Sul da Bahia. Jornal Cometa, Eunápolis, ano
I, n. 3, p. 5, jun. 1986. APMCVE. 428
Em uma nota sobre as obras realizadas em Eunápolis pelo prefeito de Santa Cruz Cabrália, Arnaldo Guerrieri,
o jornal Grande Bahia, de novembro de 1985, apresentou uma fotografia de filhotes de jacaré como ―uma atração
na Praça da Bandeira‖. Arnaldo Guerrieri prova capacidade administrativa. Muitas obras com poucos recursos.
Grande Bahia. Feira de Santana – Ba, novembro/1985, p. 4.APMSCC.
429
PREFEITURA MUNICIPAL DE SANTA CRUZ CABRÁLIA (BAHIA) (administração ARNALDO M.
GUERRIERI). EUNÁPOLIS (O maior Povoado do Mundo). Revista “A VOZ DOS MUNICÍPIOS”, p. 49,
1984. 430 SACRAMENTO, Jadson Reis; SILVA, Jario Francisco. O Cruzeiro de Eunápolis: marco simbólico
político e religioso. 2010. Artigo (Graduação em História) – Universidade do Estado da Bahia, campus XVIII,
Eunápolis, 2010.
150
monumentalização da chegada da esquadra de Cabral a essas terras, tendo como marcos tanto
o ―Descobrimento do Brasil‖, atribuído ao município de Porto Seguro, como a ―primeira
missa‖ conferida à Santa Cruz Cabrália, ambos administradores políticos de Eunápolis, o que
confere ao povoado simbolizar tais eventos. A primeira missa como marco de fundação do
povoado de Eunápolis faz uma alusão à ideia de ―fundação do Brasil‖, a partir da primeira
missa celebrada pelo bispo Henrique Coimbra em 26 de abril de 1500. Segundo Ribeiro,431 a
missa campal tornou-se uma tradição em Eunápolis, sendo suspensa somente em 1989.
A Praça da Bandeira, além de abrigar a liturgia da primeira missa, que fazia parte das
comemorações do aniversário de fundação do povoado, também acolhia comícios, carnavais e
outras festividades. Nas comemorações da fundação, que aconteciam entre os dias 03, 04 e 05
de novembro, eram realizadas atividades que dinamizavam as sociabilidades e o lazer local,
como as gincanas, as corridas de jegue e shows.432
A Praça Frei Calixto, em alguns momentos, também sediou as comemorações e os
festejos de fundação do povoado como o 37° aniversário.433 Sobre os carnavais, Ribeiro cita
os blocos tradicionais como os ―cordões de caboclo‖, ―grupos de rapazes vestidos de tanga
[...] desfilavam em fila indiana pelas ruas do povoado‖,434 referendado a cultura indígena local
e se concentravam na Praça da Bandeira.
Os usos da praça como lugar de afirmação de símbolos que compõem a narrativa de
uma história de progresso sobre o povoado, bem como a elaboração de eventos que são
reproduzidos constantemente de forma repetida caracterizam a consolidação de uma tradição.
Para Hobsbawm, a tradição inventada constitui-se por um conjunto de regras, valores e
normas inculcados a partir de uma ritualística ou simbologia, reiterada de forma repetida, que
tenta estabelecer relação com um passado histórico apropriado.435
Partindo da noção de
tradição inventada, as comemorações realizadas em espaços urbanos de Eunápolis remetem a
afirmação de valores, reiterados pela população de forma repetitiva, com a intencionalidade
de incuti-los na mentalidade dos seus participantes e espectadores.
Outro espaço que merece destaque quanto à difusão de representações sobre o
progresso eunapolitano foi a Avenida Porto Seguro. Na avenida se localizavam uma grande
431
RIBEIRO, Geraldo Magela. Eunápolis de Mata a cidade. Eunápolis: Gráfica Caçula Ltda., 1998. 432
SACRAMENTO, Jadson Reis; SILVA, Jario Francisco, op.cit. 433
PROGRAMA dos festejos do 37° aniversário de Eunápolis. O Clarim, Eunápolis, ano 1, n. 7, nov. 1987.
APMSCC. 434
RIBEIRO, Geraldo Magela. Eunápolis de Mata a cidade. Eunápolis: Gráfica Caçula Ltda., 1998. p. 29. 435
HOBSBAWM, Eric J.; RANGER, Terence (org.). A invenção das tradições. 10ª ed., São Paulo: Paz e
Terras, 2015.
151
quantidade de lojas, hotéis e agências bancárias, além de ser a principal artéria de ligação do
Centro com a BR-101. Sua importância também estava ligada a sua história.
A história da Avenida Porto Seguro remonta aos primórdios do comércio e formação
do núcleo urbano de Eunápolis. Segundo Guerra,436 a ―estrada de Porto Seguro‖, nome usado
para designar a avenida em meados da década de 1950, por fazer parte do trajeto inicial da
BR-101que dava acesso à cidade de Porto Seguro, era uma das ruas mais movimentadas do
povoado, onde se localizavam algumas das primeiras casas comerciais. Além das casas
comerciais, nela se localizava um prostíbulo, sendo este desativado e, provavelmente,
remanejado, por conta dos planos pretendidos para o espaço; o bordel cedeu lugar a empresas
e casas comerciais. Na avenida, também foi construído o primeiro hotel de Eunápolis, o
―Grande Hotel‖, pertencente a Araújo Santana.437 A partir daí, a avenida passou a concentrar
uma grande quantidade de lojas, armazéns e bancos, percurso este que lhe legou uma
memória ligada ao desenvolvimento do comércio local.
A Avenida Porto Seguro teve sua imagem difundida em diversas publicações como
símbolo da pujança do comércio e do desenvolvimento urbano do povoado pela imprensa.
Sua imagem passou a circular enunciando um dos pilares que ergueram e sustentaram a
economia eunapolitano: o comércio.
Imagens como a da Figura 11 circularam como propaganda do desenvolvimento no
que a Revista Eunápolis, publicada pelo BNB chamou de ―fenômeno urbano sem precedentes
na História do Brasil‖.438
436
GUERRA, Teoney Araújo. Eunápolis Memória: os empreendedores que fizeram Eunápolis. Eunápolis:
Mar Revolto, 2009. p. 05-08. 437
QUEIROZ, Jeová Franklin de. Revista Eunápolis. Fortaleza: Banco do Nordeste, 1985. p. 13. 438
QUEIROZ, Jeová Franklin de. Revista Eunápolis. Fortaleza: Banco do Nordeste, 1985. p. 3.
152
Figura 11 - Avenida Porto Seguro
Fonte: QUEIROZ, Jeová Franklin de. Revista Eunápolis. Fortaleza: Banco do Nordeste, 1985. p. 3.
Como a publicação data do ano de 1985, provavelmente a fotografia tenha sido tirada
no mesmo ano, no sentido do leste para o oeste. Essa fotografia disposta na página de
apresentação faz parte de um conjunto de outras imagens como a da Igreja da Matriz e Praça
Frei Calixto, da Capela de Nossa Senhora Auxiliadora, do Hotel Central, do Monte Pascoal,
de ruas de Porto Seguro e Santa Cruz Cabrália439, entre outros lugares e personagens que
foram dispostos na revista, conduzindo o leitor em visões sobre Eunápolis.
Ao analisar a imagem, percebemos que o autor procurou registrar os aspectos
paisagísticos com foco na dinâmica que se dava na avenida. Caminhantes transitando pelas
calçadas ou no meio da rua, ou agrupando-se em torno de alguma conversa, outros
conduzindo carros ou bicicletas, ao mesmo tempo carros e bicicletas acostadas no meio fio,
um cotidiano agitado, talvez um dos mais movimentados do dia a dia no povoado. Moradores
e visitantes que se combinavam em busca de vender ou comprar produtos e serviços que, na
maioria dos casos, não eram encontrados em outras paragens.
Chamo a atenção também sobre a ausência de animais nas ruas, como foi alvo de
comentários há 10 anos pelo Jornal do Brasil, de 21 de maio de 1975, em que cavalos eram
os principais meios de transporte (Figura 7). A imagem da (Figura 11) provoca, inicialmente,
439
As imagens na revista relacionadas a Porto Seguro e a Santa Cruz Cabrália dizem da preocupação que o autor
tem em relacionar Eunápolis ao lugar do ―Descobrimento do Brasil‖, ficando evidente a intencionalidade em sua
estratégia de usar fotografias de símbolos como o Cruzeiro da Primeira Missa de Coroa Vermelha, o Monte
Pascoal – este que, inclusive, aparece como capa da revista –, o marco do Descobrimento com o brasão real da
coroa portuguesa.
153
dois caminhos para a problematização da fotografia. A primeira nos faz refletir de forma
imediata, de que nessa temporalidade a utilização de animais de montaria fora reduzida ao
ponto de ser de difícil visibilidade nas ruas. Outra vereda aponta para a intencionalidade do
fotógrafo. Quem registrou o momento optou por mostrar uma dinâmica, um local e uma
temporalidade que exclui os animais e coloca em evidência os veículos mecânicos, buscando
mostrar a imagem de um povoado em pleno progresso, em que muares e equinos foram
substituídos pelos automóveis e bicicletas. Uma nova paisagem urbana.
Comungando com as demandas da oferta e da procura, estavam as placas nas portas
das casas comerciais e até pregadas em árvores dispostas em fileira no meio da avenida,
dizendo sobre a diversidade do mercado local. Prédios de mais de dois andares também
participavam na paisagem. Entre eles, merece destaque o prédio do Banco do Bradesco, à
esquerda do leitor, onde pessoas se aglomeravam na porta. Instalado no povoado desde 1967,
o Bradesco simboliza a economia eunapolitana funcionando a ―todo o vapor‖.
Segundo o PLANDEU, em finais da década de 1970, a Avenida Porto Seguro situava-
se na zona comercial mais importante de Eunápolis, dividindo essa área com a Avenida
Santos Dumont, a BR-101 e a Praça da Bandeira, todas elas situadas no Bairro do Centro.
Esta zona concentrava cerca de ―90% do uso comercial e de serviços, servindo à população
local, bem como às de regiões circunvizinhas, polarizadas por Eunápolis‖.440 Seu comércio era
diversificado, abrangendo desde produtos alimentícios, roupas, até estabelecimentos
especializados, como fornecimento de máquinas e implementos agrícolas.441
Ainda na década de 1970, na zona comercial a qual a Avenida Porto Seguro pertencia,
predominavam construções de alvenaria, com edificações verticais chegando a ter de 2 a 3
pavimentos.442 Em 1975, a avenida concentrava a maior quantidade de construções do Bairro
do Centro, sendo elas, em sua maioria, de tijolos, cerca de 153 imóveis, acompanhadas de 29
de taipa e 08 de madeira.443 Ela possuía ainda uma rede de esgotamento sanitário, estrutura
limitada e precária próxima à Praça da Bandeira, com aproximadamente 60 m de extensão,
mas, ainda assim, única no povoado.444
O jornal A Tarde, de 19 de dezembro de 1985, fez uma matéria em torno do projeto da
prefeitura de Santa Cruz Cabrália de asfaltar a Avenida Porto Seguro. A ação previa a ―grande
valorização da área‖, e o ―maior embelezamento do centro da cidade‖. No projeto, ―ao ser
440
PLANO DIRETOR URBANO DE EUNÁPOLIS. Proposições. Salvador, 1977. v. 2. p. 05. 441
Ibid. 442
Ibid. 443
SECRETARIA DO PLANEJAMENTO CIÊNCIA E TECNOLOGIA - SEPLANTEC. Projeto Eunápolis, 1ª
etapa, listagem dos imóveis. Salvador: 1975. 444
PLANO DIRETOR URBANO DE EUNÁPOLIS. Diagnóstico e metodologia. Salvador, 1977. v. 1. p. 107.
154
concluída a obra, a Avenida Porto Seguro receberá iluminação a vapor de mercúrio e a única
ressalva feita sobre a modernização recai sobre a retirada das árvores dos canteiros
centrais‖.445
Além de realizar transformações na estética como a manutenção da avenida, foram
também disciplinados os usos desse lugar. Pensando a dinâmica do movimento e do controle
sobre os que poderiam comercializar e como poderia ser exercida essa função em seus
espaços, o Código de Posturas Municipais de Santa Cruz Cabrália publicou o artigo 256º, que
proibia ―o estacionamento de vendedores ambulantes na avenida Porto Seguro‖446. Com a
implantação deste artigo, tanto limitaria a possibilidade dos ambulantes venderem seus
produtos na Avenida Porto Seguro, categorizando o comércio a lojistas e pessoas que
circulassem, como também a coloca no lugar do movimento, em que o trânsito de pessoas não
poderia ser obstruído por algum vendedor ambulante.
Espaços como a Praça da Bandeira, a Praça Frei Calixto e a Avenida Porto Seguro
foram alvo dos desejos de ―embelezamento‖, pelo poder público, por representarem o desejo
de projetar a cidade com a pujança de um grande centro desenvolvimentista regional. É
notória a preocupação com a manutenção dos espaços localizados no Bairro do Centro, onde
as praças e as avenidas consideradas como mais importantes enunciavam o progresso; bem
como, os espaços do Centro que não tivessem a estética pretendida para esse lugar foram
submetidos ao processo de urbanização, como no caso da ―Feira do fato‖ e da ―Favela do
fato‖.
Na outra ponta da construção discursiva, alguns espaços foram evidenciados pela
imprensa como representantes do atraso, da violência, da estética feia, dos marginais. Essas
representações funcionaram também como uma reivindicação para que o poder público
realizasse intervenções e os colocasse no lugar de progresso projetado para o povoado.
Cobrança que nem sempre era atendida. Espaços estes que também correspondem àqueles que
vieram em busca de melhores condições de vida, ou fugindo de perseguições por conta de
conflitos por posse de terras, mas que dificilmente encontraram o tão anunciado progresso.
445
PREFEITO quer asfalto no centro de Eunápolis. A Tarde, Salvador, p. 9, 19 dez. 1985. APBCEB. 446
LIVRO DE POSTURAS MUNICIPAIS DE SANTA CRUZ CABRÁLIA. Título I: Polícia de costumes e da
ordem pública. Capítulo I: Do funcionamento do comércio e da indústria. Sessão II: Do comércio ambulante,
1977. s/p.
155
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Entre os anos de 1970 e 1988, o povoado de Eunápolis foi projetado como um
importante polo econômico regional. Essa projeção se deu tanto discursivamente, a partir da
imprensa, quanto materialmente, através de remodelações na sua estrutura urbana e
ordenamento dos espaços e costumes dos seus habitantes. Assim, se constituiu como o
objetivo dessa dissertação analisar a produção discursiva sobre o progresso do povoado.
Procuramos problematizar as noções de desenvolvimento local e regional, buscando
compreender a dinâmica de transformações que tomou forma, envolvendo o que foi chamado
pela imprensa de ―maior povoado do mundo‖, dentro do contexto de modificações
socioeconômicas que se configuravam no Extremo Sul da Bahia.
O crescimento econômico do Extremo Sul da Bahia, ocorrido durante o século XX, foi
o principal motivador das transformações nas relações sociais e espaciais em praticamente
toda sua extensão. Os programas dos governos federal e estadual, que objetivaram promover o
desenvolvimento, voltaram-se para o benefício das grandes empresas e latifúndios, não
abarcando assim grande parte da população regional que se encontrava em contínuo
crescimento. Essas modificações fizeram surgir núcleos urbanos como o de Eunápolis,
povoado que buscou acompanhar o andamento do progresso pretendido para a região.
O crescimento de Eunápolis entre as décadas de 1970 e 1980 resultou das
modificações na estrutura produtiva do Extremo Sul da Bahia. A expansão do latifúndio
monocultor, a construção de estradas de rodagem, a instalação da indústria madeireira, o
aumento do fluxo turístico, foram elementos que fizeram parte do programa de integração
nacional idealizado pelos governos federal e estadual como necessários para o progresso de
uma região antes relegada ao atraso. Toda essa dinamização impulsionou uma reorganização
das populações urbanas e rurais, em que o êxodo rural, provocado pelo domínio de terras em
mãos de poucos, levou pequenos proprietários rurais, posseiros, indígenas e trabalhadores
rurais a migrarem para as cidades em busca de trabalho, moradia, saúde e educação.
Eunápolis foi um dos grandes receptores dessas populações. O povoado pertencente a
Porto Seguro e a Santa Cruz Cabrália até 1988, quando se emancipou, crescia mais que suas
sedes administrativas. Os enunciados de progresso constante do jovem povoado, que
circularam em diversos meios impressos, atraíram pessoas provenientes do próprio estado e
de outros, em busca do tão sonhado ―El Dourado‖ baiano. Indivíduos que, ao se instalarem no
local, estavam sujeitos a um contexto contraditório, onde o que era professado como
156
desenvolvimento não estava disponível para todos, principalmente àqueles que conseguiam
acumular pouco ou nenhum capital.
Os chegantes, formadores do núcleo urbano eunapolitano, utilizaram de materiais,
saberes e espaços disponíveis ao seu acesso na constituição dos espaços e nas maneiras de
praticá-los. Tais possibilidades construtivas deram formas, matizes e falas ao cotidiano do
povoado. Boa parte desses saberes, costumes e táticas de sobrevivência tiveram raízes na
origem rural de migrantes, que continuaram a exercer seis modos de vida na zona urbana.
Alguns desses elementos considerados como inapropriadas por organismos
pertencentes às municipalidades e ao governo estado, para uma urbe em pleno crescimento,
deveriam ser silenciadas, dando lugar a outro conjunto de dizibilidades e visibilidades a
conduzir as paragens eunapolitanas pelos caminhos do progresso. Concomitante a esses
elementos, somaram-se a situação institucional e fundiária, elencadas como impedimentos à
expansão de Eunápolis, como também de sua organização.
Para o ordenamento do povoado e para a melhor projeção de ações futuras foi criado
pelo governo da Bahia o Plano Diretor Urbano de Eunápolis de 1977 e no mesmo ano, foi
criado pelo município de Santa Cruz Cabrália o Código de Posturas Municipais de Santa Cruz
Cabrália. Esses dois instrumentos funcionaram como diretrizes para o reordenamento do
espaço e de seus usos pela população local, direcionando os hábitos e as práticas costumeiras
da população e a estética urbana, consideradas destoantes, para alinharem-se ao projeto de
urbe pretendido.
Somado ao conjunto de obras que foram realizadas no povoado, as expressões da vida
roceira que coabitavam com as novidades da urbanidade, foram combatidas pelos organismos
disciplinares do poder público, o que não quer dizer que deixaram de existir. Boa parte dessas
táticas sobreviveram ao longo dos anos pesquisados, principalmente por conta da estrutura
urbana precária do povoado bem como a fiscalização tiveram pouco efetiva nessas paragens.
Um grande percentual de elementos, que diziam da presença dos indivíduos de origem
roceira, foi apagado do cotidiano dos eunapolitanos, principalmente no tocante à presença
indígena. Esses últimos praticamente inexistentes nas narrativas dos documentos oficiais
consultados, situação resultante das investidas de apagamento da sua existência por agentes
locais, a nível regional, e por serem invisibilizados pelo Estado brasileiro.
Os jornais e revistas exerceram papel fundamental na condução de quais veredas
deveriam ser perseguidas pelas administrações municipais e pelos moradores do povoado para
concretização dos sonhos de progresso. Foram eles responsáveis pela produção discursiva de
157
acesso aos leitores dos tabloides a nível local, estadual e nacional, que difundiram as
representações formadoras de um imaginário sobre o povoado.
As representações que diziam de um povoado agigantado e que não cessava de
expandir-se, gerador de riquezas, dividiam espaços com outras, que difundiram a imagem de
um povoado violento e com uma estrutura urbana precária e descompensada. As primeiras
representações de progresso do local contribuíram para a atração de pessoas, que buscavam
traçar a mesma trajetória de sujeitos que chegaram a Eunápolis e conseguiram enriquecer, a
partir das histórias de sucesso e ostentação que circularam em periódicos de outras regiões.
Quanto ao segundo grupo de representações, as de violência, essas se ligaram
diretamente uso da pistolagem pelo mandonismo político e disputas por terras, além de outros
crimes como furto e roubo, desavenças por motivos diversos, entre outros. Problemas como o
desemprego, pouco acesso à saúde, educação e a baixa renda familiar foram fatores que
levaram a uma parcela da população marginalizada a realizar delitos. Episódios de
truculência, brutalidade, valentia e destreza, anunciados em jornais, criaram um cenário
próximo ao de filmes norte americanos de ―bang-bang‖, um verdadeiro ―Far West‖ no
Extremo Sul da Bahia.
Muitas dessas situações de violência divulgadas pela imprensa enquadravam
determinada parcela da população com marginal e alguns espaços urbanos praticados por
esses como atrasados. Sobre esses bairros e ruas pairava o fantasma do crime, elencando-os
como sendo de origem dos bandidos. Entre esses lugares tiveram destaque o Bairro do Pequi,
o Juca Rosa e a área do Córrego do Gravatá.
A outros bairros e ruas foi legada a noção de atraso, insalubridade, lugar onde a
miséria era presente, logo necessitados de intervenção como foi o caso das ruas 13 de Maio,
do Bueiro uma parcela da Rua D. Pedro II e da Rua Duque de Caxias, que emprestavam a
aparência feia ao Centro do povoado. Essas ruas foram colocadas como objeto de
remodelação e de transferência da população. Nesse sentido, as representações foram agentes
de impulsão para uma intervenção do poder público nesses espaços, com intuito de embelezá-
los para que prestassem uma aparência mais agradável aos transeuntes, principalmente por
estarem situados em localidades estratégicas do povoado como foi o caso do Bairro do
Centro, reduto de elites eunapolitanas.
As representações também foram importantes para a manutenção de espaços do Bairro
do Centro como enunciadores do progresso vivido por Eunápolis e das memórias relacionadas
a ele. Praças como a Frei Calixto e a da Bandeira, a Avenida Porto Seguro, tiveram uma
158
atenção especial, ao serem remodeladas e adornadas, com o objetivo de manterem-se belas,
com ―cartões-postais‖ do povoado de comércio pulsante, agricultura e indústria dinâmicas.
Além de disciplinar a população que ali se instalou, controlando suas atividades e
apagando os saberes e modos de fazer populares, as municipalidades também objetivaram
formatar seus espaços públicos a fim de moldar a paisagem eunapolitana. Essa moldagem foi
produzida tanto materialmente, com materiais modernos como o cimento, tijolos, ferro e
azulejos como também discursivamente através de notas e fotografias em jornais e revistas.
Alguns dos políticos locais foram hábeis em utilizar ambos os instrumentos de
formação das sensibilidades populares, usando-as a seu favor como instrumentos no jogo de
disputas por espaço na política local. Um deles foi Arnaldo Moura Guerrieri, prefeito de Santa
Cruz Cabrália na década de 1980. Ele usou do discurso sobre as obras realizadas em seu
governo para legitimar a atuação e possibilidades de permanência do seu grupo político,
desqualificando administrações anteriores como a de Alcides Lacerda, prefeito de Santa Cruz
Cabrália entre as décadas e 1970 e inicio da de 1980.
Ambos utilizaram das narrativas de condução do povoado nos rumos do
desenvolvimento, através de suas ações. Na consulta dos documentos percebemos uma maior
produção a favor de Guerrieri, o que pode ser explicado através da hipótese de que, durante o
seu mandato, ele era situação em relação ao governo da Bahia, enquanto Lacerda oposição.
Vale ressaltar também que não foi objetivado a atuação dos prefeitos, mas a produção
discursiva sobre suas gestões.
A produção discursiva estruturadora das representações sobre Eunápolis serviu de
instrumento para a disputa de poderes como também de validação das intervenções urbanas.
O povoado foi tomando contornos modernos, desroceirizados, estimulando a proliferação de
hábitos e arquiteturas ditos como citadinos que deveriam ser vistos em seu cotidiano. Essa
nova roupagem, fundamentada nos sonhos de progresso das municipalidades e apoiados pela
imprensa, pretendia moldar as sensibilidades eunapolitanas, engajadas com os ideais de
desenvolvimento vigente no período.
Esperamos que esta pesquisa seja mais uma contribuição historiográfica para a história
cultural urbana, servindo de auxilio a pesquisas que contemplem o estudo das cidades,
principalmente as localizadas no extremo sul da Bahia. Para além de uma leitura restrita ao
mundo acadêmico, esperamos também que esse estudo possa corresponder aos anseios
daqueles que buscam conhecer um pouco mais sobre a história de Eunápolis.
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