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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO MARANHÃO UEMA CENTRO DE EDUCAÇÃO CIÊNCIAS EXATAS E NATURAIS CECEN DEPARTAMNETO DE HISTÓRIA E GEOGRAFIA CURSO DE HISTÓRIA LICENCIATURA JOSENA NASCIMENTO LIMA RIBEIRO MESSIANISMO E PODER NO REINADO DE D. JOÃO I, DE PORTUGAL. SÃO LUÍS 2014

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO MARANHÃO – UEMA

CENTRO DE EDUCAÇÃO CIÊNCIAS EXATAS E NATURAIS – CECEN

DEPARTAMNETO DE HISTÓRIA E GEOGRAFIA

CURSO DE HISTÓRIA LICENCIATURA

JOSENA NASCIMENTO LIMA RIBEIRO

MESSIANISMO E PODER NO REINADO DE D. JOÃO I, DE PORTUGAL.

SÃO LUÍS

2014

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JOSENA NASCIMENTO LIMA RIBEIRO

MESSIANISMO E PODER NO REINADO DE D. JOÃO I, DE PORTUGAL.

Monografia apresentada ao Curso de História Licenciatura

da Universidade Estadual do Maranhão, para obtenção de

Grau em História Licenciatura.

Orientadora: Prof.ª Drª. Adriana Maria de Souza Zierer.

SÃO LUÍS

2014

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Ribeiro, Josena Nascimento Lima.

Messianismo e poder no Reinado de D. João I, de Portugal / Josena

Nascimento Lima Ribeiro. – São Luís, 2014.

90 f

Monografia (Graduação) – Curso de História, Universidade Estadual do

Maranhão, 2014

Orientadora: Profa. Dra. Adriana Maria de Souza Zierer

1.Messianismo. 2.Portugal. 3.Crônica de D. João I. I.Título

CDU: 94(469)

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JOSENA NASCIMENTO LIMA RIBEIRO

MESSIANISMO E PODER NO REINADO DE D. JOÃO I, DE PORTUGAL.

Aprovado em ____ / ____ / ____

BANCA EXAMINADORA

Profª Drª Adriana Maria de Souza Zierer

1º Examinador (a)

2º Examinador (a)

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AGRADECIMENTOS

A realização deste trabalho se deve a diversas pessoas no caminhar da minha

graduação no curso de História Licenciatura da Universidade Estadual do Maranhão. Espero

poder expressar aqui todos os mestres, familiares e guias que sempre foram os maiores

incentivadores e torcida.

À minha família, que entre farmacêuticos, empresários, administradores e jornalistas

viu desenvolver-se uma professora de História. Eles, durantes os períodos de dificuldades não

deixaram de acreditar em todo meu potencial. À minha mãe, pela garra, pelos conselhos em

dias difíceis e em situações de dúvidas sobre o futuro, tão incerto. À Lorena e Milena, minhas

irmãs e melhores amigas, pelo companheirismo, pelas risadas e por serem antes de tudo, meus

modelos com quem eu aprendo a cada dia. Ao meu pai, pela gestão de uma casa com quatro

mulheres. Por toda a proteção e financiamento sem reclamar quando comprava mais livros do

que conseguia ler.

Aos meus mestres da graduação, por fazerem parte da minha formação e educação.

Por terem me mostrado um mundo de conhecimentos, ideologias, teorias, opiniões e histórias

as quais eu não conhecia antes de adentrar o curso de História. Em especial à Prof. Dra.

Adriana Zierer, pelo incentivo com a bolsa de iniciação científica e o projeto que culminaram

nesta monografia. Pela orientação, pelas adoráveis reuniões e anos de pesquisa juntas. Tudo

que aprendi com ela não tenho como colocar aqui. Com certeza, levarei comigo todos os seus

ensinamentos.

Às amizades que a vida me deu e que espero nunca perder. Ricardo, que apesar da

ausência, sempre se faz presente com palavras de incentivo e puxando minhas orelhas.

Polyana, pelas pesquisas, leituras, viagens lado a lado. Por todos os debates, discussões e

conversas que só me tornaram uma pessoa melhor. A Ingrid, minha irmã de outra família,

pelas gargalhadas brincadeiras e amizade. Neste último ano nos aproximamos mais ainda e a

graduação seria mais triste sem você. Tenho todos com muito carinho.

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RESUMO

A sociedade feudal europeia construiu durante séculos, imagens messiânicas e escatológicas

relacionadas a figuras de destaque. Durante boa parte das tentativas de encontrar aquele que

seria o “salvador” em uma estrutura social repleta de contrastes, os reis foram os escolhidos

para carregarem os títulos de guardiões das máximas e preceitos cristãos. Assim, inferimos a

“Revolução de Avis”, momento crucial da história portuguesa e que dá início a uma nova

dinastia no reino. Esta, fundada pelo monarca D. João I, elaborou um forte discurso

legitimador a partir da literatura, festas públicas, teatro e especialmente com a contratação de

cronistas oficiais para escreverem a memória do reino português. Diante de tais aspectos,

nota-se em especial a Crônica de D. João I, – escrita pelo cronista Fernão Lopes – onde

expectativas messiânicas e escatológicas imbricam-se para o início dos chamados “novos

tempos”. O monarca D. João I torna-se, segundo o cronista, o “Mexias de Lisboa” e o

inaugurador da Sétima Idade no reino português. Eleito pela vontade divina e aclamação

popular, o novo rei teve como primeira tarefa a defesa de Portugal contra D. Juan de Castela,

representado na crônica como o “Anticristo”. Esta pesquisa intenciona construir o percurso do

rei a partir da análise das obras de Fernão Lopes e distinguir de que maneira o discurso

messiânico foi colocado em prática para a consolidação de uma “nova era” e para a produção

do passado português.

Palavras-chave: Crônica de D. João I. Messianismo. Portugal.

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ABSTRACT

The medieval European society constructed during centuries messianic and eschatological

images related to distinguish figures. During most part of these attempts of finding the

“savior” in a structure full of contrast, the kings were chosen to carry the titles of guardians

of Christians precepts and maxims. Thus, we infer the Avis Revolution, crucial moment of the

Portuguese history and that initiates a new dynasty on the realm. Founded by the monarch

John I, of Portugal, the dynasty elaborated a strong legitimizing discourse from literature,

public feast, theater and specially the hiring of official chroniclers to write the memory of the

Portuguese kingdom. It is specially noted the Chronicle of King John I, of Portugal, – written

by the chronicler Fernão Lopes – where messianic and eschatological expectations come

together for the beginning of a “new era”. The monarch John I becomes, according to the

chronicler, the “Lisbon’s Messiah” and inaugurator of the Seven Age on the Portuguese

realm. Elected by the divine will e popular acclamation, the new king had as his first task the

defense of Portugal against John I of Castile, represented in the chronicle as the “Antichrist”.

This research intends to build the route of the king from the analyses Fernão Lopes‟ work e to

distinguish how the messianic discourse was put to practice for the consolidation of a “new

era” and for the production of the Portuguese past.

Keywords: Chronicle of King John I, of Portugal. Messianism. Portugal.

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES E QUADROS

1 Imagem - D. João I (1385 - 1415). Autor desconhecido. Museu de Arte Antiga.

Lisboa ..............................................................................................................................

26

2 Imagem - Fernão Lopes no "Painel do Arcebispo", pertencente aos “Painéis de São

Vicente de Fora” de Nuno Gonçalves (séc. XV). Museu de Arte Antiga. Lisboa ..........

31

3 Imagem - Batalha de Aljubarrota segundo iluminura da Chronique de France et

d'Anglaterre, de Jean Wavrin (séc. XV). Museu Britânico. Londres

..........................................................................................................................................

60

4 Quadro - Bons x Maus Portugueses na Crónica de D. João I de Fernão Lopes ........... 73

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SUMÁRIO

Agradecimentos ............................................................................................................ 5

Resumo ......................................................................................................................... 6

Abstract ......................................................................................................................... 7

Lista de ilustrações e quadros ....................................................................................... 8

Introdução .....................................................................................................................

10

1 CAPÍTULO 1 - PORTUGAL NO CONTEXTO DOS SÉCULOS XIV E XV ...... 17

1. A Europa em meio à Baixa Idade Média .......................................................... 17

2. O reino português nos séculos XIV e XV ........................................................ 19

3. D. João I e a Revolução de Avis 23

4. Cronista régio, Guarda-mor da Torre do Tombo e Escrivão da Puridade:

Fernão Lopes ....................................................................................................

29

5. A Crónica de D. João I de Fernão Lopes e a historiografia ............................. 31

2 CAPÍTULO 2 – A IMAGEM DE D. JOÃO I SEGUNDO FERNÃO LOPES ...... 37

1. A imagem do Rei na Europa e em Portugal durante a Idade Média ................. 37

2. Messianismo e milenarismo: vias de interpretação .......................................... 41

2.1.A construção da imagem messiânica de D. João ............................................. 43

2.2.A dicotomia e a luta entre o Mexias de Lisboa e o Anticristo ........................

47

3 CAPÍTULO 3 - PODER, MEMÓRIA E CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE

PORTUGUESA NA CRÓNICA DE D. JOÃO I .......................................................

61

1. Portugal como destino: A Sétima Idade e o Evangelho Português .................. 61

2. Naturalidades em oposição: o azambujeiro bravo e a mansa oliveira

portuguesa .........................................................................................................

70

3. História e memória na Crónica de D. João I de Fernão Lopes ........................

79

Conclusão ..................................................................................................................... 83

Referências ................................................................................................................... 87

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INTRODUÇÃO

O objetivo deste trabalho é identificar a figura do rei D. João I, de Portugal, compreender

o seu percurso e discutir como foi colocada em prática toda uma construção de discursos

políticos em volta do mesmo. D. João foi o fundador da Dinastia de Avis e assumiu o trono

português com o movimento de 1383-1385, quando morre o último monarca da Dinastia de

Borgonha, D. Fernando, sem deixar herdeiros. Após a sua morte, conflitos bélicos foram

incentivados e engendrados para decidir quem seria o novo rei.

As lutas envolveram principalmente o rei de Castela, D. Juan I e D. João que havia sido

escolhido pela população de Lisboa como regedor e defensor do reino de 1383. O rei

castelhano achou-se no direito de invadir o reino vizinho por conta de um tratado assinado

entre as monaquias ibéricas de que a filha de D. Fernando, D. Beatriz deveria casar-se com D.

Juan. Seu primeiro herdeiro seria o rei português, dando continuedade à casa de Borgonha.

Porém, na altura da morte de D. Fernando, não havia ainda herdeiro algum e os castelhanos

invadem Portugal na intenção de proclamar seu trono à D. Beatriz.

O regedor e defensor de Portugal e posteriormente aclamado rei nas Cortes de Coimbra

em 1385 possuía uma mácula em sua história. Era filho de rei mas não era infante. D. João

nasceu de uma relação extra-conjugal de D. Pedro com uma dama natural da Galiza, Teresa

Lourenço; portanto era irmão bastardo de D. Fernando. Além disso, D. João era Mestre da

Ordem Militar de Avis desde os seus sete anos e por isso havia feito juramentos que o

impediam de um dia esposar-se.

A história e a memória de Portugal legaram-lhe então uma nova oportunidade e esta veio

por meio da escrita e da literatura. A escrita passou a exercer um papel mais essencial a partir

do fim da Idade Média quando os reis tornaram-se os seus maiores financiadores. D. Duarte,

filho de D. João e rei após sua morte em 1434, encomenda ao guarda-mor da Torre do Tombo

a escritura da história e grandes feitos dos reis portugueses. Fernão Lopes passou a executar a

função de cronista real e a receber uma tença anual de 14 mil reis pelo seu trabalho. Escreveu

três obras: Crónica de D. Pedro, Crónica de D. Fernando e Crónica de D. João I. A última

delas é alvo de nossa análise. Porém, não são as sequências de acontecimentos que mais nos

interessam nessa pesquisa e sim o discurso político permeado de características do sagrado

medieval colocado em prática por Lopes. O cronista construiu para o Mestre de Avis uma

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memória que intenciona esconder as suas carências de sangue. O legitimando por meio de

conotações messiânicas e milenaristas.

Logo, trabalhar com o reino português representa um grande avanço nas investigações

relacionadas ao cenário medieval. Já que durante muito tempo, por conta de influências de

escolas historigráficas advindas de países como Inglaterra e França, as pesquisas históricas

sobre a região ibérica foram deixadas de lado. Estudar o Portugal medievo significa antes de

tudo, entender os processos e estruturas que teriam levado à expansão marítima e à

colonização, que acabaram por deixar marcas e heranças em terras brasileiras.

O messianismo como legitimação política possui estruturas de longe duração. São

conhecidos os inúmeros momentos da nossa história nos quais a espera da população por um

salvador acabou determinando o aparecimento de líderes carismáticos, sejam eles religiosos

ou políticos. Segundo o historiador Carlos Roberto Figueiredo Nogueira

os recentes estudos têm demonstrado a fundamental importância do passado

português, que embora transformado pela Colônia, está presente em muitas das

nossas instituições e manifestações culturais. Ao descer nas terras brasileiras os

portugueses trouxeram consigo o peso da tradição medieval, presente nas estruturas

religiosas, na arte, na música, enfim, na cultura. Compreender o Brasil moderno

implica em conhecer o Portugal medieval. (NOGUEIRA, 2010, p.11.)

Manifestações de legitimação advindas daqueles que se encontram em altas camadas

hierárquicas sempre foram presentes na história, entretanto o que as difere são as suas bases e

suas formas de aplicação. No caso da fonte estuda, a Crônica de D. João I, (Primeira e

Segunda Parte) podemos observar um monarca que ao não possuir o chamado “carisma de

sangue” para assumir o trono português é envolvido em uma imagem que obviamente

procede do pensamento da época. Assim, D. João I, apesar de ser bastardo é aclamado rei e

funda uma nova dinastia em Portugal, a Dinastia de Avis.

Assim, devem ser conceituados e discutidos muitos dos termos que estão sendo utilizados.

Aqui parte-se da noção de legitimação de poder por meio de artifícios religiosos, utilizamos a

perspectivas de poder simbólico desenvolvidas por Pierre Bourdieu. O mesmo retifica que o

poder simbólico é uma espécie de “poder invisível” que somente possui validade a partir do

momento em que possa ser exercido com o comprometimento daqueles que são diretamente

influenciados por ele (BOURDIEU, 2012, p.7). Dessa forma, os sistemas políticos simbólicos

cumprem sua função de imposição ou legitimação quando aquele que lhe está sujeito crê em

sua existência (BOURDIEU, 2012, p.188).

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Em uma sociedade envolta de um poderio estatal-cristão como reino de Portugal durante a

Idade Média, esteve em voga a noção de que a preservação da história e dos grandes feitos

seria primordial para a formação de uma memória coletiva, ou de uma forma um pouco mais

sistemática – imaginação coletiva como aponta o historiador Peter Burke (BURKE, 1994,

p.13). O autor trabalha com o conceito de imaginação coletiva porque este denota algo que é

contemporâneo ao momento por ele pesquisado em seu livro A fabricação do rei (BURKE,

1994, p.13).

Usar o conceito de memória coletiva seja talvez cair no erro de expressar que esta

memória é una e permanece até os dias atuais. Em relação ao monarca trabalhado nesta

pesquisa atualmente existe em Portugal, duas espécies de “memória” relegadas ao monarca D.

João I. A primeira corresponde a uma noção de que tal monarca seria um exemplo de grande

governante e que teria levado Portugal aos grandes lucros e dádivas da Expansão Marítima. E

a segunda visão, que vem sendo construída pela historiografia sobre a “Revolução de Avis”; é

a discussão sobre a utilização do termo revolução e de que tal acontecimento não realmente

trouxe grandes mudanças.

Com relação à linha teórica da pesquisa é possível afirmar que este trabalho é tributário

do domínio da história do imaginário político. A pesquisa sobre um rei que se confirma no

poder através do messianismo trabalha com elementos do imáginário relacionado com questão

de matéria política. Logo, compartilhamos com Jean-Claude Schmitt quando este denota

imaginário como “um meio de comunicação dos homens entre si, com Deus e o invisível. É

uma realidade coletiva que consiste em narrativas míticas, ficções, imagens, compartilhadas

pelos atores sociais” (SCHMITT apud ZIERER, 2004, p.17).

Uma outra noção de imaginário que nos é muito válida é a construída por Cornelius

Castoriadis em sua obra A instituição imaginária da sociedade (1982), na qual o autor afirma

que o imaginário não pode ser encarado como algo estático e sem mudanças. O universo está

associado ao conjunto de conotações sociais e políticas que a todo o momento o inserem em

novas perspectivas e o ressignificam. Para Castoriadis “o imaginário é a “criação incessante e

essencialmente indeterminada de figuras/formas/imagens a partir das quais somente é

possível falar-se de “alguma coisa”. Aquilo que denominamos“realidade” e “racionalidade”

são seus produtos” (CASTORIADIS, 1982, p. 13). No caso de Portugal, a cultura messiânica

não é algo fixo e cristalizado durante todo o tempo em que pode ser observada. Ela altera-se

de acordo com as conjunturas e a necessidade de aprimoramento do discurso político.

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Neste trabalho tratamos da construção de imagens e discursos políticos através do

domínio da escrita, da literatura. Tal tipo de fonte, até pouco tempo, não era considerada

como fidedigna e, para o historiadores do século XIX, o uso de textos literários era uma

ameaça as bases da conquista de uma verdade em História. A mudança desse tipo de

concepção veio com a Escola dos Annales, que a partir do século XX, passou a intercalar o

uso desse tipo de documento com outros. Os franceses passaram a colocar em pauta a

História-problema que tentava apreender a complexidade das experiências dos homens no

tempo (FERREIRA, 2010, p. 63).

A literatura, sendo produto de seu tempo emite juízos de valor e conta-nos versões e

visões que são contemporâneas à sua época de produção. Por isso, a literatura é também uma

questão política. No caso dos monarcas medievais, em que os mesmo são apresentados como

a cabeça dos seus reinos, podemos perceber um imaginário que é muito característico da

sociedade da época dos medievos que percebiam o corpus social como um organismo

(BARROS, 2004, p. 104). O sistema político medieval deu ao rei uma faceta do sagrado e a

partir do mesmo o imaginário fez sua parte na intenção de construir e confirmar poderes, seja

em momentos de crises ou não.

Este trabalho também é tributário dos estudos políticos iniciados por Marc Bloch em Os

Reis Taumaturgos (1993). Ao conceber tal obra, Bloch analisou as manifestações do sagrado

para com o reis de França e Inglaterra, que possuíam raízes familiares em comum, do século

XII ao século XVIII. Em especial identifica o caso do “milagre de rei” em que os súditos

acreditavam que o toque do monarca possuía habilidades curativas das escrófulas. Na

tentativa de compreender o imaginário social que rodeava a figura dos reis na Idade Média e

Moderna, Bloch demonstra que o poder não deve ser compreendido somente pelas suas

estruturas governativas e verticais, mas também a partir daquilo que a história identificou

através dos séculos como irreal ou produto da mente. Bloch inaugura assim a perspectiva da

História das Mentalidades.

Apesar de que as pesquisas das gerações posteriores da Escola dos Annales tenham se

concentrado na investigações da mentalidade e do imaginário, Marc Bloch dá o pontapé

inicial para uma nova visão acerca das pesquisas da alçada da história política. Assim, os

estudos da Nova História Política – que nasceram da mudança de olhar sobre o que é poder –

hoje não estão mais interessados na construção de uma história ligada aos grandes

acontecimentos, mas sim em fenômenos coletivos, na qual o “poder” se revela em muitas

instâncias que não apenas nos meios de repressão estatal e de enfrentamento bélico.

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O estudos sobre o reino de Portugal infelizmente não são tão ricos quantos os que podem

se observar nos casos de Inglaterra e França. Pesquisadores tanto portugueses quanto

brasileiros dedicam-se a escrever a história do Portugal Medieval. Porém existe uma clara

diferença entre as temáticas escolhidas. Pesquisadores essencialmente portugueses, por conta

de um maior acesso à fonte, dedicam-se de forma mais intensa a escrita grandes manuais e

obras gerais à cerca da história de Portugal. Este é o caso de historiadores como A. H. De

Oliveira Marques (Portugal na Crise dos Séculos XIV e XV, 1987), José Mattoso e Armindo

de Sousa (História de Portugal: A monarquia feudal, 1997) e especialmente, António José

Saraiva (Crepúsculo da Idade Média em Portugal, 1988). Enquanto que os estudos brasileiros

concentram-se majoriatariamente na análise de obras literárias produzidas no Portugal

Medieval, como o estudo das crônicas régias, livros de linhagens, vassalos e chancelarias.

Uma geração mais nova de historiadores portugueses dedicam-se ao aprofundamento de

estudos específicos. Historiadoras como Manuela Mendonça e Maria Helena da Cruz Coelho

trabalham com estudo de figuras régias através de olhares diferenciados. A primeira citada

parte do princípio de gênero e estuda as rainhas que possuem grande repercussão nos estudos

sobre o Portugal medieval, como Dona Leonor Teles, Dona Filipa de Lencastre e Dona Mécia

Lopes de Haro. Já Maria Helena da Cruz Coelho é a mais notória historiadora nos estudos

sobre o monarca D. João I (D. João I: o que re-colheu Boa Memória, 2008).

Coleções organizadas por Manuela Mendonça e publicadas pela Academia Portuguesa de

História já contribuiram bastante para a discussão acerca da monarquia portuguesa. É o caso

da coleção História dos Reis de Portugal (2008) dividida em dois fascículos de acordo com as

dinastias presentes em Portugal. O primeiro Da fundação à perda de independência discute as

duas primeiras casas reais, Borgonha e Avis quanto o segundo Da Monarquia Dual à

implementação da República, fala exclusivamente da casa de Bragança.

Quanto aos estudos específicos sobre as crônicas de Fernão Lopes estes possuem grande

interesse e vastidão. Seus escritos deixaram-nos a história de diversas figuras e em especial,

os acontecimentos da Revolução Avis que culminaram no processo da Expansão Marítima

pioneira de Portugal. Assim, boa parte dos críticos, filólogos, literatos e historiadores que têm

se dedicado à análise da obra, são quase unanimes ao afirmar que o povo é um autêntico

personagem da história e denotam que esta caracterização populista do cronista advém de sua

origem modesta (BEIRANTE, 1984, p.7).

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Os mais notórios estudos sobre a escrita de Fernão Lopes são do historiador português

Luís de Sousa Rebelo. Em seu livro A concepção de poder em Fernão Lopes analisa os

mecanismos do discurso utilizado pelo Fernão Lopes. O autor português compreende a

organização do discurso e infere sobre a existência de três grandes planos que estariam

presentes nas obras de Fernão Lopes. Estes seriam o plano ético-político, o jurídico e o

providencial.

O primeiro arranja-se em uma concepção de que a prática do poder caminha do lado da

moralidade. A conexão com plano jurídico se faz presente porque a noção de bem comum e

de um rei justo caminharam lado a lado durante toda a Idade Média e início da Moderna. A

aura do plano providencial relaciona-se coma arte política medieval que traça modelos de

governante ideal. Monarcas, reis e imperadores eram os vigários de Deus, representantes

temporais do seu poder na terra.

A discussão acerca da produção historiográfica é aprofundada de forma mais completa no

decorrer dos capítulos. Logo, tomando por base as análises anteriormente já feitas, a

metodologia utilizada neste trabalho é baseada nas análises e conjecturas da Crônica de D.

João I, Primeira e Segunda Parte escrita pelo guarda-mor da Torre Tombo, Fernão Lopes no

século XV. A fonte encontra-se na Biblioteca Nacional de Portugal e no Arquivo Nacional da

Torre do Tombo e está disponível para a consulta online em três volumes. No caso da BNP a

crônica também está disponível para ser salva em computadores pessoais. A edição presente

em ambos os arquivos é do ano de 1644 e foi dedicada ao rei D. João IV de Portugal, monarca

da Dinastia bragantina e à sua corte.

A fonte desta pesquisa também pode ser encontrada através de versões publicadas. A

versão mais utilizada na intenção de um ter contato com um texto mais completo e em

português arcaico é a dos pesquisadores M. P. Lopes de Almeida e Magalhães Basto,

publicada nos dois volumes originais segundo o códice nº 352 do Arquivo Nacional da Torre

do Tombo. É esta que utilizamos em citações originais do documento no português

contemporâneo ao momento de escrita da crônica no século XV. Esta versão transcrita foi

publicada no ano de 1990 pela Livraria Civilização em Lisboa.

Dessa forma, pretende-se analisar a obra escrita no século XV e seu discurso para a

dinastia de Avis. Identificando as metáforas e alegorias criadas por Fernão Lopes para que a

escrita e a promoção da imagem monárquica se tornassem completas. O primeiro capítulo

encaixa o reino de Portugal na conjuntura presente em toda a Europa no período da Baixa

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Idade Média. Apresentamos os conflitos entre os reinos citados e discutimos a presença

crucial de nomes como o de Fernão Lopes e D. João I. Quem era o cronista, qual a sua

origem, qual a sua formação e como a historiografia interpreta e analisa as suas obras. O

mesmo fazermos para com a figura do monarca D. João; o que os escritos de Lopes relegaram

para a História e a memória do reino português e como o cronista inicia a apresentação das

caracterizações salvacionistas que atribuiu ao seu rei e suserano.

No segundo capítulo identificamos a partir da Crónica de D. João I de Fernão Lopes

como o discurso régio é colocado em prática através de sua escrita. Como o messianismo e a

propaganda embutida de teorias proféticas faz com que D. João deixasse de ser um bastardo,

desprivilegiado ao trono e passasse a ser o Messias de Lisboa que lutava contra o Anticristo,

apresentado na figura do rei de Castela D. Juan. Analisaremos de que maneira Lopes associa

ideias em vogas na época e história bíblicas ao caso de D. João I.

O principal problema deste trabalho é determinar se o momento o qual Portugal passou a

partir da Dinastia de Avis pode ser caracterizado como de nascimento de um sentimento

nacional, como muito já se apontou pela historiografia. Tal problema será discutido de forma

mais profunda a partir do terceiro capítulo, em que são colocadas em pauta também as noções

de memória e escrita da história para o homem medieval e em especial para o caso vivenciado

pelo reino português no final do século XIV e início do século XV.

A criação do mito político e a teologização do poder régio deu liberdade para que Fernão

Lopes envolvesse o primeiro monarca de Avis em uma aura de milagres e profecias. A

conclusão aponta que tais criações de aura religiosa não se findam no caso de rei D. João I. O

messianismo foi utilizado em Portugal em um processo de longa duração que também deixou

marcas em suas colônias, inclusive no Maranhão. Por fim, não pode ser deixado de lado que a

crônica de Lopes é antes de tudo uma obra encomendada. A Crónica de D. João I esconde

conflitos e interesses. Reflete sobre Dinastia de Avis somente aquilo que a mesma desejava

que fosse propagado.

Nesta pesquisa, o imaginário é apropriado pelo poder político. O caso do D. João I e dos

demais monarcas com atributos messiânicos em Portugal denota a história de uma crença

muito bem delineada e intercambiada ao universo político e social de sua época. O imaginário

messiânico atrelou-se à uma maneira própria da Idade Média que é a de entender a realeza

como uma instituição política que dialoga com os sentimentos do sagrado na Idade Média

(BARROS, 2012, p.44).

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CAPÍTULO 1

PORTUGAL NO CONTEXTO DOS SÉCULOS XIV E XV

1. A Europa em meio à Baixa Idade Média

A Baixa Idade Média europeia é longamente conhecida na historiografia como um

período de diversas recessões e penúrias. Historiadores como Phillipe Wolf (WOLF, 1988),

Guy Fourquin e Jêrome Baschet (BASCHET, 2006) já se esforçaram no sentido de entender

os acontecimentos dos séculos XIV e XV, quais seriam suas motivações, desdobramentos e

como interpretar um contexto de particularidades presentes em toda a Europa; na intenção de

evitar que a interpretação sobre o particular não se torne a do geral.

É possível constatar diversas expressões utilizadas na tentativa de caracterizar tais séculos

mencionados. Estagnação, recessão, crise, penúrias fazem parte do vocabulário presente nas

produções historiográficas sobre os séculos XIV e XV. Evitaremos aqui utilizar o termo

“crise” pela razão de que tal temporalidade também é permeada por vários augúrios que

deram os contemporâneos da época a percepção de que estariam vivenciando um novo

momento. Estes seriam o crescimento dos centros urbanos e feiras, progresso nos métodos de

transporte, propagação dos ideários humanistas, mudanças nas técnicas de cultivo agrícola e

de manufatura, aumento da influência das classes mercantis e dos letrados, expansão

marítima, maior centralização e burocratização dos Estados europeus e por consequência,

fortalecimento da figura régia (WOLF, 1988, p.82 -172).

Porém, os espíritos foram atingidos por eventos de escala continental e é importante

reconhecer que estes “fenômenos” possuem raízes em décadas anteriores. Fomes, penúrias,

conflitos bélicos e epidemias de peste atingiram as camadas da sociedade medieval de

maneira indiscriminada. Mudanças climáticas em torno da segunda metade do século XIV

(por volta de 1350) atingiram a Europa e causaram desequilíbrios no mundo rural e urbano

(WOLF, 1988, p.10). Como consequência de tais alterações, observou-se um quadro de

retração na produção agrícola, agravada pela falta de mão de obra gerada pela fome.

Concordamos com Jacques Le Goff quando o mesmo aponta que “a organização insuficiente

das monarquias e das cidades, as deficiências dos transportes de víveres e de armazenagem

agravaram, ou, em todo caso, não permitiram lutar eficazmente contra as consequências da

grande fome” (LE GOFF, 2010, p. 222).

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A falta de mão de obra foi consequência ainda das ondas de peste bulbônica e peste

pulmonar que adentraram o território europeu por meio de navios vindos da região da Ásia

Central (WOLF, 1988, p. 15). Dessa forma, a peste, que possuía origem e tratamento pouco

conhecido para os homens do seu tempo, levou o nível de falecimentos às estimativas que

indicam que 2/3 (dois terços, 67%) da população pereceu. Além da privação de esforços

humanos no trabalho agrícola, a mesma ainda elevou as tensões entre as classes. Os mais

abastados apontavam os pobres e os judeus como os responsáveis pela rápida disseminação da

doença e os mesmos acusavam os ricos e nobres de só agirem em benefício de si mesmos,

sem deter atenção à situação desprivilegiada às populações do Terceiro Estado.

Segundo o pesquisador Michel Postan, é possível situar no século XI um surto

demográfico que levou a produção agrícola a fazer maiores esforços no intuito de alimentar as

novas bocas que surgiam e que não acompanhavam os augúrios do crescimento urbano. Dessa

forma, é uma população mal nutrida que é atingida com as alterações climáticas e pestes dos

finais do século XIV. Muitos camponeses saíram de suas terras em busca de melhores

condições nos centros urbanos. Há menos pessoas para serem alimentadas, mas há também

menos braços para o cultivo. Em linhas gerais, a recessão é vítima de si mesma, funciona em

cadeia (POSTAN apud WOLF, 1988, p. 56).

A Baixa Idade Média, período convulsionado que a Europa vivenciava, explicitou-se

também por meio do Cisma do Ocidente (1378–1417). Este representou uma ruptura que

ocorreu na Igreja Católica e instantaneamente deu ao homem medieval a noção de que o

Apocalipse estava próximo. A existência de dois papas, um em Roma (Itália) e outro em

Avignon (França), ambos reclamando para si o poder do Papado, fez com que os reinos

europeus se dividissem entre as políticas religiosas de cada uma das regiões citadas.

O problema dos conflitos bélicos em que as monarquias se envolviam com vistas à

legitimação do poder face aos demais reinos também trouxeram efeitos. A Guerra dos Cem

Anos opôs os reinos de França e Inglaterra e envolveu também as demais monarquias no

conflito de tendências peninsulares. A coroa francesa encontrava-se vaga e por mais de um

século e os soberanos ingleses acharam-se no direito de assumi-la por conta de relações

consanguíneas entre as duas casas régias, a dos Valois e os Plantagenetas (BASCHET, 2006,

p. 250). Tal guerra também envolveu países vizinhos como Castela e Portugal. O último é

objeto de nossa análise; sendo assim importante explanar a situação do reino português face

às penúrias do fim da Baixa Idade Média.

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2. O reino português nos séculos XIV e XV

Diversos pesquisadores (COELHO, SARAIVA, MATTOSO) são categóricos em afirmar

que nunca houve no reino português tanto sincronismo em relação à situação encontrada na

Europa. E antes de adentrar a fonte aqui trabalhada, a Crónica de D. João I de Fernão Lopes,

é importante apontar o contexto no qual a mesma estava inserida. Portugal, reino pertencente

à região da Península Ibérica, será igualmente atingido pelos ânimos presentes no mundo

ocidental conhecido até então. A Peste Negra chegou aos reinos de Portugal e Castela ao

mesmo tempo por terra, através dos Pirineus e por mar, em embarcações vindas da região da

Itália (WOLF, 1988, p.15). Não há muita certeza em relação ao número de mortos, mas

estima-se que o reino lusitano obteve o mesmo número de baixas observadas no continente.

Os resultados foram notados principalmente a partir de sua população em êxodo rural e que

avolumava as principais regiões citadinas de Portugal, como Lisboa, Porto, Coimbra, Braga e

Évora (MARQUES,1996, p. 100).

As ondas migratórias revelaram a falta de mão de obra no reino de Portugal e deflagraram

especialmente os fogos-mortos, regiões que passaram a ser semidesertas ou improdutivas em

diversas propriedades agrícolas. O número também diminuto para a mão de obra urbana, já

com poucas ofertas de emprego e intensos reajustes econômicos, deixou em situação

desfavorável aqueles que buscavam novas oportunidades nos centros urbanos. Muitos dos

migrantes não estavam suficientemente preparados para as necessidades demandadas pelo

comércio e pelo artesanato, o que os levou à condição de miséria.

A insuficiência de alimentos e a baixa produtividade tornaram-se preocupação geral.

Segundo Oliveira Marques, “as principais razões para a constante escassez devem antes

buscar-se numa falta de ajustamento duradouro entre a produção e o consumo, e num

sistema anacrônico de distribuição geográfica e social que já não correspondia às grandes

mudanças sentidas por todo o país” (MARQUES,1996, p.103). É importante destacar que a

pequena produção cerealífera foi ainda acompanhada por um aumento dos preços das

mercadorias agrícolas.

Diante de tais aspectos, é quase impossível negar que a instabilidade social econômica

implicou desordens, tumultos e gritos por justiça. A historiografia portuguesa aponta que as

“uniões” – associações populares de defesa – manifestaram-se nos principais centros urbanos

do reino como Lisboa, Santarém, Alenquer, Leiria, Tomar e Abrantes. Por todo o reino,

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eclodiram tumultos e pequenas revoltas em que aderiram principalmente peões, pequenos

proprietários, mesteirais, mercadores e inclusive cavaleiros vilãos (MARQUES, 1987, p.

516).

Segundo Maria Helena da Cruz Coelho “esta ambiência de revolta social tinha, na

verdade, uma dimensão europeia como resposta à crise geral vivida desde meados do século

XIV, mas que mais fundo tocava camponeses, mesteirais e marginais, que se uniam em

movimentos coletivos de protesto e destruição” (COELHO, 2008, p. 38). As tentativas e

arranjos que intencionavam a melhoria da população também estavam refletidos na vida

cortesã e na monarquia.

Esta pesquisa perpassa o momento crucial do fim da Dinastia de Borgonha e início da

Avisina. Assim, devemos apresentar os aspectos pelos quais as mesmas se inseriam, pois as

decisões e atitudes tomadas pelos monarcas D. Pedro e em especial, D. Fernando, agravaram

a situação presente em Portugal.

A memória e a história contemporânea de tais monarcas nos foram legadas pelas obras de

Fernão Lopes, que passa a exercer, além da função de guarda-mor da Torre do Tombo, a de

cronista oficial do reino de Portugal, com a atuação na casa de Avis. Uma carta régia de 1434

do reinado de D. Duarte (1433-1438) denuncia a tarefa do cronista de escrever as crônicas dos

antigos reis de Portugal e dos feitos de D. João I. Lopes assim receberia por seu trabalho uma

tença anual de 14.000 réis. Comprovadamente, de sua autoria, estão as obras Crónica de D.

Pedro, Crónica de D. Fernando e a Crónica de D. João I. A última é objeto de investigação

desta monografia.

A trilogia de crônicas escritas por Lopes arranja-se de forma a legitimar o rei que o

nobilitou e que foi o fundador de uma nova dinastia em Portugal, D. João I. Segundo Maria

Helena da Cruz Coelho, a trilogia de Fernão Lopes ao iniciar-se pela

Crónica de D. Pedro que é uma exaltação do pai do futuro rei D. João I,

demonstra um monarca que soube aplicar a justiça e manter a paz, enquanto

a Crónica de D. Fernando apresenta a condenação desse meio-irmão e da

mulher, os agentes que, por diversos meios, teriam conduzido ao perigar da

realeza portuguesa. Depois, na Crónica de D. João I, biografando um

monarca em que o carisma de sangue tinha carências, mais relevante se

tornava evidenciar o carisma de poder. O cronista apelou então, para

corroborar a legitimidade do poder do Mestre, ao acumular de sinais

prodigiosos e uma retórica messiânica e providencialista que o indigitavam

como rei, tanto por Deus como pelo povo (COELHO, 2008, p.335).

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Diante de tais aspectos, o reinado de D. Pedro I, por conta das dificuldades enfrentadas

pelos seus sucessores, recebeu dos seus historiadores e biógrafos um papel de relevo na

história portuguesa. A. H. de Oliveira Marques apresenta o seu reinado como dez anos de paz

contínua ente 1357 e 1367. Apresentou-se como um rei bastante preocupado com a sua função

e a execução da justiça régia (MARQUES, 1996, p. 113). Rodeou-se de bons conselheiros,

manteve boas relações com Castela e conseguiu manter a paz em seu reino apesar das

dificuldades externas (MARQUES, 1987, p. 509). Uma de suas principais medidas foi o

Beneplácito Régio, que proibiu a publicação bulas papais no reino sem a sua autorização; e a

“nacionalização” das ordens monástico-militares com a delegação do mestrado da Ordem de

Avis a seu filho bastardo, D. João.

D. Fernando é filho legítimo e sucessor de D. Pedro, porém o seu reinado não possuiu as

mesmas boas caracterizações do que o do seu pai e rei. Seus dezesseis anos de reinado (1367-

1383) ficaram conhecidos na historiografia portuguesa pela sua incapacidade de dar paz,

segurança e estabilidade para as populações de Portugal. O último rei da Dinastia de

Borgonha favoreceu os nobres com a criação de exuberantes senhorios e com a multiplicação

de títulos nobiliárquicos. Agiu como um monarca que exerceu as prerrogativas do mundo

senhorial. Realizou políticas e adentrou em conflitos levando o seu reino paras os conflitos

presentes na época através de suas “decisões e caprichos” (MARQUES, 1987, p. 510).

Favoreceu principalmente uma família nobiliárquica em ascensão, os Teles de Meneses,

através do seu casamento com D. Leonor Teles. Esta era uma moça de origem castelhana que

levou o seu partido aos conselhos do rei por meio da política matrimonial. Assim, todas as

decisões do rei D. Fernando, encaradas como desmedidas pela população, eram interpretadas

como advindas dos maus conselhos e interesses desta nobreza latifundiária. Por consequência,

a rainha não foi bem vista pelos naturais de Portugal. São espalhados rumores de sua postura,

comportamento e inclusive de sua fidelidade conjugal para com seu rei e esposo.

O cronista Fernão Lopes vai assim demonstrar em sua escrita tais aflições vivenciadas

pelas populações. Segundo o cronista, Leonor Teles de Meneses “foi molher mui inteira e de

coraçom cavalleiroso, buscador de maravilhosas artes, por firmeza de seu estado” (CDJ, I,

cap. XV, p. 36). Ainda, “maa molher aleivosa” e “comprida de toda malldade”, (CDJ, I, cap.

XVII, p. 39) vingativa e dissimuladora. Deu a D. Fernando somente uma herdeira, D. Beatriz,

que posteriormente casou-se com o rei de Castela D. Juan I, através do Tratado de Salvaterra

dos Magos e não deixou descendentes. Tal fato abriu a possibilidade para que uma nova

dinastia assumisse o poder, o que foi feito pela dinastia de Avis.

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Durante seu reinado, D. Fernando debateu-se com crises internas de maus anos agrícolas

em 1371 e 1372. A situação foi agravada com as sequelas das epidemias de 1348 e 1361,

prolongadas em 1374. Este fato ocasionou um considerável decréscimo demográfico, que

acabou levando a uma queda na produção agrícola e êxodo rural. Deste modo, nos centros

urbanos avolumaram-se os problemas de abastecimento e o aumento do número dos

descredenciados e excluídos sociais, entre pobres, velhos, doentes e mendigos.

Ainda, atingido pela Guerra dos Cem Anos, D. Fernando adentrou em um conflito

peninsular e europeu para defender os seus interesses de livre trânsito e comércio do Atlântico

(COELHO, 2010, p. 447-449). Esta desfavorável situação política e militar era ainda agravada

pelo Grande Cisma do Ocidente. O reino português alterou sua política de acordo com seus

interesses bélicos e apoiou alternadamente tanto o papa de Avignon quanto o de Roma.

Porém, produções historiográficas mais recentes procuram revisar os atos do governo de

D. Fernando, como é o caso de Armindo de Sousa e José Mattoso no livro História de

Portugal: A monarquia feudal (1997). Em seu texto, os atores apresentam que o reinado de D.

Fernando foi muitíssimo influenciado e até prejudicado pelas conjunturas presentes na

Europa. Mas que se não fossem as mesmas, seu governo teria um saldo muito positivo. Seus

bons atos de governação e administração caracterizam um latente interesse por causas

presentes em todo o reino e também importantes para a monarquia (MATTOSO; SOUSA,

1997, p. 413-414).

Entre os mesmos estão o amuralhamento de cidades e vilas como Lisboa, Évora, Porto,

Coimbra, Santarém, Braga; novas leis e reforma da administração pública contra os abusos

senhoriais; Lei das Sesmarias, leis protetoras dos mercados do reino, leis reguladoras dos

privilégios jurisdicionais da nobreza; fundação da Companhia das Naus e entre outras

realizações que ficaram marcadas nas documentações de Chancelaria e Cortes (MATTOSO;

SOUSA, 1997, p. 413).

Entretanto, após a morte da figura monárquica de D. Fernando em 1383, dá-se início aos

conflitos bélicos da “Revolução de Avis” e das disputas pelo trono da monarquia portuguesa.

De um lado, encontrava-se o rei de Castela, D. Juan I, que achava-se no direito de assumir o

trono português – por razões de sucessão e por motivos que implicavam a soberania de

Castela sobre Portugal em acordos de suserania e vassalagem. De outro lado, em outra

configuração partidária, encontrava-se D. Leonor que havia se tornado regente do reino após a

morte do seu marido, D. Fernando.

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Neste entremeio, existia uma terceira figura não esperada, que reclamou também para si a

coroa do reino de Portugal. Este era D. João, Mestre da Ordem de Avis – irmão bastardo de

D. Fernando – que se colocou entre estes dois grupos, lutou pelo poder e tornou-se regedor de

Portugal em 1383 e posteriormente rei em 1385, inaugurando assim uma nova dinastia, a

Dinastia de Avis.

Porém, a figura do D. João, Mestre de Avis não se apresentava como a predileta ao trono.

Em um primeiro momento pela própria existência de outros descendentes que possuíam uma

ascendência muito mais direta e legítima ao monarca D. Pedro, a presença de D. João no trono

e no Castelo de Lisboa foi ameaçada. D. Pedro, de sua relação com Inês de Castro, teve quatro

filhos, sendo somente dois eram herdeiros masculinos. Um terceiro D. João, irmão também de

D. Fernando era quem seria o primeiro escolhido na linha de sucessão, seguido de D. Dinis.

Com a explosão dos conflitos, ambos foram retirados da corrida ao trono. O primeiro foi

preso pelo rei de Castela desde o momento em que se levantaram algumas dificuldades ao

reconhecimento da sua autoridade em Portugal. O segundo, D. Dinis, fugiu para o reino

vizinho e morreu na cidade de Salamanca. Um dos principais argumentos que teria impedido

a ascensão de um dos irmãos citados ao poder seria a própria ilegitimidade do casamento de

D. Pedro com Inês de Castro. O mestre de Avis assume o trono por apresentar-se como

defensor do reino em nome do outro D. João, infante de Portugal (MATTOSO, 1987, p. 291).

3. D. João I e a Revolução de Avis

D. João, posteriormente D. João I, fundador da Dinastia de Avis, nasceu em Lisboa em

1357 por meio de uma relação extraconjugal do rei D. Pedro com Dona Teresa Lourenço,

moça natural da Galiza. Era um bastardo e sua educação foi entregue a homens letrados do

reino. Primeiramente ficou nos cuidados de Lourenço Martins, com que o futuro rei passou

sua infância; e em um segundo momento D. João teve seu cuidado relegado à D. Nuno Freire

de Andrade, mestre da Ordem de Cristo e chanceler de D. Fernando. Infelizmente, pouco se

sabe sobre estes dois primeiros homens que cuidaram do futuro rei.

À idade de sete anos, D. João foi armado cavaleiro e Mestre da Ordem de Avis, por seu

pai D. Pedro. Segundo Fernão Lopes, D. Nuno teria ido ao encontro do monarca e o

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aconselhado de maneira a entregar o mestrado para o filho ilegítimo. Conta-nos Fernão Lopes

que o rei cingiu-lhe a espada, beijou-lhe os lábios e deu-lhe a benção para que Deus o

abençoasse de “tanta honra em feitos de cavalaria quanto dera a seus avós” (CDP, 1997, p.

53). Ainda o mesmo teria acrescentado para o Mestre ao dizer

- Tenha este moço isto por agora, porque sei que mais alto há-de montar, se

este é o meu filho João de que a mim me falaram algumas vezes, embora eu

preferisse que fosse o infante D. João, meu filho, pois me disseram que eu

tenho um filho João que há-de montar muito alto, e pelo qual o reino de

Portugal há-de ganhar muita honra. [...] Porque eu sonhava uma noite o mais

estranho sonho que vós vistes: a mim me parecia, dormindo, que via

Portugal a arder em fogo, parecendo o Reino todo uma fogueira; e estando

assim assustado com esta visão, vinha este meu filho João como uma vara na

mão, e com ela apagava aquele fogo todo (CDP, 1997, p. 53).

Por este fragmento, já pode ser observado que D. João é apresentado com características

providenciais desde a sua infância, já que segundo a passagem, o reino de Portugal atingiria

muita honra com suas ações e ele apagaria uma fogueira no reino de Portugal (perigos que o

reino enfrentaria). A sua investidura em tais aspectos foi utilizada principalmente para

fortalecer sua imagem de cavaleiro e líder militar. Ainda, o cronista recorreu à mesma para

legitimar a sua figura de monarca soberano em Portugal e fundador da Dinastia de Avis.

Nascida esta, era necessário que se criassem elementos que garantissem a perpetuação do

poder nas mãos do primeiro monarca de Avis e seus herdeiros, já que este não possuía aquilo

explicitado por Luís Rebelo por carisma de sangue, por ser de origem bastarda.

Ainda, D. João era mestre da Ordem Militar de Avis e por isto, havia feito juramentos que

o asseguravam à vida de cavaleiro e que o impediam do matrimônio. Assim possuía somente

aquilo que é caracterizado por Rebelo como carisma de poder. D. João, porém se apossa da

coroa após a morte de seu irmão D. Fernando já o antigo rei não possuía herdeiros masculinos

diretos. Rebelo aponta que

paralelamente ao carisma de sangue, se encontra o problema do carisma do

poder, que afecta o sentido da Ordem e da Hierarquia no imaginário social

do homem medieval. E sempre que se dá o caso de o detentor desse carisma

na linha sucessória o perder, põe-se o problema de identificar a

personalidade que está destinada e que tem capacidade para o receber. [...] E

notamos, que, no pensamento do círculo de Avis, a ideia do carisma do

poder com os seus mecanismos transmissores está nitidamente ancorada na

Teoria da Grande Cadeia do Ser, que justifica o sentido de toda a arquitetura

social ao reivindicar para ela um modelo de ordem cósmica e de origem

divina. Mas, em qualquer caso de legitimação electiva em que o carisma de

sangue sofra carência, maior importância assume o carisma do poder, que

poderá encontrar-se até em homens de humilde condição (REBELO, 1983,

p. 19-20).

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Deste modo, passa a ser construído em sua volta aquilo que é discutido pela historiadora

Vânia Leite Fróes por “discurso do paço”, também presente em toda a Dinastia de Avis. O

discurso intencionado e propagado pela nova dinastia, além da legitimação régia, objetivava

promover o rei a um soberano verdadeiro no reino português. E o rei como legítimo seria

assim capaz de combinar todos os segmentos sociais, justamente por estar acima deles,

formando um reino reconhecido por todos os habitantes e que apresentaria aspectos de uma

“nação portuguesa” (FRÓES apud COSER, 2007, p.708-709).

Porém, na literatura, sendo aquilo que mais nos interessa, o "discurso do Paço" ocorreu

como um

movimento de expansão da produção, reprodução e organização de livros no

século XV. [...] Os príncipes de Avis empenharam-se pessoalmente na

produção desse discurso. D. João escreve o Livro da Montaria, manual que

se dedicava a ensinar como reconhecer os rastros de animais (recorrendo

inclusive a ilustrações), quais as melhores armas e vestimentas para a caça e

quais as relações adequadas entre os grandes senhores que lideravam as

caçadas e seus subalternos (COSER, 2007, p. 709) .

É importante notar que a historiografia portuguesa em seus estudos específicos sobre a

Dinastia de Avis, salienta os escritos sobre o caráter legitimador dos soberanos e da literatura

técnica. Mas ainda são necessárias mais análises sobre a construção da imagem do rei como

um modelo a ser seguido. Os monarcas, nas crônicas régias encomendadas, são apresentados

como condutores à religião e aos modos de comportamento e virtudes nos quais os habitantes

do reino deveriam espelhar-se. O rei e a família que o rodeia, são utilizados como exemplos a

serem copiados por todos os súditos do reino, desde o mais nobre ao representante da arraia-

miúda. Tornando-se assim o seu maior exemplo.

Entretanto, existem outros pontos importantes de serem notados antes de sua eleição como

rei de Portugal. Após a sua investidura como cavaleiro e Mestre da Ordem de Avis, D. João

passa a frequentar a corte régia do seu irmão D. Fernando e tornou-se bem próximo deste e

dos demais infantes. Após a morte de tal monarca em 1383, as cláusulas de casamento do

Tratado de Salvaterra dos Magos defendiam que na ausência de um herdeiro masculino, a

sucessão passaria para a única filha de D. Fernando, D. Beatriz. Esta havia casado com o rei

de Castela, D. Juan I e ainda não possuíam filhos. As cláusulas passaram então a beneficiar D.

Leonor Teles, que assume a regência do reino de Portugal e tinha como missão manter os

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reinos permanentemente separados até que o um novo herdeiro e por consequência, futuro

monarca de Portugal nascesse.

Ambições políticas impediram que os pontos do tratado fossem respeitados. D. Juan de

Castela invade Portugal e intenciona tomar o poder e declará-lo à sua mulher, D. Beatriz. Do

lado português, a impopularidade de D. Leonor Teles e os boatos que rodeavam a mesma

levaram as populações a não aceitarem de bom grado a sua regência e clamarem por uma

nova solução. Esta se apresentou por meio de D. João, filho bastardo, entretanto, descrito na

crônica como somente filho de rei.

Figura 1 - D. João I (1385 - 1415). Autor desconhecido.

D. Leonor Teles, de acordo com a escrita de Fernão Lopes, era amplamente odiada pelo

povo português. Em sua imagem estava projetada todos os erros do reinado fernandino. Sua

honra ainda foi ameaçada, segundo o cronista, por conta da frequente importância e

predileção da rainha para com a figura de um cavaleiro específico, João Fernandes de

Andeiro, o conde de Ourém. A sua “preferência” pelo conde e a forte presença do mesmo na

corte representou uma das suas maiores afrontas ao monarca em vida e ainda depois de morto.

Os feitos do Mestre de Avis iniciam-se com o episódio da morte do conde, planejada entre

alguns homens honrados da corte (COELHO, 2008, p.43).

Lopes aponta que D. Fernando via “os muitos modos per que a Rainha mostrava

desordenada afeiçom e bem querença ao Comde Joham Fernamdez” (CDJ, I, cap.III p.7) e

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que pediu a seu escrivão que “fezesse huua carta pera o Meestre dAviz seu irmaão, em que

lhe mandava e emcomendava que vista aquella carta, tevesse jeito de matar o Comde” (CDJ,

I, cap.III p.8). Todavia, a morte do mesmo não foi concretizada. A crônica trata de diversas

outras tentativas mal sucedidas de dar fim à vida de João Fernandes, todas malogradas (CDJ,

caps. I, II, III e IV, p. 4-11).

É quando os homens com cargos governativos na cidade unem-se para dar azo que o feito

é sucedido. Segundo Maria Helena Coelho, pesquisadora portuguesa, “eliminar João

Fernandes Andeiro seria, mais profundamente, dar um decisivo golpe na alta nobreza e nas

ambições sociopolíticas que ele e outros alimentavam e sustentavam junto da rainha, visando

manter o seu poder graças a uma forte aliança com Castela” (COELHO, 2008, p. 43-44).

Álvaro Pais, que havia sido oficial de justiça e do desembargo, segundo Lopes “homem

homrrado de boa fazemda, e que for Chamçeller moor delRei dom Pedro e depois delRei dom

Fernando” (CDJ, I, cap. V, p. 11), conversa com o Mestre sobre uma nova intenção de

assassinar o Conde Andeiro, João Fernandes, amante da rainha regente aleivosa. Em honra do

seu falecido irmão e rei e contra as maldades realizadas por Leonor Teles, D. João concorda

com o feito.

O nobre fidalgo de origem da Galiza e que cultivava intenções políticas com o partido de

Castela, foi assassinado por D. João e por outros de sua confiança (CDJ, I, cap. IX, p. 22). No

momento do confronto, é notada, segundo a visão construída pelo cronista, a primeira vez em

que a cidade de Lisboa demonstra a sua predileção pelo Mestre de Avis. Álvaro Pais

prometeu-lhe em conversa a ajuda do povo caso o Mestre fosse a favor do que se intencionava

ser feito. Segundo Lopes, o antigo chanceler afirma que “sse o ell fazer quisesse, que elle lhe

oferecia a çidade em sua ajuda” (CDJ, I, cap. VI, p. 14). Isso só poderia ser feito por homem

que possuía uma grande popularidade em meio às classes urbanas. E, assim, Lisboa responde

o chamado do seu Mestre.

Segundo conta a Crónica de D. João I, um pajem correu a cidade com a notícia de que era

D. João quem estava sendo assassinado. “As gemtes que esto ouviam, sahiam aa rrua veer

que cousa era; e começando de fallar huus com os outros, alvoraçavomsse nas voomtades, e

começavõ de tomar armas cada huu com melhor e mais asinha podia” (CDJ, I, cap. XI, p.

24). As populações da cidade correram aos paços do castelo em socorro. Ao descobrirem que

quem estava morto era o conde, Fernão Lopes aponta que muitos começaram a se reclamar do

porque “nom matou logo a rainha alleivosa com elle” (CDJ, I, cap. XI, p. 26).

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Porém, já que aqui trabalhamos com um período de Portugal conhecido “Revolução de

Avis” é importante adentrar a discussão ao redor de tal acontecimento histórico. Uma grande

parte dos historiadores defende a Revolução de 1383 como uma “revolução burguesa”, a

primeira de todas na Europa. António Borges Coelho (1965) defende a Revolução da

ascensão da nova dinastia como um movimento impulsionado e financiado pelo altos

mercadores de Lisboa. Ao mesmo tempo atenta que apesar do fato de que burguesia dirigiu a

revolução, a importancia da presença popular não pode ser diminuída.

Produções historiográficas menos recentes construiram a noção dos acontecimentos entre

1383-1385 como de uma revolução burguesa. D. João I, monarca que assume o trono neste

momento ficou marcado na história como uma figura heroica e que teria salvado Portugal da

perda de independência para os castelhanos e da pobreza em que se encontrava. O discurso

dinástico foi forte, entretanto, historiadores portugueses e brasileiros passaram a rever o

reinado de D. João I como um momento em que a vida dos portugueses não foi fácil.

Segundo Armindo de Sousa e José Mattoso, até 1411 – durante o reinado de D. João I - o

país viveu em guerra; a inflação monetária antigiu níveis que nunca foram igualados em

nenhum outro governo até hoje; as queixas contra os privilegiados recrudesceram e por fim, a

grande carga de impostos que era exigida da população – extremamente censurada e

qualificada pelos habitantes de Portugal como “roubo” – aumentou (SOUZA; MATTOSO,

1997, p. 415-419). Apesar de já haver um pequeno início da descaracterização do reinado de

D. João I como de um governo “sem falhas”, não existem estudos aprofundados que

descontruam a noção de “revolução burguesa”.

É por este motivo que António José Saraiva aponta que

deve-se notar que quase tudo o que sabemos sobre a chamada revolução de

1383-1385 o sabemos por Fernão Lopes, pois dela nos ficaram poucos

documentos „autênticos‟. Foi Fernão Lopes quem lhe deu o caráter de

cataclismo social,o carácter „revolucionário‟ que seduz os historiadores

modernos (SARAIVA, 1998, p. 178).

Além dessa concepção de Saraiva, que justifica boa parte das posteriores interpretações

sobre a Revolução de 1383-1385, Maria Helena Coelho, ao trabalhar com a memória sobre D.

João I, denota que existe uma boa imagem do primeiro monarca avisino ao afirmar que o “Rei

da Boa Fortuna, de Boa Memória, Pai dos Portugueses, será a memória luminosa que,

ultrapassando negros ou sombras, colheu em vida, e re-colheu para além do seu tempo, o rei

que mais longamente se sentou em um trono em Portugal” (COELHO, 2008, p. 395).

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A historiografia portuguesa também o julgou por meio dos acontecimentos e de suas

ações. Poucos são os estudos de viés biográfico que intencionam entender quem foi a figura

do Mestre de Avis. Sua imagem foi retomada e reinterpretada por meio dos interesses que

cada época via em ressaltar com intenção de aproveitamento político. No momento da

Restauração foi resgatada sua imagem de mitificação e glória por meio do epíteto de Rei da

Boa Memória, garantindo à dinastia de Bragança uma nobre origem na família de Avis, já que

tais casas reais são descendentes por via colateral. Aproximadamente trezentos anos depois,

com o Estado Novo, os intelectuais da república e do Integralismo lusitano estiveram mais

interessados em resgatar a figura do comandante militar de D. João I, o cavaleiro Nun‟Álvares

Pereira. Pessoa que incorporou ares de herói e a quem o primeiro monarca de Avis deve o

trono (COELHO, 2008, p.13).

Em contrapartida, todas as imagens construídas sobre D. João I possuem a marca e a

influência dos escritos de Fernão Lopes. O cronista fortaleceu a imagem do monarca, em seu

retrato físico e moral, a partir do discurso régio e legitimador. As demais documentações são

escassas e a narrativa lopesiana nos trouxe passo a passo o desenrolar dos acontecimentos

entre 1383 e 1385. Deve-se ter em conta, porém, que todo discurso revela o seu

contradiscurso. Lopes esconde conflitos de interesse, razões e principalmente a origem

bastarda do monarca. Ler e aprofundar-se nas obras do cronista é compreender Lisboa e sua

arraia-miúda, cidadãos, mercadores, os homens de poder, nobreza guerreira e sobre o corpo de

legistas que fizeram de D. João rei. Por este motivo, cabe agora finalmente adentrar a figura

de Fernão Lopes. Suas origens, suas funções e sua escrita.

4. Cronista régio, Guarda-mor da Torre do Tombo e Escrivão da Puridade: Fernão

Lopes

Os séculos XIV e XV demonstram uma relativa tendência para a laicização da cultura no

Ocidente, incluindo-se o reino português. Passou-se a valorizar a importância dos letrados,

inserindo-os em serviços do Estado, em áreas dos corpos consultivos, Cortes, Conselhos e até

mesmo presentes nos ramos da administração judicial, fiscal, senhorial e local. Tal fato

tornou-se possível a partir da institucionalização do saber escrito em Portugal, com a

concessão de privilégios, mercês e isenções de impostos aos locais de produção de

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conhecimento e estudo, como Universidade e o Estudo Geral1. Os centros religiosos deixaram

de serem os únicos preocupados com a conservação e transmissão dos conhecimentos. Assim,

a Universidade além das escolas catedrais, monásticas e conventuais passou a contribuir com

a formação do número de letrados e do incentivo do saber escrito no reino (FRANÇA, 2006,

p. 16-20).

A escrita da história, nesse sentido, também ganhou forte impulso no final da Idade Média

quando o poder real passou a ser seu principal patrocinador. No caso dos “ajuntadores de

histórias” (FRANÇA, 2006, p. 13) – como os cronistas se apresentavam – a escrita tornou-se

uma preciosa arma de defesa ou de ataque. A necessidade de escrita sobre os reis portugueses,

e por consequência, de Portugal, deflagrou a intenção de propagação dos grandes feitos dos

reis e da nobre origem do povo português, este sendo declarado como escolhido por Deus.

Antes de tudo buscava-se a legitimação; colocar no papel os feitos dignos de memória e

lembrança.

Porém, apesar da grande importância dada pela historiografia para o cronista Fernão

Lopes, pouco se sabe de sua vida. O autor da fonte a qual é utilizada neste trabalho nasceu por

volta dos anos 1380 e 1390, o que significa dizer que chegou a vida no momento que a

“Revolução de Avis” tomava a cena política, social e economica em Portugal. Desconhece-se

quando e onde nasceu mas sua caminhada passa a ser marcada quando em 1418, substituiu

Gonçalo Gonçalves como guardador das escrituras do Tombo. É provável que, por assumir

cargo tão alto, antes já desempenhava funções nas secretarias régias como escrivão de livros e

por isso, teria conseguido a proteção de altas figuras da Casa Real (MONTEIRO, 1988, p.72).

Entretanto, Fernão Lopes é antes de tudo um homem de origem humilde e que adquiriu

conhecimentos frequentando pelo menos alguma escola conventual, ou a escola catedral de

Lisboa (MONTEIRO, 1988, p.74). Não há registros de que tenha levado a cabo os seus

estudos e que por isso, frequentado a universidade. No que diz respeito à sua vida pessoal,

sabe-se que uniu-se em matrimônio com uma mulher de família de mesteirais, Mor Lourenço

e que teve um filho de nome Martinho que estudou medicina e se tornou físico real. Foi

também escrivão da puridade2 – do infante D. Fernando (filho de D. João I) e recebeu “carta

1 Segundo Susani Lemos França, o Estudo Geral designava a escola propriamente dita, o local onde eram

ensinadas e cultivadas as ciências universais. (FRANÇA, 2006, p. 20) 2 Cargo de início criador para facilitar os despachos régios nas questões mais íntimas. Posteriormente se ocupará

também dos assuntos de Estado. (FRANÇA, 2006, p. 28) Segundo apontam as pesquisas em crônicas régias, o

escrivão da puridade gozava da intimidade dos monarcas. (FRANÇA, 2006, p. 40)

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de nobreza” em 1434, pois a partir deste momento passa a intitular-se de “vassalo de el-rei”

(SARAIVA, 1998, p. 167).

Uma carta régia de 19 de Março 1434, durante reinado de D. Duarte (1433-1438), deflagra

a tarefa do cronista de escrever as crônicas dos antigos reis de Portugal e dos feitos de D. João

I. Lopes assim receberia por seu trabalho uma tença anual de 14.000 réis. Porém, parece claro

afirmar que o seu trabalho é anterior a tal datação, já que a Crónica de 1419 que conta a

história dos setes primeros reis portugueses e cuja autoria é atribuida a tal cronista real, já

estava escrita no ano de 1434. Em 1450, é afastado de seu cargo e o cronista Gomes Eanes de

Zurara assume seu posto, empreendendo a conclusão da terceira parte da Crónica de D. João

I, já iniciada por Lopes (MONTEIRO, 1988, p.72).

Figura 2 - Fernão Lopes no "Painel do Arcebispo", pertencente aos “Painéis de São

Vicente de Fora” de Nuno Gonçalves (séc. XV).

5. A Crónica de D. João I de Fernão Lopes e a historiografia

Segundo Michel Zink, filólogo francês, assim como na Idade Média, a literatura narrativa

em forma de prosa, em todas as civilizações, é inteiramente voltada para o passado. Por uma

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noção de história já perceptível à época aqui tratada, a ambição da escrita e da cópia de

diversos livros antigos é de conservar a memória e os conhecimentos sobre esse passado.

Preservar para que os homens a devir conhecessem a história dos grandes feitos de seus

antepassados. E para que assim, pudessem se legitimar em vida (ZINK, 2002, p. 46).

O final da Idade Média, os séculos XIV e XV, assiste ao desenvolvimento de novas

condições de mecenato. Principalmente a partir do aumento do número de letrados e da

institucionalização do ensino, já brevemente aqui discutidas. As cortes de diversos reinos

passaram a demandar a escrita em função dos centros em que a mesma se desenvolve.

Escrever em prosa sobre uma corte e seu monarca era prestar-se à expressão das mais altas

verdades. Para os medievos, a prosa é um discurso em linha reta, demonstra a expressão mais

fiel do pensamento. É nesse sentido que é utilizada a crônica medieval (ZINK, 2002, p. 91).

Antes de discutir sobre a Crónica de D. João I, fonte documental aqui analisada, é

importante destacar a noção de crônica, presente na Idade Média que norteia este estudo.

Partimos do mesmo conceito construído por Marcella Lopes Guimarães. Esta explicita que

a crônica histórica tardo-medieval é uma realização discursiva narrativa,

construída a partir de presssupostos de uma tradição literária cristã, retomada

e recriada por seus cultores, com intenção de verdade, ainda que incorpore

elementos ficcionais que servem a essa verdade. Ela foi geral ou particular,

construída à volta de um reinado ou individualidade, para legitimar seus

promotores e servir de modelo para a sociedade política (GUIMARÃES,

2012, p.70).

Assim, é importante destacar que intencionalidade na escrita de Fernão Lopes é antes de

tudo política. O caso da Crónica de D. João I é o de um rei e seus herdeiros que precisavam

validar e fortalecer seu poder que havia sido conseguido por meio das armas e nascido na

ilegitimidade. Ainda, a escrita da crônica e dos feitos do monarca serve ao intuito de legitimar

não só a figura régia, mas também todos aqueles que haviam subido ao poder juntamente com

ele. De uma nova classe de nobres que havia conseguido seus títulos por meio da batalha.

Segundo os escrito de Lopes, o tempo de D. João I, foi em que

se levamtou outro mumdo novo, e nova geeraçõm que compre dizer, per seu

boom serviço e trabalho, neste tempo forom feitos cavalleiros, chamamdosse

logo de novas linhagees e apellidos. Outros se apegarom aas amtiigas

fidallguias, de que já nom era memória, de guise que per dignidades e

homrras e offiçios do rreino em que os este Senhor seemdo Meestre, e

depois que foi Rei, pos, montaram tamto ao deamte, que seus deçendentes

oje em dia se chamam doões, e som theudos em gram comta (CDJ, I, cap.

CLXII, p.350).

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No que diz respeito às fontes utilizadas por Lopes, pouco pode ser afirmado pois a

documentação que hoje que se tem sobre o reinado de D. João I é praticamente inexistente

(COELHO, 2008, p.10). Existem somente as crônicas escritas por Fernão Lopes, Gomes

Eanes Zurara e Rui de Pina (cronistas posteriores a Fernão Lopes) e os livros de Chancelaria.

Porém, é certo afirmar que no tempo de escrita de Fernão Lopes a documentação era muito

mais abundante e que pelo cargo que ocupava pôde ter acesso a uma gama maior de fontes.

Dispôs de documentos como outras crônicas já escritas entre estas a Cronica do Condestabre

e as crônicas castelhanas de Pero López de Ayala. Ainda há indícios de uma outra crônica

latina escrita por Dr. Christoforus que conta a história do reinado de D. João I e um livro de

guerras escrito pelo grande fidalgo Martim Afonso de Melo, ambos hoje perdidos.

Ainda, Fernão Lopes escreveu sobre o rei D. João I, seu senhor e suserano, de acordo com

sua própria inteligibilidade agregada de informações retiradas de diversos testemunhos e

relatos orais. Por possuir cargo de tabelião, sua caminhada pessoal exigia-lhe que a

apresentação dos fatos estivesse livre de falsidades, expondo as várias versões que a história

poderia ter. Porém, é correto afirmar que as crônicas escritas por Lopes apresentam-se como

um elogio à figura monárquica e que sua própria necessidade de existência revela o seu

contra-discurso ou seja, a relativa fragilidade do período inicial da Dinastia de Avis

(COELHO, 2008, p.333-334).

A crônica de Fernão Lopes aqui analisada é dividida em duas partes. A primeira parte

relata os feitos do Mestre de Avis até a ascensão à rei, demonstrando sua vida num quadro

coletivo de vitórias em batalhas e de suas ações, sempre demonstradas plenas de profecias e

predestinações. Já a segunda parte, descreve posteriores lutas entre Portugal e o reino de

Castela, apresentando os cercos, os conflitos bélicos e os atos de heróis como Nuno Álvares

Pereira.

A história escrita inicia-se imediatamente após o momento da morte de D. Fernando.

Conta a morte do Conde Andeiro, aqui já citado e a posterior fuga da rainha D. Leonor Teles

para Santarém. Tal fato acarretou a afirmação de D. João como regedor do reino (1383) e

posteriormente como rei (1385). A sua caminhada em direção ao trono foi facilitada por

meios dos conflitos bélicos os quais Portugal travava contra Castela. O primeiro destes foi a

Batalha de Atoleiros (6 de abril de 1384) seguida do Cerco de Lisboa (1384) em que as forças

castelhanas foram derrotadas pela primeira vez apesar de que o exército de origem portuguesa

estava em número menor.

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No que diz respeito a Atoleiros, do lado português, nenhuma perda humana foi registrada,

fato que contribuiu para a conotação de que as forças de Portugal estavam sendo apoiadas

pela Providência Divina. O resultado dos combates estava diretamente associado, no discurso

do cronista, ao Juízo de Deus. Razão pela qual a vitória portuguesa representou a confirmação

das características messiânicas do Mestre de Avis e de sua posição como aquele escolhido por

Deus para governar o reino de Portugal.

Já o Cerco de Lisboa, por meio dos escritos do cronista Fernão Lopes, demonstra a

interferência divina no conflito. O cerco durou quatro meses e por isso a população minguava

pão e água. Os mesmos estavam sendo colocados à prova para serem expiados de seus

pecados e assim se tornassem “verdadeiros portugueses” e favoráveis à causa de D. João.

Assim, vários foram os milagres relatados por Fernão Lopes para confirmar a vitória da causa

de Avis. Entre estes estão a aparição de homens com vestes brancas de anjos ao exército

português e uma chuva de cera que cai do céu. Em seguida uma peste enviada pelos céus

atinge somente ao exército castelhano. Mesmo os portugueses que haviam sido feitos de

cativos e estavam em contato com os enfermos não caíam doentes. O cerco só é levantado

após a esposa do monarca D. Juan de Castela, D. Beatriz também ser atingida pela peste.

Em um segundo momento, a vitória definitiva das forças portuguesas para com as do

reino de Castela está representada na Batalha de Aljubarrota (1385), que parece ser a

confirmação divina da aprovação de Deus as ações de D. João I. Os inimigos vizinhos haviam

perdido a guerra por serem maus cristãos, cruéis e também covardes, pois infligiam os

acordos e termos do Tratado de Salvaterra dos Magos, fato que tornava a causa castelhana

injusta. Ainda segundo Lopes, o juízo de Deus havia sido feito, confirmando a predestinação

divina de D. João I.

Porém, cabe aqui o questionamento: para quem, que leitores, estas crônicas eram

escritas? Segundo a nossa concepção, o alvo imediato destas obras era antes de tudo, aqueles

que possuíam acesso à leitura e à escrita em tal momento. Estas deveriam ser lidas pela

nobreza dos Quatrocentos, que não aceitava bem a noção de uma realeza de direito nascida de

uma revolução. Porém, o intuito pedagógico e moralizador de tais crônicas não se restringiam

somente a classe dos aristocratas. A partir dos escritos sobre os reis podia-se divulgar um

conjunto normativo de costumes que deveriam ser levados como exemplos a serem seguidos.

Tem que se ter em vista que as obras e suas histórias ultrapassavam o mundo da nobreza,

eram lidas ao público em geral para que assim o passado e a crença no mesmo pudesse lhe dar

caráter legitimatório.

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Neste sentido, boa parte dos críticos, filólogos, literatos e historiadores que têm se

dedicado à análise da obra, são quase unanimes ao afirmar que o povo é um autêntico

personagem da história e denotam que esta caracterização populista do cronista advém de sua

origem modesta (BEIRANTE, 1984, p.7). Um exemplo de tais pesquisadores é o própro

Aubrey F. G. Bell, importante lusófilo que deixou grandes contribuições acerca da

interpretação da literatura portuguesa. Em seu livro Fernão Lopes, de 1943, o mesmo chega a

afirmar que “o povo é verdadeiro protagonista da sua história” e até que a sua obra é

“escrita para o povo” (BELL, 1943, p.64).

Antonio José Saraiva segue na esteira de Bell e denota que “ a existência do povo como

sujeito da história, do povo que se vê senhor da terra onde nasce, vive trabalha e morre e que

ganha consciência coletiva contra os que querem senhoreá-lo, do povo que é fonte última de

direito, é a grande realidade que ressalta das crônicas de Fernão Lopes” (SARAIVA, 1998,

p. 182). Chega a afirmar ainda que a verdadeira alma da “Revolução de Avis” são os miúdos,

que constituíram a força armada inicial que apoiou o Mestre. Esta coletividade cria um novo

direito - o do “amor da terra” ou o que chama Lopes de “mundanall afeiçom” - defendido com

armas na mão.

Maria Ângela Beirante, que se propôs a fazer um estudo das estruturas sociais presentes

na escrita de Fernão Lopes a partir da hierquia social apresentada pelo mesmo afirma que o

povo não é o sujeto da história das crônicas. Somente está presente na medida em que é

responsável por um levante favorável a causa de Avis e a resistência contra os castelhanos.

Segundo Beirante, povo em Fernão Lopes nem sempre é sinonimo de terceiro estado. De

acordo com essa noção, “não é em nome dos vilãos que ele deixa a sua acção registrada nas

crónicas, mas em nome da adesão e fidelidade à causa de um senhor que é também seu”

(BEIRANTE, 1984, p.98).

Outros pesquisadores, pensando a maneira de escrita de Fernão Lopes já deixaram

diversas opiniões e marcas. João Gouveia Monteiro, historiador português e professor da

Universidade de Coimbra afirma que a escrita do cronista é quase sempre orientada e

direciona o leitor à criação de uma expectativa que só se satifaz com a leitura completa do

texto. Ainda denota que o procedimento de Lopes assemelha-se a uma “estratégia fílmica”,

como se o cronista deslocasse uma câmera de acordo com a composição da história

(MONTEIRO, 1988, p.110-111).

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Maria Amparo Torres Maleval, historiadora brasileira, em sua obra Fernão Lopes e a

retórica medieval publicada no ano de 2010 afirma que “o mérito do escritor reside na

manipulação exemplar das novas técnicas da arte narrativa, a serviço da persuasão do

leitor-ouvinte e da manutenção da unidade da obra” (MALEVAL, 2010, p.65). Dessa forma,

segundo a pesquisadora, Fernão Lopes teria usado em sua escrita técnicas de discurso da

retórica medieval a fim de convencer os seus leitores.

Este primeiro capítulo teve o objetivo de discutir e apresentar o contexto histórico de

escrita da fonte analisada, tanto em noções macro europeias como naquilo que foi de mais

específico; o reino de Portugal na crise política, econômica e social dos séculos XVI e XV.

Toda obra reflete noções, ideologias, comportamentos e costumes que eram próprias da

sociedade à qual estava circunscrita. Cabe aos historiadores os permearem e tentar encaixá-los

em seus tempos. Passaremos agora mais a fundo à análise do mito político e das noções

messiânicas e proféticas construídas em volta de D. João I.

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CAPÍTULO 2

A IMAGEM DE D. JOÃO I SEGUNDO FERNÃO LOPES

1. A imagem do Rei na Europa e em Portugal durante a Idade Média

Na Europa medieval existe uma unidade na forma de governar que é característica comum

em todos os reinos. Estamos aqui falando da monarquia, uma estrutura fundamental de poder

que norteou a organização dos reinos da Idade Média, suas leis, fronteiras e governantes. O

reino único e assim, soberano no período da Baixa Idade Média, aqui constantemente

delineado, encontra-se a frente de uma estrutura governativa sacralizada que o rei se esforça

para absorver.

Jacques Le Goff, ao observar tais conotações, concluiu que na Idade Média europeia “a

esfera política é uma província do sagrado” (LE GOFF, 2010, p. 202). A imagem do rei

medieval é constantemente associada com a de Jesus Cristo e dos reis do Antigo Testamento.

Ele é ao mesmo tempo o governante por direito divino e um grande sacerdote. Deve guiar

seus súditos ao caminho da salvação. A representação em Cristo faz com que os monarcas

possuam ainda dois grandes ideais predominantes em seu reino: a paz e a justiça.

Por assumir tão alta função, o rei assumiu obrigações em face de Deus. É defensor da fé

cristã e do seu povo, rei de tudo e de todos. Porém possui também limitações, deve ser

muitíssimo respeitoso à Igreja, pois depende dela. O poder régio está abaixo da influência do

papado. O monarca reina somente o espaço a ele delegado; enquanto que o Papa é soberano

em toda cristandade. Quanto aos nobres, não deve ser deixado de lado o fato de que o rei é

ligado aos mesmos em relações de dependência, suserania e vassalagem. O rei é um homem

de origem nobre, deve respeitar os privilégios daqueles que estão ao seu redor.

Muito já foi discutido de que o poder do monarca e dos nobres são incongruentes. Não

andam lado a lado. A política de conferir condados, castelos e feudos como recompensa a

serviços prestados e a hereditariedade destes territórios teria dado fôlego à força da nobreza

que constantemente estaria intencionando suplantar e enfraquecer o poder real, tornando-o

demasiadamente vulnerável. Os estudos da Nova História Política descartam essa noção.

Denotam que o rei feudal conseguiu efetivar as suas alianças e seu poderio dentro do sistema

em que estava inserido, não a despeito dele. (LE GOFF, 2010, p. 203)

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Entretanto, o que já foi dito até este momento leva-nos ao questionamento: de onde vem o

poder dos reis? A partir do que ele se legitima e torna-se real? A sucessão é hereditária, passa

de pai para filho. Porém, existem os casos que não fazem parte dessa regra e que serão

expostos a seguir.

O poder monárquico, na maioria dos casos observados, apoia-se na cerimônia de unção

régia descrita pelos livros de Antigo Testamento. Segundo Marc Bloch, um bispo “unge esses

novos Davids, em diversos pontos dos seus corpos, com um óleo bento: gesto cujo sentido

universal, na liturgia católica, é o de fazer passar um homem ou um objeto da categoria de

profano à de sagrado” (BLOCH, 1987, p. 447). Entretanto, deve ser levado em consideração

que este ritual não transformava o rei em um clérigo. Contudo, ele não era somente um leigo;

era um ser ambíguo porque representava o rei e o reino ao mesmo tempo. O monarca era

considerado um novo homem. Era um homem sagrado e desafiar o seu poder, desrespeitar-lhe

significava questionar o poder de Deus na Terra.

Com o passar dos tempos, o ritual de unção régia associou-se com o de coroação. Por este

motivo, para as massas, o caráter sagrado não se traduzia em uma noção de que o rei tornava-

se agora uma espécie de clérigo. Em torno da monarquia, passa a ser elaborado todo um

conjunto de lendas e simbologias. A aura maravilhosa que rodeava as personagens

monárquicas deu-lhes respaldo e legitimação. Houve dinastias que associaram suas ações e

linhagens a personagens da Bíblia, a grandes guerreiros e até mesmo a seres fantásticos e

diabólicos.

O caso dos reinos ibéricos destoa um pouco da cena dos demais reinos europeus durante o

período da Idade Média. Os monarcas eram considerados ungidos diretamente por Deus em

Castela e era mais comum a aclamação dos governantes no caso português. Dessa forma,

Marcelo Caetano explicita que

os reis portugueses não eram coroados nem há notícias de terem possuído ou

usado coroa. O único atributo régio patente nas cerimônias de aclamação de

um novo monarca era o ceptro colocado na sua mão enquanto se desfraldava

o pendão real e se proclamava em altos brandos o nome do novo soberano.

Como cerimônia essencial da aclamação, muito elaborada ao longo do

século XV, revela-se o juramento de fidelidade e a prestação de menagem

por parte dos representantes dos três estados (CAETANO apud

MARQUES,1987, p.286-287).

Os exemplos de Portugal e Castela são ímpares, mas não perdem o seu caráter sagrado.

Outro caso diferenciado em Portugal era o de eleição régia. Esta acontecia por meio da

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ausência de um herdeiro de direito e legítimo e em reunião de Cortes. Marc Bloch aponta

também que esta opção encontrou seus defensores entre os clérigos. Os mesmo criticavam

que com as grandes esperanças salvacionistas atribuídas as monarquias acreditava-se na

“vocação hereditária, não de um indivíduo, mas uma de linhagem, única considerada capaz

de produzir chefes eficazes.” (BLOCH, 1987, p. 451).

Da mesma forma, o rei ibérico assume funções e simbologias assim como os casos de

França, Inglaterra, já citados na Introdução deste trabalho. Segundo Adriana Zierer,

dentre os atributos dos reis ibéricos, esperava-se ainda que fossem

virtuosíssimos, possuindo em si a sabedoria, entendimento, fortaleza,

piedade, temor de Deus para melhor aplicação da justiça. Em síntese, o rei

ibérico deveria combater os vícios e possuir idealmente todas as virtudes, as

teologais (fé, esperança e caridade) e as cardeais (justiça, prudência,

fortaleza e temperança). Além disso, os monarcas também deveriam ser

cristianíssimos, defendendo a fé cristã e auxiliando a propagá-la, sendo ainda

diretamente responsáveis pela salvação de seus súditos (ZIERER, 2007, p.

359).

Margarida Garcez Ventura, ao trabalhar com o oficio de rei no Portugal medieval, denota

que a realeza “possui uma função em prol do bem comum, baseada num pacto tácito entre os

reis e seus súditos, do qual resultam fortes laços birrelacionais” (VENTURA, 2010, p, 127)

entre os mesmos. No caso dos reis ibéricos, o monarca recebe o governo do reino diretamente

de Deus, é o seu vigário. A historiadora portuguesa aponta ainda que a justiça é a virtude

característica dos reis, Estes deveriam sempre agir e pensar visando o bem estar de todos. O

poder régio se definia através da relação direta com todos os demais poderes do reino

(VENTURA, 2010, p. 126-129).

No caso específico da criação de expectativas messiânicas e milenaristas atribuídas aos

reis do Portugal medieval, estas durante muito tempo exerceram influência em sua história.

Tal reino destacou-se como um espaço favorável à divulgação de correntes escatológicas por

conta do peso de tradições herdadas da presença concomitante de cristãos, judeus e

muçulmanos em seu território (COELHO, 2008, p. 69). Tais correntes se inserem em um

processo de longa duração que advém com a primeira vitória portuguesa sobre os mouros na

Batalha de Ourique em 1139.

Afonso Henriques, conhecido pelos mouros como El-Bortukali (“O português”) e Ibn-

Arrik (“filho de Henrique”) tornou-se o primeiro rei de Portugal e fundador da Dinastia

Afonsina ou de Borgonha. Assim, foi criada em volta de tal monarca uma analogia

relacionada com milagres proféticos. Segundo as crônicas régias escritas – estas

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encomendadas pela Dinastia de Avis – sobre tal figura histórica, o caráter milagroso da

batalha está presente na aparição de Jesus Cristo ao rei cavaleiro, lhe garantindo a vitória

sobre o inimigo mouro e assim, a unificação do reino de Portugal (MENDONÇA, 2010,

p.22).

Um dos demais exemplos notados é o de D. Sebastião, que na tentativa de revivar os

feitos realizados por Afonso Henriques acaba iniciando um novo movimento cruzadístico em

pleno século XVI. Por consequência, desaparece na Batalha de Alcácer-Quibir e em volta do

mesmo são construídas as expectativas profético-messiânicas de seu retorno. Após sua morte,

o reino português perde a sua independência e assim dá-se início ao período conhecido como

União Ibérica (1580-1640).

Por meio da transmissão de culturas e crenças com a expansão ultramarina realizada pela

monarquia portuguesa, existe no Maranhão um caso de extrema expressão e que tem atraído a

atenção de diversos estudiosos da temática do messianismo e seus devidos movimentos

messiânicos. Este refere-se ao Sebastianismo, movimento centrado na espera pelo retorno do

rei D. Sebastião; último monarca da Dinastia de Avis em Portugual, surgido após seu

desaparecimento e não identificação do seu corpo no território da batalha, ocorrida em 4 de

Agosto de 1578.

É a partir de tais construções messiânicas em volta de sua figura que nasce a Lenda do

Encantado no município de Cururupu, em especial na Ilha dos Lençóis, onde o imaginário

medieval atravessa o oceano e lança sua influência em terras maranhenses. De modo que,

ainda hoje se acredita que D. Sebastião, na forma de um touro com uma estrela branca nas

têmporas, corre nas noites de lua cheia. Segundo o mito, quando o monarca desencantar

ocorrerá o afundamento da capital São Luís e nas praias de areias alvas, emergirá a corte de

Queluz, uma nova Jerusalém (ZIERER, 2007, p.12).

Vale a pena ressaltar que esta talvez tenha sido a alternativa – os recursos e discursos

messiânicos – encontrada pela monarquia portuguesa para a legitimação por vias religiosas; já

que o rei português, como já foi dito, não é ungido. A partir de tais aspectos, nota-se a enorme

diferença que existe entre um rei ungido pela Igreja Católica e a existência de um discurso

messiânico e milenarista em volta do mesmo. O rei que é legitimado pela Igreja Católica

permanece um leigo, não passa a ser um clérigo ou um representante da instituição máxima

religiosa. Este se torna somente uma espécie de guardião das máximas e preceitos cristãos

(ZIERER, 2007, p. 357).

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Enquanto que o rei messiânico e/ou milenarista não permanece em tal concepção. Ele

passa a representar a imagem de uma espécie de Cristo encarnado que traria um reino de mil

anos, repletos de felicidade, fartura e justiça. Assim, o recurso político utilizado por alguns

reis, como forma de atrair a devoção dos súditos, passa a possuir então um discurso anti-

clerical. (MEGIANI, 2003, p.39) Um questionamento pode ser levantado: como atribuir

perspectivas do sagrado a um rei já que este foi identificado e caracterizado pela Igreja

Católica por não ser clérigo? Não somente isto, como atribuir perspectivas do sagrado a um

homem se estas não são reconhecidas pela própria instituição máxima que é a Igreja Católica?

É justamente por este motivo que muitos dos casos como estes apontados passaram a

engendrar diversas disputas com o alto clero e com o papado romano.

Outro exemplo de monarca messiânico em Portugal é o D. João I, fundador da Dinastia de

Avis, objeto de estudo desta pesquisa. A nova dinastia fundada na ilegitimidade por seu

primeiro rei ser um bastardo e mestre de uma ordem monástico-militar, elabora discursos

messiânicos que defendem D. João como filho de rei – não denotando sua origem bastarda – e

salvador carismático do reino de Portugal. Este seria um rei ideal que daria início a novos

tempos com ascensão de uma nova sorte de pessoas, verdadeiros portugueses que lutaram

contra os inimigos castelhanos nos conflitos bélicos da “Revolução de Avis”. Cabe-nos agora

conceituar e discutir muitos dos termos que aqui estão sendo utilizados. Levando em

consideração o caso joanino a partir dos escritos feitos sobre tal monarca.

2. Messianismo e milenarismo: vias de interpretação

Muitos sociólogos já se dedicaram a escrever sobre as expressões das expectativas

messiânicas e milenaristas por todo o mundo e através dos séculos. Estudar tais temáticas

representam investigar o religioso como sentimento vivido e empírico, enquanto experiência

humana compartilhada entre os membros de uma mesma comunidade. Debateremos

brevemente ambos os conceitos de messianismo e milenarismo para que a análise da Crónica

de D. João I de Fernão Lopes possa ser realizada e compreendida.

Segundo Hans Kohn o messianismo pode ser entendido “essencialmente” como a

“crença religiosa na vinda de um redentor que porá fim à ordem atual das coisas, quer seja

de maneira universal ou por meio de um grupo isolado, e que instaurará uma nova ordem

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feita de justiça e de felicidade” (KOHN apud DESROCHE, 2000, p.20). O messianismo

funciona como um retorno a uma situação inicial, como um paraíso cristão presente na terra, e

um aperfeiçoamento dessa matriz.

Seguindo as proposições de Kohn, Henri Desroche, teólogo francês, em seu livro

Dicionário de Messianismos e Milenarismos (2000) demonstra como o conceito de

messianismo pode ser redimensionado também em uma espécie de messianismo político. Este

é caracterizado e identificado quando o messianismo é ligado à instauração de regimes ou

dinastias que o utilizam como discurso legitimador. Dessa forma, associa-se o líder ou

monarca como iniciador de uma nova era (DESROCHE, 2000, p. 34). Nota-se que

messianismo diz respeito à crença em um salvador, o próprio Deus ou seu emissário, e à

espera de sua chegada. Tal acontecimento poria fim à ordem instalada, caracterizada como

injusta ou opressiva, e assim instauraria uma nova era de virtude, felicidade e justiça.

Ao analisar os casos isolados da Península Ibérica, José Manuel Nieto Soria denota a

terminologia messianismo régio que é operacionalizada por um tipo de rei com atributos

messiânicos. A concepção de Nieto Soria é correspondente à de Desroche já tratada acima. De

acordo com o historiador espanhol, o monarca messiânico é apresentado como um chefe

político escolhido por Deus e que possui aproximações com os reis do Antigo Testamento.

Tal rei é uma figura que atua como uma espécie de instrumento do poder divino na Terra. É

antes de tudo uma personagem escolhida e governa um povo também escolhido (SORIA apud

ZIERER, 2006, p. 127).

Em outra via, está o conceito de milenarismo, discutido por Jean Delumeau em seu livro

Mil anos de Felicidade. Este se distingue do messianismo em dois aspectos: de um lado ele

repousa sobre a crença no advento de um reino de mil anos de felicidade, entendido como

uma espécie de atualização do mundo antes do primeiro pecado. E de outro: nota que o

Salvador já se manifestou e que a espera se concentra no momento de seu retorno

(DELUMEAU, 1997, p.18). O milenarismo é o evento sociológico do qual o messias é a

principal personagem.

À esta noção, associa-se conceitos como o de escatologia. Na tradição cristã segundo

Bernhard Töpfer no seu artigo Escatologia e Milenarismo3, o termo “escatologia” denota

noções que dizem respeito ao fim do mundo ou aos acontecimentos que atingirão seu ápice

3 O artigo está presente no volume 1 do Dicionário Temático do Ocidente Medieval organizado por Jacques Le

Goff e Jean-Claude Schmitt. LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean-Claude. Dicionário Temático do Ocidente

Medieval. Bauru: EDUSC, 2002.

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com o Juízo Final. Já este analisa o termo milenarismo como, em seu sentido principal, à

espera de um reino de mil anos sob a presença de Cristo, que haverá de vir à terra antes do

Juízo Final. De uma forma mais geral e ampla, compreende-se por estes termos todas as

esperanças de sentidos religiosos prevendo o surgimento de uma ordem perfeita e até de certa

forma, paradisíaca (TÖPFER, 2002, p. 353).

2.1. A construção da imagem messiânica de D. João

No capítulo anterior, iniciamos a apresentação dos primeiros momentos da Crónica de D.

João I escrita por Fernão Lopes. Denotamos a morte do conde João Andeiro na sequência da

do rei D. Fernando e os primeiros alvoroços da população da cidade de Lisboa em escolher

um defensor que os representasse nos preparativos para a defesa tendo em vista a invasão do

rei de Castela, D. Juan I. Mostramos como o cronista, utilizando-se de sua arte narrativa,

começa a construir a imagem de escolhido para o Mestre de Avis em detrimento de outros

preteridos ao trono e que tiveram suas história interrompidas ou prejudicadas.

Fernão Lopes, ao escrever a crónica, a coloca como parte de um conjunto. D. João passa a

ser apresentado como o escolhido e messiais também em comparação com aqueles que o

sucederam. A legitimação da nova Dinastia encontram-se presente na noção de “shadow king”

criada para o último monarca afonsino, D. Fernando. Tal figura histórica é a todo o momento

apresentada por Lopes como um rei que teria sido levado pelas paixões e destruído

importantes ações políticas do reino ao ser enfeitiçado por Dona Leonor Teles, mulher

castelhana, casada e com filho. O rei volúvel casa-se com a dama castelhana e assim teria

angariado o desgosto dos seus súditos, que não aprovavam a união.

Segundo Ana Carolina Viera, “dos três monarcas que versa Fernão Lopes, D. João I é o

que mais tem vocação natural para a realeza” (VIEIRA, 2010, p.87). O mestre de Avis

estava em último lugar na linha de candidatos ao trono, mas tinha o seu esteio e apoio no

movimento popular e no sentimento movido pelo mesmo. Por este motivo, António Saraiva

chega ainda a afirmar que a verdadeira força a qual a Dinastia de Avis devia a sua coroa era a

massa popular (SARAIVA, 1998, p. 167).

Na Crónica de D. João I, Fernão Lopes passa a apresentar o inicio dos primeiros levantes

de 1383 a partir da morte de João Fernandes, o conde Andeiro. No capítulo anterior, citamos a

convocação de Álvaro Pais a D. João para que fosse planejada a morte do conde. Os motivos

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além de serem pessoais, também valeriam para a honra do reino e do monarca que havia a

pouco falecido, já que João Fernandes é conhecido por ser amantes da rainha D. Leonor

Teles. De acordo com Fernão Lopes, a partir do pedido de Álvaro Pais, podemos observar um

D. João “cobiçoso domrra, per sua ardẽte natureza e gramde coraçom” (CDJ, I, cap. VI,

p.14). Paes, ao ver que o mestre havia aceitado o seu pedido, reitera: “Hora vejo eu, filho,

Senhor, a deferença que há dos filhos dos Reis aos aoutros homeẽs.”4 (CDJ, I, cap. VI,

p.14).

Percebe-se que a crônica de Fernão Lopes intenciona esconder a realidade bastarda de D.

João. Sérgio Feldman, em seu livro “Amantes e bastardos: as relações conjugais e

extraconjugais na alta nobreza portuguesa no final do século XIV e início do século XV”

demonstra que proles advindas de relações extraconjugais, por não possuírem direito à

propriedade que descende hereditariamente, deveriam mostrar a sua legitimidade e nobreza

através de gestos e feitos heroicos. Os costumes e leis com teor clerical condenavam ações

extraconjugais e até as puniam, porém, tais relações eram extremamente comuns e aceitáveis

(no caso masculino, já que se trata de uma sociedade misógina) em círculos onde casamentos

eram feitos por meio de acordos políticos e os noivos só viam-se pela primeira vez no dia da

cerimônia (FELDMAN, 2008).

Para a sociedade medieval, “a bastardia não mancha a árvore genealógica de nenhum

nobre, se a descendência ilegítima foi de algum rei ou grande senhor. De acordo com a

heráldica, descender, mesmo de forma ilegítima de um rei é ressaltado com imenso orgulho.”

(FELDMAN, 2008, p.197) Ainda, as crônicas régias são repletas de narrativas de casos de

extraconjugalidade e as mesmas são relatadas com extrema naturalidade. E ainda que faltem

opositores nos séculos XIV e XV “nem a Coroa e nem o Clero possuem poder moral para

impedir a manutenção desses costumes que estão proliferados dentro do clero e da família

real em igual intensidade do que no resto da sociedade” (FELDMAN, 2008, p.154).

Porém, por se tratar do caso de um bastardo que assumiu o trono e iniciou uma nova

dinastia em Portugal, percebemos em Fernão Lopes um intuito de criação de memória, ou até

mesmo escrever na tentativa de encobri-la e escondê-la. D. João I, por possuir uma mácula em

sua origem, efetiva um grande número de esforços para que uma imagem positiva do início da

Dinastia de Avis ficasse presente na história e na memória. A elevação da figura de D. João

que o deixa em pé de igualdade com os demais infantes pode ser observada também em outro

4 Todos os grifos em negrito nas passagens da crônica neste trabalho são nossos. Não fazem parte do texto

original de Fernão Lopes.

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trecho em que Álvaro Pais sai pela cidade convocando as gentes para a insurreição popular, já

que estavam tentando “matar” o Mestre de Avis. Segue o trecho:

Alvaro Paaez que estava prestes e armado co huũa coifa na cabeça segumdo

husança daquell tempo, cavallgou logo a pressa em cima dhuũ Cavallo que

anos aviia que nom cavallgara; e todos seus alliados com elle, braandamdo a

quaaes quer que achava dizemdo: Acorramos ao Mestre, amigos, accorramos

ao Meestre, ca filho eh delRei dom Pedro (CDJ, I, cap. XI, p.24).

A intervenção divina também pode ser observada. Com o alvoroço na cidade, Fernão

Lopes aponta que os povos da arraia-miúda, “por vontade de Deos todos feitos dhuũ coraçom

com tallemte de o vimgar, como forom aas portas do Paaço que eram já çarradas, amte que

chegassem, com espamtosas pallavras, começarom de dizer: Hu mato ho Meestre? Que he do

Meestre? Quem çarrou estas portas?” (CDJ, I, cap. XI, p.25).

Ainda, o cronista, ao conceber a sua obra, demonstrou-nos um discurso permeado de

imagens e símbolos de poder. Um dos exemplos é a própria Lisboa. Principal cidade do Reino

e que por vias de como os acontecimentos desenrolaram-se, torna-se a força da revolução.

Dessa forma, ela também participa da construção do mito político que D. João torna-se a

partir da construção feita por Fernão Lopes. A cidade é apresentada como uma viúva, que

necessitava de seu rei e marido. O Mestre é para as populações da cidade, a única opção de

homem que ali estava para defender a cidade e por consequência, o reino.

Fernão Lopes apresenta-nos Lisboa a partir do trecho em que a população é convocada

para auxílio do Mestre, após ter sido espalhado o falso boato de que o mesmo havia sido

assassinado nos paços do Castelo.

Soaram as vozes do arroido pella çidade ouvimdo todos braadar que

matavom o Meestre; e assim como viuva que rei nom tiinha, e como se lhe

este ficara em logo de marido, se moverom todos com maão armada,

corremdo a pressa hu deziam que sse esto fazia, por lhe darem vida e escusar

morte. Alvoro Paaez nom quedava dhir pera alla, braandamdo a todos:

Acorramos ao Mestre, amigos, acorramos ao Meestre que matam sem por

que (CDJ, I, cap. XI, p.25).

A partir dessa personificação de Lisboa como “viuva que rei nom tiinha”, o cronista

legitima que foi por vontade dos comuns do reino que o povo desejava recêbe-lo como

Salvador. Segundo Margarida Garcez Ventura, o “Mestre na narração mítica de Fernão

Lopes, é já rei, porque Lisboa – e Lisboa é o reino – o desejava por marido” (VENTURA,

1992, p. 21). D. João consagra-se, a partir da construção de sua imagem messiânica, como um

pai para os portugueses por tê-los livrado dos seus inimigos.

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Entretanto, a grande sabedoria na arte narrativa de Fernão Lopes não está somente em

apresentar o futuro monarca somente como o escolhido e o Mexias de Lisboa. O cronista

demonstra D. João I como um homem também com anseios e temores que os fazem dele

humano e não somente heroico. Para o Mestre de Avis, a ideia de guiar Portugal e tornar-se

seu defensor vai emergindo pouco a pouco.

Antonio Saraiva denota que a figura do Mestre vai lentamente tomando a cena da

narração. O pesquisador português, em sua obra O crepúsculo da Idade Média em Portugal,

aponta que de início,

faltam-lhe as grandes frases e os grandes gestos; as feições definem-se pela

acumulação de factos miúdos. É o caso do mestre de Avis: sem uma paixão

característica, sem uma feição muito saliente, homem vulgar, variando com

as circunstâncias, vulnerável a todas as fraquezas e capaz também daqueles

actos de dedicação espontânea inspirados pelo sentimento, esta personagem

é, apesar disso, talvez até por isso, inesquecível (SARAIVA, 1998, p. 192).

A percepção de um Mestre de Avis também humano se dá com o temor que após o

assassinato do Conde Andeiro, a rainha poderia querer vingar-se. Fernão Lopes nos apresenta

um D. João que deseja partir-se para a Inglaterra por conta da invasão do rei castelhano, D

Juan apoiado por todos aqueles que não o queriam bem; e pretendia servir o rei da Inglaterra,

ganhando honra e fama. A população da cidade e homens de importante estirpe pediram para

o Mestre que em Lisboa ficasse, que preparasse sua defesa e “se asenhorasse logo dos

tesouros e alfamdega e almazeẽs, e de todollos outros dereitos e cousas que perteençiam ao

Rei; e que elles o poeriam em posse do castelo e fortelleza da cidade” (CDJ, I, cap. XX, p.43).

Os da cidade desejavam que D. João se assenhorasse dela, tornando-se defensor de todo o

reino. Lopes somente conta a mudança de decisão do Mestre a partir da apresentação de uma

nova personagem, Frei João da Barroca. Sobre ele pouco se sabe, era um frei da ordem dos

franciscanos,

huũ boom homem devoto em Jherusalem em vida empardeado e era

Castellão. A este veo em revellaçõm que sse vehesse ao porto de Jaffa, e que

ali acharia huũma naao prestes que viinha pera Portugall aa cidade de

Lixboa, e que emtrasse em ella e a portaria ali. [...] Emcaminhou Deos sua

viagem de quisa que chegarom aaquella cidade homde ell numca fora; e

como foi noite, disse que o levassem a huũa alta barroca acerca do moesteiro

de Sam Françisco [...] e vivemdo alli o homem boom em áspera e apertada

vida, começarom as gẽtes daver em elle tall devaçom, visitamdoo com suas

esmollas de que ell pouco tomava, que todos os aviam por samto, e que Deos

lhe rrevellava muitas das cousas que eram por viinr; e alguũs hiam tomar

com elle comselho por saúde de suas almas e fazemdas (CDJ, I, cap. XXIII,

p.47-48).

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Sua presença torna-se demasiadamente importante quando o próprio Mestre de Avis vai

ter com ele conselhos sobre a sua partida à Inglaterra, se devia levar a cabo dela sim ou não, e

sobre a situação em que se encontrava o reino de Portugal. Demonstrou que o castelo da

cidade estava contra ela e que o rei de Castela, D. Juan, vinha à Lisboa com toda sua força e já

havia tomado algumas cidades por sua voz. A resposta do frei foi a de que

se nom fosse do rregno, e começasse de seguir seu feito com ardido

coraçom, ca a Deos prazia de ell ser rei e senhor delle, e seus filhos depos

sua morte; e que pera tomar o Castello da cidade fezesse huũm artefiçio de

madeira, a que chamom gata, e que logo sem muita deteemça seeria tomado

com mui poucas gemtes (CDJ, I, cap. XXIV, p.49).

Na tentativa da legitimação das forças do Mestre e daqueles que o serviam na luta contra

Castela, é o caráter divino dos conselhos do Frei João da Barroca que Fernão Lopes acentua

ao enfatizar a vontade de Deus de que D. João seria rei e senhor de Portugal. As suas palavras

tomam ainda um maior peso na percepção de que o frei é um castelhano que avisa e aconselha

o futuro rei do portugueses a como iniciar a sua vitória sobre o reino de Castela. Fato este que

não deixa de ser uma valiosa contradição.

Como pode ser observado, a presença do frei da Barroca é o início da caracterização

negativa do reino de Castela, que por vontade e descumprimento dos tratados assinados pelo

seu rei, invade Portugal contra os desejos divinos, de acordo com o cronista Fernão Lopes. A

segunda conotação negativa por parte da crônica régia será discutida no tópico seguinte.

2.2. A dicotomia e a luta entre o Mexias de Lisboa e o Anticristo

Toda obra é produto de seu tempo. A época em que o cronista realiza os seus escritos é de

dificuldades que tomaram espaço no centro da Igreja Cristã, o Cisma do Ocidente (1378–

1417) já anteriomente citado. No caso da Crónica de D. João I escrita por Fernão Lopes, a

mais poderosa analogia criada a partir do Cisma advém da dicotomização das figuras régias

da obra, D. João de Portugal e D. Juan de Castela. O regedor do reino português foi

apresentado como o messias da cidade de Lisboa enquanto que aquele que estava a invadir e a

trazer sofrimento ao povo escolhido por Deus e ao seu reino, D. Juan, foi cognominado de

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Anticristo. Na obra do cronista, o cisma torna-se um elemento de bipolarização das vontades

(VENTURA, 1992, p. 21).

Porém, tal simbolização só foi possível a partir do momento em que Fernão Lopes

demonstra a divisão daqueles que seguiam Portugal na sua luta pela integridade territorial e

aqueles que seguiam a causa castelhana. O cronista apresentou um reino dividido e essa

separação diz respeito à divisão social presente nos fins do século XIV. D. João I foi apoiado

principalmente por nobres secundogênitos, setores urbanos de Lisboa (mercadores e membros

dos Conselhos) e da população pobre das cidades que sofriam oprimidos pela situação de

desprivilegio em que se encontravam.

Segundo o cronista, a maior parte da nobreza apoiou o rei de Castela. Isso acontece

porque até então existia uma fidelidade maior aos ideais da nobreza do que aos compromissos

para com o território, que nos leva a questionar a noção propaganda de que haveria um

“sentimento nacional” em Portugal no momento da Revolução de Avis. A nobreza havia

prestado a sua fidelidade à causa assinada por todos os conselhos do reino no Tratado de

Salvaterra dos Magos que garantia à posse do trono à D. Leonor Teles na ausência de um

herdeiro masculino ao trono nascido da união entre D. Beatriz e D. Juan de Castela.

O trabalho de Valentino Viegas em “Lisboa: A força da revolução (1383-1385)”

demonstra-nos a divisão do reino a partir de documentos históricos que confirmam parte das

noções propagadas por Fernão Lopes. Segundo o pesquisador português,

se fizermos uma breve comparação entre os concelhos que juraram o

contrato de Salvaterra dos Magos com os concelhos constantes no auto de

eleição de D. João I, verificamos que os concelhos que juraram aquele

contrato de casamento totalizam 65, enquanto os que constam no auto de

eleição são apenas 34. [...] Curiosamente, só 18 dos 34 concelhos

mencionados no auto da eleição participaram na assinatura do contrato de

casamento de Salvaterra de Magos (VIEGAS, 1985, p. 149).

Os números apresentados por Viegas demonstram como que maioria daqueles que

assinaram as clausulas do contrato de casamento entre herdeiros ao trono de Portugal e

Castela continuaram firmes em sua posição. De acordo com a noção medieval, teriam mantido

a palavra à quem haviam concordado como seu senhor e comandante. Porém, tal via não

representava a regra, como também já apontou José Mattoso em seu artigo “A nobreza e a

Revolução de 1383” ao identificar quais famílias nobres apoiaram as causas de Portugal e de

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Castela, demonstrando que “fidelidade selada pelas alianças matrimoniais é mais vigorosa

que a fidelidade vassálica propriamente dita” (MATTOSO, 1987, p. 282).

O que acontece em Portugal é que a aliança matrimonial passou a andar ligada à

fidelidade vassálica, já que D. Leonor Teles foge de Portugal e pede que os povos do reino

aclamem sua filha, D. Beatriz, como rainha. Desta forma, Fernão Lopes aponta que

se levamtaram os poboos em outros logares, seemdo gramde cisma e

divisom amtre os gramdes e os pequenos. O quall ajumtamento dos

pequenos poobos, que se estomçe assi jumtava, chamavom naquell tempo

arraya meuda. Os grandes aa prima escarnecendo dos pequenos, chamavõ-

lhe poboo do Mexias de Lixboa, que cuidavam que os avia de rremiir da

sogeiçõ delRei de Castela (CDJ, I, cap. XLIII, p.86).

Assim, sendo o rei messiânico um eleito que gere um povo também eleito, permitiu ao

cronista apresentar o povo do “Mexias de Lisboa” de uma forma que “era maravilha de veer,

que tamto esforço dava Deos nelles, e tamta covadiçe nos outros” (CDJ, I, cap. XLIII, p.86).

A sanha que fez a arraía-miúda tomar castelos portugueses como o da vila de Estremoz, Porto

Alegre, Évora e por fim, o de Lisboa em nome do Mestre, era justificada pela vontade de

Deus. Enquanto que aqueles que apoiavam os castelhanos eram denominados de “treedores

çismaticos” (CDJ, I, cap. XLIII, p.86).

Fernão Lopes aponta que os miúdos tomavam as grandes fortalezas sem estarem portando

armas próprias para confrontos. Usavam facas de uso doméstico, paus, pedras e “sem

capitam, coms os vemtres ao soll” (CDJ, I, cap. XLIII, p.87) percorriam as cidades e quando

deparavam-se com opositores ao Mestre de Avis “corriam após elles, e buscavom nos e

premdiam nos tam de voomtade, que parecia que lidavom polla Fe” (CDJ, I, cap. XLIII,

p.94). Brandavam em altas vozes “Portugall! Portugall! pollo Meestre Davis, Regedor e

Deffensor dos rregnos de Portugall!” (CDJ, I, cap. XLIII, p.93)

Lentamente, no decorrer da trama, Fernão Lopes continua a apresentar o reino de

Portugal e aqueles que lutavam por ele como guiados por Deus. Era defendido por Ele e

aqueles que lutavam para se livrar da sujeição de Castela eram os verdadeiros portugueses. O

cronista transforma a luta entre portugueses e castelhanos na metáfora muito conhecida pela

comunidade da cristandade medieval de cristãos versus hereges. Os castelhanos, apesar de

serem vizinhos que enfrentaram os mouros infiéis assim como os portugueses, haviam

quebrado as regras sagradas estabelecidas pelo tratado assinado. Agiam contra os mais altos

desígnios de Deus.

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Fernão Lopes apresenta as razãos dos que seguem Castela ao relatar que

voz de gramde espamto foi ouvida em todo o rreino quamdo as gemtes

forom certificadas que elRei de Castella queria emtrar em elle, veemdo que

tall emtrada nom podia seer sem gramde escamdallo e discórdia; a quall

poinha os humanaaes emtemdimentos em opinioões de muitas guisas.

Emtanmto que posto que o amor da terra e naturall afeiçom

costramgesse muitos fidallgos e alcaides de castellos a teer com Portugal,

amte que com Castella; outros poram avia hi taaes, que husando de

cobiiça mesturada com emteemçom maliciosa, e delles com temor e

rreçeo de cada huũ perder sua homra, desi cobrar outra mayor da que

tiinha, lhe fez de todo escolher o comtrairo; per tall modo que foi o rreino

deviso em ssi, e partido em duas partes (CDJ, I, cap. XLIII, p.133).

Por esta interpretação de Fernão, Margarida Garcez Ventura reitera que

sabemos que o Papa de Avinhão e os seus seguidores eram tidos, mas, como

o Anti-Cristo e os seus discípulos. Donde – segundo a lógica do símbolo –

D. João de Castela era o agente do Anti-Cristo que afrontava o nosso Cristo,

nosso Messias. Não se trata, portanto, em Fernão Lopes, somente de registrar

o que se dizia do Mestre e dos seus partidários, mas sim de enquadrar essa

voz na dinâmica íntima da missão do Mestre, missão essa que lhe confere

um indubitável legitimidade, quer de título, quer de essência. (VENTURA,

1992, p.51)

Quando D. João é eleito regedor e defensor do reino, Lopes demonstra que o Mestre era

amado e respeitado pelo povo, todos os tinham por bem e por senhor enquanto que o rei de

Castela passa a mostrar sua força, a reunir-se com seus conselheiros e decide invadir o

Portugal. D. Juan faz o mesmo com a aprovação de D. Leonor Teles, que o havia escrito

pedindo vingança pela sanha dos povos que seguiam o Mestre. Porém, a caracterização do rei

castelhano como o Anticristo só passa a ser útil e apresentada de forma mais efetiva por

Fernão Lopes a partir das primeiras batalhas que ocorrem entre Portugal e o reino vizinho.

Os conflitos travados entre Portugal e Castela já foram brevemente citados no capítulo

anterior. O primeiro destes é a Batalha de Atoleiros e o Cerco de Lisboa, ambos no ano de

1384 e que foram essenciais para garantir a eleição do Mestre de Avis em rei nas Cortes de

Coimbra. A primeira batalha é vencida pelas forças estratégicas de Nuno Álvares Pereira,

nomeado fronteiro do Alentejo, apesar da disparidade numérica para com os castelhanos.

Mais uma vez, a partir das estratégias de escrita de Fernão Lopes, Deus “em cuja maão he

todo o vemçimento e poderio de dar muitos nas maãos dos poucos, prougue emtom de dar

vitoria aos Portugueeses” (CDJ, I, cap. XCV, p.182).

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A partir desta vitória no mês de abril em território que hoje pertence ao município

português de Portalegre, seguiu-se a preparação da cidade de Lisboa para o cerco. A frota

castelhana passa a chegar a partir do dia 28 de maio nas cercanias das muralhas e em dois dias

a cidade de Lisboa também é cercada por mar. Lopes se utiliza das suas estratégias de escrita

e apresenta-nos uma série de milagres que teriam acontecido e indicariam que as forças dos

céus estavam ao lado dos portugueses.

Alguns dos homens que velavam a muralha teriam visto

viinte homees vesem em vestiduras alvas assi como sacerdotes; e quatro

delles tragiam nas maãos quatro círios acesos, e hiam e viinham em

procçissõ emtramdo demtro na egreja, e fallavõ muito baixo amtressi, como

sse rrezassem alguũas horas. Os do muro quamdo virom aquesto, ficarõ

muito espamtados, e começarom de chamar os outros que oolhassem tã

gramde millagre (CDJ, I, cap. CXI, p.213).

Teriam testemunhado ainda pontas de lanças nas torres, que ficaram acesas por cerca de

sete horas e segundo a interpretação dos locais, deram a prova de que Deus estava ao lado dos

portugueses no eminente confronto e que garantiria a sua vitória (CDJ, I, cap. CXI, p.213).

Com a apresentação deste fenômeno seguiu-se ainda uma chuva de cera.

Para tentarmos uma compreensão da utilização de tais acontecimentos na escrita de

Lopes, concordamos com Luiz Costa Lima quando o mesmo expõe que “para o homem

medieval não há qualquer marca distintiva entre História e ficção. Desde que não se

oponham à verdade religiosa, ambos são confiáveis, porque ambas são tomadas como

verdadeiras” (COSTA, 1986, p. 23). Costa ainda reitera que Fernão Lopes teria marcado uma

ruptura na tradição medieval. O fato de um rei bastardo ter sido levado ao poder por uma

burguesia mercantil e contra os anseios da nobreza teria permitido ao cronista uma maior

liberdade de escrita. Isto tornou possível que intercambiasse a história com elementos ornados

e fabulosos (COSTA, 1986, p. 25).

Continuando a narração de Lopes, dá-se inicio aos acontecimentos do cerco de Lisboa.

Porém, segundo conta a crônica há muito tempo que o Mestre de Avis e os seus seguidores se

preparavam para a chegada do rei de Castela e seus exércitos. A narrativa demonstra uma

cidade onde reinava a justiça e obediência para a causa do reino. Aqueles que discordavam

das medidas tomadas eram convidados a deixar Lisboa. Cresce o mito em volta da cidade, o

guarda-mor do Tombo leva a Bíblia como um documento de atestação e apoio e faz a sua

primeira comparação usando o Antigo Testamento.

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E quamdo os emmiigos os torvar queriam, eram postos em aquell cuidado,

em que foro os filhos de Isrrael, quamdo Rei Serges, filho de Rei Dario, deu

leçemça ao profeta Neemias, que rrefezesse os muros de Jerusallem; que

guerreados pellos vezinhos darredor, que os nom alçassem, com huũma

maão poinham a pedra, e na outra tiinham a espada pera sse deffemder; e os

Portugueeses fazemdo tall obra, tiinham as armas jumto comssigo, com que

sse deffemdiam dos emmiigos, quamdo sse trabalhavom de os embargar, que

a nom fezessem (CDJ, I, cap. CXV, p.225).

Logo, a Bíblia e as histórias presentes em seus livros e evangelhos sagrados, tornam-se

mais do que uma autoridade, o cronista Fernão Lopes encontra nela a maior fonte das

analogias das quais faz uso em seus escritos. D. João I além de ser classificado como o

“Messias de Lisboa” e governante escolhido por Deus para tirar Portugal da escuridão em

que se encontrava, passa a ser comparado com os reis do Antigo Testamento; já que é a partir

de tal livro que são construídas as concepções messiânicas para com os reis da casa de Davi

(ZIERER, 2012, p.127-128).

Na sequência do ocorrido Lopes apresenta a inferioridade dos exércitos portugueses para

com Castela e o rei D. Juan. Este tinha ao todo sessenta e uma naus, dezesseis galés e uma

galeota. O acampamento castelhano era muitíssimo mais rico do que as provisões lisboetas.

Haviam físicos, cirurgiões, boticários, mantimentos para a fome e para a saúde do corpo,

panos e até mesmo “molheres mumdayras” (CDJ, I, cap. CXIV, p.220). Por consequência, na

intenção de apresentar uma vitória conquistada e merecida aos caracterizados como os

“verdadeiros portugueses”, o cronista escreve sobre as forças diminutas do Mestre em

somente dezessete naus e sete galés.

O povo português, da mesma maneira, deveria mostrar-se assim como o homem que

seguiam; como merecedores e eleitos. Por isso passaram por diversas provações para verem-

se livres da força do Anticristo. Seguindo os preceitos cristãos, esse sofrimento era uma forma

de purificar-se dos pecados. Para que assim pudessem provar-se como o povo de uma espécie

de Nova Jerusalém na Terra, tomando por base as premissas presentes no Apocalipse de São

João. Sobre as tribulações sofridas durante o Cerco de Lisboa, Fernão Lopes caracteriza o

sofrimento das crianças. Estes,

amdavom os moços de trees e de quatro anos, pedimdo pam pella cidade por

amor de Deos, com lhes emssinavam suas madres; e muitos nom tiinham

outra cousa que lhe dar senom lagrimas que com eles choravom que era

triste cousa de ver; e se lhes davom tamanho pam come hũa noz, aviamno

por gramde bem. Desfalleçia o leite aaquellas que tiinham criamças a seus

peitos per mimgua de mantiimento; e veemdo lazerar seus filhos a que

acorrer nom podiam, choravam ameude sobrelles a morte amte que os a

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morte privasse da vida; muitos esguardavom as prezes alheas com chorosos

olhos, por comprir o que a piedade mamda, e nom teemdo de que lhes

acorrer, cahiam em dobrada tristeza (CDJ, I, cap. CXLVIII, p.307).

A cidade de Lisboa ficou cercada durante quatro meses e vinte e sete dias e os

mantimentos passaram a minguar. Segundo os escritos do cronista régio, faltava trigo, pão,

carne e água. O povo andava nas ruas a pedir esmolar e a desfalecer. Pediam missas na

intenção de que o salvador pusesse fim ao seu sofrimento, beijavam a terra e pediam a Deus

que lhe acorresse, que atendesse as suas preces.

Decerto, o cronista acabou por construir poderosas analogias no imaginário medieval

português. A Crónica de D. João I representa o imbricamento entre o político e o maravilhoso

medieval, fator extremamente necessário para a legitimação da nova dinastia. Ao demonstrar

que o povo português como um povo eleito e privilegiado pela causa de Deus, Lopes aponta

que os filhos dos que participaram do movimento de 1383 – 1385 são um “poobo bem

aveiturado, que nom soube parte de tantos malles, nem foi quinhoeiro de taaes

padecimentos!” (CDJ, I, cap. CXLVIII, p.309). Isto representa, em Fernão Lopes, sinal de

que Portugal estaria destinado à vitória contra Castela e consequentemente, do Anticristo.

Sinal também que Lopes tentou mostrar no reinado iniciado por D. João como um governo

bem-aventurado, em que as vontades da população foram atendidas.

A vitória de Portugal sobre as forças do rei de Castela se dá por meio daquilo que Fernão

Lopes intenciona que seja entendido como uma interferência divina. Uma peste foi enviada ao

acampamento castelhano por Deus que “hordenou que o angio da morte estemdesse mais a

sua maão e percudisse asperamenta a multidom daquell poboo” (CDJ, I, cap. CXLIX,

p.310). O anjo da morte era a peste e esta rapidamente espalhou-se entre eles, atingindo desde

o mais simplório escudeiro aos grandes nobres senhores. A grande maravilha era que mesmo

os portugueses que haviam sido feitos prisioneiros não eram tocados pela doença. Os

castelhanos, melancólicos de vingança, lançavam os de Portugal com os doentes. Porém,

segundo conta o cronista, nenhum deles perecia.

De acordo com a crônica, o rei só levantou o cerco quando a sua Rainha, D. Beatriz,

também foi atingida pela doença. A sua partida foi encarada com muita felicidade e louvores

a Deus por parte das forças do Mestre que defendiam Lisboa. Providenciaram missas e

procissões. Nesse momento se consuma a máxima interpretação de Fernão Lopes sobre os

acontecimentos da batalha de Atoleiros e do Cerco de Lisboa. A apresentação do messianismo

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se dá através da fala do Frei Rodrigo de Sintra, mestre da Ordem de São Francisco e que faz

uma pregação após o fim do cerco na cidade.

Lopes destaca o sermão de Frei Rodrigo de Sintra que compara Lisboa à Jerusalém no

episódio em que foi cercada por Senaqueribe, rei de Assir e D. João I ao rei Ezequias, líder de

Jerusalém. “E como a teemdo assi çercada, queremdosse Deos amercear della, ferira o

amgio de Deos huũa noite os do arreall, e matara çemto e oiteemta e çimquo mill delles; e

fugira elRei soomente com dez homeẽs com gram temor e espamto que ouve” (CDJ, I, cap.

CLI, p.317). Ao fazer isso, o cronista a partir da fala do frei, compara o povo de Portugal ao

povo de Israel.

Assim, é importante observar que, dentre os reis mencionados no livro de Reis na Bíblia,

apenas Ezequias e Josias mereceram a aprovação irrestrita de Deus (ZIERER, 2012, p.35). D.

João I, mestre de Avis, tornava-se assim exemplo de rei e cristão ideal, temente a Deus e

escolhido por Ele, servidor da Igreja Católica, justo, provedor e símbolo de paz ao seu povo

(ZIERER, 2012, p. 35). Frei Rodrigo compara ainda o caso de Lisboa ao da cidade de

Samaria que foi cercada por Benadabe, rei da Síria. Durante os dias do conflito, Samaria

também passou por uma grande fome (CDJ, I, cap. CLI, p.316).

Ainda, segundo os relatos do cronista Fernão Lopes o cronista reitera que a peste foi

enviada como um castigo de Deus, pois antigia somente aos castelhanos e não aos

portugueses. O episódo é igualado com a Dez Pragas do Egito. D. Juan de Castela é

equiparado ao faraó, que não aceita os conselhos sobre abaixar o cerco e só faz o mesmo após

a doença atingir sua mulher por meio da vontade divina. Dessa forma, o franciscano ao fazer

o sermão ainda completa após contar os acontecimentos do Egito:

e assi ha dacomteçer a elRei de Castella, que sse ell tornar a este rreino com

a emtẽçom que leva, que Deos lhe matara tantos do seus primogenitos, que

ssom os gramdes e homrrados de seu rreyno, com que britou a verdade que

prometida tiinha, que numca mais avera voomtade de tonar esta terra. Ell

poem sua esperamça em multidõ de muita gemte, pera nos destroir sẽ por

que, e nos esperemos em huũ sso Deos que nos livrara de suas maãos; o

quall nos leixou padeçer tamtas pressas e tribullaçoões como vistes por

teermos rrazom de os mais amar quamdo nos dellas livrasse (CDJ, I, cap.

CLI, p.319).

Fernão Lopes adota a técnica do sermão e da exegese medieval para dar aos seus escritos,

além da legitimação, um sentido moral e alegórico polítco-religioso. D. João possui analogias

com o próprio Cristo e foi escolhido para efetuar a missão de Deus de levar o reino de

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Portugal à salvação, por isso é chamado de Messias. Esta identificação é a criadora do mito.

Porém, deve ser deixado claro que esse messias não é o Cristo. A população portuguesa,

segundo Rebelo, reconhece D. João como chefe e os seus anseios estão ligados a esperança

das melhorias sociais (REBELO, 1983, p. 57-58).

Naturalmente, em toda a Europa, este era um momento de inquietações e conflitos, que

levaram Fernão Lopes a escrever as histórias da ascensão da Dinastia de Avis como um início

de tranquilidade e de grandes bonanças. Na Cristandade medieval, toda a sedição, pertubação

e divisão, seja dentro ou fora das instituições eclesiástica, eram encaradas como obras do

Anticristo.

As analogias bíblicas procuram reproduzir a imagem das expectativas messiânicas e

milenaristas. A dicotomia Anticristo versus Messias presente na crônica pode ser até mesmo

relacionada com as interpretações do Apocalipse de São João. Segundo Jean Delumeau,

o milênio deve intercalar-se entre o tempo da história e a descida da

“Jerusalém celeste”. Dois períodos de provocação irão enquadrá-lo. O

primeiro verá o reino do Anticristo e as tribulações dos fiéis de Jesus que,

com este, triunfarão das forças do mal e estabelecerão o reino de paz e de

felicidade. O segundo, mais breve, verá uma nova liberação das forças

demoníacas que serão vencidas num último combate (DELUMEAU, 1997,

p. 19).

Neste fragmento encontra-se presente ainda a interpretação feita por Fernão Lopes acerca

dos enfrentamentos bélicos que circunscreveram a ascensão de D. João I ao trono. Como

primeiro momento, pode ser observado a Batalha de Atoleiros seguida do Cerco de Lisboa

em que as tribulações passadas pela população, de acordo com o que é descrito na crônica

como diversos tipos de privações e provações. Em um segundo momento, a vitória definitiva

das forças do Messias de Lisboa para com as do Anticristo está representada na Batalha de

Aljubarrota (1385) que parece ser a confirmação divina da aprovação de Deus as ações de D.

João I, eleito no ano de 1384 nas Cortes de Coimbra como novo rei.

O último conflito a ser tratado aqui - e que pode ser encarado de acordo com as

proposições de Jean Delumeau a partir do Apocalipse de São João como a segunda vinda do

Anticristo com a liberação de suas forças do mal - é a Batalha de Aljubarrota. Esta ocorreu

um ano após os enfrentamentos anteriores, em 14 de agosto de 1385, e teve um desfecho

consideravelmente mais rápido que o do cerco, garantindo uma segunda vitória a Portugal. Na

narração de Fernão Lopes, este é o último conflito bélico presente na Crónica de D. João I, já

na segunda parte da obra.

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A segunda parte da obra inicia-se com a apresentação das cidades e vilas do interior do

reino que foram retomadas pelas forças de D. João I e de seu Condestável, Nuno Álvares,

como Guimarães, Viana, Neiva, Caminha, Monção e entre outras. O rei de Castela adentra

Portugal por meio da comarca de Beira e já se utilizando de bastante truculência para com os

habitantes lusitanos a partir dos espaços que adentrava. O rei português, ao conversar entre os

seus conselheiros, decide ir ao encontro daquele que novamente vinha tomar o seu reino,

reafirmando a coragem dos cavaleiros ao dizer

E eu asy diguo a vos ouutros que por nos sermos pouuca gemte e eles muito

mais que naõ avemos por ysso por porque nos espamtar, ca já muitas vezes

acomteçeo e cada dia aquece os pouucos as vezes vencerẽ os muitos; demais

nos que temos justa querela em defemder nosa terra e nosos bẽes de quem

nos la quer tomar per fforça, comtra Deus e comtra direito, britamdo os

trautos e juuramentos quue sobre esto fez; mormẽte quue eu lhe emtemdo de

mamdar dizer primeiro que lhe requeiro, da parte de Deus e do Martire São

Jorge, quue se tornne pera ssua terra co seu poderio e nnaõ queira danar este

Reinno em que não tẽ direito, sennaõ seja certo quue eu poerey este feito em

joizo de Deus quue o livre per batalha como sua mercê for (CDJ, 2, cap.

XXX, p.70).

O rápido reacender dos enfrentamentos entre Portugal e Castela dá nos a entender que

estas hostilidades não pretendiam outro fim que não seja o de um reino, um governo que

intencionava alçancar o controle político sobre o outro. Segundo Luís de Souza Rebelo, os

pequenos incidentes, atitudes e ditos de caráter profético ou para-religioso,

sem conexão aparente, até constituirem uma série que, por um processo de

convergência e acumulação, lhes confere subitamente uma coerência

significativa, que tem sobre o leitor o efeito de uma autêntica iluminação

espiritual. Deste modo, as manifestações de simpatia e apoio popular ao

Mestre de Avis, as premunições e sinais de ordem sobrenatural, que o

elegem como objeto, ganham a força da prova necessária à legitimação da

personalidade carismática do Mestre, constituindo a matriz ideológica do

plano providencial (REBELO, 1983, p. 52).

Fernão Lopes, ao denotar vitórias e ganhos para os portugueses por vias de milagres,

profeciais, sonhos e providências divinas, cria conotações que encaixam os feitos de D. João

em uma aura de legitimação por via política, mesmo que o discurso seja ficcional e religioso.

Segundo José D‟Assunção Barros, enxergar o rei como a cabeça, o coração e alma do rei;

como aquele que deve guiar a todos à salvação, é uma representação de um imaginário que

“muito tem a ver com a maneira medieval de conceber a sociedade com um organismo, mas

tem a ver também com uma determinada maneira de governar” (BARROS, 2004, p.104).

Portugal vence a Batalha de Aljubarrota, apesar da sua inferioridade numérica, por conta

da eficiência das estratégias direcionadas pelo Condestável Nuno Álvares Pereira; este

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influenciado pelas táticas bélicas de comando inglesas. Segundo Maria Helena da Cruz

Coelho, a vitória de D. João I pelas armas cria a correspondência com seu título novo de rei.

Criou as bases para que o reino pudesse ser reconhecido dentro e fora do seu território a partir

de uma nova dinastia. Ainda, segundo a historiadora portuguesa, Aljubarrota deve ser vista

como um episódio da Guerra do Cem Anos no espaço ibérico, que denotou os portugueses

apoiados pelos ingleses e Castela ao lado da França (COELHO, 2010, p. 462).

Fernão Lopes, porém, à luz da religiosidade da época aponta que o sucesso dos seis mil

quinhentos portugueses sobre os mais de trinta mil castelhanos se deve à benção de Deus, da

Virgem e de São Jorge (CDJ, 2, cap. XXXVI, p.91). Ainda, pela devoção da cidade de

Lisboa, “mui leal e fiel servidora, que por sua saude e estado do Reinno hera muy soliçita e

cuidosa”, havia se comprometido a seguir as ordens de D. João I a que

dahy em diamte, na çidade nẽ em seu termo, nenhuũ naõ usase de feitiços,

nem de leguamentos, nẽ de chamar diabos, nem descamtaçoẽs, nnem dobra

de vedeira, nnem caramtolas, nem soennhos, nẽ lamçar roda, nem sortes, nẽ

outra nenhuma cousa que arte de ffisiqua naõ comsemta. E mais que naõ

camtasẽ janeiras, nem maias, nẽ outro nenhuũ mes do anoo, nnem furtasẽ

aguos, nẽ lamçasẽ sortes, nẽ outra ouservançia que a tal feito pertemçia

(CDJ, 2, cap. XL, p.101).

A crônica aponta que se tais atos fossem cumpridos a vitória seria garantida por Deus. E

assim que as boas notícias foram sabidas pelos povos de Lisboa, Lopes aponta que houve

muito alvoroço, euforia, procissões, missas e agradecimento. Além disso, o cronista faz uso

pela terceira vez no texto da voz de um clérigo e pregador para que as interpretações

pudessem tivessem um maior peso, confirmação política e religiosa a causa portuguesa.

Justamente por que a religião e os arautos dela desempenhavam “um papel predominante nas

representações do mundo e na organização das relações sociais” (SCHMITT, 2002, p. 237).

Os clérigos, de acordo com os costumes da cristandade medieval, como aponta Jean-

Claude Schmitt, eram conciliadores entre Deus e os homens, utilizando-se de preces, missas e

sermãos (SCHMITT, 2002, p. 238). Fernão Lopes, apresenta-nos Frei Pedro, “da hordem de

Saõ Francisco, gramde leterado em Theolesia e muy afamado de gramde preguador”, que

logo trata de apresentar o que ele considera como milagres e bons agouros a causa da arraia-

miuda portuguesa. A primeira metáfora que utiliza é a comparação dos portugueses com o

povos judeus e as maravilhas realizadas por Deus em benefício dos mesmos. Frei Pedro, a

partir de Fernão Lopes, aponta que

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já temos vistas algũas maravilhas das que Deus fez nos tempos pasados cõ os

povos dos judeus, hora vejamos nestes presemtes tempo se hobrou algũns

açerqua de nos que sejaõ maravilhas ant nosos holhos, como diz ho noso

teema, e certamente acharemos que sy (CDJ, 2, cap. XLVI, p.124).

Além do milagre da pestelança que atingiu os castelhanos no já trabalhado Cerco de

Lisboa, o frei apresentou um outro que foi relativo ao conflito decisivo para a confirmação da

ascensão de D. João I ao trono. Este seria

um quẽ costramgeo a boqua da filha dEsteve Anẽs Derreado, morador em

Evora, moça pequena de oito meses nada, que no berço homde jazia se

levamtou ẽ cu tres vezes, dizemdo cõ a maõ alçada: «Portuugual, Portugal,

Portugal, por el Rey dom Joaõ» (CDJ, 2, cap. XLVI, p.125).

Na intenção de demonstrar D. João I como o verdadeiro rei de Portugal e o escolhido para

salvar os portugueses das garras do Anticrito, o rei de Castela, Lopes apresenta-nos através

Frei Pedro a comparação do primeiro monarca avisino com um dos nomes da história

hebraica. O frei apresenta-nos que

asy como em outro tempo Moyses guiador do povo dos judeus mandou

enculcas a terra de promisaõ por saber que gemtes heraõ e toda sua maneira,

asy o nobre Rey dom João, guiador dos portugueses mamdou primeiro avisar

a oste dos castelaõos, por saber quejamda era e como corregidos (CDJ, 2,

cap. XLVI, p.127).

O sermão de Frei Pedro assemelha-se à uma profecia. Na comparação de D. João I com

Moisés vemos uma intenção de denotar o monarca como um escolhido que iria guiar o povo

português a um período de bonanças e salvação, a um reino prometido. Ao elencar estes dois

nomes, Lopes apresenta o messianismo. D. João I de Avis torna-se um redentor que pôs fim a

ordem anterior e iniciou um novo momento, de felicidade e justiça. O cronista demonstra

como Deus o favoreceu e o confirmou como messias.

O religioso procura, ao denotar os exemplos de choros, vitórias e aclamação pela boca de

uma criança de oito meses, mostrar a preferência divina em sua vitória. A pregação de Frei

Pedro finaliza-se com o agradecimento a Cristo, à Virgem e muitas lágrimas e soluços.

Portugal posteriormente passa a concentrar-se em retomar as cidades que ainda tinha voz por

Castela. A presença dos milagres, sonhos e profecias demonstrava um Portugal que

concretizava a defesa da fé cristã e da Igreja na luta contra o infiel, os castelhanos.

A narrativa de Lopes até este ponto encerra os relatos messiânicos que fazem de D. João

I rei ideal para a criação de um novo Portugal e de uma nova dinastia. Devemos ter em conta,

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porém, que tudo trata-se de um discurso político intencionado a levar a causa de Avis a sua

legitima presença em trono. D. Duarte, ao encomendar a escritura da história dos reis

portugueses a Lopes intencionava antes de tudo construir memória e por consequência, uma

nova história.

Ao analisar a Crónica de D. João I na tentativa de entender o discurso histórico do

cronista uma realidade empírica, é que Luís de Sousa Rebelo, pesquisador português e autor

do livro “A concepção de poder em Portugal” (1983), infere sobre a existência de três grandes

planos. Estes seriam o plano ético-político, o jurídico e o providencial. O primeiro destes

arranja-se em uma concepção de que a prática do poder é indissociável da moralidade. A

partir do plano ético político, podemos tecer conexão com o plano jurídico, já que a noção de

bem comum e de um rei justo caminharam lado a lado durante toda a Idade Média e início da

Moderna.

A ligação com o terceiro plano também se faz presente, já que a arte política medieval

traça modelos de governante ideal, apresentado na figura de D. João I em detrimento da de D.

Juan de Castela. Monarcas, reis e imperadores eram os vigários de Deus, representantes

temporais do seu poder na terra. Por consequência, para Luís de Sousa Rebelo, o plano

providencial parte de todo um programa de persuasão e propaganda política, efetuada por

Fernão Lopes. O discurso assim torna-se coeso e tem como consequência ideológica a

consolidação do poder do fundador da dinastia de Avis, D. João I.

Com grande competência, Rebelo constrói a organização de tais planos dentro da crônica

e suas aplicabilidades. Os tais modelos de comportamento de rex justus levantados pelo

autor, perpassam por premissas essenciais ao plano ético-político. Estas tocavam na igualdade

do homem perante a lei, abuso e perversão do poder por uma oligarquia, – interpretação

extremamente ligada à personagem de Leonor Teles – o surto de sentimento de pertença e por

fim, a base moral e política da legitimidade, o grande intuito almejado à consolidação de uma

dinastia por parte de Fernão Lopes.

Neste capítulo analisamos as primeiras conotações do cronista régio do messianismo e

milenarismo para com a figura de D. João I. Porém, a arte narrativa de Lopes não termina em

somente interpretações de sonhos, milagres, profecias e intervenções interpretadas como

divinas. Fernão Lopes demonstra como sua construção e interpretação dos acontecimentos os

quais pesquisou por vestígios orais e documentais, já que era guarda-mor das escrituras do

Tombo, foram muito além. Na terceira e última sessão deste trabalho, apresentaremos a

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consumação da obra de Lopes a partir da construção da noção de um “Evangelho Português”

e de uma nova idade presente nos cursos da cristandade, após Cristo, iniciada com os feitos de

D. João I. Por fim, temos por intenção denotar o sentimento de pertença e a construção de

memória na escrita de Fernão Lopes em contraponto com a historiografia presente até então.

Figura 3 - Batalha de Aljubarrota segundo iluminura da Chronique de France et

d'Anglaterre, de Jean Wavrin (Museu Britânico). Século XV.

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CAPÍTULO 3

PODER, MEMÓRIA E CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE PORTUGUESA NA

CRÓNICA DE D. JOÃO I

No capítulo anterior tratamos de como o mito messiânico foi utilizado por Fernão Lopes,

na Crónica de D. João I para que a imagem do mesmo como monarca ideal e escolhido fosse

propagada na história da Dinastia de Avis e nas gerações a vir dos portugueses.

Demonstramos como, por meio de profecias, sonhos, milagres e visões, transformou-se em

sagrada a mensagem propagandística do poder de fato da nova casa real. Através da voz dos

clérigos, das crianças e das populações que ficaram ao lado de D. João I, difundiu-se uma

nova realeza e linhagem. Santificada e abençoada pelos seus nobres feitos e pela corte celeste.

(COELHO, 2010, p. 71)

Entretanto, o estudo da mitologia política em volta da figura de D. João não se finda aqui.

Neste último capítulo trataremos como o milenarismo e a teologia se fazem presentes no

discurso construído por Fernão Lopes para legitimar o rei em questão e a dinastia que se

iniciava. Para isso, o cronista apoia-se em teóricos e em filosofias que circulavam na Europa

no seu tempo de escrita, o século XV. Ao fim do capítulo, tentaremos compreender se a

crônica representa, em alguma medida, um latente sentimento de “identidade nacional” no fim

dos séculos XIV e XV.

1. Portugal como destino: A Sétima Idade e o Evangelho Português

Fernão Lopes, ao escrever os trabalhos encomendados e examinados pelo monarca D.

Duarte foi autor do mais vistoso monumento literário que o reino de Portugal viu nascer no

século XV. Os monarcas portugueses ficaram conhecidos na história como reis que

impulsionaram os estudos universitários e a escrita. O poder real, ao fim da Idade Média, foi o

maior patrocinador da história do reino em língua portuguesa. Passou-se a ter noção de que a

memória dos feitos contribuiria para recompensar os homens e valorizar a imagem de um

povo (FRANÇA, 2006, p. 11).

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São três as crônicas indiscutivelmente escritas por Fernão Lopes: Crônica de D. Pedro,

Crônica de D. Fernando e Crônica de D. João I. Vale notar que esta trilogia é

interdependente, acontecimentos revelados em uma, possuem terminações e explicações na

obra seguinte. Neste capítulo, continuaremos com as análises da terceira crônica escrita e do

discurso presente na mesma. Porém, partiremos agora para a análise com maior presença do

milenarismo e da escatologia, em que Fernão Lopes passa a ver Portugal como destino de

uma nova era e D. João como o iniciador da mesma.

Em relação ao messianismo, observamos como Fernão Lopes mostrou a construção da

ideia de Messias de Lisboa para D. João, pelas populações de cidade e como a mesma é

caracterizada como uma “vhiuba e descomssollada, nom teemdo outro que emparasse, senom

o Meestre” (CDJ, I, cap. CLXII, p. 349). Os conflitos bélicos contribuíram na difusão de uma

imagem guerreira e de mártires para os que foram caracterizados como os “verdadeiros

portugueses”, denotando, segundo o discurso do cronista, a sacralidade do novo rei. E por

fim, a legitimação de um destino de uma nova família real e de todo o Portugal através de

sonhos, profecias e milagres.

No caso do milenarismo, vemos Lopes utilizar-se da teologia em voga, apresentando as

noções de Sétima Idade e Evangelho Português. Ambas são polos de alegoria criados por ele,

para que o quadro providencial de sua obra fosse completo. Com tais metáforas, segundo Luís

Rebelo, “as manifestações de simpatia e apoio popular ao Mestre de Avis, as premunições e

sinais de ordem sobrenatural, que o elegem como objecto, ganham a força da prova

necessária à legitimação da personalidade carismática do Mestre” (REBELO, 1983, p. 52).

Lembrando que o cronista apresenta suas duas analogias no momento em que comemora a

vitória de Portugal após a Batalha de Atoleiros e o Cerco de Lisboa.

A Sétima Idade trata-se da absorção e adaptação de teorias que circulavam no tempo de

escrita do cronista. A partir dessa conotação, percebe-se claramente o acesso e leitura que

Fernão Lopes tinha de textos filosóficos e da alçada teológica. Utilizou-se de nomes como

Beda, o Venarável, João de Salisbury e Aristóteles. Com Beda (672-735) e Eusébio de

Cesaréia (265-339) Fernão Lopes cria a Sétima Idade. As idades de Beda dividiram o curso da

história do reino de Deus em seis idades. A primeira de Adão a Noé, a segunda de Noé até

Abraão, a terceira até David e assim por diante, até a sexta idade, após a vinda do Salvador,

Jesus Cristo.

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Deve ser levado em consideração que esta é uma elaboração que se relaciona à

construção já clássica no tempo do cronista. Em pensamentos e análises que teriam sido

influenciados por Santo Agostinho, “a cronologia cristã envolvia a identificação de

diferentes períodos: infantia (da criação de Adão e Eva ao dilúvio), pueritia (do dilúvio a

Abraão), juventus (de Davi ao exílio da Babilônia), aetas senior (do Exílio ao nascimento de

Cristo) e senectus (de Cristo ao fim dos tempos)”(ZIERER, 2006, p. 143). Sendo uma

metáfora, o cronista apresenta a Sétima Idade como um tempo de paz e prosperidade na terra

que se iniciaria com a revelação da figura do Mestre de Avis (GUIMARÃES, 2008, p.199).

Entretanto, “ao contrário de Beda que identifica a sexta idade como um período de

decadência antes do Juízo Final, Fernão Lopes institui a Sétima Idade na terra e vê esta

tempo como uma época de paz e prosperidade” (ZIERER, 2004, p.175). Ainda, a partir da

apropriação de tais ideias pelo cronista é importante notar que os séculos XIV e XV são

marcados pela noção de que o fim dos tempos estaria próximo. Em Portugal, tais concepções

tornam-se ainda mais latentes por conta da situação política, econômica e social em que se

encontrava o país. A crise dos fins da Idade Média trouxe junto com ela a esperança de um

governante redentor que poria fim à situação instalada.

Assim, “como quem jogueta per comparaçom”, (CDJ, I, cap. CLXII, p. 350) ou seja,

utilizando-se de metáforas, Fernão Lopes insere a Sétima Idade,

na qual se levamtou outro mumdo novo, e nova geeraçom de gemtes; porque

filhos dhomeẽs de tam baixa comdiçom que nom compre de dizer, per seu

boom serviço e trabalho, neste tempo forom feitos cavalleiros, chamamdosse

logo de novas linhageẽs e apellidos. Outro se apegarom aas amtiigas

fidallguias, de que já nom era memoria, de guisa que per dignidades e

homrras e offiçios do rreino em que os este Senhor seemdo Meestre, e

depois que foi Rei, pos, montarom tamtoao deamte, que seus deçendemtes

oje em dia se chamam doões, e som theudos em gram comta. E assi como o

Filho de Deos chamou os seus Apostollos, dizemdo que os faria pescadores

dos homeẽs, assi muitos destes que o Meestre acreçemtou, pescarom tamtos

pera ssi per seu gramde e homrroso estado, que taaes ouve hi que tragiam

comthinuadamente comssigo viimte e trimta de cavallo; e na guerra que sse

seguio os acompanhavom trezemtas e quatroçemtas lamças e alguuns

fidallgos de linhagem. Assi que esta hidade que dizemos que sse começou no

feitos do Meestre, a quall pella era de Çesar per que esta crônica he

cõpillada, há agora seseemta annos que dura; e durara ataa fim dos segres

ou quamto Deos quiseer que as todas criou (CDJ, I, cap. CLXIII, p. 350).

Nota-se a clara associação do monarca com a figura de Jesus e dos homens e

companheiros aos próprios apóstolos, onde está latente o ideal messiânico e escatológico.

Ainda, é possível percebermos o período de permanência do reino que seria sagrado e estaria

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vinculado antes de tudo à vontade divina de Deus. A utilização de sonhos, milagres, sinais

providenciais, profecias e idades são pontos de articulação na estrutura da obra de Fernão

Lopes. Segundo Luís Rebelo, visam apresentar o assenso divino a uma nova concepção de

poder colocada em pratica com a nova dinastia (REBELO, 1983, p.57).

No fragmento também podemos perceber a partir da fala do cronista, como o mesmo

interpreta a alteração da estrutura social de corte que se encontrava em torno do monarca.

Segundo os historiadores, um dos grandes méritos do movimento de 1383, foi o de solapar

uma nobreza feudal – que já não estava em boa situação, pois segundo aponta José Mattoso,

ela não havia se adaptado “à economia de mercado que se alastrava constantemente a partir

das cidades” (MATTOSO, 1987, p. 284) – e de um direito tradicional em contraponto de um

direito de naturalidade das populações locais que apoiaram a luta do Mestre de Avis ao trono.

A alteração das elites políticas é consequência direta da fidelidade ao Mestre de Avis.

Então, de 1383 a 1385, vemos uma camada de origem secundogênita e um filho fora do

casamento ascendendo aos mais altos espaços da sociedade que se renovava em torno da nova

dinastia. A chegada ao poder de um rei bastardo e a legitimação de seus herdeiros abriram por

demais as oportunidades de escalada social para o grupo que o apoiou e que estava em

situação de desprivilegio. Mattoso aponta que

numa situação de luta como a que se deu com o assassinato do Andeiro e os

conhecimentos seguintes, os filhos segundos e bastardos viram na luta contra

os partidários da rainha, aliados a Castela, uma possibilidade de se

apropriarem das terras, bens e funções que eles forçosamente teriam de

abandonar no caso de perderem a partida. A inevitável inquietação

provocada pela sua falta de recursos próprios torna-os adeptos fáceis de um

partido que se apresentava com propósitos de alterar uma situação em que

eles não tinham hipótese alguma de viver mais desafogadamente.

(MATTOSO, 1987, p. 286)

A Sétima Idade adicionada à história escrita por Fernão Lopes representa a confirmação

da escalada ao poder dessa nova camada, que criara novas casas senhoriais e linhagens. O

cronista também os legitima e dá sentindo à nova ordem social, no momento da Batalha do

Aljubarrota, quando D. João I transforma em cavaleiros aqueles que estavam lutando ao seu

lado e Lopes faz o rol dos nomes e famílias que foram nobilitadas a partir dos apoios dados a

causa do novo rei (CDJ, II, cap. XXXVIII, p. 95-97). Assim, o trecho sobre esta tal idade,

acaba falando muito mais sobre a arraía-miúda e os que se nobilitaram com o Mestre do que

sobre ela mesma.

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A organização do discurso aqui analisado demonstra a Sétima Idade como um período de

justiça e de reparação dos danos sociais, a consumação da obra da criação e da história. A

idade pensada e colocada em texto por Fernão Lopes, em muito se assemelha ao Apocalipse

de São João, no qual as forças demoníacas – Castela e o reino Anticristo - são combatidas e

ao fim têm-se o advir de uma nova era e o retorno de Jesus Cristo, no caso português o rei

messias, D. João I. O sinal de ruptura entre as duas últimas idades – no caso português - é

exatamente o Cisma do Ocidente.

Na descrição de Fernão Lopes sobre a idade que ele mesmo adicionou, pode-se perceber

que a duração dela depende da vontade divina. Segundo Margarida Garcez Ventura, a Sétima

Idade possui “uma directa conotação no plano intra-histórico e na mobilidade social” e que o

tempo de plenitude não era para ser cumprido como uma vida futura no Céu e sim na terra. A

historiadora portuguesa infere que a Sétima Idade aproxima-se da noção cristã de criação do

mundo. Deus descansou no sétimo dia, e a idade criada por Fernão Lopes é o símbolo do

descanso do homem. (VENTURA, 1992, p. 64-69)

Jacques Le Goff, em seu livro História e Memória (2003), apresentou-nos como os

homens, para satisfazer suas necessidades de justiça e felicidade, imaginaram a existência de

épocas futuras e idades míticas repletas de farturas e plenitudes (LE GOFF, 2003, p. 283).

Segundo o historiador francês, as idades míticas sempre representam um retorno a uma

situação inicial, um paraíso - seja celeste ou mesmo da terra - antes do fim do mundo, a partir

do regresso de Cristo e teria a duração de um milênio. (LE GOFF, 2003, p. 284)

É importante notar que o momento desta grande crise na Cristandade acabou fazendo

com que as concepções do abade de Cister, que no fim da vida foi chefe da pequena

congregação de Da Fiore, Joaquim de Fiore (1132-1202), se expandissem com maior rapidez

e acepção. Desta forma, infere-se que a principal obra do abade foi a de escrever– De unitate

e essentia Trinatis – sobre três idades em que se dividiria o curso da história da Cristandade: a

Idade do Pai, a do Filho e a do Espírito Santo.

Jacques Le Goff aponta que as ideias do abade de Cister e a onda de influência delas, o

joaquimismo, é um grande exemplo de como a utilização das idades míticas torna-se na Idade

Média uma arma ideológica e política. (LE GOFF, 2003, p. 309) Nos escritos de Joaquim De

Fiore, a última idade seria a Idade dos Monges ou do Evangelho Eterno, onde aconteceria a

reunificação da Igreja, depois de um longo período de tribulações (FALBEL, 1976, p.72).

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Nota-se que nesta última idade, as pessoas abraçariam a pobreza de Cristo e por

consequência, se corrigiriam as imperfeições subsistentes e se consumaria a plenitude da

mensagem evangélica. Diante de tais aspectos, o discurso que foi feito por Fernão Lopes para

criar a legitimação da Dinastia de Avis e a consequente consolidação da figura de D. João I

como a do “Messias de Lisboa”, vale-se inteiramente da associação e reinterpretação das

ideias de Joaquim de Fiore. O Mestre de Avis surge na crônica como o fundador da Idade do

Espírito Santo, como uma espécie de Imperador dos Últimos Dias, combatedor do Anticristo

e libertador carismático do reino português (ZIERER, 2004).

A marca do último Imperador esteve presente em diversos movimentos milenaristas que

se baseiam na ideia da salvação coletiva. Este é um chefe religioso, um salvador que

estabelecerá um reino de paz e faturas. O seu reinado vence os inimigos de Cristo e são

convertidos os judeus e pagãos. Ana Paula Megiani caracteriza que este é líder perfeitamente

sábio, justo e protetor dos fracos. “Para o homem medieval este soberano representava a

garantia de que no futuro todos os seus sofrimentos seriam recompensador em um reino de

abundancia e felicidade” (MEGIANI, 20043, p. 39).

Segundo Adriana Zierer, o Imperador dos Últimos Dias

é um tipo de rei que deu origem ao messianismo régio é o chamado Rei ou

Imperador dos Últimos Dias, uma espécie de rei messiânico que estabelece

um período de felicidade na Terra antes do Juízo Final e que combate ao

Anticristo. No período medieval ele foi associado a dentre outros, ao rei

Artur, Carlos Magno, Frederico Barba Ruiva e a Frederico II (ZIERER,

2005, p. 362).

As analogias de Fernão Lopes, porém, não se findam com a noção de Sétima Idade. A

poderosa associação com a Bíblia e com as teorias advindas da teologia medieval que estavam

em circulação na época balizam a mais complexa analogia de Fernão Lopes que é a do

Evangelho Português. Utilizando a Bíblia como parâmetro e apresentando o monarca D. João

I como grande redentor de Portugal e iniciador de uma nova era de justiça e felicidade, criou-

se a noção de que um novo capítulo da Cristandade havia sido criado, agora em Portugal –

equiparado à Nova Jerusalém prometida no Apocalipse de São João. O Evangelho Português

do Mestre de Avis apresentado por Fernão Lopes prega uma sociedade mais justa na qual os

humildes serão protegidos pelo rei, o qual garantirá a salvação aos portugueses (ZIERER,

2004, p.173).

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O relato do Evangelho Português inicia-se com a exaltação da cidade de Lisboa, “pois

ella foi madre e cabeça” (CDJ, I, cap. CLIX, p. 339) dos feitos que os cidadãos “poemdo os

corpos e vidas, por homrra do rreino” (CDJ, I, cap. CLIX, p. 339). Lopes insere em seguida,

na sua confirmação, Nuno Álvares Pereira, cujos bons serviços, glória e louvor, “numca foi

eclipsi nem perdeo seu lume”. Nuno, segundo a perspectiva do cronista,

assi como o Filho de Deos depois da morte que tomou por salvar a humanall

linhagem, mamdou pello mumdo os seus Apostollos preegar o evamgelho a

toda creatura; por a qual rrazom som postos em começo da ladainha,

nomeando primeiro sam Pedro; assi o Meestre, depois que sse despos a

morrer se comprisse, por salvaçom da terra que seus avoos gaanharom,

emviou NunAllvarez e seus companheiros preggar pello reino ho evamgelho

portuguees; o quall era que todos creessem e tevessem firme ho Papo

Urbano seer verdadeiro pastor da egreja, [fora de cuja hobediencia

nehu salvarse podia;] e com isto teer naquela creẽça, que seus padres

sempre teverom, comvem a saber: gastar os beẽs e quamto aviam por

deffender o rreino de seus emmiigos; e como por mamter esta ffee

espargerom seu sangue ataa morte (CDJ, I, cap. CLIX, p. 340).

Percebe-se que a anunciação do que é caracterizado como “evamgelho portuguees” é

identificado a partir da comparação de Nuno Álvares Pereira para com os apóstolos, assim

como os restantes dos seus companheiros que haviam apoiado o Mestre de Avis. Esse

evangelho acontece quando todos creem no Papa Urbano como o firme e verdadeiro pastor da

Igreja. Fora desta crença não poderia haver salvação. Ou seja, o que o Fernão Lopes quer

transmitir com a mensagem do Evangelho Português é a de que se lutas contra Portugal, não

terás como vencer. Não há salvação para aqueles que lutam contra tal reino ibérico.

A identificação do Papa Urbano VI (1378-1389) de ser o “verdadeiro pastor da egreja” é

resultante do enfrentamento presente na Cristandade medieval, do Cisma do Ocidente. Tal

papa no momento era o residente em Roma. Em Avignon, tinha-se o que era chamado na

época e também por Fernão Lopes de Antipapa, o falso papa. Este foi Clemente VII (1378 -

1394).

Já foi tratado anteriormente neste trabalho que na Crónica de D. João I, este conflito está

exposto a partir da repartição de apoios de Portugal e Castela para com o papado. A oposição

declara-se com o apoio das populações dos “verdadeiros portugueses” com Urbano VI, o

devido papa residente em Roma e no caso de Castela, para com o patriarca de Avignon, na

França. Quando se iniciam os primeiros levantes nas ruas da cidade que foi a força da

“revolução”, Fernão Lopes conta que as pessoas bradavam nas ruas como forma de justificar

seus atos:

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- Justiça que mamda fazer nosso Senhor ho Papa Urbano sexto, neeste

treedor çismatico Castellaão, porque nom tiinha com a samta Egreja (CDJ, I,

cap. XII, p. 30)

O cronista, por meio de artifícios retóricos presentes em sua escrita, traz para o conflito

entre Portugal e Castela um estatuto religioso de guerra santa e justa. António Saraiva expõe

que o Evangelho Português é como uma “metáfora audaciosa, quase uma blasfêmia”

(SARAIVA, 1998, p.171) e que este seria permeado por duas caracterizações essenciais, uma

religiosa e outra não religiosa que se beneficia da primeira. Segundo o pesquisador português,

é a característica ligada à religião permite o cronista “usar a expressão “evangelho”: a

fidelidade ao papa legítimo implicava a adesão à verdadeira fé, pois o antipapa era, para

todos efeitos, um herege. O efeito visado é evidentemente, associar as duas causas, a do papa

e a da defesa do Reino” (SARAIVA, 1998, p. 171).

Luís Rebelo denota que Fernão Lopes põe em prática, a partir do Evangelho Português,

uma “conciliação político-teológica” (REBELO, 1983, p. 88) que é, antes de tudo,

consequência da ordenação anterior do discurso presente na crônica. O discurso que é criado

para a legitimidade do acesso ao poder da casa de Avis, alicerça a nova monarquia. E Lopes

fez isso através de um “sincretismo em que concilia a filosofia política e a teoria religiosa”

(REBELO, 1983, p. 87).

Posteriormente Fernão Lopes reutiliza a figura de Nuno Álvares Pereira para fazer a

comparação definitiva com os seguidores de Jesus Cristo. O cronista denota que

assi como o nosso salvador Jhesu Christo, sobre Pedro fumdou a sua egreja

damdolhe poderio que aquell que legasse e assolvesse na terra, seria legado e

assolto nos ceeos, assi o Mestre que sobre a bomdade e esforço de Nuno

Allvarez fumdou a deffemssom daquella comarca, lhe deu livre e isemto

poder, que ell podesse poer alcaides; e tomar e quitar menageẽs; e dar beẽs

moviis e de rraiz; e poer temças e tirallas; e todallas outras cousas, assi

perfeitamente como o Meestre dellas husar poderia (CDJ, I, cap. CLIX, p.

342)

Percebe-se a clara associação de D. João I a Jesus Cristo e do seu maior comandante

militar com São Pedro. Associado à imagem do monarca estava ainda a nobreza

secundogênita, com seu maior representante em Nuno Álvares Pereira. Este é representado

como uma figura de uma nobreza ideal, cuja ligação primordial seria com o reino e com o

monarca. Em oposição estava a nobreza tradicional, acusada de apoiar o reino de Castela na

invasão a Portugal.

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Porém, posteriormente, todo o poderio legado a Nuno Álvares Pereira torna-se um perigo

à monarquia. O nome do nobre está envolvido na fundação da casa de Bragança, a terceira

dinastia portuguesa. Tal casa, posteriormente real, adquiriu forças e posses por meio de seus

fundadores, D. Afonso (filho de D. João I com D. Inês Pires Esteves) casado com D. Beatriz,

filha do Condestável do reino Nuno Álvares Pereira, ele mesmo já filho de um padre Prior da

Ordem do Hospital.

Tal situação ocorreu por conta do comandante militar de D. João I, Nuno Álvares Pereira.

Após os espólios de guerra conseguidos com o fim dos conflitos, seu poder tanto político

quanto financeiro passam a rivalizar com o poder real. Nas Cortes, chegou a ser denominado

de “rei sem reino” (COELHO, 1965, p.128). Foi conde de Ourém, conde de Barcelos, conde

de Arraiolos e conde de Neiva, com uma acumulação de património e poderio jamais vistos

em Portugal. O retorno da riqueza para a casa real foi solucionado por meio da política de

casamentos. O genro do comandante militar D. Afonso foi nomeado conde de Barcelos e

recuperou parte do património à casa real e por consequência deu início à casa de Bragança,

terceira dinastia portuguesa e descendente da Dinastia de Avis por via colateral.

Vale ressaltar que o verdadeiro mérito de Fernão Lopes ao ter criado o Evangelho

Português foi o consequente fortalecimento da imagem do rei e uma maior evidência do

epíteto, “Rei da Boa Memória” para o monarca D. João I. Tal nomenclatura deve-se

principalmente ao fato de que o Mestre de Avis, chefe da revolução e rei eleito, mantém-se

fiel aos homens que o colocaram no trono (COELHO, 1965, p.127). Durante os cinquenta

anos do reinado de D. João I (1385-1433) reuniram-se vinte e sete vezes as Cortes do reino,

de dois em dois anos em média. Isso são mais vezes que em todos os reinados dos séculos

XIV e XV (COELHO, 1965, p.146).

Ainda, a obra de Fernão Lopes deixa posto a quem se dedica a lê-la uma noção de que o

rei em questão, D. João I, o Mestre da Ordem de Avis apresentava-se como um monarca

inteiramente poderoso, com ares de um governante absolutista - se é que esta terminologia é

correta. Em contrapartida, a figura do rei medieval evoluiu e mudou durante o longo período

em curso. Este, na realidade era limitado pela lei e dualizava com outros poderes em voga na

sociedade da época, como os grandes senhores feudais e o poder papal (LE GOFF, 2002, p.

400).

Vale ressaltar que o governo de D. João I foi marcado pelo aumento de impostos, grande

inflação, fracasso inicial dos feitos econômicos intencionados em Ceuta, guerras prolongadas

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contra Castela e várias reclamações dos pequenos contra os abusos dos grandes. A tão

conhecida “Revolução de Avis”, termo pelo qual é conhecido o período histórico em questão,

na realidade não representou a era tão prometida aos verdadeiros portugueses nas analogias do

abade calabrês Joaquim de Fiore e do anglo-saxão Beda. Ficou relegada, na prática, somente

no plano do imaginário.

É importante ter em conta também que as alegorias compostas por Fernão Lopes,

principalmente nos capítulos sobre o Evangelho Português e a Sétima Idade, não perpassam

somente as noções que envolvem milenarismo e esperas messiânicas. Para legitimar a figura

do Mestre de Avis, foi necessária a associação de sua figura com as camadas populares. D.

João I havia se tornado o pai da “arraia-miúda”, grande defensor da cidade de Lisboa, que se

encontrava “viúva” e clamava por um novo representante. Essa será a discussão do tópico

seguinte, a dicotomização dos personagens sem nomes presentes na crônica, o povo.

2. Naturalidades em oposição: o azambujeiro bravo e a mansa oliveira portuguesa

No primeiro capítulo deste trabalho, apresentamos a discussão da obra de Fernão Lopes e

de como alguns autores compreendem e interpretam a maneira como ele escreve, apresenta

suas concepções, o discurso político imbuído do religioso do cronista, a presença da teologia e

entre outros. Para adentrar o que vai ser tratado neste tópico, concordamos com António

Saraiva, que em sua obra História da Literatura Portuguesa, aponta que aquilo que pode ser

apreendido em Lopes e que o diferencia de outros cronistas da Idade Média “é a larguíssima

visão de conjunto que lhe permite discernir muito mais do que os feitos dos reis e cavaleiros

– todo o processo histórico da revolução que transformou nos séculos XIV e XV a sociedade

portuguesa” (SARAIVA, 1965, p. 24).

Para Saraiva e para os historiadores que tentam encontrar os componentes da “revolução”

em sua crônica, – já que ela é a principal fonte entre muito poucas sobre o reinado de D. João

I – Fernão Lopes intenciona antes de tudo demonstrar que os atos do povo foram cruciais para

a vitória portuguesa sobre Castela. Que as camadas populares possuíam um amor pela terra e

que a nobreza, a partir de conotações de vassalagem feudal, era seduzida pelos espólios de

guerras e recompensas materiais que poderiam vir do monarca do reino vizinho.

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António José Saraiva afirma que Lopes “não é o cronista de D. João I ou de Nuno

Álvares, mas o cronista da revolução” (SARAIVA, 1965, p. 24). Deve-se ter em conta que o

guarda-mor das escrituras do Tombo escreve em prol daqueles que contrataram os seus

serviços como homem letrado. O povo aparece na crônica de Fernão Lopes de forma efetiva e

decisiva sim, mas em certos espaços é até mesmo criticado por ele. As narrações de suas

ações são sempre demonstradas como guiadas e com bastante “sanha”. O povo é visto como

uma “massa” e os casos individuais aparecem para ressaltar algumas casas e seus

componentes como heróis. Como é o caso de Nuno Álvares Pereira.

Nos primeiros capítulos da Crónica de D. João I, Fernão Lopes apresenta episódios em

que demonstra o povo intencionando roubar os judeus na judaria e reverter os bens dos

mesmos ao Mestre de Avis; têm-se o assassinato da Abadessa e do Bispo de Lisboa ao serem

jogados do alto da Torre da Sé e entre outros. O cronista afirma que a “sanha trigava os

coraçoões de todos [...] e posto que alguũas pessoas taaes cousas parecessem mall e

desonestamente feitas, nehuũ era ousado dizer o contrario” (CDJ, I, cap. XII, p. 29-30).

A. H. de Oliveira Marques adiciona que o Portugal feudal e senhorial opôs-se ao Portugal

urbano e concelhio (MARQUES, 1987, p. 525). Paulo Accorsi Júnior, que segue as

proposições de Oliveira Marques, insere que essa situação tornou-se possível, pois os

camponeses, os mesteirais e a marginalidade que surgiu com o momento de recessão pelo

qual o reino de Portugal passava, reagiu aos anos de submissão e desmandos. Armaram-se e

agiram de forma violenta em várias localidades do reino. Assassinaram oficiais régios, juízes

e membros da nobreza em bandos. Foram crimes de massa que aterrorizaram as regiões mais

afastadas e a própria capital (ACCORSI JÚNIOR, 1997, p. 57-58).

Quando se tem o início das preparações de guerra e a ascensão de D. João à posição de

defensor do reino de Portugal, Fernão Lopes nos demonstra a bipolarização. As populações

subalternas de Lisboa e de todo o reino, que o autor apresenta como “arraia-miuda”, teria se

colocado ao lado do Mestre de Avis. Já os nobres das antigas famílias, devido às noções de

vassalidade, apoiaram o rei de Castela. A divisão, entretanto, não se finda aí. O cronista nos

presenteia com a visão de “mansa oliveira portuguesa” e “azambujeiro bravo”.

Na escrita de Fernão Lopes

podemos em outra hordem nomear por martires os moradores de Lixboa, e

aquelles que com o Meestre seemdo cercado, esteverom em sua cõpanha, e

esto com justa rrazom; porque nom soomente som mártires, os que padecem

por nom adorar os idollos; mas aimda aquelles que dos hereges e sçismaticos

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som perseguidos por nom desemparar a verdade que tem (CDJ, I, cap.

CLX, p. 342).

Enquanto que de outro lado se tinha os que ficaram contra o Mestre de Avis, tomando

partido por Castela. Estes foram

emduzidos de todo per spiritu de Sathanas, e maao comsselho de falssos

Portugueeses, poucos e poucos leixarom seu boõ propósito, tornamdo a fazer

seus sacrifícios, e adorar os idollos em que amte criiam. E de alguũs delles

isto fazerom, sem damdo tall fruito quaaes folhas mostravom suas pallavras,

nom som tamto de culpar, pois que eram exertos tortos, nados dazambugeiro

bravo. (CDJ, I, cap. CLX, p. 343).

A nobreza natural é considerada uma traidora da causa. São “falsos portugueses”,

“vergôneas direitas, cuja naçença trove seu amtiigo começa da boa e mansa oliveira

portuguees, esforçaremsse de cortar a arvor que os criou, e mudar seu doço fruito em

amargoso liquor, isto he doer e pera chorar!” (CDJ, I, cap. CLX, p. 343-344). Fernão Lopes

leva em consideração o princípio da naturalidade para caracterizar os portugueses. A nobreza

que ficou ao lado dos castelhanos, hereges cismáticos, era considerada parte de um

“azambujeiro bravo”, porém eram filhos da “boa e mansa oliveira portuguesa”. Ser do

azambujeiro bravo denota uma natureza indômita, não cultivada. Natureza que não se

coadunou com a vontade das populações subalternas e com o futuro rei de Portugal.

(ACCORSI, 1997, p. 60-61)

Enquanto que os bons e verdadeiros portugueses são caracterizados como mártires,

apóstolos de discípulos que deram suas vidas pela causa que acreditavam ser a correta e que,

segundo a construção e o discurso de Fernão Lopes, era sagrada. Na comparação do Mestre de

Avis a Jesus Cristo e Nuno Álvares a S. Pedro, a arraia-miúda, os homes de mester e a parcela

da nobreza secundôgenita passaram a ser considerados homens de virtudes. Ser da “boa e

mansa oliveira portuguesa” representa cultivo e domesticação. São homens que geram bons

frutos e agem de acordo com o que o discurso de Fernão Lopes define como correto e

honroso. (ACCORSI, 1997, p. 61)

Segundo Maria Lúcia Perrone de Faro Passos, a representação da cidade e dos

“verdadeiros portugueses” feita em Fernão Lopes é uma faceta para inserir o heroísmo na

crônica, já presente com D. João I e Nuno Álvares Pereira. Ainda a autora se remete às

origens sociais do autor para explicar o porquê da caracterização tão forte feita às populações

subalternas. Perrone, apoiando-se no escritos de António Saraiva, denota que a sensibilidade

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cronística de Lopes está realçada por ele fazer parte desta comunidade lisboeta e medieval, tão

heterogênea e com problemas, crenças e aspirações que ele mesmo também compartilha

(PASSOS, 1974, p. 212).

A metáfora utilizando-se de árvores representa o primado de ligação com a terra. Accorsi

Júnior conclui que “valorização de laços entre homens pertencentes a um mesmo grupo

social, advindo do fato de em suas veias correr sangue nobre, deslocar-se-ia para uma

afinidade entre todos os “portugueses”, os “naturaes”, motivada por uma ligação visceral

com a terra” (ACCORSI JÚNIOR, 1997, p. 60). Segue abaixo um quadro comparativo que

coloca lado a lado as características de cada uma das classificações citadas por Fernão Lopes

(Quadro 1).

Quadro 1: Bons x Maus Portugueses na Crónica de D. João I de Fernão Lopes

BONS PORTUGUESES MAUS PORTUGUESES

Mártires

Boa Mansa Oliveira

Apóstolos

Discípulos

Adoradores de ídolos

Azambujeiro Bravo

“Enxertos tortos”

Inimigos mortais

Induzidos por Satanás

Pela situação política pela qual Portugal passou, ressaltamos que as camadas urbanas e os

mercadores passaram a ter acesso ao poder através das câmaras, Conselhos e até mesmo como

conselheiros pessoais do rei. Era necessário oferecer pressupostos lógicos para explicar e

justificar o porquê de pessoas pertencentes a camadas menos privilegiadas de acordo com os

costumes medievais haviam chegado a tão altos cargos.

Novos homens reivindicavam por antigos privilégios e o rei é apresentado como o guia

de uma nova nobreza. Um dos principais intuitos da dinastia que encomenda a escritura das

crônicas, para além da legitimação, é transformar o derrotado “azambujeiro bravo” em

“mansa oliveira portuguesa”. As crônicas régias possuem antes de tudo um papel educativo e

moralizador. Ademais, essas construções, ao serem observadas, podem ser consideradas

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como uma confirmação de que nos anos 1383 e 1385 há um grande indício de que os

habitantes do reino português possuiriam já uma latente “identidade nacional”.

Fernão Lopes, no prólogo da primeira parte da sua crônica, utiliza um termo “mundanall

afeiçom” e o caracteriza como

assi que a terra em que os homẽes per lomgo costume e tempo forom

criados, geera huũa tall comformidade amtre o seu emtemdimento e Ella,

que avemdo de julgar alguũa sua cousa, assi em louvor como per contrairo,

numca per elles he dereitamente rrecomtada; porque louvamdoa, dizem

sempre mais daquello que he; e sse doutro modo, nom escprevem suas

perdas, tam mimguadamente como acomtecerom (CDJ, I, prólogo, p. 2).

Em seguida apresenta que essa “afeição mundana” fez com que alguns historiadores

escrevessem os feitos de Portugal e Castela levando em consideração a história de D. João I a

partir dos feitos nobres e poderosos do Rei D. Juan de Castela, “poemdo parte de seus boõs

feitos fora do lovor que mereciam, e emademdo em alguũs outros, da guisa que nom

acomteçeram” (CDJ, I, prólogo, p. 2). Fernão Lopes, em seu caso aponta que

nos certamente levamdo outro modo, posta adeparte toda afeiçom, que por

aazo das ditas rrazoões aver podíamos, nosso desejo foi em esta obra

escprever verdade, sem outra mestura, leixamdo nos boõs aqueeçimentos

todo fimgido louvor, e nuamente mostrar ao poboo, quaaes quer comtrairas

cousas, da guisa que aveherõ (CDJ, I, prólogo, p. 2).

Segundo Fernão Lopes, o que ele faz em sua história é “hordenar a nua verdade”. Porém,

apegamdonos a ella firma, os claros feitos, dignos de gramde rrenembrança,

do mui famoso Rei dom Joahm seemdo Meestre, de que guisa matou o

Comde Joahm Fernamdez,e e como o poboo de Lixboa o tomou primeiro por

seu rregedor e deffensor, e depois outros alguũs do rregno, e dhi em deamte

como rregnou e em que tempo, breve e sãamente e comtados poemos em

praça na seguimte hordem (CDJ, I, prólogo, p. 3).

Tomando por base os escritos de Fernão Lopes a partir do prólogo, muitos historiadores

de origem portuguesa e lusófona das décadas do Estado Novo em Portugal, escreveram e

analisaram a Crónica de D. João I como um representativo de que a identidade portuguesa já

se fazia presente no século XIV. Deve-se ter em conta que esses historiadores e pesquisadores

de uma forma geral faziam parte de um momento em que a história de Portugal precisou

revitalizar a imagem do primeiro reino a se tornar o primeiro Estado Nacional português e

pioneiro no processo de expansão marítima para as terras do ultramar. Era o Portugal de um

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país que passava por um novo momento e que necessitava fortalecer a história para que, por

consequência, fosse revigorado e caracterizado como um governo de fato.

A recordação de um passado glorioso e de grandes conquistas por muito tempo, até

mesmo após o fim do Estado Nacional, esteve presente na historiografia portuguesa. Estudos

mais recentes levados a cabo por historiadores tanto portugueses como brasileiros de uma

nova geração passaram a repensar tais premissas. Continua-se a perceber o reino de Portugal

como um pioneiro no processo de expansão marítima e construção daquilo que pode ser

caracterizado como Estado Nacional. O que se coloca em discussão é a ideia de “revolução”

em 1383 e de latente identidade nacional.

José Mattoso foi um dos primeiros a começar a repensar tais premissas. Em sua

publicação, Fragmentos de uma composição medieval (1987), reconhece que 1383 não

modificou de forma definitiva as estruturas da sociedade portuguesa, mas acredita que a

utilização do termo “revolução” não é grandemente problemático para que seja usado sem

demasiados anacronismos. 1383 teria trazido suficientes mudanças e perturbações para

permitir a utilização do termo (MATTOSO, 1987, p. 278).

Anos depois, Mattoso juntamente com Armindo de Sousa em História de Portugal: A

Monarquia Feudal (1096-1480) questiona a memória sobre o reinado de D. João I. Apontam

que a vida da população portuguesa em tal momento não foi fácil. Citam que

até 1411 andou-se praticamente em guerra; a inflação monetária atingiu

níveis que nunca foram igualados em nenhum outro governo até hoje; as

tradicionais queixas do povo contra os privilegiados persistiram, tendo

mesmo recrudescido, conforme se lê nos textos parlamentares; os impostos

extraordinários, os pedidos, não só se tornaram crônicas, como até foram

lançados à rebelia das cortes e para finalidades diferentes da defesa nacional;

e, finalmente, coisa extremamente censurada e qualificada de roubo, as

“sisas”, imposto indirecto municipal, só em situações muito graves

concedidas a reinantes, foram apropriadas à coroa como se tratasse de

direitos reais. De modo que é grandemente equívoca a “boa memória” desse

rei que a tem por cognome. (MATTOSO; SOUSA, 1997, p. 417)

Felizmente, a produção de José Mattoso vai além. Na obra A Identidade Nacional (1998),

toma por base as construções de Erik Erikson, para elencar as condições necessárias à

percepção da identidade de qualquer objeto, individual ou coletivo. Assim, denota que a

identidade nacional pode ser notada a partir da percepção da coletividade de formarem uma

sociedade humana e a existência de uma história e língua em comum. Completa que a noção

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que se tem de identidade nacional hoje é diferente das anteriores e que os grupos humanos e

sociais a percebem de formas diversas (MATTOSO, 1998, s/p).

O livro trata da construção da identidade ao longo dos séculos da história de Portugal. Ao

tratar da Idade Média aponta que é pela obediência ao rei, por serem seus vassalos do

monarca português que se diferenciam de outros homens. Porém, ao mesmo tempo, denota

que “a compartimentação das sociedades medievais fazia prevalecer sobre qualquer outra

espécie de vínculos a ligação com o senhor da terra e com a comunidade da aldeia” e que

esta situação faz-se presente durante toda a Idade Média e grande parte da Moderna

(MATTOSO, 1998, s/p).

Ao falar de casos específicos como a formação do reino português com Afonso

Henriques e em 1383 com a relativa representatividade popular em cortes e conselhos, denota

que, apesar de Portugal ser o primeiro país da Europa, “estes antecedentes da democracia

ocidental não podem ser invocados como uma precoce manifestação favorável à consciência

da identidade nacional” (MATTOSO, 1998, s/p). Seguindo Bernard Guenée, aponta que para

um monge a “pátria” era o seu mosteiro, para um camponês, a sua aldeia, para um burguês a

sua cidade (MATTOSO, 1998, s/p).

Em 1383, tem-se um Portugal divido. As naturalidades são colocadas em oposição, os

portugueses são também bipolarizados e a autoridade régia não era acatada da mesma forma

em todas as partes do reino. Permaneceu antes de tudo a noção de vassalidade como a que

guiou principalmente a nobreza de Portugal no decorrer dos acontecimentos de 1383-1385.

Estes respeitaram os preceitos do Tratado de Salvaterra dos Magos que haviam assinado.

Mattoso defende a ideia de que o Estado Português não emerge de nenhuma formação

étnica preponderante, mas sim da gradativa mudança de respeito e obediência ao rei e não

mais aos senhores feudais. Porém, este processo não é levado a cabo de maneira forte e rápida

com a ascensão de D. João I ao poder, mas sim de forma gradual, ao longo das dinastias de

Avis e Bragança. Se realmente houvesse já um poder real de fato verdadeiro que combinasse

em comunidade todos os habitantes do reino não haveria necessidade de encomendar uma

obra que legitima a nova família real através de atributos messiânicos e milenarísticos.

Decerto, é a tentativa de forjar-se uma identidade portuguesa que tem no rei o seu centro e

que acaba por estar presente em toda a narrativa do cronista. De modo que vale reforçar que a

Crónica de D. João I é escrita com um intento: a legitimação da dinastia de Avis. Assim, é

preciso ter em conta que uma alegoria presente no discurso é posta em prática.

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Segundo Miriam Cabral Coser, historiadora brasileira que trabalha com a temática da

história da mulher partindo das crônicas de Fernão Lopes, a caracterização da Rainha Leonor

Teles por Fernão Lopes dá possibilidade, “não só a formação de uma imagem negativa para

o final do reinado da Dinastia de Borgonha, de maneira a justificar a Dinastia de Avis, mas

também a elaboração de uma ideia de coesão geográfica e populacional, o que será um

elemento indispensável na formação da identidade nacional portuguesa” (COSER, 2007,

p.18).

Assim, baseando-se na obra e escritos de Fernão Lopes, não é difícil encontrar

pesquisadores que afirmam encontrar sinais de que as crônicas denotam um sentimento de

identidade nacional já latente no Portugal do final do século XIV e XV. Porém, discordamos

dessa proposição. Aqueles considerados por Lopes como “verdadeiros portugueses” lutaram

em busca de riquezas e nobilitação, na intenção de serem recompensados por seus feitos

bélicos ao apoiar o Mestre de Avis.

A monarquia portuguesa, tal como suas vizinhas europeias nos finais da Idade Média,

constrói-se sobre um sistema de múltiplas alianças. Segundo Accorsi Júnior

no discurso cronístico, o Paço Real de Avis opôs o “natural” ao

“estrangeiro”, o “castelhano ao português”. Entretanto, o Eu e o Outro não se

definiram prioritariamente, por uma geografia de nascimento. Tornava-se

necessário agir e sentir como um “verdadeiro”,”limdo” ou “bom” português:

“bons” castelhanos também foram adjuvantes da causa do Mestre de Avis,

“falsos portugueses” conjuraram contra ela. O que define identidade e

alteridade no texto cronístico são sentimentos e comportamentos.

(ACCORSI JÚNIOR, 1997, p.191)

Porém, o mesmo autor posteriormente reitera que outro aspecto que deve ser observado a

partir da prosa construída pela casa de Avis é que a mesma refere-se à construção da

identidade nacional na sociedade portuguesa dos finais da Idade Média. Trata-se de forjá-la

para que se revelem os caracteres típicos dos atores como indivíduos. O português tem, na

escrita do cronista, sua lealdade definida a partir da fidelidade à terra, ao reino e ao Mestre de

Avis. Trata-se também de legitimar a nova nobreza enquanto um grupo social, de moldar a

imagem do “natural”, do “verdadeiro português” (ACCORSI JÚNIOR, 1997, p.139).

A historiadora Margarida Garcez Ventura também segue a mesma linha de pensamento de

Paulo Accorsi Júnior. Tal pesquisadora portuguesa demonstra que a escrita de Lopes também

funciona como uma forma de denúncia da “cupidez dos “meudos” que perseguiam os bons e

honrados para lhe ficarem com os bens, aliás com o aval do Mestre.” (VENTURA, 1992,

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p.53). Ventura aponta que muitas vezes a revolta das camadas populares e da burguesia foi

levada pela inveja, ódio e despeito. “Afinal, Fernão Lopes critica os meios pelos quais parte

da nobreza e da burguesia contemporâneas das crônicas alcançaram esses status”

(VENTURA, 1992, p.53).

Diante de tais aspectos,

toda a questão do “sentimento de nacionalidade” associado ao povo poder deve

ser vista como uma estratégia política utilizada por Fernão Lopes para garantir a

legitimidade do novo monarca. Este será um dos elementos do “discurso do

paço”5. É certo que a nova dinastia estimulou o sentimento de pertença a uma

unidade maior, o que seria um embrião do sentimento de nacionalidade (no

sentido da passagem do vassalo ao súdito), capaz de garantir mais tarde, a

constituição do Estado, no sentido dado ao Estado Moderno. (ZIERER, 2004,

p.30).

Logo, acreditamos que “no tempo do cronista Fernão Lopes, ainda não temos uma

imagem concreta do que é ser português naquele momento, uma vez que não conseguimos

localizar um latente sentimento de pertença que seja um fator identitário de um grupo.”

(VIEIRA, 2010, p.81). O que mais está presente é a imagem de Portugal e de seus naturais

unidos em um sentimento comum que se fortalece ao longo de sua escrita. Lutam por

riquezas, pelas suas posses, por nobilitação, pelo apoio ao Mestre de Avis, não por Portugal.

Existe um forte sentimento de pertença, não necessariamente identidade.

O momento deixado em crônica por Fernão Lopes representava o surgimento de um novo

direito contrário ao direito tradicional ou dinástico que correspondia ao direito de um senhor

suceder o outro na posse do patrimônio e do título. Tal novo direito era o direito natural da

população da terra de renegar um senhor que não é o seu, um senhor de outra nacionalidade

ou etnia e de optarem por um senhor “natural”. Era o direito dos homens sujeitos ao domínio

e à subalternidade. É este complexo que Fernão Lopes chama de “mundanal afeiçom” e

relacionava-se não só ao embate entre Portugal e Castela, mas também à oposição entre

dominados e dominadores, à cadeia de vassalagem (SARAIVA, 1998, p.168-169).

5 Conceito já discutido neste trabalho e desenvolvido pela historiadora Vânia Leite Fróes.

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3. História e memória na Crónica de D. João I de Fernão Lopes

A memória, dentro dos costumes medievais, era considerada um dos elementos

constitutivos da literatura. Jacques Le Goff, ao estudar as características da memória em seu

livro História e Memória, acrescentou que na Idade Média, a construção de uma memória

corresponde a destruição de outra (LE GOFF, 2003, p. 437). Especialmente se essa memória

era constituidora de poder político. A mesma, quando é escrita, permite reexaminar, reordenar

e remontar frases e dar sentido e poder ao que está no papel. A memória escrita torna-se

documento e deixa para as gerações posteriores somente aquilo se achou interessante e

importante para ser recordado. Ou como diz o cronista Fernão Lopes, “feitos dignos de

gramde rrenembrança”, a “simprez verdade, que a afremosemtada falssidade” (CDJ, I,

prólogo, p. 3).

Não precisamos aqui esclarecer as noções de que para o cronista e guarda-mor das

escrituras do Tombo são as de uma verdade que é aquela que antes de tudo interessa ao reino

pelo e para o qual escreve. É a “verdade” que a dinastia de Avis deseja propagada para a

História e a que a nova família real antes de tudo necessita. A constante lembrança das

origens de 1383 e dos Avis é uma ameaça à legitimidade de sua influência e poder. Por isso a

necessidade de dar às origens uma aura religiosa, para que fossem confirmados no trono

através de sinais e acontecimentos sagrados.

Maria Lúcia Perrone de Faro Passos aponta que no momento em que o cronista em

questão passa a “tratar de Lisboa e dos seus habitantes, o cronista dá um salto vertiginoso da

crônica à História, dos retratos dos grandes homens para o estudo da colectividade, dos

grupos sociais e econômicos, actuantes e inter-dependentes” (PASSOS, 1974, p. 213). Existe

sim em Fernão Lopes algo de diferente em relação aos cronistas seus contemporâneos. Ao

dedicar boa parte de sua escrita a escrever os nomes dos que seguiram o Mestre de Avis e os

seus feitos, a rebeldia das populações subalternas em Lisboa e em todo o reino, o escritor deu

voz e representatividade aos que, segundo a noção social da Idade Média, pouco ou não

nenhum acesso teriam para deixar escritas as suas histórias.

É a origem simples de Fernão Lopes que coloca a importância da arraia-miúda na

Crónica de D. João I, mas é também a necessidade de colocar em boa imagem e posição os

do partido do novo rei, que agora faziam parte dos conselhos citadinos, cortes e eram

conselheiros privados do rei. Compartilhamos aqui da noção de Maria Ângela Beirante, citada

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no primeiro capítulo deste trabalho, ao relembrar que o autor do texto aqui analisado recebe

títulos de nobreza e vassalidade ao rei com D. Duarte. Quando Fernão Lopes escreve, o faz

em benefício de um senhor que também é seu. Deixa na memória uma imagem positiva para o

grupo o qual agora fazia parte.

E essa memória foi extremamente forte. Até os dias atuais podemos encontrar vestígios

da mesma na historiografia. Consideramos que hoje em dia para D. João existem duas

memórias. A primeira é a de que o monarca em questão melhorou em muito o reino de

Portugal a partir de sua gestão. Que com sua ascensão ao trono tem-se uma melhora das

condições político-sociais do reino; com D. João I iniciou-se uma nova era portuguesa que

desemboca na conquista da Ceuta, em 1415. E uma nova memória, que passa a ser construída

tanto por pesquisadores portugueses quanto brasileiros de que esta imagem deve ser

repensada. Deve se analisar mais a fundo o Portugal pós 1385 e as conjunturas do reinado de

D. João para que a imagem messiânica seja desconstruída. A partir das ideias lançadas por

José Mattoso, aqui citadas anteriormente, passaram a nascer novos problemas e novas

abordagens.

Porém, não é somente através da escrita das crônicas de Fernão Lopes que foi relegado

para os séculos seguintes a história e os preceitos da Dinastia de Avis. D. João I, por possuir

uma “mácula” em sua origem (a bastardia) efetiva um grande número de esforços para que

uma imagem positiva do início da Dinastia de Avis ficasse presente na história e na memória.

Neste sentido, insere-se aquilo que os historiadores denominaram de prosa moralística. Foi

um momento de grande produção de obras de cunho pedagógico à sociedade cortesã do início

do século XV.

Este século foi um século moralista em que os príncipes intencionavam ensinar, emitindo

juízos morais a respeito de tudo: do quotidiano, de leituras, de doutrinas, virtudes e vícios,

doenças e prazeres (MATTOSO, 1997, p. 455). O próprio do D. João I escreveu entre 1415 e

1433 o Livro da Montaria onde o monarca apresenta os aspectos da caça e a denota grande

importância. Para tal rei, tal atividade era uma verdadeira arte, “pois adestrava e disciplinava

os homens, preparando-os física e espiritualmente para a guerra.” (COELHO, 2008, p.348).

Seu filho e herdeiro, D. Duarte pôs-se a escrever dois tratados morais. O primeiro Livro

da Ensinança do Bem Cavalgar e o segundo e bem mais expressivo o Leal Conselheiro que

funciona como um tratado moral para fidalgos e senhores. (MATTOSO, 1997, p.455) Neste, o

segundo monarca de Avis ensina razão, lealdade, disciplina e moralidade, demonstrando a

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prática das virtudes e a condenação dos pecados, caso a moralidade e os preceitos cristãos não

fossem colocados em prática (COELHO, 2008, p. 351).

Ainda, o infante D. Pedro escreve o Tratado da Virtuosa Benfeitoria e o Livro dos

Ofícios. Vale ressaltar que em tal época os livros eram ditados aos escrivães e assim eram

repletos de um latente discurso oral. Por meio da escritura de livros, de traduções e da

encomenda de crônicas, o rei e os infantes de Avis tornaram-se modelos de cultura e de

virtude pelos seus hábitos em vida e pelo conhecimento, saber e preceitos que deixaram como

legado para as gerações seguintes (COELHO, 2008, p. 353).

Porém, o maior legado deixado pela Dinastia de Avis e que vai coadunar de forma

definitiva para a construção de sua memória é aquilo que está presente em pedra. O Mosteiro

de Santa Maria da Vitória ou Mosteiro da Batalha foi construído próximo ao local em que

ocorreu a Batalha de Aljubarrota, em que a vitória foi dos portugueses contra os castelhanos

tomou espaço. O Mosteiro, além de ter sido residência e sede para a Ordem dos Dominicanos,

funciona como uma casa-relicário onde estão presentes os restos mortais de D. João I, D.

Filipa de Lencastre e os infantes. Foi mandado edificar em 1386 como agradecimento à

Virgem Maria pelo triunfo dos portugueses na batalha.

Segundo Maria Helena da Cruz Coelho

o monumento da Batalha devia ser memória e propaganda de uma realeza,

que se formara dentro do reino e se fizera reconhecer além-fronteiras. Com

toda a sua imponência arquitetônica e artística, esta casa monástica era

espelho perene e duradouro da emergência e consolidação da nova dinastia

avisina, que assentava os seus fundamentos e raízes matriciais nos valores da

unidade, da lealdade e da santidade. Mas o espaço sagrado do tempo

batalhino, ao albergar no seu interior os corpos do rei fundador e dos

membros da família real, mais se redimensionava e ampliava. O mosteiro era

morada de Deus e glorificação da corte celeste, mas era também a casa do rei

e a celebração da corte terrestre. O monumento, na sua arquitetura, escultura,

pintura e ornamentos, erguia-se num protesto de louvor e glória à rainha do

céu e aos reis da terra. (COELHO, 2008, p.355)

Desde então o mosteiro assumiu uma imagem ainda mais forte do memorial

propagandístico da Dinastia de Avis. O panteão da família régia projeta uma imagem de

família sagrada. A Batalha impõe-se como uma digníssima construção memorial aristocrática,

propaganda do poder político da jovem dinastia de Avis, que já se impunha firmemente no

reino e que era igualmente prestigiada no seio da sociedade cristã medieval da Europa, a

cristandade.

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O constante aparecimento no reino de Portugal de acontecimentos e monarcas imbuídos

de significados messiânicos, segundo Boaventura de Sousa Santos, como um “excesso mítico

de interpretação do fenômeno da identidade nacional seria um mecanismo de compensação

do déficit de realidade, resultante justamente da distância que separa os produtores dessa

interpretação de um efectivo contato com a realidade social”. (SANTOS apud MATTOSO,

1998, s/p). A combinação da História e do mito, ressaltando diversas características heroicas

foi antes de tudo, um forte apoio para o fortalecimento de sentimentos de pertença. O mito

político é algo constituidor de todas as sociedades, por todas as eras históricas.

Por fim, é importante destacar que cultura criada em volta dos reis imaginários, ou até

mesmo aqueles que se tornaram reis messiânicos, possui forte influência sobre o pensamento

ocidental. As imagens dos reis são representadas como de grandes provedores: asseguram a

justiça e a paz de seu povo, cuidam das suas necessidades. Os monarcas messiânicos foram

construídos com a intenção de se tornarem sinônimos de felicidade, esperança e abundância.

Caracterísiticas que atualmente ainda são procuradas em uma espécie governante-modelo, tal

como desejaram os homens na Idade Média e por todas as eras posteriores a ela.

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CONCLUSÃO

A monarquia portuguesa e os homens de letras que as circundavam tiveram a

clarividência de perceber o quanto o mito político com intercambiações religiosas era uma

poderosa arma do fortalecimento da figura régia. A presença judaico-cristã trouxe o peso das

tradições e imbricou no imaginário lusitano a noção de que o poder não estava desassociado

do sagrado e das crenças religiosas inerentes à época. Judeus, cristãos e mouros convivendo

juntos no território da Península Ibérica deixaram as noções de líderes messiânicos, que

trariam uma era de felicidade e plenitude da obra de Deus.

A dinastia iniciada por Afonso I, a de Borgonha, encontrou seu fim em 1383 com a morte

do monarca D. Fernando e ausência de herdeiros masculinos legítimos ao trono. D. Fernando

possuía somente uma filha, D. Beatriz prometida em casamento ao rei de Castela, D. Juan I

por meio do Tratado de Salvaterra dos Magos. As cláusulas do mesmo propunham que numa

situação de vacância de trono, D. Leonor Teles, moça castelhana e rainha de Portugal deveria

assumir o trono em regime de regência até o herdeiro de D. Beatriz e D. Juan I nascesse para

ser o futuro rei de Portugal. Porém, tal situação não foi efetivada e cumprida.

O reino português, porém, a muito já passava por recessões que afetavam a Europa em

escala continental. Crises agrícolas e pestes abateram-se sobre o território e criaram situações

de aumento da massa de desprivilegiados e fome. Agravou-se a situação da falta de mão de

obra, a tensões entre as classes presentes na Idade Média e desfavorável eram as ofertas de

emprego. Essas convulsões tomaram espaço nos séculos XIV e XV e ceifaram cerca de um

terço da população do continente.

Especificamente, em Portugal as populações subalternas passaram a demonstrar o seu

grau de descontentamento com a situação a partir de “uniões” nos principais centros urbanos

do reino. D. Fernando teve seu reinado (1367-1383) marcado durante este processo e por isto,

sua imagem foi muitíssimo prejudicada. Envolveu-se ainda em um conflito bélico existente

entre os reinos de França e Inglaterra, a Guerra dos Cem Anos, para defender os interesses

portugueses de livre transito e comércio do Atlântico. Também efetivou guerras contra

Castela, sem conseguir sair vencedor delas.

A historiografia já luta para construir uma imagem não tão negativa para o reinado

fernandino. Historiadores como José Mattoso e Armindo de Sousa apresentam que os anos de

governo de D. Fernando foram muito prejudicados pela conjuntura presente em toda a Europa

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e que se não fosse por isso, seu governo teria um saldo muito positivo. Colocou em prática

medidas que demonstram um latente interesse por causas presentes em todo o reino e também

importantes para a monarquia como a edificação das muralhas de algumas cidades, leis

protetoras dos mercados do reino, fundação da Companhia das Naus e entre outras realizações

(MATTOSO; SOUSA, 1997, p. 413-414).

Após sua morte, iniciaram-se os movimentos de 1383 que desembocaram em conflitos

bélicos contra o reino de Castela por conta da disputa pelo trono da monarquia portuguesa. De

um lado encontravam-se as intenções do rei de Castela, D. Juan I em invadir o reino de

Portugal e deixá-lo sob o seu comando aclamando sua esposa e rainha no trono, D. Beatriz.

De outro lado, D. Leonor Teles, que havia se tornado regente do reino após a morte do seu

marido e rei.

Entretanto, a imagem da rainha no reino era muitíssimo debilitada perante as populações.

Todas as situações ruins presentes no reinado de D. Fernando foram encaradas como um

resultado da influência da rainha sobre as decisões do monarca. D. Leonor era uma moça

castelhana, já casada e com filho quando conheceu o seu futuro marido; não se apresentava da

maneira socialmente aceita pelos medievos de como uma rainha deveria portar-se, sendo

moça casta e de estirpe social semelhante a do monarca. O rei teria sido “enfeitiçado” pelos

seus interesses e maus conselhos. Era, segundo contam as crônicas de Fernão Lopes,

vingativa e dissimuladora.

Este trabalho apresentou os acontecimentos que levaram ao trono de Portugal uma

terceira figura, num primeiro momento inesperado, que foi D. João I, irmão bastardo de D.

Fernando e Mestre da Ordem de Avis, e que por isso, não possuía pretensões legítimas ao

trono. A história da sua escolha pela população de Lisboa como Regedor e Defensor do reino

em 1383 e posterior eleição a rei nas Cortes de Coimbra em 1385 é contada na Crónica de D.

João I, escrita por Fernão Lopes, guardador das escrituras da Torre do Tombo.

A partir de 1434, durante o reinado de D. Duarte (1433-1438) inicia-se verdadeiramente

seu ofício de cronista régio. O filho e herdeiro de D. João deu-lhe a tarefa de escrever as

crônicas dos antigos reis de Portugal e dos feitos de D. João I. Assim, escreve inegavelmente

três obras, a Crónica de D. Pedro, a Crónica de D. Fernando e a Crónica de D. João I, esta

última alvo principal deste trabalho.

As crônicas são encomendas para garantir a legitimação da Dinastia de Avis, que havia

nascido com a ascensão de D. João I ao trono. As suas carências de sangue tornaram

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imperiosa a necessidade de se criar uma nova história e propagar uma memória que

legitimasse o poder da nova casa real. No caso dos reis medievais, quando se coloca uma

memória em escrita, outra sempre é deixada de lado (LE GOFF, 2003, p. 437). Assim, todo o

discurso da obra analisada revela o seu contradiscurso. Na Crónica de D. João I, em nenhum

momento Fernão Lopes deixa escapar a lembrança de que D. João é um bastardo, somente o

caracteriza como “filho de rei”.

Na obra analisada é possível perceber a bipolarização das vontades. O reino de Portugal,

nos momentos dos conflitos bélicos com Castela, dividiu-se. D. João recebeu apoio

principalmente da arraia-miúda, ou seja, as camadas populares das cidades e vilas. Ainda,

lutaram ao lado do futuro rei os mesteirais e a nobreza secundogênita, que buscavam o acesso

às riquezas, espólios de guerra e títulos de nobreza. Enquanto que os apoiadores do rei de

Castela foram principalmente os membros da nobreza principal, que se mantiveram fiéis aos

direitos de suserania e vassalagem e aos tratados que assinaram em nome do rei D. Fernando.

Além disso, o cronista, utilizando-se da teologia e filosofia em voga na época da Baixa

Idade Média, aponta no monarca que ascendeu ao trono com a “revolução” como um

escolhido por Deus, um messias para guiar os portugueses que ficaram para o caminho da

salvação. Lutando sempre contra as forças demoníacas do Anticristo, identificado com D.

Juan de Castela, monarca do reino vizinho. Os portugueses que lutavam ao lado do Mestre de

Avis foram caracterizados como discípulos e mártires, enquanto que os portugueses que

apoiaram o rei de Castela na investida contra Portugal foram, de acordo com a escrita de

Fernão Lopes, induzidos pelo Satanás.

Ainda, Fernão Lopes criou na escrita da Crónica de D. João I uma dupla de metáforas, a

“Sétima Idade” e o “Evangelho Português”. Estas denotavam que uma nova era de felicidade,

plenitude e bonanças iniciava-se com a chegada de D. João I ao posto de rei. A Sétima Idade é

o momento em que novos homens passam a exercer influência em Portugal, sendo

comparados com os apóstolos que seguiam Jesus Cristo. O “Evangelho Português” aponta,

segundo Lopes, que um novo capítulo da história da cristandade iniciou-se em Portugal,

através da propagação da mensagem do novo rei e da luta contra as forças dos infiéis.

Assim, foi natural a propagação por parte da historiografia de que a Crónica de D. João I

apresenta já, em pleno século XIV e início do XV, latentes sentimentos de identidade

nacional. Discordamos dessa proposição. Por conta de renovações nas pesquisas históricas e o

intuito de desconstruir uma imagem de um grande Portugal já na contemporaneidade,

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pesquisadores tanto portugueses quanto brasileiros passaram a enxergar no movimento de

1838 sentimentos de pertença. A identidade nacional, segundo os mesmos, não pode ser

considerada já que os habitantes de Portugal enfrentaram e apoiaram os conflitos de forma

diferenciada. Nos modelos monárquicos, a identidade constrói-se a partir do reconhecimento

de todos como vassalos do rei. Na Idade Média, porém, os sentimentos de pertença e

vassalidade para com o senhor, a vila e/ou o mosteiro ainda exercem mais importância do que

a figura do monarca (MATTOSO, 1998).

É a partir dessa conotação de identidade nacional que podemos entender a importância

dos estudos sobre o Portugal medievo. Para que antes de tudo sejam desconstruídas as noções

de um país que foi o pioneiro na expansão marítima e conquistas do ultramar, na intenção de

dar continuidade aos mitos de um grande Portugal que não corresponde mais à realidade

contemporânea. Estudar o Portugal dos tempos medievais também é importante para o

reconhecimento de nossos próprios mitos e crenças. Conhecer este lado da história é aprender

sobre as nossas raízes coloniais e costumes; muitos dos quais ainda são encontrados

atualmente.

A cultura messiânica de Portugal, que teve como primeiro expoente o caso do rei

guerreiro Afonso Henriques, não se apresenta como um caso isolado. Aqui analisamos o caso

de D. João I na intenção de encaixá-lo na construção dos mitos políticos portugueses que até

hoje ainda fazem parte da história e da memória do povo português. Tais mitos engrenam

sentimentos de pertença que fazem parte da população deste país hoje. Acreditam e

contribuem para a representação de um passado glorioso para Portugal. Os habitantes

consideram que fazem parte dessa história, são herdeiros dela.

À guisa de conclusão, deve-se ter a percepção de que a cultura messiânica dos

portugueses atravessa as águas do oceano Atlântico. A contribuição de Marc Bloch ao definir

a História como a ciência dos homens no tempo permitiu aos pesquisadores não encarar mais

os casos isolados como pertencentes a uma estrutura somente local. Elevou-nos a uma

contribuição mais global da história. A cultura messiânica de Portugal acaba sendo também a

nossa a partir do momento em que ainda encontramos evidências do sebastianismo no Brasil

ou quando enxergamos na história do Maranhão as lendas do milagre da Batalha de

Guaxenduba, em que Nossa Senhora da Vitória vem ao auxílio dos lusitanos contra os

franceses. O imaginário lançou suas garras no ultramar e demonstrou como as crenças

humanas, sejam messiânicas, milenaristas ou somente políticas passam a fazer parte da

realidade efetiva (BARROS, 2004, p. 92).

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