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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE DANÇA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DANÇA MARÍA LAURA CORVALÁN O desvendar do vento: manifestações artísticas da dança de orixás. Salvador 2012

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE DANÇA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DANÇA

MARÍA LAURA CORVALÁN

O desvendar do vento: manifestações artísticas da dança de orixás.

Salvador

2012

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MARÍA LAURA CORVALÁN

O desvendar do vento: manifestações artísticas da dança de orixás.

Dissertação a ser apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Dança da Universidade Federal da Bahia como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em Dança. Orientadora: Profa. Dra. Gilsamara Moura Robert Pires

Salvador

2012

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Sistema de Bibliotecas da UFBA

Corvalán, Maria Laura. O desvendar do vento : manifestações artísticas da dança de orixás / María Laura Corvalán. - 2013. 116 f. : il.

Orientadora : Profª. Drª. Gilsamara Moura Robert Pires. Dissertação (mestrado) - Universidade Federal da Bahia, Escola de Dança, Salvador, 2012. 1. Bispo, Tania. 2. Soares, Isa. 3. Dança - Traduções. 4. Dança dos orixás. 5. Dança moderna. I. Pires, Gilsamara Moura Robert. II. Universidade Federal da Bahia. Escola de Dança. III. Título.

CDD - 793.3 CDU - 793.3

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MARÍA LAURA CORVALÁN

O desvendar do vento: manifestações artísticas da dança de orixás.

Dissertação apresentada como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em Dança, Programa de Pós-Graduação em Dança, Universidade Federal da Bahia. Aprovada em 20 de Fevereiro de 2013 Banca Examinadora ______________________________________ Prof. Dra. Gilsamara Moura Robert Pires (PPGDança – Universidade Federal da Bahia) _______________________________________ Prof. Dra. Inaicyra Falcão dos Santos (Instituto de Artes/ UNICAMP) ________________________________________ Prof. Dra. Helena Katz (PPGDança – Universidade Federal da Bahia)

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AGRADECIMENTOS

A Isa Soares, por abrir meus caminhos da dança e da vida.

A Tânia Bispo, por me possibilitar dançar meus mitos e transformá-los.

Às duas professoras, Isa e Tânia, pela confiança, generosidade e envolvimento neste

trabalho.

A meu avô paterno, Tata Manolo (in memorian), por me transmitir o gosto pela música

e pela dança.

A minha avó materna, Lala Dorita, pelo apoio e as rezas a distância.

A minha mãe, Beatriz Splendiani e meu pai, Victor Corvalán, por confiar nos meus

passos, mesmo incompreensíveis, desviados, incertos, ousados...

A minha madrinha, Susana Splendiani, pela força constante.

A minha querida orientadora Profa. Dra. Gilsamara Moura, pela escuta sensível e

cuidadosa, e pela cumplicidade.

À Profa. Dra. Helena Katz, por me reafirmar no caminho e valorizar meu trabalho como

artista e pesquisadora.

À Profa. Dra. Inaicyra Falcão dos Santos, pela disposição e suas preciosas devoluções.

Aos meus irmãos Manuel, Luciano, Andrea, Malena e Victoria, por estarem presentes,

me acompanhando cada um a seu modo.

Às minhas amigas e parceiras nesta caminhada: Julia Broguet, Betina Pellegrini, Juana

Lamas e Silvana Saavedra, e todas as pessoas que passaram por Iró Bàradé.

A Juan Pablo Cruciani – Cipó - amigo e professor de capoeira angola, e ao grupo

Terreiro Mandinga de Angola, Rosário. Por irmos juntos, desde sempre, na caminhada.

A Javier Infante, Laura Ro, Mariana Pereiro e a todos que fazem parte de Alábase.

A Fernando Herrera, pelo seu envolvimento e contribuição na montagem dos vídeos.

A Mãe Silvia de Iansã e o Terreiro ‘Ilê Axé Opon de Obaluaye ati Iansã’, da cidade de

Resistência, Chaco, Argentina.

A Tata Muta Imê Santos, pelas profundas conversas e os ensinamentos sobre o universo

sagrado dos candomblés.

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A Edivandete Santos Pires – Obã Itanã - pelo acolhimento no universo religioso em

Salvador.

Ao grupo Nzinga de capoeira angola por ser minha família em Salvador, e me dar tantos

momentos de felicidade e aprendizado.

A Mãe ‘Francisca de Iansã’ - Chica – por me receber, com tanta abertura, em suas

festas no terreiro “Ilê Axe Oiá Jambeleji”, em Salvador.

A Escola de Dança da UFBA e ao PPGDança pelas referências nos modos de fazer, de

indagar, de escrever outra dança, de dançar outra escrita.

A CAPES, pelo apoio financeiro que me permitiu realizar a pesquisa com maior

dedicação e concentração.

Às minhas amigas de sempre, Paula Scaroni e sua irmã Anita Scaroni (in memorian),

por me ensinarem a viver olhando para a luz da vida, e a tecer relações sempre com

positividade e alegria.

A todos os amigos e pessoas que fizeram parte deste processo de pesquisa, que vai

muito além dos anos de mestrado.

A Martín Lorenzo, meu companheiro, sem o qual tudo teria sido mais difícil.

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CORVALÁN, María Laura. O desvendar do vento: manifestações artísticas das danças dos orixás. (116) Dissertação (Mestrado) – Escola de Dança da Universidade Federal da Bahia. Salvador, 2013.

RESUMO

Esta pesquisa se propôs abordar e refletir sobre as manifestações artísticas das danças dos orixás de duas dançarinas baianas: Tânia Bispo e Isa Soares, que moram, respectivamente, em Salvador e em Buenos Aires, iluminando os diferentes modos de traduzir que cada uma construiu, entre o universo mitológico dos orixás e o ambiente artístico e contemporâneo da dança dos seus respectivos e distintos contextos. Para este estudo, foi escolhido um mito que fala da relação de dois orixás: Omolú\Obaluaiê, a energia da terra, e Iansã, a energia do vento e do ar. A pesquisa parte da proposta de tradução cosmopolita proposta pelo sociólogo português Boaventura de Souza Santos, que reconhece que não há uma teoria geral, mas que todas as culturas pressupõem incompletudes. Portanto, a tradução sempre implicará em criação e transformação. Assim, este trabalho de tradução permite tirar do escuro certas experiências que não são legitimadas pela monocultura ocidental. A bibliografia que apoia a construção desta reflexão parte de Souza Santos (2002), Carvalho (2002), Dominguez (2004), Motta (2009), Elbein dos Santos (2002), entre outros. As manifestações artísticas de Tânia Bispo e Isa Soares são um modo de dar visibilidade a saberes e práticas que não existem na educação oficial. Sob a hipótese de que sempre que uma dança ocorre, num contexto diferente de onde supostamente surgiu, há então uma tradução, o trabalho apontou para a necessidade de outra tradução corporal, inspirada pelas duas artistas aqui estudadas, porém realizada pela pesquisadora desta dissertação. Palavras-chaves: Tradução cultural, manifestação artística, dança dos orixás, Tânia Bispo, Isa Soares.

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CORVALÁN, María Laura. O desvendar do vento: manifestações artísticas das danças dos orixás. (116) Dissertação (Mestrado) – Escola de Dança da Universidade Federal da Bahia. Salvador, 2013.

ABSTRACT

This research propose to deal with and think about the artistic manifestations of the dance of the orixás of two bahian dancers, Tania Bispo and Isa Soares, who lives, respectively in Salvador and Buenos Aires, enlightening the different ways of translation that each one built between the mythological universe of the orixás and the artistic and contemporary environment of the dance on their own different contexts. For this study, was chosen a myth that talk about the relationship between two orixas: Omolú\Obaluaiê, the earth energy, and Iansã, the wind and air energy. This investigation begins on the cosmopolitan translation proposed by the Portuguese sociologist Boaventura de Souza Santos, who recognizes that there is not a general theory, but every culture is incomplete. Therefore the translation always will imply creation and transformation. Thus, this translation work allows taking from darkness many experiences that are not legitimated in the western monoculture. The bibliography that support the construction of this reflection is based on Souza Santos (2002), Carvalho (2002), Dominguez (2004), Motta (2009), Elbein dos Santos (2002), among others. The artistic manifestations of Tânia Bispo e Isa Soares are a way of give visibility to knowledge and practices that does not exist in the official education. Under the hypothesis that every time a dance occurs, in a different context from the place that supposedly came up, then there is a translation, the inquire focus in the necessity of another body translation, inspired in the two artists here studied, however made from the researcher of this dissertation. Key words: Cultural translation, artistic manifestation, orixás´s dance, Tânia Bispo, Isa Soares.

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LISTA DE SIGLAS

Teatro SENAC Pelourinho - Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial

UFBA – Universidade Federal da Bahia

SESC - Serviço Social do Comércio

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1: Manifestação artística de Tânia Bispo.............................................................46

Figura 2. Tânia Bispo ensinando os elementos simbólicos usados nos rituais do

Candomblé a um grupo de dançarinas.............................................................................54

Figura 3. Curso com Tânia Bispo....................................................................................57

Figura 4. Manifestação artística de Tânia Bispo.............................................................60

Figura 5. Manifestação artística de Tânia Bispo.............................................................61

Figura 6. Manifestação artística de Tânia Bispo.............................................................62

Figura 7. Manifestação artística de Tânia Bispo.............................................................64

Figura 8. Manifestação artística de Tânia Bispo.............................................................65

Figura 9. Manifestação artística de Tânia Bispo............................................................ 66

Figura 10. Performance ‘Orixás de la Tierra’……………………….…………………69

Figura 11. ‘Danças do Xirê de Orixás’ no Congreso Afro Americano...........................77

Figura 12. Performance ‘Orixás de la Tierra’……………………………………….…79

Figura 13. “Danças do Xirê de Orixás”. Isa Soares e Alabasé. Parque Lezama............81

Figura 14. Alábase na Marcha do 24 de março pelos desaparecidos.............................87

Figura 15. Performance ‘Orixás de la Tierra’……………………………………….....88

Figura 16. Manifestação artística de Isa Soares..............................................................92

Figura 17. Performance ‘Orixás de la Tierra’………………………………………….94

Figura 18. Performance ‘Orixás de la Tierra’………………………………………….95

Figura 19. Manifestação artística de Isa Soares..............................................................97

Figura 20. Manifestação artística de María Laura Corvalán.........................................101

Figura 21. Manifestação artística de María Laura Corvalán.........................................105

Figura 22. Manifestação artística de María Laura Corvalán.........................................106

Figura 23. Manifestação artística de María Laura Corvalán.........................................107

Figura 24. Manifestação artística de María Laura Corvalán,........................................108

Figura 25. Manuel Corvalán tocando Hung Drum. ...................................................108

Figura 26.Manifestação artística de María Laura Corvalán..........................................109

Figura 27. Manifestação artística de María Laura Corvalán........................................110

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ......................................................................................................... 12

ENTRE ROSÁRIO, SALVADOR E OUTROS CONTEXTOS – UM

PEQUENO RELATO OU DIÁRIO DE BORDO.......................................................12

NOMEAR É PRECISO? ..............................................................................................15

1 MOVER O INVISÍVEL. UMA PROPOSTA COSMOPOLITA PARA

TRADUZIR AS DANÇAS MITOLÓGICAS DOS ORIXÁS ......... ...................... 22

1.1DESMITIFICAR O GLOBAL ..................................................................................22

1.2 OS RECORTES: DO ORIXÁ AO MITO, DO MITO À DANÇA .........................25

1.3 POR UMA RAZÃO COSMOPOLITA ..................................................................27

1.4 O TRABALHO DE TRADUÇÃO ..........................................................................30

1.5 O QUE TRADUZIR? ..............................................................................................31

1.6 ENTRE QUÊ TRADUZIR? ....................................................................................37

1.7 QUANDO TRADUZIR? ........................................................................................38

1.8 QUEM TRADUZ?...................................................................................................39

1.9 COMO TRADUZIR?...............................................................................................41

1.10 PARA QUE TRADUZIR?..................................................................................44

2 TÂNIA BISPO: TRANSCENDER O “MITO PESSOAL”.......... .....................46

2.1 SALVADOR, DO TABU AO EXOTISMO...........................................................47

2.2 A UNIVERSIDADE. DANÇA DE QUAL HISTÓRIA........................................49

2.3 ODUNDÊ: NOVO CICLO DE UM POVO............................................................51

2.4 OMI OLORUM, OUTRO FLUIR COM O PÚBLICO...........................................52

2.5 OS RISCOS DE TRADUZIR...................................................................................53

2.5.1 A CONSTRUÇÃO DE LUGARES COMUNS.................................................53

2.5.2 A DIFICULDADE DA LÍNGUA, A OPORTUNIDADE DO SILÊNCIO........57

2.6 O QUE O VENTO VÊ... (O SILENCIO DA PESTE)............................................59

3 ALÁBASE, O LABUTAR DE ISA SOARES.... . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . .69

3.1 PALPAR A DANÇA................................................................................................71

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3.2 BUENOS AIRES: INVISIBILIDADES EPIDÉRMICAS......................................73

3.3 NEGOCIAÇÕES ENTRE CORPO E AMBIENTE. A ARTE DE SER

LEGITIMADO................................................................................................................76

3.4 TEMPORALIDADES E ESPERANÇAS................................................................81

3.5 DANÇAS DO “XIRÊ DE ORIXÁS”: ARGUMENTOS DA TRADUÇÃO............82

3.6 A DIFICULDADE DO OUVIR O CORPO.............................................................87

3.7 ALÁBASE EM DANÇA............................................................................................88

3.8 ENTÃO.....................................................................................................................89

3.9 O QUE DIZ O SILÊNCIO.......................................................................................91

3.10 ATRÁS, NO FUNDO DA TERRA....................................................................92

3.11 O AR....................................................................................................................95

3.12 QUANDO O DESFRUTE TRANSFORMA..........................................................97

4 TRADUZIR À BEIRA DO MITO.......................................................................101

4.1 À BEIRA DAS DANÇAS......................................................................................104

5 REFERÊNCIAS....................................................................................................113

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INTRODUÇÃO

Entre Rosário, Salvador e outros contextos – um pequeno relato ou diário de bordo

A dança e a música me habitam desde que eu cheguei a este mundo. Criei-me

entre tangos e chacareras que o meu avô e o meu pai tocavam no piano e no bombo

legüero1, e minha avó, de longe, cantava. Eu adorava dançar, o ritmo parecia me

queimar por dentro. Porém, desde muito cedo, quando comecei a dançar na ‘academia

de danças folclóricas’, aquele imenso desejo, aquela emoção que me produzia a

chacarera2, não tinha como ser expressa naquela dança. Explico: as danças chamadas de

‘folclóricas argentinas’, como a zamba, gato, bailecito, chacarera, remedio, huella,

cuatro esquinas, entre muitas outras, são ensinadas na educação oficial com

coreografias fechadas e esvaziadas do seu conteúdo histórico, da sua paisagem

geográfica e da cultura onde cada uma estava inserida. Assim, eu tinha de me ajustar a

uma série de posturas rígidas e memorizar as coreografias sem nenhuma relação com o

ritmo e a música.

Também nesta fase da infância ingressei no mundo do balé clássico, e algo

similar sucedia: eu não me reconhecia naquele universo, naquela música, naqueles

personagens. As técnicas posturais resultavam muito forçadas, impositivas e produziam

muita dor, mas, mesmo assim, era indicado sorrir. As experiências com dança moderna

e dança contemporânea não foram as mais amáveis; mesmo que as músicas fossem mais

agradáveis para mim, tinha que copiar sequências de movimento que não tinham relação

nenhuma com o que me acontecia. Enquanto eu buscava, quase por descuido, alguma

“emoção” naquelas danças, uma pergunta me dava voltas com intensa curiosidade: o

que tinham em comum aquelas práticas que, embora tão diferentes, chamavam-se todas

de ‘dança’? Qual era a relação com aquilo que eu, desde pequena, sentia como dança?

Não sei exatamente como eu decidi que queria ‘dançar afro’, mas no ano 2000

fui a Buenos Aires e conheci Isa Soares, que ministrava aulas de danças baseadas nos

orixás. Para minha surpresa, me encontrei com algo totalmente diferente das minhas

expectativas, muito ignorantes por sinal, que pressupunham que tudo o que fosse

ancestral teria de ser simples; ali me deparei com um tipo de dança extremamente

1 Tambor tradicional de Santiago del Estero, Argentina, com grande influência africana, com o qual se tocam ritmos populares argentinos como chacarera, zamba, cueca, etc. 2 Ritmo e dança do folclore argentino, oriunda de Santiago del Estero, com grande preponderância rítmica.

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complexa pela densidade do seu discurso e sua carga gestual. Este fato ajudou-me a

entender que quando não se conhece algo e se olha “de fora”, observa-se primeiro de

uma forma completamente homogeneizadora e pasteurizante, ou seja, todas as danças

são parecidas, com o mesmo tipo de roupa, o mesmo batuque e se simplificam numa

mesma coisa debaixo de um mesmo nome. Tenho como argumento que seja uma

ignorância provocada e reafirmada por ações colonizadoras.

Porém, o que me deteve na proposta de Isa Soares durante mais de dez anos não

foi “a dança” em si, mas o modo como a professora compartilhava os ensinamentos

daquela dança, que implicavam em aprender também um modo diferente de relacionar-

se com o corpo, com a dança e com o mundo. Algo se acalmava em mim, a dança

começava a cobrar um novo sentido.

No ano de 2003, comecei a levar Isa Soares para a cidade onde morava, Rosário,

viajando mensalmente durante quatro anos. Isto provocou o encontro de um grande

número de pessoas em Rosário, com interesses e inquietudes parecidas a respeito da

dança. Destes cruzamentos surgiu no ano 2003 o grupo Iró Bàradé, o qual eu coordeno,

em conjunto com outras colegas, entre as que preciso destacar Julia Broguet, Betina

Pellegrini, Silvana Saavedra e Juana Lamas3. Em yorubá Iró significa relato, notícia,

ruído dos corpos quando chocam e Bàradé, combinar com a natureza de alguém.

Desde então, fui experimentando diferentes cenários e modos de recriar e

traduzir esta dança. Com o grupo Iró Bàradé, realizamos diversos tipos de criações e

apresentações, partilhamos aulas com artistas de outras cidades, com comunidades

indígenas (Qom) no norte argentino, com adolescentes de um bairro suburbano de

Rosário, entre outras. Minha atenção estava sempre focada em buscar modos de traduzir

esta dança baseada em mitologias africanas em cada contexto onde me encontrava. No

entanto, cada experiência me provocava novas inquietudes em relação ao ‘outro’ e à

ideia de identidade como traço único e determinante, e em minha monografia de

Licenciatura em Comunicação Social4 (2007), abri questionamentos sobre ‘de que modo

habitar danças de mitos e deuses longínquos e ancestrais em corpos atuais e argentinos

(rosarinos)’.

3 Embora muitas outras pessoas fossem responsáveis da gestão coletiva de Iró Bàradé, nomeio aqui as colegas que coordenaram aulas e fizeram parte da produção do grupo nos últimos anos. 4 “Corpo e comunicação na dança dos orixás”, Licenciatura em Comunicação Social, Universidad Nacional de Rosario, Orientadora, Prof. Olga Corna. 2007

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Estas inquietações foram atravessadas por minhas estadias na Bahia, desde o ano

2003, em que fui me aproximando dos ambientes onde também acontece esta dança

afro, com muita potência, e se traduz em diversos sentidos religiosos e artísticos.

Enquanto participava de diversas festas de candomblé, ia percebendo que nas escolas de

dança, as aulas de dança afro ou afro-brasileiras eram muito diferentes da proposta de

Isa Soares, elas estavam mais perto de uma colagem de passos a ser copiada e

reproduzida. Compreendia então como as condições de cada contexto configuram a

dança de um modo particular e que, para fazer criações artísticas a partir deste

vocabulário, era fundamental conhecer suas fontes, história, cultura e filosofia.

Foi na minha primeira viagem à Bahia (2003) que conheci Tânia Bispo. Eu

assisti ao show folclórico no Sesc Pelourinho do qual ela dirigia e me encontrei

emocionada, contaminada pela energia das dançarinas, muito longe do que esperava de

um ‘show tipicamente folclórico’. Na segunda viagem (2004), depois de tomar aulas

com muitos professores, acabei organizando uma oficina de dança ministrada por Tânia

Bispo, com várias pessoas que ia conhecendo na viagem. Então percebi que sua

proposta podia conversar muito bem com a proposta de Isa Soares e, cinco anos mais

tarde, em 2009, voltei com várias companheiras de ‘Iró Bàradé’ (Argentina). Neste

curso, algo se moveu em mim de tal modo que entendi que tinha que viver na Bahia por

um tempo, me deixar contaminar por mais tempo pelas lógicas de vida do povo baiano,

viver o cotidiano e as contradições sociais da cidade, as cores, os aromas, as comidas, as

crenças que entretecem seus mitos, mistérios e mandingas.

Assim, ingressei no Curso de Especialização em Estudos Contemporâneos em

Dança – Latu Senso (UFBA- 2010), onde achei um espaço para ler, refletir e discutir

sobre estas problemáticas da dança, o que me incentivou para reafirmar a construção do

pensamento contemporâneo nas danças mitológicas dos orixás dentro do espaço

acadêmico da dança.

O simples fato de viver na Bahia já me colocou na condição de estrangeira, e a

tarefa de traduzir virou um modo de estar, de me comunicar e de compreender o mundo.

Por esse caminho, consegui estabelecer laços afetivos que ampliaram e enriqueceram

minhas buscas, como foi o encontro com Edivandete Santos Pires, mais conhecida

como Oba Itanã, grande amiga que me acolhe e me orienta nas questões em torno da

religião do candomblé de Keto. Oba Itanã, faz parte do terreiro “Ilê Axê Opó Ajaôkeji”,

localizado em Barra do Pojuca, Camaçari-BA, onde tem a função hierárquica de ekede

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(aquela que cuida do orixá quando desce) do (orixá) Oxaguiã. Especificamente, ela

recebeu o cargo de Ia Tebêssê, quem invoca os cânticos em todas as cerimônias. Vale

dizer que Oba Itanã é muito reconhecida no ambiente religioso pela sua experiência e

compromisso.

Também tive a sorte de conhecer a mãe ‘Francisca de Iansã’, mãe do terreiro

“Ilê Axê Oiá Jambeleji”, de Salvador, mais conhecida como ‘Chica’, baiana que vende

acarajé embaixo do morro de São Lázaro, onde eu moro. Os encontros cotidianos com

ela e sua gente me permitiram participar das suas cerimônias de Candomblé de uma

forma mais familiar, o que me habilitou, inclusive, a fazer registros audiovisuais das

festas, material de grande valor para a análise das danças para esta pesquisa.

Nas últimas viagens, conheci Tata Mutá Imê Santos, um líder espiritual do

‘Terreiro Mutá Lambô ye Kaiongo’, Candomblé da nação Angolão Paquetan, muito

reconhecido em Salvador. Embora fosse Oba Itanã quem me apresentou a ele, Tata

Mutá ministrava aulas de “danças de voduns, nkisses e orixás” no espaço onde eu

aprendo capoeira angola. As aulas de Mutá representaram para mim, uma ponte entre o

contexto religioso e o contexto artístico. Por sua vez, aprender as danças de outras

nações, além da yorubá, foi uma chave para minha pesquisa, no reconhecimento da

diversidade de nações dentro do universo mítico dos candomblés, fato que desmitifica a

hegemonia yorubá tão relembrada por antropólogos e demais pesquisadores. Embora

minhas duas mestras de danças, Isa Soares e Tânia Bispo, trabalhem especificamente

com a cultura yorubá, eu percebo a importância de frisar as pluralidades de nações que

são responsáveis pela construção dos candomblés, o universo mítico dos orixás. De

fato, desde sempre foi no encontro com o outro e suas possíveis misturas que se

gestaram novas formas de estar e de sobreviver no mundo.

Todas essas experiências pessoais e, seguramente, muitas outras que não tive

consciência ou que não foram registradas aqui, acabaram nutrindo esta pesquisa de

Mestrado da qual me animo a dizer, começou quando comecei a dançar, onde sem saber

já estava traduzindo outras culturas.

Nomear é preciso?

Qual é o sentido de nomear uma dança? Quais são os riscos?

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Nomear uma dança implica posicioná-la e afirmá-la entre os membros da

comunidade onde surge e sua nomeação depende totalmente do contexto onde está

inserida. Neste caso, urge esclarecer que esta dança, constituída por elementos da

cultura afro, yorubá, gege, congo, angola, brasileira, e muitas outras (árabes,

portuguesas, indígenas, espanholas), ainda não está isenta de problemas em sua

nomeação.

Na Bahia, onde a prática religiosa é muito presente, se sublinha a diferença entre

“dança de orixás”, que é a manifestação do orixá quando desce e se incorpora numa

pessoa, e a dança-afro que se pratica nas academias de dança e contém elementos da

simbologia dos orixás. No entanto, na Argentina, tal dança convive com outras danças

de origem afro, tanto do Noroeste da África (entre as que se encontram: djole, ku-ku,

domba, dunumba, yankadi, makuru, e mendiani)5, quanto com a dança afroperuana,

afrocolombiana, afrocubana, afrouruguaya, entre outras; portanto, não pode ser

chamada simplesmente de dança-afro. No Brasil, chamá-la de dança afro-brasileira

também gera confusão com outras práticas da mesma origem como é o samba, a

capoeira, o congado, o maracatú, o maculelé, etc. Durante algum tempo, em Rosário,

onde a religião era muito pouco conhecida, a chamamos de ‘dança de orixás’, para

diferenciá-la de todos os afros e afro-brasileiras; mas, depois de conhecer o seu

significado na Bahia, começou a ser um problema ainda maior para mim. Por enquanto,

em Rosário está nomeada como “dança afro-yorubá”, mas, ao entender a multiplicidade

de nações que constituem este universo mitológico, é preciso deixar de alimentar a

hegemonia yorubá já instalada.

Segundo Godard:

“nossa maior tentação é de nos contentarmos em classificar as danças

por épocas históricas, por origens geográficas, por categorias sociais,

por escolhas musicais, pela estética do figurino, da cenografia, ou

ainda pela forma dos diferentes segmentos corporais colocados em

ação. Todos esses parâmetros descrevem muito bem o limite externo

ao campo da dança, mas pouco se aproximam das riquezas da

dinâmica interna do gesto, que a ele dão sentido” (1995, p. 12).

5 Informação oral de percussionista do grupo “Afô Paraná” de danças africanas.

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Assim, vemos que, embora o problema apresentado nesta dissertação seja o da

tradução, ela enfrenta mais um problema que é o da nomeação. A impossibilidade de

encontrar um nome adequado que contemple as necessidades religiosas de onde essas

danças são, ou seja, do ambiente do candomblé para outro ambiente artístico e

contemporâneo da dança. Se no ambiente religioso são os orixás que dançam, quem é

exterior ao ambiente religioso, já está fazendo uma tradução desse ambiente. Que nome

dar a uma dança que existe predicada a quem a faz - o orixá – quando é feita por quem

não é orixá? Ou seja, alguém que está traduzindo uma dança que no seu ambiente é feita

por quem é. E aqui, fora desse ambiente é feita por quem não é.

Sobre o pressuposto que o nome, de algum modo, coloca a dança entre outras,

não pretendemos solucionar o problema, nem esquivar todos os riscos que implica a

nomeação, mas por enquanto vamos sugerir tratar todas as manifestações dançadas para

quem está fora do ambiente religioso como “manifestações”. Deste modo, já não

chamamos dança “de orixá” quando não é dele. Vamos nomear uma “manifestação

artística dessa dança”, indicando que se trata da dança de outra pessoa. Assim,

chamamos “manifestação artística das danças dos orixás”, não a dança da divindade

quando incorpora na cerimônia religiosa, mas a dança realizada conscientemente, seja

qual for o contexto e o sentido de comunicar.

O objetivo dessa dissertação reside em estudar os diferentes processos de

tradução de manifestações artísticas das danças dos orixás, realizados por Tânia Bispo

em Salvador e por Isa Soares em Buenos Aires, os quais serão complementados pela

minha própria criação. Estas traduções flutuarão entre o contexto do universo

mitológico dos orixás e o ambiente artístico e contemporâneo da dança onde se

desenvolve cada artista.

Esta dança se caracteriza por sua grande gestualidade, sua rítmica, sua relação

com a natureza, seu sentido mítico e pelos valores da sua cosmovisão africana,

considerando que as relações efetivas destas informações organizam-se de certo modo

que determinam suas técnicas corporais específicas. Interessa-me estudar como se dão

as diferentes possibilidades de tradução dos conceitos, cosmogonias e arquétipos

deduzidos da mitologia yorubá e como eles se traduzem em princípios de movimentos

que permitem fazer um caminho pessoal e criativo em cada corpo. Será necessário,

portanto, identificar que tipo de informações dessas danças ficou ancestralmente como

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estável, nos diversos diálogos interculturais até identificar-se como manifestações

artísticas das danças dos orixás.

Para deduzir estas questões pretende-se analisar a construção do corpo dos

orixás Obaluaiê/Omolu6, divindade da terra e da peste, e Iansã, força do vento e a

tempestade, retratados pelas duas profissionais da dança, acima citadas: Tânia Bispo e

Isa Soares, cada uma no seu respectivo contexto (Salvador/Brasil e Buenos

Aires/Argentina). Daqui, importa-nos reconhecer diferentes graus ou tipos de tradução

corporal a partir da relação corpo-ambiente-orixá que entra em jogo no processo

criativo da dança.

Sem desmerecer a relevância de todos e de cada um dos orixás, foram

selecionados somente dois, Obaluaiê/Omolú e Iansã com a intenção de aprofundar no

tema da pesquisa. Obaluaiê/Omolú representa a terra, e Iansã, o elemento ar. Para estas

cosmovisões africanas, a terra é a matéria de nosso corpo, e o ar é o elemento que lhe

outorga vida e movimento; assim, interessa-nos explorar como essas energias atuam no

corpo e na dança. Esta escolha também é consequência da necessidade de partir das

doenças de cada corpo, das suas faltas e incômodos, e da vontade de transformá-las na

combinação com o outro, para realizar o processo criativo da tradução do mito para

dançar. Assim, foi escolhido um mito onde a palha que cobria a terra/pele de Obaluaiê é

descoberta pela dança/vento de Iansã, e em agradecimento, Obaluaiê lhe concede o

poder sobre os mortos. A relação desses dois orixás com a morte cobrou uma dimensão

muito importante durante os dois anos da pesquisa, por eu vivenciar situações ligadas à

morte de pessoas muito próximas, onde pude reconhecer o grande tabu que temos a

respeito dela.

O corpo teórico selecionado para a dissertação propiciou diálogos entre estudos

da dança e da sociologia, entre cosmovisões africanas e pensamentos contemporâneos,

entre estudos científicos e estudos artísticos. Para contextualizar a situação social onde

surgem estas traduções em dança, trazemos as propostas de Canclini (2008) e Lepecki

(2006) sobre a globalização e o pós-colonialismo, que nos permitem chegar ao

entendimento de ‘tradução cultural’ que propõe o sociólogo português Souza Santos

(2002), o qual busca uma articulação recíproca entre culturas, evitando uma

canibalização da cultura hegemônica. 6 Tanto o nome Obaluaiê quanto Omolú, referem-se a diferentes qualidades do mesmo orixá, senhor da terra e a peste. Porém nesta pesquisa, vamos a utilizar qualquer dos dois nomes indistintamente. Já que as professoras vão nomear das duas formas diferentes.

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Para estudar o contexto da cultura yorubá no Brasil, foram muito significativos

os escritos de Elbein Santos (2007; 1975), Prandi (2001), Verger (2003), Reis (2000),

em discussão com a pesquisa de Capone (2009), na qual traz reflexões críticas sobre a

construção de legitimidade dos cultos afro-brasileiros.

No que se refere ao estudo do universo mitológico das danças dos orixás, os

trabalhos de Barbara (1995 e 2003) e Zenicola (2001) serão de grande apoio. Porém,

para o nosso foco voltado para os processos criativos desta dança, interessa destacar a

investigação “Corpo e Ancestralidade”, de Inaicyra Falcão dos Santos (2006), que

atende à experiência singular de cada intérprete por meio de memórias ancestrais, com

ações corporais carregadas de significados e valores da tradição africana brasileira,

trazendo-as para o presente e as ressignificando por meio da arte do movimento criativo.

Mesmo assim, no intuito de abordar contemporaneamente esta dança surgida da

tradição afro-brasileira, este trabalho parte do conceito de contemporâneo do filósofo

Giorgio Agambem (2009, p. 64), quem o define como a singular relação que se

estabelece entre o indivíduo e o seu tempo: "o contemporâneo é aquele que percebe o

escuro do seu tempo como algo que lhe concerne e não cessa de interpelá-lo, algo que,

mais do que toda luz, dirige-se direta e singularmente a ele".

Interessa-nos pensar aqui um modo de manifestar, artisticamente, a dança dos

orixás a partir da relação do corpo com a luz e as sombras dele e de seu entorno. Em

palavras de Najmanovich (2001, p. 28), “um corpo que participa de uma dinâmica

criativa de si mesmo e do mundo com que ele está em permanente intercâmbio”, é um

corpo que interage com o seu ambiente, onde se modifica e o modifica, que consegue

garantir a sua permanência no mundo contemporâneo e a sua evolução.

Neste viés, Bittencourt (2004) e Britto (2008) discorrem sobre as configurações

em dança e suas permanências, entendendo a dança como expressão do pensamento do

ambiente em que se encontra o corpo que dança. A gestualidade também merece ser

analisada nesta dança em questão, para o qual Godard (1995) sublinha o pré-movimento

como condição da expressividade do gesto humano e o diferencia do movimento.

Para estudar estas traduções foi necessário realizar pesquisa de campo tanto no

contexto mitológico do Candomblé, quanto no contexto artístico da dança das

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professoras Tânia Bispo e Isa Soares7. A pesquisa de campo no contexto mitológico

consistiu na observação participante de cerimônias de candomblé de diversas nações ou

cultos (keto, angola, caboclo), nas quais consegui experimentar diversos modos de

participação das mesmas de acordo com o grau de familiaridade e abertura dos terreiros.

Em algumas festas, consegui participar como assistente; em outras, me foi permitido

fazer um registro audiovisual e, em outra, me convidaram a dançar no xirê (sob o

cuidado de Oba Itanã). Também foram realizadas entrevistas com Tata Muta Imê Santos

e com Oba Itanã sobre as danças desta pesquisa a fim de engrandecer o rol de

informações, embora não serão citadas nesta dissertação.

A pesquisa de campo no contexto artístico da dança contou com a observação

participante das aulas de Isa Soares, os cursos de Tânia Bispo realizados em 2004, 2009,

2010 e 2011, o registro audiovisual dos mesmos e a realização de entrevistas semi-

estruturadas às duas professoras, isto é, entrevistas com base numa guia de perguntas

bastante abertas, que vão se complementando de acordo as falas das pessoas

entrevistadas. Além disto, como já pudemos constatar, as experiências vividas com

estas duas pessoas durante alguns anos fazem parte da coleção de informações que

interagem e alimentam esta investigação.

A pesquisa, direcionada pelo trabalho de tradução, as percepções do pesquisador

e a reflexão biográfica foram de grande importância para guiar a investigação.

Procurou-se apresentar as múltiplas perspectivas dos participantes, atendendo aos

modos de relacionamento de cada corpo com o ambiente da manifestação artística da

dança dos orixás. Haverá, assim, múltiplas vozes, e uma diversidade de modos de

dançar.

Esta dissertação está organizada em quatro capítulos.

O primeiro capítulo debruça sobre a proposta de ‘tradução cosmopolita’ do

sociólogo Boaventura de Souza Santos, para pensar os processos tradutórios das

manifestações artísticas das danças dos orixás elaboradas pelas professoras Isa Soares e

Tânia Bispo. A proposta de tradução cosmopolita parte do reconhecimento da

incompletude de todas as culturas, em busca de um diálogo horizontal, recíproco e não

hegemônico. Portanto, as condições de nosso campo de tradução serão atravessadas por

7 Nesta dissertação, optei por chamar as professoras Tânia Bispo e Isa Soares pelo nome e sobrenome, para uma maior otimização da memória viva desses nomes, reafirmando o reconhecimento das artistas.

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questionamentos sobre o que traduzir, entre quê, quem traduz, quando, como e com que

objetivos.

No segundo capítulo estudaremos como a professora Tânia Bispo retrata as

corporalidades dos orixás Omolú/Obaluaiê e Iansã, a partir de uma abordagem

sensorial baseada nas vivências do culto aos orixás e arquétipos oriundos dos mitos.

Apresentaremos as questões levantadas mais relevantes, os obstáculos e os caminhos

que a professora foi transitando dentro do seu trabalho.

No terceiro capítulo vamos refletir sobre o trabalho que a baiana Isa Soares

desenvolve em Buenos Aires. Estudaremos como ela traduz no corpo as danças dos

orixás Obaluaiê e Iansã, no contexto da sua proposta “Xirê de Orixás”. Nas cerimônias

do candomblé, chama-se xirê à ordem hierárquica na qual os orixás ingressam ao

barracão. A professora toma este xirê como base das suas recriações de danças

arquetípicas dos orixás, respeitando a organização hierárquica imposta pelas funções e

lugares simbólicos que ocupa cada orixá. Descreveremos como as danças de Obaluaiê e

Iansã são recriadas a partir de vivências, histórias e relações da professora com o seu

contexto. Atenderemos também às dificuldades que a professora se encontra neste

processo de tradução.

Por último, o capítulo “Traduzir da tradução: minha dança na vera do mito”

abrirá questionamentos para os diferentes graus ou tipos de tradução e as complexidades

que isto implica num diálogo com os autores estudados. Os modos como as danças

propostas por Isa Soares e Tânia Bispo são traduzidas e recriadas por mim, a partir das

minhas condições com a dança em Rosário e em outras cidades de Argentina. Minha

dança contaminada pelas manifestações artísticas de dança de orixás destas professoras

e pela minha história pessoal, o tango e a zamba vêm problematizar os contornos das

traduções culturais das danças. Este capítulo finaliza com as considerações finais, os

possíveis desdobramentos e propostas para novos projetos de pesquisa.

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CAPITULO 1

MOVER O INVISÍVEL

Uma proposta cosmopolita para traduzir as danças mitológicas dos orixás

Este capítulo pretende trazer à luz o trabalho de tradução que propõe o sociólogo

português Boaventura de Souza Santos (2002) como uma opção para traduzir as danças

baseadas na mitologia africana dos orixás, em uma cultura colonizada pelos valores e

critérios ocidentais, em busca de uma articulação recíproca e não hierárquica.

O autor sugere um trabalho de tradução sustentado por dois procedimentos

sociológicos: a ‘sociologia das ausências’ e a ‘sociologia das emergências’, os quais

visam desafiar, transgressivamente, o modelo de racionalidade imperante, através da

dilatação do presente, que amplia as experiências sociais disponíveis e da contração do

futuro, que expande o domínio das experiências sociais possíveis.

Com o objetivo de analisar, posteriormente, os processos de tradução

experimentados nas propostas de duas professoras e dançarinas, Tânia Bispo e Isa

Soares, tentaremos aqui atravessar os contextos e condições específicas de nossos

campos de tradução pelos seguintes questionamentos que sugere Santos: O que

traduzir? Entre quê? Quem traduz? Quando traduzir? Traduzir com que objetivos?

Desmitificar o global

A contemporaneidade na América Latina, explica Canclini (2008), transforma os

cenários da cultura popular na medida em que as categorias dualistas convencionais

(subalterno/hegemônico, tradicional/moderno) vão perdendo sentido. Segundo este

autor, a propagação trans-local da cultura se intensifica com os deslocamentos de

migrantes, exilados e turistas, os fluxos econômicos e comunicacionais, e também com

as trocas financeiras multinacionais e os repertórios de imagens e informação

distribuídos a todo o planeta por jornais e revistas, redes televisivas e internet. Neste

mundo intertextual, mestiço, de interface e de co-presença de todas as tradições

(STOÏANOVA 1985, apud PELINSKI, 2000), as manifestações artísticas das danças

dos orixás não ficam fora do cruzamento de culturas, ou seja, encontram-se implicadas

neste cruzamento, se contaminando e se recriando, tomando novos sentidos. Além da

sua natureza religiosa, esta dança se traduz em múltiplos cenários artísticos trans-

nacionalizados.

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Porém, Canclini (2008) sugere que para analisar como vão se transformando as

heranças culturais e ressituando num tempo de misturas interculturais, há que

diferenciar os diversos sentidos da globalização: “não são idênticas a globalização

financeira, a de bens industrializados e artesanais, as que ocorrem nas indústrias

editoriais, de cinema, musicais ou informáticas” (CANCLINI, 2008, p. 30). Os

processos de globalização não se dão de forma equitativa, mas com uma assimetria que

beneficia aos países donos das indústrias culturais, que decidem sobre a reorganização

dos mercados culturais, “reestruturando os estilos de vida e desagregando imaginários

compartilhados” (CANCLINI, 2008, p. 28).

Em consonância com esta questão, Lepecki (2006) prefere nomear esta

‘condição global’ sob a ideia de “pós-colonialidade”, que segundo o autor, supõe uma

transformação social derivada da queda dos impérios Europeus (Alemanha, França e

Grã Bretanha) nos anos 50 e 60. O pós-colonialismo, então, antecede a outros termos

como multiculturalismo, hibridação e miscigenação, “nomes simpáticos que descrevem

a entrada do corpo do ex-colonizado num sistema global de imagens, sons, peles e

gostos onde o ocidental se redime do seu passado por via de uma “celebração” da

“cultura” do até ontem colonizado” (LEPECKI, 2006). Porém, o autor sublinha que

falar de “pós-colonialidade” é um artifício semântico, já que não implica uma superação

temporal, como se já vivêssemos uma situação pós. Mas ainda continuamos submetidos

“às mesmas lógicas de subjugação e de disciplina que são o chão do projeto

colonialista: racismo, fome, guerra, movimento desenfreado, terraplanagem” (Idem).

Lepecki chama a atenção para o que o multicultural sugere, ou seja, o fim

fictício e delirante das tensões políticas e dos horrores corporais e sociais causados pelo

colonialismo, propiciando os mercados culturais globais baseados numa etno-

diversidade pacífica, humanista e unanimemente “global”. Portanto, um fenômeno

multicultural não pressupõe a ocorrência de trocas recíprocas e coerentes entre culturas.

Diante dessa armadilha capitalista, onde as multiculturas redefinem suas

estéticas comerciais como “exóticas e performáticas (ou espetaculares, dignas de serem

contempladas à distância)” (LEPECKI, 2006), este capítulo busca apresentar

questionamentos sobre de que modo é possível traduzir danças de uma cultura africana

e ancestral para uma cultura onde imperam os valores e critérios ocidentais

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contemporâneos, sem se deixar cair numa canibalização8 que suprima tudo o que

incomode neste processo e/ou põe em risco a compreensão do mundo ocidental.

Neste viés, procurando abrir um diálogo intercultural mais horizontal, o

sociólogo Boaventura de Souza Santos (2002), propõe um trabalho de tradução

sustentado por dois procedimentos sociológicos, conforme citados no início deste

capítulo: a ‘sociologia das ausências’ e a ‘sociologia das emergências’, os quais visam

desafiar, transgressivamente, o modelo de racionalidade imperante - que ele chama de

‘indolente’ -. O autor centra-se na crítica a uma de suas formas: a ‘razão metonímica’, a

qual opera sempre sob uma teoria geral que implica a ideia de totalidade e a

homogeneidade das suas partes. Essa totalidade se explicita, concretamente, nas

relações dicotômicas que encobrem sempre uma hierarquia e uma verticalidade:

Ocidente/Oriente; civilizado/primitivo; cultura/natureza; branco/negro; conhecimento

científico/conhecimento tradicional; etc. (SOUZA SANTOS, 2002, p. 242)

A ideia de tradução aqui proposto, se afasta do uso comum e literal do termo, já

que inclui sempre algum tipo de criação e, portanto, de transformação. Uma tradução

que esta mais perto da transmutação. A teoria da tradução parte do reconhecimento da

incompletude de todas as culturas, e daí busca identificar o que é comum entre as

entidades, sem suprimir nada da autonomia ou diferença que lhe dá sustento.

Assim, na crítica a esta teoria geral da ciência moderna, o autor parte de outro

pressuposto: ‘a teoria geral da impossibilidade de uma teoria geral’ (Ibidem, p. 268),

para o qual sugere um trabalho de tradução que permita “criar inteligibilidade recíproca,

coerência e articulação num mundo enriquecido por uma multiplicidade e diversidade

de experiências disponíveis e possíveis” (Ibidem, p. 268). Este pressuposto também

sustenta nosso entendimento a respeito das manifestações artísticas das danças dos

orixás, para o qual, longe de pretender ‘reproduzir padrões’ de movimentos que

representam um dado orixá, busca-se uma dança em que cada corpo contemporâneo e

colonizado estabelece um modo de tradução daqueles princípios de movimentos que

foram configurados a partir de valores do ambiente onde surgiu tal dança.

8 O termo “canibalização” associado à cultura refere-se ao ato de deglutir a cultura do outro. Embora leve uma longa trajetória no Brasil, está muito associada à indústria do turismo, como explica Carvalho (2010, p.64) o canibal é “um consumidor de costumes alheios e, para isso, se desloca de seu contexto para o contexto do outro, ‘primitivo’, com a finalidade de usufruir de seu modo de vida e de suas expressões culturais. Segundo este autor, este processo de canibalização cultural traz como consequência a espetacularização das culturas populares.

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Nossa hipótese é que há um processo tradutório sempre que a dança aconteça

num ambiente diferente de onde surgiu. Portanto, todas as manifestações artísticas das

danças de orixás são traduções de uma cultura para outra. A tradução não toca somente

aos estrangeiros, há tradução em Salvador e em Buenos Aires. Se a dança de orixás só

existe sendo incorporada dentro do terreiro, então, fora do terreiro, toda dança é

tradução cultural.

Os recortes: Do orixá ao mito, do mito à dança

Os orixás são divindades que eram cultuadas entre os yorubás e chegaram a

Brasil com o tráfico de escravos, onde se misturam e se organizam numa religião

chamada ‘candomblé’. O termo orixá, na lingua yorubá, é uma combinação de duas

palavras: ‘Ori’ que significa cabeça e ‘Sa’, que se traduz como guardião, ficando assim

como “Guardião da Cabeça”, “divindade elementar da Natureza” (FONSECA Jr., 1988,

p. 311). Mas também há autores que traduzem orixá como “cabaça-cabeça”

(ZENICOLA, 2001, p. 15). Para o candomblé, o orixá é um ancestral, que desce à terra

montado num dos corpos que dançam para saudar os seus descendentes. Os orixás são

personagens internos, arquétipos que cada um tem e que não são controláveis, que

sacamos à luz em determinadas situações, antes que pudéssemos pensar em como agir.

Com uma perspectiva contemporânea e artística, podemos tomar os orixás como

metáforas, por meio de suas danças, para reconhecer as energias que nos compõem, para

explorar seus arquétipos representados nos humanos e assim ampliar nossas

possibilidades de relacionar-nos com os outros e com o mundo. Utilizamos a ideia de

metáfora dos filósofos Lakoff e Johnson (2002), na qual traduzem conceitos, ideias, e

são corporais: toda experiência tem lugar dentro de um amplo conjunto de

pressuposições culturais. “Os conceitos que governam nosso pensamento não são meras

questões do intelecto... Eles estruturam o que percebemos, a maneira como nos

comportamos no mundo e o modo como nos relacionamos com outras pessoas.”

(LAKOFF e JOHNSON, 2002, p. 45/46)

Nesta ótica, pretendemos aqui investigar os processos tradutórios das danças dos

orixás Obaluaiê e Iansã que ocorrem entre o seu universo mitológico e a dança criada

artisticamente por um corpo colonizado, a partir daquele universo.

Interessa-nos aqui apresentar quais são as informações que vão sendo traduzidas

e como o corpo de cada um traduz isso de forma criativa. Para esta etapa, se iluminará o

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trabalho de tradução experimentado por duas professoras e dançarinas: Tânia Bispo9 e

Isa Soares10 na construção corporal dos dois orixás selecionados: Obaluaiê/Omolú, a

energia da terra e a peste, e Iansã, a energia do vento e a tempestade.

Por conhecer os múltiplos e complexos desdobramentos de cada orixá,

focalizamos a tradução das suas danças em relação ao seguinte mito:

“Omolú nasceu com o corpo coberto de chagas e foi abandonado por sua mãe, Nanã Buruku, na beira da praia...

Certa ocasião, todos os deuses reunidos dançavam alegremente, com exceção de Omolú, que da porta observava solitariamente.

Ogum perguntou a Nanã por que Omolú não se juntava aos outros e dançava. Ela explicou que ele tinha medo de aparecer por causa das pústulas.

Ogum resolveu ajudá-lo e teceu para ele uma roupa de ráfia.

Assim, Omolú foi para o salão e dançou bravamente diante de todos, cantando uma cantiga que homenageava Ogum, “que o levara para o mato e lhe dera uma bela veste de palha-da-costa”.

No entanto, nenhum orixá se habilitou a dançar com ele, só Iansã, altiva e corajosa, acompanhou Omolú.

O turbilhão de ventos de Iansã enfeitou ainda mais a dança e acabou levantando as vestes de Omolú, que, para espanto de todos, revelou-se um homem de rara beleza.

“Grato a Iansã, Omolú concedeu a ela o poder de reinar sobre os mortos.” (REIS, 2000, p. 119)

Interessa-nos, especialmente, esse mito por falar de um corpo/terra marcado pela

doença e rejeitado por isso, que consegue transformar sua condição na combinação com

outras energias. O vento destemido de Iansã faz dançar a terra de Omolú levantando a

palha e descobrindo os mistérios dele. Como explica Reis (2000, p. 119), o capuz de

palha-da-costa (azê) guarda mistérios terríveis para simples mortais, revela a existência

de algo que deve ficar em segredo, de interditos que inspiram cuidado e medo. Esses

segredos da terra estão relacionados com a morte, por isso são terríveis para os mortais.

Segundo o autor, desvendar o azê, a temível máscara de Omolú, seria o mesmo que

desvendar os mistérios da morte, pois Omolú venceu a morte (REIS, 2000 p.119). No

9 Tânia Bispo é baiana, dançarina, coreógrafa e diretora de reconhecidos espetáculos em Salvador. Embora trabalhe como professora de dança em diversos espaços da sua cidade (Ufba, Sesc) desenvolve sua proposta sobre ‘Transmissão do Conhecimento da Cultura Afro Brasileira através da Sensibilização’, em oficinas para grupos de estrangeiros. Não é um detalhe menor ressalvar que a profissional integra uma comunidade da religião do Candomblé. 10 Isa Soares, baiana radicada em Buenos Aires. Além de ela ser minha mestra, que me apresentou estas danças, foi a primeira pessoa que levou estas danças para Buenos Aires, a qual hoje está espalhada enormemente.

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entanto, Iansã, guerreira corajosa, tem a energia da tempestade, de um raio que corta o

céu no meio de chuva. Só ela se atreve a dançar com a terra que guarda o mistério da

morte. Iansã governa as almas dos mortos, manda-os embora e traz alegria e festa para a

vida.

Chama atenção o que esse mito diz a respeito da morte, como segredo terrível e

misterioso. Porém, há um convívio com o mundo dos ancestrais e Omolú e Iansã os

fazem presentes. Os dois orixás dançam aquilo que não se vê, nem se conhece.

Eis que vejo uma afinidade entre esse oculto a ser dançado, esse mistério a ser

descoberto numa beleza sublime e a nossa ignorância a respeito dessa cultura,

ignorância que mantém ela na invisibilidade. Nós não temos acesso a essas informações

por não ser reconhecidas pelas monoculturas da razão ocidental, como assinala Souza

Santos, portanto elas não aparecem na educação oficial e ficam silenciadas na

obscuridade.

Do mesmo modo, as informações sobre dança que propõem as professoras Tânia

Bispo e Isa Soares, também não se encontram na educação regular. Há razões e causas

colonizadoras para elas ficarem na invisibilidade. Enquanto nós continuamos na

ignorância, somos agentes de produção de invisibilidade. Este trabalho, então, pretende

ser um agente para tirar do escuro estas danças, suas histórias e experiências.

Segundo Souza Santos (2002, p. 238), a experiência social em todo o mundo é

muito mais ampla e variada do que a tradição científica ou filosófica ocidental conhece

e considera importante, e esta riqueza social está a ser desperdiçada. O autor sugere um

outro modelo de racionalidade no intuito de dar reconhecimento às múltiplas

experiências invisibilizadas: a razão cosmopolita.

Por uma razão cosmopolita

Para estudar esses processos tradutórios é preciso entrar em contato com outro

modo de compreender o mundo, alternativo à razão metonímica, que seja capaz de

pensá-lo além do mundo ocidental capitalista. Souza Santos (2002, p. 242), propõe uma

‘razão cosmopolita’ que permita criar o “espaço-tempo necessário para conhecer e

valorizar a inesgotável experiência social que está em curso no mundo de hoje...” e

assim “evitar o gigantesco desperdício da experiência...”, expandir o presente e contrair

o futuro.

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Nesta razão cosmopolita, o autor procura fundamentar três procedimentos

sociológicos: uma ‘sociologia das ausências’, para expandir o presente; uma ‘sociologia

das emergências’ para contrair o futuro, e uma teoria ou trabalho de tradução, como

alternativa a uma teoria geral, a qual pressupõe sempre a monocultura de uma dada

totalidade e a homogeneidade das suas partes... (Ibidem, p. 261/262). Portanto, para um

melhor entendimento do trabalho de tradução, é indispensável entender esses dois

procedimentos anteriores.

A ‘sociologia das ausências’ busca a ampliação do mundo e dilatação do

presente, ao tornar visível a infinidade de experiências que acontecem no presente, mas

que não são reconhecidas pela razão capitalista ficando na inexistência. Assim, o autor

começa por revelar cinco modos em que a ‘razão metonímica’ produz a não-existência

do que não cabe na sua totalidade e no tempo linear (Idem, p. 246):

- a monocultura do saber, que toma a ciência moderna e a alta cultura como cânones

exclusivos de produção de conhecimento ou de criação artística;

- a monocultura do tempo linear, que entende a história com sentido e direção únicos: o

progresso e a modernização. Tudo o que não é declarado avançado, é residual sob a

forma de obsoleto, primitivo, tradicional, simples ou subdesenvolvido;

- a monocultura da naturalização das diferenças, onde as hierarquias por raça ou

gênero são imodificáveis porque naturais;

- a monocultura do universal que outorga validez a realidades independentes do seu

contexto específico: o global deixa fora ao local;

- a monocultura da produtividade capitalista, no qual o crescimento econômico é um

objetivo racional inquestionável, critério que se aplica tanto ao trabalho humano quanto

à natureza sob a forma de exploração.

Segundo Souza Santos, estas cinco monoculturas produzem cinco formas de

não-existência: o ignorante, o residual, o inferior, o local e o improdutivo. (Idem, p.

248). Sob esta perspectiva, evidenciam-se, como nosso objeto de estudo, as

manifestações artísticas das danças dos orixás, atravessadas por todas estas categorias: é

ignorante e inculto por se basear num saber oral e mitológico; é atrasado e primitivo,

por conter temporalidades cíclicas, espiraladas e conviver com os antepassados; é

inferior pela sua origem negra e escrava; é local porque sua configuração depende

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diretamente do contexto e a cada novo contexto tem que se reconfigurar; é improdutivo

porque suas lógicas de produção e distribuição não se regem pela exploração do homem

e da natureza, mas sim, pelo contrário, cuida da distribuição das energias do universo

com dinâmicas que inclui o homem como parte da natureza.

A ‘sociologia das ausências’ pretende recuperar essa multiplicidade e

diversidade de práticas que Souza Santos chama de “desperdício de experiências” e

assim aumentar o campo das experiências credíveis existentes, sugerindo para cada

monocultura uma alternativa ecológica: a ecologia de saberes, a ecologia de

temporalidades, a ecologia de reconhecimentos, a ecologia de produções e a ecologia de

distribuições sociais.

A dilatação do presente ocorre pela expansão do que é considerado contemporâneo, pelo achatamento do tempo presente de modo a que, tendencialmente, todas as experiências e práticas que ocorrem simultaneamente possam ser consideradas contemporâneas, ainda que cada uma à sua maneira. (SOUZA SANTOS, 2002, p. 249)

Uma ecologia de reconhecimentos permite visualizar como o “popular” deixa de

ser sinônimo de local. Segundo Canclini, já não consiste no que o povo é ou tem num

espaço determinado, mas no que lhe resulta acessível ou mobiliza a sua afetividade

(2008, p. 86). Da mesma forma, a ‘identidade’ já não pode ser pensada em termos

estáveis de territorialidade, mas bem se define como uma ‘construção’ permanente de

relações selecionadas por identificação e pelas experiências simbólicas, onde um se

reconhece e se expressa em relação ao mundo.

No âmbito da cultura, ainda é possível gerar laços de identificação entre distintos

países de América Latina, onde certamente o Brasil, e especialmente a Bahia, é um

referente enquanto ao modo de sobreviver de vários processos de adaptação e

resistência da cultura negra. Embora toda a América Latina seja uma construção híbrida

e mestiça, configurada com raízes indígenas americanas, mediterrâneas da Europa e de

migrações africanas, em países como a Argentina se realizaram políticas de

“branqueamento social” tão poderosas que, ainda hoje, a grande maioria dos argentinos

nega a presença negra no país.

Talvez pelo fato de compartilhar processos históricos e por encontrar, na

atualidade, as mesmas condições de desvantagens na participação deste mundo

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globalizado, resulta-nos mais acessível compreender certos conceitos da cultura africana

já traduzidos por uma outra cultura latino-americana.

Enquanto a ‘sociologia das ausências’ se ocupa de dilatar o presente, ampliando

o domínio das experiências sociais já disponíveis, a ‘sociologia das emergências’

pretende contrair o futuro expandindo o domínio das experiências sociais possíveis.

A concepção do tempo linear do discurso colonizador e a planificação da história

conseguiram estender o futuro indefinidamente. “Quanto mais amplo o futuro, mais

radiosas eram as expectativas confrontadas com as experiências do presente.” (SOUZA

SANTOS, 2002, p. 239) A ‘sociologia das emergências’ busca a expansão simbólica de

saberes e práticas de diversos campos, a fim de identificar as condições de

possibilidades e as tendências do futuro, e determinar “princípios de ações que

promovam a realização dessas condições” (Idem, p. 256). .

A ‘sociologia das emergências’ é a investigação das possibilidades e capacidades

plurais e concretas que permitam contextualizar as expectativas sociais. Este

procedimento sociológico pretende, deste modo, equilibrar a relação entre experiência e

expectativa já que, quanto mais experiências estiverem hoje disponíveis no mundo, mais

experiências são possíveis no futuro.

Assim, a fim de fazer emergir as ausências, Santos propõe realizar um trabalho

de tradução, capaz de fazer inteligível a multiplicidade de experiências disponíveis,

buscando uma relação coerente com aquelas outras que ainda são possíveis. Portanto, “o

trabalho de tradução permite criar sentidos e direções precários, mas concretos, de curto

alcance, mas radicais nos seus objetivos, incertos, mas partilhados” (Idem, p. 274).

O trabalho de tradução

Greiner, no seu texto “A natureza precária das traduções” (2010, p. 25),

vislumbra a emergência de uma pluralidade de projetos coletivos articulados de modo

não hierárquico, capazes de confeccionarem teorias cada vez mais específicas e

localizadas, a favor da eliminação do pressuposto da existência de uma teoria geral.

O trabalho de tradução cosmopolita tem lugar sobre saberes e sobre práticas -

que são saberes aplicados e materializados-, que partem desse mesmo consenso

transcultural, já enunciado anteriormente: “a teoria geral da impossibilidade de uma

teoria geral”. Assim, este procedimento tende a explicitar os limites e as possibilidades

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da articulação entre os diferentes saberes e práticas culturais, já que, nas palavras de

Santos, “todas as culturas são incompletas e, portanto, podem ser enriquecidas pelo

diálogo e pelo confronto com outras culturas” (SOUZA SANTOS, 2002, p. 264). Daí se

compreende a necessidade de buscar em outra cultura, regida por outros valores e

modos de estar no mundo, respostas para problemas e vazios da cultura própria. Em

concordância, Bhabha diz que “não há comunidade ou massa de pessoas cuja

historicidade emita “sinais corretos”. Por isso, o ato de negociação/tradução precisa ser

sempre interrogatório.” (apud GREINER, 2010, p. 30) Não se trata, então, de pensar

numa tradução literal ou absoluta, mas numa tradução que implique uma mudança, que

dê lugar para uma criação e para uma mutação.

Para esclarecer as condições e procedimentos deste trabalho de tradução, Santos

sugere formular as seguintes questões: O que traduzir? Entre quê? Quem traduz?

Quando traduzir? Como traduzir? Traduzir com que objetivos?

Assim, inspirada e instigada pela proposta de Souza Santos, seguirei com as

questões a partir deste ponto da dissertação.

O que traduzir?

A razão cosmopolita propõe construir ‘zonas de contato’, que se definem como

campos sociais onde se encontram, chocam e interagem diferentes práticas e

conhecimentos. Esta ‘zona de contato’ é sempre seletiva, cada saber ou prática decide o

que é posto em contato com quem, contudo, tais saberes e práticas excedem a zona de

contato selecionada (SOUZA SANTOS, 2002, p. 268).

Para nosso trabalho de tradução, pretende-se colocar, como ‘zona de contato

cosmopolita’, a ‘dança’ que, de acordo com Bittencourt (2001, p. 36) “revela-se como

um sistema de alta complexidade e temporalidade ao configurar-se como produtora de

linguagem, um sistema de informações que estabelece relações efetivas, transformando-

se dinamicamente ao transitar em ambientes diversos”.

Sob esta perspectiva, as manifestações artísticas da dança dos orixás se

configuram como um sistema composto por múltiplas informações: um orixá, um

elemento da natureza, um mito, um ritmo, um canto, uma certa gestualidade e o corpo

que dança – em interação com o ambiente – e também o modo de relacionar-se entre

elas, estabelece lógicas de organização específicas. Portanto, observamos que, o que

singulariza o sistema dança não é somente o conjunto de informações, mas é a lógica de

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organização das informações, na qual a repetição reproduz-se como padrão. “O padrão

apresenta-se como organização e, portanto, como resultado de alguma regularidade. E,

sendo assim, revela-se como um sistema que possui uma linguagem própria, um sistema

de informações” (BITTENCOURT, 2001, p. 44). Assim, os padrões construídos nas

manifestações artísticas das danças de orixás, são abordados a partir de seu sistema de

informações e de sua lógica de conectividade e organização, a fim de compreendê-los e

incorporá-los como linguagem. Mas, como afirma a autora, a dança se transforma

dinamicamente ao transitar em ambientes diversos, a partir das informações que traz o

corpo que dança, o qual se correlaciona diretamente com seu contexto. “A dança e o

corpo que dança expressam o pensamento do ambiente em que se encontram, os valores

de sua época, destacando, marcando e transformando hábitos. Por isso, apresenta-se

também como sinalizadora de um tempo passado” (BITTENCOURT, 2001, p. 45).

Na tentativa de delinear a dança como zona de contato da tradução intercultural,

ou seja, cosmopolita, é preciso, antes de mais nada, abrir um diálogo a respeito do

entendimento de corpo e de dança entre certos autores fenomenológicos, pesquisadores

das danças da cultura yorubá e pensadores contemporâneos.

Em “Fenomenologia da Percepção” do filósofo Merleau-Ponty (1977; 1960),

destaca um paradoxo de dupla referência na experiência da corporalidade. Vislumbra-se

que o corpo é a mesmo tempo sensível e sentente, visível e vidente, isto é, que pode ser

um corpo objetivo – coisa entre as coisas, pertence à ordem do objeto - assim como

também um corpo fenomênico - aquele que vê e toca às coisas, pertence à ordem do

sujeito-. Sujeito e objeto não estão divididos, mas constituem potências numa relação de

coimplicação, onde cada uma “chama à outra”.

No entanto, corpo e mundo se comunicam inevitavelmente através da espessura

da carne: “o mundo está feito com o mesmo pano do corpo” (MERLEAU-PONTY,

1977, p.16-17). Essa noção do corpo como parte do tecido do mundo, descarta a

dicotomia de corpo-mente e restabelece a relação horizontal do corpo e a natureza para

podermos nos reconhecer neste corpo sensível e “que sente”, objeto e sujeito, que afeta

e se deixa afetar por outros corpos e pelo mundo.

Para a cultura yorubá, o corpo humano, “é um microcosmo e nele estão contidos

todos os elementos e forças da natureza que, distribuídos harmoniosamente pelo corpo,

explicam a sua mitologia” (ZENICOLA, 2001, p. 84). Assim como o corpo é natureza,

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a natureza é corpo, sua “terra” são os tecidos, a carne, pele e ossos. O fogo aparece

quando as emoções se externalizam e se modulam; assim a temperatura se altera, seja

por ira, seja por vergonha ou por paixão; ou também para enfrentar alguma doença,

como no caso do corpo febril. A água flui, conecta as suas partes, transporta o alimento,

regula sua temperatura, relaxa e amolece a “terra” do corpo, tira o excesso e equilibra. O

ar, que também está no abstrato do corpo, nos pensamentos, na imaginação, na

inspiração, entra e sai dele, alimentando cada célula.

Por outro lado, Augras (1983, apud ZENICOLA, 2001) explica como certas

partes do corpo se relacionam com o mundo a volta:

Os pés apoiam-se no concreto, no barro de onde saiu e para onde voltará, na terra que os antepassados pisaram e à qual retornaram. O pé direito corresponde à herança dos antepassados masculinos, e o pé esquerdo, à herança feminina. A mão direita e esquerda atuam sobre o mundo e transformam as coisas. A cabeça, que reproduz as quatro dimensões do espaço, contém, na interseção dos pontos cardeais, o centro da individualidade, ori-inu, manifestação do duplo sagrado, que provém de substância divina, da qual os próprios deuses são tributários. (Idem, p. 84)

Rosamaria Susanna Barbara em sua tese ‘A dança das aiabás. Dança, corpo e

cotidianidade das mulheres do candomblé’ (BARBARA, 2003, p. 66), afirma que para o

candomblé o corpo é considerado o local da sabedoria. Os orifícios, os sentidos, a pele

em geral são órgãos de conhecimentos. Merleau-Ponty (1977; 1960), discute que o

mundo não pode constituir-se como mundo, nem o ‘eu’ como ‘eu’, a não ser em sua

relação. Através dessas formulações, a ‘fenomenologia da percepção’ introduz a questão

do outro e de como o sentido do mundo se constrói intersubjetivamente, diferenciando-

se radicalmente da filosofia mecanicista de Descartes que centrava essas questões no

âmbito exclusivo do indivíduo e sua razão.

Para o filósofo, o corpo é um agente e é a base da subjetividade humana. A

percepção, não é uma representação interna de um mundo exterior, mas é uma

experiência incorporada e ocorre antes no mundo que na mente. A percepção se

fundamenta no comportamento, no ver, ouvir, tocar, enquanto formas de conduta

baseadas em hábitos culturais adquiridos.

Assim, tentando aproximar a fenomenologia da percepção, proposta por

Merleau-Ponty, do pensamento yorubá sobre o corpo, trazemos uma explicação que a

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professora e dançarina Isa Soares utilizou para propor suas recriações das danças de

orixás:

A terra do meu corpo às vezes eu posso modificar mudando suas dimensões (emagrecendo ou engordando, subindo aos saltos, ou pintando o meu cabelo), mas a energia do meu corpo, o modo como vou me movimentar é a que vai gerar quimicamente algum pólo positivo do outro e que se conecte com algum pólo positivo ou negativo do meu corpo, e isso pode gerar simpatia ou antipatia, as duas iguais no grau de importância e necessárias para estabelecer minhas relações com o mundo. (SOARES, 2005, Buenos Aires, sala de aula)

Pelo fato do corpo ter movimento, deslocando no tempo e no espaço, a

motricidade é o modo de o corpo ‘ser-no-mundo’, “estabelecendo relações portadoras

de sentido, possibilitando a comunicação e permitindo, desta forma, que criamos, em

nossos vários desdobramentos, o mundo da intersubjetividade” (BARBARA, 2003: p.

56). “A espessura do corpo, longe de rivalizar com a do mundo, é, pelo contrário, o

único meio que tenho para ir até o coração das coisas, convertendo-me em mundo e

convertendo a elas em carne” (MERLEAU-PONTY, (1964) 1970, p. 168).

Já na contemporaneidade, Najmanovich (2008) sugere que não podemos

conhecer os objetos independentes de nós, o conhecimento implica interação, relação,

transformação mútua, codependência e coevolução.

Tomando as palavras de Barbara, podemos dizer que o corpo na cosmogonia11

yorubá é o ponto de conjunção entre as energias naturais e a cultura e, por intermédio do

ritmo traduzido na dança, transforma os eventos naturais em significados culturais.

Cada gesto mostra o sentido de um símbolo, criando assim a dialética, o fluir dinâmico

do ritual. (2003, p. 54) Vemos aqui como a dança tem um papel fundamental no

processo de transmissão de costumes e valores de uma determinada nação que, já

desterrada da sua África, busca sobreviver numa nova cultura, reconfigurando-se na

religião do Candomblé.

Mauss (1872-1950), sociólogo, historiador de religiões e antropólogo francês

que colocou a sociologia dentro da ciência moderna sugerindo considerar cada

fenômeno sociocultural segundo os usos sociais, no seu livro ‘Sociologia e

11 A cosmogonia é uma narração mítica que pretende dar resposta à origem do universo e da própria humanidade. A cosmogonia ajuda a construir a percepção do universo e da origem dos deuses, a humanidade e elementos naturais.

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Antropologia’ (1950), fala de ‘técnicas corporais’ para expressar a maneira com que os

seres humanos, de cada sociedade, usam e adaptam seus corpos numa forma tradicional.

Nomeio técnica ao ato eficaz tradicional (vem, pois como esse ato não se diferencia do ato mágico, do religioso ou do simbólico). É preciso que seja tradicional e seja eficaz. Não há técnica nem transmissão enquanto não tenha tradição. O homem se diferencia fundamentalmente dos animais por essas duas coisas, pela transmissão das suas técnicas e provavelmente pela sua transmissão oral. (MAUSS, 1950, p. 342)

As manifestações das danças dos orixás se configuram num conjunto de

movimentos e intenções corporais que estabelecem uma significação dependente da sua

cosmologia. Zenicola, falando especificamente da dança que acontece na cerimônia do

Candomblé, comenta que “trata-se de um conjunto de passos específicos e intenções

claras de movimentos para cada orixá que, embora permita variações interpretativas de

intenção e na ordem em que os passos serão apresentados, não aceita mudanças na

execução do movimento.” (ZENICOLA, 2001: 86)

Não é a nossa intenção estudar a dança que acontece no contexto religioso, mas

buscar modos de traduzi-la desde seu universo mitológico para o contexto da arte. Por

este caminho, Inaycira Falcão dos Santos (2006) traz uma proposta para a arte da dança

que se afasta da tradicional abordagem focada na cópia de formas do rito vivenciado no

terreiro e se volta para o corpo do intérprete-bailarino por meio de memórias ancestrais,

com ações corporais carregadas de significados, trazendo-as para o presente por meio da

arte do movimento criativo (SANTOS, 2006). Interessa-nos, aqui, como a autora foca

na experiência singular de cada intérprete, na qual, além da vivência física, filosófica e

criativa, o intérprete reflete sobre a mesma e se percebe corporalmente no processo

(SANTOS, 2006). Desta forma, a autora sugere que, para pensar na tradição africana

brasileira, já não se trata de reproduzir as formas sagradas advindas das comunidades

religiosas, mas como este sagrado pode inspirar o artista, discernindo formas, valores da

cultura em questão, buscando o seu conhecimento e o respeito.

Assim, vemos que a dança se modifica de acordo com as relações que se

estabelecem entre o corpo que dança, o seu ambiente e as informações de tal dança. E,

nesse modo particular de se relacionar com o ambiente, cada dança e cada corpo se

torna único.

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Em consonância com isto, Katz e Greiner (2005), apresentam a teoria

corpomídia, na qual explicam que informações do mundo são selecionadas para se

organizar na forma de corpo, e a cada informação que chega ao corpo, reposiciona-o por

inteiro. O corpo e o ambiente relacionam-se em processos coevolutivos que tecem “uma

rede de pré-disposições perceptuais, motoras, de aprendizado e emocionais” (2004, p.

130). Parafraseando Najmanovich, o corpo participa de uma dinâmica criativa de si

mesmo e do mundo com que ele está em permanente intercâmbio.

Vale a pena apontar aqui como a teoria corpomídia atualiza o conceito de corpo

da fenomenologia da percepção. Merleau-Ponty sugere uma noção de ‘ser-no-mundo’

que implica uma relação indivisível do ser com o ‘haver’ prévio: “o mundo está aí

previamente a qualquer análise que eu possa fazer do mesmo”. (Merleau-Ponty 1993

[1945): 10) No entanto, para Katz e Greiner não há nada pré-estabelecido, “tudo o que é

vivo existe como resultado sempre parcial de uma condição coevolutiva” (SAITO,

2012, p.19). A teoria corpomídia pesquisa o “estado do corpo ser” (Idem), ou seja o

corpo sempre em “estado processual”, em constante mudança e troca com o ambiente, o

qual também se modifica e se reconfigura a cada mudança.

Katz e Greiner nos convidam, então, a repensar o conceito de corpo, já não

enquanto um meio por onde a informação simplesmente passa, pois toda informação

que chega entra em negociação com as que já estão, num processo de contaminação

(2004, p. 131). O corpo como resultado desses cruzamentos se torna mídia de si mesmo,

afastando-se da ideia de mídia como veículo de transmissão. Desta forma, a dança é

tratada como uma experiência cognitiva que opera no fluxo entre corpo e ambiente, de

modo que o corpo vive em estado do sempre-presente. Segundo as autoras, as

experiências são frutos de nossos corpos, de nossas interações com nosso ambiente

através das ações de se mover (sensório-motoras) e de nossas interações com outras

pessoas dentro da nossa cultura e fora dela.

O ato de dançar, então, “é o de estabelecer relações testadas pelo corpo em uma

situação, em termos de outra, produzindo, neste sentido novas possibilidades de

movimento e conceituação” (Ibidem, 132). Portanto, a zona de contato da tradução, vai

ser aquela manifestação artística da dança dos orixás (especificamente de Obaluaiê e de

Iansã) que, “em ressonância com seu ambiente, cria e é submetido a mitologias do

corpo em movimento” (GODARD, 1995, p. 11).

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Entre quê traduzir?

A seleção dos saberes e práticas para realizar o trabalho de tradução resulta de

uma convergência de sensações de carência, de inconformismo, e da motivação para

superá-las de uma forma específica (SOUZA SANTOS, 2006, p. 270). Esta sensação de

carência e motivação para realizar algo é parte fundamental das condições necessárias

para que a dança surja e se desenvolva num certo contexto. A cada novo contexto, a

dança se reconfigura de acordo com as adaptações às condições particulares.

Propomo-nos, então, estudar o processo de tradução entre diferentes contextos

onde ocorrem as danças baseadas em mitos de Obaluaiê e de Iansã. Mesmo

pressupondo que existem tantos contextos quanto danças e modos de dançar, para esta

pesquisa serão abordados dois modos de traduzir: entre o contexto do universo

mitológico dos orixás e o ambiente artístico e contemporâneo da dança. Tomamos por

ambiente não somente o espaço físico, mas todo um conjunto de condições necessárias

para que a dança aconteça, onde corpo e ambiente trocam informações num fluxo

contínuo de acordos coadaptativos (FOLEY, 2003).

Assim, numa primeira instância serão analisadas as reconfigurações destas

danças na passagem da África à Bahia, onde em condições da escravidão, o culto aos

orixás era a motivação para superar as experiências do desarraigamento ou extirpação e

as vivências mais inumanas a que foram submetidos. A dança era, aqui, uma forma de

comunicar-se com os ancestrais, com sua terra do outro lado do oceano e também entre

eles, já que nem todos compartilhavam o mesmo dialeto. Como ilustra Verger:

... disso resultou, no Novo Mundo, uma multidão de cativos que não falava a mesma língua, possuindo hábitos de vida diferentes e religiões distintas. Em comum, não tinham senão a infelicidade de estarem, todos eles, reduzidos à escravidão, longe das suas terras de origem. (VERGER, 2003, p. 22)

Numa segunda instância, serão analisados dois contextos onde a dança surge

como expressão artística contemporânea, de corpos colonizados pelos valores ocidentais

e capitalistas, privados de escolherem outras formas de viverem e se relacionarem com

o mundo, além do mundo capitalista. A dança cobra um sentido singular em cada

pessoa, de acordo com as possibilidades interativas entre o corpo, o ambiente e as

características selecionadas desta dança.

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Neste sentido, podemos afirmar que as conexões musculares dos corpos de uma

técnica de dança correspondem a uma determinada lógica de cognição e essa lógica

obedece a valores de um certo contexto. Assim, cada corpo vai criando regras para

compor a dança, isto é, seleciona uma ou mais possibilidades de composição. Britto

explica:

Toda dança resulta do modo particular de um corpo organizar, com movimentos, o seu conjunto de referências informativas (biológicas e culturais). Do mesmo modo, o contexto cultural corresponde ao ambiente do corpo, no sentido de que o conjunto de informações que caracterizam os modos de pensar e operar vigentes na sociedade em que está inserido delineia seu campo particular de possibilidades interativas. (BRITTO, 2008, 72)

Portanto, o processo de tradução da dança entre o contexto mitológico e cada

ambiente do corpo que traduz, será sempre em relação à seleção de informações que faz

sentido para ele e que faz algum tipo de conexão com sua história corporal, suas buscas

e necessidades. É por aí onde vemos a possibilidade de fazer um caminho pessoal e

criativo nas manifestações artísticas da dança dos orixás e onde a tradução se aproxima

mais a uma ‘transmutação’ (Jakobson) ou a uma ‘transcriação’ (CAMPOS, apud

GREINER, 2010, p. 15).

Quando traduzir?

Nas zonas de contato multiculturais, tem de se confluir uma constelação de

tempos, ritmos e oportunidades que a “sociologia das ausências” se encarregou de

revelar, em contraposição à lógica da monocultura do tempo linear. (SOUZA SANTOS,

2002, p. 271)

Para a cultura africana, “o tempo é uma composição dos eventos que já

aconteceram ou que estão para acontecer imediatamente” (MBITI, 1990, p. 16-17, apud.

PRANDI, 2001, p. 7). Longe de pensar o tempo independente do ser humano, como

algo a ser consumido ou vendido, para o africano, o tempo tem que ser criado, “ ele faz

tanto tempo quanto queira” (Idem, p. 4). No Brasil, em comunidades religiosas regidas

por tradições africanas, o tempo, até hoje, é pensado e descrito de um modo muito

diferente do tempo linear e causal do capitalismo. Em palavras de Prandi (2001, p. 4):

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“o tempo será sempre definido pela conclusão das tarefas consideradas necessárias no

entender do grupo, ou seja, por meio da fórmula: ‘quando estiver pronto’”.

Na cosmovisão africana, o tempo é circular, é o tempo da natureza, onde os

eventos do presente são repetições de um passado distante que se “transmite” oralmente

pelo mito. Porém, na mitologia, os eventos também não se ajustam a um tempo

contínuo e linear. Os mitos são narrativas parciais, onde fatos que são narrados como

acontecimentos de uma mesma época, ocorreram em momentos muito distantes. “O

tempo do mito é o tempo das origens, e parece existir um tempo vazio entre o fato

contado pelo mito e o tempo do narrador.” (Idem, p. 7)

Na zona de contato cosmopolita das manifestações artísticas das danças dos

orixás, o tempo da tradução será de uma contemporaneidade que permita abranger este

pensamento de tempo. Ou seja, contemporaneizar esta prática e este saber pelo simples

fato de estar acontecendo nesta época, mas, atendendo, sobretudo às suas lógicas de

tempo. Neste caso, se a tradução é contemporânea, a dança também pode ser tratada

como contemporânea.

Quem são os meus contemporâneos? — pergunta-se Juan Gelman. Juan diz que às vezes encontra homens que têm cheiro de medo, em Buenos Aires, em Paris ou em qualquer lugar, e sente que estes homens não são seus contemporâneos. Mas existe um chinês que há milhares de anos escreveu um poema, sobre um pastor de cabras que está longe, muito longe da mulher amada e mesmo assim pode escutar, no meio da noite, no meio da neve, o rumor do pente em seus cabelos; e lendo esse poema remoto, Juan comprova que sim, que eles sim: que esse poeta, esse pastor e essa mulher são seus contemporâneos. (GALEANO, 1991, p. 123)

Quem traduz?

A tradução é um trabalho intelectual, geralmente exercido por líderes de grupos

sociais. Já Heidegger, concebia possível a tradução de uma palavra, se o tradutor

consegue trasladar-se para o “horizonte de experiência a partir do qual a palavra se

enunciou” (GREINER, 2010, p. 15). Portanto, esses tradutores cosmopolitas precisam

estar “fortemente enraizados nas práticas e saberes que representam, tendo de uns e de

outras uma compreensão profunda e crítica” (SOUZA SANTOS, 2002, p. 271).

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Para explicar esta idéia, Souza Santos remete-se à filosofia da sageza da África

tradicional. Os sages eram poetas, contadores de histórias, músicos ou médicos

tradicionais de sabedoria, que transmitiam o modo de pensar e de explicar o mundo de

uma comunidade através de uma “sabedoria didática” que se caracterizava pela sua

dimensão crítica frente ao senso comum. Só que muito dessa filosofia da sageza não

está escrita e tem se perdido (ODERA ORUKA, 1990-1998, apud SOUZA SANTOS,

2001, p. 263)

Pela mesma via, o saber popular das cosmovisões africanas - tanto yorubá, bantu

ou fon, entre outras-, transmitido pela oralidade, foi perdendo importância sob a forma

de ignorante ou inculta, ficando legitimado somente o que os cientistas e intelectuais

europeus conseguiram escrever nos seus livros. Porém, muitas informações tiverem

continuidade através da mitologia, dos cânticos, dos rituais e das danças.

Como já apresentamos, para este estudo, as tradutoras analisadas serão as

professoras Isa Soares e Tânia Bispo. Tânia Bispo desenvolve o seu trabalho em

Salvador/ BA, a partir do contato com a simbologia ritualística dos orixás e sua relação

com o elemento da natureza correspondente, energias, características, arquétipos e

leituras simbólicas dos fundamentos ligados ao orixá. O trabalho busca explorar a

criação de sequências individuais e composições coletivas em relação com o “mito

pessoal” e retratos das memórias ancestrais. Tânia Bispo conta que a pesquisa começou

com ela mesma, quando na sua formação na ‘Escola de Dança da Universidade Federal

da Bahia’ deparou-se com a dificuldade de improvisar com ‘uma linguagem própria’,

por conta de ter incorporado tantas informações da dança moderna, do balé clássico e

demais técnicas “importadas” desenvolvidas na Escola de Dança naquela época. A

dançarina relata que sentia que tinha perdido a sua língua matriz, a sua ancestralidade.

Foi a partir da percepção da carência de uma oferta de dança que contemplasse a sua

história pessoal, que decidiu “pesquisar com o núcleo Odundê, os princípios básicos da

postura de um corpo negro, a postura de um corpo que dança matriz sagrada”

(entrevista, 2011).

Por sua vez, Isa Soares, baiana radicada em Buenos Aires/Argentina, há mais de

trinta anos, desenvolve sua proposta de ‘recriações das danças de orixás’ a partir do

trabalho do ‘Xiré’, isto é, uma ordem de aparição dos orixás, na qual eles representam

‘diferentes instâncias mediadoras, dentro dos ciclos vitais’… “ Os gestos, nessa

recriação, relatam o recorrido do corpo por instâncias da vida...” (SOARES, 2006). A

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professora conta que seu trabalho de dança partiu da necessidade de se incluir na

sociedade porteña (de Buenos Aires) onde mora, porque foi ela que decidiu se instalar

ali, sendo negra, sem família e com um filho. Ela precisava dialogar com as pessoas por

meio da dança, de dizer como era ela, como gostaria que a tratassem e como ela gostaria

que fosse o mundo. Na hora de partilhar o seu trabalho, Isa Soares sublinhava sobre o

lugar que ela tinha recriado cada movimento: “aconteceu-me isto, eu o reproduzo assim,

entrego-lhes dessa maneira, vocês façam com ele o que quiseram. Contudo, observem

sempre, desde a sua necessidade de fazer. Não da repetição porque sim.” (SOARES,

2005, entrevista)

Nos dois casos, o trabalho de tradução da dança se reconfigura a partir da

dimensão crítica de cada professora em relação com o seu ambiente e com o universo

mitológico da dança. Porém, vemos que, desta atitude crítica, surge um sentimento de

incompletude “e a motivação para encontrar noutros saberes ou noutras práticas as

respostas que não se encontram dentro dos limites de um dado saber ou de uma dada

prática”. (SOUZA SANTOS, 2002, p. 271)

Esta ideia de carência e a motivação para superá-la, segundo Souza Santos,

podem ser melhores entendidas com o questionamento do sociólogo indiano

Vishvanatran (2000, apud, SOUZA SANTOS, 2002, p. 264): “o meu problema é como

ir buscar o melhor que tem a civilização indiana e, ao mesmo tempo, manter viva a

minha imaginação moderna e democrática”. Tal problematização, de alguma maneira,

converge para os nossos modos de pensar as traduções culturais das danças: como tomar

certos valores e princípios da cosmovisão africana para transformar modos de nos

relacionarmos e criar mundos possíveis, a partir de nossa história pessoal?

Como traduzir?

Souza Santos explica que o trabalho de tradução é um trabalho argumentativo, o

qual confirma a “emoção cosmopolita de partilhar o mundo com quem não partilha o

nosso saber ou a nossa experiência” (SOUZA SANTOS, 2002, p. 272). Assim, o autor

apresenta três principais dificuldades do trabalho de tradução:

1- A primeira dificuldade são as premissas de argumentação. Cada cultura ou

saber, conta com um consenso de regras, postulados e ideias, nomeadas como ‘lugar

comum’ ou ‘topoi’ , nas quais assentam as premissas de argumentação. Porém, esses

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topoi, por serem próprios de uma cultura, não são aceitos como óbvios por outra cultura

ou saber. Portanto, para o trabalho de tradução, cada saber ou prática leva para a zona

de contato, certos topoi que deixam de ser ‘premissas da argumentação’ e tornam-se

‘argumentos’ da tradução. No processo do trabalho de tradução, vão se construindo

“ topois adequados à zona de contacto e à situação de tradução” (Idem, p. 272).

A escolha do trabalho das professoras Isa Soares e Tânia Bispo para este estudo

relaciona-se com a particular capacidade delas para construir topois ou ‘lugares

comuns’ adequados à zona de contacto da dança da mitologia afro-yorubá, que

argumentam de forma coerente o processo de tradução de cada trabalho. Os argumentos

de tradução de cada uma das professoras estão construídos a partir do ambiente de cada

corpo, e são os que possibilitam e sustentam o processo criativo de cada dança. Porém,

como afirma o sociólogo, este “é um trabalho exigente, sem seguros contra riscos e

sempre à beira de colapsar” (SOUZA SANTOS, 2002, p. 272).

2- A segunda dificuldade está na língua. A dificuldade aparece especialmente

quando a ‘zona de contato cosmopolita é multicultural’ e a argumentação é conduzida

pela língua colonial, a qual muitas vezes tornam impronunciáveis aspectos centrais dos

saberes e práticas oprimidos na zona colonial. (SOUZA SANTOS, 2002, p. 272). Neste

trabalho de tradução, a linguagem é a dança. O risco está em que, para poder fazer

algum tipo de tradução desta dança de origem afro-yorubá, é indispensável partir de

outra noção de corpo, diferente daquela que marca o corpo colonizado, organizado por

lógicas e valores da cultura ocidental, questão que já foi discutida para delimitar a zona

de contato a traduzir, isto é, dança. A tradução é um trabalho paralelo ao processo de

aprendizagem de uma nova linguagem corporal, com outros conceitos de corpo, de

estética, de tempo e que implica estabelecer uma relação mais íntima e horizontal com a

natureza, a partir do entendimento de que o corpo é composto por uma multiplicidade

de energias possíveis de serem desenvolvidas.

No intuito de atender a uma tradução corporal que abrange aquilo que não se

sabe como pronunciar, Greiner sugere que o indizível da linguagem “sempre pode ser

traduzido como um querer-dizer”, e nesse silêncio, uma fala secreta torna a tradução

próxima da criação. (GREINER, 2010, p. 15)

3- A terceira dificuldade está nos silêncios. A tradução do silêncio é uma das

tarefas mais complexas, já que cada saber e prática outorgam um significado diferente

ao silêncio, assim como um ritmo específico na articulação com as palavras. (SOUZA

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SANTOS, 2002, p. 273). Para a cultura tradicional africana, o silêncio está associado ao

segredo, ao fundamento do culto aos orixás, que só podem ter acesso pessoas que

passam por uma série de rituais iniciáticos através de longos anos. Prandi (2001)

comenta que são os velhos os depositários do segredo da tradição e da cultura viva:

“Mitos, fórmulas rituais, louvações, genealogias, provérbios, receitas medicinais,

encantamentos, classificações botânicas e zoológicas, tudo é memorizado” (PRANDI,

2001, p. 12). A única maneira de aprender é na sua convivência, mas é um aprendizado

silencioso e sem muitas perguntas, baseado na observação e repetição.

Mesmo assim, silêncio em yorubá significa “Atótó!”, e com esta palavra se

cumprimenta a Obaluaiê em sinal de respeito:

“Atótó! Omolú Olúké a jí béèrù sápadà!”

(Silêncio! O filho do Senhor é o Senhor que grita, nós

acordamos com medo e corremos de volta!) (OLIVEIRA,

1997, p. 75).

Essa questão de como traduzir o silêncio, portanto, estará presente no estudo das

danças do orixá Omolú/Obaluaiê nos próximos capítulos.

Como bem assinalava Souza Santos, essa cultura também concede um ritmo

específico ao silêncio na articulação com as palavras. No caso da linguagem corporal

desta dança mitológica, o silêncio é marcado pelos diferentes toques percussivos de

cada dança. O ritmo sugere uma energia particular que, para atingi-la é indispensável

“silenciar” certas partes do corpo para que outras possam se movimentar. Contudo, já

sabemos que este silenciamento do corpo não é uma questão meramente de visibilidade

músculo-esquelética. Segundo Godard, “a cultura, a história do dançarino, a sua

maneira de perceber uma situação, de interpretar, vai induzir uma “musicalidade

postural” que acompanha ou despista os gestos intencionais executados” (GODARD,

1995, p. 13). Porém, o autor acrescenta que esses mecanismos não são muito

compreensíveis e também não podem ser dirigidos pela intenção. Godard sugere, então,

atender ao pré-movimento, ou seja, à “atitude em relação ao peso, à gravidade, que

existe antes mesmo de se iniciar o movimento”, (idem, p. 13) que é o que vai produzir a

carga expressiva do gesto. Assim, este estado corporal que antecede ao gesto, será

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retomado e aprofundado no capitulo quatro, na hora de analisar as traduções das danças

de Isa Soares e Tânia Bispo.

Para que traduzir?

O trabalho de tradução cosmopolita contribui para apontar resposta à primeira

pergunta deste estudo: de que modo é possível realizar um trabalho de tradução de

danças africanas e ancestrais para uma cultura colonizada pelos valores e critérios

ocidentais, buscando uma articulação recíproca e evitando uma tradução hegemônica?

A razão cosmopolita reconhece uma América Latina cheia de experiências além

do seu colonizador ocidental. Nesta dilatação do presente, diferentes culturas não

hegemônicas podem buscar respostas ao inconformismo que produz o mundo ocidental,

num diálogo transcultural com diversos tipos de tradução que habilita a uma

inteligibilidade recíproca. Retomando as palavras de Souza Santos, o trabalho de

tradução entre práticas não hegemônicas é uma condição da conversão das práticas não-

hegemônicas em práticas contra-hegemônicas. (SOUZA SANTOS, 2002, p. 265).

Para o trabalho de tradução cosmopolita, é urgente, ante disso, reconhecer nossa

condição de inexistentes e entender que essa invisibilidade é produzida pela cultura

hegemônica ocidental, a qual só legitima as monoculturas que cabem no seu raciocínio.

É a partir de reconhecermo-nos colonizados, de registrar o sentimento de incompletude

que nos incomoda e da vontade de transformá-lo, que podemos estabelecer um diálogo

de reciprocidade com uma outra cultura não hegemônica.

As manifestações artísticas das danças de orixás podem se converter em práticas

contra-hegemônicas ‘somente’ se o trabalho de tradução - trabalho intelectual, político e

emocional- consegue atender à diversidade de experiências, valores e cosmovisões que

desafie à razão ocidental capitalista. A quantidade de experiências invisibilizadas não é

tanto problema quanto as infinidades de experiências e saberes que, por estarem

respondendo às monoculturas ocidentais, reproduzem-se através de ações e discursos

colonizadores sem terem consciência disso.

A ‘sociologia das ausências’ e a ‘sociologia das emergências’ se tornam pilares

indispensáveis para realizar os trabalhos de tradução das dançarinas Tânia Bispo e Isa

Soares nos próximos capítulos. Tais sociologias apontam para a desnaturalização dos

parâmetros de legitimação com os quais somos educados no dia-a-dia, ampliando o

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presente a partir das ecologias de saberes, de temporalidades, de reconhecimentos, de

produções e de distribuições sociais. Deste modo, as experiências das artistas aqui

pesquisadas se tornam visíveis e são legitimadas pelos valores das culturas colonizadas

implicadas na tradução. Deixa-se assim, o terreno propício para dar visibilidade a

muitas outras experiências.

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CAPITULO 2

TÂNIA BISPO: TRANSCENDER O ‘MITO PESSOAL’

Figura 1: Manifestação artística de Tânia Bispo, Salvador, 2012. Foto: Arquivo da autora

Este capítulo propõe apresentar um estudo sobre o modo em que a dançarina e

professora Tânia Bispo consegue traduzir, artisticamente, as danças mitológicas

dos orixás Omolú e Iansã - duas deidades cultuadas na religião do candomblé. A

partir do trabalho de tradução cosmopolita, segundo Souza Santos, iluminamos

a manifestação artística desta dançarina, que logra um processo criativo, sensorial e

pessoal da dança, baseado nos arquétipos oriundos dos mitos e nas vivências do culto

aos orixás.

Evitando traduzir esta cultura a partir dos valores e critérios ocidentais, Tânia

Bispo constrói outros ‘lugares comuns’ para novas ‘premissas de argumentação’.

Segundo ela, para fazer a tradução é preciso diferenciar o espaço sagrado do artístico,

entender que todos (de qualquer origem e religião) podemos nos reconhecer na

natureza por meio de emoções e arquétipos e que a preparação corporal não precisa

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apenas de técnica ou de cópia de passos, mas de um trabalho de sensibilização de cada

corpo, respeitando a individualidade e as diferenças. Deste modo, esta experiência

contribui em contrapor o fenômeno de colonização instalado pelo sistema capitalista.

Como foi explicitado anteriormente, a zona de contato desta tradução é a dança

inspirada no seguinte mito:

“Omolú nasceu com o corpo coberto de chagas e foi abandonado por sua mãe, Nanã Buruku, na beira da praia... Certa ocasião, todos os deuses reunidos dançavam alegremente, com exceção de Omolú, que da porta observava solitariamente. Ogum perguntou a Nanã por que Omolú não se juntava aos outros e dançava. Ela explicou que ele tinha medo de aparecer por causa das pústulas. Ogum resolveu ajudá-lo e teceu para ele uma roupa de ráfia. Assim, Omolú foi para o salão e dançou bravamente diante de todos, cantando uma cantiga que homenageava Ogum, “que o levara para o mato e lhe dera uma bela veste de palha-da-costa”. No entanto, nenhum orixá se habilitou a dançar com ele, só Iansã, altiva e corajosa, acompanhou Omolú. O turbilhão de ventos de Iansã enfeitou ainda mais a dança e acabou levantando as vestes de Omolú, que, para espanto de todos, revelou-se um homem de rara beleza. Grato a Iansã, Omolú concedeu a ela o poder de reinar sobre os mortos.” (REIS, 2000, p. 119)

Com a finalidade de pesquisar o processo de tradução de Tânia Bispo, precisamos

primeiramente, compreender os diversos contextos, as dificuldades e as condições

específicas nas quais a tradutora foi se desenvolvendo e construindo este trabalho.

2.1. Salvador: do tabu ao exotismo.

Salvador é uma cidade que se tece no deambular das suas próprias contradições.

Os três séculos de tráfico de escravos provenientes de diferentes culturas africanas lhe

deixou uma população com alta porcentagem de negros e uma cultura caracterizada pela

quantidade de práticas com traços africanos como o samba, a capoeira, as comidas, as

festas, a religião, as oferendas, entre outros que se misturaram com costumes indígenas

e europeus. Este fenômeno de miscigenação não se deu de forma pacífica nem

conciliatória e o poder eurocêntrico e colonizador se encarregou de levantar a bandeira

da democracia racial, que aparenta uma feliz convivência entre as diferentes raças e

classes sociais.

Ao longo da história foi se instalando sorrateiramente um racismo velado sob a

ideia de mestiçagem, amplamente difundida por artistas e pensadores românticos que

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construíram a ilusão de um Brasil harmonioso e sempre sorridente. Paralelamente,

podem-se perceber diversos movimentos de resistência negra que vão das lutas nos

quilombos -1830- até a africanização do carnaval12 -1970-, os quais, estrategicamente,

procuravam manter vigente sua cultura.

Infinidades de músicas, assim, falam do brilho do mar, do céu tropical, dos

corpos morenos e curvos e das danças sensuais, alegres e coloridas. Semelhante

promessa turística atrai e alimenta o sonho europeu e enriquece o mercado da indústria

cultural. De tal modo, as práticas culturais negras que sobrevivem no cotidiano e no

pensamento do povo baiano sofrem diversos modos de espetacularização e exotização

por parte da indústria cultural, na busca de minimizá-las e negar-lhes sua vigência como

parte da identidade baiana. Segundo Carvalho:

“a “espetacularização” é a “operação típica da sociedade de massas, em que um evento... criado para atender a uma necessidade expressiva específica de um grupo é preservado e transmitido através de um circuito próprio, é transformado em espetáculo para consumo de outro grupo, desvinculado da comunidade de origem”. (Carvalho, 2010, p. 47)

Assim sendo, o samba de roda, a capoeira e as cerimônias de candomblés

viraram produtos folclóricos vendidos como lembranças aos estrangeiros. Porém, estas

práticas ainda conseguem, de certo modo, manter algum sentido de resistência e

valorização da comunidade negra.

Na década de 1970, em plena ditadura, Salvador vivia um clima de

efervescência na luta pela resistência negra. De acordo com Motta (2009, p. 46), em

1974 é fundado o Bloco Negro Ilê Ayê o qual, na busca por desenvolver a autoestima do

povo negro baiano, contribuiu na revelação de músicos e dançarinos negros.

Seguidos pelo impulso do Ilê Ayê surgiram outros importantes blocos entre os

quais não podemos deixar de citar, como o bloco afro Malê Debalê, originário de

Itapuã; e os blocos de afoxés como Os Filhos de Gandhi e o Badauê, que conduziam

aproximadamente seis mil pessoas (Ibidem, p. 47). Estas manifestações culturais deram

visibilidade e reconhecimento social e político aos afrodescendentes baianos,

preparando o terreno para um novo ciclo de afirmação da cultura negra e luta contra o

racismo.

12 Termo utilizado por Antônio Risério para nomear o fenômeno dos blocos afros e afoxés no carnaval da Bahia observado a partir dos anos de 1970 (MOTTA, 2009, p. 14).

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Nesse contexto, Tânia Bispo inicia sua carreira como dançarina no grupo

folclórico do SESC (Serviço Social do Comércio), com o professor Raimundo Bispo

dos Santos, conhecido como Mestre King, e depois, ela se profissionaliza na Escola de

Dança da UFBA (Universidade Federal da Bahia). Numa entrevista concedida para este

trabalho, Tânia Bispo comenta, porém, que quando entrou na Escola de Dança, houve

um choque ao se encontrar com uma escola que era totalmente voltada para culturas

estrangeiras, ou seja, as técnicas de dança que a escola propunha eram todas de origem

europeia e americana.

Vale esclarecer, que neste trabalho não nos focaremos na história da Escola de

Dança da UFBA, nem tampouco em suas referências e percursos no campo da dança.

Apenas vamos apontar para as informações mais relevantes que revelam as

circunstâncias nas quais Tânia Bispo foi construindo seu modo de dançar, e

especialmente, de manifestar artisticamente as danças dos orixás.

2.2. A universidade. Dança de qual história?

Conforme Motta (2009, p. 33), a ‘Escola de Dança’ da UFBA, fundada em 1956,

tem deixado importantes marcas ao longo da história da dança no Brasil, já que, além de

ser a única escola de dança de nível superior no país em suas primeiras décadas de

existência, sempre colaborou especialmente na consolidação da dança como área de

conhecimento. No início da Escola, a dança só podia ser pensada em referência a

Europa ou aos Estados Unidos: a dança clássica ou as danças modernas como o

expressionismo alemão e as técnicas americanas de Martha Graham. Essas últimas,

muito em voga naquela época, respondiam às circunstâncias daqueles que viviam no seu

lugar de origem, com características que nada tinham a ver com as da Bahia, nem do

Brasil. Em palavras de Motta: “passávamos do convívio cultural dividido entre as visões

ameríndias, luso-ibéricas e africanas para uma expressão de um pós-guerra de uma

guerra acontecida numa Europa em que os habitantes da província soteropolitana mal

tinham ouvido falar”. (Ibidem, p. 32)

No programa curricular da Escola, todas as disciplinas “práticas" trabalhavam

técnicas corporais importadas da Europa e Estados Unidos, como o balé clássico, a

dança moderna, principalmente a técnica de Martha Graham e as danças de caráter. Só

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contava com uma disciplina chamada ‘Danças Folclóricas’ onde podia conhecer-se algo

da cultura local como o samba de roda, a capoeira e o maculelê,... (Ibidem, p. 33)

Assim, Tânia Bispo se encontrou numa disciplina chamada ‘Improvisação’, com

a dificuldade de improvisar quando lhe era cobrada uma linguagem própria. A

dançarina comenta que “não sabia mais o que fazer desse corpo, porque já tinha perdido

a língua própria”. Ela não sabia se falava a sua língua matriz, sua ancestralidade, não

sabia se falava a linguagem que era desenvolvida na Escola de Dança na época, como a

dança moderna e o balé clássico, ou a linguagem que era a dança afro. (Bispo,

entrevista, 2011)

Numa entrevista prestada a Motta, Tânia Bispo relata que ela sentia dificuldade

para executar as técnicas da dança moderna e principalmente do balé clássico. Mesmo

assim, os critérios da Escola para qualificar as técnicas curriculares eram muito rígidos:

“um corpo que não conseguisse realizar adequadamente estas técnicas, desconsiderava a

aluna como habilitada para dançar” (MOTTA, 2009, p. 55). Porém, Tânia Bispo afirma

que “seu corpo negro, de forma orgânica dançava no dia-a-dia, rebolava no subir e no

descer da ladeira, entrava no samba de roda em qualquer esquina e isso determinava o

seu padrão corporal. Acompanhava a charanga, entrava no samba de partido e tudo isso

não era somado e nem considerado na Escola”. (idem, p. 55)

A professora Conceição Castro13 estava a cargo da disciplina acima mencionada

na qual Tânia Bispo se encontrou em conflito. Quando ela ouviu o questionamento da

aluna, desafiou-lhe que então improvisasse com toda sua história pessoal: “pesquise

como é esse movimento no seu corpo. Como ele se traduz? Como você pode trazê-lo do

seu interior para expressá-lo com o seu próprio sentimento sem ferir a sua história, sem

ferir as suas identidades. Preste atenção ao que lhe move e porque” (segundo

depoimento de Tânia Bispo a MOTTA, 2009, p. 56).

Conceição Castro já vinha percebendo essas dificuldades dos alunos negros que,

embora fossem muito bons dançarinos nos seus contextos e muitos dançavam nos

blocos afros e outras manifestações culturais, entraram numa escola que lhes impunha

técnicas corporais que nada tinham a ver com sua história. Mais uma vez, os negros se

encontravam em condição de desvantagem diante dos alunos brancos que já traziam

formação em balé ou dança moderna.

13 Maria da Conceição Castro Franca Rocha. Mestre em Educação, hoje aposentada, pertencia ao quadro

docente do Departamento de Teoria e Criação Coreográfica da Escola de Dança da UFBA.

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A professora Conceição Castro tomou essa crise de Tânia Bispo como

disparadora para conformar um núcleo que pesquisasse os princípios básicos da postura

de um corpo negro e que valorizasse o conhecimento dos alunos afrodescendentes.

2.3. Odundê: novo ciclo de um povo

O grupo Odundê, surge no ano 1981, com um projeto de pesquisa nomeado

“Estudo do movimento na Dança Afro-brasileira”, o qual propunha aproximar as

tradições e influências culturais africanas ao movimento contemporâneo (BISPO, 2004,

p.11). Motta relata a respeito, que o grupo buscava configurar uma dança que

‘encarnasse’ as formas de viver, trabalhar, sofrer e celebrar da comunidade negra em

suas diferentes relações com a sociedade baiana e com o mundo. (MOTTA, 2009, p. 52)

Percebe-se então, que o grupo tinha duas pretensões muito ousadas para a época. Por

um lado, buscava pesquisar esta dança, cheia de tradições e simbolismos

afrodescendentes, dentro de um contexto acadêmico onde até agora só contemplava as

danças importadas dos países hegemônicos. Ao mesmo tempo, se interessava em

estudá-las com uma abordagem contemporânea. Nas palavras de Motta (Ibidem): “Essa

dança deveria liberar dimensões ocultas que revelassem, não apenas no aspecto

coreográfico, mas no próprio corpo dos dançarinos, identificações com a resistência,

com seu imaginário e desejos contemporaneamente comungados”.

Como consequência das pesquisas em sala de aula, o grupo começou a compor

um espetáculo que levava o mesmo nome. Sobre este processo, Tânia Bispo lembra que

se estudava como era a postura do corpo que dança, quais eram os pontos de energia

desse corpo, ou seja, pesquisavam os blocos musculares necessários para que o corpo

transmitisse um conhecimento de modo que o espectador não precisasse dizer: “a! é

Iansã! é Oxossi! é Oxum! mas sim reconhecer uma guerreira, uma mulher sensual. Vê-

se só a tradução e deixa-se o orixá no candomblé”. (BISPO, entrevista, 2012)

Podemos dizer, seguindo Motta (2009, p. 71), que o grupo Odundê buscava

abandonar o padrão ocidental e estereotipado da dança afro da época, atendendo às

informações que estavam ocultas até para eles próprios e que emergiam no processo da

criação. O projeto de Odundê foi apresentado e aprovado no Departamento de Teoria e

Criação Coreográfica e, a partir de 1981, o designam como um dos grupos oficiais da

Escola de Dança da UFBA. (Ibidem, p. 72)

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Odundê, em yorubá, significa: Odun – destino de um povo, ano novo – e dê –

tempo, vida nova, novidade. Ou seja: nova era, novo ciclo que se inicia (Ibidem, p. 60).

Seguramente Odundê significou um novo ciclo para a dança em Salvador e para a

Escola de Dança. É evidente que este grupo abriu um horizonte para suas integrantes.

Odundê continuou realizando vários espetáculos e apresentações até 1995, com

mudanças na direção, no elenco e no processo de criação dos espetáculos. Tânia Bispo

permaneceu dançando e participando durante todo esse percurso e afirma que ainda

continua dançando a mesma proposta.

2.4. Omi Olorum, outro fluir com o público

Tânia Bispo trabalha no Serviço Social do Comércio – SESC/ Salvador, num

projeto voltado à valorização das tradições da cultura regional, através de aulas de dança

afro, dança folclórica, criação e execução de espetáculos (BISPO, 2004, p. 11). Neste

marco, a professora dirigiu o espetáculo “Omi Olorum”, que ficou em cartaz durante

oito anos no ‘Teatro SENAC Pelourinho’, em Salvador/ BA.

É interessante ressaltar como esta obra, apresentada no lugar mais turístico de

Salvador, conseguiu se diferenciar do típico espetáculo folclórico que sempre alimenta

uma imagem do corpo afro-americano construída pela indústria do turismo. Em palavras

de Carvalho (2010, p. 51): “o processo de “espetacularização” coloca artistas populares

na condição de objeto: deverão apresentar-se, alterando as bases de seus códigos

específicos, para deleite de espectadores de classe média, em seus momentos de

consumo, de lazer ou cultura de turismo”. O autor acrescenta, a respeito deste processo,

que o público também torna-se objeto pelos mesmos agentes que contratam os artistas,

produzindo assim, uma estrutura controlada pela indústria do entretenimento ou pela

ordem política que contrata o espetáculo. (Idem, p. 51)

Porém, Tânia Bispo logrou afastar-se deste lugar quase inegociável entre o

turismo e o espetáculo, atendendo ao processo criativo e tratamento estético de sua obra.

A artista explica que “Omi Olorum” era um espetáculo que já trazia uma pesquisa por

trás. Os dançarinos do elenco desenvolveram um trabalho de exploração com o

elemento água (omi), sua simbologia ritualística e seus arquétipos. Assim, as danças dos

orixás já não eram aqueles orixás montados, como é montado no candomblé, era um

trabalho artístico diferente nesse contexto. Esta sutileza no modo de abordar a criação

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da obra era muito perceptível pelo público. A partir de “Omi Olorum” a diretora

ganhou importante visibilidade e reconhecimento e recebeu várias propostas para dar

aulas para grupos estrangeiros.

2.5. Os riscos de traduzir

As diversas experiências de Tânia Bispo como dançarina e pesquisadora do

grupo Odundê, como diretora da obra Omi Olorum e como professora, especialmente de

grupos de estrangeiros de diversas partes do mundo, lhe promoveram trocas de diversas

culturas por meio da dança, reafirmaram certos pressupostos e lhe permitiram superar

dificuldades na tradução desta dança.

Como foi explicitado no primeiro capítulo, para Souza Santos, a tradução

pretende “partilhar o mundo com quem não partilha o nosso saber ou a nossa

experiência” (SOUZA SANTOS, 2002, p. 272). Este é um trabalho argumentativo, para

o qual o autor nos apresentou três dificuldades principais: as premissas de

argumentação, que passam a serem argumentos por não serem óbvias para a outra

cultura; a diferença de língua e a tradução dos silêncios. Dando prosseguimento,

pretendemos iluminar a forma como a professora conseguiu lidar com tais dificuldades.

2.5.1. A construção de lugares comuns

As premissas de argumentação sustentam o ‘lugar comum’ ou ‘topoi’ no

consenso de uma cultura. Ao traduzir para outra cultura, a qual não tem como óbvio

esse lugar comum, estas premissas de argumentação passam a serem os argumentos da

tradução, enquanto vão se construindo os lugares comuns apropriados à situação de

tradução (Idem, p. 272).

No trabalho de Tânia Bispo, segundo as entrevistas concedidas, conseguimos

destacar três topois ou lugares comuns que a professora foi construindo na zona de

contato da tradução.

O primeiro topoi se constrói a partir do entendimento das diferenças dos dois

espaços, o sagrado e o artístico. Tânia Bispo afirma que o sagrado tem fundamentos que

não precisam ser trazidos para o espaço artístico. “A diferença de você trazer o sagrado

para sala de aula é você não oportunizar ao outro entrar em contato com o sagrado

dele”. Para a professora, o sagrado ritualístico é diferente do ritual da sala de aula, o

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qual não deixa de ser ritual, mas vai conectar com outra parte desse corpo, a parte do

intelecto, a parte da transformação. E acrescenta:

“Perceber a diferença do corpo de uma manifestação de um orixá, para o corpo de uma manifestação de um artista é muito importante, porque o artista tem a capacidade de transcender, mas transcender com a consciência, e o orixá transcende, mas num processo dentro de um fundamento que isso aí eu não sei explicar, porque aí eu, como filha de orixá, eu sei que transcendo, mas não sei aonde é que eu vou, nem onde é que fico.” (entrevista, 2012)

Figura 2. Tânia Bispo ensinando os elementos simbólicos usados nos rituais do Candomblé a um grupo de dançarinas. Foto: Arquivo da autora

A partir da própria vivência como artista e como religiosa, a dançarina logra

separar os dois estados corporais com muita clareza. O corpo do dançarino é um corpo

consciente que tem a capacidade de transcender, de traduzir uma imagem, uma música,

um movimento, um símbolo, a partir de todo o conhecimento que traz que possa

contribuir nessa transformação. No espaço sagrado, pelo contrário, Tânia Bispo explica

não se transforma nada, porque há que seguir os fundamentos. Não se pode chegar ao

candomblé pra dizer que se vai transformar o movimento de Iansã, ou vai se

transformar um padê de Exu, ou uma comida de orixá; lá se tem que seguir a tradição.

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Porém é importante ressaltar aqui, que mesmo que no terreiro de candomblé se

pretenda manter o que está codificado entre os pares, não cabe afirmar que é original,

está também em permanente evolução. Ao longo do tempo, é possível perceber

mudanças. Se ainda persiste até hoje é justamente pela sua natureza não imutável.

Existem transformações, mas também existe permanência. As mudanças são mais lentas

porque tende a manter a tradição.

O segundo topoi parte do pressuposto de que todos nós somos filhos da natureza

e todos temos algum tipo de relação com ela. Como foi explicado no capítulo anterior, o

corpo humano, para a cultura yorubá, “é um microcosmo e nele estão contidos todos os

elementos e forças da natureza que, distribuídos harmoniosamente pelo corpo, explicam

a sua mitologia” (ZENICOLA, 2001, p. 84). Esta relação do corpo com a natureza, por

sua vez, implica que há diversas combinações dos elementos naturais em cada corpo, ou

seja, certas energias da natureza predominam num corpo e outras ficam mais reservadas.

De acordo com essa combinação, cada pessoa se condiciona a exercer determinadas

funções na sociedade.

A respeito disso, Juana Elbein dos Santos, no seu livro “Os Nagô e a morte”

(2007 (1986), p. 203), aponta que, para o povo yorubá, o ser humano, como todos os

seres, é constituído por elementos coletivos, representações míticas, ancestrais ou

antepassados (de linhagem ou família) e por uma combinação de elementos que

constituem sua especificidade, ou seja, sua unidade individual.

Esta ideia do corpo constituído por uma variedade de elementos materiais e

abstratos, de vários tempos e planos, contribui a entender a relação que sugere Tânia

Bispo entre os elementos da natureza e os diferentes estados emocionais do corpo.

Conforme a dançarina, todos nós podemos reconhecer-nos nas energias da natureza

quando temos momentos mais calmos ou mais bravos, quando vivemos situações que

nos tornam mais guerreiros ou outras em que estamos mais doces ou mais maternais e

etc. Todos esses elementos da natureza, por conseguinte, também estão relacionados

com os arquétipos que estão em cada um e que estão no mundo. Segundo Tânia Bispo

(2011), sempre temos algum arquétipo mais imponente, que tem haver com as

qualidades mais características de cada um. E os demais estão num pano de fundo lhe

dando apoio.

Deste modo, a dançarina admite que, mesmo que para esta dissertação tenha sido

pedido para ela dançar a partir do mito de Omolú e Iansã, e ela leu e se deu um tempo

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para pensar e sentir, na verdade, quando o atabaque soa, conecta com um ponto nela que

é o arquétipo de Omolú que está dentro dela, e conecta um ponto nela que é o arquétipo

de Iansã que está nela. Que tem momentos da vida dela que lhe dizem: Nossa! Que

brava você! (entrevista, 2012)

O terceiro topoi se baseia na preparação do corpo que, para dançar, não precisa

de técnica nem de cópia de passos, mas sim é necessário um trabalho de sensibilização

de cada corpo com seus elementos da natureza e seus arquétipos, respeitando a

individualidade e diferenças de cada um.

No espaço sagrado, segundo Tânia Bispo, o ‘povo de candomblé’ não tem outra

preparação corporal para dançar que os fazeres cotidianos como: lavar, engomar, mexer

panela de carurú, fazer vatapá, bater martelo quebrando osso de animal, varrer,

vasculhar, etc. (BISPO, entrevista, 2011) É a partir do próprio cotidiano do candomblé

que cada corpo se conecta com as gestualidades das danças sagradas.

No espaço artístico da sala de aula, Tânia Bispo, então, não quer impor uma

técnica para dançar, porque opina que se ela impõe uma técnica vai levar o outro a um

lugar que só é comum a ela, mas não é comum para o outro. E acrescenta: “Assim eu

estou impondo o que eu quero para esse corpo e eu acredito que este corpo tem que vir

com o que ele entende e responde”. (BISPO, entrevista, 2012)

A professora prefere preparar o corpo a partir de uma sensibilização com ritmos,

cantos e simbologias do universo dos orixás, para que cada um faça as conexões com

suas próprias histórias, seus mitos e seus arquétipos. Cada corpo consciente tem a

capacidade de traduzir um movimento, uma música ou uma sensação a partir de alguma

imagem que está no seu inconsciente. Tânia Bispo afirma que essa transcendência é a

grande arte, porque já não é cópia do outro corpo, mas é um autoconhecimento deste

corpo a partir de sua relação com seus elementos. E assenta que “essa imitação nunca

chega próxima do que é. Porque a gente não vai ser o que não é. O que é, é o que lhe

pertence... Então, esse corpo que tem um conhecimento, que escuta uma voz, que sente

alguma coisa, ele pode sim traduzir”. (Ibidem)

Mesmo assim, a dançarina adverte que, para dançar um bonito ijexa14, é

necessário ter um bom trabalho de ombros. Mas não necessariamente se precisa entrar

14 Ritmo para saudar e dançar os orixás das águas, especialmente para Oxum.

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num processo técnico, o importante é que cada um descubra esse ritmo no seu corpo e

respeite a individualidade.

“É muito mais fácil a gente deixar que o outro conecte com o que é seu, do que

a gente dar emprestado.”(Ibidem, 2012)

Figura 3. Curso com Tânia Bispo Salvador, 2009 Foto: Arquivo da autora

Tânia Bispo afirma assim que cada corpo vai fazer diferente, porque cada corpo

fala diferente, e essa diferença tem que ser valorizada. “Senão seria cortar uma cabeça e

colocar outra, e colocar bonequinhos em sala de aula fazendo igual. Mas ele nunca vai

fazer igual.” (Ibidem, 2012)

Esses três topois ou lugares comuns que a professora foi construindo ao longo da

sua experiência ajudam a esclarecer também outra questão que atravessa esta pesquisa,

que é entender que a gente não dança orixá, a gente dança a história da gente. Portanto,

não é possível nomear a nossa dança como “Dança ‘de’ Orixá”, porque a dança dele é

ele quem dança na cerimônia de candomblé. Em todo caso, é a nossa criação inspirada

nas danças deles, traduzindo sua simbologia e seus arquétipos.

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2.5.2. A dificuldade da língua, a oportunidade do silêncio.

Tânia Bispo se encontrou em várias ocasiões na tarefa de fazer um trabalho de

tradução da cultura afro-brasileira com grupos de estrangeiros; alguns que falavam

somente inglês. Como ela não fala inglês decidiu desenvolver um método através de

uma linguagem que é oriunda do candomblé: o silêncio.

Tânia Bispo, então, não fala nas aulas. Afirma que o conhecimento que você

traduz através das palavras não o é o conhecimento que precisa para este trabalho. E

acrescenta: “se eu falo nesse momento, eu estou induzindo a outro a chegar onde eu

quero. Mas eu não quero que ele chegue a onde eu quero, quero que ele chegue onde ele

quer chegar, onde ele pode chegar” (BISPO, entrevista, 2011). Nestas aulas, portanto, a

professora aspira dialogar com um conhecimento que está adormecido e que vai se

descobrindo, acionando e revelando aos poucos, a partir de uma sensibilização. Então

não interessa a língua que fala o outro.

Como vimos no capítulo anterior, a maior dificuldade neste tipo de tradução não

é a linguagem verbal, mas a linguagem corporal constituída por toda uma cosmovisão

africana. Assim, Tânia Bispo comenta que cada grupo que recebia tinha dificuldade de

entender uma linguagem que era comum para pessoas que estavam inseridas naquele

contexto. Então, de acordo com o tipo de dificuldade que se encontrava, ela ia inserindo

propostas através de um som, de um ritmo, de um canto, de um cheiro ou de um objeto,

a fim de criar independência desse corpo para ele encontrar o seu ponto de apoio, o seu

ponto de conexão com o que ela estava propondo. Esse processo era desenvolvido

lentamente, sem muita cobrança de forma, do resultado final e sim uma cobrança de um

resultado pessoal.

Esta questão lembra a sugestão de Greiner a respeito à tradução corporal que

possa abranger àquilo que não há como pronunciar. Uma fala secreta e indizível que

habilita à criação. A autora alude que esse silêncio “sempre pode ser traduzido como um

querer-dizer”. (GREINER, 2010, p. 15)

Quando a zona de contato da tradução é multicultural, como neste caso, Souza

Santos nos alerta do risco de que a argumentação seja conduzida pela língua colonial, a

qual muitas vezes tornam impronunciáveis aspectos centrais dos saberes e práticas

oprimidos na zona colonial. (SOUZA SANTOS, 2002, p. 272). Deste modo, vemos

como a professora tenta esquivar ou superar esta dificuldade ao tomar certas práticas do

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universo religioso de candomblé para propor um modo diferente de relacionamento

entre o corpo e o ambiente, construindo uma linguagem corporal baseada em conceitos

da cultura afro-yorubá.

Por outra parte, Tânia Bispo se baseia em que todos nós temos alguma

experiência com os elementos, a questão é como você conectar com eles. Assim, ela diz

a respeito: “... eu não preciso contar como é um raio, porque todo mundo já passou pela

experiência de ter visto. Nem preciso contar como é a energia de uma água batendo no

seu corpo ou de entrar numa mata e sentir o cheiro das folhas, porque todos alguma vez

passaram por essa experiência”. Então quando cada um conecta com todos esses

elementos, conecta também com seus elementos internos e aí automaticamente se

transcende no símbolo. “A gente realmente traduz toda nossa relação e sentimento

através das imagens arquetípicas”. (BISPO, entrevista, 2011)

Neste sentido, no momento da dançarina criar sua tradução corporal do mito de

Omolú e Iansã, ela parte para fazer as seguintes perguntas: Como é que eu posso

compor a minha história, junto com a história de Omolú, de Iansã? O que é que Iansã

tem a ver comigo? O que é que Omolú tem a ver comigo? Esse homem que tem o poder

de transformar, de dar vida, tanto quanto pode tirá-la. Como todos. Que é que ele pode

transformar na minha vida? Que símbolo é esse que o meu corpo faz, e onde ele está?

O que o vento vê... (o silêncio da peste)

Inquieta. Vibrante. Brava.

Gira. Ora é deusa, ora é bicho. Gira.

Olhar de raio,

O que é o que não se pode ver?

Olhar com as costas, com o quadril, com as mãos.

Gira e é outra, sempre é outra.

Quita sua pele, solta. Solta e muda.

O corpo se cobre e descobre num constante movimento.

Gira em redemoinhos.

Olha o invisível, o inadmissível, o inapreciável.

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Olha e incita a ser olhada.

Ri dela e do que vê.

Corpo em tempestade não tem nada que temer.

Mãos de garras, carne indigesta. Acolhe-se, encolhe-se, funde-se dentro da terra. Grito

emudecido que apenas alguém percebe. Não há rosto nem palavra. Não é para dizer,

nem para ver. A dor solitária bate na terra. Um pé nos olha: Quem se diz saudável?

Quem não tem nenhuma chaga queimando a pele? Terra dentro da terra, coberta de

terra. A peste não pede licença. Mas nós.15

Figura 4. Manifestação artística de Tânia Bispo, Salvador, 2012. Foto: Arquivo da autora

Tânia Bispo chegou à hora marcada para a Escola de Dança da UFBA com os

percussionistas: seu filho Ícaro Bispo e Fernando Trancinha16, com quem trabalha há

muitos anos. Estava vestida com um macacão de algodão branco e um tecido na cabeça

15 Neste trecho da pesquisa, houve uma necessidade da pesquisadora de fazer uma tradução poética da dança de Tânia Bispo, no intuito de registrar sensações e percepções que escapam do discurso acadêmico, mas que são constitutivas desta escrita. 16 Além de tocar sempre com ela, os dois são religiosos e também tocam os atabaques nas cerimônias de Candomblé.

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de cores amarela, laranja e marrom. Também trazia outro tecido igual que colocou

como saia para dançar.

Antes que os tambores começaram a soar e antes que a câmera estivesse pronta,

subitamente, Tânia Bispo solta um giro e a partir daí, um meneio constante invade seus

ombros e seus quadris. Os músicos olham o primeiro movimento dela e logo começam a

tocar. Tânia Bispo começou dançando o vento, embora no mito apareça ao final.

A dançarina vai transitando por diferentes estados corporais a partir de

gestualidades e simbologias que ela traduz do orixá Iansã. Ao longo da dança é muito

notável o trabalho criativo com os arquétipos deste orixá. Tânia Bispo descreve a Iansã

como uma mulher guerreira, sensual e enérgica, que também traz uma boa gama de

acentos masculinos. “O corpo dela se transforma como se transforma também o tempo

numa tempestade. Ao mesmo tempo em que você vê um raio surgir no céu, depois fecha

e vem aquela sensação de limpeza e de calmaria. Mas em qualquer momento ela pode

estar explodindo.” (BISPO, entrevista, 2012)

Figura 5. Manifestação artística de Tânia Bispo, Salvador, 2012. Foto: Arquivo da autora

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Assim, na dança é possível perceber como cada vez que ela solta um giro, ela se

transforma e nunca volta ao mesmo estado. São giros sobre um pé, com braços e pernas

dobradas que dão a sensação de desequilíbrio. Porém, é um modo do corpo se organizar

que lhe permite manter um controle naquele desequilíbrio.

Nessas transformações ela é uma deusa e em determinados momentos ela vira

um bicho e fica brava, mas também é uma fresca borboleta. Seu rosto se oculta por

detrás dos dedos que se movem em intermitência. A energia do corpo se traduz no

olhar, um olhar que se espalha na corporalidade, no som, no ar.

Figura 6. Manifestação artística de Tânia Bispo, Salvador, 2012. Foto: Arquivo da autora

Num momento da dança os braços se elevam rígidos, como uma faca, fazendo

gestos de cortes. Logo corta algo profundo lá embaixo, talvez seu próprio parto, e volta

a ficar em pé, com as mãos na cintura, olhando para frente ameaçadoramente. Tânia

Bispo comenta que no momento que Iansã esta brava ela não enxerga a quem ela fere, e

a quem ela arranca a cabeça, então depois de ela ter parido, ela cortou a continuidade.

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Isso sugere à dançarina a sensação de ‘única’, de ser uma coisa só. Só ela gira entorno

dela mesma. Ela transforma por si só.

Tânia Bispo explica que este orixá tem muita energia na língua, na fala do

corpo, na expressão. Dá para perceber na dança, como ela sempre dirige o olhar para

alguém, como para o publico, ou neste caso para a câmera. Há um momento em que ela

se aproxima da câmera, séria e olhando sempre de frente. Quando chega bem perto da

câmera, a percussão acaba e Fernando Transinha, o percussionista, começa a cantar para

Iansã e entram com outro toque.

Xê umbêlê xê umbêlê éléni xáxerê

Xê umbêlê xê umbêlê éléni xáxerê17 (OLIVEIRA, 2009, p. 118)

A artista começa a fazer um gesto de abrir e descobrir algo que está à altura do

seu rosto. Logo, dá um giro e fica de costas para a câmera com as mãos na nuca com o

mesmo movimento de mover algo e começa a girar. Movimentos leves, gestos de algo

que continua no seu quadril, pode ser uma saia, recolhe o tecido do chão e o pendura do

ombro e vai andando para trás, olhando (para a câmera). Olha e ri. Brinca com o tecido,

o enrola no pescoço, o estende na frente do seu rosto, e vai espiando detrás dele.

Novamente, a percussão acaba e muda de toque; desta vez começa o opanijé,

ritmo específico de Omolú, o orixá da terra. Tânia Bispo se ajoelha, tira os brincos,

anéis e pulseiras, e coloca-os no chão. Logo, apoia a cabeça na terra, rola e volta a

apoiar a cabeça agora sobre as mãos que estão no chão. Numa entrevista, a dançarina

relata que quando vê esse orixá no terreiro, ela sente uma necessidade de reverenciar ou

de se encolher para entender o que acontece dentro do seu ventre, “ele me traduz a

minha transformação interna”.

A maior parte do tempo, a dança sucede no plano baixo deitada ou ajoelhada

com o peito e rosto no chão. Nesta dança, Tânia Bispo entra num estado corporal como

doente, por vezes tenso, outras num estado pesado. Um corpo frágil, sempre caindo. Por

vezes, aparece um impulso de querer sair desse lugar, mas de um modo ou de outro, o

17 Cantiga em Iorubá com tradução à fonética portuguesa, que se traduz: “Proteja a nossa casa, proteja a nossa casa (Oyá), Senhora para quem nós brincamos”. (OLIVEIRA, 2009, p. 118)

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próprio corpo o impede. Os momentos que o rosto se descobre são mínimos e tão

fugazes quanto impactantes.

A dançarina confessa que dançar Omolú para ela é muito difícil porque ele é um

orixá muito forte, que traz um mistério debaixo de toda sua indumentária. Vale lembrar

que Omolú, no mito, traz o corpo coberto por uma roupa de palha. Segundo Tânia

Bispo, por mais que se descubra quem está por trás da palha, nunca vai se atingir a

profundidade que tem este orixá.

Figura 7. Manifestação artística de Tânia Bispo, Salvador, 2012. Foto: Arquivo da autora

Ainda deitada com o peito no chão, a artista clava uma mão nas costas, clava a

outra e estica uma perna na frente. O dedão dessa perna começa a avançar pelo solo ao

redor do corpo fazendo-o girar no seu eixo. Depois começa a rolar pelo chão e as mãos

nas costas parecem querer empurrar o corpo para cima, como se algo dentro das costas

estivesse lhe impacientando, mas a cabeça e os pés continuam colados no solo.

Vários mitos contam que por debaixo da palha Omolú tem seu corpo

transformado, tem a doença, tem a peste. Porém, Tânia Bispo sente que há algo muito

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mais profundo que todo isso, porque a doença, todos os corpos têm. Ela, então, não quer

falar de doença senão de diferença: todos os corpos trazem suas diferenças.

Na dança de Tânia Bispo não há palha, mas o corpo na maioria do tempo está

fechado em contato com o chão, ocultando o rosto e o peito. Entre os poucos momentos

que o rosto se revela encontramos uma clara relação com o silêncio. Interessa-nos aqui

descrever três momentos. O primeiro deles dura apenas um segundo. A dançarina está

sentada com a cabeça no chão e a mão direita esticada na frente e os dedos que se

dobram como garras. No instante que ela levanta a cabeça e abre a boca enorme, os

braços fazem o gesto de abrir a boca maior do que o rosto. Em menos de um segundo,

fecha e volta com a cabeça para o chão.

Num outro momento, ela toma o rosto como se fosse uma mordaça. Sempre

sentada ou ajoelhada, gira e vai para o chão. A mão de mordaça vai arrancando algo do

rosto até que se mostra a boca contorneada pela mão. Logo a mão sai da boca com o

punho fechado como se tivesse arrancado algo (som, voz, palavra?). O punho fechado

bate no chão.

Figura 8. Manifestação artística de Tânia Bispo, Salvador, 2012. Foto: Arquivo da autora

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Num terceiro momento, Tânia Bispo está deitada com o peito e a cabeça no

chão. Os braços rastejam pela frente da cabeça mostrando a palma de uma mão e o

dorso da outra. Uma mão pega o cabelo e levanta a cabeça mostrando o rosto, logo a

mão solta, e a cabeça cai com a frente no chão. Com a outra mão, faz a mesma coisa e

volta a cair, e mais uma vez repete a mesma situação.

Nesses três momentos que o rosto se revela, é possível perceber diferentes

modos em que o silêncio é traduzido. Segundo Souza Santos (2002, p. 273), uma das

principais dificuldades no trabalho de tradução é como traduzir o silêncio de uma

cultura para outra, já que cada saber e prática lhe outorgam um significado diferente. O

silêncio para a cultura africana está associado ao segredo, ao mistério. Omolú\Obaluaiê

é cumprimentado com a palavra yorubá “Atótó!”, que significa silêncio, em sinal de

respeito. E como conta Tânia Bispo, Omolú guarda um mistério embaixo da sua palha.

Esse segredo, isso que não se pode saber, também é a peste. Mas como explicava a

dançarina, a doença é a própria diferença. Então, o que se deve calar é a diferença de

cada um; que pelo fato de estar oculta se torna mais misteriosa e temida.

Figura 9. Manifestação artística de Tânia Bispo, Salvador, 2012. Foto: Arquivo da autora

No primeiro gesto a boca se abre num grito silencioso tão breve que fica a

sensação de dúvida se realmente aconteceu. No segundo momento, o rosto se mostra

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amordaçado pela mão que logo tira algo da boca, o guarda no punho fechado e bate com

ele na terra. E no terceiro momento, a mão mostra um rosto já silenciado, como sem

vida. Podemos deduzir, então, que quando o rosto se mostra, também se revela aquilo

que está oculto. A palavra não dita, o grito silenciado, o corpo doente, a diferença.

Porém, o corpo consegue expressar seu grito através de batidas na terra com as

mãos e os pés. Assim, vemos como as mãos tomam uma perna que fica diante do corpo,

com a palma do pé em primeiro plano e um olho que se assoma por trás. Esse pé, logo

pisa com firmeza na terra e o rosto olha para o céu. Um dedo assinala também para o

céu e logo baixa e assinala a terra enquanto a cabeça também desce para o chão.

Começa uma fase de expressividade mais intensa, ou, melhor, menos silenciosa: dedos

que assinalam e mãos de garra. Punho fechado e pés golpeando na terra. Mãos batendo

em distintas partes do corpo, pisadas fortes no chão, batendo, soando.

Com o torso dobrado para embaixo, a cabeça pendurando e as mãos nas costas, a

dançarina dá dificultosos passos para frente, os pés vêm tortos e joelhos juntos. E mais

uma vez dá pisadas fortes no chão, batendo com tanta força que corpo se balança e o

quadril e a cabeça se sacodem.

Para Tânia Bispo, esta dança implica a própria transformação do corpo, tanto

externo como interno, como a transformação que sofre o milho para pipoca. É um

expulsar e um encolher, tem alguns que não abrem e outros que se abrem.

No final, ajoelhada, o corpo se abre para cima e as mãos se sacodem na frente do

peito e volta a se fechar com a cabeça para embaixo. Outra vez, se abre sacudindo as

mãos no peito e volta a se fechar. Com o corpo acolhido, vai trazendo as mãos e se

relaxa no chão. “É como se o corpo tivesse realmente encolhendo, é um retorno”.

(BISPO, entrevista, 2012)

Um aspecto significativo na manifestação artística de Tânia Bispo está no

diálogo permanente entre a dança e a percussão. Uma vez que foram esclarecidas as

diferenças entre o contexto artístico e religioso, podemos encontrar rasgos interessantes

no ritmo geral da obra que lembra as cerimônias de candomblé. Os percussionistas vão

realizando um toque, até que num momento acabam e deixam um silêncio. E logo

começa com um novo ritmo, que, às vezes lhe antecede a um canto. Isto outorga à obra

um ritmo cíclico, já que quando parece que vai a finalizar, começa um novo toque e o

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corpo se ativa com outra energia, de acordo ao ritmo que está soando. Nesta dança

mitológica, os diferentes toques percussivos de cada dança sugerem o estado corporal

necessário para a execução da mesma. Como foi assinalado no capítulo anterior, o ritmo

sugere uma energia particular que, para atingí-la é indispensável “silenciar” certas

partes do corpo para que outras possam se movimentar.

É fácil perceber, nesta manifestação artística, como a dançarina move o corpo a

partir dos seus arquétipos, seus gestos e de seus próprios mitos pessoais. Nesse sentido,

mais do que falar da energia do vento e a terra, a dança de Tânia Bispo me sugere

chamá-la “a guerreira e a peste”. Podem-se destacar características bem diferenciadas de

cada uma; na dança da guerreira, o corpo mudava de estado constantemente, vemos que

na dança da peste, se manifesta um mesmo estado corporal, frágil e doente, que apenas

muda de intensidade. A guerreira olha sempre para alguém, desafiando, brigando ou

rindo; o doente nem sequer mostra o seu rosto, apenas manifesta seu silencio. A

guerreira explode em tempestade, a peste sacode-se pela febre. A peste não tem medo

da morte. A guerreira não tem medo de olhar para a peste.

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CAPITULO 3

ALÁBASE, O LABUTAR DE ISA SOARES

Figura 10. Performance ‘Orixás de la Tierra’, Buenos Aires, 2011. Foto: Javier Infante

Este capítulo trata da dança de Isa Soares, da forma como a artista consegue

traduzir informações oriundas do universo mitológico dos orixás para uma dança que

possa transitar criativamente pelos acontecimentos da vida pessoal. O estudo é a partir

da dança de dois orixás na sua relação mítica: Omolú/Obaluaiê, a energia da terra, e

Iansã, a energia do vento e do ar. A terra empestada, coberta por palha é desvendada

pela dança do vento. E no descobrir, a terra já não é aquela horrorosa que todos

achavam, mas é de uma rara beleza.

Sob a proposta de tradução de Souza Santos, a qual cancela a possibilidade da

existência de uma teoria geral, trazemos à luz os modos de Isa Soares se colocar com

sua dança na cidade de Buenos Aires, que fogem das monoculturas do saber, do tempo,

da naturalização das diferenças, etc. construídas pela razão capitalista. Porém, a

dançarina não deixa de buscar algum tipo de legitimação, já não em espaços que

requisitam adaptar a dança para obedecer à demanda do discurso colonizador da mídia,

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mas em outros grupos e espaços com necessidades e situações compartilhadas, nas quais

pode se reconhecer.

Neste sentido, tentamos distinguir certos argumentos que a professora foi

estabelecendo nos seus percursos para fazer a tradução da dança. Tais argumentos

atendem à relação do corpo com a natureza, à gestualidade e às relações com os outros.

Pela mesma via, a artista sugere dançar o xirê, um espaço tempo que permite transitar

diferentes instâncias da vida e acolhe aos diversos estados corporais. Como conceito, Isa

Soares escolhe como proposta Alábase (pronuncia-se alábasse), aquele que compartilha

uma tarefa, na qual a dança interage com outras práticas cotidianas que sejam feitas com

consciência de colaborar para uma vida melhor.

“Soy Maria Isabel (Isa) Soares. Nací en la ciudad de Maragojipe, cuna de los Maragós, aborígenes descendientes de los tupi-guaranís afincados en la zona del litoral de Bahia, Brasil. Hija de Iraildes Sousa Gomes (su nombre de soltera) y Fernando Bispo Soares. Soy la primera de 10 hermanos vivos. Llegué a la Argentina en la primavera del 1983 casada legalmente con un argentino de Bahia Blanca, residente en San Pablo en plena década del 70. El huía de la feroz dictadura militar que sufría el país en aquel entonces. Trabajaba como artesano en las calles como cualquier inmigrante. Yo huía de la soledad. En el camino dejé un trabajo, una carrera universitaria, una familia y amigos. Luego, irremediablemente me separé. Tuve un hijo. Eché raíces y me quedé en el país.”18 (SOARES, 2012, apresentação do blog pessoal)

Com essas palavras, Isa Soares se apresenta diante da sociedade portenha de

Buenos Aires, cidade cosmopolita da América do Sul que prefere se olhar no espelho

europeu. Se bem que a Argentina passou por processos muito similares que o Brasil e o

resto de América Latina a respeito à colonização e a inserção de milhares de africanos

trazidos como escravos, diversos mecanismos oficiais com objetivos sóciopolíticos

concretos se encarregaram de ‘invisibilizar’ a população negra enquanto se fomentava

uma massiva imigração europeia19. Desse modo, o mito da Argentina branca e

18 Sou Maria Isabel (Isa) Soares. Nasci na cidade de Maragojipe, berço dos Maragós, tribo originária do recôncavo baiano. Descendentes dos tupi-guaranis. Filha de Iraildes Sousa Gomes – seu nome de solteira e de Fernando Bispo Soares. Sou a primeira de 10 irmãos vivos. Cheguei a Argentina na primavera de 1983 casada legalmente com um argentino de Bahia Blanca, residente em São Paulo. Ele fugia da feroz ditadura que sofria seu país. Em plena década dos 70! Trabalhava como artesão nas ruas, como qualquer imigrante nessa época. Eu fugia da solidão. No caminho deixei um trabalho, uma carreira universitária e amigos. Logo irremediavelmente me separei. Tive um filho. Finquei raízes e fiquei no país. (Tradução de Soares) 19 “Os liberais da Argentina, no século XIX, tinham como objetivo fazer do país uma nação moderna segundo o modelo britânico ou francês, professando uma espécie de fé na superioridade das repúblicas europeias. E, para formar uma nação como as européias, precisava-se – segundo esta linha de pensamento – de gente como a européia. O território argentino, na visão dos pensadores com influência política nesse período, era escassamente povoado por

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homogênea não encontrou resistência alguma e ainda sobrevive e se reproduz na

educação oficial, na mídia e nas relações sociais habituais.

A raça negra deixou de existir, quase misteriosamente, deste país delegando esse

‘problema’ ao Brasil. Tal como relata Dominguez, “em 1883, Sarmiento tinha

antecipado que, em 1900, se um argentino desejasse ver como era um negro, precisaria

ir ao Brasil (REID ANDREWS apud DOMINGUEZ, 2004, p. 17)”. E recentemente, em

1996, o então presidente Carlos Menem declarou num discurso nos Estados Unidos:

“Na Argentina não existem negros, esse problema o tem o Brasil” (HEGUY, apud

DOMINGUEZ, 2004, p. 22).

Porque será que esta mulher brasileira decidiu ficar nessa cidade onde ser negra,

dançarina e mãe solteira, irremediavelmente, a exporia aos mais negativos preconceitos

raciais e sexuais? De que modo a dança de Isa Soares conseguiu resistir e sobreviver às

discriminações sociais deste ambiente e encontrar um espaço de diálogo?

Palpar a dança

Hoje, Isa Soares reconhece que ter vindo para Buenos Aires foi uma falta de

paciência, uma falta de respeito com o próprio projeto pessoal que ela tinha: ‘ser

professora de inglês e português’. E explica: “priorizei a família... e voltei ao

analfabetismo... Intelectualizada, voltei a ser analfabeta, com um idioma que eu não

sabia ainda, eu tive que aprender... outra vez tudo, o ‘abc’ da vida. Com uma carreira

por atrás! sem o meu título, porque não era válido aqui” (SOARES, 2012, entrevista)

A dança aparece em Isa Soares como ‘um pedido do corpo dentro do desespero’,

e confessa que se ela fizesse outra coisa, nunca ia saber que seu corpo sabia tanta coisa.

A dançarina lembra que quando começou a pesquisar os orixás, apareciam-lhe

arquétipos que ela já sabia que tinha e que era a vida mesma dela que estava em jogo no

xirê20, mas acrescenta que não foi um processo muito feliz: “Eu fui sentindo cada um

“raças subordinadas” que condenavam o país a uma posição secundária no mundo, o que somente podia ser evitado com a imigração de europeus” (DOMINGUEZ, 2004, p.18) (...) “Como a imigração não produziu o “branqueamento” na velocidade esperada, o processo foi então acelerado por meios artificiais, recorrendo a categorias como a do ‘triguenho’ nos censos. A população negra estava desaparecendo no sentido de se tornar invisível, não no de deixar de existir” (Reid Andrews, 1989 apud, DOMINGUEZ, 2004, p 19). 20 Xirê é a ordem hierárquica na que aparecem nos orixás, num certo momento da cerimônia do candomblé, de acordo com as relações mitológicas e as funções sociais que representam.

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deles, mas no meu processo de dor, não foi na alegria. Todo o meu trabalho foi gestado

assim.” (SOARES, 2012, entrevista)

Porém, as experiências da artista com os orixás se remitem a sua infância:

“Acompañé mucho a mi madre en sus andanzas por recobrar la salud. Por esta razón encontré desde temprana edad motivos para observar con curiosidad las danzas y las prácticas afro religiosas en mi lugar de nacimiento. Observé las danzas en sus formas asimétricas e híbridas, fundamentadas en los simbolismos de la cultura africana, así como la música, con sus diferentes sonidos y su particular polirítmia. Asistí a eventos tanto festivos como curativos con la misma entereza con la que normalmente lo hacen los chicos. Seguramente no los podía comprender del todo. Lo que sí podía advertir era el bien estar que sentía. Experimenté los éxtasis juveniles acompañados por estas imágenes. Estas vivencias echaron sus raíces y fueron fuentes idóneas capaces de reforzar mi interés por los temas que abordo actualmente. Estaba segura de que lo que pasaba por mi mente-cuerpo era importante y a mí modo lo atesoraba como tal. Observaba la dignidad, la fuerza, la destreza, la armonía y un sin fin de atributos y cualidades que intuía en aquellos cuerpos en movimiento. Ellos fueron mis referentes”21. (SOARES, 2012, blog pessoal)

Estes depoimentos da dançarina deixam perceber como o seu processo de

tradução da dança foi a partir e através das suas experiências de vida. A professora

conseguia transformar, num discurso, as coisas que lhe sucediam no dia-a-dia. A

questão era “fazer intelectual aquilo que passava por trás do gesto que sai do corpo

instintivamente”. Segundo Souza Santos, a tradução é um trabalho intelectual. O

tradutor cosmopolita precisa estar “fortemente enraizado nas práticas e saberes que

representam, tendo de uns e de outras uma compreensão profunda e crítica” (SOUZA

SANTOS, 2002, p. 271).

21 Acompanhei muito à minha mãe nas suas andanças para recuperar a saúde. Por esta razão na minha infância encontrei desde muito cedo, motivos para observar com curiosidade, as danças e as práticas afro-religiosas em meu lugar de nascimento. Observei as danças em suas formas assimétricas e híbridas, fundamentadas nos simbolismos da cultura africana. Assim como a música, com seus diferentes sons e sua particular polirritmia. Assití a rituais tanto festivos como curativos com a dignidade que normalmente caracteriza as crianças. Seguramente não podia compreendê-los totalmente. O que sim podia sentir era o bem que me fazia. Experimentei os êxtases juvenis acompanhados por estas imagens. Estas experiências se fortificaram e suas raízes foram fontes idôneas, capazes de reforçar meu interesse pelos temas que abordo atualmente. Estava segura que o que passava por meu corpo-mente era importante e a meu modo o entesourava como tal. Admirava a dignidade, a força, a destreza, a harmonia y um sem fim de atributos y qualidades que intuía naqueles corpos em movimento. Eles foram meus modelos e minhas referências. (Tradução de Soares)

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Esta atitude crítica, segundo o autor, surge de um sentimento de incompletude “e

a motivação para encontrar noutros saberes ou noutras práticas as respostas que não se

encontram dentro dos limites de um dado saber ou de uma dada prática”. (Idem, p. 271)

Isa Soares afirma que, em Buenos Aires, aprendeu a sociabilizar com as pessoas

ensinando dança, conduzindo o seu trabalho sempre em relação com seu dia-a-dia,

tornando a dança a “matéria” mais palpável que ela tem, na qual mexe a mão para sair

na rua, para falar com o porteiro ou com a vizinha. E a professora acrescenta: “se eu não

dançasse, ia ser muito mais difícil pra mim. Então... eu entro nos lugares e eu digo... se

eu pudesse dançar aqui algumas situações, eu poderia entender melhor.” (SOARES,

2012, entrevista)

Buenos Aires: invisibilidades epidérmicas

A partir da década de 1970, Buenos Aires foi moradia de muitos imigrantes

vindos do Uruguai, Brasil, Equador, Peru, República Dominicana, Senegal, Costa de

Marfim, Jamaica e Serra Leoa, muitos dos quais encontraram na difusão da sua cultura

de origem um modo de sobreviver e interagir com a sociedade. Assim, foi se

conformando uma comunidade em torno do “afro” que acolhe tanto a africanos,

afrodescendentes de diferentes países de América Latina e afrodescendentes argentinos.

Esta comunidade foi gestando e habitando espaços culturais, bares, praças para

se encontrar, ensaiar e difundir as manifestações culturais de cada região. Dançarina e

dançarinos, músicos, candomberos22, capoeiristas, entre outros podiam, então, se

encontrar nos bares: ‘África 1’, ‘The Limit-African Pub’ e ‘Remembranza Candomblé’

(no bairro de ‘San Telmo’); nos seguintes centros culturais: o ‘Centro Cultural Ricardo

Rojas’, o ‘Danzario Americano’, a sede do ‘Movimiento Afro Cultural’ (localizada no

limite entre os bairros de ‘San Telmo’ e ‘Barracas’) e no ‘Parque Lezama’ (no bairro de

‘San Telmo’). (DOMINGUEZ, 2004, p 42)

Embora as diferenças características de cada cultura do país que provinha, havia

uma identificação que os agregava: “… cubanos, brasileiros, uruguaios, num sentido me

parece que temos uma raiz afro-latino-americana muito parecida, além das diferenças

nos diferentes estilos”. (SOARES, apud DOMINGUEZ, 2004, p. 89)

22 Percussionista que toca o tambor de ‘candombe’, ritmo afro-rioplatense.

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As contribuições da antropóloga Maria Eugenia Dominguez, sobre os imigrantes

oriundos de países sul e centro americanos e africanos vindos para Buenos Aires, releva

as formas deles se colocarem e se organizarem neste contexto. Entretanto, a autora

expõe como, na cidade portenha, “existe um racismo velado” e afirma que “o racismo

portenho se exorciza através do preconceito de que na Argentina não existem nem

diferentes raças, nem preconceito racial”. (DOMINGUEZ, 2004, p. 136)

Segundo a pesquisa de Dominguez (2004, p. 14), no imaginário da sociedade

portenha os ‘negros’ sempre são identificados como brasileiros. Ainda mais, permanece

o estereótipo de que ‘todos os brasileiros são alegres e divertidos (características de que

nós, portenhos tristes e melancólicos, careceríamos), de que são sensuais e de que são

ótimos tanto na dança quanto na música (FRIGERIO, 2002; DOMÍNGUEZ, 2001)’.

(Idem, p. 102)

O estereótipo, para Homi Bhabha, é a maior estratégia do discurso colonial,

sendo uma “forma de conhecimento e identificação que vacila entre o que sempre está

‘no seu local’, já conhecido, e algo que deve ser repetido ansiosamente...” (BHABHA,

2002, p. 91). Inclusive, esta associação do negro com a ‘brasilidade’, válida para todos

negros que moram em Buenos Aires, sejam do país que forem e mesmo se argentinos,

muitas vezes foi usada para tirar proveitos econômicos e até certo reconhecimento.

Guinea, um candombero (percussionista de candombe) uruguaio, comenta numa

entrevista concedida a Dominguez que “durante a década de 1990 tocar ‘música

brasileira’– lambada, axé, samba, etc. – foi o que garantiu sua sobrevivência e também a

de outros uruguaios” (DOMINGUEZ, 2004, p. 95). Mesmo assim, Guinea descreve as

atitudes dos portenhos quando ainda não se viam muitos negros na cidade:

“vos ibas caminando y te tocaban la rodilla, el trasero… la onda era que

el tipo o la mina te tenía que tocar la rodilla o el trasero pero vos tenías

que verlo, ahí venía la suerte. Y te agarrabas cada calentura, 'qué te

pasa!', y te juro, terminabas re mal… cuando yo vine, era terrible. Así

como era bueno era también terrible. Vos ibas a un lugar y decían '¿y

este?'”23 (GUINEA, apud, DOMINGUEZ, 2004, p. 96)

23 “você ia andando e te tocavam o joelho, a bunda… a coisa era que o rapaz ou a mulher teriam que te tocar o joelho ou a bunda, mas você tinha que olhar eles, aí trazia a sorte. E aí você ficava com uma raiva e dizia, 'qual é a sua!', e te juro, você acabava muito chateado… quando eu cheguei, era terrível. Assim como era bom, era também terrível. Você ia a um local e diziam 'e esse cara? De onde veio?' (Tradução nossa)

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Bhabha (2004, p. 92) diz a respeito: que o exercício do poder colonial, através

do discurso, exige uma articulação de formas de diferença racial e sexual. E sustenta

que “o corpo está sempre simultaneamente (embora conflituosamente) inscrito tanto na

economia do prazer e do desejo, quanto na economia do discurso, dominação e poder”.

No entanto, o depoimento do uruguaio lembra a situação que Bhabha traz do texto:

“Pele negra, máscaras brancas” de Franz Fanon:

“Numa ocasião uma menina branca fixa a Fanon com um olhar e uma

palavra quando se vira a identificá-lo com sua mãe… “Olha, um Negro…

mãe, olha ao Negro! Assusto-me”. “O que outra coisa poderia ser para

mim”, concluí Fanon, “senão uma amputação, uma excisão, uma

hemorragia que salpicava meu corpo todo com sangue nego?”(FANON,

apud BHABHA, 2004, p. 101)

O discurso estereotípico constrói o sujeito colonizado e divide-o entre os

conhecimentos incongruentes do corpo, a raça e os ancestrais. “O esquema corporal

derrubou-se, seu local foi ocupado por um esquema epidérmico racial” (FANON, apud,

BHABHA, 2004, p. 105\106)

Do mesmo modo, muitas vezes Isa Soares, falando de situações deste tipo que

lhe aconteciam na rua, tem feito comentários como: “quando eu me olho no espelho,

não me reconheço com aquilo que se vê”, ou “eu não sou essa negra que esperam que

seja” (SOARES, 2007, conversação pessoal).

Esses comentários ficam ressoando quando nas aulas da professora ela sugere

um modo de se relacionar com o próprio corpo, atendendo a modos de nos mover e as

possibilidades de se afetar com os outros corpos: “A cor do meu corpo eu não posso

mudar, mas a energia que move meu corpo é a que vai permitir que meus pólos

positivos e negativos se juntem com os pólos positivos e negativos do outro. Se juntem

ou se repelem, é uma questão química.” (SOARES, 2006, sala de aula)

Citando Bhabha (2004, p. 107), se “a ‘pele’ no discurso racista é a visibilidade

da obscuridade”, Isa Soares encontra, nos efeitos químicos da dança, um modo de

iluminar histórias, emoções, valores que foram silenciados pela ansiedade da negritude

estereotipada.

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Negociações entre corpo e ambiente. A arte de ser legitimado

“Há uma procura do Negro”, diz Fanon,

“é necessário, mas só se o faz-se agradável em certo modo.

Infelizmente o Negro joga abaixo o sistema e quebra os tratados”.

(FANON, apud BHABHA, p. 103)

Entre os espaços onde Isa Soares se desenvolveu como professora, vamos

ressaltar o ‘Centro Cultural Ricardo Rojas’, ligado a ‘Secretaria de Extensão da

Universidade’ de Buenos Aires, que funciona na “Avenida Corrientes”, no centro da

capital. Além da professora ministrar aulas de ‘Danzas Afro-Yorubas – recreaciones de

mitos afrobrasileños’, até 2006, a mesma coordenava a área do centro cultural nomeada

“Culturas Afro-americanas”, onde atuavam muitos professores de manifestações

“afro” 24. Depois, com a nova administração, a professora foi removida da coordenação e

a área mudou de nome como “Danzas Étnicas” (DOMINGUEZ, 2004, p. 54). A

professora comenta que justificavam ter mudado o nome (“Culturas Afro-americanas”

por “Danzas Étnicas”) dizendo que a dança afro-yorubá não é cultura, é somente dança.

Isa Soares explana a respeito: “... cultura para eles é claramente teatro, literatura, cultura

mais erudita, reconhecida…”. Porém, a artista alude que nesta dança há um

esclarecimento, uma história das coisas que se associam, há uma preparação do

figurino, se fala da comida. “Não é que eu me paro adiante e faço uns passos e nada

mais... É uma cultura, que tem um idioma próprio, uma musicalidade própria, valores

próprios. (...) Tudo passa pela gestualidade e o corpo, mas é cultura, não é somente

dança. Aqui são muitas coisas interatuando”. (SOARES apud DOMINGUEZ, 2004, p.

55).

24 Conforme Gayoso (2006), neste departamento se encontravam também: Telma Meirelles (Danza Afro contemporánea), Cidinha Fursan (Danza Afro Jazz), Evon Correia (Danzas afro populares), e mais tarde se incorporam Claudio de Oliveira (Técnica de la Danza Afro y Ritmos Populares brasileños) e Alberto Bonne, (danza afro cubana y ritmos populares cubanos). Conforme Dominguez também tinha Capoeira regional (prof. Marcos Gytaúna), Iniciación en la Capoeira angola (prof. Fabio Rizzo).

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Figura 11. ‘Danças do Xirê de Orixás’ no “Congreso Afro Americano”, Buenos Aires, 2007. Foto: Arquivo de Alábase

Este jeito da professora se colocar diante das instituições, sem negociar com os

seus princípios, nem esperar ser reconhecida por valores não compartilhados por ela,

também se manifesta quando é convidada a se apresentar em algum evento ou espaço. A

artista afirma que “a todos os lados eu fui com a minha consciência de que eu vou

dançar, mas eu vou dançar o que estou sentindo nesse momento, em relação ao evento”

(SOARES, 2012, entrevista). E esclarece que ela tem que estar de acordo,

politicamente, com o lugar aonde seu corpo vai. Um modo de agir que sempre foi

saudável para ela.

Nesta tarefa de tradução da dança, seguindo Souza Santos, importa perguntar-

nos “entre que traduzir?”. Há uma seleção de práticas e saberes a partir de uma

convergência de sensações, de inconformismo e da motivação para superá-las de forma

específica (SOUZA SANTOS, 2006, p. 270). Este inconformismo e a vontade de

transformá-lo faz parte constitutiva das condições necessárias para que a dança ocorra

num certo contexto e permaneça.

Isa Soares parece prestar especial atenção a este ‘onde traduzir’, ou seja, em que

contexto sua dança acontece, já que a cada novo contexto a dança se reconfigura de

acordo com as adaptações às condições particulares. Esta relação entre a dança e o

contexto pode ser compreendida de maneira melhor, trazendo a sugestão de Katz e

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Greiner de que o corpo e o ambiente interagem modificando-se um ao outro, em

processos coevolutivos. Algumas informações do mundo são selecionadas para se

organizarem transformadas em corpo. Este processo elimina a possibilidade de pensar o

corpo como recipiente e o mundo como um objeto aguardando um observador. Nesse

fluxo de trocas de informações entre corpo e ambiente se “produzem uma rede de pré-

disposições perceptuais, motoras, de aprendizado e emocionais”. (KATZ, 2005, 130)

Contexto, então, deixa de ser um lugar passivo e estático. De acordo com o

semioticista Thomas Sebeok (1991), o contexto admite influências na interrelação com

o corpo. Definido como uma espécie de contexto-sensitivo, este inclui “sistema

cognitivo (mente), mensagens que fluem paralelamente, a memória de mensagens

prévias que foram processadas ou experienciadas e, sem dúvidas, a antecipação de

futuras mensagens que ainda serão trazidas à ação, mas já existem como possibilidade”.

(apud KATZ, 2005, p. 130)

Com este entendimento de contexto sensitivo, Isa Soares foi escolhendo desde

qual lugar ela se colocaria para dançar, evitando entrar em certas negociações do

discurso colonial:

“Eu não vou fazer uma dança... ‘ajeitadinha’ dentro dos moldes sociais acomodados, para que as pessoas quando olhem não sintam que essa é coisa de macaco, né? Que são os gestos primitivos, dança primitiva, um corpo dizendo coisas de uma época onde se fazia uhuhuhuh! né? Ou seja, enfeitar a dança para que um setor social que pode ver essa dança em outro lado, igual veja algo exótico? Que lhe mova alguma coisa, mas não mobilize tanto... Que seja uma diversão, né?” (SOARES, 2012, entrevista)

Isa Soares decide, então, ficar fora do conceito de diversão do exótico da dança e

não declinar às “mais loucas fantasias (no sentido popular) do colonizador” (Bhabha,

107). Ainda afirma que, se no momento em que ela está dançando, ela sente alguma

interferência que lhe impede fazer o que ela ia fazer, com a complexidade que implica

de poder se relacionar e comunicar desde o lugar que ela necessita e não do lugar que

necessita o outro que está lhe pagando, a dançarina pode decidir não mais fazer. E

afirma: “a gente precisa ter todos esses cuidados”.

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Figura 12. Performance ‘Orixás de la Tierra’, Buenos Aires, 2011. Foto: Javier Infante

O corpo de Isa Soares faz uma dança consciente desse ‘contexto sensitivo’, ou

seja, entra em diálogo intuitivo e alerta sobre as possíveis mensagens que lhe sugerem

satisfazer a demanda estereotipada do discurso colonial. Bhabha cita a Said para

explicar o modo como as novas informações podem ser julgadas como sendo versões de

alguma coisa conhecida. Este processo não é tanto um modo de receber uma nova

informação como “um método de controlar o que se parece uma ameaça a alguma visão

estabelecida das coisas”. E acrescenta, “a ameaça é calada, os valores conhecidos

impõem-se, e no final a mente reduz a pressão.” (SAID apud, Bhabha, p. 98) Este

método é um claro exemplo das negociações entre corpo e ambiente, no qual o corpo

acomoda a informação para não se desestruturar demasiadamente, quase como um

instinto de sobrevivência.

Isa Soares sugere então que, para resistir a estes mecanismos de controle social e

político sobre a dança e os valores que esta possa insinuar, é muito importante o artista

definir de que lugar se quer fazer e ser responsável. Porque certas decisões significam

não ter acesso a determinados lugares onde está a mídia com um capital, com um

investimento. (SOARES, 2012, entrevista)

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Vemos então que a professora evita entrar em espaços nos quais, para ser

legitimada, tem que “enfeitar a dança” e tirar as coisas que “possam incomodar”. Ao

invés disso, encontrou outros espaços nos quais ela conseguiu se reconhecer e sua dança

legitimar-se em coerência com os valores propostos.

Um deles foi o grupo Banakabú – Música tradicional africana, dirigido por

Abdoulaye Badiane, um jovem senegalês que mora em Buenos Aires desde 2001. Isa

Soares atuava como cantora e dançarina e numa entrevista formulada por Dominguez,

pode-se notar que, para Isa Soares, era um modo de legitimação do seu trabalho:

“Eu acho que isto é fundamental. É como legitimar o que eu já faço. Eu me encontro em um lugar de resgate e de afirmação de um discurso que tenho tido durante todo esse tempo e encontro a alguém para legitimá-lo justamente. É uma forma de legitimar! Porque há muita trabalho relacionado à cultura do africano. Sempre houve. Mas nunca houve um africano fazendo coisas de africanos aqui. Sempre houve brasileiros fazendo coisas com o enfoque do africano, cubanos fazendo coisas de africanos, sendo fiéis aos simbolismos de sua ancestralidade. De gente que já veio de onde vieram com o sistema nervoso alterado. Porque sabemos o que é a escravidão, o que foi, o que gerou no psiquismo do negro africano ao sair da África. Então para mim é como legitimar algo que os afroamericanos já estamos realizando”. (SOARES, apud DOMINGUEZ, 2004, p. 91\92)

Outro espaço que Isa Soares costuma ocupar, que bem pode ser visto como um

lugar de legitimação e visibilidade do seu trabalho é o Parque Lezama, um espaço que

hoje se escolhe para realizar atividades artístico-culturais concebidas como sendo ‘dos

negros’, remetendo à sua história. Entre 1706 e 1712, nos limites do Parque se

assentaram os barracos onde viviam os negros escravizados desde que chegavam no

porto da cidade até serem trasladados a outros mercados provinciais. Dominguez

comenta que este local atualmente serve de cenário para a prática do candombe, roda de

capoeira, como também a antropóloga teve oportunidade de assistir ao “músico

senegalês Abdoulaye Badiane tocando tambores da música tradicional africana e a

dançarina brasileira Isa Soares apresentando coreografias de dança ‘afro’”

(DOMINGUEZ, 2004, p. 47).

Além das aulas em “El Rojas”, no qual já faz vários anos que a professora

deixou de trabalhar, Isa Soares vem partilhando aulas e apresentações numa sala privada

do bairro San Cristobal, nomeada ‘La Saavedra’. Na atualidade, este é o único espaço

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aonde a artista desenvolve com continuidade a proposta: “Danças do “Xirê de Orixás” –

Afro-brasileiras”.

Figura 13. “Danças do Xirê de Orixás”. Isa Soares e Alabasé. Parque Lezama, Bs. As. Foto: Arquivo do Blog http://isasoaresdanzas.blogspot.com.br

Temporalidades e esperanças

Souza Santos afirma que a monocultura do tempo linear, avaliada pela razão

ocidental, entende a história somente com o sentido do progresso e modernização, na

qual tudo o que não é declarado avançado, se torna obsoleto sob o nome de primitivo,

tradicional ou subdesenvolvido. Diante desta questão, o autor propõe dilatar o presente

para que diferentes culturas não hegemônicas possam assim buscar respostas ao

inconformismo que produz o mundo ocidental, num diálogo transcultural com diversos

tipos de tradução que habilita a uma inteligibilidade recíproca. (SOUZA SANTOS,

2002, p. 265).

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Conforme Souza Santos (2002, p. 271), nas zonas de contato interculturais, tem

de se confluir uma constelação de tempos, ritmos e oportunidades que se contrapõe à

lógica da monocultura do tempo linear.

Com essa perspectiva, observamos que Isa Soares contextualiza sua proposta de

dança como um estrato da cosmovisão do homem africano - proveniente, em grande

medida da Nigéria, África ocidental e Angola- e o seu aporte na América, em

consequência da escravidão que se deu entre finais do século XVIII e princípios do XX.

(SOARES, 2012) Porém, a professora remarca, numa entrevista, que não se trata de

uma dança do passado, mas é do aqui agora, do ciclo de cada dia vivido:

“Para mim a dança é a tradução de todas essas coisas que eu senti, desejei, fiz ou não fiz, durante o dia. Que se concretiza... quando danço um ritual de agradecimento a todas essas coisas que eu consegui durante este ciclo do dia que vai desde que eu me levanto até quando eu me deito. E também é um agradecimento pelas coisas que não tenho ainda porque eu sei que a partir da consciência de que falta alguma coisa, no outro dia eu vou trabalhar para consegui-la, ou para pelo menos seguir desejando, ne? Ter esperança! Em definitiva, eu danço para seguir tendo esperança.” (SOARES, 2012, entrevista)

A artista ressalta que “o mais importante é que quem dance aproveite todo o que

passa na sua vida para transformar em movimento” (Idem). Esta sugestão de Isa Soares

se evidencia no interagir entre as informações que já são corpo e nas informações do

ambiente que reconstitui a cada segundo o corpo. Neste fluxo contínuo “corpo vive no

estado do sempre-presente” (KATZ, 2005, p. 130).

Danças do “Xirê de Orixás”: argumentos da tradução

Como fizemos no capítulo de Tânia Bispo, para estudar o trabalho de tradução

de Isa Soares precisamos observar os argumentos que ela construiu para fazer traduções

de uma cultura para outra, ou seja, do contexto do universo mitológico dos orixás para o

ambiente artístico e contemporâneo da dança. De acordo com Souza Santos, cada saber

ou prática leva para a ‘zona de contato’ da tradução - neste caso a dança - certos topois

ou ‘lugares comuns’ que deixam de ser ‘premissas da argumentação’ e tornam-se

‘argumentos’ da tradução. Enquanto isso, vão se construindo “topois adequados à zona

de contacto e à situação de tradução” (SOUZA SANTOS, 2002, p. 272). Ao longo da

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sua trajetória, Isa Soares foi criando certos ‘lugares comuns’ que lhe permitissem

traduzir o universo mitológico dos orixás para a dança no ambiente artístico de Buenos

Aires. A partir das entrevistas realizadas para as pesquisas de 2007 e 2012, mais os

escritos dela, conseguimos distinguir os seguintes topois ou ‘lugares comuns’:

• Sobre a relação do corpo e a natureza

Quando Isa Soares apresenta sua proposta, afirma que as “danças transmitem no

seu conteúdo a relação do homem com a natureza... O corpo manifesta os arquétipos de

cada deidade através de movimentos que se assemelham às formas visíveis dos

elementos naturais. Estes são: a terra, o ar, a água e o fogo.” (SOARES, 2012, escrito)

Para entender esta relação do corpo e a natureza, a dançarina baseia-se em

reconhecer a natureza em nosso corpo, além dos mecanismos fisiológicos, apontando

que esses elementos ‘estão’ em nosso corpo, nos movimentos do corpo e na qualidade

desses movimentos (CORVALÁN, 2007, p. 21).

Isa Soares traduz isto da seguinte maneira:

“A terra é o corpo material, seu peso e sua estatura, a pele, os ossos e os músculos. O ar está na respiração, sendo nosso primeiro combustível, a oxigenação, entra e sai constantemente, conectando o interior do corpo com o exterior. O fogo, é o impulso que nos motoriza, nos excita e nos acelera. É a libido que nos desloca, é a paixão. Quando choramos, quando transpiramos aparece a água salgada, nosso líquido interno é salgado, como o mar. A água doce é o único elemento que não temos dentro do corpo. Devemos buscá-lo fora. É o que bebemos, o elemento que mais escasseia. Depois do ar, é o que mais necessitamos para viver.” (SOARES apud CORVALÁN, 2007, p. 21\22)

A partir desses conceitos, vamos observar o modo como o corpo se organiza para

expressar nos movimentos, as formas visíveis dos elementos da natureza. Nesta ocasião,

vamos focar somente nos elementos terra e ar, os quais se relacionam com Omolú e

Iansã, os orixás do mito abordado neste estudo.

A energia da terra está nos pés, apoiados firmemente no solo, dos dedos aos

calcanhares; enquanto que o sacro - a terminação da coluna vertebral - se encontra

também apontando para o solo. Os joelhos ficam dobrados e o peito se encontra um

tanto inclinado para frente, como se estivesse dialogando com a terra. Os movimentos

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são pesados, como se a terra mesma tivesse um magnetismo que me empurra até ela. Só

uma vibração nas costas impulsiona para cima, deixando o resto do corpo com todo seu

peso para a terra. Tem a ver com a fertilidade e a nutrição, com a doença e a sanidade,

com a vida e a morte.

A energia do ar, pelo contrário, empurra o corpo para cima, partindo do centro

do quadril, abrindo todos os buracos do corpo. Inclusive os buracos das axilas, dos

cotovelos, da virilha, liberando o quadril e os ombros, desprendendo os calcanhares do

chão. O quadril se move em forma de pêndulo lateral, deixando entrar o ar no corpo

todo o tornando leve e fresco. Tem a ver com a liberação, com a festa e com a

provocação.

Estes princípios de movimentos, portanto, são consequência do tipo de

relacionamento do corpo com a natureza, que vai depender das subjetividades de cada

corpo, com sua história e suas possibilidades.

• Sobre a gestualidade e as relações

“A gestualidade é o resultado de usos e costumes, produto das relações humanas, da inter-relação com objetos e coisas, dos seres com a natureza e basicamente das funções sociais que nos coresponde cumprir.” (SOARES, 2004)

Para Isa, a dança afro-yorubá é de relação o tempo todo. É uma possibilidade

para se descobrir e descobrir o que é que ela necessita no encontro com as pessoas

quando dança. “Conhecer meus códigos e minhas necessidades me orienta. Um gesto

liberador destas necessidades me permite entender alguns significados...” (SOARES,

apud CORVALÁN, 2007, p. 14)

Isa Soares situa os gestos que faz com o torso, do umbigo para cima, que são as

partes do corpo que nos relacionam com o outro, e agrega: “... no torso temos os braços

que estão para conter, para abraçar... As mãos para saudar, pegar, afastar, acariciar... Em

princípio, o gesto é inconsciente, não estruturado, não intencional. Nos libera, nos situa,

pois conhecemos seu significado dentro da sociedade em que vivemos.” (SOARES,

CORVALÁN, 2007, p. 14)

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Conforme a dançarina explica, o gesto aparece quando a mecânica do

movimento, que faz à anatomia construir uma forma, se impregna de uma intenção, um

desejo ou uma representação simbólica de alguma coisa que a gente tem no corpo e quer

expressar. O gesto é isso, você colocar um discurso.

Para ela, é fundamental explicar o lugar onde esse gesto historicamente surgiu,

dentro do fundamento e da concepção dessa disciplina. Tempo, história, personagem,

época, situação econômica, social e política. Um gesto não esta fora do contexto

sociopolítico.

Estes dois argumentos de Isa Soares concordam com a proposta de corpo

explanada anteriormente, de pensar o corpo como “corpomídia” (KATZ e GREINER,

2005) de si mesmo. Ou seja, mídia se refere ao processo evolutivo de selecionar

informações que vão constituindo o corpo. “Capturadas pelo nosso processo perceptivo,

que as reconstrói com as perdas habituais a qualquer processo de transmissão, tais

informações passam a fazer parte do corpo de uma maneira bastante singular: são

transformadas em corpo.” (KATZ, 2005, p. 130) O fluxo entre as trocas de informações

entre corpo e ambiente não estanca, portanto, o “corpo vive no estado do sempre-

presente”. Ou seja, as informações não simplesmente passam pelo corpo, mas entram

em negociação com as informações que já estão no corpo, o reconfigurando a cada nova

informação.

• Sobre o Xirê e a proposta Alábase

O trabalho de Isa Soares consiste em “recriações de danças arquetípicas dos

orixás - deuses do panteão africano- respeitando sua origem e fundamento”. Os orixás

têm qualidades e defeitos similares aos humanos e se manifestam nas danças através dos

seus simbolismos e arquétipos. Conforme escreve Isa Soares, “os gestos... relatam o

percurso do corpo por instâncias da vida. Vão contando como realizarmos algumas

tarefas”.

O Xirê que propõe a professora tenta respeitar “a ordem hierárquica imposta

pelas funções e lugares simbólicos que ocupa cada Orixá, desde Exú a Oxalá: princípio-

fim, cabeça-cauda, atividade-descanso”. Isa Soares explica que a palavra “xirê” provém

da palavra yorubana “Siré” , que significa: jogo, prática de um esporte. Através desse

formato foi que ela se atreveu a fazer recreações das danças consideradas rituais. Então,

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confessa: “muitas vezes observo-me ainda extremamente exposta enquanto desenvolvo

este trabalho.” (SOARES, 2007, pag. 2)

“… O trabalho do xirê é um instrumento de contenção. Uma dança para harmonizar todos os elementos numa sequência, dentro de um espaço e um tempo apropriados. Um dos objetivos é o de não estar fixado somente numa forma, postura, sensação ou relação. A dança do xirê permite que todos experimentem as mesmas coisas. Possam aceder à atividade aportando o diferente e o particular como qualidades inerentes a cada um.” (SOARES, apud CORVALÁN, 2007, p. 28)

Deste modo, a professora encontra uma possibilidade de partilhar o espaço,

“acedendo potencialmente à construção de um ‘algo entre todos’”. Com a mesma

intenção, foi-se afirmando o labutar de Isa Soares ao qual hoje escolhe nomear Alábase:

“’Alábase’ es una palabra africana que quiere decir - aquel que comparte una tarea. Así denomino a todas las personas que deseen acercarse a esta ventana para mirar un poco mi "afuera". A todos mis alumnos que eligen mi trabajo, a los compañeros que luchan por la cultura desde todas las ramas del arte para generar salud. A todos, les deseo que encuentren la dicha de reconocerse dignos y fuertes en sus quehaceres. Así concibo mi trabajo. ‘Alábase’ es mi concepto.”25 (SOARES, 2012, blog pessoal)

Na proposta de Isa Soares, este partilhar a tarefa não é exclusivo da dança, mas

ela se encontra com outras práticas. Do mesmo jeito que ela consegue palpar a dança

para suas relações cotidianas, também logra articular um coletivo onde a dança é mais

uma ação para melhorar os encontros. Alábase inclui o pedreiro, o rapaz que vem

desentupir o banheiro, “ou qualquer pessoa que faz alguma coisa com consciência de

que está cooperando para que a vida de todos seja melhor”. (SOARES, 2012, escrito)

25 Alábase é uma palavra africana que quer dizer - aquele que partilha uma tarefa. Assim eu nomeio a todas as pessoas que desejem se aproximar a esta janela para olhar um pouco o meu "afora". A todos meus alunos que escolhem o meu trabalho, aos companheiros que lutam pela cultura de todos os campos da arte para gerar saúde. A todos, desejo-lhes que encontrem a beatitude de reconhecerem-se dignos e fortes nos seus quefazeres. Assim eu concebo o meu trabalho. Alábase é o meu conceito.

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Figura 14. Alábase na Marcha do 24 de março pelos desaparecidos. Buenos Aires, 2009. Foto: Arquivo do Blog http://isasoaresdanzas.blogspot.com.br

A dificuldade do ouvir o corpo:

Além da dificuldade na construção de novas premissas de argumentação, Souza

Santos chama a atenção a respeito da língua da tradução que comumente corre o risco

de ser conduzida pela língua colonial. Como foi desenvolvida nos capítulos anteriores,

neste trabalho de tradução, a linguagem é corporal. A professora propõe um modo de

cada um se relacionar com o seu próprio corpo, que se afasta da lógica ocidental

capitalista.

Ao longo da sua trajetória como professora, Isa Soares foi percebendo certas

dificuldades na forma de interpretar as particularidades da sua proposta de dança,

chegando à seguinte conclusão:

“cada sociedade aceita e/ou adapta seus códigos gestuais pela necessidade de educar e/ou submeter aos seus integrantes uma certa ordem. As proibições, desde esse ponto de vista, poderiam sabotar o desenvolvimento de todo aquilo que não seja considerado totalmente como próprio. Por medo ao novo, ou simplesmente, por ignorar seus atributos.”(SOARES, 2007)

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Por esta via, a dançarina opina que nossa linguagem corporal se apresenta, às

vezes, dissociada. O corpo não se vê como unidade. Atenta com esta situação, nos

fundamentos da sua proposta, Isa Soares ressalta a importância de escutar o corpo e de

ser conscientes da existência e da interação dos elementos naturais na química dos

corpos. E sugere, por conseguinte, observar, reconhecer e qualificar as diferentes

combinações resultantes dessa química na relação com o outro dentro de um espaço

partilhado.

Figura 15. Performance ‘Orixás de la Tierra’, Buenos Aires, 2011. Foto: Javier Infante

A artista assume: “eu danço desde que eu necessito... que esses movimentos vão

rebotar e vibrar em certa energia que tenha alguma pessoa que olha, e ela possa... se

identificar em algum momento com algum gesto...” (SOARES, 2012, entrevista). E

acrescenta que desse modo, procura criar um acesso, para que o outro possa colocar o

corpo em movimento, de acordo com seu desejo, de acordo com suas percepções,

recriando o que Isa Soares vai lhe dar.

Alábase em dança

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Chegamos à casa La Saavedra, onde Isa Soares ministra aulas. Javier Infante,

amigo e companheiro das aulas de Isa Soares, veio nos ajudar com a gravação. Vamos a

uma sala atrás porque a sala onde ela sempre trabalha está ocupada.

A sala é um pouco escura pelas cores das paredes e do chão, mas Isa Soares, que

chegou com três bolsos cheios e pesados, tira um pano branco grande, pregos e um

martelo, “que por acaso, eram necessários”. Então colocarmos o pano branco na parede

do fundo com a ajuda de Javier e depois tentamos melhorar a luminosidade do espaço.

Estes tipos de gestos, prévios à dança, sobre o cuidado nos detalhes, deixam em

evidência o compromisso e a coerência no trabalho da artista, que depois se visualiza na

dança.

Além disso, depois tira dos bolsos, uma sacola com terra e quatro objetos feitos

de algum material de palha. Colocarmos montículos de terra desenhando uma roda e os

quatro objetos, também fazendo a roda, dispostos na frente da câmera. Um objeto que

tem forma de cone duplo com as pontas unidas é colocado horizontalmente. Em cima

dele, na junção das pontas, se apoia outro objeto, um feixe de galhos de palmeira

enfeitada com búzios que acaba num rabo de cavalo, ao qual chamaremos aqui ‘erukere

longo’. A cada lado do duplo cone, são acomodados dois rabos de cavalo com cabo

mais curto do que o primeiro, também enfeitado com búzios, denominados erukeres,

que para esta pesquisa serão distinguidos como ‘erukeres curtos’. Isa Soares entrega o

cd com a pista de áudio e vai se vestir para dançar.

Na seguinte escrita da dança, vamos nos deter em certos momentos ou aspectos

da mesma, em relação aos modos da professora traduzir pondo em questão valores e

conceitos instalados pela razão capitalista e o seu discurso colonizador.

Então...

A música começa com um som grave e constante, como se fosse um

“didjeridoo” (tronco oco que se sopra com uma respiração cíclica). No começo, Isa

Soares entra bordejando a roda, pisando sobre cada montículo de terra. O ritmo se

expande, sem pressa, criando o espaço-tempo necessário para ir encontrando relações

com a terra e o ar, atendendo às modificações que produzem no corpo. A dança ocorre

sempre dentro da roda.

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A dançarina está vestida com um macacão de algodão, de tons roxos e marrons,

com cascavéis ao redor do decote. No torso, tem uma espécie de saia pendurada no

ombro, e deixando o outro ombro descoberto. A saia é feita com quatro grandes

retalhos, um de cor vermelho, outro amarelo, outro roxo e outro marrom. Também tem

costuradas umas cascavéis nas suas bordas. A cabeça está rodeada com um tecido

tricotado de palha, amarrado por uma corda em que penduram fitinhas do mesmo

material. O cabelo cai num rabo de cavalo. Nos pulsos e nos tornozelos tem pulseiras

enfeitadas com búzios.

Após dar duas voltas ao redor da roda, a dançarina ajoelha-se no centro da roda e

procura debaixo dos objetos uma bolinha de argila, pega um pouquinho de terra do

montículo de lado e junta à argila. Toma a bolinha com as duas mãos e cuspe nela várias

vezes: ‘tz tz - tz tz - tz tz - tz tz’. Amassa. Coloca a bolinha de argila, terra e saliva na

sua frente. E vai descendo com a bolinha, marcando uma linha pelo centro do rosto até o

peito. Marca-se abaixo de um olho. Relaxa o braço e suspira. Logo se passa a argila

pelo outro olho e pelo rosto todo, pelo pescoço. ‘Tz – tz – tz – tz – tz’, volta a cuspir na

bolinha várias vezes e a amassa. Passa argila numa mão, passa na outra, aperta a bolinha

com uma mão bem fechada, leva ao alto e a lança na frente. Fecha a mão vazia ainda no

alto, e a desce bem devagar para o chão.

É sabido que em nossa sociedade, o ato de cuspir, nunca é bem visto, é falta de

educação e grosseria. Nesta performance, a cuspida não é somente visual, sua

sonoridade forte e rítmica ressalta o som constante da musica mecânica. tz tz - tz tz - tz

tz - tz tz.

Para a cosmovisão yorubá, a saliva é um elemento condutor de axé - poder do

princípio de realização-. Segundo Elbein Santos (2007, p. 41) a força do axê contida e

transmitida através de uma grande variedade de elementos representativos do reino

animal e mineral agrupados em três categorias: “sangue” “vermelho”, “sangue”

“branco”, “sangue” “preto”. A saliva como o sêmen, o hálito, e as secreções, pertence

ao grupo de condutores do sangue branco, do reino animal.

Vemos aqui como o ato de cuspir sobre a bolinha de argila e terra pode

simbolizar uma prática sagrada, dar axé ou, também, a união de uma substância

provinda do corpo com elementos naturais que estão fora dele para logo passar essa

matéria misturada pela pele. Pinta assim, os rasgos do rosto com barro. Já que segundo

a dançarina, Omolú “é já de por si o corpo mesmo. Porque os ossos, as articulações, os

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tendões, cartilagem, músculos, pele, cabelo, unha, todo o corpo já é terra... Tanto é que

quando a gente morre (solta um riso) vai fazer parte do que a gente já é”. (SOARES,

2012, entrevista)

Seja qual fora o sentido de tal gesto, Isa Soares põe em questão os valores

estéticos imperantes provindos da ciência moderna e da alta cultura, se aproximando

mais ao pensamento estético dos yorubás. Para eles, o conceito de estética “é utilitário e

dinâmico”. Conforme Elbein Santos, (2007, (1966:1) p. 49) “o belo não é concebido

unicamente como prazer estético: faz parte de todo um sistema”.

Se na “monocultura do saber” (SOUZA SANTOS, 2002, p. 248) reconhece-se

somente a criação artística que entra nos cânones por ela imposta, avaliando como

ignorante ou inculto todo saber e criação que fica excluído da ciência moderna ou da

alta cultura, Isa Soares, ao trazer um outro saber com sua criação artística, inverte de

algum modo os locais da ignorância e do saber. Deixa em evidência a nossa ignorância

sobre aquele saber.

O que diz o silêncio

Na terra, o ritmo de corpo, muitas vezes, se silencia numa espécie de detenção

ativa. A dançarina passa longos períodos de tempo, deitada, ajoelhada ou agachada, em

busca de contato com o chão. Descrevemos aqui um trecho da dança:

Ajoelhada e com os braços abertos no chão, a dançarina leva o torso para a terra

apoiando o queixo no erukere mais longo, que está em cima do duplo cone. Repousa.

Quando se levanta, estica as pernas e traz o corpo mais para frente, apoiando o peito

sobre a cana e o queixo no chão. Logo se levanta e vai se deitar com o peito no chão, se

encolhe e se estica muitas vezes, rastejando num ritmo constante que se intensifica no

tempo e se detém abruptamente. Fica encolhida com o queixo no chão olhando para os

objetos, tocando os punhos dos erukeres dos laterais. Fica assim um tempo prolongado.

Depois, traz as pernas embaixo do quadril e, timidamente, se aproxima aos objetos,

mexe as mãos por debaixo do duplo cone, desce a cabeça.

Interessa chamar a atenção neste momento da dança, ao ritmo pausado, quase

preguiçoso que habilita a um estado corporal mais silencioso, indispensável para a

conexão da dançarina com o elemento terra. Deitada no chão, Isa Soares toma um

tempo de repouso. Sem esse tempo, o gesto seria outro.

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F

Figura 16. Manifestação artística de Isa Soares. Buenos Aires, 2012. Foto: Arquivo da autora

Surge assim outra dificuldade que adverte Souza Santos (2002, p. 273), a

tradução do silêncio. Parafraseando o autor, cada saber e prática concede ao silêncio um

significado diferente, assim como um ritmo específico na articulação com as palavras.

Trazendo para a tradução corporal de Isa Soares, o tempo de repouso, onde o corpo se

move sem pressa e espera, manifesta um gesto de intimidade e diálogo com a terra. O

silencio nesta dança, faz parte da ‘musicalidade postural’ (GODARD, 1995, p. 13) que

permite que o gesto aconteça.

Por sua vez, esta tradução do silêncio, somente é possível por dispor de uma

concepção do tempo, que vai além do tempo linear, onde o presente não se reduz a um

instante fugaz entre o que já não é o que ainda não é (SOUZA SANTOS, 2002, p. 245).

O silêncio traduzido no repouso na dança contribui para ampliar o tempo presente, para

dar visibilidade a experiências que estão sendo negadas, esquecidas ou, em palavras de

Souza Santos, desperdiçadas.

Atrás, no fundo da terra

A partir desta lógica de tempo que contempla múltiplas temporalidades,

(passados, presentes, futuros, cíclicos, lineares, simultâneos), Isa Soares fala dos

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princípios básicos para entrar em contato com a energia da terra de Omolú: “os pés, as

pernas flexionadas, o corpo dobrado para frente... que é uma volta à origem, é uma

reverência... As posturas básicas sempre vão estar inclinadas nos tótens, dobrado para

frente, olhando para baixo”. A professora acrescenta que a dança de Omolú sugere, “no

plano do corpo da gente, um desejo como ancestral de voltar a engatinhar, de colocar as

mãos no chão, que é a origem do corpo...” (SOARES, 2012, entrevista).

Os objetos contribuem na relação com os elementos, o erukere longo espanta as

doenças da terra26 e os erukeres curtos limpam o ar das más vibrações. Isa Soares afirma

que a função do orixá da terra de tomar o erukere, tem a ver com a saúde, com a

doença, com espantar as coisas da pele, com tratar de melhorar animicamente. Mesmo

assim, vamos ver nesta fase da dança outra função da terra: cavar a terra.

O erukere é tomado com as duas mãos na frente do torso. Uma mão o agarra

com o rabo de cavalo para cima e outra mão sustenta a outra ponta do objeto. O erukere

sobe e desce detrás para frente. O corpo se traslada detrás para adiante, avançando e

retrocedendo com pulinhos que repercutem no corpo todo. O joelho da perna da frente

sobe em cada pulo; quando vem para frente o corpo desce um pouco. O erukere também

acrescenta seu movimento subindo e descendo. Agora, dá uns passos em lateral,

cruzando atrás para mudar a direção. O erukere continua subindo e descendo detrás para

frente, como num gesto de cavar na terra. Nesse traslado lateral de um limite da roda

para o outro, a dançarina vai girando bem devagar, passando por toda a circunferência

da roda.

O gesto que a dançarina faz com o erukere longo, como de cavar a terra, lembra

a dança de Nanã, mãe de Omolú, quando move o ibirí , sua ferramenta e seu bastão. Ao

mesmo tempo, pode ter relação com um comentário que Isa Soares fez na conversa

depois de dançar: “hoje, acabei de enterrar muitos ciclos e muitas pessoas que passaram

por minha vida na dança. Vou precisar de um tempo agora para me acomodar”. É

notável aqui como a dança de Isa Soares é atravessada pelo momento atual dela, os

gestos característicos dos orixás da terra são traduzidos em função das relações de Isa

Soares com o seu ambiente. A dançarina sugere que há toda uma postura que se

transcende, que vai além do conceito do orixá.

26 Vale chamar a atenção que Omolú, o orixá da terra é representado por outro elemento chamado Xaxará (Sàsàrà), “o feixe de nervuras de palmeira que revela claramente sua simbologia, imagem coletiva de espíritos ancestrais” (SANTOS ELBEIN, 2007, p. 96). Mas Isa usou erukeres tanto para dançar a terra quanto o ar, diferenciando eles pela sua longitude. Segundo esta autora, os dois emblemas tem significados similares, representar os espíritos ancestrais.

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Pela mesma via, Isa Soares se pergunta: quando a gente olha para baixo?

“Quando você olhou para baixo tem uma conexão com alguma coisa, quer pensar

intimamente, não é? É que a gente quer recuperar alguma coisa que perdeu. Então,

quando a gente está atenta a algo ou tem vergonha, a gente se esconde, olha pra baixo.”

Porém, a dançarina afirma que não adianta ficar na postura da vergonha, ou da

timidez. Mas há que colocar a timidez para fora, trabalhar alguma coisa que tenha a ver

com a timidez: “Vamos a dançar a timidez! Para que, quando apareça, seja tão graciosa

e tão glamorosa que você inclusive escolha ser tímida. Porque já é seu capital”.

(SOARES, 2012, entrevista)

Figura 17. Performance ‘Orixás de la Tierra’, Buenos Aires, 2011. Foto: Javier Infante

Por sua vez, essa associação do gesto de olhar para baixo com ter vergonha, ou

com se esconder, no mito de Omolú, se traduz na palha que oculta seu corpo. O ar

surge, então, como a possibilidade de desvendar (e transformar) aquilo que se esconde

detrás da palha. A dança de Iansã levanta a palha e aparece o corpo de Omolú. Do

mesmo jeito, o ar contribui a tirar para fora a vergonha, a timidez, a expressar aquilo

que se oculta.

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Segundo Isa Soares, o ar é o elemento que está em todos os lados. Até a terra

respira. Mas, na postura do plexo para a terra, na qual o corpo se dobra a partir do

cóccix-sacro, a respiração se estabiliza de uma forma diferente de quando você está na

vertical. “É como quando a gente abre um buraco na terra, a terra respira e se pode

colocar uma flor ou algo mais nesse lugar, nessa amplitude do buraco. Alguma coisa

saiu aí, que estava presa. Isso é a respiração.” (Idem)

Mesmo assim, a professora esclarece que quando o elemento ar aparece dentro

do xirê, na forma de Iansã, é fácil perceber como modifica a forma de respirar e a

dinâmica do corpo.

Figura 18. Performance ‘Orixás de la Tierra’, Buenos Aires, 2011. Foto: Javier Infante

O Ar

Repetir repetir – até ficar diferente.

Repetir é um dom do estilo

(BARROS, 1993, p. 13)

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A dançarina pega os dois erukeres curtos. Abre e cruza os braços energicamente

sacudindo os rabos de cavalo, com as pernas abertas, o quadril se balança de uma perna

para a outra. Vai passando por diferentes movimentos de braços, alguns mais retos,

outros mais circulares, às vezes movimenta um braço por vez, um por baixo, outro por

cima, depois os dois juntos em paralelo, logo os dois em cruzamentos. Os erukeres

parecem limpar ao redor do corpo. Vai mudando as frentes conforme a roda. A cada

lado, o gesto é diferente, cada movimento é diferente, não há como repetir.

Dá para perceber como o ar vai entrando em doses silenciosas, os movimentos

começam pequenos, movendo os centros de energia e os extremos se abrem aos poucos

e trasladando o corpo dentro da roda. Os movimentos são executados durante um tempo

prolongado, se reiterando. Mas, nessa reiteração, os movimentos se modificam

sutilmente, nunca são os mesmos. Não tem como haver repetição, cada movimento já é

outro. Segundo Katz (2005, p. 39) “um processo de repetição não se dá sem minúsculas

diferenças entre cada repetição (...) e a repetição com essas minúsculas diferenças, a

certa altura, produz uma diferença que se nota”.

Gira com um erukere estendido e a outra mão na cintura. Gira para o outro lado,

com um braço que se eleva. (...) Sacode os erukeres para abaixo e para cima,

alternadamente. Se trasladando nas laterais caminhando para trás. Gira na caminhada

para mudar de frente. Passa pelas quatro frentes várias vezes. (...) A pélvis se move

lateralmente e os pés se apóiam de um lado para outro. O torso também se acomoda ao

movimento da pélvis. A cabeça, por vezes, desce para avançar ou mudar de frente e

sobe quando está na frente. Os braços movem os erukeres em forma de círculos.

Move os erukeres de cima para abaixo com o movimento do quadril. Logo o

gesto se intensifica pulando de uma perna para outra, uma na frente e a outra atrás. Vai

variando as frentes também. Ora uma perna fica na frente, ora fica a outra. Agora os

braços também se alternam acima e abaixo, em oposição com as pernas.

Nestes diferentes momentos da dança do ar, cada gesto vai se configurando

através de pequenas mudanças no fluxo do movimento. Citando Katz (2005, p. 57), a

dança se constrói “como um contínuo, não um compósito de partes”.

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Figura 19. Manifestação artística de Isa Soares. Buenos Aires, 2012. Foto: Arquivo da autora

No entanto, é surpreendente como a professora consegue manifestar o ar sem

precisar sair da roda para se espalhar pelo espaço. O ar se faz presente em cada

mudança da dança: “Modifica a corporalidade, modifica o enfoque, modifica as

direções, se muda de frente, se muda de plano, ou seja, o corpo se oxigena de verdade,

porque tem muita disposição no espaço” (SOARES, 2012, entrevista). Sempre dentro

do círculo, as mudanças de frentes estão direcionadas para as quatro paredes do espaço

que simbolizam os quatro pontos cardinais. A dança, então, oferece um tempo para

perceber o que acontece, não somente na frente do corpo, mas nas costas e em todos os

seus perfis.

Quando o desfrute transforma

Mais uma vez, o movimento lateral da pélvis sugere sensação de leveza nas

pernas. Agora, as mãos se apoiam alternadamente num ombro e num lado da pélvis. (...)

Outro giro, este com as duas mãos esticadas e os erukeres nas pontas. Quando freia, dá

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uns pulinhos no lugar e volta a girar para o outro lado. Isa Soares sorri. Cada vez mais

leve, percebe-se no corpo uma sensação de alegria. Quando acaba o giro passa um

erukere ao redor da cabeça. Fazendo um pequeno rebote nos calcanhares, olha os dois

erukeres, aproxima um deles à sua boca e beija longamente, logo faz a mesma coisa

com o outro. Depois beija os dois juntos e os coloca sobre cada ombro. Caminha

meneando a pélvis para frente e para trás. Desce os erukeres e solta os ombros,

sacudindo as cascavéis.

Interessa registrar, nesta parte da dança, como é visível na gestualidade, uma

mudança emocional; aparece o sorriso, os beijos, o sacudir dos ombros. Isa Soares

afirma que

Iansã dentro do xirê é importante porque é ela quem traz a possibilidade de festejar, de que o corpo se abra, para receber o resto dos orixás até Oxalá. ... Abrem-se as pernas, se abrem as articulações da cadeira, se abrem os braços, a axila, que é importante que a gente deixe os braços... (leva os braços pra cima), trabalhe com as mãos, trabalho com... (faz um gesto de movimentar o ar com as mãos), é outra coisa que sucede no corpo, é o ar. (SOARES, 2012, entrevista)

Esclarecem-se, assim, como as emoções na dança estão diretamente relacionadas

com a organização do corpo nas posturas e nas gestualidades. Ao levar este sentido à

relação de Omolú\Obaluaiê e Iansã (os orixás do mito aqui trabalhado), Isa Soares

observa que Iansã é o único orixá que pode trabalhar com Obaluaiê de uma forma

festiva. “Segundo os mitos, é ela quem tira a Obaluaiê, é o ar que tira a terra para

dançar. Têm como uma amizade.” Entendendo esta relação a partir dos elementos da

natureza, a dançarina afirma que é o ar que faz mover a terra, é ele que estabiliza, é ele

que oxigena, que faz entrar e sair as partículas de átomos e prótons. E nesse reagir

químico do ar na terra, se produz a transformação. Quando no mito Iansã dança com

Omolú, levanta a palha e descobre o corpo que estranhamente não é horroroso como se

dizia, mas de uma rara beleza. Mostrar intempestivamente aquilo que não era para ser

visto, e que seguramente produz alguma coisa em quem está olhando é um gesto que

parece se reiterar de diversas formas no trabalho de Isa Soares. Propondo outros valores

no seu jeito de dançar. Outras estéticas que podem até incomodar ao espectador, outros

espaços de legitimação, outro modos de se colocar no mundo. A artista encontra na

dança a possibilidade de transformar as dificuldades e melhorar os encontros. E diz Isa

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Soares: “ele (Omolú) desfruta com ela (Iansã). É ela que alegra. Se ela está ele

desfruta”.

Mesmo que a dançarina utilize música mecânica para sua performance, ela não

deixa de estabelecer um diálogo com a mesma. Como vemos nos seguintes momentos:

Quando Isa Soares, na primeira parte da dança, cuspe, vai marcando um ritmo

diferente que combina com ritmo que está soando. Também, em certos momentos, os

pés acentuam um tempo do ritmo e em outros, as cascavéis que rodeiam os ombros

vibram em cada pulo, em cada pisada, ou às vezes são sacudidas. E quando Isa Soares

deixa o erukere longo e vai buscar os erukeres curtos para dançar o vento, na música,

entra muito sutilmente um agogô, duplo cone de ferro, que marca uma clave, guia da

música.

No final, quando a música vem mantendo uma percussão constante, a dançarina

vai girando com o cone duplo estendido na frente. No momento que a percussão some,

ela acaba o giro, se detém na frente e eleva o cone com as duas mãos e coloca-o na

frente do peito. Segundo Isa Soares, o cone duplo é um relógio de arena. Representa o

tempo que é um dos territórios de Iansã.

(...) Já no chão, abre as mãos contendo os objetos e apoia a cabeça na base do

cone, encima dos irukeres. Repousa. Finaliza a música. A instalação se desarma e Isa

Soares acolhe os objetos embaixo dela e deita. Descansa.

Um tempo depois, a dançarina levanta o torso com os braços ainda apoiados no

chão e olhando para os objetos entoa um canto em yorubá. No final, o canto diz:

“Axé, Axêee, Alabase, Axê”

Como falamos anteriormente, e de acordo com Elbeim Santos (2007, p. 42), o

axê é uma força que permite as coisas existirem e devirem, o qual é transmitido através

de gestos, de palavras pronunciadas “acompanhadas de movimento corporal, com a

respiração e o hálito... que atingem os planos mais profundos da personalidade”. A

autora explica ao respeito:

“Num contexto, a palavra ultrapassa seu conteúdo semântico racional para ser instrumento condutor de àse... Se a palavra adquire tal poder de

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ação, é porque ela está impregnada de àse, pronunciada com o hálito –veículo existencial – com a saliva, a temperatura; e a palavra soprada, vivida, acompanhada das modulações, da carga emocional, da história pessoal e do poder daquele que a profere.” (ELBEIN SANTOS, 2007, p. 46)

Tomar conhecimento destes conceitos ajuda a descartar qualquer pressuposto da

lógica ocidental capitalista que tenta avaliar a obra artística como menor ou inexistente,

a qual, como vemos, é tecida por princípios do universo mitológico dos orixás.

Axé, o principio da existência, Alábase, aquele que partilha uma tarefa. Na

própria entoação destas palavras, se manifesta a carga emocional, histórica e pessoal da

dançarina. Nomear é uma maneira de valorar e dar visibilidade a algo. Só partilhando a

tarefa, trocando com outros e nos oxigenando, é possível dar continuidade a nossa

potência.

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CAPITULO 4

TRADUZIR À BEIRA DO MITO

Figura 20. Manifestação artística de María Laura Corvalán, Salvador, 2012. Foto: Martín Lorenzo

Esta pesquisa propôs trazer à luz as manifestações artísticas das danças dos

orixás, realizadas por Tânia Bispo, em Salvador, e por Isa Soares, em Buenos Aires,

atendendo aos processos tradutórios que cada uma construiu entre o universo mitológico

dos orixás e o ambiente artístico e contemporâneo da dança. Para este estudo, foi

escolhido um mito que fala da relação de dois orixás: Omolú/Obaluaiê, a energia da

terra, e Iansã, a energia do vento e do ar.

A investigação foi atravessada pela proposta de tradução cosmopolita do

sociólogo português Boaventura de Souza Santos, que parte do reconhecimento de que

não há uma teoria geral, mas todas as culturas são incompletas. Portanto, a tradução

sempre implica uma criação e transformação, aberta a outras leituras e recriações. A

partir das circunstâncias que foram vivendo as dançarinas, cada uma foi construindo

‘novos lugares comuns’ que sugerem modos de se colocarem no mundo, afastadas dos

discursos colonizadores. Deste modo, as artistas conseguem traduzir em sua dança

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valores, conceitos e cosmovisões africanas que habilitam um diálogo horizontal,

recíproco e não-hegemônico entre as diferentes culturas.

Foi possível também constatar como, tanto Tânia Bispo quanto Isa Soares logrou

defender suas propostas de uma dança que não cabe nos cânones comerciais da

espetacularidade, entrando e saindo dos espaços de dança, os quais se modificavam,

tanto quanto as artistas em questão. Enquanto isso, cada uma foi fazendo relações e

construindo ambientes onde puderam se reconhecer e sua arte pôde ser valorizada e

legitimada.

Partimos da hipótese de que sempre que a dança ocorrer num contexto diferente

de onde surgiu, segundo registros historiográficos, há tradução. Portanto, para haver

tradução, não é preciso ser estrangeiro daquela cultura; todas as manifestações artísticas

das danças de orixás são traduções de uma cultura para outra, sejam elas em Salvador,

em Buenos Aires, em Rosário ou outra cidade qualquer.

Assim, vimos como Tânia Bispo, tendo experiências religiosas e artísticas,

consegue diferenciar estes dois estados, entendendo que fora do terreiro, quando ela

dança de forma artística ou está dando aula, ela faz um trabalho de tradução. A

dançarina esclarece que somente quando há consciência é possível traduzir

criativamente uma imagem, um movimento ou um símbolo. O corpo consciente é o que

tem a capacidade de transcender a partir de todo o conhecimento que ele traz. Pelo

contrário, no espaço religioso, não há nada que transformar, mas há que seguir os

fundamentos da tradição. Isto não significa que o universo mitológico seja original e

não mude nunca, mas como a tendência é manter a tradição, as transformações são

significativamente mais lentas.

Observamos, também, como Isa Soares não precisou ser religiosa para fazer

tradução daquele universo mitológico dos orixás num contexto artístico de Buenos

Aires. E, ainda, sua proposta ganhou grande reconhecimento por ser reveladora de

informações que não circulam facilmente naquele ambiente de dança de Buenos Aires.

As duas experiências ressaltam a possibilidade de transformação através de tais

processos tradutórios. Dançar, manifestar, criar para transmutar estados corporais,

situações, relações, emoções, etc.

A importância destes tipos de tradução reside em que, somente assim, é possível

tirar do escuro, valores, mitos, danças e muitas informações que, de outra forma,

ficariam ainda na obscuridade. O trabalho das duas dançarinas, analisados aqui, é uma

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forma de dar continuidade, de manter vivo saberes e práticas que não estão acessíveis na

educação regular.

Reflete-se aqui outra motivação que atravessou esta pesquisa: o fato destas

informações sobre dança não terem lugar na educação oficial ou formal, por não serem

legitimadas pelos valores da ‘monocultura’ da razão ocidental. Então, não há igualdade

de acesso para essas informações, como tem para outras que estão a serviço do sistema

capitalista. Pode-se afirmar, portanto, que existem razões concretas para esses saberes

ficarem no escuro e ainda tais ações trazem consequências sociais e educacionais na

formação de qualquer pessoa. Manter à margem aquilo que não vem do colonizador,

não pode ser mais do que reflexos de uma postura colonizada de aceitação social.

Apontamos, com este trabalho de tradução cultural, o desvendar daquilo que a cultura

colonizadora cobriu com a palha da razão capitalista.

Neste exercício de trazer à luz as manifestações artísticas de Tânia Bispo e Isa

Soares, nos capítulos anteriores tentamos realizar uma tradução verbal das danças das

mesmas. Porém, pelo fato de ser uma investigação em dança, onde os conhecimentos

que a pesquisadora encontrou em ambientes fora da universidade foram nutridas pelas

teorias estudadas dentro da universidade, houve também a necessidade de fazer uma

tradução corporal das mesmas, ou seja, traduzir a dança com outra dança, de um corpo

para o outro, lembrando que a tradução sempre será diferente, individual e criativa.

Dar movimento às traduções aqui expostas permite agregar informações do que

não basta em palavras, enquanto se abrem questionamentos sobre as inúmeras traduções

culturais possíveis da dança. No intuito de sugerir que ainda há tantas outras traduções a

serem dançadas, transmutadas e/ou ressignificadas que precisam sair à luz para

fortalecer estes outros paradigmas de valorações e reconhecimentos, apresentamos aqui

uma tradução corporal da pesquisadora desta dissertação, María Laura Corvalán.

Estende-se, assim, outro horizonte quando as danças destas professoras são

traduzidas em outro corpo, que já traz outras informações da sua cultura e da sua

história. Surgem, então, as seguintes indagações respeito aos diferentes graus ou nivéis

de tradução cultural. Quando se alongam as distâncias na tradução: quais são os riscos?

O que é o que tem de permanecer para que continue sendo uma tradução (artística) de

danças de orixás? Onde e como tomar cuidado para continuar se mantendo o diálogo

entre as culturas? Estas perguntas não estão resolvidas nesta pesquisa, mas são

desdobramentos que compartilhamos com outros possíveis tradutores culturais

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dimensionando a responsabilidade de fazer um trabalho crítico e com fundamento de

parte das duas culturas a traduzir.

A necessidade de dançar estas traduções aparece também como um modo da

pesquisadora apresentar seu caminho pessoal da sua tradução. Várias informações sobre

a dançarina-pesquisadora já foram enunciadas na introdução desta dissertação, mas vale

sublinhar que a mesma não é brasileira; é argentina, nascida na cidade de Rosário e vem

estudando e se formando com Isa Soares há mais de dez anos, tanto em Buenos Aires,

quanto em Rosário, junto ao seu grupo Iró Bàradé. Por sua vez, em suas viagens à

cidade de Salvador, a pesquisadora vem tomando cursos intensivos com Tânia Bispo

desde o ano de 2004. Esta formação também se atualiza dia-a-dia em suas experiências

como professora e dançarina na sua cidade natal, na Argentina.

À beira das danças

A sala de dança do ‘Alto da Sereia’, um morro do bairro Rio Vermelho em

Salvador/BA, que acolhe muitos estrangeiros, é o cenário da dança À beira do mito.

Pelas janelas entra a luz do dia e o som constante do mar. Num canto da sala está o

percussionista Manuel Corvalán27, irmão da dançarina. No centro do espaço, a

dançarina: tronco flexionado e cabeça pendurada junto aos braços. Os dois estão

vestidos de branco.

Começa um canto, um pedido de licença -‘agô’- para a terra.

“A jí dagôlônã qui uá xauòrò

Dagô ilêilê dagôlonã qui uá xauôrô

Dagô ilêilê”28 (OLIVEIRA, 1997, p. 76)

Logo entra a percussão, lenta, pesada, mas com ritmo muito marcado. O corpo

mostra o que não pode ver: suas próprias costas. A parte posterior está na frente e tem

algo que dizer. As costas movimentam-se como se tivesse algo que lhe incomoda, que

27 Manuel Corvalán é músico percussionista e contrabaixista que acompanha María Laura Corvalán em vários trabalhos de dança em Rosário, Argentina. 28 Ao acordar pedimos licença ao senhor no caminho, aquele a quem fazemos o culto tradicional, dê licença! à nossa casa, que pede licença no caminho a quem nós fazemos o culto tradicional (OLIVEIRA, 1997, p. 76).

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vibra, queima e pica no corpo. Como se uma doença silenciada pedindo para se

‘expressar’.

As mãos mergulham na pele tentando acalmar a coceira. Arrancam algo das

costas e o jogam no chão e a cada mão que se lança, o corpo todo vai se arremessando

na terra. A terra empestada do corpo descansa na grande terra mãe.

Mas o que é um corpo empestado senão um corpo com um poder tão enorme

quanto a arte? Antonin Artaud (2002, p. 23) compara a peste com o teatro, porque

ambos afetam importantes comunidades produzindo “um caos social, uma desordem

orgânica carregada de mistério”.

Figura 21. Manifestação artística de María Laura Corvalán, Salvador, 2012. Foto: Martín Lorenzo

A pele é só uma membrana que traduz processos muito mais profundos e

invisíveis que lhe acontecem ao corpo. No caso da peste, há uma disfunção e putrefação

dos órgãos, que provoca uma desordem geral no corpo. Gases e fluidos tentam fugir

pelas chagas e bolhas que aparecem na pele. No caso desta dança, afloram memórias

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reprimidas, ritmos históricos e emoções que querem ser ouvidas. O desconforto que se

manifesta na pele é só uma consequência de tudo o que já estava preso no silêncio.

Com pouca força, o corpo pesado rasteja em direção ao tecido que está no chão.

Entra por baixo e vai se cobrindo com ele. Cobre a cabeça e o torso e descola-se do

chão. Coberto com o tecido traslada-se aos poucos para trás. Por momentos, há uma

força que puxa para baixo, mas ele aproveita a puxada para mudar de direção.

O corpo empestado, não venera suas feridas nem sua fraqueza; oculto no tecido

busca avançar, se movimentar, transformar seu estado. As mãos também contribuem no

movimento passando pelo corpo com um gesto que tira as doenças dele.

Ainda com o corpo dobrado para frente e coberto com o tecido, se traslada de

lado com uma mão projetada no chão, ora mostrando o dorso, ora a palma. Gesto que

fala da vida e a morte que representa a terra, mas também fala de um agradecer e um

pedir para a terra. Depois, vai para frente em grandes passos elevando os joelhos e

braços alternadamente. Após três passos, o corpo se estica, os braços sobem sacudindo

as mãos e muda de direção.

Figura 22. Manifestação artística de María Laura Corvalán, Salvador, 2012. Foto: Martín Lorenzo

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No mito, a peste de Omolú não pode ser vista e é coberta por uma roupa de palha

que lhe deu seu irmão Ogum. Artaud, comparando a peste com o teatro, diz que:

“o teatro, em essência, se assemelha com a peste, não já pelo fato de ser contagioso, mas porque, como ela, seria revelação e manifestação de um conteúdo de crueldade latente. Por meio dele, percebe-se, seja num indivíduo ou num povo, as numerosas possibilidades de perversão do espírito”. (Idem, p. 25)

Na dança acontece algo parecido. O corpo deve disfarçar-se de técnicas

esvaziadas, sorrisos forçados, ocultando emoções, histórias, pensamentos sejam de um

indivíduo ou de uma comunidade que bem perverteriam as normas de controle social. E

ainda mais, quando a dança se perverte, é muito contagiosa.

Traslados, giros, mudanças no espaço, o ar vai tomando mais presença na dança

da terra. Num momento o vento que entrou parece se acalmar. Detenção. Silêncio.

Calma chicha29. Aos poucos, o quadril começa a mexer. Os braços sobem por baixo do

tecido. O quadril não deixa de mexer, com as pernas sempre flexionadas.

Figura 23. Manifestação artística de María Laura Corvalán, Salvador, 2012. Foto: Martín Lorenzo

29 No norte argentino, onde correm fortes ventos, se chama ‘calma chicha’ ao momento que o vento da uma parada, um silêncio, que anuncia que logo vem a tempestade.

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Por cima do tecido, aparecem os olhos, as mãos abrem o buraco do tecido, que

vai mudando de forma e mostrando diferentes partes do rosto e cobrindo outras. A boca

se assoma, fazendo muitas gesticulações como dizendo algo, mas sem som; nada se

ouve. Descobre-se a cabeça, descobre-se um ombro e um braço que logo saem por cima

do tecido. Descobre-se o outro ombro, os braços liberados. Continua a ‘fala muda’ no

silêncio. A saia na cintura. Vento que não tem medo do contagio, mas a tempestade tem

um fogo que transforma a peste em beleza.

Vários mitos relatam que quando se levanta a palha de Omolú, as pessoas não

conseguem enxergá-lo, ou ficam cegas, por ele se tornar uma imensa luminosidade. Por

isso o associam ao sol. Em palavras de Reis (2000, p. 119): “a capucha de palha-da-

costa (aze) cobre o rosto de Obaluaiê para que os seres humanos não olhem para ele de

frente (já que olhar direitamente ao sol pode prejudicar a vista)”.

Artaud, por sua vez, afirma que “o teatro acolhe, ao igual que a peste, uma sorte

de raro sol, uma luz de anormais e fortes tons, onde o dificultoso e até o impossível de

improviso se converterá em elemento normal”. (ARTAUD, 2002, p. 26) Este sol que

não se olha de frente, esse fogo que encandeia, é a doença transformada, a fortaleza de

um sofrimento já cicatrizado e imunizado. O invisível se ilumina, o horroroso se

embelece e a peste vira imunidade.

Figura 25. Manuel Corvalán tocando Hung Drum.

Salvador, 2012. Foto: Martín Lorenzo

Figura 24. Manifestação artística de María Laura

Corvalán, Salvador, 2012. Foto: Martín Lorenzo

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Surgem sons mais harmônicos, mais metálicos e agudos, numa música realizada

com o ‘Hung Drum30’ . O ar move o quadril que move as pernas, que mudam o peso de

uma e outra, até ficar com o peso do corpo numa perna só. A outra perna flutua no ar, se

afastando e se aproximando da outra perna, numa conexão do torso que articula braços e

pernas com um movimento único, rodeando o eixo num sentido espiralado. Há um

estado corporal que lembra um tango, leve e sensual. Mas essa leveza por vezes se

altera de tal jeito que corta e afasta tudo o que está em seu redor. A brisa torna-se um

vendaval que traslada o corpo e modifica sua postura.

Ombros e braços se movimentam ondulados. Um gesto da mão empurra e

provoca um giro, fica de costas. A mão empurra para o alto, o rosto olha para o que

empurra. Gira de repente e muda de direção. Agora, o olhar se afasta daquilo que

empurra. Segundo Isa Soares, às vezes é possível olhar para o que estamos afastando,

soltando, deixando ir, no intuito de incentivar o outro a partir. Mas, às vezes, não é

possível olhar para o que estamos soltando, porque se aquilo que é solto vira-se para

trás, corremos o risco de que memórias e emoções ressurjam e já não seja tão fácil

soltar.

Figura 26.Manifestação artística de María Laura Corvalán, Salvador, 2012. Foto: Martín Lorenzo

30 Instrumento redondo e metálico, de origem suíça, que se toca com os dedos.

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Assim, o fato de olhar ou não para aquilo que se empurra muda o gesto

completamente porque muda a relação com o espaço. Queira ou não queira, o vento

sempre solta, não é uma escolha, é sua natureza. Como diz a canção ‘Confesiones del

viento’:

“(…) Iba quebrado de culpas y seguía confesando, en su lomo de distancias no cabalgaba ni un pájaro, Era un fantasma ese viento, un alma en pena penando y en ese telar de angustias, tejió sus babas el diablo (…)”31 (Fragmento da canção ‘Confesiones del Viento’, letra: YACOMUZZI, R., música: FALÚ, J.)

A energia do vento não elege jogar árvores à terra. E se lamentando das

destruições que provoca no seu andar, vai se distanciando, quebrado de culpas. Assim

vai a dança, empurrando o ar com os braços, avançando sem rumo, fugindo de seu

próprio poder.

Figura 27. Manifestação artística de María Laura Corvalán, Salvador, 2012. Foto: Martín Lorenzo

31 Ia quebrado de culpas e seguia confessando, no seu lombo de distâncias não cavalgava nenhum pássaro. Era um fantasma esse vento, uma alma em pena penando, e nesse tear de mágoas, teceu suas babas o diabo. (Fragmento da canção ‘Confissões do Vento’. Tradução nossa)

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Um fogo desata-se na bacia e as pernas criam um sapateado que reboleia a saia.

Aparece a energia de búfalo, mulher-bicho, mulher-brava que bate na terra qual

sapateado de ‘chacarera’32. Fogo que transforma a dor, vento que seca as chagas, ar

que refresca o temperamento do corpo. Doença vira dança, tristeza vira festa e solidão,

companhia.

Olhando para frente, um dedo assinala o peito em movimento, depois seu ombro

que também se move vibrante e solto. Logo assinala para sua boca, que está bem aberta.

Aponta para a terra, depois para o céu, e para a percussão. Aponta para a câmera, para

seus olhos, para sua boca e para seu quadril que se move. Aponta para o peito, aponta

para a música e aponta para frente (possível espectador), para outro, e para outro. Cada

coisa assinalada cobra uma presença que antes não tinha, ilumina-se, foca-se, move-se

ainda mais. Assinala a terra, o quadril, o céu, o ombro... Apontar, assinalar, expor, dar

luz para os detalhes que foram negados durante muitas danças. Os dedos mudam cada

vez mais rápido de direção e na velocidade deslocam o corpo, girando e voltando. Fica

de costas, apontando para um ombro com um dedo e com o outro para o publico.

Detém-se, a música vai se calando aos poucos.

Esta tradução corporal e cultural pode intitular-se “Dança à beira do mito”.

Dançar à beira permite alargar sua fronteira, fazer mais extenso o interstício para

conversar entre duas culturas. Dançar à beira do mito de Omolú e Iansã oferece um

espaço propício para que ocorram encontros inesperados entre o vento e a terra, entre a

arte e a ciência, entre o sagrado e o profano de cada ser. Quando um corpo se encontra

com sua peste, não adianta ocultar-se embaixo de qualquer roupa. Somente um forte

vento pode desvendar o que estava podre, desamarrar a peste para que continue seu

processo de mutação.

“Se advertirá aqui que, da ótica humana, a ação do teatro, como a da peste, é de beneficio, já que ao impulsionar aos homens a que se vejam tal e como são, elimina a máscara, faz visível a mentira, a debilidade, a baixeza, a hipocrisia, sacudindo a paralisante inércia da matéria que mascara e obstaculiza ainda as testemunhas mais claras que nos dão os sentidos e revelando às comunidades sua obscura potencia, sua força latente, as induz a adotar, diante o destino, uma ação heroica e superior, que de outra forma jamais tivessem atingido.” (ARTAUD, 2002, p. 27)

32 Lembrando: Chacarera é um ritmo e dança do folclore argentino, oriunda de Santiago del Estero, com grande preponderância rítmica.

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Assim como Artaud fala da ação do teatro, a ação da dança também pode ser

reveladora. Segundo a proposta de Souza Santos, a ação de traduzir também pode ser.

Fazendo analogia com o mito de Omolú e Iansã, o trabalho de tradução é um vento em

tempestade. É uma dança que move até o que ficou nas sombras da palha.

A tradução corporal da pesquisadora aqui apresentada vai além das danças. É

uma estratégia de sobrevivência. É mais uma forma de tirar do escuro as informações

reveladas pelas artistas e espalhar suas propostas, anelando que muitas outras traduções

artísticas cosmopolitas sejam dançadas e iluminadas. A tradução cosmopolita se anima

a ventilar o corpo empestado de outras culturas que ameaçam a monocultura da razão

ocidental. Avizinha-se a uma contaminação de diversidade cultural, uma verdadeira

peste ‘ecológica’ e, neste caso, pode ser contagiosa.

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Site consultado:

http://www.isasoaresdanzas.blogspot.com.br/