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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE TEATRO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES CÊNICAS
RAIÇA BOMFIM DE CARVALHO
DEVIR OFÉLIA E A EMERGÊNCIA DE UMA POÉTICA
DA DISSOLUÇÃO
Salvador
2017
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RAIÇA BOMFIM DE CARVALHO
DEVIR OFÉLIA E A EMERGÊNCIA DE UMA POÉTICA
DA DISSOLUÇÃO
Dissertação submetida ao Programa de Pós-
Graduação em Artes Cênicas, da
Universidade Federal da Bahia, como
requisito para obtenção do grau de Mestre
em Artes Cênicas.
Orientadora: Profª. Drª. Daniela Maria
Amoroso
Salvador
2017
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AGRADECIMENTOS
Agradeço ao PPGAC-UFBA, pelo acolhimento desta pesquisa no programa; a minha
orientadora, Daniela Amoroso, pela cumplicidade e inspiração na materialização desta
obra; a Cássia Lopes, pela aceitação que viabilizou meu ingresso no mestrado; a Meran
Vargens, por todo o cuidado com que me ajudou a conduzir os trâmites burocráticos
desta empreitada; e Gilsamara Moura e Paula Lice, pelas ricas e generosas contribuições
à pesquisa enquanto parte da banca.
Agradeço às “Loucas do Riacho”- Camilla, Felipe, Liz, Mônica, Olga e Uerla -, pela
confiança, disponibilidade, afeto e por tudo que, juntas, efetuamos em nossa dança de
tempos e desejos; e a toda a equipe de criação que ofereceu suas habilidades e sonhos
para que “o riacho das loucas” transcorresse - Fábio, André, Márcio, Mariana, Lucas,
Júnior, Daniel e Laís.
Agradeço a todos que interagiram nas criações do Projeto Ofélia, compondo parcerias
preciosas; e a todos que passaram pelo Alvenaria de Teatro, onde tomei ciência da
potência de habitar as fronteiras.
Agradeço a José, meu filho, pela experiência assombrosa de multiplicar-me e dissolver-
me na potência do amor; a Leny, minha mãe, pela parceria sempre atenta, pelo estímulo
sempre vívido, pelo abraço quente, pela cooperação e guiança; a Sérgio, meu pai, pela
olhar doce e herança sensível, por estar sempre por perto nos momentos mais cruciais,
por toda sua ternura e amor; a André, por José e pelos caminhos compartilhados; a
Ana, comadre, pelo suporte fundamental de seus cuidados.
Agradeço a Saulo e Camilo, pelas leituras cúmplices, cuidadosas, e pelos diálogos
inspiradores; a Clarice pelo apoio de tradução do resumo; a Orlando, Alda e Daniel
Farias, pelas conversas-entrevistas cedidas; a Olga, mais uma vez, pela Gameleira e pela
beleza de parceria de trabalho e vida movimentada nesse território; a meus amigos
tantos, parceiros desta vida-arte, que de tantas formas me alimentam.
Agradeço a toda minha turma de mestrado, por toda a alegria, inspiração e acolhimento.
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Agradeço a tanta gente que me move e que, comigo, é movida; gente com quem tramo
tantos encontros – palpáveis ou imaginados - de inspiração, transbordamento,
dissolução, risco, contágio e cuidado: de amor.
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Criar é não se adequar à vida como ela é,
Nem tampouco se grudar às lembranças pretéritas
Que não sobrenadam mais.
Nem ancorar à beira-cais estagnado,
Nem malhar a batida bigorna à beira-mágoa.
Nascer não é antes, não é ficar a ver navios,
Nascer é depois, é nadar após se afundar e se afogar.
Braçadas e mais braçadas até perder o fôlego
(Sargaços ofegam o peito opresso),
Bombear gás do tanque de reserva localizado em algum ponto
Do corpo
E não parar de nadar,
Nem que se morra na praia antes de alcançar o mar.
(Waly Salomão – Sargaços)
7
RESUMO
“Devir Ofélia e a emergência de uma poética da dissolução”, pesquisa de característica
prático-teórica, condensa os rumores criativos de um devir despertado por Ofélia, a
afogada de Shakespeare. A Ofélia que despenca no riacho, a mulher que se transmuta
em rio, a que enlouquece e canta, afirma neste texto e na prática que o engendra, uma
poética que dissolve o hábito do pensamento moderado, da comunicação domesticada,
do processo criativo pautado por regras estanques e dos ditames que demarcam cada
área de criação. Esta poética, que intitulo de poética da dissolução, emerge aos poucos
ao longo de criações sucessivas e, especialmente, durante o processo criativo do
espetáculo “Loucas do Riacho”. Ela nasce do cruzamento de uma poética da água e uma
poética da loucura e se materializa nos corpos criativos em qualidades de fluxo, trânsito,
abandono, disrupção, desorientação e vertigem. Essas qualidades terminam por
dissolver as divisas entre teatro, dança e performance, entre arte e vida, entre teoria e
prática, entre visível e invisível, entre condução e desorientação, entre movimento e
descanso, entre casa e rua, entre silêncio, palavra e som. A pesquisa se desenvolve
através da cartografia e da pesquisa performativa, (contra-)metodologias em cujos
cruzamentos são compostos os elos entre o corpus artístico e o corpus teórico do
trabalho.
Palavras-chave: ofélia, poéticas, teatro, performance, cartografia
8
ABSTRACT
"Becoming Ophelia and the Emergence of a Poetics of Dissolution," a practical-
theoretical research, which condenses the creative rumors of a awakening process by
Ophelia, Shakespeare's drowning character. Ophelia, who falls in a lake, the woman
who transmutes herself into a river, who looses herself and sings, assures in this
manuscript and in the practice that engenders it. A poetics that dissolves the habit of
moderate thought, of domesticated communication, of the creative process ruled by
rules and dictates that demarcate each area of creation. This poetic, which is called the
poetics of dissolution, gradually emerges along the successive creations and especially
during the creative process of the performance "Loucas do Riacho". It emerges from the
intersection of "a poetic of water" and a "poetics of madness" and materializes in the
creative bodies in qualities of flow, movement, abandonment, disruption, disorientation
and vertigo. These qualities eventually dissolve the boundaries between theater, dance
and performance, between art and life, between theory and practice, between visible and
invisible, between conduction and disorientation, between movement and rest, between
home and street, between silence, word and sound. The research develops through
cartography and performative research, (against-)methodologies in which the links are
composed between the artistic corpus and the theoretical corpus of work. Keywords: Ophelia, poetics, theater, performance, cartography
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SUMÁRIO
I. APROXIMAÇÃO................................................................................................11
II. MINADOURO......................................................................................................16
III. DOIS ENLACES: DISSOLVER O ATO, DISSOLVER O PLANO...............33
1. CARTOGRAFAR UM RIO......................................................................................33
2. ACEITAR O VAZIO.................................................................................................40
3. VERTER-SE EM PALAVRAS ................................................................................41
4. SUJEITO ESTILHAÇADO......................................................................................46
5. TEMPO, TEMPO, TEMPO, TEMPO, ENTRO NUM ACORDO
CONTIGO.................................................................................................................50
6. COMO UM OBJETO NÃO IDENTIFICADO.........................................................51
7. PERMITIR O RIO.....................................................................................................54
8. UM RIO CHAMADO OFÉLIA................................................................................55
9. UMA MULHER QUE SE DESMANCHA...............................................................58
10. O FANTASMA É UMA DOR QUE SE REPETE....................................................64
11. ESTAR.......................................................................................................................66
12. DEIXAR SER............................................................................................................67
13. COMO EL MUSGUITO EN LA PIEDRA...............................................................70
14. HABITAÇÕES..........................................................................................................74
15. EU NÃO SEI PARA ONDE VAMOS......................................................................77
16. MINHA BOCA ESTÁ REPLETA DE SARGAÇO..................................................82
17. UM MAPA PARA SE PERDER...............................................................................87
18. BUSCAR AFLUÊNCIAS.........................................................................................91
19. NÃO PRECISAMOS FAZER NADA......................................................................92
20. DEIXAR QUE AS ÁGUAS DO CORPO RESSUMEM.......................................96
21. A PALAVRA QUE NEM CALA NEM DIZ..........................................................98
22. ALÉM DAS CORTINAS, SÃO PALCOS AZUIS...............................................101
23. DEUS MANDA MOSCAS ÀS FERIDAS QUE DEVERIA CURAR.................104
24. DEIXAR NASCER, DEIXAR MORRER..............................................................106
25. CACOS PARA UM VITRAL.................................................................................107
26. SER O RIO..............................................................................................................110
IV. ALAGAR............................................................................................................112
REFERÊNCIAS.................................................................................................114
10
LISTA DE FIGURAS........................................................................................117
11
I. APROXIMAÇÃO
Ao reencontrar Ofélia, numa releitura de Hamlet, de William Shakespeare, no
ano de 2011, sou tomada por um assombro. Sinto operar-se em mim uma mudança de
perspectiva diante da qual a personagem afogada passa a animar o desejo incontornável
de viver. No potencial simbólico de seu suicídio e na força mitológica e arquetípica de
seu destino, encontro não uma pulsão de morte, mas seu contrário. Ao lançar-se no rio,
Ofélia convida a despojar-me das opacidades que mortificam o estar no mundo e a tirar
dos ombros todo peso morto, para lançar-me na trágica experiência de renascer a cada
ato. Revejo-me como aquela que vinha trilhando um percurso perfeitamente palatável e
bem-educado e, por uma concatenação de fatos, aceita a trágica condição de se perder e
deixa-se transbordar em vibrações alucinadas e atordoantes, lançando-se em deriva por
um rio insondável.
Desse encontro com Ofélia e de seu impacto nas inquietações criativas que me
movem enquanto artista, nasce esta pesquisa. As estimulações que a alavancam têm seu
germe nas práticas do “Grupo Alvenaria de Teatro” (Salvador), o qual integrei até o ano
de 2012, e ganham densidade ao longo da criação do “Projeto Ofélia”, título sob o qual
reúno uma série de trabalhos criativos transpassados pela figura de Ofélia. No “Projeto
Ofélia”, território de práticas desta pesquisa, estão “os músculos que acionam esta
escrita” (FABIÃO, 2013, p 9). Ele abrange o espetáculo-solo “OFÉLIA: sete saltos para
se afogar” (2015), o primeiro e o segundo “Estudos para Ofélia Blue” (2012 e 2014), as
performances “Lavagem” (2017), “Cidade Afogada” e “Dobra” (2015), a escrita do
livro “Manual de Afogamento” (2013-2017), uma série de fotografias e pequenos
vídeos, além de outros desdobramentos pontuais. Abrange, em especial, o espetáculo
“Loucas do Riacho”, criado ao longo deste curso de mestrado, a partir do qual surgem a
maioria dos insights que movem este texto.
No pré-projeto desta dissertação, Ofélia aparece definida como meu objeto de
estudo. Aos poucos, ela vai se dissolvendo desse lugar e acende em mim a potência de
devir.
Devir é nunca imitar, nem fazer como, nem se conformar a um
modelo, seja de justiça ou de verdade. Não há um termo do qual se
parta, nem um ao qual se chegue ou ao qual se deva chegar.
Tampouco dois termos intercambiantes. A pergunta 'o que você
devém?' é particularmente estúpida. Pois à medida que alguém se
12
transforma, aquilo em que ele se transforma muda tanto quanto ele
próprio. Os devires não são fenômenos de imitação, nem de
assimilação, mas de dupla captura, de evolução não paralela, de
núpcias entre dois reinos. (DELEUZE apud ZOURABICHVILI, 2004, p. 24)
Em devir Ofélia, vejo borrarem-se os contornos do ser-mulher, do ser-artista e
do ser-acadêmica. Sentindo-me arrastar por ela, vou assumindo um modo fremente e
precário de habitar a fronteira, de permear os liames arte-vida, corpo-gênero e
dissertação-ensaio. Despenco no riacho e sou conduzida à vertigem da criação, ao
transbordamento de sensações em formas estéticas, à diluição de hierarquias e normas
hegemônicas e à irrupção de uma expressão que excede a linguagem habitualmente
empregada. Esse devir desprograma os freios que me restringem a um modo pontual de
ser, a um conjunto de qualidades mensurável, a um jeito inequívoco de apresentar-me e
a um tempo cronometrável. Nesse trânsito, sinto o impulso em direção às potências
múltiplas do ser.
...todo devir forma um "bloco", em outras palavras, o encontro ou a
relação de dois termos heterogêneos que se "desterritorializam"
mutuamente. Não se abandona o que se é para devir outra coisa
(imitação, identificação), mas uma outra forma de viver e de sentir
assombra ou se envolve na nossa e a "faz fugir" (ZOURABICHVILI,
2004, p 24)
No lastro desse processo, há muito o que dizer e compartilhar, e há um apanhado
de vestígios que convoca à composição de espaços transubjetivos, favoráveis à
abundância dos modos de ser, fazer, conhecer e expressar. Desejo manifestar a escrita
como um “estojo de possíveis” (PRECIOSA, 2010, p 53), como uma convocação para
aproximações e expansão das vias através das quais afetar-nos mutuamente. Busco
engates e chaves que engendrem novas aberturas, pelas quais possamos adentrar com
diversas singularidades e banhar-nos nessas águas de contágio, nas quais a peste é a
coragem renovada para encarar os desejos e as estratégias para sua expressão. Reúno
peixes e cascalhos que disponho por entre meu traçado, organizando elementos que
desorganizam a língua e permitem que as forças caóticas se destampem e se apresentem
como modo sensível de partilha.
Trair a língua é forçá-la a compassar com a palpitação do corpo que
escreve. Inseminar tal euforia que a faça entortar, que a deixe fanha,
gaga. Que se desmanchem seus inteligíveis sintagmas para se ficar
13
colado às palavras que mais se ama. Um corpo que não só trai, mas
rouba, aspirador de idéias que estão por toda a parte. Fino misturador
que concentra seus resíduos prediletos e os devolve sob a forma
anônima e desgarrada de pensar. A figuração da intensidade aérea de
uma idéia. (PRECIOSA, 2010, p 14)
Ao longo desta pesquisa, desenvolvo uma poética que intitulo de “poética da
dissolução”, tecida na encruzilhada de uma “poética da água”, com o seu potencial de
infiltração, transbordamento, apagamento e fluxo, e uma “poética da loucura”, com o
seu viés disruptivo, dispersivo, marginal e informe. A proposta de uma “poética da
dissolução” surge assim na vereda de uma terceira margem, onde o rio é o próprio
delírio. 1
Há, na produção deste caminho, a opção pelo trabalho de dissolução dos limites
que contém a criação e por uma quebra de barragens epistemológicas. Dou espaço ao
extravasamento de paradigmas criativos, num modo não-obediente, desatento aos
“nãos” impostos pelos cânones e disponível a experimentar, na afirmação da
multiplicidade da vida, trajetos instáveis de criação. Passeio pelos entre-lugares, pelos
estados que, não pertencendo nem a um território delimitado nem a outro, são operados
enquanto trânsito contínuo.
DIS
SOLUÇÃO
Para o que não tem remédio2
Na estrutura deste trabalho, começo refazendo o percurso criativo do “Projeto
Ofélia”, evocando as memórias, registros, escritos, vídeos e parcerias que compõem sua
tessitura. Este primeiro movimento – de ordem mais descritiva – está registrado na
seção inicial intitulada “Minadouro”. Em seguida, desenvolvo o conteúdo num grande
“enlace” em que duas operações se interpenetram A primeira, “dissolver o plano”,
refere-se ao tracejado de fugas e desvios da pesquisa e das metodologias e conceitos que
a animam. Tais conceitos comportam, eles próprios, a qualidade de transbordamento
que os impede de se restringirem a uma forma específica ou a um plano definitivo
estabelecidos a priori. Entre estas metodologias e conceitos estão a “cartografia”, de
1 Referência ao conto “Terceira margem”, de Guimarães Rosa, publicado no livro “Primeiras histórias”
(ROSA, Guimarães. Primeiras Histórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988) 2 Poema do livro “Manual de Afogamento” ainda por ser publicado, de autoria desta autora, que compõe
o escopo de criações do “Projeto Ofélia”.
14
acordo com os trabalhos desenvolvidos por Gilles Deleuze, Félix Guattarri, Sueli
Rolnik, Virgínia Kastrup e Rosane Preciosa; a “pesquisa performativa”, segundo Brad
Haseman; a “poética da água”, segundo Gastón Bachelard; o “programa performativo”,
segundo Eleonora Fabião; e o “plano fantasma”, segundo André Lepecki. Já operação
complementar, “dissolver o ato”, exprime o conjunto de rumores que brotam da prática,
numa espécie de diário performativo dos encontros de criação. Esse procedimento
abrange uma experimentação de tradução dos fluxos do ato cênico em texto e teoria.
Apresento aí também registros de anotações e conversas com as atrizes e com a equipe
de criação do espetáculo “Loucas do Riacho”; trechos de entrevistas com pessoas que
assistiram ao espetáculo e que estiveram próximas do projeto; e trechos de textos
escritos espontaneamente pelo público a partir de suas percepções do espetáculo. Em
meio a isso, teço algumas sessões compostas como espécies de hiatos em que o texto
abre um espaço de conexão entre o corpo-que-se-escreve e o corpo-que-se-lê. Estas
sessões seguem o mantra criativo de “Loucas do Riacho” – “aceitar o vazio”, “estar”,
“deixar que as águas do corpo ressumem”, “buscar afluências”, “permitir o rio”, “ser o
rio”, “alagar” (este último servindo como espaço de conclusão). Durante todo o enlace,
há uma série de ecos de conversas com amigos, parceiros e provocadores diversos, que
aparecem diluídos em minha voz ou destacados em pequenos fragmentos transcritos.
Há também, ao longo de todo o texto, um grande apanhado de versos de poetas
que, em qualquer tempo, ensinam-me novas coisas sobre criar, viver e aprender. Repito
algumas explicações em notas de rodapé, a fim de que os leitores que, como eu, saltam
pelos atos de cada enlace, numa leitura descontínua, possam capturar melhor as
referências de cada um. Desejo que a leitura deste texto seja capaz de refrescar algum
desejo. E que as palavras sejam carpas que façam destas páginas um grande rio.
Criar: é disso que trata este encontro com Ofélia. O riacho em que Ofélia se dilui
corre e me atravessa numa dança de avanço e abandono. Mas ele não transcorre num
espaço puramente movediço e insondável. O rio, em seu trajeto de intensidades,
correntezas e substâncias, marca as linhas deste mapa, apontando justamente para
modos fluidos de produzir-nos. E forma pequenas ilhas nas quais é possível parar um
pouco, contemplar a paisagem e sentir a firmeza das intenções desta jornada.
Palavra de um artista tem que escorrer
substantivo escuro dele.
Tem que chegar enferma de suas dores, de seus
limites, de suas derrotas.
15
Ele terá que envesgar seu idioma ao ponto de
enxergar no olho de uma garça os perfumes do
sol.3
3 BARROS, Manoel. Retrato do artista quando coisa. Rio de Janeiro: Record, 1998.
16
II. MINADOURO
Ofélia transborda meu desamparo ao mesmo tempo em que diz, “você, em seu
tempo, pode fazer disso uma obra”. Assim nasce o “Projeto Ofélia”, em 2011, com
ações que se desdobram até hoje (2017). Começo mapeando essas ações tentando
recuperar as dúvidas, disposições e limitações que me guiam em cada etapa, e evocando
os parceiros de cada momento. O “Projeto Ofélia” compõe um percurso que, de modo
assíduo e, muitas vezes, acidentado, vai rasurando as possibilidades de formato bem-
acabado até diluir-se numa cena de fluxos de devir.
Em 2011, Ofélia me inspira a construção de um drama autoral, inicialmente
instigado pela complexidade da comunicação estabelecida nas relações amorosas. Passo
ali a imaginar desdobramentos dos diálogos entre Ofélia e Hamlet, compreendendo-os
como modelo arquetípico dos desníveis que se repetem no embate de forças de uma
relação em crise. Arrisco alguma coisa escrita.
17
18
Figura 1. Excertos do livreto “Sete saltos para se afogar”. (BOMFIM, 2017)
4
Escolho Ofélia, associada ao poema “A fogueira onde arde uma”, de Júlio
Cortázar5, como força propulsora de minha criação no experimento cênico “Fogueira”,
do “Grupo Alvenaria de Teatro”, que tem sua estreia ainda no final de 2011. “Fogueira”
traz uma dramaturgia criada em cena, numa experimentação de sonoridades, danças e
verborragias improvisadas com base na ideia de um encontro feminino para a
construção de um ritual heterodoxo de cura, prazer e celebração. Durante as
apresentações, a sensação de sufocamento e perda, e o desejo de transmutação das
memórias conduzem as falas que lanço na roda e confere o tônus aos movimentos que
desfraldo.
Simultaneamente, a profusão das imagens de Ofélia produzidas ao longo da
História me remete à experimentação plástica, que tangencio através de autorretratos.
4 Imagens da publicação do texto pela editora carioca Pipoca Press, na coleção Puxad_nho. O lançamento
em Salvador acontece durante o III Festival de Ilustração e Literatura da Bahia, em maio de 2017. O
texto, escrito em 2011, é usado em uma das cenas de “Ofélia: sete saltos para se afogar” até este ano,
2017, quando a cena a que pertencia se transforma e deixa de ter fala. 5 CORTÁZAR, Júlio. A Volta ao Dia Em 80 Mundos - Tomo II. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2008.
19
Vou buscando o reflexo do eu-Ofélia, borrando minha própria face, deitando um véu
sobre a obviedade de meus traços para, por ventura, vê-la insurgir entre meus lapsos.
Figura 2. Autorretrato, Salvador. Raiça Bomfim, 2011.
Em 2012, encontro Vânia Medeiros, artista visual e parceira na produção de
livros. 6
Conto-lhe que vi uma dupla de baleias desde a praia do Buracão (Salvador,
Bahia), justamente quando pensava sobre a comunicação vibracional das baleias, capaz
de atravessar oceanos. Vânia traz a frase de Manuel de Barros, “o chão reproduz o mar”,
e começamos o “Boca Baleia”, que depois vira “Caderno Baleia”, e tem como proposta
unir palavra e imagem para colher insurgências pela cidade. Ofélia torna-se presente ao
desafogar-se numa boca de lobo que reflui ou num pouco de capim que perfura os
cantos da calçada, desfazendo os planos de contenção.
6 Eu e Vânia publicamos três livros juntas – “10Pontes”, “O que é uma casa?” e “12Lâminas”, ela na
ilustração e diagramação, eu na escrita textual.
20
Figura 3. Colagem para o “Caderno Baleia”. Vânia Medeiros, 2012.
Nesse mesmo ano, apresento o primeiro estudo cênico inspirado em Ofélia.
Busco, com Ofélia, dançar as palavras, paisagens e pessoas que vão se perdendo e
surgindo no tempo. Penso num rio noturno e néon, assombrado por divas do blues
afogadas em bares e madrugadas. Encontro o disco do cantor e compositor Jards
Macalé, “Aprender a nadar”7, e me ponho a ouvir aquela voz nasalada e submersa,
aquele modo de cantar que se desenrola como uma conversa ou como um pranto
incontido e rouco, zombando de si. Subo no palco com um vestido azul royal
improvisando danças e sonoridades junto a Felipe André Florentino, pianista e
performer, além de pesquisador das relações entre música e movimento. A certa altura
da cena, decido “aprender a nadar” e coloco óculos, maiô e touca, fazendo uma
coreografia pitoresca entre um remelexo e gestos de natação. Desejo a superfície, a pele
das coisas, o modo frugal de estar junto. Divirto-me assim, deixando-me ser ridícula e
criança. Nomeio meu ser-Ofélia de “Ofélia Blue, aprendendo a nadar”. Vânia Medeiros
também está presente e projeta no palco a imagem em movimento de uma calçada de
pedras portuguesas com seus traçados ondulados, parecendo ondas.
7 MACALÉ, Jards. Aprender a nadar. Philips, 1974. LP
21
Figura 4. Fotografia de “Ofélia Blue, aprendendo a nadar – Primeiro Estudo”, Teatro Gamboa Nova,
Salvador. Priscila Fulô, 2011.
Passados poucos meses, Salvador, onde então resido, parece abrir uma bocarra
sobre mim. Sinto a força asfixiante de sua conjunção de umidade, trânsito, escombro e
miséria. Temo afogar-me no asfalto e entendo que é hora de chafurdar o corpo na rua,
extravasar a cena pelos trânsitos urbanos. Participando do movimento artístico
“Empuxo: zona de encontro de artes cênicas”, decido sair caminhando, de vestido azul e
flores, pelo Largo Dois de Julho (região central e histórica da cidade de Salvador). Meu
propósito é olhar para as pessoas longamente, reinventando as normas da intimidade,
cultivando, no lugar da indiferença, diálogos em línguas imaginadas.
22
Figura 5. Fotografia da experimentação cênica em “Empuxo: zona de encontro de artes cênicas”, Largo
Dois de Julho, Salvador. Fábio Tavares, 2012.
Em 2013, morando em São Paulo, retorno a Salvador para participar de uma
residência artística8, conduzida pelo filósofo da educação Jorge Larrosa. Ele propõe a
leitura de uma carta fictícia escrita por Hugo von Hofmannsthal, no início do século
XX, na qual um Lord do século XVII discorre sobre seu angustiante processo de
estranhamento da própria língua, uma espécie de afasia que se desenvolve não por uma
lesão cerebral, mas por uma moléstia que ataca o espírito9. A residência desperta novos
sentidos para a experimentação com Ofélia, assim como desperta a sensação frequente
de que as palavras que arremeto vão se diluindo até virarem água, poeira, coisa
nenhuma, já não é mais abjeta e necessária de superação. Passo a encarar esse processo
como um modo perfeitamente possível e particular de expressão: o de deixar que as
palavras jorrem, estanquem, soem ou se despedacem ao ritmo daquilo que as anima ou
aniquila. No dia da apresentação de minha proposta, projeto na parede a imagem de um
8 A residência foi articulada dentro da programação do “IC 7”, festival produzido pela Dimenti
Produções, naquele ano, em Salvador, e contava com a participação de mais 13 artistas. 9 Segundo o médico, cientista e escritor brasileiro Antônio Drauzio Varella: “Os quadros de afasia
instalam-se abruptamente, como consequência de lesões no cérebro provocadas por traumas ou acidentes
vasculares cerebrais (AVC), popularmente conhecidos como derrames cerebrais. De uma hora para outra,
o afásico perde a capacidade de compreender ou formular a linguagem. Deixa de falar e de entender o que
dizem as pessoas ao redor. É como se estivesse ouvindo uma língua estrangeira, desconhecida.” Excerto
de entrevista conferida à fonoaudióloga Fernanda Papaterra Limongi, publicada em seu blog. Disponível
em: <https://drauziovarella.com.br/entrevistas-2/11410/>. Acesso em 22 out. 2017.
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peixe beta que vive num aquário na casa de meu pai. Diante da projeção, vou dançando
e cantando os fluxos que sinto atravessarem a sala.
a linguagem na qual eu seria capaz não só de escrever, mas também de
pensar, não é nem o latina, nem o inglês, nem o italiano, nem
espanhol, mas uma linguagem na qual as coisas mudas por vezes
falam para mim e na qual, e talvez só no túmulo, tenha de justificar-
me diante de um juiz desconhecido. (HOFMANNSTHAL, 2010, p.11)
Alguns meses depois, viajo a Buenos Aires para encontrar o diretor teatral e
parceiro de criações Daniel Guerra. Convido-o para levar a câmera em nosso passeio
pela cidade, pois pretendo dançar Ofélia em alguma parte daquele trajeto. Enquanto
atravessamos um parque, reencontro a afogada numa poça d’água e aquele reflexo
borrado, com seus atavismos de água - estas que rondam tantos tempos do mundo, em
seu eterno paradoxo de limpidez e turvação -, destila em mim um movimento a que
ofereço corpo e passagem. Guerra, que está começando a experimentar a criação em
vídeo, liga a câmera e filmamos o “Celacanto Ofélia”.10
Em seguida, contagiada pelas experimentações fotográficas do dançarino e
fotógrafo Ditto Leite, convido-o para que, junto, re-convoquemos o fantasma Ofélia.
Experimentando a nudez associada a um conjunto de tecidos azuis, discorro
movimentos pelos cômodos da casa. Nomeamos o ensaio fotográfico de “Ofélia vem”.
Figura 6. Ensaio fotográfico “Ofélia vem”, São Paulo. Ditto Leite, 2013.
10
Vídeo livremente realizado e produzido por Daniel Guerra e Raiça Bomfim, em Buenos Aires, em
2013. Disponível em: <https://vimeo.com/91011128>. Acesso em: 04 nov. 2017.
24
Ainda em 2013, ao ouvir um relato de afogamento do artista plástico mexicano
Omar Barquet, resolvo escrever um novo livro, em que Ofélia já nem aparece enquanto
nome, mas apenas enquanto ato: o de se afogar repetidamente. Começo a juntar notícias
de afogamento, trechos de livros que falam de afogados e informações técnicas sobre
procedimentos de salvamento, dentre as quais encontro descrições que são um
verdadeiro poema:
“2ª Fase de apneia – Existe um cerrar violento da boca e do nariz. (...)
Tendem a surgir sensações subjectivas como vertigens, zumbidos e
sensação de angústia. A vítima procura desesperadamente mover-se
para se manter à superfície”; “4ª Fase de convulções asfícticas –
ocorre a inundação dos pulmões. (...) Simultaneamente ocorre a perda
de consciência e a imersão total do corpo, num estado de total
relaxamento”; “5ª Fase terminal – a boca abre-se e o corpo assume
uma posição próxima da fetal. A morte surge pouco tempo depois”.11
Aproximo-me então do artista visual e performer Lucas Moreira, com o qual
desenvolvo uma parceria para o livro e, juntos, exploramos uma escrita aliada a
experimentações gráficas, sonoras e espaciais, abrindo o papel para que os gestos
deixem rastros. Delirando grafias, plasticidades, texturas, figuras, sobreposições,
apagamentos e borrões, vai sendo tramado o “Manual de Afogamento”.
11
Excertos extraídos da página eletrônica “Abcdesporto”
<http://wwwabcdesporto.blogspot.com.br/2009/07/as-fases-do-afogamento.html> Acesso em 28.07.2013
25
Figura 7. Imagem do livro “Manual de Afogamento”.
12
No começo de 2014, tramo um segundo estudo cênico em que misturo um pouco
da narrativa de Ofélia em Hamlet, a história de meu encontro com a personagem e os
rasgos de dança, canto e sonho que ressaem nos devires alimentados nesse encontro.
Faço uma primeira temporada no Teatro Gamboa Nova, em Salvador, e, a partir das
apresentações em casas da comunidade da Pavuna no Rio de Janeiro,13
entendo que sua
potência está justamente no deslocamento para o ambiente familiar, para as salas de
casas espalhadas por cidades diversas. Descubro que esta cena tem uma qualidade de
mediação, como uma conversa sobre desejos e sonhos, e sobre o que é ou pode ser o
teatro. Arrumando no cômodo mais amplo de cada casa meu pequeno par de refletores,
e tendo acompanhamento do músico André Oliveira na operação sonora, conto e deliro
uma história autoficcional e canto, e danço, e desejo encontrar novos cúmplices de
naufrágio.
12
Parceria desta autora com o artista gráfico Lucas Moreira, e que compõe o escopo de criações do “Projeto Ofélia”. 13
Através da participação no Festival Home Theatre 2014, no qual o trabalho é premiado como melhor
cena.
26
Figura 8. Fotografia da apresentação do “Segundo estudo para Ofélia Blue”, São Paulo. Ditto Leite, 2014.
Nesse trajeto, sempre que Ofélia aparece muito nítida, passível de esgotar-se
numa narrativa concisa, numa explicação pragmática, é hora de permitir que o olhar se
abandone nela, que os olhos se fechem e vagueiem no sonho. “Verá se tiver visões. Terá
visões se se educar com devaneios antes de educar-se com experiências, se as
experiências vierem depois como prova de seus devaneios” (BACHELARD, 2013, p.
18). Desse modo, terminada a primeira temporada desse segundo estudo, saímos, eu e o
fotógrafo Ditto Leite, em meio ao tráfego do Minhocão (viaduto atualmente
denominado Elevado Presidente João Goulart), em São Paulo. Quero manchar o asfalto
de azul, abrir um poço por onde os canos do silêncio estourem as buzinas. Passeio com
meus tecidos, cheios de transparência e tons de azuis, jogando músculos e panos no
vento que bafeja sobre o viaduto.
27
Figura 9. Ensaio fotográfico “Sereia do asfalto”, São Paulo. Ditto Leite, 2014.
Em 2015, desejo investir na pesquisa sobre uma “poética da loucura” e dedicar-
me mais assiduamente às experimentações vocais. Preciso tentar saltar no vazio do
tempo, na memória das baleias, no grito dos musgos rompendo das pedras. Crio um
espetáculo solo junto a Erick Saboya, na cenografia, a André Oliveira, na direção
musical, a Felipe Benevides, na preparação corporal e a Ana Antar, na iluminação.
Construo a dramaturgia desse solo em níveis de submersão: a peça começa a partir do
ponto em que Ofélia é arrastada para dentro das águas e tudo o que transcorre são
movimentos debaixo d’água. Ofélia aparece em sua solidão, acompanhada pela
presença fantasmagórica do público, junto ao qual atravessa densidades diversas. A
loucura, a sensação de morte e de perda estão presentes em cena, mas não numa ordem
causal. Nomeio o espetáculo de “OFÉLIA: sete saltos para se afogar”.
28
Figura 10. Fotografia de “OFÉLIA: sete saltos para se afogar”, Espaço Xisto Bahia, Salvador. Carol
Garcia, 2015.
Careço de voltar à rua. Ao fazê-lo, vejo a cidade, toda ela, como uma imensa
Ofélia afogando-se em si mesma. Cada deslocamento parece uma nova expressão da
fala desencontrada da afogada e cada avenida ou viela parece um dos veios pelo qual
flui o rio que a engole. Começo a criar, novamente junto com o músico parceiro André
Oliveira, a performance “Cidade Afogada”. Nela, uso dois pequenos bancos de sentar,
cada um provido de um microfone e de um fone de ouvido, e sento-me à espera de que
algum transeunte também resolva sentar-se no banco à frente para que submerjamos
juntos numa conversa-abraço, entre a balbúrdia dos carburadores. André Oliveira
captura estes sons e mescla-os com outras sonoridades pré-gravadas, reenviando para
nós, através dos fones de ouvido, aqueles estímulos.14
14
O registro audiovisual da perfomance “Cidade Afogada” está disponível em:
<https://vimeo.com/156415345>. Acesso em 04 nov. 2017.
29
Figura 11. Fotografia de “Cidade Afogada”, Cajazeiras, Salvador. Aldren Lincoln, 2016.
15
Quando as palavras do “Manual de Afogamento” vão se proliferando em poemas
e prosas, passam a despertar-me vozes e sons diversos. Volto a ser a cantora afogada,
uma cantora que canta a própria fala enquanto cede aos abismos que co-habitam em sua
casa. Eu e André Oliveira tramamos então uma nova performance intitulada “Dobra”,
explorando diferentes relações entre palavra, sonoridade e corpo, partindo da leitura dos
textos do livro.16
15
Projeto “Silêncio embaixo d’água”, realização e produção da “Gameleira Artes Integradas”. Território
de articulações artísticas coordenado por esta autora e por Olga Lamas – realizado em janeiro de 2016,
através de edital de patrocínio da Fundação Gregório de Matos - Prefeitura de Salvador 16
O registro audiovisual da perfomance “Dobra” está disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=1Crb3reGOdU>. Acesso em 04 nov. 2017.
30
Figura 12. Fotografia de “Dobra”, realizada no projeto Dominicaos, Salvador. Victor Gargiulo, 2016.
Durante minha gravidez, parto e puerpério, em 2015-2016, começo a criação do
espetáculo “Loucas do Riacho”, como espaço para desaguar e transfigurar todo esse
percurso de criações do “Projeto Ofélia” e relacionar mais expressivamente o que
vislumbro como uma “poética da dissolução”. Compreendo que é hora de Ofélia pairar
sem nome, como uma força cuja linguagem transborda em loucura e cuja matéria se
dilui nas águas. Convido as atrizes/performers Camilla Sarno, Felipe Benevides, Laís
Machado17
, Liz Novais, Mônica Santana, Olga Lamas e Uerla Cardoso para construírem
o trabalho comigo e a equipe de criação que vai sendo composta, passa a contar com
Fábio Pinheiro, na cenografia e figurinos; Márcio Nonato, na iluminação; André
Oliveira, na sonoplastia; Mariana David, na fotografia; Lucas Moreira nas composições
gráficas; e Daniel Guerra nas filmagens.18
Em cena, somos sete corpos nus, com os
rostos cobertos por uma cabeça de sargaços, que habitam a Casa de Castro Alves,
espaço cultural no Centro Histórico de Salvador, enquanto o público se espalha por
entre nós. Começando ao entardecer e tendo uma duração variável, entre uma hora e
meia e três horas, o que fazemos é animar as possibilidades de escuta e a
experimentação de uma nova relação com o tempo.
17
Laís terá que se afastar durante o processo criativo, bem no momento em que Camilla, que meses antes
também havia tido que se afastar, retorna. 18
O registro audiovisual do espetáculo “Loucas do Riacho”, que estava disponível no plataforma
Youtube, foi bloqueado por algum motivo. Uma vez resolvido o problema, ele poderá voltar a ser
acessado em <https://www.youtube.com/watch?v=BYdL07aShyg&feature=youtu.be>. Acesso em 04
nov. 2017.
31
Figura 13. Fotografia de “Loucas do Riacho”. Na foto, a atriz/performer Mônica Santana, Casa de Castro
Alves, Salvador. Mariana David, 2017.
Em 2017, durante o processo criativo do espetáculo “Loucas do Riacho”,
imagino um coro de mulheres andando pelas ruas da cidade, derramando movimentos e
águas para lavar a memória que impregna os asfaltos e revigorar a que neles soçobra.
Convido a produtora e atriz Olga Lamas para propormos uma ação juntas e surge o que
intitulamos de oficina-ação “Lavagem”, anunciada como sendo um processo sensível-
político, que trabalha a transfiguração das violências diversas sofridas por mulheres.19
Na metodologia da oficina, unimos a minha pesquisa sobre Ofélia e sobre uma “poética
da dissolução” e a pesquisa de Lamas sobre o silêncio, admitindo a ideia do silêncio
como ato de dissolver o discurso instituído e alavancar o movimento em fluxo. A
oficina culmina numa procissão-performance, com uma pequena multidão de mulheres
dançando-movendo desejos e fantasmas pelas ruas do Rio Vermelho (Salvador, Bahia),
no dia dois de fevereiro, Dia de Yemanjá.20
19
A participação na oficina-ação “Lavagem” aconteceu mediante inscrição gratuita, através de
convocatória destinada a 40 participantes maiores de 18 anos, com ou sem experiência artística. Como a
procura foi alta, terminamos por selecionar 55 mulheres para participarem. A oficina dura seis dias e
culmina com a performance coletiva no “dois de fevereiro”. 20
O registro audiovisual da perfomance “Lavagem” está disponível em: <https://vimeo.com/203467590>.
Acesso em 04 nov. 2017.
32
Figura 14. Fotografia de “Lavagem”, Rio Vermelho, Salvador. Mariana David, 2017.
33
III. DOIS ENLACES: DISSOLVER O ATO, DISSOLVER O
PLANO
Figura 15. Colagem para o programa de “Loucas do Riacho”. Lucas Moreira, 2017.
Uma mulher abre a boca e mostra a língua coberta por sargaços. Veste-se de
musgos e flores, chafurda no funeral dos sentidos. Está completamente perdida e faz
disso sua melhor saída. Abraça a desorientação, a perda, o desamparo e desliza pelas
sendas do instante. Pinga suas marcas no caminho traçando um mapa úmido e volátil.
Celebra a fugacidade das fórmulas e murmura que é possível parar um pouco, subir num
salgueiro, despencar num riacho, deixar-se afundar cantando, morrer as mortes
cotidianas, despojar-se de cansaços e embaraços, renascer. Encharca os vestidos de
quem a cerca, move barbatanas no abismo, convida a saltar no vazio.
1. Cartografar um rio
34
Figura 16. Colagem integrante do processo criativo de “Loucas do Riacho”. Lucas Moreira, 2016.
As marcas desta pesquisa - sua dicção, seu jeito de corpo, seu temperamento -
nascem de fracassos consecutivos. São matérias soterradas que emergem no interior de
meus desabamentos, no movimento de afirmar a vida por entre escombros.
Ofélia é o território movediço no qual derramo questões, pulsões, proposições,
práticas, textos e desejos. Quanto mais percorro a louca afogada, mais ela respinga suas
águas em minhas propostas e borra qualquer possibilidade de apreendê-la numa
sistemática qualquer.
No pré-projeto desta dissertação, eu anuncio uma pesquisa cartográfica - que,
todavia, só aos poucos vai tomando corpo e sentido. Não há como cartografar sem antes
ser arrastado pelo vórtice gerado no derribamento de nossos territórios mais habilmente
cultivados. Inúmeras vezes, refugo e acabo persistindo num modo formatado,
conduzido, respaldado e indiferente ao fulgor da vida, ainda que celebrado nos recantos
mornos da apreciação comedida. São muitos os elementos à nossa volta que repetem
padrões contrários à experiência e aliam uma necessidade excessiva de ter uma “opinião
formada” à ilusão da informação, achatando o pensamento num processo que mecaniza
a expressão ao submeter a subjetividade à produtividade. Mas minha falta de traquejo
com a construção de edificações estáveis e bem-aceitas, invariavelmente lança-me para
as corredeiras da dúvida e da tentativa.
Descubro, em minha inabilidade para a constituição de uma estrada de estudo
exemplarmente pavimentada, o talento para manter-me à deriva, deixando-me afogar
frequentemente e sentindo meus pulmões reaprenderem a respirar sob o céu aberto.
35
Destituo o pensar moldado a protocolos habilmente repetidos, para saudar fugas,
desacertos e ruídos.
Construo este trajeto ao passo em que o percorro - atenta à movimentação viva
das várzeas - e o olhar que abro para Ofélia deixa-me mover pelos sonhos,
alumbramentos e alucinações que ela engendra. É um olhar-devir, que salta na imagem
da louca afogada e canta o que vai vendo neste espaço entre superfície e fundo.
Já de saída, libero-me, com Ofélia, de sua responsabilidade exacerbada enquanto
personagem composta numa das maiores obras clássicas da dramaturgia universal - o
“Hamlet”, de Shakespeare. As águas de Ofélia exaltam meus fluidos e transbordam-me
para novas zonas de existência e expressão. O texto de Shakespeare serve-me de
motor de ideias, imagens e sentidos, e retorno a ele sempre que preciso encontrar novos
rastros ou me reconectar com alguns princípios, sem travar uma investigação sobre o
que está encoberto pelo texto, ou o que é verdadeiro e o que é falso nas leituras que se
desenvolvem. Invoco os princípios antropofágicos, cujos ecos, já incorporados nos
preceitos de um cartógrafo, estimulam uma relação apaixonada e de transformação
constante.
Ela [a antropofagia] se caracteriza pela ausência de identificação
absoluta e estável com qualquer repertório, a abertura por incorporar
novos universos, a liberdade de hibridação, a flexibilidade de
experimentação e de improvisação para criar novos territórios e suas
respectivas cartografias. (ROLNIK, 2014, p 19)
Aceito a dissolução das intenções de enquadrar, delimitar, direcionar e não
resvalo na pretensão de que a escrita assimile mecanismos pelos quais a criação
configure métodos reproduzíveis. O que proponho, em contrapartida, é uma
deambulação por zonas instáveis, por onde soam murmúrios visionários, soterrados
pelos bons modos, pelo bom-gosto, pelo pavor de encarar as turbulências da criação e
da vida.
Enquanto me sinto incapaz de ocupar os espaços que requisitam de mim ideias
muito assertivas, teorias bem acabadas, etapas e assuntos bem compartimentados, Ofélia
se mistura à minha voz para dizer, “vamos juntas, sem nunca saber onde vamos parar”.
O “não-saber” torna-se, com ela, um modo de “ir sabendo”, aprendendo e, ao mesmo
tempo, ir desaprendendo, num espécie de saber que se constitui com modelagens
dinâmicas.
36
Não entendo. Isso é tão vasto que ultrapassa qualquer entender.
Entender é sempre limitado. Mas não entender pode não ter fronteiras.
Sinto que sou muito mais completa quando não entendo. Não
entender, do modo como falo, é um dom. Não entender, mas não
como um simples de espírito. O bom é ser inteligente e não entender.
É uma bênção estranha, como ter loucura sem ser doida.
(LISPECTOR, 1984, p 253-4)
O pressuposto de um “saber-fazer”, resultante da pretensão de um domínio das
ferramentas que autorizam cada fazer, dá lugar a um “saber da experiência”
(LARROSA, 2002), um tipo de aprendizado em que o que é dado não se apreende, mas
se opera em nosso organismo e provoca mutações: aquilo que conhecemos é agora parte
de nós e fala sobre nós. A experiência pode ser vista como o modo do mundo ser em
nós e mover-nos, o que depende de atravessamentos e que não tem necessariamente a
ver com acúmulos de informações, dados, temas e vocabulários.
Esse tipo de saber, o “saber da experiência”, ativa a atenção às movimentações
do mundo, a escuta das vozes circundantes e a disponibilidade para rever as ideias. É
um saber que acontece no mesmo espaço de vazios, riscos e dúvidas onde se dá o
encontro com o outro – material ou virtual – e onde se opera a transformação de um ser
presente em outro ser presente, formado por novos acontecimentos, poderes, faltas,
apetites, fragilidades e desvarios.
A Ofélia comportada, dócil e obediente do início da trama do clássico de
Shakespeare fustiga-me contra toda aceitação passiva e inquestionada diante de regras,
modos, conceitos, métodos e leis normatizadas em seus campos específicos. Sua
loucura, despontada após a perda do pai e o afastamento intempestivo de seu amante,
Hamlet, deflagra aqui uma voz profunda que só encontra vias de expressão a partir dos
ocos abertos pelo desamparo, pela perda e pelo apagamento de referenciais rígidos e
engessados.
A cartografia, nesse caso, acompanha e se faz ao mesmo tempo que o
desmanchamento de certos mundos – sua perda de sentido –e a
formação de outros: mundos que se criam para expressar afetos
contemporâneos, em relação aos quais os universos vigentes
tornaram-se obsoletos. (ROLNIK, 2014, p 23)
Ao propor-me despir das normatizações, duvido da maioria das validações
possíveis, vivendo amplamente o desafio de não me conformar a uma escrita pré-
37
formatada, rígida, conservadora, nem admitir soçobrar no clichê e na mesmice tantas
vezes acobertados sob a aba do contemporâneo. O que as emanações da
contemporaneidade nas artes me oferecem de mais precioso é, ao contrário, a
cumplicidade no cultivo de olhares e parâmetros fluidos, que se reinventam a cada novo
movimento experimentado no processo de criação. O valor da obra não é dado por seu
alinhamento a arranjos mais ou menos “em voga”, mas pelos efeitos que produz nos
corpos movidos em seu fluxo. O que exige um rigor renovado, que se constitui
enquanto compromisso com os propósitos éticos e políticos da pesquisa, que só se
efetiva através de ações assiduamente trabalhadas – de modo prático e/ou sensível -, o
que exige fôlego para questionamentos, falências e reelaborações constantes.
Conectar-se às forças caóticas da vida, que contagiam o pensamento,
exige coragem de se libertar de um modelo profissional de seu
exercício. Um modo de conhecimento escoltado por um saber formal,
capaz de articular discursos competentes e desonestos do ponto de
vista existencial. Varrem-se as incertezas, isolam-se as idéias
estranhas, inclassificáveis, evita-se qualquer sensação de desamparo.
Enxota-se a vida para o outro lado da calçada, procurando neutralizar
os percalços que significa viver. Faz-se de tudo para não desalinhar o
cotidiano. Encarna-se um tipo de subjetividade de prontidão, incapaz
de aderir ao risco que é estar vivo e pensar. (PRECIOSA, 2010, p 28)
Cartografando um rio, percorro um território inconstante, encarando o pavor, a
vertigem e a agonia. Lidando com a iminência de fracassar outra e mais uma vez,
aventuro-me em zonas volúveis entre as quais sou impedida, pelo meu próprio traçado,
de fixar ou exaurir o desejo numa análise ou tradução quaisquer. Salto no rio-Ofélia,
percorrendo sua qualidade imanente de permanecer em estado de passagem e fluxo.
Fluir e não recusar nada das paisagens que este rio toca e corta é a missão que assumo,
não sem hesitações, temores e alguns recalques acidentais, e, sim, com a decisão de
desembaraçar-me, quantas vezes for preciso, do vício do lugar seguro e estacionário.
Opto por aceitar o não-controle sobre os enredos que vão se tramando, alargando ao
máximo o campo de explosão das vicissitudes de cada matéria. Sinto o chão que escorre
por debaixo do corpo sem que os pés possam jamais paralisar.
Tomo como bússola da pesquisa a vivacidade, a potência e a vibratilidade21
do
que se apreende, se agencia, se encontra e se despeja no caminho. Experimento, pois,
21
Alusão ao conceito de corpo vibrátil, de Suely Rolnik. Segundo a autora, o corpo vibrátil é a
capacidade que “nos permite apreender o mundo em sua condição de campo de forças que nos afetam e se
fazem presentes em nosso corpo sob a forma de sensações. (...) com ela, o outro é uma presença viva feita
38
fazendo pontes imaginárias entre paradoxos, mudando diversas vezes de traçado,
deixando-me tomar pela perplexidade de esbarrar-me com vias sem saída e portas
batidas com a chave dentro. Trilho um campo de deslizamento contra-metodológico22
,
pelo qual, não sabendo onde vou chegar, esqueço de me preocupar com
direcionamentos e finalidades. A viagem é o próprio destino, é na deriva pelo fazer
criativo que se constrói uma obra viva, a qual não termina de se criar, e que, de modo
mais sutil ou mais intenso, se dissolve e se transmuta em outra obra.
Tenho que arriscar modos de efetuar paulatinamente as intensidades que me
rondam. Abro meu caderno de criação tateando intensidades: tudo que faz vibrar o
corpo e sua capacidade de pensar (-se) interessa para a criação desta cena, deste ato,
deste texto.
(...) o cartógrafo absorve matérias de qualquer procedência; não tem o
menor racismo de freqüência, linguagem ou estilo. Tudo o que der
língua para os movimentos do desejo, tudo o que servir para cunhar
matéria de expressão e criar sentido, para ele é bem-vindo. Todas as
entradas são boas, desde que as saídas sejam múltiplas. Por isso o
cartógrafo serve-se de fontes as mais variadas, incluindo fontes não só
escritas e nem só teóricas. Seus operadores conceituais podem surgir
tanto de um filme quanto de uma conversa ou de um tratado de
filosofia. (ROLNIK, 2014, p 65)
Encaro ao mesmo tempo a diversidade de inspirações e a falta de referências
modelares para materializar cada um dos impulsos criativos que me rondam. O que há é
um conjunto de referências desconjuntadas, que encaram a efemeridade do teatro e da
vida bailando incessantes nascimentos e mortes, e rascunhando ideias que se permitem
desabar antes do acabamento final. Sei que estou tomada pelo sentido de buscar e que
esta busca preserva a honestidade em assumir a falta de talento e disposição para
dominar diretrizes e procedimentos consagrados, permitindo-me guiar por pistas
vagabundas, por rumores de um corpo trêmulo que adoece, cura, retrai, expande.
(...) Havemos de gritar em coro com o náufrago
com a voz ensopada
de estrondo e ruína:
Catástrofes!
Planos por água abaixo,
de uma multiplicidade plástica de forças que pulsam em nossa textura sensível, tornando-se assim parte
de nós mesmos” (ROLNIK, 2016, p 3) 22
Termo que se conecta com as propostas de Paul Feyerabend, em seu livro “Contra o método”
(FEYERABEND, 1989).
39
notas e sabedorias tomadas
por algas, bolachas, peixes palhaços.
Com a boca encharcada de outras palavras
que nem sabemos o que significam
vertemos a língua no espaço.
Mesclamos nossa voz à das águas
fazendo soar a palavra
de onde nascem
as ilhas...
(sob as quais,
- saravá, afe maria –
a paixão não é vício;
absolvição).23
Conclamo assim as pequenas tragédias rotineiras e encontro tesouros por entre a
carcaça das navegações em que afundo. Escrevo para, ao invés de neutralizar ou
pacificar minhas marcas, assumi-las como o canal pelo qual Ofélia regurgita e reencarna
renitentemente em matérias que não cansam de se ofertar à transfiguração.
(...) a marca conserva vivo seu potencial de proliferação, como uma
espécie de ovo que pode sempre engendrar outros devires: um ovo de
linhas de tempo. E assim vamos nos criando, engendrados por pontos
de vista que não são nossos enquanto sujeitos, mas das marcas,
daquilo em nós que se produz nas incessantes conexões que vamos
fazendo. Em outras palavras, o sujeito engendra-se no devir: não é ele
quem conduz, mas sim as marcas. O que o sujeito pode, é deixar-se
estranhar pelas marcas que se fazem em seu corpo, é tentar criar
sentido que permita sua existencialização - e quanto mais consegue
fazê-lo, provavelmente maior é o grau de potência com que a vida se
afirma em sua existência. (ROLNIK, 1993, p. 242)
Repetidamente, na passagem pelos territórios aqui ponteados, estarei só e, ao
mesmo tempo, repleta de comparsas, o que é uma grande sorte. Pratico esta jornada em
bandos que se fazem e refazem, e expando minha solidão por entre cumplicidades, que
se permitem ao abandono, sem se negligenciar. Conto com interlocuções diversas nesta
pesquisa e minha voz, aqui expressa, é fruto do encontro e contaminação de muitos
timbres e sotaques. Assim, dou-lhes as mãos nesta navegação de localidades
multidimensionais. Podemos estar, a um só tempo, à beira do rio, dentro do rio, sendo o
23
Trecho do poema “Náufrago”, do livro “Manual de Afogamento”, ainda a ser publicado, parceria desta autora com o artista gráfico Lucas Moreira, e que compõe o escopo de criações do “Projeto Ofélia”.
40
rio. E é na profunda implicação em cada aspecto desse nosso estar que é tecida esta
cartografia.
2. Aceitar o vazio
Figura 17. Fotografia do processo criativo de “Loucas do Riacho”. Na foto, Felipe Benevides e eu, na
Casa de Castro Alves, Salvador. Mariana David, 2017.
Se as coisas nos reduzem simplesmente a nada,
do nada simplesmente temos que partir
(Antônio Cícero/João Bosco/Waly Salomão)24
Há um espaço em branco que precisa ser preenchido com texto e conceito; um
lugar em silêncio esperando por um gesto amplo, uma voz retumbante, uma história;
leitores e platéia atentos. Todavia, o que tenho a oferecer é nada. Nada, este
acontecimento; nada, o meu olhar; nada, os pés descalços; nada, muitas marcas; nada,
um par de sonhos; nada, este trajeto; nada, um som distante; nada, a experiência; nada.
Nada, nada, nada, repito, e me remeto ao ato contínuo: permaneço em movimento nas
águas de um rio. Estou sempre afogada e, no entanto, tempos descontínuos cohabitam
em mim: não paro de cantar, ainda louca e acordada, deslizando pela flor da superfície.
Ao perceber o tamanho das expectativas que este encontro gera – com o texto
dissertativo ou com o teatro - ameaço uma terrível contrição. Talvez eu devesse ter
preparado alguma certeza que me colocasse a salvo desta flutuação perigosa diante dos
olhares e desejos alheios. “Alheios ou meus?”, surge a dúvida.
24
BOSCO, João. Zona de Fronteira. Sony BMG Music Entertainment, 1991. CD
41
Respiro. Relembro as falas de um mestre de butô com quem fiz uma breve
oficina25
cujos ecos permanecem vibrantes. É preciso dançar o corpo que se é e se este
corpo está perdido, está cansado ou está doente, essas condições fazem parte de sua
dança.
Respiro mais um pouco. Deixo meu peso achar lugar sobre a cadeira, sobre o
chão, sobre as pedras, pela areia, entre papéis e teclas de computador. Vazio e nada se
averbam26
, viram um ato - esvaziar, nadar – gerando um contrafluxo dos acúmulos de
toda ordem.
Quebradas as expectativas usuais da encenação e da dissertação, e esfumaçadas
a altivez e o controle do intelectual e do artista, podemos desistir de esconder nosso
desamparo e, juntos, permanecer um pouco aqui. Abrir um espaço para que o tempo
goteje em nós.
3. Verter-se em palavras
Figura 18. Imagem do livro “Manual de Afogamento”
27
25
Oficina de Butoh Ma, com o mestre Tadashi Endo, realizada em 2011, pelo Festival Vivadança, em
Salvador. 26
Ideia inspirada na fala de Gilsamara Moura, durante a etapa de qualificação desta pesquisa. Gilsamara
disse algo como, “você verbou o nada”. 27
Parceria desta autora com o artista gráfico Lucas Moreira, e que compõe o escopo de criações do “Projeto Ofélia”.
42
Não sei dizer ao certo quando esta pesquisa começa. Em 2011, dou as primeiras
rascunhadas em textos e imagens que surgem do meu encontro com Ofélia e, só algum
tempo depois, dou início aos preâmbulos de um transbordamento da prática criativa
para uma pesquisa de mestrado. Demoro de entender como compor-me nesse espaço,
ainda que me sinta de certa forma familiarizada ao ambiente acadêmico. Costumo
escolher poucos livros que leio devagar e repetidamente, detenho-me por muito tempo
em certos trechos, esqueço as páginas abertas enquanto, estirada no chão, divago no eco
de meia dúzia de palavras que escolhi lembrar. Dou longas pausas, distraio-me, saio
andando pelas ruas para colher nas formas do dia o complemento das pequenas
epifanias que a leitura me traz, busco amigos para confabulações inúteis sobre frases
soltas, leio a teoria buscando nela o poema e vice-versa. Por isso, guardo a impressão de
que meu ritmo e minha prosódia são difíceis de harmonizar com as prerrogativas desse
lugar. Preciso de muitos saltos e grandes quedas para compreender que estes aspectos
que pareciam empecilhos são, na verdade, o farol desta embarcação fantasma28
.
Essa adesão ao invisível, eis a poesia primordial, eis a poesia que nos
permite tomar gosto por nosso destino íntimo. Ela nos dá a impressão
de juventude ou de rejuvenescimento ao nos restituir
ininterruptamente a faculdade de nos maravilharmos. A verdadeira
poesia é uma função de despertar. (BACHELARD, 2013, p. 18)
Entro no mestrado em 2015, quase ao mesmo tempo em que estreio o solo
“OFÉLIA: sete saltos para se afogar”. Engravido pouco tempo depois e tenho toda
minha rotina e planos desmontados. Embaraço os propósitos desta empreitada frente à
vivência devastadora que é ser mãe, ainda mais na cidade contemporânea, com sua
urdidura de isolamentos e pressas. Tenho pouquíssimas chances de preparar um espaço
de concentração, silêncio e tranquilidade que a leitura e escrita dissertativa parecem
exigir.
Começamos, eu, Camilla, Felipe, Laís, Liz, Mônica, Olga e Uerla29
, os encontros
de Loucas do Riacho com José, meu filho, pendurado em meu peito. Transcorro num
longo processo criativo que me alimenta e desafia. Ao chegar em cada ensaio, proponho
que primeiro deitemos no chão, para descansar da vida lá fora. “Mas o que é o lá fora”,
28
No tópico 10, “O fantasma é uma dor que se repete”, esse entendimento de Ofélia enquanto fantasma
será retomado. 29
Camilla Sarno, Felipe Benevides, Laís Machado, Liz Novais, Mônica Santana, Olga Lamas, Uerla
Cardoso. Laís sairá pouco depois do início do processo, e, em seguida, Camilla Sarno, que terá se
ausentado por um período, voltará a integrar o grupo.
43
pergunto-me, “se a vida é isto que escorre por toda parte?”. Visito a sensação de que
qualquer lugar onde não se possa parar para respirar um pouco e deitar os pesos à terra
desaloja a vida enquanto pulsão afirmativa.
Paralelamente aos ensaios, recebo indicações de leituras que não consigo
cumprir. Sinto-me cada vez menos propícia ao desenvolvimento da dissertação,
inculcando angústias e pudores. Esqueço que a pesquisa é, mais do que qualquer coisa,
o curso da criação de “Loucas do Riacho” e que é enquanto artista que construo meu
saber.
Às vésperas da estreia de “Loucas do Riacho”, perco minha primeira orientadora
pelos atrasos na entrega de capítulos e sinto novamente a vertigem de subir ao salgueiro
e abandonar-me nas correntezas do não. Era a tromba d’água que faltava para me
entregar de vez ao sabor do devir. Refaço as missões que me competem: fazer-me caber
assim, materna, consumida, experimentada, cheia das marcas de minhas criações e dos
murmúrios de suas repercussões, neste texto. E insuflar aqui a presença dos corpos que
compuseram esse processo, com seus ecos poderosos. Nada que me obrigue a renegar o
que produzo de mais sincero, presente e vivo poderá fazer sentido. Deixo-me afogar
mais uma vez enquanto canto minha ruína e dádiva.
A quem interessa o trabalho feito em detrimento de si, o trabalho que adoece,
que insistentemente nos tira as forças e apenas mortifica pelo pressuposto de que não
somos bons o suficiente e que o nosso saber vale pouco ou nada? Como modos de
trabalhar e pensar assim podem persistir até mesmo no campo das artes, onde o fluxo
criativo evoca uma afirmação imensurável da vida e das forças que a admitem? Na
inquietação destas perguntas, encontro novos comparsas, nova orientação, nova
vitalidade e novos paradigmas, e respondo com um novo sim para este corpo que sou.
Aos poucos, no enfrentamento dos estresses variados e colapsantes, consigo entrever
uma grande saúde30
. Deixo que a teoria ressume de cada experiência, das mais criativas
às mais banais.
Escrevo as filosofias que fustigam meus dedos e atrevo-me a dançar e resfolegar
por estas páginas. Paro, levanto, percorro o corredor da casa, giro, vou à varanda,
30
“Eu espero ainda que um médico filosófico, no sentido excepcional do termo - alguém que persiga o
problema da saúde geral de um povo, uma época, de uma raça, da humanidade -, tenha futuramente a
coragem de levar ao cúmulo a minha suspeita e de arriscar a seguinte afirmação: em todo o filosofar, até o
momento, a questão não foi absolutamente a “verdade”, mas algo diferente, como saúde, futuro, poder,
crescimento, vida”. (NIETZSCHE, 2004, p.10-12)
44
fantasio os movimentos de um novo espetáculo, sento, escrevo mais, coloco o bebê no
colo, paro antes que ele destrua as teclas, vou brincar com ele, esquentar a comida,
arrumar a casa, enquanto desvio os olhos do relógio, das contas e tento inventar rituais
de transfiguração de prazos. É assim, reconhecendo a riqueza volumosa e os saberes
engendrados na prática da vida, que inclui e ultrapassa as salas de ensaio, que o devir-
Ofélia-cartógrafa vai desabando sobre o texto e esboçando uma escrita-corpo.
Para azucrinar o ego e seu pegajoso cortejo de arrogâncias. Para
desaprender a reprovar a vida, essa nossa insistente mania de
desqualificá-la. Para se desvencilhar da idéia de que a vida nos reserva
um propósito, e cabe a cada um de nós desvendá-la. Para aprender a
rugir para o que é pesado e instituído. Para desatolar a subjetividade
das formas acabadas. Para ser pega em “flagrante delito de fabular”.
(PRECIOSA, 2010, p 21)
Quebra-se aqui a hierarquia entre pensar e sentir, buscando exaustivamente
alternativas de “como passar do sensível ao pensado e do pensado ao sensível sem que
haja domínio de um sobre o outro?” (NOVAES, 1988, p 13). Alinho-me, desta maneira,
com uma epistemologia do corpo31
, que tensiona as epistemes mais conservadoras,
pelas quais o pensamento e o saber teórico separam-se, sobrepõem e antecipam à
experimentação prática e que rejeitam sistematicamente as obscuridades, vulgaridades e
todo tipo de dejeto que o corpo físico produz e que a vida, em seu cotidiano ordinário,
abarca. Admito, por fim, que “O que em mim sente está pensando” (PESSOA apud
NOVAES, 1988, p 13).
Escrever é um fluxo entre outros, sem nenhum privilégio em relação
aos demais, e que entra em relações de corrente, contracorrente, de
redemoinhos com outros fluxos, fluxos de merda, de esperma, de fala,
de ação, de erotismo, de dinheiro, de política, etc. (DELEUZE, 1992,
p 17)
Cultivo gretas no texto, por onde ele se misture às coisas de que fala, que roce as
bordas do campo da pesquisa científica, misturando-se à arte de que brota, de modo a
reunir forma e conteúdo. Ocorre-me que esta dissertação seja, na verdade, um ato de
manifestar: de tecer um manifesto, declarando os princípios e intenções de uma arte do
sim; ou fazer uma manifestação que articula políticas em prol de criações que inspirem
31
Ecos de uma conversa com o amigo, performer e professor Saulo Moreira, reverberando suas leituras
de Espinoza.
45
a vida, acolhendo seu veemente cortejo de mortes e desastres; ou ser o cavalo pelo qual
manifestam-se as forças que me rondam. Manifesto-me aqui, numa busca sincera e
obstinada pela encarnação de forças vivas, no percurso complementar ao dos rituais de
incorporação. Aqui é o corpo que ateia seus espíritos nas palavras, uma palavra-babá-
xamã-anarquista-baderneira.
Nessa busca, encontro muitas vozes consonantes. Há uma variedade enorme de
artistas pesquisadores fazendo de seu descompasso com o modos operandi da academia
o motor para a expansão dos limites da pesquisa em artes.
Tem ocorrido um impulso radical para não somente colocar a prática
no âmbito do processo de pesquisa, mas para guiar a pesquisa através
da prática. Originalmente propostas por artistas/pesquisadores e
pesquisadores na comunidade criativa, essas novas estratégias são
conhecidas como prática criativa como pesquisa, perfomance como
pesquisa, pesquisa através da prática, pesquisa de estúdio, prática
como pesquisa ou pesquisa guiada-pela-prática. (HASEMAN, 2015, p
43)
Escuto as palavras que brotam de minha pele, em minha potência de auto-
ficcionalizar-se e produzir memória, linguagem e coletividade. A partir daí, é que vou
alinhavando frases e parágrafos, entre tensões, magnetismos, dispersões, insurgências e
dissoluções repetidas. Jorro neste texto aquilo que colhi nos redemunhos.
Estou-sendo enquanto me esparramo pelo vir-a-ser destas páginas. Dou
passagem à subjetividade, produzo-me, transvaso no corpo do texto. Enfrento embates,
engasgos, boicotes e, a cada vez, digo um novo sim.
Um corpo, uma engrenagem de sensações que intrigam textos o tempo
todo. E esses textos que vão sendo produzidos são muito ruidosos,
exatamente porque operam vozes que discordam entre si.
(PRECIOSA, 2010, p 25)
No lugar reservado para uma hipótese, trago um inquietante encantamento por
Ofélia e pelas revelações criativas operadas através dela. E vou me guiando pelos ecos
de suas materializações na prática de criação.
(...) muitos pesquisadores guiados-pela-prática não iniciam o projeto
de pesquisa com a consciência de “um problema”. Na verdade, eles
podem ser levados por aquilo que é melhor descrito como “um
entusiasmo da prática”: algo que é emocionante, algo que pode ser
46
desregrado, ou, de fato, algo que somente pode tornar-se possível
conforme novas tecnologias ou redes permitam (mas das quais eles
não podem estar certos). Pesquisadores guiados-pela-prática
constroem pontos de partida empíricos a partir dos quais a prática
segue. Eles tendem a “mergulhar”, começar a praticar para ver o que
emerge. (HASEMAN, 2015, p 44)
Adauto Novaes diz, no capítulo de abertura de seu livro intitulado “O olhar”, que
“apenas uma visão despojada dos sentidos e do corpo pode levar à evidência, à essência,
à certeza.”32
Escrever com os olhos abertos em Ofélia e nos corpos movidos por sua
imagem é deixar que o corpo criativo, o corpo vívido e errático da cena jorre na palavra
escrita. Que o fluxo poético se infiltre na teoria e escorra por estas linhas. É permitir-se
transcorrer pela efemeridade das descobertas, por entre o leito das perguntas. É festejar
o movimento enquanto estratégia de sobrevivência, reivindicando exaustivamente a
vida. É não se deixar coisificar, tampouco embotar. É não sucumbir à linguagem e fazer
o contrário: animá-la de múltiplas possibilidades, erotizá-la. Recebo assim os sussurros
de Ofélia neste corpo e neste corpus de criação e pesquisa.
4. Sujeito estilhaçado
Figura 19. Colagem integrante do processo criativo de “Loucas do Riacho”. Na foto usada na imagem, eu
com meu filho, José. Lucas Moreira, 2016.
32
NOVAES. Adauto. O OLHAR. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. Pág 11
47
“Eu, Antonin Artaud, sou meu filho,
meu pai,
minha mãe
e eu mesmo”
(ARTAUD)
Eu, pronome pessoal assumido aqui, traz rasgos de minha dicção, meus trejeitos,
meus valores e minhas vivências, mas também extravasa os contornos que me
restringem como um alguém específico, peculiar, definido. Determino o sujeito destas
orações, anunciando minha presença para saltar no vazio da página, na corredeira do
tempo, na pluralidade de vozes, identidades e acontecimentos que roçam em minha
língua. Este eu, aqui expresso, conclama seus atravessamentos e vai diluindo meu ser-
em-mim para alçar devires, deixando-me espalhada, dissolvida nas páginas nas quais
me propago para traduzir as intensidades com que me produzo.
Para um performer, “organismo”, “sentido” e “sujeito” são atos – nem
algo, nem dados, nem plenos, nem prontos, nem repetíveis, mas atos,
atos performativos – e, como tal, configurações momentâneas de
aderências-resistências, modos relacionais em devir. (FABIÃO, 2013,
p 6)
Ao assumir-me enquanto sujeito dessas orações, estou, na verdade, dispondo-me
como espaço mutável de possibilidades, de produção de subjetividades, enquanto
refúgio de expressões coletivas alojadas na intimidade de cada ser. Sou-me ao mesmo
tempo em que observo a mim mesma com um olhar de riso, desprendido de mim.
Substituo o ato de vestir uma máscara pelo de desvestir o próprio rosto, encavando-o,
reivindicando apaixonadamente a “multiplicidade pura e sem medida, a malta, irrupção
do efêmero e potência da metamorfose” (DELEUZE e GUATTARI, 1997, p. 8).
Esta pesquisa dissipa qualquer tentativa de encontrar-me enquanto sujeito pré-
acabado em cujo cerne instaura-se uma verdade essencial. No lugar disto, entrego-me à
existência fluida, ao ser na turba desenfreada que se agita no espaço transpessoal de
onde estas palavras pululam. Desejo descentrar-me de tal modo que seja possível
habitar em outros estados de ser e pensar.
Um sujeito é um receptáculo de formas, urna de devires, fabulador
incansável de estados, rastreador de possíveis. Força viva que deseja
produzir-se como forma que dê passagem à articulação de
pensamentos furiosos, palavras insubordinadas, sintaxes tumultuosas,
que espantem por um momento a obrigatoriedade de um eu-nome,
48
esse contrato formalizado no cotidiano, que, de repente, se plasma e
acomoda um eu blindado, que blefa, promete uma infinita trégua à
essa mediação sempre tensa entre um nome, uma forma, um mundo.
(PRECIOSA, 2010, p 57)
O “to be or not to be” expressa-se enquanto política de ser-estar no corpo-eu-
Ofélia. Há um gesto, uma palavra, um ruído, uma circunstância em que estou e que me
excede em devir. Encontro espaços de passagem por entre as frestas dos tantos papéis
articulados neste percurso. Enlouqueço, me afogo e no ímpeto desbaratado de sair de
mim para me ver refletida em outrem, alastro a necessidade fulminante de traduzir uma
intimidade que irrompe no espaço. Apresento-me ao avesso, deixando que meus
escombros mais íntimos se materializem em pequenos sinais, gestos, texturas,
movimentos, sons que são eu e, ao mesmo tempo, me desmontam.
Reencontro minha criança, ao oferecer-me à reinvenção, renascendo-a a cada
gesto e parágrafo. Este eu, remoçado e em tentativa de despojamento de velhos
rancores, derrama-se por onde passa, sempre inacabado, partido em pedaços,
despedaçando-se, redescobrindo uma consistência nos espaços interrelacionais, nos
vincos, nas ondas vibracionais. É um sujeito em brotação.
Brotar pelo meio é opor-se a um destino que progride em direção a
algo, é acariciar riscos, acumular êxitos e retumbantes fracassos, é se
infiltrar por alguma vizinhança, fazendo conexões, é povoar o
cotidiano de incertezas, é recolher-se numa tenda de silêncios, num
gesto de delicadeza diante do que está a se formar e maturar diante de
si. (PRECIOSA, 2010, p 42)
A noção de autoria que se apresenta aqui é a que se compõe por meio de
articulações e agenciamentos de teorias, vozes e delírios. Enquanto escrevo, sinto-me,
com frequência, ser movida pelos corpos de “Loucas do Riacho” e/ou dos parceiros de
meu antigo grupo, o Alvenaria de Teatro. O que digo compõe-se como sambaqui,
juntando excessos sedimentados em misturas com conchas, algas, pequenos peixes
mortos. O “eu” é arrastado pela vazão incontrolável da vida e deságua num trans-eu,
que são outras e outros.
“ (...) Ao escrever (...)
o ego some, esfuma,
E o nume Ninguém Nenhures é quem assume a autoria.”
(Waly Salomão, apud PRECIOSA, p 31)
49
Visto escafandros e mergulho numa excursão para percorrer os cômodos
secretos de navios encalhados. A cada braçada, um espanto: quanto mais fundo adentro,
mais fora de mim me alcanço. Ao perceber que os cacos que colho nas epidermes
exteriores compõem meus sentimentos mais íntimos, reconheço que minha perspectiva
é substrato das dimensões que em mim se hospedam. As singularidades que integram
meu arranjo se fazem e refazem nos trânsitos com aquilo em que me perco e me
recordam que “no combate entre você e o mundo, prefira o mundo”33
.
Vibro com cada descoberta, agitando-me para espalhar seus sinais. Tento
ferozmente manter-me na fissura por onde as verdades rebentam como jatos d’água que
encharcam e se desfazem em seguida.
Este sujeito em ruínas, em nossos dias é incapaz de deter
conhecimentos enciclopédicos, de determinar-se conforme uma só
realidade. Stratos sincroniza-se com este sujeito múltiplo que encontra
sempre novas diferenças a serem erotizadas. Momento do devir em
que são consideradas as experiências do “entre” – entre sons e
pessoas, entre acontecimentos que não contem causas e efeitos claros.
O sujeito des-subjetivado desponta como um agente paciente de
sincronicidades. (HAOULI, 2002, p 60)
Boa parte desta pesquisa foi composta por solos – os estudos cênicos, as
performances, e o espetáculo “Ofélia: sete saltos para se afogar”. Em cada etapa e ação,
contei com muitos parceiros e interlocuções, mas foi em “Loucas do Riacho” e
“Lavagem”, com a presença de outros corpos em performance, que algumas das
perspectivas mais preciosas desta pesquisa encontraram espaço de irrupção. Em
“Loucas do Riacho”, cada performer aparece com uma cabeça de sargaços que, sem os
pudores e traços que a exposição da rostidade impinge, abre sua nudez para que as
superfícies se rocem, permitindo estar-se e, ao mesmo tempo, desfazer-se. Somos ali
corpos multiplicados e multiplicando outras presenças num espaço de existências nuas e
sem rosto. E neste devir-Ofélia, efetivado por um coletivo de corpos e na tensão de seus
estados, na flexão de seus caminhos, na produção intermitente de conexões e diferenças,
sinto emergirem as qualidades de coro, ranhura, hiato e ruído de minhas vozes.
É preciso o esforço da torção para chegar a desconjuntar o sujeito que
se é, que se acostumou a ser. E poder aparecer diante de si mesmo
33
Aforismo de Franz Kafka, usado em citação do texto “Notas sobre a experiência e a experiência do
saber” (LARROSA, 2010, p. 20)
50
estranho, áspero, alquebrado, ambulante, um balaio de muitos.
(PRECIOSA, 2010, p 55)
5. Tempo, tempo, tempo, tempo, entro num acordo contigo34
Figura 20. Fotografia do processo criativo de “Loucas do Riacho”. Na foto, Felipe Benevides, na Casa de
Castro Alves. Mariana David, 2017.
Olho à minha volta e tudo corre depressa, mas, nas pernas e nas almas, a
musculatura é flácida, consequência de uma corrida desbaratada pela qual as energias
não circulam, mas estagnam. Sinto uma opressão no peito: algo em mim parece estar
sendo comprimido, suprimido, sufocado. Compreendo, depois de muita angústia, que
isto tudo pode não ser nada: um nada que precisa de espaço; um nada que preciso ser.
Decido fazer um pouco de yoga ou, talvez, sentar-me para um exercício de
meditação. Essas práticas me ajudam, mas a emergência do que me afeta ultrapassa
estas ações. O que clama por existir é estético e cruel, evoca um tempo em que o
próprio tempo se reinventa, onde histórias são redimensionadas, paisagens são
reconstituídas, um tempo em que corpos eclodem e não apaziguam. Alastram-se
centelhas furiosas por dimensões múltiplas, asseverando o ato lancinante de expressão.
Este é, muitas vezes, um tempo que explode, cujo silêncio trinca os vidros: é um tempo
do teatro.
Imagino criar como quem medita à beira de um riacho. Criar e desentulhar o
corpo, o pensamento, a rotina, a memória, o desejo. Criar e devolver o corpo ao nada,
34
Trecho da canção “Oração ao tempo”, de Caetano Veloso.
51
desestressar-me do hábito de cumprir demandas, resolver as coisas; despreencher. Mas
há muitos compromissos a honrar, não posso abandonar tudo de modo inconsequente.
Então negocio uma consessão possível: o compromisso de infiltrar devaneios, silêncios,
deslizes e vãos nos afazeres. E abrir um buraco no concreto armado exige um trabalho
de grande dedicação, ânimo e vigília.
Passo, então, a trabalhar a criação em deriva, pesquisar os descaminhos. Burlo o
bom juízo que pede que eu seja produtiva, produzindo restos, intervalos, pequenas
mortes; onde pedem que eu seja prática, pratico o sonho sobre um chão de madeira ou
num terreiro, ou pelas calçadas; reuno, como se fossem conchas, dúvidas, sonhos,
intuições, angústias.
Entoo uma oração às águas: que elas restituam às relações comuns sua porção
mágica. Pesco palavras, sons e movimentos no vão do pensamento. Respiro, sempre e
de novo, deito, ou sento, ou deixo-me estar como estiver. Solto-me na imensidão do
agora-em-mim, sou cada peixe que morde meu anzol.
Nesse teatro, o que se percute é o caos em que mergulho e onde nos
encontramos. Nas lacunas que a cena cria ou revela, há uma voz que diz que é possível
parar um pouco, subir num salgueiro, cair num rio, deixar-se afundar cantando,
celebrando a morte cotidiana. Desejo encharcar os vestidos de quem me cerca, convidar
à submersão. Tudo (não) faz sentido, esteja aqui comigo.
6. Como um objeto não identificado35
35
Trecho da canção “Não identificado”, de Caetano Veloso.
52
Figura 21. Fotografia do processo criativo de “Loucas do Riacho”. Na foto, Liz Novais, na Casa de Castro
Alves. Mariana David, 2017.
Não é à primeira vista que meus olhos conseguem olhar para Ofélia. Em
detrimento de sua loucura, canto e suicídio, a roupagem de princesa casta e obediente,
vitimada por um destino trágico - combinação que figura na trama de tantas obras -,
termina por me repelir. Mas eis que um belo dia, numa conjuntura impensada de
afinações, seus olhos tresloucados e submersos se abrem em mim como um poço em
que eu nunca termino de cair. “Nenhuns olhos têm fundo. A vida também não”36
.
A água, agrupando as imagens, dissolvendo as substâncias, ajuda a
imaginação em sua tarefa de desobjetivação, em sua tarefa de
assimilação. Proporciona também um tipo de sintaxe, uma ligação
contínua das imagens, um suave movimento das imagens que libera o
devaneio preso aos objetos. (BACHELARD, 2013, p. 13)
Eu e Ofélia encontramo-nos nas circunstâncias onde as dessemelhanças se
roçam, nos territórios de hiatos e efemeridades, onde “a expressividade de um não-
objeto é a que jamais remete a um elenco de sobredeterminações instituídas. Ela
apresenta-se como um êxtase dinâmico e fugaz”. (HAOULI, 2002, p 58). Misturadas,
despencamos nas águas profundas e terríveis da criação.
Mantenho-me na fissura entre aproximação e distanciamento, numa zona que é
superfície, mas não se restringe à margem; assumo a tensão entre ser e não ser Ofélia.
Encaro-a através dos ensinamentos de Zaratustra e me proponho a “transformar todo 36
Trecho do conto “Nenhum, nenhuma” (ROSA, Guimarães. Primeiras Histórias. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1988)
53
‘Foi assim’ em ‘Assim eu quis’”37
, acolhendo as forças volitivas que ali pululam e cujos
devires acordam o ser para a potência criativa.
Vou tendo de acolher a existência fugidia deste desobjeto, juntando, com o
máximo de delicadeza e cuidado, os vestígios que sua passagem motiva. Ofélia, a que
enlouquece, a que se afoga, aquela que se dilui nas águas do rio, exige que meu olhar
seja também fluido, túrbido e atormentado. A primeira coisa que Ofélia me diz,
enquanto a olho, é “feche os olhos e desperte em mim”.
O reflexo pisca o olho - Narciso inveterado –
e a gente morde a isca (que é o rabo da sereia).
Mira nos próprios olhos, se demora,
e esses olhos que nos olham desde onde nos preveem?
Olha fundo e a imagem borra,
surge um rasgo, uma fresta, d’onde escamam sombras,
monstros, imanências intrusivas.
Tudo embaça.
Lá fora, abre-se uma boca, jorra a mágoa,
esgarça os leitos, desmorona o pau da encosta
- “não é nada”, alguém murmura, “são torrentes de verão”.
A gente teme; quer parar, ficar calminho,
achar o sono;
é tarde.
Formaram-se cascatas, corredeiras,
toda pedra é lisa, todo galho é fraco, não há botes.
Mãos congelam, boca treme, reclamamos por socorro;
sai uma bolha, uma falha, os vizinhos não podem ouvir,
muito menos nosso amor.
Alguém tenta, foge, finge; não há porto, nem plateia.
Tudo é denso, tudo escuro e há um som que sai de tudo,
como um gruguejar de almas,
um estalar de algas, dilatar de perdas, um cessar de...
Até que um peixe acende. 38
O olhar para Ofélia traz qualidades de um olhar de Narciso, mas não é a auto-
adoração desmesurada e a impossibilidade de apreciar qualquer coisa além de si mesmo
que se revela nesse espelho de águas ofélicas. Esta é, inclusive, uma crítica ainda hoje
direcionada aos pesquisadores de sua própria obra, acusando essa opção de pesquisa de
uma postura narcísica e umbilical, fadada à superficialidade e inutilidade, sendo mero
fruto de egocentrismo. Contudo, há qualidades desse olhar de Narciso que ampliam a
ambivalência do ver, no momento em que, quanto mais fitamos o mundo em sua
37
Trecho do livro “Assim falou Zaratustra”, de Friedrich Nietzsche (NIETZSCHE, 1981, p. 151). 38
Poema “Tromba d’água”, do livro “Manual de Afogamento”, ainda a ser publicado, parceria desta autora com o artista gráfico Lucas Moreira, e que compõe o escopo de criações do “Projeto Ofélia”.
54
exterioridade inexorável, mais podemos perceber-nos intimamente e vice-versa. Esta é
uma potencialidade inversa à de ensimesmamento, pois traduz um olhar para si a partir
dos reflexos no outro e nas estruturas formadas coletivamente. Podemos, através desse
olhar, dimensionar na vivência subjetiva um conjunto de referências, influências e
forças operantes nas esferas sociopolíticas, efetivando assim a diferença numa
micropolítica da diversidade. Notar como a engenharia socioeconômica, as negociações
entre subjetividades diversas, os movimentos da natureza etc. refletem e são refletidos
no próprio corpo e no espaço de interação criativa permite experienciar novos saberes e
possibilidades de agenciamento dos fluxos, refluxos e interseções entre desejo e
expressão, entre prática e reflexão, entre aprendizado e produção.
Mas Narciso, na fonte, não está entregue somente à contemplação de
si mesmo. Sua própria imagem é o centro de um mundo. Com
Narciso, para Narciso, é toda a floresta que se mira, todo o céu que
vem tomar consciência de sua grandiosa imagem. Em seu livro
Narcisse, que por si só mereceria um longo estudo, Joachim Gasquet
oferece numa fórmula admiravelmente densa toda uma metafísica da
imaginação (p. 45): “O mundo é um imenso Narciso ocupado no ato
de se pensar.” Onde ele se pensaria melhor que em suas imagens?
(BACHELARD, 2013, p. 27)
7. Permitir o rio
Figura 22. Colagem integrante do processo criativo de “Loucas do Riacho”. Olga Lamas, 2016.
55
Um rio transborda nos desvios do piso, nas fugas do olhar, na vertigem de
existir. Ele brota por onde a certeza de que uma coisa vem depois da outra é traída, onde
a limitação mortificante é dissolvida, no movimento incalculado, nos cantos não-
visitados, nas rotas inconsequentes, nos rostos estrangeiros, naquilo que desorienta e
devolve a capacidade de espanto à experiência de viver.
Em cada fenda aberta, por onde o sonho se manifesta na vida, o rio volta a
correr, num devir-águas que se desinibe. Assim, num fim de tarde que é também fim de
verão, sete corpos desnudos brincam de agir como quem sonha, misturando pessoas,
paisagens e plantas, borrando o rosto próprio com sargaços, tramando encadeamentos
ilógicos, espalhando conchas pelo mármore. “É um sonho. Nada se pode esperar dele, a
não ser sua brutal desarticulação”. (PRECIOSA, 2010, p. 40).
8. Um rio chamado Ofélia
Figura 23. Fotografia do cortejo-oferenda “Lavagem”. Mariana David, 2017.
Na narrativa do afogamento de Ofélia, em Hamlet, a descrição de seu
arrastamento pelas águas do rio, como se ela fosse uma “criatura nativa desse meio,
criada pra viver nesse elemento”39
cria a linha de força de sua imaginação material40
: ela
será sempre uma mulher que se derrama por entre leitos e sob as árvores, e que é
tomada pelos fluidos que a permeiam. Essa adesão completa às águas vai assentar em 39
SHAKESPEARE, Willliam (1599-1601). Hamlet. Trad. Millôr Fernandes. Porto Alegre: L&PM, 2011.
2º edição. Pág 117. 40
BACHELARD, 2013
56
Ofélia uma propulsão de signos absorventes com grande poder de animar novas criações
e incitar desdobramentos múltiplos.
Bachelard (2013), em seu livro a “A Àgua e os Sonhos” - que compõe um
conjunto de ensaios sobre a imaginação, incluindo outros volumes sobre o fogo, a terra
e o ar -, desenvolve uma teoria sobre uma poética da água. Ofélia aparece na obra
nomeando uma das características da força imaginativa da água, o “Complexo de
Ofélia”, estabelecendo conexões entre água, mulher e melancolia. Embora haja
diferenças entre a proposta cartográfica desta pesquisa e os fundamentos da teoria de
Bachelard, no sentido de que ele remete a uma estrutura essencial sobre a criação
poética, e, não obstante, ele trate da feminilidade sob uma abordagem de
essencializações, adotando um prisma já superado pelo movimento transfeminista41
, a
teoria de Bachelard espalha-se aqui através da pulsação de uma poética da
transitoriedade, da vertigem e do desmoronamento. “A água é realmente o elemento
transitório. É a metamorfose ontológica essencial entre o fogo e a terra. O ser votado à
água é um ser em vertigem. Morre a cada minuto, alguma coisa de sua substância
desmorona constantemente” (BACHELARD, 2013, p 7).
Durante muitas etapas do “Projeto Ofélia”, tomo o afogamento de Ofélia
enquanto uma metáfora fundante. Pensar no que me afoga e como essa sensação pode
ser articulada sob a imagem de Ofélia compõe grande parte dos trabalhos criativos do
projeto. Mas, ao passo que o devir Ofélia vai ganhando lastro, as vozes das águas vão
transfigurando Ofélia no rio em que ela afunda. A metaforização se esvanece, uma vez
que a criação deixa de articular significados diferentes através de um mesmo signo -
Ofélia - e passa a ser uma espécie de meditação pelas águas, uma reconciliação com a
matéria, um refestelamento na substância. “Essas imagens da matéria, nós a sonhamos
substancialmente, intimamente, afastando as formas, as formas perecíveis, as vãs
imagens, o devir das superfícies. Elas têm um peso, são um coração” (BACHELARD,
2013, p. 2).
Até o solo “Ofélia: sete saltos para se afogar”, passando pelos estudos cênicos e
pelo livro, havia uma articulação de discursos que eu agrupava sob o signo de Ofélia,
expandindo seus sentidos. Em “Loucas do Riacho” e “Lavagem”, a busca passa a ser a
de deixar que as águas murmurantes aflorem na superfície do corpo e da língua. Isso
porque o desdobramento de significados da tragédia de Ofélia, onde o foco está no
41
O transfeminismo, em linhas gerais, é uma vertente contemporânea do feminismo histórico que propõe
uma abordagem intersecional às questões de transgêneros.
57
discurso – o que se diz através de Ofélia, ainda que esse discurso seja articulado muitas
vezes de modo não verbal -, vai dando lugar a um modo pelo qual é possível dizer ou
calar, a uma qualidade de estar e criar, a uma poética. Deixar de metaforizar as águas de
Ofélia para, atraída por ela, fazer das próprias águas a poiesis do trabalho – uma poiesis
com qualidades de fluidez, inundação e apagamento -, desloca o sentido de “querer
dizer” para o de “deixar-se ouvir”.
Cantada como um ato de transfiguração nas águas, a tragédia do afogamento de
Ofélia ganha outras circunstâncias em que a morte, mais que uma morte nas águas, é
uma morte das águas. Uma morte que é um novo modo de transcorrer, de rebentar e
perecer a cada instante, que é movimento contínuo de ceder e alagar, entre ciclos,
tempestades e luas. O suicídio de Ofélia ilumina aqui a decisão não de abdicar do corpo
ou arruiná-lo, mas de admitir em si o corpo das águas, seu júbilo e terror, seu jorrar no
tempo/espaço, seu dia a dia de transbordo e vazantes.
A morte cotidiana não é a morte exuberante do fogo que perfura o céu
com suas flechas; a morte cotidiana é a morte da água. A água corre
sempre, a água cai sempre, acaba sempre em sua morte horizontal. Em
numerosos exemplos veremos que para a imaginação materializante a
morte da água é mais sonhadora que a morte da terra: o sofrimento da
água é infinito. (BACHELARD, 2013, p 7)
Misturada às águas que correm, me assomo a uma pequena multidão de Ofélias,
com o coração tomado por musgo e sargaço, que abrem a boca de pavor e apetite. Sem a
estabilidade que nos outorgavam o pai, a pátria, o idioma, cedemos à tormenta e a voz
que rebenta, de tão desconhecida, inexperiente e imprevisível, não assenta num código
facilmente decifrável de comunicação.
Desalojada das formas em que se reconhecia, um discreto lamento
começa a assediá-la, mas finge não escutá-lo. Decide apegar-se com
fúria à urgência dessa nova vida, intensivamente frágil. Não lhe passa
pela cabeça rotulá-la. Prefere carregar consigo esse inominável estado
inédito. Prefere de agora em diante deixar a porta aberta.
(PRECIOSA, 2010, p 38)
Esta voz aparece, em sua deformidade, sob a insígnia da loucura; uma loucura
lírica, cuja poesia não permite um enquadramento em patologias pré-categorizadas e
que surge como um jorro que não cessa frente a nenhuma barragem do razoável. Ofélia
emerge em nós, louca e lépida, confundindo a linguagem para ver emergir uma
58
expressão que até então estava contida, impossível de revelar-se através das gramáticas
oficializadas. Ela salta nas profundidades dos espaços, cria e recria densidades, canta
enquanto se afoga. Ela é crise e alívio, dando voz e sossego aos sentimentos que a
atravessam. Essa voz enche as divisas de borrões: ela é fala e é canto, é memória e é
presságio, é inocência e perspicácia.
(...) as vozes das águas quase não são metafóricas, (...) a linguagem
das águas é uma realidade poética direta, (...) os regatos e os rios
sonorizam com estranha fidelidade as paisagens mudas, (...) as águas
ruidosas ensinam os pássaros e os homens a cantar, a falar, a repetir, e
(...) há, em suma, uma continuidade entre a palavra da água e a
palavra humana. (BACHELARD, 2013, p. 17)
Mulheres-Ofélias, arremessamos desejos contra o vazio tornando-o visível,
fantasmático. Completamos o paradoxo de nossa condição, ao afundarmos solitárias
numa morte lamacenta ao mesmo tempo que nos expandimos, diluídas, difundidas,
multiplicadas e reagrupadas no rio que corre sem parar. Um rio que infiltra dúvidas na
rigidez dos conceitos, que atiça movimentos ao que é estanque, que rasura a nitidez das
formas para revelar seu estado de metamorfose e trânsito. “É pela água que Poe, o
idealista, Poe, o intelectual e o lógico, retoma contato com a matéria irracional, com a
matéria “atormentada”, com a matéria misteriosamente viva” (BACHELARD, 2013, p.
13)
9. Uma mulher que se desmancha
Figura 24. Ensaio fotográfico de divulgação de “Ofélia: sete saltos para se afogar”. Carol Garcia, 2015.
59
Habito uma mulher devastada por perdas consecutivas; uma mulher que se
afoga. Em Ofélia, afirmo a dissolução nas águas, a efemeridade do desejo, o movimento
enquanto modo de ser. Há, em nosso encontro, um ser mulher extravasado na loucura e
transbordado nos rios da vida.
Não é possível estar com/em Ofélia sem perpassar sua condição de mulher e as
forças históricas que aí interagem, cotejando-as com minha própria condição feminina
em confluência com a das outras mulheres que integram o Projeto Ofélia. Se a
trajetória de Ofélia em Hamlet é encarada de um modo linear e causal, ela começa
sendo a donzela apaixonada, bem-comportada e inexperiente, e tudo que lhe acontece
subsequentemente é fatalidade, só confirmando sua fragilidade e pureza. Porém, sua
tessitura é feita de vãos e contrastes entre a imagem de uma jovem obediente, ponderada
e doce, com a louca que invade o palácio, revelando paisagens e sentimentos
assombrosos em seu canto falado. Estas duas imagens desembocam numa terceira: a da
mulher que zomba da morte ao deixar-se tragar pelas águas e pelo próprio vestido,
enquanto canta cantigas antigas, cercada de coroas de flores fúnebres que ela mesma
preparou. Trata-se de alguém que parte “de seu canto suave à morte lamacenta”42
, que
desliza rumo ao obscuro e entrega-se à diluição no ambiente aquoso. Uma personagem
sob a qual convivem máscaras díspares: a da menina pura e cândida; a da mulher
corrompida pela loucura, pela morte e pela lama; a da ninfa misteriosa desfeita em
águas.
Para além da trama de Hamlet, obra na qual Ofélia se origina, ela passa a ser
amiúde invocada nas artes plásticas, na poesia e na filosofia. No campo das artes
cênicas contemporâneas, e mais especificamente no território da performance, a figura
de Ofélia impulsiona a criação de uma vasta gama de trabalhos autorais. Segundo Ellen
Guilhen
Esse caráter paradoxal da personagem poderia ser interpretado como
resultante de sua própria configuração como imagem – uma imagem
capaz de agregar valores díspares sem perder a unidade, característica
que explicaria a força e a duração do mito. De fato, Ofélia é, por
excelência, um tema de propriedade multidisciplinar, sobretudo
porque o mito agrega música, imagem e poesia, sem deixar de
pertencer, na origem, ao teatro. (GUILHEN, 2008, p 5)
42
SHAKESPEARE, Willliam. Hamlet. Trad. Millôr Fernandes. Porto Alegre: L&PM, 2011. 2º edição.
Pág 117.
60
A expressão da donzela comportada, dócil e vitimada, que ainda compõe o
imaginário de boa parte dos leitores de Hamlet e que imperou durante o século XIX e a
primeira metade do século XX, interage com uma determinada visão sobre o papel da
mulher na sociedade, que vai ser atualizada com as novas conjunturas políticas.
Cristiane Busato Smith fala sobre essa leitura de Ofélia em seu estudo sobre a
representação de Ofélia na Inglaterra vitoriana:
Ocorre que o feminino, a loucura e a morte são "construtos sociais" e,
como tal, são conceitos que estão em perpétua reformulação e irão
espelhar as maneiras pelas quais a cultura os representa. Conjugados,
eles se configuram numa representação da alteridade, ou, como diz
Stuart Hall, o ‘espetáculo do Outro’ (HALL, 2003, p.234). A história
da representação de Ofélia nos mostra como a personagem sempre foi
tratada com excessivo cuidado e vigilância de forma a encaixar-se em
certos ‘estereótipos’ vigentes na época. (SMITH, 2007, p 2)
Nas representações teatrais, a Ofélia louca é constantemente domesticada,
tornando-se ao invés de louca, tola, numa perspectiva infantilizada da loucura. Insiste-se
em dar corpo a uma loucura estereotipada e constantemente atrelada às mulheres,
diagnóstico que se afina ao discurso que menospreza a expressão feminina. No livro
“Tristes, loucas e más – a História das Mulheres e seus médicos desde 1800”, a questão
da subjugação da mulher com base na patologização de suas expressões é abordada
tendo como base os diagnósticos de loucura atribuídos a diversas mulheres ao longo da
história. Explorar - e extrapolar – esta acepção deturpada da loucura feminina e da
melancolia, percorrendo os sentidos precários, mas, ao mesmo, as expressões
insubmissas geradas sob estas condições instigam a construção poética deste projeto.
Em algumas leituras, Ofélia vai sendo percebida como a mulher que realiza o
que Hamlet apenas anuncia: Hamlet se finge de louco, enquanto Ofélia enlouquece;
Hamlet ameaça suicídio enquanto Ofélia efetivamente se lança para a morte nas águas.
Ela alça, deste modo, outro status na obra, mas ainda tem seu valor pautado pela
projeção do príncipe.
Mas, aos poucos, Ofélia absorve, enquanto figura simbólica, as influências das
mudanças históricas relacionadas à mulher e ao feminino. Passamos a encontrar, por
exemplo, criações que refletem uma percepção sobre o desejo de morte da personagem,
consumado no suicídio, como um sentido de negação de um determinado tipo de vida e
de comportamento, numa atitude contestatória. Do mesmo modo que a loucura passa a
61
ser encarada como símbolo de negação de um determinado tipo de interação e de
conduta, como uma recusa a permanecer no papel restritivo que lhe foi designado.
Ofélia, em sua loucura e suicídio, deixa de ser a inocente romântica tomada pela
fatalidade e passa a ser vista de um modo ativo, subversivo e contestador. Isso tem
decorrência das conquistas políticas da luta feminista e não à toa Ofélia transforma-se
em um dos mais frequentes ícones dos estudos nesse campo, fomentando uma grande
variedade de análises.
Essas variações de olhares sobre a personagem ao longo de anos, fruto da fricção
constante de sua figura e da recombinação de seu universo simbólico, deram-lhe uma
qualidade ambivalente: ela é ao mesmo tempo a imagem da submissão e sua negação,
sendo uma personagem que abriga representações confrontantes. Na fronteira entre
essas representações, está a expressão sufocada de Ofélia frente às vozes masculinas
que pautam seus diálogos. Ofélia entranha a mulher que reage ou sucumbe – a depender
do viés mais ativo ou passivo com que é encarada – ao silenciamento procedido tanto
pelos homens que a cercam quanto pela própria linguagem patriarcal que a media.
Tenho algo a dizer
aos homens
e não consigo.
Não há eco de frase nenhuma
nas velhas casas,
nenhum trecho que casualmente
eu repita em dejà vu.
Procuro um poema que fale por mim
e não posso encontrá-lo.
Foram escritos por homens
os versos
sobre homens
e também
sobre mulheres.
Tenho algo,
que me tira o sono,
e não existe palavra que o exprima.
Tem um quê de mudez
a mulher
que entre homens vive,
ainda que fale igual a uma matraca
(não é assim que dizem?).
Me pedem calma,
mas como estar calma
tendo algo tão urgente
a comunicar?
Eu teria que inventar uma língua
na qual homem e mulher
62
sejam palavra extinta,
mas, além de insone,
estou dispersa e ocupada:
recolho os pedaços
de mim
antes que os homens à volta,
tão concentrados,
roubem-me inteiramente
e não me reste
mais boca, nem dentes,
nem voz.43
Com o adensamento das práticas e discursos de desconstrução de visões
hegemônicas, a Ofélia engolida pela lama, a que entrega o corpo desejoso ao rio,
tomada por fluidos intensos, a Ofélia suicida e alucinada acorda uma outra perspectiva
simbólica. Desvela-se, em Ofélia, a mulher marginal, puta, enlouquecida. Surge a Ofélia
urbana, contemporânea, transviada que vai inspirar uma pluralidade de performances e
releituras, e que desponta no Hamlet Máquina de Heiner Müller.
Eu sou Ofélia. Aquela que o rio não conservou A mulher na forca A
mulher com as veias abertas A mulher com overdose SOBRE OS
LÁBIOS DE NEVE A mulher com a cabeça no fogão a gás. Ontem
deixei de me matar. Estou só com meus seios, minhas coxas, meu
ventre. Destruí os instrumentos do meu cativeiro a cadeira a mesa a
cama. Destruo o campo de batalha que foi meu lar. Escancaro as
portas para que o vento possa entrar e o grito do mundo. Despedaço a
janela. Com as mãos sangrando rasgo as fotografias dos homens que
amei e que se serviram de mim sobre a cama a mesa, sobre a cadeira
sobre o chão. Toco fogo na minha prisão. Atiro minhas roupas ao
fogo. Exumo do meu peito o relógio que era meu coração. Vou para a
rua vestida em meu sangue. (MÜLLER, 1987, p. 27)
As releituras de Ofélia, refletem, deste modo, uma mudança de perspectiva para
o feminino no contexto de uma narrativa ficcional que espelha as transformações da
narrativa histórica. Entretanto, ao longo da pesquisa aqui proposta, Ofélia deixa de ser
vista numa perspectiva narrativa - com um papel definido (ou re-definido) na interação
com outros personagens (ainda que ausentes) de uma trama – e passa a ser encarada
enquanto força motriz da busca por um modo não-patriarcal de expressão. Mais do que
reverter um papel de submissão e performatizar a subversão “dentro” de uma estrutura
social ou dramatúrgica representativa, o devir-Ofélia, louca-feito-água, alimenta aqui
43
Poema sem título do livro “Manual de Afogamento”, ainda a ser publicado, parceria desta autora com o artista gráfico Lucas Moreira, e que compõe o escopo de criações do “Projeto Ofélia”.
63
modos de expressar disruptivos, afirmando a potência de cada gesto: a fragilidade, a
perda, a loucura, a morte, a submersão, o não-controle, a crueldade44
.
... pela feminilidade o que está em pauta é uma postura voltada para o
particular, o relativo e o não-controle sobre as coisas. Por isso mesmo,
a feminilidade implica a singularidade do sujeito e as suas escolhas
específicas, bem distantes da homogeneidade abrangente da postura
fálica. A feminilidade é o correlato de uma postura heterogênea que
marca a diferença de um sujeito em relação a qualquer outro.”
(BIRMAN, 1999, pg. 10)
Ofélia se torna assim o fluxo de uma voz que se expande. Uma voz em
insurreição, alucinada, que desmarcara a fragilidade do hábito e atiça a crise e a
derrocada dos poderes que mantém a dinâmica que oprime o feminino e que atualiza
operações de submissão que nos colocam em renitente desvantagem. O que resta dessa
operação é inapreensível e misterioso, e pode ser encarado num aspecto libertário,
anárquico, dando margem a novos processos de subjetivação. As correntes do rio-Ofélia
atiçam o potencial de insight, abrindo fendas por onde a ordem, por mais rígida e
opressiva que seja, é vulcanizada num rasgo de liberdade. Esta não é uma liberdade em
si mesma, que eleva o sujeito para fora de seu contexto e pode ser lida irrestritamente
independente da dinâmica das relações e das repercussões que incute. A liberdade a que
me refiro, a do devir-Ofélia, é a da abertura radical aos afetos e a da não subserviência
ao esperado, ao previsível, ao aceitável, ao palatável, ao compreensível.
Para o filósofo, se é possível falar em liberdade, é exatamente a partir
do momento em que se frustra o cálculo, e a imprevisível liberdade
ocorre: ela é, portanto, o incalculável da cena, que aparece por
relações contingentes. O gesto livre acontece considerando o limite do
próprio poder, como um acontecimento que excede a própria máquina,
um acontecimento que irrompe o calculado, pela experiência, pelo
corpo vivido; exatamente quando somos afetados pelo outro, como se
o convite para a liberdade fosse a própria relação dos corpos com
outros corpos, nunca uma liberdade em si mesma, mas ativada nas
relações de afeto; uma nudez conquistada numa relação com outro
corpo: o “advento do outro”. (LOPES, 2015, p 233)
44
A crueldade aí entendida é um eco do “teatro da crueldade” de Artaud, que a compreende “no sentido
de apetite de vida, de rigor cósmico e de necessidade implacável, no sentido gnóstico de turbilhão de vida
que devora as trevas, no sentido da dor fora de cuja necessidade inelutável a vida não consegue se
manter” (ARTAUD, 2006, p 115).
64
10. O fantasma é uma dor que se repete45
Figura 25. Fotografia da temporada de “Loucas do Riacho”, na Casa de Castro Alves. Mariana David,
2017.
Ofélia é um fantasma que me ronda, devolvendo o assombro da vida e da morte
e desfazendo a ilusão de segurança e completude. É minha memória enterrada-viva que
ressurge, não uma memória pontual e reconhecível, mas como uma corredeira de
memória. Ela é o prórpio movimento de desafogo dos tempos múltiplos que abrigo. É
uma voz íntima apontando que, enquanto a razão mantiver sua mão pesada para conter
aquilo que temos de mais sutil, é preciso enlouquecer mais e outra vez. E que é preciso
saltar em novas águas a cada estação e que as mortes podem ser cantadas e celebradas,
especialmente as mortes desejadas.
Esse fantasma agita o substrato de um sem fim de mulheres que padeceram de
afogamentos vários, corpos cujas águas tumultuam o presente pedindo passagem. Ela
sussurra nos cantos da casa e do espaço da cena, em sua voz plural, cheia de timbres,
que aquilo que somos está em constante diluição, aberto à viração, em estado de
trânsito. Se fecharmos os olhos, soltarmos as mãos do medo, destravarmos o freio que,
em cada músculo, nos prende a um cotidiano de comedida razoabilidade, podemos ouvir
esses múrmurios.
45
Frase que ouvi há anos atrás, pela boca de Fábio Pinheiro, cenógrafo de “Loucas do Riacho”. Trata-se
de uma fala do filme "El espinazo del diablo" (Produtora El Deseo) e Fábio depois me contaria que ela
não era exatamente assim e me enviaria a fala completa, que transcrevo na nota subsequente.
65
¿Qué es un fantasma? Un evento terrible condenado a repetirse una y
otra vez, un instante de dolor, quizá algo muerto que parece por
momentos vivo aún, un sentimiento suspendido en el tiempo, como
una fotografía borrosa, como un insecto atrapado en el ámbar.46
(Trecho de "El espinazo del diablo", filme de Guillermo del Toro,
2001)
Essa ideia de fantasma não se fundamenta em conceitos psicanalíticos, mas sim
numa perspectiva de criação que encontra consonância com o que André Lepecki
(2011), em sua teoria sobre os planos de composição, dispõe sobre um “plano
fantasma”. Esta proposta de Lepecki extende para as artes cênicas o conceito de
“matérias fantasmas”, de Avery Gordon, que se refere a:
Esses fins ainda sem término (o fim da escravidão que não terminou
com o escravagismo, o fim da colônia que não terminou com o
colonialismo, a morte de um ente querido que não apaga sua presença,
o fim de uma guerra que não deixou de ser ainda perpetrada) [que]
prolongam a matéria da história para uma concretudo espectral
(virtualidade concreta do fantasma) que faz o passado reverberar e
atuar como contemporâneo do presente. Para Gordon, “matérias
fantasmas” são também todos aqueles “corpos impropriamente
enterrados da história”. (LEPECKI, 2011, p. 15)
Lepecki (2011) defende que a matéria fantasma participa da criação artística
interagindo com outras intensidades que vão compondo os aspectos da cena.
tocos de corpos que foram negligentemente enterrados, descartados,
esquecidos pela história e seus algozes brotam do chão emperrando
nosso passos, provocando desequilíbrios, quedas, paragens ou
movimentos cautelosos ou, então, gerando uma necessidade de nos
movermos a uma velocidade alucinante ou em permanente zigue-
zague, porém atenta e cuidadosamente. (LEPECKI, 2011, p. 15)
Instigada por essa perspectiva, passo a considerar Ofélia como o fantasma que
ativa o plano fantasma, diante do qual, a prática cênica e textual deste trabalho, torna-se
uma prática de escuta, de trânsito por entre seres. Esse plano movimenta o corpo
desopilando suas definições e povoando-o de identidades.
A escuta de tantos o leva a desertar de uma forma dominante de si.
Projeta a vida numa arte da vadiagem a serviço das experimentações.
46
Em livre tradução: “O que é um fantasma? Um evento terrível condenado a repetir-se uma e outra vez,
um instante de dor, talvez alguma coisa morta que, por algum momento, ainda parece viva, um
sentimento suspenso no tempo, como uma fotografia embaçada, como um inseto encalacrado no âmbar”.
66
A viagem de “vários” espaço afora, saltando sempre para novos
inícios, incarnando um eu-feixe de sensações. “Tenho fome de me
tornar em tudo que não sou”. (PRECIOSA, 2010, p. 52)
O fantasma de Ofélia deixa de ser algo a ser “incorporado” – uma personagem,
uma figura, uma ideia, um espírito – para ser o motor propulsionador de um trânsito
atencioso ao invisível, aos fluxos sensíveis que habitam espaços, tempos, corpos e
palavras. “Assim, o espaço teatral será utilizado não apenas em suas dimensões e em
seu volume, mas, por assim dizer, em seus subterrâneos” (ARTAUD, 2006, p. 146).
Nesse compasso, o corpo alça outros significados, deixando de ser entendido
como um recipiente de energia, sensação e memória, para ser considerado matéria em
formação, que se compõe a todo instante na interação com as forças que o rondam e
atingem. O corpo deixa ser o “lugar” onde a vida se instala, para ser o “meio” pelo qual
a vida se cria e recria.
11. Estar
Figura 26. Fotografia do processo criativo de “Loucas do Riacho”. Na foto, Olga Lamas, na Casa de
Castro Alves. Mariana David, 2017.
Há, nesse chão, nessas paredes, nesses cômodos, nessas passagens, uma série de
revoluções em curso. Contam isto os ruídos de vento, vermes, correntezas de linfas,
goteiras, respirações, transpirações, linguagens, mexerico de micróbios e rastejamentos
minúsculos. Em cada canto do lugar que estamos, existem bolsões por onde o passado e
67
o porvir se revolvem e revelam que toda a vida é agora. “O passado é um rastro de
coisas que o presente vomita, como as chamas de um foguete” (HAOULI, 2002, p 61).
Entre a matéria de nosso corpo e dos corpos que nos rondam, há mais vias que barreiras,
e por elas, podemos viver, hora após hora, a estranheza de sermos outros. Porque, assim,
entre vida e arte, somos o que fica em si, matéria dura, mas muito mais o que escorre e
se mistura, energia, descamação e fluido.
Coisas que calei aqui refluem,
catatau de baba e verso,
frases soltas num bilhete:
só a boca da vontade morde os medos sem mentir;
toda alma tem fantasma e assombração;
pé que chuta a própria sombra cai longe do sol;
entre tudo, existe uma luz, mesmo quando a noite é cega;
quando o tempo inunda a língua, a mulher parteja estrelas;
a loucura é minha voz me convocando há muito;
a trapaça do desejo faz olhar pros toscos
e pedir perdão por sê-los ou beijá-los;
nos olhos alheios, vejo claro a encruzilhada
e estou perdida;
o perdido é a mãe da estrada;
vive muito quem se inventa;
amar é um modo de estar.47
12. Deixar ser
47
Poema “Pra botar numa garrafa e atirar no mar”, do livro “Manual de Afogamento”, ainda a ser publicado, parceria desta autora com o artista gráfico Lucas Moreira, e que compõe o escopo de criações do “Projeto Ofélia”.
68
Figura 27. Fotografia do processo criativo de “Loucas do Riacho”. Na foto, Camilla Sarno, na Casa de
Castro Alves. Mariana David, 2017.
Quando meus pés
abrandarem na marcha,
por favor,
não me forcem.
Caminhar para quê?
deixem-me quedar,
deixem-me quieta,
na aparente inércia.
Nem todo viandante
anda estradas,
há mundos submersos,
que só o silêncio
da poesia penetra.
(Conceição Evaristo)48
É dia de apresentação de “Loucas do Riacho” e, ao descermos as escadas da
Casa de Castro Alves, vestidas somente com as cabeças de sargaço, nos espalhamos
pelo salão ou pelo jardim que dá vistas à Baía de Todos os Santos. O público vai
entrando devagar e também encontrando algum lugar para estar, alguns sentados, outros
caminhando por entre as bacias espalhadas no chão, alguns de pé escorados na pilastra,
outros deitando sobre o acolchoado.
Como o que fazemos tem um jeito de não ser “nada”, e como temos todo um
tempo para estarmos onde estamos, a casa é que vai contando seus detalhes, suas
paredes brancas e descascadas, seu teto alto, seus vincos e vãos, salitres, insetos, teias,
zumbido das buzinas de carro lá de longe, o rádio do vizinho, os gritos das crianças.
Tudo isso, mais o alaranjado intenso do pôr-do-sol na baía e as cigarras que começam a
cantar em coro no entardecer, esse horário de declinar de ansiedades em que resolvemos
começar. Nas bacias de alumínio, estão alguns objetos – cartas, conchas, colares de
conta, pérolas falsas, penas de aves, pequenas folhas secas coloridas, alguns pedaços de
tecido, vestidos, um pote de purpurina branca, um novelo de lã azul. Pendurado ao lado
de um lustre antigo de lâmpadas quentes, há um vestido azul de lantejoulas que se move
ao sabor do vento. Sementes de alpiste brotam lentamente de uma trama de tecido que
48
Trecho do poema “Da calma e do silêncio”.
69
pende no centro da sala. E nós, corpos nus, sem rosto aparente, sentamos, deitamos,
levantam, ficam, ficam, ficam.49
As “Loucas do Riacho”, em seu riacho-nave-pântano50
, não precisam fazer outra
coisa que não dar vazão ao que se cria naturalmente enquanto cena, cedendo ao
imprevisível e maravilhoso da vida em seu jeito ao mesmo tempo sutil e furioso de
passar. São muitas as presenças, cuja voz precária não precisamos traduzir, mas apenas
abrir passagem para que ressoem.
Meu estado ali foi de quietude curiosa, pacífico ao desdobramento do
tempo do rito, das ações. Um certo êxtase com a plasticidade e a
beleza da ocorrência; fruição dos sons vindos de toda parte; comoção
e expectativa com os transbordamentos emocionais. A meditação
prosseguiu... (Orlando Pinho)51
Assim vamos ficando todos, vendo e sendo vistos, ou aproveitando para
descansar os olhos. O público está ali e nós também estamos e não há o que defina
quem precisa olhar para quem. Como atrizes, não precisamos mais lutar pelo foco nem
nos esforçar para permanecer interessantes frente a uma plateia. Basta dar permissão ao
olhar alheio, deixando-nos ver ou perder, enquanto nos despojamos das máscaras que já
não vestem bem, que talvez nunca vestiram.
Não há uma supremacia da visão diante dos outros sentidos, nem um
pressuposto de que o “olho no olho” é, naturalmente, um termômetro de intimidade. O
olhar, esse movimento contínuo de apreensão e perda, não se define como um par de
olhos que encaram os olhos de um outro sujeito, mas como uma permissão ao curso
irrefreável de imagens que vão sendo encontradas, enquanto outras são perdidas. “A
modalidade do visível torna-se inelutável – ou seja, votada a uma questão de ser –
quando ver é sentir que algo inelutavelmente nos escapa, isto é: quando ver é perder.
Tudo está aí” (DIDI-HUBERMAN, 2010, p. 34).
Quais são os limites dentro de um espaço de abertura? O que
pode alguém frente a outro alguém que não lhe diz o que fazer,
49
O registro audiovisual do espetáculo “Loucas do Riacho”, que estava disponível no plataforma
Youtube, foi bloqueado por algum motivo. Uma vez resolvido o problema, ele poderá voltar a ser
acessado em https://vimeo.com/250478591. Acesso em 04 dez 2017. 50
A ideia de uma nave-pântano será abordada no ato 13, “Como el musguito en la piedra”. 51
Trecho de entrevista realizada por email, em 27/07/2017, com o poeta baiano Orlando Pinho. Orlando
assistiu “Loucas do Riacho” e “Ofélia: sete saltos para se afogar”. Esta foi a resposta dele para a pergunta
“Você tem algo mais a dizer sobre suas sensações naquele dia? Assistir Loucas do Riacho move algum
tipo de desejo criativo em você?”.
70
mas tampouco lhe diz que não. Quando os pactos de
respeitabilidade e boa convivência não estão claros somos
requisitados a olhar atentamente para o outro, para entender
nossos limites e possibilidades na relação dinâmica com ele.52
Nossa nudez de corpo é também o desvestimento daquilo que encobre os cantos
descosturados, as manchas e pedaços encardidos de nós, para comungar e expor a
naturalidade insólita dos efeitos do tempo. O corpo paramentado, identificado por suas
vestes, é desidentificado pela nudez. É uma nudez que não se fixa à alusão do ato
sexual, mas ao erotismo de corpos disponíveis a aproximações sutis e desnudadas das
conotações de suas vestimentas.
A experiência da nudez em cena, durante quase 3h, com pessoas
desconhecidas ali muito próximas, muitas vezes no corpo a corpo,
pele a pele mesmo, foi inaugurada em “Loucas”. Outras experiências
com nudez já havia experimentado, mas nada próximo. A sensação
nítida de transformação do espaço em outros espaços possíveis
também foi uma experiência nova - pela sonoridade, vibração,
conexão nossa, na intensidade que se deu (nem sempre aconteceu isso,
mas nas vezes em que aconteceu foi avassalador, nítido por demais).
Digo isso porque pensando num teatro mais formal, em que no palco
já se instaura um outro espaço-tempo previamente acordado por todos,
artistas e público, esse acordo da transformação do espaço num
"outro" já está implícito. No caso de “Loucas”, era uma instauração
gradual, tanto pra nós artistas que viemos durante meses
experimentando isso em nós quanto para o público. Os pactos, por
assim dizer, iam sendo acordados e atualizados durante o próprio
fazer...53
13. Como el musguito en la piedra
52
Trecho escrito para a coluna Rebate, da 10º edição da Revista Barril – Revista de Crítica das Artes
Cênicas. A coluna abre espaço para que os criadores dialoguem com a crítica feita a seus trabalhos. A
crítica a “Loucas do Riacho” foi escrita pela atriz e pesquisadora Laís Machado e pode ser lida em
<http://www.revistabarril.com/entreosdedos> Acesso em 28 set 2017. 53
Trecho de entrevista realizada por email, entre 23/04 e 22/08/2017, com a performer Olga Lamas. Esta
foi parte da resposta dela para a pergunta, “E havia aqueles caminhos, procedimentos etc nos quais você
não acreditava ou que desconhecia, e que passou a acreditar/vivenciar durante o processo?”.
71
Figura 28. Ensaio fotográfico de divulgação “Loucas do Riacho”. Na foto, eu, Camilla, Felipe, Mônica,
Uerla e Olga, na Casa de Castro Alves. Mariana David, 2017.
Felipe Benevides54
faz um desenho de um pequeno rapaz que parece um índio
sentado nu, enquanto pingos d’água, caídos de uma avenca, gotejam em sua cabeça. As
gotas são muito leves e o rapaz parece levitar. O desenho é infantil e dá ares de
inocência à ideia. Visita-me a imagem de uma nave-pântano, que transforma o espaço
que estamos em um móbile capaz de transportar-nos para uma dimensão onde o relógio
é composto pela umidade que brota em todo canto.
A nave-pântano, atravessando um fio de eletricidade por sobre uma parede de
musgos, teria o poder de unir a realidade de estar aqui, nesta urbanidade caótica,
frenética, produtiva, cheia de informações, mediações, contatos, com as forças que aqui
mesmo permanecem, encrustadas nos rios que correm embaixo dos asfaltos, nos povos
nativos e imigrados enterrados, nas árvores solitárias cercadas por pedras portuguesas,
nos destroços das casas de uma cidade que já passou por muitas mortes. Esboço
palavras, que funcionam não como conceitos que iremos desenvolver, mas como iscas
de enredamentos: tecno-natureza, corpo-suporte, mar-mídia, ancestral-urbano, perigo-
pureza, violência-erótica, tosco-delicadeza, coleção de visgo, brincadeira de criança.
A cidade em que estamos, essa Salvador de mormaço e lodo, do salitre que
descasca as pinturas e do chorume que recende nas calçadas, faz a nave-pântano
irromper, salobra, em pequenos indícios espalhados por todo canto. A cidade nos admite
com toda sua geografia de acidentes, suas construções mal-acabada e meio ruídas, seu
54
Performer de “Loucas do Riacho”
72
fluxo de convivência pouco adaptado à norma, à lei e aos estatutos de comportamento
que vigoram. É nesta Salvador de estridências e hiatos, que surge a nave pântano como
um duplo extemporâneo.
Em um dos encontros, compartilho o texto usado no programa da intervenção
artística “Beleza convulsiva tropical” 55, que traduz a qualidade que esta cidade tem de
infiltração, emboloramento, erupção e beleza.
A rebeldia, a força e a exuberância da vegetação têm uma potência
que engole as pedras, corrói o concreto, infiltra-se, toma os espaços e
subjuga o que estiver a sua volta. Aqui prevalece um estado de beleza
convulsiva, uma tensão permanente entre a natureza e a técnica, uma
batalha úmida, macia, violenta e vigorosa. (BEIGUELMAN, 2014)
Entre natureza e técnica também nós, corpos-naves, vamos conectando desejo,
sonho, movimento e som. Ao experimentarmos a criação dessa nave, percebo que cada
corpo ali faz parte dela, num estado de contínua brotação.
A Imaginação é a louca da casa
A casa se ergue sobre si.
Paredes nuas. Mulheres nuas.
As mulheres se vestem apenas de si
e de nada.
O seu vestido é o vento.
Mas de seus cabelos, que já lhes viestam,
Brota verde, folhas, mato.
Porque ela é nua, mas ela brota.
A loucura é só.
O que eu penso pesa.
O que me pesa pensa.
E aquele vestido pendurado
O som e a fúria.
A selva.
A selva em si.
A seiva. 56
Vamos virando corpos-plantas, cuja respiração e persistência no espaço cria
diálogos invisíveis, oxigenando a imaginação. Vai surgindo em nós as qualidades que
55
Texto extraído do programa de intervenção artística “Beleza convulsiva tropical”, de Gisele
Beiguelman. Segundo a nota contida no texto, trata-se de “texto usado na narrativa em áudio na
intervenção realizada no Arquivo da Bahia, no módulo Arquivo e Ficção (curadoria de Ana Pato) na 3a
Bienal da Bahia (2014). As peças sonoras (stereo, 18’40”) foram incorporadas ao acervo do MAM da
Bahia.” 56
Poema escrito durante apresentação de “Loucas do Riacho”, por Maria Luzia Sanchez, uma das alunas
da turma do performer e professor Saulo Moreira que estava presente nessa apresentação, como parte da
proposta de reflexões estéticas da disciplina por ele ministrada. O poema, escrito num papel à mão, foi
compartilhado conosco através de registro fotográfico do próprio Saulo Moreira.
73
nos conduzem à cabeça de sargaços, à nudez misturada ao verde espalhado pelos
vasinhos de terra e na estrutura de montinhos de alpiste nascendo que pende do teto,
tecida por Fábio Pinheiro57
.
... tenho regado minhas plantas com o mesmo copo que bebo água
todos os dias, isso me fez lembrar das “Loucas”. Me achei meio louco,
meio planta. “As folhas sabem procurar pelo sol. E as raízes procurar,
procurar...”58
. Porque o tempo das plantas - e sua sabedoria - é outro,
assim como “Loucas” foi para mim. O trabalho instaura outra
sensação da passagem do tempo, um estado meditativo. A trilha
sonora contribui para esse sentir o tempo passando pela força do vento
que atravessa a casa.
Uma imagem que guardei foi de Camilla grudada na parede, nua, ela
toda uma ventosa, o corpo todo uma sensação. É difícil dizer com
palavra, né?
Eu acho que as plantas têm um jeito de conversar com a gente.59
Estar aqui é suportar o vórtice dos aparecimentos e ritualizar a presença, num
deixar-se conduzir pelo magnetismo de cada corpo que está ou esteve e cuja vibração
permanece. É afirmar ao máximo nossa capacidade de afetar-nos pelo que compõe
nosso ser aqui60
, nesse tempo/espaço em que podemos existir.
A escassez de elementos tornava o espaço vasto e rarefeito,
transformava o insignificante em representativo, de modo que as
paredes brancas não impunham limites; o vão aberto do mezanino
fazia-nos vergar sob aquela coluna de ar, de medo e de tempo; e o
vestido pendurado em um dos extremos contava as histórias
particulares de cada um.
Na presença individual dos (as) atores (rizes), aquela vastidão
se ampliava. Eram também escassos os elementos em seus corpos,
fazendo com que a falta de se transformasse numa insuportável
presença de, fazendo pesar ainda mais o vão e a coluna abertos pelo
mezanino.
Descalço, explorei com os olhos, as mãos e os pés o espaço, os
objetos e os seres humanos. “Pode transitar e tocar”, havia sido o
alerta do guia à porta. Os (as) atores (rizes), no total de sete, talvez
oito, principiaram dispersos (as) no salão, em repouso latente.
Cobriam as suas vergonhas: as suas cabeças. Delas escorriam uma
vegetação aquosa, promessa de um movimento duvidoso, prontas para
sobreviverem livres do pensamento, como se a sua ação fosse o seu
estado, e combinassem o existir com o deixar ser levada. A um só
tempo presas como o musgo, e à vontade como o sargaço. Rio e mar.
57
Cenógrafo de “Loucas do Riacho”. 58
Trecho da canção “Panis et circenses”, composta por Caetano Veloso e Gilberto Gil. 59
Comentário do ator baiano Daniel Farias sobre suas impressões acerca de “Loucas do Riacho”, enviado
por mensagem privada na rede social Facebook, em 29/07/2017. 60
Ecos da leitura de trechos da tese da atriz e dançarina Alda Maria Abreu. A tese ainda esta em processo
de escrita, consequentemente ainda não disponível para consulta pública.
74
O restante dos corpos estava disponível ao olhar. Tão mais
disponível ao (à) espectador (a)/criador (a) quanto menos este (a) se
ignorasse. Como tudo que ali parecesse parado, na verdade deslizava
lenta e imperceptivelmente. O movimento estacionado de todas as
coisas era o acontecimento que estava sendo criado em meio àquela
nudez atmosférica fluida e permissiva.61
14. Habitações
Figura 29. Fotografia do processo criativo de “Loucas do Riacho”. Mariana David, 2017
O primeiro encontro do processo criativo de “Loucas do Riacho” acontece na sala
da casa de uma das atrizes. Ali, conversamos sobre os primeiros vislumbres, enquanto
comemos bolo, rabiscamos nos papéis e jogamos tarot. A possibilidade de encontro
oferecida pela atmosfera de uma casa nos levará, mais tarde, à imersão em Baixios e à
temporada na Casa de Castro Alves.
Nos primeiros meses de ensaio, nosso espaço de encontro é o Estúdio da Sereia, um
salão no Morro do Alto da Sereia, situado no bairro do Rio Vermelho, em Salvador. O
Estúdio fica quase à beira-mar, erguido sobre as rochas onde as ondas mais fortes
respingam ao rebentar. A presença do mar traz um balanço que permanecerá em cada
corpo por muito tempo. Ao deitarmos no chão de madeira, a brisa cheia de maresia e
aquele som contínuo de ondas, retarda o desejo de fazer outra coisa que não deixar-se
ali, abandonada sobre o piso e embalada pelos sons que povoam as tardes. Descobrimos
61
Texto do ator e historiador Camilo José Domingues, criado a partir de suas impressões sobre “Loucas
do Riacho” e enviado para mim por email em 19/04/2017.
75
assim que o “riacho das loucas” transcorre entre tarde e noite e a primeira coisa a fazer
em seu encontro é deixar-se ninar pelo som do tempo.
A partir do quinto mês do processo criativo do espetáculo, passamos a
experimentar espaços para a realização da temporada. Vamos um dia ao Coaty, um
edifício cultural localizado na Ladeira da Misericórdia, no Centro Histórico de
Salvador. O casarão, projetado por Lina Bo Bardi, tem composição cilíndrica, na qual o
salão principal, que tem o teto vazado, é atravessado pelo tronco de uma árvore que
conecta o piso médio ao jardim aberto no piso superior. Mesmo só estando ali um único
dia, levamos conosco esse emaranhado espiralado entre concreto e planta.
Na mata da Escola de Dança da Universidade Federal da Bahia, que resiste no meio
da urbanidade do bairro de Ondina (Salvador), entre os prédios do campus universitário,
marcamos encontros para conversar e meditar sobre o processo criativo e para fazermos
alguns experimentos. A mata é permeada por córregos pavimentados, raízes de plantas
diversas, clareiras de onde pendem troços de cipó e, daqui e dali, além de plásticos e
outros resíduos, pedaços triturados de papéis com trechos de trabalhos acadêmicos. É
nessa mata que um sentido xamânico ressalta em nós, como uma antena que se ativa a
apreensão do trânsito de vibrações de máquinas, tubulações, mosquitos, folhas,
pensamentos e entidades.62
Temos alguns encontros noturnos nas salas de aula situadas também na Escola de
Dança da UFBA, podendo desfrutar de sua estrutura de tablado e grandes espelhos.
Empregamos o conjunto de luzes elétricas que reunimos – pisca-piscas, pequenas
lanternas, colares com luzes coloridas e badulaques luminosos de toda sorte – para
vermos surgir, do breu da sala, silhuetas de criaturas abissais. No espelho da sala,
flutuam pedaços de corpo, uma mão aqui, uma boca lá, um seio acolá, um pé, uma
barriga, um olho: fragmentos de corpo dançando no vazio e compondo a imagem novo
corpo conjugado e monstruoso. Assim nasce a percepção de que cada corpo é ao mesmo
tempo inteiro e parte de outro corpo maior, coletivo e extraordinário.
Numa das salas do complexo do Teatro Castro Alves (Salvador), nos encontramos
para alguns ensaios. Temos aí uma estrutura apropriadamente preparada para a
realização de processos de montagem de espetáculos cênicos – uma sala de tablado,
ampla, com as paredes brancas e isolamento acústico. Nesse espaço, os ensaios ganham
62
Os vídeos criados a partir dos experimentos na mata da Escola de Dança da UFBA estão disponíveis
em < https://www.youtube.com/watch?v=uRmOdY9Nl9A&feature=youtu.be> ;
<https://vimeo.com/195807869 > Acesso em 18 nov. 2017.
76
um modo de improvisação teatral – uma estrutura que não tem roteiro definido, mas que
requer uma sucessão de ações que vão compondo uma narrativa. Tentamos fugir disto,
mas é difícil colher outros propósitos ali. Fica evidente que precisamos de um espaço
que abrigue outras memórias que não as de um teatro. De outro modo, não poderemos
escapar de um aspecto mais representativo ou metalinguístico, ambos que não nos
interessam neste momento. O que fica desse espaço, além dessa percepção, é o que
ocorre num dos dias de ensaio, em que Camilla Sarno leva um vestido azul coberto de
lantejoulas para ser entregue a Felipe Benevides.63
Este vestido fora usado por
Benevides em “Butô de bêbado não tem dono”64
e Camilla o havia tomado emprestado
para usá-lo em outro trabalho. Durante esse dia, o vestido acaba por ser incorporado à
nossa relação e vai sendo dançado pela sala, saltando entre os corpos até ser vestido por
Felipe num frenesi de movimentos. O vestido torna-se o fantasma de Ofélia que nos
desperta sua dança e nos recorda o tanto de memória que fica impregnada em cada
objeto, o tanto de vida que a matéria morta comporta. Esse vestido permanece pairando
pendido no centro do salão da “Casa de Castro Alves”, durante as apresentações de
“Loucas do Riacho”.
Para finalizar o ciclo de encontros de 2016, antes do recesso para a retomada do
processo no início de janeiro de 2017, decidimos fazer uma imersão numa casa alugada
na praia de Baixios, no município de Esplanada (litoral norte da Bahia). Ali,
caminhamos pela praia e chafurdamos na lama do mangue. Temos, deste modo, a
chance de vivenciar esse convívio alongado, colhendo os pequenos segredos desta
convivência avizinhada das águas do mar, do rio e da lama. Fechamos o pacto de que, a
cada dia, a partir das 17h, fariamos algum tipo de ritual entre nós. Entendemos, ao
passar dos dias, que o ritual de “Loucas do Riacho” não precisa ser algo solene. Ele
pode surgir de pequenos atos comuns, que, comungados paulatinamente numa atenção
ampliada, vão gerando um adensamento de atmosfera que propicia outros fluxos de
presença.
No jardim térreo da Casa Preta, espaço cultural localizado no Largo Dois de Julho
(Salvador), a nave-pântano ganha novas dimensões, a partir do conjunto de planta, lama,
paredes emboloradas, ruína, fios elétricos, luzes que trepidam, imagens de santos
caboclos, gambiarras de toda sorte existente ali. Nos cantos escuros do jardim,
63
Ambos performers de “Loucas do Riacho” 64
Trabalho cênico urbano do grupo Alvenaria de Teatro, de Salvador, o qual integrei entre 2008 e 2012.
77
brincamos de aparecer e sumir, e vamos virando, nesse movimento simples, um monstro
maravilha, bruxas, um corpo híbrido de raízes, folhas, pelos.65
Ao chegarmos na Casa de Castro Alves, deparamo-nos com sua fundação
centenária que traduz outras centenas de corpos que passaram ali ou ali permanecem
aterrados. Nossa primeira proposição é deitarmos no chão e escutar seus silêncios,
deixar que eles vibrem em nossa língua. Ao passar dos dias, vamos fazendo e
desfazendo bandos, criando e abandonando coreografias, esparramando fúrias coletivas,
mudando objetos de lugar, cultivando mudas de espécies variadas de plantas,
misturando-nos na casa, tornando-nos nela, ela em nós, ambas no riacho.
15. Eu não sei para onde vamos
Figura 30. Fotografia do processo criativo de “Loucas do Riacho”. Na foto, eu, na Casa de Castro Alves,
Salvador. Mariana David, 2017.
Um dia ainda vou me redimir, por inteiro, do pecado do
intelectualismo. Se deus quiser. Não vou ter mais necessidade de falar
nada, de ficar pensando em termos dos contrários; de tudo... Pra tentar
explicar às pessoas que eu não sou perfeito, mas que o mundo também
não é. E que eu não tô querendo ser dono da verdade, que eu não tô
querendo fazer sozinho uma obra que é de todos nós e de mais
alguém, que é o tempo - o verdadeiro grande alquimista, aquele que
realmente transforma tudo. (GIL, 1973)66
65
O vídeo criados a partir do cruzamento entre experimentos no Jardim da Casa Preta e na mata da Escola
de Dança da UFBA está disponível em <https://vimeo.com/201206889> Acesso em 18 nov. 2017. 66
Fala de Gilberto Gil, durante gravação ao vivo de show na Escola Politécnica da Usp, em 1973.
78
Em “Loucas do Riacho”, assumo a coordenação criativa, dramaturgia e
performance. Sou movida pelo vislumbre de um processo em que as águas componham
em nós, corpos criativos, uma poética com possibilidade de expressão não normatizada,
uma arte que imploda hierarquias, autoritarismos e colonizações. Contudo não sei, ao
certo, por onde nem para onde isso conduz, para quais formas, quais enredos, quais
prosódias. A criação acontece enquanto cartografia e, nela, a vocação que preciso ter é a
de perceber as trilhas esboçadas por entre a mata frondosa do vir-a-ser. É à medida que
as coisas vão surgindo que se pode entender como seguir e estimular novas
insurgências. Isso requer a aceitação das potencialidades gestadas em cada
acontecimento, de modo a compreender que as projeções a respeito do que resultará no
espetáculo, em sua temporada de apresentações abertas ao público, são mutáveis, e que,
na verdade, a temporada não é um mero resultado de um conjunto de ensaios, mas tem
sua procedência em cada encontro que vai sendo tecido. O constante reajuste em relação
às expectativas do que partilharemos publicamente não tem como medida a maior ou
menor frustração provinda de algo que poderia ter sido de tal modo, mas não alcançou
sua potência. É justamente a potência manifestada no percurso que requer uma
reelaboração da imaginação para a celebração dos modos que despontam em cada novo
acontecimento do processo.
Nesse sentido, praticar a cartografia envolve uma habilidade para lidar
com metas em variação contínua. Em realidade, entra-se em campo
sem conhecer o alvo a ser perseguido; ele surgirá de modo mais ou
menos imprevisível, sem que saibamos bem de onde. Para o
cartógrafo, o importante é a localização de pistas, de signos de
processualidade. (KASTRUP, 2014, p 40)
Quando Márcio Nonato67
me diz “neste processo, eu enxergo você conduzindo
um rio”, essa imagem me inspira modos de ocupação desse lugar a que estranho: o da
direção. É a primeira vez que dirijo um trabalho com outras artistas no elenco e o fato
de ser eu também uma das atrizes do trabalho parece ampliar meus desafios, ao mesmo
tempo que me oferece uma outra perspectiva.
Em geral, performers não pretendem comunicar um conteúdo
determinado a ser decodificado pelo público, mas promover uma
experiência através da qual conteúdos serão elaborados. (FABIÃO,
2013, p. 2).
67
Iluminador de “Loucas do Riacho”.
79
Em uma conversa com um diretor de teatro e parceiro de jornada68
, ele sugere
que haveria sido melhor que eu tivesse ficado fora de cena durante o processo de
criação de “Loucas do Riacho”. Desconfio que esta visão seja decorrente, entre outras
coisas, de algum incômodo gerado por qualquer ação que desenvolvo, enquanto
performer, durante as apresentações e ensaios, e também pelo meu silêncio frente a
alguma ação destoante das outras atrizes. Ele parece querer sutilmente dizer-me que
algum gesto, palavra ou ação que eu e mais alguém performamos não se harmoniza
inteiramente com a atmosfera geral do trabalho e, sendo eu ao mesmo tempo atriz e
diretora, esse equívoco fica ainda mais sublinhado. No entanto, minha suscetibilidade a
dar formas pouco aderentes às forças que as invocam parece-me absolutamente cabível.
Isso porque a questão, nesta cartografia de rio, não é medir o quanto os gestos, vozes e
movimentos estão plenamente assentados na verdade de cada momento, mas o quanto
podemos nos deixar mover pela suscetibilidade ao imprevisto. Não se trata de medir o
grau de verdade com o qual cada uma dá forma às intensidades que a atravessam, mas
de alimentar, a todo instante, a abertura para esses atravessamentos, a coragem nesse
despojamento incansável ao vazio, ao silêncio, à queda. Minha função maior então é
instigar a busca e inspirar o exercício incansável de escutar desejos e mover-se por eles.
Dirigir, desde uma perspectiva de um “olhar de fora” que atesta se as coisas
estão funcionando, que verifica se está tudo harmonizado, se há conformidade no todo e
se os atores/performers estão sendo fiéis com os propósitos plásticos do trabalho, não
faz sentido para mim neste processo, em que a atitude de representação não é o
princípio fundante. “Quando conseguimos desvendar os olhos, reconhecemos: ‘a
vontade de delimitar, de geometrizar, de fixar relações estáveis não se impõe sem uma
violência natural sobre a experiência do olhar.’” (NOVAES, 1988, p 9). Julgo que a
naturalização dessa posição da direção, enquanto um “olhar de fora” que, por não
participar presentemente da cena, tem mais sobriedade e, consequentemente, mais
consciência sobre o todo da obra, segue, implicitamente, o pressuposto de uma cisão e
hierarquia entre mente e corpo. Isso porque toma a posição do diretor - aquele que não
está fisicamente comprometido com a ação cênica – como uma posição que propicia
uma melhor qualidade de pensamento, em contraposição ao performer que, tomado pela
vivência do ato, teria uma percepção apenas parcial. Diante da abundância de teorias
68
Como esta conversa se dá de modo casual, sem um acordo expresso para servir de material à
dissertação, opto por não nomear a pessoa referida.
80
contemporâneas que superam esta cisão físico-mental e dos estudos de corpo e cognição
que compõem o território das artes do corpo, o que ainda determina que um olhar “de
fora” da situação perceba melhor e “mais verdadeiramente” do que o olhar “de dentro”
dela? Ainda que reconheçamos que são lugares diferentes – o dos atores que compõem a
cena e o dos membros da equipe criativa que não estão fisicamente englobados no ato
da apresentação – e que, dessa diferença, decorram variadas percepções, é importante
desfazer a noção de que essas percepções são “mais verdadeiras” ou “mais falsas”.
... não há nada que seja “o verdadeiro”, no sentido de autêntico,
originário – nem em cima, nem embaixo, nem atrás, nem no fundo da
máscara. Nem em lugar algum. A procura pelo verdadeiro, aqui, perde
até o sentido: revela-se como falso problema. A única pergunta que
caberia é se os afetos estão ou não podendo passar; e como.
(ROLNIK, 2014, p 36)
O próprio sentido de olhar, tomado enquanto atitude de pesquisa, perpassa
fronteiras, reunindo os sentidos à razão e abrindo-se para alteridades múltiplas. O olhar,
por um lado, está no cerne das noções de percepção, observação, exame e, assim,
perfeitamente incorporado na gramática da atividade intelectual, da racionalização da
vida. No entanto, o olhar pertence primeiramente à ordem do sensível. O olhar sensual,
o olhar que deseja ver, que vê sendo visto e que se apresenta mesclado naquilo que olha,
percorre as dimensões do corpo em sua precariedade e substância, e, antes de saber,
sente. Ou melhor dizendo, seu saber se compõe de sensação. “O olhar é linguagem da
vontade e da força antes de ser o órgão do conhecimento” (BOSI, 1988, p 78).
Esse olhar sensível não se restringe a uma percepção óptica, daquilo que o olho
vê, tampouco necessita declinar dela, mas mescla as percepções advindas de cada
sentido, numa recepção das forças que palpitam nos corpos circundantes, sem uma
hierarquia entre uma percepção e outra.
Conhecer o mundo como matéria-forma convoca a percepção, operada
pelos órgãos dos sentidos; já conhecer o mundo como matéria-força
convoca a sensação, engendrada no encontro entre o corpo e as forças
do mundo que o afetam. Aquilo que do corpo é afetável por estas
forças não depende de sua condição de orgânico, de sensível ou
sensorial, de erógeno, nem de emocional, mas de sua condição de
carne percorrida por onda nervosa: um "corpo vibrátil" (ou corpo
intensivo). A percepção do outro traz sua existência formal à
subjetividade, sua representação; enquanto que a sensação lhe traz sua
presença viva. (ROLNIK, 2003, s/p)
81
Quando tento, próximo à estreia, marcar algumas poucas ações para garantir que
tudo “dê certo”, percebo que, na verdade, estou sucumbindo ao medo do imprevisível.
Ao tentar organizar as ações, nesses ensaios, tento diminuir os riscos de que, diante do
público, não consigamos produzir nada. Ainda não compreendo inteiramente que esse
“nada” é que é o grande acontecimento de “Loucas do Riacho”. Essa compreensão só se
dará, de modo consciente, na véspera da estreia quando, ao perceber que minha tentativa
de roteirização das ações contradiz a poética que vínhamos trilhando, assumo a opção
por uma dramaturgia do encontro, num acordo de ação que se constitui na abertura para
a relação com o outro.69
Assim, percebo que, mais que conduzir um rio, o que posso fazer é abrir veios
por onde ele se multiplique e esparrame. Convido a entrar no rio - é isso que vou
entendendo que posso fazer -, lembrar do rio, manter acesa a lamparina em que o rio se
ilumina na noite escura. “Há aqui um rio, vê? Permitamos que ele flua, saltemos nele,
sejamos-no”, recordo, mantendo-me em atenção aos rastros de seu fluxo e “tudo
caminha até que a atenção, numa atitude de ativa receptividade, é tocada por algo”
(KASTRUP, 2014, p 42). Aguço minha mediunidade para as águas, indico e invoco sua
presença, abro o rito para que cada uma de nós encarne os fluxos em sua dança. Não
poderei dizer para onde ir, mas direi, uma vez mais, “vamos! Vamos na correnteza,
mantenhamo-nos firmes nessa jornada, mantenhamo-nos com os pés dentro d’água”.
Eu acho que em muitos momentos esperávamos determinadas
posturas de uma lógica de direção ou hierárquica, ou do tipo que
detém um determinado discurso, que detém o conceito. Uma lógica a
qual você nunca se propôs estar. Algo que muitas vezes nós outros
todos questionamos, não acreditando nesse lugar do fechamento do
conceito. O que é desafiante para você e é desafiante para os artistas
outros que estão ali colaborando. E acho que nesse sentido se aplica
isso da poética das águas, porque está na sua forma de ser e esteve em
sua condução o reconhecimento das fragilidades que a gente tem nesse
momento de agenciar tantos outros. Acho que você teve habilidade e
sobretudo deixou que... Eu acho que você tinha uma clareza política
do que você queria desde o princípio, mas, de fato, o lugar da
sensibilidade e da intuição estiveram mais aflorados em muitos
momentos que esse lugar discursivo. Esse lugar discursivo do logos,
né, da tal da academia. E acho que você defendeu isso. E não dá para
falar disso, né, de água, de loucura, de borrar as coisas, sem isso, né?70
69
Essa questão da dramaturgia será melhor abordada no tópico 17, “Um mapa para se perder”. 70
Informação oral. Trecho transcrito de entrevista realizada por mim com Mônica Santana, uma das
atrizes de “Loucas do Riacho”, através de áudios de whatsapp, em 18/06/2017. Este foi um trecho da
resposta dela para a pergunta “Que tipo de artista você acha que eu sou?”.
82
É depois de uma conversa entre amigos, já passada a temporada de “Loucas do
Riacho”, que encontro uma nomeação possível para minha posição neste processo.
Relembrando o que eu havia falado sobre o aspecto contra-metodológico desta pesquisa,
que ressoa uma qualidade própria da cartografia criativa, acabo por relacioná-lo com a
maternidade. Criar um filho ultrapassa a possibilidade de um método pré-definido:
ainda que reflitamos sobre metodologias variadas, a criação de um ser é um processo de
disposição e devir, à medida que o aprendizado se dá em reciprocidade, que as escolhas
partem de uma atenção constante e de um trabalho integrado entre conhecimento e
intuição, e que a relação provoca transformações mútuas. Mães e cuidadores,
diferentemente do que é previsto para acontecer nas instituições de educação, reunimos
referências, travamos reflexões constantes, formulamos inevitáveis expectativas, mas
muito mais do que apontar para um fim – que a criança seja isso ou aquilo – vicejamos
um percurso, uma preparação para a vida.
Criar nesta pesquisa é, assim, partilhar atos de presença e expressão, cultivar
valores, propósitos, buscas, estimular o cuidado e a escuta e, principalmente, praticar
esses mesmos cuidados e escuta de modo recorrente, alimentando no outro a vocação
para inventar caminhos que ele vai traçando por si e que nos escapam totalmente. Pois
entendo que é assim que pretendo estar também nas “Loucas do Riacho”, maternando o
processo.
Mesmo partindo de um sem número de estímulos sensoriais e
símbolos previamente consignados, o que aflora das “Loucas” são
ressonâncias de um revolver e um expulsar condicionamentos, abrindo
a percepção para a presença do inomeável [sic], ocorrendo num tempo
indefinido, numa ação potente, porque, descontínua, nua, e 'sem fim'.
O rio corre, permanentemente gera-se; suas águas condutoras e
propiciadoras de fecundidade e fertilidade desdobram-se,
transbordam, rompem barreiras, imprevisivelmente. As loucas, em
transmutação, ultrapassando limites, põem em cheque nossos sentidos
refreados e refreadores - nossa sensibilidade estragada.71
16. Minha boca está repleta de sargaço
71
Trecho de entrevista realizada por email, em 27/07/2017, com o poeta baiano Orlando Pinho. Orlando
assistiu “Loucas do Riacho” e “Ofélia: sete saltos para se afogar”. Esta foi a resposta dele para a pergunta
“Ao sair das Loucas do Riacho, lembro que você comentou algo sobre a potência de um acontecimento
que não tem finalidade demarcada. Você poderia me contar mais sobre essa ideia/sensação?”
83
Figura 31. Fotografia do processo criativo de “Loucas do Riacho”. Na foto, Camilla Sarno, na Casa de
Castro Alves, Salvador. Mariana David, 2017.
Dos primeiros auto-retratos até o solo “Ofélia: sete saltos para se afogar”, a
afogada abre a boca em meu estômago, fustigando: diga mais, diga de novo, diga
sempre e de outro modo, até que todo esquecimento, apagamento, silenciamento,
violentamento e culpa se transmutem em palavra, em pele, em ato. As dramaturgias
compostas nesse período, tentam transpor o afogamento, enquanto sensação e metáfora,
para o espaço, o corpo, o papel. Acontece que, no geral, o estar em cena, faz-me sentir
que a língua é uma areia movediça: as palavras são tragadas, despedaçadas, viram
poeira em minha boca.
No meio de uma frase, a voz trepida, tropeça na lombada do ouvido,
chama pra si a atenção, dá-se a surpresa: não compreende mais a
própria língua. “Que diabos eu tou dizendo?”, duvida, e ficaria
minutos, talvez horas, talvez dias, talvez não tivesse fim ficar assim,
encarando, pasmada, os dentes brancos do Semnexo. Mas há ali
interlocutores que, ao notar sua vacilação, atentariam pra o que havia
sido articulado entre fonemas, tons, construções verbais e a coisa
ficaria imprevisivelmente maior, e essa ideia espeta agulhas em seus
nervos, faz-lhe recobrar a fala. Quer terminar o texto, descer na
banguela e aos solavancos o precipício das palavras, concluir. Quando
está pronunciando o último termo, o vazio se desprende do verbo e
toma o corpo, entra pela goela, desce a traqueia, passa pelos
brônquios, bronquíolos, alvéolos, invade os pulmões. Estanca,
sufocada, entre uma sílaba e outra.... Será que é a loucura em mais
uma de suas rondas? Pior: alguém diz, num misto de pergunta e
resposta, “está cansada, não é? Eu também tava pensando em ir
embora...”, e a conversa segue seu fluxo perfeitamente habitual.
Chega em casa disposta a queimar o computador, o telefone, as
84
revistas, os maus livros, mas está fraca, hesitante, não faz nada. Não
acende nenhuma luz, lança-se no chão frio e canta, e grita, até não
sentir mais o chão, nem suas pernas, apenas uma vontade profunda de
soltar-se na amplidão e respirar.72
No “Primeiro Estudo para Ofélia Blue”, quero assumir minha vulnerabilidade,
ofertá-la ao público, declarar que tudo bem em estarmos frágeis, que podemos nos
expor. “Ao distinto público, vou ficar aqui exposto à audição pública, como o faquir da
dor”73
. Dou-me ao direito de não saber bem o que fazer e ainda assim fazer, expressar
qualquer coisa, tentar, como uma louca inconsequente, convocar a todos para ver o que
não sei mostrar. Eu já venho trabalhando numa lógica de fazer teatral ligada à ideia do
acontecimento, e tanto em “Fogueira” quanto em “Butô de bêbado não tem dono”,
ambos criados com o grupo Alvenaria de Teatro, é a atenção ao que surge de conexões
em cada instante que dita nosso percurso de ação. Mas agora é a primeira vez que
experimento esse formato de criação solo e, por segurança, monto um primeiro roteiro,
para que as coisas tenham um rumo por onde seguir caso eu me sinta vazia demais.
Porém, o vazio, se não tem convite para estar, entra pela janela, nos pega de rasteira e,
assim, termino a primeira apresentação sentindo que tudo aquilo que foi dito são
palavras mortas, que me dão ares de moribunda. Jogo fora o roteiro que tinha preparado
e, daí para a frente, passo a encarar o palco como o fundo de um rio imenso. É essa
minha proposição: pisar no palco, deserta, observar os peixes imaginários que ali
rondam – olhares, vibrações, densidades, atmosferas, ruídos – e, na interação com esses
fatos, soltar os gestos, os sons, as palavras, tentando, de algum modo, tecer elos com
aquelas presenças. É a partir do encontro das correntezas-sentidos-olhares que me
perpassam a cada dia, que arrisco dizer e dançar, rascunhando uma ponte entre as
profundezas em que me isolo e a beira do corpo: a fronteira entre eu e o outro. Fico em
silêncio e espero ouvir a voz que, em mim, está na iminência de soar, sua primeira réstia
de som, seu modo de tocar outros corpos.
No “Segundo Estudo para Ofélia Blue”, desejo falar sobre meu encontro com
Ofélia, sobre minhas leituras dela, contar um pouco do percurso até aqui. Faço
marcações, construo um texto, me apresento numa articulação de personas - o eu-atriz, o
eu-Ofélia e o eu-narradora. No roteiro do “Segundo estudo”, reservo algumas cenas para
72
“Uma medusa entalada na garganta”, poema do “Manual de Afogamento”, ainda a ser publicado, parceria desta autora com o artista gráfico Lucas Moreira, e que compõe o escopo de criações do “Projeto Ofélia”. 73
Trecho da canção “Faquir da dor”, composição de Jards Macalé.
85
o silêncio, para a dúvida, para a escuta, mas esses momentos, assim circunscritos, já
contradizem a imponderabilidade dos acontecimentos. A tensão entre a busca por um
teatro que se propõe aberto às rotas que surgem no ato da cena e à composição conjunta
com as presenças que a compõem, de um lado, e as escolhas que têm raiz numa escola
da representação teatral, de outro, vai manter-se viva em todo o decurso do projeto.
Numa das apresentações, desde o palco, olho os semblantes da plateia e sinto
que há uma atitude mais radical a ser tomada, mas não sou capaz de abrir-me a essa
força insolúvel a fim de dar-lhe movimento.
Há algo pra fazer e eu estou tímida;
tudo é maior que meu cálculo.
Vim de cabeça neste mar naquela hora da coragem,
agora tenho medo e câimbras.
Seria boa alguma ajuda, mas pra quem pedir socorro
se o mar são todos?
Fiquei rouca, quase afônica,
engasgada, nem sei com o quê,
mas ando burra e continuo abrindo a boca,
grunhindo, parecendo um baiacu
lutando contra o anzol.
Não é uma imagem simpática,
estão todos constrangidos.
Mas sorriem, delicados; que mentira esta nossa.
Nos detalhes de seus cenhos,
noto seu temor: creem que estou desesperada,
se envergonham em meu lugar.
Se eu tivesse mais coragem
e uma voz bem retumbante pra explicar
eu lhes diria
que o que tive foi um sonho.
Com uma voz que se levanta,
revela tudo, acende as luzes,
diz que me ama e que isso aqui
é só um dia, só uma noite
e logo mais
nós poderemos
respirar.74
Vou seguindo meu pequeno conjunto de marcas, como quem foge da própria
sombra, e volto ao camarim, ao final da sessão, com a sensação de falcatrua. Sinto que
estou contradizendo meus propósitos de busca por um teatro da escuta, da presença, do
74
Poema “Alagamento na sessão das nove”, do livro “Manual de Afogamento”, ainda a ser publicado, parceria desta autora com o artista gráfico Lucas Moreira, e que compõe o escopo de criações do “Projeto Ofélia”.
86
imponderável. Mas toda contradição me interessa e este é um trajeto longo, de modo
que vou tentar e tentar e tentar, sabendo que “não se atinge o corpo performativo
grosseiramente. O corpo performativo não para de oscilar entre a cena e a não-cena,
entre arte e não-arte, e é justamente na vibração paradoxal que se cria e se fortalece”
(FABIÃO, 2013, p 6).
No solo “Ofélia: sete saltos para se afogar”, me proponho a buscar, de modo
mais dedicado, um texto de palavras mágicas, de significantes que sejam portais abertos
para significados delirantes, e um roteiro de atos de entrega ao presente.
A intensidade com que OFÉLIA me tocou foi uma, sem comparações;
cada ocorrência com sua singularidade. Pela carga emocional, pelo
teor da inquirição, dimensão plástica, carga dramática, “Ofélia” tem
outra vibração energética, uma repercussão psíquica, diretamente,
mais intensa em mim.75
Na interação com a equipe de criação do solo, amplio a compreensão do que
pode ser uma dramaturgia da “cena expandida”, entendendo a confluência de escritas do
corpo, das sonoridades, das texturas, dos brilhos e sombras, dos elementos materiais. O
roteiro, escrito durante os ensaios, sofrerá algumas pequenas modificações ao decorrer
das apresentações. Uma das cenas, por exemplo, que intitulo de “abissais”, vai se
tramando ao longo das apresentações, transformando-se num momento em que o
protagonismo é da sonoplastia, composta por um grave eletrônico permeado por um
timbre de água. Por outro lado, há outra cena, justamente a que nomeio de “a louca” - e
que agora percebo que deveria ter chamado de “surto”, desadjetivando a imagem para
atrelá-la ao ato, num substantivo verbal -, em que sinto o texto me engolir. Nesta cena,
minha fala é criada a partir de escritos que redigi logo no início do projeto e me esforço
para criar movimentos, tons, ritmos que favoreçam os sentidos do texto. Esse texto, ao
invés de ser um portal para o acontecimento, passa a ser algo maior que a cena, algo que
parece residir em uma dimensão à qual eu tento, sem sucesso, alcançar, numa luta por
encerrar o caos do presente em palavras que renegam o corpo: palavras que não se
deixam inundar, borrar e/ou diluir pelas ondas bravias do instante.
75
Trecho de entrevista realizada por email, em 27/07/2017, com o poeta baiano Orlando Pinho. Orlando
assistiu “Loucas do Riacho” e “Ofélia: sete saltos para se afogar”. Esta foi a resposta dele para a pergunta
“Lembro que você assistiu o solo que fiz de Ofélia, o "OFÉLIA: sete saltos para se afogar". Você vê
algum elo entre aquele trabalho e “Loucas do Riacho”? Onde você acha que eles se encontram e onde eles
se diferem ou distanciam?”
87
Em “Loucas do Riacho”, já não há nada previsto para dizer e, no entanto, resta
um milhão de “esquecimentos, apagamentos, silenciamentos, violentamentos e culpas”.
Ofélia então sussurra o riacho, “deixemos que as águas falem por/em nós ou que, em
nós, realizem o silêncio, dancem. Deixemo-nos ser o rio”. Para a composição de cena do
espetáculo, os gatilhos pré-acordados são poucos: sob a coordenação de Fábio
Pinheiro76
, antes do horário previsto para a entrada do público, preparamos um espaço
composto por bacias, algumas roupas, cristais, pérolas falsas, pedras e penas. Descemos
juntas as escadarias da Casa de Castro Alves em direção ao salão térreo, ao cair da
tarde, vestidas apenas com a cabeça de sargaços. O público vai entrando na Casa,
enquanto a primeira faixa da trilha sonora é disparada por André Oliveira77
- uma
vibração muito grave que se torna cada vez mais audível ao longo de meia hora e que
depois se transmuta, gradativamente, por mais trinta minutos, em ruídos de água
corrente. A partir disso, invocamos nossa prática de escuta sutil, através da qual o que
uma produz, antes de ser “decodificado” pela outra, provoca-a e gera reverberações
imediatas.
Desse modo, vamos encontrando modos de retomar a validação, nas diretrizes da
criação, dessa potencialidade desestruturante do teatro, enquanto ato presente e efêmero,
inteiramente vulnerável às violentas variações da vida que acontece agora. Renuncio à
soberania da virtualidade sobre a materialidade, do texto pré-definido ou do roteiro pré-
elaborado sobre a composição dos traçados dos desejos, intuições, escutas, agonias e
estimulações do instante e tento pôr essas dimensões – do virtual e do material – numa
interação viva e anárquica.
17. Um mapa para se perder
76
Cenógrafo de “Loucas do Riacho” 77
Diretor musical de “Loucas do Riacho”
88
Figura 32. Vestígios da imersão de “Loucas do Riacho”, Baixios. 2016.
Ao buscar uma definição para o que se estruturou enquanto dramaturgia de
“Loucas do Riacho” e em boa parte dos trabalhos do “Projeto Ofélia”, encontro o
conceito de “programa performativo”, de Eleonora Fabião (2013). Ao invés da
determinação de um encadeamento de ações que preenchem toda a duração da cena e
afastam ao máximo a incidência de eventos imprevistos, o “programa performativo”
prevê a escolha por uma ação ou um conjunto de ações objetivas, que condensam um
conceito elaborado pelo performer. Estas ações servem como disparadoras de situações,
a partir das quais a cena se desenrola de modo randômico, junto aos elementos não
antecipáveis que rebentam em cada momento. Trata-se de uma composição porosa, uma
cena-não-cena radicalmente disponível à interação com o contexto em que se insere,
“uma prática ‘acutilante’ e humorada que chacoalha a separação entre arte e não-arte.
Que lança o corpo do artista na urgência do mundo e a urgência do mundo no regime de
atenção artístico” (FABIÃO, 2013, p 10).
Segundo Fabião, sua proposta pode ser entendida como um “‘motor da
experimentação’ – enunciado que norteia, move e possibilita a experiência”, e usada
para refletir sobre “teoria e composição de performance e suas relações com a criação
teatral contemporânea” (FABIÃO, 2013, p 1). Ela usa este conceito para traduzir o que
chama de “enunciado da performance” - o conjunto de ações que norteiam o performer
em seu trajeto de relação com o ambiente e com o público (ou com o outro-não-
público). E admite abordagens do “programa performativo” no teatro contemporâneo,
em trabalhos que atentam para modos de se afetar amplamente pelas nuances
89
contextuais. Esse teatro se constrói enquanto ato aberto ao fluxo do acontecimento,
realçando, na prática cênica, os potenciais do imprevisível.
E claro, há também a possibilidade de inserção de programas na malha
do espetáculo aumentando sua vibração performativa. Depende.
Depende das aventuras de significância, subjetivação e organização
que queiramos proporcionar uns aos outros; que queiramos
proporcionar a nós mesmos e aos espectadores, participantes,
colaboradores, coautores, cúmplices ou testemunhas dos trabalhos.
Depende das temperaturas relacionais, dos tipos de contato que
queiramos vivenciar. Depende. Depende das poéticas e éticas em
questão. Tudo depende. (FABIÃO, 2013, p.9)
Na primeira temporada de “Loucas do Riacho”, nosso programa performativo é:
descermos, às 17:30h, as escadas da Casa de Castro Alves, todas nuas, com as cabeças
de sargaço, e nos espalharmos pelo espaço, cada qual com seu percurso e ritmo,
enquanto o público entra e um som grave torna-se paulatinamente perceptível. Não há
mais nenhuma ação pré-definida a cumprir. A certa altura, algumas tirarão sua cabeça
de sargaços ou não, vestirão o vestido criado por Fábio Pinheiro78
para cada uma ou
não, permanecerão no salão até o público todo ter ido embora ou logo se recolherão à
sala reservada no segundo andar. Muitas coisas poderão acontecer, muitas relações,
toques e murmúrios, e isto só o encontro de cada dia revelará. Junto a isto, temos
também um pacto de disposições, uma invocação de sensibilidades, uma espécie de
mantra silencioso que é: aceitar o vazio, estar, deixar que as águas do corpo ressumem,
buscar afluências, permitir o rio, ser o rio, alagar.
A cena foge ao longo da imprecisão de suas marcas, da incerteza sobre seu início
e fim. Mesmo acontecendo num espaço definido, num espaço marcado e divulgado
enquanto lugar de apresentação de um trabalho artístico, essa cena perde-se por entre o
canto dos grilos, o grave das caixas, a luz crepuscular. Ela transcorre num espaço
intersubjetivo, num fluxo que se compõe pelas trocas sutis entre os agentes envolvidos.
Estes agentes são tanto os artistas que desenvolvem a obra quanto o público que a
compõe a cada dia. Não há um material preparado de modo fechado ao qual o público
assiste, mas sim um arranjo de chaves através das quais artistas e público podem ir – ou
não - se engajando, numa performance de aproximação e numa reformulação do tempo.
78
Cenógrafo e figurinista de “Loucas do Riacho”
90
É preciso desativar em toda parte os efeitos de cálculo econômico,
nem que seja para saber claramente onde somos afetados pelo outro,
isto é, pelo imprevisível, pelo acontecimento que, ele sim, é
incalculável: o outro corresponde sempre, por definição, ao nome e à
figura do incalculável. Nenhum cérebro, nenhuma análise neurológica
supostamente exaustiva é capaz de proporcionar o encontro com o
outro. O advento do outro, a chegança daquele que chega, é (este) que
chega enquanto evento imprevisível. (DERRIDA apud LOPES, 2015,
p 233)
Na nossa espera por esse outro desconhecido, que é o público, articulamos uma
série de autorizações, nos dispondo a sucessivas aberturas: permitimo-nos silenciar,
escutar, esvaziar, mover, olhar, descansar, estar, escapar, retornar. Arrumamos o espaço
buscando as linhas de fuga que se tecem como um convite a despir-se dos
temperamentos cotidianos e a mergulhar conosco no riacho das loucas. O que resta
como procedimento central, arriscado e sincero é dissolver a rigidez dos modos,
alinhavando cumplicidades através das quais um rio de sentidos insondáveis corra entre
nós, entre os corpos que habitam a Casa de Castro Alves a cada dia. E que, a partir das
afluências sutis entre vibrações, olhares e movimentos, outras ações despontem. Assim
é o nosso convite para estar no rio. O mais, é “o banhar-se”79
.
Mergulhei em busca da beleza que habita o fundo. Minhas
expectativas de nada importavam para Elas [sic], bem como não
importam para o oceano. E eu só pude viver a experiência do
mergulho quando parei de tentar decifrar o que via. Larguei as lentes
de pesquisador, mantive só a curiosidade humana. Senti. Menos do
que poderia, já que mulher não nasci, mas percebo que, de alguma
maneira mágica, a presença da minha mãe ali ampliou a conexão, o
nosso laço umbilical permitiu que eu percebesse coisas através dela.80
Durante todo o processo criativo, ao longo dos ensaios, são diversos os
“programas” experimentados, alguns mais objetivos, outros mais imaginativos. A
questão fundamental dos ensaios é “inventar, a cada vez, o programa de ação mais
condizente com as questões em pauta” (FABIÃO, 2013, p 10). Cada encontro é um
acontecimento, uma ação de experimento, que, se não chega a apagar inteiramente a
ideia da temporada de estreia enquanto auge do processo, ao menos rasura essa
79
Trecho da fala de Orlando Pinho em entrevista que cito aqui mais a frente, em “não precisamos fazer
nada”, pg 73. 80
Trecho do comentário do ator e arte-educador Jones Mota, sobre sua experiência em “Loucas do
Riacho”. O comentário foi originalmente publicado no site de seu grupo, o Viansatã, e pode ser lido na
íntegra no link http://www.viansata.com/escritos/viansata-olhando-o-mundo/viansata-olhando-o-mundo-
loucas-do-riacho/
91
hierarquia e não se faz refém dessa ansiedade, abrindo espaços para vivências cujo fim
se concretiza em sua própria duração. Nos ensaios, vai sendo composto um repertório
de vivências, sensações e percursos que amadurece os pactos sutis do trabalho e que
permite que a temporada surja como uma vivência extensiva, com novos aspectos entre
os tantos que foram surgindo no processo.
Nessa ética de criação, arte e vida se confundem, de modo que a
responsabilidade de estar em cena ou em processo de criação, é a responsabilidade de
presentificar-se na própria vida, animando suas possibilidades. Atuar passa a ser
interatuar, ou seja, estar em interação com o ambiente, ampliando os canais desta
interação para ativar a escuta-presença dos sujeitos que ali se agregam.
18. Buscar afluências
Figura 33. Fotografia da oficina-ação “Lavagem”, Salvador. Mariana David, 2017.
As coisas e as matérias sutis estão em toda parte. Entre as presenças que junto a
nós sibilam, é possível vestir-se de convite – uma pele que respira - e desnudar
distâncias.
Estamos sempre sós e nunca estamos sós: paradoxo inexorável. Aproximar-se é
reflexivo e transitivo. Estar inteiro, neste corpo de poros, fluxos e orifícios, é estar em
interação. Sabemo-nos um, em nossa diferença irrevogável, e seguimos
inescapavelmente misturados em outros.
92
Ao decidir celebrar essa condição, alguém pode deixar que a solidão se alastre e
transborde em toques diáfanos nas multidões que o permeiam e circundam. Sentir que a
dança de outros corpos alimenta o seu. Mover as mãos no rastro da memória das mãos
de alguém. Sentir que o silêncio, o canto, as palavras de outra gente fazem vibrar sua
língua. Reconhecer, nas rachaduras da parede, os sulcos da própria epiderme. Encontrar
nas árvores um modo de pausar o dia. Soltar a voz como quem solta as cordas de um
balão cheio de ar, para que ela flutue até encontrar o outro-pouso alheio-alhures:
conviver.
para que este processo se oriente na direção dos movimentos de
afirmação da vida é necessário construí-los com base nas urgências
indicadas pelas sensações, ou seja, os sinais da presença do outro em
nosso corpo vibrátil. (ROLNIK, 2014, p 20)
19. Não precisamos fazer nada
Figura 34. Fotografia do processo criativo de “Loucas do Riacho”. Na foto, Uerla Cardoso, na Casa de
Castro Alves, Salvador. Mariana David, 2017.
Uerla81
diz que dá vontade de estar sempre movendo o corpo, esquentando,
buscando um estado de presença, para não morrer, não morrer na cena, não ficar fora do
fluxo dos acontecimentos. Ela diz, “quando começo a suar é que entendo que algo está
acontecendo”. Mas onde é fora? Fora de quê? Fora da vida? Essa morte é que morte?
Parar um pouco, permitir-se não estar sempre fazendo algo o tempo todo, deixar de lutar
81
Uerla Cardoso, uma das “Loucas do Riacho”.
93
pelo lugar ao sol, ou pelo lugar sob os refletores, pode ser o que nos recoloque numa
existência misteriosa do presente, essa coisa estranha de que vivemos tentando escapar.
Ou pode ser que, como Uerla indica, esse estar movendo-se sem parar, num fluxo
contínuo, num modo de dissolver a apatia, o gesto cristalizado, o movimento
premeditado, comandado, previsível, seja um caminho para trair o hábito de defender-se
do invisível e, entregando-se ao caos, encontrar outros modos de silêncio e diálogo.
Não se trata então de permanecer parado ou movendo-se, calado ou em fluxo de
som ou fala. Trata-se de parar – com violência ou calma, sonolência ou vigor - um
pouco essa locomotiva insana que é a vida rotineira de produzir, ganhar, gastar,
cumprir, dever. Trata-se de abrir as próprias antenas para o mistério.
Não há um estado ideal para viver “Loucas do Riacho”, mas a preparação para
essa vivência é uma espécie de luta contra o assoreamento do fluxo do tempo, uma
ampliação da vazão dos leitos, um desentupimento de canos, uma sucessão de aberturas
de vias pelas quais a vida se materializa. Os repertórios de movimentos, de gestos, de
entonações, de expressões, de técnicas das performers ampliam as possibilidades de
tradução de cada sensação, mas o repertório que mais importa aqui é o dos contatos
vertiginosos com a inquietude, das batalhas travadas na carne, em cada músculo, da
precipitação em cada sensação percorrendo cada poro, dos tantos confrontamentos com
a própria máscara, com a própria história, com o próprio ímpeto. Esse repertório é
constituído numa trajetória intensiva de experimentação artística, a partir de um
treinamento dedicado e, muitas vezes, estafante, de abertura ao imponderável e de
maquinação de modos pelos quais transfigurá-lo, transmiti-lo ou traduzi-lo em arte.
E, mormente,
remar contra a maré numa canoa furada
Somente
para martelar um padrão estóico-tresloucado
De desaceitar o naufrágio.
Criar é se desacostumar do fado fixo
E ser arbitrário.82
Quanto mais erramos, quanto mais enormemente quisemos e fracassamos e
ainda assim quisemos mais e mais e entregamos nosso corpo em sacrifício – não um
sacrifício de expiação, mas de transfiguração –, refazendo novos atos criativos, mais
cada um de nós, artistas, estaremos abertos a aceitar o vazio, a ceder à catástrofe
82
Trecho do poema “Sargaços”, de Waly Salomão.
94
maravilhosa da vida que se desabotoa e a criar, loucos, à beira do riacho. É na
permissividade a nossas marcas mais intensas, nas rachaduras que as compõem, que a
loucura vai abrir um veio por onde escoar-se longe das patologias e nos impulsionar a
nadar e nadar pelo mistério da criação, como:
Um elogio à determinação do agente e à indeterminação da vida. Uma
prática que exige tônus e flexibilidade, planejamento e abertura,
disciplina e presença de espírito. Mas então, como preparar-se para
performar? Ouso uma resposta: vivendo a vida. (FABIÃO, 2013, p
10).
Márcio Nonato83
, problematizando um aspecto excessivamente representativo
que ele considera persistir nos ensaios e que contradiz a busca por uma política de
criação de desmanchamento de máscaras e fluidez de discursos, sugere que realizemos a
experiência do pano na cabeça. Essa é uma experiência que Márcio vem propondo
desde que dirigiu o trabalho “Isto é apenas uma mulher com um pano na cabeça”84
e que
tem se configurado como uma possibilidade de experimentação que descondiciona
certos repertórios de ações prévias e oferece a possibilidade de expressão que surge da
relação com o vazio do pano branco.
Em um dos dias de ensaio na Casa Preta85
, à noite, Nonato leva os panos brancos
com os quais todas cobrimos completamente a cabeça. A indicação é apenas essa:
amarrar o pano de modo a cobrir toda a cabeça e estar com ele durante um período (que
dura pouco mais de uma hora). Ao sentir que a experiência com o pano já foi suficiente
por hora, é só tirá-lo e esperar que as demais façam o mesmo, cada qual a seu tempo.
Comigo acontece que, ao mesmo tempo que eu me vejo só, ali, mergulhada
nesse pano, numa solidão acolhedora e confortante, aguça-se minha busca por
encontros. Ao sentir a presença de alguém próximo e ao tocar nessa pessoa – com as
mãos ou com o simples encostar de um corpo no outro – a sensação que me acomete é
de um erotismo emancipado de fetiches, um elã de ternura e vigor.
Felipe Benevides, que não usa o pano por ter chegado mais tarde, diz, na
conversa ao final do encontro, que parece que estamos em outra dimensão. Nosso
magnetismo o arrasta também para esse estado de levitação, de sonho. André Oliveira86
,
83
Iluminador de “Loucas do Riacho” 84
Trabalho do coletivo VAGAPARA, de Salvador, que estreou em 2011. 85
Espaço cultural localizado no Largo Dois de Julho, em Salvador, e gerido por coletivos de teatro. 86
Diretor musical de ‘Loucas do Riacho” e de grande parte dos trabalhos do Projeto Ofélia.
95
conta que o fato de estarmos com os rostos cobertos sem agirmos com uma
intencionalidade dirigida a uma audiência, convida-o a misturar-se em cada uma de nós
e deixa-se ficar imaginando os sons que estaríamos escutando dentro daquele pano.
Chego correndo atrasado até a porta que dá para o jardim da
casa preta. Atravesso, encontro as mulheres vestindo o pano na
cabeça, espalhadas pelo espaço. Recebo o pano, escolho não vestir
agora.
O terreiro é conhecido, já ensaiamos ali antes, a luz parece
outra. Tenho a impressão de que está mais escuro. Duas meninas estão
sentadas num banco, quase não se mexem. Uma caminha trechos
curtos balançando os braços. Outra para e se volta em minha direção.
Há alguém de costas com a testa encostada numa parede tateando. E
entre as plantas do Jardim. Alguém sobe a escada sem nenhuma
pressa.
Estou parado na entrada. O lugar impõe sua passagem sobre
quem acabou de chegar. Um convite para aquietar e observar. Aceito
o convite. Caminho pelo jardim e subo a escada. De cima vejo o
quintal e o terreno da frente tomado por plantas, a ruína de uma casa,
uma igreja colonial na rua de trás, a casa vizinha.
Com o pano na cabeça, só dá pra ver o branco do tecido.
Começar a se deslocar dessa maneira ativa a atenção na distribuição
dos gestos. Neste estado compartilhado, a presença de cada uma sofre
uma expansão, ganha volume e qualidade de imã. Convida a olhar.
Nova frequência sintonizada em conjunto. Novas disposições
no espaço-tempo. Sem precisar descrever as causas, o que se move dá
a saber sua finalidade em ato. Só acompanhar os processos: o que é
contido e contínuo e se estende com calma, o que se exaspera e
convoca, o que grita, o que encontra e tateia, o que encontra e agarra,
o que não sabe o modo, o que avança, o que solta, o que abre....
As mulheres estão juntas agora. Reunidas conversam,
arrastam poeira, dançam, consoam, modulam diferenças em vibração.
Reunião onde está o reaparecimento de reuniões. Está em curso a
evidenciação da comunhão entre os seres de matéria e vazio neste
espaço-tempo. Isto é difícil de colocar em palavras, vou me valer dos
versos do poeta Waly Salomão: "Feras e bichos mansos e seivas
vegetais transmigram pelos canos/ De sangue dos humanos /
Metempsiscoses e dispersões dos aros do eixo da personalidade"87
.
Os gestos trocam calor-energia com o espaço-tempo. O vento nas
folhas, o tambor de água, o avião e o grito na vizinhança, numa
melodia, entram, abrem-se os cenários. Sem se ver, se encontram,
reverberam gestos à distância. A impressão é que há uma abertura de
percepção deslocando a comunicação a outro canal, onde labora, em
rearranjo constante, uma nova intimidade, precária, mediada por
intensidades.
A música e o movimento chegam a um ápice, atingem o calor. O
movimento se torna imprevisível, surgem novos padrões, um novo
comportamento, nova estrutura. Os seres e o meio se procuram,
atravessam a linha de abstração que evidencia seu amálgama.
87
Trecho do texto “Estava escrito no templo de Baco em Baalbeck”, do livro “Poesia Total”.
96
Dançam o lugar. O espaço-tempo é mutante. A atmosfera amplifica
seus elementos que variam como o humor e a persistência da
memória. Deu uma vontade de chorar. Aconteceu que no instante
seguinte a esse meu pensamento, uma das mulheres abriu um choro.
Estatelei com a co-incidência.
Conversamos muito sobre o elemento água e é fatal que os indícios
dela sejam transcriados em sensações e desenhos durante esse
processo. O jardim inundou, por exemplo; geral sentiu.
E então arrefece. Deixa estar. O vórtice se dissipa. Longe da simetria e
da regularidade. A substância se recolhe ao tutano.
Retirada dos panos. Esgar dos olhos e braços. Lançar-se ao chão ou
permanecer de pé. Esvaziar.88
Com o rosto coberto com o pano branco, toda a necessidade de preencher o
espaço e o instante com imagens, textos, intenções e atmosferas se esvai. No vazio do
pano, diluído o rosto, é nosso ser que se vê disperso por toda parte e resta apenas
esperar que os desejos nos movam para algum gesto ou lugar imprevisível.
Dessa experiência do pano na cabeça, surge a ideia de uma cabeça de sargaços,
que não impede a visão, mas a turva, conferindo o naufrágio de nossa capacidade de
distinção.
“Loucas do Riacho”... Percebo como uma situação metaritualística, de
transvaloração de sentidos, expansão de afetos, ação
descondicionante, liberação da consciência. Se já é isso, outra coisa só
pode ser o banhar-se.89
20. Deixar que as águas do corpo ressumem
88
Anotações de Felipe Benevides, do dia da experimentação com o pano na cabeça. 89
Trecho de entrevista realizada por email, em 27/07/2017, com o poeta baiano Orlando Pinho. Orlando
assistiu “Loucas do Riacho” e “Ofélia: sete saltos para se afogar”. Esta foi a resposta dele para a pergunta
“Para você, o que Loucas do Riacho é? E o que pode ser?”
97
Figura 35. Fotografia do processo criativo de “Loucas do Riacho”. Na foto, Mônica Santana, Escola
de Dança da UFBA, Salvador. Mariana David, 2016.
As águas têm um murmúrio que nunca cessa. Regatos, córregos, quedas d’águas,
poças, lençóis freáticos e ondas estão sempre conversando em sua língua de umidades.
Em nós - corpos setenta por cento feitos d’água - toda uma série de fluidos rumoram.
Se nos lançamos em atitude de propriocepção, podemos deslizar por estes fluxos
ininterruptos, passeando por entre seus circuitos a todo tempo excitados por vibrações
psíquicas, por memórias celulares, pelo paladar das substâncias ali misturadas. Na
escuta desses trânsitos de fluidos, “uma escuta ‘bruta’, som após som, aquela que aceita
tudo, sem discriminações culturais; escuta do desejo, da corporeidade, do despudor e da
vida” (HAOULI, 2002, p 39), é possível perceber que
as vozes da água quase não são metafóricas, que a linguagem das
águas é uma realidade poética direta, que os regatos e rios sonorizam
com estranha fidelidade as paisagens mudas, que as águas ruidosas
ensinam os pássaros e os homens a cantar, a falar, a repetir, e que há,
em suma, uma continuidade entre a palavra da água e a palavra
humana. (BACHELARD, 2013, p 17)
Em cada poro, nossas águas ressumam e, nesse ressumar, uma voz desponta. A voz
das águas ressai em nossa pele e podemos, de algum modo, deixá-la ressoar em nossas
bocas. A voz das águas é o volume das intimidades que nos percorrem em silêncio ou
em sons audíveis. Nossa voz de águas reúne presenças fantasmagóricas, acolhe
clarividências e obscuridades, reinventa pequenos ritos mágicos.
98
Não creio ser um homem que saiba. Tenho sido sempre um homem
que busca, mas já agora não busco mais nas estrelas e nos livros:
começo a ouvir os ensinamentos que meu sangue murmura em mim.
(HESSE apud PRECIOSA, 2010, p 15)
21. A palavra que nem cala nem diz
Figura 36. Colagem integrante do processo criativo de “Loucas do Riacho”. Lucas Moreira, 2016.
Em cada uma e em cada um de nós, há uma louca afogada, atiçando um jorro
delirante que dissolve os contornos por onde as linguagens se tornam estanques,
hierárquicas, excludentes. Se deixarmos as águas do pensamento dançarem o corpo, a
voz da louca emerge com sua palavra-labirinto, que desnorteia. “Se é preciso
dessubjetivar o mais possível a lógica e a ciência, é não menos indispensável, em
contrapartida, desobjetivar o vocabulário e a sintaxe” (Claude-Louis Estève, apud
BACHELARD, 1986, p 13).
A voz da louca – a louca que vive em nós -, ao alçar-se à superfície, não para de
soar. Não se cala na boca, não se constrange. Quem escuta o que ela diz não escuta o
que ela está dizendo, mas o que o seu dizer invoca. Suas frases não são decodificáveis;
elas agitam o pensamento de quem a encontra, germinando sentidos espantosos.
O desdobramento dessa exploração tenderia a apontar uma “nova
vocalidade”, perturbadora para certas ordens e para certos estados de
coisas. Uma vocalidade capaz de não se deixar dominar por
mecanismos culturais de controle e pelos imperativos de uma
sociedade de mercado. Uma voz, enfim, capaz de gritar, gemer e
“cantar-se”. (HAOULI, 2002, p 49)
99
Essa voz convida à escuta do absurdo, sem ser absurda e disparata em si. Sua
densidade irrevogável não permite que zombem dela ou a neutralizem, enquadrando-a
enquanto tolice. Ela ressoa uma palavra que, antes de significar, pesa, assentando na
matéria de cada corpo que a escuta.
O coro fragmentado ganha a dimensão de cacos libidinais expostos
ao evento que se dá a nossa frente, no cotidiano. O performer é uma
sonda no instante, e desmistifica o sujeito uno previamente
constituído por um discurso aceito pela maioria ou imposto como
“modelo”. Essa desconstrução do sujeito em fragmentos consegue
impedir a atuação de nossos filtros linguísticos. (HAOULI, 2002, p
59)
Nos encontros de “Loucas do Riacho”, invocamos esse jorro, essa corredeira de
palavras e pensamentos, fazendo exercícios de fluxo verbal. Primeiro, iniciamos uma
dança que agita o corpo num pulso vigoroso, sacodindo as palavras que o atravessam.
Quando as palavras, ainda em inaudível balbúrdia, começam a vibrar a língua,
estacamos, soltamos um grito-mudo e começamos a dizer. Dizemos o que nos ocorre,
sem parar, sem planejar, sem organizar e sem reter. Vamos soltando um vômito
fonético, num “‘fluxo’ de palavras, um discurso enlouquecido que não cessaria de
deslizar sobre aquilo a que remete sem jamais se deter?” (DELEUZE, 1974, p. 2).
Falamos continuamente, dando voltas no dizer, entontecendo de tal modo os
significados, que os filtros linguísticos tropeçam e se desfazem. O verbo pronunciado,
nesse coro dissonante, despedaça a ilusão do bom-dizer e alimenta insubmissões,
porosidades e aproximações. Esta fala é como um escavar de palavras, que, por sua vez,
é como um escavar da terra para alcançar um lençol freático no qual banhar-se. “Eu
tinha a sensação de que cada ação do trabalho tinha voz, volume. A loucura como
volume do invisível”.90
É um azucrinar do verbo para a irrupção do fluxo de vozes
atávicas, ancestrais e plurais.
Palavras soltas e que juntas/sobrepostas/fora da linearidade da linha
permeiam essa compreensão da presença: passado, presente, futuro,
eu-corpo, eu-espaço, eu-Outrx, fluência, silêncio, gritaria, fluxo
ininterrupto, conexão via pele, integração via pele, kinesfera, estado
meditativo, exaustão, povos originários, dimensões sobrepostas,
90
Frase extraída de entrevista realizada por email, no dia 19/07/2017, com a performer Liz Novais. Esta
foi parte da resposta dela para a pergunta, “Que loucura foi essa com a qual trabalhamos?”.
100
feitiço, bruxaria, energia, pulsação comum, percepção onírica, sono,
rito.91
Lançamos palavras e mais palavras no espaço e o adensamento que elas operam
na atmosfera circundante pressiona as barragens da consciência. Nosso verbo mais
subterrâneo começa a despontar, numa voz vulcão, que inunda o salão.
Voz lança, voz Espada de São Jorge, voz vento, voz aquário, voz
Meredith Monk, voz indígena, voz escravizada, voz Iemanjá, voz
chave de abertura e fechamento, voz que quando enuncia palavra
transforma palavra em gás, voz perna que corre pula e joga-se no
abismo, voz arrepio, voz feitiçaria, voz gravidade zero, voz morcego
avoando sobre nossas cabeças, voz colar de pérolas chocalho madeira
bacia de prata, voz circular, voz água da mangueira, voz sino de fim,
voz sino de começo, voz sino que acorda a casa inteira, voz silêncio
que inunda, voz silêncio que enlouquece, voz pavor, voz tremor, voz
cura, voz pacto, voz contato, voz rã imaginária, voz jiboia planta e
cobra, voz concha, voz pensamento, voz sempre corpo, voz sempre
corpo, voz sempre corpo, corpo sempre voz.92
As reminiscências desse fluxo verbal experimentado em alguns ensaios é uma
palavra-assombro que, vez por outra, rasga o ar, abrindo uma fenda por onde o silêncio
e o estrondo se presentificam, desenterrando discursos subjacentes que, de tão precários,
apresentam-se de forma borrada, quase como um não-texto. Ao lado disso, nos
colocamos à escuta de artistas que exploram os limites entre fala, canto e sonoridade, e
que experimentam a voz relacionando-a com as dimensões musical, corporal, cultural,
filosófica e ontológica. Entre esses artistas estão Meredith Monk, Fátima Miranda, John
Cage, Ghédalia Tazartès, entre outros. Movidas nesse fluxo, dançamos voz e
pensamento.
Abram minha boca: vou soltar um grito,
fazer a noite visível.
Partículas que meu timbre excite,
volumes que minha língua apalpe,
comunguem em mim o gesto
escuro e íntimo,
me disponho a isto.
Mas não acendam as luzes,
por favor,
91
Trecho de entrevista realizada por email, entre 23/04 e 22/08/2017, com a performer Olga Lamas. Esta
foi parte da resposta dela para a pergunta, “Pra você, qual aspecto das “Loucas do Riacho” é o mais
precioso?” 92
Trecho de entrevista realizada por email, entre 23/04 e 22/08/2017, com a performer Olga Lamas. Esta
foi parte da resposta dela para a pergunta, “O que é a voz em ‘Loucas’?”.
101
não pintem os cantos das paredes de branco.
Quero os fantasmas desta casa
intactos!
De que vale ser fulana ou sicrana
sem trazer na pele, na pupila, na palavra,
o tempo lato e o hiato
em que legiões persistem
e vagam.
Sendo a que passa e na qual permanecem
as sombras, as marcas, receitas,
relógios liquefeitos, artimanhas,
eu abro suas bocas e solto um grito
onde a noite se anuncia
e verte o liquido lácteo
de galáxia e vertigens
no peito, no piso, pelas gretas da porta,
escadas, pelos ralos,
pelos rabos.
Inunda tudo de breu;
ninguém mais pode fugir ao espanto.93
22. Além das cortinas, são palcos azuis94
Figura 37. Fotografia da imersão de “Loucas do Riacho”, Baixios. 2016.
No campo das artes, teatro e performance interagem nos anúncios e práticas de
muito artistas contemporâneos. Eleonora Fabião defende que, “neste movimento, tanto
o campo da performance é ampliado pela perspectiva de artistas com formação em
93
“O gesto de sirena”, poema do livro “Manual de Afogamento”, ainda a ser publicado, parceria desta autora com o artista gráfico Lucas Moreira, e que compõe o escopo de criações do “Projeto Ofélia”. 94
Frase da canção “Vida”, composta por Chico Buarque.
102
teatro, como espetáculos teatrais ganham em vibração performativa” (FABIÃO, 2013,
p. 8).
No contrafluxo dessa perspectiva, dentro do circuito teatral, a ideia do que pode
ser considerado teatro, mesmo nos seus aspectos de contemporaneidade, persiste com
margens ainda duras, de modo que, se vamos mais à beira do campo, abrindo mão de
um conjunto de procedimentos em voga para arriscar-nos numa experimentação mais
radical, já sentimos a tentativa de expatriação do território dessa linguagem artística.
Acontece que a arte, de modo geral, recria seus limites na extrapolação constante de
suas bordas e a performance termina por acolher bem em seus domínios as obras de
linguagens diversas que tencionam de modo mais incisivo os limiares entre arte e vida.
Cabe ao criador interessado em continuar investigando
possibilidades de arte, de pensamento, de materialidade, de
mundo através do seu trabalho (como fez Duchamp), seguir
desfamiliarizando o familiar e gerando espaço para que outras
formas de vida, de instituição, de produção e recepção possam
ser articuladas, propostas, vividas. A ampliação da cena exige
um permanente questionamento sobre a razão de ser da cena em
fluxo histórico. (FABIÃO, 2013, p. 8).
No entanto, eu, particularmente, sigo reconhecendo-me como artista do teatro
em grande parte dos trabalhos que desenvolvo, permitindo-me, ao mesmo tempo,
habitar e infiltrar suas margens. Os princípios de teatro que vejo permanecerem são os
do processo de ensaios, os da busca pela abertura de canais para que o mundo se
expresse em cada corpo, na interação de corpos diversos (vivos ou animados), vozes,
palavras, na reinvenção da História, na ritualização da vida. Aqui duas políticas se
cruzam: afirmar que um trabalho como “Loucas do Riacho” é teatro, como um modo de
friccionar a linguagem e expandir o território da criação teatral por meio dos fluxos que
inspiram a vida contemporânea; e assimilar da performance, por meio da multiplicidade
de processos que ela estimula, não se atendo às formas de representação.
Não sei se é espetáculo, performance, vivência, acontecimento. Não
sei, entende? Ponho de lado o que sei e o que não sei de teatro ou de
arte e o que fica é que “As Loucas” (as loucas saem da zona de
conforto) me atiraram para o ponto/lugar do penetrar doloridamente
no interno. Uma escuta pra lá de sensível. Uma escuta da alma. Tá
103
doendo, mas não tenho dúvida que não dói só em mim. Estamos em
matilha!95
Trato, assim, de um teatro que se compõe na experiência renovada do
desconhecido, na relação contextual com diversos sujeitos e ambientes, e na ativação do
delírio, do sonho e da visagem. É um teatro que trabalha a ritualidade, sem ser “teatro
ritual”, que se arvora a dialogar com o invisível sem ser um “teatro espírita”, que abre
espaço para a transmutação de traumas sem ser “arteterapia”.
Essa dimensão ritualística, no "formato" (essa palavra não dá conta da
coisa-em-si, mas é o que tem pra hoje) que se deu e que permeou o
processo inteiro, ensaios e espetáculo, era algo um pouco distante da
minha prática artística, mais próximo das minhas incursões
"holísticas", por assim dizer, em experiências de cunho mais espiritual
- bruxaria, candomblé, o próprio catolicismo da minha infância. Óbvio
que nos treinamentos de teatro e dança, com exaustão seja por
movimento repetitivo e veloz ou por permanência, alcançamos estados
alterados, de percepção distinta, dilatamento etc. A criação artística,
em si, já nos abre canais ritualísticos, mas o que quero dizer é que nos
"moldes" do processo e das apresentações de “Loucas”, foi
absolutamente diferente de tudo que já havia feito.96
O teatro que aqui se pauta não busca ser outra coisa que não teatro, mas
tampouco se conforma ou se confina às determinações do que isto quer dizer – ou
melhor, no que aqueles que dominam os espaços discursivos dizem que o teatro seja.
Eu acredito que “Loucas do Riacho” é um trabalho de uma estética –
eu não sei nem se existe essa expressão desse modo -, mas acredito
que é uma estética decolonial. Decolonial no sentido de estar
esfacelando e rasurando os limites disciplinares da arte, no sentido do
limite disciplinar do que é teatro, do que é dança, do que é a vida, do
que é ritual, do que é performance, do que é ser, do que é produzir.
(...) E acho que fazer um trabalho com limites tão borrados configura
para mim um entendimento decolonial de arte. No sentido de que foge
dessa epistemologia na qual o teatro tem limites muito bem definidos.
E acho que é um trabalho onde esses limites são borrados, numa
perspectiva política e numa perspectiva de construção de outras
95
Trecho de relato da atriz baiana Mariana Freire, sobre sua experiência em “Loucas do Riacho”. Esse
relato foi originalmente publicado na página pessoal da atriz na rede social Facebook, em 17/03/2017. 96
Trecho de entrevista realizada por email, entre 23/04 e 22/08/2017, com a performer Olga Lamas. Esta
foi parte da resposta dela para a pergunta, “E havia aqueles caminhos, procedimentos etc nos quais você
não acreditava ou que desconhecia, e que passou a acreditar/vivenciar durante o processo?”
104
formas de saber, de produzir, de pensar e de engajar a si mesmo e ao
outro.97
23. Deus manda moscas às feridas que deveria curar98
Figura 38. Fotografia de “Lavagem”, Salvador. Mariana David, 2017.
O processo de criação do espetáculo “Loucas do Riacho” e da performance
“Lavagem” é traduzido por algumas mulheres como um processo de cura.99
Diante
desta afirmação, a pergunta que me ocorre é: o que há para ser curado e como é que se
pode conferir uma cura nesse âmbito? Essas perguntas, que não apontam para respostas
precisas, são capazes de estimular um conjunto de reflexões filosóficas e uma revisões
sobre uma ética de criação.
Esse ato criativo se desenrola como um caminhar com os pés descalços por
águas subterrâneas, geralmente contaminadas por matérias que ficaram estancadas em
alguma parte, repleta de restos de imagens, sentimentos, despedidas e ideias em
putrefação. Caminhar assim é, ao mesmo tempo, estar-se curando e adoecendo, por abrir
novos fluxos vivazes, ao mesmo tempo em que se é tomado pelo terror febril que é o
viver em sua profunda complexidade. Assumir a radicalidade de uma criação que se
97
Informação oral. Trecho transcrito de entrevista realizada por mim com Mônica Santana, uma das
atrizes de “Loucas do Riacho”, através de áudios de whatsapp, em 18/06/2017. A citação traz partes da
resposta dela para a pergunta “Quais descobertas do processo criativo você destacaria?” 98
Frase que ouvi do professor e encenador Luiz Marfuz, em referência a uma fala do filme “A árvore da
vida”, de Terrence Malick. 99
Entre as mulheres que expressaram esse sentido, estão as performers Olga Lamas, Mônica Santana, Liz
Novais.
105
abre para a experiência da vida em seus aspectos mais intensos e caóticos, é também
assumir o perigo, sempre eminente, de adoecer. Sendo assim, a cura a que me refiro é,
novamente, não uma finalidade determinada, mas a potencialidade de transformação
contínua da condição corporal e psíquica.
Nietzsche defende a valorização dos instintos, do corpo e seus ritmos
naturais como os únicos capazes de se orientarem em direção a uma
vida potente e vigorosa. A tentativa de atribuir sentido à vida,
contrariando e negando sua natureza trágica, caótica e desprovida de
certezas e de segurança, promove a degeneração das forças vitais, uma
vez que essa tentativa pressupõe o esquecimento de tudo que em nós
se caracteriza pela imprecisão, pela indeterminação, pelo movimento.
A guerra contra os instintos, contra o corpóreo provoca o
enfraquecimento do homem, pois é justamente o combate, o jogo de
forças que são fundamentais para sua saúde. (AZEREDO, 2010, p
250- 251).
Não se trata assim, nesta prática artística, de uma atitude terapêutica de cicatrizar
feridas ou sanar traumas, mas de reconciliar-se com o trágico, o irremediável e
assustador da existência, encontrando um gozo fabuloso em experienciar cada sensação
viva, em percorrer cada grito entalado no tempo e na história. É assim que vamos
ficando mais fortes e refazendo modos de relacionar-nos no mundo, reinventando meios
libertários de expressão. Trata-se de uma cura cruel, cujo fundamento é justamente o
contágio num âmbito de coletividade.
Em Lavagem, que compõe o projeto de “Loucas do Riacho”, a cada um dos dias
de encontro com as mais de 40 mulheres que participam, eu e Olga usamos cartas de
tarot – o ‘Oráculo da Deusa” (MARASHINSKY, 2007) - e propomos alguns exercícios
disparadores: um deles, pés que batem no chão, por longo tempo, em conjunto,
impulsionados pelo desejo de abrir as portas do chão, acordar as raízes, atiçar os
magmas. No coro caótico de suas batidas, que acontecem numa sala de tablado, num
espaço cultural do bairro do Rio Vermelho, uma miragem aparece para mim: a abertura
de fendas por onde afogamentos se transvestem, jorram como fontes de movimento,
gritos, cantos e risos.
Nos primeiros meses de encontro de “Loucas do Riacho”, eu e as meninas
chegamos numa casa à beira do mar, chamada “Estúdio da Sereia” e nos despojamos no
espaço cada qual ao seu modo. Eu chamo esse momento de “preparação”, mesmo
sabendo que todos os encontros são, em todo seu decorrer, ao mesmo tempo ação e
preparação. Este momento pode incluir relaxamento, aquecimento, alongamento ou o
106
que cada uma crê que precisa fazer para, do ponto de onde entrou na casa, ir chegando
mais inteiramente no espaço, abrindo os próprios sentidos para a relação. Depois de um
tempo, cada uma vai respondendo às proposições de cada dia, que preparo como
enunciados: “dançar o mar”, “ser um peixe que ganha pulmões e pisa, pela primeira vez,
na terra”, “convocar os próprios monstros e dar-lhes as mãos para dançar à beira-do-
abismo”, “imaginar que a memória é um rio que corre pelas cordas vocais e oferecer um
banho às demais”, “convidar as legiões que compõem o ser de cada uma e caminhar
pela praia com elas” e por aí vai. Em tudo isso, vejo fantasmas brotando vidas em
nós.100
24. Deixar nascer, deixar morrer
Figura 39. Fotografia do processo criativo de “Loucas do Riacho”. Na foto, Mônica Santana, na Casa de
Castro Alves, Salvador. Mariana David, 2017.
Poderia insistir na expressão de todo o sentimento que acumulei há pouco, mas
atrevo-me a abandonar o hábito de ser101
, desfazendo-me das intencionalidades que me
guiam. O vício da finalidade surge a toda hora: se balbucio alguns fonemas, parece que
tenho que chegar até o momento de dizer palavras, expressar algum texto em mais alto e
bom som, ou então cantar uma melodia compreensível. Ou, se amplio um gesto diante
do qual alguém se põe a contemplar-me, pergunto-me se não deveria obrigatoriamente
100
Referência à ideia de “plano fantasma”, presente no tópico 10, “O fantasma é uma dor que se repete”. 101
Frase emprestada da tese “Rumores discretos da subjetividade”, de Rosane Preciosa.
107
desenvolver uma ação mais duradora, uma dança ascendente, algo que vá preenchendo
aquele espaço aparentemente vago.
Mas o olhar do outro não me obriga a nada, apenas interage comigo no
impulsionamento de ações. É o modo como o outro é atravessado por cada
acontecimento que me atravessa na forma de novos atos, de silêncio ou grito.
O riacho-Ofélia dispersa as razões e sinto uma fonte de ecos fantasmáticos
jorrarem em meu corpo. Seu jato por vezes dura um tempo em que me agito, solto sons
longos e altíssimos, canto, danço e me dirijo a alguém. Outras vezes, dura quase nada,
como um arroto de memória que logo se esvai. Essa passagem tem rotas variadas, às
vezes longas, fluidas, às vezes muito rápidas, pontilhadas. Nenhum gesto precisa ser
mantido, mas tampouco precisa ser abandonado. O que vai definir o percurso, a
intensidade e a duração de cada gesto são as forças que atravessam cada intérprete no
momento da ação.
Movimentos de territorialização: intensidades se definindo através de
certas matérias de expressão; nascimento de mundos. Movimentos de
desterritorialização: territórios perdendo força de encantamento;
mundos que se acabam; partículas de afeto expatriadas, sem forma e
sem rumo. (ROLNIK, 2014, p. 37)
Assim vamos plasmando, no espaço e no tempo, as intensidades que nos
circundam, como se nosso corpo-sonoro fosse os lençóis, os sussurros, os rangidos e
vultos pelos quais os fantasmas ganham forma. A escolha entre fazer e não fazer algo
não se dá de modo premeditado, mas como um fluxo, onde a escolha não antecipa o ato,
mas efetua-se através dele.
Quando há escolha entre fazer e não fazer, dizer e não dizer, pra mim,
deixa de ser a voz das “Loucas”. Pra além da voz, qualquer
movimento, qualquer ação feita/acontecida precisa ser a
indispensável, a única possível, a que não se escolhe, a que acontece
porque inevitável, porque incontrolável - o fluxo, o rio em si, jorrando
porque é o que é. 102
25. Cacos para um vitral103
102
Trecho de entrevista realizada por email, entre 23/04 e 22/08/2017, com a performer Olga Lamas. Esta
foi parte da resposta dela para a pergunta, “O que é a voz das ‘Loucas’?”. 103
Frase emprestada do título de um livro da poeta Adélia Prado.
108
Figura 40. Colagem integrante do processo criativo de “Loucas do Riacho”. Lucas Moreira, 2016.
Preciso abrir um parêntesis para dizer que, em quase todo o tempo desta escrita,
estou morta de cansaço e sigo tomada de ansiedades e estresses variados, engolida pela
correria da vida, ainda que me remeta à experiência de esvaziamento desses acúmulos.
“Que contradição!”, exclamo, mas é que a vida é esse enredo de contrastes e desníveis,
e eu tento, como tantos, integrar os vários papéis que me cabem, mas a verdade é que
tratam-se de papéis geralmente conflitantes. Observo e experiencio, com estupefação, a
dimensão brutal da sobrecarga física e emocional a que estamos, de um modo geral,
submetidos e o quanto essa sobrecarga aumenta à medida que se reúne traços
identitários impactados pelas opressões históricas.
Assim, encaro as violências postas segundo minha condição de mulher, mãe de
um bebê, pesquisadora e artista, interagindo numa estrutura que, apesar de admitir
vários avanços em relação a direitos e políticas para as mulheres, segue atualizando
padrões que nos colocam em eterna desvantagem. Pelo acúmulo de funções e pelo grau
assomado de exigência dessas funções quando somos nós que as exercemos, o que
percebo é que estamos sempre mais cansadas, sobrecarregadas, consumidas e,
principalmente, vulneráveis. Ou seja, estamos sempre propensas a lidar repetidamente
com a experiência de afogamentos.
Creio que seja importante que, em nosso percurso e expressão, tragamos todo
esse desgaste à tona e tenhamos coragem de parar, mudar a rota, aceitar o cansaço,
abandonar caminhos em que a construção de relações de apoio mútuo não sejam viáveis
etc. De modo que exponho minha condição, admitindo a devastação que cada vivência
109
opera em cada ser, ao mesmo tempo que assumo outras perspectivas. Deixo de tentar
harmonizar as demandas irreconciliáveis que me acometem e passo a produzir uma
espécie de colagem de partes desencontradas de minhas experiências que apresenta, em
seu aspecto grotesco, uma qualidade de fascínio e excitação. Com esta perspectiva,
assumo as práticas criativas que desenvolvo como tempo-espaço de recombinação de
meu corpo dilacerado e exausto. Em cada dia, penso que este cansaço é o ponto de onde
parto e reafirmo que é permitido partir daquilo que sou agora, sem precisar me
desbaratar para alcançar uma condição exterior às minhas potencialidades atuais. Tento,
com a dignidade que conservo, fazer o cansaço caber em cada ato e nestas linhas.
A mulher afogada
enganou a todos.
Quem a viu
em meio a dívidas contornáveis,
crises com viagens,
laços, acasos, mistérios
e orgasmos
não percebeu.
Os pelos elétricos
como despencasse
na beira dos dias,
que não tem chão,
não tem parede,
não tem parada.
O medo de escuro
e silêncios profundos,
desde criança:
fechava os olhos
e via-se andando entre covas,
caveiras, velhos e jovens
de dentes podres,
mas não tão podres
quanto os seus.
A ênfase em falar
e sonhar e lembrar,
e andar e ver,
sem poder descansar,
tendo os órgãos roçados
por raios gama
e adensamentos vibratórios
de pensamentos tórridos.
Os choros e gritos,
e marcas de guerra,
110
carga de delitos, misérias
que, como os cheiros
de queimadas, como as almas
ignoram o fechar de portas,
a guarda armada das fronteiras
e entram, entram, entram.
A mulher afogada
enganou a todos,
menos àqueles
que eram peixes.104
26. Ser o rio
Figura 41. Colagem integrante do processo criativo de “Loucas do Riacho”. Lucas Moreira, 2016.
Para além do nome próprio, do registro, da identidade consolidada, somos
também o rio que vimos correr um dia. Ser o rio arrebenta as paredes da cronologia,
abre o tempo do vir a ser, do já ter sido, do voltar. O rio dissolve o invólucro do eu,
desarticulando-o em fluxos de sensações, superfícies e memórias.
No trabalho de abrir-se - corpo que se recria de modo disponível aos
movimentos de afirmação da vida - para as inquietações do espírito, para as tramas da
História, para a escuta de vozes expatriadas, para a multiplicidade de modos de
subjetivação, uma loucura sobeja: desconcretar-se em riacho, fluidificar-se num
manancial de seres, numa transexistência, numa vida sem início nem fim.
104
“A mulher afogada”, poema do “Manual de Afogamento”, ainda a ser publicado, parceria desta autora com o artista gráfico Lucas Moreira, e que compõe o escopo de criações do “Projeto Ofélia”.
111
Uma vida vulnerável, enrodilhada de sensações. Que tipo de
existência pode advir de estados informes? Aglomerados perceptivos,
agregados de signos dispersos, que brigam por um pouso na página
em branco, samplers sonoros que desafiam nossos ouvidos a se
introsarem com outras seqüências musicais. Que corpo suportaria
tanto assédio? Aquele que por extrema singularização cobiçasse
estranhas núpcias. E dela surgisse uma prole bastarda, vivendo à beira
de abismos. Um protagonista tão encarnado quanto anônimo, um
alargador de espaços, que acompanhe extasiado o pião da vida
manifestando sua coreografia vorticista. Alguém que emprestasse sua
carne à escuta da existência. Um tipo andarilho, um freqüentador de
quebradas, alguém disposto a “fazer um perigo”, segundo Clarice
Lispector. Um náufrago de si, que teima em ancorar seus navios em
terras devastadas. Sabe que viver desse jeito é intolerável, mas se
recusa a compreender isso. (PRECIOSA, 2010, p. 50)
112
IV ALAGAR
Figura 42. Fotografia da oficina-ação “Lavagem”, Salvador. Mariana David, 2017.
Nada a concluir, algo a retomar. Devir Ofélia iça um modo de viver entre
mundos, dissolvendo contornos de tal modo, que até o conceito da dissolução é borrado
– o que se anuncia como uma poética é uma estética, uma ética, nada disso, tudo um
pouco. É criar, meditando à beira do riacho; deixar que o tempo enlouqueça as
cronologias e dissolva as margens teatro-vida, pele-paisagem, eu-fantasma; saber que o
outro, inapreensível, é também um eu mutável e agenciar, na arte, possibilidades de ser.
Nas vias do contra-método, lançamo-nos num trânsito por sutilezas erradias.
Algumas placas, espalhadas no percurso, relembram: aceitar o vazio da página, do dia,
do coração, do pensamento, da ideia: saber-se precário e, nesta condição, dizer “sim,
estou aqui, estejamos”; resistir, movendo-se, todo dia, toda hora, sem descanso – e, ao
mesmo tempo, descansando de rotinas e obrigações caducas -, para não fixar-se em
estados opressivos e medíocres; recriar-se em cada criação, reinventar o fazer em cada
ato.
Ofereço uma pergunta-passo desta aproximação: o que, em nós, se compõe em
filetes d’água, cuja afluência, dissolve as ordens do mundo? E deixo um poema-
passagem.
O segundo crepúsculo.
A noite que mergulha no sono.
A purificação e o esquecimento.
113
O primeiro crepúsculo.
A manhã que foi a aurora.
O dia que foi a manhã.
O dia numeroso que será a tarde desgastada.
O segundo crepúsculo.
Esse outro hábito do tempo, a noite.
A purificação e o esquecimento.
O primeiro crepúsculo…
A aurora sigilosa e na aurora
a inquietude do grego.
Que trama é esta
do será, do é e do foi.
Que rio é este
pelo qual flui o Ganges?
Que rio é este cuja fonte é inconcebível?
Que rio é este
que arrasta mitologias e espadas?
É inútil que durma.
Corre no sonho, no deserto, num porão.
O rio me arrebata e sou esse rio.
De matéria perecível fui feito, de misterioso tempo.
Talvez o manancial esteja em mim.
Talvez de minha sombra,
fatais e ilusórios, surjam os dias.105
105
Poema “Heráclito”, de Jorge Luís Borges.
114
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117
LISTA DE FIGURAS
Figura 1. Excertos do livreto “Sete saltos para se afogar”. p. 18
Figura 2. Autorretrato, Salvador. Raiça Bomfim, 2011. p. 19
Figura 3. Colagem para o “Caderno Baleia”. Vânia Medeiros, 2012. p. 20
Figura 4. Fotografia de “Ofélia Blue, aprendendo a nadar – Primeiro estudo”,
Salvador. Priscila Fulô, 2011.
p. 21
Figura 5. Fotografia da experimentação cênica em “Empuxo: zona de encontro
de artes cênicas”, Largo Dois de Julho, Salvador. Fábio Tavares, 2012.
p. 22
Figura 6. Ensaio fotográfico “Ofélia vem”, São Paulo. Ditto Leite, 2013. p. 23
Figura 7. Imagem do livro “Manual de Afogamento”. p. 25
Figura 8. Fotografia do “Segundo estudo para Ofélia Blue”, São Paulo. Ditto
Leite, 2017.
p. 26
Figura 9. Ensaio fotográfico “Sereia do asfalto”, São Paulo. Ditto Leite, 2014. p. 27
Figura 10. Fotografia de “OFÉLIA: sete saltos para se afogar”, Espaço Xisto
Bahia, Salvador. Carol Garcia, 2015
p. 28
Figura 11. Fotografia de “Cidade Afogada”, Cajazeiras, Salvador. Aldren
Lincoln, 2016.
p. 29
Figura 12. Apresentação realizada no projeto Dominicaos, Salvador. Victor
Gargiulo, 2016.
p. 30
Figura 13. Fotografia de “Loucas do Riacho”. Na foto, a atriz/performer
Mônica Santana, Casa de Castro Alves, Salvador. Mariana David, 2017.
p. 31
Figura 14. Fotografia de “Lavagem”, Rio Vermelho, Salvador. Mariana David,
2017.
p. 32
Figura 15. Colagem para o programa de “Loucas do Riacho”. Lucas Moreira,
2017.
p. 33
Figura 16. Colagem integrante do processo criativo de “Loucas do Riacho”.
Lucas Moreira, 2016.
p. 34
Figura 17. Fotografia do processo criativo de “Loucas do Riacho”. Na foto,
Felipe Benevides e eu, na Casa de Castro Alves, Salvador. Mariana David,
2017.
p. 40
Figura 18. Imagem do livro “Manual de Afogamento”. p. 41
118
Figura 19. Colagem integrante do processo criativo de “Loucas do Riacho”. Na
foto usada na imagem, eu com meu filho, José. Lucas Moreira, 2016.
p. 46
Figura 20. Fotografia do processo criativo de “Loucas do Riacho”. Na foto,
Felipe Benevides, na Casa de Castro Alves. Mariana David, 2017.
p. 50
Figura 21. Fotografia do processo criativo de “Loucas do Riacho”. Na foto, Liz
Novais, na Casa de Castro Alves. Mariana David, 2017.
p. 52
Figura 22. Colagem integrante do processo criativo de “Loucas do Riacho”.
Olga Lamas, 2016.
p. 54
Figura 23. Fotografia do cortejo-oferenda “Lavagem”. Mariana David, 2017.
p. 55
Figura 24. Ensaio fotográfico de divulgação de “Ofélia: sete saltos para se
afogar”. Carol Garcia, 2015.
p. 59
Figura 25. Fotografia da temporada de “Loucas do Riacho”, na Casa de Castro
Alves. Mariana David, 2017.
p. 64
Figura 26. Fotografia do processo criativo de “Loucas do Riacho”. Na foto,
Olga Lamas, na Casa de Castro Alves. Mariana David, 2017.
p. 67
Figura 27. Fotografia do processo criativo de “Loucas do Riacho”. Na foto,
Camilla Sarno, na Casa de Castro Alves. Mariana David, 2017.
p. 68
Figura 28. Ensaio fotográfico de divulgação “Loucas do Riacho”. Na foto, eu,
Camilla, Felipe, Mônica, Uerla e Olga, na Casa de Castro Alves. Mariana
David, 2017.
p. 71
Figura 29. Fotografia do processo criativo de “Loucas do Riacho”. Mariana
David, 2017.
p. 74
Figura 30. Fotografia do processo criativo de “Loucas do Riacho”. Na foto, eu,
na Casa de Castro Alves, Salvador. Mariana David, 2017.
p. 77
Figura 31. Fotografia do processo criativo de “Loucas do Riacho”. Na foto,
Camilla Sarno, na Casa de Castro Alves, Salvador. Mariana David, 2017.
p. 83
Figura 32. Vestígios da imersão de “Loucas do Riacho”, Baixios. 2016. p. 88
Figura 33. Fotografia da oficina-ação “Lavagem”, Salvador. Mariana David,
2017.
p. 91
Figura 34. Fotografia do processo criativo de “Loucas do Riacho”. Na foto,
Uerla Cardoso, na Casa de Castro Alves, Salvador. Mariana David, 2017.
p. 92
Figura 35. Fotografia do processo criativo de “Loucas do Riacho”. Na foto, p. 97
119
Mônica Santana, Escola de Dança da UFBA, Salvador. Mariana David, 2016.
Figura 36. Colagem integrante do processo criativo de “Loucas do Riacho”.
Lucas Moreira, 2016.
p. 98
Figura 37. Fotografia da imersão de “Loucas do Riacho”, Baixios. 2016. p. 101
Figura 38. Fotografia de “Lavagem”, Salvador. Mariana David, 2017. p. 104
Figura 39. Fotografia do processo criativo de “Loucas do Riacho”. Na foto,
Mônica Santana, na Casa de Castro Alves, Salvador. Mariana David, 2017.
p. 106
Figura 40. Colagem integrante do processo criativo de “Loucas do Riacho”.
Lucas Moreira, 2016.
p. 108
Figura 41. Colagem integrante do processo criativo de “Loucas do Riacho”.
Lucas Moreira, 2016.
p. 110
Figura 42. Fotografia da oficina-ação “Lavagem”, Salvador. Mariana David,
2017.
p. 112