UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE TEATRO PROGRAMA DE ... · No potencial simbólico de seu...

120
0 UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE TEATRO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES CÊNICAS RAIÇA BOMFIM DE CARVALHO DEVIR OFÉLIA E A EMERGÊNCIA DE UMA POÉTICA DA DISSOLUÇÃO Salvador 2017

Transcript of UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE TEATRO PROGRAMA DE ... · No potencial simbólico de seu...

Page 1: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE TEATRO PROGRAMA DE ... · No potencial simbólico de seu suicídio e na força mitológica e arquetípica de seu destino, encontro não uma

0

UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE TEATRO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES CÊNICAS

RAIÇA BOMFIM DE CARVALHO

DEVIR OFÉLIA E A EMERGÊNCIA DE UMA POÉTICA

DA DISSOLUÇÃO

Salvador

2017

Page 2: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE TEATRO PROGRAMA DE ... · No potencial simbólico de seu suicídio e na força mitológica e arquetípica de seu destino, encontro não uma

1

RAIÇA BOMFIM DE CARVALHO

DEVIR OFÉLIA E A EMERGÊNCIA DE UMA POÉTICA

DA DISSOLUÇÃO

Dissertação submetida ao Programa de Pós-

Graduação em Artes Cênicas, da

Universidade Federal da Bahia, como

requisito para obtenção do grau de Mestre

em Artes Cênicas.

Orientadora: Profª. Drª. Daniela Maria

Amoroso

Salvador

2017

Page 3: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE TEATRO PROGRAMA DE ... · No potencial simbólico de seu suicídio e na força mitológica e arquetípica de seu destino, encontro não uma

2

Page 4: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE TEATRO PROGRAMA DE ... · No potencial simbólico de seu suicídio e na força mitológica e arquetípica de seu destino, encontro não uma

3

Page 5: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE TEATRO PROGRAMA DE ... · No potencial simbólico de seu suicídio e na força mitológica e arquetípica de seu destino, encontro não uma

4

AGRADECIMENTOS

Agradeço ao PPGAC-UFBA, pelo acolhimento desta pesquisa no programa; a minha

orientadora, Daniela Amoroso, pela cumplicidade e inspiração na materialização desta

obra; a Cássia Lopes, pela aceitação que viabilizou meu ingresso no mestrado; a Meran

Vargens, por todo o cuidado com que me ajudou a conduzir os trâmites burocráticos

desta empreitada; e Gilsamara Moura e Paula Lice, pelas ricas e generosas contribuições

à pesquisa enquanto parte da banca.

Agradeço às “Loucas do Riacho”- Camilla, Felipe, Liz, Mônica, Olga e Uerla -, pela

confiança, disponibilidade, afeto e por tudo que, juntas, efetuamos em nossa dança de

tempos e desejos; e a toda a equipe de criação que ofereceu suas habilidades e sonhos

para que “o riacho das loucas” transcorresse - Fábio, André, Márcio, Mariana, Lucas,

Júnior, Daniel e Laís.

Agradeço a todos que interagiram nas criações do Projeto Ofélia, compondo parcerias

preciosas; e a todos que passaram pelo Alvenaria de Teatro, onde tomei ciência da

potência de habitar as fronteiras.

Agradeço a José, meu filho, pela experiência assombrosa de multiplicar-me e dissolver-

me na potência do amor; a Leny, minha mãe, pela parceria sempre atenta, pelo estímulo

sempre vívido, pelo abraço quente, pela cooperação e guiança; a Sérgio, meu pai, pela

olhar doce e herança sensível, por estar sempre por perto nos momentos mais cruciais,

por toda sua ternura e amor; a André, por José e pelos caminhos compartilhados; a

Ana, comadre, pelo suporte fundamental de seus cuidados.

Agradeço a Saulo e Camilo, pelas leituras cúmplices, cuidadosas, e pelos diálogos

inspiradores; a Clarice pelo apoio de tradução do resumo; a Orlando, Alda e Daniel

Farias, pelas conversas-entrevistas cedidas; a Olga, mais uma vez, pela Gameleira e pela

beleza de parceria de trabalho e vida movimentada nesse território; a meus amigos

tantos, parceiros desta vida-arte, que de tantas formas me alimentam.

Agradeço a toda minha turma de mestrado, por toda a alegria, inspiração e acolhimento.

Page 6: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE TEATRO PROGRAMA DE ... · No potencial simbólico de seu suicídio e na força mitológica e arquetípica de seu destino, encontro não uma

5

Agradeço a tanta gente que me move e que, comigo, é movida; gente com quem tramo

tantos encontros – palpáveis ou imaginados - de inspiração, transbordamento,

dissolução, risco, contágio e cuidado: de amor.

Page 7: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE TEATRO PROGRAMA DE ... · No potencial simbólico de seu suicídio e na força mitológica e arquetípica de seu destino, encontro não uma

6

Criar é não se adequar à vida como ela é,

Nem tampouco se grudar às lembranças pretéritas

Que não sobrenadam mais.

Nem ancorar à beira-cais estagnado,

Nem malhar a batida bigorna à beira-mágoa.

Nascer não é antes, não é ficar a ver navios,

Nascer é depois, é nadar após se afundar e se afogar.

Braçadas e mais braçadas até perder o fôlego

(Sargaços ofegam o peito opresso),

Bombear gás do tanque de reserva localizado em algum ponto

Do corpo

E não parar de nadar,

Nem que se morra na praia antes de alcançar o mar.

(Waly Salomão – Sargaços)

Page 8: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE TEATRO PROGRAMA DE ... · No potencial simbólico de seu suicídio e na força mitológica e arquetípica de seu destino, encontro não uma

7

RESUMO

“Devir Ofélia e a emergência de uma poética da dissolução”, pesquisa de característica

prático-teórica, condensa os rumores criativos de um devir despertado por Ofélia, a

afogada de Shakespeare. A Ofélia que despenca no riacho, a mulher que se transmuta

em rio, a que enlouquece e canta, afirma neste texto e na prática que o engendra, uma

poética que dissolve o hábito do pensamento moderado, da comunicação domesticada,

do processo criativo pautado por regras estanques e dos ditames que demarcam cada

área de criação. Esta poética, que intitulo de poética da dissolução, emerge aos poucos

ao longo de criações sucessivas e, especialmente, durante o processo criativo do

espetáculo “Loucas do Riacho”. Ela nasce do cruzamento de uma poética da água e uma

poética da loucura e se materializa nos corpos criativos em qualidades de fluxo, trânsito,

abandono, disrupção, desorientação e vertigem. Essas qualidades terminam por

dissolver as divisas entre teatro, dança e performance, entre arte e vida, entre teoria e

prática, entre visível e invisível, entre condução e desorientação, entre movimento e

descanso, entre casa e rua, entre silêncio, palavra e som. A pesquisa se desenvolve

através da cartografia e da pesquisa performativa, (contra-)metodologias em cujos

cruzamentos são compostos os elos entre o corpus artístico e o corpus teórico do

trabalho.

Palavras-chave: ofélia, poéticas, teatro, performance, cartografia

Page 9: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE TEATRO PROGRAMA DE ... · No potencial simbólico de seu suicídio e na força mitológica e arquetípica de seu destino, encontro não uma

8

ABSTRACT

"Becoming Ophelia and the Emergence of a Poetics of Dissolution," a practical-

theoretical research, which condenses the creative rumors of a awakening process by

Ophelia, Shakespeare's drowning character. Ophelia, who falls in a lake, the woman

who transmutes herself into a river, who looses herself and sings, assures in this

manuscript and in the practice that engenders it. A poetics that dissolves the habit of

moderate thought, of domesticated communication, of the creative process ruled by

rules and dictates that demarcate each area of creation. This poetic, which is called the

poetics of dissolution, gradually emerges along the successive creations and especially

during the creative process of the performance "Loucas do Riacho". It emerges from the

intersection of "a poetic of water" and a "poetics of madness" and materializes in the

creative bodies in qualities of flow, movement, abandonment, disruption, disorientation

and vertigo. These qualities eventually dissolve the boundaries between theater, dance

and performance, between art and life, between theory and practice, between visible and

invisible, between conduction and disorientation, between movement and rest, between

home and street, between silence, word and sound. The research develops through

cartography and performative research, (against-)methodologies in which the links are

composed between the artistic corpus and the theoretical corpus of work. Keywords: Ophelia, poetics, theater, performance, cartography

Page 10: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE TEATRO PROGRAMA DE ... · No potencial simbólico de seu suicídio e na força mitológica e arquetípica de seu destino, encontro não uma

9

SUMÁRIO

I. APROXIMAÇÃO................................................................................................11

II. MINADOURO......................................................................................................16

III. DOIS ENLACES: DISSOLVER O ATO, DISSOLVER O PLANO...............33

1. CARTOGRAFAR UM RIO......................................................................................33

2. ACEITAR O VAZIO.................................................................................................40

3. VERTER-SE EM PALAVRAS ................................................................................41

4. SUJEITO ESTILHAÇADO......................................................................................46

5. TEMPO, TEMPO, TEMPO, TEMPO, ENTRO NUM ACORDO

CONTIGO.................................................................................................................50

6. COMO UM OBJETO NÃO IDENTIFICADO.........................................................51

7. PERMITIR O RIO.....................................................................................................54

8. UM RIO CHAMADO OFÉLIA................................................................................55

9. UMA MULHER QUE SE DESMANCHA...............................................................58

10. O FANTASMA É UMA DOR QUE SE REPETE....................................................64

11. ESTAR.......................................................................................................................66

12. DEIXAR SER............................................................................................................67

13. COMO EL MUSGUITO EN LA PIEDRA...............................................................70

14. HABITAÇÕES..........................................................................................................74

15. EU NÃO SEI PARA ONDE VAMOS......................................................................77

16. MINHA BOCA ESTÁ REPLETA DE SARGAÇO..................................................82

17. UM MAPA PARA SE PERDER...............................................................................87

18. BUSCAR AFLUÊNCIAS.........................................................................................91

19. NÃO PRECISAMOS FAZER NADA......................................................................92

20. DEIXAR QUE AS ÁGUAS DO CORPO RESSUMEM.......................................96

21. A PALAVRA QUE NEM CALA NEM DIZ..........................................................98

22. ALÉM DAS CORTINAS, SÃO PALCOS AZUIS...............................................101

23. DEUS MANDA MOSCAS ÀS FERIDAS QUE DEVERIA CURAR.................104

24. DEIXAR NASCER, DEIXAR MORRER..............................................................106

25. CACOS PARA UM VITRAL.................................................................................107

26. SER O RIO..............................................................................................................110

IV. ALAGAR............................................................................................................112

REFERÊNCIAS.................................................................................................114

Page 11: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE TEATRO PROGRAMA DE ... · No potencial simbólico de seu suicídio e na força mitológica e arquetípica de seu destino, encontro não uma

10

LISTA DE FIGURAS........................................................................................117

Page 12: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE TEATRO PROGRAMA DE ... · No potencial simbólico de seu suicídio e na força mitológica e arquetípica de seu destino, encontro não uma

11

I. APROXIMAÇÃO

Ao reencontrar Ofélia, numa releitura de Hamlet, de William Shakespeare, no

ano de 2011, sou tomada por um assombro. Sinto operar-se em mim uma mudança de

perspectiva diante da qual a personagem afogada passa a animar o desejo incontornável

de viver. No potencial simbólico de seu suicídio e na força mitológica e arquetípica de

seu destino, encontro não uma pulsão de morte, mas seu contrário. Ao lançar-se no rio,

Ofélia convida a despojar-me das opacidades que mortificam o estar no mundo e a tirar

dos ombros todo peso morto, para lançar-me na trágica experiência de renascer a cada

ato. Revejo-me como aquela que vinha trilhando um percurso perfeitamente palatável e

bem-educado e, por uma concatenação de fatos, aceita a trágica condição de se perder e

deixa-se transbordar em vibrações alucinadas e atordoantes, lançando-se em deriva por

um rio insondável.

Desse encontro com Ofélia e de seu impacto nas inquietações criativas que me

movem enquanto artista, nasce esta pesquisa. As estimulações que a alavancam têm seu

germe nas práticas do “Grupo Alvenaria de Teatro” (Salvador), o qual integrei até o ano

de 2012, e ganham densidade ao longo da criação do “Projeto Ofélia”, título sob o qual

reúno uma série de trabalhos criativos transpassados pela figura de Ofélia. No “Projeto

Ofélia”, território de práticas desta pesquisa, estão “os músculos que acionam esta

escrita” (FABIÃO, 2013, p 9). Ele abrange o espetáculo-solo “OFÉLIA: sete saltos para

se afogar” (2015), o primeiro e o segundo “Estudos para Ofélia Blue” (2012 e 2014), as

performances “Lavagem” (2017), “Cidade Afogada” e “Dobra” (2015), a escrita do

livro “Manual de Afogamento” (2013-2017), uma série de fotografias e pequenos

vídeos, além de outros desdobramentos pontuais. Abrange, em especial, o espetáculo

“Loucas do Riacho”, criado ao longo deste curso de mestrado, a partir do qual surgem a

maioria dos insights que movem este texto.

No pré-projeto desta dissertação, Ofélia aparece definida como meu objeto de

estudo. Aos poucos, ela vai se dissolvendo desse lugar e acende em mim a potência de

devir.

Devir é nunca imitar, nem fazer como, nem se conformar a um

modelo, seja de justiça ou de verdade. Não há um termo do qual se

parta, nem um ao qual se chegue ou ao qual se deva chegar.

Tampouco dois termos intercambiantes. A pergunta 'o que você

devém?' é particularmente estúpida. Pois à medida que alguém se

Page 13: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE TEATRO PROGRAMA DE ... · No potencial simbólico de seu suicídio e na força mitológica e arquetípica de seu destino, encontro não uma

12

transforma, aquilo em que ele se transforma muda tanto quanto ele

próprio. Os devires não são fenômenos de imitação, nem de

assimilação, mas de dupla captura, de evolução não paralela, de

núpcias entre dois reinos. (DELEUZE apud ZOURABICHVILI, 2004, p. 24)

Em devir Ofélia, vejo borrarem-se os contornos do ser-mulher, do ser-artista e

do ser-acadêmica. Sentindo-me arrastar por ela, vou assumindo um modo fremente e

precário de habitar a fronteira, de permear os liames arte-vida, corpo-gênero e

dissertação-ensaio. Despenco no riacho e sou conduzida à vertigem da criação, ao

transbordamento de sensações em formas estéticas, à diluição de hierarquias e normas

hegemônicas e à irrupção de uma expressão que excede a linguagem habitualmente

empregada. Esse devir desprograma os freios que me restringem a um modo pontual de

ser, a um conjunto de qualidades mensurável, a um jeito inequívoco de apresentar-me e

a um tempo cronometrável. Nesse trânsito, sinto o impulso em direção às potências

múltiplas do ser.

...todo devir forma um "bloco", em outras palavras, o encontro ou a

relação de dois termos heterogêneos que se "desterritorializam"

mutuamente. Não se abandona o que se é para devir outra coisa

(imitação, identificação), mas uma outra forma de viver e de sentir

assombra ou se envolve na nossa e a "faz fugir" (ZOURABICHVILI,

2004, p 24)

No lastro desse processo, há muito o que dizer e compartilhar, e há um apanhado

de vestígios que convoca à composição de espaços transubjetivos, favoráveis à

abundância dos modos de ser, fazer, conhecer e expressar. Desejo manifestar a escrita

como um “estojo de possíveis” (PRECIOSA, 2010, p 53), como uma convocação para

aproximações e expansão das vias através das quais afetar-nos mutuamente. Busco

engates e chaves que engendrem novas aberturas, pelas quais possamos adentrar com

diversas singularidades e banhar-nos nessas águas de contágio, nas quais a peste é a

coragem renovada para encarar os desejos e as estratégias para sua expressão. Reúno

peixes e cascalhos que disponho por entre meu traçado, organizando elementos que

desorganizam a língua e permitem que as forças caóticas se destampem e se apresentem

como modo sensível de partilha.

Trair a língua é forçá-la a compassar com a palpitação do corpo que

escreve. Inseminar tal euforia que a faça entortar, que a deixe fanha,

gaga. Que se desmanchem seus inteligíveis sintagmas para se ficar

Page 14: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE TEATRO PROGRAMA DE ... · No potencial simbólico de seu suicídio e na força mitológica e arquetípica de seu destino, encontro não uma

13

colado às palavras que mais se ama. Um corpo que não só trai, mas

rouba, aspirador de idéias que estão por toda a parte. Fino misturador

que concentra seus resíduos prediletos e os devolve sob a forma

anônima e desgarrada de pensar. A figuração da intensidade aérea de

uma idéia. (PRECIOSA, 2010, p 14)

Ao longo desta pesquisa, desenvolvo uma poética que intitulo de “poética da

dissolução”, tecida na encruzilhada de uma “poética da água”, com o seu potencial de

infiltração, transbordamento, apagamento e fluxo, e uma “poética da loucura”, com o

seu viés disruptivo, dispersivo, marginal e informe. A proposta de uma “poética da

dissolução” surge assim na vereda de uma terceira margem, onde o rio é o próprio

delírio. 1

Há, na produção deste caminho, a opção pelo trabalho de dissolução dos limites

que contém a criação e por uma quebra de barragens epistemológicas. Dou espaço ao

extravasamento de paradigmas criativos, num modo não-obediente, desatento aos

“nãos” impostos pelos cânones e disponível a experimentar, na afirmação da

multiplicidade da vida, trajetos instáveis de criação. Passeio pelos entre-lugares, pelos

estados que, não pertencendo nem a um território delimitado nem a outro, são operados

enquanto trânsito contínuo.

DIS

SOLUÇÃO

Para o que não tem remédio2

Na estrutura deste trabalho, começo refazendo o percurso criativo do “Projeto

Ofélia”, evocando as memórias, registros, escritos, vídeos e parcerias que compõem sua

tessitura. Este primeiro movimento – de ordem mais descritiva – está registrado na

seção inicial intitulada “Minadouro”. Em seguida, desenvolvo o conteúdo num grande

“enlace” em que duas operações se interpenetram A primeira, “dissolver o plano”,

refere-se ao tracejado de fugas e desvios da pesquisa e das metodologias e conceitos que

a animam. Tais conceitos comportam, eles próprios, a qualidade de transbordamento

que os impede de se restringirem a uma forma específica ou a um plano definitivo

estabelecidos a priori. Entre estas metodologias e conceitos estão a “cartografia”, de

1 Referência ao conto “Terceira margem”, de Guimarães Rosa, publicado no livro “Primeiras histórias”

(ROSA, Guimarães. Primeiras Histórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988) 2 Poema do livro “Manual de Afogamento” ainda por ser publicado, de autoria desta autora, que compõe

o escopo de criações do “Projeto Ofélia”.

Page 15: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE TEATRO PROGRAMA DE ... · No potencial simbólico de seu suicídio e na força mitológica e arquetípica de seu destino, encontro não uma

14

acordo com os trabalhos desenvolvidos por Gilles Deleuze, Félix Guattarri, Sueli

Rolnik, Virgínia Kastrup e Rosane Preciosa; a “pesquisa performativa”, segundo Brad

Haseman; a “poética da água”, segundo Gastón Bachelard; o “programa performativo”,

segundo Eleonora Fabião; e o “plano fantasma”, segundo André Lepecki. Já operação

complementar, “dissolver o ato”, exprime o conjunto de rumores que brotam da prática,

numa espécie de diário performativo dos encontros de criação. Esse procedimento

abrange uma experimentação de tradução dos fluxos do ato cênico em texto e teoria.

Apresento aí também registros de anotações e conversas com as atrizes e com a equipe

de criação do espetáculo “Loucas do Riacho”; trechos de entrevistas com pessoas que

assistiram ao espetáculo e que estiveram próximas do projeto; e trechos de textos

escritos espontaneamente pelo público a partir de suas percepções do espetáculo. Em

meio a isso, teço algumas sessões compostas como espécies de hiatos em que o texto

abre um espaço de conexão entre o corpo-que-se-escreve e o corpo-que-se-lê. Estas

sessões seguem o mantra criativo de “Loucas do Riacho” – “aceitar o vazio”, “estar”,

“deixar que as águas do corpo ressumem”, “buscar afluências”, “permitir o rio”, “ser o

rio”, “alagar” (este último servindo como espaço de conclusão). Durante todo o enlace,

há uma série de ecos de conversas com amigos, parceiros e provocadores diversos, que

aparecem diluídos em minha voz ou destacados em pequenos fragmentos transcritos.

Há também, ao longo de todo o texto, um grande apanhado de versos de poetas

que, em qualquer tempo, ensinam-me novas coisas sobre criar, viver e aprender. Repito

algumas explicações em notas de rodapé, a fim de que os leitores que, como eu, saltam

pelos atos de cada enlace, numa leitura descontínua, possam capturar melhor as

referências de cada um. Desejo que a leitura deste texto seja capaz de refrescar algum

desejo. E que as palavras sejam carpas que façam destas páginas um grande rio.

Criar: é disso que trata este encontro com Ofélia. O riacho em que Ofélia se dilui

corre e me atravessa numa dança de avanço e abandono. Mas ele não transcorre num

espaço puramente movediço e insondável. O rio, em seu trajeto de intensidades,

correntezas e substâncias, marca as linhas deste mapa, apontando justamente para

modos fluidos de produzir-nos. E forma pequenas ilhas nas quais é possível parar um

pouco, contemplar a paisagem e sentir a firmeza das intenções desta jornada.

Palavra de um artista tem que escorrer

substantivo escuro dele.

Tem que chegar enferma de suas dores, de seus

limites, de suas derrotas.

Page 16: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE TEATRO PROGRAMA DE ... · No potencial simbólico de seu suicídio e na força mitológica e arquetípica de seu destino, encontro não uma

15

Ele terá que envesgar seu idioma ao ponto de

enxergar no olho de uma garça os perfumes do

sol.3

3 BARROS, Manoel. Retrato do artista quando coisa. Rio de Janeiro: Record, 1998.

Page 17: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE TEATRO PROGRAMA DE ... · No potencial simbólico de seu suicídio e na força mitológica e arquetípica de seu destino, encontro não uma

16

II. MINADOURO

Ofélia transborda meu desamparo ao mesmo tempo em que diz, “você, em seu

tempo, pode fazer disso uma obra”. Assim nasce o “Projeto Ofélia”, em 2011, com

ações que se desdobram até hoje (2017). Começo mapeando essas ações tentando

recuperar as dúvidas, disposições e limitações que me guiam em cada etapa, e evocando

os parceiros de cada momento. O “Projeto Ofélia” compõe um percurso que, de modo

assíduo e, muitas vezes, acidentado, vai rasurando as possibilidades de formato bem-

acabado até diluir-se numa cena de fluxos de devir.

Em 2011, Ofélia me inspira a construção de um drama autoral, inicialmente

instigado pela complexidade da comunicação estabelecida nas relações amorosas. Passo

ali a imaginar desdobramentos dos diálogos entre Ofélia e Hamlet, compreendendo-os

como modelo arquetípico dos desníveis que se repetem no embate de forças de uma

relação em crise. Arrisco alguma coisa escrita.

Page 18: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE TEATRO PROGRAMA DE ... · No potencial simbólico de seu suicídio e na força mitológica e arquetípica de seu destino, encontro não uma

17

Page 19: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE TEATRO PROGRAMA DE ... · No potencial simbólico de seu suicídio e na força mitológica e arquetípica de seu destino, encontro não uma

18

Figura 1. Excertos do livreto “Sete saltos para se afogar”. (BOMFIM, 2017)

4

Escolho Ofélia, associada ao poema “A fogueira onde arde uma”, de Júlio

Cortázar5, como força propulsora de minha criação no experimento cênico “Fogueira”,

do “Grupo Alvenaria de Teatro”, que tem sua estreia ainda no final de 2011. “Fogueira”

traz uma dramaturgia criada em cena, numa experimentação de sonoridades, danças e

verborragias improvisadas com base na ideia de um encontro feminino para a

construção de um ritual heterodoxo de cura, prazer e celebração. Durante as

apresentações, a sensação de sufocamento e perda, e o desejo de transmutação das

memórias conduzem as falas que lanço na roda e confere o tônus aos movimentos que

desfraldo.

Simultaneamente, a profusão das imagens de Ofélia produzidas ao longo da

História me remete à experimentação plástica, que tangencio através de autorretratos.

4 Imagens da publicação do texto pela editora carioca Pipoca Press, na coleção Puxad_nho. O lançamento

em Salvador acontece durante o III Festival de Ilustração e Literatura da Bahia, em maio de 2017. O

texto, escrito em 2011, é usado em uma das cenas de “Ofélia: sete saltos para se afogar” até este ano,

2017, quando a cena a que pertencia se transforma e deixa de ter fala. 5 CORTÁZAR, Júlio. A Volta ao Dia Em 80 Mundos - Tomo II. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,

2008.

Page 20: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE TEATRO PROGRAMA DE ... · No potencial simbólico de seu suicídio e na força mitológica e arquetípica de seu destino, encontro não uma

19

Vou buscando o reflexo do eu-Ofélia, borrando minha própria face, deitando um véu

sobre a obviedade de meus traços para, por ventura, vê-la insurgir entre meus lapsos.

Figura 2. Autorretrato, Salvador. Raiça Bomfim, 2011.

Em 2012, encontro Vânia Medeiros, artista visual e parceira na produção de

livros. 6

Conto-lhe que vi uma dupla de baleias desde a praia do Buracão (Salvador,

Bahia), justamente quando pensava sobre a comunicação vibracional das baleias, capaz

de atravessar oceanos. Vânia traz a frase de Manuel de Barros, “o chão reproduz o mar”,

e começamos o “Boca Baleia”, que depois vira “Caderno Baleia”, e tem como proposta

unir palavra e imagem para colher insurgências pela cidade. Ofélia torna-se presente ao

desafogar-se numa boca de lobo que reflui ou num pouco de capim que perfura os

cantos da calçada, desfazendo os planos de contenção.

6 Eu e Vânia publicamos três livros juntas – “10Pontes”, “O que é uma casa?” e “12Lâminas”, ela na

ilustração e diagramação, eu na escrita textual.

Page 21: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE TEATRO PROGRAMA DE ... · No potencial simbólico de seu suicídio e na força mitológica e arquetípica de seu destino, encontro não uma

20

Figura 3. Colagem para o “Caderno Baleia”. Vânia Medeiros, 2012.

Nesse mesmo ano, apresento o primeiro estudo cênico inspirado em Ofélia.

Busco, com Ofélia, dançar as palavras, paisagens e pessoas que vão se perdendo e

surgindo no tempo. Penso num rio noturno e néon, assombrado por divas do blues

afogadas em bares e madrugadas. Encontro o disco do cantor e compositor Jards

Macalé, “Aprender a nadar”7, e me ponho a ouvir aquela voz nasalada e submersa,

aquele modo de cantar que se desenrola como uma conversa ou como um pranto

incontido e rouco, zombando de si. Subo no palco com um vestido azul royal

improvisando danças e sonoridades junto a Felipe André Florentino, pianista e

performer, além de pesquisador das relações entre música e movimento. A certa altura

da cena, decido “aprender a nadar” e coloco óculos, maiô e touca, fazendo uma

coreografia pitoresca entre um remelexo e gestos de natação. Desejo a superfície, a pele

das coisas, o modo frugal de estar junto. Divirto-me assim, deixando-me ser ridícula e

criança. Nomeio meu ser-Ofélia de “Ofélia Blue, aprendendo a nadar”. Vânia Medeiros

também está presente e projeta no palco a imagem em movimento de uma calçada de

pedras portuguesas com seus traçados ondulados, parecendo ondas.

7 MACALÉ, Jards. Aprender a nadar. Philips, 1974. LP

Page 22: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE TEATRO PROGRAMA DE ... · No potencial simbólico de seu suicídio e na força mitológica e arquetípica de seu destino, encontro não uma

21

Figura 4. Fotografia de “Ofélia Blue, aprendendo a nadar – Primeiro Estudo”, Teatro Gamboa Nova,

Salvador. Priscila Fulô, 2011.

Passados poucos meses, Salvador, onde então resido, parece abrir uma bocarra

sobre mim. Sinto a força asfixiante de sua conjunção de umidade, trânsito, escombro e

miséria. Temo afogar-me no asfalto e entendo que é hora de chafurdar o corpo na rua,

extravasar a cena pelos trânsitos urbanos. Participando do movimento artístico

“Empuxo: zona de encontro de artes cênicas”, decido sair caminhando, de vestido azul e

flores, pelo Largo Dois de Julho (região central e histórica da cidade de Salvador). Meu

propósito é olhar para as pessoas longamente, reinventando as normas da intimidade,

cultivando, no lugar da indiferença, diálogos em línguas imaginadas.

Page 23: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE TEATRO PROGRAMA DE ... · No potencial simbólico de seu suicídio e na força mitológica e arquetípica de seu destino, encontro não uma

22

Figura 5. Fotografia da experimentação cênica em “Empuxo: zona de encontro de artes cênicas”, Largo

Dois de Julho, Salvador. Fábio Tavares, 2012.

Em 2013, morando em São Paulo, retorno a Salvador para participar de uma

residência artística8, conduzida pelo filósofo da educação Jorge Larrosa. Ele propõe a

leitura de uma carta fictícia escrita por Hugo von Hofmannsthal, no início do século

XX, na qual um Lord do século XVII discorre sobre seu angustiante processo de

estranhamento da própria língua, uma espécie de afasia que se desenvolve não por uma

lesão cerebral, mas por uma moléstia que ataca o espírito9. A residência desperta novos

sentidos para a experimentação com Ofélia, assim como desperta a sensação frequente

de que as palavras que arremeto vão se diluindo até virarem água, poeira, coisa

nenhuma, já não é mais abjeta e necessária de superação. Passo a encarar esse processo

como um modo perfeitamente possível e particular de expressão: o de deixar que as

palavras jorrem, estanquem, soem ou se despedacem ao ritmo daquilo que as anima ou

aniquila. No dia da apresentação de minha proposta, projeto na parede a imagem de um

8 A residência foi articulada dentro da programação do “IC 7”, festival produzido pela Dimenti

Produções, naquele ano, em Salvador, e contava com a participação de mais 13 artistas. 9 Segundo o médico, cientista e escritor brasileiro Antônio Drauzio Varella: “Os quadros de afasia

instalam-se abruptamente, como consequência de lesões no cérebro provocadas por traumas ou acidentes

vasculares cerebrais (AVC), popularmente conhecidos como derrames cerebrais. De uma hora para outra,

o afásico perde a capacidade de compreender ou formular a linguagem. Deixa de falar e de entender o que

dizem as pessoas ao redor. É como se estivesse ouvindo uma língua estrangeira, desconhecida.” Excerto

de entrevista conferida à fonoaudióloga Fernanda Papaterra Limongi, publicada em seu blog. Disponível

em: <https://drauziovarella.com.br/entrevistas-2/11410/>. Acesso em 22 out. 2017.

Page 24: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE TEATRO PROGRAMA DE ... · No potencial simbólico de seu suicídio e na força mitológica e arquetípica de seu destino, encontro não uma

23

peixe beta que vive num aquário na casa de meu pai. Diante da projeção, vou dançando

e cantando os fluxos que sinto atravessarem a sala.

a linguagem na qual eu seria capaz não só de escrever, mas também de

pensar, não é nem o latina, nem o inglês, nem o italiano, nem

espanhol, mas uma linguagem na qual as coisas mudas por vezes

falam para mim e na qual, e talvez só no túmulo, tenha de justificar-

me diante de um juiz desconhecido. (HOFMANNSTHAL, 2010, p.11)

Alguns meses depois, viajo a Buenos Aires para encontrar o diretor teatral e

parceiro de criações Daniel Guerra. Convido-o para levar a câmera em nosso passeio

pela cidade, pois pretendo dançar Ofélia em alguma parte daquele trajeto. Enquanto

atravessamos um parque, reencontro a afogada numa poça d’água e aquele reflexo

borrado, com seus atavismos de água - estas que rondam tantos tempos do mundo, em

seu eterno paradoxo de limpidez e turvação -, destila em mim um movimento a que

ofereço corpo e passagem. Guerra, que está começando a experimentar a criação em

vídeo, liga a câmera e filmamos o “Celacanto Ofélia”.10

Em seguida, contagiada pelas experimentações fotográficas do dançarino e

fotógrafo Ditto Leite, convido-o para que, junto, re-convoquemos o fantasma Ofélia.

Experimentando a nudez associada a um conjunto de tecidos azuis, discorro

movimentos pelos cômodos da casa. Nomeamos o ensaio fotográfico de “Ofélia vem”.

Figura 6. Ensaio fotográfico “Ofélia vem”, São Paulo. Ditto Leite, 2013.

10

Vídeo livremente realizado e produzido por Daniel Guerra e Raiça Bomfim, em Buenos Aires, em

2013. Disponível em: <https://vimeo.com/91011128>. Acesso em: 04 nov. 2017.

Page 25: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE TEATRO PROGRAMA DE ... · No potencial simbólico de seu suicídio e na força mitológica e arquetípica de seu destino, encontro não uma

24

Ainda em 2013, ao ouvir um relato de afogamento do artista plástico mexicano

Omar Barquet, resolvo escrever um novo livro, em que Ofélia já nem aparece enquanto

nome, mas apenas enquanto ato: o de se afogar repetidamente. Começo a juntar notícias

de afogamento, trechos de livros que falam de afogados e informações técnicas sobre

procedimentos de salvamento, dentre as quais encontro descrições que são um

verdadeiro poema:

“2ª Fase de apneia – Existe um cerrar violento da boca e do nariz. (...)

Tendem a surgir sensações subjectivas como vertigens, zumbidos e

sensação de angústia. A vítima procura desesperadamente mover-se

para se manter à superfície”; “4ª Fase de convulções asfícticas –

ocorre a inundação dos pulmões. (...) Simultaneamente ocorre a perda

de consciência e a imersão total do corpo, num estado de total

relaxamento”; “5ª Fase terminal – a boca abre-se e o corpo assume

uma posição próxima da fetal. A morte surge pouco tempo depois”.11

Aproximo-me então do artista visual e performer Lucas Moreira, com o qual

desenvolvo uma parceria para o livro e, juntos, exploramos uma escrita aliada a

experimentações gráficas, sonoras e espaciais, abrindo o papel para que os gestos

deixem rastros. Delirando grafias, plasticidades, texturas, figuras, sobreposições,

apagamentos e borrões, vai sendo tramado o “Manual de Afogamento”.

11

Excertos extraídos da página eletrônica “Abcdesporto”

<http://wwwabcdesporto.blogspot.com.br/2009/07/as-fases-do-afogamento.html> Acesso em 28.07.2013

Page 26: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE TEATRO PROGRAMA DE ... · No potencial simbólico de seu suicídio e na força mitológica e arquetípica de seu destino, encontro não uma

25

Figura 7. Imagem do livro “Manual de Afogamento”.

12

No começo de 2014, tramo um segundo estudo cênico em que misturo um pouco

da narrativa de Ofélia em Hamlet, a história de meu encontro com a personagem e os

rasgos de dança, canto e sonho que ressaem nos devires alimentados nesse encontro.

Faço uma primeira temporada no Teatro Gamboa Nova, em Salvador, e, a partir das

apresentações em casas da comunidade da Pavuna no Rio de Janeiro,13

entendo que sua

potência está justamente no deslocamento para o ambiente familiar, para as salas de

casas espalhadas por cidades diversas. Descubro que esta cena tem uma qualidade de

mediação, como uma conversa sobre desejos e sonhos, e sobre o que é ou pode ser o

teatro. Arrumando no cômodo mais amplo de cada casa meu pequeno par de refletores,

e tendo acompanhamento do músico André Oliveira na operação sonora, conto e deliro

uma história autoficcional e canto, e danço, e desejo encontrar novos cúmplices de

naufrágio.

12

Parceria desta autora com o artista gráfico Lucas Moreira, e que compõe o escopo de criações do “Projeto Ofélia”. 13

Através da participação no Festival Home Theatre 2014, no qual o trabalho é premiado como melhor

cena.

Page 27: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE TEATRO PROGRAMA DE ... · No potencial simbólico de seu suicídio e na força mitológica e arquetípica de seu destino, encontro não uma

26

Figura 8. Fotografia da apresentação do “Segundo estudo para Ofélia Blue”, São Paulo. Ditto Leite, 2014.

Nesse trajeto, sempre que Ofélia aparece muito nítida, passível de esgotar-se

numa narrativa concisa, numa explicação pragmática, é hora de permitir que o olhar se

abandone nela, que os olhos se fechem e vagueiem no sonho. “Verá se tiver visões. Terá

visões se se educar com devaneios antes de educar-se com experiências, se as

experiências vierem depois como prova de seus devaneios” (BACHELARD, 2013, p.

18). Desse modo, terminada a primeira temporada desse segundo estudo, saímos, eu e o

fotógrafo Ditto Leite, em meio ao tráfego do Minhocão (viaduto atualmente

denominado Elevado Presidente João Goulart), em São Paulo. Quero manchar o asfalto

de azul, abrir um poço por onde os canos do silêncio estourem as buzinas. Passeio com

meus tecidos, cheios de transparência e tons de azuis, jogando músculos e panos no

vento que bafeja sobre o viaduto.

Page 28: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE TEATRO PROGRAMA DE ... · No potencial simbólico de seu suicídio e na força mitológica e arquetípica de seu destino, encontro não uma

27

Figura 9. Ensaio fotográfico “Sereia do asfalto”, São Paulo. Ditto Leite, 2014.

Em 2015, desejo investir na pesquisa sobre uma “poética da loucura” e dedicar-

me mais assiduamente às experimentações vocais. Preciso tentar saltar no vazio do

tempo, na memória das baleias, no grito dos musgos rompendo das pedras. Crio um

espetáculo solo junto a Erick Saboya, na cenografia, a André Oliveira, na direção

musical, a Felipe Benevides, na preparação corporal e a Ana Antar, na iluminação.

Construo a dramaturgia desse solo em níveis de submersão: a peça começa a partir do

ponto em que Ofélia é arrastada para dentro das águas e tudo o que transcorre são

movimentos debaixo d’água. Ofélia aparece em sua solidão, acompanhada pela

presença fantasmagórica do público, junto ao qual atravessa densidades diversas. A

loucura, a sensação de morte e de perda estão presentes em cena, mas não numa ordem

causal. Nomeio o espetáculo de “OFÉLIA: sete saltos para se afogar”.

Page 29: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE TEATRO PROGRAMA DE ... · No potencial simbólico de seu suicídio e na força mitológica e arquetípica de seu destino, encontro não uma

28

Figura 10. Fotografia de “OFÉLIA: sete saltos para se afogar”, Espaço Xisto Bahia, Salvador. Carol

Garcia, 2015.

Careço de voltar à rua. Ao fazê-lo, vejo a cidade, toda ela, como uma imensa

Ofélia afogando-se em si mesma. Cada deslocamento parece uma nova expressão da

fala desencontrada da afogada e cada avenida ou viela parece um dos veios pelo qual

flui o rio que a engole. Começo a criar, novamente junto com o músico parceiro André

Oliveira, a performance “Cidade Afogada”. Nela, uso dois pequenos bancos de sentar,

cada um provido de um microfone e de um fone de ouvido, e sento-me à espera de que

algum transeunte também resolva sentar-se no banco à frente para que submerjamos

juntos numa conversa-abraço, entre a balbúrdia dos carburadores. André Oliveira

captura estes sons e mescla-os com outras sonoridades pré-gravadas, reenviando para

nós, através dos fones de ouvido, aqueles estímulos.14

14

O registro audiovisual da perfomance “Cidade Afogada” está disponível em:

<https://vimeo.com/156415345>. Acesso em 04 nov. 2017.

Page 30: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE TEATRO PROGRAMA DE ... · No potencial simbólico de seu suicídio e na força mitológica e arquetípica de seu destino, encontro não uma

29

Figura 11. Fotografia de “Cidade Afogada”, Cajazeiras, Salvador. Aldren Lincoln, 2016.

15

Quando as palavras do “Manual de Afogamento” vão se proliferando em poemas

e prosas, passam a despertar-me vozes e sons diversos. Volto a ser a cantora afogada,

uma cantora que canta a própria fala enquanto cede aos abismos que co-habitam em sua

casa. Eu e André Oliveira tramamos então uma nova performance intitulada “Dobra”,

explorando diferentes relações entre palavra, sonoridade e corpo, partindo da leitura dos

textos do livro.16

15

Projeto “Silêncio embaixo d’água”, realização e produção da “Gameleira Artes Integradas”. Território

de articulações artísticas coordenado por esta autora e por Olga Lamas – realizado em janeiro de 2016,

através de edital de patrocínio da Fundação Gregório de Matos - Prefeitura de Salvador 16

O registro audiovisual da perfomance “Dobra” está disponível em:

<https://www.youtube.com/watch?v=1Crb3reGOdU>. Acesso em 04 nov. 2017.

Page 31: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE TEATRO PROGRAMA DE ... · No potencial simbólico de seu suicídio e na força mitológica e arquetípica de seu destino, encontro não uma

30

Figura 12. Fotografia de “Dobra”, realizada no projeto Dominicaos, Salvador. Victor Gargiulo, 2016.

Durante minha gravidez, parto e puerpério, em 2015-2016, começo a criação do

espetáculo “Loucas do Riacho”, como espaço para desaguar e transfigurar todo esse

percurso de criações do “Projeto Ofélia” e relacionar mais expressivamente o que

vislumbro como uma “poética da dissolução”. Compreendo que é hora de Ofélia pairar

sem nome, como uma força cuja linguagem transborda em loucura e cuja matéria se

dilui nas águas. Convido as atrizes/performers Camilla Sarno, Felipe Benevides, Laís

Machado17

, Liz Novais, Mônica Santana, Olga Lamas e Uerla Cardoso para construírem

o trabalho comigo e a equipe de criação que vai sendo composta, passa a contar com

Fábio Pinheiro, na cenografia e figurinos; Márcio Nonato, na iluminação; André

Oliveira, na sonoplastia; Mariana David, na fotografia; Lucas Moreira nas composições

gráficas; e Daniel Guerra nas filmagens.18

Em cena, somos sete corpos nus, com os

rostos cobertos por uma cabeça de sargaços, que habitam a Casa de Castro Alves,

espaço cultural no Centro Histórico de Salvador, enquanto o público se espalha por

entre nós. Começando ao entardecer e tendo uma duração variável, entre uma hora e

meia e três horas, o que fazemos é animar as possibilidades de escuta e a

experimentação de uma nova relação com o tempo.

17

Laís terá que se afastar durante o processo criativo, bem no momento em que Camilla, que meses antes

também havia tido que se afastar, retorna. 18

O registro audiovisual do espetáculo “Loucas do Riacho”, que estava disponível no plataforma

Youtube, foi bloqueado por algum motivo. Uma vez resolvido o problema, ele poderá voltar a ser

acessado em <https://www.youtube.com/watch?v=BYdL07aShyg&feature=youtu.be>. Acesso em 04

nov. 2017.

Page 32: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE TEATRO PROGRAMA DE ... · No potencial simbólico de seu suicídio e na força mitológica e arquetípica de seu destino, encontro não uma

31

Figura 13. Fotografia de “Loucas do Riacho”. Na foto, a atriz/performer Mônica Santana, Casa de Castro

Alves, Salvador. Mariana David, 2017.

Em 2017, durante o processo criativo do espetáculo “Loucas do Riacho”,

imagino um coro de mulheres andando pelas ruas da cidade, derramando movimentos e

águas para lavar a memória que impregna os asfaltos e revigorar a que neles soçobra.

Convido a produtora e atriz Olga Lamas para propormos uma ação juntas e surge o que

intitulamos de oficina-ação “Lavagem”, anunciada como sendo um processo sensível-

político, que trabalha a transfiguração das violências diversas sofridas por mulheres.19

Na metodologia da oficina, unimos a minha pesquisa sobre Ofélia e sobre uma “poética

da dissolução” e a pesquisa de Lamas sobre o silêncio, admitindo a ideia do silêncio

como ato de dissolver o discurso instituído e alavancar o movimento em fluxo. A

oficina culmina numa procissão-performance, com uma pequena multidão de mulheres

dançando-movendo desejos e fantasmas pelas ruas do Rio Vermelho (Salvador, Bahia),

no dia dois de fevereiro, Dia de Yemanjá.20

19

A participação na oficina-ação “Lavagem” aconteceu mediante inscrição gratuita, através de

convocatória destinada a 40 participantes maiores de 18 anos, com ou sem experiência artística. Como a

procura foi alta, terminamos por selecionar 55 mulheres para participarem. A oficina dura seis dias e

culmina com a performance coletiva no “dois de fevereiro”. 20

O registro audiovisual da perfomance “Lavagem” está disponível em: <https://vimeo.com/203467590>.

Acesso em 04 nov. 2017.

Page 33: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE TEATRO PROGRAMA DE ... · No potencial simbólico de seu suicídio e na força mitológica e arquetípica de seu destino, encontro não uma

32

Figura 14. Fotografia de “Lavagem”, Rio Vermelho, Salvador. Mariana David, 2017.

Page 34: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE TEATRO PROGRAMA DE ... · No potencial simbólico de seu suicídio e na força mitológica e arquetípica de seu destino, encontro não uma

33

III. DOIS ENLACES: DISSOLVER O ATO, DISSOLVER O

PLANO

Figura 15. Colagem para o programa de “Loucas do Riacho”. Lucas Moreira, 2017.

Uma mulher abre a boca e mostra a língua coberta por sargaços. Veste-se de

musgos e flores, chafurda no funeral dos sentidos. Está completamente perdida e faz

disso sua melhor saída. Abraça a desorientação, a perda, o desamparo e desliza pelas

sendas do instante. Pinga suas marcas no caminho traçando um mapa úmido e volátil.

Celebra a fugacidade das fórmulas e murmura que é possível parar um pouco, subir num

salgueiro, despencar num riacho, deixar-se afundar cantando, morrer as mortes

cotidianas, despojar-se de cansaços e embaraços, renascer. Encharca os vestidos de

quem a cerca, move barbatanas no abismo, convida a saltar no vazio.

1. Cartografar um rio

Page 35: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE TEATRO PROGRAMA DE ... · No potencial simbólico de seu suicídio e na força mitológica e arquetípica de seu destino, encontro não uma

34

Figura 16. Colagem integrante do processo criativo de “Loucas do Riacho”. Lucas Moreira, 2016.

As marcas desta pesquisa - sua dicção, seu jeito de corpo, seu temperamento -

nascem de fracassos consecutivos. São matérias soterradas que emergem no interior de

meus desabamentos, no movimento de afirmar a vida por entre escombros.

Ofélia é o território movediço no qual derramo questões, pulsões, proposições,

práticas, textos e desejos. Quanto mais percorro a louca afogada, mais ela respinga suas

águas em minhas propostas e borra qualquer possibilidade de apreendê-la numa

sistemática qualquer.

No pré-projeto desta dissertação, eu anuncio uma pesquisa cartográfica - que,

todavia, só aos poucos vai tomando corpo e sentido. Não há como cartografar sem antes

ser arrastado pelo vórtice gerado no derribamento de nossos territórios mais habilmente

cultivados. Inúmeras vezes, refugo e acabo persistindo num modo formatado,

conduzido, respaldado e indiferente ao fulgor da vida, ainda que celebrado nos recantos

mornos da apreciação comedida. São muitos os elementos à nossa volta que repetem

padrões contrários à experiência e aliam uma necessidade excessiva de ter uma “opinião

formada” à ilusão da informação, achatando o pensamento num processo que mecaniza

a expressão ao submeter a subjetividade à produtividade. Mas minha falta de traquejo

com a construção de edificações estáveis e bem-aceitas, invariavelmente lança-me para

as corredeiras da dúvida e da tentativa.

Descubro, em minha inabilidade para a constituição de uma estrada de estudo

exemplarmente pavimentada, o talento para manter-me à deriva, deixando-me afogar

frequentemente e sentindo meus pulmões reaprenderem a respirar sob o céu aberto.

Page 36: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE TEATRO PROGRAMA DE ... · No potencial simbólico de seu suicídio e na força mitológica e arquetípica de seu destino, encontro não uma

35

Destituo o pensar moldado a protocolos habilmente repetidos, para saudar fugas,

desacertos e ruídos.

Construo este trajeto ao passo em que o percorro - atenta à movimentação viva

das várzeas - e o olhar que abro para Ofélia deixa-me mover pelos sonhos,

alumbramentos e alucinações que ela engendra. É um olhar-devir, que salta na imagem

da louca afogada e canta o que vai vendo neste espaço entre superfície e fundo.

Já de saída, libero-me, com Ofélia, de sua responsabilidade exacerbada enquanto

personagem composta numa das maiores obras clássicas da dramaturgia universal - o

“Hamlet”, de Shakespeare. As águas de Ofélia exaltam meus fluidos e transbordam-me

para novas zonas de existência e expressão. O texto de Shakespeare serve-me de

motor de ideias, imagens e sentidos, e retorno a ele sempre que preciso encontrar novos

rastros ou me reconectar com alguns princípios, sem travar uma investigação sobre o

que está encoberto pelo texto, ou o que é verdadeiro e o que é falso nas leituras que se

desenvolvem. Invoco os princípios antropofágicos, cujos ecos, já incorporados nos

preceitos de um cartógrafo, estimulam uma relação apaixonada e de transformação

constante.

Ela [a antropofagia] se caracteriza pela ausência de identificação

absoluta e estável com qualquer repertório, a abertura por incorporar

novos universos, a liberdade de hibridação, a flexibilidade de

experimentação e de improvisação para criar novos territórios e suas

respectivas cartografias. (ROLNIK, 2014, p 19)

Aceito a dissolução das intenções de enquadrar, delimitar, direcionar e não

resvalo na pretensão de que a escrita assimile mecanismos pelos quais a criação

configure métodos reproduzíveis. O que proponho, em contrapartida, é uma

deambulação por zonas instáveis, por onde soam murmúrios visionários, soterrados

pelos bons modos, pelo bom-gosto, pelo pavor de encarar as turbulências da criação e

da vida.

Enquanto me sinto incapaz de ocupar os espaços que requisitam de mim ideias

muito assertivas, teorias bem acabadas, etapas e assuntos bem compartimentados, Ofélia

se mistura à minha voz para dizer, “vamos juntas, sem nunca saber onde vamos parar”.

O “não-saber” torna-se, com ela, um modo de “ir sabendo”, aprendendo e, ao mesmo

tempo, ir desaprendendo, num espécie de saber que se constitui com modelagens

dinâmicas.

Page 37: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE TEATRO PROGRAMA DE ... · No potencial simbólico de seu suicídio e na força mitológica e arquetípica de seu destino, encontro não uma

36

Não entendo. Isso é tão vasto que ultrapassa qualquer entender.

Entender é sempre limitado. Mas não entender pode não ter fronteiras.

Sinto que sou muito mais completa quando não entendo. Não

entender, do modo como falo, é um dom. Não entender, mas não

como um simples de espírito. O bom é ser inteligente e não entender.

É uma bênção estranha, como ter loucura sem ser doida.

(LISPECTOR, 1984, p 253-4)

O pressuposto de um “saber-fazer”, resultante da pretensão de um domínio das

ferramentas que autorizam cada fazer, dá lugar a um “saber da experiência”

(LARROSA, 2002), um tipo de aprendizado em que o que é dado não se apreende, mas

se opera em nosso organismo e provoca mutações: aquilo que conhecemos é agora parte

de nós e fala sobre nós. A experiência pode ser vista como o modo do mundo ser em

nós e mover-nos, o que depende de atravessamentos e que não tem necessariamente a

ver com acúmulos de informações, dados, temas e vocabulários.

Esse tipo de saber, o “saber da experiência”, ativa a atenção às movimentações

do mundo, a escuta das vozes circundantes e a disponibilidade para rever as ideias. É

um saber que acontece no mesmo espaço de vazios, riscos e dúvidas onde se dá o

encontro com o outro – material ou virtual – e onde se opera a transformação de um ser

presente em outro ser presente, formado por novos acontecimentos, poderes, faltas,

apetites, fragilidades e desvarios.

A Ofélia comportada, dócil e obediente do início da trama do clássico de

Shakespeare fustiga-me contra toda aceitação passiva e inquestionada diante de regras,

modos, conceitos, métodos e leis normatizadas em seus campos específicos. Sua

loucura, despontada após a perda do pai e o afastamento intempestivo de seu amante,

Hamlet, deflagra aqui uma voz profunda que só encontra vias de expressão a partir dos

ocos abertos pelo desamparo, pela perda e pelo apagamento de referenciais rígidos e

engessados.

A cartografia, nesse caso, acompanha e se faz ao mesmo tempo que o

desmanchamento de certos mundos – sua perda de sentido –e a

formação de outros: mundos que se criam para expressar afetos

contemporâneos, em relação aos quais os universos vigentes

tornaram-se obsoletos. (ROLNIK, 2014, p 23)

Ao propor-me despir das normatizações, duvido da maioria das validações

possíveis, vivendo amplamente o desafio de não me conformar a uma escrita pré-

Page 38: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE TEATRO PROGRAMA DE ... · No potencial simbólico de seu suicídio e na força mitológica e arquetípica de seu destino, encontro não uma

37

formatada, rígida, conservadora, nem admitir soçobrar no clichê e na mesmice tantas

vezes acobertados sob a aba do contemporâneo. O que as emanações da

contemporaneidade nas artes me oferecem de mais precioso é, ao contrário, a

cumplicidade no cultivo de olhares e parâmetros fluidos, que se reinventam a cada novo

movimento experimentado no processo de criação. O valor da obra não é dado por seu

alinhamento a arranjos mais ou menos “em voga”, mas pelos efeitos que produz nos

corpos movidos em seu fluxo. O que exige um rigor renovado, que se constitui

enquanto compromisso com os propósitos éticos e políticos da pesquisa, que só se

efetiva através de ações assiduamente trabalhadas – de modo prático e/ou sensível -, o

que exige fôlego para questionamentos, falências e reelaborações constantes.

Conectar-se às forças caóticas da vida, que contagiam o pensamento,

exige coragem de se libertar de um modelo profissional de seu

exercício. Um modo de conhecimento escoltado por um saber formal,

capaz de articular discursos competentes e desonestos do ponto de

vista existencial. Varrem-se as incertezas, isolam-se as idéias

estranhas, inclassificáveis, evita-se qualquer sensação de desamparo.

Enxota-se a vida para o outro lado da calçada, procurando neutralizar

os percalços que significa viver. Faz-se de tudo para não desalinhar o

cotidiano. Encarna-se um tipo de subjetividade de prontidão, incapaz

de aderir ao risco que é estar vivo e pensar. (PRECIOSA, 2010, p 28)

Cartografando um rio, percorro um território inconstante, encarando o pavor, a

vertigem e a agonia. Lidando com a iminência de fracassar outra e mais uma vez,

aventuro-me em zonas volúveis entre as quais sou impedida, pelo meu próprio traçado,

de fixar ou exaurir o desejo numa análise ou tradução quaisquer. Salto no rio-Ofélia,

percorrendo sua qualidade imanente de permanecer em estado de passagem e fluxo.

Fluir e não recusar nada das paisagens que este rio toca e corta é a missão que assumo,

não sem hesitações, temores e alguns recalques acidentais, e, sim, com a decisão de

desembaraçar-me, quantas vezes for preciso, do vício do lugar seguro e estacionário.

Opto por aceitar o não-controle sobre os enredos que vão se tramando, alargando ao

máximo o campo de explosão das vicissitudes de cada matéria. Sinto o chão que escorre

por debaixo do corpo sem que os pés possam jamais paralisar.

Tomo como bússola da pesquisa a vivacidade, a potência e a vibratilidade21

do

que se apreende, se agencia, se encontra e se despeja no caminho. Experimento, pois,

21

Alusão ao conceito de corpo vibrátil, de Suely Rolnik. Segundo a autora, o corpo vibrátil é a

capacidade que “nos permite apreender o mundo em sua condição de campo de forças que nos afetam e se

fazem presentes em nosso corpo sob a forma de sensações. (...) com ela, o outro é uma presença viva feita

Page 39: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE TEATRO PROGRAMA DE ... · No potencial simbólico de seu suicídio e na força mitológica e arquetípica de seu destino, encontro não uma

38

fazendo pontes imaginárias entre paradoxos, mudando diversas vezes de traçado,

deixando-me tomar pela perplexidade de esbarrar-me com vias sem saída e portas

batidas com a chave dentro. Trilho um campo de deslizamento contra-metodológico22

,

pelo qual, não sabendo onde vou chegar, esqueço de me preocupar com

direcionamentos e finalidades. A viagem é o próprio destino, é na deriva pelo fazer

criativo que se constrói uma obra viva, a qual não termina de se criar, e que, de modo

mais sutil ou mais intenso, se dissolve e se transmuta em outra obra.

Tenho que arriscar modos de efetuar paulatinamente as intensidades que me

rondam. Abro meu caderno de criação tateando intensidades: tudo que faz vibrar o

corpo e sua capacidade de pensar (-se) interessa para a criação desta cena, deste ato,

deste texto.

(...) o cartógrafo absorve matérias de qualquer procedência; não tem o

menor racismo de freqüência, linguagem ou estilo. Tudo o que der

língua para os movimentos do desejo, tudo o que servir para cunhar

matéria de expressão e criar sentido, para ele é bem-vindo. Todas as

entradas são boas, desde que as saídas sejam múltiplas. Por isso o

cartógrafo serve-se de fontes as mais variadas, incluindo fontes não só

escritas e nem só teóricas. Seus operadores conceituais podem surgir

tanto de um filme quanto de uma conversa ou de um tratado de

filosofia. (ROLNIK, 2014, p 65)

Encaro ao mesmo tempo a diversidade de inspirações e a falta de referências

modelares para materializar cada um dos impulsos criativos que me rondam. O que há é

um conjunto de referências desconjuntadas, que encaram a efemeridade do teatro e da

vida bailando incessantes nascimentos e mortes, e rascunhando ideias que se permitem

desabar antes do acabamento final. Sei que estou tomada pelo sentido de buscar e que

esta busca preserva a honestidade em assumir a falta de talento e disposição para

dominar diretrizes e procedimentos consagrados, permitindo-me guiar por pistas

vagabundas, por rumores de um corpo trêmulo que adoece, cura, retrai, expande.

(...) Havemos de gritar em coro com o náufrago

com a voz ensopada

de estrondo e ruína:

Catástrofes!

Planos por água abaixo,

de uma multiplicidade plástica de forças que pulsam em nossa textura sensível, tornando-se assim parte

de nós mesmos” (ROLNIK, 2016, p 3) 22

Termo que se conecta com as propostas de Paul Feyerabend, em seu livro “Contra o método”

(FEYERABEND, 1989).

Page 40: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE TEATRO PROGRAMA DE ... · No potencial simbólico de seu suicídio e na força mitológica e arquetípica de seu destino, encontro não uma

39

notas e sabedorias tomadas

por algas, bolachas, peixes palhaços.

Com a boca encharcada de outras palavras

que nem sabemos o que significam

vertemos a língua no espaço.

Mesclamos nossa voz à das águas

fazendo soar a palavra

de onde nascem

as ilhas...

(sob as quais,

- saravá, afe maria –

a paixão não é vício;

absolvição).23

Conclamo assim as pequenas tragédias rotineiras e encontro tesouros por entre a

carcaça das navegações em que afundo. Escrevo para, ao invés de neutralizar ou

pacificar minhas marcas, assumi-las como o canal pelo qual Ofélia regurgita e reencarna

renitentemente em matérias que não cansam de se ofertar à transfiguração.

(...) a marca conserva vivo seu potencial de proliferação, como uma

espécie de ovo que pode sempre engendrar outros devires: um ovo de

linhas de tempo. E assim vamos nos criando, engendrados por pontos

de vista que não são nossos enquanto sujeitos, mas das marcas,

daquilo em nós que se produz nas incessantes conexões que vamos

fazendo. Em outras palavras, o sujeito engendra-se no devir: não é ele

quem conduz, mas sim as marcas. O que o sujeito pode, é deixar-se

estranhar pelas marcas que se fazem em seu corpo, é tentar criar

sentido que permita sua existencialização - e quanto mais consegue

fazê-lo, provavelmente maior é o grau de potência com que a vida se

afirma em sua existência. (ROLNIK, 1993, p. 242)

Repetidamente, na passagem pelos territórios aqui ponteados, estarei só e, ao

mesmo tempo, repleta de comparsas, o que é uma grande sorte. Pratico esta jornada em

bandos que se fazem e refazem, e expando minha solidão por entre cumplicidades, que

se permitem ao abandono, sem se negligenciar. Conto com interlocuções diversas nesta

pesquisa e minha voz, aqui expressa, é fruto do encontro e contaminação de muitos

timbres e sotaques. Assim, dou-lhes as mãos nesta navegação de localidades

multidimensionais. Podemos estar, a um só tempo, à beira do rio, dentro do rio, sendo o

23

Trecho do poema “Náufrago”, do livro “Manual de Afogamento”, ainda a ser publicado, parceria desta autora com o artista gráfico Lucas Moreira, e que compõe o escopo de criações do “Projeto Ofélia”.

Page 41: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE TEATRO PROGRAMA DE ... · No potencial simbólico de seu suicídio e na força mitológica e arquetípica de seu destino, encontro não uma

40

rio. E é na profunda implicação em cada aspecto desse nosso estar que é tecida esta

cartografia.

2. Aceitar o vazio

Figura 17. Fotografia do processo criativo de “Loucas do Riacho”. Na foto, Felipe Benevides e eu, na

Casa de Castro Alves, Salvador. Mariana David, 2017.

Se as coisas nos reduzem simplesmente a nada,

do nada simplesmente temos que partir

(Antônio Cícero/João Bosco/Waly Salomão)24

Há um espaço em branco que precisa ser preenchido com texto e conceito; um

lugar em silêncio esperando por um gesto amplo, uma voz retumbante, uma história;

leitores e platéia atentos. Todavia, o que tenho a oferecer é nada. Nada, este

acontecimento; nada, o meu olhar; nada, os pés descalços; nada, muitas marcas; nada,

um par de sonhos; nada, este trajeto; nada, um som distante; nada, a experiência; nada.

Nada, nada, nada, repito, e me remeto ao ato contínuo: permaneço em movimento nas

águas de um rio. Estou sempre afogada e, no entanto, tempos descontínuos cohabitam

em mim: não paro de cantar, ainda louca e acordada, deslizando pela flor da superfície.

Ao perceber o tamanho das expectativas que este encontro gera – com o texto

dissertativo ou com o teatro - ameaço uma terrível contrição. Talvez eu devesse ter

preparado alguma certeza que me colocasse a salvo desta flutuação perigosa diante dos

olhares e desejos alheios. “Alheios ou meus?”, surge a dúvida.

24

BOSCO, João. Zona de Fronteira. Sony BMG Music Entertainment, 1991. CD

Page 42: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE TEATRO PROGRAMA DE ... · No potencial simbólico de seu suicídio e na força mitológica e arquetípica de seu destino, encontro não uma

41

Respiro. Relembro as falas de um mestre de butô com quem fiz uma breve

oficina25

cujos ecos permanecem vibrantes. É preciso dançar o corpo que se é e se este

corpo está perdido, está cansado ou está doente, essas condições fazem parte de sua

dança.

Respiro mais um pouco. Deixo meu peso achar lugar sobre a cadeira, sobre o

chão, sobre as pedras, pela areia, entre papéis e teclas de computador. Vazio e nada se

averbam26

, viram um ato - esvaziar, nadar – gerando um contrafluxo dos acúmulos de

toda ordem.

Quebradas as expectativas usuais da encenação e da dissertação, e esfumaçadas

a altivez e o controle do intelectual e do artista, podemos desistir de esconder nosso

desamparo e, juntos, permanecer um pouco aqui. Abrir um espaço para que o tempo

goteje em nós.

3. Verter-se em palavras

Figura 18. Imagem do livro “Manual de Afogamento”

27

25

Oficina de Butoh Ma, com o mestre Tadashi Endo, realizada em 2011, pelo Festival Vivadança, em

Salvador. 26

Ideia inspirada na fala de Gilsamara Moura, durante a etapa de qualificação desta pesquisa. Gilsamara

disse algo como, “você verbou o nada”. 27

Parceria desta autora com o artista gráfico Lucas Moreira, e que compõe o escopo de criações do “Projeto Ofélia”.

Page 43: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE TEATRO PROGRAMA DE ... · No potencial simbólico de seu suicídio e na força mitológica e arquetípica de seu destino, encontro não uma

42

Não sei dizer ao certo quando esta pesquisa começa. Em 2011, dou as primeiras

rascunhadas em textos e imagens que surgem do meu encontro com Ofélia e, só algum

tempo depois, dou início aos preâmbulos de um transbordamento da prática criativa

para uma pesquisa de mestrado. Demoro de entender como compor-me nesse espaço,

ainda que me sinta de certa forma familiarizada ao ambiente acadêmico. Costumo

escolher poucos livros que leio devagar e repetidamente, detenho-me por muito tempo

em certos trechos, esqueço as páginas abertas enquanto, estirada no chão, divago no eco

de meia dúzia de palavras que escolhi lembrar. Dou longas pausas, distraio-me, saio

andando pelas ruas para colher nas formas do dia o complemento das pequenas

epifanias que a leitura me traz, busco amigos para confabulações inúteis sobre frases

soltas, leio a teoria buscando nela o poema e vice-versa. Por isso, guardo a impressão de

que meu ritmo e minha prosódia são difíceis de harmonizar com as prerrogativas desse

lugar. Preciso de muitos saltos e grandes quedas para compreender que estes aspectos

que pareciam empecilhos são, na verdade, o farol desta embarcação fantasma28

.

Essa adesão ao invisível, eis a poesia primordial, eis a poesia que nos

permite tomar gosto por nosso destino íntimo. Ela nos dá a impressão

de juventude ou de rejuvenescimento ao nos restituir

ininterruptamente a faculdade de nos maravilharmos. A verdadeira

poesia é uma função de despertar. (BACHELARD, 2013, p. 18)

Entro no mestrado em 2015, quase ao mesmo tempo em que estreio o solo

“OFÉLIA: sete saltos para se afogar”. Engravido pouco tempo depois e tenho toda

minha rotina e planos desmontados. Embaraço os propósitos desta empreitada frente à

vivência devastadora que é ser mãe, ainda mais na cidade contemporânea, com sua

urdidura de isolamentos e pressas. Tenho pouquíssimas chances de preparar um espaço

de concentração, silêncio e tranquilidade que a leitura e escrita dissertativa parecem

exigir.

Começamos, eu, Camilla, Felipe, Laís, Liz, Mônica, Olga e Uerla29

, os encontros

de Loucas do Riacho com José, meu filho, pendurado em meu peito. Transcorro num

longo processo criativo que me alimenta e desafia. Ao chegar em cada ensaio, proponho

que primeiro deitemos no chão, para descansar da vida lá fora. “Mas o que é o lá fora”,

28

No tópico 10, “O fantasma é uma dor que se repete”, esse entendimento de Ofélia enquanto fantasma

será retomado. 29

Camilla Sarno, Felipe Benevides, Laís Machado, Liz Novais, Mônica Santana, Olga Lamas, Uerla

Cardoso. Laís sairá pouco depois do início do processo, e, em seguida, Camilla Sarno, que terá se

ausentado por um período, voltará a integrar o grupo.

Page 44: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE TEATRO PROGRAMA DE ... · No potencial simbólico de seu suicídio e na força mitológica e arquetípica de seu destino, encontro não uma

43

pergunto-me, “se a vida é isto que escorre por toda parte?”. Visito a sensação de que

qualquer lugar onde não se possa parar para respirar um pouco e deitar os pesos à terra

desaloja a vida enquanto pulsão afirmativa.

Paralelamente aos ensaios, recebo indicações de leituras que não consigo

cumprir. Sinto-me cada vez menos propícia ao desenvolvimento da dissertação,

inculcando angústias e pudores. Esqueço que a pesquisa é, mais do que qualquer coisa,

o curso da criação de “Loucas do Riacho” e que é enquanto artista que construo meu

saber.

Às vésperas da estreia de “Loucas do Riacho”, perco minha primeira orientadora

pelos atrasos na entrega de capítulos e sinto novamente a vertigem de subir ao salgueiro

e abandonar-me nas correntezas do não. Era a tromba d’água que faltava para me

entregar de vez ao sabor do devir. Refaço as missões que me competem: fazer-me caber

assim, materna, consumida, experimentada, cheia das marcas de minhas criações e dos

murmúrios de suas repercussões, neste texto. E insuflar aqui a presença dos corpos que

compuseram esse processo, com seus ecos poderosos. Nada que me obrigue a renegar o

que produzo de mais sincero, presente e vivo poderá fazer sentido. Deixo-me afogar

mais uma vez enquanto canto minha ruína e dádiva.

A quem interessa o trabalho feito em detrimento de si, o trabalho que adoece,

que insistentemente nos tira as forças e apenas mortifica pelo pressuposto de que não

somos bons o suficiente e que o nosso saber vale pouco ou nada? Como modos de

trabalhar e pensar assim podem persistir até mesmo no campo das artes, onde o fluxo

criativo evoca uma afirmação imensurável da vida e das forças que a admitem? Na

inquietação destas perguntas, encontro novos comparsas, nova orientação, nova

vitalidade e novos paradigmas, e respondo com um novo sim para este corpo que sou.

Aos poucos, no enfrentamento dos estresses variados e colapsantes, consigo entrever

uma grande saúde30

. Deixo que a teoria ressume de cada experiência, das mais criativas

às mais banais.

Escrevo as filosofias que fustigam meus dedos e atrevo-me a dançar e resfolegar

por estas páginas. Paro, levanto, percorro o corredor da casa, giro, vou à varanda,

30

“Eu espero ainda que um médico filosófico, no sentido excepcional do termo - alguém que persiga o

problema da saúde geral de um povo, uma época, de uma raça, da humanidade -, tenha futuramente a

coragem de levar ao cúmulo a minha suspeita e de arriscar a seguinte afirmação: em todo o filosofar, até o

momento, a questão não foi absolutamente a “verdade”, mas algo diferente, como saúde, futuro, poder,

crescimento, vida”. (NIETZSCHE, 2004, p.10-12)

Page 45: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE TEATRO PROGRAMA DE ... · No potencial simbólico de seu suicídio e na força mitológica e arquetípica de seu destino, encontro não uma

44

fantasio os movimentos de um novo espetáculo, sento, escrevo mais, coloco o bebê no

colo, paro antes que ele destrua as teclas, vou brincar com ele, esquentar a comida,

arrumar a casa, enquanto desvio os olhos do relógio, das contas e tento inventar rituais

de transfiguração de prazos. É assim, reconhecendo a riqueza volumosa e os saberes

engendrados na prática da vida, que inclui e ultrapassa as salas de ensaio, que o devir-

Ofélia-cartógrafa vai desabando sobre o texto e esboçando uma escrita-corpo.

Para azucrinar o ego e seu pegajoso cortejo de arrogâncias. Para

desaprender a reprovar a vida, essa nossa insistente mania de

desqualificá-la. Para se desvencilhar da idéia de que a vida nos reserva

um propósito, e cabe a cada um de nós desvendá-la. Para aprender a

rugir para o que é pesado e instituído. Para desatolar a subjetividade

das formas acabadas. Para ser pega em “flagrante delito de fabular”.

(PRECIOSA, 2010, p 21)

Quebra-se aqui a hierarquia entre pensar e sentir, buscando exaustivamente

alternativas de “como passar do sensível ao pensado e do pensado ao sensível sem que

haja domínio de um sobre o outro?” (NOVAES, 1988, p 13). Alinho-me, desta maneira,

com uma epistemologia do corpo31

, que tensiona as epistemes mais conservadoras,

pelas quais o pensamento e o saber teórico separam-se, sobrepõem e antecipam à

experimentação prática e que rejeitam sistematicamente as obscuridades, vulgaridades e

todo tipo de dejeto que o corpo físico produz e que a vida, em seu cotidiano ordinário,

abarca. Admito, por fim, que “O que em mim sente está pensando” (PESSOA apud

NOVAES, 1988, p 13).

Escrever é um fluxo entre outros, sem nenhum privilégio em relação

aos demais, e que entra em relações de corrente, contracorrente, de

redemoinhos com outros fluxos, fluxos de merda, de esperma, de fala,

de ação, de erotismo, de dinheiro, de política, etc. (DELEUZE, 1992,

p 17)

Cultivo gretas no texto, por onde ele se misture às coisas de que fala, que roce as

bordas do campo da pesquisa científica, misturando-se à arte de que brota, de modo a

reunir forma e conteúdo. Ocorre-me que esta dissertação seja, na verdade, um ato de

manifestar: de tecer um manifesto, declarando os princípios e intenções de uma arte do

sim; ou fazer uma manifestação que articula políticas em prol de criações que inspirem

31

Ecos de uma conversa com o amigo, performer e professor Saulo Moreira, reverberando suas leituras

de Espinoza.

Page 46: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE TEATRO PROGRAMA DE ... · No potencial simbólico de seu suicídio e na força mitológica e arquetípica de seu destino, encontro não uma

45

a vida, acolhendo seu veemente cortejo de mortes e desastres; ou ser o cavalo pelo qual

manifestam-se as forças que me rondam. Manifesto-me aqui, numa busca sincera e

obstinada pela encarnação de forças vivas, no percurso complementar ao dos rituais de

incorporação. Aqui é o corpo que ateia seus espíritos nas palavras, uma palavra-babá-

xamã-anarquista-baderneira.

Nessa busca, encontro muitas vozes consonantes. Há uma variedade enorme de

artistas pesquisadores fazendo de seu descompasso com o modos operandi da academia

o motor para a expansão dos limites da pesquisa em artes.

Tem ocorrido um impulso radical para não somente colocar a prática

no âmbito do processo de pesquisa, mas para guiar a pesquisa através

da prática. Originalmente propostas por artistas/pesquisadores e

pesquisadores na comunidade criativa, essas novas estratégias são

conhecidas como prática criativa como pesquisa, perfomance como

pesquisa, pesquisa através da prática, pesquisa de estúdio, prática

como pesquisa ou pesquisa guiada-pela-prática. (HASEMAN, 2015, p

43)

Escuto as palavras que brotam de minha pele, em minha potência de auto-

ficcionalizar-se e produzir memória, linguagem e coletividade. A partir daí, é que vou

alinhavando frases e parágrafos, entre tensões, magnetismos, dispersões, insurgências e

dissoluções repetidas. Jorro neste texto aquilo que colhi nos redemunhos.

Estou-sendo enquanto me esparramo pelo vir-a-ser destas páginas. Dou

passagem à subjetividade, produzo-me, transvaso no corpo do texto. Enfrento embates,

engasgos, boicotes e, a cada vez, digo um novo sim.

Um corpo, uma engrenagem de sensações que intrigam textos o tempo

todo. E esses textos que vão sendo produzidos são muito ruidosos,

exatamente porque operam vozes que discordam entre si.

(PRECIOSA, 2010, p 25)

No lugar reservado para uma hipótese, trago um inquietante encantamento por

Ofélia e pelas revelações criativas operadas através dela. E vou me guiando pelos ecos

de suas materializações na prática de criação.

(...) muitos pesquisadores guiados-pela-prática não iniciam o projeto

de pesquisa com a consciência de “um problema”. Na verdade, eles

podem ser levados por aquilo que é melhor descrito como “um

entusiasmo da prática”: algo que é emocionante, algo que pode ser

Page 47: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE TEATRO PROGRAMA DE ... · No potencial simbólico de seu suicídio e na força mitológica e arquetípica de seu destino, encontro não uma

46

desregrado, ou, de fato, algo que somente pode tornar-se possível

conforme novas tecnologias ou redes permitam (mas das quais eles

não podem estar certos). Pesquisadores guiados-pela-prática

constroem pontos de partida empíricos a partir dos quais a prática

segue. Eles tendem a “mergulhar”, começar a praticar para ver o que

emerge. (HASEMAN, 2015, p 44)

Adauto Novaes diz, no capítulo de abertura de seu livro intitulado “O olhar”, que

“apenas uma visão despojada dos sentidos e do corpo pode levar à evidência, à essência,

à certeza.”32

Escrever com os olhos abertos em Ofélia e nos corpos movidos por sua

imagem é deixar que o corpo criativo, o corpo vívido e errático da cena jorre na palavra

escrita. Que o fluxo poético se infiltre na teoria e escorra por estas linhas. É permitir-se

transcorrer pela efemeridade das descobertas, por entre o leito das perguntas. É festejar

o movimento enquanto estratégia de sobrevivência, reivindicando exaustivamente a

vida. É não se deixar coisificar, tampouco embotar. É não sucumbir à linguagem e fazer

o contrário: animá-la de múltiplas possibilidades, erotizá-la. Recebo assim os sussurros

de Ofélia neste corpo e neste corpus de criação e pesquisa.

4. Sujeito estilhaçado

Figura 19. Colagem integrante do processo criativo de “Loucas do Riacho”. Na foto usada na imagem, eu

com meu filho, José. Lucas Moreira, 2016.

32

NOVAES. Adauto. O OLHAR. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. Pág 11

Page 48: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE TEATRO PROGRAMA DE ... · No potencial simbólico de seu suicídio e na força mitológica e arquetípica de seu destino, encontro não uma

47

“Eu, Antonin Artaud, sou meu filho,

meu pai,

minha mãe

e eu mesmo”

(ARTAUD)

Eu, pronome pessoal assumido aqui, traz rasgos de minha dicção, meus trejeitos,

meus valores e minhas vivências, mas também extravasa os contornos que me

restringem como um alguém específico, peculiar, definido. Determino o sujeito destas

orações, anunciando minha presença para saltar no vazio da página, na corredeira do

tempo, na pluralidade de vozes, identidades e acontecimentos que roçam em minha

língua. Este eu, aqui expresso, conclama seus atravessamentos e vai diluindo meu ser-

em-mim para alçar devires, deixando-me espalhada, dissolvida nas páginas nas quais

me propago para traduzir as intensidades com que me produzo.

Para um performer, “organismo”, “sentido” e “sujeito” são atos – nem

algo, nem dados, nem plenos, nem prontos, nem repetíveis, mas atos,

atos performativos – e, como tal, configurações momentâneas de

aderências-resistências, modos relacionais em devir. (FABIÃO, 2013,

p 6)

Ao assumir-me enquanto sujeito dessas orações, estou, na verdade, dispondo-me

como espaço mutável de possibilidades, de produção de subjetividades, enquanto

refúgio de expressões coletivas alojadas na intimidade de cada ser. Sou-me ao mesmo

tempo em que observo a mim mesma com um olhar de riso, desprendido de mim.

Substituo o ato de vestir uma máscara pelo de desvestir o próprio rosto, encavando-o,

reivindicando apaixonadamente a “multiplicidade pura e sem medida, a malta, irrupção

do efêmero e potência da metamorfose” (DELEUZE e GUATTARI, 1997, p. 8).

Esta pesquisa dissipa qualquer tentativa de encontrar-me enquanto sujeito pré-

acabado em cujo cerne instaura-se uma verdade essencial. No lugar disto, entrego-me à

existência fluida, ao ser na turba desenfreada que se agita no espaço transpessoal de

onde estas palavras pululam. Desejo descentrar-me de tal modo que seja possível

habitar em outros estados de ser e pensar.

Um sujeito é um receptáculo de formas, urna de devires, fabulador

incansável de estados, rastreador de possíveis. Força viva que deseja

produzir-se como forma que dê passagem à articulação de

pensamentos furiosos, palavras insubordinadas, sintaxes tumultuosas,

que espantem por um momento a obrigatoriedade de um eu-nome,

Page 49: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE TEATRO PROGRAMA DE ... · No potencial simbólico de seu suicídio e na força mitológica e arquetípica de seu destino, encontro não uma

48

esse contrato formalizado no cotidiano, que, de repente, se plasma e

acomoda um eu blindado, que blefa, promete uma infinita trégua à

essa mediação sempre tensa entre um nome, uma forma, um mundo.

(PRECIOSA, 2010, p 57)

O “to be or not to be” expressa-se enquanto política de ser-estar no corpo-eu-

Ofélia. Há um gesto, uma palavra, um ruído, uma circunstância em que estou e que me

excede em devir. Encontro espaços de passagem por entre as frestas dos tantos papéis

articulados neste percurso. Enlouqueço, me afogo e no ímpeto desbaratado de sair de

mim para me ver refletida em outrem, alastro a necessidade fulminante de traduzir uma

intimidade que irrompe no espaço. Apresento-me ao avesso, deixando que meus

escombros mais íntimos se materializem em pequenos sinais, gestos, texturas,

movimentos, sons que são eu e, ao mesmo tempo, me desmontam.

Reencontro minha criança, ao oferecer-me à reinvenção, renascendo-a a cada

gesto e parágrafo. Este eu, remoçado e em tentativa de despojamento de velhos

rancores, derrama-se por onde passa, sempre inacabado, partido em pedaços,

despedaçando-se, redescobrindo uma consistência nos espaços interrelacionais, nos

vincos, nas ondas vibracionais. É um sujeito em brotação.

Brotar pelo meio é opor-se a um destino que progride em direção a

algo, é acariciar riscos, acumular êxitos e retumbantes fracassos, é se

infiltrar por alguma vizinhança, fazendo conexões, é povoar o

cotidiano de incertezas, é recolher-se numa tenda de silêncios, num

gesto de delicadeza diante do que está a se formar e maturar diante de

si. (PRECIOSA, 2010, p 42)

A noção de autoria que se apresenta aqui é a que se compõe por meio de

articulações e agenciamentos de teorias, vozes e delírios. Enquanto escrevo, sinto-me,

com frequência, ser movida pelos corpos de “Loucas do Riacho” e/ou dos parceiros de

meu antigo grupo, o Alvenaria de Teatro. O que digo compõe-se como sambaqui,

juntando excessos sedimentados em misturas com conchas, algas, pequenos peixes

mortos. O “eu” é arrastado pela vazão incontrolável da vida e deságua num trans-eu,

que são outras e outros.

“ (...) Ao escrever (...)

o ego some, esfuma,

E o nume Ninguém Nenhures é quem assume a autoria.”

(Waly Salomão, apud PRECIOSA, p 31)

Page 50: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE TEATRO PROGRAMA DE ... · No potencial simbólico de seu suicídio e na força mitológica e arquetípica de seu destino, encontro não uma

49

Visto escafandros e mergulho numa excursão para percorrer os cômodos

secretos de navios encalhados. A cada braçada, um espanto: quanto mais fundo adentro,

mais fora de mim me alcanço. Ao perceber que os cacos que colho nas epidermes

exteriores compõem meus sentimentos mais íntimos, reconheço que minha perspectiva

é substrato das dimensões que em mim se hospedam. As singularidades que integram

meu arranjo se fazem e refazem nos trânsitos com aquilo em que me perco e me

recordam que “no combate entre você e o mundo, prefira o mundo”33

.

Vibro com cada descoberta, agitando-me para espalhar seus sinais. Tento

ferozmente manter-me na fissura por onde as verdades rebentam como jatos d’água que

encharcam e se desfazem em seguida.

Este sujeito em ruínas, em nossos dias é incapaz de deter

conhecimentos enciclopédicos, de determinar-se conforme uma só

realidade. Stratos sincroniza-se com este sujeito múltiplo que encontra

sempre novas diferenças a serem erotizadas. Momento do devir em

que são consideradas as experiências do “entre” – entre sons e

pessoas, entre acontecimentos que não contem causas e efeitos claros.

O sujeito des-subjetivado desponta como um agente paciente de

sincronicidades. (HAOULI, 2002, p 60)

Boa parte desta pesquisa foi composta por solos – os estudos cênicos, as

performances, e o espetáculo “Ofélia: sete saltos para se afogar”. Em cada etapa e ação,

contei com muitos parceiros e interlocuções, mas foi em “Loucas do Riacho” e

“Lavagem”, com a presença de outros corpos em performance, que algumas das

perspectivas mais preciosas desta pesquisa encontraram espaço de irrupção. Em

“Loucas do Riacho”, cada performer aparece com uma cabeça de sargaços que, sem os

pudores e traços que a exposição da rostidade impinge, abre sua nudez para que as

superfícies se rocem, permitindo estar-se e, ao mesmo tempo, desfazer-se. Somos ali

corpos multiplicados e multiplicando outras presenças num espaço de existências nuas e

sem rosto. E neste devir-Ofélia, efetivado por um coletivo de corpos e na tensão de seus

estados, na flexão de seus caminhos, na produção intermitente de conexões e diferenças,

sinto emergirem as qualidades de coro, ranhura, hiato e ruído de minhas vozes.

É preciso o esforço da torção para chegar a desconjuntar o sujeito que

se é, que se acostumou a ser. E poder aparecer diante de si mesmo

33

Aforismo de Franz Kafka, usado em citação do texto “Notas sobre a experiência e a experiência do

saber” (LARROSA, 2010, p. 20)

Page 51: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE TEATRO PROGRAMA DE ... · No potencial simbólico de seu suicídio e na força mitológica e arquetípica de seu destino, encontro não uma

50

estranho, áspero, alquebrado, ambulante, um balaio de muitos.

(PRECIOSA, 2010, p 55)

5. Tempo, tempo, tempo, tempo, entro num acordo contigo34

Figura 20. Fotografia do processo criativo de “Loucas do Riacho”. Na foto, Felipe Benevides, na Casa de

Castro Alves. Mariana David, 2017.

Olho à minha volta e tudo corre depressa, mas, nas pernas e nas almas, a

musculatura é flácida, consequência de uma corrida desbaratada pela qual as energias

não circulam, mas estagnam. Sinto uma opressão no peito: algo em mim parece estar

sendo comprimido, suprimido, sufocado. Compreendo, depois de muita angústia, que

isto tudo pode não ser nada: um nada que precisa de espaço; um nada que preciso ser.

Decido fazer um pouco de yoga ou, talvez, sentar-me para um exercício de

meditação. Essas práticas me ajudam, mas a emergência do que me afeta ultrapassa

estas ações. O que clama por existir é estético e cruel, evoca um tempo em que o

próprio tempo se reinventa, onde histórias são redimensionadas, paisagens são

reconstituídas, um tempo em que corpos eclodem e não apaziguam. Alastram-se

centelhas furiosas por dimensões múltiplas, asseverando o ato lancinante de expressão.

Este é, muitas vezes, um tempo que explode, cujo silêncio trinca os vidros: é um tempo

do teatro.

Imagino criar como quem medita à beira de um riacho. Criar e desentulhar o

corpo, o pensamento, a rotina, a memória, o desejo. Criar e devolver o corpo ao nada,

34

Trecho da canção “Oração ao tempo”, de Caetano Veloso.

Page 52: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE TEATRO PROGRAMA DE ... · No potencial simbólico de seu suicídio e na força mitológica e arquetípica de seu destino, encontro não uma

51

desestressar-me do hábito de cumprir demandas, resolver as coisas; despreencher. Mas

há muitos compromissos a honrar, não posso abandonar tudo de modo inconsequente.

Então negocio uma consessão possível: o compromisso de infiltrar devaneios, silêncios,

deslizes e vãos nos afazeres. E abrir um buraco no concreto armado exige um trabalho

de grande dedicação, ânimo e vigília.

Passo, então, a trabalhar a criação em deriva, pesquisar os descaminhos. Burlo o

bom juízo que pede que eu seja produtiva, produzindo restos, intervalos, pequenas

mortes; onde pedem que eu seja prática, pratico o sonho sobre um chão de madeira ou

num terreiro, ou pelas calçadas; reuno, como se fossem conchas, dúvidas, sonhos,

intuições, angústias.

Entoo uma oração às águas: que elas restituam às relações comuns sua porção

mágica. Pesco palavras, sons e movimentos no vão do pensamento. Respiro, sempre e

de novo, deito, ou sento, ou deixo-me estar como estiver. Solto-me na imensidão do

agora-em-mim, sou cada peixe que morde meu anzol.

Nesse teatro, o que se percute é o caos em que mergulho e onde nos

encontramos. Nas lacunas que a cena cria ou revela, há uma voz que diz que é possível

parar um pouco, subir num salgueiro, cair num rio, deixar-se afundar cantando,

celebrando a morte cotidiana. Desejo encharcar os vestidos de quem me cerca, convidar

à submersão. Tudo (não) faz sentido, esteja aqui comigo.

6. Como um objeto não identificado35

35

Trecho da canção “Não identificado”, de Caetano Veloso.

Page 53: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE TEATRO PROGRAMA DE ... · No potencial simbólico de seu suicídio e na força mitológica e arquetípica de seu destino, encontro não uma

52

Figura 21. Fotografia do processo criativo de “Loucas do Riacho”. Na foto, Liz Novais, na Casa de Castro

Alves. Mariana David, 2017.

Não é à primeira vista que meus olhos conseguem olhar para Ofélia. Em

detrimento de sua loucura, canto e suicídio, a roupagem de princesa casta e obediente,

vitimada por um destino trágico - combinação que figura na trama de tantas obras -,

termina por me repelir. Mas eis que um belo dia, numa conjuntura impensada de

afinações, seus olhos tresloucados e submersos se abrem em mim como um poço em

que eu nunca termino de cair. “Nenhuns olhos têm fundo. A vida também não”36

.

A água, agrupando as imagens, dissolvendo as substâncias, ajuda a

imaginação em sua tarefa de desobjetivação, em sua tarefa de

assimilação. Proporciona também um tipo de sintaxe, uma ligação

contínua das imagens, um suave movimento das imagens que libera o

devaneio preso aos objetos. (BACHELARD, 2013, p. 13)

Eu e Ofélia encontramo-nos nas circunstâncias onde as dessemelhanças se

roçam, nos territórios de hiatos e efemeridades, onde “a expressividade de um não-

objeto é a que jamais remete a um elenco de sobredeterminações instituídas. Ela

apresenta-se como um êxtase dinâmico e fugaz”. (HAOULI, 2002, p 58). Misturadas,

despencamos nas águas profundas e terríveis da criação.

Mantenho-me na fissura entre aproximação e distanciamento, numa zona que é

superfície, mas não se restringe à margem; assumo a tensão entre ser e não ser Ofélia.

Encaro-a através dos ensinamentos de Zaratustra e me proponho a “transformar todo 36

Trecho do conto “Nenhum, nenhuma” (ROSA, Guimarães. Primeiras Histórias. Rio de Janeiro: Nova

Fronteira, 1988)

Page 54: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE TEATRO PROGRAMA DE ... · No potencial simbólico de seu suicídio e na força mitológica e arquetípica de seu destino, encontro não uma

53

‘Foi assim’ em ‘Assim eu quis’”37

, acolhendo as forças volitivas que ali pululam e cujos

devires acordam o ser para a potência criativa.

Vou tendo de acolher a existência fugidia deste desobjeto, juntando, com o

máximo de delicadeza e cuidado, os vestígios que sua passagem motiva. Ofélia, a que

enlouquece, a que se afoga, aquela que se dilui nas águas do rio, exige que meu olhar

seja também fluido, túrbido e atormentado. A primeira coisa que Ofélia me diz,

enquanto a olho, é “feche os olhos e desperte em mim”.

O reflexo pisca o olho - Narciso inveterado –

e a gente morde a isca (que é o rabo da sereia).

Mira nos próprios olhos, se demora,

e esses olhos que nos olham desde onde nos preveem?

Olha fundo e a imagem borra,

surge um rasgo, uma fresta, d’onde escamam sombras,

monstros, imanências intrusivas.

Tudo embaça.

Lá fora, abre-se uma boca, jorra a mágoa,

esgarça os leitos, desmorona o pau da encosta

- “não é nada”, alguém murmura, “são torrentes de verão”.

A gente teme; quer parar, ficar calminho,

achar o sono;

é tarde.

Formaram-se cascatas, corredeiras,

toda pedra é lisa, todo galho é fraco, não há botes.

Mãos congelam, boca treme, reclamamos por socorro;

sai uma bolha, uma falha, os vizinhos não podem ouvir,

muito menos nosso amor.

Alguém tenta, foge, finge; não há porto, nem plateia.

Tudo é denso, tudo escuro e há um som que sai de tudo,

como um gruguejar de almas,

um estalar de algas, dilatar de perdas, um cessar de...

Até que um peixe acende. 38

O olhar para Ofélia traz qualidades de um olhar de Narciso, mas não é a auto-

adoração desmesurada e a impossibilidade de apreciar qualquer coisa além de si mesmo

que se revela nesse espelho de águas ofélicas. Esta é, inclusive, uma crítica ainda hoje

direcionada aos pesquisadores de sua própria obra, acusando essa opção de pesquisa de

uma postura narcísica e umbilical, fadada à superficialidade e inutilidade, sendo mero

fruto de egocentrismo. Contudo, há qualidades desse olhar de Narciso que ampliam a

ambivalência do ver, no momento em que, quanto mais fitamos o mundo em sua

37

Trecho do livro “Assim falou Zaratustra”, de Friedrich Nietzsche (NIETZSCHE, 1981, p. 151). 38

Poema “Tromba d’água”, do livro “Manual de Afogamento”, ainda a ser publicado, parceria desta autora com o artista gráfico Lucas Moreira, e que compõe o escopo de criações do “Projeto Ofélia”.

Page 55: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE TEATRO PROGRAMA DE ... · No potencial simbólico de seu suicídio e na força mitológica e arquetípica de seu destino, encontro não uma

54

exterioridade inexorável, mais podemos perceber-nos intimamente e vice-versa. Esta é

uma potencialidade inversa à de ensimesmamento, pois traduz um olhar para si a partir

dos reflexos no outro e nas estruturas formadas coletivamente. Podemos, através desse

olhar, dimensionar na vivência subjetiva um conjunto de referências, influências e

forças operantes nas esferas sociopolíticas, efetivando assim a diferença numa

micropolítica da diversidade. Notar como a engenharia socioeconômica, as negociações

entre subjetividades diversas, os movimentos da natureza etc. refletem e são refletidos

no próprio corpo e no espaço de interação criativa permite experienciar novos saberes e

possibilidades de agenciamento dos fluxos, refluxos e interseções entre desejo e

expressão, entre prática e reflexão, entre aprendizado e produção.

Mas Narciso, na fonte, não está entregue somente à contemplação de

si mesmo. Sua própria imagem é o centro de um mundo. Com

Narciso, para Narciso, é toda a floresta que se mira, todo o céu que

vem tomar consciência de sua grandiosa imagem. Em seu livro

Narcisse, que por si só mereceria um longo estudo, Joachim Gasquet

oferece numa fórmula admiravelmente densa toda uma metafísica da

imaginação (p. 45): “O mundo é um imenso Narciso ocupado no ato

de se pensar.” Onde ele se pensaria melhor que em suas imagens?

(BACHELARD, 2013, p. 27)

7. Permitir o rio

Figura 22. Colagem integrante do processo criativo de “Loucas do Riacho”. Olga Lamas, 2016.

Page 56: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE TEATRO PROGRAMA DE ... · No potencial simbólico de seu suicídio e na força mitológica e arquetípica de seu destino, encontro não uma

55

Um rio transborda nos desvios do piso, nas fugas do olhar, na vertigem de

existir. Ele brota por onde a certeza de que uma coisa vem depois da outra é traída, onde

a limitação mortificante é dissolvida, no movimento incalculado, nos cantos não-

visitados, nas rotas inconsequentes, nos rostos estrangeiros, naquilo que desorienta e

devolve a capacidade de espanto à experiência de viver.

Em cada fenda aberta, por onde o sonho se manifesta na vida, o rio volta a

correr, num devir-águas que se desinibe. Assim, num fim de tarde que é também fim de

verão, sete corpos desnudos brincam de agir como quem sonha, misturando pessoas,

paisagens e plantas, borrando o rosto próprio com sargaços, tramando encadeamentos

ilógicos, espalhando conchas pelo mármore. “É um sonho. Nada se pode esperar dele, a

não ser sua brutal desarticulação”. (PRECIOSA, 2010, p. 40).

8. Um rio chamado Ofélia

Figura 23. Fotografia do cortejo-oferenda “Lavagem”. Mariana David, 2017.

Na narrativa do afogamento de Ofélia, em Hamlet, a descrição de seu

arrastamento pelas águas do rio, como se ela fosse uma “criatura nativa desse meio,

criada pra viver nesse elemento”39

cria a linha de força de sua imaginação material40

: ela

será sempre uma mulher que se derrama por entre leitos e sob as árvores, e que é

tomada pelos fluidos que a permeiam. Essa adesão completa às águas vai assentar em 39

SHAKESPEARE, Willliam (1599-1601). Hamlet. Trad. Millôr Fernandes. Porto Alegre: L&PM, 2011.

2º edição. Pág 117. 40

BACHELARD, 2013

Page 57: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE TEATRO PROGRAMA DE ... · No potencial simbólico de seu suicídio e na força mitológica e arquetípica de seu destino, encontro não uma

56

Ofélia uma propulsão de signos absorventes com grande poder de animar novas criações

e incitar desdobramentos múltiplos.

Bachelard (2013), em seu livro a “A Àgua e os Sonhos” - que compõe um

conjunto de ensaios sobre a imaginação, incluindo outros volumes sobre o fogo, a terra

e o ar -, desenvolve uma teoria sobre uma poética da água. Ofélia aparece na obra

nomeando uma das características da força imaginativa da água, o “Complexo de

Ofélia”, estabelecendo conexões entre água, mulher e melancolia. Embora haja

diferenças entre a proposta cartográfica desta pesquisa e os fundamentos da teoria de

Bachelard, no sentido de que ele remete a uma estrutura essencial sobre a criação

poética, e, não obstante, ele trate da feminilidade sob uma abordagem de

essencializações, adotando um prisma já superado pelo movimento transfeminista41

, a

teoria de Bachelard espalha-se aqui através da pulsação de uma poética da

transitoriedade, da vertigem e do desmoronamento. “A água é realmente o elemento

transitório. É a metamorfose ontológica essencial entre o fogo e a terra. O ser votado à

água é um ser em vertigem. Morre a cada minuto, alguma coisa de sua substância

desmorona constantemente” (BACHELARD, 2013, p 7).

Durante muitas etapas do “Projeto Ofélia”, tomo o afogamento de Ofélia

enquanto uma metáfora fundante. Pensar no que me afoga e como essa sensação pode

ser articulada sob a imagem de Ofélia compõe grande parte dos trabalhos criativos do

projeto. Mas, ao passo que o devir Ofélia vai ganhando lastro, as vozes das águas vão

transfigurando Ofélia no rio em que ela afunda. A metaforização se esvanece, uma vez

que a criação deixa de articular significados diferentes através de um mesmo signo -

Ofélia - e passa a ser uma espécie de meditação pelas águas, uma reconciliação com a

matéria, um refestelamento na substância. “Essas imagens da matéria, nós a sonhamos

substancialmente, intimamente, afastando as formas, as formas perecíveis, as vãs

imagens, o devir das superfícies. Elas têm um peso, são um coração” (BACHELARD,

2013, p. 2).

Até o solo “Ofélia: sete saltos para se afogar”, passando pelos estudos cênicos e

pelo livro, havia uma articulação de discursos que eu agrupava sob o signo de Ofélia,

expandindo seus sentidos. Em “Loucas do Riacho” e “Lavagem”, a busca passa a ser a

de deixar que as águas murmurantes aflorem na superfície do corpo e da língua. Isso

porque o desdobramento de significados da tragédia de Ofélia, onde o foco está no

41

O transfeminismo, em linhas gerais, é uma vertente contemporânea do feminismo histórico que propõe

uma abordagem intersecional às questões de transgêneros.

Page 58: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE TEATRO PROGRAMA DE ... · No potencial simbólico de seu suicídio e na força mitológica e arquetípica de seu destino, encontro não uma

57

discurso – o que se diz através de Ofélia, ainda que esse discurso seja articulado muitas

vezes de modo não verbal -, vai dando lugar a um modo pelo qual é possível dizer ou

calar, a uma qualidade de estar e criar, a uma poética. Deixar de metaforizar as águas de

Ofélia para, atraída por ela, fazer das próprias águas a poiesis do trabalho – uma poiesis

com qualidades de fluidez, inundação e apagamento -, desloca o sentido de “querer

dizer” para o de “deixar-se ouvir”.

Cantada como um ato de transfiguração nas águas, a tragédia do afogamento de

Ofélia ganha outras circunstâncias em que a morte, mais que uma morte nas águas, é

uma morte das águas. Uma morte que é um novo modo de transcorrer, de rebentar e

perecer a cada instante, que é movimento contínuo de ceder e alagar, entre ciclos,

tempestades e luas. O suicídio de Ofélia ilumina aqui a decisão não de abdicar do corpo

ou arruiná-lo, mas de admitir em si o corpo das águas, seu júbilo e terror, seu jorrar no

tempo/espaço, seu dia a dia de transbordo e vazantes.

A morte cotidiana não é a morte exuberante do fogo que perfura o céu

com suas flechas; a morte cotidiana é a morte da água. A água corre

sempre, a água cai sempre, acaba sempre em sua morte horizontal. Em

numerosos exemplos veremos que para a imaginação materializante a

morte da água é mais sonhadora que a morte da terra: o sofrimento da

água é infinito. (BACHELARD, 2013, p 7)

Misturada às águas que correm, me assomo a uma pequena multidão de Ofélias,

com o coração tomado por musgo e sargaço, que abrem a boca de pavor e apetite. Sem a

estabilidade que nos outorgavam o pai, a pátria, o idioma, cedemos à tormenta e a voz

que rebenta, de tão desconhecida, inexperiente e imprevisível, não assenta num código

facilmente decifrável de comunicação.

Desalojada das formas em que se reconhecia, um discreto lamento

começa a assediá-la, mas finge não escutá-lo. Decide apegar-se com

fúria à urgência dessa nova vida, intensivamente frágil. Não lhe passa

pela cabeça rotulá-la. Prefere carregar consigo esse inominável estado

inédito. Prefere de agora em diante deixar a porta aberta.

(PRECIOSA, 2010, p 38)

Esta voz aparece, em sua deformidade, sob a insígnia da loucura; uma loucura

lírica, cuja poesia não permite um enquadramento em patologias pré-categorizadas e

que surge como um jorro que não cessa frente a nenhuma barragem do razoável. Ofélia

emerge em nós, louca e lépida, confundindo a linguagem para ver emergir uma

Page 59: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE TEATRO PROGRAMA DE ... · No potencial simbólico de seu suicídio e na força mitológica e arquetípica de seu destino, encontro não uma

58

expressão que até então estava contida, impossível de revelar-se através das gramáticas

oficializadas. Ela salta nas profundidades dos espaços, cria e recria densidades, canta

enquanto se afoga. Ela é crise e alívio, dando voz e sossego aos sentimentos que a

atravessam. Essa voz enche as divisas de borrões: ela é fala e é canto, é memória e é

presságio, é inocência e perspicácia.

(...) as vozes das águas quase não são metafóricas, (...) a linguagem

das águas é uma realidade poética direta, (...) os regatos e os rios

sonorizam com estranha fidelidade as paisagens mudas, (...) as águas

ruidosas ensinam os pássaros e os homens a cantar, a falar, a repetir, e

(...) há, em suma, uma continuidade entre a palavra da água e a

palavra humana. (BACHELARD, 2013, p. 17)

Mulheres-Ofélias, arremessamos desejos contra o vazio tornando-o visível,

fantasmático. Completamos o paradoxo de nossa condição, ao afundarmos solitárias

numa morte lamacenta ao mesmo tempo que nos expandimos, diluídas, difundidas,

multiplicadas e reagrupadas no rio que corre sem parar. Um rio que infiltra dúvidas na

rigidez dos conceitos, que atiça movimentos ao que é estanque, que rasura a nitidez das

formas para revelar seu estado de metamorfose e trânsito. “É pela água que Poe, o

idealista, Poe, o intelectual e o lógico, retoma contato com a matéria irracional, com a

matéria “atormentada”, com a matéria misteriosamente viva” (BACHELARD, 2013, p.

13)

9. Uma mulher que se desmancha

Figura 24. Ensaio fotográfico de divulgação de “Ofélia: sete saltos para se afogar”. Carol Garcia, 2015.

Page 60: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE TEATRO PROGRAMA DE ... · No potencial simbólico de seu suicídio e na força mitológica e arquetípica de seu destino, encontro não uma

59

Habito uma mulher devastada por perdas consecutivas; uma mulher que se

afoga. Em Ofélia, afirmo a dissolução nas águas, a efemeridade do desejo, o movimento

enquanto modo de ser. Há, em nosso encontro, um ser mulher extravasado na loucura e

transbordado nos rios da vida.

Não é possível estar com/em Ofélia sem perpassar sua condição de mulher e as

forças históricas que aí interagem, cotejando-as com minha própria condição feminina

em confluência com a das outras mulheres que integram o Projeto Ofélia. Se a

trajetória de Ofélia em Hamlet é encarada de um modo linear e causal, ela começa

sendo a donzela apaixonada, bem-comportada e inexperiente, e tudo que lhe acontece

subsequentemente é fatalidade, só confirmando sua fragilidade e pureza. Porém, sua

tessitura é feita de vãos e contrastes entre a imagem de uma jovem obediente, ponderada

e doce, com a louca que invade o palácio, revelando paisagens e sentimentos

assombrosos em seu canto falado. Estas duas imagens desembocam numa terceira: a da

mulher que zomba da morte ao deixar-se tragar pelas águas e pelo próprio vestido,

enquanto canta cantigas antigas, cercada de coroas de flores fúnebres que ela mesma

preparou. Trata-se de alguém que parte “de seu canto suave à morte lamacenta”42

, que

desliza rumo ao obscuro e entrega-se à diluição no ambiente aquoso. Uma personagem

sob a qual convivem máscaras díspares: a da menina pura e cândida; a da mulher

corrompida pela loucura, pela morte e pela lama; a da ninfa misteriosa desfeita em

águas.

Para além da trama de Hamlet, obra na qual Ofélia se origina, ela passa a ser

amiúde invocada nas artes plásticas, na poesia e na filosofia. No campo das artes

cênicas contemporâneas, e mais especificamente no território da performance, a figura

de Ofélia impulsiona a criação de uma vasta gama de trabalhos autorais. Segundo Ellen

Guilhen

Esse caráter paradoxal da personagem poderia ser interpretado como

resultante de sua própria configuração como imagem – uma imagem

capaz de agregar valores díspares sem perder a unidade, característica

que explicaria a força e a duração do mito. De fato, Ofélia é, por

excelência, um tema de propriedade multidisciplinar, sobretudo

porque o mito agrega música, imagem e poesia, sem deixar de

pertencer, na origem, ao teatro. (GUILHEN, 2008, p 5)

42

SHAKESPEARE, Willliam. Hamlet. Trad. Millôr Fernandes. Porto Alegre: L&PM, 2011. 2º edição.

Pág 117.

Page 61: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE TEATRO PROGRAMA DE ... · No potencial simbólico de seu suicídio e na força mitológica e arquetípica de seu destino, encontro não uma

60

A expressão da donzela comportada, dócil e vitimada, que ainda compõe o

imaginário de boa parte dos leitores de Hamlet e que imperou durante o século XIX e a

primeira metade do século XX, interage com uma determinada visão sobre o papel da

mulher na sociedade, que vai ser atualizada com as novas conjunturas políticas.

Cristiane Busato Smith fala sobre essa leitura de Ofélia em seu estudo sobre a

representação de Ofélia na Inglaterra vitoriana:

Ocorre que o feminino, a loucura e a morte são "construtos sociais" e,

como tal, são conceitos que estão em perpétua reformulação e irão

espelhar as maneiras pelas quais a cultura os representa. Conjugados,

eles se configuram numa representação da alteridade, ou, como diz

Stuart Hall, o ‘espetáculo do Outro’ (HALL, 2003, p.234). A história

da representação de Ofélia nos mostra como a personagem sempre foi

tratada com excessivo cuidado e vigilância de forma a encaixar-se em

certos ‘estereótipos’ vigentes na época. (SMITH, 2007, p 2)

Nas representações teatrais, a Ofélia louca é constantemente domesticada,

tornando-se ao invés de louca, tola, numa perspectiva infantilizada da loucura. Insiste-se

em dar corpo a uma loucura estereotipada e constantemente atrelada às mulheres,

diagnóstico que se afina ao discurso que menospreza a expressão feminina. No livro

“Tristes, loucas e más – a História das Mulheres e seus médicos desde 1800”, a questão

da subjugação da mulher com base na patologização de suas expressões é abordada

tendo como base os diagnósticos de loucura atribuídos a diversas mulheres ao longo da

história. Explorar - e extrapolar – esta acepção deturpada da loucura feminina e da

melancolia, percorrendo os sentidos precários, mas, ao mesmo, as expressões

insubmissas geradas sob estas condições instigam a construção poética deste projeto.

Em algumas leituras, Ofélia vai sendo percebida como a mulher que realiza o

que Hamlet apenas anuncia: Hamlet se finge de louco, enquanto Ofélia enlouquece;

Hamlet ameaça suicídio enquanto Ofélia efetivamente se lança para a morte nas águas.

Ela alça, deste modo, outro status na obra, mas ainda tem seu valor pautado pela

projeção do príncipe.

Mas, aos poucos, Ofélia absorve, enquanto figura simbólica, as influências das

mudanças históricas relacionadas à mulher e ao feminino. Passamos a encontrar, por

exemplo, criações que refletem uma percepção sobre o desejo de morte da personagem,

consumado no suicídio, como um sentido de negação de um determinado tipo de vida e

de comportamento, numa atitude contestatória. Do mesmo modo que a loucura passa a

Page 62: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE TEATRO PROGRAMA DE ... · No potencial simbólico de seu suicídio e na força mitológica e arquetípica de seu destino, encontro não uma

61

ser encarada como símbolo de negação de um determinado tipo de interação e de

conduta, como uma recusa a permanecer no papel restritivo que lhe foi designado.

Ofélia, em sua loucura e suicídio, deixa de ser a inocente romântica tomada pela

fatalidade e passa a ser vista de um modo ativo, subversivo e contestador. Isso tem

decorrência das conquistas políticas da luta feminista e não à toa Ofélia transforma-se

em um dos mais frequentes ícones dos estudos nesse campo, fomentando uma grande

variedade de análises.

Essas variações de olhares sobre a personagem ao longo de anos, fruto da fricção

constante de sua figura e da recombinação de seu universo simbólico, deram-lhe uma

qualidade ambivalente: ela é ao mesmo tempo a imagem da submissão e sua negação,

sendo uma personagem que abriga representações confrontantes. Na fronteira entre

essas representações, está a expressão sufocada de Ofélia frente às vozes masculinas

que pautam seus diálogos. Ofélia entranha a mulher que reage ou sucumbe – a depender

do viés mais ativo ou passivo com que é encarada – ao silenciamento procedido tanto

pelos homens que a cercam quanto pela própria linguagem patriarcal que a media.

Tenho algo a dizer

aos homens

e não consigo.

Não há eco de frase nenhuma

nas velhas casas,

nenhum trecho que casualmente

eu repita em dejà vu.

Procuro um poema que fale por mim

e não posso encontrá-lo.

Foram escritos por homens

os versos

sobre homens

e também

sobre mulheres.

Tenho algo,

que me tira o sono,

e não existe palavra que o exprima.

Tem um quê de mudez

a mulher

que entre homens vive,

ainda que fale igual a uma matraca

(não é assim que dizem?).

Me pedem calma,

mas como estar calma

tendo algo tão urgente

a comunicar?

Eu teria que inventar uma língua

na qual homem e mulher

Page 63: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE TEATRO PROGRAMA DE ... · No potencial simbólico de seu suicídio e na força mitológica e arquetípica de seu destino, encontro não uma

62

sejam palavra extinta,

mas, além de insone,

estou dispersa e ocupada:

recolho os pedaços

de mim

antes que os homens à volta,

tão concentrados,

roubem-me inteiramente

e não me reste

mais boca, nem dentes,

nem voz.43

Com o adensamento das práticas e discursos de desconstrução de visões

hegemônicas, a Ofélia engolida pela lama, a que entrega o corpo desejoso ao rio,

tomada por fluidos intensos, a Ofélia suicida e alucinada acorda uma outra perspectiva

simbólica. Desvela-se, em Ofélia, a mulher marginal, puta, enlouquecida. Surge a Ofélia

urbana, contemporânea, transviada que vai inspirar uma pluralidade de performances e

releituras, e que desponta no Hamlet Máquina de Heiner Müller.

Eu sou Ofélia. Aquela que o rio não conservou A mulher na forca A

mulher com as veias abertas A mulher com overdose SOBRE OS

LÁBIOS DE NEVE A mulher com a cabeça no fogão a gás. Ontem

deixei de me matar. Estou só com meus seios, minhas coxas, meu

ventre. Destruí os instrumentos do meu cativeiro a cadeira a mesa a

cama. Destruo o campo de batalha que foi meu lar. Escancaro as

portas para que o vento possa entrar e o grito do mundo. Despedaço a

janela. Com as mãos sangrando rasgo as fotografias dos homens que

amei e que se serviram de mim sobre a cama a mesa, sobre a cadeira

sobre o chão. Toco fogo na minha prisão. Atiro minhas roupas ao

fogo. Exumo do meu peito o relógio que era meu coração. Vou para a

rua vestida em meu sangue. (MÜLLER, 1987, p. 27)

As releituras de Ofélia, refletem, deste modo, uma mudança de perspectiva para

o feminino no contexto de uma narrativa ficcional que espelha as transformações da

narrativa histórica. Entretanto, ao longo da pesquisa aqui proposta, Ofélia deixa de ser

vista numa perspectiva narrativa - com um papel definido (ou re-definido) na interação

com outros personagens (ainda que ausentes) de uma trama – e passa a ser encarada

enquanto força motriz da busca por um modo não-patriarcal de expressão. Mais do que

reverter um papel de submissão e performatizar a subversão “dentro” de uma estrutura

social ou dramatúrgica representativa, o devir-Ofélia, louca-feito-água, alimenta aqui

43

Poema sem título do livro “Manual de Afogamento”, ainda a ser publicado, parceria desta autora com o artista gráfico Lucas Moreira, e que compõe o escopo de criações do “Projeto Ofélia”.

Page 64: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE TEATRO PROGRAMA DE ... · No potencial simbólico de seu suicídio e na força mitológica e arquetípica de seu destino, encontro não uma

63

modos de expressar disruptivos, afirmando a potência de cada gesto: a fragilidade, a

perda, a loucura, a morte, a submersão, o não-controle, a crueldade44

.

... pela feminilidade o que está em pauta é uma postura voltada para o

particular, o relativo e o não-controle sobre as coisas. Por isso mesmo,

a feminilidade implica a singularidade do sujeito e as suas escolhas

específicas, bem distantes da homogeneidade abrangente da postura

fálica. A feminilidade é o correlato de uma postura heterogênea que

marca a diferença de um sujeito em relação a qualquer outro.”

(BIRMAN, 1999, pg. 10)

Ofélia se torna assim o fluxo de uma voz que se expande. Uma voz em

insurreição, alucinada, que desmarcara a fragilidade do hábito e atiça a crise e a

derrocada dos poderes que mantém a dinâmica que oprime o feminino e que atualiza

operações de submissão que nos colocam em renitente desvantagem. O que resta dessa

operação é inapreensível e misterioso, e pode ser encarado num aspecto libertário,

anárquico, dando margem a novos processos de subjetivação. As correntes do rio-Ofélia

atiçam o potencial de insight, abrindo fendas por onde a ordem, por mais rígida e

opressiva que seja, é vulcanizada num rasgo de liberdade. Esta não é uma liberdade em

si mesma, que eleva o sujeito para fora de seu contexto e pode ser lida irrestritamente

independente da dinâmica das relações e das repercussões que incute. A liberdade a que

me refiro, a do devir-Ofélia, é a da abertura radical aos afetos e a da não subserviência

ao esperado, ao previsível, ao aceitável, ao palatável, ao compreensível.

Para o filósofo, se é possível falar em liberdade, é exatamente a partir

do momento em que se frustra o cálculo, e a imprevisível liberdade

ocorre: ela é, portanto, o incalculável da cena, que aparece por

relações contingentes. O gesto livre acontece considerando o limite do

próprio poder, como um acontecimento que excede a própria máquina,

um acontecimento que irrompe o calculado, pela experiência, pelo

corpo vivido; exatamente quando somos afetados pelo outro, como se

o convite para a liberdade fosse a própria relação dos corpos com

outros corpos, nunca uma liberdade em si mesma, mas ativada nas

relações de afeto; uma nudez conquistada numa relação com outro

corpo: o “advento do outro”. (LOPES, 2015, p 233)

44

A crueldade aí entendida é um eco do “teatro da crueldade” de Artaud, que a compreende “no sentido

de apetite de vida, de rigor cósmico e de necessidade implacável, no sentido gnóstico de turbilhão de vida

que devora as trevas, no sentido da dor fora de cuja necessidade inelutável a vida não consegue se

manter” (ARTAUD, 2006, p 115).

Page 65: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE TEATRO PROGRAMA DE ... · No potencial simbólico de seu suicídio e na força mitológica e arquetípica de seu destino, encontro não uma

64

10. O fantasma é uma dor que se repete45

Figura 25. Fotografia da temporada de “Loucas do Riacho”, na Casa de Castro Alves. Mariana David,

2017.

Ofélia é um fantasma que me ronda, devolvendo o assombro da vida e da morte

e desfazendo a ilusão de segurança e completude. É minha memória enterrada-viva que

ressurge, não uma memória pontual e reconhecível, mas como uma corredeira de

memória. Ela é o prórpio movimento de desafogo dos tempos múltiplos que abrigo. É

uma voz íntima apontando que, enquanto a razão mantiver sua mão pesada para conter

aquilo que temos de mais sutil, é preciso enlouquecer mais e outra vez. E que é preciso

saltar em novas águas a cada estação e que as mortes podem ser cantadas e celebradas,

especialmente as mortes desejadas.

Esse fantasma agita o substrato de um sem fim de mulheres que padeceram de

afogamentos vários, corpos cujas águas tumultuam o presente pedindo passagem. Ela

sussurra nos cantos da casa e do espaço da cena, em sua voz plural, cheia de timbres,

que aquilo que somos está em constante diluição, aberto à viração, em estado de

trânsito. Se fecharmos os olhos, soltarmos as mãos do medo, destravarmos o freio que,

em cada músculo, nos prende a um cotidiano de comedida razoabilidade, podemos ouvir

esses múrmurios.

45

Frase que ouvi há anos atrás, pela boca de Fábio Pinheiro, cenógrafo de “Loucas do Riacho”. Trata-se

de uma fala do filme "El espinazo del diablo" (Produtora El Deseo) e Fábio depois me contaria que ela

não era exatamente assim e me enviaria a fala completa, que transcrevo na nota subsequente.

Page 66: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE TEATRO PROGRAMA DE ... · No potencial simbólico de seu suicídio e na força mitológica e arquetípica de seu destino, encontro não uma

65

¿Qué es un fantasma? Un evento terrible condenado a repetirse una y

otra vez, un instante de dolor, quizá algo muerto que parece por

momentos vivo aún, un sentimiento suspendido en el tiempo, como

una fotografía borrosa, como un insecto atrapado en el ámbar.46

(Trecho de "El espinazo del diablo", filme de Guillermo del Toro,

2001)

Essa ideia de fantasma não se fundamenta em conceitos psicanalíticos, mas sim

numa perspectiva de criação que encontra consonância com o que André Lepecki

(2011), em sua teoria sobre os planos de composição, dispõe sobre um “plano

fantasma”. Esta proposta de Lepecki extende para as artes cênicas o conceito de

“matérias fantasmas”, de Avery Gordon, que se refere a:

Esses fins ainda sem término (o fim da escravidão que não terminou

com o escravagismo, o fim da colônia que não terminou com o

colonialismo, a morte de um ente querido que não apaga sua presença,

o fim de uma guerra que não deixou de ser ainda perpetrada) [que]

prolongam a matéria da história para uma concretudo espectral

(virtualidade concreta do fantasma) que faz o passado reverberar e

atuar como contemporâneo do presente. Para Gordon, “matérias

fantasmas” são também todos aqueles “corpos impropriamente

enterrados da história”. (LEPECKI, 2011, p. 15)

Lepecki (2011) defende que a matéria fantasma participa da criação artística

interagindo com outras intensidades que vão compondo os aspectos da cena.

tocos de corpos que foram negligentemente enterrados, descartados,

esquecidos pela história e seus algozes brotam do chão emperrando

nosso passos, provocando desequilíbrios, quedas, paragens ou

movimentos cautelosos ou, então, gerando uma necessidade de nos

movermos a uma velocidade alucinante ou em permanente zigue-

zague, porém atenta e cuidadosamente. (LEPECKI, 2011, p. 15)

Instigada por essa perspectiva, passo a considerar Ofélia como o fantasma que

ativa o plano fantasma, diante do qual, a prática cênica e textual deste trabalho, torna-se

uma prática de escuta, de trânsito por entre seres. Esse plano movimenta o corpo

desopilando suas definições e povoando-o de identidades.

A escuta de tantos o leva a desertar de uma forma dominante de si.

Projeta a vida numa arte da vadiagem a serviço das experimentações.

46

Em livre tradução: “O que é um fantasma? Um evento terrível condenado a repetir-se uma e outra vez,

um instante de dor, talvez alguma coisa morta que, por algum momento, ainda parece viva, um

sentimento suspenso no tempo, como uma fotografia embaçada, como um inseto encalacrado no âmbar”.

Page 67: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE TEATRO PROGRAMA DE ... · No potencial simbólico de seu suicídio e na força mitológica e arquetípica de seu destino, encontro não uma

66

A viagem de “vários” espaço afora, saltando sempre para novos

inícios, incarnando um eu-feixe de sensações. “Tenho fome de me

tornar em tudo que não sou”. (PRECIOSA, 2010, p. 52)

O fantasma de Ofélia deixa de ser algo a ser “incorporado” – uma personagem,

uma figura, uma ideia, um espírito – para ser o motor propulsionador de um trânsito

atencioso ao invisível, aos fluxos sensíveis que habitam espaços, tempos, corpos e

palavras. “Assim, o espaço teatral será utilizado não apenas em suas dimensões e em

seu volume, mas, por assim dizer, em seus subterrâneos” (ARTAUD, 2006, p. 146).

Nesse compasso, o corpo alça outros significados, deixando de ser entendido

como um recipiente de energia, sensação e memória, para ser considerado matéria em

formação, que se compõe a todo instante na interação com as forças que o rondam e

atingem. O corpo deixa ser o “lugar” onde a vida se instala, para ser o “meio” pelo qual

a vida se cria e recria.

11. Estar

Figura 26. Fotografia do processo criativo de “Loucas do Riacho”. Na foto, Olga Lamas, na Casa de

Castro Alves. Mariana David, 2017.

Há, nesse chão, nessas paredes, nesses cômodos, nessas passagens, uma série de

revoluções em curso. Contam isto os ruídos de vento, vermes, correntezas de linfas,

goteiras, respirações, transpirações, linguagens, mexerico de micróbios e rastejamentos

minúsculos. Em cada canto do lugar que estamos, existem bolsões por onde o passado e

Page 68: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE TEATRO PROGRAMA DE ... · No potencial simbólico de seu suicídio e na força mitológica e arquetípica de seu destino, encontro não uma

67

o porvir se revolvem e revelam que toda a vida é agora. “O passado é um rastro de

coisas que o presente vomita, como as chamas de um foguete” (HAOULI, 2002, p 61).

Entre a matéria de nosso corpo e dos corpos que nos rondam, há mais vias que barreiras,

e por elas, podemos viver, hora após hora, a estranheza de sermos outros. Porque, assim,

entre vida e arte, somos o que fica em si, matéria dura, mas muito mais o que escorre e

se mistura, energia, descamação e fluido.

Coisas que calei aqui refluem,

catatau de baba e verso,

frases soltas num bilhete:

só a boca da vontade morde os medos sem mentir;

toda alma tem fantasma e assombração;

pé que chuta a própria sombra cai longe do sol;

entre tudo, existe uma luz, mesmo quando a noite é cega;

quando o tempo inunda a língua, a mulher parteja estrelas;

a loucura é minha voz me convocando há muito;

a trapaça do desejo faz olhar pros toscos

e pedir perdão por sê-los ou beijá-los;

nos olhos alheios, vejo claro a encruzilhada

e estou perdida;

o perdido é a mãe da estrada;

vive muito quem se inventa;

amar é um modo de estar.47

12. Deixar ser

47

Poema “Pra botar numa garrafa e atirar no mar”, do livro “Manual de Afogamento”, ainda a ser publicado, parceria desta autora com o artista gráfico Lucas Moreira, e que compõe o escopo de criações do “Projeto Ofélia”.

Page 69: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE TEATRO PROGRAMA DE ... · No potencial simbólico de seu suicídio e na força mitológica e arquetípica de seu destino, encontro não uma

68

Figura 27. Fotografia do processo criativo de “Loucas do Riacho”. Na foto, Camilla Sarno, na Casa de

Castro Alves. Mariana David, 2017.

Quando meus pés

abrandarem na marcha,

por favor,

não me forcem.

Caminhar para quê?

deixem-me quedar,

deixem-me quieta,

na aparente inércia.

Nem todo viandante

anda estradas,

há mundos submersos,

que só o silêncio

da poesia penetra.

(Conceição Evaristo)48

É dia de apresentação de “Loucas do Riacho” e, ao descermos as escadas da

Casa de Castro Alves, vestidas somente com as cabeças de sargaço, nos espalhamos

pelo salão ou pelo jardim que dá vistas à Baía de Todos os Santos. O público vai

entrando devagar e também encontrando algum lugar para estar, alguns sentados, outros

caminhando por entre as bacias espalhadas no chão, alguns de pé escorados na pilastra,

outros deitando sobre o acolchoado.

Como o que fazemos tem um jeito de não ser “nada”, e como temos todo um

tempo para estarmos onde estamos, a casa é que vai contando seus detalhes, suas

paredes brancas e descascadas, seu teto alto, seus vincos e vãos, salitres, insetos, teias,

zumbido das buzinas de carro lá de longe, o rádio do vizinho, os gritos das crianças.

Tudo isso, mais o alaranjado intenso do pôr-do-sol na baía e as cigarras que começam a

cantar em coro no entardecer, esse horário de declinar de ansiedades em que resolvemos

começar. Nas bacias de alumínio, estão alguns objetos – cartas, conchas, colares de

conta, pérolas falsas, penas de aves, pequenas folhas secas coloridas, alguns pedaços de

tecido, vestidos, um pote de purpurina branca, um novelo de lã azul. Pendurado ao lado

de um lustre antigo de lâmpadas quentes, há um vestido azul de lantejoulas que se move

ao sabor do vento. Sementes de alpiste brotam lentamente de uma trama de tecido que

48

Trecho do poema “Da calma e do silêncio”.

Page 70: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE TEATRO PROGRAMA DE ... · No potencial simbólico de seu suicídio e na força mitológica e arquetípica de seu destino, encontro não uma

69

pende no centro da sala. E nós, corpos nus, sem rosto aparente, sentamos, deitamos,

levantam, ficam, ficam, ficam.49

As “Loucas do Riacho”, em seu riacho-nave-pântano50

, não precisam fazer outra

coisa que não dar vazão ao que se cria naturalmente enquanto cena, cedendo ao

imprevisível e maravilhoso da vida em seu jeito ao mesmo tempo sutil e furioso de

passar. São muitas as presenças, cuja voz precária não precisamos traduzir, mas apenas

abrir passagem para que ressoem.

Meu estado ali foi de quietude curiosa, pacífico ao desdobramento do

tempo do rito, das ações. Um certo êxtase com a plasticidade e a

beleza da ocorrência; fruição dos sons vindos de toda parte; comoção

e expectativa com os transbordamentos emocionais. A meditação

prosseguiu... (Orlando Pinho)51

Assim vamos ficando todos, vendo e sendo vistos, ou aproveitando para

descansar os olhos. O público está ali e nós também estamos e não há o que defina

quem precisa olhar para quem. Como atrizes, não precisamos mais lutar pelo foco nem

nos esforçar para permanecer interessantes frente a uma plateia. Basta dar permissão ao

olhar alheio, deixando-nos ver ou perder, enquanto nos despojamos das máscaras que já

não vestem bem, que talvez nunca vestiram.

Não há uma supremacia da visão diante dos outros sentidos, nem um

pressuposto de que o “olho no olho” é, naturalmente, um termômetro de intimidade. O

olhar, esse movimento contínuo de apreensão e perda, não se define como um par de

olhos que encaram os olhos de um outro sujeito, mas como uma permissão ao curso

irrefreável de imagens que vão sendo encontradas, enquanto outras são perdidas. “A

modalidade do visível torna-se inelutável – ou seja, votada a uma questão de ser –

quando ver é sentir que algo inelutavelmente nos escapa, isto é: quando ver é perder.

Tudo está aí” (DIDI-HUBERMAN, 2010, p. 34).

Quais são os limites dentro de um espaço de abertura? O que

pode alguém frente a outro alguém que não lhe diz o que fazer,

49

O registro audiovisual do espetáculo “Loucas do Riacho”, que estava disponível no plataforma

Youtube, foi bloqueado por algum motivo. Uma vez resolvido o problema, ele poderá voltar a ser

acessado em https://vimeo.com/250478591. Acesso em 04 dez 2017. 50

A ideia de uma nave-pântano será abordada no ato 13, “Como el musguito en la piedra”. 51

Trecho de entrevista realizada por email, em 27/07/2017, com o poeta baiano Orlando Pinho. Orlando

assistiu “Loucas do Riacho” e “Ofélia: sete saltos para se afogar”. Esta foi a resposta dele para a pergunta

“Você tem algo mais a dizer sobre suas sensações naquele dia? Assistir Loucas do Riacho move algum

tipo de desejo criativo em você?”.

Page 71: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE TEATRO PROGRAMA DE ... · No potencial simbólico de seu suicídio e na força mitológica e arquetípica de seu destino, encontro não uma

70

mas tampouco lhe diz que não. Quando os pactos de

respeitabilidade e boa convivência não estão claros somos

requisitados a olhar atentamente para o outro, para entender

nossos limites e possibilidades na relação dinâmica com ele.52

Nossa nudez de corpo é também o desvestimento daquilo que encobre os cantos

descosturados, as manchas e pedaços encardidos de nós, para comungar e expor a

naturalidade insólita dos efeitos do tempo. O corpo paramentado, identificado por suas

vestes, é desidentificado pela nudez. É uma nudez que não se fixa à alusão do ato

sexual, mas ao erotismo de corpos disponíveis a aproximações sutis e desnudadas das

conotações de suas vestimentas.

A experiência da nudez em cena, durante quase 3h, com pessoas

desconhecidas ali muito próximas, muitas vezes no corpo a corpo,

pele a pele mesmo, foi inaugurada em “Loucas”. Outras experiências

com nudez já havia experimentado, mas nada próximo. A sensação

nítida de transformação do espaço em outros espaços possíveis

também foi uma experiência nova - pela sonoridade, vibração,

conexão nossa, na intensidade que se deu (nem sempre aconteceu isso,

mas nas vezes em que aconteceu foi avassalador, nítido por demais).

Digo isso porque pensando num teatro mais formal, em que no palco

já se instaura um outro espaço-tempo previamente acordado por todos,

artistas e público, esse acordo da transformação do espaço num

"outro" já está implícito. No caso de “Loucas”, era uma instauração

gradual, tanto pra nós artistas que viemos durante meses

experimentando isso em nós quanto para o público. Os pactos, por

assim dizer, iam sendo acordados e atualizados durante o próprio

fazer...53

13. Como el musguito en la piedra

52

Trecho escrito para a coluna Rebate, da 10º edição da Revista Barril – Revista de Crítica das Artes

Cênicas. A coluna abre espaço para que os criadores dialoguem com a crítica feita a seus trabalhos. A

crítica a “Loucas do Riacho” foi escrita pela atriz e pesquisadora Laís Machado e pode ser lida em

<http://www.revistabarril.com/entreosdedos> Acesso em 28 set 2017. 53

Trecho de entrevista realizada por email, entre 23/04 e 22/08/2017, com a performer Olga Lamas. Esta

foi parte da resposta dela para a pergunta, “E havia aqueles caminhos, procedimentos etc nos quais você

não acreditava ou que desconhecia, e que passou a acreditar/vivenciar durante o processo?”.

Page 72: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE TEATRO PROGRAMA DE ... · No potencial simbólico de seu suicídio e na força mitológica e arquetípica de seu destino, encontro não uma

71

Figura 28. Ensaio fotográfico de divulgação “Loucas do Riacho”. Na foto, eu, Camilla, Felipe, Mônica,

Uerla e Olga, na Casa de Castro Alves. Mariana David, 2017.

Felipe Benevides54

faz um desenho de um pequeno rapaz que parece um índio

sentado nu, enquanto pingos d’água, caídos de uma avenca, gotejam em sua cabeça. As

gotas são muito leves e o rapaz parece levitar. O desenho é infantil e dá ares de

inocência à ideia. Visita-me a imagem de uma nave-pântano, que transforma o espaço

que estamos em um móbile capaz de transportar-nos para uma dimensão onde o relógio

é composto pela umidade que brota em todo canto.

A nave-pântano, atravessando um fio de eletricidade por sobre uma parede de

musgos, teria o poder de unir a realidade de estar aqui, nesta urbanidade caótica,

frenética, produtiva, cheia de informações, mediações, contatos, com as forças que aqui

mesmo permanecem, encrustadas nos rios que correm embaixo dos asfaltos, nos povos

nativos e imigrados enterrados, nas árvores solitárias cercadas por pedras portuguesas,

nos destroços das casas de uma cidade que já passou por muitas mortes. Esboço

palavras, que funcionam não como conceitos que iremos desenvolver, mas como iscas

de enredamentos: tecno-natureza, corpo-suporte, mar-mídia, ancestral-urbano, perigo-

pureza, violência-erótica, tosco-delicadeza, coleção de visgo, brincadeira de criança.

A cidade em que estamos, essa Salvador de mormaço e lodo, do salitre que

descasca as pinturas e do chorume que recende nas calçadas, faz a nave-pântano

irromper, salobra, em pequenos indícios espalhados por todo canto. A cidade nos admite

com toda sua geografia de acidentes, suas construções mal-acabada e meio ruídas, seu

54

Performer de “Loucas do Riacho”

Page 73: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE TEATRO PROGRAMA DE ... · No potencial simbólico de seu suicídio e na força mitológica e arquetípica de seu destino, encontro não uma

72

fluxo de convivência pouco adaptado à norma, à lei e aos estatutos de comportamento

que vigoram. É nesta Salvador de estridências e hiatos, que surge a nave pântano como

um duplo extemporâneo.

Em um dos encontros, compartilho o texto usado no programa da intervenção

artística “Beleza convulsiva tropical” 55, que traduz a qualidade que esta cidade tem de

infiltração, emboloramento, erupção e beleza.

A rebeldia, a força e a exuberância da vegetação têm uma potência

que engole as pedras, corrói o concreto, infiltra-se, toma os espaços e

subjuga o que estiver a sua volta. Aqui prevalece um estado de beleza

convulsiva, uma tensão permanente entre a natureza e a técnica, uma

batalha úmida, macia, violenta e vigorosa. (BEIGUELMAN, 2014)

Entre natureza e técnica também nós, corpos-naves, vamos conectando desejo,

sonho, movimento e som. Ao experimentarmos a criação dessa nave, percebo que cada

corpo ali faz parte dela, num estado de contínua brotação.

A Imaginação é a louca da casa

A casa se ergue sobre si.

Paredes nuas. Mulheres nuas.

As mulheres se vestem apenas de si

e de nada.

O seu vestido é o vento.

Mas de seus cabelos, que já lhes viestam,

Brota verde, folhas, mato.

Porque ela é nua, mas ela brota.

A loucura é só.

O que eu penso pesa.

O que me pesa pensa.

E aquele vestido pendurado

O som e a fúria.

A selva.

A selva em si.

A seiva. 56

Vamos virando corpos-plantas, cuja respiração e persistência no espaço cria

diálogos invisíveis, oxigenando a imaginação. Vai surgindo em nós as qualidades que

55

Texto extraído do programa de intervenção artística “Beleza convulsiva tropical”, de Gisele

Beiguelman. Segundo a nota contida no texto, trata-se de “texto usado na narrativa em áudio na

intervenção realizada no Arquivo da Bahia, no módulo Arquivo e Ficção (curadoria de Ana Pato) na 3a

Bienal da Bahia (2014). As peças sonoras (stereo, 18’40”) foram incorporadas ao acervo do MAM da

Bahia.” 56

Poema escrito durante apresentação de “Loucas do Riacho”, por Maria Luzia Sanchez, uma das alunas

da turma do performer e professor Saulo Moreira que estava presente nessa apresentação, como parte da

proposta de reflexões estéticas da disciplina por ele ministrada. O poema, escrito num papel à mão, foi

compartilhado conosco através de registro fotográfico do próprio Saulo Moreira.

Page 74: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE TEATRO PROGRAMA DE ... · No potencial simbólico de seu suicídio e na força mitológica e arquetípica de seu destino, encontro não uma

73

nos conduzem à cabeça de sargaços, à nudez misturada ao verde espalhado pelos

vasinhos de terra e na estrutura de montinhos de alpiste nascendo que pende do teto,

tecida por Fábio Pinheiro57

.

... tenho regado minhas plantas com o mesmo copo que bebo água

todos os dias, isso me fez lembrar das “Loucas”. Me achei meio louco,

meio planta. “As folhas sabem procurar pelo sol. E as raízes procurar,

procurar...”58

. Porque o tempo das plantas - e sua sabedoria - é outro,

assim como “Loucas” foi para mim. O trabalho instaura outra

sensação da passagem do tempo, um estado meditativo. A trilha

sonora contribui para esse sentir o tempo passando pela força do vento

que atravessa a casa.

Uma imagem que guardei foi de Camilla grudada na parede, nua, ela

toda uma ventosa, o corpo todo uma sensação. É difícil dizer com

palavra, né?

Eu acho que as plantas têm um jeito de conversar com a gente.59

Estar aqui é suportar o vórtice dos aparecimentos e ritualizar a presença, num

deixar-se conduzir pelo magnetismo de cada corpo que está ou esteve e cuja vibração

permanece. É afirmar ao máximo nossa capacidade de afetar-nos pelo que compõe

nosso ser aqui60

, nesse tempo/espaço em que podemos existir.

A escassez de elementos tornava o espaço vasto e rarefeito,

transformava o insignificante em representativo, de modo que as

paredes brancas não impunham limites; o vão aberto do mezanino

fazia-nos vergar sob aquela coluna de ar, de medo e de tempo; e o

vestido pendurado em um dos extremos contava as histórias

particulares de cada um.

Na presença individual dos (as) atores (rizes), aquela vastidão

se ampliava. Eram também escassos os elementos em seus corpos,

fazendo com que a falta de se transformasse numa insuportável

presença de, fazendo pesar ainda mais o vão e a coluna abertos pelo

mezanino.

Descalço, explorei com os olhos, as mãos e os pés o espaço, os

objetos e os seres humanos. “Pode transitar e tocar”, havia sido o

alerta do guia à porta. Os (as) atores (rizes), no total de sete, talvez

oito, principiaram dispersos (as) no salão, em repouso latente.

Cobriam as suas vergonhas: as suas cabeças. Delas escorriam uma

vegetação aquosa, promessa de um movimento duvidoso, prontas para

sobreviverem livres do pensamento, como se a sua ação fosse o seu

estado, e combinassem o existir com o deixar ser levada. A um só

tempo presas como o musgo, e à vontade como o sargaço. Rio e mar.

57

Cenógrafo de “Loucas do Riacho”. 58

Trecho da canção “Panis et circenses”, composta por Caetano Veloso e Gilberto Gil. 59

Comentário do ator baiano Daniel Farias sobre suas impressões acerca de “Loucas do Riacho”, enviado

por mensagem privada na rede social Facebook, em 29/07/2017. 60

Ecos da leitura de trechos da tese da atriz e dançarina Alda Maria Abreu. A tese ainda esta em processo

de escrita, consequentemente ainda não disponível para consulta pública.

Page 75: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE TEATRO PROGRAMA DE ... · No potencial simbólico de seu suicídio e na força mitológica e arquetípica de seu destino, encontro não uma

74

O restante dos corpos estava disponível ao olhar. Tão mais

disponível ao (à) espectador (a)/criador (a) quanto menos este (a) se

ignorasse. Como tudo que ali parecesse parado, na verdade deslizava

lenta e imperceptivelmente. O movimento estacionado de todas as

coisas era o acontecimento que estava sendo criado em meio àquela

nudez atmosférica fluida e permissiva.61

14. Habitações

Figura 29. Fotografia do processo criativo de “Loucas do Riacho”. Mariana David, 2017

O primeiro encontro do processo criativo de “Loucas do Riacho” acontece na sala

da casa de uma das atrizes. Ali, conversamos sobre os primeiros vislumbres, enquanto

comemos bolo, rabiscamos nos papéis e jogamos tarot. A possibilidade de encontro

oferecida pela atmosfera de uma casa nos levará, mais tarde, à imersão em Baixios e à

temporada na Casa de Castro Alves.

Nos primeiros meses de ensaio, nosso espaço de encontro é o Estúdio da Sereia, um

salão no Morro do Alto da Sereia, situado no bairro do Rio Vermelho, em Salvador. O

Estúdio fica quase à beira-mar, erguido sobre as rochas onde as ondas mais fortes

respingam ao rebentar. A presença do mar traz um balanço que permanecerá em cada

corpo por muito tempo. Ao deitarmos no chão de madeira, a brisa cheia de maresia e

aquele som contínuo de ondas, retarda o desejo de fazer outra coisa que não deixar-se

ali, abandonada sobre o piso e embalada pelos sons que povoam as tardes. Descobrimos

61

Texto do ator e historiador Camilo José Domingues, criado a partir de suas impressões sobre “Loucas

do Riacho” e enviado para mim por email em 19/04/2017.

Page 76: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE TEATRO PROGRAMA DE ... · No potencial simbólico de seu suicídio e na força mitológica e arquetípica de seu destino, encontro não uma

75

assim que o “riacho das loucas” transcorre entre tarde e noite e a primeira coisa a fazer

em seu encontro é deixar-se ninar pelo som do tempo.

A partir do quinto mês do processo criativo do espetáculo, passamos a

experimentar espaços para a realização da temporada. Vamos um dia ao Coaty, um

edifício cultural localizado na Ladeira da Misericórdia, no Centro Histórico de

Salvador. O casarão, projetado por Lina Bo Bardi, tem composição cilíndrica, na qual o

salão principal, que tem o teto vazado, é atravessado pelo tronco de uma árvore que

conecta o piso médio ao jardim aberto no piso superior. Mesmo só estando ali um único

dia, levamos conosco esse emaranhado espiralado entre concreto e planta.

Na mata da Escola de Dança da Universidade Federal da Bahia, que resiste no meio

da urbanidade do bairro de Ondina (Salvador), entre os prédios do campus universitário,

marcamos encontros para conversar e meditar sobre o processo criativo e para fazermos

alguns experimentos. A mata é permeada por córregos pavimentados, raízes de plantas

diversas, clareiras de onde pendem troços de cipó e, daqui e dali, além de plásticos e

outros resíduos, pedaços triturados de papéis com trechos de trabalhos acadêmicos. É

nessa mata que um sentido xamânico ressalta em nós, como uma antena que se ativa a

apreensão do trânsito de vibrações de máquinas, tubulações, mosquitos, folhas,

pensamentos e entidades.62

Temos alguns encontros noturnos nas salas de aula situadas também na Escola de

Dança da UFBA, podendo desfrutar de sua estrutura de tablado e grandes espelhos.

Empregamos o conjunto de luzes elétricas que reunimos – pisca-piscas, pequenas

lanternas, colares com luzes coloridas e badulaques luminosos de toda sorte – para

vermos surgir, do breu da sala, silhuetas de criaturas abissais. No espelho da sala,

flutuam pedaços de corpo, uma mão aqui, uma boca lá, um seio acolá, um pé, uma

barriga, um olho: fragmentos de corpo dançando no vazio e compondo a imagem novo

corpo conjugado e monstruoso. Assim nasce a percepção de que cada corpo é ao mesmo

tempo inteiro e parte de outro corpo maior, coletivo e extraordinário.

Numa das salas do complexo do Teatro Castro Alves (Salvador), nos encontramos

para alguns ensaios. Temos aí uma estrutura apropriadamente preparada para a

realização de processos de montagem de espetáculos cênicos – uma sala de tablado,

ampla, com as paredes brancas e isolamento acústico. Nesse espaço, os ensaios ganham

62

Os vídeos criados a partir dos experimentos na mata da Escola de Dança da UFBA estão disponíveis

em < https://www.youtube.com/watch?v=uRmOdY9Nl9A&feature=youtu.be> ;

<https://vimeo.com/195807869 > Acesso em 18 nov. 2017.

Page 77: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE TEATRO PROGRAMA DE ... · No potencial simbólico de seu suicídio e na força mitológica e arquetípica de seu destino, encontro não uma

76

um modo de improvisação teatral – uma estrutura que não tem roteiro definido, mas que

requer uma sucessão de ações que vão compondo uma narrativa. Tentamos fugir disto,

mas é difícil colher outros propósitos ali. Fica evidente que precisamos de um espaço

que abrigue outras memórias que não as de um teatro. De outro modo, não poderemos

escapar de um aspecto mais representativo ou metalinguístico, ambos que não nos

interessam neste momento. O que fica desse espaço, além dessa percepção, é o que

ocorre num dos dias de ensaio, em que Camilla Sarno leva um vestido azul coberto de

lantejoulas para ser entregue a Felipe Benevides.63

Este vestido fora usado por

Benevides em “Butô de bêbado não tem dono”64

e Camilla o havia tomado emprestado

para usá-lo em outro trabalho. Durante esse dia, o vestido acaba por ser incorporado à

nossa relação e vai sendo dançado pela sala, saltando entre os corpos até ser vestido por

Felipe num frenesi de movimentos. O vestido torna-se o fantasma de Ofélia que nos

desperta sua dança e nos recorda o tanto de memória que fica impregnada em cada

objeto, o tanto de vida que a matéria morta comporta. Esse vestido permanece pairando

pendido no centro do salão da “Casa de Castro Alves”, durante as apresentações de

“Loucas do Riacho”.

Para finalizar o ciclo de encontros de 2016, antes do recesso para a retomada do

processo no início de janeiro de 2017, decidimos fazer uma imersão numa casa alugada

na praia de Baixios, no município de Esplanada (litoral norte da Bahia). Ali,

caminhamos pela praia e chafurdamos na lama do mangue. Temos, deste modo, a

chance de vivenciar esse convívio alongado, colhendo os pequenos segredos desta

convivência avizinhada das águas do mar, do rio e da lama. Fechamos o pacto de que, a

cada dia, a partir das 17h, fariamos algum tipo de ritual entre nós. Entendemos, ao

passar dos dias, que o ritual de “Loucas do Riacho” não precisa ser algo solene. Ele

pode surgir de pequenos atos comuns, que, comungados paulatinamente numa atenção

ampliada, vão gerando um adensamento de atmosfera que propicia outros fluxos de

presença.

No jardim térreo da Casa Preta, espaço cultural localizado no Largo Dois de Julho

(Salvador), a nave-pântano ganha novas dimensões, a partir do conjunto de planta, lama,

paredes emboloradas, ruína, fios elétricos, luzes que trepidam, imagens de santos

caboclos, gambiarras de toda sorte existente ali. Nos cantos escuros do jardim,

63

Ambos performers de “Loucas do Riacho” 64

Trabalho cênico urbano do grupo Alvenaria de Teatro, de Salvador, o qual integrei entre 2008 e 2012.

Page 78: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE TEATRO PROGRAMA DE ... · No potencial simbólico de seu suicídio e na força mitológica e arquetípica de seu destino, encontro não uma

77

brincamos de aparecer e sumir, e vamos virando, nesse movimento simples, um monstro

maravilha, bruxas, um corpo híbrido de raízes, folhas, pelos.65

Ao chegarmos na Casa de Castro Alves, deparamo-nos com sua fundação

centenária que traduz outras centenas de corpos que passaram ali ou ali permanecem

aterrados. Nossa primeira proposição é deitarmos no chão e escutar seus silêncios,

deixar que eles vibrem em nossa língua. Ao passar dos dias, vamos fazendo e

desfazendo bandos, criando e abandonando coreografias, esparramando fúrias coletivas,

mudando objetos de lugar, cultivando mudas de espécies variadas de plantas,

misturando-nos na casa, tornando-nos nela, ela em nós, ambas no riacho.

15. Eu não sei para onde vamos

Figura 30. Fotografia do processo criativo de “Loucas do Riacho”. Na foto, eu, na Casa de Castro Alves,

Salvador. Mariana David, 2017.

Um dia ainda vou me redimir, por inteiro, do pecado do

intelectualismo. Se deus quiser. Não vou ter mais necessidade de falar

nada, de ficar pensando em termos dos contrários; de tudo... Pra tentar

explicar às pessoas que eu não sou perfeito, mas que o mundo também

não é. E que eu não tô querendo ser dono da verdade, que eu não tô

querendo fazer sozinho uma obra que é de todos nós e de mais

alguém, que é o tempo - o verdadeiro grande alquimista, aquele que

realmente transforma tudo. (GIL, 1973)66

65

O vídeo criados a partir do cruzamento entre experimentos no Jardim da Casa Preta e na mata da Escola

de Dança da UFBA está disponível em <https://vimeo.com/201206889> Acesso em 18 nov. 2017. 66

Fala de Gilberto Gil, durante gravação ao vivo de show na Escola Politécnica da Usp, em 1973.

Page 79: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE TEATRO PROGRAMA DE ... · No potencial simbólico de seu suicídio e na força mitológica e arquetípica de seu destino, encontro não uma

78

Em “Loucas do Riacho”, assumo a coordenação criativa, dramaturgia e

performance. Sou movida pelo vislumbre de um processo em que as águas componham

em nós, corpos criativos, uma poética com possibilidade de expressão não normatizada,

uma arte que imploda hierarquias, autoritarismos e colonizações. Contudo não sei, ao

certo, por onde nem para onde isso conduz, para quais formas, quais enredos, quais

prosódias. A criação acontece enquanto cartografia e, nela, a vocação que preciso ter é a

de perceber as trilhas esboçadas por entre a mata frondosa do vir-a-ser. É à medida que

as coisas vão surgindo que se pode entender como seguir e estimular novas

insurgências. Isso requer a aceitação das potencialidades gestadas em cada

acontecimento, de modo a compreender que as projeções a respeito do que resultará no

espetáculo, em sua temporada de apresentações abertas ao público, são mutáveis, e que,

na verdade, a temporada não é um mero resultado de um conjunto de ensaios, mas tem

sua procedência em cada encontro que vai sendo tecido. O constante reajuste em relação

às expectativas do que partilharemos publicamente não tem como medida a maior ou

menor frustração provinda de algo que poderia ter sido de tal modo, mas não alcançou

sua potência. É justamente a potência manifestada no percurso que requer uma

reelaboração da imaginação para a celebração dos modos que despontam em cada novo

acontecimento do processo.

Nesse sentido, praticar a cartografia envolve uma habilidade para lidar

com metas em variação contínua. Em realidade, entra-se em campo

sem conhecer o alvo a ser perseguido; ele surgirá de modo mais ou

menos imprevisível, sem que saibamos bem de onde. Para o

cartógrafo, o importante é a localização de pistas, de signos de

processualidade. (KASTRUP, 2014, p 40)

Quando Márcio Nonato67

me diz “neste processo, eu enxergo você conduzindo

um rio”, essa imagem me inspira modos de ocupação desse lugar a que estranho: o da

direção. É a primeira vez que dirijo um trabalho com outras artistas no elenco e o fato

de ser eu também uma das atrizes do trabalho parece ampliar meus desafios, ao mesmo

tempo que me oferece uma outra perspectiva.

Em geral, performers não pretendem comunicar um conteúdo

determinado a ser decodificado pelo público, mas promover uma

experiência através da qual conteúdos serão elaborados. (FABIÃO,

2013, p. 2).

67

Iluminador de “Loucas do Riacho”.

Page 80: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE TEATRO PROGRAMA DE ... · No potencial simbólico de seu suicídio e na força mitológica e arquetípica de seu destino, encontro não uma

79

Em uma conversa com um diretor de teatro e parceiro de jornada68

, ele sugere

que haveria sido melhor que eu tivesse ficado fora de cena durante o processo de

criação de “Loucas do Riacho”. Desconfio que esta visão seja decorrente, entre outras

coisas, de algum incômodo gerado por qualquer ação que desenvolvo, enquanto

performer, durante as apresentações e ensaios, e também pelo meu silêncio frente a

alguma ação destoante das outras atrizes. Ele parece querer sutilmente dizer-me que

algum gesto, palavra ou ação que eu e mais alguém performamos não se harmoniza

inteiramente com a atmosfera geral do trabalho e, sendo eu ao mesmo tempo atriz e

diretora, esse equívoco fica ainda mais sublinhado. No entanto, minha suscetibilidade a

dar formas pouco aderentes às forças que as invocam parece-me absolutamente cabível.

Isso porque a questão, nesta cartografia de rio, não é medir o quanto os gestos, vozes e

movimentos estão plenamente assentados na verdade de cada momento, mas o quanto

podemos nos deixar mover pela suscetibilidade ao imprevisto. Não se trata de medir o

grau de verdade com o qual cada uma dá forma às intensidades que a atravessam, mas

de alimentar, a todo instante, a abertura para esses atravessamentos, a coragem nesse

despojamento incansável ao vazio, ao silêncio, à queda. Minha função maior então é

instigar a busca e inspirar o exercício incansável de escutar desejos e mover-se por eles.

Dirigir, desde uma perspectiva de um “olhar de fora” que atesta se as coisas

estão funcionando, que verifica se está tudo harmonizado, se há conformidade no todo e

se os atores/performers estão sendo fiéis com os propósitos plásticos do trabalho, não

faz sentido para mim neste processo, em que a atitude de representação não é o

princípio fundante. “Quando conseguimos desvendar os olhos, reconhecemos: ‘a

vontade de delimitar, de geometrizar, de fixar relações estáveis não se impõe sem uma

violência natural sobre a experiência do olhar.’” (NOVAES, 1988, p 9). Julgo que a

naturalização dessa posição da direção, enquanto um “olhar de fora” que, por não

participar presentemente da cena, tem mais sobriedade e, consequentemente, mais

consciência sobre o todo da obra, segue, implicitamente, o pressuposto de uma cisão e

hierarquia entre mente e corpo. Isso porque toma a posição do diretor - aquele que não

está fisicamente comprometido com a ação cênica – como uma posição que propicia

uma melhor qualidade de pensamento, em contraposição ao performer que, tomado pela

vivência do ato, teria uma percepção apenas parcial. Diante da abundância de teorias

68

Como esta conversa se dá de modo casual, sem um acordo expresso para servir de material à

dissertação, opto por não nomear a pessoa referida.

Page 81: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE TEATRO PROGRAMA DE ... · No potencial simbólico de seu suicídio e na força mitológica e arquetípica de seu destino, encontro não uma

80

contemporâneas que superam esta cisão físico-mental e dos estudos de corpo e cognição

que compõem o território das artes do corpo, o que ainda determina que um olhar “de

fora” da situação perceba melhor e “mais verdadeiramente” do que o olhar “de dentro”

dela? Ainda que reconheçamos que são lugares diferentes – o dos atores que compõem a

cena e o dos membros da equipe criativa que não estão fisicamente englobados no ato

da apresentação – e que, dessa diferença, decorram variadas percepções, é importante

desfazer a noção de que essas percepções são “mais verdadeiras” ou “mais falsas”.

... não há nada que seja “o verdadeiro”, no sentido de autêntico,

originário – nem em cima, nem embaixo, nem atrás, nem no fundo da

máscara. Nem em lugar algum. A procura pelo verdadeiro, aqui, perde

até o sentido: revela-se como falso problema. A única pergunta que

caberia é se os afetos estão ou não podendo passar; e como.

(ROLNIK, 2014, p 36)

O próprio sentido de olhar, tomado enquanto atitude de pesquisa, perpassa

fronteiras, reunindo os sentidos à razão e abrindo-se para alteridades múltiplas. O olhar,

por um lado, está no cerne das noções de percepção, observação, exame e, assim,

perfeitamente incorporado na gramática da atividade intelectual, da racionalização da

vida. No entanto, o olhar pertence primeiramente à ordem do sensível. O olhar sensual,

o olhar que deseja ver, que vê sendo visto e que se apresenta mesclado naquilo que olha,

percorre as dimensões do corpo em sua precariedade e substância, e, antes de saber,

sente. Ou melhor dizendo, seu saber se compõe de sensação. “O olhar é linguagem da

vontade e da força antes de ser o órgão do conhecimento” (BOSI, 1988, p 78).

Esse olhar sensível não se restringe a uma percepção óptica, daquilo que o olho

vê, tampouco necessita declinar dela, mas mescla as percepções advindas de cada

sentido, numa recepção das forças que palpitam nos corpos circundantes, sem uma

hierarquia entre uma percepção e outra.

Conhecer o mundo como matéria-forma convoca a percepção, operada

pelos órgãos dos sentidos; já conhecer o mundo como matéria-força

convoca a sensação, engendrada no encontro entre o corpo e as forças

do mundo que o afetam. Aquilo que do corpo é afetável por estas

forças não depende de sua condição de orgânico, de sensível ou

sensorial, de erógeno, nem de emocional, mas de sua condição de

carne percorrida por onda nervosa: um "corpo vibrátil" (ou corpo

intensivo). A percepção do outro traz sua existência formal à

subjetividade, sua representação; enquanto que a sensação lhe traz sua

presença viva. (ROLNIK, 2003, s/p)

Page 82: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE TEATRO PROGRAMA DE ... · No potencial simbólico de seu suicídio e na força mitológica e arquetípica de seu destino, encontro não uma

81

Quando tento, próximo à estreia, marcar algumas poucas ações para garantir que

tudo “dê certo”, percebo que, na verdade, estou sucumbindo ao medo do imprevisível.

Ao tentar organizar as ações, nesses ensaios, tento diminuir os riscos de que, diante do

público, não consigamos produzir nada. Ainda não compreendo inteiramente que esse

“nada” é que é o grande acontecimento de “Loucas do Riacho”. Essa compreensão só se

dará, de modo consciente, na véspera da estreia quando, ao perceber que minha tentativa

de roteirização das ações contradiz a poética que vínhamos trilhando, assumo a opção

por uma dramaturgia do encontro, num acordo de ação que se constitui na abertura para

a relação com o outro.69

Assim, percebo que, mais que conduzir um rio, o que posso fazer é abrir veios

por onde ele se multiplique e esparrame. Convido a entrar no rio - é isso que vou

entendendo que posso fazer -, lembrar do rio, manter acesa a lamparina em que o rio se

ilumina na noite escura. “Há aqui um rio, vê? Permitamos que ele flua, saltemos nele,

sejamos-no”, recordo, mantendo-me em atenção aos rastros de seu fluxo e “tudo

caminha até que a atenção, numa atitude de ativa receptividade, é tocada por algo”

(KASTRUP, 2014, p 42). Aguço minha mediunidade para as águas, indico e invoco sua

presença, abro o rito para que cada uma de nós encarne os fluxos em sua dança. Não

poderei dizer para onde ir, mas direi, uma vez mais, “vamos! Vamos na correnteza,

mantenhamo-nos firmes nessa jornada, mantenhamo-nos com os pés dentro d’água”.

Eu acho que em muitos momentos esperávamos determinadas

posturas de uma lógica de direção ou hierárquica, ou do tipo que

detém um determinado discurso, que detém o conceito. Uma lógica a

qual você nunca se propôs estar. Algo que muitas vezes nós outros

todos questionamos, não acreditando nesse lugar do fechamento do

conceito. O que é desafiante para você e é desafiante para os artistas

outros que estão ali colaborando. E acho que nesse sentido se aplica

isso da poética das águas, porque está na sua forma de ser e esteve em

sua condução o reconhecimento das fragilidades que a gente tem nesse

momento de agenciar tantos outros. Acho que você teve habilidade e

sobretudo deixou que... Eu acho que você tinha uma clareza política

do que você queria desde o princípio, mas, de fato, o lugar da

sensibilidade e da intuição estiveram mais aflorados em muitos

momentos que esse lugar discursivo. Esse lugar discursivo do logos,

né, da tal da academia. E acho que você defendeu isso. E não dá para

falar disso, né, de água, de loucura, de borrar as coisas, sem isso, né?70

69

Essa questão da dramaturgia será melhor abordada no tópico 17, “Um mapa para se perder”. 70

Informação oral. Trecho transcrito de entrevista realizada por mim com Mônica Santana, uma das

atrizes de “Loucas do Riacho”, através de áudios de whatsapp, em 18/06/2017. Este foi um trecho da

resposta dela para a pergunta “Que tipo de artista você acha que eu sou?”.

Page 83: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE TEATRO PROGRAMA DE ... · No potencial simbólico de seu suicídio e na força mitológica e arquetípica de seu destino, encontro não uma

82

É depois de uma conversa entre amigos, já passada a temporada de “Loucas do

Riacho”, que encontro uma nomeação possível para minha posição neste processo.

Relembrando o que eu havia falado sobre o aspecto contra-metodológico desta pesquisa,

que ressoa uma qualidade própria da cartografia criativa, acabo por relacioná-lo com a

maternidade. Criar um filho ultrapassa a possibilidade de um método pré-definido:

ainda que reflitamos sobre metodologias variadas, a criação de um ser é um processo de

disposição e devir, à medida que o aprendizado se dá em reciprocidade, que as escolhas

partem de uma atenção constante e de um trabalho integrado entre conhecimento e

intuição, e que a relação provoca transformações mútuas. Mães e cuidadores,

diferentemente do que é previsto para acontecer nas instituições de educação, reunimos

referências, travamos reflexões constantes, formulamos inevitáveis expectativas, mas

muito mais do que apontar para um fim – que a criança seja isso ou aquilo – vicejamos

um percurso, uma preparação para a vida.

Criar nesta pesquisa é, assim, partilhar atos de presença e expressão, cultivar

valores, propósitos, buscas, estimular o cuidado e a escuta e, principalmente, praticar

esses mesmos cuidados e escuta de modo recorrente, alimentando no outro a vocação

para inventar caminhos que ele vai traçando por si e que nos escapam totalmente. Pois

entendo que é assim que pretendo estar também nas “Loucas do Riacho”, maternando o

processo.

Mesmo partindo de um sem número de estímulos sensoriais e

símbolos previamente consignados, o que aflora das “Loucas” são

ressonâncias de um revolver e um expulsar condicionamentos, abrindo

a percepção para a presença do inomeável [sic], ocorrendo num tempo

indefinido, numa ação potente, porque, descontínua, nua, e 'sem fim'.

O rio corre, permanentemente gera-se; suas águas condutoras e

propiciadoras de fecundidade e fertilidade desdobram-se,

transbordam, rompem barreiras, imprevisivelmente. As loucas, em

transmutação, ultrapassando limites, põem em cheque nossos sentidos

refreados e refreadores - nossa sensibilidade estragada.71

16. Minha boca está repleta de sargaço

71

Trecho de entrevista realizada por email, em 27/07/2017, com o poeta baiano Orlando Pinho. Orlando

assistiu “Loucas do Riacho” e “Ofélia: sete saltos para se afogar”. Esta foi a resposta dele para a pergunta

“Ao sair das Loucas do Riacho, lembro que você comentou algo sobre a potência de um acontecimento

que não tem finalidade demarcada. Você poderia me contar mais sobre essa ideia/sensação?”

Page 84: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE TEATRO PROGRAMA DE ... · No potencial simbólico de seu suicídio e na força mitológica e arquetípica de seu destino, encontro não uma

83

Figura 31. Fotografia do processo criativo de “Loucas do Riacho”. Na foto, Camilla Sarno, na Casa de

Castro Alves, Salvador. Mariana David, 2017.

Dos primeiros auto-retratos até o solo “Ofélia: sete saltos para se afogar”, a

afogada abre a boca em meu estômago, fustigando: diga mais, diga de novo, diga

sempre e de outro modo, até que todo esquecimento, apagamento, silenciamento,

violentamento e culpa se transmutem em palavra, em pele, em ato. As dramaturgias

compostas nesse período, tentam transpor o afogamento, enquanto sensação e metáfora,

para o espaço, o corpo, o papel. Acontece que, no geral, o estar em cena, faz-me sentir

que a língua é uma areia movediça: as palavras são tragadas, despedaçadas, viram

poeira em minha boca.

No meio de uma frase, a voz trepida, tropeça na lombada do ouvido,

chama pra si a atenção, dá-se a surpresa: não compreende mais a

própria língua. “Que diabos eu tou dizendo?”, duvida, e ficaria

minutos, talvez horas, talvez dias, talvez não tivesse fim ficar assim,

encarando, pasmada, os dentes brancos do Semnexo. Mas há ali

interlocutores que, ao notar sua vacilação, atentariam pra o que havia

sido articulado entre fonemas, tons, construções verbais e a coisa

ficaria imprevisivelmente maior, e essa ideia espeta agulhas em seus

nervos, faz-lhe recobrar a fala. Quer terminar o texto, descer na

banguela e aos solavancos o precipício das palavras, concluir. Quando

está pronunciando o último termo, o vazio se desprende do verbo e

toma o corpo, entra pela goela, desce a traqueia, passa pelos

brônquios, bronquíolos, alvéolos, invade os pulmões. Estanca,

sufocada, entre uma sílaba e outra.... Será que é a loucura em mais

uma de suas rondas? Pior: alguém diz, num misto de pergunta e

resposta, “está cansada, não é? Eu também tava pensando em ir

embora...”, e a conversa segue seu fluxo perfeitamente habitual.

Chega em casa disposta a queimar o computador, o telefone, as

Page 85: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE TEATRO PROGRAMA DE ... · No potencial simbólico de seu suicídio e na força mitológica e arquetípica de seu destino, encontro não uma

84

revistas, os maus livros, mas está fraca, hesitante, não faz nada. Não

acende nenhuma luz, lança-se no chão frio e canta, e grita, até não

sentir mais o chão, nem suas pernas, apenas uma vontade profunda de

soltar-se na amplidão e respirar.72

No “Primeiro Estudo para Ofélia Blue”, quero assumir minha vulnerabilidade,

ofertá-la ao público, declarar que tudo bem em estarmos frágeis, que podemos nos

expor. “Ao distinto público, vou ficar aqui exposto à audição pública, como o faquir da

dor”73

. Dou-me ao direito de não saber bem o que fazer e ainda assim fazer, expressar

qualquer coisa, tentar, como uma louca inconsequente, convocar a todos para ver o que

não sei mostrar. Eu já venho trabalhando numa lógica de fazer teatral ligada à ideia do

acontecimento, e tanto em “Fogueira” quanto em “Butô de bêbado não tem dono”,

ambos criados com o grupo Alvenaria de Teatro, é a atenção ao que surge de conexões

em cada instante que dita nosso percurso de ação. Mas agora é a primeira vez que

experimento esse formato de criação solo e, por segurança, monto um primeiro roteiro,

para que as coisas tenham um rumo por onde seguir caso eu me sinta vazia demais.

Porém, o vazio, se não tem convite para estar, entra pela janela, nos pega de rasteira e,

assim, termino a primeira apresentação sentindo que tudo aquilo que foi dito são

palavras mortas, que me dão ares de moribunda. Jogo fora o roteiro que tinha preparado

e, daí para a frente, passo a encarar o palco como o fundo de um rio imenso. É essa

minha proposição: pisar no palco, deserta, observar os peixes imaginários que ali

rondam – olhares, vibrações, densidades, atmosferas, ruídos – e, na interação com esses

fatos, soltar os gestos, os sons, as palavras, tentando, de algum modo, tecer elos com

aquelas presenças. É a partir do encontro das correntezas-sentidos-olhares que me

perpassam a cada dia, que arrisco dizer e dançar, rascunhando uma ponte entre as

profundezas em que me isolo e a beira do corpo: a fronteira entre eu e o outro. Fico em

silêncio e espero ouvir a voz que, em mim, está na iminência de soar, sua primeira réstia

de som, seu modo de tocar outros corpos.

No “Segundo Estudo para Ofélia Blue”, desejo falar sobre meu encontro com

Ofélia, sobre minhas leituras dela, contar um pouco do percurso até aqui. Faço

marcações, construo um texto, me apresento numa articulação de personas - o eu-atriz, o

eu-Ofélia e o eu-narradora. No roteiro do “Segundo estudo”, reservo algumas cenas para

72

“Uma medusa entalada na garganta”, poema do “Manual de Afogamento”, ainda a ser publicado, parceria desta autora com o artista gráfico Lucas Moreira, e que compõe o escopo de criações do “Projeto Ofélia”. 73

Trecho da canção “Faquir da dor”, composição de Jards Macalé.

Page 86: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE TEATRO PROGRAMA DE ... · No potencial simbólico de seu suicídio e na força mitológica e arquetípica de seu destino, encontro não uma

85

o silêncio, para a dúvida, para a escuta, mas esses momentos, assim circunscritos, já

contradizem a imponderabilidade dos acontecimentos. A tensão entre a busca por um

teatro que se propõe aberto às rotas que surgem no ato da cena e à composição conjunta

com as presenças que a compõem, de um lado, e as escolhas que têm raiz numa escola

da representação teatral, de outro, vai manter-se viva em todo o decurso do projeto.

Numa das apresentações, desde o palco, olho os semblantes da plateia e sinto

que há uma atitude mais radical a ser tomada, mas não sou capaz de abrir-me a essa

força insolúvel a fim de dar-lhe movimento.

Há algo pra fazer e eu estou tímida;

tudo é maior que meu cálculo.

Vim de cabeça neste mar naquela hora da coragem,

agora tenho medo e câimbras.

Seria boa alguma ajuda, mas pra quem pedir socorro

se o mar são todos?

Fiquei rouca, quase afônica,

engasgada, nem sei com o quê,

mas ando burra e continuo abrindo a boca,

grunhindo, parecendo um baiacu

lutando contra o anzol.

Não é uma imagem simpática,

estão todos constrangidos.

Mas sorriem, delicados; que mentira esta nossa.

Nos detalhes de seus cenhos,

noto seu temor: creem que estou desesperada,

se envergonham em meu lugar.

Se eu tivesse mais coragem

e uma voz bem retumbante pra explicar

eu lhes diria

que o que tive foi um sonho.

Com uma voz que se levanta,

revela tudo, acende as luzes,

diz que me ama e que isso aqui

é só um dia, só uma noite

e logo mais

nós poderemos

respirar.74

Vou seguindo meu pequeno conjunto de marcas, como quem foge da própria

sombra, e volto ao camarim, ao final da sessão, com a sensação de falcatrua. Sinto que

estou contradizendo meus propósitos de busca por um teatro da escuta, da presença, do

74

Poema “Alagamento na sessão das nove”, do livro “Manual de Afogamento”, ainda a ser publicado, parceria desta autora com o artista gráfico Lucas Moreira, e que compõe o escopo de criações do “Projeto Ofélia”.

Page 87: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE TEATRO PROGRAMA DE ... · No potencial simbólico de seu suicídio e na força mitológica e arquetípica de seu destino, encontro não uma

86

imponderável. Mas toda contradição me interessa e este é um trajeto longo, de modo

que vou tentar e tentar e tentar, sabendo que “não se atinge o corpo performativo

grosseiramente. O corpo performativo não para de oscilar entre a cena e a não-cena,

entre arte e não-arte, e é justamente na vibração paradoxal que se cria e se fortalece”

(FABIÃO, 2013, p 6).

No solo “Ofélia: sete saltos para se afogar”, me proponho a buscar, de modo

mais dedicado, um texto de palavras mágicas, de significantes que sejam portais abertos

para significados delirantes, e um roteiro de atos de entrega ao presente.

A intensidade com que OFÉLIA me tocou foi uma, sem comparações;

cada ocorrência com sua singularidade. Pela carga emocional, pelo

teor da inquirição, dimensão plástica, carga dramática, “Ofélia” tem

outra vibração energética, uma repercussão psíquica, diretamente,

mais intensa em mim.75

Na interação com a equipe de criação do solo, amplio a compreensão do que

pode ser uma dramaturgia da “cena expandida”, entendendo a confluência de escritas do

corpo, das sonoridades, das texturas, dos brilhos e sombras, dos elementos materiais. O

roteiro, escrito durante os ensaios, sofrerá algumas pequenas modificações ao decorrer

das apresentações. Uma das cenas, por exemplo, que intitulo de “abissais”, vai se

tramando ao longo das apresentações, transformando-se num momento em que o

protagonismo é da sonoplastia, composta por um grave eletrônico permeado por um

timbre de água. Por outro lado, há outra cena, justamente a que nomeio de “a louca” - e

que agora percebo que deveria ter chamado de “surto”, desadjetivando a imagem para

atrelá-la ao ato, num substantivo verbal -, em que sinto o texto me engolir. Nesta cena,

minha fala é criada a partir de escritos que redigi logo no início do projeto e me esforço

para criar movimentos, tons, ritmos que favoreçam os sentidos do texto. Esse texto, ao

invés de ser um portal para o acontecimento, passa a ser algo maior que a cena, algo que

parece residir em uma dimensão à qual eu tento, sem sucesso, alcançar, numa luta por

encerrar o caos do presente em palavras que renegam o corpo: palavras que não se

deixam inundar, borrar e/ou diluir pelas ondas bravias do instante.

75

Trecho de entrevista realizada por email, em 27/07/2017, com o poeta baiano Orlando Pinho. Orlando

assistiu “Loucas do Riacho” e “Ofélia: sete saltos para se afogar”. Esta foi a resposta dele para a pergunta

“Lembro que você assistiu o solo que fiz de Ofélia, o "OFÉLIA: sete saltos para se afogar". Você vê

algum elo entre aquele trabalho e “Loucas do Riacho”? Onde você acha que eles se encontram e onde eles

se diferem ou distanciam?”

Page 88: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE TEATRO PROGRAMA DE ... · No potencial simbólico de seu suicídio e na força mitológica e arquetípica de seu destino, encontro não uma

87

Em “Loucas do Riacho”, já não há nada previsto para dizer e, no entanto, resta

um milhão de “esquecimentos, apagamentos, silenciamentos, violentamentos e culpas”.

Ofélia então sussurra o riacho, “deixemos que as águas falem por/em nós ou que, em

nós, realizem o silêncio, dancem. Deixemo-nos ser o rio”. Para a composição de cena do

espetáculo, os gatilhos pré-acordados são poucos: sob a coordenação de Fábio

Pinheiro76

, antes do horário previsto para a entrada do público, preparamos um espaço

composto por bacias, algumas roupas, cristais, pérolas falsas, pedras e penas. Descemos

juntas as escadarias da Casa de Castro Alves em direção ao salão térreo, ao cair da

tarde, vestidas apenas com a cabeça de sargaços. O público vai entrando na Casa,

enquanto a primeira faixa da trilha sonora é disparada por André Oliveira77

- uma

vibração muito grave que se torna cada vez mais audível ao longo de meia hora e que

depois se transmuta, gradativamente, por mais trinta minutos, em ruídos de água

corrente. A partir disso, invocamos nossa prática de escuta sutil, através da qual o que

uma produz, antes de ser “decodificado” pela outra, provoca-a e gera reverberações

imediatas.

Desse modo, vamos encontrando modos de retomar a validação, nas diretrizes da

criação, dessa potencialidade desestruturante do teatro, enquanto ato presente e efêmero,

inteiramente vulnerável às violentas variações da vida que acontece agora. Renuncio à

soberania da virtualidade sobre a materialidade, do texto pré-definido ou do roteiro pré-

elaborado sobre a composição dos traçados dos desejos, intuições, escutas, agonias e

estimulações do instante e tento pôr essas dimensões – do virtual e do material – numa

interação viva e anárquica.

17. Um mapa para se perder

76

Cenógrafo de “Loucas do Riacho” 77

Diretor musical de “Loucas do Riacho”

Page 89: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE TEATRO PROGRAMA DE ... · No potencial simbólico de seu suicídio e na força mitológica e arquetípica de seu destino, encontro não uma

88

Figura 32. Vestígios da imersão de “Loucas do Riacho”, Baixios. 2016.

Ao buscar uma definição para o que se estruturou enquanto dramaturgia de

“Loucas do Riacho” e em boa parte dos trabalhos do “Projeto Ofélia”, encontro o

conceito de “programa performativo”, de Eleonora Fabião (2013). Ao invés da

determinação de um encadeamento de ações que preenchem toda a duração da cena e

afastam ao máximo a incidência de eventos imprevistos, o “programa performativo”

prevê a escolha por uma ação ou um conjunto de ações objetivas, que condensam um

conceito elaborado pelo performer. Estas ações servem como disparadoras de situações,

a partir das quais a cena se desenrola de modo randômico, junto aos elementos não

antecipáveis que rebentam em cada momento. Trata-se de uma composição porosa, uma

cena-não-cena radicalmente disponível à interação com o contexto em que se insere,

“uma prática ‘acutilante’ e humorada que chacoalha a separação entre arte e não-arte.

Que lança o corpo do artista na urgência do mundo e a urgência do mundo no regime de

atenção artístico” (FABIÃO, 2013, p 10).

Segundo Fabião, sua proposta pode ser entendida como um “‘motor da

experimentação’ – enunciado que norteia, move e possibilita a experiência”, e usada

para refletir sobre “teoria e composição de performance e suas relações com a criação

teatral contemporânea” (FABIÃO, 2013, p 1). Ela usa este conceito para traduzir o que

chama de “enunciado da performance” - o conjunto de ações que norteiam o performer

em seu trajeto de relação com o ambiente e com o público (ou com o outro-não-

público). E admite abordagens do “programa performativo” no teatro contemporâneo,

em trabalhos que atentam para modos de se afetar amplamente pelas nuances

Page 90: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE TEATRO PROGRAMA DE ... · No potencial simbólico de seu suicídio e na força mitológica e arquetípica de seu destino, encontro não uma

89

contextuais. Esse teatro se constrói enquanto ato aberto ao fluxo do acontecimento,

realçando, na prática cênica, os potenciais do imprevisível.

E claro, há também a possibilidade de inserção de programas na malha

do espetáculo aumentando sua vibração performativa. Depende.

Depende das aventuras de significância, subjetivação e organização

que queiramos proporcionar uns aos outros; que queiramos

proporcionar a nós mesmos e aos espectadores, participantes,

colaboradores, coautores, cúmplices ou testemunhas dos trabalhos.

Depende das temperaturas relacionais, dos tipos de contato que

queiramos vivenciar. Depende. Depende das poéticas e éticas em

questão. Tudo depende. (FABIÃO, 2013, p.9)

Na primeira temporada de “Loucas do Riacho”, nosso programa performativo é:

descermos, às 17:30h, as escadas da Casa de Castro Alves, todas nuas, com as cabeças

de sargaço, e nos espalharmos pelo espaço, cada qual com seu percurso e ritmo,

enquanto o público entra e um som grave torna-se paulatinamente perceptível. Não há

mais nenhuma ação pré-definida a cumprir. A certa altura, algumas tirarão sua cabeça

de sargaços ou não, vestirão o vestido criado por Fábio Pinheiro78

para cada uma ou

não, permanecerão no salão até o público todo ter ido embora ou logo se recolherão à

sala reservada no segundo andar. Muitas coisas poderão acontecer, muitas relações,

toques e murmúrios, e isto só o encontro de cada dia revelará. Junto a isto, temos

também um pacto de disposições, uma invocação de sensibilidades, uma espécie de

mantra silencioso que é: aceitar o vazio, estar, deixar que as águas do corpo ressumem,

buscar afluências, permitir o rio, ser o rio, alagar.

A cena foge ao longo da imprecisão de suas marcas, da incerteza sobre seu início

e fim. Mesmo acontecendo num espaço definido, num espaço marcado e divulgado

enquanto lugar de apresentação de um trabalho artístico, essa cena perde-se por entre o

canto dos grilos, o grave das caixas, a luz crepuscular. Ela transcorre num espaço

intersubjetivo, num fluxo que se compõe pelas trocas sutis entre os agentes envolvidos.

Estes agentes são tanto os artistas que desenvolvem a obra quanto o público que a

compõe a cada dia. Não há um material preparado de modo fechado ao qual o público

assiste, mas sim um arranjo de chaves através das quais artistas e público podem ir – ou

não - se engajando, numa performance de aproximação e numa reformulação do tempo.

78

Cenógrafo e figurinista de “Loucas do Riacho”

Page 91: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE TEATRO PROGRAMA DE ... · No potencial simbólico de seu suicídio e na força mitológica e arquetípica de seu destino, encontro não uma

90

É preciso desativar em toda parte os efeitos de cálculo econômico,

nem que seja para saber claramente onde somos afetados pelo outro,

isto é, pelo imprevisível, pelo acontecimento que, ele sim, é

incalculável: o outro corresponde sempre, por definição, ao nome e à

figura do incalculável. Nenhum cérebro, nenhuma análise neurológica

supostamente exaustiva é capaz de proporcionar o encontro com o

outro. O advento do outro, a chegança daquele que chega, é (este) que

chega enquanto evento imprevisível. (DERRIDA apud LOPES, 2015,

p 233)

Na nossa espera por esse outro desconhecido, que é o público, articulamos uma

série de autorizações, nos dispondo a sucessivas aberturas: permitimo-nos silenciar,

escutar, esvaziar, mover, olhar, descansar, estar, escapar, retornar. Arrumamos o espaço

buscando as linhas de fuga que se tecem como um convite a despir-se dos

temperamentos cotidianos e a mergulhar conosco no riacho das loucas. O que resta

como procedimento central, arriscado e sincero é dissolver a rigidez dos modos,

alinhavando cumplicidades através das quais um rio de sentidos insondáveis corra entre

nós, entre os corpos que habitam a Casa de Castro Alves a cada dia. E que, a partir das

afluências sutis entre vibrações, olhares e movimentos, outras ações despontem. Assim

é o nosso convite para estar no rio. O mais, é “o banhar-se”79

.

Mergulhei em busca da beleza que habita o fundo. Minhas

expectativas de nada importavam para Elas [sic], bem como não

importam para o oceano. E eu só pude viver a experiência do

mergulho quando parei de tentar decifrar o que via. Larguei as lentes

de pesquisador, mantive só a curiosidade humana. Senti. Menos do

que poderia, já que mulher não nasci, mas percebo que, de alguma

maneira mágica, a presença da minha mãe ali ampliou a conexão, o

nosso laço umbilical permitiu que eu percebesse coisas através dela.80

Durante todo o processo criativo, ao longo dos ensaios, são diversos os

“programas” experimentados, alguns mais objetivos, outros mais imaginativos. A

questão fundamental dos ensaios é “inventar, a cada vez, o programa de ação mais

condizente com as questões em pauta” (FABIÃO, 2013, p 10). Cada encontro é um

acontecimento, uma ação de experimento, que, se não chega a apagar inteiramente a

ideia da temporada de estreia enquanto auge do processo, ao menos rasura essa

79

Trecho da fala de Orlando Pinho em entrevista que cito aqui mais a frente, em “não precisamos fazer

nada”, pg 73. 80

Trecho do comentário do ator e arte-educador Jones Mota, sobre sua experiência em “Loucas do

Riacho”. O comentário foi originalmente publicado no site de seu grupo, o Viansatã, e pode ser lido na

íntegra no link http://www.viansata.com/escritos/viansata-olhando-o-mundo/viansata-olhando-o-mundo-

loucas-do-riacho/

Page 92: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE TEATRO PROGRAMA DE ... · No potencial simbólico de seu suicídio e na força mitológica e arquetípica de seu destino, encontro não uma

91

hierarquia e não se faz refém dessa ansiedade, abrindo espaços para vivências cujo fim

se concretiza em sua própria duração. Nos ensaios, vai sendo composto um repertório

de vivências, sensações e percursos que amadurece os pactos sutis do trabalho e que

permite que a temporada surja como uma vivência extensiva, com novos aspectos entre

os tantos que foram surgindo no processo.

Nessa ética de criação, arte e vida se confundem, de modo que a

responsabilidade de estar em cena ou em processo de criação, é a responsabilidade de

presentificar-se na própria vida, animando suas possibilidades. Atuar passa a ser

interatuar, ou seja, estar em interação com o ambiente, ampliando os canais desta

interação para ativar a escuta-presença dos sujeitos que ali se agregam.

18. Buscar afluências

Figura 33. Fotografia da oficina-ação “Lavagem”, Salvador. Mariana David, 2017.

As coisas e as matérias sutis estão em toda parte. Entre as presenças que junto a

nós sibilam, é possível vestir-se de convite – uma pele que respira - e desnudar

distâncias.

Estamos sempre sós e nunca estamos sós: paradoxo inexorável. Aproximar-se é

reflexivo e transitivo. Estar inteiro, neste corpo de poros, fluxos e orifícios, é estar em

interação. Sabemo-nos um, em nossa diferença irrevogável, e seguimos

inescapavelmente misturados em outros.

Page 93: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE TEATRO PROGRAMA DE ... · No potencial simbólico de seu suicídio e na força mitológica e arquetípica de seu destino, encontro não uma

92

Ao decidir celebrar essa condição, alguém pode deixar que a solidão se alastre e

transborde em toques diáfanos nas multidões que o permeiam e circundam. Sentir que a

dança de outros corpos alimenta o seu. Mover as mãos no rastro da memória das mãos

de alguém. Sentir que o silêncio, o canto, as palavras de outra gente fazem vibrar sua

língua. Reconhecer, nas rachaduras da parede, os sulcos da própria epiderme. Encontrar

nas árvores um modo de pausar o dia. Soltar a voz como quem solta as cordas de um

balão cheio de ar, para que ela flutue até encontrar o outro-pouso alheio-alhures:

conviver.

para que este processo se oriente na direção dos movimentos de

afirmação da vida é necessário construí-los com base nas urgências

indicadas pelas sensações, ou seja, os sinais da presença do outro em

nosso corpo vibrátil. (ROLNIK, 2014, p 20)

19. Não precisamos fazer nada

Figura 34. Fotografia do processo criativo de “Loucas do Riacho”. Na foto, Uerla Cardoso, na Casa de

Castro Alves, Salvador. Mariana David, 2017.

Uerla81

diz que dá vontade de estar sempre movendo o corpo, esquentando,

buscando um estado de presença, para não morrer, não morrer na cena, não ficar fora do

fluxo dos acontecimentos. Ela diz, “quando começo a suar é que entendo que algo está

acontecendo”. Mas onde é fora? Fora de quê? Fora da vida? Essa morte é que morte?

Parar um pouco, permitir-se não estar sempre fazendo algo o tempo todo, deixar de lutar

81

Uerla Cardoso, uma das “Loucas do Riacho”.

Page 94: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE TEATRO PROGRAMA DE ... · No potencial simbólico de seu suicídio e na força mitológica e arquetípica de seu destino, encontro não uma

93

pelo lugar ao sol, ou pelo lugar sob os refletores, pode ser o que nos recoloque numa

existência misteriosa do presente, essa coisa estranha de que vivemos tentando escapar.

Ou pode ser que, como Uerla indica, esse estar movendo-se sem parar, num fluxo

contínuo, num modo de dissolver a apatia, o gesto cristalizado, o movimento

premeditado, comandado, previsível, seja um caminho para trair o hábito de defender-se

do invisível e, entregando-se ao caos, encontrar outros modos de silêncio e diálogo.

Não se trata então de permanecer parado ou movendo-se, calado ou em fluxo de

som ou fala. Trata-se de parar – com violência ou calma, sonolência ou vigor - um

pouco essa locomotiva insana que é a vida rotineira de produzir, ganhar, gastar,

cumprir, dever. Trata-se de abrir as próprias antenas para o mistério.

Não há um estado ideal para viver “Loucas do Riacho”, mas a preparação para

essa vivência é uma espécie de luta contra o assoreamento do fluxo do tempo, uma

ampliação da vazão dos leitos, um desentupimento de canos, uma sucessão de aberturas

de vias pelas quais a vida se materializa. Os repertórios de movimentos, de gestos, de

entonações, de expressões, de técnicas das performers ampliam as possibilidades de

tradução de cada sensação, mas o repertório que mais importa aqui é o dos contatos

vertiginosos com a inquietude, das batalhas travadas na carne, em cada músculo, da

precipitação em cada sensação percorrendo cada poro, dos tantos confrontamentos com

a própria máscara, com a própria história, com o próprio ímpeto. Esse repertório é

constituído numa trajetória intensiva de experimentação artística, a partir de um

treinamento dedicado e, muitas vezes, estafante, de abertura ao imponderável e de

maquinação de modos pelos quais transfigurá-lo, transmiti-lo ou traduzi-lo em arte.

E, mormente,

remar contra a maré numa canoa furada

Somente

para martelar um padrão estóico-tresloucado

De desaceitar o naufrágio.

Criar é se desacostumar do fado fixo

E ser arbitrário.82

Quanto mais erramos, quanto mais enormemente quisemos e fracassamos e

ainda assim quisemos mais e mais e entregamos nosso corpo em sacrifício – não um

sacrifício de expiação, mas de transfiguração –, refazendo novos atos criativos, mais

cada um de nós, artistas, estaremos abertos a aceitar o vazio, a ceder à catástrofe

82

Trecho do poema “Sargaços”, de Waly Salomão.

Page 95: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE TEATRO PROGRAMA DE ... · No potencial simbólico de seu suicídio e na força mitológica e arquetípica de seu destino, encontro não uma

94

maravilhosa da vida que se desabotoa e a criar, loucos, à beira do riacho. É na

permissividade a nossas marcas mais intensas, nas rachaduras que as compõem, que a

loucura vai abrir um veio por onde escoar-se longe das patologias e nos impulsionar a

nadar e nadar pelo mistério da criação, como:

Um elogio à determinação do agente e à indeterminação da vida. Uma

prática que exige tônus e flexibilidade, planejamento e abertura,

disciplina e presença de espírito. Mas então, como preparar-se para

performar? Ouso uma resposta: vivendo a vida. (FABIÃO, 2013, p

10).

Márcio Nonato83

, problematizando um aspecto excessivamente representativo

que ele considera persistir nos ensaios e que contradiz a busca por uma política de

criação de desmanchamento de máscaras e fluidez de discursos, sugere que realizemos a

experiência do pano na cabeça. Essa é uma experiência que Márcio vem propondo

desde que dirigiu o trabalho “Isto é apenas uma mulher com um pano na cabeça”84

e que

tem se configurado como uma possibilidade de experimentação que descondiciona

certos repertórios de ações prévias e oferece a possibilidade de expressão que surge da

relação com o vazio do pano branco.

Em um dos dias de ensaio na Casa Preta85

, à noite, Nonato leva os panos brancos

com os quais todas cobrimos completamente a cabeça. A indicação é apenas essa:

amarrar o pano de modo a cobrir toda a cabeça e estar com ele durante um período (que

dura pouco mais de uma hora). Ao sentir que a experiência com o pano já foi suficiente

por hora, é só tirá-lo e esperar que as demais façam o mesmo, cada qual a seu tempo.

Comigo acontece que, ao mesmo tempo que eu me vejo só, ali, mergulhada

nesse pano, numa solidão acolhedora e confortante, aguça-se minha busca por

encontros. Ao sentir a presença de alguém próximo e ao tocar nessa pessoa – com as

mãos ou com o simples encostar de um corpo no outro – a sensação que me acomete é

de um erotismo emancipado de fetiches, um elã de ternura e vigor.

Felipe Benevides, que não usa o pano por ter chegado mais tarde, diz, na

conversa ao final do encontro, que parece que estamos em outra dimensão. Nosso

magnetismo o arrasta também para esse estado de levitação, de sonho. André Oliveira86

,

83

Iluminador de “Loucas do Riacho” 84

Trabalho do coletivo VAGAPARA, de Salvador, que estreou em 2011. 85

Espaço cultural localizado no Largo Dois de Julho, em Salvador, e gerido por coletivos de teatro. 86

Diretor musical de ‘Loucas do Riacho” e de grande parte dos trabalhos do Projeto Ofélia.

Page 96: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE TEATRO PROGRAMA DE ... · No potencial simbólico de seu suicídio e na força mitológica e arquetípica de seu destino, encontro não uma

95

conta que o fato de estarmos com os rostos cobertos sem agirmos com uma

intencionalidade dirigida a uma audiência, convida-o a misturar-se em cada uma de nós

e deixa-se ficar imaginando os sons que estaríamos escutando dentro daquele pano.

Chego correndo atrasado até a porta que dá para o jardim da

casa preta. Atravesso, encontro as mulheres vestindo o pano na

cabeça, espalhadas pelo espaço. Recebo o pano, escolho não vestir

agora.

O terreiro é conhecido, já ensaiamos ali antes, a luz parece

outra. Tenho a impressão de que está mais escuro. Duas meninas estão

sentadas num banco, quase não se mexem. Uma caminha trechos

curtos balançando os braços. Outra para e se volta em minha direção.

Há alguém de costas com a testa encostada numa parede tateando. E

entre as plantas do Jardim. Alguém sobe a escada sem nenhuma

pressa.

Estou parado na entrada. O lugar impõe sua passagem sobre

quem acabou de chegar. Um convite para aquietar e observar. Aceito

o convite. Caminho pelo jardim e subo a escada. De cima vejo o

quintal e o terreno da frente tomado por plantas, a ruína de uma casa,

uma igreja colonial na rua de trás, a casa vizinha.

Com o pano na cabeça, só dá pra ver o branco do tecido.

Começar a se deslocar dessa maneira ativa a atenção na distribuição

dos gestos. Neste estado compartilhado, a presença de cada uma sofre

uma expansão, ganha volume e qualidade de imã. Convida a olhar.

Nova frequência sintonizada em conjunto. Novas disposições

no espaço-tempo. Sem precisar descrever as causas, o que se move dá

a saber sua finalidade em ato. Só acompanhar os processos: o que é

contido e contínuo e se estende com calma, o que se exaspera e

convoca, o que grita, o que encontra e tateia, o que encontra e agarra,

o que não sabe o modo, o que avança, o que solta, o que abre....

As mulheres estão juntas agora. Reunidas conversam,

arrastam poeira, dançam, consoam, modulam diferenças em vibração.

Reunião onde está o reaparecimento de reuniões. Está em curso a

evidenciação da comunhão entre os seres de matéria e vazio neste

espaço-tempo. Isto é difícil de colocar em palavras, vou me valer dos

versos do poeta Waly Salomão: "Feras e bichos mansos e seivas

vegetais transmigram pelos canos/ De sangue dos humanos /

Metempsiscoses e dispersões dos aros do eixo da personalidade"87

.

Os gestos trocam calor-energia com o espaço-tempo. O vento nas

folhas, o tambor de água, o avião e o grito na vizinhança, numa

melodia, entram, abrem-se os cenários. Sem se ver, se encontram,

reverberam gestos à distância. A impressão é que há uma abertura de

percepção deslocando a comunicação a outro canal, onde labora, em

rearranjo constante, uma nova intimidade, precária, mediada por

intensidades.

A música e o movimento chegam a um ápice, atingem o calor. O

movimento se torna imprevisível, surgem novos padrões, um novo

comportamento, nova estrutura. Os seres e o meio se procuram,

atravessam a linha de abstração que evidencia seu amálgama.

87

Trecho do texto “Estava escrito no templo de Baco em Baalbeck”, do livro “Poesia Total”.

Page 97: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE TEATRO PROGRAMA DE ... · No potencial simbólico de seu suicídio e na força mitológica e arquetípica de seu destino, encontro não uma

96

Dançam o lugar. O espaço-tempo é mutante. A atmosfera amplifica

seus elementos que variam como o humor e a persistência da

memória. Deu uma vontade de chorar. Aconteceu que no instante

seguinte a esse meu pensamento, uma das mulheres abriu um choro.

Estatelei com a co-incidência.

Conversamos muito sobre o elemento água e é fatal que os indícios

dela sejam transcriados em sensações e desenhos durante esse

processo. O jardim inundou, por exemplo; geral sentiu.

E então arrefece. Deixa estar. O vórtice se dissipa. Longe da simetria e

da regularidade. A substância se recolhe ao tutano.

Retirada dos panos. Esgar dos olhos e braços. Lançar-se ao chão ou

permanecer de pé. Esvaziar.88

Com o rosto coberto com o pano branco, toda a necessidade de preencher o

espaço e o instante com imagens, textos, intenções e atmosferas se esvai. No vazio do

pano, diluído o rosto, é nosso ser que se vê disperso por toda parte e resta apenas

esperar que os desejos nos movam para algum gesto ou lugar imprevisível.

Dessa experiência do pano na cabeça, surge a ideia de uma cabeça de sargaços,

que não impede a visão, mas a turva, conferindo o naufrágio de nossa capacidade de

distinção.

“Loucas do Riacho”... Percebo como uma situação metaritualística, de

transvaloração de sentidos, expansão de afetos, ação

descondicionante, liberação da consciência. Se já é isso, outra coisa só

pode ser o banhar-se.89

20. Deixar que as águas do corpo ressumem

88

Anotações de Felipe Benevides, do dia da experimentação com o pano na cabeça. 89

Trecho de entrevista realizada por email, em 27/07/2017, com o poeta baiano Orlando Pinho. Orlando

assistiu “Loucas do Riacho” e “Ofélia: sete saltos para se afogar”. Esta foi a resposta dele para a pergunta

“Para você, o que Loucas do Riacho é? E o que pode ser?”

Page 98: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE TEATRO PROGRAMA DE ... · No potencial simbólico de seu suicídio e na força mitológica e arquetípica de seu destino, encontro não uma

97

Figura 35. Fotografia do processo criativo de “Loucas do Riacho”. Na foto, Mônica Santana, Escola

de Dança da UFBA, Salvador. Mariana David, 2016.

As águas têm um murmúrio que nunca cessa. Regatos, córregos, quedas d’águas,

poças, lençóis freáticos e ondas estão sempre conversando em sua língua de umidades.

Em nós - corpos setenta por cento feitos d’água - toda uma série de fluidos rumoram.

Se nos lançamos em atitude de propriocepção, podemos deslizar por estes fluxos

ininterruptos, passeando por entre seus circuitos a todo tempo excitados por vibrações

psíquicas, por memórias celulares, pelo paladar das substâncias ali misturadas. Na

escuta desses trânsitos de fluidos, “uma escuta ‘bruta’, som após som, aquela que aceita

tudo, sem discriminações culturais; escuta do desejo, da corporeidade, do despudor e da

vida” (HAOULI, 2002, p 39), é possível perceber que

as vozes da água quase não são metafóricas, que a linguagem das

águas é uma realidade poética direta, que os regatos e rios sonorizam

com estranha fidelidade as paisagens mudas, que as águas ruidosas

ensinam os pássaros e os homens a cantar, a falar, a repetir, e que há,

em suma, uma continuidade entre a palavra da água e a palavra

humana. (BACHELARD, 2013, p 17)

Em cada poro, nossas águas ressumam e, nesse ressumar, uma voz desponta. A voz

das águas ressai em nossa pele e podemos, de algum modo, deixá-la ressoar em nossas

bocas. A voz das águas é o volume das intimidades que nos percorrem em silêncio ou

em sons audíveis. Nossa voz de águas reúne presenças fantasmagóricas, acolhe

clarividências e obscuridades, reinventa pequenos ritos mágicos.

Page 99: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE TEATRO PROGRAMA DE ... · No potencial simbólico de seu suicídio e na força mitológica e arquetípica de seu destino, encontro não uma

98

Não creio ser um homem que saiba. Tenho sido sempre um homem

que busca, mas já agora não busco mais nas estrelas e nos livros:

começo a ouvir os ensinamentos que meu sangue murmura em mim.

(HESSE apud PRECIOSA, 2010, p 15)

21. A palavra que nem cala nem diz

Figura 36. Colagem integrante do processo criativo de “Loucas do Riacho”. Lucas Moreira, 2016.

Em cada uma e em cada um de nós, há uma louca afogada, atiçando um jorro

delirante que dissolve os contornos por onde as linguagens se tornam estanques,

hierárquicas, excludentes. Se deixarmos as águas do pensamento dançarem o corpo, a

voz da louca emerge com sua palavra-labirinto, que desnorteia. “Se é preciso

dessubjetivar o mais possível a lógica e a ciência, é não menos indispensável, em

contrapartida, desobjetivar o vocabulário e a sintaxe” (Claude-Louis Estève, apud

BACHELARD, 1986, p 13).

A voz da louca – a louca que vive em nós -, ao alçar-se à superfície, não para de

soar. Não se cala na boca, não se constrange. Quem escuta o que ela diz não escuta o

que ela está dizendo, mas o que o seu dizer invoca. Suas frases não são decodificáveis;

elas agitam o pensamento de quem a encontra, germinando sentidos espantosos.

O desdobramento dessa exploração tenderia a apontar uma “nova

vocalidade”, perturbadora para certas ordens e para certos estados de

coisas. Uma vocalidade capaz de não se deixar dominar por

mecanismos culturais de controle e pelos imperativos de uma

sociedade de mercado. Uma voz, enfim, capaz de gritar, gemer e

“cantar-se”. (HAOULI, 2002, p 49)

Page 100: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE TEATRO PROGRAMA DE ... · No potencial simbólico de seu suicídio e na força mitológica e arquetípica de seu destino, encontro não uma

99

Essa voz convida à escuta do absurdo, sem ser absurda e disparata em si. Sua

densidade irrevogável não permite que zombem dela ou a neutralizem, enquadrando-a

enquanto tolice. Ela ressoa uma palavra que, antes de significar, pesa, assentando na

matéria de cada corpo que a escuta.

O coro fragmentado ganha a dimensão de cacos libidinais expostos

ao evento que se dá a nossa frente, no cotidiano. O performer é uma

sonda no instante, e desmistifica o sujeito uno previamente

constituído por um discurso aceito pela maioria ou imposto como

“modelo”. Essa desconstrução do sujeito em fragmentos consegue

impedir a atuação de nossos filtros linguísticos. (HAOULI, 2002, p

59)

Nos encontros de “Loucas do Riacho”, invocamos esse jorro, essa corredeira de

palavras e pensamentos, fazendo exercícios de fluxo verbal. Primeiro, iniciamos uma

dança que agita o corpo num pulso vigoroso, sacodindo as palavras que o atravessam.

Quando as palavras, ainda em inaudível balbúrdia, começam a vibrar a língua,

estacamos, soltamos um grito-mudo e começamos a dizer. Dizemos o que nos ocorre,

sem parar, sem planejar, sem organizar e sem reter. Vamos soltando um vômito

fonético, num “‘fluxo’ de palavras, um discurso enlouquecido que não cessaria de

deslizar sobre aquilo a que remete sem jamais se deter?” (DELEUZE, 1974, p. 2).

Falamos continuamente, dando voltas no dizer, entontecendo de tal modo os

significados, que os filtros linguísticos tropeçam e se desfazem. O verbo pronunciado,

nesse coro dissonante, despedaça a ilusão do bom-dizer e alimenta insubmissões,

porosidades e aproximações. Esta fala é como um escavar de palavras, que, por sua vez,

é como um escavar da terra para alcançar um lençol freático no qual banhar-se. “Eu

tinha a sensação de que cada ação do trabalho tinha voz, volume. A loucura como

volume do invisível”.90

É um azucrinar do verbo para a irrupção do fluxo de vozes

atávicas, ancestrais e plurais.

Palavras soltas e que juntas/sobrepostas/fora da linearidade da linha

permeiam essa compreensão da presença: passado, presente, futuro,

eu-corpo, eu-espaço, eu-Outrx, fluência, silêncio, gritaria, fluxo

ininterrupto, conexão via pele, integração via pele, kinesfera, estado

meditativo, exaustão, povos originários, dimensões sobrepostas,

90

Frase extraída de entrevista realizada por email, no dia 19/07/2017, com a performer Liz Novais. Esta

foi parte da resposta dela para a pergunta, “Que loucura foi essa com a qual trabalhamos?”.

Page 101: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE TEATRO PROGRAMA DE ... · No potencial simbólico de seu suicídio e na força mitológica e arquetípica de seu destino, encontro não uma

100

feitiço, bruxaria, energia, pulsação comum, percepção onírica, sono,

rito.91

Lançamos palavras e mais palavras no espaço e o adensamento que elas operam

na atmosfera circundante pressiona as barragens da consciência. Nosso verbo mais

subterrâneo começa a despontar, numa voz vulcão, que inunda o salão.

Voz lança, voz Espada de São Jorge, voz vento, voz aquário, voz

Meredith Monk, voz indígena, voz escravizada, voz Iemanjá, voz

chave de abertura e fechamento, voz que quando enuncia palavra

transforma palavra em gás, voz perna que corre pula e joga-se no

abismo, voz arrepio, voz feitiçaria, voz gravidade zero, voz morcego

avoando sobre nossas cabeças, voz colar de pérolas chocalho madeira

bacia de prata, voz circular, voz água da mangueira, voz sino de fim,

voz sino de começo, voz sino que acorda a casa inteira, voz silêncio

que inunda, voz silêncio que enlouquece, voz pavor, voz tremor, voz

cura, voz pacto, voz contato, voz rã imaginária, voz jiboia planta e

cobra, voz concha, voz pensamento, voz sempre corpo, voz sempre

corpo, voz sempre corpo, corpo sempre voz.92

As reminiscências desse fluxo verbal experimentado em alguns ensaios é uma

palavra-assombro que, vez por outra, rasga o ar, abrindo uma fenda por onde o silêncio

e o estrondo se presentificam, desenterrando discursos subjacentes que, de tão precários,

apresentam-se de forma borrada, quase como um não-texto. Ao lado disso, nos

colocamos à escuta de artistas que exploram os limites entre fala, canto e sonoridade, e

que experimentam a voz relacionando-a com as dimensões musical, corporal, cultural,

filosófica e ontológica. Entre esses artistas estão Meredith Monk, Fátima Miranda, John

Cage, Ghédalia Tazartès, entre outros. Movidas nesse fluxo, dançamos voz e

pensamento.

Abram minha boca: vou soltar um grito,

fazer a noite visível.

Partículas que meu timbre excite,

volumes que minha língua apalpe,

comunguem em mim o gesto

escuro e íntimo,

me disponho a isto.

Mas não acendam as luzes,

por favor,

91

Trecho de entrevista realizada por email, entre 23/04 e 22/08/2017, com a performer Olga Lamas. Esta

foi parte da resposta dela para a pergunta, “Pra você, qual aspecto das “Loucas do Riacho” é o mais

precioso?” 92

Trecho de entrevista realizada por email, entre 23/04 e 22/08/2017, com a performer Olga Lamas. Esta

foi parte da resposta dela para a pergunta, “O que é a voz em ‘Loucas’?”.

Page 102: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE TEATRO PROGRAMA DE ... · No potencial simbólico de seu suicídio e na força mitológica e arquetípica de seu destino, encontro não uma

101

não pintem os cantos das paredes de branco.

Quero os fantasmas desta casa

intactos!

De que vale ser fulana ou sicrana

sem trazer na pele, na pupila, na palavra,

o tempo lato e o hiato

em que legiões persistem

e vagam.

Sendo a que passa e na qual permanecem

as sombras, as marcas, receitas,

relógios liquefeitos, artimanhas,

eu abro suas bocas e solto um grito

onde a noite se anuncia

e verte o liquido lácteo

de galáxia e vertigens

no peito, no piso, pelas gretas da porta,

escadas, pelos ralos,

pelos rabos.

Inunda tudo de breu;

ninguém mais pode fugir ao espanto.93

22. Além das cortinas, são palcos azuis94

Figura 37. Fotografia da imersão de “Loucas do Riacho”, Baixios. 2016.

No campo das artes, teatro e performance interagem nos anúncios e práticas de

muito artistas contemporâneos. Eleonora Fabião defende que, “neste movimento, tanto

o campo da performance é ampliado pela perspectiva de artistas com formação em

93

“O gesto de sirena”, poema do livro “Manual de Afogamento”, ainda a ser publicado, parceria desta autora com o artista gráfico Lucas Moreira, e que compõe o escopo de criações do “Projeto Ofélia”. 94

Frase da canção “Vida”, composta por Chico Buarque.

Page 103: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE TEATRO PROGRAMA DE ... · No potencial simbólico de seu suicídio e na força mitológica e arquetípica de seu destino, encontro não uma

102

teatro, como espetáculos teatrais ganham em vibração performativa” (FABIÃO, 2013,

p. 8).

No contrafluxo dessa perspectiva, dentro do circuito teatral, a ideia do que pode

ser considerado teatro, mesmo nos seus aspectos de contemporaneidade, persiste com

margens ainda duras, de modo que, se vamos mais à beira do campo, abrindo mão de

um conjunto de procedimentos em voga para arriscar-nos numa experimentação mais

radical, já sentimos a tentativa de expatriação do território dessa linguagem artística.

Acontece que a arte, de modo geral, recria seus limites na extrapolação constante de

suas bordas e a performance termina por acolher bem em seus domínios as obras de

linguagens diversas que tencionam de modo mais incisivo os limiares entre arte e vida.

Cabe ao criador interessado em continuar investigando

possibilidades de arte, de pensamento, de materialidade, de

mundo através do seu trabalho (como fez Duchamp), seguir

desfamiliarizando o familiar e gerando espaço para que outras

formas de vida, de instituição, de produção e recepção possam

ser articuladas, propostas, vividas. A ampliação da cena exige

um permanente questionamento sobre a razão de ser da cena em

fluxo histórico. (FABIÃO, 2013, p. 8).

No entanto, eu, particularmente, sigo reconhecendo-me como artista do teatro

em grande parte dos trabalhos que desenvolvo, permitindo-me, ao mesmo tempo,

habitar e infiltrar suas margens. Os princípios de teatro que vejo permanecerem são os

do processo de ensaios, os da busca pela abertura de canais para que o mundo se

expresse em cada corpo, na interação de corpos diversos (vivos ou animados), vozes,

palavras, na reinvenção da História, na ritualização da vida. Aqui duas políticas se

cruzam: afirmar que um trabalho como “Loucas do Riacho” é teatro, como um modo de

friccionar a linguagem e expandir o território da criação teatral por meio dos fluxos que

inspiram a vida contemporânea; e assimilar da performance, por meio da multiplicidade

de processos que ela estimula, não se atendo às formas de representação.

Não sei se é espetáculo, performance, vivência, acontecimento. Não

sei, entende? Ponho de lado o que sei e o que não sei de teatro ou de

arte e o que fica é que “As Loucas” (as loucas saem da zona de

conforto) me atiraram para o ponto/lugar do penetrar doloridamente

no interno. Uma escuta pra lá de sensível. Uma escuta da alma. Tá

Page 104: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE TEATRO PROGRAMA DE ... · No potencial simbólico de seu suicídio e na força mitológica e arquetípica de seu destino, encontro não uma

103

doendo, mas não tenho dúvida que não dói só em mim. Estamos em

matilha!95

Trato, assim, de um teatro que se compõe na experiência renovada do

desconhecido, na relação contextual com diversos sujeitos e ambientes, e na ativação do

delírio, do sonho e da visagem. É um teatro que trabalha a ritualidade, sem ser “teatro

ritual”, que se arvora a dialogar com o invisível sem ser um “teatro espírita”, que abre

espaço para a transmutação de traumas sem ser “arteterapia”.

Essa dimensão ritualística, no "formato" (essa palavra não dá conta da

coisa-em-si, mas é o que tem pra hoje) que se deu e que permeou o

processo inteiro, ensaios e espetáculo, era algo um pouco distante da

minha prática artística, mais próximo das minhas incursões

"holísticas", por assim dizer, em experiências de cunho mais espiritual

- bruxaria, candomblé, o próprio catolicismo da minha infância. Óbvio

que nos treinamentos de teatro e dança, com exaustão seja por

movimento repetitivo e veloz ou por permanência, alcançamos estados

alterados, de percepção distinta, dilatamento etc. A criação artística,

em si, já nos abre canais ritualísticos, mas o que quero dizer é que nos

"moldes" do processo e das apresentações de “Loucas”, foi

absolutamente diferente de tudo que já havia feito.96

O teatro que aqui se pauta não busca ser outra coisa que não teatro, mas

tampouco se conforma ou se confina às determinações do que isto quer dizer – ou

melhor, no que aqueles que dominam os espaços discursivos dizem que o teatro seja.

Eu acredito que “Loucas do Riacho” é um trabalho de uma estética –

eu não sei nem se existe essa expressão desse modo -, mas acredito

que é uma estética decolonial. Decolonial no sentido de estar

esfacelando e rasurando os limites disciplinares da arte, no sentido do

limite disciplinar do que é teatro, do que é dança, do que é a vida, do

que é ritual, do que é performance, do que é ser, do que é produzir.

(...) E acho que fazer um trabalho com limites tão borrados configura

para mim um entendimento decolonial de arte. No sentido de que foge

dessa epistemologia na qual o teatro tem limites muito bem definidos.

E acho que é um trabalho onde esses limites são borrados, numa

perspectiva política e numa perspectiva de construção de outras

95

Trecho de relato da atriz baiana Mariana Freire, sobre sua experiência em “Loucas do Riacho”. Esse

relato foi originalmente publicado na página pessoal da atriz na rede social Facebook, em 17/03/2017. 96

Trecho de entrevista realizada por email, entre 23/04 e 22/08/2017, com a performer Olga Lamas. Esta

foi parte da resposta dela para a pergunta, “E havia aqueles caminhos, procedimentos etc nos quais você

não acreditava ou que desconhecia, e que passou a acreditar/vivenciar durante o processo?”

Page 105: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE TEATRO PROGRAMA DE ... · No potencial simbólico de seu suicídio e na força mitológica e arquetípica de seu destino, encontro não uma

104

formas de saber, de produzir, de pensar e de engajar a si mesmo e ao

outro.97

23. Deus manda moscas às feridas que deveria curar98

Figura 38. Fotografia de “Lavagem”, Salvador. Mariana David, 2017.

O processo de criação do espetáculo “Loucas do Riacho” e da performance

“Lavagem” é traduzido por algumas mulheres como um processo de cura.99

Diante

desta afirmação, a pergunta que me ocorre é: o que há para ser curado e como é que se

pode conferir uma cura nesse âmbito? Essas perguntas, que não apontam para respostas

precisas, são capazes de estimular um conjunto de reflexões filosóficas e uma revisões

sobre uma ética de criação.

Esse ato criativo se desenrola como um caminhar com os pés descalços por

águas subterrâneas, geralmente contaminadas por matérias que ficaram estancadas em

alguma parte, repleta de restos de imagens, sentimentos, despedidas e ideias em

putrefação. Caminhar assim é, ao mesmo tempo, estar-se curando e adoecendo, por abrir

novos fluxos vivazes, ao mesmo tempo em que se é tomado pelo terror febril que é o

viver em sua profunda complexidade. Assumir a radicalidade de uma criação que se

97

Informação oral. Trecho transcrito de entrevista realizada por mim com Mônica Santana, uma das

atrizes de “Loucas do Riacho”, através de áudios de whatsapp, em 18/06/2017. A citação traz partes da

resposta dela para a pergunta “Quais descobertas do processo criativo você destacaria?” 98

Frase que ouvi do professor e encenador Luiz Marfuz, em referência a uma fala do filme “A árvore da

vida”, de Terrence Malick. 99

Entre as mulheres que expressaram esse sentido, estão as performers Olga Lamas, Mônica Santana, Liz

Novais.

Page 106: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE TEATRO PROGRAMA DE ... · No potencial simbólico de seu suicídio e na força mitológica e arquetípica de seu destino, encontro não uma

105

abre para a experiência da vida em seus aspectos mais intensos e caóticos, é também

assumir o perigo, sempre eminente, de adoecer. Sendo assim, a cura a que me refiro é,

novamente, não uma finalidade determinada, mas a potencialidade de transformação

contínua da condição corporal e psíquica.

Nietzsche defende a valorização dos instintos, do corpo e seus ritmos

naturais como os únicos capazes de se orientarem em direção a uma

vida potente e vigorosa. A tentativa de atribuir sentido à vida,

contrariando e negando sua natureza trágica, caótica e desprovida de

certezas e de segurança, promove a degeneração das forças vitais, uma

vez que essa tentativa pressupõe o esquecimento de tudo que em nós

se caracteriza pela imprecisão, pela indeterminação, pelo movimento.

A guerra contra os instintos, contra o corpóreo provoca o

enfraquecimento do homem, pois é justamente o combate, o jogo de

forças que são fundamentais para sua saúde. (AZEREDO, 2010, p

250- 251).

Não se trata assim, nesta prática artística, de uma atitude terapêutica de cicatrizar

feridas ou sanar traumas, mas de reconciliar-se com o trágico, o irremediável e

assustador da existência, encontrando um gozo fabuloso em experienciar cada sensação

viva, em percorrer cada grito entalado no tempo e na história. É assim que vamos

ficando mais fortes e refazendo modos de relacionar-nos no mundo, reinventando meios

libertários de expressão. Trata-se de uma cura cruel, cujo fundamento é justamente o

contágio num âmbito de coletividade.

Em Lavagem, que compõe o projeto de “Loucas do Riacho”, a cada um dos dias

de encontro com as mais de 40 mulheres que participam, eu e Olga usamos cartas de

tarot – o ‘Oráculo da Deusa” (MARASHINSKY, 2007) - e propomos alguns exercícios

disparadores: um deles, pés que batem no chão, por longo tempo, em conjunto,

impulsionados pelo desejo de abrir as portas do chão, acordar as raízes, atiçar os

magmas. No coro caótico de suas batidas, que acontecem numa sala de tablado, num

espaço cultural do bairro do Rio Vermelho, uma miragem aparece para mim: a abertura

de fendas por onde afogamentos se transvestem, jorram como fontes de movimento,

gritos, cantos e risos.

Nos primeiros meses de encontro de “Loucas do Riacho”, eu e as meninas

chegamos numa casa à beira do mar, chamada “Estúdio da Sereia” e nos despojamos no

espaço cada qual ao seu modo. Eu chamo esse momento de “preparação”, mesmo

sabendo que todos os encontros são, em todo seu decorrer, ao mesmo tempo ação e

preparação. Este momento pode incluir relaxamento, aquecimento, alongamento ou o

Page 107: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE TEATRO PROGRAMA DE ... · No potencial simbólico de seu suicídio e na força mitológica e arquetípica de seu destino, encontro não uma

106

que cada uma crê que precisa fazer para, do ponto de onde entrou na casa, ir chegando

mais inteiramente no espaço, abrindo os próprios sentidos para a relação. Depois de um

tempo, cada uma vai respondendo às proposições de cada dia, que preparo como

enunciados: “dançar o mar”, “ser um peixe que ganha pulmões e pisa, pela primeira vez,

na terra”, “convocar os próprios monstros e dar-lhes as mãos para dançar à beira-do-

abismo”, “imaginar que a memória é um rio que corre pelas cordas vocais e oferecer um

banho às demais”, “convidar as legiões que compõem o ser de cada uma e caminhar

pela praia com elas” e por aí vai. Em tudo isso, vejo fantasmas brotando vidas em

nós.100

24. Deixar nascer, deixar morrer

Figura 39. Fotografia do processo criativo de “Loucas do Riacho”. Na foto, Mônica Santana, na Casa de

Castro Alves, Salvador. Mariana David, 2017.

Poderia insistir na expressão de todo o sentimento que acumulei há pouco, mas

atrevo-me a abandonar o hábito de ser101

, desfazendo-me das intencionalidades que me

guiam. O vício da finalidade surge a toda hora: se balbucio alguns fonemas, parece que

tenho que chegar até o momento de dizer palavras, expressar algum texto em mais alto e

bom som, ou então cantar uma melodia compreensível. Ou, se amplio um gesto diante

do qual alguém se põe a contemplar-me, pergunto-me se não deveria obrigatoriamente

100

Referência à ideia de “plano fantasma”, presente no tópico 10, “O fantasma é uma dor que se repete”. 101

Frase emprestada da tese “Rumores discretos da subjetividade”, de Rosane Preciosa.

Page 108: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE TEATRO PROGRAMA DE ... · No potencial simbólico de seu suicídio e na força mitológica e arquetípica de seu destino, encontro não uma

107

desenvolver uma ação mais duradora, uma dança ascendente, algo que vá preenchendo

aquele espaço aparentemente vago.

Mas o olhar do outro não me obriga a nada, apenas interage comigo no

impulsionamento de ações. É o modo como o outro é atravessado por cada

acontecimento que me atravessa na forma de novos atos, de silêncio ou grito.

O riacho-Ofélia dispersa as razões e sinto uma fonte de ecos fantasmáticos

jorrarem em meu corpo. Seu jato por vezes dura um tempo em que me agito, solto sons

longos e altíssimos, canto, danço e me dirijo a alguém. Outras vezes, dura quase nada,

como um arroto de memória que logo se esvai. Essa passagem tem rotas variadas, às

vezes longas, fluidas, às vezes muito rápidas, pontilhadas. Nenhum gesto precisa ser

mantido, mas tampouco precisa ser abandonado. O que vai definir o percurso, a

intensidade e a duração de cada gesto são as forças que atravessam cada intérprete no

momento da ação.

Movimentos de territorialização: intensidades se definindo através de

certas matérias de expressão; nascimento de mundos. Movimentos de

desterritorialização: territórios perdendo força de encantamento;

mundos que se acabam; partículas de afeto expatriadas, sem forma e

sem rumo. (ROLNIK, 2014, p. 37)

Assim vamos plasmando, no espaço e no tempo, as intensidades que nos

circundam, como se nosso corpo-sonoro fosse os lençóis, os sussurros, os rangidos e

vultos pelos quais os fantasmas ganham forma. A escolha entre fazer e não fazer algo

não se dá de modo premeditado, mas como um fluxo, onde a escolha não antecipa o ato,

mas efetua-se através dele.

Quando há escolha entre fazer e não fazer, dizer e não dizer, pra mim,

deixa de ser a voz das “Loucas”. Pra além da voz, qualquer

movimento, qualquer ação feita/acontecida precisa ser a

indispensável, a única possível, a que não se escolhe, a que acontece

porque inevitável, porque incontrolável - o fluxo, o rio em si, jorrando

porque é o que é. 102

25. Cacos para um vitral103

102

Trecho de entrevista realizada por email, entre 23/04 e 22/08/2017, com a performer Olga Lamas. Esta

foi parte da resposta dela para a pergunta, “O que é a voz das ‘Loucas’?”. 103

Frase emprestada do título de um livro da poeta Adélia Prado.

Page 109: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE TEATRO PROGRAMA DE ... · No potencial simbólico de seu suicídio e na força mitológica e arquetípica de seu destino, encontro não uma

108

Figura 40. Colagem integrante do processo criativo de “Loucas do Riacho”. Lucas Moreira, 2016.

Preciso abrir um parêntesis para dizer que, em quase todo o tempo desta escrita,

estou morta de cansaço e sigo tomada de ansiedades e estresses variados, engolida pela

correria da vida, ainda que me remeta à experiência de esvaziamento desses acúmulos.

“Que contradição!”, exclamo, mas é que a vida é esse enredo de contrastes e desníveis,

e eu tento, como tantos, integrar os vários papéis que me cabem, mas a verdade é que

tratam-se de papéis geralmente conflitantes. Observo e experiencio, com estupefação, a

dimensão brutal da sobrecarga física e emocional a que estamos, de um modo geral,

submetidos e o quanto essa sobrecarga aumenta à medida que se reúne traços

identitários impactados pelas opressões históricas.

Assim, encaro as violências postas segundo minha condição de mulher, mãe de

um bebê, pesquisadora e artista, interagindo numa estrutura que, apesar de admitir

vários avanços em relação a direitos e políticas para as mulheres, segue atualizando

padrões que nos colocam em eterna desvantagem. Pelo acúmulo de funções e pelo grau

assomado de exigência dessas funções quando somos nós que as exercemos, o que

percebo é que estamos sempre mais cansadas, sobrecarregadas, consumidas e,

principalmente, vulneráveis. Ou seja, estamos sempre propensas a lidar repetidamente

com a experiência de afogamentos.

Creio que seja importante que, em nosso percurso e expressão, tragamos todo

esse desgaste à tona e tenhamos coragem de parar, mudar a rota, aceitar o cansaço,

abandonar caminhos em que a construção de relações de apoio mútuo não sejam viáveis

etc. De modo que exponho minha condição, admitindo a devastação que cada vivência

Page 110: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE TEATRO PROGRAMA DE ... · No potencial simbólico de seu suicídio e na força mitológica e arquetípica de seu destino, encontro não uma

109

opera em cada ser, ao mesmo tempo que assumo outras perspectivas. Deixo de tentar

harmonizar as demandas irreconciliáveis que me acometem e passo a produzir uma

espécie de colagem de partes desencontradas de minhas experiências que apresenta, em

seu aspecto grotesco, uma qualidade de fascínio e excitação. Com esta perspectiva,

assumo as práticas criativas que desenvolvo como tempo-espaço de recombinação de

meu corpo dilacerado e exausto. Em cada dia, penso que este cansaço é o ponto de onde

parto e reafirmo que é permitido partir daquilo que sou agora, sem precisar me

desbaratar para alcançar uma condição exterior às minhas potencialidades atuais. Tento,

com a dignidade que conservo, fazer o cansaço caber em cada ato e nestas linhas.

A mulher afogada

enganou a todos.

Quem a viu

em meio a dívidas contornáveis,

crises com viagens,

laços, acasos, mistérios

e orgasmos

não percebeu.

Os pelos elétricos

como despencasse

na beira dos dias,

que não tem chão,

não tem parede,

não tem parada.

O medo de escuro

e silêncios profundos,

desde criança:

fechava os olhos

e via-se andando entre covas,

caveiras, velhos e jovens

de dentes podres,

mas não tão podres

quanto os seus.

A ênfase em falar

e sonhar e lembrar,

e andar e ver,

sem poder descansar,

tendo os órgãos roçados

por raios gama

e adensamentos vibratórios

de pensamentos tórridos.

Os choros e gritos,

e marcas de guerra,

Page 111: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE TEATRO PROGRAMA DE ... · No potencial simbólico de seu suicídio e na força mitológica e arquetípica de seu destino, encontro não uma

110

carga de delitos, misérias

que, como os cheiros

de queimadas, como as almas

ignoram o fechar de portas,

a guarda armada das fronteiras

e entram, entram, entram.

A mulher afogada

enganou a todos,

menos àqueles

que eram peixes.104

26. Ser o rio

Figura 41. Colagem integrante do processo criativo de “Loucas do Riacho”. Lucas Moreira, 2016.

Para além do nome próprio, do registro, da identidade consolidada, somos

também o rio que vimos correr um dia. Ser o rio arrebenta as paredes da cronologia,

abre o tempo do vir a ser, do já ter sido, do voltar. O rio dissolve o invólucro do eu,

desarticulando-o em fluxos de sensações, superfícies e memórias.

No trabalho de abrir-se - corpo que se recria de modo disponível aos

movimentos de afirmação da vida - para as inquietações do espírito, para as tramas da

História, para a escuta de vozes expatriadas, para a multiplicidade de modos de

subjetivação, uma loucura sobeja: desconcretar-se em riacho, fluidificar-se num

manancial de seres, numa transexistência, numa vida sem início nem fim.

104

“A mulher afogada”, poema do “Manual de Afogamento”, ainda a ser publicado, parceria desta autora com o artista gráfico Lucas Moreira, e que compõe o escopo de criações do “Projeto Ofélia”.

Page 112: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE TEATRO PROGRAMA DE ... · No potencial simbólico de seu suicídio e na força mitológica e arquetípica de seu destino, encontro não uma

111

Uma vida vulnerável, enrodilhada de sensações. Que tipo de

existência pode advir de estados informes? Aglomerados perceptivos,

agregados de signos dispersos, que brigam por um pouso na página

em branco, samplers sonoros que desafiam nossos ouvidos a se

introsarem com outras seqüências musicais. Que corpo suportaria

tanto assédio? Aquele que por extrema singularização cobiçasse

estranhas núpcias. E dela surgisse uma prole bastarda, vivendo à beira

de abismos. Um protagonista tão encarnado quanto anônimo, um

alargador de espaços, que acompanhe extasiado o pião da vida

manifestando sua coreografia vorticista. Alguém que emprestasse sua

carne à escuta da existência. Um tipo andarilho, um freqüentador de

quebradas, alguém disposto a “fazer um perigo”, segundo Clarice

Lispector. Um náufrago de si, que teima em ancorar seus navios em

terras devastadas. Sabe que viver desse jeito é intolerável, mas se

recusa a compreender isso. (PRECIOSA, 2010, p. 50)

Page 113: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE TEATRO PROGRAMA DE ... · No potencial simbólico de seu suicídio e na força mitológica e arquetípica de seu destino, encontro não uma

112

IV ALAGAR

Figura 42. Fotografia da oficina-ação “Lavagem”, Salvador. Mariana David, 2017.

Nada a concluir, algo a retomar. Devir Ofélia iça um modo de viver entre

mundos, dissolvendo contornos de tal modo, que até o conceito da dissolução é borrado

– o que se anuncia como uma poética é uma estética, uma ética, nada disso, tudo um

pouco. É criar, meditando à beira do riacho; deixar que o tempo enlouqueça as

cronologias e dissolva as margens teatro-vida, pele-paisagem, eu-fantasma; saber que o

outro, inapreensível, é também um eu mutável e agenciar, na arte, possibilidades de ser.

Nas vias do contra-método, lançamo-nos num trânsito por sutilezas erradias.

Algumas placas, espalhadas no percurso, relembram: aceitar o vazio da página, do dia,

do coração, do pensamento, da ideia: saber-se precário e, nesta condição, dizer “sim,

estou aqui, estejamos”; resistir, movendo-se, todo dia, toda hora, sem descanso – e, ao

mesmo tempo, descansando de rotinas e obrigações caducas -, para não fixar-se em

estados opressivos e medíocres; recriar-se em cada criação, reinventar o fazer em cada

ato.

Ofereço uma pergunta-passo desta aproximação: o que, em nós, se compõe em

filetes d’água, cuja afluência, dissolve as ordens do mundo? E deixo um poema-

passagem.

O segundo crepúsculo.

A noite que mergulha no sono.

A purificação e o esquecimento.

Page 114: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE TEATRO PROGRAMA DE ... · No potencial simbólico de seu suicídio e na força mitológica e arquetípica de seu destino, encontro não uma

113

O primeiro crepúsculo.

A manhã que foi a aurora.

O dia que foi a manhã.

O dia numeroso que será a tarde desgastada.

O segundo crepúsculo.

Esse outro hábito do tempo, a noite.

A purificação e o esquecimento.

O primeiro crepúsculo…

A aurora sigilosa e na aurora

a inquietude do grego.

Que trama é esta

do será, do é e do foi.

Que rio é este

pelo qual flui o Ganges?

Que rio é este cuja fonte é inconcebível?

Que rio é este

que arrasta mitologias e espadas?

É inútil que durma.

Corre no sonho, no deserto, num porão.

O rio me arrebata e sou esse rio.

De matéria perecível fui feito, de misterioso tempo.

Talvez o manancial esteja em mim.

Talvez de minha sombra,

fatais e ilusórios, surjam os dias.105

105

Poema “Heráclito”, de Jorge Luís Borges.

Page 115: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE TEATRO PROGRAMA DE ... · No potencial simbólico de seu suicídio e na força mitológica e arquetípica de seu destino, encontro não uma

114

REFERÊNCIAS

APPIGNANESI, Lisa. TRISTES, LOUCAS E MÁS: A História das mulheres e seus

médicos desde 1800. Trad. Ana Maria Mandim. Rio de Janeiro: Record, 2011.

ARTAUD, Antonin. Linguagem e Vida. São Paulo: Editora Perspectiva, 2006.

________________. O Teatro e Seu Duplo. São Paulo: Martins Fontes, 2006. 3ª edição.

________________. Van Gogh, O Suicidado pela Sociedade. Rio de Janeiro: Achiamé,

S/d . 2ª edição.

AZEREDO, Verônica P de Oliveira. Nietzsche: a grande saúde e o sentido trágico da

vida. cadernos Nietzsche 28, 2011.

BACHELARD, Gaston. A Água e os Sonhos: Ensaio sobre a imaginação da matéria.

São Paulo: Martins Fontes, 2013. 2ª edição.

BIRMAN, Joel. Cartografias do Feminino. SP: Editora 34, 1999.

BONDÍA, Jorge L.. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. in Revista

Brasileira de Educação. No. 19, Rio de Janeiro: ANPED, 2002.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O Anti-Édipo. São Paulo: Editora 34, 2011. 2ª

edição.

_______________________________. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol. 5.

São Paulo: Editora 34, 1997.

DELEUZE, Gilles. Conversações. São Paulo: Editora 34, 1992.

_______________. Lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva, 1974.

DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. Trad: Paulo Neves. São

Paulo: Editora 34, 2010. 2ª edição.

ESCÓSSIA, Liliana da; PASSOS, Eduardo; KASTRUP, Virgínia (Org). Pistas do

método da cartografia: Pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto

Alegre: Sulina, 2015.

FABIÃO, Eleonora. Programa performativo: o corpo-em-experiência. Ilinx, Revista do

Lume. N. 4, 2013.

FEYERABEND, Paul. Contra o Método. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1989. 3ª

edição.

GREINER, Christine. Butô – pensamento em evolução. Escrituras: São Paulo, 1998.

GUATTARI, Félix; ROLNIK, Suely. Micropolítica: Cartografias do Desejo.

Petropólis: Editora Vozes, 1999. 5ª edição.

Page 116: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE TEATRO PROGRAMA DE ... · No potencial simbólico de seu suicídio e na força mitológica e arquetípica de seu destino, encontro não uma

115

GUILHEN, Ellen. A Morte De Ofélia Nas Águas: Reflexos da personagem de

Shakespeare na poesia simbolista brasileira. 243 páginas. Dissertação – Universidade

Estadual de Campinas. Campinas, 2008.

HASEMAN, Brad. Manifesto pela pesquisa performativa. Resumos do Seminário de

Pesquisas em Andamento PPGAC/USP. Vol 3.1, 2015.

HAOULI, Janete El. Demetrio Stratos: em busca da voz-música. Londrina, PR:

J.E.Haouli, 2002.

HOFMANNSTHAL, Hugo Von. Uma carta. in Visio - caderno de estética aplicada. Nº

8. 2010.

LEPECKI, André. Planos de composição. in Criações e Conexões/Cartografia. São

Paulo: Rumos Itaú Cultural, 2010.

LISPECTOR, Clarice. A Descoberta do Mundo. Rio de Janeiro: Editora Nova

Fronteira, 1984.

LOPES, Cássia. O corpo e suas heranças: uma leitura de “O africano”. in Repertório,

Salvador, nº 24, p.229-236, 2015.

MULLER, Heiner. "Hamlet-máquina". in: PEIXOTO, Fernando (org). Teatro de Heiner

Muller. São Paulo: Hucitec, 1987.

NIETZSCHE, Friederich. W. A Gaia Ciência. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

____________________. Assim falou Zaratustra. Rio de Janeiro: Civilização

Brasileira, 1981.

NOVAES, Adauto (Org). O olhar. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.

PRECIOSA, Rosane. Rumores discretos da subjetividade - Sujeito e escritura em

processo. Porto Alegre: Sulina: Editora da UFRGS, 2010.

ROLNIK, Suely. Cartografia Sentimental. Porto Alegre: Sulina; Editora da UFRGS,

2014. 2ª Edição.

_____________. Cartografia ou de como pensar com o corpo vibrátil. Disponível em

<http://www.pucsp.br/nucleodesubjetividade/Textos/SUELY/pensarvibratil.pdf>

Acesso em 12/02/2016.

_____________. Geopolítica da cafetinagem. In

<http://eipcp.net/transversal/1106/rolnik/pt>. Acesso em 10/12/2016.

_____________. Pensamento, Corpo e Devir: uma perspectiva ético/estético/política no

trabalho académico. Caderno de Subjetividade, vol 1, n 2. PUC-SP: 1993

Page 117: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE TEATRO PROGRAMA DE ... · No potencial simbólico de seu suicídio e na força mitológica e arquetípica de seu destino, encontro não uma

116

_____________. O caso da vítima: para além da cafetinagem da criação e de sua

separação da resistência. Disponível em <

http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1678-

53202003000200007#back> Acesso em 01/08/2017.

SANTOS, Alessandra Lessa dos; COSTA, Graziele Pissollatto da. Entre a donzela e a

ninfa: duas maneiras de perceber a Ofélia de Shakespeare. Todas as Musas, Ano 01,

Número 02, 2010.

SHAKESPEARE, Willliam (1599-1601). Hamlet. Trad. Millôr Fernandes. Porto

Alegre: L&PM, 2011. 2ª edição.

SMITH, Cristiane Busato. Representações da Ofélia de Shakespeare na Inglaterra

Vitoriana: um estudo interdisciplinar. 243 páginas. Tese - Universidade Federal do

Paraná. Curitiba, 2007.

VIEIRA, Érika Viviane Costa. Resistindo à clausura: a iconografia de Ofélia. Todas

as Musas, Ano 01, Número 02, 2010.

VIGOTSKI, L. S.. A tragédia de Hamlet, príncipe da Dinamarca. São Paulo: Martins

Fontes, 1999.

VIESENTEINER, Jorge Luiz. Nietzsche e Deleuze: sobre a arte de transfigurar. In

Discusiones Filosóficas, ano 12, Nº 18. 2011. pp. 187 - 204

ZOURABICHVILI, François. O VOCABULÁRIO DE DELEUZE. Rio de janeiro, 2004

Page 118: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE TEATRO PROGRAMA DE ... · No potencial simbólico de seu suicídio e na força mitológica e arquetípica de seu destino, encontro não uma

117

LISTA DE FIGURAS

Figura 1. Excertos do livreto “Sete saltos para se afogar”. p. 18

Figura 2. Autorretrato, Salvador. Raiça Bomfim, 2011. p. 19

Figura 3. Colagem para o “Caderno Baleia”. Vânia Medeiros, 2012. p. 20

Figura 4. Fotografia de “Ofélia Blue, aprendendo a nadar – Primeiro estudo”,

Salvador. Priscila Fulô, 2011.

p. 21

Figura 5. Fotografia da experimentação cênica em “Empuxo: zona de encontro

de artes cênicas”, Largo Dois de Julho, Salvador. Fábio Tavares, 2012.

p. 22

Figura 6. Ensaio fotográfico “Ofélia vem”, São Paulo. Ditto Leite, 2013. p. 23

Figura 7. Imagem do livro “Manual de Afogamento”. p. 25

Figura 8. Fotografia do “Segundo estudo para Ofélia Blue”, São Paulo. Ditto

Leite, 2017.

p. 26

Figura 9. Ensaio fotográfico “Sereia do asfalto”, São Paulo. Ditto Leite, 2014. p. 27

Figura 10. Fotografia de “OFÉLIA: sete saltos para se afogar”, Espaço Xisto

Bahia, Salvador. Carol Garcia, 2015

p. 28

Figura 11. Fotografia de “Cidade Afogada”, Cajazeiras, Salvador. Aldren

Lincoln, 2016.

p. 29

Figura 12. Apresentação realizada no projeto Dominicaos, Salvador. Victor

Gargiulo, 2016.

p. 30

Figura 13. Fotografia de “Loucas do Riacho”. Na foto, a atriz/performer

Mônica Santana, Casa de Castro Alves, Salvador. Mariana David, 2017.

p. 31

Figura 14. Fotografia de “Lavagem”, Rio Vermelho, Salvador. Mariana David,

2017.

p. 32

Figura 15. Colagem para o programa de “Loucas do Riacho”. Lucas Moreira,

2017.

p. 33

Figura 16. Colagem integrante do processo criativo de “Loucas do Riacho”.

Lucas Moreira, 2016.

p. 34

Figura 17. Fotografia do processo criativo de “Loucas do Riacho”. Na foto,

Felipe Benevides e eu, na Casa de Castro Alves, Salvador. Mariana David,

2017.

p. 40

Figura 18. Imagem do livro “Manual de Afogamento”. p. 41

Page 119: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE TEATRO PROGRAMA DE ... · No potencial simbólico de seu suicídio e na força mitológica e arquetípica de seu destino, encontro não uma

118

Figura 19. Colagem integrante do processo criativo de “Loucas do Riacho”. Na

foto usada na imagem, eu com meu filho, José. Lucas Moreira, 2016.

p. 46

Figura 20. Fotografia do processo criativo de “Loucas do Riacho”. Na foto,

Felipe Benevides, na Casa de Castro Alves. Mariana David, 2017.

p. 50

Figura 21. Fotografia do processo criativo de “Loucas do Riacho”. Na foto, Liz

Novais, na Casa de Castro Alves. Mariana David, 2017.

p. 52

Figura 22. Colagem integrante do processo criativo de “Loucas do Riacho”.

Olga Lamas, 2016.

p. 54

Figura 23. Fotografia do cortejo-oferenda “Lavagem”. Mariana David, 2017.

p. 55

Figura 24. Ensaio fotográfico de divulgação de “Ofélia: sete saltos para se

afogar”. Carol Garcia, 2015.

p. 59

Figura 25. Fotografia da temporada de “Loucas do Riacho”, na Casa de Castro

Alves. Mariana David, 2017.

p. 64

Figura 26. Fotografia do processo criativo de “Loucas do Riacho”. Na foto,

Olga Lamas, na Casa de Castro Alves. Mariana David, 2017.

p. 67

Figura 27. Fotografia do processo criativo de “Loucas do Riacho”. Na foto,

Camilla Sarno, na Casa de Castro Alves. Mariana David, 2017.

p. 68

Figura 28. Ensaio fotográfico de divulgação “Loucas do Riacho”. Na foto, eu,

Camilla, Felipe, Mônica, Uerla e Olga, na Casa de Castro Alves. Mariana

David, 2017.

p. 71

Figura 29. Fotografia do processo criativo de “Loucas do Riacho”. Mariana

David, 2017.

p. 74

Figura 30. Fotografia do processo criativo de “Loucas do Riacho”. Na foto, eu,

na Casa de Castro Alves, Salvador. Mariana David, 2017.

p. 77

Figura 31. Fotografia do processo criativo de “Loucas do Riacho”. Na foto,

Camilla Sarno, na Casa de Castro Alves, Salvador. Mariana David, 2017.

p. 83

Figura 32. Vestígios da imersão de “Loucas do Riacho”, Baixios. 2016. p. 88

Figura 33. Fotografia da oficina-ação “Lavagem”, Salvador. Mariana David,

2017.

p. 91

Figura 34. Fotografia do processo criativo de “Loucas do Riacho”. Na foto,

Uerla Cardoso, na Casa de Castro Alves, Salvador. Mariana David, 2017.

p. 92

Figura 35. Fotografia do processo criativo de “Loucas do Riacho”. Na foto, p. 97

Page 120: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE TEATRO PROGRAMA DE ... · No potencial simbólico de seu suicídio e na força mitológica e arquetípica de seu destino, encontro não uma

119

Mônica Santana, Escola de Dança da UFBA, Salvador. Mariana David, 2016.

Figura 36. Colagem integrante do processo criativo de “Loucas do Riacho”.

Lucas Moreira, 2016.

p. 98

Figura 37. Fotografia da imersão de “Loucas do Riacho”, Baixios. 2016. p. 101

Figura 38. Fotografia de “Lavagem”, Salvador. Mariana David, 2017. p. 104

Figura 39. Fotografia do processo criativo de “Loucas do Riacho”. Na foto,

Mônica Santana, na Casa de Castro Alves, Salvador. Mariana David, 2017.

p. 106

Figura 40. Colagem integrante do processo criativo de “Loucas do Riacho”.

Lucas Moreira, 2016.

p. 108

Figura 41. Colagem integrante do processo criativo de “Loucas do Riacho”.

Lucas Moreira, 2016.

p. 110

Figura 42. Fotografia da oficina-ação “Lavagem”, Salvador. Mariana David,

2017.

p. 112