Universidade Federal da Bahia Faculdade de Filosofia e ... · Capítulo 1: O cotidiano da Cidade do...

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Universidade Federal da Bahia Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas Departamento de História Programa de Pós-Graduação em História MARCELO RENATO SIQUARA SILVA Independência ou morte em Salvador: O cotidiano da capital da Bahia no contexto do processo de independência brasileiro (1821-1823) Salvador 2012

Transcript of Universidade Federal da Bahia Faculdade de Filosofia e ... · Capítulo 1: O cotidiano da Cidade do...

Universidade Federal da Bahia Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas

Departamento de Histria

Programa de Ps-Graduao em Histria

MARCELO RENATO SIQUARA SILVA

Independncia ou morte em Salvador:

O cotidiano da capital da Bahia no contexto do processo de independncia brasileiro

(1821-1823)

Salvador

2012

Universidade Federal da Bahia

Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas

Departamento de Histria

Programa de Ps-Graduao em Histria Social

Independncia ou morte em Salvador:

O cotidiano da capital da Bahia no contexto do processo de independncia brasileiro

(1821-1823)

Marcelo Renato Siquara Silva

Dissertao apresentada ao programa de Ps-Graduao em

Histria Social do Departamento de Histria da Faculdade de

Filosofia e Cincias Humanas da Universidade Federal da

Bahia, como requisito parcial para a obteno do ttulo de

Mestre em Histria.

Orientador: Prof. Dr. Dilton Oliveira de Arajo

Salvador

2012

_____________________________________________________________________________________

Silva, Marcelo Renato Siquara

S586 Independncia ou morte em Salvador: o cotidiano da capital da Bahia no

contexto do processo de independncia brasileiro (1821-1823) / Marcelo

Renato Siquara Silva. Salvador, 2012.

175 f.: il.

Orientador: Prof. Dr. Dilton Oliveira de Arajo

Dissertao (mestrado) Universidade Federal da Bahia, Faculdade de

Filosofia e Cincias Humanas, 2012.

1. Brasil - Histria - Independncia, 1822. 2. Provncia - Bahia. 3. Histria social. 4. Salvador (Ba) 1821-1823. I. Arajo, Dilton Oliveira de.

II. Universidade Federal da Bahia, Faculdade de Filosofia e Cincias

Humanas. III. Ttulo.

CDD 981.42 _____________________________________________________________________________________

http://catalogos.bn.br/scripts/odwp032k.dll?t=bs&pr=assuntos_pr&db=assuntos&use=geog&disp=list&sort=off&ss=NEW&arg=brasil|-|historia|-|independencia,|1822

Resumo

Esta pesquisa pretende analisar as diversas facetas vinculadas ao processo de

independncia brasileiro na Bahia (1821-1823). As questes que envolvem a poltica, a

cultura, a sociedade e a economia baiana so objeto de inmeras discusses. Contudo,

chamamos a ateno para o seguinte fato: o nosso foco principal de discusso encontra-

se centrado nas diversas alteraes provocadas pela guerra civil junto ao cotidiano da

Cidade do Salvador. Em funo disto, os confrontos envolvendo os portugueses da

Europa e da Amrica, a incidncia do recrutamento compulsrio, da expropriao da

propriedade privada, as carncias alimentares e laborais, os encarceramentos arbitrrios,

as aes praticadas pelos inimigos internos, enfim, os efeitos da arte destruidora da

guerra em Salvador ganharam maior peso e cores mais vivas ao longo desta discusso.

Palavras-chave: Independncia; Reino do Brasil; Provncia da Bahia; Cotidiano da

Cidade do Salvador (1821-1823).

Abstract

This research aims to analyze the various facets related to the independence

process in Brazilian Bahia (1821-1823). The issues that involve politics, culture, society

and economy of Bahia are the subject of numerous discussions. However, we draw

attention to the following fact: our main focus ofdiscussion is centered on

the various changes brought about by the civil war with the everyday life of the City

of Salvador. Because of this, clashes involving the Portuguese in Europe and

America, the incidence of compulsory recruitment, expropriation of private property,

food shortages and labor, thearbitrary imprisonment, the actions taken by the internal

enemies, finally, the effects of destructive art of war in Salvador gained more weight

and more vivid colors throughout this discussion.

Keywords: Independence; Kingdom of Brazil; Province of Bahia; Daily life in the City

of Salvador (1821-1823).

Agradecimentos

"At aqui nos ajudou o Senhor. 1

Em primeiro lugar, agradeo a Deus por ter me concedido sade, fora,

competncia e habilidade ao longo destes dois anos no Mestrado e nos demais anos que

integram o computo geral da minha existncia.

Agradeo minha famlia pelo total apoio, incentivo e pacincia. Reconheo que

em muitos momentos estive ausente. Mas, agora que esta etapa j foi concluda, posso

retomar as nossas redes de sociabilidade com muito mais vigor.

Agradeo ao professor Dilton Oliveira de Arajo, meu orientador. Gostaria de

salientar que o professor Dilton sempre se mostrou presente na construo diria deste

trabalho. Inclusive, a sua presena conseguiu extrapolar os limites da materialidade. Ou

seja, as suas orientaes ocorriam no apenas de forma presencial, mas, tambm, via e-

mail e por telefone, em dias teis e finais de semana. Este suporte crtico-sugestivo se

mostrou de suma importncia para a concluso desta dissertao.

Da mesma forma, agradeo aos meus professores da graduao e ps-graduao

na UFBA. Todos vocs contriburam sumariamente para a minha formao. Posso dizer

que este convvio dirio possibilitou o meu posicionamento enquanto um melhor

cidado e um melhor pesquisador. Trago comigo todo o aprendizado elaborado e

reelaborado ao longo de todos estes anos. Um saber mpar e prazeroso que no se

restringiu ao ambiente da sala de aula. Foram manhs e tardes que marcaram a minha

trajetria de vida.

Agradeo tambm aos meus colegas de sala, de trabalho e aos meus amigos em

geral. Todos vocs possuem grande participao nesta pesquisa. Seja por conta dos

debates acadmicos ou dos momentos de descontrao e lazer, todos vocs conseguiram

enriquecer, alegrar e abrilhantar a trajetria construtiva que representou a formatao

desta dissertao. Considerando os critrios mencionados, destaco a participao dos

colegas Admilson Santos, Luis Amrico e Urano Andrade. Sintam-se tambm co-

responsveis por este trabalho.

Agradeo aos profissionais que integram o quadro de funcionrios das diversas

instituies de pesquisa e documentao no Estado da Bahia. Ao longo destes dois anos

1 BBLIA. I Samuel. Portugus. Bblia Sagrada. Traduo Joo Ferreira de Almeida. So Paulo:

Sociedade Bblica do Brasil, 2007, Cap. 7, vers. 12.

passei a freqentar com maior assiduidade estes espaos e, desta forma, pude contar

com o auxlio de muitos de vocs. Se por descuido ou lapso de memria no tenha

mencionado diretamente alguma pessoa no quadro geral destes agradecimentos, por

favor, me perdoe.

A todos, o meu muito obrigado.

Sumrio

Pgina

Introduo 6

Captulo 1: O cotidiano da Cidade do Salvador (1821) 13

1.1 Os habitantes da Cidade do Salvador manifestam o seu apoio ao novo

governo

21

1.2 O catecismo poltico em Salvador 26

1.3 Surgem os primeiros questionamentos ao novo governo 30

1.4 O perodo de eleies em Salvador 36

1.5 As primeiras manifestaes de insatisfao em relao ao governo da

Provncia

41

Captulo 2: O cotidiano da Cidade do Salvador (1822) 50

2.1 A substituio da Junta de Governo 50

2.2 A substituio do Governador das Armas 55

2.3 Os esforos em favor da retomada da normalidade 61

2.4 A consulta feita pelos deputados baianos 69

2.5 Os primeiros efeitos do processo de independncia na Cidade do Salvador 74

2.6 A escassez de alimentos e a condio econmico-financeira de Salvador 80

2.7 Os Inimigos Internos na Bahia 87

Captulo 3: O cotidiano da Cidade do Salvador (1823) 95

3.1 A caveira de burro enterrada em Salvador 96

3.2 Tentativa de rompimento do cerco 100

3.3 Aperta o cerco Cidade do Salvador 107

3.4 Tentativa portuguesa de retomada do controle da Provncia 113

3.5 Madeira de Melo promove a concentrao de poderes 119

3.6 A caminho do 2 de julho 127

Concluso 134

Fontes Documentais e Bibliogrficas 137

Anexos 158

6

Introduo

A cada momento a historiografia tem conseguido ampliar as suas reas de

investigao. Novas metodologias e diferentes marcos terico-conceituais so

reiteradamente agregados e reelaborados. Neste sentido, pesquisar, analisar e entender

os diferentes elementos que integram o cotidiano de uma sociedade pode ser apontando

como um grande exemplo. Torna-se um pouco complexo identificar o momento

especfico em que o estudo do cotidiano deixou os bastidores e passou a disputar espao

de destaque entre os demais objetos de estudo. No entanto, acreditamos que a partir dos

anos 1960, com a publicao da importante pesquisa realizada por Braudel,1 o estudo do

cotidiano conseguiu ganhar maior projeo, atraindo no apenas a ateno de um

nmero cada vez mais amplo de pesquisadores, mas, com efeito, permitindo ao

historiador o contato e o interesse por novas fontes primrias e secundrias.

Estudar o cotidiano significa pr a nu a poesia do dia-a-dia. Significa tentar

entender os diversos elementos que integram a realidade poltica, econmica, social e

cultural em determinada sociedade, ao longo de um determinado perodo histrico.2

Aqueles que ignoram a importncia dos estudos voltados a este tipo de temtica

acreditam simplesmente que pesquisar o cotidiano se resume apenas percepo dos

hbitos e rotinas sociais. No entanto, este tipo de entendimento no condiz com o ofcio

do historiador contemporneo.

O estudo do cotidiano tem revelado que a mudana no est excluda, mas, com

efeito, se encontra vivenciada de diferentes formas pelos agentes histricos que compe

a trama social.3 Os trabalhos historiogrficos mais recentes tm revelado todo um

universo de tenses e movimentos, permitindo perceber a existncia de um ambiente

social no esttico. A partir das contribuies elencadas por este tipo de estudo

conseguimos vislumbrar uma multiplicidade de formas peculiares de luta, resistncia,

integrao, diferenciao, permanncia e transformao. Ao recuperar o processo

histrico que compe a rotina diria de determinada sociedade, possvel perceber as

1 BRAUDEL, Fernand. Civilizao Material e Capitalismo. Lisboa: Cosmos, 1980.

2 MATOS, Maria Izilda Santos de. Cotidiano e Cultura: histria, cidade e trabalho. So Paulo: EDUSC,

2002, p. 25-26; CERTEAU, Michel de. A inveno do cotidiano: a arte de fazer. Rio de Janeiro: Editora

Vozes, 1990, p. 169-217. 3 THOMPSON, E. P. A economia moral da multido inglesa no sculo XVIII. In _______. Costumes em

Comum. So Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 150-202.

7

infinitas possibilidades que integram um universo social multidimensional, o qual, por

sua vez, se compe e recompe continuamente.4

O cotidiano em questo neste trabalho nos remete ao dia-a-dia da Cidade do

Salvador entre os anos de 1821 e 1823. A opo por este marco cronolgico leva em

considerao importantes mudanas de cunho poltico-sociais que tiveram espao em

solo baiano no decorrer do processo de independncia brasileiro. Entre a adeso da

Provncia ao movimento constitucional portugus e a desocupao final dos militares

lusitanos de sua Capital, importantes e significativas transformaes ocuparam espao

nos debates e nas agitaes que mobilizaram os habitantes da Bahia.

Antes de indicarmos que tipo de transformaes sero mais detidamente

analisadas ao longo deste trabalho, precisamos apresentar alguns elementos que

possibilitam melhor compreender a Salvador que nos oferece o seu cotidiano como

objeto de estudo. De antemo, nos interessa saber a sua condio econmica, a sua

diviso administrativa e a sua composio demogrfica.

Aps a instalao da Corte portuguesa no Rio de Janeiro, Salvador passou a

ocupar a posio de segunda cidade da Amrica portuguesa em importncia econmica.

Dentre os fatores que concorreram para a estruturao deste status, destacamos: a

existncia de uma Baa segura, larga e profunda, que permitia uma maior mobilidade de

embarcaes de diferentes dimenses; a sua atuao enquanto um importante centro de

convergncia, concentrao e distribuio de commodities, as quais, por sua vez,

possuam grande aceitao no mercado europeu, asitico e africano; a existncia de um

porto exportador-importador que conseguia gerar inmeras receitas para a Coroa

portuguesa; e a sua posio geogrfica que lhe conferia maior proximidade com o

continente europeu, isso se comparado aos portos ao sul do Brasil.

A topografia acidentada existente em Salvador concorreu para a sua diviso em

cidade alta e cidade baixa. Em geral, a ligao entre estes dois espaos ocorria

basicamente a partir da utilizao de ngremes ladeiras, as quais, por sua vez, se

tornavam praticamente intransitveis nos perodos de chuva. Quanto ao seu carter

administrativo, Salvador acabou adotando os mesmos parmetros articulados pelo

catolicismo romano. Ou seja, a sua diviso administrativa atendia forte ligao

existente entre Igreja e Estado dentro do complexo quadro burocrtico articulado pela

4 HELLER, Agnes. O cotidiano e a histria. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985, p. 17-19.

8

coroa portuguesa. O sistema do Padroado permitia ao monarca da casa de Bragana a

ingerncia nos assuntos eclesisticos inclusive, nomeando e remunerando integrantes

da hierarquia clerical , da mesma forma com que viabilizava a utilizao das diversas

categorias administrativas adotadas pela prpria Igreja Catlica, tais como: capela,

parquia, freguesia, bispado, etc. Neste sentido, a diviso administrativa da Cidade em

10 freguesias vinculava-se diretamente adoo de tais critrios.5

interessante notar que diferentes atividades eram desenvolvidas em cada um

desses espaos. Como ncleo das celebraes religiosas e culturais, tornara-se prtica

comum a realizao de casamentos, batismos, procisses e at mesmo extrema-unes

em cada uma dessas freguesias. No campo poltico, elas atendiam a diferentes critrios,

tais como a elaborao das listas de qualificao eleitoral e a realizao das eleies

primrias. Quanto ao aspecto econmico, podemos destacar a sua importncia enquanto

lcus privilegiado onde se processava as diversas atividades comerciais da Cidade, a

exemplo das prticas de compra e venda realizada nas feiras livres ou nos tabuleiros

itinerantes dos escravos de ganho. Enfim, era justamente em cada uma dessas freguesias

que as cores do dia-a-dia da Cidade ganhavam maior tonalidade e onde importantes

acontecimentos histricos eram vivenciados e registrados por seus habitantes ou pelos

visitantes estrangeiros que a ela acorriam.

A sociedade soteropolitana do sculo XIX possua uma estrutura escravista,

aberta e hierarquizada. Para os anos de 1821, 1822 e 1823, as estimativas demogrficas

apontam para uma populao prxima a 46.592, 46.868 e 47.146 habitantes,

respectivamente. A sua distribuio em camadas ou grupos sociais atendia a diferentes

critrios, tais como: origem (brasileiros, europeus e africanos), cor (branco, negro,

crioulo, cabra, pardo e/ou mulato) e estatuto legal (livre, liberto e escravo). Segundo

Ktia Mattoso, cerca de 90% da populao de Salvador vivia e sobrevivia no limiar da

pobreza.6 Thomas Lindley, por exemplo, observou pelas ruas da Capital a presena de

5 As freguesias que compunham a Cidade do Salvador no perodo em estudo eram: S ou So Salvador,

Nossa Senhora da Vitria, Nossa Senhora da Conceio da Praia, Santo Antonio Alm do Carmo, So

Pedro Velho, Santana do Sacramento, Santssimo Sacramento da Rua do Passo, Nossa Senhora das

Brotas, Santssimo Sacramento do Pilar e Nossa Senhora da Penha. Cf. NASCIMENTO, Anna Amlia

Vieira. Dez freguesias da cidade do Salvador: aspectos sociais e urbanos do sculo XIX. Salvador:

EDUFBA, 2007, p. 43-44. 6 MATTOSO, Ktia de Queirs. Bahia: A Cidade do Salvador e seu mercado no sculo XIX. So Paulo:

Hucitec, 1978, p. 235.

9

um grande nmero de mendigos.7 No entanto, vale salientar que, apesar da rigidez da

economia agro-exportadora e da existncia de barreiras legais, raciais e de origem

tnico-nacionais, era possvel perceber a existncia de uma certa mobilidade social

dentro dos grupos e entre os grupos sociais existentes, tanto de forma ascendente quanto

de forma descendente. No foi por acaso que se elaborou o seguinte ditado: pai rico,

filho nobre e neto pobre.8

Em geral, o primeiro contato dos visitantes estrangeiros com a Cidade do

Salvador acontecia ainda em alto mar. Esta percepo visual distncia levava-os a

considerar a Capital da Provncia enquanto um espao bastante encantador.9 No entanto,

bastava o primeiro contato com o solo firme para que as suas consideraes iniciais

logo se desfizessem. Ao desembarcarem no porto, de imediato percebiam que o

magnfico quadro vislumbrado a quilmetros de distncia se aproximava e muito

de uma simples miragem. A existncia de ruas estreitas, irregulares, sujas, inseguras e

mal iluminadas certamente contribua para esta mudana de opinio. Maria Graham, por

exemplo, que visitou a Capital da Bahia entre os anos de 1821 e 1823, considerou as

ruas da Cidade como sendo o lugar mais sujo em que havia estado.10

claro que esta afirmao trazia consigo um certo peso do preconceito europeu.

No entanto, a sua colocao no estava muito distante da realidade diria vivenciada em

Salvador. Os odores produzidos pelas frituras realizadas ao ar livre ou mesmo o hbito

dos moradores de jogar detritos e guas sujas no meio da rua concorria para a formao

de um quadro no muito encantador. Na freguesia da Conceio da Praia, por exemplo,

Kidder registrou ter visto a sarjeta a cu aberto, de modo que a rua se mostrava

asqueirosamente imunda.11

Apesar da existncia de posturas municipais que proibiam

7 LINDLEY, Thomas. Narrativa de uma viagem ao Brasil. So Paulo: Editora Nacional, 1969, p. 268-

269. Apud REIS, Joo Jos. A morte uma festa: Ritos Fnebres e Revolta Popular no Brasil do Sculo

XIX. So Paulo: Companhia das Letras, 1991, p. 37. 8 MATTOSO, Ktia M. de Queirs. Bahia, Sculo XIX: Uma Provncia no Imprio. So Paulo: Editora

Nova Fronteira, 1992, p. 582. 9 TOLLENARE, L. F. Notas dominicais, tomadas durante uma viagem em Portugal e no Brasil em 1816,

1817 e 1818. Bahia: Livraria Progresso, 1956, p. 279. Apud AUGEL, Moema Parente. Visitantes

estrangeiros na Bahia oitocentista. So Paulo: Cultrix, 1980, p. 141. 10

Anotaes do dia 17 de outubro de 1821. GRAHAM, Maria. Dirio de uma viagem ao Brasil e de uma

estada nesse pas durante parte dos anos de 1821, 1822 e 1823. Traduo (e notas) Amrico Jacobina

Lacombe. So Paulo: Editora Nacional, 1956, p. 145. 11

KIDDER, D. Reminiscncias de viagens e permanncia no Brasil. Rio de Janeiro e provncia de So

Paulo, compreendendo notcias histricas e geogrficas do imprio e de diversas provncias. Traduo

10

o lanamento de dejetos nas ruas da Cidade, a falta de canalizaes e esgotos s

concorria para esse horrvel quadro.

Os anos que antecederam o movimento constitucional na Bahia foram

caracterizados por diversos historiadores como um perodo de prosperidade econmica.

Barickman, por exemplo, situou os anos de 1780 a 1860 como sendo um momento de

renascimento agrcola para a Provncia.12

Contudo, devemos considerar que esta

prosperidade econmica no se processou de forma ininterrupta. Ao longo desse

perodo, alguns episdios concorreram para promover momentos de interstcio. A

incidncia de revoltas militares, motins mata-marotos, mobilizaes populares

decorrentes do desabastecimento pblico vinculados aos perodos de alteraes

climticas e/ou s especulaes comerciais promovidas pelos negociantes locais ,

rebelies federalistas e escravas, enfim, as diversas agitaes poltico-sociais que

tiveram espao na Bahia ao longo desses anos contriburam para desarticular esse

momento de crescimento econmico.

As agitaes que marcaram as lutas em favor da independncia brasileira tambm

esto inseridas neste contexto.13

Ao longo deste processo, a Provncia da Bahia

vivenciou um verdadeiro mal-estar poltico-social. A Cidade do Salvador, por exemplo,

registrou uma srie de alteraes, as quais, por sua vez, conseguiram imprimir a

necessidade de remodelao do seu cotidiano. Tornou-se perceptvel no horizonte dirio

da Capital: a incidncia de enfrentamentos envolvendo os portugueses da Europa e da

Amrica; o descrdito a que foram submetidas as instituies de representatividade

poltica; a situao de carestia dos vveres, a dificuldade no seu acesso e a falta de

ocupaes laborais que pressionava a grande maioria da populao.

Moacyr Vasconcelos. So Paulo: Martins, 1940, p. 7. Apud MATTOSO, Ktia de Queirs. op. cit., 1978,

p. 174. 12

BARICKMAN, Bert Jude. Um contraponto baiano: acar, fumo, mandioca e escravido no

Recncavo (1780-1860). Traduo Maria Luiza Borges. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2003, p.

49-85. Para maiores detalhes acerca dos fatores internos e externos que contriburam para o renascimento

agrcola da Provncia da Bahia, vide SOUZA FILHO, Argemiro Ribeiro de. Confrontos polticos e redes

de sociabilidade, Bahia (1821-1823). So Paulo: USP, Tese Doutorado, 2010, p. 14-25. 13

Arajo caracterizou os anos situados entre 1798 (Revolta dos Bzios) e 1838 (movimento federalista da

Sabinada) como sendo o perodo da Bahia Rebelde. Para maiores detalhes, vide ARAJO, Ubiratan

Castro de. A poltica dos homens de cor no tempo da independncia. Estud. av., So Paulo: v. 18, n. 50,

abr. 2004. Disponvel em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-

40142004000100022&lng=es&nrm=iso. Acesso em: 13 de Setembro de 2009.

http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-

11

A motivao para a elaborao deste trabalho encontra-se justamente na

inquietao provocada pelo interesse despertado em analisar e entender o dia-a-dia da

Cidade do Salvador ao longo do processo de independncia na Bahia (1821-1823).

Interessa-nos saber como se comportaram os habitantes da Capital ao longo da guerra

civil ento instalada e em que medida esse conflito conseguiu alterar o cotidiano da

Cidade. No primeiro captulo, pretendemos identificar os efeitos iniciais da Revoluo

do Porto e os seus desdobramentos junta Capital da Provncia ao longo do ano de

1821. Faz parte desta discusso o apoio prestado pelos habitantes de Salvador

derrubada do absolutismo na Bahia, bem como os questionamentos que foram

levantados quanto permanncia de velhas prticas pertinentes ao Antigo Regime. Por

se tratar de um momento mpar na trajetria histrica da Provncia, resolvemos destacar

e analisar os pontos apresentados pelo Catecismo Poltico e os desdobramentos da

eleio que elencou o rol dos deputados que representaria a Bahia nas Cortes de Lisboa.

No segundo captulo, apresentamos um enquadramento geral do cotidiano

soteropolitano ao longo do ano de 1822. Destacamos mais detidamente as situaes

externas e internas Provncia que potencializaram o incio da guerra civil. As

propostas apresentadas pelas Cortes de Lisboa para o convvio em um Reino Unido, a

nomeao de um luso-europeu para o exerccio do comando militar na Bahia, as

articulaes no Recncavo para uma aliana com a regncia estabelecida no Rio de

Janeiro, enfim, a incidncia de uma srie de situaes que no apenas desagradaram os

interesses locais, mas, com efeito, tambm promoveram importantes mudanas no dia-

a-dia da Capital. Tambm est includo neste debate a situao de cerco estabelecido

Capital, a fuga e o ingresso de novos moradores em Salvador e a desarticulao

produtiva e comercial da Provncia.

O terceiro captulo concentrou a sua abordagem na anlise dos reflexos do

conflito civil ao longo do primeiro semestre de 1823. Neste contexto, foram

consideradas as situaes adversas vivenciadas pelos habitantes da Capital,

principalmente no que se refere ao custo de vida, notria inviabilidade administrativa

das instncias de poder, o acirramento no confronto envolvendo brasileiros e

portugueses e os ltimos momentos dos lusitanos frente do controle da Cidade do

Salvador. Assim, a partir do conjunto desta pesquisa, acreditamos que este trabalho

significa no apenas a ampliao das discusses que envolvem a anlise do processo de

12

independncia na Bahia, mas, tambm, a agregao de importantes contribuies para a

estruturao de novos e futuros trabalhos de pesquisa.

13

Captulo 1

O cotidiano da Cidade do Salvador (1821)

O movimento revolucionrio francs no tardou em resvalar os seus efeitos junto

Pennsula Ibrica. As foras militares franco-espanholas que invadiram Portugal

contriburam de forma significativa para promover a transferncia da Corte lusitana para

o continente americano. O Estado metropolitano, com todo o seu aparato burocrtico,

ritualstico e simblico inerentes ao Antigo Regime , passou a atuar em um novo

espao geogrfico. A partir de ento, o Brasil se tornou a sede da monarquia

portuguesa1 e a Cidade do Rio de Janeiro se constituiu no novo centro de peregrinao

do Imprio.2

Ao longo dos 13 anos em que a famlia real e a administrao do Estado

portugus estiveram no Brasil, a antiga metrpole europia vivenciou uma srie de

adversidades. Os relatrios remetidos ao Rio de Janeiro indicavam reiteradamente que

os recursos arrecadados anualmente por Portugal no conseguiam suprir as despesas

existentes. A situao econmica da antiga metrpole se tornara to catica que at

mesmo todas as rendas do Estado no chegavam [...] a satisfazer sequer as despesas

militares.3

O Manifesto [endereado] aos Portugueses nos permite perceber com maior

riqueza de detalhes essa difcil realidade. Segundo consta neste documento, a partir do

momento em que a cpula da administrao do Imprio portugus atravessou o

Atlntico, o Reino Lusitano passou a vivenciar toda casta de males. Os ambiciosos

que haviam assumido a administrao do Reino de Portugal no possuam o amor da

ptria. Como resultado desse novo contexto histrico tornara-se perceptvel o seguinte

quadro: o comrcio portugus se mostrou abalado, a indstria definhava, a agricultura

esmorecia e os vasos que outrora percorrera os grandes mares apodreciam. Enfim,

1 Para uma melhor discusso acerca da transferncia do Estado metropolitano para o Brasil, Cf. DIAS,

Maria Odila Leite da Silva. A interiorizao da Metrpole. In MOTA, Carlos Guilherme (Org.). 1822:

Dimenses. So Paulo: Editora Perspectiva, 1972, p. 160-184. 2 Quanto aos aspectos pertinentes ao conceito de Centros de Peregrinao, vide ANDERSON,

Benedict. Antigos Imprios, Novas Naes. In _______. Nao e Conscincia Nacional. So Paulo:

tica, 1989, p. 57-76. 3 TENGARRINHA, Jos. Contestao Rural e Revoluo Liberal em Portugal. In ______ (Org.).

Histria de Portugal. So Paulo: EDUSC, 2001, p. 271-272.

14

estavam estancadas as fontes da prosperidade nacional lusitana e a populao de

Portugal bradava por melhores condies de vida e sobrevivncia.4

Nesse sentido, a Revoluo Liberal e Constitucional do Porto se apresentou

como um possvel caminho de superao dos males que afligiam a sociedade lusitana.

Os portugueses europeus no tardaram em abraar a causa revolucionria. O apoio

prestado Revoluo de 1820 representou a esperana de que o Imprio portugus

poderia se reerguer, alcanando novamente o memorvel perodo de glrias e conquistas

to famoso no universo.5

Permeava o imaginrio lusitano os grandes feitos do Estado portugus. Nas suas

conversaes dirias no faltavam aluses e referncias s proezas realizadas por suas

embarcaes e pelos heris da nao.6 Tornara-se algo cotidiano a lembrana de que os

vasos portugueses haviam sulcado os grandes mares, devassando as suas costas,

freqentando os seus portos e espalhando pela Europa [...] as preciosidades do Oriente.

Para os portugueses europeus, em nenhum outro momento de sua histria a Religio, o

trono e a ptria receberam servios to importantes.7 Esse ufanismo saudosista acabou

contribuindo para que a Revoluo de 1820 se apresentasse como um caminho

necessrio e fundamental para a Regenerao do Estado Portugus.8

O Movimento encetado na Cidade do Porto foi recebido com bom grado pelos

portugueses na Amrica. Imaginava-se que os velhos tempos do absolutismo e da tirania

haviam chegado ao fim. Acreditava-se que, a partir de ento, passariam a vigorar a

4 Cf. Documentos para a Histria das Cortes Gerais da Nao Portuguesa. Tomo I, 1820-1825. Porto e

Pao do Governo: 24 de agosto de 1820, p. 9-10. In TOMS, Manuel Fernandes. A Revoluo de 1820.

Notas Jos Tengarrinha. Lisboa: Editora Caminho, 1982, p. 45-49. 5 Idem.

6 Um importante registro dos feitos singulares realizados pelos portugueses europeus pode ser

encontrado In CAMES, Luis Vaz de. Os Lusadas. Disponvel em: http://www.oslusiadas.com. Acesso

em: 6 de julho de 2010. 7 Cf. Documentos para a Histria das Cortes Gerais da Nao Portuguesa. Tomo I, 1820-1825. Porto e

Pao do Governo: 24 de agosto de 1820, p. 9-10. In TOMS, Manuel Fernandes. op. cit., p. 45-49. 8 A ao empreendida pelos rebeldes do Porto fora retratada no Brasil enquanto um remdio

[necessrio] para atalhar a carreira de nossos males. Neste sentido, a atitude dos revoltosos em Portugal

no se constituiu em um ato de rebeldia, mas sim em uma ao de fidelidade aos costumes ptrios

consagrados pelo rei e pela nao. Os defensores do Movimento Vintista afirmaram que Portugal no

quer[ia] outra dinastia assentada no seu trono seno a de Bragana. Para maiores detalhes acerca desse

debate, Cf. Exame analtico-crtico e a soluo da questo: o Rei e a Famlia Real de Bragana devem,

nas circunstncias presentes, voltar a Portugal, ou ficar no Brasil? Bahia: Tipografia da Viva Serva e

Carvalho, 1821, p. 7-52. In FAORO, Raymundo. O Debate Poltico no Processo da Independncia. Rio

de Janeiro: Conselho Federal de Cultura, 1973.

http://www.oslusiadas.com/

15

liberdade, a igualdade e a fraternidade entre os Reinos irmos.9 Os ventos

revolucionrios que haviam soprado em plagas lusitanas conseguiram atravessar o

Atlntico e trouxeram consigo as insgnias do liberalismo e do constitucionalismo. A

partir de ento, um estado de ebulio se instalou nas diversas capitanias do reino

brasileiro, dando incio discusso acerca de que tipo de posicionamento os seus

habitantes deveriam assumir diante dessa nova conjuntura.

A princpio, a Corte portuguesa presente na Cidade do Rio de Janeiro no levou

muito a srio a Revoluo do Porto. Silvestre Pinheiro Ferreira, por exemplo,

considerou-a como sendo um ato de to tresloucada temeridade. Para ele, o povo

lusitano certamente iria se restabelecer dessa comoo inicial e, com efeito, obrigaria

os autores do levante a virem implorar perdo e misericrdia aos ps do trono.

Segundo as consideraes apresentadas pelo ministro de D. Joo VI, em poucos dias o

fogo revolucionrio seria extinto e o absolutismo monrquico voltaria a ocupar o seu

lugar de destaque nos diversos domnios do Imprio portugus.10

No entanto, no foi bem isso o que aconteceu. No Reino europeu, formou-se

uma Junta Provisria de Governo que passou a capitanear as medidas necessrias

instalao de uma nova administrao pblica. No Reino americano, por sua vez, as

idias de superao das mazelas vinculadas ao absolutismo monrquico foram ganhando

cada vez mais espao. Nesse contexto, a Capitania da Bahia pode ser apontada como

uma das localidades do Imprio portugus onde as idias liberais e constitucionais

encontraram solo frtil para o seu amplo desenvolvimento.

Desde outubro de 1820 a Cidade do Salvador vivenciava esse novo ambiente

poltico. Felisberto Caldeira Brant Pontes, Inspetor Geral das Tropas, registrou em carta

que, no dia 27 desse ms, fomos surpreendidos com a infausta nota da Revoluo do

Porto. Um paquete ingls que aportou na Capital trouxe consigo a peste

revolucionria.11

Para Jos da Silva Lisboa, o fato da Capitania possuir fortes laos

9 RIBEIRO, Gladys Sabina. A liberdade em construo: Identidade nacional e conflitos antilusitanos no

primeiro reinado. Rio de Janeiro: FAPERJ, 2002, p. 30. 10

Carta n 1. Rio de Janeiro: [s.d.]. In FERREIRA, Silvestre Pinheiro. Idias Polticas: Cartas sobre a

Revoluo do Brasil. Rio de Janeiro: Editora Documentrio PUC-RJ, 1976, p. 33-34. 11

Cartas de Felisberto Caldeira Brant Pontes, marqus de Barbacena. Economia aucareira da Bahia em

1820. Ministrio da Justia. Arquivo Nacional. Publicao destinada ao III Congresso de Histria da

Bahia, junho de 1973. Apud SOUSA, M. A. S. de. Bahia: de capitania a provncia, 1808-1823. So

Paulo: USP, Tese de Doutorado, 2008, p. 213-214.

16

comerciais com as praas do Porto e de Lisboa acabou favorecendo a rpida divulgao

destas notcias.12

A partir de ento, os habitantes da Bahia passaram a discutir reiteradamente os

rumos que a Capitania deveria seguir ante o movimento Vintista. Ambos os segmentos

da nao portuguesa na Amrica expressaram de pronto o seu efetivo apoio ao novo

sistema constitucional. As manifestaes pblicas de adeso s propostas oriundas de

Lisboa se tornaram cada vez mais recorrentes e, por conseguinte, planos, adeses e

conspiraes se tornaram algo cada vez mais corriqueiro na dinmica social da Capital.

O aprendizado poltico experimentado pelos habitantes da Bahia ao longo do sculo

XVIII conseguiu encontrar no sculo seguinte uma conjuntura altamente favorvel ao

seu pleno exerccio.

Cailh de Geine, informante do Intendente Geral de Polcia do Rio de Janeiro,

em 4 de dezembro de 1820, recebeu algumas correspondncias oriundas de Salvador. O

contedo apresentado em uma dessas missivas registrava o estado de opinio pblica

[existente] na Bahia. Segundo este relato,

A fermentao dos espritos aqui vai sempre crescendo. S se fala de Constituio. O

entusiasmo chegou a um ponto mais alto do que antes com a chegada de 3 navios

portugueses que nos trouxeram a notcia da reunio em Lisboa da Junta do Porto com a

nova regncia. Circulam os folhetos pblicos e as canes patriticas. Estas so

cantadas em alta voz; aqueles so lidos publicamente nas ruas e travessas, no meio de

grupos de 30 a 40 pessoas e com os aplausos dos ouvintes, tanto cidados [civis] quanto

militares.13

Embora essas discusses tenham se iniciado em Salvador em outubro de 1820,

somente em fevereiro de 1821 a Capitania da Bahia assumiria na prtica o seu

posicionamento poltico. Segundo Ubiratan Castro de Arajo, os meses de dezembro e

janeiro no eram propcios para revolues polticas.14

Isso se dava em decorrncia da

variada presena de celebraes religiosas e da incidncia do perodo de frias nos

servios administrativos e na alfndega. Por se tratar de um perodo no qual o controle

privado sobre os escravos estava enfraquecido, havia a necessidade das foras militares

estarem atentas e mobilizadas, buscando-se com isso a efetiva manuteno da ordem

12

LISBOA, Jos da Silva. Histria dos principais sucessos polticos do Imprio do Brasil dedicado ao

Senhor D. Pedro I. Parte 10. Rio de Janeiro: Tipografia Imperial e Nacional, 1827, p. 43-44. 13

MISSIVA II 33, 22, 74. Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Apud SILVA, Maria Beatriz Nizza

da. Bahia, a Corte da Amrica. So Paulo: Companhia Editora Nacional, 2010, p. 686. 14

ARAJO, Ubiratan Castro de. A guerra da Bahia. Salvador: CEAO, 2001, p. 11-13.

17

pblica. Assim sendo, apenas em fevereiro de 1821 estavam reunidas as condies

necessrias para que a Capitania conseguisse levar a cabo a sua adeso ao sistema

constitucional.

O governador da Capitania pouco pde fazer para tentar obstar as articulaes

ento desenvolvidas. Dom Francisco de Assis Mascarenhas, o conde da Palma, se

mostrava impotente e preferia aguardar [o curso dos] acontecimentos.15

Segundo

palavras do coronel Igncio Accioli, fez o governador [...] as diligncias possveis para

evitar o desenvolvimento do governo revolucionrio.16

No entanto, as idias liberais

serviam de objeto s pblicas conversaes, dando a entender que se tornava cada vez

mais prxima a exploso do movimento constitucional na Bahia.

Na madrugada de 10 de fevereiro de 1821 eclodiu em Salvador o movimento

poltico-militar de adeso s propostas da Revoluo do Porto. O documento elaborado

pelo tenente-coronel Manuel Pedro de Freitas Guimares nos permite perceber as razes

que deram ensejo ao grande apoio recebido pelo movimento Vintista na Bahia.

Segundo os elementos apresentados por este documento, eram recorrentes no dia-a-dia

da Capitania a corrupo dos magistrados, a pobreza dos povos e a misria dos

soldados.17

O despotismo e a tirania oprimiam a cada dia os seus habitantes. Alm

disso, uma violenta carga de tributos exercia o seu peso, contribuindo de forma

significativa para a insatisfao e a instabilidade social.

Diante de tais circunstncias, os comandantes dos corpos de linha concertaram

entre si e decidiram apoiar o estabelecimento de um governo constitucional para toda a

Capitania.18

Articuladas as foras de apoio, os grupamentos militares constitucionais se

deslocaram em direo ao Palcio do Governo. Ao tomar conhecimento de que o

15

SOUSA FILHO, Argemiro Ribeiro de. A guerra de independncia na Bahia: manifestaes polticas e

violncia na formao do Estado nacional (Rio de Contas e Caetit). Salvador: UFBA, Dissertao de

Mestrado, 2003, p. 28-29. 16

SILVA, Incio Accioli de Cerqueira e. Memrias Histricas e Polticas da Provncia da Bahia. Bahia:

[edio anotada por Braz do Amaral] Imprensa Oficial do Estado, 1931, v. 3, p. 266-267. 17

Proclamao do tenente-coronel Manuel Pedro de Freitas Guimares. Bahia: 10 de fevereiro de 1821.

Apud TAVARES, Lus Henrique Dias. In Universitas: Revista de Cultura da Universidade Federal da

Bahia. n. 16. Salvador: Centro Editorial da UFBA, 1973, p. 55-61. 18

Comandavam os respectivos corpos de linha: a artilharia, o tenente-coronel Manoel Pedro de Freitas

Guimares; a cavalaria, o tenente-coronel Francisco Jos Pereira; e a infantaria, o tenente-coronel

Francisco de Paula e Oliveira.

18

levante havia se iniciado, o conde da Palma lanou mo de um ltimo artifcio: delegou

ao marechal Felisberto Caldeira Brant Pontes a misso de fazer frente a tal investida.

Como resultado dessa medida, as ruas da Cidade do Salvador se tornaram palco

de encarniadas escaramuas. Os confrontos envolveram tanto civis quanto militares.

As foras que defendiam a manuteno do absolutismo monrquico no conseguiram

subsistir e acabaram sucumbindo ante as foras constitucionalistas. Segundo Braz do

Amaral, esses enfrentamentos resultaram na incidncia de mortos e feridos. Alm do

que, segundo registros, alguns militares se entregaram [como] prisioneiros ou

passaram logo para o [lado do] partido constitucional.19

Na tentativa de evitar novos confrontos, o marechal de campo Luiz Paulino de

Oliveira Pinto da Frana recomendou que fossem ouvidas as pessoas mais

circunspectas e ilustradas da Cidade.20

Na verdade, a iniciativa de se convocar este

conselho partiu do prprio governador da Capitania, o conde da Palma, o qual, com

efeito, considerou como algo bastante oportuno a reunio das pessoas que apresentavam

destaque no cenrio poltico-social da Capital. Diante da crtica conjuntura, nada mais

oportuno do que dividir a responsabilidade no que concerne a adoo de medidas que

concorressem para a superao do quadro de agitaes que ento se apresentava.

O conselho ento instalado se mostrou favorvel adoo do sistema

constitucional proposto a partir do Reino europeu. Essa deciso fora acompanhada de

uma resoluo, a qual transcrevemos a seguir:

Os comandantes e oficiais das tropas de linha da guarnio da cidade da Bahia em

presena do governador e capito-geral conde da Palma, quiseram de comum acordo

impedir efuso de sangue, que infelizmente podia resultar em motins, originados do

receio do povo de que sejam frustrados os desejos que tem manifestado de aderir aos

votos de seus irmos de Portugal, a quem desejam estar perpetuamente unidos, e

participar com eles dos benefcios da constituio liberal que ora se faz em Lisboa,

resolveram o seguinte:

1 Jurar obedincia ao muito alto e poderoso rei o Sr. D. Joo VI e adeso sua Real

Dinastia; conservar a Santa Religio;

2 Jurar a Constituio que fizerem as Cortes em Portugal e interinamente a da

Espanha, da mesma maneira que foi adotada em Lisboa;

19

AMARAL, Braz Hermenegildo do. Histria da Independncia da Bahia. Salvador: Editora Progresso,

1957, p. 9-21. 20

WISIAK, Thomas. A Nao partida ao meio: tendncias polticas na Bahia na crise do Imprio Luso-

brasileiro. So Paulo: USP, Dissertao de Mestrado, 2001, p. 38-40.

19

3 Que a Cmara proponha aprovao da Tropa e do Povo das pessoas que devem

formar uma Junta Provisional, que haja de governar esta Provncia at que Sua

Majestade tenha solenemente jurado a mesma Constituio;

4 Que o Governo Provisional, logo depois de sua instalao, forme um ato por si, em

nome desta Provncia, de adeso ao Governo de Portugal e nova ordem ali

estabelecida, o qual ser remetido ao mesmo Governo e a El Rei Nosso Senhor;

5 Que o Governo Provisional mandar logo proceder a nomeao de Deputados da

Provncia para se reunirem s Cortes de Portugal;

6 Que todos os Atos de Administrao Pblica continuaro como dantes, em nome

do Sr. rei D. Joo VI;

7 Que o dia de hoje seja de reconciliao geral entre os habitantes desta Provncia,

que por qualquer diferena de opinio poltica estejam discordes at agora.21

Os sete pontos enunciados por essa resoluo conseguiram expressar diferentes

posicionamentos. A partir da sua leitura e anlise, conseguimos perceber elementos

tanto de ruptura quanto de continuidade. O rei, o Sr. D. Joo VI, por exemplo, fora

apresentado como um importante elemento de unidade da nao portuguesa. O Rio de

Janeiro, por sua vez, acabou perdendo o seu status de centro de deciso poltica da

administrao do imprio portugus, cedendo involuntariamente esta posio ao Reino

de Portugal mais especificamente a Lisboa. Ao Senado da Cmara de Salvador

competia o importante papel da adoo das medidas necessrias estruturao do

Governo Provisrio, o qual, com efeito, no poderia ser estabelecido a partir de uma

simples imposio das pessoas mais circunspectas e ilustradas da cidade, fazendo-se

necessrio a aprovao da tropa e povo. Como podemos perceber, os habitantes da

Bahia buscavam trilhar o caminho do liberalismo constitucional, no entanto, alguns

elementos pertinentes ao Antigo Regime insistiam em permanecer no seu horizonte

poltico-social.

Os vereadores reunidos no Senado da Cmara de Salvador propuseram os nomes

dos integrantes do novo governo. Para tanto, foram considerados os principais

seguimentos da sociedade portuguesa: clero, milcia, comrcio, agricultura e cidade.

Neste nterim, a Praa do Palcio fora tomada por um grande nmero de pessoas. Os

habitantes da Bahia que desde outubro de 1820 discutiam abertamente as propostas

polticas oriundas de Lisboa passaram a requerer publicamente a implantao das

mudanas to esperadas. Este fato despertou a ateno das autoridades pbicas. Mesmo

21

Resoluo adotada pelo Conselho Militar. Bahia: 10 de Fevereiro de 1821. Apud RUY, Afonso.

Histria Poltica e Administrativa da Cidade do Salvador. Bahia: Tipografia Beneditina, 1949, p. 371-

372.

20

estando interessados nas possibilidades que o novo momento constitucional poderia

proporcionar, as autoridades locais no perderam de vista o carter imprevisvel do

momento e, muito menos, os desastrosos e indesejveis resultados que poderiam

suceder com o alargamento do espao pblico. Possivelmente, as lembranas resultantes

de outras agitaes polticas que tiveram espao na Bahia colocaram estas autoridades

em uma posio de mxima cautela.

Cumpridas as formalidades exigidas, foram elencados no rol dos integrantes do

futuro governo os seguintes nomes:

Pelo clero, o reverendo deo Jos Fernandes da Silva Freire; Pela milcia, os tenentes-coronis Francisco de Paula e Oliveira e Francisco Jos

Pereira;

Pelo comrcio, Francisco Antonio Filgueiras e Jos Antonio Rodrigues Vianna;

Pela agricultura, Paulo Jos de Mello;

Pela cidade, o desembargador Luiz Manoel de Moura Cabral;

Secretrio[s] do governo, o desembargador Jos Caetano de Paiva e o bacharel Jos

Lino Coutinho.22

Aps os vereadores escolherem os representantes da Junta Provisria de

Governo, foram anunciados os respectivos nomes em altas vozes das janelas da casa da

Cmara. Pretendia-se com isso que toda tropa e povo presente na Praa do Palcio

aprovasse a referida escolha e que a dinmica poltico-social da Cidade do Salvador

fosse retomada o quanto antes. Atravs dos conhecidos sinais de levantarem as mos

para o ar e com vozes foram aprovados os mencionados representantes.

No entanto, na mesma oportunidade, o povo adentrou o salo nobre da

Cmara e exigiu em altas vozes que o tenente-coronel Manoel Pedro de Freitas

Guimares passasse a integrar o novo governo. Diante de tal presso, a Cmara anuiu a

essa exigncia, tendo nomeado o referido militar como membro do Governo Provisrio.

No satisfeito, mais uma vez o povo pressionou e conseguiu obter a elevao de

Manoel Pedro ao posto de brigadeiro e a sua assuno ao cargo de Governador das

Armas da Provncia.23

Dos episdios sucedidos do dia 29 de agosto em Portugal ao dia 10 fevereiro em

Salvador, ficou para a posteridade um conjunto de novos registros. Em especial, no que

se refere Capitania da Bahia, podemos destacar que saiu vitoriosa a aliana ento

22

Termo de Vereao. Bahia: 10 de fevereiro de 1821. Apud SILVA, Incio Accioli de Cerqueira e. op.

cit., v. 3, p. 272-273. 23

Idem., p. 274-275.

21

estabelecida entre os integrantes que compunham a sociedade baiana. Concorreu para

esta realidade um conjunto de elementos de ordem interna e externa realidade

vivenciada pelos habitantes da Capitania. Dentre esses elementos, apontamos: a

vigncia de um ambiente poltico-social favorvel realizao do movimento e a

seduo provocada pelas propostas tentadoras de articulao de um governo de carter

no absolutista. Enfim, a partir da estruturao dessa nova conjuntura liberal e

constitucional, acreditava-se que a mxima do morra o mau governo conseguiria ser

efetivamente superada. Ainda que viesse a se tratar de uma crena momentnea, era

justamente esta a esperana ento acalentada pelos habitantes da Cidade do Salvador.

1.1 Os habitantes da Cidade do Salvador manifestam o seu apoio ao novo

governo

As notcias do movimento constitucional na Bahia foram anunciadas em

diversas paragens. Jos Garcez Pinto de Madureira, por exemplo, notificou ao seu

cunhado, o marechal de campo Lus Paulino Pinto de Oliveira Frana, que o

posicionamento adotado pela Provncia da Bahia fora recebido em Portugal com grande

prazer e entusiasmo. Segundo Jos Garcez, finalmente os habitantes dos Reinos Unidos

estavam verdadeiramente unidos por igual vontade.24

No entanto, essa mesma

percepo no se apresentou junto a Corte do Rio de Janeiro.

De imediato, o ministro Silvestre Pinheiro se deu conta de que a conjuntura

poltica no Reino do Brasil j no era mais a mesma. Para ele, a adeso da Provncia da

Bahia ao sistema constitucional portugus se mostrou como um acontecimento de

grande envergadura, requerendo das autoridades competentes a mais circunspecta

ateno. Segundo suas palavras,

Decidiu-se enfim a sorte do Brasil; quebrou-se o nexo que unia suas provncias a um

centro comum; e com a dissoluo do Brasil se consuma a dissoluo da monarquia

[portuguesa] [...].

A Bahia acaba de desligar-se da obedincia de Sua Majestade com o pretexto de aderir

ao sistema das Cortes de Lisboa. Provavelmente a estas horas tem feito [o mesmo outras

tantas provncias] [...]. Mas o fato que, desligados deste centro e de um sistema

existente para se ligar a uma autoridade e governar-se por uma legislao que ainda no

existe [...], dissolver todo o nexo social; substituir a um governo defeituoso sim, mas

24

Carta n 65. Porto: 29 de maio de 1821. Carta de Jos Garcez Pinto de Madureira a seu cunhado Lus

Paulino. In CARDOSO, Antonio Monteiro e FRANA, Antonio de Oliveira Pinto da. Cartas luso-

brasileiras: 1807-1821. So Paulo: Companhia Editora Nacional, 2008, p. 248-250.

22

enfim [um] governo que [...] [se mostrava] protetor dos direitos civis de cada habitante,

[passando ento a vivenciar] a mais completa anarquia.25

Enquanto a Corte do Rio de Janeiro receava a instalao da anarquia junto s

diversas provncias do Reino do Brasil, os habitantes da Cidade do Salvador realizavam

festejos em comemorao sua adeso ao sistema constitucional. Segundo os redatores

da gazeta Idade dOuro do Brazil, os habitantes da Bahia ainda estavam atnitos e

deslumbrados diante de to grande feito. Extasiados de jbilo, comemoravam com

alegria esse novo momento. A adeso ao sistema constitucional portugus representou

para muitos a sada de improviso da subterrnea masmorra aonde jazera por longo

tempo.26

Celebraes cvicas e religiosas se tornaram a tnica daqueles dias. No mais

simples gesto do dia-a-dia conseguia-se perceber o clima de alegria que imperava na

Cidade. At mesmo os mais humildes moradores da Capital se preocuparam em

externar os seus sentimentos. O grande nmero de pessoas que se preocuparam em

manter as suas casas iluminadas durante algumas noites comprava esta realidade.

O dia 12 de fevereiro, por exemplo, pode ser apontado como mais um dia

entre tantos de celebraes. O juramento da futura constituio portuguesa estava

marcado para esta data. No intuito de participar de mais essa festividade, diversas

pessoas gradas e midas que integravam a sociedade baiana concorreram Praa do

Palcio. Naquela oportunidade, todos suspiravam e todos davam os mais vivos sinais

da sua satisfao, congratulando-se reciprocamente. Entre as serenas ondas de cordial

regozijo foram entoadas uma srie de vivas, a saber: viva a El Rei Nosso Senhor, viva

a Religio, viva a Constituio, viva o Reino Unido de Portugal, Brazil e Algarves [...].

noite, prosseguiram as comemoraes. O Teatro So Joo se mostrou como

mais um espao onde os sentimentos em favor da causa constitucional seriam

exteriorizados. Alm da apresentao da pea O Assombro da Constncia e do poema

Elogio Potico, podia-se ouvir o pblico bradar em alto e bom som: agora sim [...]

temos Rei, temos Nao; Reina a verdade e a virtude, e o seu reinado ser eterno [...];

somos todos soldados e amigos. As celebraes daquele dia foram encerradas com

25

Carta n 4. Rio de Janeiro: [s.d.]. In FERREIRA, Silvestre Pinheiro. op. cit., p. 39-40. 26

Idade dOuro do Brasil. n. 14. Bahia: 15 de fevereiro de 1821. Disponvel em:

http://hdl.handle.net/bv2julho/44. Acesso em: 24 de dezembro de 2011.

http://hdl.handle.net/bv2julho/44

23

salvas de tiros disparadas das fortalezas da Cidade e dos navios de guerra e mercantes

estacionados nas guas da Baa.27

Apesar da euforia que reinava em Salvador, as autoridades constitudas no

perderam de vista a necessidade de ateno que aquele momento requeria. Como

mencionamos anteriormente, toda a cautela se fazia necessria diante da nova

conjuntura. Para o governo civil e militar da Provncia, o alargamento do espao pblico

s pessoas midas da sociedade deveria ser evitado tanto quanto se mostrasse possvel.

Neste sentido, as autoridades pblicas se mobilizaram no intuito de evitar a incidncia

de situaes indesejadas.

A Junta Provisria de Governo adotou importantes medidas. Visando manter a

disciplina dos corpos militares e angariar o apoio necessrio que as circunstncias

exigiam, o Governo Civil da Provncia buscou no apenas parabenizar os militares pelo

feito realizado no dia 10 de fevereiro, como tambm se preocupou em pagar aos oficiais

e praas os soldos que lhes eram devidos na mesma oportunidade, os valores tambm

foram reajustados.28

Apesar de tal medida se apresentar como um feito de cunho

administrativo, a sua efetiva aplicao se mostrou como um instrumento de suma

importncia. A segurana da Cidade dependia da mais exata disciplina dos corpos

militares. De outra forma, se tornaria impraticvel a manuteno da ordem e a gerncia

da coisa pblica. Essa perspectiva no estava distante das consideraes do novo

governo.

Doaes foram feitas no intuito de cobrir as despesas mais imediatas. Pessoas

gradas e midas conhecidas ou annimas da sociedade baiana se dispuseram a

ajudar.29

O comerciante Francisco Martins da Costa, por exemplo, ofereceu panos de

linho para pagar os atrasados da tropa. Manoel Pinto da Cunha, por sua vez, ofereceu

a tera [parte] do rendimento lquido de uma propriedade que possua na Ladeira de

Santa Tereza. O corpo de comrcio ofereceu briosamente todos os seus bens e vidas

27

Idade dOuro do Brasil. n. 14. Bahia: 15 de fevereiro de 1821. Disponvel em:

http://hdl.handle.net/bv2julho/44. Acesso em: 24 de dezembro de 2011.. 28

Proclamao da Junta Provisria de Governo aos Oficiais e Soldados da Guarnio da Cidade da Bahia.

Bahia: Palcio do Governo, 11 de Fevereiro de 1821. In SILVA, Incio Accioli de Cerqueira e. op. cit., v.

3, p. 278-279. Consta no anexo 1: Um conjunto de tabelas que visam apresentar os valores dos soldos

reajustados aps o movimento constitucional na Bahia. 29

Consta no anexo 2: Uma lista de subscrio que visa apontar o concurso de pessoas conhecidas e

annimas da sociedade baiana que se dispuseram a ajudar o Governo Provisrio em seu primeiro

momento.

http://hdl.handle.net/bv2julho/44

24

para a segurana da causa pblica. A deputao do comrcio exigiu que os 12 contos

de ris que haviam doado fossem distribudos igualitariamente entre os militares.30

Este

valor fora repartido da seguinte forma:

Tabela 1

CORPOS PRAAS QUANTO POR

PRAA

TOTAL DA

IMPORTNCIA

Legio de

Caadores

691 4&696 23

3:245&396 23

Cavalaria da

mesma

171 4&696 23

803&130

Artilharia Montada 53 4&696 23

248&923 13

1 Regimento de

Infantaria

617 4&696 23

2:897&843 13

Batalho de

Infantaria 12

407 4&696 23

1:911&543 13

Regimento de

Artilharia

616 4&696 23

2:893&146 23

Soma 2555 11:999&98312

Fonte: Idade dOuro do Brasil. n. 18. Bahia: 20 de fevereiro de 1821. Disponvel em:

http://hdl.handle.net/bv2julho/44. Acesso em: 24 de dezembro de 2011.

Chama a ateno a carta escrita por Antonio Esteves dos Santos, a qual estava

endereada aos ilustrssimos senhores do governo constitucional. Nesta carta, o

pobre comerciante desta praa prestava as devidas homenagens Junta Provisria de

Governo pelas fadigas que tendes tido e continuareis a ter desde o feliz dia 10 de

fevereiro de 1821. No entanto, Antonio Esteves no se limitou apenas a tais

felicitaes. Animado pela euforia dos novos tempos, passou a oferecer a pouca

fortuna que possui, a qual correspondia a um montante de 12 a 14 contos de ris.31

30

Idade dOuro do Brasil. n. 16. Bahia: 17 de fevereiro de 1821. Disponvel em:

http://hdl.handle.net/bv2julho/44. Acesso em: 24 de dezembro de 2011. 31

Carta escrita por Antonio Esteves dos Santos. In Idade dOuro do Brasil. n. 19. Bahia: 21 de fevereiro

de 1821. Disponvel em: http://hdl.handle.net/bv2julho/44. Acesso em: 24 de dezembro de 2011.

http://hdl.handle.net/bv2julho/44http://hdl.handle.net/bv2julho/44http://hdl.handle.net/bv2julho/44

25

A sua companheira e filhas tambm contriburam para o servio e defesa da

Ptria. No sabemos ao certo se essa disposio em auxiliar o servio pblico se dera

de forma voluntria como reflexo do estado de alegria que reinava em Salvador , ou

simplesmente como resultado de algum tipo de presso exercida pelo chefe da famlia.

De toda sorte, o certo que essas mulheres acabaram disponibilizando para emprego da

justa causa as suas pobres jias e pequena moblia de ouro e prata. Vale salientar

ainda que Antonio Esteves incluiu no rol de suas intenes um de seus filhos que se

encontrava educando na Frana. O pobre comerciante desta praa almejava

disponibiliz-lo ao exerccio dos servios necessrios causa pblica, to logo o mesmo

regressasse ao Brasil. A sua inteno era de que o seu filho pudesse melhor ser til a

sua ptria. 32

Aps o dia 10 de fevereiro foram registradas vrias mudanas. Segundo o Idade

dOuro do Brazil, a [Cidade da] Bahia nunca trabalhou tanto como agora. Houve

aumento na produo do Arsenal; os carpinteiros e calafates passaram a oferecer seus

prstimos com maior assiduidade; e os marinheiros passaram a apresentar um

comportamento menos repreensvel, a ponto de no ser necessrio que os Soldados os

prendam. Os tribunais, por sua vez, comearam a trabalhar sem maiores transtornos; a

justia civil e criminal passou a ser prontamente administrada; e os particulares

principiaram a viver na mais completa tranqilidade. At mesmo os desertores

principiam a aparecer, ao passo que os soldados reformados solicitam do governo a

sua reintegrao s antigas funes exercidas.33

Embora no tenhamos nossa

disposio outros documentos que indiquem em que medida e proporo essas

mudanas realmente se concretizaram, a simples indicao de que uma nova dinmica

se apresentou no horizonte poltico-social da Cidade j se constitui em forte elemento

ilustrativo de que o clima presente em Salvador era de extrema confiana nos novos

tempos. Esperava-se que as propostas vinculadas ao liberalismo constitucional

portugus conseguissem alterar de forma significativa a realidade at ento vivenciada

pelos moradores da Capital.

32

Carta escrita por Antonio Esteves dos Santos. In Idade dOuro do Brasil. n. 19. Bahia: 21 de fevereiro

de 1821. Disponvel em: http://hdl.handle.net/bv2julho/44. Acesso em: 24 de dezembro de 2011. 33

Idade dOuro do Brasil. n. 21. Bahia: 23 de fevereiro de 1821. Disponvel em:

http://hdl.handle.net/bv2julho/44. Acesso em: 24 de dezembro de 2011.

http://hdl.handle.net/bv2julho/44http://hdl.handle.net/bv2julho/44

26

1.2 O catecismo poltico em Salvador

Com a ecloso do movimento liberal portugus, uma nova linguagem poltica

veio tona no Reino do Brasil. Segundo Lcia Maria Bastos Pereira das Neves, a

necessidade de difuso desse novo vocabulrio acabou refletindo uma significativa

produo editorial.34

Entre os anos de 1821 e 1823, a publicao de folhetos, panfletos e

peridicos alcanou um grande impulso. Em geral, essa produo tentava esclarecer um

conjunto de palavras que anunciavam princpios, definiam direitos e apontavam os

deveres do cidado.

Salvador em nada se diferenciou dessa realidade. Aps a instalao da primeira

Junta Provisria de Governo, mostrou-se urgente a necessidade de se explicitar aos

habitantes da Bahia o significado da adeso ao novo sistema constitucional. O antigo

sdito havia se convertido condio de cidado e, como tal, fazia-se necessrio o

conhecimento de determinados saberes polticos. Se com o absolutismo monrquico

esses saberes estavam quase que concentrados em um nmero reduzido de pessoas, as

quais, por sua vez, em alguma medida haviam integrado a burocracia estatal do Antigo

Regime, com o novo sistema monrquico constitucional todo cidado necessitaria de

uma melhor e mais esclarecida instruo.35

Nesse sentido, podemos apontar o

importante papel exercido pelos peridicos baianos enquanto agentes esclarecedores

dessa nova dinmica poltico-social vivenciada na Capital.

O periodismo na Bahia assumiu um papel essencialmente poltico ao longo do

ano de 1821. Os jornais Idade dOuro do Brazil e Semanrio Cvico podem ser

apontados como exemplos clssicos nesse sentido.36

Estes peridicos se encarregaram

da tarefa de instruir a populao local acerca do novo sistema vigente, tornando pblico

os diversos elementos que passaram a integrar o vocabulrio poltico a partir de ento.

Para Joaquim Jos da Silva Maia, procurador do Senado da Cmara e redator do

Semanrio Cvico, a instruo pblica era a base da felicidade das naes. Segundo

34

NEVES, Lcia Maria Bastos P. Corcundas e constitucionais: A Cultura Poltica da independncia

(1820-1822). Rio de Janeiro: Editora Revan, 2003, p. 119. 35

Cf. SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Nova Histria da Expanso Portuguesa: O Imprio Luso-

Brasileiro (1750-1822). v. VIII. Lisboa: Editora Estampa, 1986, p. 408-410. 36

Para Maria Beatriz, esse jornalismo poltico teve dois centros principais, o Rio de Janeiro e a Bahia,

uma vez que [para o perodo em destaque] os peridicos de Pernambuco, Par e Maranho foram de

pouco peso na polmica poltica. SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Movimento Constitucional e

Separatismo no Brasil (1821-1823). Lisboa: Livros Horizonte, 1988, p. 16-18.

27

suas consideraes, no bastava ao cidado portugus apenas possuir uma sbia

Constituio, era necessrio ainda uma educao adaptada para poder receb-la.

Nesse sentido, Silva Maia afirmou que debalde desejaremos que os homens cumpram

[com] os seus deveres, se eles ignoram quais estes sejam. Visando eliminar os

possveis entraves a essa nova conjuntura, o Semanrio Cvico se apressou em publicar

um pequeno catecismo poltico.37

Termos at ento desconhecidos por boa parte dos habitantes da Bahia, tais

como Constituio, Cortes, Governo Constitucional, Revoluo e Liberdade,

necessitaram de maiores esclarecimentos. Como se aproximava as eleies dos futuros

deputados da Provncia s Cortes de Lisboa, os peridicos em circulao intensificaram

o seu trabalho no intuito de difundir alguns esclarecimentos e dirimir possveis dvidas.

O cidado portugus necessitava desse tipo de conhecimento poltico no apenas para

votar adequadamente, como tambm para representar os seus constituintes e, ainda, para

desempenhar eficientemente [os] cargos pblicos disponveis.38

O termo Constituio fora apresentado pelo peridico Idade dOuro como sendo

um bom governo, sedimentado em boas leis e tendo por alvo final a felicidade dos

homens. Para os seus redatores, a Constituio era o instrumento capaz de dar a cada

um o que seu; ela conseguia fazer os homens cumprirem os seus deveres; e, ao

mesmo tempo, possibilitava a administrao pblica desterrar os perversos e dar

sossego aos bons.

Enquanto nos governos absolutos os monarcas so vistos como os agentes

responsveis pela elaborao e execuo das leis, nos governos regulados por uma Carta

Constitucional a percepo que se tem de que quem governa a lei. Essa nova

perspectiva poltica trouxe consigo a idia de que com a instalao de uma futura

Constituio no mais existiria a proteo do magistrado ou do capito-mor. Segundo

esse pensamento, quem virtuoso est seguro. No entanto, quem perturbador,

demandista ou facinoroso no pode escapar justia, pois, por mais padrinhos que

37

Semanrio Cvico. n. 10. Bahia: 3 de maio de 1821. In SILVA, Maria Beatriz Nizza da. op. cit., 1988,

p. 32-33. 38

SILVA, Maria Beatriz Nizza da. op. cit., 1988, p. 25-26.

28

possam apresentar, tais personalidades no poderiam mais subsistir ante o imprio da

lei.39

O termo Cortes, por sua vez, fora apresentado pelo Semanrio Cvico a partir de

um esquema de perguntas e respostas. Vejamos ento:

P[ergunta]. Que so Cortes? R[esposta]. Um Congresso Nacional convocado [...] para promover o bem e a felicidade

da nao.

[...]

P. Que diferena h entre as Cortes antigas e as que agora se convocam?

R. Em que agora no se convoca arbitrariamente certa parte da nao, porm todo o

povo concorre para nomear sujeitos que o representem, confiando-lhes o poder soberano

que reside na nao, para que disponham e estabeleam o que mais conducente ao

bem pblico.

[...]

P. Sero grandes as faculdades destas Cortes?

R. Sero ilimitadas, porque residir nelas em toda a sua extenso a autoridade soberana.

P. Quais so as faculdades das Cortes?

R. Pelo art. 131 da Constituio espanhola [adotada interinamente at a elaborao da

Constituio portuguesa] so: 1. Propor e decretar as leis, interpret-las e derrog-las,

quando for necessrio; 2. Receber o juramento ao rei, ao prncipe real e regncia,

como se previne em seu lugar competente; 3. Resolver qualquer dvida de fato, e de

direito, que ocorra na sucesso Coroa; 4. Eleger regente ou regncia do reino quando o

previne a Constituio e fixar os limites com que a Regncia ou regente ho de exercer

a autoridade real; 5. Fazer o reconhecimento pblico do prncipe das Astrias; 6.

Nomear tutor a el-rei sendo menor e quando o previne a Constituio; 7. Aprovar antes

da sua ratificao os tratados de aliana ofensiva, os subsdios e os especiais do

comrcio; 8. Conceder ou negar a admisso de tropas estrangeiras no Reino; 9. Decretar

a criao e supresso dos lugares nos tribunais, que estabelece a Constituio e

igualmente a criao e supresso dos ofcios pblicos; 10. Fixar, por propostas del-rei,

todos os anos as foras de terra e mar, determinando as que se ho de conservar em p

em tempo de paz , e seu aumento em tempo de guerra; 11. Dar ordenanas ao exrcito,

armada e milcia nacional, em todos os ramos que as constituem; 12. Fixar os gastos de

administrao pblica; 13. Estabelecer anualmente as contribuies e impostos; 14.

Pedir emprstimos em caso de necessidade sobre o crdito da nao; 15. Aprovar a

repartio das contribuies entre as Provncias; 16. Aprovar a inverso das rendas

pblicas; 17. Estabelecer alfndegas e pauta dos direitos; 18. Dispor o que for

conveniente para a administrao, conservao e alienao dos bens nacionais; 19.

Determinar o valor, peso, tipo e denominao das moedas; 20. Adotar o sistema

uniforme que se julgue mais acomodado e justo de pesos e medidas; 21. Promover e

fomentar toda a espcie de indstria e remover os obstculos que a entorpeam; 22.

Estabelecer o plano geral de ensino pblico em toda a monarquia e aprovar o que se

forma para a educao do Prncipe Real; 23. Aprovar os regulamentos gerais para a

polcia geral sanitria do Reino; 24. Proteger a liberdade poltica da imprensa; 25. Fazer

efetiva a responsabilidade dos secretrios do despacho e mais empregados pblicos; 26.

39

Idade dOuro do Brasil. n. 22. Bahia: 24 de fevereiro de 1821. Disponvel em:

http://hdl.handle.net/bv2julho/44. Acesso em: 24 de dezembro de 2011.

http://hdl.handle.net/bv2julho/44

29

Finalmente pertence s Cortes dar ou negar o seu consentimento em todos aqueles casos

e atos para o que previne ser necessrio a Constituio.40

Quanto ao significado atribudo ao Governo Constitucional, Silva Maia assim o

qualificou:

P[ergunta]. Qual o governo Constitucional? R[esposta]. aquele no qual um rei governa segundo as leis fundamentais estabelecidas

pelo Congresso da nao, a que chamam Cortes.

P. Por que dizeis que esta forma de governo a melhor?

R. Porque se acham divididos os trs poderes [...]. O povo como soberano por meio de

seus deputados em Cortes faz as Leis, conhece das suas necessidades e marca os

remdios precisos. Os juzes julgam segundo as leis da nao e o rei, por assim dizer,

no tem outro ofcio seno o de fazer manter em vigor estas mesmas leis, a que todos

esto sujeitos; de modo que nestas circunstncias o rei pode fazer o bem, privando-o de

fazer mal.41

Embora o termo Revoluo no se apresentasse como um elemento totalmente

desconhecido do vocabulrio poltico baiano, os redatores dos peridicos em circulao

na Provncia da Bahia se preocuparam em esclarecer o seu significado a partir desse

novo contexto constitucional. O Idade dOuro do Brazil, por exemplo, classificou esse

termo como sendo [um evento] sempre terrvel, isto em virtude dos inmeros

inconvenientes resultantes da sua ecloso. No entanto, as Revolues no deveriam

ser percebidas apenas como geradoras de inmeros males. Segundo os redatores da

gazeta, em determinados casos a incidncia de tais eventos se apresentava como algo

necessariamente indispensvel, pois a soma dos bens ento produzidos se mostrava bem

mais expressivo. A Revoluo Liberal e Constitucional do Porto deveria ser entendida

muito apropriadamente neste sentido.

A gazeta Idade dOuro do Brazil passou a apresentar alguns elementos que

supostamente permitiriam ao cidado portugus conhecer se determinada Revoluo se

constitua enquanto boa ou m. Para tanto, fazia-se necessrio considerar os seguintes

pressupostos de anlise: se o estado anterior era bom e se o governo merecia os

aplausos pblicos, a mudana resultante da Revoluo se constitua em um enorme

erro; no entanto, se o estado anterior descontentava ao pblico onde as rendas

pblicas eram mal administradas e a Justia, o comrcio e a lavoura no

floresciam , a palavra Revoluo em nada deveria amedrontar aos cidados

40

Semanrio Cvico. n. 2, 3 e 4. Bahia: [respectivamente] 8, 15 e 22 de maro de 1821. In SILVA, Maria

Beatriz Nizza da. op. cit., 1988, p. 29-32. 41

Semanrio Cvico. n. 10. Bahia: 3 de maio de 1821. In Ibid., p. 32.

30

portugueses. Nesse sentido, a Revoluo ocorrida na Holanda fora apontada como

sendo um bom exemplo, pois mudou bem quando fugiu tirania da Espanha. No

entanto, a Revoluo Francesa fora identificada enquanto uma m opo, em virtude de

ter fugido de um [mau] governo e instalado um outro [ainda] pior.42

Dentre os termos at aqui apresentados, talvez o que mais cuidado demandou

dos periodistas tenha sido o termo Liberdade. Em uma sociedade embasada na mo-de-

obra escrava, todo o cuidado era pouco na discusso de tal contedo. Para a historiadora

Maria Beatriz Nizza da Silva, o peridico Idade dOuro do Brasil se preocupou em

afastar desse termo o significado que dele fora feito durante a Revoluo Francesa.43

O Idade dOuro passou a considerar que a palavra Liberdade deveria ser entendida

como estar cada um sua vontade. No entanto, no de qualquer forma ou de qualquer

maneira. Esta mesma vontade obrigatoriamente deveria ser regulada por Leis, as

quais s nos deixa[m] o poder de fazermos aquilo que lcito e que no perturba o

Estado nem o bem ser [ou bem estar] dos nossos semelhantes.44

1.3 Surgem os primeiros questionamentos ao novo governo

A substituio do regime monrquico-absolutista por um regime monrquico-

constitucional criou em Salvador uma srie de expectativas. Com o incio da

administrao da Junta Provisria de Governo, tinha-se em mente que os mandos e

desmandos recorrentes no Antigo Regime seriam superados com a maior brevidade

possvel. Os habitantes da Bahia acreditaram que os pressupostos vinculados ao

liberalismo constitucional portugus conseguiriam eliminar os vcios persistentes desde

as administraes anteriores. No entanto, no foi bem isso o que realmente aconteceu.

Uma das primeiras medidas adotadas pela Junta Provisria de Governo foi a

instalao de uma Comisso de Censura. Segundo as consideraes apresentadas pelos

integrantes da Junta, as circunstncias existentes em Salvador impeliam a que

quaisquer gazetas, peridicos, livros e mais papis s fossem impressos a partir da

42

Idade dOuro do Brasil. n. 20. Bahia: 22 de fevereiro de 1821. Disponvel em:

http://hdl.handle.net/bv2julho/44. Acesso em: 24 de dezembro de 2011. 43

SILVA, Maria Beatriz Nizza da. op. cit., 2010, p. 690-692. 44

Idade dOuro do Brasil. n. 19. Bahia: 21 de fevereiro de 1821. Disponvel em:

http://hdl.handle.net/bv2julho/44. Acesso em: 24 de dezembro de 2011.

http://hdl.handle.net/bv2julho/44http://hdl.handle.net/bv2julho/44

31

concesso de uma licena.45

O Governo Provisrio havia encarregado o bacharel Diogo

Soares da Silva e Bivar e os desembargadores Francisco Carneiro de Campos e Joaquim

Igncio Silveira da Motta da difcil tarefa de analisar o contedo presente em cada

material que viesse a solicitar a referida concesso.

A instalao dessa Comisso acabou desagradando a muitos. Embasados nos

princpios apresentados pelo Catecismo Poltico, os habitantes da Cidade do Salvador

passaram a questionar a manuteno de elementos que iam na contra-mo das

expectativas alimentadas pelo corpo social. O amigo que professa a Constituio, por

exemplo, em carta publicada no peridico Idade dOuro do Brazil, dizia abertamente

no estar certo em que medida a liberdade de expresso poderia se manifestar. Segundo

suas consideraes, mesmo do governo se deve falar, porm com decncia e respeito,

mostrando-lhe o bem e advertindo-lhe do mal; e lembrando-lhe [sempre] o que lhe

escapa. Diante dessa situao, o missivista em destaque levantou o seguinte

questionamento: como o Governo poderia ser advertido acerca das variadas situaes

recorrentes na dinmica da Provncia se a partir da instalao da Comisso de Censura

sufoca[va] as vozes de quem fala? O amigo que professa a Constituio chegou

concluso de que o Governo deveria permitir uma liberdade de escrever ilimitada.

Somente com a presena de uma liberdade neste nvel seria possvel aos habitantes de

Salvador exprimir[em] bem os [seus] sentimentos, aclarar as idias e mostrar a

verdade to necessria ao bom andamento da causa pblica.46

Em resposta ao questionamento levantado pelo amigo que professa a

Constituio e, ao mesmo tempo, assumindo uma postura de defesa do posicionamento

adotado pela Junta, os redatores do peridico Idade dOuro do Brazil apresentaram uma

resposta um tanto quanto evasiva. Na verdade, os redatores do peridico acreditavam

que posicionamentos que chamassem a ateno do Governo para os erros e acertos

praticados durante a gesto pblica seriam bem recebidos. No entanto, no sabiam dizer

ao certo em que medida o poder de censura seria exercido pela Comisso. O que eles

podiam afirmar com preciso que um Governo novo tem a remediar males de vrias

espcies; mas por ora s lhe convm remediar os de primeira ordem, ou seja, a

45

Idade dOuro do Brasil. n. 22. Bahia: 24 de fevereiro de 1821. Disponvel em:

http://hdl.handle.net/bv2julho/44. Acesso em: 24 de dezembro de 2011. 46

Carta do Amigo que professa a Constituio. In Idade dOuro do Brasil. n. 24. Bahia: 27 de fevereiro

de 1821. Disponvel em: http://hdl.handle.net/bv2julho/44. Acesso em: 24 de dezembro de 2011.

http://hdl.handle.net/bv2julho/44http://hdl.handle.net/bv2julho/44

32

consolidao dos novos princpios constitucionais difundidos a partir da Revoluo do

Porto. O resto por si mesmo h de vir, pois o bem sempre vagaroso.47

Um outro questionamento feito ao novo Governo referia-se ao destino a ser

aplicado aos presos existentes nas cadeias de Salvador. Como um dos objetivos

principais da nova administrao pblica consistia na promoo do bem comum e

individual dos cidados, no seria pertinente que as cadeias da Capital estivessem

entulhadas de milhares de vitimas infelizes e desgraadas. Segundo afirmou o

amante da ptria, algumas dessas vtimas infelizes eram consideradas pessoas

inocentes. Diante de tal situao, fora lanado o seguinte questionamento: porque

razo se no cuida em restituir liberdade todos aqueles que injustamente foram

arrebatados dela?.

Visando a manuteno da ordem pblica, o Governo Provisrio havia solicitado

muitos cidados s armas. Muitos destes sequer possuam qualquer tipo de habilidade

ou interesses em tal ofcio. Para o amante da ptria, diante de tal necessidade, porque

o Governo no recorria aos inmeros presos presentes nas cadeias de Salvador, dentre

os quais, com efeito, figuravam pessoas experimentadas no manejo e no rigor das

armas? Alm do que, h de se considerar que um homem preso pesado ao Estado,

intil Ptria e prejudicial sociedade e at a si mesmo. E mais, as prises em

Salvador no conseguiam corrigir os homens; antes os colocavam em desesperao e

inbeis para tudo.48

Como boa parte dos presos mencionados estavam encarcerados

desde os tempos do despotismo monrquico, esperava-se do novo Governo uma posio

que viesse a lanar mo dos presos considerados inocentes e, por conseguinte, no

viesse a recorrer com tanta freqncia aos demais integrantes da sociedade.

Outro questionamento levantado pelos moradores da Capital referia-se questo

da instruo pblica. Mais um missivista se encarregou da tarefa de discutir as

mudanas necessrias ao bom andamento da causa pblica. Segundo o seu

posicionamento,

47

Resposta dos redatores ao Amigo que professa a Constituio. In Idade dOuro do Brasil. n. 24. Bahia:

27 de fevereiro de 1821. Disponvel em: http://hdl.handle.net/bv2julho/44. Acesso em: 24 de dezembro de

2011. 48

Carta do Amante da Ptria. In Idade dOuro do Brasil. n. 25. Bahia: 28 de fevereiro de 1821.

Disponvel em: http://hdl.handle.net/bv2julho/44. Acesso em: 24 de dezembro de 2011.

http://hdl.handle.net/bv2julho/44http://hdl.handle.net/bv2julho/44

33

[...] a instruo pblica a base da felicidade das naes. Os livros iluminam a

multido, humanizam os homens poderosos, deleitam a ociosidade dos ricos e instruem

facilmente todas as classes da sociedade. Mas como a instruo s se adquire por meio

de uma educao, necessrio que os meninos bebam com o leite os princpios

elementares das cincias, e que pelo menos saibam ler, escrever, aritmtica, gramtica,

etc. O governo iluminado que deseja a felicidade do povo o primeiro ramo de

administrao que deve promover, instituindo mestres pblicos e gratuitos e criando

livrarias pblicas, porque nem todos os pais de famlia tem posses para pagar mestres e

comprar livros.49

Complementando as observaes feitas pelo missivista, Silva Maia acrescentou

ainda que

Nesta cidade cada freguesia tem um [mestre rgio] com o ordenado mal pago de

120$000 por ano! Como possvel que se possam achar homens capazes, de s moral,

que se empreguem todo o dia a sofrer meninos por to limitado prmio?

Necessariamente no podem ser seno pessoas miserveis e incapazes de semelhantes

funes. Se um professor de Latim e Retrica tem 440$000, o de primeiras letras

menos necessrio e tem menos incmodo? Quem no sabe que nas primeiras letras

que se gravam profundamente na infncia os princpios da moral, o amor da religio, da

ptria. E poder-se-o encontrar homens que inspirem estes sentimentos com o ordenado

[mal pago] de 120$000!!!50

Para os habitantes da Cidade do Salvador, a questo da instruo pblica deveria

ocupar espao central nas novas polticas pblicas a serem implementadas pela nova

gesto provincial. A formao inicial, a questo salarial e o reduzido nmero de mestres

rgios em cada freguesia deveriam ter uma maior ateno por parte do novo Governo.

Em fins do sculo XVIII, Lus dos Santos Vilhena j chamava a ateno para a

importncia da educao. Segundo suas palavras,

So as aulas os seminrios de riquezas mais preciosas que [se] pode ter qualquer Estado,

so a mina mais rica, e certa, de onde se extraem os homens grandes, sem os quais no

podem subsistir os Imprios, as Monarquias, [e] as Repblicas; sem eles vacila a

Igreja, os Estados perigam, a Justia deserta, a desordem e iniqidade campeiam; mais

servios faz uma pena sociedade em um dia do que milhares de espadas em muitos

anos; pelas armas se introduzem, de ordinrio, sanguinosas guerras nos Estados as quais

nunca terminam sem o auxlio de penas doutas que pem os povos na posse e fruio da

aprazvel paz; as luzes que ilustram as naes; iluminam os povos, a cincia e as artes

com que o mundo se governa devem-se s letras, quando a sua decadncia, e total

aniquilao, se deve s armas.51

49

Semanrio Cvico. n. 1. Bahia: 1 de maro de 1821. In SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Semanrio

Cvico: Bahia, 1821-1823. Salvador: EDUFBA, 2008, p. 37. 50

Idem., p. 38. 51

Carta n VIII. Educao. In VILHENA, Lus dos Santos. A Bahia no Sculo XVIII. v. 1. Salvador:

Editora Itapu, 1969, p. 280-281.

34

O recrutamento forado de estudantes tambm incomodava aos moradores da

Capital. Em fins do sculo XVIII, Vilhena j apontava para tal prtica. Segundo suas

palavras, as aulas rgias apresentavam pouca freqncia em virtude de serem

reiteradamente invadidas por soldados. Os referidos militares arrancavam

ignominiosamente os estudantes e, como se isto no bastasse, ainda proferiam

improprios aos professores que de alguma forma tentavam obstar tal atitude. Quando

se divulgava em Salvador a notcia de [se] fazer recrutas, s permaneciam nas aulas

rgias os alunos que no passavam de dez ou onze anos de idade. Os estudantes que

haviam alcanado ou ultrapassado os doze ou treze anos eram presos para sentarem

praa.52

Esperava-se que essa dura realidade fosse subvertida a partir de um novo

posicionamento adotado pelo Governo Constitucional da Provncia. No entanto, no era

bem isso o que estava ocorrendo. Permaneciam as denncias de que estudantes em

Salvador continuavam sendo presos e engajados forosamente nas tropas de linha. Silva

Maia, por sua vez, atravs de seu peridico, insistia em defender a condio do novo

Governo, afirmando que a feliz regenerao conseguiria mudar essa mesma realidade.

Segundo suas consideraes, a instruo pblica obteria o desenvolvimento necessrio,

uma vez que o rei D. Joo VI passaria a governar a partir de uma sbia e liberal

Constituio.53

Era justamente essa uma das to esperadas mudanas pela qual ansiava

os moradores da Capital.

Os habitantes de Salvador tambm requeriam ao novo governo a resoluo do

problema que envolvia o abastecimento pblico. O po, por exemplo, continuava a

apresentar um elevado preo. Uma mal pesada libra de po chegava a custar 80 ris, o

que era considerado um roubo!. Um outro roubo descarado ocorria em relao aos

talhos da carne. Segundo o honrado pai de famlia, manda-se buscar no talho 6

libras de carne e s lhe chagam s mo 4,5. Tentando burlar esta situao, os habitantes

de Salvador recorriam com certa freqncia prtica do contrabando. Apesar de tal

conduta ser considerada como uma ao proibida pelas leis, reiteradamente os

moradores locais lanavam mo deste artifcio. Os moradores da Capital acreditavam

52

Carta n VIII. Educao. In VILHENA, Lus dos Santos. op. cit., p. 278-280. 53

Semanrio Cvico. n. 2. Bahia: 8 de maro de 1821. In SILVA, Maria Beatriz Nizza da. op. cit., 2008,

p. 41-42.

35

que, ainda que a taxa do particular fosse mais alta, como o peso exato, era possvel

equilibrar o d