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1 UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA E ETNOLOGIA NATELSON OLIVEIRA DE SOUZA "POR DIREITO DELES, INVADIRAM TODA A TERRA": Uma visão “regional” sobre os Kiriri. Salvador 2008

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

DEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA E ETNOLOGIA

NATELSON OLIVEIRA DE SOUZA

"POR DIREITO DELES, INVADIRAM TODA A TERRA": Uma visão “regional” sobre os Kiriri.

Salvador 2008

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NATELSON OLIVEIRA DE SOUZA

"POR DIREITO DELES, INVADIRAM TODA A TERRA": Uma visão “regional” sobre os Kiriri.

Monografia apresentada ao Curso de Ciências Sociais, Área de Concentração em Antropologia, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal da Bahia, como requisito parcial para obtenção do grau de Bacharel em Ciências Sociais.

Orientador: Prof. Dr. Edwin B. Reesink

Banca examinadora:

Ass: ______________________________

Prof. Dr. Edwin B. Reesink

Ass: ______________________________

Prof. Dr. Jocélio Teles dos Santos

Ass: ______________________________

Profª. Drª Maria Rosário G. de Carvalho

Salvador 2008

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A etnografia proporciona-me uma satisfação intelectual. [...] Reconcilia meu caráter e minha vida.

(Claude Lévi-Strauss, em Tristes Trópicos)

Que isso foi o que sempre me invocou, o senhor sabe: eu careço de que o bom seja bom e o ruim ruim, que dum lado esteja o preto e do outro o branco, que o feio fique bem apartado do bonito e a alegria longe da tristeza! Quero os todos pastos demarcados... Como é que posso com este mundo? Este mundo é muito misturado.”

(Guimarães Rosa, em Grande Sertão: Veredas)

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AGRADECIMENTOS

De acordo com a minha trajetória biográfica, devo expressar minha eterna gratidão, antes de tudo, a meus pais, pois seus cuidados e ensinamentos, que não foram poucos, influenciaram bastante a minha chegada até aqui, em mais uma etapa da minha vida. Certamente eles apresentavam dúvidas sobre o que eu optei fazer, e mesmo que não soubessem bem do que se tratava e as motivações que me levaram a tal, o apoio foi incondicional.

Uma vez residindo aqui em Salvador – sou do interior da bahia – agradeço aos meus familiares, interioranos também, que aqui moravam. Os meses na casa de tia Lurdinha foi uma verdadeira reunião de primos, foi lá que tive, aos 13 anos, o primeiro contato com a magia de uma estante abarrotada de livros. Mesmo sem entender bem para que tantos, aquilo me transmitia uma sensação interessante. Um impacto simbólico? Agradeço aos três primos, donos das estantes, que as apresentavam com ar incentivador: Jorge Bruno (também antropólogo), George Evergton (historiador) e João Batista (o magistrado que vivia a provocar saudavelmente a juventude da casa).

Cresci; fiz vestibular; fiz o curso certo? Confesso, tenho lá minhas inquietudes quanto a isso. O curso que fiz é mesmo para pessoas fortes e disciplinadas. Não sei se possuo e pretendo tantas virtudes. Contudo, nessa faculdade encontrei, não foram poucas, pessoas a defender que isso é cultural. Minha visão melhorou... Então acreditei e segui adiante pensando se poderia adquiri-las afrontando a minha insistente indisciplina. Adquiri? Ainda penso.

Se cheguei até aqui, agradeço sobretudo a todos os professores que tive contato e me emprestaram o melhor de seus conhecimentos, em especial, aqueles que me acolheram num grupo de pesquisa após pedido meu. É o PINEB. Agradeço à professora Maria Rosário G. de Carvalho, é difícil descrever o novo impacto simbólico que ela me causou. A Pedro Agostinho, pelo exemplo que ofereceu a tantos de humanidade. A Edwin Reesink, pela valiosa orientação em meio a adversidades; pela convivência; pelas críticas e sugestões pontuais e sempre rigorosas; pela contenção de meus exageros e ingênuas vaidades; e por me oferecer uma bolsa de pesquisa, sem a qual eu teria tido muitas dificuldades além das que tive na execução deste trabalho. Sou muito grato à família Reesink pelos incentivos.

Agradeço aos colegas da faculdade e do PINEB, que tanto compartilhamos desesperos e alegrias acadêmicas – e da vida, sobretudo. Pessoas que, se porventura ausentes, talvez eu tivesse tido algum outro tipo de destino. Arrisco-me a citar nomes, pedindo perdão antecipado àqueles que acaso não mencionar, mas que sabem que têm tanto valor quanto. Agradeço pela convivência de todos os colegas amigos que entraram em 2002, e aos colegas posteriores que passei a conviver por arte da sorte e dos acontecimentos, como Sarah Miranda, Rafael Losada, Bruno Luedy, Cloves Macedo, Cris Lobo, Luna Matos, Ana Magda, Hugo Prudente, Queila Oliveira, Tatiane Muniz... Mais uma vez, agradeço a todos aqueles que não mencionei.

Agradeço também ao CNPq, que ao me conceder uma bolsa de estudos entre 2007 e 2008, possibilitou a concretização deste trabalho. E, por fim, e não menos importante, à banca examinadora, pela compreensão e paciência em relação aos meus infortúnios com os prazos estabelecidos. E aos meus informantes, que mesmo conscientes de ser um assunto desagradável para todos, confiaram-me a palavra em dizer o que pensavam.

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RESUMO Esta é uma pesquisa monográfica sobre relações interétnicas, em Banzaê, município localizado ao norte do estado da Bahia, também habitado pelos Kiriri, povo indígena da família linguística Kariri. Eles reconquistaram seu território ao longo de um processo de retomadas (1982-1998) orientado pelos encantados, seres com os quais convivem tradicionalmente, no decorrer do qual exigiram, dos órgãos competentes, a retirada total dos não-índios ali estabelecidos mesmo após a demarcação oficializada em 1981. O foco da pesquisa incidiu sobre esses acontecimentos e as transformações sociais decorrentes. O seu principal objetivo foi elaborar uma análise sobre as categorias classificatórias, estereótipos e as narrativas das experiências vivenciadas pelos não-índios no território indígena, mediante uma amostra aleatória que possibilitou desvelar outras perspectivas do sistema de relações interétnicas, das disputas pela terra, das representações sociais construídas pelos posseiros sobre os Kiriri e da sua nova condição de desintrusados da Terra Indígena. Palavras-chave: Território – Alteridade – Representações Sociais – Não-Índios – Kiriri.

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SUMÁRIO Introdução .................................................................................................. 07 Aspectos metodológicos da pesquisa .................................................... 12 I – Uma revisão teórica: processos de reconfiguração das relações interétnicas entre Índios e estratos da “sociedade nacional” .............. 15 II – Recapitulando assimetrias: breve trajetória sócio-histórica do povo indígena Kiriri ............................................................................................. 26 III – A entrada em campo ........................................................................... 34 IV – Vivenciando assimetrias: balizando as atuais relações interétnicas em Banzaê .................................................................................................. 46

IV. 1 Da questão da terra ...................................................................... 52 IV. 2 Das relações com o Estado: persistência da tutela? ........................ 56 IV. 3 Da mediação do passado e futuro .................................................. 60

IV. 4 Das diferenças culturais ................................................................ 63 Ao modo de conclusões ............................................................................ 68 Bibliografia ................................................................................................. 71 Anexos

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Introdução

A primeira vez que estive em Banzaê1 foi em janeiro de 2007, enquanto

estava em férias da rotina acadêmica e prestes a matricular-me na disciplina

Técnicas de Investigação e Análise em Antropologia, na qual teria que elaborar

um projeto de pesquisa, requisito parcial para os que optam por fazer o

bacharelado num curso superior. Teria que pensar num tema que me

estimulasse e numa problemática para desenvolvê-lo, pensei nos temas

recorrentes sobre alteridade, dos estereótipos e estigmas que acometem as

minorias étnicas. No meu caso, pensei a questão dos povos indígenas, e decidi

por investigar na sede do município de Banzaê, a possibilidade desta constituir

um potencial campo de estudo devido a sua peculiar proximidade a uma Terra

Indígena (doravante TI) em relação a outros municípios da região2. Como um

exemplo do que refletia na ocasião: o contato com a TI Kiriri é inevitável para

os habitantes de Banzaê, pois o principal acesso à cidade passa por ali. Assim,

refletia, naquele momento, que até em possíveis situações de conflito

1 Ver localização nos anexos, p. 74-75. Banzaê situa-se no nordeste da Bahia, compondo a região de Planejamento do Nordeste e a Região Administrativa de Cipó, como também, a micro região homogênea de Ribeira do Pombal, possuindo uma área de 221 Km². Limitando-se com os municípios de Cícero Dantas ao norte, Ribeira do Pombal a leste, Tucano ao sul e Quijingue a oeste, localiza-se a uma distância de 296 Km da capital do Estado e a 42 Km do município de Ribeira do Pombal. Tem a sede as coordenadas geográficas: Latitude 10º35` sul e Longitude 38º37` e encontra-se a uma altitude de 350m. Foi criado pela Lei Estadual n. 4.485 de 24 de fevereiro de 1989, publicada no Diário Oficial de 25 de fevereiro de 1989. Em 1990, o Governo Federal, através da Presidência da República, reconhece as terras do aldeamento Kiriri como de ocupação tradicional e permanente indígena, sendo a demarcação finalmente homologada através do Decreto nº 98.828 de 15 de janeiro de 1990. Banzaê, palavra de origem Iraniana, era o sobrenome do primeiro morador que se chamava Zé Banzaê. (Cf. http://www.banzae.gov.br) 2 No mapa anexo, p. 75, é possível ver o município de Banzaê limítrofe a TI Kiriri e a segunda sede (juntamente com Ribeira do Pombal) de município mais próximo, Cícero Dantas ao lado direito do mapa. A diferença de distância das três cidades em relação a TI já propicia a existência de representações sociais diferenciadas, com discursos que constroem a imagem do outro (o indígena, no caso, o Kiriri) seguindo diferentes concepções.

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interétnico, o contato e a mediação entre eles seriam compulsórios3, não ou

pouco havendo chances para uma não-convivência momentânea por

acautelamento. Enfim, começava a perceber ali, mesmo que de forma ingênua

por conta da minha condição de neófito, uma situação cronicamente delicada

por conta das visíveis diferenças culturais.

A escolha recaindo sobre o tema indígena não foi acidental, muito

menos oportunista. Naquela ocasião, eu estava particularmente afetado e

sensibilizado por conta do aprendizado das aulas de Antropologia das

Sociedades Indígenas, ministradas pelo professor Ordep Serra no ano de

2006. Em seus ensinamentos pude perceber a urgência dos infindáveis

problemas que as afligem, escolhendo um deles para ensaiar uma

contribuição. Sem mais delongas, adentremos no tema e problema desta

pesquisa.

Os Kiriri, até meados da década de 70 do século XX4, eram classificados

como “caboclos”, hoje, eles são reconhecidos índios com suas terras

demarcadas e, sobretudo, com sua cultura também “demarcada”

simbolicamente, através da introdução de novos elementos – como o Toré –

que, por sua vez, definiram uma nova organização política e religiosa peculiar,

(re)constituindo assim, os seus sinais diacríticos perante a sociedade não-índia

ali envolvente. Esta reformulação tencionou as fronteiras interétnicas,

3 Alguns informantes me tiraram da solidão na reflexão e confirmaram espontaneamente, nas nossas conversas, essa preocupação com o acesso à cidade pela Terra Indígena, indagando sobre como seria se houvesse um conflito em grandes proporções. 4 Cf. Nascimento (1994, p.42): “A categoria "caboclo" introjetava, nos índivíduos por ela designados, um sentido de sujeição e baixa auto-estima, o que se percebe claramente, hoje em dia, na forma agressiva, mas também jocosa, como os kiriri retrucam, ao serem interpelados pelo termo: "- somos índios, e não caboclos". De fato, o termo "caboclo" não parece ser mais, hoje em dia, tão recorrente quanto se depreende das informações de Bandeira (Ib.), que esteve na área no fim dos anos sessenta. É inegável esta menor recorrência entre os próprios kiriri atualmente. Mas o mesmo também se dá, supomos, embora em menor grau, entre os regionais com que convivem diariamente nos mercados, bares e feiras de Mirandela, também comparando com a mesma fonte”.

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sobretudo, porque envolveu alteração na disposição da ocupação territorial

entre índios e não-índios, através da exigência de retirada total dos não-índios

estabelecidos dentro da área reivindicada. Por conta disso, houve, à época,

acirramentos preocupantes5 nas relações entre os Kiriri e posseiros

estabelecidos nas terras reivindicadas pelos primeiros, assim, reforçava-se

nessa ocasião, algumas atribuições alteritárias negativas, por parte dos

segundos, ao povo indígena em contenda.

Identificado este potencial problema, nessa ida a Banzaê, objetivei,

portanto, investigar algumas representações sociais. Neste caso, das

representações sociais dos não-índios residentes na sede desse município

sobre os vizinhos indígenas. A minha finalidade, então, foi compreender - a

partir da vida cotidiana desta cidade; e situando-me muitas vezes em campo

como um mero visitante, que veio de uma cidade vizinha para conhecer a

região, por consequência, a cidade em questão - o modo pelo qual a cultura e a

etnicidade Kiriri é conformada, interpretada e manifestada pelos não-índios,

além de ex-posseiros residentes ali, em sua qualidade de causa, dentre outras,

do processo de reorganização social Kiriri através do acionamento de uma

“honra étnica”, como afirma Weber (1999), por parte destes que, por sua vez,

operam uma “resposta à situação social em que se encontra”, como

complementa Goffman (2008). Noutros termos, o fim deste trabalho foi trazer à

tona elementos das relações sociais assimétricas, estabelecidas no tempo e no

espaço entre índios e não-índios, a partir das ações discursivas dos não-índios.

5 Como exemplo (antecipo ao leitor) de elementos externos que contribuíram para este grave acirramento, podemos citar alguns setores do próprio poder público, como o Instituto de Terras da Bahia (Interba) que, extrapolando suas atribuições legais e desafiando todas as evidências apresentadas, insistiu com um relatório frágil, em termos científicos e documentais, que questionava as reais dimensões definidas pelo estudo demarcatório e “exigia” uma área bem menor que a demarcada (V. Reesink, 1988, p. 41-49).

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Para isso, estruturei os capítulos de um modo que sugerisse a minha

trajetória, das primeiras visitações aos livros, em busca das categorias

analíticas/conceitos, até o meu retorno do trabalho de campo trazendo comigo

uma bagagem de dados coletados a olhos vistos.

O capítulo I é estritamente voltado à revisão teórica, ou seja, à

garimpagem dos conceitos relevantes ao tema deste trabalho.

O capítulo II constitui uma análise diacrônica, construída basicamente

em gabinete, através de documentos e acervo bibliográfico, e anterior ao

trabalho de campo, no qual o leitor poderá visualizar, de forma resumida, a

constituição das relações sociais e sua “assimetrização” através do

desequilíbrio de forças nos interesses sociais em jogo entre índios e não-índios

naquele local.

Já o capítulo seguinte é uma exposição da minha entrada em campo, no

qual descrevo uma parte da minha primeira experiência sistemática de trabalho

de campo, colocando trechos do meu diário e uma breve descrição do lugar.

O último capítulo é basicamente um produto do meu retorno. O que eu

trouxe de lá. Como principal capítulo, volto-me basicamente à análise das

observações feitas e às entrevistas realizadas com não-índios do lugar. De

certo modo, este capítulo está estreitamente conectado ao capítulo II, pois traz

à tona a disposição atual das históricas relações interétnicas, elementos de

discursos e a condição de desintrusados6 dos não-índios de Banzaê.

Necessário aqui dizer que, imediatamente me reconheci pretensioso,

pela complexidade evidente do tema. E, ainda assim, lancei-me ao desafio,

6 De desintrusão ou extrusão - embora este último termo seja indicado o correto, ainda é possível verificar ocorrências de uso do primeiro, termos comumente utilizados nos processos administrativos e executivos do poder público, e que se refere à retirada de sujeitos ou coletivos de um determinado território que por direito não lhes pertence.

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mesmo estando lúcido de que pouco sabia se seria pertinente, quiçá

inteligente, lançar-me a uma difícil situação, por falta de experiência, que

poderia me levar a uma grande “perda” de tempo, de recursos e, sobretudo, de

semestre acadêmico, caso faltasse o necessário rigor científico. Reconheço

que não sei muito, apesar do esforço. Não obstante, lancei-me ao risco tendo a

certeza que, de todo modo, a execução deste trabalho me traria um especial

ânimo, pelo esforço, e um grande aprendizado, sobretudo para o que não se

deve repetir. Refiro-me a todos os tipos de erros (que não foram poucos)

identificados, com a imprescindível ajuda do meu orientador, antes de redigir e

redigindo, finalmente, esta monografia. Introduzamo-nos, portanto, a ela.

Comecemos pelas considerações metodológicas.

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Aspectos metodológicos da pesquisa

O Estudo do grupo civilizado ou português só nos importou na medida em que, através dele, pudéssemos obter uma percepção comparada do material. Sem um conhecimento mínimo do grupo não poderíamos verificar as hipóteses formuladas, nem delimitar em quê e como o grupo caboclo possui especificidade. (Bandeira; 1972; p.14).

Nesta sua explanação sobre a metodologia de trabalho de campo

utilizada, Maria de Lourdes Bandeira, autora da primeira etnografia produzida

em Mirandela (Cf. Carvalho, 2005, p. 136), neste trecho, define mais

claramente a sua posição entre os dois grupos, de modo que nos possibilita

visualizar melhor o roteiro de sua permanência em campo e objetivos

específicos de sua etnografia. Tentei esclarecer em meu projeto de pesquisa

que o meu roteiro em campo seria uma tentativa de enveredar por esta via, no

sentindo de compreender de que maneira os não-índios daquele local operam

sua identidade (através do discurso) em oposição a dos Kiriri, construindo

portanto, uma análise complementar à de Bandeira. Isto por que a visão deste

grupo historicamente tido como hegemônico nas correlações de forças, ainda

foi pouco estudada e, portanto, considerada aqui de especial importância na

ampliação do nosso entendimento sobre as reações da minoria étnica em

questão.

Sobre o povo indígena, parti de uma decisão, por razões de métodos, de

que já havia subsídios teóricos suficientes na literatura antropológica disponível

sobre os Kiriri, de modo que, não permanecia como imprescindível uma

investigação de campo, ao menos neste momento, entre estes. Nesse sentido,

meu trabalho de campo se limitou ao entorno da terra indígena, espaço dos

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regionais7, por conta dos limites naturais de um jovem graduando e do limite de

tempo e análise modestos, objetivos e desejáveis que requer uma monografia

de graduação a ser executada num prazo médio de 1 ano.

A etnografia de Bandeira estabeleceu um universo de informantes em

25% de portugueses e 75% de caboclos, ficando evidente, por razões de

método, a concentração de sua investigação em um dos grupos sociais. No

meu caso, concentrei minha investigação nos regionais, não com o objetivo

principal de examinar uma especificidade cultural destes enquanto grupo

étnico, mas, suas sociabilidades na situação de contato e, a partir daí, como

estes administram, política e socialmente, sua alteridade. Nesse sentido, o meu

intuito, foi identificar e analisar nos não-índios, como eles concebem a

realidade sócio-cultural do “outro”, as narrativas sobre as experiências vividas

por eles em contato com os indígenas e de que forma emergem, sob suas

interpretações, as categorias classificatórias que traduzem a coexistência

destes com os índios Kiriri neste município; contribuindo assim, aos estudos

que examinam o sistema de relações interétnicas existente no recorte

proposto, e, porventura, contextos outros no nordeste brasileiro.

O trabalho de campo foi executado em dois períodos diferentes. O

primeiro, realizado em cerca de 7 dias, entre os meses de dezembro de 2007 e

janeiro do ano seguinte, teve alguns objetivos específicos, a saber:

1 - A construção de uma observação etnográfica sobre a estrutura física

do município (disposição das ruas e praças e suas condições, a estrutura de

serviços públicos, as características das residências e o que elas podem

7 Categoria analítica utilizada nas etnografias para designar os não-índios estabelecidos no entorno de TI’s. Importante salientar que os designados ‘regionais’ não costumam se identificarem dessa maneira, não por negação, como no caso da categoria ‘caboclo’, mas por não haver ocorrências de autodenominação com esse termo.

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sugerir para uma interpretação de natureza antropológica sobre dados sócio-

econômicos, entre outros objetivos da observação que vieram a ocorrer in actu)

sem esquecer, é claro, de recorrer a uma resumida história de formação da

jovem cidade.

2 - As pessoas e seus movimentos, notando, basicamente, o fluxo de

pessoas de acordo com determinados horários e variações de temperatura, as

características físicas como fenótipo – notando também como elas costumam

se classificar – e outros complementos como vestimentas e adereços que

conferem, ou podem conferir, os elementos culturais da região, e que

denunciam a classificação destes como “regionais”. Além de notar este fluxo de

grupos sociais de pessoas jovens e menos jovens, também, o que elas

costumam fazer em suas atividades diárias.

O segundo trabalho de campo, realizado em uma semana do mês de

agosto de 2008, foi voltado basicamente para as entrevistas casuais,

episódicas e semi-estruturadas com moradores do município e informantes-

chave selecionados na primeira incursão a campo.

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CAPÍTULO I

Uma revisão teórica: processos de reconfiguração das relações interétnicas entre Índios e estratos da “sociedade

nacional”.

Nesta monografia de conclusão de curso, parto buscando algumas

referências teóricas clássicas nos estudos de contato e etnicidade8, dando

ênfase à questão das relações interétnicas entre índios e “brancos” ou, como

ainda emergem nas narrativas de alguns entrevistados desta pesquisa:

“brasileiros”, “civilizados”, “portugueses”. Quais as recordações que os não-

índios, muitos ex-posseiros, residentes em Banzaê, mantêm hoje, quando

viviam entre os índios (outrora caboclos9)? Como eles narram a questão da

terra, a etnicidade e a cultura dos Kiriri? Como eles recontam as relações

sociais estabelecidas com um grupo etnicamente diferenciado que, num

determinado momento histórico, passam a exigir, sistematicamente, do Estado

a resolução dos seus direitos básicos?

Estas são questões fundamentais que levantei ao projetar a pesquisa

ora desenvolvida, visando recontar, porque já contado10, analiticamente, o

processo de retomada de território por parte dos Kiriri e de sua re-configuração

cultural. Muito embora, desta vez, sob o olhar do não-índio; do outro que, de

certo modo, proporciona a emergência de novos elementos que

complementam os registros feitos até então, por outras etnografias elaboradas

8 Caso o leitor não esteja familiarizado com as pesquisas antropológicas, é necessário dizer que, a partir deste capítulo, será necessário manter em mente as categorias analíticas apresentadas aqui, pois são elas que norteiam a análise e argumentação de um trabalho antropológico. 9 Aqui cabe mais uma importante nota a respeito desta categoria: assim como o termo ‘tapuia’, o ‘caboclo’ é uma denominação genérica oriunda do imaginário da sociedade nacional. Em síntese, é uma denominação etnocêntrica em que pretende definir um índio ‘misturado’, ou seja, que não é mais um ‘índio de sangue puro’, muito menos um ‘branco’. Sendo assim, uma categoria carregada de preconceito. (Cf. Reesink, 1983, p. 130). 10 V. Nascimento (1994) e Brasileiro (1996).

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no locus dessa pesquisa e que, sobretudo, possibilita desvelar, em outro nível

e modos de interpretações, o sistema de relações interétnicas daquele local e

os problemas decorrentes das diferenças sociais e culturais.

Das referências teóricas as quais me dirijo, tomo como ponto de partida

algumas noções sobre identidades sociais, identidade étnica, identidade

nacional e processos de identificação. Recorro, inicialmente, ao sociólogo

Claude Dubar (2005), para pensar as identidades sociais como processos, em

um esquema permanentemente dual, em que a identidade se figura como uma

combinação entre a identidade para o outro (atos de atribuição) e a identidade

para si (atos de pertencimento) que, respectivamente, traduz-se em como um

sujeito e/ou povo são definidos por outros agentes, povos e instituições

externas à sua organização social; e como um sujeito e/ou povo se

autodefinem de acordo com a trajetória vivida, a qual Dubar denomina de

identidade biográfica. Nesta combinação em que implica, segundo ele (op. cit;

p. 140), numa negociação identitária, pode haver desacordos entre a atribuição

que se dá ao sujeito ou grupo e a sua autodefinição. Como exemplo desses

desacordos, pensemos as categorias sociais recorrentes de índios

“misturados”, “caboclos”, “aculturados”, presentes tanto em alguns discursos

oficiais quanto no senso comum, em que utilizam-nas sempre que necessitam

– por alguma razão objetiva como a disputa pela terra entre índio e não-índio e

supressão de responsabilidades estratégicas, como os pedidos de extinção de

aldeamentos pela administração local, no século XIX – desapreciar a condição

étnica que o outro reivindica para si. A isso, Bourdieu (2007) se refere como

parte da luta das representações ou classificações, no sentido de “lutas pelo

monopólio de fazer ver e fazer crer, de dar a conhecer e de fazer reconhecer,

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de impor a definição legítima das divisões do mundo social e, por este meio, de

fazer e de desfazer os grupos” (ib, p. 113).

Weber (1999) apresenta-nos uma característica importante dessas lutas

pelo monopólio numa dificuldade oriunda nas diferenças, segundo ele, “todas

as diferenças de ‘costumes’ podem alimentar, em seus portadores, um

sentimento específico de ‘honra’ e ‘dignidade’” (op. cit; p. 269). Nesse

processo, dentro das relações sociais estabelecidas no que ele chama de

comunidade de intercâmbio social11, em que há conflitos de interesses

evidentes, ele afirma que “decisivo é, muitas vezes, além do caráter insólito dos

hábitos discordantes, o fato de que não se compreende o “costume” diferente

em seu “sentido” subjetivo [...]” (op. cit; p. 269). Assim, o que examino é essa

dificuldade, neste caso por parte dos regionais, em entender e aceitar a

construção subjetiva (e objetiva) do “outro”, os Kiriri, referente à realidade

social do lugar. O que culmina em conflitos de interesses sociais como os que

propus investigar neste trabalho, como os discursos sobre a identidade

reassumida e a terra reivindicada pelo “outro”. Mais um conceito que Weber

nos aponta, e que considero importante a este trabalho, é o sentimento de

comunidade ou comunhão étnica que, ao fortalecer-se, entendo que também

reforça, por consequência, as diferenças, em termos de sinais diacríticos, em

relação aos grupos vizinhos. Este sentimento se apresenta

[...]em virtude de semelhanças no habitus externo ou nos

costumes, ou em ambos, ou em virtude de lembranças de

colonização e migração, nutrem uma crença subjetiva na

11 Podemos, neste caso, aplicar este conceito à comunidade que engloba os Kiriri e os regionais, pois não há isolamento total entre os dois grupos, havendo assim algum intercâmbio social e econômico entre eles, mesmo com a manutenção da fronteira étnica. O que não anula os conflitos decorrentes desta manutenção.

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procedência comum, de tal modo que esta se torna importante

para a propagação de relações comunitárias, sendo indiferente

se existe ou não uma comunidade de sangue efetiva (Weber,

1999, p.270).

A partir daí, entendo que o mesmo sentido atribuído à comunhão étnica

parece servir a uma noção de comunhão, também, quando nos referimos à

identidade nacional. Em relação a este conceito recorro à noção de Cardoso de

Oliveira quando diz que

Tanto a identidade étnica como a nacional são constructos com

um propósito: no caso da identidade nacional, a coesão de um

país por meio da narração de sua cultura e de sua história, e

no caso da identidade étnica, a narração a partir da margem da

história e da cultura daqueles que precisamente são excluídos

da narrativa da primeira. (Cardoso de Oliveira, 2006, p. 95)

A identidade étnica elaborada num contexto de exposição entre povos e

culturas (no caso dessa pesquisa, entre uma minoria étnica e um estrato da

sociedade nacional) pode implicar numa ação de reivindicação de direitos

“iguais” através das diferenças, neste caso, quando uma sociedade nacional

admite uma composição pluriétnica de sua sociedade, como é o caso do Brasil

em sua constituição de 1988 na qual se passa a admitir mais precisamente os

direitos indígenas nos artigos 231 e 232.

Para mantermos mais claro o conceito de etnicidade e seus processos –

ora situacional, ora aparentemente resolutos –, que possibilita uma identidade

étnica, Cardoso de Oliveira sintetiza a forma mais utilizada na literatura das

Ciências Sociais, como “envolvendo relações entre coletividades no interior de

sociedades envolventes, dominantes, culturalmente hegemônicas e onde tais

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coletividades vivem a situação de minorias étnicas [...]” (2006, p. 89). Um outro

conceito que ele recorre, inspirado em Barth, como elementar, i.e., inerente à

noção de identidade étnica, é a identidade contrastiva, que seria “[...]uma

identidade que surge por oposição, [...] negando a outra identidade [...]. Nesse

sentido, [...] como sistema de representações.” (1976, p.5-6), ou seja, com

sinais diacríticos e uma ideologia étnica; com uma configuração de estereótipos

sobre si mesmo e a parte oposta (Cf. Cardoso de Oliveira, 1976) num sentido

de suprimir desigualdades e/ou equilibrar as forças no jogo de interesses nas

relações sociais.

Entre os registros etnográficos disponíveis sobre a região de Ribeira do

Pombal e Banzaê, onde habita grande parcela dos Kiriri, é freqüente a

ocorrência de categorizações e questionamentos por parte de ambos os grupos

sociais, índios e não-índios, baseada em um sistema de oposições e

“essencializações” do outro, sobretudo quando os registros se referem à

origem, hábitos, às concepções de ecossistema local e manejo da terra do

outro, em síntese, à constituição moral do outro. Sobre essas atribuições

categóricas, que entendemos abranger tanto as categorias atribuídas pelos

outros quanto aquelas de auto-definição, assim como as categorias jurídicas,

Barth diz:

Uma atribuição categórica é uma atribuição étnica quando

classifica uma pessoa em termos de sua identidade básica

mais geral, presumivelmente determinada por sua origem e seu

meio ambiente. Na medida em que os atores usam identidades

étnicas para categorizar a si mesmos e outros, com objetivos

de interação, eles formam grupos étnicos neste sentido

organizacional. (Barth, 1999, p.193-194).

20

Uma outra categoria teórica que tenho recorrido e refletido é a noção de

sociabilidade em Simmel, muito embora, qualificada com o adjetivo

‘assimétrica’. Assim, ao invés de somente utilizar uma categoria teórica, talvez,

mais abrangente como relações sociais assimétricas, utilizo a idéia de

sociabilidades assimétricas com o intuito de delimitar o sentido dessas relações

estabelecidas entre índios e não-índios. Justifico, antes, citando Bruce Albert

quando diz – subsidiado, em sua nota de rodapé, por outros antropólogos –

que

[...] já é tempo de nos livrarmos de uma vez por todas da noção

de resistência, sobretudo, pelo efeito de realidade que ela

parece conferir a seu oposto, ou seja, a suposição de existir

algo como uma “submissão cultural”. O fenômeno da

“canibalização” do encontro colonial, que aqui nos interessa,

situa-se, obviamente, além desta oposição

resistência/submissão. Nenhuma sociedade, desde que

consiga sobreviver, pode deixar de capturar e transfigurar em

seus próprios termos culturais tudo que lhe é proposto ou

imposto, até nas mais extremas condições de violência e

sujeição, independentemente de qualquer confronto político.

(Albert, 2002, p. 15).

Nesse sentido – ao contrário de, não diria ‘nos livrarmos’ mas, limitarmos

as relações a uma “resistência/submissão cultural” – recorro, brevemente, à

noção de sociabilidade em Simmel, apoiada a essa qualidade de assimetria

que tenho julgado fundamental. Não para opor mas para utiliza-la

alternadamente ao conceito mais utilizado que consiste em relações sociais

assimétricas que indica uma relação em que um grupo exerce algum tipo de

imposição sobre o outro, verticalizando a relação (Cf. Cardoso de Oliveira,

21

1976, p. 55), mas para delimitar melhor o sentido que utilizo no decorrer desse

trabalho, a minha necessidade por utilizar o termo sociabilidade consiste em

incluir, também, aquelas relações entre índios e não-índios, que mantêm um

certo grau de reciprocidade (sem imposições/submissões) num determinado

espaço-tempo, que a depender da situação pode implicar, posteriormente, em

hierarquização das relações, mas nem sempre assim sendo. Segundo Frúgoli

Jr. (2007), tal conceito criado originalmente por Georg Simmel (2006, p. 59)12

veio a ser posteriormente re-significado num diálogo entre a Sociologia e a

Antropologia, sobretudo a antropologia urbana. Sobre a concepção de Simmel,

Frúgoli Jr. (op. cit) afirma poder ser entendida, nestes casos, como

um tipo ideal entendido como o “social puro”, forma lúdica

arquetípica de toda a socialização humana, sem quaisquer

propósitos, interesses ou objetivos que a interação em si

mesma, vivida em espécies de jogos, nos quais uma das

regras implícitas seria atuar como se todos fossem iguais

(Frúgoli Jr., 2007, p. 9, grifo meu)

Assim, podemos pensar que as relações sociais assimétricas emanam

deste “social puro” à medida que os interesses pessoais e/ou coletivos são

postos nesses jogos? Como um exemplo etnográfico no locus dessa pesquisa,

recorro a uma situação de outrora, em que a relação entre índio e não-índio

12 Simmel (2006, p. 59-82) não parece definir ‘sociabilidade’ como um conceito fechado, antes, traça suas características mais elementares. Para compreender – ou tentar, pois reconheço não ser um autor de tão fácil leitura – é necessário antes partirmos de seu conceito de ‘sociação’ que constitui a forma pela qual os indivíduos, em razão de seus interesses, se desenvolvem conjuntamente em direção a uma unidade, o que seria a ‘sociedade’. A sociabilidade, nesse sentido, seria as disposições pelas quais estas ‘sociações’ se manifestam. Assim, sociabilidade está contida no processo de sociação. Em duas sociedades que se encontram, assim como indivíduos estranhos que estabelecem contato pela primeira vez, o primeiro ato é o ‘jogo’, o processo de reconhecimento mútuo que antecede a união ou o conflito – “assimetrização”. Como exemplo ilustrativo, podemos citar o jogo de atração dos índios isolados efetuados por sertanistas, através da oferta e troca de presentes, parece ser esse um caso de disposição mútua para a concretização de uma nova ‘sociação’.

22

era, entendo assim, predominada por sociabilidade, muito embora imbuída de

estratégias de ação, como neste caso relatado abaixo por Bandeira, em que

havia constantemente casamentos exogâmicos consentidos mas, sem uma

previsão clara dos prejuízos futuros que poderiam ser causados por outras

intenções do não-indio, como ganhos com a terra por vias mais “fáceis”.

Vejamos como ela relata:

“A terra, entre os caboclos, se transmite por via matrilinear,

enquanto que o direito de dispor da mesma se reserva ao

marido. Isto é, numa família cabocla, quando há um

casamento, a parcela produtiva dos recém-casados em geral,

se localiza na terra da mãe da noiva mas o marido tem o direito

de vender a terra que coube à sua mulher. O resultado disto

nas relações caboclo-português é altamente positivo para o

grupo dominante, na medida em que salvaguarda os direitos do

marido português, em casamentos exogâmicos. Verificamos

muitos casos de concubinato temporário entre português e

cabocla. O nôvo casal passa a residir na terra da noiva e o

marido vive ali algum tempo, o suficiente para desfazer-se da

terra e abandonar mulher e filhos”. (Bandeira,1972, p.41).

É a partir de “falhas estruturais” como a explicitada acima, do sistema de

casamento exogâmico e transmissão de parcela da terra que – num processo

de identificação dos eventuais problemas sociais, por eles próprios e agentes

externos de apoio – podemos situar e justificar bem, além desta, outras de

suas demandas históricas. As outras são basicamente: necessidades de

reconfiguração das relações de trabalho, não se submetendo mais às regras

dos “brancos”; alteração das práticas religiosas adotando outras consideradas

genuinamente indígenas, em detrimento da participação como tocadores de

23

Zabumba13 nas tradições católicas locais, prática que estava contaminada de

relações desfavoráveis aos índios nas relações interétnicas (V. p. 61);

intervenções na lógica do sistema de compadrio, pois não representava

nenhuma vantagem estabelecer esse tipo de parentesco com os “brancos”

diante dos preconceitos sofridos, enfim. Estas práticas, até certo ponto, eram

recíprocas na medida em que eram aceitas, configurando certa sociabilidade.

Pode-se presumir, no entanto, que estas relações estabelecidas pelos Kiriri

consistiam numa estratégia forçada com intuito claro de amenizar sua situação

de pobreza, mas é difícil afirmar que envolvia a totalidade dos Kiriri, afinal, o

faccionalismo entre eles, que persiste até o presente, diz respeito, também, a

uma parte não aceitar a ruptura total das relações com os não-índios, o que

reforça a idéia da existência de uma sociabilidade presente ali. Contudo, o jogo

de relações por essa via, digamos, mais pacífica, se rompe quando a

percepção dos Kiriri se aguça (apoiada evidentemente em suas históricas

memórias, ricas de desgostos experimentados nas relações interétnicas, como

a guerra de Canudos e a ocupação de seu território) com a evidência de que

estas práticas traziam graves perdas sociais e materiais (V. Brasileiro, 1996,

Cap. 4).

Estes fatos detalham bem a lógica de sua re-afirmação identitária

através de uma longa reforma estrutural da organização social, como a

ocorrida, por exemplo, com o advento do Toré14, nas três últimas décadas do

13 Não que abandonassem o catolicismo, somente revisavam a forma de participação de modo que houvesse mais autonomia diante de suas próprias crenças. “Inquiridos sobre sua "religião", sua resposta é, de pronto, que são "católicos". Participam de missas, novenas, procissões e grupos de penitentes. Mas tudo isso não os impede de se apegar à sua ciência, de se religarem aos cabocos dos tronco véio, a seus encantados, como se ainda repetissem as palavras do principal dos índios "Quiriris" ao missionário jesuíta, como nos relata a ânua de 1693 já citada no capítulo II: "queremos ser cristãos, mas queremos também conservar os costumes dos nossos antepassados" (Cf. Nascimento, 1994, p. 190). 14 Dança ritualística disseminada em quase todos os povos indígenas do nordeste brasileiro. Constitui um fenômeno complexo ao qual os povos indígenas operam, cada qual com sua gramática, a sua identidade,

24

século XX, que funcionou como uma espécie de guia em todas as nuances da

vida social intraétnica e interétnica, no sentido de implantarem um “regime de

índio” (V. Carvalho, 1994), cujo intuito seria a solução dessas dificuldades

históricas, uma vez tendo em vista as novas perspectivas de vida

proporcionadas pelo reconhecimento constitucional do Estado, consolidado em

1988, que, por sua vez, exigia critérios definidores de indianidade como uma

continuidade da cultura de seus antigos antepassados15.

Nesse sentido, os Kiriri passam a reagir com rigor em relação a sua

situação sócio-histórica, nas duas últimas décadas do século XX com as

retomadas de território, redefinindo os limites das relações sociais interétnicas

em prol da sua organização e coesão social, distinguindo o que seria permitido

do não-permitido nas relações entre índios e não-índios para, no mínimo, ter

garantido a resolução de seus problemas sociais, materiais e estruturais

decorrentes dessas assimetrias.

Por fim, a análise do material etnográfico coletado em campo, das

contextualizações históricas de conformação da etnicidade Kiriri (próximo

capítulo), das narrativas das experiências vivenciadas pelos não-índios

compelidos a sair de território indígena, daqueles que convivem com os

indígenas no dia a dia, e o conjunto dos acontecimentos que desvelam as

relações interétnicas estabelecidas na região da pesquisa, será realizada

através das intervenções, sempre que se fazer necessário, dessas categorias

teóricas fundamentais aqui explicitadas. Tendo como objeto de investigação, as

versões dos acontecimentos sob o olhar de uma amostra daqueles que tiveram

atualizam suas memórias, promovem a coesão social e, sobretudo, a comunhão étnica. (V. Reesink, 2000; Grünewald, 2005). 15 Note-se a persistência de uma visão estática da cultura e identidade. É a essa visão que podemos atribuir a causa do surgimento de um regime de ‘indianidade’ entre os índios do nordeste, no sentido de que para ser índio precisa ser de determinada maneira, caso contrário não é mais índio.

25

que sair da Terra Indígena (TI): parte dos ex-posseiros, antigos moradores das

pequenas vilas localizadas dentro dela, e, hoje, estabelecidos no município de

Banzaê, locus dessa pesquisa, além de moradores do lugar que também

sustentam uma visão peculiar e influente sobre os indígenas em questão e que

são importantes para os objetivos deste trabalho.

26

CAPÍTULO II

Recapitulando assimetrias: breve trajetória sócio-histórica do povo indígena Kiriri

[...]e enquanto os brancos proclamavam que os índios eram animais, os segundos contentavam-se em suspeitar que os primeiros fossem deuses. [...], o último procedimento era, com certeza, mais digno de homens.

Claude Lévi-Strauss, 1996.

Os Kiriri são um povo indígena da família lingüística Kariri16, que antes

dos efeitos da política colonial de expansão por terra adentro do novo

continente, ocupava dinamicamente, grandes parcelas do sertão do nordeste

brasileiro. Outrora constituídos pelo imaginário colonial como “tapuias”17, o

contato com os grupos indígenas do sertão não aconteceu meramente ao

acaso, mas foi fruto de uma política de “dominação” em que o imperativo seria

o controle dos “espaços vazios18”, constituídos por todas aquelas terras ainda

por conhecer e que deveriam ser investigadas com objetivos de novos recursos

para suplementar as áureas atividades econômicas da nova colônia de

Portugal.

16 Tronco lingüístico extinto que compreendia os Kamarú, Dzubucuá, Kipea e Sapuya. (Cf. Ribeiro, 1957 apud Bandeira, 1972, p.14). 17 Segundo Pompa (2003), “O termo “tapuia” não é, obviamente, um etnônimo, e sim uma categoria colonial. O mundo “tapuia” foi pensado, desde o começo da colônia, em oposição ao mundo tupi: feroz habitante do sertão, o “tapuia” é a alteridade humana radical presente em toda a literatura do século XVI e XVIII. Nas crônicas, à extraordinária homogeneidade cultural dos Tupi da costa, se opõe a extraordinária diversidade cultural e linguística dos povos do sertão: gente “de língua travada”, segundo a célebre expressão jesuítica”. 18 “Certos autores têm proposto o estabelecimento de uma oposição espaço-conceitual entre Região Colonial e Sertão. A primeira o [...] espaço cheio, preenchido pela colonização [...]. O sertão, em troca, seria o território do vazio, domínio do desconhecido e, por isso mesmo, reino da barbárie e da selvageria que, todavia, se conhecido, poderia ser ordenado através da ocupação e da colonização, deixando de ser sertão”. (Cf. Mader apud Carvalho, 2005, p.135).

27

A ocupação, portanto, do que veio a se denominar “sertão”, foi planejada

a partir da expansão da economia pecuária concomitantemente à busca por

ouro e pedras preciosas, dividida em duas frentes de povoamento, a saber:

“sertões de dentro” e “sertões de fora”, a primeira começou do litoral rumo ao

“grande rio” denominado São Francisco e subindo rumo ao norte, e a segunda

subindo pelo litoral até o Ceará onde se confluíram (Pompa, 2001).

A nova sina de tantos povos indígenas, como os Kiriri, começa com as

primeiras resistências e impactos simbólicos (transfigurações culturais)

resultantes do encontro inevitável com estas frentes de expansão e, sobretudo,

com a estratégia política dos descimentos e aldeamentos19, afinal, os

portugueses já tinham conhecimento através dos povos Tupi do litoral, da

existência de povo bravio habitando os sertões (muitos deles tradicionais

inimigos dos nativos litorâneos), e que, portanto, poderiam ser um entrave ao

novo projeto de expansão territorial. É possível presumirmos que o dito pelos

Tupi aos portugueses sobre os “tapuias”, constitui, também, elemento

importante no reforço à construção de um imaginário receoso e conflitante, logo

de antemão, sobre os habitantes dos sertões, dispondo os novos “sertanistas”

de “boas” justificativas diante da corte portuguesa, – que possuía restrições e

uma legislação indigenista quanto a liberdade indígena – para a necessidade

de mantê-los sob o jugo do novo empreendimento. Pompa nos esclarece bem

o dilema dos indígenas dos sertões nessa ocasião, quando diz que

os descimentos realizados pelos jesuítas para fins de

catequese cruzavam-se e confundiam-se com as expedições

19

Os descimentos consistiam na busca e deslocamentos de povos inteiros para novas aldeias (aldeamentos) próximas aos estabelecimentos portugueses. (Perrone-Moisés, 1992, p.118).

28

de apresamento20, criando um clima de forte desconfiança

entre os indígenas, muitos dos quais, porém, resolviam por

outro lado procurar proteção nas aldeias jesuíticas. (Pompa,

2001, p. 204).

Nesse sentido, podemos afirmar que os Kiriri sofrem grande impacto

etno-ambiental com o estabelecimento de aldeamentos, na bacia do Itapicuru21,

criados pelos jesuítas no início do século XVIII, sob alvará régio que doava 1

légua em quadra de terras para tal finalidade. Assim, sendo compelidos a

conviver numa área restrita e sob novo modus vivendi que não o tradicional,

inicia-se o enredo desse povo com base em registros históricos repleto de

assimetrias nas relações sociais e dissabores por conta de seus

enfraquecimentos étnico-culturais. O século XVIII e XIX, para os Kiriri, é

marcado pelas pressões de sesmeiros (como a família D’Ávila, da Casa da

Torre) sobre os aldeamentos, culminando com a expulsão dos jesuítas, em

1759, que passaram a ser entrave a estes senhores de gado que iam

concentrando parcelas consideráveis de terras em seus poderes; sendo esta

uma das explicações para a profunda depauperação de grande parte da

população local até então (Dantas, 2007). Com a dissolução das missões

religiosas na segunda metade do século XVIII, a administração dos

aldeamentos passa a ser civil. Daí decorrendo avanços consideráveis de não-

índios sobre as terras de missão (Brasileiro, 1996), e tornando-se ainda mais

penosa a sustentação de uma identidade étnica auto-diferenciada e

20 Expedições empreendidas por colonos para aprisionar índios e usá-los como mão-de-obra escrava. 21 Conforme Carvalho (2004) os 4 aldeamentos eram Saco dos Morcegos (atual Mirandela/Terra indígena Kiriri), Canabrava (atual cidade de Ribeira do Pombal), Natuba (atual cidade de Nova soure) e Jeru (atual cidade de Tomar do Jeru no estado de Sergipe). Ao qual a autora acrescenta: “não por acaso, na rota das boiadas e dos caminhos que conectavam o litoral ao sertão (ibid. p. 40).

29

reconhecida (Nascimento, 1994). Este mesmo autor, em sua dissertação de

mestrado, ainda afirma que nesse contexto,

Em verdade, praticamente desapareceram as unidades

étnicas, já então artificialmente constituídas em torno das

missões, pois, na sua maioria, suas "aldeias" foram dadas por

extintas pelo Estado, progressivamente, entre o final do século

XVIII e meados do XIX, quase sempre à revelia dos índios que,

por razões óbvias, nunca eram consultados quando se tratava

do reconhecimento ou não de sua condição legal de

"indígenas". (op. cit., p.26).

O século XIX foi marcado pela Lei de Terras22 e criação do Diretório de

Índios em 1846 e extinto em 1867. Ambos agravaram a situação dos indígenas

que ainda permaneciam à mercê dos interesses locais. Com as pressões da

população envolvente sobre suas terras, os índios eram, na maioria das vezes,

obrigados, quando não renunciavam inteiramente a sua identidade indígena23,

a se dispersarem das terras de missão, o que culminava com os pedidos de

extinção de aldeias tornando estas terras devolutas e prontas a serem

adquiridas “legalmente” (pela lei supracitada) pelos não-índios. Um ofício

escrito pelo Conselheiro do Estado, Ministro e Secretário do Estado dos

Negócios do Império, para o presidente da província, datado de 11 de agosto

de 1845, dá conta de contextualizar a situação assimétrica em que os

indígenas, de um modo geral, se encontravam em relação aos colonos e às

intenções do Império na gestão colonial da desigualdade (Cf. Souza Lima,

22 (Lei 601 de 18/09/1850) dispunha das novas normas do direito agrário, eliminando as práticas de sesmarias e estabelecendo a compra como único meio de acesso a terra. 23 (Cf. Cardoso de Oliveira, 1976).

30

2007). A carta, cujo conteúdo informava o novo regulamento24 para catequese

e civilização dos índios, além das atribuições dos diretores de índios, iniciava

dizendo:

Sendo um dos principaes empenhos do Governo o chamar ao

gremio da Religião, e da Sociedade, as numerosas hordas de

Indios, que vagueão pelos nossos sertoens, procurando o

mesmo Governo por este modo não só utilisar a elles

proporcionando-lhes o gozo das commodidades sociaes, mas

tambem ao Estado fazendo desapparecer as repetidas

incursões, que elles praticão com destruição de vidas, e

fazendas, e tornando productivos os seos braços, de que tanto

necessita, nas circunstancias actuaes, a nossa lavoura...25

Fica claro, neste trecho, as recorrentes insurgências de grupos

indígenas dispersos, de modo que não assistiam indiferentes ao processo de

sua exclusão dos meios de subsistência – através da progressiva

marginalização ao acesso às terras mais produtivas – e das tentativas de

supressão de seus costumes tradicionais com intuitos de transformá-los em

trabalhadores braçais úteis à nação. Nessas circunstâncias, os Kiriri, em grave

situação de sobrevivência, aderiram intensamente, em fins do século XIX, ao

movimento de Canudos (V. Mascarenhas, 1995; Reesink, 1999), uma

resistência popular-religiosa ao novo regime republicano decretado em 1889, –

cujo princípio seria uma vida com maior igualdade, fé e justiça – que atraiu uma

expressiva parcela da população empobrecida dos sertões. Com o massacre

protagonizado pelo governo aos resistentes de Canudos, os poucos

24 Decreto N.o 426 de 24 de Julho de 1845. 25 Salvador: APEB/C-P/Presidência da Província/Avisos recebidos do Ministério do Império: maç. 855. N

o FUNDOCIN: APEB/CP-------. Identificador Numérico: 00004

31

sobreviventes Kiriri retornam à região dos aldeamentos, e verificam nessa

ocasião o ponto mais crítico da ocupação de suas terras por não-índios.

Vejamos três ilustrativos e valiosíssimos depoimentos coletados (sobre o

retorno à terra de missão pelos poucos sobreviventes de Canudos) pela

pesquisadora Mascarenhas (op.cit.), para sua pesquisa monográfica. Citamos

de suas transcrições26:

“E agora foi que já tinha esse povo aqui, já estavam

tudo já manso ai foi que Zé Cili tomou conta daí dos Picos, ai ficaram nos Picos. Ai Zé Cili vendeu para esse Corrado e ai agora quando eles tomaram conta não deixaram mais os índios caçar licuri, num deixaram mais os índios caçar passarinho, um preá, nem nada. Botou os negos para pastorar os índios para eles não entrar mais nunca, caçar nada ai.” (D. Marinha, mais velha índia Kiriri)

“Só argum que fugiu para vim simbora, os mais morreram

tudo e quando eles vortaram assim que chegava aqui eles num aparecia não. Era ai escondido ai nos matos porque os outros matava.” (D. Amélia, índia Kiriri) “O povo que chegava dava de comer, de vestir, mas para trabaiar de graça na terra dos índios.” (Sobre o retorno à terra e a submissão às regras de trabalho impostas pelos novos posseiros. Sr. Zacarias – o mais velho Kiriri)

A partir da criação do SPI27, em 1910, por Marechal Rondon, que o

longo processo de reconhecimento dos Kiriri enquanto grupo étnico

diferenciado viria a se realizar, mesmo que insuficientemente. Ainda assim, foi

somente no ano de 1947 que instalou-se um Posto Indígena, quando o SPI

atende as súplicas do pároco de um município vizinho, Renato Galvão, para

que houvesse assistência aos índios em penúria. É possível visualizarmos a

conjuntura social local pós-Canudos, que, ressaltemos, pouco se difere da

26 Diante da impossibilidade, identificada na execução desta pesquisa, da coleta de novos depoimentos, é importante ressaltar aqui que a pesquisadora Maria Lúcia Mascarenhas, numa visita a ela durante nosso trabalho de campo, permitiu que se fizesse uso acadêmico de seus dados primários, a saber, entrevistas com os principais narradores da história oral Kiriri. Registro aqui nossa gratidão pela permissão. 27

Serviço de Proteção aos Índios, criado pelo Decreto n.º 8.072, de 20 de julho de 1910.

32

conjuntura local anterior que levou a população empobrecida ao conflito com o

regime republicano, entenda-se, concentração progressiva das terras mais

produtivas nas mãos de poucas famílias de fazendeiros (Cf. Sousa apud

Dantas, 2007, cap. 1). Através da detalhada etnografia de Bandeira (op. cit.),

realizada na década de sessenta do século XX, podemos visualizar a

permanência de uma estrutura pujante de coronelato que demonstrava uma

continuidade do assimétrico ordenamento territorial presente desde Império, e

que, portanto, tornava áspera qualquer possibilidade de melhorias significativas

na condição de vida da maioria da população, em campo, ela refletia:

Frente à divisão fundiária do município como explicar o

coronelato? Ainda pelo latifúndio. A família tem grandes

propriedades em outros municípios e no vizinho Estado de

Sergipe. O regime de pequena propriedade vem beneficiá-lo,

pois detém o capital circulante e as fontes de assistência ao

produtor como financiamentos bancários, assistência técnica,

etc. [...] Aos pequenos produtores e criadores não resta melhor

alternativa senão submeter-se ao “coronel”. (Bandeira, op. cit.

p.33).

Portanto, são nessas condições adversas de somadas assimetrias nas

relações sociais que, em fins da década de 70, os Kiriri passam a se

reorganizar politicamente com maior rigor, sob a liderança do cacique Lázaro,

re-elaborando sua cultura28, colocando em pauta a etnicidade do grupo e, por

28

João Pacheco de Oliveira (2004) utiliza, o conceito de etnogênese em referência a estas re-elaborações culturais, o que não é, de todo, um conceito unânime, pois o conceito presume a origem, ou reinvenção de uma identidade étnica que há muito não era mais operada. Para alguns autores que problematizam tal conceito, o contraste cultural entre índios e não-índios no Nordeste, mesmo que com maior integração devido à longa história de contato nessa região, sempre esteve bastante visível. Para Carvalho (2005), por exemplo, a baixa distintividade cultural dos índios no Nordeste é apenas aparente.

33

fim, executando sucessivas retomadas (1979-1998)29 do seu território

historicamente ocupado, que não cabe examinar aqui, pois já o foi por

Nascimento (1994) e Brasileiro (1996). Finalizaremos este capítulo somente,

conquanto relevante, com um aspecto, como ilustração ao leitor, das

retomadas. E que nos importa aos objetivos aqui tratados, que incide no campo

de forças interétnicas que desnivelam as relações sociais e o campo das

reações a estas relações estabelecidas e que nos remete diretamente à idéia

de uma superioridade étnica por parte dos não-índios. “Buscando concretizar a

idéia de um projeto coletivo, inicialmente, todo o esforço das lideranças Kiriri se

concentraria no objetivo de tentar erradicar esse estereótipo de “bêbados e

preguiçosos” (Brasileiro, 1999), assim como todas as contradições identificadas

e enfrentadas por uma, se pudermos assim admitir, antropologia de sua

organização social, executada coletivamente por eles próprios. Contradições

que estão relacionadas aos estereótipos impostos pelos não-índios e que

inferiorizam, assim como criam um ambiente social desigual e constrangedor.

29 Ver nos anexos, p.81, o cronograma das retomadas elaborado por Brasileiro (2004).

34

CAPÍTULO III

A entrada em campo

Não se trata de descoberta científica, nem de enriquecimento poético e literário, sendo os testemunhos, no mais das vezes, de uma pobreza chocante. É o fato da tentativa que conta, e não seu objetivo.

Claude Lévi-Strauss, 1996.

Neste capítulo volto-me às primeiras experiências de campo, numa

tentativa de transmitir ao leitor um tanto da experiência de iniciante, como as

inquietudes, as hesitações, a construção das observações e anotações, os

momentos críticos e iluminados, enfim, um convite para que o leitor me

acompanhe no trabalho de campo, mesmo que em imaginação. No dia 11 de

dezembro de 2007 saí de Salvador, de carro, rumo a Cícero Dantas. A viagem

para Banzaê, que aconteceria no dia seguinte, só aconteceu na quinta-feira

(13/12/07). No dia anterior à viagem para Banzaê, pensei bastante em como

me procederia, afinal, era meu primeiro trabalho de campo, ou melhor, era a

minha primeira experiência de campo. Antes de adormecer li alguns capítulos

de um manual de pesquisa fazendo a seguinte reflexão, segue trechos do meu

caderno de notas etnográficas:

11 e 12 de Dezembro:

Ainda encontro algumas, talvez muitas, dificuldades de como

construirei a minha trajetória neste exercício de observação, dificuldades

de natureza tanto metodológica quanto pessoal devido a minha condição

de neófito. Quando penso que me depararei com um campo, em um lugar

relativamente estranho à minha bagagem de referências, costumo logo a

35

me questionar, com certa ansiedade, se terei êxito em ativar em mim, ao

menos em seu efeito positivo, aquilo que a Dra. Jean Carter, colega de

Roberto DaMatta, denominou poeticamente de “anthropological blues”

(DaMatta, 1987) e que é tão comum, talvez, a todos os antropólogos

profissionais. Fico a imaginar então, a carga deste fardo sobre um jovem

inexperiente que pela primeira vez tem que se defrontar – sozinho – com

uma situação que até então só era realidade nas páginas lidas nas

dependências de uma universidade. No meu caso, não é o campo em si

que soa exótico, nada disso, mas a minha “situação de campo”. Sobre

isto passei a entender que

A observação participante é um ideal que se deve procurar alcançar mas do

qual estamos sempre mais ou menos distantes à medida que a situação de

campo representa um obstáculo. Esta define-se como o conjunto de

relações complexas que se estabelecem entre o observador e seus

anfitriões. A situação de campo é uma configuração singular que depende

dos parâmetros próprios ao campo, bem como da equação pessoal do

pesquisador. (Tolra; Warnier, 1997, p. 426).

É desta equação pessoal que surge em mim o exótico neste

momento, e para não cometer o equívoco de outrora, de “exotizar” o

campo onde é feita qualquer pesquisa antropológica, tenho tentado me

observar ininterruptamente quanto a isso e acho que seja mais justo, ou

melhor, unicamente justo, dizer que o exótico esteja somente em mim e

nas minhas dificuldades no exercício do olhar.

Enfim, antes de seguir rumo a Banzaê me encontro em Cícero

Dantas, município vizinho e minha terra natal, fazendo os últimos

preparativos, as últimas leituras e a construção de alguns critérios para a

observação que farei nesta “zona liminar” que me encontrarei em breve.

O que é relevante observar num contexto urbano para o tema desta

pesquisa? Estou pensando nisto e encontrei em Claude Lévi-Strauss, um

ponto de vista que diz respeito a estas minhas dúvidas e que trata da

consciência e inconsciente na construção de modelos estruturais. Embora

não sustente, pela falta de experiência, talvez, qualquer intenção de

36

construir uma monografia seguindo as prerrogativas que caracterizam um

rigoroso estudo com base em Análise Estrutural.

A análise estrutural se choca com uma situação paradoxal, bem conhecida

pelo lingüista: quanto mais nítida é a estrutura aparente, mais difícil torna-se

apreender a estrutura profunda, por causa dos modelos conscientes e

deformados que se interpõem como obstáculos entre o observador e seu

objeto. O etnólogo deverá sempre distinguir entre as duas situações em que

corre o risco de se achar colocado. Pode ter que construir um modelo que

corresponda a fenômenos cujo caráter de sistema não foi percebido pela

sociedade que ele estuda. (Lévi-Strauss, 2003, p. 318-9)

Como apreender nas estruturas mais evidentes, algo mais

profundo e sistemático sujeito a um obscurecimento através das

representações sociais? Talvez eu esteja hesitando demais ou esteja

somente caminhando no rumo certo ao entendimento daquilo que vou

coletar. O que espero a partir daqui é que o próprio processo da pesquisa

venha me esclarecendo estas questões de principiante e me ensinando,

simultaneamente, e cada vez mais, a como recorrer à teoria

antropológica, transformando-a num permanente processo de

aprendizado à medida que vão me surgindo algumas reflexões suscitadas

nas leituras e no próprio trabalho de campo.

Após ter registrado essa minha situação de campo, que, de certo modo,

trazia-me uma incômoda ansiedade, dormi, e no dia seguinte parti. Segue o

registro do primeiro dia de trabalho, muito embora ainda considere a

observação de mim mesmo, dos dois dias anteriores, relatada acima já como

parte integrante:

13 de Dezembro

37

Rumo a Banzaê, numa quinta-feira. Dia de feira, lá. Sai de Cícero

Dantas, antes do almoço, para me hospedar numa pequena pousada em

meu destino, ao que me parece, a única da cidade. Já na estrada, indo

pela BR-110 e saindo dela por um entroncamento que dá acesso à BA-

220 que acessa tanto a Terra Indígena Kiriri como o município de Banzaê.

Após cerca de 20km percorridos, dei carona a um homem de uns 40

anos. Havia um lugar no entroncamento, à sombra, que as pessoas

costumam sentar e aguardar o transporte que faz este serviço ou solicitar

caronas a quem passa por ali rumo à cidade. Resolvi parar, já no intuito

de me aproximar das pessoas do lugar e fazer alguma amizade

interessada. Fui conversando ao longo dos 27km restantes com o homem

de voz calma. Seu nome era Gabriel30. Iniciamos com uma partida de

diálogo bem comum nestas regiões do semi-árido. “O calor está demais”,

“Está precisando chover”, etc. Até que, no decorrer da conversa, quando

revelo meus intentos, ele me revela em contrapartida, que é membro da

religião Baha’i, religião de origem persa que produziu uma série de

trabalhos sociais com os Kiriri, povo indígena localizado nesta região.

Apresentei-me dizendo o que pretendia fazer na minha estadia no

município e, com sorte, pela ocasião acidental da nossa aproximação,

consegui algumas informações superficiais, mas de bom proveito, sobre

os índios e as pessoas que tiveram que sair da reserva à época da

demarcação e retomadas. Ele, com olhar curioso, perguntou-me sobre o

quê se tratava o meu estudo e, ao explicar-lhe, se dispôs a me apresentar

alguns possíveis informantes que ele conhecia, que não eram poucos,

enquanto eu estivesse na cidade. Ainda na estrada, rumo ao nosso

destino, paramos na casa de um senhor que atende por Paulinho, e sua

mulher Marcinha, num local chamado Matinha (ponte de Curral Falso),

eles são desintrusados de Araçá (povoado dentro da Terra Indígena). Não

chegamos numa boa hora, pois eles estavam em seus trabalhos

domésticos. Paulinho nos atendeu com botas, destas que são usadas em

lavouras, e suado, parecia trabalhar na terra. Mesmo assim foi bem cortês

e se ofereceu a prestar um depoimento em outra hora logo que lhe foi

30 Nome fictício. Todos os nomes aqui apresentados são fictícios a fim de preservar a identidade dos interlocutores.

38

explicado o motivo da minha presença por ali. Após a minha breve

apresentação, marcamos um outro dia e fomos embora.

Assim que chegamos em Banzaê, minutos depois, Gabriel indicou

outra pessoa e perguntou-me se não gostaria de ir até a casa dele

naquele momento, era Sr. Daniel, de 65 anos, desintrusado de Mirandela.

Aceitei o oportuno convite imediatamente e nos dirigimos até sua

residência que se localiza no bairro Nova Mirandela31, na rua Aurina

Calazans, encontramo-lo sentado à sombra de uma árvore em frente à

sua residência. Gabriel, assim que me apresentou ao senhor, expondo os

motivos de minha presença, logo anunciou sua partida. Estava com

pressa. Permaneci sentado à sombra com Sr. Daniel e em poucos

minutos, seus familiares saíram da casa vizinha (casa do filho de Sr.

Daniel); com olhares curiosos pareciam querer saber quem conversava

com ele e por quê. Presumi que eles haviam ouvido de longe, na sala, o

conteúdo da nossa apresentação. Que eu era estudante pesquisador de

Universidade, de Salvador, e que estava ali para saber um pouco mais da

história deles enquanto viviam na área indígena. O filho, que até então eu

não sabia, que era um rapaz de mais ou menos 28 anos, ficou a observar,

de braços cruzados, nossa conversa, assim que o reparei, apresentei-me

espontaneamente a fim de resolver qualquer indício de desconfiança. Sr.

Daniel, logo em seguida, o apresentou cordialmente, ele sorriu e saiu para

trabalhar. Permaneci com Sr. Daniel cerca de 1 hora, ele me contava

seus “impasses” com a justiça para reaver a suas perdas, de que havia

tido uma reunião em Brasília recentemente com a gente expulsa.

Contava-me em tom de lamento, embora paciente, sobre as “falsas

promessas” pronunciadas pelo poder público ao povo que teve que sair

da reserva indígena, contudo, quando o perguntava sobre o conteúdo

dessas promessas, ele, de certo modo, não se mostrava à vontade para

falar destas questões, dizendo-me:

31 Bairro periférico próximo ao estádio municipal e do posto de combustível São Mateus, constituído basicamente por posseiros desintrusados do território indígena Kiriri.

39

- Eu não tenho nada contra eles, acho até que estavam certos na luta

deles lá, mas nós perdemos muita coisa, o trabalho que investimos em

nossa terra, com material de plantação, cercas... e, de repente, somos

obrigados a sair e até agora muitos não receberam indenização correta

pelas perdas que tiveram.

Não disse exatamente com estas palavras, como se aqui

estivessem transcritas, mas, lembro-me, perfeitamente, de que ele havia

me dito isto quando o perguntei das promessas ao qual ele se referia.

Mesmo com sua hesitação (ao iniciar com “eu não tenho nada contra

eles” deixando em evidência a sua posição defensiva em relação a mim,

com uma hipótese de que eu poderia está iniciando a pesquisa já com

uma premissa suspeita, portanto, para ele, equivocada, de que seu grupo

social seria contra os índios), a priori, a explicação dada nestas

condições, assim como de silêncio, repetição desnecessária, divagação,

do não-dizer, até certo ponto, consistem em elementos integrantes e até

estruturantes do discurso e do relato (Voldman, 1996, p.38). Talvez, a sua

fala revele uma tentativa de apaziguamento com os Kiriri; num certo

sentido, de tornar a relação deles menos assimétrica neste momento,

pós-desintrusão, revelando somente uma preocupação maior e imediata

com as decisões que cabe ao poder público de recompensar, de um

modo satisfatório, a perda de sua ‘propriedade privada’ e a produção

econômica advinda desta posse – diga-se de passagem, politicamente

legitimada pelo Estado até um determinado contexto das políticas oficiais

de expansão territorial e desenvolvimento econômico nacional, que supõe

ser necessário destruir tudo aquilo que impede a expansão do

desenvolvimento econômico território adentro – ao ser colocada em

questão na justiça se agravando a sua permanência no local através das

reivindicações territoriais históricas do grupo Kiriri, baseadas na carta

régia que concedia 1 légua em quadra aos aldeamentos indígenas com

um mínimo de 100 famílias.

Após esta conversa preliminar, propus marcar novo encontro ao

qual ele concordou. Disse que eu poderia passar na casa dele logo após

40

a festa da padroeira32 que assim seria mais fácil conversar com mais

tranqüilidade; que poderíamos passar na casa de Sr. Gabriel e conversar

todo mundo junto. Então, aproveitei o momento para pedir que se

pudesse chamar mais alguém, seria interessante, permitiria que

fizéssemos um grupo focal, assim os assuntos tratados aconteceriam com

mais espontaneidade. Agradeci ao Sr. Daniel pela gentileza concedida

neste encontro e me dirigi à pousada onde me hospedaria.

Ao fim do dia, havia retornado a Cícero Dantas, pois não havia leitos na

única pousada da cidade, por conta das festas que aconteceria nos dias

seguintes. Retornei à Banzaê quatro dias depois. Com o intuito de realizar a

etnografia, e, sobretudo, fazer contatos com possíveis informantes. Segue

trecho do diário:

Assim que me acomodei na pousada, sai à procura de meu

potencial informante e possível guia em busca de pessoas para

entrevistas. É seu Gabriel, o rapaz que conheci no dia 13 de dezembro.

Não sabia, até então, onde ele morava mas não encontrei dificuldade. Em

cidades de pequeno porte como esta, todos, ou quase todos, são

relativamente conhecidos entre si, sabendo onde cada um mora, os

lugares onde costumam estar ou freqüentar em determinados horários,

qual a ocupação social, etc. Parece-me que aqui, pode-se arriscar a

concluir que nestas condições, as relações sociais são mais estreitas.

Um senhor de mais ou menos 70 anos que se encontrava na

pousada, ao ouvir que eu procurava Gabriel, se prontificou de imediato

em me dizer onde localizá-lo e, por extensão, me informar de suas

características e de um recorte do seu percurso biográfico tomado, ao que

parece, como um referencial para este senhor.

- Não é um rapaz magrinho, baixo e que viveu entre os sem-terra no

município de Quinjigue?

32 Festa de Nossa Senhora da Conceição que acontece no dia 08 de dezembro, mas que foi adiada para o dia 14 de dezembro por motivos que não consegui averiguar. Ninguém soube me informar seguramente.

41

- Acho que sim. Quer dizer que ele foi sem terra? (...).

Após receber esta informação, sai ao encontro do meu quase

informante-chave. “Quase”, porque eu estava à sua procura justamente

para negociar esta sua possível posição em minha pesquisa. A minha

decisão em almejá-lo como informante-chave se dá por alguns fatores

que considero relevantes. Gabriel é um rapaz adepto da religião Baha’i

que efetuou um longo trabalho social com os Kiriri para promover a sua

coesão social, superação de estereótipos denegridores de sua condição

indígena, e independência, como grupo específico, em relação aos

“regionais”, além disso, é também professor de história no ensino médio

nesta localidade, o que o faz um possível detentor da história local. E, o

último motivo da minha escolha, e talvez a mais importante, é que ele,

desde que nos conhecemos, deixou bastante clara a sua mobilidade nos

círculos sociais desta região, mantendo relações amistosas tanto com os

Kiriri como aqueles não-índios desintrusados, e, não somente na sede

administrativa de Banzaê mas em boa parte da região, conhecendo

muitas famílias que foram compelidas a sair do território indígena,

sobretudo suas narrativas e memórias sobre esta indesejada experiência.

O que eu diria em conversa informal, é que nas minhas condições em

campo, Sr. Gabriel caiu do céu antes de acenar-me na beira da estrada

solicitando uma carona até a cidade. Em minha exígua experiência de

campo, creio que ele permanecerá por um bom tempo como o “melhor” e

mais “inusitado” informante que pude conseguir nesta breve estadia por

aqui. Não obstante seja necessário dizer que não obtive sucesso em tê-lo

na posição desejada de informante, ele teve muito pouco tempo à

disposição uma vez que precisava viajar constantemente pela região para

dar aulas.

Embora o tenha encontrado, não obtive sucesso em tê-lo como

principal interlocutor – ao menos nesta viagem. Ele me informou do seu

parco tempo neste momento em que o procurei e se disponibilizou, com

muita gentileza, após o natal, para que déssemos uma volta em alguns

povoados desta região localizando as pessoas que poderiam ceder um

tempo para uma conversa sobre suas experiências. Marcamos, em tese,

42

trocando telefones e supus que eu não estivesse aqui em Banzaê, entre o

natal e o ano novo por algumas dificuldades particulares. Ficou então

acertado que faríamos estas atividades de entrevistas durante o início do

mês de janeiro, mediante uma combinação prévia. Por enquanto, limitei-

me, nesta ocasião, a executar a atividade de observação e anotações

sobre a estrutura do município e do fluxo de pessoas em suas atividades

diárias no espaço público, além de conversar informalmente com os

moradores da cidade que porventura conhecesse. (18 de Dezembro).

O último senso do IBGE de 2000 registra uma população total de

11.156hab havendo inclusive uma depopulação em relação ao senso de 1991

que registrou 11.489hab. A população urbana cresceu vertiginosamente a partir

da década de 90, em 1991 registrava 939hab, em 2000 já contava com

3.414hab (30,60%). Com as informações coletadas em campo sobre o período,

é possível estabelecer conexão desse crescimento com a criação dos 3 bairros

estabelecidos pelos posseiros desintrusados da Terra Indígena. A população

rural é predominante, registrando em 1991 10.550hab e em 2000 registra um

decréscimo para 7.742hab (69,40%).

É uma cidade pequena, e bem disposta de um equipamento público que

lhe serve a contento. Possui Banco do Brasil; um hospital localizado no centro

da cidade, com disposição de ambulâncias; Conselho Tutelar da Criança e do

Adolescente; Escolas e creches; casa lotérica; Infocentro, onde a população

pode acessar Internet gratuitamente por 1 hora em períodos de maior

demanda; estádio municipal e praça de esportes. Possui também, dois grandes

mercados, além de pequenas mercearias por toda a cidade, há bares e

restaurantes, lojas de construção, de roupas e confecções, oficinas de carro e

eletroeletrônicos, farmácias, lan houses, academia de ginástica, lojas de

43

móveis, escritório de advocacia e somente uma pousada, a qual fiquei

hospedado. Sua economia destaca-se na agricultura (3º produtor baiano de

castanha de caju), na produção de leite de vaca, mandioca, feijão e milho,

estes últimos basicamente como agricultura de subsistência, com seus

produtores vendendo localmente seus pequenos excedentes.

É uma cidade totalmente plana, e, talvez por isso, em consonância com o

seu tamanho, haja um predomínio bem visível da locomoção por bicicleta e

poucos carros particulares, a moto ainda o substitui na maioria das residências.

Em relação às características físicas das casas residenciais, não há grandes

contrastes em relação a indicativos sócio-econômicos, a forma modesta da

casa predomina, ao contrário de municípios vizinhos como Ribeira do Pombal e

Cícero Dantas, onde facilmente encontramos grandes imóveis que se

destacam na composição geral das habitações, revelando assim, contraste de

riqueza.

É uma típica pequena cidade do interior do sertão, onde as pessoas se

interagem de uma maneira bem peculiar, os dias são tranqüilos, excetuando os

dias de feira, únicos em que a cidade fica toda barulhenta. Durante o dia

observa-se atividades bem rotineiras como a limpeza do ambiente doméstico,

tarefa predominantemente executada pelas mulheres; as conversas

aparentemente despropositais entre vizinhos; as conversas entre homens,

numa faixa etária de 50/60 anos que se reúnem todos os dias, fora dos

períodos de trabalho mais intenso nas roças, às sombras das praças,

quitandas, bares, na qual predomina assuntos como política local, jogos,

notícias trazidas dos municípios vizinhos que consistem, em geral, de

pequenas polêmicas sobre outras pessoas relativamente conhecidas por todos;

44

assuntos que envolvem suas roças, favores de todos os tipos, de empréstimos

a pequenos consertos, etc. Os mais jovens, adolescentes, utilizam muito as

praças, é onde se reúnem, rotineiramente, em grupos. Ficam por horas

reunidos, intercalando com os horários de colégio, conversando dos mais

diversos assuntos todos os dias enquanto que os jovens entre 20 e 30 anos se

ocupam basicamente em cargos públicos e trabalhos no pequeno comércio

local.

É nesse ambiente que me coloquei como forasteiro, a perambular,

aproveitando os ambientes possíveis de estabelecer relações sociais, como

bares, trailers de lanche e bebidas, das praças, para conversar com aqueles

mais dispostos a uma conversa com estranhos, a partir daí, estabelecendo

contatos diversos, de um modo que pudesse ser apresentado à rotina da

cidade e das pessoas. Sempre tocando no assunto da Terra indígena de

maneira superficial, como um despretensioso curioso, a fim de deixá-los à

vontade em falar sobre tal e, possivelmente, revelar-me uma pouco do seu

ethos e visões de mundo (Geertz, 1989) em relação aos diferentes vizinhos,

para compreender como se configuram as relações interétnicas cotidianas, e

como ocorre o processo de classificação/categorização do povo indígena, de

sua cultura, e em que sentido estas ações influíram e influem nas reações dos

Kiriri às assimetrias reveladas nestes discursos.

Depois dessa fase, retornei a Salvador para analisar os resultados deste

primeiro trabalho de campo, a fim de retornar com os erros solucionados, com

novas estratégias mais amadurecidas. O retorno foi mais pragmático – no mês

de agosto de 2008 – por conta de algumas dificuldades, recursos e tempo

hábil. Nesta última ocasião efetuaria basicamente entrevistas com os

45

informantes selecionados (seis ao total, mais aqueles considerados

informantes imprevistos) na primeira incursão e uma observação complementar

àquela efetuada na primeira experiência. A seleção se deu através de

indicações em campo, pessoas da cidade que indicaram aquelas cuja memória

sobre as retomadas seria mais rica em detalhes, que participaram ativamente

do caso como parte envolvida. Assim, predominou os informantes com mais de

50 anos, e um único jovem professor que demonstrou ter um conhecimento

detalhado sobre a questão, este também indicado. As escolhas levaram em

conta os bairros formados pelos ex-posseiros, selecionei 1 interlocutor por

bairro para as entrevistas, das quais estas aconteceram quase sempre na

presença de mais algumas pessoas, também de interesse para a pesquisa,

que acompanhavam, na ocasião, o informante selecionado. Importante dizer

que as indicações eram feitas por pessoas (em posição “neutra”) que não

participaram das entrevistas, de modo a controlar as informações. Somente

dois informantes afirmaram se conhecer bem, outros mantinham pouca

aproximação entre si embora alguns soubessem quem eram outros

informantes. Adentremos, por fim, ao último capítulo que constitui o exame das

falas.

46

CAPÍTULO IV

Vivenciando assimetrias: balizando as atuais relações interétnicas em Banzaê.

Pois acontece que essas sociedades não estavam simplesmente desaparecendo há um século atrás, no início da antropologia: elas ainda estão desaparecendo — e estarão sempre desaparecendo.

Marshal Sahlins, 1997.

Como esboçado rapidamente, no segundo capítulo, a história do contato

nos permitiu identificar o modo pelo qual se estabeleceram as relações sociais

entre os Kiriri e os não-indígenas nos sertões, constando uma série de

assimetrias/dominação no sistema interétnico local, com a construção de

representações sociais sobre estes que contribuíram bastante na geração de

um processo de estigmatização33 que perdura até então. Adentremos, então, à

exposição de algumas falas, memórias e saberes locais dos informantes

selecionados no trabalho de campo, além daqueles que chamo aqui de

informantes imprevistos, ou seja, aqueles que assumiram este status

independentemente de qualquer de minhas estratégias de escolhas nas

conversas cotidianas no lugar.

No momento da primeira viagem a Banzaê, descrita na introdução deste

trabalho, conversei com pessoas do lugar, sempre evocando a presença

indígena da região. Sentei-me em um trailer movimentado localizado na

avenida central (Av. Emancipação) da cidade, era dia de feira e pedi algo para

beber, passei a conversar despretensiosamente com a atendente. Havia uma

33 Baseado na noção de Estigma em Erving Goffman em seu livro Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada.

47

mesa ao lado em que estava uma professora que viria a se sentar comigo

minutos após. Meu pai também me acompanhava naquela ocasião (ele reside

na cidade vizinha, e na minha passagem por lá, antes de iniciar o trabalho de

campo, quis me acompanhar durante este dia para conhecer o lugar também),

ele a reconheceu de Cícero Dantas e logo iniciou um diálogo. Decidiu fazer a

primeira intervenção por mim, explicando que estávamos na cidade para

procurar pessoas que pudessem falar sobre os índios, justificando que eu era

estudante e tinha intenção de coletar alguns depoimentos para fazer um

trabalho.

Foi uma conversa que me fez convencido de que poderia elaborar um

estudo sobre o tema desenvolvido nesta monografia. Quando soube que eu

tinha interesse em cultura indígena, logo se pôs a revelar suas idiossincrasias,

e, ao se referir à presença ali dos Kiriri, predispunha, de certo modo, a

essencializar o ser indígena tão enfaticamente que tentava justificar alguma

inferioridade cultural em relação aos “brancos”. Por ser professora, narrava

suas experiências, ao modo de exemplos, com classes de alunos misturados

(índios e não-índios), relatando sobre a diferença comportamental e de

desenvolvimento entre eles, “as notas eram baixíssimas! A gente ensinava,

ensinava, perguntava se tinham dúvidas e eles não falavam! Nunca tiram as dúvidas

na sala de aula.”34. Situação que um outro professor, numa conversa de outra

incursão a campo, demonstrou discordar parcialmente quando conversei com

34 Fala anotada em caderno de campo após a conversa, pois não havia solicitado gravar, além do que, num gesto que fiz com meu celular naquele momento fez ela, inclusive, pensar se eu estaria gravando, questionando: “você não está gravando não, né?” A qual respondi negativamente, e a principiar as questões éticas desta pesquisa. Assim, uma das primeiras decisões que tomei, foi manter o sigilo sobre a identidade dos entrevistados. Noutros casos, percebi claramente que os entrevistados se preocupavam muito com a gravação, de modo que, numa delas, um controlava o outro para “não dizer demais” (sic) o que me trouxe, muitas vezes, um certo mal-estar em campo, por sentir-me que estava sendo visto como potencial colhedor de informações para a parte interessada. Não convencendo, portanto, a minha posição de cientista com alguma imparcialidade. Aliás, esse é um desassossego da Antropologia, não só meu.

48

ele sobre isso. Atribuía a quietude dos Kiriri a um dado cultural tradicional

deles, ele dizia que “se eles têm alguma dúvida, eles ficam quietos. Agora você tem

que se dobrar, que nem eu ensinei, são bons de trabalhar, tem muitos que são

inteligentes demais, tem uns que são inteligentes. Agora tem outros que têm a suas

duvidas e ficam quietos. Isso é típico deles, Serem quietos no meio da gente, agora no

meio deles, a gente vai pra uma festa ali no meio deles é a coisa mais normal do

mundo”.

Na ocasião da conversa com a professora, ela parecia bastante

convencida de que os não-índios tinham uma capacidade melhor para a

aprendizagem escolar, para a socialização, sem se dar conta, talvez, de que o

real problema para a diferença narrada por ela poderia estar na histórica

exposição ao preconceito étnico ao qual o povo Kiriri sempre se deparou em

relação a estratos da sociedade nacional, ou, até mesmo, por conta dos

tradicionais conteúdos didáticos do ensino médio que descrevem a presença

do índio na história basicamente de forma estereotipada, estagnada no

passado colonial e invisível no presente, num modelo informativo que nada

informa à sociedade nacional o que é ser índio nos próprios termos deles

(indígenas), sendo, dessa maneira, potencial fonte de constrangimentos às

minorias étnicas.

Muito embora tenha tido a disposição de estigmatizar os Kiriri a um

visitante até então estranho, teve o cuidado de falar, também, sobre o lado bom

das relações sociais com eles, da cultura deles, enfim, revelando um discurso

retórico que nos permitia identificar as maneiras “nativas” de traçar os limites

das relações sociais. Cabe ressaltar que este discurso bem dividido entre

percepções negativas e positivas sobre o outro, é constante nos informantes

49

que se dispuseram, mesmo aqueles mais desconfiados com minhas intenções,

a falar sobre o que pensavam em relação aos vizinhos Kiriri.

Outros autores construíram análises preliminares sobre a organização

social interétnica nessa região. Maria de Lourdes Bandeira (1972), primeira

pesquisadora a estudar etnograficamente as relações interétnicas no local,

evidencia-nos alguns aspectos da realidade social desta região na década de

60 do século XX35 que discretamente se difere do que pudemos observar, na

execução desta monografia, em termos das relações e representações sociais

entre índios e não-índios. Estabelecemos algumas conexões com o conteúdo

analisado por Bandeira referente à estrutura social local, e que cabe

demonstrar brevemente aqui, ao nível de ilustração para o leitor, antes de

adentrarmos ao conteúdo, de fato, dos discursos dos informantes desta

pesquisa.

No ano de 1960, Bandeira já identificava uma espécie de confinamento

social dos “caboclos” em relação ao grupo “português”, as relações entre eles

eram, em geral, reduzidas aos interesses econômicos mais imediatos, como a

troca de favores e serviços, de modo que, ausentado esses interesses,

impera(va) uma rejeição quase que absoluta do “português” para o caboclo.

Este perdia, por sua vez, a “utilidade prática”36 e era absorto em um sistema

português de depreciação cultural. Faz-se necessário esclarecer que, uma vez

voltando à tona a utilidade de seus serviços, o comportamento do não-índio

que necessita, de algum modo, da mão-de-obra dos segmentos da população

35 Pode-se ler a descrição da autora no capítulo intitulado “Organização Social” de sua dissertação referida na bibliografia desta monografia. 36 Refiro-me ao termo, até com certa ironia, no sentido de que para o “português” o que realmente importa(va), e a literatura e documentos históricos confirmam (V. pg. 27), eram os benefícios advindos de sua mão-de-obra, seria essa a ‘utilidade prática’ de sua existência para o “português” colono. É possível percebermos claramente como persiste a categoria “preguiçoso” no imaginário nacional referente aos indígenas.

50

mais empobrecidos, como o caboclo, emerge com evidente cordialidade37. No

sentido de afagá-lo em suas qualidades mais humanas, em geral, as que citam

as virtudes do “bom trabalhador honesto e esforçado”. A finalidade, ou efeito

esperado, seria deixá-lo com extremo orgulho de sua condição e com a

necessidade de retribuir o reconhecimento através de algo em que possa ser

útil imediatamente ou numa posterior solicitação. Em geral, o visado pelo

“português” é, claramente, a sua mão-de-obra a ser paga, quanto mais módico

possível for, através de controversos laços afetivos, em alguns casos, sob a

forma de compadrio. Vejamos o que diz Bandeira (op. cit.) sobre isso e que, de

certo modo, corrobora o dito acima e observado por mim em campo, não

totalmente porque hoje os Kiriri gozam de relativa autonomia após a

reconquista de seu território:

“Uma evidência empírica da discriminação: a freqüência

de caboclos em casas de portuguêses e vice-versa. Em geral,

quando vão aos povoados os caboclos permanecem nas ruas

e se, por relações de compadrio, visitam os portuguêses são

recebidos com indiferença e visível má-vontade. Portuguêses

não freqüentam casa de caboclos. Só os procuram para tratar

de negócios, assim mesmo torna-se desnecessário, pois a

penúria do caboclo é tal que os leva a tomar a iniciativa. [...]

Em casa de portuguêses são recebidos com reservas,

verificando-se mudanças de comportamento quando há

necessidade de seus serviços. [...] O compadrio beneficia o

português, que dele tira proveito e em seu nome obtém favores

e pequenos serviços dos caboclos [...] os caboclos mais jovens

tem reagido a isto, escolhem os padrinhos de seus filhos entre

os amigos da mesma ‘nação’”. (Bandeira, 1972, p. 36).

37 No sentido atribuído por Sérgio Buarque de Holanda ao elaborar o conceito de “homem cordial” em seu best-seller sociológico: Raízes do Brasil.

51

A construção de uma controversa “amizade” media os ideais das

relações de trabalho no campo, sobretudo entre fazendeiros e camponeses,

quando a palavra, a depender da circunstância, ganha um valor mais forte que

um documento ou o ofício. É a palavra que costuma construir a “confiança” nas

relações sociais. Neste universo de camponeses, podemos incluir ai, os

próprios caboclos, hoje reconhecidamente índios. Esta conduta interessada de

alguns “homens de poder”, como os fazendeiros, para com as camadas mais

populares foi bastante verificável em campo, incluindo alguns municípios da

região limítrofe de Banzaê, como Cícero Dantas e Fátima, sobretudo porque

era tempo de eleições (outubro ocorreria as eleições para prefeitos e

vereadores), e o último trabalho de campo foi realizado durante curtos cinco

dias das últimas semanas do mês de agosto de 2008, por conta das constantes

chuvas que acometem boa parte do Nordeste nessa época, comprometendo

parcialmente o tempo ideal de trabalho.

Um exemplo etnográfico por informantes imprevistos

Dia de feira, sentei à mesa de um bar bem movimentado num local onde a feira se dividia entre a parte de roupas e utilidades e a de alimentos na praça Nª Senhora da Conceição. Fiquei algum tempo a observar sua dinâmica. O dono já me conhecia e sabia que eu era de fora pelas vezes que ali ia tomar café da manhã e lanchar ou até mesmo jogar sinuca em meus momentos de lazer. Nesta ocasião, havia muitos pedintes, pessoas pobres da zona rural e das zonas periféricas de Banzaê que aproveitava o dia de feira para pedir, segundo uma pessoa do lugar. Conversava rapidamente com cada um deles que me pedia e num determinado momento, puxei conversa com mais afinco com um deles que logo se fez à vontade ao sentar-se à minha mesa. O dono do bar, ao vê-lo, logo entendeu se tratar de um incômodo e agiu para retirá-lo dali de tal modo, que sequer deu tempo de explicar-lhe que ele havia sentado ali com o meu consentimento. Situação constrangedora para mim. [...] Momentos depois meu pai chega com um amigo local, sentam-se, e logo chega um senhor que reside ali perto. Era um candidato a vereador. Começam a conversar sobre política local e, de minuto em minuto, este senhor interrompia a prosa para falar com algum passante, passei a observá-lo e sua conduta era algo que me impressionava bastante. Ele prendia a atenção dos passantes por algum tempo,

52

mas não era de forma indiscriminada, muitos eram aqueles que passavam pedindo algo. Pessoas reconhecidamente pobres do lugar. A conversa entre eles se reduzia à troca de favores, ao pedido de voto para o filho, também candidato, enquanto retirava do bolso e distribuía o santinho, em troca de serviços diversos. O auge desta observação foi a oferta “gratuita” e insistente de uma obturação para um jovem com os dentes mal cuidados por falta de recursos. [...] No decorrer da conversa, ao saber que eu era um jovem estudante da capital, explicou-me que a política no interior só funcionava desse jeito. (Diário de campo, 28 de agosto de 2008).

As duas situações acima descritas de uma mesma ocasião em muito se

assemelham com as diversas situações de discriminação e poder em relação

às camadas populares observadas por Bandeira há pouco mais de 40 anos.

A seguir, o leitor terá acesso às narrativas, acompanhadas com análises,

dividas em 4 seções temáticas, ou seja, os temas que estiveram mais

presentes nas conversas em campo com meus interlocutores, a saber, sobre o

usufruto da terra; as diferentes relações estabelecidas com o poder público; da

memória de tempos passados e das projeções do porvir; e, por último, das

questões relativas a diferenças culturais visíveis entre eles.

IV. 1 Da questão da terra

Nesta seção, exporei ao leitor as narrativas que envolvem a questão da

terra e da territorialização do espaço interétnico. Inicialmente, sobre a ocasião

das retomadas de terras Kiriri, em especial, das últimas retomadas ocorridas na

última década de 1990, depois da fundação do município de Banzaê, em 24 de

fevereiro em 1989. Cabe esclarecer ao leitor que a fundação do município de

Banzaê (antes um povoado bem menor que Mirandela) nesta ocasião, é um

fato curioso, foi fundada basicamente em meio a estratégias políticas não-

indígenas para desmembrar o município de Ribeira do Pombal das terras

53

indígenas já demarcadas, e de criar mais obstáculos ao processo

homologatório que se concretizou no ano seguinte, em 15 de janeiro de 1990.

Antes – esclareçamos – a tentativa foi de fazer Mirandela a sede do novo

município, mas alguns antropólogos especialistas nestes casos38, intervieram

na ocasião afirmando ser tecnicamente impossível, afinal Mirandela constitui o

centro da terra indígena demarcada desde o alvará régio, e jamais poderia ser

excluída da demarcação. Perguntei a alguns informantes, não-expulsos, o que

eles achavam que mudou:

P39: E assim, vocês chegaram a pensar no que mudaria na rotina do município? Com o processo demarcatório dos Kiriri, na relação das pessoas, vocês e eles?

G: Sim, na época eu pensei e até hoje eu penso, né? Na questão do conflito do branco não se dar com o índio e vice-versa, a estrutura do município, né? Não tem estrutura para receber tantas pessoas na época que houve esta demarcação...

P: Você achou que iria haver algum tipo de conflito, né? E houve.

F: Na verdade, a gente... nós que não fomos expulsos do lugar por eles, o relacionamento da gente, a gente acha até normal, né? Da gente, agora a gente imaginava que iria haver conflito dos que estão morando aqui com eles porque os índios eles fazem o quê? Eles compram aqui, eles estudam aqui, eles convivem com a gente, então têm o apoio, todo apoio que eles têm é daqui da cidade. Então a gente imaginaria, eu imagino que poderia haver este conflito, as pessoas que foram expulsas por eles tivessem essa rejeição de conviver com eles aqui, acontece é isso.

G: Ainda hoje há. F: Ainda hoje há esta rejeição.

Percebamos na própria narrativa dos informantes acima, que ainda

persiste – e eles notam isso – algum tipo de rejeição, mas em geral é percebida

como mágoa, pela maneira como foram retirados do território em questão. É

necessário atentarmos à idéia de apoio presente nas falas: “Eles compram

38 A saber: Pedro Agostinho, Maria Rosário de Carvalho e Edwin B. Reesink, pesquisadores do Programa de Pesquisas sobre Povos Indígenas do Nordeste Brasileiro (PINEB), grupo de pesquisas sediado na Universidade Federal da Bahia. 39 P = Pesquisador. Também, só usarei as iniciais dos interlocutores, a fim de manter o sigilo sobre suas identidades devido ao tema ser delicado.

54

aqui, eles estudam aqui, eles convivem com a gente, então têm o apoio,

todo apoio que eles têm é daqui da cidade”. Isso revela algo bastante presente

no senso comum local e regional, não é tão raro ouvirmos alguém dizer

ironicamente que se não fossem os “brancos” eles estariam em situação muito

pior, no sentido de que eles deveriam era agradecer. Facilmente verificamos

que isso consiste num modelo de dominação, pois como me disse também o

informante acima: “eles não sabem trabalhar a terra, eles têm equipamentos,

tudo, mas não sabem trabalhar a terra como ela deve ser trabalhada”, ou seja,

para eles caberia aos não-índios, com sua “melhor” ciência em questão, fazer a

terra render frutos, pois isso geraria o bem-estar das pessoas, isso eles

saberiam fazer, acreditam. “Porque eles não plantam, assim, pro outro dia, se

quiserem comer tudo no mesmo dia eles comem” disse-me um interlocutor,

sugerindo a ausência da produção estratégica de excedentes como sendo

necessariamente uma inabilidade entre os Kiriri.

Outro informante diz, adiante, sobre a “amizade” que havia entre eles e

como ela foi diminuindo, o que, de certo modo, desvela também algumas

destas questões, demonstrando também algumas motivações da rejeição atual.

Compelido a sair da TI, do povoado da Marcação, mostra-nos sua visão a

respeito das relações interétnicas antes e pós-retomadas das terras indígenas.

O: A gente trabalhava, plantava pessoas lá da região, eu mesmo não cheguei a plantar lá na área deles. Mas, [Trecho inaudível] mas vizinho assim da área deles, eu trabalhei e a gente se precisasse de pessoas pra trabalhar, trabalhador, eles iam trabalhar pra gente, diarista. E a gente convivia com eles, não tinha conflito. Eles vinham pra rua, pra Marcação tomar cachaça, ficava até tantas da noite lá brincando, conversando com a gente.

P: Você chegou lá em que ano mais ou menos? O: Eu cheguei lá no ano de 1987, a partir daí eu sempre ia

pescar nas lagoas deles, caçar, pegar a espingarda e cachorro caçar pelos matos deles e não tinha problema. Mas ai quando começou

55

aquele conflito de invasão. Ai a gente ficou, uma parte deles, aqueles mais velhos, mais violentos, às vezes até encachaçado, ficaram assim já, diminuiu mais a amizade, a gente passou a não mais confiar muito neles. Até que eles pensaram de invadir, fazer uma invasão deles no povoado.

A sua visão parece deixar clara a existência de uma relação assimétrica

da qual os Kiriri reagiriam posteriormente, dois elementos importantes

aparecem nesta narrativa e que nos apontam um esclarecimento sobre a

reação étnica Kiriri, a saber, a questão do usufruto das terras e do direito a ela.

Eles usufruíam os recursos naturais que, por direito, era do outro: “área deles”;

“lagoas deles”; “matos deles”. E o que dava essa permissão eram as relações

de “amizade”, que, uma vez contestada, produzia desconfiança. Esta começa

com os próprios Kiriri, ao perceberem bem a situação subalterna em que se

encontravam. Consequentemente, seria natural que viessem a reagir, da forma

como o fizeram, a toda esta situação histórica que lhes subtraiam a dignidade.

Ao contrário deste informante, supracitado, um outro, também expulso

da Marcação, jamais acreditou que as terras iam ser tomadas, em especial, a

que ele se encontrava, pois algumas partes ele julgava fora da demarcação,

como veremos adiante:

M: A gente morava lá na área indígena, né? Num era na área indígena, ai eles mediram, remarcaram, né? Eu mesmo nunca acreditava que ia ser tomada...

P: O senhor sempre morou lá? M: Sim, morei lá, esse pessoal todo daqui morava lá. P: Aqui é Bela Vista, né? M: Todo pessoal daqui morava lá, não só daqui como o pessoal

de outros bairros ai, bairro Novo Horizonte e Nova Mirandela que é do pessoal que morava em Mirandela. Então, a gente morava lá, mas eles demarcaram, né? Eles40 passaram lá no povoado que eu morava, chamava Baixa, ia prum marco que tinha lá adiante, mas eu não acreditava que eles tomava. Eu não, nunca acreditava, pois num era

40 Provavelmente o informante se refere à equipe encarregada pelo poder público de efetuar o trabalho de identificação e demarcação da TI.

56

deles, né? Nunca foi deles, né? Então não acreditava... [...] Após 12 anos, que morei nesse povoado, eles tomaram tudo.

Embora não acreditasse, este informante demonstrou que os posseiros

tentavam interpretar o que era dentro e o que era fora da “reserva”, antes da

medição, operando a noção de invasão dentro destes critérios:

P: Eles começaram a retomar em 81 mais ou menos... M: Foi! É, Picos... P: A Picos é dentro da reserva? M: É, lá é dentro da reserva, lá realmente é dentro... a fazenda

Picos, né? Fazendeiro Miranda, tinha Mirandinha e tinha outro Miranda também. [...] Esses eram dentro da reserva, a gente não vai dizer que não era, tinha as fazendas mas era dentro da reserva, agora nós que morava no povoado da Marcação, no povoado da Baixa Velha, e depois que veio construir a Baixa Nova, não era da reserva, foi colocada.

Muitos não acreditavam, instigados inclusive por políticos da região e

com apoio do Estado da Bahia que utilizou estratégicos recursos para diminuir

a área já definida (V. Reesink, 1988, p.41-49) através do Instituto de Terras da

Bahia (Interba) que, extrapolando suas atribuições, produziu um relatório,

tecnicamente questionado, a respeito do tamanho da terra indígena Kiriri (Cf.

Reesink, op. cit.).

IV. 2 Das relações com o Estado: persistência da tutela?

As questões colocadas na seção anterior parecem conectadas à

questão da tutela; a um senso comum que ainda crê persistentemente na

incapacidade indígena de gerir de forma autônoma as suas próprias

demandas, por exemplo, assim como o manejo do solo, a sua educação, como

afirmou um interlocutor. Como vimos anteriormente, acusam uma hierarquia na

57

construção de um saber, como o trabalho na terra, seguindo critérios que

representam somente uma ideologia não-indígena: “produção de excedentes,

eles não sabem fazer.” É verificável, no discurso indígena quanto não indígena,

duas concepções bastantes diferentes sobre o domínio da natureza, enquanto

os primeiros têm uma relação mais simbólica, de certo modo, conectada ao

religioso (pois ela também é morada de encantados) e, por isso, com outras

regras de explorá-la sem desrespeitá-la, ou seja, sustentável; os segundos

mantêm uma relação mais restrita e tecnicista à produção de alimentos. Foi

comum a manutenção de dúvidas sobre a capacidade de agência dos índios, é

bastante presente, sabemos, não somente nos discursos locais. Costuma-se

dizer que eles dependem de nós, brancos, para sua própria sobrevivência.

Em relação ao status atribuído de “privilegiados”, categoria classificatória

recorrente em detrimento do necessário status de “diferenciado” na relação

com o Estado, é comum ouvirmos interpretações de não-índios locais, de que a

presença deles funciona constantemente como uma conveniência para

esquemas locais de manipulação política para a maior atração ou desvio de

recursos públicos. Não cabe aqui, temos que evidenciar, investigar a

veracidade do dito. Cabe, somente, apontar a maneira como interpretam os

acontecimentos locais e históricos, e de que modo isso reflete nas relações

interétnicas mediante as transformações sociais que vieram e podem vir a

ocorrer com as reivindicações dos Kiriri. Questionados sobre o tratamento

diferenciado que os índios recebem do Estado, os informantes interpretam a

situação da seguinte maneira:

G: [...] Eu acredito que o próprio Estado é beneficiado com alguma coisa que venha de fora. É como o município hoje, usa o

58

índio para ser beneficiado, acho que o Estado também, dentro da União e a União referente a certas Ongs...

F: Na verdade, muitas pessoas acham que eles são mantidos totalmente pelo Estado... aqui até que eles vivem bem agora o que a gente vê muito na televisão, que a gente aqui.. a gente fala aqui quando ta fora, muitas pessoas não conhece, Banzaê a gente fala terra dos índios. É, fala como terra dos índios, conhecida como terra dos índios porque na verdade nós estamos situados aqui, vocês pra vim pra aqui passa por dentro da área indígena. Pelos Kiriri daqui, e também aqui se você vier aqui por cima você passa por Euclides da Cunha você passa por dentro de outra área indígena que é os Kiriri de Massacará (sic). [...]

G: Na realidade, os índios, eles ai, eles não são conhecedores da cidadania e do poder que eles têm, por serem índios.

K: Exatamente, eles são manipulados mesmo, né? G: Eles são manipulados! K: São manipulados pela prefeitura... G: Não só pela prefeitura, pela Funai, por tudo. K: Por tudo, né? G: Por tudo. F: Eles tão conseguindo... eles tão bem lentos no processo de

socialização deles, eles estão conseguindo socializar com tudo agora, porque muitos agora estão fazendo faculdade, eles estão fazendo a recuperação da língua própria que eles tem, a língua Kiriri deles. Ai eles estão conseguindo tão fazendo essa estruturação pra daqui 3 a 4 anos eles conseguirem caminhar com suas próprias pernas. Simplesmente isso.

Aqui podemos perceber alguns elementos da narrativa que merece

destaque, como por exemplo, a visão de que o Estado é beneficiado com a

existência dos índios, na medida em que propicia uma visibilidade externa e

conseqüente atração de recursos. Como o próprio informante sugere, há muita

gente que percebe os índios como mantidos pelo Estado porque proporcionam

algum benefício. Parecem promover uma suposta incapacidade dos índios –

falta de agência – diante de questões sobre desenvolvimento da sociedade

nacional41. Assim, podemos perceber no discurso dos entrevistados acima,

como ainda persiste uma relativa crença na fragilidade da capacidade de

41 Vale dizer aqui, ao leitor, que no caso recente da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, essa crença pouco fundamentada da incapacidade de agência dos índios esteve presente e expressa, inclusive, no discurso de alguns ministros do Supremo Tribunal Federal, exemplo claro disso pode ser encontrado nas tantas afirmações proferidas pelo Min. César Peluzzo na ocasião da votação definitiva sobre este caso.

59

agência dos índios, como os destaques: “não são conhecedores da

cidadania e do poder que eles têm por serem índios” assim como “tão

fazendo essa estruturação pra daqui 3 a 4 anos eles conseguirem

caminhar com suas próprias pernas”, entre os outros destaques

apresentados no trecho acima.

Enfim, o verificado em campo, é que ainda persiste um pensamento

tutelar, expressos nos discursos, no sentido de que acreditam, de certo modo,

que os índios precisam dos “brancos” e de suas instituições para continuar a

sobreviver, e que o problema é a divisão da terra. Exemplo disso é o que esse

informante diz, quando questionado sobre as disputas internas no tempo das

retomadas: “tinha uma parte deles que não queria, não queria que a gente

saísse. Porque tinha uns que falavam que eles sobreviviam através dos

posseiros, dos fazendeiros, e não queria o conflito não. Então, por esse motivo,

daqueles que não queriam, que eles se afastaram de la...”. Em geral, a lógica

que reivindicam é que há, desde a ocasião das discussões referente ao

tamanho exato da terra Kiriri e da fundação do município de Banzaê, “menos

terra para ‘branco’ que – acreditam – sabe trabalhar melhor a terra”42 e que

seria um desserviço a “expulsão” daqueles que davam empregos, trabalho a

eles. Constata-se nesse ponto, uma defesa apressada de uma relação

assimétrica, afinal os indígenas, aqueles organizados em torno de suas novas

lideranças, a exemplo de Lázaro, estavam em extremo estado de pobreza e

sabiam reconhecer seus direitos perante o território e as contradições

históricas presentes no usufruto dele.

42 Discurso similar ao percebido nas discussões atuais sobre a Raposa Serra do Sol, em Roraima.

60

IV. 3 Da mediação do passado e futuro

Contudo, podemos perceber também, que os informantes, em sua

totalidade, contemplaram facilmente a validade das reivindicações Kiriri, não

obstante indicassem problemas para eles diante do reivindicado. Expomos aqui

que há, ao pensarem estas questões, preocupação com a trajetória histórica

indígena e da ocupação da terra. Estes informantes, supracitados, contam

alguns pontos, claramente preocupados com a trajetória histórica dos Kiriri:

F: Por exemplo mesmo, essa tribo, os Kiriri daqui, eles vieram dali da região de Jeremoabo, de Paulo Afonso, e são bem antigos eles, são de 1000... 1700 e...

G: 1977, por ai assim. F: 1700! G: 1700! F: Porque muitas pessoas acham que eles vieram para ai

depois da invasão da Mirandela. Não! Eles sempre já tiveram sua área, dentro do município. Só que, eles, por direito deles, eles são protegidos pelo governo federal, eles, como direito, invadiram toda a terra que eles disseram que era deles, que é a demarcação indígena deles. Se fosse por eles, por exemplo, Banzaê, hoje, não era pra ser a cidade, Banzaê era pra ser do distrito, a cidade era pra ser Mirandela só que em função da Mirandela ser demarcada pela questão indígena ai a sede veio pra ser transferida pra aqui senão hoje a gente era, no caso, povoado e a cidade seria Mirandela.

G: Primeira cidade indígena. (risos)

Como dito anteriormente, o informante tem razão ao dizer que seria

Mirandela, mas, tecnicamente isso foi impossível, pois Mirandela se localizava

no centro da terra indígena e não havia interesse dos Kiriri em fazer dela uma

nova cidade por conta do histórico de relações assimétricas registrado ali, e

que impulsionou a reação com as retomadas, para o acesso dos indígenas ao

seu principal bem: a terra, que até então era usufruída basicamente pelos

posseiros. Um outro informante, ex-posseiro da TI, ao ser questionado se eles

discutiam com os órgãos competentes a forma pela qual eram indenizados,

61

pelo fato de ser somente por benfeitorias, e os critérios utilizados pelo poder

público na avaliação delas, recorre a elementos da história para nos explicar:

P: E vocês discutem com a FUNAI geralmente, nas reuniões, essas formas de indenização...

O: Não, não tem como discutir porque eles, eles não aceitam porque o que eles dizem é que o índio é o dono da terra, porque quando o Brasil foi descoberto o morador era o índio, então, os brancos e os negros que vieram, foram se apossando através de trocas com o índio por alguma coisa, foi invadindo e tomando a terra do índio, né? Chegasse hoje, amanhã, depois, depois, até que, ficou essa mistura de branco, índio, mulato, preto, negro, mistura tudo, né? Através desse negócio dos portugueses, então, a FUNAI só acha que a terra é do índio porque foi o primeiro morador, é por esse motivo de não haver indenização da terra, só benfeitoria.

Aproveito para perguntá-lo sobre as perdas afetivas, a ruptura abrupta

das redes sociais e econômicas entre eles, posseiros, que viviam naquelas

terras, e o Estado não visualizar essas questões para possibilitar outros

critérios nas indenizações, e ele complementa:

P: Porque houve uma perda de relações, né? Você tem uma rede formada, de cooperação... de repente tem que sair todo mundo, um vai prum lado, outro vai pra outro e perde as relações...

O: Com certeza! Mas ai, discutir... P: Discutir as conseqüências da saída de vocês... O: Mas ai a FUNAI não quer saber se você vai sair, pra onde

vai... Só quer saber que você desocupe a terra porque a terra é do índio, da sua saída, se vire! Cada um que se cuide... complicado. Existe muitos erros nas leis brasileiras, muitas falhas, mesmo já é falha e os homens não cumprem mesmo assim. Formam as leis, eles mesmos desmontam elas...

Em relação aos desafios apresentados pelos informantes, em geral, o

mencionado diz respeito ao crescimento populacional dos Kiriri e a possíveis

pedidos de ampliação de terras no futuro. Em Banzaê, reina um “boato”, entre

aspas porque pode ser uma verdade, de que a reivindicação de ampliação está

sendo revitalizada através de algumas ações indigenistas as quais eles julgam

62

provocativas e temerosas, pois reconhecem, na maioria das vezes, que se trata

de um direito garantido. Uma dessas ações diz respeito ao DAI (Departamento

de Assuntos Indígenas)43. Acompanhemos como interpretam, os informantes, a

instalação desse departamento na sede do município de Banzaê da qual eles

não julgam ser um departamento voltado para os banzaenses44, estabelecendo

assim, eis um fato curioso, uma fronteira entre banzaenses e não-banzaenses

na relação não-índio/índio, seguindo essa lógica, poderíamos pensar se os

Kiriri são ou não, também, banzaenses:

P: E em relação ao DAÍ, com a fundação do DAÍ qual foi a reação das pessoas aqui? F: Péssima. Ninguém gostou disso, foi horrível isso, isso ai foi como uma sacanagem com a gente. Basta já ter tido essa invasão toda, essa humilhação que fizeram com muitas pessoas e fizeram, colocaram este departamento aqui dentro. Foi péssimo isso ai... P: As pessoas falavam o quê? F: A reação foi o que? Tem pessoas que falam que aqui vai ser tomado, né? Isso ai foi uma afronta, ter colocado, pros brancos, ai muita gente pensou, ai que vão tomar conta de nós de uma vez só. Colocar o departamento deles aqui dentro se a área deles é extensa. E colocar aqui... K: Deixa transparecer que aos poucos eles estão tentando invadir, né? G: Mas eles estão... F: Isso também como se fosse uma jogada de marketing politicamente. Veio é... rede de comunicação de todos os setores de televisão, de tudo, veio pra aqui. Ai foi um marketing como se fosse em prol da cidade. A própria prefeita ela tem a audácia de se vestir de índia... ---------------------- O: Ah, tem, muita gente ficou receoso mesmo... isso ai... veio presidente da Funai... então, a gente ficou achando que, ter uma pessoa da Funai mais próxima pra colher alguma coisa do pessoal aqui da cidade, dos moradores, e colhendo uma conversa, uma palavra, algumas coisas... e com aquilo, poder mais informações e haver um conflito maior entre índios e não-indios. Por causa dessa casa ai. Porque existe aqui, a área, o povoado, que fica na pista, a mesma coisa, porque não fizeram essa casa dentro da área deles? Ter que vir pra aqui.

43 Departamento de ações afirmativas criado pela prefeitura de Banzaê, em 2006, com apoio da FUNAI, para discutir projetos de políticas públicas com e para os indígenas na área de educação, saúde, meio ambiente, agricultura e cultura. Ver folder sobre o DAÍ nos anexos, p. 79. 44 Gentílico.

63

P: É, é o que ela me falou... O: Porque não lá? Inclusive eles construíram uma casa, [Trecho inaudível] voltando a esquerda, tem uma casa construída pela Funai. Que era pra assuntos... que era pra assuntos indígenas, que lá ficava mais ou menos no centro, e ta lá abandonado, e preferiram vir pra aqui... mas ai é o tipo de coisa, que a gente vê mas não pode nem dar opinião, tem que ver e aceitar de qualquer jeito.

Importante notar que, quando identificado um problema, em particular quando

se refere ao direito a terra e a propriedade, o discurso de reconhecimento dos

direitos Kiriri toma outro rumo. Percebemos neste trecho a emersão da

categoria invasão. Para os informantes, no contexto atual, passado o conflito,

os Kiriri já têm seus direitos garantidos com a execução pelo Estado do

disposto no alvará régio, assim, operam imediatamente a categoria invasão

para qualquer tentativa de ampliação futura das terras indígenas.

IV. 4 Das diferenças culturais

Em relação às diferenças culturais – outra questão recorrente nas

conversas em campo – a minha intenção foi abordar como os não-índios as

percebiam; em que para eles era percebido uma diferença cultural relevante

desde antes dos tempos em que passou a “diminuir a amizade” por conta das

retomadas, como diz um informante anteriormente. Unanimemente, todos,

mesmo sem saber exatamente o que falar a respeito, quando perguntados

sobre essas diferenças, se referiam a práticas sociais, como a Zabumba, nos

tempos mais antigos, e ao Toré.

64

“Os caboclos tocavam Zabumba nas novenas”45, “quem tocava eram os

caboclos”, disse-me uma interlocutora, “eles só tocavam nas novenas, não

tocavam assim de qualquer jeito não, só nas novenas, a gente pagava para

eles...”46. Outro informante dizia: “inclusive a gente quando fazia festa, lá na

marcação, tinha as 9 noites, né? De festa. Do padroeiro, do santo [PI] ... Todas

as 9 noites, todas as 9 noites eles tocavam zabumba, a gente pagando, a

gente pagava a eles, eles faziam... 6 horas da manhã eles vinham, tocavam até

8 horas, ai ia embora, 5hs da tarde voltava, tocava até 8hs, 9hs da noite, ai iam

embora, 9 noites tocava zabumba. Nunca houve conflito nenhum, sempre era

combinado.” Bandeira (op. cit.), por ter feito uma etnografia antes das

retomadas, faz um registro mais próximo dessa realidade da seguinte maneira:

“Os caboclos são convidados a participar de festas

portuguêsas na condição de tocadores de zabumba. Os

músicos se fazem acompanhar da família e saem de bodega

em bodega “salvando” os frequentadores civilizados e em troca

sendo recebidos com cachaça. Nas festas de caboclo,

aparecem portuguêses curiosos vindos de outros povoados.

Delas participam, mesmo de bailes, embora formem um grupo

à parte, não se misturando aos caboclos.” (Bandeira, 1972, p.

39).

Outro modo comum em que traçam essas diferenças é pelos hábitos.

Pude verificar em campo uma forte persistência do mesmo complexo de

estereótipos verificados na pesquisa de Bandeira há cerca de 40 anos, em

1960. Não somente em Banzaê, mas, também, em outros municípios da região

45 Série de orações e práticas litúrgicas realizadas durante um período de nove dias para obtenção de alguma graça divina; período de nove dias em que estas cerimônias se realizam; composição ou cântico para esta cerimônia litúrgica. (Houaiss, software). 46 Falas anotadas em caderno de campo, pois a entrevistada não permitiu gravação.

65

por qual tive passagem. A descrição abaixo parece admitir uma conexão com

alguns diálogos que tive na região (não somente em Banzaê) sobre a vida

cotidiana das relações interétnicas locais, há uma continuidade forte entre essa

percepção geral do não-índio para o caboclo descrita por Bandeira na década

de 60 e a percepção geral que apreendi em campo:

“Na visão do português o caboclo é indolente,

preguiçoso, mentiroso, velhaco, incapaz de cumprir trato e

desonesto. Quando tem serviço aparece muito caboclo. Depois

de receber o dinheiro, desaparece. Quem quiser serviço de

caboclo não pode fazer o pagamento adiantado. Precisa não

lhe fiar nada. Caboclo não tem moral. Caboclo não presta, tem

vida livre [...]. Caboclo é sujo, não tem higiene, não toma

banho, e só gosta mesmo é de cachaça.” (Bandeira, 1972, p.

39-40).

Essa visão persiste. Deparei-me com diversas situações em que a visão

era construída numa espécie de ambiguidade, costumam defender que há

boas relações entre eles, que as pessoas de fora – “como eu”, disse um

interlocutor – que costumam pensar que é extremamente conflituoso as

relações interétnicas locais, contudo, geralmente a contradição emerge se a

conversa se prolonga, e passamos a ouvir todo tipo de atribuições negativas,

como as apresentadas acima. Cito um pequeno trecho:

P: Então, de uma maneira geral, a relação das pessoas do município não é tão conflituosa assim... F: Não, isso é só fachada de quem mora fora. Ao contrário, as pessoas mais novas... eles mesmos estão tentando tirar este preconceito, a gente se relaciona bem com as pessoas, a gente sente isso. Os novos já estão conscientes de que esse conflito que os mais velhos têm não leva a lugar nenhum. Ai os novos se relacionam muito bem, o relacionamento é bom. G: Eu mesmo me dou muito bem com eles.

66

F: Também. F: Não são pessoas de confiança... G: Não deve confiar nunca! F: Se você der a ponta do dedo ele quer a mão toda. Simplesmente é assim. Porque é típico da cultura deles, a desconfiança... então, se você acha, já é deles...

Sobre as diferenças percebidas pelos não-índios, o modo pelo qual

narram aquilo que consideram diferente, é bem dividido entre conteúdo positivo

e negativo da alteridade. E nessas narrativas, quando não citam

pejorativamente os hábitos que eles julgam não ter, citam basicamente, mesmo

que de modo marginal, por não despertar tanto interesse local como desperta

para os forasteiros, aspectos do artesanato, das danças rituais e seu segredo,

aspectos da alteridade que eles dizem sempre ter existido nas suas relações

com os Kiriri, ausentando qualquer discurso referente a invenção:

P: E sempre houve... vocês sempre perceberam uma diferença cultural entre... O: É, sempre... porque o índio, a cultura deles é bem diferente da gente, né? Porque eles já tinham a cultura deles, de fazer as festinhas deles, porque é um tipo, um tal de Toré e, batendo os tambor, e arrudiando lá, dançando lá, só que eles não deixavam a gente ir não, quem não era índio não ficava lá dentro, no dia da festa eles não... no dia da festa, eu fui uma vez, fiquei pouco tempo e o rapaz pediu pra eu ir embora, [Trecho inaudível] tinha também a cultura de artesanato, já fazia, era vassoura, a tal da aripema, de pote de barro, de argila, né? Então, tinha sempre um tipo de artesanato que eles já faziam lá.

Os entrevistados citam, além destes elementos de cultura, a prática das

rezadeiras, Dalta e Romana, por exemplo, eram bastante conhecidas entre

eles:

P: Sobre... Ce conheceu alguma Dona Romana, Dona Dalta... M: Dalta! Dona Dalta eu conheço ela, né a índia? P: Dizem que ela era rezadeira... M: É, rezadeira, é essa mesmo. É viva ainda, velhinha... Mas eu conheço ela...

67

P: As pessoas consultavam ela? M: É... sempre têm as pessoas assim, que acredita. Eu mesmo não acredito nessas coisas, eu sei que é contra a lei de Deus [risos], mas tem pessoas que acreditavam nela, iam lá, ainda é viva hoje... P: Aqueles que precisavam de saúde, alguma coisa.... M: É, procurava, pra rezar, [Trecho inaudível] Dalta, né? Agora a Romana mesmo eu não conheci, via falar.

Nesse sentido, por fim, todas estas falas apresentadas neste capítulo

são interpretações e percepções que de certa maneira corroboram com o

argumento de que há uma continuidade da identidade indígena local - embora

este ponto não consista o foco do trabalho - contra qualquer argumento de que

houve assimilação plena desses povos, como aquelas registradas com os

pedidos de extinção de aldeamentos esboçados no capítulo II. O interesse

maior deste trabalho foi demonstrar as maneiras “nativas” (dos não-índios

locais) de representar um ‘outro’ presente, de classificá-lo, e, nesse sentido, de

demonstrar as configurações das sociabilidades, de suas possibilidades e

limites que surgem nos jogos de interesses que compõem as relações sociais

entre duas sociedades. E, nesse jogo de interesses, ainda há, no plano das

representações, um conhecimento que tende a persistir numa idéia de

superioridade cultural, como podemos ver em vários pontos dos diálogos aqui

expostos. Por que isso persiste?

68

Ao modo de conclusões

Neste trabalho pudemos expor, ao menos parcialmente, como foram

constituídas – e continuam a se constituir – assimetrias nas relações sociais,

numa perspectiva diacrônica e sincrônica, entre índios e não-índios no recorte

proposto. Indicando, nesse sentido, as características mais expressivas destas

assimetrias através do saber do não-índio na construção e perpetuação de um

ordenamento territorial e identitário julgados ideais para o desenvolvimento da

sociedade num modo geral, sem levar em conta, por muito tempo de nossa

história social, as demandas étnicas das minorias. Estas que, evidentemente,

expressariam suas reações, cedo ou tarde, impulsionadas pela “honra étnica”.

Ao investigarmos “o olhar”, as maneiras de interpretar dos não-índios de

Banzaê sobre a convivência com os vizinhos indígenas e sua cultura, pudemos

perceber que, de certo modo, a sabedoria local baseada num senso comum;

um conhecimento adquirido através do habitus (Bourdieu, 2007), reflete

bastante os elementos qualificadores de um discurso histórico sobre progresso

e identidade nacional.

A questão da terra, presente em todo este trabalho, dinamizou a ordem

do discurso, sendo um elemento central nas narrativas dos interlocutores, de

modo que, ao tocar no assunto dos re-ordenamentos territoriais sob demanda

Kiriri, esse tema assumiu um caráter dinamizador do raciocínio dos não-índios

ao argumentarem sobre o assunto. Culpando, de certo modo, não os próprios

Kiriri pelas dissensões estabelecidas entre eles através das disputas territoriais,

mas os aparelhos do Estado, pelas omissões correntes sobre as suas

obrigações, como cumprir o pagamento das indenizações de forma satisfatória

e abrir-se ao diálogo sobre as formas de cálculos dos valores, de ter dado um

69

apoio mais rigoroso no processo de deslocamento, que, segundo os

depoimentos, foram dados em meio a improvisos de políticos locais e civis que

se sensibilizaram com o modo pelo qual os ‘não-índios’ tiveram que sair da

terra indígena.

Contudo, ainda fica claro, nas análises, que a capacidade de agência

dos índios ainda permanece sistematicamente subestimada. Um outro

elemento predominante do discurso, nas perguntas lançadas ao Estado, diz

respeito ao aumento populacional dos Kiriri e as possibilidades de ampliação

do território decorrentes disso, os não-índios visualizam essa possibilidade com

bastante temor, no sentido de ocorrer novamente uma abrupta alteração na

vida dos moradores do local, uma nova coação ao deslocamento indesejado.

Já o discurso sobre os costumes Kiriri, de uma maneira geral, nos

direciona ainda a uma idéia de superioridade étnica quando da comparação de

valores inter-culturais. Em relação aos caboclos de outrora, hoje, índios Kiriri,

soma-se o componente étnico-racial nessas relações assimétricas, de modo

que ainda ocorre uma tentativa de essencialização ontológica negativa nos

processos de classificações categoriais do não-índio para com os Kiriri. Para os

não-índios camponeses, a melhora econômica é relativamente suficiente para

uma também relativa elevação do status social perante os grupos sociais mais

ricos; do ganho de respeitabilidade entre estas. Enquanto que para os índios,

ainda persiste uma espécie de barreira étnico-racial que lhes impõe um lugar

mais ou menos fixo na hierarquia social; na atribuição de valores negativos, de

maneira que, neste último quesito, quando estes conseguem uma relativa

melhora econômica, são correntemente chamados de privilegiados por conta

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de sua condição de “protegidos do Estado” como os referiram muitos

informantes, contudo, é claro, isso constitui uma visão apressada.

Por fim, este trabalho, com todo esforço imputado a ele, está longe de

ser conclusivo. Ele conta com algumas pendências teóricas e empíricas –

reconheço – das quais, muita dificuldade tive para resolver por conta da minha

condição de noviço, não menos foram as adversidades enfrentadas em campo

com as constantes desconfianças dos meus intentos, verificadas na fala de

alguns entrevistados. Certamente, estes últimos fatores por muitas vezes,

desencorajaram-me a seguir em frente com este trabalho. A complexidade

natural do tema em consonância com o relativo curto tempo de execução, além

da distância do campo à minha cidade de residência, produziu dissonâncias

diversas à qualidade desejada ao trabalho de campo, muito embora não o

comprometesse, o que é um fator positivo. Assim, assumo, de certo modo, seu

caráter ensaístico por estas razões, de que ainda faltam elementos a se

resolver; a enriquecer – e espero fazê-lo no futuro por acreditar, com os

constantes incentivos de meu orientador, na pertinência deste estudo.

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ANEXOS

Fonte: Google maps.

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Planta da sede do município de Banzaê (Fonte: Prefeitura de Banzaê).

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Folder de divulgação dos objetivos do Departamento de Assuntos Indígenas (DAÍ).

79

Avenida Emancipação (Foto do autor).

DAI (Foto do autor) e Toré Kiriri na inauguração do DAI (foto: site/prefeitura de Banzaê)

Pç. Nossa Srª da Conceição (Foto do autor).

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Cronograma das “retomadas” elaborado por Brasileiro (2004): 1979 – Organização de uma roça comunitária, situada no sul do território indígena, na estrada que liga o povoado de Mirandela ao município de Ribeira do Pombal; 1981 – Demarcação da terra indígena Kiriri com 12.320 ha, englobando quatro povoados de regionais até então reconhecidos pelos índios como limítrofes ao seu território: Marcação, Baixa do Camamu, Segredo e Pau Ferro; 1982 – Reordenação espacial do núcleo Sacão, onde habita um dos caciques, com construção de moradias dispostas circularmente em torno do centro comunitário; 1985 – Ocupação de uma fazenda de cerca de 700 ha, localizada no núcleo de Baixa da Cangalha; 1986 – Os Kiriri fecham importante estrada de acesso de Mirandela ao povoado de Marcação, retirando todas as posses e roças de regionais ali localizadas; 1989 – Cerca de quarenta famílias Kiriri de uma das facções “acampam” Mirandela após terem suas moradias parcialmente destruídas após uma enchente. Mantêm-se permanentemente no local; que se constitui ainda hoje a um núcleo de resistência e pressão frente aos regionais; 1991 – A FUNAI indeniza cerca de dez casas habitadas por regionais em Mirandela e famílias Kiriri imediatamente as ocupam; 1992 – Após a a saída tempestuosa de um chefe de Posto da Terra Indígena, uma família Kiriri ocupa a sua casa. O novo “chefe” é constrangido a habitar com a família indígena, na própria sede do Posto, que também funciona como farmácia; 1993 – Os Kiriri impedem a realização de melhorias, por parte da prefeitura de Banzaê, em um trecho de estrada que reduziria a distância entre Ribeira do Pombal e a sede do município de Banzaê; 1995 – Após acirrados conflitos, a FUNAI indeniza as 176 ocupações de regionais que constituem o povoado de Mirandela; 1996 – Extrusão do povoado Gado Velhaco; 1997 – Extrusão do Povoado Pau Ferro; 1998 – Extrusão dos povoados de Marcação, Araçá, Segredo, Baixa Nova e Baixa da Cangalha.

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