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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
FACULDADE DE EDUCAO
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM EDUCAO
A FORMAO CONTINUADA COMO UM PROCESSO EXPERIENCIAL
A TRANS-FORMAO DOS EDUCADORES DE BOA VISTA DO TUPIM
GIOVANA CRISTINA ZEN
Salvador
2014
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GIOVANA CRISTINA ZEN
A FORMAO CONTINUADA COMO UM PROCESSO EXPERIENCIAL
A TRANS-FORMAO DOS EDUCADORES DE BOA VISTA DO TUPIM
Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em
Educao da Universidade Federal da Bahia, como
requisito parcial para a obteno do grau de Doutor
em Educao.
Orientadora: Profa. Dr. Maria Inez da Silva de
Souza Carvalho.
Salvador
2014
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SIBI/UFBA/Faculdade de Educao Biblioteca Ansio Teixeira Zen, Giovana Cristina. A formao continuada como um processo experiencial : a trans-formao dos educadores de Boa Vista do Tupim / Giovana Cristina Zen. 2014. 225 f. : il. Orientadora: Profa. Dra. Maria Inez da Silva de Souza Carvalho. Tese (doutorado) Universidade Federal da Bahia. Faculdade de Educao, Salvador, 2014. 1. Professores Formao - Boa Vista do Tupim (BA). 2. Professores - Educao (Educao permanente) - Boa Vista do Tupim (BA). 3. Rendimento escolar. 4. Experincia. I. Carvalho, Maria Inez da Silva de Souza. II. Universidade Federal da Bahia. Faculdade de Educao. III. Ttulo. CDD 370.71098142 23.ed.
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TERMO DE APROVAO
Giovana Cristina Zen
A Formao Continuada como um Processo Experiencial: A Transformao dos
Educadores de Boa Vista do Tupim
Tese aprovada como requisito parcial para a obteno do grau de Doutor em Educao,
na Universidade Federal da Bahia, pela seguinte banca examinadora:
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Profa. Dra. Maria Inez da Silva de Souza Carvalho (Orientadora)
Universidade Federal da Bahia (UFBA)
_______________________________________________
Profa. Dra. Amali de Angelis Mussi
Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS)
_______________________________________________
Prof. Dr. Jos Srgio Fonseca de Carvalho
Universidade de So Paulo (USP)
_______________________________________________
Profa. Dra. Maria Roseli Gomes Brito de S
Universidade Federal da Bahia (UFBA)
_______________________________________________
Profa. Dra. Stella Rodrigues dos Santos
Universidade do Estado da Bahia (UNEB)
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Para Marcelo, Jlia, Joo e Pedro
porque sem amor, eu nada seria
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AGRADECIMENTOS
Faculdade de Educao da Universidade Federal da Bahia, pelo acolhimento e pela
confiana em mim depositada.
Aos Professores do Programa de Ps Graduao em Educao da FACED/UFBA, por
todas as aprendizagens ao longo desta trajetria.
Aos Colegas e Professores do FEP Grupo de Estudos sobre Formao em Exerccio
de Professores , pela proximidade, pela leveza e pelas discusses.
Aos Componentes da Banca, meus queridos Amali, Roseli, Stella e Z Srgio, pelos
quais tenho uma admirao imensa. Para mim, uma honra contar com a apreciao de
vocs.
A Professora Vera Placco, por sua generosidade em dedicar-se a leitura do trabalho.
A Micaela S pelo apoio na transcrio das gravaes, e a Nazar, pela reviso
minuciosa e cuidadosa do trabalho escrito.
A Professora Maria Inez Carvalho, pela confiana e tranquilidade na conduo do
trabalho e, principalmente, por sua amizade, que foi, ao longo desse processo, ampliada
para Renato, Renata, Cac, Maria e Pedro. Uma delcia de famlia!
Aos educadores e gestores de Boa Vista do Tupim, sujeitos desta pesquisa, pela
generosidade em compartilhar fatos e impresses sobre o percurso de mudanas
engendradas no municpio. Em especial a Thas, pela disponibilidade em colaborar nas
articulaes necessrias para a realizao da pesquisa de campo.
Aos Colegas do Instituto Chapada de Educao e Pesquisa, pela ousadia e dedicao
diria.
A Cybele Amado, pela sua coragem e determinao em transformar um sonho em
realidade.
A Bete, Cndida, Neuri, Cida, Aline e Adriana, pelo compromisso com os professores e
estudantes da Chapada Diamantina. Tambm pela parceria e amizade nas estradas da
vida.
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Um destaque para minha querida Bete, companheira de tantos anos e exemplo de
sabedoria que me inspira a ser uma pessoa melhor.
A Rai e Ricardo, meus companheiros de f em terras pernambucanas, pela parceria
sempre sincera e pela torcida para que tudo d certo.
A Bia Gouveia, por compartilhar comigo o sonho de dar visibilidade s conquistas de
Boa Vista do Tupim.
A Telma Weisz, Claudia Molinari, Regina Scarpa e Teca Soub, por tudo que me
ensinaram ao longo dessa vida e pela aposta no que eu poderia vir a ser.
s meninas do Colgio So Paulo: Dalvinha, Paty, Adriana, Lili, Tuca, Maria Clara,
Marta, Ana, Dulce, Suzi, Liu, Lila e Sil. Adoro ter vocs na minha vida.
Aos amigos queridos, Maza, Fran, Gabi, Maria Eugnia, Wal, Mnica Loiola, Dani,
Sarah, Mrcea, Denise, Giba, Luiz Paulo, Virgnia e Wald. A vida bem melhor com
vocs por perto. Obrigada pela pacincia enquanto eu estava na caverna.
A Ernandi e Maria Clara, pelo carinho que sinto quando estou com vocs. A sensao
de fazer parte desta famlia me enche de alegria.
A Snia, Silvio, Sandra e Maninho, meus irmos, meus padrinhos e meus amigos. A
relao de confiana e de respeito que construmos juntos me faz ter a certeza de que
nunca estarei sozinha. Aos cunhados, sobrinhos e netinhos por essa famlia linda que
somos!
Ao Sr. Zen, meu pai, pela certeza do orgulho que sentiria se ainda estivesse por aqui.
A Dona Nora, minha me. Sua fora e sua f me lanaram na vida. Se ando perdida, ela
pede ajuda a Antnio Querido, para que me mostre novo caminho. Meu carinho,
minha admirao e minha gratido pela to sonhada filha dotora.
A Marcelo, que bordou a sua vida na minha, como se ele fosse a linha e eu fosse o pano.
Obrigada por existir e pela determinao em no me deixar pelo meio do caminho.
A Jlia, minha filha e minha razo de existir. Voc linda e sabe viver. Voc me faz
feliz! Muito feliz!
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S quero saber do que pode dar certo
No tenho tempo a perder
Torquato Neto
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RESUMO
O trabalho busca compreender como as aes engendradas no municpio de Boa Vista
do Tupim, em parceria com o Projeto Chapada, romperam com o perverso ciclo de
analfabetismo, ampliando as possibilidades de produo de sucesso escolar. A pesquisa
de campo foi realizada em quatro percursos distintos nos quais foram realizadas
observaes, entrevistas e encontros formativos que permitiram produzir e coletar os
dados da pesquisa de forma simultnea. Os diversos aspectos do campo educacional que
possibilitaram a trans-formao dos educadores foram analisados a partir do conceito de
experincia, discutidos por Dewey e Larrosa; e do conceito de habitus, cunhado por
Bourdieu e atualizado por Lahire. Das muitas lies apreendidas, possvel afirmar que
a formao continuada, quando concebida como um processo experiencial, potencializa
de modo significativo as tenses entre o institudo e o instituinte, provocando
deslocamentos no habitus de cada professor e do contexto no qual se insere. Habitus e
experincia mantm entre si uma relao de interdependncia. a que reside a potncia
do processo formativo, no qual os sujeitos assumem o papel de experimentadores de si
mesmos e trans-formam os modos de ser, de pensar e de agir.
Palavras-chave: Formao de Professores, Sucesso Escolar, Experincia e Habitus
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ABSTRACT
The work seeks to understand how the actions engendered in Boa Vista do Tupim, in
partnership with the Projeto Chapada, broke the perverse cycle of illiteracy, expanding
the possibilities of producing school success. The field work was performed in four
distinct pathways that allowed us to collect and to produce survey data simultaneously
through group observations, interviews and formative meetings. The various aspects of
the educational field which enabled educators trans-formation were analyzed using the
concept of experience, as discussed by Dewey and Larrosa; and the concept of habitus ,
proposed by Bourdieu and updated by Lahire. The research allowed us to state that
continued teacher training, when conceived as an experiential process, enhances
significantly the tensions between the instituted and the instituting, causing shifts in the
habitus of each teacher and also in the context in which they live and perform their
work. Habitus and experience have an interdependent relationship. There in lies the
power of the formative process in which the subjects assume the role of self
experimenters and trans - form their ways of being, thinking and acting.
Keywords . Teacher Education , School Success , Experience and Habitus
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RSUM
Le travail essaye de commprendre comment les actions engendrs dans la ville de Boa
Vista do Tupim en association avec le Projeto Chapada ont rompu avec le pervers cicle
danaphalbtisme, augmentant les possibilits de production de succs scolaire. La
recherche de champs a t faite sur quatre diffrents parcours dans lesquelles ont t
realiss des observations, des entrevues et des rencontres de formation qui ont permis de
produire et de prendre simultanment les donns de la recherche. Les diffrents aspects
dans le champs de lducation qui permetent la trans- formation des ducateurs ont t
realiss partir du concept dexprience, discuts par Dewey et Larrosa; et du concept de
habitus introduit parBourdieu et actualis par Lahire. partir des leons qui ont t
aprise on peut affirmer que la formation continuelle, entendue comme um procs
exprimental, augmente dune faon importante les tensions entre ceux qui sont institus
et ceux qui sont les enseignants provocant des dplacements dans lhabitus de chaque
professeur et dans le contexte dasn lequel il est insr. Habitus et exprience
maintiennent entre eux une relation d interdpen dence. Cest ici o il y a la puissance
de la formation des professeurs, dans laquelle ils assument le rle dexprimentateur de
soi mme et trans-forme la manire dtre, de penser et dagir.
Mots-clefs: Formation de professeurs, Succs scolaire, Exprience et Habitus
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LISTA DE ILUSTRAES
Mapa 1 Regio da Chapada Diamantina......................................................................97
Foto 1 Crianas da Chapada Diamantina...................................................................102
Foto 2 Altar de sexta-feira da Paixo.........................................................................102
Foto 3 Giro dos Reiseiros...........................................................................................103
Foto 4 A festeira Lode e sua famlia...........................................................................103
Foto 5 Cozinha de Dele..............................................................................................104
Foto 6 Cnticos para a Chuva.....................................................................................104
Foto 7 O pequeno Charles..........................................................................................105
Foto 8 Praa Municipal de Boa Vista do Tupim........................................................107
Foto 9 Feira Livre de Boa Vista do Tupim.................................................................109
Figura 1 Percentual de Pobreza da Populao de Boa Vista do Tupim.....................110
Foto 10 Secretaria Municipal de Educao de Boa Vista do Tupim..........................113
Figura 2 Cartinha para o Papai Noel..........................................................................131
Figura 3 Mapa Afetivo de Cleide Cerqueira Formadora do ICEP..........................137
Figura 4 Mapa Afetivo de Adriana Gonalves Formadora do ICEP.......................138
Figura 5 Mapa Afetivo de Elisete Gonalves Formadora do ICEP.........................139
Figura 6 Mapa Afetivo de Valria Bagues Formadora do ICEP.............................140
Figura 7 Mapa Afetivo de Raidalva Silva Formadora do ICEP..............................141
Foto 11 Dermival, Sueide e as crianas do Beija Flor................................................149
Foto 12 Agente de Leitura da Escola Santo Antnio.................................................149
Foto 13 Estudantes lendo para um grupo de extrao da castanha............................150
Foto 14 Estudantes do Beija Flor lendo para a me e a av.......................................151
Foto 15 Me e Filhos do Beija Flor............................................................................151
Foto 16 A moradia da famlia do Beija Flor...............................................................152
Foto 17 Vespasiano, Fernando e Thas no palanque com professores e estudantes...157
Foto 18 Estudantes de Boa Vista do Tupim lendo para a comunidade......................157
Foto 19 Cybele Amado coordenando o Dia E de Boa Vista do Tupim......................159
Foto 20 Comunidade presente no Dia E de Boa Vista do Tupim...............................160
Foto 21 Estudantes apresentando suas propostas no Dia E........................................160
Figura 8 Matrioska......................................................................................................176
Foto 22 Publicao de Resultados na Recepo da Escola........................................202
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Foto 24 Elma e Romilda.............................................................................................209
Foto 25 Sueide, Eliana e Mase..................................................................................210
Foto 26 Vagna, Joelma e Ana Fbia...........................................................................210
Foto 27 Rosemary e Elielma......................................................................................211
Foto 28 Dermival e Clebiana......................................................................................211
Foto 29 Dalmria........................................................................................................212
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LISTA DE TABELAS
Tabela 1 Taxas de analfabetismo no Brasil entre 1920 e 2010................................... 33
Tabela 2 Evoluo do Indicador de Alfabetismo Funcional 2001 a 2011/INAF.........35
Tabela 3 Evoluo do IDEB de Boa Vista do Tupim entre 2005 e 2011.....................41
Tabela 4 IDHM de Boa Vista do Tupim entre 1991 e 2010.......................................111
Tabela 5 Resultados de Aprendizagem dos Estudantes do Fundamental I de Boa Vista
do Tupim, no perodo entre 2000 e 2012.......................................................................124
Tabela 6 Resultados da Prova Brasil entre 2005 e 2011............................................161
Tabela 7 Sujeitos da Pesquisa de Campo...................................................................169
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SUMRIO
PANORAMA INTRODUTRIO DA TRILHA.........................................................16
PARTE 1
1 O MEIO DO CAMINHO E A PROPOSIO DA TRILHA.............................19
1.1 Pelo meio do caminho no contexto particular: o desafio de aprender e de ensinar a
ler e a escrever...........................................................................................................20
1.2 A histria dos que ficam pelo meio do caminho no contexto nacional: a questo do
analfabetismo no Brasil.............................................................................................27
1.3 A situao atual dos que ficam pelo meio do caminho: nmeros, promessas e
desafios......................................................................................................................32
1.4 O desafio de encontrar alternativas para os que ficam pelo meio do caminho:
proposio de uma trilha de pesquisa........................................................................38
2 PRIMEIRA ANCORAGEM DA TRILHA: a formao continuada como um
processo experiencial e sua relao com o desenvolvimento profissional dos
professores................................................................................................................46
2.1 A formao continuada e sua relao com a experincia .........................................47
2.1.1 Formao continuada de professores no Brasil: o incio da articulao
com a experincia.....................................................................................47
2.1.2 Sentidos e significados da experincia.....................................................50
2.1.3 A formao e a experincia do sujeito.....................................................55
2.1.3.1 O sujeito da experincia...................................................58
2.1.3.2 O fluxo experiencial contnuo..........................................61
2.1.4 A experincia no contexto de uma pesquisa sobre formao
continuada................................................................................................64
2.2 A formao continuada e o desenvolvimento profissional....................................65
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3 SEGUNDA ANCORAGEM DA TRILHA: o conceito de habitus e suas
implicaes na formao de professores................................................................70
3.1 Os conceitos de habitus e campo na teoria bourdieusiana........................................70
3.1.1 Os agentes sociais e sua atuao no mundo social...................................76
3.2 As contribuies de Lahire em torno do conceito de habitus....................................78
3.3 O conceito de habitus articulado formao de professores....................................85
3.3.1 A discusso sobre habitus e formao de professores entre os educadores
brasileiros.............................................................................................................85
3.3.2 A complexidade da formao e o habitus dos professores......................88
3.3.3 O patrimnio disposicional dos professores e a formao continuada....90
PARTE 2
4 A CARTA TOPOGRFICA DA EXPEDIO: a simplicidade e a
complexidade do campo de pesquisa.....................................................................96
4.1 Um pouco da Chapada Diamantina...........................................................................97
4.2 O municpio de Boa Vista do Tupim.......................................................................106
4.3 A parceria com o Projeto Chapada e o incio da mudana em Boa Vista do
Tupim.......................................................................................................................113
4.4 A expanso do Projeto Chapada e a interiorizao da poltica pblica de formao
continuada em Boa Vista do Tupim........................................................................119
4.5 A desnaturalizao do fracasso escolar na Chapada Diamantina............................126
5 OS PERCURSOS DA TRILHA DA PESQUISA DE CAMPO.........................143
5.1 Primeiro percurso da trilha: aproximao ao campo como formadora do ICEP.....145
5.1.1 Os ajustes na parceria entre o Projeto Chapada e Boa Vista do Tupim...145
5.1.2 A atuao como formadora externa em Boa Vista do Tupim..................146
5.1.3 O Beija-Flor e o direito de aprender na escola.........................................148
5.2 Segundo percurso da trilha: aproximao ao campo como pesquisadora...............156
5.2.1 O Dia L e o Dia E: duas situaes emblemticas na pesquisa de campo.156
5.2.2 Observao participante da reunio de avaliao dos resultados de leitura e
produo textual.......................................................................................161
5.2.3 Observao participante do Grupo Piloto do Ciclo I...............................164
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5.3 Terceiro percurso da trilha: imerso no campo de pesquisa como pesquisadora-
formadora.................................................................................................................167
5.3.1 Ateli de Formao 01.............................................................................171
5.3.2 Ateli de Formao 02.............................................................................173
5.3.3 Ateli de Formao 03.............................................................................174
5.4 Quarto percurso da trilha: o dilogo com os profissionais de Boa Vista do
Tupim.......................................................................................................................175
6 AS LIES APREENDIDAS AO LONGO DA TRILHA DA
PESQUISA.............................................................................................................180
6.1 O patrimnio disposicional dos indivduos servio das trans-formaes.............180
6.2 O reconhecimento do outro como elemento central das parcerias que compem a
cadeia distributiva de formao continuada............................................................184
6.3 As brechas do habitus ao longo do processo experiencial: possibilidades de trans-
formao..................................................................................................................189
6.4 A mudana no modo de conceber e de realizar as aes formativas.......................193
6.5 Os espaos pblicos e as possibilidades de produo do sucesso escolar...............198
6.5.1 A dimenso pblica dos espaos formativos............................................200
6.5.2 A publicao dos resultados e a realizao dos seminrios......................201
6.6 Os impactos do valor atribudo leitura no contexto social....................................204
IMPOSSIBLE A TRANS-FORMAO POSSVEL........................................207
E AINDA......................................................................................................................213
REFERNCIAS...........................................................................................................214
ANEXO.........................................................................................................................222
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PANORAMA INTRODUTRIO DA TRILHA
Esta pesquisa teve origem no confronto entre o cenrio que naturaliza o fracasso
escolar, deixando estudantes e professores pelo meio do caminho, e uma situao
aparentemente inusitada em Boa Vista do Tupim, municpio baiano localizado na regio
da Chapada Diamantina. No perodo entre 2000 e 2012, os educadores tupinenses
conseguiram, em parceria com o Projeto Chapada, ampliar as possibilidades de
produo de sucesso escolar, rompendo com o perverso ciclo de analfabetismo que
marcava a histria do seu contexto educacional.
Disto decorre o intento da trilha desta pesquisa, ou seja, compreender como as aes
engendradas em um municpio, aparentemente condenado pelos condicionantes
socioculturais, provocaram os deslocamentos no habitus dos educadores ao longo do
processo experiencial de formao continuada.
Para aportar a anlise dos elementos constituintes do campo de pesquisa, defini duas
ancoragens para a trilha percorrida neste trabalho. A primeira se apoia no conceito de
experincia e na sua relao com a formao. Para compor a segunda ancoragem,
recorri ao campo da Sociologia e incorporei o conceito de habitus, no arcabouo terico
desta pesquisa. Esta articulao entre formao, experincia e habitus se constituiu em
uma ancoragem fecunda para compreender como ocorreram as trans-formaes no
campo educacional de Boa Vista do Tupim.
Alm disto, do ponto de vista metodolgico, optei pela definio de procedimentos de
pesquisa em parceria com os educadores de Boa Vista do Tupim e articulei aes de
observao e de produo, em que foi possvel gerar e coletar os dados da pesquisa
simultaneamente. A pesquisa de campo foi realizada em quatro momentos distintos e,
para cada um, foram utilizados instrumentos diversificados que possibilitaram a
reflexo em torno das mudanas engendradas no campo educacional.
Das muitas lies apreendidas ao longo da trilha de pesquisa, preciso reafirmar que a
trans-formao dos sujeitos s se estabelece quando a formao continuada concebida
como um processo experiencial, no qual as tenses entre o institudo e o instituinte
provocam deslocamentos no habitus de cada professor e do seu contexto social. Habitus
e experincia mantm entre si uma relao de interdependncia porque um no se
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estabelece sem o outro. a que reside a potncia do processo formativo, no qual os
sujeitos assumem o papel de experimentadores de si mesmos e trans-formam modos de
ser, de pensar e de agir.
Este estudo est organizado e apresentado em seis captulos. No primeiro, O Meio do
Caminho e a Proposio da Trilha, apresento as principais reflexes que suscitaram a
definio do problema de pesquisa e do objetivo central desta tese. Alm disso, tambm
explicito as proposies da trilha da pesquisa.
No segundo captulo, apresento a Primeira Ancoragem da Trilha: a Formao
Continuada como Processo Experiencial e sua Relao com o Desenvolvimento
Profissional dos Professores. Para ampliar as reflexes em torno do conceito de
experincia, recorri s ideias de Dewey (1959, 1971, 1980) e de Larrosa (1999, 2000,
2002, 2003, 2004a, 2004b, 2005). Na sequncia, relaciono o conceito de experincia
formao a partir dos estudos de Imbernn (1998, 2009, 2011a, 2011b) e Nvoa (1992,
1995a, 1995b, 1997, 1999, 2002, 2007, 2009).
O terceiro captulo se constitui na Segunda Ancoragem da Trilha: o Conceito de
Habitus e suas Implicaes na Formao de Professores. Apresento inicialmente os
conceitos de habitus e campo, concebidos por Bourdieu e atualizados por Lahire, que
toma como ponto de partida a teoria bordieusiana, mas atualiza a reflexo em torno do
conceito de habitus, com contribuies fecundas para o escopo desta pesquisa. Por fim,
uma discusso sobre como o conceito de habitus se articula com a formao continuada,
compreendida como um processo experiencial.
A Carta Topogrfica da Expedio: a Simplicidade e a Complexidade do Campo de
Pesquisa o ttulo do quarto captulo, que apresenta o campo de pesquisa. Inicialmente
uma breve apresentao da Chapada Diamantina, em seguida de Boa Vista do Tupim e,
por fim, um resgate dos principais fatos que marcaram a histria do campo educacional
do municpio, a partir da sua integrao com o Projeto Chapada.
No quinto captulo, apresento Os Percursos da Trilha da Pesquisa de Campo,
constitudo a partir de quatro momentos distintos, nos quais realizo a imerso no campo
de pesquisa como formadora do Projeto Chapada e como pesquisadora. Neste captulo,
apresento os instrumentos metodolgicos utilizados ao longo da pesquisa e a forma
como foram concebidos em parceria com os educadores de Boa Vista do Tupim.
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As Lies Apreendidas ao Longo da Trilha compem o ltimo captulo deste trabalho,
no qual apresento os aspectos que considerei fundamentais para as mudanas
engendradas no campo educacional de Boa Vista do Tupim, a partir da sua integrao
com o Projeto Chapada.
Considero pertinente afirmar desde j que, durante a realizao desta pesquisa, sempre
estive preocupada com a reflexo em torno dos aspectos que ampliam as possibilidades
de produo do sucesso escolar, com aquilo que pode dar certo, ainda que, sempre
aberta s surpresas do acaso.
Espero que este trabalho possa inspirar formadores e gestores municipais a qualificarem
suas prticas, garantindo aos estudantes e professores que ainda correm o risco de ficar
pelo meio do caminho, o direito de aprender a ler e a escrever na escola.
Isto no significa a proposio de um receiturio universalizvel de aes que possam
ser replicadas em qualquer contexto, porque trata-se de uma pesquisa situada em um
cenrio histrico e geogrfico delimitado, com caractersticas prprias que, de alguma
forma, tambm definiram o percurso da trans-formao dos sujeitos envolvidos.
Este trabalho , portanto, um convite reflexo sobre o que pode dar certo, porque de
fato no h mais tempo a perder. Se fomos capazes de produzir o fracasso escolar,
certamente tambm seremos capazes de ampliar as possibilidades de produo de
sucesso escolar. Por este motivo, reitero minha escolha pelo contexto educacional de
Boa Vista do Tupim como campo de pesquisa. A trajetria dos educadores tupinenses
revela como se pode transformar utopia em realidade.
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PARTE 1
1 O MEIO DO CAMINHO E A PROPOSIO DA TRILHA
No Meio do Caminho
No meio do caminho tinha uma pedra
Tinha uma pedra no meio do caminho Tinha uma pedra
No meio do caminho tinha uma pedra.
Nunca me esquecerei desse acontecimento Na vida de minhas retinas to fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
Tinha uma pedra
Tinha uma pedra no meio do caminho No meio do caminho tinha uma pedra.
Carlos Drummond de Andrade
Este captulo apesenta as principais reflexes que suscitaram a definio do problema de
pesquisa e do objetivo central desta tese. Inicialmente uma retomada do meu prprio
percurso pessoal e profissional e, na sequncia, fatos centrais da histria do
analfabetismo no contexto brasileiro. Nas duas narrativas existe algo em comum: os que
ficaram pelo meio do caminho e a necessidade de encontrar um caminho, que assegure a
todos os estudantes o direito de aprender a ler e escrever na escola.
Na sequncia um panorama da situao atual dos que ficam pelo meio do caminho no
contexto brasileiro: seus nmeros, promessas e desafios. Por fim, o confronto entre o
cenrio contemporneo e uma situao inusitada de sucesso em Boa Vista do Tupim,
municpio parceiro do Projeto Chapada. Disto decorre a proposio da trilha desta
pesquisa, ou seja, compreender como os educadores de um municpio, marcado pelos
efeitos da seca e do abandono, conseguiram deslocar as pedras que estavam pelo meio
do caminho, criando alternativas para desnaturalizar o fracasso escolar e produzir
oportunidades mais concretas de sucesso escolar.
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1.1 Pelo meio do caminho no contexto particular: o desafio de aprender e de
ensinar a ler e a escrever
A construo desse trabalho fruto da minha trajetria pessoal e profissional no campo
da Educao, constituda por diversas situaes em que me deparei com aqueles que
ficam pelo meio do caminho. As situaes destacadas a seguir foram fundamentais na
definio do problema de pesquisa, e seu relato retoma momentos importantes da
histria recente da formao de professores em nosso pas.
A primeira situao refere-se ao meu prprio processo de aquisio da leitura e da
escrita. Aos seis anos de idade, quando me disseram que eu deveria aprender a ler e
escrever, comearam a me mostrar vogais, consoantes, slabas, palavras e, por fim,
pequenas frases. Tentaram me ensinar a juntar tudo isso, mas eu era incapaz de
compreender o funcionamento daquele emaranhado de letras.
No ms de junho, quase todos os meus colegas j estavam lendo e escrevendo, e eu
estava ficando pelo meio do caminho. No incio do segundo semestre, minha me
decidiu ir escola e conversar com o diretor, um padre franciscano extremamente
exigente e temido pelos alunos. A clemncia de minha me era para que eu voltasse
srie anterior.
O padre no atendeu ao seu pedido, mas resolveu absolv-la do martrio ao qual se
submetia todas as tardes, tentando, em vo, me ajudar a aprender a ler e a escrever.
Indicou a compra de um quadro negro e uma caixa de giz coloridos. Prometeu que a
professora no mandaria tarefa de casa durante certo tempo e sugeriu que minha me
me deixasse brincar a tarde toda. De escolinha. A surpreendente deciso de Frei Wilson
me furtou a possibilidade de passar as tardes com minha me e j no me restava
alternativa seno enfrentar o desafio de entrar para o mundo adulto atravs da leitura e
da escrita.
Ao lado do quarto de costura, onde minha me gostava de ficar, havia um velho
escritrio, que transformei na minha primeira sala de aula como professora. A mesa era
enorme e, ao seu redor, algumas cadeiras verdes. Atrs de cada cadeira, uma etiqueta
com um nome escrito. Minha classe era formada pelos colegas da escola, pelos meus
irmos e por todos aqueles que eu desejava que ali estivessem. s vezes me irritava com
os que no aprendiam a ler e a escrever e mandava-os de volta para o Jardim de
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Infncia. Meu planejamento era a cpia literal do que a professora fazia pela manh. A
cartilha tinha uma capa azul e um gatinho branco. Chamava-se Meu Pompom.
Em dois meses eu estava lendo e escrevendo tudo e meus alunos ficaram to sabidos
quanto eu. Na escola, a Professora Susana parou de me chamar ao quadro. Depois que
meus alunos me ensinaram a ler e a escrever, ela s chamava os que ainda no tinham
um quadro negro para brincar.
Os anos se passaram e o desejo de ser professora alfabetizadora me acompanhou. O
curso de magistrio foi a seta que indicava o caminho para a sala de aula. L, aprendi e
fiz muitas coisas que guardo at hoje, como o Caderno de Didtica, um relicrio com
preciosidades do tipo: Ensinar dirigir tecnicamente a aprendizagem. Em seguida o
curso de Pedagogia e, junto com ele, a sala de aula.
A possibilidade de assumir uma turma de Pr1, em 1989, numa escola da rede
municipal de ensino de Blumenau, me deixou animada porque, finalmente, teria alunos
de verdade. Para minha surpresa, logo no primeiro dia de aula, descobri que o grupo era
constitudo por todos os alunos das turmas de 1 srie que, segundo a avaliao da
escola, no seriam capazes de se alfabetizar. Alm disso, para completar o limite
mximo da classe, foram matriculadas outras crianas em idade pr-escolar. Desta vez,
os alunos eram de carne e osso e as estratgias de motivao que a professora de
Didtica havia me ensinado no funcionavam. Desta brincadeira, eu quase desisti.
Solicitava ajuda aos tcnicos da Secretaria de Educao e aos professores do Curso de
Pedagogia, mas ningum conseguia me ajudar. Ento, passei o resto do ano brincando
com meus alunos. De vez em quando eu inclua nas brincadeiras as letras, as slabas e
algumas palavras.
Alguns aprenderam a ler, outros ficaram pelo meio do caminho. Quando pedia ajuda
Coordenadora Pedaggica da escola, ela me consolava dizendo que era assim mesmo.
Diferentemente do padre, que props uma alternativa diante da minha dificuldade em
aprender a ler e escrever, a coordenadora aceitava resignada a situao desses alunos e,
de certa forma, os condenava a ficar pelo meio do caminho.
1 Nomenclatura utilizada poca para as classes de 6 anos, que antecediam a entrada no atual Ensino
Fundamental.
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Em fevereiro do ano seguinte, 1990, a Secretaria de Educao organizou uma suntuosa
Jornada Pedaggica, para apresentar as ideias de uma educadora argentina que estava
provocando uma verdadeira revoluo conceitual em todo o pas. Esther Pillar Grossi2
foi a responsvel pela to esperada exposio.
Neste mesmo ano, diante da revolucionria descoberta, a Secretaria de Educao
decidiu retirar todas as cartilhas das classes de alfabetizao, e eu fiquei de novo sem
saber o que fazer. Eu e minhas colegas reproduzamos clandestinamente, num
mimegrafo a lcool, atividades de algumas cartilhas que ficaram perdidas na escola.
Nesta poca eu j sabia o que meus alunos pensavam sobre o sistema de escrita, mas
no compreendia ainda como eles avanavam de uma hiptese de escrita para outra e
nem o que eu poderia fazer para ajud-los. Parecia mgica. Ao longo do ano letivo, eu
descobria que alguns estavam lendo e escrevendo, mas no conseguia ajudar os que
ficavam pelo meio do caminho, sem saber ler e escrever. Eu sabia que, em parte, era
responsvel por esse fracasso, mas no dispunha de um aporte terico e didtico que me
permitisse assumir o compromisso de alfabetizar todos os meus alunos.
Entretanto, naquele momento, o fato de alguns ficarem pelo meio do caminho no era
exatamente um problema, ao menos para os que julgavam como bom o trabalho que eu
realizava. Para os coordenadores pedaggicos e tcnicos da Secretaria de Educao, o
fracasso era dos alunos que, diante de tantas possibilidades criativas oferecidas, no
conseguiam encontrar sozinhos maneiras de superar as prprias dificuldades.
O meu incmodo diante daqueles que ficavam pelo meio do caminho me projetou como
uma boa professora, reconhecida como interessada em seus alunos e comprometida com
a aprendizagem de todos. Deste cenrio surgiu o convite para a coordenao do
Programa de Educao Infantil da Secretaria de Educao de Blumenau, em 1992, que
me tirou da sala de aula e me apresentou precocemente formao de professores.
Em 1999, j em Salvador, fui convidada a participar do Projeto Batalha, uma iniciativa
de jornalistas da Editora Abril que resolveram adotar uma cidade do Nordeste. A
cidade escolhida, no interior de Alagoas, no tinha banca de revista, nem hotel, e as
escolas estavam ocupadas pelas pessoas que no tinham onde morar. O ndice de
2 Educadora gacha, fundadora do GEEMPA, Grupo de Estudos sobre Educao, Metodologia de
Pesquisa e Ao. Foi deputada federal pelo PT do Rio Grande do Sul de 1995 a 2002.
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analfabetismo era altssimo, e uma das aes do projeto era a formao dos professores
alfabetizadores. Mensalmente, eu e mais trs colegas viajvamos para Batalha para nos
encontrar com os professores, na maioria leigos. O projeto tinha como meta a
alfabetizao de todos os alunos do Ensino Fundamental da rede municipal, at o final
do ano. Em dezembro, 94% dos alunos j compreendiam as regularidades do sistema de
escrita e produziam uma escrita convencional. Durante os meses de janeiro e fevereiro,
a Secretaria Municipal de Educao de Batalha organizou um plano de apoio
pedaggico para aqueles que ainda no haviam atingido a meta. Com esta ao,
chegamos a acreditar que o Projeto Batalha poderia mostrar que era possvel alfabetizar
todas as crianas de uma rede pblica num tempo relativamente curto.
No ano seguinte, voltamos ao municpio e identificamos que os estudantes j
compreendiam as regularidades do sistema de escrita, entretanto ainda no eram capazes
de uma insero significativa nas diferentes prticas sociais de leitura e escrita
existentes fora da escola. Esta reflexo me fez sentir, novamente, que algum estava
pelo meio do caminho. Desta vez no eram apenas os alunos, mas tambm os
professores. Na condio de formadora, me deparei com o desafio de garantir aos
professores o direito de aprender a ensinar.
A experincia em Batalha me levou ao PCN em Ao e ao PROFA (Programa de
Formao de Professores Alfabetizadores), dois programas de formao de professores
implementados na ltima gesto do governo FHC (1999-2002). O primeiro consistia
basicamente em garantir espaos nas escolas pblicas para leitura dos Parmetros
Curriculares Nacionais, e o segundo destinava-se formao dos professores
alfabetizadores. Em 2000, trabalhei no PCN em Ao e, a partir de 2001, com o
lanamento do PROFA, passei a me dedicar exclusivamente a sua implementao no
estado da Bahia. Alm da coordenao geral do programa no estado, tambm
acompanhava de modo mais sistemtico os Polos de Irec, Camaari, Ilhus, Feira de
Santana e Salvador.
Estes programas foram idealizados a partir das proposies do Plano Decenal de
Educao (1993 a 2003) e das orientaes da atual Lei de Diretrizes e Bases da
Educao Nacional 9394/96, que orientavam a implementao da capacitao em
servio e de programas de educao continuada para os profissionais de educao, dos
diversos nveis.
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A partir deste documento, passei a defender, juntamente com centenas de formadores de
professores espalhados pelo pas, a experincia docente como categoria fundante do
conhecimento profissional dos professores. Este movimento contribuiu sobremaneira
para a consolidao da concepo de profissional de educao que tem na docncia a
sua particularidade e especificidade. A trade conhecimento na ao, reflexo na ao e
reflexo sobre a reflexo na ao3 passou a ser o discurso oficial, explicitado nas
diretrizes de formao de professores em todo o pas.
Desta vez, acreditava que o direito de aprender a ensinar estaria assegurado a todos os
professores e que, finalmente, conseguiramos elevar os ndices de alfabetizao do
pas. O PROFA conseguiu disseminar pelo pas no apenas as pesquisas psicogenticas
sobre o processo de construo da leitura e da escrita, mas tambm as ideias iniciais em
torno de uma teoria didtica que poderia orientar as prticas educativas. Apesar disto, o
que prevalecia em grande parte das salas de aula das escolas brasileiras ainda eram as
atividades da cartilha, reproduzidas clandestinamente como uma alternativa
incompreenso sobre como alfabetizar em uma perspectiva mais prxima das prticas
sociais de leitura e produo de texto.
O PROFA tambm pretendia consolidar uma poltica pblica de formao de
professores alfabetizadores e, para isto, orientou as redes municipais a designarem um
grupo de profissionais que pudessem realizar os encontros formativos com os
professores. Alm disto, tambm disponibilizou uma sequncia de pautas para
realizao destes encontros com todos os recursos selecionados e com intervenes
minuciosamente detalhadas. Naquele momento acreditava-se que os educadores das
redes municipais aprenderiam a ser formadores de professores, se tivessem acesso a um
bom modelo de prticas formativas.
Aps os dois anos (2001-2002) de realizao do PROFA, quase nada restou nas redes
municipais, e os ndices nacionais revelavam que os estudantes ainda estavam ficando
pelo meio do caminho. H vrios aspectos que podem justificar esse resultado. A
problemtica em torno da leitura e da escrita no Brasil extremamente complexa
porque envolve desde as questes mais amplas, como os impactos negativos da
descontinuidade poltica, at as precrias condies de trabalho dos professores.
3 Esta discusso estava referendada principalmente nas ideias de Donald Schn (1997) e Antnio Nvoa
(1992, 1995a, 1995b, 1999, 2002).
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No entanto, o que gostaria de destacar a ausncia de articulao com o contexto
educacional de cada lugar e a falta de envolvimento dos educadores na construo de
uma proposta de formao continuada para a sua regio. O PROFA foi um forasteiro
que chegou nas redes municipais mais longnquas do pas, discutindo as mesmas coisas
e do mesmo jeito em todos os lugares, sem considerar as peculiaridades, demandas e
potencialidades de cada contexto social.
Alm das questes relacionadas formao continuada, tambm estava instalada no
pas uma discusso sobre a formao inicial de professores, considerada como um
aspecto relevante no cenrio de insucessos. Para amenizar a distncia entre as
universidades e as escolas, a LDB 9394/96 sugeriu a formao de professores da
educao infantil e das sries iniciais, at ento formados nas chamadas escolas
normais, depois curso pedaggico no ento denominado 2 Grau, em Institutos
Superiores de Educao.
Foi ento que, em julho de 2002, tive a oportunidade de implementar e coordenar o
Curso Normal Superior, das Faculdades Jorge Amado (FJA), na qual atuei at julho de
2006. O curso assumia em seu projeto pedaggico o compromisso de enfrentar as
lacunas da formao de professores. No bojo dessas mudanas, o Instituto Superior de
Educao (ISE) da FJA ps forte assento na concretizao de um projeto orientado pelo
princpio de assegurar aos alunos da educao bsica o direito de aprender na escola,
uma vez que estatsticas denunciavam o fosso entre o acesso e a democratizao do
conhecimento que a escola teria por dever socializar.
Diante desta proposio, o ISE tomou como principal referncia as orientaes dos
Referncias de Formao de Professores, elaborado pelo MEC em 1998, e assumiu
como eixo curricular a atuao profissional. A experincia docente possua na matriz
curricular do Curso Normal Superior status de categoria fundante do conhecimento
profissional dos professores. Do total de 2.844 horas, 800 horas eram destinadas
Prtica de Ensino e ao Estgio Supervisionado e 1.044 para as Didticas Especficas de
cada rea do conhecimento, isto , cerca de 65% da carga horria do curso estava
diretamente relacionada aos estudos da prtica docente.
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No decorrer do primeiro semestre letivo de 2006, realizei parte da minha pesquisa de
mestrado4com dois grupos de concluintes do Curso Normal Superior, dos quais era
professora. As noventa e nove alunas eram, na sua totalidade, profissionais que j
atuavam nas Sries Iniciais da Rede Municipal de Ensino de Salvador e que, por fora
da Lei 9394/96, ingressaram na formao considerada inicial, no mbito do ensino
superior.
A pesquisa em questo buscava compreender o sentido que professores em formao
atribuam s situaes dilemticas, de natureza tica, presentes nas relaes que se
estabelecem no exerccio docente. Para tanto, uma das proposies que fiz aos
professores foi a elaborao de um plano de aula de Leitura, cujo recurso central seria a
fbula O leo e o rato, um texto frequentemente utilizado nas prticas educativas, de
acordo com o relato das prprias professoras. O que se revelou surpreendente foi que
nenhuma, das noventa e nove professoras, conseguiu vislumbrar outra possibilidade
para o trabalho de Leitura da Fbula O leo e o rato seno o ensino de determinados
contedos da Lngua Portuguesa que desconsideravam totalmente as caractersticas
socioculturais do objeto a ser ensinado. A discusso em torno do dilema moral, aspecto
que caracteriza a fbula como uma prtica social, no foi considerado um contedo de
ensino pelos dois grupos de concluintes do Curso Normal Superior.
As professoras pareciam estar condicionadas a determinadas instrues, como se
houvesse uma tcnica a ser aplicada em qualquer gnero textual, independentemente de
sua finalidade enquanto prtica social. Com este estudo, tive a oportunidade de perceber
claramente que a possibilidade de reflexo sobre o prprio fazer no estava contemplada
na instncia formativa, apesar do compromisso assumido pelo ISE com a atuao
profissional.
Ao tentar compreender as razes pelas quais as professoras no conseguiram
compreender, ao longo do curso, os sentidos do ato de ler, fui obrigada a reconhecer que
as 252 horas de Didtica da Alfabetizao e as 800 horas de Prtica de Ensino e Estgio
Supervisionado, previstas na matriz curricular do Curso Normal Superior para garantir a
4 Confabulaes na Formao de Professores: a experincia e o saber tico como saberes docentes.
Trabalho desenvolvido junto ao programa de Ps-Graduao em Educao e Contemporaneidade da
Universidade do Estado da Bahia, sob orientao da Profa Dra. Stella Rodrigues.
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qualificao da experincia docente, tinham se transformado em mera
instrumentalizao do ensino.
Na ocasio, essa questo j ecoava como um possvel desdobramento do trabalho
realizado durante o mestrado. Todas as vezes que estava em sala de aula, diante dos
meus alunos, professores e professoras em formao, me reconhecia na afirmativa de
Charlot5, ao confessar que passou anos fazendo de conta que formava professores. Mais
uma vez me dei conta de que professores estavam ficando pelo meio do caminho e que o
direito de aprender a ensinar novamente fora cerceado.
Todas as situaes relatadas at aqui, que passam pela condio de ser aluna, professora
e formadora, no expressam apenas uma experincia individual e localizada. A
produo e a naturalizao do fracasso escolar tm deixado milhes de pessoas pelo
meio do caminho, principalmente nas regies mais carentes do nosso pas.
1.2 A histria dos que ficam pelo meio do caminho no contexto nacional: a questo
do analfabetismo no Brasil
As reflexes que tiveram origem no meu percurso pessoal e profissional, me
provocaram a pensar no distanciamento entre os discursos e prticas de formao de
professores alfabetizadores, e no que acontece nas escolas pblicas espalhadas pelo
pas, que deixa muita gente pelo meio do caminho.
Atualmente j nos acostumamos com os discursos polticos e acadmicos que ressaltam
a luta pelo direito de aprender a ler e escrever na escola. No entanto, a discusso sobre o
analfabetismo mais recente do que parece e sua origem coincide com a prpria
inveno da escrita. Como provoca Lvy (1998), o paradoxo dos sistemas de comuni-
cao de vocao universal consiste em que estes geram quase automaticamente excluso.
Por exemplo, a inveno do alfabeto criou, ao mesmo tempo, o analfabetismo, o qual no
existia, obviamente, nas culturas puramente orais.
Assim, podemos ento dizer que, em alguns contextos histricos e sociais, o fato de no
saber ler e escrever provavelmente nunca se configurou como um problema social.
5 Publicada no texto Formao de Professores: a pesquisa e a poltica educacional. In: PIMENTA, S. e
GHEDIN. Professor reflexivo no Brasil: gnese e crtica de um conceito. 2 ed. So Paulo, SP: Cortez,
2002. p. 89-108.
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Diferente de outros, nos quais a apropriao dos usos sociais da leitura e da escrita um
dos fatores determinantes da relao dos indivduos com a sociedade, o analfabetismo
muitas vezes se constitui como uma maneira de manter o estado das coisas.
No caso brasileiro, a passagem do sculo XIX para o sculo XX representou um
momento importante de transformao de nossa sociedade, que se urbanizava em
grande velocidade, sobretudo a capital da Repblica, o Rio de Janeiro, e a cidade de So
Paulo, que emergia como centro econmico do pas. Essa urbanizao no foi um
fenmeno isolado, mas parte de um conjunto de mudanas importantes, como a
substituio do trabalho escravo pelo trabalho livre, a proclamao da Repblica, o
aumento da importncia do comrcio e, mais tarde, da indstria, na estruturao da
economia.
Essas transformaes implicaram um novo conjunto de prticas sociais que dependiam
de uma cultura letrada, e a escolarizao foi, sem dvida, um instrumento importante na
construo desse novo momento. sempre bom lembrar que o acesso escola, neste
momento de modernizao conservadora, era um privilgio da elite e, portanto, um
importante instrumento de segmentao da sociedade, apartando os que a ela tinham
acesso dos que nela no podiam entrar.
Nestas situaes, o jogo entre alfabetizao e analfabetismo sempre esteve permeado
por fatores polticos, sociais e/ou econmicos.
Os limites entre a luta contra o analfabetismo e a naturalizao do fracasso escolar
sempre foram extremamente tnues, a depender dos interesses dos que decidem o
desfecho desta questo, em cada momento histrico.
Para que a idia de alfabetizao ganhe significado, deve ser situada em uma teoria de produo cultural e encarada como parte integrante
do modo pelo qual as pessoas produzem, transformam e reproduzem
significados. A alfabetizao deve ser vista como um meio que contribui tanto para produzir como para reproduzir as experincias
culturais de determinados grupos sociais. Da, ser ela um fenmeno
eminentemente poltico e dever ser analisada no contexto de uma teoria de relaes de poder e de uma compreenso da reproduo e da
produo social e cultural (MACEDO, 2000, p.85)
A provocao de Macedo situa a discusso sobre o analfabetismo no mbito das
relaes sociais, no modo como cada indivduo e cada coletividade produz e reproduz o
seu habitus, ou seja, seus esquemas simblicos de organizao da atividade prtica.
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Desta forma, considero relevante compreender como a questo do analfabetismo foi
engendrada no contexto social brasileiro e, para tanto, retomarei alguns pontos cruciais
da histria da alfabetizao no Brasil.
O analfabetismo surgiu como uma questo no Brasil apenas no final do perodo
imperial. Ferrari (2002, p. 21-47) apresenta uma sntese histrica deste fato e ressalta
que a questo emergiu com a reforma eleitoral de 1882 (Lei Saraiva), a qual, de um
lado, derrubou a barreira de renda, mas, de outro, estabeleceu a proibio do voto do
analfabeto. Mais tarde, a Constituio Republicana de 1891 manteve a excluso dos
que no sabiam ler e escrever, do processo eleitoral e, desta forma,
(...) nomeava e identificava o sujeito do analfabetismo, designava o
resultado negativo da alfabetizao, sobre a qual nada falava. Surgia,
assim, no discurso jurdico a figura do analfabeto como um objeto, um
dado da percepo, uma grande evidncia social a partir da qual os discursos e prticas poderiam se organizar nesses novos tempos
republicanos. (SILVA, 1998, p.22)
Naquele momento, ficaram de fora do processo eleitoral as mulheres, os mendigos, os
analfabetos e os religiosos sujeitos a votos de obedincia. Assim, o destaque e o
privilgio concedidos aos indivduos alfabetizados reposicionaram a questo da
alfabetizao no contexto social. A apropriao da cultura escrita se consolidou, ento,
como um aspecto determinante desta diferena social, marginalizando alguns e
concedendo notoriedade a outros. Para Ana Maria Arajo Freire,
Numa poca em que o Brasil contava com, aproximadamente 85% de
analfabetos, exclu-los do processo eleitoral, como tambm as mulheres, conforme interpretao da poca, era diminuir
intencionalmente o nmero de eleitores (e sua qualidade tambm) e,
assim, perpetuar a sociedade de direitos e privilgios de muito poucos.
(FREIRE, 1989, p. 163)
A mesma autora destaca, tambm, as razes pelas quais foram excludos as mulheres e
os analfabetos do direito de votar e de serem votados:
A mulher mais uma vez se viu proscrita deste espao diante de suas qualidades morais incompatveis, segundo o pensamento da poca,
com a ao poltica. Os homens analfabetos porque se compreendia
que eram incapazes de pensar e decidir, portanto de votar, embora
grande parte deles fizesse parte do processo produtivo que gerava a riqueza nacional. Os mendigos, que eventualmente poderiam at ser
alfabetizados, eram excludos muito certamente porque no faziam
parte da massa trabalhadora produtiva. Essa contradio analfabeto - trabalhador e possvel alfabetizado - no trabalhador evidencia (...) a
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vontade poltica dos homens polticos brasileiros de ento fazer
vigente, constitucionalmente, a ideologia da interdio do corpo aos
segmentos menos valorizados da sociedade, outorgando-lhes a si prprios todos os direitos e privilgios. (Idem, p.163 e 164)
A ruptura entre indivduos alfabetizados e indivduos analfabetos tem origem, portanto,
neste momento histrico, e seus sentidos e significados so carregados de crenas e
valores, que desqualificam os que no participavam das prticas sociais de leitura e
escrita como incapazes de pensar e de participar da vida pblica. Os analfabetos
aparecem como sujeitos histricos, mas no como aqueles que fracassaram na escola,
visto que o acesso escola ainda era destinado apenas para uma pequena parcela da
populao.
O segundo momento da histria do analfabetismo no Brasil est compreendido entre as
dcadas de 1920 e 1930. Neste perodo, a erradicao do analfabetismo surge como
tema em funo de interesses econmicos, um discurso ideolgico que depositava na
formao dos indivduos, e no na transformao das estruturas sociais e econmicas
herdadas do momento anterior, a superao do atraso. Esse discurso postulava a
educao como uma condio para deslocar a concentrao de poder e inserir um modo
de produo capitalista no pas, no qual o povo aparecia como um obstculo ao
desenvolvimento.
Um dos grupos que emergia mais clara e firmemente na dcada de 20 a burguesia industrial e os novos polticos interessava-se pela
educao popular, mas, evidentemente, com objetivos que
resguardassem seus interesses: alfabetizar as camadas subalternas, sobretudo o proletariado, segundo suas doutrinas, podendo assim, ter
mo-de-obra qualificada e a possibilidade de desestabilizar, atravs de
eleies diretas e secretas, o poder absoluto da oligarquia cafeeira.
(Idem, p.221)
O iderio educacional desse perodo pretendia, ao mesmo tempo, qualificar mo de obra
para trabalhar em uma economia que se reestruturava, e inculcar valores sociais que
favorecessem comportamentos individuais e coletivos identificados com o modelo
liberal burgus, importado da Europa, pouco alterando as estruturas de dominao
herdadas dos perodos anteriores.
Deste modo, a questo dos valores sociais se tornou cada vez mais importante e, em
pouco tempo, foi ampliada a oferta de educao regular, com o propsito de superar os
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entraves ao desenvolvimento da nova sociedade capitalista e republicana, em que as
diferenas se redefiniam, sem necessariamente serem superadas.
Isso fez com que a educao se transformasse, na dcada de 20, no grande problema
nacional. A crise do caf no mercado internacional fragilizava toda a estrutura de nossa
sociedade, exigindo mudanas; portanto, a educao, por sua prpria natureza de
formao de valores, parecia um timo caminho para a redefinio da sociedade e lhe
conduziria ao progresso. Uma das funes da educao muito valorizada nesta poca,
segundo Carvalho (1998, p.120), a sua capacidade de promover civismos: civismos
de elites idealistas e devotadas s causas nacionais; civismo do povo laborioso e
ordeiro, dedicado produo de riquezas civismo que se espera (propicie) a abertura
ao pas dos caminhos que conduzam ao que visto como progresso.
Neste contexto, a alfabetizao passou a ser compreendida como uma questo
econmica e uma estratgia de manipulao social por aqueles que definiam os rumos
da sociedade.
O que se viu, a partir deste momento, foi a constituio de um pas mais moderno, que
procurava se adequar s demandas externas, mas incapaz de promover diminuio nas
desigualdades sociais e, portanto, de superar as suas prprias contradies. Na verdade,
essa modernizao conservadora foi responsvel por um aumento das diferenas sociais,
assegurando vantagens para poucos e deixando milhes de brasileiros pelo meio do
caminho.
A partir dos anos 80, com o declnio do regime militar, a discusso sobre o
analfabetismo ressurge com fora no Brasil. A efervescncia no ambiente poltico e
cultural do pas potencializou os debates em torno da dimenso poltica e social da
educao, e as reflexes sobre o analfabetismo passaram a incorporar um
(...) conjunto de aspectos - polticos, econmicos, sociais e
pedaggicos e a se orientar explcita e predominantemente por uma teoria sociolgica dialtico-marxista, divulgada e/ou formulada por
intelectuais acadmicos brasileiros de diferentes reas de
conhecimento sociologia, filosofia, histria e educao,
especialmente. (MORTATTI, 2000, p. 258)
Em meio s lutas para a redemocratizao do pas, alm da retomada do Estado pela
sociedade civil, diversos direitos foram pleiteados, entre eles o direito educao. Neste
momento, as contundentes crticas ao modelo de organizao educacional, considerado
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anacrnico, entre outras questes, deram forma ao que, mais tarde, se consolidaria como
um direito constitucional, previsto na Constituio Federal promulgada em 1988. Nela,
o direito a uma educao pblica, laica, gratuita e de qualidade faz com que a
erradicao do analfabetismo deixe de ser uma questo funcional do sistema para se
converter na luta pela afirmao de um direito constitucional.
A democracia passa, ento, a ser vista no apenas como uma forma de organizao do
Estado, mas como um sistema social pautado pela igualdade de direitos, pela liberdade
de expresso e de organizao poltica, no sentido de afirmar direitos e
responsabilidades sociais. Neste terceiro momento histrico, a alfabetizao
considerada no apenas em sua dimenso econmica, mas um ato poltico, voltado
para a emancipao pessoal, para a conscientizao poltica e para a ampliao da
participao social do alfabetizando. (PREZ, 2008, p. 197)
Esta breve retomada histrica, delineada at aqui, mostra que o desafio de desnaturalizar
a condio dos que que ficam pelo meio do caminho uma construo recente da
sociedade contempornea. A alfabetizao no uma questo puramente educacional,
ela sempre transversalizada por interesses polticos, econmicos, sociais, culturais e
tecnolgicos, o que faz com que a sua discusso esteja sempre suscetvel a paradoxos e
contradies.
1.3 A situao atual dos que ficam pelo meio do caminho: nmeros, promessas e
desafios
Os nmeros que revelam o contingente de indivduos que ficam pelo meio do caminho
na educao brasileira comearam a surgir a partir do momento em que a discusso
sobre a alfabetizao ultrapassou os limites ideolgicos e passou a se constituir tambm
como um interesse econmico, alm das demandas sociais.
A Tabela 1 apresenta as taxas de analfabetismo no pas entre 1920 e 2010, de acordo
com os dados estatsticos do IBGE, e mostra uma queda percentual significativa de
analfabetos no pas entre a dcada de 1920 e 2010. Apesar desta reduo, o nmero
absoluto de analfabetos no pas ainda assustador.
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Tabela 1 - Taxas de analfabetismo no Brasil entre 1920 e 2010
Ano
Populao de 15 anos ou mais
Total Nmero Absoluto de
Analfabetos
Percentual de
Analfabetos
1920 17.557.282 11.401.715 64,9
1940 23.709.769 13.242.172 55,9
1950 30.249.423 15.272.632 50,5
1960 40.278.602 15.964.852 39,6
1970 54.008.604 18.146.977 33,6
1980 73.542.003 18.716.847 25,5
1991 95.810.615 18.587.446 19,4
2000 119.533.048 16.294.889 13,6
2010 190.732.694 13.933.173 9,6
Fonte: IBGE. Censo Demogrfico 1920-2010. (Grifos nossos)
Atualmente, encontra-se em tramitao no Congresso Nacional o projeto de lei que cria
o Plano Nacional de Educao (PNE) para o decnio 2011-2020, com vistas ao
cumprimento do disposto no art. 2146 da Constituio de 1988. O novo PNE apresenta
dez diretrizes objetivas e 20 metas, seguidas das estratgias especficas de
concretizao. Destas, duas esto diretamente relacionadas questo do analfabetismo:
Meta 5: Alfabetizar todas as crianas at, no mximo, os oito anos de idade.
Meta 9: Elevar a taxa de alfabetizao da populao com 15 anos ou
mais para 93,5% at 2015 e erradicar, at 2020, o analfabetismo
absoluto e reduzir em 50% a taxa de analfabetismo funcional
Para compreender melhor o que representam essas metas em relao ao analfabetismo
funcional, preciso recorrer aos dados do Indicador de Alfabetismo Funcional (INAF)7,
apurado anualmente desde 2001 por meio de estudo realizado pelo IBOPE Opinio,
com base na metodologia desenvolvida em parceria entre o Instituto Paulo Montenegro
(IPM) responsvel pela atuao social do IBOPE e a ONG Ao Educativa.
De acordo com as informaes disponibilizadas no site do IPM, o INAF mensura os
nveis de alfabetismo funcional da populao brasileira entre 15 e 64 anos de idade,
6 Art. 214. A lei estabelecer o plano nacional de educao, de durao plurianual, visando articulao e
ao desenvolvimento do ensino em seus diversos nveis e integrao das aes do Poder Pblico que
conduzam : I - erradicao do analfabetismo; II - universalizao do atendimento escolar; III - melhoria
da qualidade do ensino; IV - formao para o trabalho; V - promoo humanstica, cientfica e
tecnolgica do Pas.
7 Informaes e dados disponibilizados no site do Instituto Paulo Montenegro: http://www.ipm.org.br/.
(Disponvel em: http://www.ipm.org.br/ipmb_pagina.php?mpg=4.02.00.00.00&ver=por, 31/07/2013).
http://www.ipm.org.br/http://www.ipm.org.br/ipmb_pagina.php?mpg=4.02.00.00.00&ver=por
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englobando residentes em zonas urbanas e rurais de todas as regies do Brasil, quer
estejam estudando ou no. Entre 2001 e 2005, o INAF foi divulgado anualmente,
alternando as habilidades pesquisadas. Assim, em 2001, 2003 e 2005 foram medidas as
habilidades de leitura e escrita (letramento) e em 2002 e 2004, as habilidades
matemticas (numeramento). A partir de 2007, a pesquisa passou a ser bienal, trazendo
simultaneamente as habilidades de letramento e numeramento e mantendo a anlise da
evoluo dos ndices a cada dois anos.
O INAF segue as orientaes da UNESCO e adota os conceitos de analfabetismo e
alfabetismo funcional. Alm disto, o INAF tambm institui nveis de alfabetismo
funcional8, a saber:
Analfabeto - Corresponde condio dos que no conseguem realizar tarefas simples
que envolvem a leitura de palavras e frases ainda que uma parcela destes consiga ler
nmeros familiares (nmeros de telefone, preos etc.);
Rudimentar - Corresponde capacidade de localizar uma informao explcita em
textos curtos e familiares (como um anncio ou pequena carta), ler e escrever nmeros
usuais e realizar operaes simples, como manusear dinheiro para o pagamento de
pequenas quantias ou fazer medidas de comprimento usando a fita mtrica;
Bsico - As pessoas classificadas neste nvel podem ser consideradas funcionalmente
alfabetizadas, pois j leem e compreendem textos de mdia extenso, localizam
informaes mesmo que seja necessrio realizar pequenas inferncias, leem nmeros na
casa dos milhes, resolvem problemas envolvendo uma sequncia simples de operaes
e tm noo de proporcionalidade. Mostram, no entanto, limitaes quando as
operaes requeridas envolvem maior nmero de elementos, etapas ou relaes; e
Pleno - Classificadas neste nvel esto as pessoas cujas habilidades no mais impem
restries para compreender e interpretar textos em situaes usuais: leem textos mais
longos, analisando e relacionando suas partes, comparam e avaliam informaes,
distinguem fato de opinio, realizam inferncias e snteses. Quanto matemtica,
resolvem problemas que exigem maior planejamento e controle, envolvendo
8 Informaes disponveis no site do Instituto Paulo Montenegro: http://www.ipm.org.br/. (Disponvel
em: http://www.ipm.org.br/ipmb_pagina.php?mpg=4.02.00.00.00&ver=por, 31/07/2013).
http://www.ipm.org.br/http://www.ipm.org.br/ipmb_pagina.php?mpg=4.02.00.00.00&ver=por
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percentuais, propores e clculo de rea, alm de interpretar tabelas de dupla entrada,
mapas e grficos.
Na Tabela 2 possvel observar a situao da alfabetizao no Brasil nos ltimos 10
anos. De acordo com a anlise realizada pelo prprio INAF,
os resultados mostram que durante os ltimos 10 anos houve uma
reduo do analfabetismo absoluto e da alfabetizao rudimentar e um
incremento do nvel bsico de habilidades de leitura, escrita e matemtica. No entanto, a proporo dos que atingem um nvel pleno
de habilidades manteve-se praticamente inalterada, em torno de 25%.9
Tabela 2 Evoluo do Indicador de Alfabetismo Funcional 2001 a 2011/INAF
Evoluo do Indicador de Alfabetismo Funcional
Populao de 15 a 64 anos (em %)
2001-2002 2002-2003 2003-2004 2004-2005 2007 2009 2011-2012
Analfabeto 12 13 12 11 9 7 6
Rudimentar 27 26 26 26 25 21 21
Bsico 34 36 37 38 38 47 47
Pleno 26 25 25 26 28 25 26
Analfabetos funcionais
(Analfabeto e Rudimentar) 39 39 38 37 34 27 27
Alfabetizados funcionalmente
(Bsico e Pleno) 61 61 62 63 66 73 73
Fonte: INAF BRASIL 2001 a 2011
A Tabela 2 revela uma progresso muito lenta dos resultados nos ltimos anos. A taxa
de analfabetismo caiu de 12% para 6% em 10 anos e a taxa de alfabetismo pleno
permanece a mesma. Nas duas ltimas linhas do quadro temos uma sntese desta
situao. No perodo 2001-2002 o percentual de alfabetismo e analfabetismo era de
61% e 39%, respectivamente. Uma dcada depois, passamos para 73% e 27%. Isto
significa que o deslocamento de um para outro foi de 12%.
Diante deste cenrio, torna-se interessante uma reflexo mais detalhada da Meta 9,
projetada pelo Plano Nacional de Educao para o decnio 2011-2020. A meta se divide
em 3 desafios: elevar a taxa de alfabetizao da populao com 15 anos ou mais para
93,5% at 2015 e erradicar, at 2020, o analfabetismo absoluto e reduzir em 50% a taxa
de analfabetismo funcional (BRASIL, 2010, p.11)
9 Disponvel em: http://www.ipm.org.br/ipmb_pagina.php?mpg=4.02.01.00.00&ver=por , em 31/07/2013
http://www.ipm.org.br/ipmb_pagina.php?mpg=4.02.01.00.00&ver=por
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A proposta de erradicar o analfabetismo absoluto at 2020 pressupe a manuteno da
progresso da dcada anterior. Se levamos uma dcada para reduzir 6 pontos
percentuais na taxa de analfabetismo, erradic-la at 2020 significa reduzir a mesma
quantidade.
Quando realizamos a mesma anlise de outro desafio definido na Meta 9, que sugere a
reduo em 50% a taxa de analfabetismo funcional at 2020, tambm podemos
constatar certa timidez diante do que se projeta para o pas. No decnio 2001-2010
tivemos uma reduo de 39% para 27%, o que representa uma queda de 12 pontos
percentuais. O desafio de reduzir em 50% essa mesma taxa significa reduzir at 2020
mais 13,5 pontos percentuais, ou seja, assim como na anlise anterior, aqui tambm
podemos identificar a manuteno da mesma progresso do decnio anterior.
Vale reconhecer que a erradicao do analfabetismo no uma tarefa simples. De
acordo com a ltima pesquisa do PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domiclio)
promovida pelo IBGE, a taxa de analfabetismo entre as pessoas de 15 anos ou mais de
idade parou de cair. Em 2011, essa taxa foi de 8,6% em 2012, estimada em 8,7%, o que
correspondeu ao contingente de 13,2 milhes de analfabetos.
A pesquisa revela tambm que a taxa de analfabetismo no Brasil maior entre os
grupos de idades mais elevadas. No grupo de 15 a 19 anos a taxa de analfabetismo foi
de 1,2% e, no grupo de 60 anos ou mais, o ndice de 24,4%. A erradicao do
analfabetismo das pessoas mais idosas implica uma mudana profunda nos costumes,
crenas e valores. Para este grupo o analfabetismo j constitui o seu modo de ser, de
viver e de estar pelo meio do caminho. Por isto no costuma se configurar como um
problema, principalmente para aqueles que residem em localidades distantes, onde os
usos sociais da leitura e da escrita no so to determinantes para a sua participao nas
atividades sociais.
Alm dos dados do IBGE e do INAF, tambm precisamos considerar os resultados do
PISA - Programa Internacional de Avaliao de Estudantes, produzido pela OCDE
(Organizao para Cooperao e Desenvolvimento Econmico), para compreender a
situao do fracasso escolar no Brasil. O PISA realiza provas por amostragem a cada
trs anos, com foco nas competncias de leitura, escrita e matemtica de estudantes de
15 anos que tenham cursado pelo menos at o 7 ano da Educao Bsica. No Brasil, o
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Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Ansio Teixeira (Inep) o
responsvel pela aplicao das provas. A primeira edio foi em 2000 e, a mais recente,
em 2012.
As provas que tiveram foco na leitura foram realizadas em 2000 e 2009. Na primeira
edio, o Brasil atingiu a mdia de 368 pontos, enquanto que em 2009 chegou aos 401.
Numa viso otimista possvel reconhecer que houve uma evoluo de 33 pontos, o que
garantiu ao pas a terceira maior evoluo entre os ltimos da lista de 65 naes. Em
2000 o Brasil amargou o ltimo lugar no ranking geral e, em 2009, ficou com a 53
posio, frente de Argentina e Colmbia, mas atrs de Mxico, Uruguai e Chile.
A pontuao obtida em 2009 revela que 51% dos alunos avaliados encontram-se nos
nveis 2 ou superiores, e 49% ficam no nveis 1 ou 0, em uma escala de Proficincia em
Leitura que vai de 0 a 5. Alm disso, preciso tambm considerar os alunos com 15
anos que esto fora da escola ou em situao de atraso escolar. De acordo com os dados
do INEP, esse grupo corresponde a 19,4% dos jovens de 15 anos.
Vale ressaltar que o PISA no pode ser tomado como uma referncia absoluta sobre o
contexto educacional brasileiro, mas inegvel que os dados revelam que muitos jovens
esto ficando pelo meio do caminho. A soma do contingente de alunos com baixa
proficincia com o de alunos que nem puderam ser avaliados mostra que mais da
metade dos jovens brasileiros no so capazes de compreender textos relativamente
simples.
O que merece destaque que, a partir da dcada de 1980, o que era regra comeou a ser
considerado um incmodo, uma vergonha nacional. Antes estava posto nos arranjos do
jogo poltico e econmico deixar alguns pelo meio do caminho, e faz muito pouco
tempo que comeamos a incorporar, no discurso poltico e educacional, a
responsabilidade pela aprendizagem de todos. Entretanto, mudar essa crena no algo
simples.
No mbito nacional, a lentido dos avanos dos indicadores de qualidade da educao
revelam as contradies de uma sociedade desigual, e super-la uma questo muito
complexa. Poderamos dizer que suas causas perpassam desde as questes mais amplas,
como as desigualdades regionais, a m distribuio de renda e o trabalho infantil, at
questes locais, de cada rede de ensino, relacionadas, por exemplo, baixa remunerao
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profissional, evaso escolar e, principalmente, ausncia de materiais da cultura
escrita.
Os analfabetos brasileiros tm nome e endereo. Uma rpida reflexo sobre quem so os
alunos que fracassam na escola indica aquele indivduo que est impedido de exercer o
seu direito social de vivenciar o processo de escolarizao, seja pela moradia distante da
escola ou pela insero precoce no mundo do trabalho. Esse ser social diferente em
gnero, etnia, idade, mas possui algo em comum: a natureza de classe social que, no
caso brasileiro, significa a negao de quase todos os direitos sociais, posto que, em
nosso pas, o Estado do Bem Estar Social nunca passou de um discurso ideolgico.
1.4 O desafio de encontrar alternativas para os que ficam pelo meio do caminho:
proposio de uma trilha de pesquisa
No contexto particular, vivi a angstia de saber que quase fiquei pelo meio do caminho
e que posso ter deixado muitos estudantes e professores tambm pelo meio do caminho.
Entretanto, no contexto nacional, durante vrias dcadas, era perfeitamente concebvel
deixar milhes de brasileiros pelo meio do caminho. A lgica dos excludos se
consagrou e os que ficam pelo meio do caminho passaram a ser considerados como um
problema apenas na histria recente.
A partir de ento, a questo do fracasso escolar passou a ser uma pedra no meio do
caminho de educadores e polticos, e a busca pelos responsveis se intensificou. Quem
responsvel pelo fracasso escolar: os estudantes, os professores, a escola ou o sistema
de ensino?
Para Charlot (2000, p.16), o objeto fracasso escolar no existe como tal, mas se
caracteriza como um conjunto de fenmenos, observveis, comprovados, que a
opinio, a mdia, os docentes agrupam sob o nome de fracasso escolar. O autor insiste
na ideia de que o fracasso escolar no existe como uma coisa, ou seja, no possvel
contextualiz-lo como algo isolado.
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39
A noo de fracasso escolar remete para fenmenos designados por
uma ausncia, uma recusa, uma transgresso ausncia de resultados,
de saberes, de competncia, recusa de estudar, transgresso das regras... O fracasso escolar no ter, no ser. (CHARLOT, 2000,
p.17)
Assim, as reflexes em torno do fracasso escolar exigem sempre uma anlise das
diversas relaes que engendram as situaes de fracasso. Por este motivo, no
possvel afirmar quem responsvel pelo fracasso escolar porque, na condio de
fenmeno, exige uma anlise dos aspectos sociais, culturais, econmicos e polticos que
foram determinantes ao longo da histria.
O que se constata na histria recente que as situaes de fracasso escolar esto
naturalizadas no contexto educacional, e o que gera espanto, por oposio, so as
situaes de sucesso escolar. Na minha experincia profissional tambm fui
surpreendida com uma experincia de sucesso. Em 2007, fui convidada a integrar a
equipe de formadores do ICEP Instituto Chapada de Educao e Pesquisa e me
deparei com uma proposta de formao continuada com resultados surpreendentes.
O Instituto Chapada de Educao e Pesquisa (ICEP) uma Organizao da Sociedade
Civil de Interesse Pblico OSCIP, com sede em Caet-Au, distrito de Palmeiras, na
Chapada Diamantina. A histria desta instituio teve incio em 2000, com a criao do
Projeto Chapada, uma iniciativa de um grupo de professores, profissionais liberais,
membros de organizaes da sociedade civil e gestores municipais de 12 municpios da
Chapada Diamantina, sob a liderana da educadora Cybele Amado de Oliveira, atual
presidente da instituio, com a finalidade de responder ao desafio de melhorar a
qualidade da educao pblica municipal, em uma regio com o segundo pior IDH
(ndice de Desenvolvimento Humano) do estado e ltima colocada quanto ao ndice de
Desenvolvimento Social, conforme dados da Superintendncia de Estudos Econmicos
e Sociais da Bahia (SEI-BA 2002).
O Projeto Chapada enfrentou enormes desafios a partir de um processo inicial de
avaliao diagnstica da situao, partilha destes resultados com a comunidade, seguido
de um processo de formao continuada em servio para professores, coordenadores
pedaggicos e diretores escolares, com foco na Leitura e Escrita. No incio, grande parte
das secretarias de educao dos municpios parceiros do projeto no possuam equipes
tcnicas, e as escolas no contavam com a figura do coordenador pedaggico.
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40
O Projeto Chapada comeou atuando apenas no municpio de Palmeiras. Em 2000, 12
municpios integravam o projeto e, em 2005, totalizavam 25 redes municipais de ensino.
Em 2006, os excelentes resultados gerados pelo Projeto deram origem ao Instituto
Chapada de Educao e Pesquisa, ampliando o raio de ao da tecnologia social
desenvolvida ao longo de quase dez anos de trabalho.
O ICEP articula uma grande rede social, formada por diversos setores da sociedade
civil, redes pblicas de ensino e poder poltico, em prol da desnaturalizao do fracasso
escolar e da melhoria da educao nos municpios parceiros. Isto ocorre atravs da
mobilizao e implementao de aes conjuntas entre as secretarias de educao, as
equipes tcnicas, os diretores escolares, os coordenadores pedaggicos e os professores
alfabetizadores.
O Projeto Chapada atua no sentido de colaborar para a formulao de polticas pblicas
educacionais de qualidade, pautadas em diretrizes legais. A formao continuada de
educadores articulada ao contexto de trabalho, a estruturao e reestruturao das
secretarias municipais de educao e a composio de quadros de formadores regionais
so importantes produtos das atividades desenvolvidas pelo ICEP. Em 2010, Boa Vista
do Tupim, Piat e Ibitiara foram os trs melhores IDEBs10 do Estado da Bahia, todos
vinculados ao Instituto Chapada desde 2000.
Esse resultado fruto das aes afirmativas em prol da qualidade do sistema pblico e
da sustentabilidade das polticas pblicas educacionais de uma rede colaborativa pela
qualidade da educao. O ICEP compreende a educao como um direito social e, por
este motivo, a luta pela superao do analfabetismo compreendida pela instituio
como uma ao poltica.
Entre os municpios parceiros do Projeto Chapada, o que mais me chamou a ateno foi
Boa Vista do Tupim, localizado a 318 km de Salvador e com 18.000 habitantes
aproximadamente, sendo 64% na zona rural, de acordo com o Censo Demogrfico
2010. No ano 2000 ocupava a 274 posio no ranking do IDH-M do estado da Bahia e,
em 2005, o IDEB era de 2,2.
10O IDEB (ndice de Desenvolvimento da Educao Bsica) um indicador de qualidade educacional que
combina informaes de desempenho em exames padronizados (Prova Brasil ou Saeb) obtido pelos
estudantes ao final das etapas de ensino (4 e 8 sries do ensino fundamental e 3 srie do ensino mdio)
com informaes sobre rendimento escolar (aprovao)
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41
Em 2009 fui convidada a atuar no municpio, como formadora externa dos
coordenadores pedaggicos do Ensino Fundamental I. Nesta aproximao identifiquei
uma inverso da lgica que determina o fracasso escolar como algo natural. Boa Vista
do Tupim havia consolidado a crena de que todos os estudantes poderiam aprender a
ler e a produzir textos na escola, independente das condies socioculturais do
municpio.
Em Boa Vista do Tupim no havia espao para discusses sobre o fracasso escolar. Os
educadores que l encontrei no identificavam a formao precria dos professores, a
dificuldade dos pais em acompanhar os filhos ou at mesmo a pobreza como
justificativa para os que ficavam pelo meio do caminho. O que estava naturalizado no
era o fracasso, mas as possibilidades de produo do sucesso escolar existentes em cada
sala de aula das escolas da rede municipal.
Esta certeza tambm foi referendada pelos resultados do IDEB em 2007 e 2009, que
garantiram a Boa Vista do Tupim, por dois anos consecutivos, o primeiro lugar no
ranking estadual. Entretanto, a publicao do resultado de 2011 gerou, entre os
educadores, grande surpresa. A Tabela 3 mostra a evoluo do IDEB entre 2005 e 2011.
Tabela 3 Evoluo do IDEB de Boa Vista do Tupim entre 2005 e 2011
Boa Vista do Tupim 5 ano 2005 2007 2009 2011
IDEB 2,2 4,8 5,8 4,0
Proficincia em Lngua Portuguesa 134,20 187,16 210,82 162,34
Proficincia em Matemtica 148,60 206,51 240,78 176,83
Taxa de Aprovao 0,69 0.90 0,91 0.93
Crescimento + 118% + 21% - 31%
Fonte: http://www.portalideb.com.br/
Inicialmente, os educadores no encontraram razes para a queda nos resultados do
IDEB em 2011, porque o municpio havia consolidado ainda mais o investimento na
formao continuada, a realizao peridica de avaliaes diagnsticas e a
implementao de planos de apoio pedaggico para os alunos com mais dificuldades.
Boa Vista do Tupim mostrou-se inconformado diante deste cenrio e, na tentativa de
http://www.portalideb.com.br/
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compreender o que havia acontecido, identificou uma queda significativa nos resultado
da Prova Brasil aplicada no 5 ano da Escola Abraham Lincoln.
A Professora Sandra Oliveira Lima, membro da equipe tcnica municipal responsvel
pela formao continuada dos diretores escolares, realizou um acompanhamento
escola e publicou em seu relatrio a seguinte anlise:
IDEB Abraham Lincoln 2009: 6.5
IDEB Abraham Lincoln 2011: 3.5
Intervenientes considerados pela escola que impactaram
negativamente o resultado:
A turma dos alunos que fizeram a Prova Brasil estava composta de
alunos repetentes, aprovados com ressalva e consequentemente com distoro idade/srie. Compreende mais de 90% dos alunos.
O reforo para essa turma s iniciou em julho. A Diretora alega que
solicitou da secretaria de educao uma professora para o reforo, mas s foi atendida em julho. Porm, a escola reconhece que deveria ter
planejado uma ao mais especfica de apoio para esses alunos. Foram
realizadas, antes do reforo, atividades diferenciadas, investimento em atividades de leitura, mas avaliam que precisavam de um apoio mais
sistemtico.
Outro aspecto que a escola traz diz respeito dificuldade dos alunos
em trabalhar com o gabarito da Prova Brasil. Apesar de terem planejado algumas situaes de gabarito, os alunos demonstraram
muita dificuldade e acreditam que muitos deles marcaram errado no
gabarito e certo na prova.
Esta anlise, realizada pela Professora Sandra Oliveira Lima, em parceria com os
educadores da Escola Abraham Lincoln, revela as fragilidades do IDEB, compreendidas
desde as questes mais amplas, como a dificuldade em garantir o acompanhamento aos
alunos que necessitavam de mais ajuda, at o preenchimento do gabarito.
Ao focalizarmos o IDEB ndice de Desenvolvimento da Educao
Bsica reconhecemos que ele remete a um conceito