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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA FACULDADE DE EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO A FORMAÇÃO CONTINUADA COMO UM PROCESSO EXPERIENCIAL A TRANS-FORMAÇÃO DOS EDUCADORES DE BOA VISTA DO TUPIM GIOVANA CRISTINA ZEN Salvador 2014

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

    FACULDADE DE EDUCAO

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM EDUCAO

    A FORMAO CONTINUADA COMO UM PROCESSO EXPERIENCIAL

    A TRANS-FORMAO DOS EDUCADORES DE BOA VISTA DO TUPIM

    GIOVANA CRISTINA ZEN

    Salvador

    2014

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    GIOVANA CRISTINA ZEN

    A FORMAO CONTINUADA COMO UM PROCESSO EXPERIENCIAL

    A TRANS-FORMAO DOS EDUCADORES DE BOA VISTA DO TUPIM

    Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em

    Educao da Universidade Federal da Bahia, como

    requisito parcial para a obteno do grau de Doutor

    em Educao.

    Orientadora: Profa. Dr. Maria Inez da Silva de

    Souza Carvalho.

    Salvador

    2014

  • SIBI/UFBA/Faculdade de Educao Biblioteca Ansio Teixeira Zen, Giovana Cristina. A formao continuada como um processo experiencial : a trans-formao dos educadores de Boa Vista do Tupim / Giovana Cristina Zen. 2014. 225 f. : il. Orientadora: Profa. Dra. Maria Inez da Silva de Souza Carvalho. Tese (doutorado) Universidade Federal da Bahia. Faculdade de Educao, Salvador, 2014. 1. Professores Formao - Boa Vista do Tupim (BA). 2. Professores - Educao (Educao permanente) - Boa Vista do Tupim (BA). 3. Rendimento escolar. 4. Experincia. I. Carvalho, Maria Inez da Silva de Souza. II. Universidade Federal da Bahia. Faculdade de Educao. III. Ttulo. CDD 370.71098142 23.ed.

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    TERMO DE APROVAO

    Giovana Cristina Zen

    A Formao Continuada como um Processo Experiencial: A Transformao dos

    Educadores de Boa Vista do Tupim

    Tese aprovada como requisito parcial para a obteno do grau de Doutor em Educao,

    na Universidade Federal da Bahia, pela seguinte banca examinadora:

    _______________________________________________

    Profa. Dra. Maria Inez da Silva de Souza Carvalho (Orientadora)

    Universidade Federal da Bahia (UFBA)

    _______________________________________________

    Profa. Dra. Amali de Angelis Mussi

    Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS)

    _______________________________________________

    Prof. Dr. Jos Srgio Fonseca de Carvalho

    Universidade de So Paulo (USP)

    _______________________________________________

    Profa. Dra. Maria Roseli Gomes Brito de S

    Universidade Federal da Bahia (UFBA)

    _______________________________________________

    Profa. Dra. Stella Rodrigues dos Santos

    Universidade do Estado da Bahia (UNEB)

  • 3

    Para Marcelo, Jlia, Joo e Pedro

    porque sem amor, eu nada seria

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    AGRADECIMENTOS

    Faculdade de Educao da Universidade Federal da Bahia, pelo acolhimento e pela

    confiana em mim depositada.

    Aos Professores do Programa de Ps Graduao em Educao da FACED/UFBA, por

    todas as aprendizagens ao longo desta trajetria.

    Aos Colegas e Professores do FEP Grupo de Estudos sobre Formao em Exerccio

    de Professores , pela proximidade, pela leveza e pelas discusses.

    Aos Componentes da Banca, meus queridos Amali, Roseli, Stella e Z Srgio, pelos

    quais tenho uma admirao imensa. Para mim, uma honra contar com a apreciao de

    vocs.

    A Professora Vera Placco, por sua generosidade em dedicar-se a leitura do trabalho.

    A Micaela S pelo apoio na transcrio das gravaes, e a Nazar, pela reviso

    minuciosa e cuidadosa do trabalho escrito.

    A Professora Maria Inez Carvalho, pela confiana e tranquilidade na conduo do

    trabalho e, principalmente, por sua amizade, que foi, ao longo desse processo, ampliada

    para Renato, Renata, Cac, Maria e Pedro. Uma delcia de famlia!

    Aos educadores e gestores de Boa Vista do Tupim, sujeitos desta pesquisa, pela

    generosidade em compartilhar fatos e impresses sobre o percurso de mudanas

    engendradas no municpio. Em especial a Thas, pela disponibilidade em colaborar nas

    articulaes necessrias para a realizao da pesquisa de campo.

    Aos Colegas do Instituto Chapada de Educao e Pesquisa, pela ousadia e dedicao

    diria.

    A Cybele Amado, pela sua coragem e determinao em transformar um sonho em

    realidade.

    A Bete, Cndida, Neuri, Cida, Aline e Adriana, pelo compromisso com os professores e

    estudantes da Chapada Diamantina. Tambm pela parceria e amizade nas estradas da

    vida.

  • 5

    Um destaque para minha querida Bete, companheira de tantos anos e exemplo de

    sabedoria que me inspira a ser uma pessoa melhor.

    A Rai e Ricardo, meus companheiros de f em terras pernambucanas, pela parceria

    sempre sincera e pela torcida para que tudo d certo.

    A Bia Gouveia, por compartilhar comigo o sonho de dar visibilidade s conquistas de

    Boa Vista do Tupim.

    A Telma Weisz, Claudia Molinari, Regina Scarpa e Teca Soub, por tudo que me

    ensinaram ao longo dessa vida e pela aposta no que eu poderia vir a ser.

    s meninas do Colgio So Paulo: Dalvinha, Paty, Adriana, Lili, Tuca, Maria Clara,

    Marta, Ana, Dulce, Suzi, Liu, Lila e Sil. Adoro ter vocs na minha vida.

    Aos amigos queridos, Maza, Fran, Gabi, Maria Eugnia, Wal, Mnica Loiola, Dani,

    Sarah, Mrcea, Denise, Giba, Luiz Paulo, Virgnia e Wald. A vida bem melhor com

    vocs por perto. Obrigada pela pacincia enquanto eu estava na caverna.

    A Ernandi e Maria Clara, pelo carinho que sinto quando estou com vocs. A sensao

    de fazer parte desta famlia me enche de alegria.

    A Snia, Silvio, Sandra e Maninho, meus irmos, meus padrinhos e meus amigos. A

    relao de confiana e de respeito que construmos juntos me faz ter a certeza de que

    nunca estarei sozinha. Aos cunhados, sobrinhos e netinhos por essa famlia linda que

    somos!

    Ao Sr. Zen, meu pai, pela certeza do orgulho que sentiria se ainda estivesse por aqui.

    A Dona Nora, minha me. Sua fora e sua f me lanaram na vida. Se ando perdida, ela

    pede ajuda a Antnio Querido, para que me mostre novo caminho. Meu carinho,

    minha admirao e minha gratido pela to sonhada filha dotora.

    A Marcelo, que bordou a sua vida na minha, como se ele fosse a linha e eu fosse o pano.

    Obrigada por existir e pela determinao em no me deixar pelo meio do caminho.

    A Jlia, minha filha e minha razo de existir. Voc linda e sabe viver. Voc me faz

    feliz! Muito feliz!

  • 6

    S quero saber do que pode dar certo

    No tenho tempo a perder

    Torquato Neto

  • 7

    RESUMO

    O trabalho busca compreender como as aes engendradas no municpio de Boa Vista

    do Tupim, em parceria com o Projeto Chapada, romperam com o perverso ciclo de

    analfabetismo, ampliando as possibilidades de produo de sucesso escolar. A pesquisa

    de campo foi realizada em quatro percursos distintos nos quais foram realizadas

    observaes, entrevistas e encontros formativos que permitiram produzir e coletar os

    dados da pesquisa de forma simultnea. Os diversos aspectos do campo educacional que

    possibilitaram a trans-formao dos educadores foram analisados a partir do conceito de

    experincia, discutidos por Dewey e Larrosa; e do conceito de habitus, cunhado por

    Bourdieu e atualizado por Lahire. Das muitas lies apreendidas, possvel afirmar que

    a formao continuada, quando concebida como um processo experiencial, potencializa

    de modo significativo as tenses entre o institudo e o instituinte, provocando

    deslocamentos no habitus de cada professor e do contexto no qual se insere. Habitus e

    experincia mantm entre si uma relao de interdependncia. a que reside a potncia

    do processo formativo, no qual os sujeitos assumem o papel de experimentadores de si

    mesmos e trans-formam os modos de ser, de pensar e de agir.

    Palavras-chave: Formao de Professores, Sucesso Escolar, Experincia e Habitus

  • 8

    ABSTRACT

    The work seeks to understand how the actions engendered in Boa Vista do Tupim, in

    partnership with the Projeto Chapada, broke the perverse cycle of illiteracy, expanding

    the possibilities of producing school success. The field work was performed in four

    distinct pathways that allowed us to collect and to produce survey data simultaneously

    through group observations, interviews and formative meetings. The various aspects of

    the educational field which enabled educators trans-formation were analyzed using the

    concept of experience, as discussed by Dewey and Larrosa; and the concept of habitus ,

    proposed by Bourdieu and updated by Lahire. The research allowed us to state that

    continued teacher training, when conceived as an experiential process, enhances

    significantly the tensions between the instituted and the instituting, causing shifts in the

    habitus of each teacher and also in the context in which they live and perform their

    work. Habitus and experience have an interdependent relationship. There in lies the

    power of the formative process in which the subjects assume the role of self

    experimenters and trans - form their ways of being, thinking and acting.

    Keywords . Teacher Education , School Success , Experience and Habitus

  • 9

    RSUM

    Le travail essaye de commprendre comment les actions engendrs dans la ville de Boa

    Vista do Tupim en association avec le Projeto Chapada ont rompu avec le pervers cicle

    danaphalbtisme, augmentant les possibilits de production de succs scolaire. La

    recherche de champs a t faite sur quatre diffrents parcours dans lesquelles ont t

    realiss des observations, des entrevues et des rencontres de formation qui ont permis de

    produire et de prendre simultanment les donns de la recherche. Les diffrents aspects

    dans le champs de lducation qui permetent la trans- formation des ducateurs ont t

    realiss partir du concept dexprience, discuts par Dewey et Larrosa; et du concept de

    habitus introduit parBourdieu et actualis par Lahire. partir des leons qui ont t

    aprise on peut affirmer que la formation continuelle, entendue comme um procs

    exprimental, augmente dune faon importante les tensions entre ceux qui sont institus

    et ceux qui sont les enseignants provocant des dplacements dans lhabitus de chaque

    professeur et dans le contexte dasn lequel il est insr. Habitus et exprience

    maintiennent entre eux une relation d interdpen dence. Cest ici o il y a la puissance

    de la formation des professeurs, dans laquelle ils assument le rle dexprimentateur de

    soi mme et trans-forme la manire dtre, de penser et dagir.

    Mots-clefs: Formation de professeurs, Succs scolaire, Exprience et Habitus

  • 10

    LISTA DE ILUSTRAES

    Mapa 1 Regio da Chapada Diamantina......................................................................97

    Foto 1 Crianas da Chapada Diamantina...................................................................102

    Foto 2 Altar de sexta-feira da Paixo.........................................................................102

    Foto 3 Giro dos Reiseiros...........................................................................................103

    Foto 4 A festeira Lode e sua famlia...........................................................................103

    Foto 5 Cozinha de Dele..............................................................................................104

    Foto 6 Cnticos para a Chuva.....................................................................................104

    Foto 7 O pequeno Charles..........................................................................................105

    Foto 8 Praa Municipal de Boa Vista do Tupim........................................................107

    Foto 9 Feira Livre de Boa Vista do Tupim.................................................................109

    Figura 1 Percentual de Pobreza da Populao de Boa Vista do Tupim.....................110

    Foto 10 Secretaria Municipal de Educao de Boa Vista do Tupim..........................113

    Figura 2 Cartinha para o Papai Noel..........................................................................131

    Figura 3 Mapa Afetivo de Cleide Cerqueira Formadora do ICEP..........................137

    Figura 4 Mapa Afetivo de Adriana Gonalves Formadora do ICEP.......................138

    Figura 5 Mapa Afetivo de Elisete Gonalves Formadora do ICEP.........................139

    Figura 6 Mapa Afetivo de Valria Bagues Formadora do ICEP.............................140

    Figura 7 Mapa Afetivo de Raidalva Silva Formadora do ICEP..............................141

    Foto 11 Dermival, Sueide e as crianas do Beija Flor................................................149

    Foto 12 Agente de Leitura da Escola Santo Antnio.................................................149

    Foto 13 Estudantes lendo para um grupo de extrao da castanha............................150

    Foto 14 Estudantes do Beija Flor lendo para a me e a av.......................................151

    Foto 15 Me e Filhos do Beija Flor............................................................................151

    Foto 16 A moradia da famlia do Beija Flor...............................................................152

    Foto 17 Vespasiano, Fernando e Thas no palanque com professores e estudantes...157

    Foto 18 Estudantes de Boa Vista do Tupim lendo para a comunidade......................157

    Foto 19 Cybele Amado coordenando o Dia E de Boa Vista do Tupim......................159

    Foto 20 Comunidade presente no Dia E de Boa Vista do Tupim...............................160

    Foto 21 Estudantes apresentando suas propostas no Dia E........................................160

    Figura 8 Matrioska......................................................................................................176

    Foto 22 Publicao de Resultados na Recepo da Escola........................................202

  • 11

    Foto 24 Elma e Romilda.............................................................................................209

    Foto 25 Sueide, Eliana e Mase..................................................................................210

    Foto 26 Vagna, Joelma e Ana Fbia...........................................................................210

    Foto 27 Rosemary e Elielma......................................................................................211

    Foto 28 Dermival e Clebiana......................................................................................211

    Foto 29 Dalmria........................................................................................................212

  • 12

    LISTA DE TABELAS

    Tabela 1 Taxas de analfabetismo no Brasil entre 1920 e 2010................................... 33

    Tabela 2 Evoluo do Indicador de Alfabetismo Funcional 2001 a 2011/INAF.........35

    Tabela 3 Evoluo do IDEB de Boa Vista do Tupim entre 2005 e 2011.....................41

    Tabela 4 IDHM de Boa Vista do Tupim entre 1991 e 2010.......................................111

    Tabela 5 Resultados de Aprendizagem dos Estudantes do Fundamental I de Boa Vista

    do Tupim, no perodo entre 2000 e 2012.......................................................................124

    Tabela 6 Resultados da Prova Brasil entre 2005 e 2011............................................161

    Tabela 7 Sujeitos da Pesquisa de Campo...................................................................169

  • 13

    SUMRIO

    PANORAMA INTRODUTRIO DA TRILHA.........................................................16

    PARTE 1

    1 O MEIO DO CAMINHO E A PROPOSIO DA TRILHA.............................19

    1.1 Pelo meio do caminho no contexto particular: o desafio de aprender e de ensinar a

    ler e a escrever...........................................................................................................20

    1.2 A histria dos que ficam pelo meio do caminho no contexto nacional: a questo do

    analfabetismo no Brasil.............................................................................................27

    1.3 A situao atual dos que ficam pelo meio do caminho: nmeros, promessas e

    desafios......................................................................................................................32

    1.4 O desafio de encontrar alternativas para os que ficam pelo meio do caminho:

    proposio de uma trilha de pesquisa........................................................................38

    2 PRIMEIRA ANCORAGEM DA TRILHA: a formao continuada como um

    processo experiencial e sua relao com o desenvolvimento profissional dos

    professores................................................................................................................46

    2.1 A formao continuada e sua relao com a experincia .........................................47

    2.1.1 Formao continuada de professores no Brasil: o incio da articulao

    com a experincia.....................................................................................47

    2.1.2 Sentidos e significados da experincia.....................................................50

    2.1.3 A formao e a experincia do sujeito.....................................................55

    2.1.3.1 O sujeito da experincia...................................................58

    2.1.3.2 O fluxo experiencial contnuo..........................................61

    2.1.4 A experincia no contexto de uma pesquisa sobre formao

    continuada................................................................................................64

    2.2 A formao continuada e o desenvolvimento profissional....................................65

  • 14

    3 SEGUNDA ANCORAGEM DA TRILHA: o conceito de habitus e suas

    implicaes na formao de professores................................................................70

    3.1 Os conceitos de habitus e campo na teoria bourdieusiana........................................70

    3.1.1 Os agentes sociais e sua atuao no mundo social...................................76

    3.2 As contribuies de Lahire em torno do conceito de habitus....................................78

    3.3 O conceito de habitus articulado formao de professores....................................85

    3.3.1 A discusso sobre habitus e formao de professores entre os educadores

    brasileiros.............................................................................................................85

    3.3.2 A complexidade da formao e o habitus dos professores......................88

    3.3.3 O patrimnio disposicional dos professores e a formao continuada....90

    PARTE 2

    4 A CARTA TOPOGRFICA DA EXPEDIO: a simplicidade e a

    complexidade do campo de pesquisa.....................................................................96

    4.1 Um pouco da Chapada Diamantina...........................................................................97

    4.2 O municpio de Boa Vista do Tupim.......................................................................106

    4.3 A parceria com o Projeto Chapada e o incio da mudana em Boa Vista do

    Tupim.......................................................................................................................113

    4.4 A expanso do Projeto Chapada e a interiorizao da poltica pblica de formao

    continuada em Boa Vista do Tupim........................................................................119

    4.5 A desnaturalizao do fracasso escolar na Chapada Diamantina............................126

    5 OS PERCURSOS DA TRILHA DA PESQUISA DE CAMPO.........................143

    5.1 Primeiro percurso da trilha: aproximao ao campo como formadora do ICEP.....145

    5.1.1 Os ajustes na parceria entre o Projeto Chapada e Boa Vista do Tupim...145

    5.1.2 A atuao como formadora externa em Boa Vista do Tupim..................146

    5.1.3 O Beija-Flor e o direito de aprender na escola.........................................148

    5.2 Segundo percurso da trilha: aproximao ao campo como pesquisadora...............156

    5.2.1 O Dia L e o Dia E: duas situaes emblemticas na pesquisa de campo.156

    5.2.2 Observao participante da reunio de avaliao dos resultados de leitura e

    produo textual.......................................................................................161

    5.2.3 Observao participante do Grupo Piloto do Ciclo I...............................164

  • 15

    5.3 Terceiro percurso da trilha: imerso no campo de pesquisa como pesquisadora-

    formadora.................................................................................................................167

    5.3.1 Ateli de Formao 01.............................................................................171

    5.3.2 Ateli de Formao 02.............................................................................173

    5.3.3 Ateli de Formao 03.............................................................................174

    5.4 Quarto percurso da trilha: o dilogo com os profissionais de Boa Vista do

    Tupim.......................................................................................................................175

    6 AS LIES APREENDIDAS AO LONGO DA TRILHA DA

    PESQUISA.............................................................................................................180

    6.1 O patrimnio disposicional dos indivduos servio das trans-formaes.............180

    6.2 O reconhecimento do outro como elemento central das parcerias que compem a

    cadeia distributiva de formao continuada............................................................184

    6.3 As brechas do habitus ao longo do processo experiencial: possibilidades de trans-

    formao..................................................................................................................189

    6.4 A mudana no modo de conceber e de realizar as aes formativas.......................193

    6.5 Os espaos pblicos e as possibilidades de produo do sucesso escolar...............198

    6.5.1 A dimenso pblica dos espaos formativos............................................200

    6.5.2 A publicao dos resultados e a realizao dos seminrios......................201

    6.6 Os impactos do valor atribudo leitura no contexto social....................................204

    IMPOSSIBLE A TRANS-FORMAO POSSVEL........................................207

    E AINDA......................................................................................................................213

    REFERNCIAS...........................................................................................................214

    ANEXO.........................................................................................................................222

  • 16

    PANORAMA INTRODUTRIO DA TRILHA

    Esta pesquisa teve origem no confronto entre o cenrio que naturaliza o fracasso

    escolar, deixando estudantes e professores pelo meio do caminho, e uma situao

    aparentemente inusitada em Boa Vista do Tupim, municpio baiano localizado na regio

    da Chapada Diamantina. No perodo entre 2000 e 2012, os educadores tupinenses

    conseguiram, em parceria com o Projeto Chapada, ampliar as possibilidades de

    produo de sucesso escolar, rompendo com o perverso ciclo de analfabetismo que

    marcava a histria do seu contexto educacional.

    Disto decorre o intento da trilha desta pesquisa, ou seja, compreender como as aes

    engendradas em um municpio, aparentemente condenado pelos condicionantes

    socioculturais, provocaram os deslocamentos no habitus dos educadores ao longo do

    processo experiencial de formao continuada.

    Para aportar a anlise dos elementos constituintes do campo de pesquisa, defini duas

    ancoragens para a trilha percorrida neste trabalho. A primeira se apoia no conceito de

    experincia e na sua relao com a formao. Para compor a segunda ancoragem,

    recorri ao campo da Sociologia e incorporei o conceito de habitus, no arcabouo terico

    desta pesquisa. Esta articulao entre formao, experincia e habitus se constituiu em

    uma ancoragem fecunda para compreender como ocorreram as trans-formaes no

    campo educacional de Boa Vista do Tupim.

    Alm disto, do ponto de vista metodolgico, optei pela definio de procedimentos de

    pesquisa em parceria com os educadores de Boa Vista do Tupim e articulei aes de

    observao e de produo, em que foi possvel gerar e coletar os dados da pesquisa

    simultaneamente. A pesquisa de campo foi realizada em quatro momentos distintos e,

    para cada um, foram utilizados instrumentos diversificados que possibilitaram a

    reflexo em torno das mudanas engendradas no campo educacional.

    Das muitas lies apreendidas ao longo da trilha de pesquisa, preciso reafirmar que a

    trans-formao dos sujeitos s se estabelece quando a formao continuada concebida

    como um processo experiencial, no qual as tenses entre o institudo e o instituinte

    provocam deslocamentos no habitus de cada professor e do seu contexto social. Habitus

    e experincia mantm entre si uma relao de interdependncia porque um no se

  • 17

    estabelece sem o outro. a que reside a potncia do processo formativo, no qual os

    sujeitos assumem o papel de experimentadores de si mesmos e trans-formam modos de

    ser, de pensar e de agir.

    Este estudo est organizado e apresentado em seis captulos. No primeiro, O Meio do

    Caminho e a Proposio da Trilha, apresento as principais reflexes que suscitaram a

    definio do problema de pesquisa e do objetivo central desta tese. Alm disso, tambm

    explicito as proposies da trilha da pesquisa.

    No segundo captulo, apresento a Primeira Ancoragem da Trilha: a Formao

    Continuada como Processo Experiencial e sua Relao com o Desenvolvimento

    Profissional dos Professores. Para ampliar as reflexes em torno do conceito de

    experincia, recorri s ideias de Dewey (1959, 1971, 1980) e de Larrosa (1999, 2000,

    2002, 2003, 2004a, 2004b, 2005). Na sequncia, relaciono o conceito de experincia

    formao a partir dos estudos de Imbernn (1998, 2009, 2011a, 2011b) e Nvoa (1992,

    1995a, 1995b, 1997, 1999, 2002, 2007, 2009).

    O terceiro captulo se constitui na Segunda Ancoragem da Trilha: o Conceito de

    Habitus e suas Implicaes na Formao de Professores. Apresento inicialmente os

    conceitos de habitus e campo, concebidos por Bourdieu e atualizados por Lahire, que

    toma como ponto de partida a teoria bordieusiana, mas atualiza a reflexo em torno do

    conceito de habitus, com contribuies fecundas para o escopo desta pesquisa. Por fim,

    uma discusso sobre como o conceito de habitus se articula com a formao continuada,

    compreendida como um processo experiencial.

    A Carta Topogrfica da Expedio: a Simplicidade e a Complexidade do Campo de

    Pesquisa o ttulo do quarto captulo, que apresenta o campo de pesquisa. Inicialmente

    uma breve apresentao da Chapada Diamantina, em seguida de Boa Vista do Tupim e,

    por fim, um resgate dos principais fatos que marcaram a histria do campo educacional

    do municpio, a partir da sua integrao com o Projeto Chapada.

    No quinto captulo, apresento Os Percursos da Trilha da Pesquisa de Campo,

    constitudo a partir de quatro momentos distintos, nos quais realizo a imerso no campo

    de pesquisa como formadora do Projeto Chapada e como pesquisadora. Neste captulo,

    apresento os instrumentos metodolgicos utilizados ao longo da pesquisa e a forma

    como foram concebidos em parceria com os educadores de Boa Vista do Tupim.

  • 18

    As Lies Apreendidas ao Longo da Trilha compem o ltimo captulo deste trabalho,

    no qual apresento os aspectos que considerei fundamentais para as mudanas

    engendradas no campo educacional de Boa Vista do Tupim, a partir da sua integrao

    com o Projeto Chapada.

    Considero pertinente afirmar desde j que, durante a realizao desta pesquisa, sempre

    estive preocupada com a reflexo em torno dos aspectos que ampliam as possibilidades

    de produo do sucesso escolar, com aquilo que pode dar certo, ainda que, sempre

    aberta s surpresas do acaso.

    Espero que este trabalho possa inspirar formadores e gestores municipais a qualificarem

    suas prticas, garantindo aos estudantes e professores que ainda correm o risco de ficar

    pelo meio do caminho, o direito de aprender a ler e a escrever na escola.

    Isto no significa a proposio de um receiturio universalizvel de aes que possam

    ser replicadas em qualquer contexto, porque trata-se de uma pesquisa situada em um

    cenrio histrico e geogrfico delimitado, com caractersticas prprias que, de alguma

    forma, tambm definiram o percurso da trans-formao dos sujeitos envolvidos.

    Este trabalho , portanto, um convite reflexo sobre o que pode dar certo, porque de

    fato no h mais tempo a perder. Se fomos capazes de produzir o fracasso escolar,

    certamente tambm seremos capazes de ampliar as possibilidades de produo de

    sucesso escolar. Por este motivo, reitero minha escolha pelo contexto educacional de

    Boa Vista do Tupim como campo de pesquisa. A trajetria dos educadores tupinenses

    revela como se pode transformar utopia em realidade.

  • 19

    PARTE 1

    1 O MEIO DO CAMINHO E A PROPOSIO DA TRILHA

    No Meio do Caminho

    No meio do caminho tinha uma pedra

    Tinha uma pedra no meio do caminho Tinha uma pedra

    No meio do caminho tinha uma pedra.

    Nunca me esquecerei desse acontecimento Na vida de minhas retinas to fatigadas.

    Nunca me esquecerei que no meio do caminho

    Tinha uma pedra

    Tinha uma pedra no meio do caminho No meio do caminho tinha uma pedra.

    Carlos Drummond de Andrade

    Este captulo apesenta as principais reflexes que suscitaram a definio do problema de

    pesquisa e do objetivo central desta tese. Inicialmente uma retomada do meu prprio

    percurso pessoal e profissional e, na sequncia, fatos centrais da histria do

    analfabetismo no contexto brasileiro. Nas duas narrativas existe algo em comum: os que

    ficaram pelo meio do caminho e a necessidade de encontrar um caminho, que assegure a

    todos os estudantes o direito de aprender a ler e escrever na escola.

    Na sequncia um panorama da situao atual dos que ficam pelo meio do caminho no

    contexto brasileiro: seus nmeros, promessas e desafios. Por fim, o confronto entre o

    cenrio contemporneo e uma situao inusitada de sucesso em Boa Vista do Tupim,

    municpio parceiro do Projeto Chapada. Disto decorre a proposio da trilha desta

    pesquisa, ou seja, compreender como os educadores de um municpio, marcado pelos

    efeitos da seca e do abandono, conseguiram deslocar as pedras que estavam pelo meio

    do caminho, criando alternativas para desnaturalizar o fracasso escolar e produzir

    oportunidades mais concretas de sucesso escolar.

  • 20

    1.1 Pelo meio do caminho no contexto particular: o desafio de aprender e de

    ensinar a ler e a escrever

    A construo desse trabalho fruto da minha trajetria pessoal e profissional no campo

    da Educao, constituda por diversas situaes em que me deparei com aqueles que

    ficam pelo meio do caminho. As situaes destacadas a seguir foram fundamentais na

    definio do problema de pesquisa, e seu relato retoma momentos importantes da

    histria recente da formao de professores em nosso pas.

    A primeira situao refere-se ao meu prprio processo de aquisio da leitura e da

    escrita. Aos seis anos de idade, quando me disseram que eu deveria aprender a ler e

    escrever, comearam a me mostrar vogais, consoantes, slabas, palavras e, por fim,

    pequenas frases. Tentaram me ensinar a juntar tudo isso, mas eu era incapaz de

    compreender o funcionamento daquele emaranhado de letras.

    No ms de junho, quase todos os meus colegas j estavam lendo e escrevendo, e eu

    estava ficando pelo meio do caminho. No incio do segundo semestre, minha me

    decidiu ir escola e conversar com o diretor, um padre franciscano extremamente

    exigente e temido pelos alunos. A clemncia de minha me era para que eu voltasse

    srie anterior.

    O padre no atendeu ao seu pedido, mas resolveu absolv-la do martrio ao qual se

    submetia todas as tardes, tentando, em vo, me ajudar a aprender a ler e a escrever.

    Indicou a compra de um quadro negro e uma caixa de giz coloridos. Prometeu que a

    professora no mandaria tarefa de casa durante certo tempo e sugeriu que minha me

    me deixasse brincar a tarde toda. De escolinha. A surpreendente deciso de Frei Wilson

    me furtou a possibilidade de passar as tardes com minha me e j no me restava

    alternativa seno enfrentar o desafio de entrar para o mundo adulto atravs da leitura e

    da escrita.

    Ao lado do quarto de costura, onde minha me gostava de ficar, havia um velho

    escritrio, que transformei na minha primeira sala de aula como professora. A mesa era

    enorme e, ao seu redor, algumas cadeiras verdes. Atrs de cada cadeira, uma etiqueta

    com um nome escrito. Minha classe era formada pelos colegas da escola, pelos meus

    irmos e por todos aqueles que eu desejava que ali estivessem. s vezes me irritava com

    os que no aprendiam a ler e a escrever e mandava-os de volta para o Jardim de

  • 21

    Infncia. Meu planejamento era a cpia literal do que a professora fazia pela manh. A

    cartilha tinha uma capa azul e um gatinho branco. Chamava-se Meu Pompom.

    Em dois meses eu estava lendo e escrevendo tudo e meus alunos ficaram to sabidos

    quanto eu. Na escola, a Professora Susana parou de me chamar ao quadro. Depois que

    meus alunos me ensinaram a ler e a escrever, ela s chamava os que ainda no tinham

    um quadro negro para brincar.

    Os anos se passaram e o desejo de ser professora alfabetizadora me acompanhou. O

    curso de magistrio foi a seta que indicava o caminho para a sala de aula. L, aprendi e

    fiz muitas coisas que guardo at hoje, como o Caderno de Didtica, um relicrio com

    preciosidades do tipo: Ensinar dirigir tecnicamente a aprendizagem. Em seguida o

    curso de Pedagogia e, junto com ele, a sala de aula.

    A possibilidade de assumir uma turma de Pr1, em 1989, numa escola da rede

    municipal de ensino de Blumenau, me deixou animada porque, finalmente, teria alunos

    de verdade. Para minha surpresa, logo no primeiro dia de aula, descobri que o grupo era

    constitudo por todos os alunos das turmas de 1 srie que, segundo a avaliao da

    escola, no seriam capazes de se alfabetizar. Alm disso, para completar o limite

    mximo da classe, foram matriculadas outras crianas em idade pr-escolar. Desta vez,

    os alunos eram de carne e osso e as estratgias de motivao que a professora de

    Didtica havia me ensinado no funcionavam. Desta brincadeira, eu quase desisti.

    Solicitava ajuda aos tcnicos da Secretaria de Educao e aos professores do Curso de

    Pedagogia, mas ningum conseguia me ajudar. Ento, passei o resto do ano brincando

    com meus alunos. De vez em quando eu inclua nas brincadeiras as letras, as slabas e

    algumas palavras.

    Alguns aprenderam a ler, outros ficaram pelo meio do caminho. Quando pedia ajuda

    Coordenadora Pedaggica da escola, ela me consolava dizendo que era assim mesmo.

    Diferentemente do padre, que props uma alternativa diante da minha dificuldade em

    aprender a ler e escrever, a coordenadora aceitava resignada a situao desses alunos e,

    de certa forma, os condenava a ficar pelo meio do caminho.

    1 Nomenclatura utilizada poca para as classes de 6 anos, que antecediam a entrada no atual Ensino

    Fundamental.

  • 22

    Em fevereiro do ano seguinte, 1990, a Secretaria de Educao organizou uma suntuosa

    Jornada Pedaggica, para apresentar as ideias de uma educadora argentina que estava

    provocando uma verdadeira revoluo conceitual em todo o pas. Esther Pillar Grossi2

    foi a responsvel pela to esperada exposio.

    Neste mesmo ano, diante da revolucionria descoberta, a Secretaria de Educao

    decidiu retirar todas as cartilhas das classes de alfabetizao, e eu fiquei de novo sem

    saber o que fazer. Eu e minhas colegas reproduzamos clandestinamente, num

    mimegrafo a lcool, atividades de algumas cartilhas que ficaram perdidas na escola.

    Nesta poca eu j sabia o que meus alunos pensavam sobre o sistema de escrita, mas

    no compreendia ainda como eles avanavam de uma hiptese de escrita para outra e

    nem o que eu poderia fazer para ajud-los. Parecia mgica. Ao longo do ano letivo, eu

    descobria que alguns estavam lendo e escrevendo, mas no conseguia ajudar os que

    ficavam pelo meio do caminho, sem saber ler e escrever. Eu sabia que, em parte, era

    responsvel por esse fracasso, mas no dispunha de um aporte terico e didtico que me

    permitisse assumir o compromisso de alfabetizar todos os meus alunos.

    Entretanto, naquele momento, o fato de alguns ficarem pelo meio do caminho no era

    exatamente um problema, ao menos para os que julgavam como bom o trabalho que eu

    realizava. Para os coordenadores pedaggicos e tcnicos da Secretaria de Educao, o

    fracasso era dos alunos que, diante de tantas possibilidades criativas oferecidas, no

    conseguiam encontrar sozinhos maneiras de superar as prprias dificuldades.

    O meu incmodo diante daqueles que ficavam pelo meio do caminho me projetou como

    uma boa professora, reconhecida como interessada em seus alunos e comprometida com

    a aprendizagem de todos. Deste cenrio surgiu o convite para a coordenao do

    Programa de Educao Infantil da Secretaria de Educao de Blumenau, em 1992, que

    me tirou da sala de aula e me apresentou precocemente formao de professores.

    Em 1999, j em Salvador, fui convidada a participar do Projeto Batalha, uma iniciativa

    de jornalistas da Editora Abril que resolveram adotar uma cidade do Nordeste. A

    cidade escolhida, no interior de Alagoas, no tinha banca de revista, nem hotel, e as

    escolas estavam ocupadas pelas pessoas que no tinham onde morar. O ndice de

    2 Educadora gacha, fundadora do GEEMPA, Grupo de Estudos sobre Educao, Metodologia de

    Pesquisa e Ao. Foi deputada federal pelo PT do Rio Grande do Sul de 1995 a 2002.

  • 23

    analfabetismo era altssimo, e uma das aes do projeto era a formao dos professores

    alfabetizadores. Mensalmente, eu e mais trs colegas viajvamos para Batalha para nos

    encontrar com os professores, na maioria leigos. O projeto tinha como meta a

    alfabetizao de todos os alunos do Ensino Fundamental da rede municipal, at o final

    do ano. Em dezembro, 94% dos alunos j compreendiam as regularidades do sistema de

    escrita e produziam uma escrita convencional. Durante os meses de janeiro e fevereiro,

    a Secretaria Municipal de Educao de Batalha organizou um plano de apoio

    pedaggico para aqueles que ainda no haviam atingido a meta. Com esta ao,

    chegamos a acreditar que o Projeto Batalha poderia mostrar que era possvel alfabetizar

    todas as crianas de uma rede pblica num tempo relativamente curto.

    No ano seguinte, voltamos ao municpio e identificamos que os estudantes j

    compreendiam as regularidades do sistema de escrita, entretanto ainda no eram capazes

    de uma insero significativa nas diferentes prticas sociais de leitura e escrita

    existentes fora da escola. Esta reflexo me fez sentir, novamente, que algum estava

    pelo meio do caminho. Desta vez no eram apenas os alunos, mas tambm os

    professores. Na condio de formadora, me deparei com o desafio de garantir aos

    professores o direito de aprender a ensinar.

    A experincia em Batalha me levou ao PCN em Ao e ao PROFA (Programa de

    Formao de Professores Alfabetizadores), dois programas de formao de professores

    implementados na ltima gesto do governo FHC (1999-2002). O primeiro consistia

    basicamente em garantir espaos nas escolas pblicas para leitura dos Parmetros

    Curriculares Nacionais, e o segundo destinava-se formao dos professores

    alfabetizadores. Em 2000, trabalhei no PCN em Ao e, a partir de 2001, com o

    lanamento do PROFA, passei a me dedicar exclusivamente a sua implementao no

    estado da Bahia. Alm da coordenao geral do programa no estado, tambm

    acompanhava de modo mais sistemtico os Polos de Irec, Camaari, Ilhus, Feira de

    Santana e Salvador.

    Estes programas foram idealizados a partir das proposies do Plano Decenal de

    Educao (1993 a 2003) e das orientaes da atual Lei de Diretrizes e Bases da

    Educao Nacional 9394/96, que orientavam a implementao da capacitao em

    servio e de programas de educao continuada para os profissionais de educao, dos

    diversos nveis.

  • 24

    A partir deste documento, passei a defender, juntamente com centenas de formadores de

    professores espalhados pelo pas, a experincia docente como categoria fundante do

    conhecimento profissional dos professores. Este movimento contribuiu sobremaneira

    para a consolidao da concepo de profissional de educao que tem na docncia a

    sua particularidade e especificidade. A trade conhecimento na ao, reflexo na ao e

    reflexo sobre a reflexo na ao3 passou a ser o discurso oficial, explicitado nas

    diretrizes de formao de professores em todo o pas.

    Desta vez, acreditava que o direito de aprender a ensinar estaria assegurado a todos os

    professores e que, finalmente, conseguiramos elevar os ndices de alfabetizao do

    pas. O PROFA conseguiu disseminar pelo pas no apenas as pesquisas psicogenticas

    sobre o processo de construo da leitura e da escrita, mas tambm as ideias iniciais em

    torno de uma teoria didtica que poderia orientar as prticas educativas. Apesar disto, o

    que prevalecia em grande parte das salas de aula das escolas brasileiras ainda eram as

    atividades da cartilha, reproduzidas clandestinamente como uma alternativa

    incompreenso sobre como alfabetizar em uma perspectiva mais prxima das prticas

    sociais de leitura e produo de texto.

    O PROFA tambm pretendia consolidar uma poltica pblica de formao de

    professores alfabetizadores e, para isto, orientou as redes municipais a designarem um

    grupo de profissionais que pudessem realizar os encontros formativos com os

    professores. Alm disto, tambm disponibilizou uma sequncia de pautas para

    realizao destes encontros com todos os recursos selecionados e com intervenes

    minuciosamente detalhadas. Naquele momento acreditava-se que os educadores das

    redes municipais aprenderiam a ser formadores de professores, se tivessem acesso a um

    bom modelo de prticas formativas.

    Aps os dois anos (2001-2002) de realizao do PROFA, quase nada restou nas redes

    municipais, e os ndices nacionais revelavam que os estudantes ainda estavam ficando

    pelo meio do caminho. H vrios aspectos que podem justificar esse resultado. A

    problemtica em torno da leitura e da escrita no Brasil extremamente complexa

    porque envolve desde as questes mais amplas, como os impactos negativos da

    descontinuidade poltica, at as precrias condies de trabalho dos professores.

    3 Esta discusso estava referendada principalmente nas ideias de Donald Schn (1997) e Antnio Nvoa

    (1992, 1995a, 1995b, 1999, 2002).

  • 25

    No entanto, o que gostaria de destacar a ausncia de articulao com o contexto

    educacional de cada lugar e a falta de envolvimento dos educadores na construo de

    uma proposta de formao continuada para a sua regio. O PROFA foi um forasteiro

    que chegou nas redes municipais mais longnquas do pas, discutindo as mesmas coisas

    e do mesmo jeito em todos os lugares, sem considerar as peculiaridades, demandas e

    potencialidades de cada contexto social.

    Alm das questes relacionadas formao continuada, tambm estava instalada no

    pas uma discusso sobre a formao inicial de professores, considerada como um

    aspecto relevante no cenrio de insucessos. Para amenizar a distncia entre as

    universidades e as escolas, a LDB 9394/96 sugeriu a formao de professores da

    educao infantil e das sries iniciais, at ento formados nas chamadas escolas

    normais, depois curso pedaggico no ento denominado 2 Grau, em Institutos

    Superiores de Educao.

    Foi ento que, em julho de 2002, tive a oportunidade de implementar e coordenar o

    Curso Normal Superior, das Faculdades Jorge Amado (FJA), na qual atuei at julho de

    2006. O curso assumia em seu projeto pedaggico o compromisso de enfrentar as

    lacunas da formao de professores. No bojo dessas mudanas, o Instituto Superior de

    Educao (ISE) da FJA ps forte assento na concretizao de um projeto orientado pelo

    princpio de assegurar aos alunos da educao bsica o direito de aprender na escola,

    uma vez que estatsticas denunciavam o fosso entre o acesso e a democratizao do

    conhecimento que a escola teria por dever socializar.

    Diante desta proposio, o ISE tomou como principal referncia as orientaes dos

    Referncias de Formao de Professores, elaborado pelo MEC em 1998, e assumiu

    como eixo curricular a atuao profissional. A experincia docente possua na matriz

    curricular do Curso Normal Superior status de categoria fundante do conhecimento

    profissional dos professores. Do total de 2.844 horas, 800 horas eram destinadas

    Prtica de Ensino e ao Estgio Supervisionado e 1.044 para as Didticas Especficas de

    cada rea do conhecimento, isto , cerca de 65% da carga horria do curso estava

    diretamente relacionada aos estudos da prtica docente.

  • 26

    No decorrer do primeiro semestre letivo de 2006, realizei parte da minha pesquisa de

    mestrado4com dois grupos de concluintes do Curso Normal Superior, dos quais era

    professora. As noventa e nove alunas eram, na sua totalidade, profissionais que j

    atuavam nas Sries Iniciais da Rede Municipal de Ensino de Salvador e que, por fora

    da Lei 9394/96, ingressaram na formao considerada inicial, no mbito do ensino

    superior.

    A pesquisa em questo buscava compreender o sentido que professores em formao

    atribuam s situaes dilemticas, de natureza tica, presentes nas relaes que se

    estabelecem no exerccio docente. Para tanto, uma das proposies que fiz aos

    professores foi a elaborao de um plano de aula de Leitura, cujo recurso central seria a

    fbula O leo e o rato, um texto frequentemente utilizado nas prticas educativas, de

    acordo com o relato das prprias professoras. O que se revelou surpreendente foi que

    nenhuma, das noventa e nove professoras, conseguiu vislumbrar outra possibilidade

    para o trabalho de Leitura da Fbula O leo e o rato seno o ensino de determinados

    contedos da Lngua Portuguesa que desconsideravam totalmente as caractersticas

    socioculturais do objeto a ser ensinado. A discusso em torno do dilema moral, aspecto

    que caracteriza a fbula como uma prtica social, no foi considerado um contedo de

    ensino pelos dois grupos de concluintes do Curso Normal Superior.

    As professoras pareciam estar condicionadas a determinadas instrues, como se

    houvesse uma tcnica a ser aplicada em qualquer gnero textual, independentemente de

    sua finalidade enquanto prtica social. Com este estudo, tive a oportunidade de perceber

    claramente que a possibilidade de reflexo sobre o prprio fazer no estava contemplada

    na instncia formativa, apesar do compromisso assumido pelo ISE com a atuao

    profissional.

    Ao tentar compreender as razes pelas quais as professoras no conseguiram

    compreender, ao longo do curso, os sentidos do ato de ler, fui obrigada a reconhecer que

    as 252 horas de Didtica da Alfabetizao e as 800 horas de Prtica de Ensino e Estgio

    Supervisionado, previstas na matriz curricular do Curso Normal Superior para garantir a

    4 Confabulaes na Formao de Professores: a experincia e o saber tico como saberes docentes.

    Trabalho desenvolvido junto ao programa de Ps-Graduao em Educao e Contemporaneidade da

    Universidade do Estado da Bahia, sob orientao da Profa Dra. Stella Rodrigues.

  • 27

    qualificao da experincia docente, tinham se transformado em mera

    instrumentalizao do ensino.

    Na ocasio, essa questo j ecoava como um possvel desdobramento do trabalho

    realizado durante o mestrado. Todas as vezes que estava em sala de aula, diante dos

    meus alunos, professores e professoras em formao, me reconhecia na afirmativa de

    Charlot5, ao confessar que passou anos fazendo de conta que formava professores. Mais

    uma vez me dei conta de que professores estavam ficando pelo meio do caminho e que o

    direito de aprender a ensinar novamente fora cerceado.

    Todas as situaes relatadas at aqui, que passam pela condio de ser aluna, professora

    e formadora, no expressam apenas uma experincia individual e localizada. A

    produo e a naturalizao do fracasso escolar tm deixado milhes de pessoas pelo

    meio do caminho, principalmente nas regies mais carentes do nosso pas.

    1.2 A histria dos que ficam pelo meio do caminho no contexto nacional: a questo

    do analfabetismo no Brasil

    As reflexes que tiveram origem no meu percurso pessoal e profissional, me

    provocaram a pensar no distanciamento entre os discursos e prticas de formao de

    professores alfabetizadores, e no que acontece nas escolas pblicas espalhadas pelo

    pas, que deixa muita gente pelo meio do caminho.

    Atualmente j nos acostumamos com os discursos polticos e acadmicos que ressaltam

    a luta pelo direito de aprender a ler e escrever na escola. No entanto, a discusso sobre o

    analfabetismo mais recente do que parece e sua origem coincide com a prpria

    inveno da escrita. Como provoca Lvy (1998), o paradoxo dos sistemas de comuni-

    cao de vocao universal consiste em que estes geram quase automaticamente excluso.

    Por exemplo, a inveno do alfabeto criou, ao mesmo tempo, o analfabetismo, o qual no

    existia, obviamente, nas culturas puramente orais.

    Assim, podemos ento dizer que, em alguns contextos histricos e sociais, o fato de no

    saber ler e escrever provavelmente nunca se configurou como um problema social.

    5 Publicada no texto Formao de Professores: a pesquisa e a poltica educacional. In: PIMENTA, S. e

    GHEDIN. Professor reflexivo no Brasil: gnese e crtica de um conceito. 2 ed. So Paulo, SP: Cortez,

    2002. p. 89-108.

  • 28

    Diferente de outros, nos quais a apropriao dos usos sociais da leitura e da escrita um

    dos fatores determinantes da relao dos indivduos com a sociedade, o analfabetismo

    muitas vezes se constitui como uma maneira de manter o estado das coisas.

    No caso brasileiro, a passagem do sculo XIX para o sculo XX representou um

    momento importante de transformao de nossa sociedade, que se urbanizava em

    grande velocidade, sobretudo a capital da Repblica, o Rio de Janeiro, e a cidade de So

    Paulo, que emergia como centro econmico do pas. Essa urbanizao no foi um

    fenmeno isolado, mas parte de um conjunto de mudanas importantes, como a

    substituio do trabalho escravo pelo trabalho livre, a proclamao da Repblica, o

    aumento da importncia do comrcio e, mais tarde, da indstria, na estruturao da

    economia.

    Essas transformaes implicaram um novo conjunto de prticas sociais que dependiam

    de uma cultura letrada, e a escolarizao foi, sem dvida, um instrumento importante na

    construo desse novo momento. sempre bom lembrar que o acesso escola, neste

    momento de modernizao conservadora, era um privilgio da elite e, portanto, um

    importante instrumento de segmentao da sociedade, apartando os que a ela tinham

    acesso dos que nela no podiam entrar.

    Nestas situaes, o jogo entre alfabetizao e analfabetismo sempre esteve permeado

    por fatores polticos, sociais e/ou econmicos.

    Os limites entre a luta contra o analfabetismo e a naturalizao do fracasso escolar

    sempre foram extremamente tnues, a depender dos interesses dos que decidem o

    desfecho desta questo, em cada momento histrico.

    Para que a idia de alfabetizao ganhe significado, deve ser situada em uma teoria de produo cultural e encarada como parte integrante

    do modo pelo qual as pessoas produzem, transformam e reproduzem

    significados. A alfabetizao deve ser vista como um meio que contribui tanto para produzir como para reproduzir as experincias

    culturais de determinados grupos sociais. Da, ser ela um fenmeno

    eminentemente poltico e dever ser analisada no contexto de uma teoria de relaes de poder e de uma compreenso da reproduo e da

    produo social e cultural (MACEDO, 2000, p.85)

    A provocao de Macedo situa a discusso sobre o analfabetismo no mbito das

    relaes sociais, no modo como cada indivduo e cada coletividade produz e reproduz o

    seu habitus, ou seja, seus esquemas simblicos de organizao da atividade prtica.

  • 29

    Desta forma, considero relevante compreender como a questo do analfabetismo foi

    engendrada no contexto social brasileiro e, para tanto, retomarei alguns pontos cruciais

    da histria da alfabetizao no Brasil.

    O analfabetismo surgiu como uma questo no Brasil apenas no final do perodo

    imperial. Ferrari (2002, p. 21-47) apresenta uma sntese histrica deste fato e ressalta

    que a questo emergiu com a reforma eleitoral de 1882 (Lei Saraiva), a qual, de um

    lado, derrubou a barreira de renda, mas, de outro, estabeleceu a proibio do voto do

    analfabeto. Mais tarde, a Constituio Republicana de 1891 manteve a excluso dos

    que no sabiam ler e escrever, do processo eleitoral e, desta forma,

    (...) nomeava e identificava o sujeito do analfabetismo, designava o

    resultado negativo da alfabetizao, sobre a qual nada falava. Surgia,

    assim, no discurso jurdico a figura do analfabeto como um objeto, um

    dado da percepo, uma grande evidncia social a partir da qual os discursos e prticas poderiam se organizar nesses novos tempos

    republicanos. (SILVA, 1998, p.22)

    Naquele momento, ficaram de fora do processo eleitoral as mulheres, os mendigos, os

    analfabetos e os religiosos sujeitos a votos de obedincia. Assim, o destaque e o

    privilgio concedidos aos indivduos alfabetizados reposicionaram a questo da

    alfabetizao no contexto social. A apropriao da cultura escrita se consolidou, ento,

    como um aspecto determinante desta diferena social, marginalizando alguns e

    concedendo notoriedade a outros. Para Ana Maria Arajo Freire,

    Numa poca em que o Brasil contava com, aproximadamente 85% de

    analfabetos, exclu-los do processo eleitoral, como tambm as mulheres, conforme interpretao da poca, era diminuir

    intencionalmente o nmero de eleitores (e sua qualidade tambm) e,

    assim, perpetuar a sociedade de direitos e privilgios de muito poucos.

    (FREIRE, 1989, p. 163)

    A mesma autora destaca, tambm, as razes pelas quais foram excludos as mulheres e

    os analfabetos do direito de votar e de serem votados:

    A mulher mais uma vez se viu proscrita deste espao diante de suas qualidades morais incompatveis, segundo o pensamento da poca,

    com a ao poltica. Os homens analfabetos porque se compreendia

    que eram incapazes de pensar e decidir, portanto de votar, embora

    grande parte deles fizesse parte do processo produtivo que gerava a riqueza nacional. Os mendigos, que eventualmente poderiam at ser

    alfabetizados, eram excludos muito certamente porque no faziam

    parte da massa trabalhadora produtiva. Essa contradio analfabeto - trabalhador e possvel alfabetizado - no trabalhador evidencia (...) a

  • 30

    vontade poltica dos homens polticos brasileiros de ento fazer

    vigente, constitucionalmente, a ideologia da interdio do corpo aos

    segmentos menos valorizados da sociedade, outorgando-lhes a si prprios todos os direitos e privilgios. (Idem, p.163 e 164)

    A ruptura entre indivduos alfabetizados e indivduos analfabetos tem origem, portanto,

    neste momento histrico, e seus sentidos e significados so carregados de crenas e

    valores, que desqualificam os que no participavam das prticas sociais de leitura e

    escrita como incapazes de pensar e de participar da vida pblica. Os analfabetos

    aparecem como sujeitos histricos, mas no como aqueles que fracassaram na escola,

    visto que o acesso escola ainda era destinado apenas para uma pequena parcela da

    populao.

    O segundo momento da histria do analfabetismo no Brasil est compreendido entre as

    dcadas de 1920 e 1930. Neste perodo, a erradicao do analfabetismo surge como

    tema em funo de interesses econmicos, um discurso ideolgico que depositava na

    formao dos indivduos, e no na transformao das estruturas sociais e econmicas

    herdadas do momento anterior, a superao do atraso. Esse discurso postulava a

    educao como uma condio para deslocar a concentrao de poder e inserir um modo

    de produo capitalista no pas, no qual o povo aparecia como um obstculo ao

    desenvolvimento.

    Um dos grupos que emergia mais clara e firmemente na dcada de 20 a burguesia industrial e os novos polticos interessava-se pela

    educao popular, mas, evidentemente, com objetivos que

    resguardassem seus interesses: alfabetizar as camadas subalternas, sobretudo o proletariado, segundo suas doutrinas, podendo assim, ter

    mo-de-obra qualificada e a possibilidade de desestabilizar, atravs de

    eleies diretas e secretas, o poder absoluto da oligarquia cafeeira.

    (Idem, p.221)

    O iderio educacional desse perodo pretendia, ao mesmo tempo, qualificar mo de obra

    para trabalhar em uma economia que se reestruturava, e inculcar valores sociais que

    favorecessem comportamentos individuais e coletivos identificados com o modelo

    liberal burgus, importado da Europa, pouco alterando as estruturas de dominao

    herdadas dos perodos anteriores.

    Deste modo, a questo dos valores sociais se tornou cada vez mais importante e, em

    pouco tempo, foi ampliada a oferta de educao regular, com o propsito de superar os

  • 31

    entraves ao desenvolvimento da nova sociedade capitalista e republicana, em que as

    diferenas se redefiniam, sem necessariamente serem superadas.

    Isso fez com que a educao se transformasse, na dcada de 20, no grande problema

    nacional. A crise do caf no mercado internacional fragilizava toda a estrutura de nossa

    sociedade, exigindo mudanas; portanto, a educao, por sua prpria natureza de

    formao de valores, parecia um timo caminho para a redefinio da sociedade e lhe

    conduziria ao progresso. Uma das funes da educao muito valorizada nesta poca,

    segundo Carvalho (1998, p.120), a sua capacidade de promover civismos: civismos

    de elites idealistas e devotadas s causas nacionais; civismo do povo laborioso e

    ordeiro, dedicado produo de riquezas civismo que se espera (propicie) a abertura

    ao pas dos caminhos que conduzam ao que visto como progresso.

    Neste contexto, a alfabetizao passou a ser compreendida como uma questo

    econmica e uma estratgia de manipulao social por aqueles que definiam os rumos

    da sociedade.

    O que se viu, a partir deste momento, foi a constituio de um pas mais moderno, que

    procurava se adequar s demandas externas, mas incapaz de promover diminuio nas

    desigualdades sociais e, portanto, de superar as suas prprias contradies. Na verdade,

    essa modernizao conservadora foi responsvel por um aumento das diferenas sociais,

    assegurando vantagens para poucos e deixando milhes de brasileiros pelo meio do

    caminho.

    A partir dos anos 80, com o declnio do regime militar, a discusso sobre o

    analfabetismo ressurge com fora no Brasil. A efervescncia no ambiente poltico e

    cultural do pas potencializou os debates em torno da dimenso poltica e social da

    educao, e as reflexes sobre o analfabetismo passaram a incorporar um

    (...) conjunto de aspectos - polticos, econmicos, sociais e

    pedaggicos e a se orientar explcita e predominantemente por uma teoria sociolgica dialtico-marxista, divulgada e/ou formulada por

    intelectuais acadmicos brasileiros de diferentes reas de

    conhecimento sociologia, filosofia, histria e educao,

    especialmente. (MORTATTI, 2000, p. 258)

    Em meio s lutas para a redemocratizao do pas, alm da retomada do Estado pela

    sociedade civil, diversos direitos foram pleiteados, entre eles o direito educao. Neste

    momento, as contundentes crticas ao modelo de organizao educacional, considerado

  • 32

    anacrnico, entre outras questes, deram forma ao que, mais tarde, se consolidaria como

    um direito constitucional, previsto na Constituio Federal promulgada em 1988. Nela,

    o direito a uma educao pblica, laica, gratuita e de qualidade faz com que a

    erradicao do analfabetismo deixe de ser uma questo funcional do sistema para se

    converter na luta pela afirmao de um direito constitucional.

    A democracia passa, ento, a ser vista no apenas como uma forma de organizao do

    Estado, mas como um sistema social pautado pela igualdade de direitos, pela liberdade

    de expresso e de organizao poltica, no sentido de afirmar direitos e

    responsabilidades sociais. Neste terceiro momento histrico, a alfabetizao

    considerada no apenas em sua dimenso econmica, mas um ato poltico, voltado

    para a emancipao pessoal, para a conscientizao poltica e para a ampliao da

    participao social do alfabetizando. (PREZ, 2008, p. 197)

    Esta breve retomada histrica, delineada at aqui, mostra que o desafio de desnaturalizar

    a condio dos que que ficam pelo meio do caminho uma construo recente da

    sociedade contempornea. A alfabetizao no uma questo puramente educacional,

    ela sempre transversalizada por interesses polticos, econmicos, sociais, culturais e

    tecnolgicos, o que faz com que a sua discusso esteja sempre suscetvel a paradoxos e

    contradies.

    1.3 A situao atual dos que ficam pelo meio do caminho: nmeros, promessas e

    desafios

    Os nmeros que revelam o contingente de indivduos que ficam pelo meio do caminho

    na educao brasileira comearam a surgir a partir do momento em que a discusso

    sobre a alfabetizao ultrapassou os limites ideolgicos e passou a se constituir tambm

    como um interesse econmico, alm das demandas sociais.

    A Tabela 1 apresenta as taxas de analfabetismo no pas entre 1920 e 2010, de acordo

    com os dados estatsticos do IBGE, e mostra uma queda percentual significativa de

    analfabetos no pas entre a dcada de 1920 e 2010. Apesar desta reduo, o nmero

    absoluto de analfabetos no pas ainda assustador.

  • 33

    Tabela 1 - Taxas de analfabetismo no Brasil entre 1920 e 2010

    Ano

    Populao de 15 anos ou mais

    Total Nmero Absoluto de

    Analfabetos

    Percentual de

    Analfabetos

    1920 17.557.282 11.401.715 64,9

    1940 23.709.769 13.242.172 55,9

    1950 30.249.423 15.272.632 50,5

    1960 40.278.602 15.964.852 39,6

    1970 54.008.604 18.146.977 33,6

    1980 73.542.003 18.716.847 25,5

    1991 95.810.615 18.587.446 19,4

    2000 119.533.048 16.294.889 13,6

    2010 190.732.694 13.933.173 9,6

    Fonte: IBGE. Censo Demogrfico 1920-2010. (Grifos nossos)

    Atualmente, encontra-se em tramitao no Congresso Nacional o projeto de lei que cria

    o Plano Nacional de Educao (PNE) para o decnio 2011-2020, com vistas ao

    cumprimento do disposto no art. 2146 da Constituio de 1988. O novo PNE apresenta

    dez diretrizes objetivas e 20 metas, seguidas das estratgias especficas de

    concretizao. Destas, duas esto diretamente relacionadas questo do analfabetismo:

    Meta 5: Alfabetizar todas as crianas at, no mximo, os oito anos de idade.

    Meta 9: Elevar a taxa de alfabetizao da populao com 15 anos ou

    mais para 93,5% at 2015 e erradicar, at 2020, o analfabetismo

    absoluto e reduzir em 50% a taxa de analfabetismo funcional

    Para compreender melhor o que representam essas metas em relao ao analfabetismo

    funcional, preciso recorrer aos dados do Indicador de Alfabetismo Funcional (INAF)7,

    apurado anualmente desde 2001 por meio de estudo realizado pelo IBOPE Opinio,

    com base na metodologia desenvolvida em parceria entre o Instituto Paulo Montenegro

    (IPM) responsvel pela atuao social do IBOPE e a ONG Ao Educativa.

    De acordo com as informaes disponibilizadas no site do IPM, o INAF mensura os

    nveis de alfabetismo funcional da populao brasileira entre 15 e 64 anos de idade,

    6 Art. 214. A lei estabelecer o plano nacional de educao, de durao plurianual, visando articulao e

    ao desenvolvimento do ensino em seus diversos nveis e integrao das aes do Poder Pblico que

    conduzam : I - erradicao do analfabetismo; II - universalizao do atendimento escolar; III - melhoria

    da qualidade do ensino; IV - formao para o trabalho; V - promoo humanstica, cientfica e

    tecnolgica do Pas.

    7 Informaes e dados disponibilizados no site do Instituto Paulo Montenegro: http://www.ipm.org.br/.

    (Disponvel em: http://www.ipm.org.br/ipmb_pagina.php?mpg=4.02.00.00.00&ver=por, 31/07/2013).

    http://www.ipm.org.br/http://www.ipm.org.br/ipmb_pagina.php?mpg=4.02.00.00.00&ver=por

  • 34

    englobando residentes em zonas urbanas e rurais de todas as regies do Brasil, quer

    estejam estudando ou no. Entre 2001 e 2005, o INAF foi divulgado anualmente,

    alternando as habilidades pesquisadas. Assim, em 2001, 2003 e 2005 foram medidas as

    habilidades de leitura e escrita (letramento) e em 2002 e 2004, as habilidades

    matemticas (numeramento). A partir de 2007, a pesquisa passou a ser bienal, trazendo

    simultaneamente as habilidades de letramento e numeramento e mantendo a anlise da

    evoluo dos ndices a cada dois anos.

    O INAF segue as orientaes da UNESCO e adota os conceitos de analfabetismo e

    alfabetismo funcional. Alm disto, o INAF tambm institui nveis de alfabetismo

    funcional8, a saber:

    Analfabeto - Corresponde condio dos que no conseguem realizar tarefas simples

    que envolvem a leitura de palavras e frases ainda que uma parcela destes consiga ler

    nmeros familiares (nmeros de telefone, preos etc.);

    Rudimentar - Corresponde capacidade de localizar uma informao explcita em

    textos curtos e familiares (como um anncio ou pequena carta), ler e escrever nmeros

    usuais e realizar operaes simples, como manusear dinheiro para o pagamento de

    pequenas quantias ou fazer medidas de comprimento usando a fita mtrica;

    Bsico - As pessoas classificadas neste nvel podem ser consideradas funcionalmente

    alfabetizadas, pois j leem e compreendem textos de mdia extenso, localizam

    informaes mesmo que seja necessrio realizar pequenas inferncias, leem nmeros na

    casa dos milhes, resolvem problemas envolvendo uma sequncia simples de operaes

    e tm noo de proporcionalidade. Mostram, no entanto, limitaes quando as

    operaes requeridas envolvem maior nmero de elementos, etapas ou relaes; e

    Pleno - Classificadas neste nvel esto as pessoas cujas habilidades no mais impem

    restries para compreender e interpretar textos em situaes usuais: leem textos mais

    longos, analisando e relacionando suas partes, comparam e avaliam informaes,

    distinguem fato de opinio, realizam inferncias e snteses. Quanto matemtica,

    resolvem problemas que exigem maior planejamento e controle, envolvendo

    8 Informaes disponveis no site do Instituto Paulo Montenegro: http://www.ipm.org.br/. (Disponvel

    em: http://www.ipm.org.br/ipmb_pagina.php?mpg=4.02.00.00.00&ver=por, 31/07/2013).

    http://www.ipm.org.br/http://www.ipm.org.br/ipmb_pagina.php?mpg=4.02.00.00.00&ver=por

  • 35

    percentuais, propores e clculo de rea, alm de interpretar tabelas de dupla entrada,

    mapas e grficos.

    Na Tabela 2 possvel observar a situao da alfabetizao no Brasil nos ltimos 10

    anos. De acordo com a anlise realizada pelo prprio INAF,

    os resultados mostram que durante os ltimos 10 anos houve uma

    reduo do analfabetismo absoluto e da alfabetizao rudimentar e um

    incremento do nvel bsico de habilidades de leitura, escrita e matemtica. No entanto, a proporo dos que atingem um nvel pleno

    de habilidades manteve-se praticamente inalterada, em torno de 25%.9

    Tabela 2 Evoluo do Indicador de Alfabetismo Funcional 2001 a 2011/INAF

    Evoluo do Indicador de Alfabetismo Funcional

    Populao de 15 a 64 anos (em %)

    2001-2002 2002-2003 2003-2004 2004-2005 2007 2009 2011-2012

    Analfabeto 12 13 12 11 9 7 6

    Rudimentar 27 26 26 26 25 21 21

    Bsico 34 36 37 38 38 47 47

    Pleno 26 25 25 26 28 25 26

    Analfabetos funcionais

    (Analfabeto e Rudimentar) 39 39 38 37 34 27 27

    Alfabetizados funcionalmente

    (Bsico e Pleno) 61 61 62 63 66 73 73

    Fonte: INAF BRASIL 2001 a 2011

    A Tabela 2 revela uma progresso muito lenta dos resultados nos ltimos anos. A taxa

    de analfabetismo caiu de 12% para 6% em 10 anos e a taxa de alfabetismo pleno

    permanece a mesma. Nas duas ltimas linhas do quadro temos uma sntese desta

    situao. No perodo 2001-2002 o percentual de alfabetismo e analfabetismo era de

    61% e 39%, respectivamente. Uma dcada depois, passamos para 73% e 27%. Isto

    significa que o deslocamento de um para outro foi de 12%.

    Diante deste cenrio, torna-se interessante uma reflexo mais detalhada da Meta 9,

    projetada pelo Plano Nacional de Educao para o decnio 2011-2020. A meta se divide

    em 3 desafios: elevar a taxa de alfabetizao da populao com 15 anos ou mais para

    93,5% at 2015 e erradicar, at 2020, o analfabetismo absoluto e reduzir em 50% a taxa

    de analfabetismo funcional (BRASIL, 2010, p.11)

    9 Disponvel em: http://www.ipm.org.br/ipmb_pagina.php?mpg=4.02.01.00.00&ver=por , em 31/07/2013

    http://www.ipm.org.br/ipmb_pagina.php?mpg=4.02.01.00.00&ver=por

  • 36

    A proposta de erradicar o analfabetismo absoluto at 2020 pressupe a manuteno da

    progresso da dcada anterior. Se levamos uma dcada para reduzir 6 pontos

    percentuais na taxa de analfabetismo, erradic-la at 2020 significa reduzir a mesma

    quantidade.

    Quando realizamos a mesma anlise de outro desafio definido na Meta 9, que sugere a

    reduo em 50% a taxa de analfabetismo funcional at 2020, tambm podemos

    constatar certa timidez diante do que se projeta para o pas. No decnio 2001-2010

    tivemos uma reduo de 39% para 27%, o que representa uma queda de 12 pontos

    percentuais. O desafio de reduzir em 50% essa mesma taxa significa reduzir at 2020

    mais 13,5 pontos percentuais, ou seja, assim como na anlise anterior, aqui tambm

    podemos identificar a manuteno da mesma progresso do decnio anterior.

    Vale reconhecer que a erradicao do analfabetismo no uma tarefa simples. De

    acordo com a ltima pesquisa do PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domiclio)

    promovida pelo IBGE, a taxa de analfabetismo entre as pessoas de 15 anos ou mais de

    idade parou de cair. Em 2011, essa taxa foi de 8,6% em 2012, estimada em 8,7%, o que

    correspondeu ao contingente de 13,2 milhes de analfabetos.

    A pesquisa revela tambm que a taxa de analfabetismo no Brasil maior entre os

    grupos de idades mais elevadas. No grupo de 15 a 19 anos a taxa de analfabetismo foi

    de 1,2% e, no grupo de 60 anos ou mais, o ndice de 24,4%. A erradicao do

    analfabetismo das pessoas mais idosas implica uma mudana profunda nos costumes,

    crenas e valores. Para este grupo o analfabetismo j constitui o seu modo de ser, de

    viver e de estar pelo meio do caminho. Por isto no costuma se configurar como um

    problema, principalmente para aqueles que residem em localidades distantes, onde os

    usos sociais da leitura e da escrita no so to determinantes para a sua participao nas

    atividades sociais.

    Alm dos dados do IBGE e do INAF, tambm precisamos considerar os resultados do

    PISA - Programa Internacional de Avaliao de Estudantes, produzido pela OCDE

    (Organizao para Cooperao e Desenvolvimento Econmico), para compreender a

    situao do fracasso escolar no Brasil. O PISA realiza provas por amostragem a cada

    trs anos, com foco nas competncias de leitura, escrita e matemtica de estudantes de

    15 anos que tenham cursado pelo menos at o 7 ano da Educao Bsica. No Brasil, o

  • 37

    Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Ansio Teixeira (Inep) o

    responsvel pela aplicao das provas. A primeira edio foi em 2000 e, a mais recente,

    em 2012.

    As provas que tiveram foco na leitura foram realizadas em 2000 e 2009. Na primeira

    edio, o Brasil atingiu a mdia de 368 pontos, enquanto que em 2009 chegou aos 401.

    Numa viso otimista possvel reconhecer que houve uma evoluo de 33 pontos, o que

    garantiu ao pas a terceira maior evoluo entre os ltimos da lista de 65 naes. Em

    2000 o Brasil amargou o ltimo lugar no ranking geral e, em 2009, ficou com a 53

    posio, frente de Argentina e Colmbia, mas atrs de Mxico, Uruguai e Chile.

    A pontuao obtida em 2009 revela que 51% dos alunos avaliados encontram-se nos

    nveis 2 ou superiores, e 49% ficam no nveis 1 ou 0, em uma escala de Proficincia em

    Leitura que vai de 0 a 5. Alm disso, preciso tambm considerar os alunos com 15

    anos que esto fora da escola ou em situao de atraso escolar. De acordo com os dados

    do INEP, esse grupo corresponde a 19,4% dos jovens de 15 anos.

    Vale ressaltar que o PISA no pode ser tomado como uma referncia absoluta sobre o

    contexto educacional brasileiro, mas inegvel que os dados revelam que muitos jovens

    esto ficando pelo meio do caminho. A soma do contingente de alunos com baixa

    proficincia com o de alunos que nem puderam ser avaliados mostra que mais da

    metade dos jovens brasileiros no so capazes de compreender textos relativamente

    simples.

    O que merece destaque que, a partir da dcada de 1980, o que era regra comeou a ser

    considerado um incmodo, uma vergonha nacional. Antes estava posto nos arranjos do

    jogo poltico e econmico deixar alguns pelo meio do caminho, e faz muito pouco

    tempo que comeamos a incorporar, no discurso poltico e educacional, a

    responsabilidade pela aprendizagem de todos. Entretanto, mudar essa crena no algo

    simples.

    No mbito nacional, a lentido dos avanos dos indicadores de qualidade da educao

    revelam as contradies de uma sociedade desigual, e super-la uma questo muito

    complexa. Poderamos dizer que suas causas perpassam desde as questes mais amplas,

    como as desigualdades regionais, a m distribuio de renda e o trabalho infantil, at

    questes locais, de cada rede de ensino, relacionadas, por exemplo, baixa remunerao

  • 38

    profissional, evaso escolar e, principalmente, ausncia de materiais da cultura

    escrita.

    Os analfabetos brasileiros tm nome e endereo. Uma rpida reflexo sobre quem so os

    alunos que fracassam na escola indica aquele indivduo que est impedido de exercer o

    seu direito social de vivenciar o processo de escolarizao, seja pela moradia distante da

    escola ou pela insero precoce no mundo do trabalho. Esse ser social diferente em

    gnero, etnia, idade, mas possui algo em comum: a natureza de classe social que, no

    caso brasileiro, significa a negao de quase todos os direitos sociais, posto que, em

    nosso pas, o Estado do Bem Estar Social nunca passou de um discurso ideolgico.

    1.4 O desafio de encontrar alternativas para os que ficam pelo meio do caminho:

    proposio de uma trilha de pesquisa

    No contexto particular, vivi a angstia de saber que quase fiquei pelo meio do caminho

    e que posso ter deixado muitos estudantes e professores tambm pelo meio do caminho.

    Entretanto, no contexto nacional, durante vrias dcadas, era perfeitamente concebvel

    deixar milhes de brasileiros pelo meio do caminho. A lgica dos excludos se

    consagrou e os que ficam pelo meio do caminho passaram a ser considerados como um

    problema apenas na histria recente.

    A partir de ento, a questo do fracasso escolar passou a ser uma pedra no meio do

    caminho de educadores e polticos, e a busca pelos responsveis se intensificou. Quem

    responsvel pelo fracasso escolar: os estudantes, os professores, a escola ou o sistema

    de ensino?

    Para Charlot (2000, p.16), o objeto fracasso escolar no existe como tal, mas se

    caracteriza como um conjunto de fenmenos, observveis, comprovados, que a

    opinio, a mdia, os docentes agrupam sob o nome de fracasso escolar. O autor insiste

    na ideia de que o fracasso escolar no existe como uma coisa, ou seja, no possvel

    contextualiz-lo como algo isolado.

  • 39

    A noo de fracasso escolar remete para fenmenos designados por

    uma ausncia, uma recusa, uma transgresso ausncia de resultados,

    de saberes, de competncia, recusa de estudar, transgresso das regras... O fracasso escolar no ter, no ser. (CHARLOT, 2000,

    p.17)

    Assim, as reflexes em torno do fracasso escolar exigem sempre uma anlise das

    diversas relaes que engendram as situaes de fracasso. Por este motivo, no

    possvel afirmar quem responsvel pelo fracasso escolar porque, na condio de

    fenmeno, exige uma anlise dos aspectos sociais, culturais, econmicos e polticos que

    foram determinantes ao longo da histria.

    O que se constata na histria recente que as situaes de fracasso escolar esto

    naturalizadas no contexto educacional, e o que gera espanto, por oposio, so as

    situaes de sucesso escolar. Na minha experincia profissional tambm fui

    surpreendida com uma experincia de sucesso. Em 2007, fui convidada a integrar a

    equipe de formadores do ICEP Instituto Chapada de Educao e Pesquisa e me

    deparei com uma proposta de formao continuada com resultados surpreendentes.

    O Instituto Chapada de Educao e Pesquisa (ICEP) uma Organizao da Sociedade

    Civil de Interesse Pblico OSCIP, com sede em Caet-Au, distrito de Palmeiras, na

    Chapada Diamantina. A histria desta instituio teve incio em 2000, com a criao do

    Projeto Chapada, uma iniciativa de um grupo de professores, profissionais liberais,

    membros de organizaes da sociedade civil e gestores municipais de 12 municpios da

    Chapada Diamantina, sob a liderana da educadora Cybele Amado de Oliveira, atual

    presidente da instituio, com a finalidade de responder ao desafio de melhorar a

    qualidade da educao pblica municipal, em uma regio com o segundo pior IDH

    (ndice de Desenvolvimento Humano) do estado e ltima colocada quanto ao ndice de

    Desenvolvimento Social, conforme dados da Superintendncia de Estudos Econmicos

    e Sociais da Bahia (SEI-BA 2002).

    O Projeto Chapada enfrentou enormes desafios a partir de um processo inicial de

    avaliao diagnstica da situao, partilha destes resultados com a comunidade, seguido

    de um processo de formao continuada em servio para professores, coordenadores

    pedaggicos e diretores escolares, com foco na Leitura e Escrita. No incio, grande parte

    das secretarias de educao dos municpios parceiros do projeto no possuam equipes

    tcnicas, e as escolas no contavam com a figura do coordenador pedaggico.

  • 40

    O Projeto Chapada comeou atuando apenas no municpio de Palmeiras. Em 2000, 12

    municpios integravam o projeto e, em 2005, totalizavam 25 redes municipais de ensino.

    Em 2006, os excelentes resultados gerados pelo Projeto deram origem ao Instituto

    Chapada de Educao e Pesquisa, ampliando o raio de ao da tecnologia social

    desenvolvida ao longo de quase dez anos de trabalho.

    O ICEP articula uma grande rede social, formada por diversos setores da sociedade

    civil, redes pblicas de ensino e poder poltico, em prol da desnaturalizao do fracasso

    escolar e da melhoria da educao nos municpios parceiros. Isto ocorre atravs da

    mobilizao e implementao de aes conjuntas entre as secretarias de educao, as

    equipes tcnicas, os diretores escolares, os coordenadores pedaggicos e os professores

    alfabetizadores.

    O Projeto Chapada atua no sentido de colaborar para a formulao de polticas pblicas

    educacionais de qualidade, pautadas em diretrizes legais. A formao continuada de

    educadores articulada ao contexto de trabalho, a estruturao e reestruturao das

    secretarias municipais de educao e a composio de quadros de formadores regionais

    so importantes produtos das atividades desenvolvidas pelo ICEP. Em 2010, Boa Vista

    do Tupim, Piat e Ibitiara foram os trs melhores IDEBs10 do Estado da Bahia, todos

    vinculados ao Instituto Chapada desde 2000.

    Esse resultado fruto das aes afirmativas em prol da qualidade do sistema pblico e

    da sustentabilidade das polticas pblicas educacionais de uma rede colaborativa pela

    qualidade da educao. O ICEP compreende a educao como um direito social e, por

    este motivo, a luta pela superao do analfabetismo compreendida pela instituio

    como uma ao poltica.

    Entre os municpios parceiros do Projeto Chapada, o que mais me chamou a ateno foi

    Boa Vista do Tupim, localizado a 318 km de Salvador e com 18.000 habitantes

    aproximadamente, sendo 64% na zona rural, de acordo com o Censo Demogrfico

    2010. No ano 2000 ocupava a 274 posio no ranking do IDH-M do estado da Bahia e,

    em 2005, o IDEB era de 2,2.

    10O IDEB (ndice de Desenvolvimento da Educao Bsica) um indicador de qualidade educacional que

    combina informaes de desempenho em exames padronizados (Prova Brasil ou Saeb) obtido pelos

    estudantes ao final das etapas de ensino (4 e 8 sries do ensino fundamental e 3 srie do ensino mdio)

    com informaes sobre rendimento escolar (aprovao)

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    Em 2009 fui convidada a atuar no municpio, como formadora externa dos

    coordenadores pedaggicos do Ensino Fundamental I. Nesta aproximao identifiquei

    uma inverso da lgica que determina o fracasso escolar como algo natural. Boa Vista

    do Tupim havia consolidado a crena de que todos os estudantes poderiam aprender a

    ler e a produzir textos na escola, independente das condies socioculturais do

    municpio.

    Em Boa Vista do Tupim no havia espao para discusses sobre o fracasso escolar. Os

    educadores que l encontrei no identificavam a formao precria dos professores, a

    dificuldade dos pais em acompanhar os filhos ou at mesmo a pobreza como

    justificativa para os que ficavam pelo meio do caminho. O que estava naturalizado no

    era o fracasso, mas as possibilidades de produo do sucesso escolar existentes em cada

    sala de aula das escolas da rede municipal.

    Esta certeza tambm foi referendada pelos resultados do IDEB em 2007 e 2009, que

    garantiram a Boa Vista do Tupim, por dois anos consecutivos, o primeiro lugar no

    ranking estadual. Entretanto, a publicao do resultado de 2011 gerou, entre os

    educadores, grande surpresa. A Tabela 3 mostra a evoluo do IDEB entre 2005 e 2011.

    Tabela 3 Evoluo do IDEB de Boa Vista do Tupim entre 2005 e 2011

    Boa Vista do Tupim 5 ano 2005 2007 2009 2011

    IDEB 2,2 4,8 5,8 4,0

    Proficincia em Lngua Portuguesa 134,20 187,16 210,82 162,34

    Proficincia em Matemtica 148,60 206,51 240,78 176,83

    Taxa de Aprovao 0,69 0.90 0,91 0.93

    Crescimento + 118% + 21% - 31%

    Fonte: http://www.portalideb.com.br/

    Inicialmente, os educadores no encontraram razes para a queda nos resultados do

    IDEB em 2011, porque o municpio havia consolidado ainda mais o investimento na

    formao continuada, a realizao peridica de avaliaes diagnsticas e a

    implementao de planos de apoio pedaggico para os alunos com mais dificuldades.

    Boa Vista do Tupim mostrou-se inconformado diante deste cenrio e, na tentativa de

    http://www.portalideb.com.br/

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    compreender o que havia acontecido, identificou uma queda significativa nos resultado

    da Prova Brasil aplicada no 5 ano da Escola Abraham Lincoln.

    A Professora Sandra Oliveira Lima, membro da equipe tcnica municipal responsvel

    pela formao continuada dos diretores escolares, realizou um acompanhamento

    escola e publicou em seu relatrio a seguinte anlise:

    IDEB Abraham Lincoln 2009: 6.5

    IDEB Abraham Lincoln 2011: 3.5

    Intervenientes considerados pela escola que impactaram

    negativamente o resultado:

    A turma dos alunos que fizeram a Prova Brasil estava composta de

    alunos repetentes, aprovados com ressalva e consequentemente com distoro idade/srie. Compreende mais de 90% dos alunos.

    O reforo para essa turma s iniciou em julho. A Diretora alega que

    solicitou da secretaria de educao uma professora para o reforo, mas s foi atendida em julho. Porm, a escola reconhece que deveria ter

    planejado uma ao mais especfica de apoio para esses alunos. Foram

    realizadas, antes do reforo, atividades diferenciadas, investimento em atividades de leitura, mas avaliam que precisavam de um apoio mais

    sistemtico.

    Outro aspecto que a escola traz diz respeito dificuldade dos alunos

    em trabalhar com o gabarito da Prova Brasil. Apesar de terem planejado algumas situaes de gabarito, os alunos demonstraram

    muita dificuldade e acreditam que muitos deles marcaram errado no

    gabarito e certo na prova.

    Esta anlise, realizada pela Professora Sandra Oliveira Lima, em parceria com os

    educadores da Escola Abraham Lincoln, revela as fragilidades do IDEB, compreendidas

    desde as questes mais amplas, como a dificuldade em garantir o acompanhamento aos

    alunos que necessitavam de mais ajuda, at o preenchimento do gabarito.

    Ao focalizarmos o IDEB ndice de Desenvolvimento da Educao

    Bsica reconhecemos que ele remete a um conceito