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UNIVERSIDADE FEDERAL DE ALAGOAS - UFAL FACULDADE DE SERVIÇO SOCIAL FSSO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SERVIÇO SOCIAL JACIARA PEREIRA CAMPOS A FUNÇÃO SOCIAL DO ESTADO E O CONTROLE DO CAPITAL NO CAPITALISMO DOS MONOPÓLIOS Maceió/ AL 2016

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE ALAGOAS - UFAL

FACULDADE DE SERVIÇO SOCIAL – FSSO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SERVIÇO SOCIAL

JACIARA PEREIRA CAMPOS

A FUNÇÃO SOCIAL DO ESTADO E O CONTROLE DO CAPITAL NO

CAPITALISMO DOS MONOPÓLIOS

Maceió/ AL

2016

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JACIARA PEREIRA CAMPOS

A FUNÇÃO SOCIAL DO ESTADO E O CONTROLE DO CAPITAL NO

CAPITALISMO DOS MONOPÓLIOS

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação

em Serviço Social da Universidade Federal de Alagoas,

como requisito parcial para obtenção do título de Mestre

em Serviço Social.

Orientadora: Profa. Dra. Maria Cristina Soares Paniago

Maceió/AL

2016

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Catalogação na fonte

Universidade Federal de Alagoas

Biblioteca Central Divisão de Tratamento Técnico

Bibliotecária Responsável: Helena Cristina Pimentel do Vale

C198f Campos, Jaciara Pereira.

A função social do Estado e o controle do capital no capitalismo dos

monopólios / Jaciara Pereira Campos. – 2016.

126f. : il.

Orientadora: Maria Cristina Soares Paniago.

Dissertação (Mestrado em Serviço Social) – Universidade Federal de

Alagoas. Faculdade de Serviço Social. Programa de Pós-graduação em

Serviço Social. Maceió, 2016.

Bibliografia: f. 125-126.

1. Serviço social – Aspectos políticos. 2. Estado. 3. Capitalismo – Crise.

Estrutural. 4. Monopólios. I. Título.

CDU: 364.1

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Para José de Almeida, meu pai, e a

Edilene Campos, minha mãe, pela

paciência e incentivo de todos os dias.

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AGRADECIMENTOS

Durante o processo de construção deste trabalho, muitos foram os desafios a

ser vencidos e obstáculos a ser superados. Precisei vencê-los. Agradeço às pessoas que

sempre acreditaram no meu potencial como pesquisadora, apoiando-me e incentivando-

me na realização deste mestrado.

Agradeço a meu pai, José de Almeida, a minha mãe, Edilene Campos, e ao

meu irmão Jatanael Campos – as pessoas mais importantes da minha vida –, pela

paciência e pelo apoio incondicional em todos os momentos do curso e, especialmente,

na elaboração deste trabalho de conclusão do mestrado.

Agradeço a todos os meus colegas de turma pelos momentos de reflexões

teóricas tão construtivas, em especial às minhas amigas Maria Roselane e Maryanna

Lins, por terem compartilhado as alegrias e as angústias desse processo e por terem me

ajudado, ou simplesmente me escutado, em todos os momentos difíceis que vivenciei

durante o curso.

Agradeço ao corpo docente do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social

(PPGSS) da Universidade Federal de Alagoas (UFAL), reconhecendo que aprendi

muito com os ensinamentos ministrados, em especial ao Professor Doutor Talvanes

Eugênio e à Professora Doutora Reivan Marinho, que com suas observações e sugestões

foram de muita relevância na finalização desta dissertação.

Agradeço principalmente à Professora Doutora Maria Cristina Soares Paniago,

que foi minha professora e orientadora e que contribuiu de maneira decisiva para o meu

amadurecimento como pesquisadora na construção deste trabalho.

Enfim, agradeço a todos que estiveram do meu lado e acreditaram em mim,

particularmente àqueles que, de forma direta ou indireta, colaboraram para que esta

etapa tão importante da minha vida profissional e pessoal fosse finalmente concretizada,

pois agora compartilham de mais esta vitória.

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“A Classe laboriosa substituirá, no curso do seu

desenvolvimento, a antiga sociedade civil por

uma associação que excluirá as classes e seu

antagonismo, e não haverá mais poder político

propriamente dito, já que o poder político é o

resumo oficial do antagonismo na sociedade

civil”.

(Karl Marx)

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RESUMO

Este trabalho apresenta uma análise histórica sobre a função social do Estado e tem por

objetivo investigar o controle exercido pelo sistema sociometabólico do capital na fase

do capitalismo dos monopólios, mediante a atuação do Estado. Para tanto, parte da

perspectiva marxiana dos fundamentos ontológicos do Estado burguês, com base em um

estudo sócio-histórico do surgimento do Estado e sua função social, assim como do

desenvolvimento do Estado moderno, nas suas diferentes formas de atuação na

sociabilidade capitalista. Promove uma análise acerca da reprodução do sistema do

capital e do papel do Estado moderno como uma estrutura de comando político

direcionada a defender os interesses da classe economicamente dominante,

complementando-a de forma essencial na manutenção da ordem social vigente. Busca

entender como o Estado no capitalismo monopolista redimensiona suas atividades e

atua mediante a garantia de “supostas” concessões à classe trabalhadora, através da

prestação de serviços na forma de direitos. Aborda a natureza da crise estrutural do

capital e suas determinações, destacando os aspectos que a diferenciam das crises

cíclicas. E por último, investiga as formas de enfrentamento da crise estrutural do

capital pelo Estado e as consequências dos “ajustes estruturais” desse sistema para a

área social e a classe trabalhadora, durante a ofensiva neoliberal do capital. A partir da

pesquisa realizada, de natureza bibliográfica, entende-se que o Estado, ao longo do

desenvolvimento das sociedades de classe, opera na manutenção do modo de produção

dominante por meio de mecanismos de caráter coercitivo e de controle sobre a classe

trabalhadora, a fim de manter e reproduzir continuamente os processos de produção e

acumulação da riqueza, ainda que postule ideologicamente a defesa dos interesses de

todos os homens na reprodução da forma de sociabilidade vigente.

Palavras-chave: Estado. Crise Estrutural do Capital. Capitalismo Monopolista.

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ABSTRACT

This work presents a historical analysis on the social function of the State and aims to

investigate the control exercised by the sociometabolic system of capital in the phase of

capitalism of monopolies, through the performance of the State. To do so, it starts from

the Marxian perspective of the ontological foundations of the bourgeois state, based on

a socio-historical study of the emergence of the state and its social function, as well as

the development of the modern state, in its different forms of action in capitalist

sociability. It promotes an analysis of the reproduction of the system of capital and the

role of the modern state as a structure of political command directed at defending the

interests of the economically dominant class, complementing it in an essential way in

maintaining the current social order. It seeks to understand how the state in monopoly

capitalism reshapes its activities and acts by guaranteeing "supposed" concessions to the

working class through the provision of services in the form of rights. It addresses the

nature of the structural crisis of capital and its determinations, highlighting the aspects

that differentiate it from cyclical crises. Finally, it investigates ways of coping with the

structural crisis of capital by the state and the consequences of the "structural

adjustments" of this system to the social and working class during the neoliberal

offensive of capital. From the research carried out, of a bibliographical nature, it is

understood that the State, throughout the development of class societies, operates in the

maintenance of the dominant mode of production through mechanisms of coercive

character and control over the working class, In order to maintain and reproduce

continuously the processes of production and accumulation of wealth, even though

ideologically poses the defense of the interests of all men in the reproduction of the

current form of sociability.

Keywords: State. Structural Crisis of Capital. Monopolistic Capitalism.

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SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO ....................................................................................................... 10

2. OS FUNDAMENTOS ONTOLÓGICOS DO ESTADO E SUA FUNÇÃO

SOCIAL NA SOCIEDADE DE CLASSES ............................................................... 13

2.1 Os Fundamentos Ontológicos do Estado burguês .............................................. 14

2.2 O Estado Moderno: formação e função Social ................................................... 26

2.3 O Estado Moderno no Sistema Sociometabólico do Capital ............................. 43

3. O DESENVOLVIMENTO DO ESTADO NO CAPITALISMO DOS

MONOPOLÍOS: O Estado de Bem-Estar Social ..................................................... 65

3.1 Capitalismo dos Monopólios: base material do Estado de Bem-Estar Social

........................................................................................................................................ 66

3.2 O Estado de Bem-Estar Social: uma forma de controle do sistema do capital

........................................................................................................................................ 84

4. A CRISE ETRUTURAL DO CAPITAL E O NEOLIBERALISMO

........................................................................................................................................ 98

4.1 Das Crises Cíclicas à Autorreprodução Destrutiva do Capital ........................ 99

4.2 A Crise Estrutural do Capital e suas Determinações ....................................... 103

4.3 Neoliberalismo: as Estratégias do Capital em face da Crise Estrutural ........ 113

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................ 126

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .................................................................... 133

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1. INTRODUÇÃO

O presente trabalho trata da função social do Estado e do controle do capital na

regulação das relações sociais da sociabilidade capitalista. Em particular, na fase do

desenvolvimento do capitalismo dos monopólios, promove uma análise que recupera o

movimento do desenvolvimento do capitalismo do pós-Segunda Guerra Mundial até o

cenário atual de crise estrutural do capital, ao tempo que a ação legal e repressiva do

Estado se generaliza e o acirramento das lutas dos trabalhadores encontra sua maior

resistência, num contexto marcado por profundas transformações na área econômica,

política e social. Para tanto, fez-se necessário apreender o surgimento do Estado como

um poder político capaz de manter certo ordenamento entre as classes sociais existentes,

através do uso de mecanismos coercitivos e consensuais por meio da sua administração

e organização política, intervindo sobre a consciência dos indivíduos.

O principal interesse em pesquisar e refletir sobre a temática em questão está

relacionado à necessidade de se apreender e revelar a verdadeira função social do

Estado, e de sua utilização pelo capital como mecanismo de controle para garantir os

interesses da classe economicamente dominante, com base na reprodução material da

riqueza. Nesse sentido, os estudos, os debates e as reflexões realizadas nas aulas

ministradas nas disciplinas (Trabalho na Sociedade Contemporânea; Estado, Políticas

Sociais e Serviço Social) do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social foram

fundamentais para a escolha do tema de investigação, visando à conclusão do Mestrado.

Para orientar a pesquisa, formulam-se algumas questões, quais sejam: 1. O que

impulsionou historicamente o surgimento do Estado e qual a sua natureza na reprodução

material da sociabilidade capitalista? 2. Como, na sociedade moderna, se desenvolveu a

noção de Estado de Bem-Estar Social e qual a sua função? 3. Como instituição que se

afirma na ordem social capitalista, o Estado altera sua essência na transição do

keynesianismo ao neoliberalismo? No intuito de responder a essas indagações,

buscamos fundamentar nosso estudo tendo como referência teórica de análise a

perspectiva marxiana, no resgate da crítica ontológica do Estado e da forma de

sociabilidade regida pelo capital.

O Estado ao longo do desenvolvimento capitalista tem sido objeto de várias

interpretações. Não há um consenso sobre a sua função na sociedade entre liberais e

marxistas, o que faz com que ele seja conceituado de muitas formas. Apesar de existir

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uma perspectiva teórica, com adesão de poucos, que defende o Estado como

instrumento de opressão da classe trabalhadora a serviço dos interesses burgueses, ainda

há uma grande parte de teóricos que concebe o Estado como um poder neutro que ora

defende os interesses da classe burguesa, ora defende os interesses da classe

trabalhadora, a depender da correlação de forças entre elas na esfera política. Essa

posição tem colaborado para confinar as lutas sociais nos limites jurídico-legais e da

democracia na ordem social vigente, esgotando as formas combativas dos trabalhadores

diante das desumanidades produzidas pelo sistema do capital.

Considerando a importância que esse debate assumiu no decorrer do século

XX, colocado pelo capitalismo no momento de crise estrutural aos que se posicionam

na direção contrária à exploração da força de trabalho, faz-se necessária uma análise

crítica da trajetória da relação entre Estado e sociedade civil para a luta emancipatória

dos trabalhadores. Isso demanda um exame das mistificações teóricas reproduzidas na

organização social capitalista, fundamentais para a reprodução do sistema

sociometabólico do capital. Nessa direção, busca-se demostrar como o Estado moderno

exerce sua função de complementaridade numa íntima relação de dependência

ontológica com a totalidade social. Evidencia-se que o Estado, nos marcos da sociedade

capitalista, independentemente das várias formas de sua atuação, atende às necessidades

reprodutivas do sistema do capital por meio de uma ação coercitiva ou concessiva

compatível com os parâmetros e limites estruturais que lhe são imanentes.

O presente trabalho está estruturado em três seções. Na primeira delas, expõe-

se o processo de formação do Estado burguês e sua relação com a base de reprodução

material nas sociedades de classe; em seguida, aborda-se a constituição do Estado

moderno e sua função social no interior da reprodução sociometabólica da sociedade

capitalista, mediante o resgate dos fundamentos do liberalismo clássico; e por último,

analisa-se os defeitos estruturais do capital e a forma como o Estado atua na

administração das contradições desse sistema, geradas pela dissonância entre esses

defeitos na ordem social vigente.

Na segunda seção, trata-se dos marcos do desenvolvimento do Estado moderno

no capitalismo dos monopólios, em que a contextualidade histórica irá requisitar um

reordenamento da forma de atuação do Estado. Diante das novas demandas postas pela

produção e reprodução das relações sociais capitalistas, o aprimoramento das estratégias

do Estado e sua readequação aos processos históricos decorrentes da dinâmica

expansionista do capital serão o solo fundante sobre o qual se desenvolverá a noção de

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Estado de Bem-Estar Social. Em seguida, analisa-se a função social do Estado de Bem-

Estar Social e suas consequências para a organização da luta da classe trabalhadora na

sociabilidade contemporânea, visando à manutenção do sistema do capital e seu

controle sobre os trabalhadores.

No terceiro capítulo, aborda-se a relação do ciclo de crises do sistema do

capital com as mudanças propagadas pelas ações do Estado moderno. Nesse sentido,

intenta-se entender o processo de formação das crises cíclicas na sociedade burguesa e

como a mudança do padrão e profundidade dessas crises é um fator de essencial

importância para a configuração da crise atual; em seguida, analisa-se a crise estrutural

do capital e suas determinações como um fenômeno que tem causado grandes

transformações no mundo da produção e na relação entre o capital e o trabalho. Dando

continuidade, explicita-se como ocorreram as mudanças econômicas, políticas e sociais

derivadas das tentativas do grande capital de reverter os efeitos causados por essa crise.

Tais ações do capital e do Estado, baseadas na perspectiva neoliberal, tiveram como

consequência o corte nos gastos sociais e trabalhistas, visando à recuperação da taxa de

lucratividade do sistema do capital em queda.

A partir das reflexões apresentadas, espera-se, com este estudo, contribuir

significativamente com o debate travado em torno da função social do Estado moderno

no contexto do capitalismo monopolista e como ela pode ser determinante na forma da

ação estatal direcionada à manutenção do modo de controle do sistema sociometabólico

do capital na sociedade contemporânea.

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2. OS FUNDAMENTOS ONTOLÓGICOS DO ESTADO MODERNO NA

SOCIEDADE DE CLASSES

Na busca de apreender os fundamentos ontológicos do poder político na

sociedade de classes, inicialmente, parte-se do estudo sobre o Estado enquanto uma

instituição social e historicamente constituída. As razões do seu desenvolvimento são

fundamentais para identificar a necessidade de sua existência e sua função social na

sociedade moderna. Desse modo, para compreender as formas de atuação do Estado no

sistema capitalista e sua função social, não se pode separá-lo da totalidade social da qual

faz parte, pois buscar os seus fundamentos implica desvelar sua função como parte

integrante da base material de reprodução social desse sistema sociometabólico.

A realização dessa análise requer desvelar os nexos causais que determinaram

o desenvolvimento das sociedades de classes na sua processualidade histórico-concreta,

em conexão com categorias centrais da reprodução material. Para tanto, toma-se como

fundamento central ao desenvolvimento deste estudo o ponto de vista ontológico do ser

social e seu elemento fundante, o trabalho, como base para o entendimento das relações

sociais constituídas pela humanidade ao longo de toda a sua história. Dessa forma,

parte-se da compreensão de que a base da reprodução material da sociedade é que

explica todas as outras esferas da reprodução social, assim como o Estado.

Assim sendo, busca-se desvelar o caráter de classe do Estado e sua

determinação ontológica, enquanto prioridade da economia sobre o poder político, tendo

a sociedade como forma de organização para se reproduzir e satisfazer as necessidades

materiais de seus membros. Com base nesses processos serão capturados a formação e o

significado social do Estado, como também as formas de controle sociometabólico do

capital na sociedade contemporânea.

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2. 1 Os fundamentos ontológicos do Estado burguês

Com o objetivo de analisar os fundamentos ontológicos do Estado, trata-se

primeiramente do Estado conectado à base de reprodução da sociedade. Para tanto,

parte-se dos pressupostos que no curso do desenvolvimento dos seres humanos

determinaram a necessidade da formação do Estado burguês.

É com referência na obra de Friedrich Engels (1820-1895), intitulada A Origem

da Família, da Propriedade Privada e do Estado, que se acha o fundamento ontológico

do Estado, sua origem, natureza e função social. Nela, Engels acompanha o processo de

desenvolvimento das relações sociais e toma como exemplo os povos gregos, romanos e

germanos, de acordo com os progressos obtidos na produção dos meios de subsistência.

Em seguida, realiza um exame das condições da produção material que na fase superior

da barbárie possibilitaram a entrada em cena da civilização. No capítulo IX, quando

trata dessa passagem da barbárie à civilização, o autor revela características da

organização gentílica das sociedades pré-históricas; nesses agrupamentos espontâneos

não cabiam as relações de dominação e servidão; assim, não havia razão para a divisão

da sociedade em diferentes classes sociais. Isso conduz ao exame da base econômica

dessa ordem social, para compreender como surgiu e se desenvolveu a sociedade de

classes e, a partir dela, a necessidade de um ordenamento político posto pelo Estado.

De acordo com Engels, na forma de organização social primitiva predominava

uma divisão sexual e espontânea do trabalho. Ao homem cabia a atividade da caça e da

pesca, a confecção de instrumentos e o combate às outras tribos. Já à mulher cabia a

tarefa de cuidar da casa, a coleta e o preparo da comida, a confecção das roupas e de

outros utensílios. O papel desempenhado pela mulher nessa forma de sociedade estava

diretamente relacionado ao desenvolvimento da economia doméstica. A produção

doméstica desempenhava uma função social coletiva, formada por um complemento de

atividades desenvolvidas por homens e mulheres; o produto do trabalho pessoal era de

usufruto comum. Portanto, para o autor, somente nessa forma de organização social “a

propriedade [é] fruto do trabalho pessoal”, porquanto os meios de produção utilizados

na reprodução da sociedade pertencem a todos os membros da comunidade (ENGELS,

1997, p. 179).

Tal regime social foi designado por alguns autores, como Marx, Engels e Netto

& Braz, de comunidade primitiva. Nela, grupos humanos viviam em abrigos

improvisados (cavernas ou choupanas), a alimentação era obtida através da caça, da

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coleta de raízes, frutos, insetos comestíveis, entre outros, e imperava o nomadismo.

Nessas comunidades, em que dominavam a igualdade resultante da escassez e a

distribuição praticamente equitativa do pouco que se produzia, não existia diferenciação

social, apenas uma repartição de tarefas entre homem e mulher. O baixo

desenvolvimento das forças produtivas nesse período, aliado à carência generalizada,

tornava a existência daqueles grupos humanos restrita a condições de extrema pobreza.

A igualdade e o trabalho coletivo faziam com que a cooperação fosse condição

indispensável à sobrevivência de todos os indivíduos da tribo.

Segundo Engels (1997), na cooperação, essa forma primitiva de organização

coletiva do trabalho, as relações sociais estabelecidas no âmbito das sociedades

primitivas não representavam uma “hierarquia de poder” do homem sobre a mulher.

Como se verá, essa é uma expressão da sociedade de classes. Tampouco anulavam a

autonomia de cada indivíduo na realização de suas tarefas. Pelo contrário, “o exercício

da autonomia pressupunha a divisão de tarefas – e esta pressupunha a autonomia de

cada indivíduo para executá-las” na comunidade.

Nesse contexto, todos trabalhavam e usufruíam do fruto do trabalho, seja da

coleta de alimentos necessária à sobrevivência dos grupos, seja a partir do planejamento

e da execução de novas maneiras de transformar a natureza a partir das suas

necessidades. Quando os homens começam a dominar os eventos naturais, eles passam

a ter uma influência menor no desenvolvimento da história da humanidade (LEACOCK

apud LESSA, 2012, p. 19).

Com a fabricação de instrumentos menos rudes que os machados de pedras,

cada vez mais aperfeiçoados para a caça e a pesca, entre eles, as lanças, o arco e a

flecha, canoas e remos, assim como os primeiros rudimentos para se trabalhar a terra,

esses grupos humanos foram, pouco a pouco, diminuindo a sua condição de penúria1. À

medida que esses indivíduos evoluíam enquanto grupo, a produção tornava-se cada vez

mais satisfatória e a vida nômade dava lugar às comunidades sedentárias. Esse modo de

organização social, a comunidade primitiva, perdurou por mais de 30 mil anos. De

forma gradual, porém, gestaram-se no seu interior aqueles elementos que responderiam

por sua dissolução (NETTO; BRAZ, 2010).

Entre esses elementos, dois são de fundamental importância: a domesticação

de animais e o surgimento da agricultura. As comunidades que seguiram nessa direção 1 De acordo com Netto & Braz, “essa [condição de] penúria devia-se ao fato de tais grupos consumirem

imediatamente o pouco que podiam obter com os seus esforços – não conseguiam mais que sobreviver a duras penas”

(NETTO; BRAZ, 2010, p. 56).

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logo se diferenciaram das demais, passaram a cultivar a terra e a criar animais,

desenvolvendo a agricultura e a pecuária, com o que deixaram o nomadismo e se

fixaram num território. Esse processo histórico “– que, segundo as informações

antropológicas, consolidou-se entre 5.500 e 2.000 anos antes de Cristo –, acarretou

significativas transformações na relação dessas comunidades com a natureza”. A

principal transformação consistiu em que, nessas comunidades, a ação do homem sobre

a natureza resulta numa produção de bens que ultrapassa as necessidades imediatas de

manutenção do grupo (NETTO; BRAZ, 2010, p. 56, grifos nossos).

Os progressos nos processos de trabalho, com o aprimoramento dos

instrumentos e o maior domínio do homem sobre a natureza, tornaram-no cada vez mais

produtivo. Conforme desenvolviam a agricultura e a pecuária, as tribos pastoras tinham

em suas mãos a vantagem de possuir mais leite, carnes e derivados; além disso,

dispunham de couro, peles e lãs para produzir vestimentas, o que lhes permitiu

acumular sua produção (ENGELS, 1997). A evolução do trabalho, no interior das

comunidades, possibilitou que as tarefas agrícolas (o cultivo, o pastoreio) aos poucos se

distinguissem daquelas atividades que criaram o artesanato (os instrumentos de pedra,

cerâmica e metal). Assim, gradualmente, o aumento da produção e da matéria-prima

forneceu as condições necessárias para a troca entre as diferentes tribos. Isso permitiu

que alguns indivíduos não necessitassem mais trabalhar para garantir o sustento de

todos (NETTO; BRAZ, 2010).

Nesse momento, a humanidade passa a conhecer um novo modo de produção

social até então desconhecido nas comunidades primitivas, fundado na relação de

exploração do homem pelo homem: o trabalho explorado ou alienado. A produção do

trabalho excedente sobre a forma na qual foi se estabelecendo na sociedade possibilitou

a relação de exploração entre os homens, fundada na apropriação privada dos bens. Do

intercâmbio material entre as diversas tribos nascia a mercadoria e, com ela, as

primeiras formas de comércio. Foi essa nova relação de troca que determinou a

diferenciação social entre os grupos. Dividiu-se a sociedade entre aqueles que produzem

o conjunto dos bens (os produtores diretos) e aqueles que se apropriavam dos bens

produzidos (os apropriadores do fruto do trabalho alheio). Essa nova característica

resultou na divisão da sociedade em duas classes fundamentais de interesses

inconciliáveis (NETTO; BRAZ, 2010).

Nessa direção, Engels considera que “o desenvolvimento de todos os ramos da

produção – criação de gado, agricultura, ofícios manuais domésticos – tornou a força de

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trabalho do homem capaz de produzir mais do que o necessário para a sua manutenção”

e a da comunidade. Ou seja, a partir da Revolução Neolítica2, o acúmulo desencadeado

pelo excedente econômico3 permitiu à comunidade dividir-se antagonicamente entre

produtores diretos e apropriadores do fruto do trabalho alheio, ao tempo que implicou a

necessidade da ampliação do trabalho explorado. Logo, passou “a ser conveniente

conseguir mais força de trabalho, o que se logrou através da guerra”, na transformação

do homem livre em escravo. Isso significou, consequentemente que “da primeira grande

divisão social do trabalho nasceu a primeira grande divisão da sociedade em duas

classes: senhores e escravos, exploradores e explorados”. Em outras palavras, surge na

sociedade a primeira relação de exploração, como expressão da escravidão de um povo

por outro, o que conduzirá ao fim das comunidades primitivas (ENGELS, 1997, p. 181).

Essa necessidade de aumentar a produtividade fez com que as tribos

passassem, através das guerras, a conseguir mais força de trabalho. A guerra passou a

exercer uma função social específica na sociedade de classes; os prisioneiros de guerra

são transformados em trabalhadores escravos. Netto & Braz afirmam ser “a

possibilidade de um homem produzir mais do que consome – isto é: de produzir um

excedente – que torna compensador escravizá-lo”, já que “só vale a pena ter escravos se

seu proprietário puder extrair dele um produto excedente (ou sobreproduto)” (2010, p.

65).

Isso não acontecia nas comunidades primitivas. Quando os homens iam à

guerra, matavam os prisioneiros, porque não havia motivos para explorá-los. Portanto,

verifica-se que, “quando essa possibilidade (de acumulação) e [a] alternativa (de

exploração) se tornam efetivas, a comunidade primitiva – com a propriedade e a

apropriação coletiva que lhe eram inerentes – entra em dissolução, sendo substituída

pelo escravismo”. Nascia então um novo modo de produção social, fundado na

exploração do homem pelo homem4 (NETTO; BRAZ, 2010, p. 57, grifos dos autores).

Quando e como os rebanhos deixaram de ser propriedade comum da tribo e

tornaram-se propriedade privada dos chefes de famílias? Segundo Engels, isso deve ter

ocorrido nessa fase de transição ao escravismo, quando, “com a aparição dos rebanhos e

2 Referente às duas grandes descobertas da comunidade primitiva, que foram a agricultura e a domesticação de

animais. 3 O excedente econômico se caracteriza pela “(...) diferença entre o que a sociedade produz e os custos dessa

produção. O volume de excedente é um índice de produtividade e riqueza.” (BARAN; SWEEZY, 1974, p. 19).

4 Cabe destacar que a dissolução das comunidades primitivas não levou em todos os casos ao modo de produção

escravista; em outras situações, instituiu o modo de produção asiático, peculiar às civilizações da Pérsia,

Mesopotâmia, Egito etc.

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de outras riquezas novas, operou-se uma revolução na família”. Foi visto que a coleta da

alimentação era atividade do homem; já o preparo do alimento e a produção artesanal

cabiam às mulheres. Os rebanhos constituíam a fonte de alimentos e utilidades; ao

homem competia a responsabilidade com sua domesticação. Por isso o gado se torna

sua propriedade, assim como as mercadorias e escravos que adquiriam através da troca.

Portanto, todo excedente obtido agora pela produção era propriedade do homem; a

mulher apenas participava no consumo, não possuía propriedade. Assim, a divisão

espontânea do trabalho na organização primitiva havia sido convertida na base para a

separação da propriedade privada do homem e da mulher, na transformação das relações

domésticas, pelo simples fato de ter modificado a divisão do trabalho fora do âmbito

familiar (ENGELS, 1997, p. 181).

O homem “selvagem”, caçador e guerreiro, que ocupava uma posição de

menor relevância na economia doméstica, dada a importância da mulher para a

alimentação e a reprodução das comunidades primitivas, passa à condição de pastor,

mediante a riqueza oriunda do excedente, ocupando um lugar de grande importância na

sociedade. Nesse momento, o trabalho doméstico desenvolvido pela mulher perdia sua

importância, comparado ao trabalho produtivo desempenhado pelo homem. A

supremacia do homem na família desfez os últimos obstáculos ao seu poder absoluto.

Esse poder do homem foi materializado na sociedade com a superação do direito

materno5, pela introdução do direito paterno, na passagem gradativa do matrimônio

sindiásmico à monogamia6 (ENGELS, 1997).

De acordo com Lessa, a ascendência histórica da família monogâmica se situa

na transição da comunidade primitiva para a sociedade de classes. Para que “a

resistência contra a exploração seja controlável, é fundamental que os escravos, os

servos e os proletários etc. busquem a sobrevivência de modo individual, não coletivo”.

Para tanto, faz-se necessária, segundo o autor, “a destruição dos laços primitivos que

faziam da sobrevivência de cada indivíduo a condição necessária à sobrevivência de

todos na comunidade”. Essa nova forma de organização da família se descola da vida

coletiva e constitui o núcleo privado na sociedade burguesa (LESSA, 2012, p. 26).

A monogamia é a expressão, na vida familiar, da relação de opressão do

homem sobre a mulher. Segundo Lessa (2012), na família monogâmica, a relação entre 5 Segundo Engels (1997), com base nos estudos de Morgan, o direito materno corresponde à base familiar sobre a

qual foi estruturada a constituição da gen iroquesa, das tribos indígenas norte-americanas, sendo esta a forma

primeira que deu origem à família patriarcal encontrada nas civilizações antigas: gregas, romanas e germanas. 6 Conforme se verá, “a monogamia é muito mais do que mero preceito moral da vida cotidiana – ela é, na verdade,

um aspecto decisivo da organização da sociedade de classes.” (LESSA, 2012, p. 11).

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o homem e a mulher, pais e filhos, irmãs e irmãos etc. constitui relações

ontologicamente distintas daquelas encontradas no regime igualitário das gens. Neste

modo de organização social, não havia traços das relações de poder7 e opressão, que são

o fundamento do casamento monogâmico. Já em todas as sociedades, sem exceção,

fundadas numa das modalidades de trabalho explorado (ou alienado), tais como a

escravista, a feudal, a capitalista e a asiática, a relação de exploração impôs a família

monogâmica como substituta da família comunal.

O crescimento da população aos poucos exigiu a união das diferentes tribos,

que passaram a vincular-se a um único território. Conforme Engels, “a riqueza dos

vizinhos excitava a ambição dos povos, que já começavam a encarar a aquisição de

riquezas como uma das finalidades precípua da vida” em sociedade. A guerra, que antes

se dava por vingança, ou com o objetivo de conquistar mais territórios, agora era

empreendida para a pilhagem, transformada num negócio permanente. Dessa forma, a

guerra tornou-se uma operação regular na vida dos povos. A escolha do chefe militar, a

partir da introdução do direito paterno, passou de forma gradual à sucessão hereditária;

com isso, surgiram “(...) os alicerces da monarquia e da nobreza hereditária”. Nesse

momento, os órgãos da constituição gentílica (o chefe militar, o conselho e a assembleia

do povo) deixaram de ser instrumentos da vontade do povo e converteram-se em

instituições independentes, para dominar e oprimir seu próprio povo (ENGELS, 1997,

p. 184-185).

Evidenciam-se então as raízes do escravismo8, identificado por Engels como a

fase superior da barbárie: “a escravidão (...) converteu-se em elemento básico do

sistema social”. Os escravos deixaram de ser meros auxiliares na produção e foram

levados em grandes quantidades para trabalhar nos campos e nas oficinas manuais. A

produção foi dividida em dois ramos principais, agricultura e artesanato – o que resultou

na segunda divisão econômica do trabalho. Nesse momento, surgiram “a produção

diretamente para a troca, a produção mercantil, e com ela o comércio, não só no interior

e nas fronteiras da tribo, como também por mar”. À diferença entre indivíduos ricos e

pobres veio somar-se a diferença entre homens livres e escravos; a nova divisão social

do trabalho conduziu à divisão da sociedade em classes (ENGELS, 1997, p. 183-184).

7 No tocante à relação de poder, Lessa (2012) afirma que o poder advém do surgimento da propriedade privada. Esta

consiste na riqueza expropriada da massa de trabalhadores que retorna contra eles sob a forma de poder econômico,

político e militar. 8 Como modo de produção, “o escravismo é típico do Mundo Antigo. A escravatura instaurada nas Américas, no

processo de colonização que se seguiu à expansão marítima, será subordinada às formas sociais do modo de produção

capitalista.” (NETTO; BRAZ, 2010, p. 66).

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No entanto, a civilização só é consolidada com o que Engels identifica como

sendo a terceira divisão econômica do trabalho:

A civilização consolida e aumenta todas essas divisões de trabalho já

existentes, acentuando, sobretudo, o contraste entre a cidade e o campo

(contraste que permitiu à cidade dominar economicamente o campo – como

na antiguidade (...), e acrescenta uma terceira divisão do trabalho, peculiar a ela e de importância primordial, criando uma classe que não se ocupa da

produção e sim, exclusivamente, da troca dos produtos: os comerciantes.

(ENGELS, 1997, p. 186).

Até aquele momento, somente a produção havia determinado os processos de

formação de novas classes sociais; as pessoas que participavam desse processo

dividiam-se entre produtores de pequena e grande escala. Agora, no curso da

civilização, surge uma nova classe, que sem fazer parte do processo produtivo,

conquista a direção e garante um espaço na sociedade. Trata-se, segundo Engels, de

“uma classe que se transforma no intermediário indispensável entre dois produtores, e

[que] explora a ambos”: a classe dos comerciantes. Desenvolve-se o comércio e, com

ele, o dinheiro em forma de moeda cunhada; “o não produtor domina o produto e sua

produção”, sendo esta a forma mais eficiente de se acumular riquezas (ENGELS, 1997,

p. 186-187).

De acordo com Engels (1997), ao lado da riqueza instituída em mercadorias,

escravos e dinheiro, nasceu a riqueza em terras, das quais a posse era concedida

primitivamente pelas gens ou pela tribo aos indivíduos. Esse direito foi fortalecido de

tal maneira que a terra podia ser transmitida por herança, e posteriormente transformada

em propriedade privada. Quando a terra era usurpada por um indivíduo ou família

particular, o que suprimia a liberdade das gens e das tribos no usufruto de um território,

desfazia-se o vínculo que unia o povo ao solo. Logo, a apropriação privada da terra e o

dinheiro possibilitaram que a terra fosse transformada numa mercadoria, que podia ser

comprada, vendida ou penhorada por seus proprietários.

No curso dessa revolução social, as comunidades primitivas encontravam-se

impotentes diante dos novos elementos que se tinham desenvolvido em seu concurso e

que responderiam por sua dissolução. Sua primeira condição de existência era que seus

membros partilhassem do mesmo território; no entanto, a vida sedentária via-se alterada

pelo movimento constante do comércio e pela venda das terras. Paralelamente, a

modificação das uniões gentílicas, a revolução nas relações econômicas e a consequente

diferenciação social exigiam novos órgãos. Decorrem daí a sociedade de classes e o

Estado.

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De acordo com Lessa, da mesma forma como “o trabalho de coleta fundou o

modo de produção primitivo, também será o novo modo de intercâmbio material com a

natureza, o trabalho explorado, que fundará a sociedade de classes”. O autor entende

que “a gênese do trabalho explorado é, também, a gênese das classes sociais”; todas as

sociedades de classe seguiram esse curso histórico, a exemplo dos modos de produção

escravista, feudal, asiático9 e capitalista (LESSA, 2012, p. 21).

Na primeira delas, a sociedade escravista, as relações sociais eram orientadas

pelo antagonismo entre os escravos e seus proprietários. O trabalho era realizado

mediante a coerção, e o excedente produzido pelo produtor direto (o escravo) lhe era

retirado mediante o uso da violência. As condições degradantes de exploração

resultavam em revoltas; para subjugar os escravos a condições subumanas de trabalho

se fez necessária a divisão de tarefas. Além dos segmentos livres (dos artesãos), na

sociedade surge um corpo de funcionários ligados às atividades administrativo-

burocráticas (relacionadas à cobrança de impostos) e repressivas (combate às revoltas

dos escravos) e, com elas, a formação de grandes exércitos. O escravismo ajustou-se

bem com as formas imperiais. A conquista de novos territórios e de um grande número

de escravos, bem como o trabalho forçado, constituía a base da estrutura social. Essas

conquistas representavam para os proprietários de terras uma maior arrecadação de

impostos sobre os povos dominados (NETTO; BRAZ, 2010).

O escravismo, ao introduzir a propriedade privada dos meios de produção e o

trabalho explorado, diversificou a produção de bens e, com o incremento da produção

mercantil, estimulou o comércio entre as várias sociedades. Com a expansão do

comércio, o dinheiro e a propriedade territorial, ampliou-se rapidamente a concentração

das riquezas sociais em poder de uma pequena classe (os proprietários de terras e

escravos), resultando concomitantemente no empobrecimento da população

trabalhadora (escravos, artesãos, camponeses).

Uma sociedade dividida em classes sociais, com interesses contraditórios e

irreconciliáveis, não poderia ser mantida pela forma como se achava a organização

gentílica – com corporações fechadas, de democracia primitiva e espontânea – produto

9 Cabe destacar que o modo de produção asiático tinha uma forma primitiva de exploração do homem pelo homem

que se diferenciou do modo de produção escravista. Nas sociedades asiáticas, a classe dominante se apropriava da

riqueza produzida nas aldeias através dos impostos de maneira coercitiva, sempre recolhidos sob a ameaça do uso da

força militar. Com característica de solo restrito para a agricultura, a produção exigia construções de estruturas tais

como diques, represas e canais de irrigação, que permitissem o desenvolvimento das forças produtivas. (LESSA;

TONET, 2008).

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de um regime social que não conhecia antagonismos interiores e não possuía outros

meios coercitivos além da opinião pública.

A partir dessa constatação, Engels afirma que:

Acabava de surgir (...) uma [nova] sociedade que, por força das condições

econômicas gerais de sua existência, tivera de se dividir em homens livres e

escravos, em exploradores ricos e explorados pobres; uma sociedade em que

os referidos antagonismos não só não podiam ser conciliados como ainda

tinham de ser levados a seus limites extremos. (ENGELS, 1997, p. 190).

Posto isto, continua o autor:

Uma sociedade desse gênero não podia subsistir senão em meio a uma luta

aberta e incessante das classes entre si, ou sob o domínio de um terceiro

poder que, situado aparentemente por cima das classes em luta, suprimisse os

conflitos abertos destas e só permitisse a luta de classes no campo

econômico, numa forma dita legal. O regime gentílico já estava caduco. Foi

destruído pela divisão do trabalho que dividiu a sociedade em classes, e

substituído pelo Estado. (ENGELS, 1997, p. 190, grifo do autor).

Nesses termos, identifica-se a primeira tese fundamental sobre o Estado

formulada por Engels (1997): a noção de um “terceiro poder”, que se encontra

supostamente acima das classes. O conflito gerado entre as classes sociais antagônicas

exige o domínio de um poder político, que passa a existir em sociedade na figura do

Estado. A concepção de existência desse “terceiro poder” se desenvolve

articuladamente com a visão liberal de Estado. Parte da ideia de o Estado dispor dum

poder que o coloca aparentemente acima das classes sociais, para gerenciar os conflitos;

uma instituição externa a elas, do qual todos participam, pela via democrática, das

decisões do Estado. Esta difere da concepção de Marx e Engels, em que o Estado nasce

com a função de administrar os conflitos entre as classes, na defesa dos interesses

particulares da classe economicamente mais poderosa, não sendo um mero

representante das classes em conflito.

Nas sociedades de classe, o Estado tem a função social de amortecer os

conflitos originários da relação de exploração do homem pelo homem; ele existe para

administrar e conter o acirramento dos conflitos sociais – dos proprietários de escravos

e dos escravos, da nobreza e dos servos, dos senhores feudais e dos servos, da burguesia

e dos trabalhadores –, cuja base está no modo como se desenvolveu historicamente a

produção material da riqueza.

Para Engels (1997), a importância desse “terceiro poder” reside na aparência de

neutralidade assumida pelo Estado nessa sociedade, mesmo não sendo esta a sua

natureza. O Estado surge historicamente como representante dos interesses de uma

classe em particular, a dominante, e não dos trabalhadores; ele não é um poder que brota

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do interior da sociedade, mas um resultado desta quando ela atinge o auge do seu

desenvolvimento econômico, como um mecanismo de contenção de conflitos.

Como esclarece Engels:

O Estado não é, de modo algum, um poder que se impôs à sociedade de fora

para dentro; tampouco é “a realidade da ideia moral”, nem “a imagem e a

realidade da razão”, como afirma Hegel. É antes um produto da sociedade,

quando esta chega a um determinado grau de desenvolvimento; é a confissão

de que essa sociedade se enredou numa irremediável contradição com ela

própria e está dividida por antagonismos irreconciliáveis que não consegue

conjurar. (ENGELS, 1997, p. 191).

Nesta argumentação, Engels (1997) expressa com clareza a compreensão de

Marx no que se refere ao papel histórico e ao significado social do Estado nas

sociedades de classe. Assim, pode-se destacar esta como sendo a segunda tese, o Estado

como um produto dessa sociedade, que só surge quando ela atinge certo nível de

desenvolvimento econômico e social. É a manifestação de que essa forma de

organização social possui antagonismos inconciliáveis. Desse modo, o Estado é

concebido onde e na medida em que as lutas de classes já não podem ser objetivamente

conciliadas. Para tanto, foi necessária a formação de um poder político que

administrasse os interesses conflitantes desta nova forma de sociabilidade estruturada

em classes.

Para que esses antagonismos, essas classes com interesses econômicos

colidentes não se devorem e não consumam a sociedade numa luta estéril,

faz-se necessário um poder colocado aparentemente por cima da sociedade,

chamado a amortecer o choque e a mantê-lo dentro dos limites da “ordem”.

Este poder, nascido da sociedade, mas posto acima dela e se distanciando

cada vez mais, é o Estado. (ENGELS, 1997, p. 191).

A ampliação do poder coercitivo do Estado era fundamental para manter essa

forma de sociedade produzindo e se desenvolvendo economicamente. Diversamente do

antigo regime gentílico, o Estado assim se caracteriza: em primeiro lugar, pelo

agrupamento dos seus súditos de acordo com a divisão territorial. A ampliação do

comércio mobilizava os homens para comercializar com outras sociedades, porém o

território mantinha-se fixo. A divisão territorial legou aos homens o exercício da

cidadania; aos cidadãos cabia o exercício dos seus direitos e deveres sociais onde

estivessem localizados, independentemente das gens ou tribos a que pertenciam

(ENGELS, 1997, p. 192).

O segundo traço característico é “a instituição de uma força pública, que já não

mais se identifica com o povo em armas”. Segundo Lênin (1986), essa noção de “força

pública” desenvolvida por Engels, chamada de Estado, deriva da divisão da sociedade

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em classes e impossibilita qualquer forma de organização armada do povo. Criou-se um

corpo de cidadãos armados (a polícia, o exército permanente), separado e distinto do

restante da população, e isso os coloca acima da sociedade. Essa força policial existente

em todo Estado “é formada não só de homens armados como, ainda, de acessórios

materiais, os cárceres e as instituições coercitivas de todo o gênero (...)”. Assim, foi

instituída uma nova esfera de opressão para auxiliar na reprodução material das

sociedades de classes (ENGELS, 1997, p. 192).

Para manter esse poder coercitivo, são exigidas contribuições por parte dos

cidadãos, na forma de impostos. Com o progresso da civilização, o Estado passa a

contrair empréstimos, formando a dívida pública. Na condição de “donos da força

pública e do direito de recolher os impostos, os funcionários, como órgãos da sociedade,

põem-se então acima dela”. Surge, nesse momento, a condição privilegiada dos

funcionários públicos em relação aos outros trabalhadores; eles são os representantes

dos interesses de uma classe em particular, a mais poderosa (ENGELS, 1997, p. 192).

Portanto, não se trata de um poder situado acima das classes, como Engels

explica:

Como o Estado nasceu da necessidade de conter o antagonismo das classes, e

como, ao mesmo tempo, nasceu em meio ao conflito delas, é, por regra geral,

o Estado da classe mais poderosa, da classe economicamente dominante,

classe que, por intermédio dele, se converte também em classe politicamente

dominante e adquire novos meios para a repressão e exploração da classe

oprimida. (1997, p. 192).

Desse modo, identifica-se a terceira tese na afirmação de Engels (1997): o

Estado é um Estado de classe. Não é de qualquer classe, mas o representante de uma

classe em particular: a economicamente mais poderosa, proprietária de toda a riqueza

materialmente produzida, e adquirida pela aplicação da força e da violência. Esta utiliza

o poder político – a dominação política – para manter a ordem em funcionamento, com

o objetivo de conter os conflitos, a fim de que não se coloque em risco a ordem vigente.

Em cada modo de produção e, consequentemente em cada forma de

sociabilidade dividida em classes sociais que a humanidade já vivenciou até hoje, o

Estado se apresenta com a mesma função social.

Conforme Engels,

o Estado antigo foi, sobretudo, dos senhores de escravos para manter os

escravos subjugados; o Estado feudal foi o órgão de que se valeu a nobreza

para manter a sujeição dos servos e camponeses dependentes, e o Estado

moderno representativo é o instrumento de que se serve o capital para

explorar o trabalho assalariado. (1997, p. 193-194).

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Dessa forma, o Estado complementa o que já estava em processo de

andamento: a divisão da sociedade em classes sociais antagônicas. No entanto, o que

dirige a reprodução social da sociedade são as relações sociais derivadas da produção

material da riqueza social. A força política do Estado se desenvolveu para organizar e

administrar as sociedades de classe, proporcionando uma estabilidade mínima

necessária para que a reprodução material ocorra sem barreiras.

Engels (1997) afirma que, excepcionalmente, “há períodos em que as lutas de

classes se equilibram de tal modo que o poder do Estado, como mediador aparente,

adquire certa independência momentânea em fase das classes” sociais. Nesta situação

achava-se a monarquia absolutista dos séculos XVII e XVIII, o bonapartismo do

primeiro e segundo impérios franceses, e Bismarck na Alemanha. Em certos momentos

da história, o Estado parece assumir uma posição de conformação por não se apresentar

diretamente associado a nenhuma das classes, num processo de acomodação da sua

própria dominação, como foi o caso da burguesia comercial que nasce no feudalismo,

que ainda não havia conquistado o poder político e se utilizava da monarquia feudal

para fazer valer seus próprios interesses (ENGELS, 1997, p. 194).

Por último, identifica-se a quarta tese sobre o Estado em Engels, quando o

referido autor afirma que “o Estado não tem existido eternamente. Houve sociedades

que se organizaram sem ele, não tiveram a menor noção do Estado ou do seu poder”,

conforme vimos, na breve exposição sobre a organização social gentílica. A formação

do Estado foi uma necessidade histórica do desenvolvimento das sociedades divididas

em classes sociais. Isto leva a compreensão de que ao chegar a uma futura sociedade, a

existência dessas classes não será mais necessária, a organização da produção material

será realizada por uma associação livre de produtores iguais, o que conduzirá o Estado

para o museu de antiguidades, pois não haverá mais razão para sua existência na

sociedade (ENGELS, 1997, p. 195).

Desde o seu surgimento, a civilização se baseia na relação de exploração de

uma classe sobre a outra e o seu próprio desenvolvimento se opera numa constante

contradição. Assim, “cada progresso na produção é ao mesmo tempo um retrocesso na

condição de classe oprimida, isto é, da imensa maioria dos trabalhadores”. A essa

consequência produzida pela relação de exploração entre os homens, no modo de

produção do capital, Marx se refere na sua obra O Capital como a Lei Geral da

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Acumulação Capitalista10, a qual se caracteriza pela grande concentração de riquezas à

disposição do capital, que ocorre de forma proporcional à progressão da miséria da

classe trabalhadora. Assim, “quanto mais progride a civilização, mais se vê obrigada a

encobrir os males que traz necessariamente consigo (...)”. A força de coesão necessária

à manutenção desta forma de sociedade civilizada “é o Estado, que, em todos os

períodos típicos, é exclusivamente o Estado da classe dominante e essencialmente uma

máquina destinada a reprimir a classe oprimida e explorada”, por sua própria natureza

de classe (ENGELS, 1997, p. 199-200).

Nesses termos, os pressupostos até aqui apresentados são de grande relevância

para a compreensão desta perspectiva teórica de Estado e, portanto, dos seus

fundamentos ontológicos. Isso desmistifica a real necessidade e a função social do

Estado no modo de produção capitalista. Com esta pretensão, no próximo item, analisa-

se o processo de desenvolvimento, a formação e função social do Estado moderno, com

base na obra O liberalismo europeu, de Harold Laski, que resgata os fundamentos do

liberalismo econômico na Europa.

2. 2 O Estado moderno: formação e função social

Foram postos os fundamentos gerais sobre em quais condições surgiu e se

desenvolveu o poder do Estado e o seu caráter de classe no interior da sociedade

escravista. Na mudança para uma nova forma de sociabilidade, a exemplo do processo

de transição do feudalismo para o modo de produção capitalista, será visto que a

natureza do Estado não se modifica e mantém seus fundamentos ontológicos, ou seja, o

Estado enquanto representante dos interesses de uma classe em particular, a classe

economicamente mais poderosa.

A análise aqui proposta sobre a evolução do Estado à sua fase moderna busca

recuperar a sua necessidade no curso desse processo de transição, entendendo que este

ao ser materializado na sociedade capitalista assume uma posição historicamente

10 De acordo com Pimentel, a Lei Geral da Acumulação Capitalista “consiste no fato de que, quanto mais o exército

industrial de reserva cresce em relação ao exército ativo de trabalhadores, tanto mais se materializa a superpopulação

relativa. Quanto maior for a camada miserável da classe trabalhadora e o exército industrial de reserva, maior será o

pauperismo oficial. Esse pauperismo se constitui naquela camada social que perdeu a capacidade de vender sua força

de trabalho e tem de mendigar a caridade pública. Ele se expressa na forma como o capital se apropria da força de

trabalho da classe trabalhadora através dos diversos mecanismos de exploração e dominação, com a finalidade de

assegurar a sua reprodução e a acumulação da riqueza por parte dos capitalistas e, contraditoriamente, produz a

acumulação da miséria, isto é, da classe que produz seu produto como capital”. (PIMENTEL, 2012, p. 44-45).

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determinada, como instância de dominação (enquanto “estrutura hierárquica de

comando político”) e legitimação do poder material exercido pelo sistema do capital.

Dessa forma, não se pode analisar a formação e a função social do Estado moderno sem

entender como se configurou historicamente a estrutura de reprodução do capital; sem

compreender de que forma se organizou economicamente esse sistema, e

principalmente, sem identificar sua relação com a totalidade social. Portanto, sem

entender como a política se articula com a base econômica de reprodução material do

capital na sociedade moderna.

Ao fim de um período de transição, o modo de produção feudal se impôs na

sociedade. Teve início com a desintegração do Império Romano, após a pressão

exercida pelas chamadas “invasões bárbaras”, na metade do primeiro milênio da era

moderna. No feudalismo, a centralização imperial (característica do período greco-

romano) foi substituída pela divisão da terra em feudos; esses constituíam as unidades

econômico-sociais desse modo de produção. Os proprietários dos feudos (senhores

feudais) subjugavam os trabalhadores diretos (servos), na produção de bens materiais. A

propriedade da terra passa a constituir a base da nova estrutura social, na qual a

sociedade era dividida entre senhores e servos (NETTO; BRAZ, 2010, p. 68).

A condição servil dos trabalhadores do campo era muito distinta da escravidão

vivenciada pelos escravos, ainda que ambos fossem explorados (não só pela obrigação

do trabalho nas terras do senhor, mas também pela cobrança de tributos, além do dízimo

recolhido pela Igreja). Os servos dispunham dos meios de trabalho e retiravam o seu

sustento do que produziam na terra. “A economia do feudalismo era essencialmente

rural e autárquica”, e sua produção destinava-se basicamente ao autoconsumo. Deste

modo, a diferença consistia na relação que o escravo estabelecia com o seu dono; a

relação entre o servo e o senhor feudal implicava legalmente uma série de

compromissos mútuos (NETTO; BRAZ, 2010, p. 69).

Biossannade observa:

O sistema feudal, em última análise, repousava sobre uma organização que,

em troca de proteção, frequentemente ilusória, deixava as classes

trabalhadoras à mercê das classes parasitárias e concedia a terra não a quem

cultivava, mas aos capazes dela se apoderarem. (BIOSSANNADE apud

HUBERMAN, 1986, p. 15).

Assim, o feudalismo estruturou-se sobre a relação alienada de obrigações

mútuas entre as classes: a prestação de serviço por parte dos servos nas terras dos

senhores feudais, e estes lhes garantiam a proteção da vida. Essa relação de

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reciprocidade significou a sujeição da classe trabalhadora aos interesses dos grandes

proprietários fundiários, o clero e a nobreza. Huberman (1986) afirma que o trabalhador

do campo no regime feudal vivia em condições miseráveis, tendo de trabalhar

arduamente no solo por longas horas para que pudesse obter algo nos dias em que não

trabalhasse para o seu senhor. Ademais, eles eram fortemente vigiados, haja vista as leis

e regras instituídas nas glebas.

O excedente econômico, ao ser produzido pelos servos, era desapropriado

mediante o monopólio da violência (real e potencial) praticada pelos proprietários das

terras, que administravam a lei no limite dos seus feudos, o que caracteriza no

feudalismo um poder descentralizado. A vida degradante dos servos, bem como o ódio

alimentado por seus senhores, levou às “rebeliões camponesas que marcaram tão

fortemente o período da baixa Idade Média, configurando um cenário de confrontos

sociais11 que se estenderão do século XIV ao século XVI” (NETTO; BRAZ, 2010, p.

69).

Por volta do século XI, na Europa, o sistema feudal encontra-se plenamente

consolidado. Os camponeses, que já produziam um significativo excedente agrícola,

eram expropriados pela classe dos proprietários fundiários. Paralelo à produção rural,

mantinha-se a produção destinada à troca, uma produção de mercadorias voltada a

atender ao consumo pessoal de senhores e servos e centrada no trabalho artesanal.

No curso desse século, o desenvolvimento do comércio, que teve início no

escravismo, com as primeiras relações de troca de mercadorias, ganha um novo

estímulo com as Cruzadas12; surgem as primeiras corporações artesanais e as

associações de mercadores, as chamadas ligas comerciais. O estabelecimento de rotas

comerciais para o Oriente amplia a quantidade de produtos e matérias-primas, o que

confere um novo dinamismo à atividade comercial, resultando no consumo de

especiarias pela nobreza. Tais eventos contribuíram decisivamente para a crise do

feudalismo e de suas instituições num longo período de transição que marcará

posteriormente a derrocada do Antigo Regime (NETTO; BRAZ, 2010).

Com efeito, o desenvolvimento das relações comerciais na velha organização

feudal apresentava-se como um entrave ao desenvolvimento da sociedade. Essa 11 A título de ilustração, Netto & Braz (2010) destacam alguns desses confrontos: a Guerra Camponesa na Flandres

Ocidental (1320); o levante do Campesinato Francês (1358); a Revolução Camponesa na Inglaterra (1381); a Revolta

dos Servos da Catalunha (1462); a Insurreição do Campesinato Calabrês (1469) e as Guerras Camponesas na

Alemanha (1525). 12 Trata-se de um movimento de disfarce religioso que foi orientado fundamentalmente pelas vantagens econômicas

que poderiam ser conquistadas por certos grupos financiadores das Cruzadas, como a Igreja, os nobres e os

cavaleiros. Na realidade, as Cruzadas constituíram guerras de pilhagem de bens e de terras. (HUBERMAN, 1986).

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particularidade altera a característica fundamental do feudalismo, a terra como única

fonte de riqueza, para a posse do dinheiro baseada no lucro, regida pelos emergentes

comerciantes; estes, no interior da sociedade feudal, tornaram-se protagonistas

econômicos. De um lado, o consumo produzido pela nobreza, que não poderia ser

adquirido por meio do saque ou guerras, mas apenas pela relação fundada na troca por

dinheiro, conferindo a este uma função privilegiada na vida social; de outro, a relação

comercial entre as cidades mais distantes. As novas relações comerciais não apenas

romperam com o caráter de autoconsumo do feudalismo, mas também estimularam a

atividade comercial entre outras regiões, o que levou ao aparecimento das cidades, nas

quais os núcleos das redes comerciais se fixarão (NETTO; BRAZ, 2010).

É sob as novas relações de organização da produção (das corporações e

associações) que um grupo começa a ganhar destaque: os comerciantes, como

representantes do capital mercantil, orientados por um único desejo, a busca pelo lucro,

que só seria adquirido pelo processo de compra e venda de mercadorias. Com eles uma

nova forma de riqueza, diferente daquela própria da ordem feudal, ganha importância: a

riqueza mobiliária, traduzida pela acumulação de dinheiro. Dentro do próprio sistema

feudal nasce uma nova classe social que se desenvolve com essa prática comercial, a

burguesia, e esta, por sua vez, conduzirá à gênese da sociedade capitalista (NETTO;

BRAZ, 2010).

De acordo com Laski, essa nova classe social “afirmou seus direitos a uma

plena participação no controle do Estado”. A burguesia, para alcançar os seus

propósitos, “efetuou uma transformação fundamental nas relações legais entre os

homens”. O controle do poder político, que antes, no feudalismo, era exercido por uma

aristocracia cujo domínio assentava na propriedade da terra, passou gradualmente a ser

compartilhado com a burguesia nascente, cuja influência derivava da propriedade de

bens móveis. Em um longo processo de transição, o status foi substituído pelo contrato,

como fundamento jurídico da nova sociabilidade; a uniformidade religiosa deu lugar a

uma diversidade de credos; o império medieval cedeu ao poder da soberania nacional; o

campo deu lugar à cidade; a ciência substituiu a religião; a metafísica foi deixada pela

razão; e os conceitos de iniciativa social renderam-se aos de controle individual

(LASKI, 1973, p. 9).

Laski (1973) apresenta o fundamento básico para entender o desenvolvimento

histórico que marca a passagem do feudalismo ao capitalismo: “As novas condições

materiais, em resumo, deram origem a novas relações sociais; e em função destas,

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desenvolveu-se uma nova filosofia para permitir uma justificação racional do novo

mundo que assim nascera”. Nessa direção, o autor demonstrou que as novas relações

materiais provocam mudanças significativas na estrutura da sociedade feudal. Elas

exigem uma nova filosofia de mundo – o liberalismo, e, por sua vez, uma nova

concepção de política e de economia, revolucionando as bases da antiga organização

social, num movimento histórico que conduzirá ao mundo moderno – a Revolução

Burguesa (LASKI, 1973, p. 9).

O pensamento liberal levou cerca de três séculos para se estabelecer na

sociedade, ao lado da construção do pensamento moderno, basicamente na formulação

da política e da economia. É difícil descrever com precisão como ocorreu o seu

desenvolvimento, mas ele ganhou forma e estruturou-se como uma doutrina coerente à

evolução da sociedade moderna. Contudo, também contribuíram para a formação das

ideias liberais eventos como: os descobrimentos geográficos; a nova cosmologia; as

invenções tecnológicas, e principalmente, as novas formas de relações econômicas. O

liberalismo representou um desafio aos interesses estabelecidos pelas tradições de meio

milhar de anos; as mudanças por ele efetuadas nas áreas econômica, política e social

implicarão uma nova forma de sociabilidade (LASKI, 1973).

A sociedade feudal entrou em colapso lentamente. As características daquela

forma de organização social, tais como: a posição social definida, o mercado

predominantemente local e uma produção voltada para o valor de uso, aos poucos se

desintegraram, sendo substituídas por outros elementos que caracterizam um processo

que já se achava em andamento: o nascimento de uma sociedade mais dinâmica, no

final da Idade Média. O mercado mundial surgia, e com ele o capital acumulava-se em

uma tão imensa escala, que a busca de lucros tornou-se a finalidade das ações e relações

humanas da nova forma de organização social, a capitalista. Dessa forma, o liberalismo

foi modelado como doutrina pelas necessidades dessa nova sociabilidade, e enquanto

filosofia social não pôde superar o meio em que nasceu (LASKI, 1973).

O liberalismo, enquanto “corpo doutrinário diretamente relacionado com a

liberdade, surgiu como uma concepção contrária aos privilégios de nascimento e credo”

(LASKI, 1973, p. 11). No entanto, a liberdade que ele proclamou não tinha foros de

universalidade, já que estava limitada aos homens que tinham propriedade a defender.

Desde o seu aparecimento, o liberalismo buscou limitar o âmbito da autoridade política,

sendo esta “a ideia por meio da qual a nova classe média [a burguesia] ascendeu a uma

posição de domínio político”, tendo como seu maior instrumento o chamado Estado

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contratual. Para formular este Estado, o liberalismo procurou limitar a intervenção

política à área de manutenção da ordem pública, impedindo que o governo interferisse

na livre atividade econômica dos indivíduos, a partir da defesa dos chamados direitos

fundamentais, sobre os quais o Estado não teria autoridade legal para intervir (LASKI,

1973, p. 13).

De acordo com Laski, o Estado Contratual “nunca compreendeu ou nunca foi

capaz de reconhecer completamente que a liberdade de contrato jamais é genuinamente

livre enquanto as partes contratantes não dispuserem de igual poder de negociação e

barganha”. Trata-se de uma igualdade no âmbito formal, e isto é, necessariamente, “uma

função da igualdade de condições materiais”. Portanto, na relação entre capital e

trabalho, o trabalhador não possui a mesma liberdade que o capitalista ao negociar sua

força de trabalho, porque as condições materiais das classes sociais são completamente

desiguais (LASKI, 1973, p. 13).

Nessa direção, Laski afirma que:

A ideia de liberalismo está historicamente vinculada, de um modo inevitável,

à de posse de propriedade. Os fins a que ele serve são sempre os fins

daqueles homens que estão nessa posição. Fora desse estreito círculo, o

indivíduo – por quem o liberalismo se mostrava tão zeloso – nunca passou de

uma abstração, a quem os seus benefícios jamais puderam, de fato, ser

conferidos. (1973, p. 13-14).

De fato, o que o pensamento liberal buscou foi a liberdade de contrato,

vinculada à ideia de posse de propriedade, como condição para a legalização do trabalho

explorado. Os indivíduos têm igualdade de propriedade nas seguintes condições: como

proprietários dos meios de produção (o capitalista), e enquanto donos da força de

trabalho (o trabalhador), quando os encontros e negociações são realizados mediante a

firmação de contratos em que todos devem responder às suas partes. Tudo isto está

concebido neste modo de organizar a sociedade burguesa, ao “libertar” os servos dos

laços feudais, tornando-os trabalhadores “livres como os pássaros” lançados no mercado

de trabalho, para que eles, de forma “voluntária”, vendam-se como força de trabalho,

porém protegidos por um contrato, sendo este, um dos meios de mistificação da

igualdade entre as partes (MARX, 1996, p. 342).

Outra forma de liberdade proposta pelo liberalismo foi o desprendimento da

classe burguesa dos vínculos do Estado feudal – ou absolutista – de seu caráter

altamente intervencionista. Esse movimento, Marx designou de emancipação política,

no qual se emancipa o capital da interferência do Estado, ou seja, emancipam-se as

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relações econômicas de produção da intervenção do poder político. O produto histórico

do embate entre as forças produtivas materiais existentes, no período de transição do

modo de produção feudal ao capitalista, foi a revolução política da sociedade burguesa.

No livro A Questão Judaica, Marx (1991) considera a revolução política da

classe burguesa como sinônimo da revolução da sociedade civil. Nesse sentido, a

emancipação política corresponde à expressão teórica da perspectiva da classe

dominante e, portanto, não pode deixar de ser limitada. À medida que ela deixa intacta a

base de reprodução do sistema capitalista, esta se torna incapaz, por sua própria

natureza, de permitir a plena realização dos homens em sociedade.

Nas Glosas Críticas Marginais ao Artigo “O rei da Prússia e a Reforma

Social” de Um Prussiano, Marx (2010) reconhece que a emancipação política

representou um importante passo rumo ao desenvolvimento da sociedade humana.

Contudo, ao superar a forma de organização feudal, a sociedade capitalista, tendo como

núcleo básico a relação de compra e venda da força de trabalho, trouxe à tona “uma

sociedade civil marcada pela divisão entre público e privado, pela oposição dos homens

entre si, pela exploração, pela dominação, pelo egoísmo, pelo afã de poder, enfim, por

uma fratura ineliminável no seu interior”. Para que essa forma de sociedade pudesse

reproduzir-se, exigiu o estabelecimento de uma igualdade regulada pelo princípio da

legalidade jurídico-política entre os homens. Todos deveriam ser colocados no mesmo

patamar de cidadãos, porém isto não caracteriza a eliminação da desigualdade social, e

sim a consolida (MARX, 2010, p. 26).

Na esfera da produção da nova sociedade, os homens enquanto participantes

diretos desse processo permanecem em condições desiguais, devido à apropriação da

riqueza socialmente produzida manter-se concentrada nas mãos de uma classe em

particular, a classe burguesa. A emancipação política, diz Marx – expressa pela

cidadania e pela democracia –, é, sem dúvidas, uma forma de liberdade superior àquela

liberdade existente no feudalismo, todavia, “na medida em que deixa intactas as raízes

da desigualdade social, não deixa de ser ainda uma liberdade essencialmente limitada,

uma forma de escravidão dos trabalhadores” (MARX, 2010, p. 27). Isto equivale a

afirmar que, na sociedade burguesa, apenas de forma indireta o homem é um homem

livre, uma vez que é na “escravidão da sociedade civil” que o Estado moderno tem o

seu “fundamento natural” (MARX, 2010, p. 20, grifo do autor).

Logo, entende-se que o liberalismo foi motivado pelo nascimento de uma nova

sociedade econômica, com o fim do feudalismo. Ele foi modelado como uma doutrina

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pelas necessidades dessa nova ordem social. E foi através dela que a classe burguesa

elevou-se a uma posição de domínio político, tendo como seu instrumento o Estado

contratual, que tinha por objetivo limitar a intervenção política à área de manutenção e

administração da ordem pública.

De acordo com Laski, a essência da nova sociabilidade, a capitalista, em

primeiro lugar, se processou com “a redefinição das relações produtivas entre os

homens”. No término do século XV, as relações capitalistas de produção já haviam se

gestado no interior do feudalismo; “a busca da riqueza pela riqueza converteu-se no

principal motivo da atividade humana”. Já no período medieval a ideia de aquisição de

riqueza era orientada por um conjunto de regras morais impostas pela autoridade

religiosa e a usura era tida como um pecado. A partir do século XVI, a ideologia feudal

já não se justificava, e até se mostrava como barreira ao desenvolvimento da atividade

econômica. Para tanto, “eram necessárias novas concepções que legitimassem as novas

potencialidades de riqueza que os homens haviam descoberto, pouco a pouco, nas eras

precedentes”. Nessa direção, a doutrina liberal converteu-se na explicação filosófica das

novas práticas sociais (LASKI, 1973, p. 15).

Como as ideias e instituições feudais já não se adequavam à nova forma de

reprodução material, cabia transformá-las para melhor se ajustarem à nova realidade

social.

Conforme Laski:

(...) a lógica desse novo espírito (capitalista) compele-o a moldar o mundo

inteiro aos seus desígnios. Sempre que as ideias e instituições com que se

depara inibem o avanço de sua busca de riqueza, procura transformá-las de

molde a que se ajustem às suas próprias finalidades, pois oferece aos seus

adeptos satisfações tangíveis e diretas, alcançáveis nesta vida, e isto as

concepções antecedentes eram incapazes de oferecer. (1973, p. 17).

Para Laski, as potencialidades desse novo modo de produção já não podiam

continuar a ser exploradas no velho sistema feudal; por isso a sociedade capitalista

triunfou. Mas, para tanto, a ideia de capitalismo teve de passar por duas grandes fases:

primeiro, buscou transformar a sociedade, para só então capturar o Estado. Essa

transformação processou-se através das mudanças na base material, em que as relações

de produção dos bens necessários aos homens passam a justificar o esforço constante da

busca pela riqueza, visando ao bem social. Na mesma direção, “empenhou-se em

capturar o Estado porque, desse modo, teria em suas mãos o poder coercitivo da

sociedade e poderia usá-lo, conscientemente, para seus próprios fins”. Assim, foram

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necessários cerca de três séculos para a consolidação dessas transformações, entre

revoluções e guerras (LASKI, 1973, p. 18).

A primeira delas ocorreu no âmbito religioso, no modo de produção feudal,

segundo Huberman (1986). A Igreja mostrou-se parte e membro importante desse

sistema, uma instituição que exercia forte influência na área política e econômica, na

condição de maior proprietária de terras desse período. Laski afirma que a destruição

desse poder eclesiástico na esfera econômica foi a maior contribuição reservada ao

século XVI, pois significou o desenvolvimento das relações de propriedade sem os

entraves da religião. O espírito capitalista encontrou, ao nascer no movimento que foi

denominado de Reforma13, o apoio necessário para desenvolver a formulação de suas

doutrinas. A Reforma Protestante destruiu a supremacia do poder de Roma, e ao fazê-lo,

deu origem a novas teorias, efetuando vastas mudanças na distribuição da riqueza, o que

provocou a formação do Estado secular (LASKI, 1973, p. 29).

Foi dessa maneira indireta que a Reforma Protestante veio em apoio da

doutrina liberal, abrindo o caminho ao individualismo burguês, ao confiscar as riquezas

que eram usadas para sustentar os princípios feudais que constituíam um obstáculo ao

avanço da atividade individual. Com o desaparecimento dessa forma de organização da

riqueza, a influência desses princípios também declinou. Lentamente, na sociedade

estruturou-se uma concepção secular de vida, que efetuou uma transformação no

conteúdo do princípio cristão de modo a ajustá-lo aos seus próprios interesses. Agora, já

não cabia ao novo espírito entrar em acordo com a Igreja, mas a Igreja que teria de

ceder e chegar a um acordo com o novo espírito capitalista. Isso habilitou as relações de

propriedade a se desenvolverem sem os entraves teológicos (LASKI, 1973).

Sob tais condições, surgiu o Estado secular, que buscou e conseguiu estruturar

a sua função numa base em que substituiu a Igreja enquanto guardiã do bem-estar

social. Nessa busca para a plena realização do liberalismo, o mercantilismo14 foi o

primeiro passo rumo à nova forma de organização estatal. Todas as contradições

desenvolvidas mediante a realização da atividade econômica, tais como: a imigração em

grande escala; uma moeda aviltada; a necessidade de proteger a aventura econômica

internacional; o domínio colonial; a confusão geral de normas e padrões; as lutas entre 13 Portanto, não resta dúvida que “a política representada pela Reforma é a expressão pura e simples do

desmoronamento da ordem econômica medieval. A expansão do comércio e da indústria requer uma monarquia forte,

capaz de governar no interesse dessa expansão”. (LASKI, 1973, p. 29-30). 14 Segundo Laski, “A raiz da ideia mercantilista esta no reconhecimento da necessidade de uma nova disciplina, de

um código de comportamento econômico que promova a prosperidade em vez da miséria, o trabalho no lugar da

indolência”. Nessa direção, “era natural contar-se com o Estado como o grande órgão regulador, através de cuja ação

benéfica a abundância poderia ser alcançada”. (LASKI, 1973, p. 44).

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as classes sociais; a concorrência e; a criação de tarifas protetoras, tudo isso ressaltava a

necessidade da intervenção do Estado. Nessa direção, “a economia estatal, numa

palavra, era uma fase no caminho para a economia individual”; ela assegurava a ordem

social interna e, nesse aspecto, era bem recebida, pois a burguesia ainda não detinha o

poder político (LASKI, 1973, p. 46).

O modo como este poder político se configurou, no século XVI, foi de extrema

relevância para a estruturação da sociedade capitalista. Era desenvolvido sob o

argumento da busca pela paz e o poder material. Os novos homens de negócios estavam

ávidos de segurança; a aliança com as monarquias os ajudou, de modo definitivo, a

eliminar a autoridade dos senhores feudais. Dessa forma, “a burguesia nascente via

numa forte autoridade central a melhor garantia de sua própria sobrevivência e a melhor

esperança de sua própria prosperidade”. Os monarcas reconheciam a importância dessa

aliança com os novos comerciantes para a garantia de sua própria sobrevivência,

respondendo às necessidades que a classe burguesa reclamava, movidos pela ideia de

que, “quanto maior for a riqueza que a burguesia possa alcançar, mais poderoso será o

Estado” por ela constituído (LASKI, 1973, p. 59).

Para tanto, “o príncipe deveria encorajar e proteger os fabricantes,

proporcionar-lhes paz e uma justiça rápida e barata, uma disciplinada classe

trabalhadora devidamente instruída para dedicar-se ao trabalho, dócil rebanho a mando

dos interesses patronais”. Nesse sentido, quanto maior o poder do Estado, melhor para

os comerciantes, pois o Estado forte e em pleno desenvolvimento se converte num

grande comprador, estimulando o mercado (LASKI, 1973, p. 59).

Segundo Laski,

a necessidade de o Estado, se quiser elevar ao máximo seu poder e sua força,

atuar de acordo com os princípios que a burguesia está aplicando em sua

esfera privada converte o Estado, quase sem que ele se aperceba disso, num

Estado capitalista. Pois o Estado, nos alvores do século XVII, está

começando a perseguir objetivos que só poderá alcançar com êxito se adotar,

como próprios, os fundamentos do novo espírito econômico. (1973, p. 60-

61).

Portanto, os novos caminhos do poder terão de ser, cada vez mais, os caminhos

da burguesia. Uma classe social ainda em processo de ascensão, que começava a

dominar economicamente, mas ainda não detinha o controle do poder político. O fato de

os comerciantes, no século XVI, estarem convencidos da necessidade de combater a

monarquia, na luta pelo direito de controlar o Estado, constitui a prova do quanto a nova

concepção de administração e organização da sociedade, fundada na racionalização do

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princípio administrativo, já havia avançado rumo a uma nova direção, na busca da

consolidação da sociabilidade capitalista (LASKI, 1973, p. 60-61).

Ao longo do século XVI foram lançados os alicerces da doutrina liberal. Cria-

se uma disciplina social própria, independente do ideário religioso, e um Estado

autossuficiente. Surge um novo mundo, tanto no sentido ideológico como no sentido

geográfico, em que a ciência e a filosofia procuram interpretar e explicar as mudanças

sociais que nele ocorrem. Dessa forma, “em sua essência, é a perspectiva de uma nova

classe que, uma vez investida de autoridade, está convencida de que pode remodelar os

destinos do homem, muito mais adequada e eficientemente do que foi feito no passado”

(LASKI, 1973, p. 62).

Por se tratar de um processo, Laski procura demonstrar que o desenvolvimento

de um século é resultado do movimento decorrente do século que o antecedeu. Em sua

análise do século XVII, identifica a continuidade das modificações na esfera econômica

e política que foram iniciadas no século anterior. É na Inglaterra que se pode observar

com maior nitidez esse movimento, onde se apresentou “a vitória do utilitarismo no

domínio moral, da tolerância no domínio religioso, e do governo constitucional na

esfera política”. No campo econômico, conforme o próprio autor afirma, “o Estado

converte-se no mordomo do comércio; seus hábitos modificam-se de acordo com os

requisitos do novo meio. Assim, o Estado passou a modificar sua forma de atuação para

atender às novas demandas do domínio econômico” (LASKI, 1973, p. 63).

Até mesmo suas guerras passam a ser orientadas pela posse de novos mercados

– as colônias –, que surgem como elementos de expansão do comércio. O homem da

cidade começa a desempenhar um papel consciente na vida política; nascem os partidos

políticos e o monarca já não se mantém como representante da lei, passando a ser

subordinado a ela. Por isso, “o mercador bem-sucedido já não é mais um suplicante de

favores do monarca; está cônscio de que os seus interesses dão formas às sugestões do

trono”. Verifica-se então que da revolução efetuada pela classe média inglesa, no

âmbito econômico modificou-se o Estado, que passou a atender às novas demandas

econômicas. A classe média, “ao estabelecer sua supremacia, mudou a substância e o

modo de pensar dos homens em diversas áreas do conhecimento: no teatro, na literatura,

na filosofia, na educação e na religião, tudo isso decorrente da nova concepção de

mundo que o capitalismo trazia consigo” (LASKI, 1973, p. 63-64).

Do mesmo modo, esse movimento de transformações decorrentes do

desenvolvimento do espírito capitalista na Inglaterra entrava em ação na França, embora

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com atraso, por motivos históricos. “O feudalismo resistiu mais tempo na França do que

na Inglaterra ao avanço da burguesia pela conquista de um status político”. Em ambos

os países registrou-se um progresso semelhante no que se refere às “barreiras que a

religião colocava ao desenvolvimento capitalista, que foram derrubadas. O preço da

controvérsia religiosa foi o surgimento da descrença; a ciência e a filosofia abandonam,

progressivamente, os laços teleológicos” (LASKI, 1973, p. 72).

Tanto na França como na Inglaterra, a busca pelo lucro significou “a extensão

da escala de iniciativas econômicas [que] colocaram o problema do pobre em uma nova

perspectiva e resultam no aparecimento de uma nova disciplina estatal para seu

controle”. Com a ascensão da burguesia em ambos os países, emergiu uma nova força

pública que buscava apreender os contornos da política e mantê-los em controle, no

desenvolvimento de técnicas administrativas mais amplas, o Estado. Contudo, na

França, os críticos reconhecem que o bem-estar material é incompatível com a

autoridade arbitrária; eles defendiam um governo constitucional, com um sistema

tributário racional; com segurança a propriedade; liberdade de pensamento e de

comércio. Foram essas as exigências que o povo inglês tinha convertido em realidade

concreta durante o mesmo período (LASKI, 1973, p. 73).

No século XVII, o constitucionalismo inglês forneceu sua contribuição à ideia

liberal de duas maneiras. Por um lado, buscou estabelecer e definir as normas pelas

quais o caráter do poder político deveria guiar-se; por outro, impôs nessas normas a

ideia de proteger os cidadãos de interferências alheias ao curso da lei. Além disso, para

garantir essa forma de organização do poder político, intentou privar a autoridade do

soberano do controle do exército e das finanças, instrumentos pelos quais o despotismo

tornava-se possível.

Neste sentido, a revolução inglesa de 168815 foi a consecução dos objetivos

visados pela classe média liderada por Cromwell contra as tentativas do despotismo da

dinastia Stuart. O comerciante inglês não apenas gozava da ordem desejada, como

decidiu para que fins essa ordem deveria seguir. Assim, no século XVII, pôde definir

tão amplamente a doutrina liberal, que só emergiu efetivamente, em sua plena

maturidade, no século XVIII (LASKI, 1973).

15 A Revolução Gloriosa, no curso da ascensão da burguesia inglesa, significou o golpe de Estado de

1688, que depôs a dinastia dos Stuarts e instaurou uma monarquia constitucional, em 1689, com

Guilherme de Orange assumindo o trono. Essa forma de governo baseava-se na relação de compromisso

entre a aristocracia rural e a burguesia.

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Duas coisas devem ser levadas em consideração: o liberalismo enquanto um

modo de vida e como uma teoria de Estado, que teve suas linhas gerais definidas pelas

experiências da Inglaterra no período que se estendeu do século XVI o século XVII. Na

Revolução Inglesa, a burguesia, ao realizar suas pretensões, elaborou uma solução que

foi concretizada na base de uma aliança entre a aristocracia rural e a classe média,

resultando em liberdades constitucionais que apenas satisfizeram frações da classe

trabalhadora, “mas não realizavam os sonhos daqueles que nada mais possuíam senão a

força do trabalho para garantir a vida”. Com o triunfo da revolução, estabeleceu-se um

Estado inglês compatível com os interesses dos homens e da propriedade a ser

defendida, com a liberdade civil e religiosa e o controle das forças armadas. Dessa

forma, o modo de produção capitalista se viu beneficiado por um ambiente que não lhe

punha mais obstáculos para explorar as novas fontes de riqueza (LASKI, 1973, p. 75).

Em sua análise do século XVII, Laski afirma que o pensamento filosófico

defendia a liberdade política, “um contínuo esforço de emancipação do indivíduo dos

vínculos que o privavam do gozo de uma liberdade plena”. A influência deste

pensamento “exerceu-se no sentido da erosão da autoridade teológica que prevenia o

indivíduo contra a livre interpretação e o egoísmo racional”. Foi nesse ambiente que a

filosofia seiscentista se propagou sob a base do individualismo econômico; o seu

resultado foi o afastamento da autoridade coletiva, no qual a interferência do Estado não

era mais aceita, mediante a alegação de que este inibia a plena realização das forças

produtivas (LASKI, 1973, p. 92).

Nesse sentido, a busca pelo lucro – característica do sistema do capital – “(...)

não pode ser concretizada porque o Estado ou a Igreja barram o caminho, então um ou

outro, ou ambos os obstáculos terão de ser removidos desse caminho”. A necessidade

liberal, numa palavra, “é a doutrina tecida com o fio da necessidade burguesa. É a lógica

das condições que os burgueses requerem para sua ascensão e triunfo final”. Assim, à

medida que a classe burguesa avançava na luta por maior influência no poder político,

passando a conquistar maior liberdade em sua atividade, acabou por promover ideias e

princípios que não tinha consciência de promover. Ela buscava um Estado secular e

tolerante, mas para efetuar essa ruptura da estrutura teológica daquela forma de Estado,

teve de aceitar uma nova filosofia. Nasce o mercantilismo (LASKI, 1973, p. 97).

No processo de desenvolvimento do mercantilismo, Laski faz referência à ação

da classe burguesa e afirma que ela “adapta primeiro a religião, e depois a cultura aos

seus próprios fins; o Estado seria a última de suas conquistas”. Deseja “a liberdade não

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como um fim universal, mas como um meio para desfrutar da riqueza que se encontra

ao seu alcance”. E na busca pela riqueza, “faz do Estado, primeiro, um aliado, depois

um inimigo, enquanto prossegue na consecução de seus objetivos”. Isto é, alia-se ao

Estado para a proteção de sua real condição econômica e de sua propriedade; sua

principal função era a de uma agência policial, e o intima a manter-se afastado dos

domínios da ação econômica, que o burguês se propõe a explorar em seus próprios

termos (LASKI, 1973, p. 105).

Foi durante o século XVII que os fundamentos da filosofia liberal se

efetivaram de forma plena. Estabeleceu-se o Estado secular; a tolerância religiosa; o

racionalismo na ciência e na filosofia. Durante este processo, segundo Laski, “O Estado

converteu-se gradualmente numa congregação de homens prósperos; suas leis [são]

feitas para proteger as implicações do sucesso desses homens”, ou seja, o sucesso

material (LASKI, 1973, p. 112). O aparecimento dessa filosofia está vinculado

diretamente com a luta empreendida pela classe trabalhadora. “Foi a hegemonia

conquistada pela burguesia no terreno das ideias que lhe permitiu organizar o povo (o

conjunto do Terceiro Estado) e liderá-lo na luta que pôs fim ao Antigo Regime”

(LASKI, 2010, p. 75).

Da crise moral do século XVII emergiu o liberalismo econômico, ajustado às

implicações da nova religião de Estado, que tinha por objetivo o sucesso material. Isto

significou duas coisas: a primeira delas, a classe burguesa não permitia mais que a

religião interferisse no âmbito das relações econômicas; e a segunda, a fim de que os

trabalhadores se mantivessem no lugar que lhes competia, a religião era utilizada para

mantê-los fiéis aos seus princípios. A burguesia estava consciente de que os homens

privados de bens materiais necessitavam de alguma espécie de consolação, nesse caso, a

religião, com suas promessas de salvação para manter nos trabalhadores a esperança

num mundo melhor. Assim, a entrada no século XVIII, consumou uma separação entre

a religião e a moral que tornou a substância de ambas desigual para as diferentes classes

sociais em questão. Para os proprietários de bens materiais, a religião converteu-se num

assunto privado entre o homem cidadão e o homem religioso; já para os trabalhadores,

passou a ser uma instituição integrada no contexto social da necessidade de manutenção

da ordem pública (LASKI, 1973, p. 124).

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No curso do século XVIII, a tendência para o laissez-faire16 na Inglaterra, no

processo da Restauração, converteu-se num movimento que se desenvolveu

principalmente em decorrência das concepções de Adam Smith sobre o papel do Estado.

O autor tinha uma aversão pela ação estatal, porém percebia a utilidade dele como poder

coercitivo para proteger contra a injustiça e a violência, e em especial a violência contra

a propriedade privada. Smith reconhecia a atuação do Estado em diversas atividades

consideradas não lucrativas, tais como a educação e as obras públicas. Para ele, além

desse âmbito restrito, a finalidade suprema do Estado é “a proteção das atividades

espontâneas dos indivíduos, pois garantindo a segurança, dificilmente se faz necessária

qualquer ação política” (LASKI, 1973, p.129).

Laski afirma que as concepções de Adam Smith completam uma evolução que

advinha da Reforma Protestante:

Esta substituiu a Igreja pelo príncipe como fonte das leis que regulavam o

comportamento social. Locke e sua escola substituíram o príncipe pelo

parlamento como mais adequado para impregnar as leis de um propósito

social. Adam Smith foi mais além e acrescentou que, com algumas exceções

secundárias, não havia necessidade alguma de o Parlamento interferir.

(LASKI, 1973, p. 130).

De acordo com Adam Smith, as relações econômicas seriam reguladas por uma

lei natural do mercado, chamada por ele de “a mão invisível”, o que fazia da

intervenção do Estado um obstáculo à plena realização da atividade econômica. Pois “o

melhor governo é aquele que menos governa”, e os comerciantes necessitavam de

liberdade para a realização dos seus interesses; assim trariam o bem social a toda a

sociedade. Estas ideias deram impulso à teoria liberal. O fato é que, “aceitos os seus

pressupostos, o liberalismo econômico foi uma doutrina limitada a serviço de uma

reduzida seção da comunidade, a classe detentora da riqueza material”. Nesse sentido, o

custo para o seu funcionamento foi pago pelos trabalhadores urbanos e rurais, que foram

“proibidos de se organizar, privados do direito de voto, sujeitos a tribunais de justiça

que consideravam a preservação da propriedade burguesa a finalidade básica da vida;

eram praticamente impotentes em face das novas disposições” (LASKI, 1973, p. 141).

Com base no exposto, percebe-se que o liberalismo econômico quebrou todos

os grilhões da servidão da classe média e a liberou das imposições do Estado secular;

esta, assim que emancipada, condenou a esses mesmos grilhões da servidão a classe

16 Trata-se de uma expressão do liberalismo econômico clássico, utilizada para se referir à defesa da ideia de

funcionamento livre do mercado, sem a interferência do poder político. Significado literal: “deixai fazer”.

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trabalhadora que a havia ajudado a conquistar a liberdade, no âmbito econômico,

politico e social.

Isto se expressa bem a partir da Revolução Francesa de 178917, quando essa

“doutrina que começara por ser um método de emancipação da classe média converteu-

se, num método para disciplinar a classe trabalhadora”. A liberdade de contrato

advogada pela doutrina liberal emancipou os detentores de bens e propriedades de seus

grilhões do feudalismo, porém, na realização dessa liberdade, condenou à escravização

a maior parte da população, aqueles que nada tinham para vender senão a sua força de

trabalho. Portanto, o Estado nas mãos da burguesia tornou-se um poder coercitivo para

manter a classe trabalhadora sob o seu domínio (LASKI, 1973, p. 149).

No século XIX, surge outra concepção de Estado, com base na crítica da

doutrina liberal: o socialismo. Sua formulação derivou da compreensão de que “a ideia

liberal garantia à classe média uma participação total nos privilégios, ao mesmo tempo

que deixava o proletariado com seus grilhões de sempre”. O socialismo desenvolveu-se

no sentido de corrigir tais deformações. O Estado alicerçado pela teoria liberal nunca se

comportou como um órgão neutro que procurava agir em favor do “bem-estar” da

sociedade – como afirmavam os pensadores liberais –, e sim como um poder coercitivo

que impunha à classe trabalhadora a disciplina social requerida pelos detentores da

propriedade privada em sua busca pelo lucro (LASKI, 1973, p. 172).

Para Marx e Engels, o triunfo provocado pela revolução burguesa transferiu o

poder político efetivo dos latifundiários para os donos da propriedade industrial. Os

autores “argumentaram que, precisamente como a classe média derrubara a aristocracia

feudal, assim a classe trabalhadora seria também compelida a derrubar os seus patrões

(...)”, pois somente “com a transferência do poder econômico, através da ação

revolucionária da classe trabalhadora para a sociedade como um todo, os homens em

geral poderiam entrar na plena posse do seu patrimônio e herança”. Por isso, Marx e

Engels defendem que a verdadeira revolução não foi a do passado, proclamada pela

burguesia, mas a do futuro, que será realizada pela classe trabalhadora (MARX;

ENGELS apud LASKI, 1993, p. 173).

17 A Revolução Francesa foi resultado da ascensão da burguesia ao poder. A forma como os homens se organizavam

para produzir a riqueza material da sociedade não mais atendia à necessidade de expansão que a nova sociedade

impunha. Isso culminou na derrocada da velha forma de organização feudal, pela necessidade de suprimir os entraves

impostos à livre produção, no sentido de atender às demandas da sociedade que estava se formando. (SOBOUL,

1974).

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Com base nas características apresentadas sobre o que é essa instituição

chamada de Estado, que cumpre uma função precisa no interior da totalidade social,

pode-se compreender seus principais aspectos. No que se refere ao seu desenvolvimento

e constituição enquanto Estado moderno, como esse Estado assume formas variadas no

processo de ascensão da classe média, sendo absolutamente determinante e

intervencionista no período mercantilista, e como, no curso do amadurecimento da

atividade econômica e do poder político, foi sendo capturado pela burguesia. Para Adam

Smith, o papel do Estado na sociedade deveria ser limitado a tal ponto que o autor

analisa a presença do Estado mercantilista na economia, ao tempo que reconhece a sua

utilidade como poder coercitivo para o desenvolvimento das relações econômicas.

Smith defendia a regulação da economia por uma força própria, chamada por ele de “a

mão invisível”, o que fazia da intervenção estatal um obstáculo à plena realização da

atividade econômica. Estes movimentos correspondem ao processo pelo qual se deu a

origem do Estado moderno, que tem movimentos contraditórios, mas que não provocou

nenhuma mudança na essência do Estado enquanto poder político (SMITH apud

LASKI, 1993).

O Estado na transição de um século para outro fez inflexões significativas, no

entanto, continuou sendo o mesmo Estado e a exercer a mesma função social que

defende e auxilia a reprodução da classe dominante. A história concede a verificação da

teoria, desse movimento dialético. Assim, compreende-se que a teoria liberal-

democrática tem uma finalidade muito específica, definida e determinada em termos de

classe social, sendo esta construída, desenvolvida e consolidada do ponto de vista dos

interesses de uma classe em particular, aquela economicamente mais poderosa, a

burguesia. Sobre esta o capitalismo se constituiu de modo a organizar as atividades

econômicas e as relações humanas, tendo o objetivo específico da busca da riqueza pela

riqueza, ou seja, do lucro em si mesmo.

Ao longo desse processo, fica evidente a forma como a burguesia foi

construindo as novas relações econômicas e como ela foi elaborando e investindo na

constituição de seu próprio poder político. O Estado moderno e a economia capitalista

de mercado se desenvolveram em ritmos diferenciados, mas sincronizados; as condições

materiais que proporcionaram o aparecimento deste novo modo de produção material se

deram dentro dos marcos do feudalismo, e o Estado era ainda eminentemente feudal nos

primeiros momentos de aparecimento do comércio. O desenvolvimento das relações na

esfera da produção material e na esfera da organização política, e como vão caminhando

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em movimentos sincronizados, porém distintos, num processo de constituição do

capitalismo maduro, levou cerca de três séculos para se consolidar na sociedade.

A Revolução Burguesa constituiu toda uma época de revoluções sociais

durante o período mercantilista, que se inicia no século XV e vai até o século XVIII. A

classe burguesa, em processo de formação, beneficiou-se do poder do Estado, que

naquele momento era o Estado absolutista. A burguesia ainda não era suficientemente

forte para ter condições de reivindicar o poder político, porém os fundamentos do

Estado já estavam presentes, servindo aos seus interesses de classe. O Estado

desenvolve a mesma função social, de formas diferentes, em fases distintas de

desenvolvimento do capitalismo. No século XVIII, quando a nova classe já estava

constituída, o Estado se adequou às necessidades do capitalismo. Tornou-se o Estado do

capital para cumprir as funções de ordenamento da reprodução social, agora sob a lógica

do capital e da extração de mais-valia.

Assim, ao ser instaurado o Estado, garante-se a vida e os interesses particulares

de cada indivíduo, constituídos com base na vontade universal. É este pensamento

moderno, de base liberal, que subsidiará politicamente a organização social que regulará

as relações sociais e se tornará dominante na sociedade capitalista. Para tanto, se fez

necessário entender os fundamentos ontológicos do Estado, para em seguida apreender a

sua formação e função social no processo de transição para o modo de produção

capitalista. Com base nos estudos apresentados, em seguida se observará quais são as

principais formas de atuação do Estado moderno para auxiliar na produção e reprodução

do sistema sociometabólico do capital.

2.3 O Estado moderno no sistema sociometabólico do capital

Como já visto, a existência do Estado moderno está diretamente ligada à

reprodução sociometabólica da sociedade capitalista, pois esta é o fundamento

ontológico objetivo do próprio Estado. Na sociedade capitalista, o relacionamento entre

a dimensão econômica e a política não permite que o processo da produção social seja

unilateral, como o foi no passado, no modo de produção feudal, dada a determinação

reflexiva que se desdobra entre ambas as esferas, tendo como primazia a dimensão

econômica. No intercâmbio com a estrutura econômica do capital, o Estado encontra os

seus próprios limites, pelo fato de que a sua função social, por mais que esteja

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intimamente vinculada à reprodução da estrutura econômica, revela-se sempre incapaz

de alterar a sua própria essência, conforme se verá a seguir.

Na condição de “estrutura totalizadora do comando político” do capital, o

Estado, ao longo do desenvolvimento da sociedade capitalista, desempenha as mais

variadas funções, complementando-o, à medida que assegura e protege a acumulação de

mais-valia. Na busca de analisar de formas mais abrangente os fundamentos do Estado

moderno, toma-se como referência o capítulo 2 do livro Para Além do Capital – rumo a

uma teoria de transição, de István Mészáros18, pois as contribuições deste autor são de

fundamental importância para as reflexões sobre a reprodução do sistema do capital e o

papel do Estado moderno nesse processo.

De acordo com Mészáros, para apreender a totalidade social do modo de

operação do sistema do capital, faz-se necessário confrontar a ordem estabelecida do

controle sociometabólico do capital com seus antecedentes históricos, ou seja, com os

modos de produção desenvolvidos pela humanidade até os dias atuais. Conforme visto

anteriormente, as estruturas da sociedade escravista e feudal serviram de base para a

organização da sociabilidade burguesa. Mészáros identifica algumas relações, sendo a

primeira delas a relação capital. Para o autor, “(...) o capital não é simplesmente uma

‘entidade material’ – também não é, (...) um ‘mecanismo’ racionalmente controlável,

(...) mas é, em última análise, uma forma incontrolável de controle sociometabólico”

(2011, p. 96, grifo do autor).

O capital é um controle sociometabólico incontrolável porque não é

racionalmente controlável pelo homem, no sentido de que ele tem uma lógica própria, a

lógica de valor que produz valor, sempre na esfera da expansão e acumulação. A esse

respeito, Mészáros (2011) afirma que o capital só existe à medida que subordina à força

de trabalho as necessidades de reprodução desse sistema. No processo de produção da

riqueza material da sociedade burguesa, o capital e o trabalho apresentam uma relação

de operação conjunta, pois um não produz sem a existência do outro, numa relação que

visa sempre a gerar valor.

Dessa forma, o modo de produção capitalista funda-se na divisão social e

hierárquica do trabalho e na propriedade privada dos meios de produção, em que a

produção capitalista se distingue dos anteriores modos de produção pela simples razão

de que essa propriedade não mais pertence aos produtores diretos, como no feudalismo,

18 A relevância dessa referência consiste em entender Mészáros como um elo contemporâneo às teses fundamentais

de Engels e Marx sobre o Estado.

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e sim ao capitalista. Este modo de produção consolida-se na sociedade via exploração

da força de trabalho, que é comprada pelo capitalista mediante o pagamento do salário.

Isto significa dizer que é na esfera da circulação – da operação entre trabalho e capital –

que o lucro do capitalista se realiza. O produto dessa relação pode ser tudo que se

transforma materialmente em riqueza; logo, a fonte da riqueza não é a “entidade

material”, a propriedade privada. Por ser o capital que dá origem à propriedade privada;

esta corresponde a um efeito dessa relação que produz sempre riqueza nova; a

propriedade é só uma expressão material da riqueza e depende da relação social de

produção ente trabalho e capital.

Mészáros, ao analisar os fundamentos do sistema do capital, demonstra que

este nasce e se consolida em sociedade como “uma forma incontrolável de controle

sociometabólico”. No entanto, a ele cabe o controle de todas as formas de relação dos

indivíduos, que aparecem como personificação do capital ou do trabalho. Assim, por se

tratar de um poder totalizador que a tudo domina, em todas as esferas da vida em

sociedade, o autor afirma:

A razão principal por que este sistema forçosamente escapa a um

significativo grau de controle humano é precisamente o fato de ter, ele

próprio, surgido no curso da história como uma poderosa – na verdade, até o

presente, de longe a mais poderosa – estrutura “totalizadora” de controle à

qual tudo o mais, inclusive seres humanos, deve se ajustar, e assim provar sua

“viabilidade produtiva”, ou perecer, caso não consiga se adaptar.

(MÉSZÁROS, 2011, p. 96, grifo do autor).

Esse sistema baseia-se na exploração da força de trabalho e no processo de

alienação do trabalhador mediante a relação do que é produzido, ao passo que a

produção volta-se não mais para o atendimento das reais necessidades de reprodução

dos homens, como nas comunidades primitivas, senão para as demandas do mercado, de

modo a gerar mais-valia e garantir a operação contínua de sua acumulação. Dessa

forma, transforma-se no mais eficiente modo de extração da mais-valia e de controle

coercitivo da força de trabalho, que a tudo subordina às suas determinações

reprodutivas. Portanto, quem não se ajusta a estes critérios, a esta forma de

funcionamento, tende a perecer, tendo em vista que sua dominância “totalitária” no

âmbito material abrange todos os espaços da vida em sociedade.

Por essa razão, “não se pode imaginar um sistema de controle mais

inexoravelmente absorvente – e, neste importante sentido, ‘totalitário’– do que o

sistema do capital globalmente dominante (...)”, que sujeita aos mesmos imperativos a

questão da saúde e o comércio, a educação e a agricultura, a arte e a indústria

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manufatureira, por sobrepor tudo aos seus próprios critérios de viabilidade. Desde as

menores unidades reprodutivas até as grandes empresas transnacionais, das mais íntimas

relações pessoais aos mais complexos processos de tomada de decisão dos mais amplos

monopólios industriais, sempre ocorrem a favor dos fortes e contra os fracos. Dessa

forma, entende-se que em todas as esferas da vida predomina seu critério imperativo de

gerar valor. Mesmo as relações afetivas, do pequeno aos gigantescos negócios, tendem a

operar de acordo com a lógica reprodutiva do capital (MÉSZÁROS, 2011, p. 96).

O sistema do capital, segundo Mészáros, é o primeiro na história da

humanidade que se constitui como “totalizador irrecusável e irresistível”; não importa

quanto repressiva tenha de ser a “imposição de sua função totalizadora”, porque esta

característica acaba tornando tal sistema “(...) mais dinâmico de que todos os modos

anteriores de controle sociometabólico juntos”. O preço a ser pago é, paradoxalmente,

“a perda de controle sobre os processos de tomada de decisão”. Isto não apenas se aplica

à classe trabalhadora, mas também aos capitalistas em geral, pois o seu poder sobre o

controle no conjunto do sistema do capital é absolutamente insignificante. Logo, “eles

têm de obedecer aos imperativos objetivos de todo o sistema, exatamente como todos os

outros, ou sofrer as consequências (...)”. Dessa forma, ninguém tem poder de decisão

sobre sua própria lógica; a contradição é parte integrante do sistema sociometabólico do

capital, em outros termos, é algo permanente que faz parte da sua base ontológica

(MÉSZÁROS, 2011, p. 97-98).

Devido a essa característica totalizadora do capital, Mészáros (2011) o

qualifica como um sistema de controle sociometabólico. No nosso entendimento, o

autor utiliza a expressão “sociometabólico” para especificar o conjunto da totalidade do

sistema social, ou seja, a forma como este sistema se reproduz e como desenvolve os

órgãos e instituições necessários para exercer sua função reprodutiva na sociedade como

um todo. Partindo desse pressuposto, Mészáros afirma que “na qualidade de modo

específico de controle sociometabólico, o sistema do capital inevitavelmente também se

articula e consolida como estrutura de comando singular”.

O processo de controle do sistema do capital não se observa apenas nas

unidades produtivas, ele também se estende a outras mediações da vida em sociedade;

uma delas é o Estado, na organização e administração dos conflitos sociais em questão,

quando auxilia na reprodução material do capital. Na condição de sociedade dividida

em classes, a forma de sociabilidade do capital também exige um poder regulador das

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relações sociais. Isso sugere um controle do sistema social enquanto totalidade

(MÉSZÁROS, 2011, p. 98).

Na sociedade capitalista, as classes sociais exercem funções sociais vitais para

a manutenção do sistema, que não podem ser substituídas nem eliminadas. A inserção

dessas classes fundamentais na estrutura produtiva da riqueza material nos moldes do

sistema do capital independe da consciência que as classes tenham disso. Esse sistema

foi constituído no curso da história como sendo o mais eficaz produtor de trabalho

excedente apropriado mediante a produção de mais-valia. Mészáros chama atenção para

o fato de que, “(...) dada a modalidade única de seu metabolismo socioeconômico,

associada a seu caráter totalizador – sem paralelo em toda a história, até nossos dias –,

estabelece-se uma correlação anteriormente inimaginável entre economia e política”

(MÉSZÁROS, 2011, p. 98).

Até aqui, procurou-se compreender, mesmo que brevemente, como Mészáros

analisa o sistema do capital enquanto relação social, que se configura como um poder de

controle sociometabólico devido ao seu caráter totalizador que abrange todas as esferas

da vida em sociedade, estejam elas nas áreas sociais, econômicas ou ideológicas. Agora

se irá analisar a natureza do relacionamento entre economia e política no sistema de

reprodução sociometabólico do capital.

Mészáros assevera que, “como um modo de controle sociometabólico, o

capital, por necessidade, sempre retém seu primado sobre o pessoal por meio do qual

seu corpo jurídico pode se manifestar de formas diferentes nos diferentes momentos da

história” após seu nascimento. Este corpo jurídico ao qual o autor faz referência é o

Estado, que se ajusta para responder às demandas reprodutivas do capital, podendo se

constituir das formas mais variadas possíveis, porém sem alterar sua função social. No

entanto, o que determina a organização do metabolismo social é a reprodução da riqueza

material na relação capital, já que o capital retém seu primado como modo de controle

que a tudo subordina. O controle sociometabólico desse sistema encontra-se acima do

desejo das suas personificações – capitalistas e trabalhadores (MÉSZÁROS, 2011, p.

98).

Dessa forma, “(...) para poder funcionar como um modo totalizador de controle

sociometabólico, o sistema do capital deve ter sua estrutura de comando historicamente

singular e adequada para suas importantes funções”. Ou seja, nesse sistema,

consolidado historicamente enquanto “estrutura de comando singular”, o principal

objetivo dos capitalistas corresponde à extração da mais-valia e à valorização do capital,

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“no interesse da realização dos objetivos metabólicos fundamentais adotados”. Com

isso, “a sociedade toda deve se sujeitar – em todas as suas funções produtivas e

distributivas – às exigências mais íntimas do modo de controle do capital

estruturalmente limitado (mesmo se dentro de limites significativamente ajustáveis)”.

Como reflexo dessa relação de sujeição, dá-se a divisão da sociedade em classes sociais

abrangentes e opostas entre si, tanto no que se refere à base da reprodução econômica

quanto na forma de instituição do controle político. Para tanto, faz-se necessário um

controle político do Estado a fim de manter essa forma de reprodução sociometabólica

em funcionamento (MÉSZÁROS, 2011, p. 98-99).

Mesmo sendo o Estado um elemento fundamental para a manutenção da

sociedade moderna, quanto ao modo de produção econômica e à dominação social, ele

assume apenas a função de apoio necessário. Para Mészáros, é no processo de

reprodução material, na esfera econômica, que se encontra a divisão que mantém essa

relação de sujeição, consolidada sob um denominador comum, um complicado “sistema

de divisão hierárquica do trabalho”. A reprodução da vida de ambas as classes sociais

depende de uma relação de subordinação de divisão hierárquica do trabalho.

Desse modo, não se trata apenas de uma questão de dominação política, mas de

uma condição da base de reprodução material do capital. Portanto, não se pode pensar

que a dominação acontece através da forma do Estado – isto pode levar a ilusões

perigosas de que modificando a forma do Estado pode-se acabar com a dominação de

classe. Resta claro que a relação de dominação ocorre na base material, que encontra

seu apoio e complementação na esfera de dominação política no Estado. Essa imposição

da divisão social hierárquica do trabalho na sociedade capitalista é uma necessidade

inevitável para a manutenção do sistema sociometabólico do capital (MÉSZÁROS,

2011, p. 99).

Constitui o Estado uma unidade de comando político inseparável19 do capital,

que tem como função administrar a ordem deste sistema sociometabólico para que ele

não perca seu autocontrole na manutenção do processo de produção e reprodução da

riqueza material. Com essa finalidade, o Estado atua nas mais variadas formas, sempre

mantendo sua essência, até mesmo atuando sobre os defeitos estruturais do capital.

Em seu desenvolvimento histórico, segundo Marx (1996), o modo de produção

capitalista teve, primeiramente, de cindir produção e controle – no período da

19 Mészáros (2011) utiliza esse termo para se referir à relação inseparável e de complementaridade entre o sistema

sociometabólico do capital e o Estado moderno.

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acumulação primitiva –, para gerar força de trabalho assalariada. Houve a divisão da

sociedade em duas classes fundamentais e antagônicas: os proprietários dos meios de

produção e os proprietários da força de trabalho. A separação entre produção e controle

encontra-se na base do próprio sistema do capital.

Para Mészáros este é um problema estrutural e representa um defeito do

próprio sistema do capital. Como o capitalismo não tem um modo sustentável de

solucioná-lo, devido à total perda de controle sobre a relação entre produção e controle,

só lhe resta remediá-lo. Portanto, o primeiro defeito estrutural do capital é com relação

à produção e seu controle, que “(...) estão radicalmente isolados entre si e se acham

diametralmente opostos” no processo de produção. Encontram-se isolados entre si no

sentido de que não há uma comunicação possível, pois quem decide o que produzir e se

apropria da produção é uma classe (a burguesa); e quem produz é outra (os

trabalhadores). Dessa forma, não há conciliação possível entre as classes sociais em

questão (MÉSZÁROS, 2011, p. 105).

O segundo defeito estrutural do capital dá-se entre produção e consumo.

Mészáros afirma que,

no mesmo espírito e surgindo das mesmas determinações, a produção e o

consumo adquirem uma independência e uma existência separada

extremamente problemática, de modo que, no final, o “excesso de consumo”

mais absurdamente manipulado e desperdiçador, concentrado em poucos

locais, encontre seu corolário macabro na mais desumana negação das

necessidades elementares de incontáveis milhões de pessoas. (2011, p. 105).

Nesse sentido, a contradição apresentada pelo excesso de produção e a

restrição do consumo não acompanham o processo produtivo. Conforme teorizou Marx,

os pressupostos básicos dessa relação residem no caráter antagônico da acumulação

capitalista – que tem seu fundamento na Lei Geral da Acumulação Capitalista –, no

qual se gera a riqueza de um lado e a miséria de milhões de pessoas do outro, ou seja,

mais uma contradição insanável. Mészáros (2011) aduz que a classe trabalhadora, ao

mesmo tempo que é produtora, também assume a função no processo produtivo como

consumidora. Contudo, por mais que o capital incentive a capacidade de consumo do

produtor direto, não consegue dar vazão à superprodução cíclica que ele mesmo gera no

processo. Portanto, um dos problemas insanáveis do sistema do capital é precisamente a

consequência de sua Lei Geral da Acumulação, que do mesmo modo que garante a

acumulação, a expansão e a reprodução do capital, produz a miséria da classe

trabalhadora em grande escala.

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No que se refere ao terceiro defeito estrutural, a disjunção entre produção e

circulação, verifica-se que o capital não se limita ao domínio da fábrica regional e

nacional, porquanto perpassa o mercado de consumo local e se expande à esfera

planetária do capital social total. Nessa direção, “(...) a necessidade de dominação e

subordinação prevalece, não apenas no interior de microcosmos particulares – por meio

da atuação de cada uma das ‘personificações do capital’ –, mas também fora de seus

limites (...)”. Daí por que “a força de trabalho total da humanidade se sujeita – com as

maiores iniquidades inimagináveis, em conformidade com as relações de poder

historicamente dominantes em qualquer momento particular – aos imperativos

alienantes do sistema do capital global”. Mészáros atesta a grandeza do sistema do

capital como modo de produção e dominação global, que atinge os Estados

internacionais e os Estados nacionais, os quais representam os interesses dos capitalistas

em cada território (MÉSZÁROS, 2011, p. 105, grifos do autor).

Nessa disjunção entre produção e circulação dá-se uma contradição

fundamental: o processo da circulação global não pode ser equilibrado, o que produz

uma relação de hierarquização entre os Estados envolvidos, a saber, os Estados com

economias desenvolvidas – os países centrais – e os Estados com economias que estão

integradas nessa lógica reprodutiva – os países periféricos (ou países dependentes/

subdesenvolvidos). A questão de hierarquia econômica de cada país, ou seja, a relação

entre países centrais e periféricos é também condicionada pela lógica concentradora do

sistema do capital.

Nessa direção, verifica-se uma relação de duplo padrão de acumulação. No

primeiro, observa-se uma forma de o capitalismo explorar e acumular riquezas nos

países avançados, que proporciona um padrão de vida bem mais elevado para a classe

trabalhadora; e no segundo, uma forma diferenciada e desigual de explorar e extrair

mais-valia da força de trabalho nos países de capitalismo periférico. No entanto, nas

últimas décadas se vem testemunhando certa equalização na taxa de exploração dos

trabalhadores em todos os países, centrais e periféricos (MÉSZÁROS, 2011, p. 105).

Qualquer tentativa de criar algum tipo de unidade para essas estruturas sociais

reprodutivas tende a ser problemática e temporária, pois não existe uma condição

concreta para o capital se manter sem essas bases estruturais. Em outras palavras, essa

ausência de unidade se “manifesta em conflitos fundamentais de interesse entre as

forças sociais hegemônicas alternativas”. Esses antagonismos sociais são disputados

entre capitalistas e trabalhadores, mas sempre favorecem o capital em detrimento do

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trabalho. Contudo, “mesmo quando o capital sai vitorioso nessas lutas, os antagonismos

não podem ser eliminados (...), precisamente porque são estruturais”, isto é, fazem parte

da lógica reprodutiva desse sistema. Portanto, as contradições sociais que derivam

desses defeitos estruturais são necessariamente reproduzidas em todas as fases históricas

do sistema do capital (MÉSZÁROS, 2011, p. 105-106, grifo do autor).

Uma vez traçados os delineamentos fundamentais, ainda que de forma pontual,

que situam objetivamente os defeitos estruturais no interior do sistema sociometabólico

do capital, Mészáros identifica que a ação do Estado se direciona para a obrigação e o

comprometimento de atuar sobre tais defeitos. Para cumprir esta função, o poder

político cria diversas formas de atuação – desde investimentos diretos até políticas

sociais. O autor chama esse movimento de imperativos corretivos do capital e do

Estado, por se tratar de defeitos e contradições que têm de ser administrados

constantemente. São corretivos porque têm intenção de manter o mesmo modo de

reprodução social sem alterar a essência. Desse modo, “realiza-se uma ação corretiva –

em grau praticável na estrutura do sistema do capital – pela formação do Estado

moderno”. A constituição, a organização e a forma de atuação do Estado correspondem

a essa necessidade de manutenção do sistema sociometabólico do capital (MÉSZÁROS,

2011, p. 106).

Ainda segundo Mészáros:

(...) é tanto mais revelador que o Estado moderno tenha emergido com a

mesma inexorabilidade que caracteriza a triunfante difusão das estruturas

econômicas do capital, complementando-as na forma da estrutura

totalizadora de comando político do capital. Este implacável desdobramento

das estruturas estreitamente entrelaçadas do capital em todas as esferas é

essencial para o estabelecimento da viabilidade limitada desse modo de

controle sociometabólico tão singular ao longo de toda a sua vida histórica.

(2011, p. 106).

A análise até aqui apresentada por Mészáros refere-se ao capitalismo em sua

fase madura, quando o Estado passa a assumir um papel cada vez mais interventivo para

manter o funcionamento do sistema reprodutivo do capital. Agora, além de seu caráter

administrativo, o Estado passa a complementar a própria reprodução automática do

sistema do capital, adotando medidas, intervindo e atuando na esfera do sistema

reprodutivo do capital. Portanto, “a formação do Estado moderno é uma exigência

absoluta para assegurar e proteger permanentemente a produtividade do sistema” do

capital. Para o autor, o Estado é uma estrutura totalizadora do sistema do capital,

atuando enquanto unidade do comando político do capital e complementando as bases

das estruturas econômicas (MÉSZÁROS, 2011, p. 106).

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Conforme visto nos itens anteriores, o poder político já existia antes mesmo do

desenvolvimento do sistema do capital. Em todas as formas precedentes de produção

que se baseavam na divisão da sociedade em classes sociais, o Estado aparece como um

poder que legitima a formação social em classes e defende os interesses da classe

economicamente mais poderosa. O Estado modificou sua forma de atuação de um tipo

de sociedade para a outra, porém manteve a sua essência, e não foi diferente com o

surgimento do capitalismo.

Mészáros afirma que “o capital chegou à dominância no reino da produção

material paralelamente ao desenvolvimento das práticas políticas totalizadoras que dão

forma ao Estado moderno”. Não é estranho que a crise de ascensão do capital no século

XX venha a coincidir com a crise política do Estado moderno em todas as suas esferas,

desde sua formação de Estados liberal-democrática e capitalista de extremo

autoritarismo até os regimes pós-coloniais e os pós-capitalistas de tipo soviético. É que

junto com a crise estrutural do capital vem a crise política em geral (MÉSZÁROS,

2011, p. 106).

Dessa forma, “em sua modalidade histórica específica, o Estado moderno passa

a existir, acima de tudo, para poder exercer o controle abrangente sobre as forças

centrífugas insubmissas que emanam de unidades produtivas isoladas do capital, um

sistema reprodutivo social antagonicamente estruturado”. O Estado, além de administrar

os antagonismos sociais e atender às demandas de reprodução material do capital, passa

a atuar para administrar as forças centrífugas. Nesse contexto, a atuação do Estado

torna-se fundamental para a manutenção de todo o sistema, pois administra a ordem da

relação de classes.

Também a relação de conflito e concorrência entre capitalistas requer uma

instância político-administrativa compatível com as estruturas do capital. Mészáros

acrescenta que “o Estado moderno constitui a única estrutura compatível com os

parâmetros estruturais do capital como modo de controle sociometabólico”. Acrescenta

que “sua função é retificar – deve-se enfatizar mais uma vez: apenas até onde a

necessária ação corretiva puder se ajustar aos últimos limites sociometabólicos do

capital – a falta de unidade em todos os três aspectos (...)” que resultam nos defeitos

estruturais do capital (MÉSZÁROS, 2011, p. 107).

Foi necessário analisar esses pontos destacados por Mészáros, para em seguida

entender a ação do Estado moderno em relação aos problemas estruturais do sistema do

capital. O Estado passa a complementar este sistema enquanto esfera de comando

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político, mas sempre guiado pela lógica reprodutiva, para atender às demandas do

capital.

No que se refere ao primeiro defeito estrutural, a ausência de unidade entre

produção e controle, verifica-se que o Estado protege legalmente a relação de forças

estabelecidas no processo produtivo da sociedade, ao sancionar a ilusão de um

relacionamento entre iguais. Diante da “(...) possibilidade de administrar a separação e o

antagonismo estrutural de produção e controle, a estrutura legal do Estado moderno é

uma exigência absoluta para o exercício da tirania nos locais de trabalho”. Essa

estrutura política cumpre a função de sancionar e proteger a propriedade privada dos

meios de produção e os capitalistas – as personificações do capital – no processo de

reprodução econômica do capital. O capitalismo não é um sistema que funciona sem

esse aparato legal permanente de ajustes, que visa manter sob controle suas

contradições, a concorrência permanente e os antagonismos de classes (MÉSZÁROS,

2011, p. 107, grifo do autor).

Outro aspecto frisado por Mészáros (2011) na relação entre produção e

controle é que “o maquinário do Estado moderno é também uma exigência absoluta do

sistema do capital”. Ou seja, a relação entre capital e Estado é uma exigência absoluta; é

isso que está no fundamento ontológico. De modo que ele é necessário “para evitar as

repetidas perturbações que surgiriam na ausência de uma transmissão da propriedade

compulsoriamente regulamentada – isto é: legalmente prejulgada e santificada – de uma

geração à próxima, perpetuando também a alienação do controle dos produtores diretos”

(MÉSZÁROS, 2011, p. 108).

Mészáros também destaca a necessidade de intervenções políticas legais, sejam

elas diretas ou indiretas, diante das relações, nada harmoniosas, entre as “unidades

socioeconômicas particulares”. Contudo, verifica-se que este tipo de intervenção

corretiva acontece de acordo com “(...) a dinâmica mutante de expansão e acumulação

do capital, facilitando a prevalência dos elementos e tendências potencialmente mais

fortes até a formação de corporações transnacionais gigantescas e monopólios

industriais”. Deste modo, o Estado acaba favorecendo e deixando o capital mais forte,

porém sem perder de vista um certo equilíbrio entre as pequenas unidades produtivas e

os monopólios e as transnacionais.

Assim, o poder político nasce da absoluta necessidade material do sistema do

capital, e depois, na forma de uma reciprocidade dialética, torna-se uma precondição

fundamental para a relação subsequente de todo o conjunto.

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Para Mészáros, isso significa que

o Estado se afirma como pré-requisito indispensável para o fortalecimento

permanente do sistema do capital, em seu microcosmo e nas interações das

unidades particulares de produção entre si, afetando intensamente tudo, desde

os intercâmbios locais mais imediatos até os de nível mais mediato e

abrangente, ou seja, atuando na totalidade do sistema capitalista.

(MÉSZÁROS, 2011, p. 108-109).

No que diz respeito ao segundo grupo de problemas, a ruptura entre produção e

consumo, característica da ausência de unidade do sistema do capital, essa relação

elimina algumas das principais restrições do passado, pois abandona a dominância da

produção para o valor de uso e tende a atingir seus limites absolutos em algum

momento da história, quando as contradições do capital já não puderem mais ser

ajustadas à lógica expansionista do capitalismo, de valor que sempre gera valor.

A expansão desenfreada do capital desses últimos séculos abriu-se não

apenas em resposta a necessidades reais, mas também por gerar apetites

imaginários ou artificiais – para os quais, em princípio, não há nenhum

limite, a não ser a quebra do motor que continua a gerá-los em escala cada

vez maior e cada vez mais destrutiva – pelo modo de existência independente

e pelo poder de consumo autoafirmativo. (MÉSZÁROS, 2011, p. 109).

Em seu desenvolvimento histórico, a produção capitalista solicitou cada vez

mais pessoas para o mercado de consumo, mas não de forma suficiente para atender a

toda a demanda de produção do capital, o que gera um problema. Mesmo nos momentos

de crise, e em face da crise estrutural, o capital mantém o ritmo de produção destrutiva,

pois continua a considerar, como diz Mészáros, que “o céu é o limite”, ou seja, que não

há limites para a reprodução desse sistema. O capital torna este um problema cada vez

mais grave por incentivar o consumismo desenfreado, e consequentemente

autodestrutivo20. Portanto, o consumo não visa mais o valor de uso, mas tem por

objetivo a propagação e a geração de apetites inimagináveis e necessidades artificiais.

Suas bases estão na separação entre produção e consumo, porquanto grande parte do

que é produzido não é consumida pela população; esse é um dos pontos que acarretam

as crises do sistema do capital (MÉSZÁROS, 2011, p. 109).

Evidencia-se, portanto, “o papel totalizador do Estado é essencial”, pois nesse

processo de produção desenfreado do capital o Estado torna-se um grande comprador.

Nesse sentido,

20 Tal fenômeno ocorre desde as origens da produção capitalista. Com o processo de industrialização, a

dimensão destrutiva já se mostrava um estimulo imanente à taxa decrescente do valor de uso das

mercadorias.

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Ele deve ajustar suas funções reguladoras em sintonia com a dinâmica

variável do processo de reprodução socioeconômico, complementando

politicamente e reforçando a dominação do capital contra as formas que

poderiam desafiar as imensas desigualdades na distribuição e no consumo.

Além do mais, o Estado deve também assumir a importante função de

comprador/consumidor direto em escala sempre crescente. (MÉSZÁROS,

2011, p. 110).

Mészáros destaca que:

Nessa função, cabe a ele prover algumas necessidades reais do conjunto

social (da educação à saúde e da habitação e manutenção da chamada

“infraestrutura” ao fornecimento de serviços de seguridade social) e também

a satisfação de “apetites em sua maioria artificiais” (por exemplo, alimentar

não apenas a vasta máquina burocrática de seu sistema administrativo e de

imposição da lei, mas também o complexo militar-industrial, imensamente

perdulário, ainda que diretamente benéfico para o capital) – atenuando assim,

ainda que não para sempre, algumas das piores complicações e contradições

que surgem da fragmentação da produção e do consumo. (2011, p. 110).

Diante desse defeito estrutural do capital, da separação e oposição entre

produção e consumo, o Estado passa a exercer a função de grande consumidor; ele

passa a auxiliar o capital no consumo em grande escala. O Estado começa a comprar do

capital, ou seja, a consumir para manter sua gigantesca máquina burocrática,

concretizada em cargos e funções que não possuem outra finalidade a não ser a

dominação política. Em certos momentos de crises cíclicas21, o sistema do capital exigiu

um Estado comprador, principalmente, do complexo industrial-militar, como uma das

estratégias para retirar o capitalismo das crises. Este complexo se desenvolveu como

uma enorme válvula de escape da superprodução. Se isso é essencial para a lógica

reprodutiva do capital, não é, nem de longe, suficiente para manter sua lógica de

reprodução constante.

Essa intervenção totalizadora e a ação corretiva do Estado não podem produzir

uma unidade sobre este defeito, porque a separação entre produção e consumo, com a

radical alienação do controle dos produtores diretos, são determinações estruturais

internas do próprio sistema do capital, constituindo requisitos indispensáveis para a sua

constante reprodução. A ação corretiva do Estado é muito importante para a reprodução

social da base material no sistema do capital, na qual as estruturas políticas de comando

de seu modo de controle se relacionam de forma simbiótica. Esta correlação

problemática entre produção e consumo na base fragmentada da ordem sociometabólica

do capital tem seus limites determinados pela extensão na qual o Estado moderno pode

21 Isto será abordado no capítulo 4, item 4.1.

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contribuir, de maneira eficiente, para a necessidade de expansão e acumulação do

sistema do capital (MÉSZÁROS, 2011).

Outro aspecto, não menos importante e decisivo, no tocante à ação do Estado

neste plano entre produção e consumo refere-se à transformação do trabalhador em

consumidor de supérfluos. Por via dessa intervenção totalizadora do Estado, os

trabalhadores são convocados a participar do universo de produtos industrializados,

intensificando os lucros dos capitalistas e aumentando a taxa de mais-valia para o

capital. Nesse sentido, “o trabalhador como consumidor desempenha um papel de

grande (ainda que muito variável ao longo da história) importância no funcionamento

saudável do capital”. É inevitável que os trabalhadores, além de serem alienados no

processo produtivo, não sejam alienados na esfera do consumo, pois passam a consumir

mercadorias supérfluas para a sua reprodução, o que contribui para a manutenção da

necessidade permanente do consumo do capital (MÉSZÁROS, 2011, p. 110).

No que diz respeito ao terceiro defeito estrutural, a fragmentação entre

produção e circulação, Mészáros aponta “a necessidade de criar a circulação como

empreendimento global das estruturas internamente fragmentadas do sistema do capital

ou, em outras palavras, a procura de alguma espécie de unidade entre produção e

circulação (...)”, em que “o papel ativo do Estado moderno é igualmente grande, se não

maior”. Ao concentrar sua atenção neste papel e ainda nas diversas funções no domínio

do consumo, o Estado prioriza sua atuação nas fronteiras nacionais, gerando

contradições. O autor menciona que “uma das contradições mais evidentes e, em última

análise, mais inadministráveis, é que historicamente as estruturas corretiva global e de

comando político do sistema do capital se articulam como Estados nacionais (...)”.

Ainda que enquanto modo de reprodução e controle sociometabólico seja inconcebível

que tal sistema se confine a tais limites (MÉSZÁROS, 2011, p. 111, grifos do autor).

Mészáros ressalta que duas tendências complementares do desenvolvimento

desta forma diferenciada de exploração são muito significativas. A primeira é que nas

últimas décadas testemunhou-se, “sob a forma de uma espiral para baixo que afeta o

padrão de vida do trabalhador nos países capitalistas mais avançados, certa equalização

no índice diferencial de exploração que tende a se firmar também como espiral para

baixo do trabalho nos países ‘centrais’ no futuro previsível”. Enquanto foi possível, o

capital manteve a taxa diferencial de exploração do trabalho entre países centrais e

periféricos. (MÉSZÁROS, 2011, p. 111-112, grifos do autor).

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Ainda conforme o referido autor, na fase da crise estrutural do capital ocorre

uma equalização da taxa de exploração da mais-valia; antes, o índice era favorável à

classe trabalhadora dos países de capitalismo avançado, e agora tende a uma redução

acentuada. Observa-se que a classe trabalhadora desses países está perdendo direitos

concedidos em períodos anteriores, e a atividade produtiva está se tornando cada vez

mais precarizada; em outras palavras, os trabalhadores dos países centrais já não podem

mais ser poupados, como foram no passado. Isto significa um nível maior de

contradições e uma maior degradação da própria força de trabalho (MÉSZÁROS, 2011,

p. 111-112, grifo do autor).

Já a segunda tendência, paralelamente a esta equalização, do nível diferencial

da taxa de exploração, surge de seu “necessário corolário político”, sob a forma de um

“crescente autoritarismo nos Estados ‘metropolitanos’” e mediante “um

desencantamento geral, perfeitamente compreensível, com a ‘política democrática’, que

está profundamente implicada na virada autoritária do controle político nos países

capitalistas avançados”. Nessa direção, a estrutura democrática do Estado está sendo

utilizada adequadamente para acelerar e aprofundar a taxa de exploração da classe

trabalhadora tanto nos países periféricos quanto nos centrais. Mészáros chama a atenção

para o fato de que o autoritarismo do Estado, em grande parte dos países, está sendo

feito sob a forma democrática, e não ditatorial. No cenário atual, com base nos

princípios neoliberais, isso significa que o Estado diminui os recursos para o

atendimento das demandas sociais para financiar o sistema do capital em sua fase de

crise estrutural (MÉSZÁROS, 2011, p. 112, grifo do autor).

O Estado, enquanto “agente totalizador da criação da circulação global”, tende

a se comportar de forma distinta da que utiliza no plano da política nacional. Ou seja, o

Estado ordena a sua política externa de acordo com os interesses da sua classe

capitalista. Porém, internamente, ele assume a função de introduzir medidas legais para

manter em paralelo as atividades dos pequenos e grandes proprietários. Diante disso,

“(...) é necessário o cuidado de evitar – até onde for compatível com a dinâmica variável

de acumulação do capital – que a inexorável tendência à concentração e à centralização

do capital leve à eliminação prematura de unidades de produção ainda variáveis (...)”.

Isso afetaria desfavoravelmente “a força combinada do capital nacional em tais

circunstâncias”. Seu papel é manter a totalidade do sistema do capital em

funcionamento, conforme o movimento da economia, se as condições internas exigirem

e as condições gerais permitirem (MÉSZÁROS, 2011, p. 112-113).

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No plano de sua política internacional, o Estado não busca restringir a

expansão monopolista ilimitada nas suas unidades econômicas dominantes. É por isso

que “o relacionamento entre o Estado e as empresas economicamente relevantes neste

campo é basicamente caracterizado pelo fato de o Estado assumir descaradamente o

papel de facilitador da expansão mais monopolista possível do capital no exterior”. O

Estado tem uma ação de política interna diferenciada da externa. As formas e recursos

deste papel facilitador dos Estados nacionais se alteram conforme as relações de força

no país e no exterior, decorrentes das circunstâncias históricas. Assim, entende-se que o

Estado despende todos os seus recursos e a sua disposição em defesa dos interesses

monopolistas do seu capital nacional (MÉSZÁROS, 2011, p. 113).

Com relação aos três principais aspectos do defeito estrutural do capital

discutidos anteriormente, o Estado moderno, na condição de “única estrutura corretiva

de comando viável, não surge depois da articulação de formas socioeconômicas

fundamentais, nem como mais ou menos diretamente determinado por elas”. O Estado

como estrutura de dominação política com relação aos defeitos estruturais não se propõe

a resolvê-los inteiramente, pelo contrário, ele auxilia o capital na administração destes

defeitos através, por exemplo, da compra e auxílio no consumo da superprodução; no

controle exercido sobre a classe trabalhadora; na circulação; na defesa dos interesses do

seu capital monopólico no exterior etc. O efeito coesivo é realizado com a função de

manter em funcionamento o modo de produção capitalista, monitorando e intervindo

para que o sistema não escape ao controle do capital (MÉSZÁROS, 2011, p. 117, grifos

do autor).

Em linhas gerais, o Estado como comando político do capital próprio da

sociedade burguesa nasce para complementar a lógica reprodutiva desse sistema. Uma

forma de dominação política que se compromete a favorecer e facilitar a expansão e

acumulação do capital constantemente, e que atualmente, na fase de crise estrutural,

busca manter a lógica da reprodução material desse sistema, intervindo demasiadamente

em termos de interesses econômicos, na utilização da sua própria superestrutura

jurídico-legal, para complementar as necessidades do capital e também auxiliar na base

de reprodução material. Dessa forma, não há como separar este Estado da estrutura

sociometabólica que o consolidou historicamente, porque ele é o Estado do capital.

Com referência à consideração de Engels, o Estado moderno é o representante da classe

economicamente mais poderosa; ele pode realizar sua função das mais variadas e

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paradoxais formas, sem abdicar jamais da sua essência. Parte-se agora para a análise da

correspondência entre política e economia.

Inicialmente, Mészáros trata da questão da determinação unidirecional do

Estado moderno por uma base material independente. Afirma que o comando político

do capital – o Estado moderno – e a base material da reprodução social – o capital –

atuam complementarmente, pois estão integrados. Não é uma questão de que um

determina o outro, “pois a base socioeconômica do capital é totalmente inconcebível

separada de suas formações de Estado”. É a partir desse pressuposto que o autor

contradiz a visão determinista do Estado de que é a economia que determina a política.

Nesse sentido, “é certo e apropriado falar de ‘correspondência’ e ‘homologia’ apenas

em relação às estruturas básicas do capital, historicamente construídas (...), mas não de

funções metabólicas particulares de uma estrutura que corresponda às determinações e

exigências estruturais diretas de outra”.

Dessa forma, entende-se que existe uma relação de correspondência entre a

esfera da economia e da política, porém elas têm particularidades distintas em seu

processo de desenvolvimento histórico. As contradições que podem surgir entre

economia e política não modificam em nada a natureza e a função social do Estado e,

geralmente, quando essas contradições permanecem por mais tempo que o necessário,

contrariando os interesses predominantes do capital, as ações do Estado são ajustadas e

readequadas para atender às demandas do sistema sociometabólico do capital

(MÉSZÁROS, 2011, p. 117).

Mészáros observa que, paradoxalmente, “a ‘homologia das estruturas’ surge

primeiro de uma diversidade estrutural de funções cumpridas pelos diferentes órgãos

metabólicos (inclusive o Estado) na forma absolutamente única da divisão social

hierárquica do trabalho desenvolvida ao longo da história”. Ou seja, o Estado e a

economia estão envolvidos numa diversidade estrutural de funções, e isso não quer

dizer de antagonismo. Pois o Estado se desenvolve para desempenhar suas funções

específicas, e jamais ocorre uma disjunção entre economia e política. Entretanto, “esta

diversidade de funções produz uma separação extremamente problemática entre

‘sociedade civil’ e o Estado político sobre a base comum do conjunto do sistema do

capital, de que são partes constitutivas as estruturas básicas (ou órgão metabólicos)”

(MÉSZÁROS, 2011, p. 117, grifos do autor).

Assim, compreende-se que por mais competência que o Estado tenha para

exercer a sua função em correspondência com as necessidades do sistema do capital, ele

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jamais poderá eliminar as contradições imanentes do próprio sistema reprodutivo do

capital. Em alguns momentos conjunturais, o Estado terá problemas para exercer essa

função em defesa dos interesses particulares da classe dominante, porque na essência

deste sistema sempre existirão contradições fundamentais, sendo estes alvos constantes

de intervenção administrativa do poder político, que busca formas de atenuá-las.

O Estado e suas estruturas criam seus próprios meios de dominação para

atender às demandas do capital, como também o capital desenvolve os meios para

realizar sua função na esfera da produção – através do desenvolvimento tecnológico, da

gerência científica, da reestruturação produtiva etc. Essas diferentes funções do Estado

se desenvolvem e ao longo do tempo acabam provocando contradições, mas sempre em

correspondência com o capital, isto é, sempre prevalecem os imperativos do capital na

orientação das ações desenvolvidas pelo Estado.

Mészáros apresenta algumas observações “a respeito da base material e dos

limites gerais em que se devem desempenhar as funções corretivas essenciais da

formação do Estado historicamente desenvolvido sob o sistema do capital”. Conforme

mencionado anteriormente, para o autor, “o capital é um modo singular de controle

sociometabólico, e nessa qualidade – o que é muito compreensível –, é incapaz de

funcionar sem uma estrutura de comando adequada”. Consequentemente, o capital é

uma articulação social e um tipo histórico específico de estrutura de comando

sociometabólico. O relacionamento entre as diversas unidades produtivas do capital e o

comando político deste sistema não pode ser de dominação unilateral, como em outros

modos de produção, por exemplo, no feudalismo, em que o fator predominante nessa

sociedade era o relacionamento fundado na esfera de dominação política (MÉSZÁROS,

2011, p. 118).

Diferentemente dos anteriores modos de produção, de acordo com Mészáros,

(...) o sistema do capital evoluiu historicamente a partir de constituintes

irrefreáveis, mas longe de ser autossuficientes. As falhas estruturais de

controle exigiam o estabelecimento de estruturas específicas de controle

capazes de complementar – no nível apropriado de abrangência – os

constituintes reprodutivos materiais, de acordo com a necessidade

totalizadora e a cambiante dinâmica expansionista do sistema do capital.

(MÉSZÁROS, 2011, p. 118-119).

Foi assim que o Estado se desenvolveu enquanto estrutura de comando político

do capital, tornando-se parte da “base material” desse sistema. Isso significa que o

capital como sistema incontrolável não consegue sobreviver sozinho em seu domínio

econômico sem uma estrutura de comando político; ele precisa de um complemento que

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o auxilie em seu processo de autorreprodução do valor. O capital não existe sem o

Estado, como um aparato de comando político inseparável. O capitalista gerencia o

processo da exploração e da produção da riqueza na esfera da reprodução material, nas

suas unidades econômicas, também chamadas por Mészáros de microcosmos. Por sua

vez, o Estado proporciona o ordenamento político abrangente necessário à reprodução

do sistema, administrando os conflitos das forças centrífugas e exercendo o poder

coercitivo de comando político dessa ordem.

Como visto no capítulo anterior, foi com o liberalismo que esta cisão entre a

esfera econômica e política se consolidou; ela se apresenta na questão da autonomia de

suas ações, mas que se correspondem. Trata-se de uma divisão estrutural de função

entre ambos, pois o capital sozinho não poderia ordenar toda a massa de concorrentes e

manter sob controle a força de trabalho, de forma que se encontrassem “livres” no

mercado de trabalho para serem cooptados no processo produtivo. Portanto, para o

sistema capitalista se fez necessário o desenvolvimento de uma estrutura de dominação

política que assumisse estas funções e proporcionasse um ordenamento em ampla escala

desta forma de controle sociometabólico. Assim, a libertação das amarras do sistema

político do feudalismo projetou o grande desenvolvimento da acumulação do capital.

Essa liberdade gerou necessidades específicas, a saber, a administração do Estado, e as

contradições do próprio sistema e seus defeitos estruturais.

Mészáros destaca o caráter irrefreável do sistema do capital, que longe de ser

autossuficiente, estabeleceu-se na sociedade. Somente no controle de cada unidade

produtiva o capital não conseguiria manter este sistema em funcionamento global –

enquanto totalidade. Para tanto o capital, de acordo com suas necessidades, deu forma à

estrutura de comando político do Estado moderno, para atender, além dos interesses

particulares de cada capitalista, à defesa dos interesses do capital global, ou seja, do

desenvolvimento do capitalismo na sua totalidade.

Mészáros também cita a questão da temporalidade e do inter-relacionamento

desenvolvido entre as estruturas reprodutivas materiais diretas e o Estado moderno, que

se caracteriza pela categoria da simultaneidade e não pela determinação do “antes” e do

“depois” (MÉSZÁROS, 2011).

Assim, para o autor,

estas só podem se tornar momentos subordinados da dialética da

simultaneidade quando as partes constituintes do modo de controle

sociometabólico do capital surgem durante o desenvolvimento do capital

global, seguindo sua lógica interna de expansão e acumulação. Da mesma

forma, em relação à questão das “determinações”, só se pode falar

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adequadamente de codeterminações. Em outras palavras, a dinâmica do

desenvolvimento não deve ser caracterizada sob a categoria do “em

consequência de”, mas em termos do “em conjunção a” sempre que se deseja

tornar inteligíveis as mudanças no controle sociometabólico do capital que

emergem da reciprocidade dialética entre sua estrutura de comando política e

a socioeconômica. (MÉSZÁROS, 2011, p. 119).

Assim, com relação à questão da temporalidade, de quando surge um ou

quando surge o outro, esse relacionamento integrado entre economia e política, ou entre

Estado e capital, se caracteriza pela simultaneidade: desenvolveram-se de forma

simultânea. É um desenvolvimento codeterminado, não unidirecional. Portanto, foi em

termos do “em conjunção a” que ambos influíram para o desenvolvimento da

estruturação de Estado moderno e do modo de reprodução do sistema do capital. Por

isso, existe uma reciprocidade dialética entre a estrutura de dominação política e a

estrutura socioeconômica do capital. Trata-se de um desenvolvimento dialético, porque

ambas as esferas interagem no processo reprodutivo, de forma que uma depende da

existência da outra para sobreviver em sociedade.

Nessa direção, seria completamente equivocado descrever o Estado como uma

superestrutura. Numa análise marxiana, Mészáros afirma que, “na qualidade de

estrutura totalizadora de comando político do capital (o que é absolutamente

indispensável para a sustentabilidade material de todo o sistema)”, o próprio poder

político não pode ser reduzido ao status de superestrutura. Isto porque o Estado em si,

como estrutura de comando abrangente do capital, tem suas próprias superestruturas, a

que Marx se refere como sendo uma “‘superestrutura legal e política’ – exatamente

como as estruturas reprodutivas materiais diretas têm suas próprias dimensões

superestruturais” (MÉSZÁROS, 2011, p. 119).

Sobre a afirmação da autonomia do Estado, Mészáros assevera que “como

estrutura de comando político abrangente do sistema do capital, o Estado não pode ser

autônomo, em nenhum sentido, em relação ao sistema do capital, pois ambos são um só

e inseparáveis”, pois sua natureza está diretamente associada à estrutura antagônica da

sociedade capitalista, uma vez que é o interesse do capital que orienta a sua ação. A

esfera econômica e política tem uma função estrutural específica, no entanto, “um

Estado historicamente dado contribui de maneira decisiva para a determinação – no

sentido já mencionado de codeterminação – das funções econômicas diretas, limitando

ou ampliando a viabilidade de algumas contra as outras”.

O Estado passa a intervir de forma a manter a totalidade em funcionamento.

Trata-se de uma função inseparável do capital; ele exerce essa função e pode até mesmo

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gerar contradições no curso do seu exercício. Cabe lembrar que a forma de intervenção

não muda a natureza do Estado; ela corresponde a um ajuste necessário de adequação ao

melhor uso do seu aparato estatal para o desenvolvimento dos interesses do capital em

cada momento histórico (MÉSZÁROS, 2011, p. 119).

Para Mészáros, a explicação reside na relação ontológica entre capital e Estado,

em que “(...) o Estado moderno pertence à materialidade do sistema do capital e

corporifica a necessária dimensão coesiva de seu imperativo estrutural orientado para a

expansão e para a extração do trabalho excedente”. O Estado se compromete com a base

material na manutenção das garantias necessárias para a extração do trabalho excedente

(MÉSZÁROS, 2011, p. 121).

É isso que caracteriza

(...) todas as formas conhecidas do Estado que se articulam na estrutura da

ordem sociometabólica do capital. Precisamente porque as unidades

econômicas reprodutivas do sistema têm um caráter incorrigivelmente

centrífugo – caráter que, há longo tempo na historia, tem sido parte integrante

do incomparável dinamismo do capital, ainda que em certo estágio de

desenvolvimento ele se torne extremamente problemático e potencialmente

destrutivo –, a dimensão coesiva de todo o sociometabolismo deve ser

constituída como uma estrutura separada do comando político totalizador.

(MÉSZÁROS, 2011, p. 121).

Precisamente por serem unidades econômicas de caráter centrifuga, não podem

entrar em acordo para exercer a função de abrangência política do sistema do capital.

Por isso, elas encontram na estrutura do Estado um aparato aparentemente independente

da base econômica que administra a concorrência dessas unidades incorrigivelmente

centrífugas. A própria relação de concorrência impede que os capitalistas

desempenhem, no âmbito da produção, a dominação necessária para o estabelecimento

da ordem. O destaque de uma esfera em particular foi necessário para conter os

conflitos, mantendo em certa ordem os interesses do sistema do capital.

Diante das questões apresentadas por Mészáros no debate sobre o papel do

Estado moderno na base material do sistema do capital, percebe-se que, no capitalismo,

ele se faz necessário para administrar e conter a concorrência entre os diversos

capitalistas e manter em ordem os trabalhadores, os não proprietários dos meios de

produção, como também para assegurar o funcionamento da totalidade social, na defesa

dos interesses do capital.

Desse modo,

Como prova da substantiva materialidade do Estado moderno, realmente

descobrimos que, em sua condição de estrutura de comando político

totalizador do capital, ele não está menos preocupado em assegurar as

condições de extração do trabalho excedente do que com as próprias

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unidades reprodutivas econômicas diretas, embora, naturalmente, ofereça à

sua própria maneira sua contribuição para um bom resultado. Entretanto, o

princípio estruturador do Estado moderno, em todas as suas formas –

inclusive as variedades pós-capitalistas –, é o seu papel vital de garantir e

proteger as condições gerais da extração da mais-valia do trabalho excedente.

(MÉSZÁROS, 2011, p. 121).

O Estado moderno como parte complementar da base material do sistema

global do capital deve articular sua superestrutura legal e política segundo suas

determinações estruturais inerentes e funções necessárias, criando as mais variadas

estratégias para cumprir a mesma função da forma mais eficiente possível. Deve

assumir, com superestrutura legal e política, “as formas parlamentaristas, bonapartistas

ou até de tipo soviético pós-capitalista, além de muitas outras, conforme exijam as

circunstâncias históricas específicas” (MÉSZÁROS, 2011, p. 121).

Acrescenta Mészáros:

mesmo dentro da estrutura da mesma formação socioeconômica (por

exemplo, capitalista), pode deixar de cumprir suas funções, digamos, em uma

rede legal e política liberal-democrática e passar a adotar uma forma

abertamente ditatorial de legislação e dominação política; e também neste

aspecto pode avançar e recuar. (MÉSZÁROS, 2011, p. 121).

Portanto, o movimento do capital é que determina as mudanças na forma da

superestrutural legal e política do Estado, porém as contradições permanecem as

mesmas, porque não podem ser resolvidas mantendo-se esse sistema sociometabólico.

Já a base material capitalista permaneceu estruturalmente a mesma durante todas as

transformações conjunturais, de avanço ou retrocesso, pelas quais passaram as

respectivas superestruturas legais e políticas do Estado moderno.

Diante das análises apresentadas por Mészáros, constata-se que a articulação da

estrutura abrangente de comando político na forma do Estado moderno representa

simultaneamente um ajuste necessário e um absoluto desajuste em relação às estruturas

sociometabólicas básicas do sistema do capital. A sua existência está diretamente

relacionada com o surgimento da propriedade privada e com o desenvolvimento das

sociedades de classes. É o caráter inconciliável da relação entre as classes fundamentais

que faz surgir o Estado como seu produto histórico.

Conforme afirmado por Marx e Engels, o Estado continua sendo o “comitê

executivo da burguesia”, e na forma de sociabilidade capitalista, ele se desenvolve como

estrutura de dominação legal e política, para auxiliar e manter em ordem as estruturas

das unidades reprodutivas socioeconômicas. Nessa direção, o Estado é essencialmente

vital para manter sob controle (ainda que seja incapaz de eliminar completamente) os

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antagonismos inconciliáveis que surgem da dualidade disruptiva dos processos

socioeconômicos e políticos de tomada de decisão, sem os quais o sistema do capital

não poderia funcionar adequadamente (MARX; ENGELS, 2010).

3. O DESENVOLVIMENTO DO ESTADO NO CAPITALISMO DOS

MONOPÓLIOS: O Estado de Bem-Estar Social

Anteriormente, foi visto que na transição de um modo de produção para outro,

o Estado apenas adequou sua forma de atuação, mantendo sua essência, ou seja, sua

função social permaneceu a mesma: a garantia da manutenção da ordem social

constituída. E no período do desenvolvimento do capitalismo não foi diferente, com a

formação do Estado moderno. Portanto, é possível afirmar que o Estado moderno, como

estrutura de comando político do capital, é mais uma das formas de assegurar o controle

sociometabólico do sistema capitalista. Esse pressuposto orientará a construção deste

segundo capítulo.

Para tanto, buscar-se-á compreender de que forma se desenvolveu o Estado de

Bem-Estar Social durante a constituição da sociedade moderna, através de um resgate

histórico desse conceito, articulado ao contexto no qual ocorreu a sua consolidação e

desenvolvimento – o período monopolista do capitalismo. Observar-se-á que não houve

uma ruptura na essência do Estado burguês, senão um processo de continuidade das

relações entre o Estado e a base de reprodução material do sistema do capital, ao longo

do século XX, com base no estudo de Lessa (2013), em seu livro Capital e Estado de

Bem-Estar Social: o caráter de classe das políticas públicas22, e nas contribuições de

autores como: Netto (1992), Lênin (1987), Gounet (2002), Netto & Braz (2010),

Braverman (2012), Baran & Sweezy (1978), Behring & Boschetti (2011), entre outros23

que analisaram esse período do desenvolvimento capitalista.

22 Dando continuidade à análise do Estado em Marx, Engels e Mészáros, traz-se Lessa, em suas reflexões acerca do

denominado Estado de Bem-Estar Social. Uma discussão pautada pelas relações fundamentais que se estabelecem

entre o Estado moderno e a reprodução econômica do sistema do capital, no curso do desenvolvimento do

capitalismo monopolista. 23 São dignas de nota, entre outras, as contribuições de Rosa Luxemburgo, A Acumulação de capital. Contribuição ao

estudo econômico do imperialismo (São Paulo: Abril, 1985), e de V. I. Lênin, Imperialismo, fase superior do

capitalismo (São Paulo: Global, 1987).

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3.1 Capitalismo dos monopólios: base material do Estado de Bem-Estar Social

Ao se estudar a história do capitalismo nos últimos quarenta anos do século

XIX, evidencia-se que este passou por uma série de substantivas transformações que

alteraram significativamente o seu ordenamento e a sua dinâmica econômica. Segundo

Netto & Braz (2010), nenhuma delas lhe retira a sua estrutura essencial, mas todas

apontam para a mesma direção: um novo estágio no desenvolvimento do capitalismo, o

imperialismo24. Trata-se do período em que ocorre a transição do capitalismo da sua

fase concorrencial para a fase monopólica. As mudanças apresentadas nesse curso pelo

capitalismo demonstraram a veracidade das análises de Marx sobre o seu caráter

essencial e o da ordem social burguesa, abordadas no capítulo anterior.

Fundamentado na crítica marxiana, Netto afirma que “o capitalismo

monopolista recoloca, em patamar mais alto, o sistema totalizante de contradições que

confere à ordem burguesa os seus traços basilares de exploração, alienações e

transitoriedade histórica (...)”. Nas dimensões econômico-social e histórico-política, a

ordem monopólica modificou completamente a dinâmica da sociedade burguesa; ela

intensificou as contradições fundamentais do capitalismo, que já estavam presentes no

estágio concorrencial, e as articulou com novas contradições e antagonismos.

A entrada do capitalismo no período imperialista consiste numa mudança no

seu estágio evolutivo, quando a sociedade burguesa ascendeu à sua maturidade

histórica, realizando assim “as possibilidades de desenvolvimento que, objetivadas,

tornam mais amplos e complicados os sistemas de mediação que garantem a sua

dinâmica” na ordem social burguesa (NETTO, 1992, p. 15-16).

Por sua vez, Lênin, ao analisar o estágio monopolista do capitalismo, constata

que o imperialismo25 é o capitalismo num dado momento do seu desenvolvimento,

quando se afirma a dominação dos monopólios e do capital financeiro. Segundo o autor,

o que existe de essencial nesse processo é a substituição da livre concorrência capitalista

pelos grandes monopólios. Sua gênese deriva dos primeiros cartéis, trustes, sindicatos

patronais e outras formas de combinação de capitais bancários. Contudo, os monopólios

não eliminam a livre concorrência de que nasceram; “eles existem acima e ao lado dela,

24 Assim denominado como estágio imperialista do capitalismo, a partir dos estudos de Lênin, de 1916 e publicado

em meados de 1917, no livro O Imperialismo, fase superior do capitalismo. 25 No curso da sua trajetória de pouco mais de um século, o imperialismo sofreu importantes transformações. Na

história desse modo de produção capitalista, Netto & Braz (2010) distinguem pelo menos três fases: a fase “clássica”,

que vai de 1890 a 1940; os “30 anos dourados” do capital, que vão do final da Segunda Guerra Mundial até a entrada

dos anos 70; e o capitalismo contemporâneo, de meados dos anos 60 aos dias atuais.

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implicando assim contradições, fricções, conflitos particularmente agudos e violentos”.

Lênin afirma que o imperialismo constitui a passagem do capitalismo a um regime

econômico e social superior, que se desenvolve sob a égide dos monopólios (LÊNIN,

1987, p. 87).

Para Braverman, foi a partir dessas primeiras iniciativas assumidas pelos

monopólios que a estrutura da grande indústria moderna e das finanças capitalistas

começou a tomar forma. Ao mesmo tempo, “a rápida consumação da colonização do

mundo, as rivalidades internacionais e os conflitos armados pela divisão do globo em

esfera de influência econômica ou hegemonia inauguram a moderna era imperialista”.

Desse modo, o capitalismo em sua fase monopolista abrange “o aumento das

organizações monopolistas no seio de cada país capitalista, a internacionalização do

capital, a divisão internacional do trabalho, o imperialismo, o mercado mundial, o

movimento mundial do capital e mudanças na estrutura do poder estatal”

(BRAVERMAN, 2012, p. 215-216).

Netto destaca que a urgência da constituição da organização monopólica

obedece a um objetivo primário, qual seja: “o crescimento dos lucros capitalistas

através do controle dos mercados”. As tendências do capital à concentração e à

centralização, após a crise de 1873, confluíram na criação dos modernos monopólios.

Nesse momento, o que se observa é o redimensionamento do papel dos bancos (produto

da evolução das “casas bancárias”), ao tempo que se processa uma maior concentração

dos ramos industriais no setor bancário. Essa fusão entre o capital bancário e o capital

industrial deu origem ao capital financeiro (NETTO, 1992, p. 16, grifos do autor).

Netto ressalta alguns fenômenos introduzidos na dinâmica econômica burguesa

com a organização monopólica, tais como:

a) os preços das mercadorias (e serviços) produzidas pelos monopólios

tendem a crescer progressivamente; b) as taxas de lucro tendem a ser mais

altas nos setores monopolizados; c) a taxa de acumulação se eleva,

acentuando a tendência descendente da taxa média de lucro e a tendência ao

subconsumo; d) o investimento se concentra nos setores de maior

concorrência, uma vez que a inversão nos monopolizados torna-se

progressivamente mais difícil (logo, a taxa de lucro que determina a opção de

investimento se reduz); e) cresce a tendência a economizar trabalho “vivo”,

com a introdução de novas tecnologias; f) os custos de venda sobem, com um

sistema de distribuição e apoio hipertrofiado – o que, por outra parte, diminui

os lucros adicionais dos monopólios e aumenta o contingente de

consumidores improdutivos (contra-arrestando, pois, a tendência ao

subconsumo). (1992, p. 16-17).

Os efeitos na dinâmica econômica, provocados por esses fatores, causam

implicações muito profundas. De um lado, a tendência à equalização das taxas de lucro,

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que já estava objetivada no estágio concorrencial do capitalismo, foi revertida em

benefício dos grandes grupos monopolistas; de outro, o processo de acumulação do

capital foi alterado, elevando-se em virtude da centralização que o monopólio opera. Os

grupos monopolistas, ao investirem além das suas próprias fronteiras, na periferia do

capital, tendem a economizar trabalho “vivo”, em razão do estimulo à inovação

tecnológica, aumentando, dessa forma, o número de trabalhadores desempregados.

Netto (1992) chama atenção ao fato de ser essa uma característica específica

dos monopólios, de fundamental importância para a compreensão do capitalismo

monopolista. A estrutura do monopólio produz um aumento na taxa de trabalhadores

desempregados, lançados ao que Marx denominou de “exército industrial de reserva”26.

Daí a necessidade de uma intervenção externa para administrar os antagonismos sociais

advindos das mudanças operadas na economia, provocadas por esse novo fenômeno.

Dois outros elementos, segundo Netto, típicos do processo de monopolização

surgem no cenário social, durante o período “clássico” do capitalismo monopolista. O

primeiro deles corresponde ao fenômeno da supercapitalização: o capital acumulado

encontra dificuldades para se valorizar; pois “é próprio do capitalismo monopolista o

crescimento exponencial desses capitais excedentes, que se tornam mais extraordinários

quanto mais se afirma a tendência descendente da taxa média de lucro”. O escoamento

desses capitais é contornado por inúmeros mecanismos, tais como: a emergência da

indústria bélica; a migração dos capitais excedentes por cima dos marcos estatais e

nacionais; a destruição do excedente em atividades que não geram valor, mas nenhum

deles encontra-se apto para dar solução à supercapitalização. Assim, “todos estes

mecanismos renovam a relação entre a dinâmica da economia e o Estado burguês”

(NETTO, 1992, p. 18).

O segundo elemento citado por Netto (1992) é o parasitismo que se instaura na

sociedade em razão do desenvolvimento do monopólio. Por um lado, o capitalismo

monopolista traz à tona a natureza parasitária da burguesia com a oligarquia

financeira27; por outro, com a “queima” do excedente em atividades que não criam

26 A respeito desse fenômeno, Marx afirma que “o exército industrial de reserva funciona como regulador do nível

geral de salários, impedindo que se eleve acima do valor da força de trabalho ou, se possível e de preferência,

situando-o abaixo desse valor. Outra função do exército industrial de reserva consiste em colocar à disposição do

capital a mão-de-obra suplementar de que carece nos momentos de brusca expansão produtiva, por motivo de

abertura de novos mercados, de ingresso na fase de auge do ciclo econômico etc.” (1996, p. 42). 27 Segundo Netto & Braz (2010), uma vez instaurado o imperialismo, a noção de oligarquia financeira corresponde a

um número reduzido de grandes capitalistas (industriais e banqueiros) que concentram em suas mãos a vida

econômica do seu país, e também daqueles em que seus grupos econômicos operam. Como detêm o poder

econômico, esses poucos monopolistas dispõem de uma forte influência política, em escala nacional e internacional.

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valor, a monopolização dá lugar a uma generalizada burocratização da vida social, com

o repasse de várias de suas operações para o “setor terciário”, buscando formas de

conservação e/ou legitimação da própria ordem monopólica do capital.

A evolução do processo de produção data do mesmo período do capitalismo

monopolista. Sobre esse movimento econômico, Braverman chega à seguinte

conclusão: a gerência científica e a revolução técnico-científica são os dois principais

aspectos do capital monopolista. Neste caso, “tanto cronológica como funcionalmente,

elas são parte do novo estágio do desenvolvimento capitalista, decorrem do capitalismo

monopolista e o tornam possível”. As mudanças tecnológicas e gerenciais ensejam

novos e diferentes processos de trabalho, proporcionando uma nova distribuição

ocupacional dos trabalhadores empregados (BRAVERMAN, 2012, p. 216).

Nesse processo, o capital obtido em um ritmo frenético se lança a todas as

áreas de investimento das empresas capitalistas, reorganizando a sociedade burguesa.

Conforme Braverman, o capitalismo em seu estágio monopolista proporciona uma vida

social amplamente diferenciada daquela do período anterior. Esse autor ressalta que

uma das peculiaridades do capitalismo monopolista consiste em transformar toda e

qualquer atividade humana em mercadoria, com o objetivo de acumular mais capital.

Portanto, “é somente na era do monopólio que o modo capitalista de produção recebe a

totalidade do indivíduo, da família e das necessidades sociais e, ao subordiná-la ao

mercado, também os remodela para servirem às necessidades do capital”

(BRAVERMAN, 2012, p. 231).

De acordo com Braverman, até o período anterior ao capitalismo monopolista,

a produção dos bens de primeira necessidade (os alimentos, os vestuários e os utensílios

domésticos) ainda se dava no ambiente familiar. No entanto, com o desenvolvimento da

grande indústria capitalista, no curso do século XIX, tal produção passou a ter outra

configuração, o que de fato leva à dependência de toda a vida social. Com a inserção

maciça da força de trabalho na indústria, as mercadorias antes produzidas nas pequenas

fazendas, por todos os membros da família, passam agora a compor as inter-relações da

humanidade para com o mercado.

O autor chama atenção para o fato de que, com o passar do tempo, não só “as

necessidades materiais e de serviços, mas também os padrões emocionais de vida são

canalizados através do mercado”. Agora, a estrutura social, erguida sobre o mercado, é

No curso de todo o século XX, muitos são os exemplos da ação concentradora (na área econômica) e antidemocrática

(na área política) conduzida pela oligarquia financeira.

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de tal forma que a relação entre indivíduos e grupos sociais não se desenvolve

diretamente, na forma cooperativa, mas através do mercado, na relação de compra e

venda de mercadorias (BRAVERMAN, 2012, p. 235).

Em resumo, Braverman menciona três passos para a criação do mercado

universal, no curso do capitalismo monopolista. O primeiro deles foi a conquista de toda

a produção de bens e serviços sob a forma de mercadoria; o segundo corresponde a uma

gama crescente de serviços e sua conversão em mercadorias; o terceiro marca um novo

“ciclo de produtos”, em que “os novos produtos e serviços se tornam indispensáveis, à

medida que as condições da vida moderna mudam para destruir alternativas”. Nessa

direção, o autor caracteriza as novas relações sociais fundadas pelo capitalismo

monopolista mediante a relação de compra e venda da força de trabalho, como relações

desumanizadoras, porquanto confinam um amplo segmento da população ao trabalho

desumano e degradante (BRAVERMAN, 2012, p. 239).

No livro Capital Monopolista, Baran & Sweezy destacam outro elemento

essencial do estágio monopolista do capital: “o crescimento do monopólio gera forte

tendência ao crescimento do excedente (...)”. Contudo, esse elemento surge sem

nenhum mecanismo adequado que proporcione sua absorção na sociedade, produzindo

assim as crises econômicas. Esses autores buscam, através de uma análise histórica da

economia do século XIX, compreender o processo de constituição do capitalismo dos

monopólios. Afirmam que se os efeitos depressivos do crescimento dos monopólios

tivessem funcionado sem controle, a economia mundial teria entrado em um período de

grande estagnação muito antes do final do século XIX. Com isso, buscam demonstrar

que a economia capitalista desse final de século contou com estímulos externos que

impediram os efeitos depressivos e possibilitaram o rápido crescimento econômico.

Para Baran & Sweezy, esses estímulos se processaram sob duas formas particulares: as

inovações tecnológicas e as guerras (BARAN; SWEEZY, 1978, p. 218).

As “invenções que marcaram época” são aqueles inventos que revolucionaram

toda a estrutura econômica, criando, além do capital que absorvem de forma direta,

outros mercados para investimento. No que se refere a estas invenções, três se

destacaram por afetarem significativamente tanto a localização da atividade econômica

quanto a composição do produto: a máquina a vapor, a estrada de ferro e o automóvel.

Cada um produziu alteração radical na geografia econômica com consequente

repercussão nas migrações internas e na formação de comunidades

inteiramente novas; cada um deles exigiu ou, pelo menos, tornou possível, a

produção de muitos bens a serviços novos; cada um deles, direta ou

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indiretamente, ampliou o mercado para uma série de produtos industriais.

(BARAN; SWEEZY, 1978, p. 219).

Outras invenções tiveram grandes efeitos sobre a economia capitalista, no

entanto, com relação ao problema considerado – a adequação na absorção do excedente

–, nenhuma delas obteve as mesmas proporções que as três invenções acima citadas.

Para Baran & Sweezy, com relação ao processo de absorção do excedente, “(...) o que

dá propriamente significação a um invento é a amplitude com que [ele] abala toda a

estrutura da vida econômica” (BARAN; SWEEZY, 1978, p. 222).

Quanto ao segundo estímulo citado por Baran & Sweezy, o outro elemento

inibidor de estagnações no ciclo econômico é a guerra. Sabe-se que as guerras fazem

parte da história do capitalismo desde os seus primórdios. No entanto, no século XX,

sob a égide do imperialismo, as atividades a ela relacionadas ganham um novo

significado e se tornam um componente a mais para a economia monopolista. Com

relação às suas implicações na dinâmica econômica, os autores as dividem em duas

fases: a fase de combate e a fase do pós-guerra. Em ambas as fases, tal fenômeno

acarreta um abalo na estrutura econômica, pois “quanto mais radical e total for a guerra,

tanto maior será a duração de seus efeitos” na sociedade. Foi por esta razão que grandes

guerras como a de 1914-1918 e 1939-1945 igualaram-se, economicamente, aos inventos

que marcaram época (BARAN; SWEEZY, 1978, p. 223).

No curso da primeira fase, a de combate, observa-se que “a procura militar

naturalmente cresce muito; os recursos são transferidos para os setores da economia a

ela ligados, e a procura civil é reduzida através de uma forma combinada de aumentos

de preços e racionamento”. Com isso, a produção voltada ao mercado de bens duráveis

pode ser paralisada completamente, enquanto as fábricas existentes modificam-se para

atender à demanda da produção de guerra, canalizando para elas a maior parte dos

novos investimentos do fundo público. Desse modo, além de a produção total crescer

nos limites estabelecidos pelos recursos disponíveis, toda a estrutura da vida econômica

é drasticamente modificada. (BARAN; SWEEZY, 1978, p. 223).

Já na segunda fase, após o término das hostilidades do tempo de guerra, ocorre

um retorno ao estado de coisas antes existente. No período de combate, “os estoques

existentes de capitais particulares e de bens de consumo duráveis vinham sendo usados

com intensidade maior que a normal (...)”, ao tempo que a riqueza reprodutível da

sociedade retraía-se e o crescimento populacional acentuava as deficiências e a

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escassez; enquanto isso, aumentava o fornecimento militar e a capacidade de supri-lo

(BARAN; SWEEZY, 1978, p. 223-224).

Foram esses eventos que deram origem ao acúmulo generalizado da procura na

área civil, que passou a existir após o fim das duas grandes guerras. Este acúmulo foi

suprido pela transformação da utilização militar das fábricas em utilização civil. Desse

modo, surgiam os mercados para investimentos que podem absorver, por vários anos,

grandes quantidades de excedentes. Essas duas fases desempenharam forte influência na

absorção do excedente econômico produzido no curso do capitalismo monopolista, a

primeira delas, através da enorme procura da máquina militar, e a segunda, através do

acúmulo da procura civil criada durante a fase de combate (BARAN; SWEEZY, 1978).

Netto & Braz (2010) concluem que o investimento na indústria bélica e sua

consequência, a guerra, correspondem a um excelente negócio para os capitais

monopolistas nela envolvidos, pois a enorme destruição de forças produtivas que a

guerra realiza abre um imenso campo para a retomada de ciclos econômicos antes

ameaçados pela crise. Portanto, não por acaso o século XX, na fase imperialista do

capital, é definido como o século das guerras. Cabe ressaltar que essas duas variáveis

não resolvem os problemas das crises, que se processam ao longo de todo o século; elas

integram a estrutura sociometabólica do sistema do capital e atuam como um redutor de

curto prazo da sua incidência.

Outro elemento que se faz necessário analisar sobre o período do capitalismo

monopolista são as crises econômicas. Segundo Netto & Braz, o desenvolvimento

capitalista, a partir da consolidação da produção pelo capital, é marcado por uma

sucessão de crises. Desde “(...) 1825 até às vésperas da Segunda Guerra Mundial, as

fases de prosperidade econômica foram catorze vezes acompanhadas por crises; a última

explodiu em 1937/1938, mas foi interrompida pela guerra” (2010, p. 156).

A principal crise econômica desse período foi a de 1929-1932, com

repercussões em todo o mundo capitalista. Trata-se de uma crise que se iniciou no

sistema financeiro americano e ganhou o mundo; provocou a quebra da Bolsa de

Valores de Nova Iorque; a falência de diversas empresas e indústrias; o desemprego em

massa e, principalmente instaurou a desconfiança sobre os pressupostos do liberalismo

econômico de que o mercado seria autorregulável (BEHRING; BOSCHETTI, 2011).

De acordo com Netto & Braz, “a crise de 1929 obrigou os dirigentes

capitalistas a ensaiar alternativas político-econômicas que, na fase seguinte, a dos ‘anos

dourados’ (1945-finais dos anos sessenta/inícios dos anos setenta), seriam

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implementadas pelas principais potências imperialistas”, com o objetivo de minimizar

os efeitos da crise e recuperar o crescimento econômico. A principal mudança operada

em decorrência da Grande Depressão de 29 foi uma maior intervenção do Estado na

economia capitalista. Nesse contexto, cabe ressaltar mais uma vez que “(...) o Estado

burguês sempre interveio na dinâmica econômica, garantindo as condições externas

para a produção e acumulação capitalistas (...)”; no entanto, a crise de 1929, ao

evidenciar o equívoco liberal, revelou que novas modalidades interventivas por parte do

Estado tornavam-se necessárias, a saber, uma intervenção que envolvesse as condições

gerais (internas e externas) da produção e da acumulação capitalista (NETTO; BRAZ,

2010, p. 192).

Nessa época, de um ponto de vista global (ou seja, econômico, político e

ideológico), de acordo com Behring & Boschetti (2011), estavam em disputa três

projetos. Cada um poderia ser visto como uma possível solução para a grande crise do

capital, sendo duas propostas no campo burguês (o fascismo e o projeto liberal-

reformista), e outra no campo social, o projeto socialista, então sob a influência de

Stálin. Com o término da Segunda Guerra Mundial (1940-1945), a humanidade passa a

um período de Guerra Fria, com o contraponto entre o socialismo real e a democracia

liberal-burguesa nos seus diversos formatos.

Observa-se que no pós-1945 tais alternativas seriam implementadas, agora

apoiadas em novas perspectivas teóricas e com a função de regular os ciclos

econômicos. Foi nesse sentido que a derrota do fascismo28 no pós-Segunda Guerra

viabilizou o projeto social-democrata, que teve como protagonista o economista John

Maynard Keynes (1883-1946). Em sua obra Teoria geral do emprego, do juro e da

moeda, publicada em 1936, Keynes defendeu a intervenção do Estado com vistas a

reativar o processo produtivo, buscando uma maior intervenção estatal na economia, em

comum acordo com os fundamentos econômicos do New Deal29 e do nazifascismo.

No curso dos anos 30 ocorreram mudanças significativas no mundo capitalista;

tais encaminhamentos foram decisivos para o desenvolvimento econômico a partir de

1945. Desses processos complexos decorre “(...) uma espécie de ‘contestação burguesa’

do liberalismo ortodoxo, expressa principalmente na chamada ‘revolução keynesiana’”.

28 Conforme Netto & Braz, o fascismo “é um regime político ideal para os monopólios ou para o estabelecimento da

dominação dos monopólios” (2010, p. 194). 29 O New Deal corresponde a um conjunto de medidas econômicas e sociais tomadas no governo de Roosevelt, entre

os anos de 1933 e 1937, com o objetivo de recuperar a economia norte-americana da crise de 1929. Teve como

princípio básico a forte intervenção do Estado no setor econômico.

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As proposições de Keynes encontraram sustentação na experiência do New Deal norte-

americano e inspiraram a superação da crise por parte dos países europeus.

Tais experiências tinham um ponto em comum: “a sustentação pública de um

conjunto de medidas anticrise ou anticíclicas, tendo em vista amortecer as crises cíclicas

de superprodução, superacumulação e subconsumo, ensejadas a partir da lógica do

capital”. Desse modo, segundo a análise keynesiana, cabia ao Estado a função de

restabelecer o equilíbrio no setor econômico, por meio de uma política fiscal, creditícia

e de gastos, na realização de investimentos que operassem nos períodos de depressão

como um estímulo à economia burguesa (BEHRING; BOSCHETTI, 2011, p. 71).

Assim, a política keynesiana, como ficou amplamente conhecida, a partir da

ação direta do Estado, de elevar a demanda global do mercado, antes mesmo de evitar a

crise, buscava amortecê-la através de alguns mecanismos que do ponto de vista da

burguesia liberal seriam impensáveis, tais como:

A planificação indicativa da economia, na perspectiva de evitar os riscos das

amplas flutuações periódicas; a intervenção na relação capital/trabalho

através da política salarial e do “controle de preços”; a distribuição de

subsídios; a política fiscal; a oferta de créditos combinada a uma política de

juros; e as políticas sociais. (BEHRING; BOSCHETTI, 2011, p. 86).

Esse conjunto de estratégias e técnicas anticrise realizadas pelo poder público

tinha por objetivo conter a tendência à queda da taxa de lucros e, consequentemente,

obter algum controle sobre o ciclo econômico do capital. Todas as soluções

apresentadas para a Grande Depressão de 1929 se deram no sentido de reativar o

emprego e o consumo de mercadorias. É nessa direção que se processou o investimento

do fundo público e da guerra para a manutenção da economia capitalista (NETTO;

BRAZ, 2010).

Entre as medidas tomadas na esfera da produção após a crise de 1929, em

especial uma merece atenção: diz respeito à organização do trabalho na indústria

capitalista. As formas modernas de controle do capital sobre o trabalho desenvolvidas

no final do século XIX, quando o capitalismo passou por profundas transformações que

modificaram parte do processo de produção e da organização do trabalho, na

consolidação do seu período monopolista, marcaram os anos de 1940 a 1970 – com uma

longa onda expansiva do crescimento econômico; estes foram designados como os “30

anos dourados” do capital ou, ainda, como as “três décadas gloriosas” do capitalismo.

Antes de adentrar nessa análise, cabe ressaltar que as primeiras formas de

controle do capital sobre o trabalho datam do início do desenvolvimento capitalista. O

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sistema no curso da sua história procurou sempre aprimorar as formas de controle sobre

o trabalho na produção, buscando a melhor maneira possível para extrair a mais-valia.

Em sua obra O Capital30, Marx (1996) desvenda claramente as formas elementares de

controle do trabalho pelo capital, desenvolvidas nas antigas formas de cooperação31,

sendo esta a forma básica do modo de organização da produção capitalista na

manufatura32, que corresponde à primeira forma característica do processo de produção

capitalista de base cooperada, seguida pela grande indústria, com o emprego da

maquinaria.

De acordo com Braverman, o movimento da gerência científica, iniciado entre

fins do século XIX e princípios do século XX, por Frederick W. Taylor (1856-1915), foi

impulsionado pelas seguintes forças: aumento significativo do tamanho das empresas,

início da organização monopolista da indústria e internacionalização e sistemática

aplicação da ciência à produção. A gerência científica, como foi denominada, significou

“(...) um empenho no sentido de aplicar os métodos da ciência aos problemas

complexos e crescentes do controle do trabalho nas empresas capitalistas em rápida

expansão”.

Para o autor, a gerência não investiga o trabalho na sua totalidade social, mas a

adaptação do trabalho às necessidades do capital. Taylor procurou ocupar-se dos

fundamentos dessa organização sobre os processos de trabalho e o controle sobre eles.

Nesse sentido, “o taylorismo pertence à cadeia de desenvolvimento dos métodos e

organização do trabalho (...)”, e não se preocupava com a tecnologia empregada no

processo produtivo (BRAVERMAN, 2012, p. 82).

Segundo os historiadores que estudaram o movimento da gerência científica

através de publicação de manuais, análises de problemas de gerência, e no enfoque cada

vez mais requintado posto em prática desde a segunda metade do século XIX, “o que

Taylor fez não foi criar algo inteiramente novo, mas sintetizar e apresentar ideias num

todo razoavelmente coerente que germinaram e ganharam força na Inglaterra e nos 30 Referência à obra de Marx (1996), O Capital – Vol. I, Tomo I, Cap. XI e XII – Vol. II, Tomo I, Cap. XIII. 31 De acordo com Marx, chama-se de cooperação “a forma de trabalho em que muitos trabalham planejadamente lado

a lado e conjuntamente, no mesmo processo de produção ou em processos de produção diferentes, mas conexos”.

(MARX, 1996, p. 442). 32 Segundo Marx, analisar a origem da manufatura é compreender que sua formação é dúplice. “De um lado, ela parte

da combinação de ofícios autônomos de diferentes espécies, que são despidos de sua autonomia e tornados unilaterais

até o ponto em que constituem apenas operações parciais que se complementam mutuamente no processo de

produção de uma única e mesma mercadoria. De outro lado, ela parte da cooperação de artífices da mesma espécie,

decompõe o mesmo ofício individual em suas diversas operações particulares, isola-as e as torna autônomas até o

ponto em que cada uma delas torna-se função exclusiva de um trabalhador específico”. Portanto, a manufatura

introduz “(...) a divisão do trabalho em um processo de produção ou a desenvolve mais; (...) ela combina ofícios

anteriormente separados. Qualquer que seja seu ponto particular de partida, sua figura final é a mesma – um

mecanismo de produção cujos órgãos são seres humanos” (MARX, 1996, p. 455).

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Estados Unidos durante o século XIX”. Portanto, ele produziu “uma filosofia e [deu]

título a uma série desconexa de iniciativas e experiências que representava a culminação

de uma tendência preexistente de organização da produção iniciada com a cooperação”

(URWICK; BRECH, apud BRAVERMAN, 2012, p. 85).

Sobre o controle do trabalho, Braverman afirma ser ele um aspecto decisivo da

gerência no curso da sua história, porém com Taylor ele adquiriu dimensões sem

precedentes. O revolucionamento provocado por Taylor no tocante ao conceito de

controle o elevou “(...) a um plano inteiramente novo, como uma necessidade absoluta

para a gerência adequada à imposição ao trabalhador da maneira rigorosa pela qual o

trabalho deve ser executado”. Nesse sentido, a gerência deveria efetuar o controle de

forma que determinasse ao trabalhador o modo concreto de execução de toda e qualquer

atividade na produção, desde a mais simples à mais complexa, sob um ritmo

determinado de trabalho, o do marca-passo, com objetivo de aumentar a produção e

extrair mais-valia em menos tempo (BRAVERMAN, 2012, p. 86).

Para Braverman, Taylor foi o responsável pelo desenvolvimento dos princípios

que regeram a gerência moderna de produção no capitalismo contemporâneo durante o

século XX. A generalizada aplicação da gerência científica coincidiu com a revolução

técnico-científica e as transformações fundamentais na estrutura funcional do

capitalismo e na composição da classe trabalhadora. O principal efeito causado pela

gerência científica sobre a classe trabalhadora foi a intensificação do processo de

separação do trabalho intelectual do trabalho manual, já iniciado na manufatura.

Para o autor, a consequência prática dessa separação de concepção e execução

“é que o processo de trabalho é agora dividido entre lugares distintos e distintos grupos

de trabalhadores”. No interior das fábricas são executados os processos físicos da

produção; já nos escritórios concentram-se o projeto, o planejamento, o cálculo e o

arquivo. Contudo, a consequência social não residiu na separação entre mão e cérebro,

concepção e execução, mas no rigor com o qual são divididos uma da outra; portanto,

“(...) ao estabelecer relações sociais antagônicas, de trabalho alienado, mão e cérebro

tornam-se não apenas separados, mas divididos e hostis, e a unidade humana de mão e

cérebro converte-se em seu oposto, algo menos que humano” (BRAVERMAN, 2012, p.

112-113).

O efeito degradante da gerência científica para o trabalhador foi ampliado

ainda mais com o aparecimento do fordismo, a partir de 1913, quando Henry Ford

(1863-1947) passou a aplicar os métodos da organização científica do trabalho em suas

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fábricas de automóveis, para atender a uma potencial produção em massa. Antes dessa

mudança, como explica Gounet (2002), Ford se deparou com o antigo regime de

trabalho, a produção artesanal; o automóvel era fabricado por vários operários

especializados, uma produção lenta, que consequentemente aumentava o valor do carro.

Ford modificou todo esse processo com a aplicação dos métodos do taylorismo na

indústria automobilística. Essa nova organização na produção e no trabalho destinava-se

a fabricar mais veículos em menos tempo, como, por exemplo, o Modelo T, fabricado

por um preço relativamente baixo, em larga escala, à custa da degradação do trabalho

humano.

De acordo com Gounet (2002), o modelo de produção fordista apoia-se em

cinco transformações principais no processo produtivo, quais sejam: 1) a produção em

massa, com racionalização extrema das operações efetuadas pelos operários e combate

aos desperdícios, principalmente o de tempo; 2) o parcelamento de tarefas, com base na

divisão do trabalho, pois o trabalhador não precisa mais ser um especialista; sua função

se resume à operação de um número limitado de gestos simples, repetindo-os inúmeras

vezes durante sua jornada de trabalho, o que leva à desqualificação do trabalhador; 3) a

criação de uma linha de montagem que liga os trabalhadores individuais às diferentes

atividades, além de fixar um ritmo de trabalho controlado pela empresa; 4) a

padronização das peças, com a integração vertical da produção, ou seja, a realização do

controle direto do processo de produção; e 5) a automatização das fábricas (GOUNET,

2002, p. 18-19).

Inicialmente, tais transformações não foram bem-vistas pelos trabalhadores; os

operários preferiam o método antigo, por constrangê-los menos e os valorizar mais,

mantendo a sua qualificação. Assim, Ford não encontrava mão de obra necessária a sua

produção em massa, mesmo com a redução do tempo gasto para a produção. Conforme

afirma Braverman, “nesta reação inicial contra a linha de montagem percebemos a

repulsa natural do trabalhador contra a nova espécie de trabalho”. Isso se torna

perceptível pelo fato de que Ford estava competindo com modos anteriores de

organização do trabalho que ainda caracterizavam o restante das fábricas automotivas.

Porém, em regra, a classe trabalhadora acabou por se submeter ao modo

capitalista de produção e às formas sucessivas que ele assumiu no curso da sua história.

Isto acontece “(...) à medida que o modo capitalista de produção conquista e destrói

todas as demais formas de organização do trabalho, e com elas, todas as alternativas

para a população trabalhadora”. Foi o que Ford fez ao forçar a linha de montagem no

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restante das fábricas automotivas; os trabalhadores agora eram obrigados a submeter-se

a ela devido ao desparecimento das antigas formas de trabalho nas fábricas

(BRAVERMAN, 2012, p. 132, grifo do autor).

A introdução, em 1914, de uma jornada de oito horas de trabalho a cinco

dólares, para os trabalhadores da linha de montagem da Ford – o dobro do que era pago

naquela época para uma jornada de trabalho – atraiu os operários para a sua produção.

Essa manobra, para Braverman, significou mais uma forma de “ajustamento” do

trabalhador, de caráter manipulativo, com a finalidade de assegurar a produção em

massa.

Logo,

a aclimatação aparente do trabalhador aos novos modos de produção surge da

destruição de todos os modos de vida, a contundência das barganhas salariais

que permitem certa maleabilidade dos costumeiros níveis de subsistência da

classe trabalhadora, o emaranhado da rede da vida capitalista moderna que

torna finalmente todos os outros meios de vida impossíveis. Mas por baixo

dessa aparente habituação continua a hostilidade dos trabalhadores às formas

degeneradas de trabalho a que são obrigados, como uma corrente subterrânea

que abre caminho para a superfície quando as condições de emprego

permitem, ou quando a tendência capitalista a maior intensidade de trabalho

ultrapassa os limites da capacidade física e mental. Renova-se em gerações

sucessivas, exprime-se no incontido sarcasmo e repulsa que grandes massas

de trabalhadores sentem por seu trabalho, e vem à tona repetidamente como

um problema social exigente de solução. (BRAVERMAN, 1978, p. 133-134).

Para Harvey, o que havia de novo em Ford (e que distinguia o fordismo do

taylorismo) era sua perspectiva de combinar uma produção em massa com o consumo

de massa; isto significava “um novo sistema de reprodução da força de trabalho, uma

nova política de controle e gerência do trabalho, uma nova estética e uma nova

psicologia, em suma, um novo tipo de sociedade democrática, racionalizada, moderna e

populista” (2011, p. 121). Behring & Boschetti (2011) afirmam que essa crença na

articulação entre uma produção em massa e um consumo em massa, como uma forma

de sustentação do modo de produção capitalista sem muitos abalos econômicos, para

Ford, sugeria o controle sobre o modo de vida e de consumo da classe trabalhadora.

Portanto, entende-se essa nova relação social, o fordismo, como um esforço de

produção voltado à criação de um novo trabalhador inserido numa nova sociedade. Para

tanto, em 1916, Ford contratou assistentes sociais para estabelecer esse controle, tendo

em vista gerar nos trabalhadores padrões de consumo compatíveis com a produção

capitalista em curso.

O método fordista de produção alastrou-se tanto na produção automobilística

como nas outras áreas de produção capitalista. Ele se tornou referência, principalmente

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no período após a Segunda Guerra Mundial. Segundo Harvey (2011), isto se deve a um

conjunto de decisões individuais, corporativas, institucionais e estatais, em resposta às

tendências de crise do capitalismo, sobretudo à Grande Depressão da década de 30. Foi

preciso um forte abalo nas relações de classe para que tal desenvolvimento se

processasse, especialmente na Europa, incluindo a adequação do Estado às exigências

do sistema do capital, com base nas orientações keynesianas. As formas de controle do

trabalho taylorista/fordista juntamente com a ação política do Estado keynesiano,

durante as chamadas “três décadas gloriosas” (1940-1970), permitiram tanto a

recuperação da crise econômica quanto o aumento da produtividade do capital em

patamares nunca antes alcançados.

O keynesianismo e o fordismo, associados, constituíram os pilares do processo

expansionista do desenvolvimento capitalista no pós-1945. Nessa época, segundo

Behring & Boschetti (2011), houve acordos coletivos em torno dos ganhos de

produtividade e da expansão dos direitos sociais, viabilizados pelas políticas sociais,

especialmente em alguns países de capitalismo central onde vigorou o denominado

Welfare State (ou Estado de Bem-Estar Social). Esses ganhos voltados à área social só

foram possíveis devido ao crescimento do padrão de acumulação capitalista da época,

não só com a exploração da força de trabalho nos países de capitalismo central, mas

também, e principalmente, nos países de capitalismo periférico.

Lessa chama atenção para a questão de que existe, em algumas teorizações,

“uma certa idealização do Estado de Bem-Estar Social que o converte em argumento

empírico a favor da tese de que no pós-guerra teríamos assistido a uma profunda

transformação nas classes sociais e, portanto, na relação do Estado com a sociedade

civil”. E que no centro dessas transformações estaria presente “o desaparecimento da

classe operária (quer por sua fusão como os assalariados, quer pelo seu desaparecimento

puro e simples) e, portanto, a falência das categorias marxianas de revolução e de

socialismo”. Isto porque, a partir do momento em que o Estado passa a atender a uma

pequena demanda da classe trabalhadora, ele teria abandonado seu caráter de classe, e

assim poderia ser disputado na sociedade entre as classes sociais em questão. Isso

disseminou a ideia de que na transição ao socialismo ocorreria um processo de

transformação da sociedade, no qual os trabalhadores tomariam o poder político,

convertendo-o em instrumento não mais da classe burguesa, e sim da classe

trabalhadora (LESSA, 2011, p. 278-279).

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O que muitos estudiosos não perceberam é que o Estado de Bem-Estar Social

foi apenas mais uma forma de atuação assumida pelo Estado burguês capturado pela

lógica dos monopólios para auxiliar no processo de reprodução sociometabólico do

capital. Tanto isso é verdade que, no período posterior à Segunda Guerra Mundial, o

que se observou foi um cenário marcado por profundas derrotas do movimento operário,

a exemplo do que aconteceu na Espanha, França, Itália e Grécia. Em toda a Europa os

movimentos revolucionários dos trabalhadores foram sufocados pela força do Estado

moderno, e desde então os países europeus nunca mais conheceram qualquer levante

revolucionário digno de tal importância.

Para Lessa, fica claro que:

Os anos que se iniciam com o fim da II Guerra Mundial marcam uma derrota

importante do movimento operário e não uma ascensão deste. As revoluções

ocorreram em países coloniais ou semicoloniais e foram muito mais

movimentos de libertação nacional que revoluções socialistas. Na avaliação

do Estado de Bem-Estar Social, este é o primeiro dos mitos a serem

reconsiderados. (2011, p. 279).

Cabe destacar que essa e outras argumentações que defendem a existência do

denominado Estado de Bem-Estar Social na sociedade moderna serão consideradas no

item seguinte deste capítulo, quando, com base em Lessa (2013), se analisar a função

social dessa forma de Estado.

No contexto do pós-guerra, o fenômeno da superprodução apareceu como uma

ameaça ao capitalismo internacional. Nesse sentido, Lessa (2011) faz referência a três

pontos que foram relevantes neste processo: o primeiro deles corresponde ao consumo

destrutivo promovido pela guerra, o qual já não era mais necessário; assim, a produção

em grande escala dos produtos direcionados à guerra teve suas demandas reduzidas do

dia para a noite. O segundo refere-se à propaganda contra o desperdício durante a

guerra, o que promoveu hábitos de consumo concentrados na economia de gastos. E o

terceiro diz respeito à volta dos soldados a vida civil, uma massa de trabalhadores para

os quais não havia perspectiva de emprego. Neste cenário, o desemprego era um

impedimento a mais para o desenvolvimento do consumo em escala ampliada.

De acordo com Lessa, a alternativa apontada passou a ser a organização de um

mercado capaz de um consumo cada vez mais elevado. É para atender a esta

necessidade do mercado que se criou o american way of life, nos Estados Unidos,

elevado a modelo mundial, um tipo de “circulo vicioso” no qual

produz-se em larga escala, reduzindo o preço final unitário de cada produto.

A queda do preço eleva o consumo, o que alavanca a produção.

Intensificando-se a produção em massa (com a intensificação correspondente

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do fordismo e do taylorismo no interior das fábricas e escritórios), o preço cai

ainda mais, e o consumo se elevaria novamente. Com isso uma nova rodada

de aumento da produção seria possível. (LESSA, 2011, p. 281).

A necessidade do sistema no aumento do consumo de mercadorias demandava

uma população com maior poder aquisitivo e com tempo disponível para consumir, ou

seja, fora do ambiente de trabalho. Para tanto, “era preciso, pois, aumentar salários,

diminuir jornadas de trabalho, ampliar as férias anuais etc. É aqui que entram as grandes

estruturas sindicais dos trabalhadores”. Para Lessa (2011), a história particular do

movimento sindical em cada um dos países capitalistas centrais fez com que o

desenvolvimento social ocorresse de forma variável.

Mas, apesar dessas diferenças, no período pós-Segunda Guerra o que se

observa é

o desenvolvimento de centrais sindicais domesticadas que aceitavam exercer

a função que lhes destinava o sistema do capital: disciplinar a força de

trabalho através de acordos coletivos de trabalho e, por outro lado,

possibilitar a sintonia no aumento dos salários e na regulamentação dos

processos de trabalho entre as diferentes plantas de um mesmo ramo

industrial. (LESSA, 2011, p. 281-282).

O Estado de Bem-Estar Social, ao assim associar-se ao modo de produzir

fordista no decorrer dos “30 anos dourados” do capital, além de proporcionar as

condições adequadas para a ampliação da exploração da força de trabalho com maior

extração de mais-valia, mediada pela relação entre mais-valia absoluta e relativa,

acabou por cindir a entre a chamada aristocracia operária, constituída por aqueles

trabalhadores mais especializados, mais bem remunerados, que participam ativamente

do mercado, organizados nos maiores e mais influentes sindicatos, que produzem

também a mais-valia relativa, e os mais explorados, a saber, o restante dos

trabalhadores. Esse movimento acaba aprofundando as divisões internas dos

trabalhadores, enfraquecendo-os no confronto com o capital e com o Estado burguês, o

que dificulta ainda mais a luta operária de resistência à ordem social vigente, pois uma

parcela do operariado (a aristocracia), por ter melhorado de condições de vida e de

trabalho, auxilia na reprodução do sistema do capital e apoia a burguesia no seu

processo de exploração.

De acordo com Netto, no período monopolista do capital, a intervenção do

Estado na economia “ultrapassa a fronteira de garantidor da propriedade privada dos

meios de produção burgueses (...)”. A sua atuação passa a incidir na organização e na

dinâmica econômica, de maneira contínua e sistemática. Nessa nova fase do

desenvolvimento capitalista, as funções políticas do Estado se imbricam com as suas

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funções econômicas. Assim, a necessidade de uma nova modalidade intervencionista

para o Estado decorre da demanda que o capitalismo monopolista tem de um vetor

extraeconômico, com a função de assegurar seus objetivos econômicos, ou seja, os

superlucros do capital; para tanto, enquanto poder político e econômico, o Estado passa

a realizar outras funções (NETTO, 1992, p. 21).

Netto (1992) divide as funções econômicas do Estado em atribuições diretas e

indiretas. Nas funções econômicas diretas, o Estado passou a se inserir como

empresário nos setores básicos não rentáveis; a assumir o controle de empresas

capitalistas em dificuldades (com sua estatização); a oferecer subsídios diretos aos

monopólios via fundo público e a lhes assegurar altas taxas de lucros. Já nas funções

econômicas indiretas, essa intervenção está mais relacionada às encomendas/compras

do Estado aos grupos monopolistas; aos investimentos públicos em meios de transporte

e infraestrutura; à preparação institucional da força de trabalho solicitada pelos

monopólios; e aos gastos com investigação e pesquisa. Assim, em função dos

monopólios, o Estado atua mais expressivamente no terreno estratégico, onde se

fundem as atribuições econômicas diretas e indiretas, através de planos e projetos de

médio e longo prazo, operando como um administrador dos ciclos de crise. O Estado

age como instrumento de organização da economia capitalista.

Segundo Netto (1992), para manter o processo de reprodução ampliado do

capital o Estado é obrigado não só a assegurar continuamente a reprodução e a

manutenção da força de trabalho, mas a regular os níveis de consumo, assim como a

criar mecanismos diversos que garantam a sua mobilização e alocação em função das

necessidades e projetos do monopólio. Articulado às funções econômicas e políticas do

Estado no capitalismo dos monopólios, para exercer a sua função no plano econômico,

na condição de “comitê executivo” da burguesia monopolista, ele deve buscar

legitimidade política na incorporação de demandas sociopolíticas, mediante a

generalização e a institucionalização de direitos civis e sociais. Em outras palavras, isto

lhe permite organizar um consenso e assegurar o desenvolvimento de suas atividades

para a manutenção da reprodução do capital. É, portanto, nesse momento do

desenvolvimento capitalista que se cria a falsa ideia de um “Estado social” como

mediador de interesses das classes sociais em conflito.

Daí se pode compreender que as respostas positivas às demandas da classe

trabalhadora, por parte do Estado keynesiano, no contexto do capitalismo monopolista,

são também funcionais a esta fase do sistema do capital, porquanto viabilizam a garantia

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dos superlucros dos monopólios. Cabe destacar que essas respostas são dadas devido ao

processo de mobilização e a muita luta do conjunto dos trabalhadores. Esse processo,

em que o Estado capturado pela lógica dos monopólios busca legitimidade política, por

meio do qual responde às demandas da classe trabalhadora, é tensionado pelas

exigências da ordem monopólica e pelos antagonismos criados no seio da própria

sociabilidade capitalista.

É nesse sentido, conforme Netto, que “a transição ao capitalismo dos

monopólios realizou-se paralelamente a um salto organizativo nas lutas do proletariado

e do conjunto dos trabalhadores (...)”. Quando entende que as demandas econômico-

sociais e políticas imediatas postas por este processo reivindicatório não

vulnerabilizaram a estrutura econômica da ordem monopólica, mas devem ser por ele

absorvidas, o poder político demonstra que a sua legitimação é plenamente suportável

pelo Estado. E que no marco do capitalismo monopolista não só é suportável, como

também necessário, para que ele desempenhe a sua função econômica.

É no processo de reprodução do capital em sua fase monopolista, ao longo do

século XX, que se encontra o solo fundante da noção de Estado de Bem-Estar Social.

Ele surge a partir das necessidades de transformação da relação de produção de mais-

valia, na combinação de uma forma superior da mais-valia absoluta com a relativa,

articulado ao desenvolvimento tecnológico e à gerência cientifica do trabalho, o

taylorismo/fordismo. Essas transformações exigiram uma nova forma de intervenção

estatal, o Estado keynesiano, que passa a atuar diretamente nas relações econômicas, na

condição de administrador e garantidor das condições necessárias à reprodução do

sistema do capital.

Observou-se também que as alterações sofridas durante o desenvolvimento

deste século na relação do Estado com sua base econômica resultaram na formação da

aristocracia operária, gerando as estruturas sindicais e partidárias, totalmente

reformistas e contrarrevolucionárias. Foi através dessas transformações da base material

da reprodução social que a noção de Estado de Bem-Estar Social pôde surgir e se

desenvolver na sociedade moderna, como mais uma forma de controle do capital sobre

o trabalho. Portanto, entende-se que o Estado não só auxilia o capital na esfera jurídico-

legal, mas também na reprodução material da sociedade capitalista.

Enfoca-se, a seguir, o processo de generalização do Estado de Bem-Estar

Social. Essa noção se apresenta, em Lessa (2013), como um mito, um conceito criado

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para capturar o “estado de espírito de uma época” em particular – o período do

capitalismo monopolista entre os anos de 1945 a 1975.

3.2 O Estado de Bem-Estar Social: uma forma de controle do sistema do capital

No item anterior, abordaram-se os processos históricos do período que marca o

auge do desenvolvimento capitalista e que deram origem ao Estado de Bem-Estar

Social. Agora, passa-se a analisar a função social que o denominado Estado de Bem-

Estar Social exerce na sociedade moderna, buscando compreender como sua

consolidação e desenvolvimento foram fundamentais à manutenção do sistema do

capital e ao seu controle no capitalismo dos monopólios.

Em seu livro Capital e Estado de Bem–Estar: o caráter de classe das políticas

públicas, Lessa (2013), no capítulo V, inicia com a seguinte pergunta: “O que é,

mesmo, o Estado de Bem-Estar Social?”. Segundo as definições dominantes, seria “o

Estado que, por inspiração keynesiana, ampliou-se para abrigar em seu interior as

necessidades dos trabalhadores”. Na contramão dos Estados que lhe antecederam ao

longo do desenvolvimento capitalista, “o Estado de Bem-Estar se caracteriza por uma

nova modalidade, mais humana e mais ética, de intervenção estatal na economia com a

utilização em larga escala de políticas públicas voltadas aos mais carentes”, também

denominado por seus defensores como “Estado Social”, “Estado Providência”, “Estado

desmercadorizador ou ético” etc. Contudo, para o autor, tais definições não possuem

nenhuma correspondência com a realidade objetiva, ou seja, com a história da evolução

do capital (LESSA, 2013, p. 175).

Com base nesse critério de argumentação, os Estados de Bem-Estar Social

seriam aqueles que empregaram as políticas públicas com maior intensidade. Lessa

ironiza ao afirmar que às mais típicas expressões dessa forma de Estado

corresponderiam “os da Alemanha nazista e da União Soviética”, uma vez que nesses

países “as políticas públicas foram empregadas com uma universalidade e generalidade

que nunca antes outro país jamais conheceu”. Porém, ao se comparar tais políticas,

observa-se que o Estado soviético com suas demanda direcionadas aos “mais carentes”

nem de longe correspondeu a qualquer política desenvolvida pelos chamados Estados de

Bem-Estar Social; da mesma forma, o Estado nazista com “seus programas de geração

de empregos, educação e formação dos trabalhadores, aposentadorias e pensões, de

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construção de moradias etc.”, e também os programas governamentais da sociedade

moderna, “como o New Deal ou as iniciativas tomadas pelos governos da França e da

Inglaterra”. Cabe destacar que, no curso da história, estas iniciativas na área social se

tornam bem-sucedidas no sentido da propagação tanto do regime soviético quanto do

regime nazista (LESSA, 2013, p. 175).

Com base no mesmo critério de análise, conforme Lessa, para alguns autores,

também o Estado brasileiro, “sob a ditadura militar dos anos de 1960-1980, teria

passado por um processo de ‘consolidação do Estado de Bem-Estar’”. Segundo outros,

isso só teria acontecido com a Constituição de 1988; através da defesa de direitos

universais, o Brasil estaria dando os primeiros passos na direção de um Estado de Bem-

Estar Social. Para Lessa, buscar definir “o Estado de Bem-Estar pela adoção de políticas

públicas o torna tão amplo e abrangente que englobaria praticamente todos os Estados

do planeta, já que a grande maioria, em algum momento do século XX, implementou

políticas públicas”; os países acima citados seriam apenas alguns exemplos (LESSA,

2013, p. 175-176).

A esse critério foram acrescentados outros dois para qualificar os Estados

como de “Bem-Estar Social”, e assim excluir dessa definição alguns países, a exemplo

de Alemanha, União Soviética, Brasil, Argentina, entre outros. Em primeiro lugar,

precisariam ser “Estados democráticos, geridos por uma economia de livre mercado e,

em segundo, teriam existido no período posterior à Segunda Guerra Mundial”, nos “30

anos dourados” do capital.

Do mesmo modo, Lessa aponta problemas para ambos os critérios de

definição, quando questiona os seguintes fatos da história do desenvolvimento da

sociedade capitalista:

Podemos definir como democráticos Estados como os da França e dos

Estados Unidos, que discriminavam os argelinos e os negros,

respectivamente, de suas cidadanias? Poderiam ser democráticos Estados que

favoreceram com suas políticas urbanas a especulação imobiliária e

condenaram milhões de seus cidadãos aos guetos, slums, cortiços e favelas de

todos os tipos? Que financiaram a transformação da saúde em big business

nas mãos da indústria farmacêutica e afins? Que converteram a educação em

mercado consumidor de livros de outros materiais didáticos para maior glória

das grandes corporações? Que organizaram a sala de aula como centro de

lavagem cerebral e doutrinação de suas juventudes? Seriam democráticas as

ações da Inglaterra na Irlanda, dos EUA no Vietnã, da França na Indochina e

na Argélia, em uma lista de intervenções imperialistas que poderia se alongar

por algumas páginas? Em que definição de democracia seriam aceitáveis

Estados que, durante os “30 anos dourados”, desenvolveram, empregaram e

disseminaram o uso da clean torture, como a França, os Estados Unidos, a

Inglaterra e a Alemanha? Deportar milhões de suas crianças e adolescentes às

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ex-colônias para servirem de mão de obra escrava qualifica um Estado como

democrático? (LESSA, 2013, p. 176).

Cabe a seguinte indagação: o que é a democracia? E o que torna um Estado

democrático? Para os autores que defendem os Estados de Bem-Estar Social como

democráticos, Lessa aponta duas alternativas, a nosso ver, corretas: eles “devem

redefinir a democracia para torná-la compatível com a tortura, com as políticas públicas

a serviço da ampliação da lucratividade do capital e com o imperialismo, ou, então, não

mais definir como democráticos os Estados de Bem-Estar” (LESSA, 2013, p. 176).

No capítulo II do seu livro, Lessa faz um relato bem detalhado acerca da

utilização pelo capital das “políticas públicas voltadas à saúde, à educação, à igualdade

racial e aos direitos civis, aos migrantes, às crianças e adolescentes”, implementadas ao

longo dos “30 anos dourados” de pleno desenvolvimento econômico do capitalismo, e

também anteriores e posteriores a tal período, em países tidos como típicas expressões

dos Estados de Bem-Estar Social. Nele, todos os levantamentos e dados apresentados

pelo autor sobre as políticas adotadas por essa forma de Estados sugerem o predomínio

de uma atuação voltada prioritariamente para a garantia do lucro e da estabilidade do

sistema do capital (LESSA, 2013, p. 35).

Em segundo lugar, o aparecimento dos Estados de Bem-Estar Social estaria

relacionado ao período posterior à Segunda Guerra Mundial (1945). De acordo com

Lessa, o critério apresentado teria a mesma complexidade dos problemas anteriormente

citados. O que se observa durante o período entreguerras (1914-1945), em países como

“a França, os Estados Unidos, a Austrália, a Nova Zelândia, o Uruguai, a Costa Rica,

além da Suécia, da URSS, da Alemanha, entre muitos outros”, é o emprego das mais

variadas políticas na “área da seguridade, da educação, da moradia, para a infância etc.”,

que na concepção de alguns estudiosos corresponderiam a típicas políticas da fase de

pleno desenvolvimento econômico do capitalismo (LESSA, 2013, p. 176-177).

Uma breve análise das políticas desenvolvidas na área social, no contexto que

antecede à década de 1940, será suficiente para demonstrar que tais políticas coincidem

com as ditas típicas expressões dos chamados Estados de Bem-Estar Social, e que sua

existência esta diretamente vinculada ao processo expansionista do capital. Avelãs

Nunes afirma que “as primeiras manifestações do Estado social poderão assinalar-se no

período imediatamente posterior à Primeira Guerra Mundial (...)” (AVELÃS NUNES

apud LESSA, 2013, p. 177).

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De acordo com Lessa, a história da Inglaterra demonstra que as primeiras

iniciativas de política pública datam das primeiras Leis dos Pobres, em 1601, um

processo que antecede à Revolução Industrial. A entrada no século XIX, por sua vez, foi

palco de inúmeras intervenções do Estado Inglês na direção do “bem-estar” social, cuja

finalidade principal era garantir uma atividade comercial livre de qualquer entrave,

como “o Factory Act (1844), o Ten Hours Act (1847) e medidas voltadas ao saneamento

básico, moradia etc.”. O novo cenário que se apresentava na Inglaterra, no final do

século XIX, gerado pelo crescimento da Alemanha de Bismarck, com avanços na área

social e de intervenção do poder político, aumentou “a pressão pela busca de uma maior

eficiência e maior estabilidade da economia mediante uma intervenção estatal que

centralizasse e potencializasse os esforços localizados na reprodução da força de

trabalho, na sua educação e treinamento profissional”. Todo esse movimento foi

acompanhado por grandes manifestações trabalhistas durante a década de 1880, em

Londres, na busca por melhores condições de trabalho (LESSA, 2013, p. 177).

Na Inglaterra, a necessidade por um Estado mais interventor na esfera

econômica foi ampliada consideravelmente, segundo Lessa (2013), “primeiro pela

Guerra dos Boers (1899-1902) e, depois, pela Grande Guerra de 1914-1918”. Para o

autor, após a Primeira Guerra Mundial surgem as primeiras iniciativas na área de

seguridade social, no controle do preço dos imóveis alugados, seguidas pela redução do

desemprego e pelo aumento dos salários dos trabalhadores envolvidos na produção

bélica; ocorre, consequentemente, uma maior acumulação de capitais. Isso levou ao

aumento da pressão por parte da burguesia para que o Estado rompesse com a postura

liberal clássica, que buscava limitar sua atuação política à área de manutenção da ordem

pública, impedindo que o governo interferisse na livre atividade econômica dos

indivíduos, como visto em Laski (1973), a favor de um Estado mais intervencionista

(LESSA, 2013, p. 177).

Logo depois de ser colonizada pelos ingleses, a Austrália, no século XIX, ainda

segundo Lessa, devido ao seu processo de industrialização e “graças à destruição da

civilização aborígine e à exploração dos enormes recursos naturais, era a ‘nação mais

rica do mundo’”. Sua riqueza era superior à do Reino Unido, EUA, Canadá, França e

Alemanha. A insatisfação da classe trabalhadora se intensificou ainda mais com este

desenvolvimento, e os problemas de uma população que envelhecia rapidamente, ambos

associados a uma economia carente de força de trabalho especializada para a indústria.

No século XX, a Austrália passa a adotar políticas para os idosos, pensões para os

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inválidos e cria uma taxa de incentivo à natalidade. Antes mesmo da Primeira Grande

Guerra, as políticas públicas implementadas já tinham formado a base do que seria o seu

Estado de Bem-Estar Social. De acordo com Lessa, a Primeira Guerra, a Grande

Depressão de 1929 e a Segunda Guerra Mundial provocaram intensas modificações na

relação do Estado com o setor econômico. Na Austrália, o período entre 1930 a 1945

representou um aumento nos custos do sistema de seguridade social, que além de

promover os benefícios aos cidadãos, visava garantir estabilidade econômica (LESSA,

2013, p. 178).

No Canadá, Lessa ressalta que “o processo de industrialização, associado a

uma forte tradição presbiteriana, conduziu à adoção de um ‘complexo processo de

financiamento da educação pública’”, já no final do século XIX. Com a greve dos

gráficos, em 1872, surge uma legislação federal sobre a regulamentação das instituições

sindicais e, uma década depois, as primeiras tentativas para regulamentar o trabalho

infantil e feminino. No século XX, mais exatamente em 1914, surge em todo o país “o

Workman’s Compensation Act, que indenizava os trabalhadores acidentados com um

pagamento mensal em dinheiro”. Com o fim da Primeira Guerra Mundial, o que se

observou foi a efetivação de “numerosos programas de assistência social para os

veteranos, que lançaram as bases para a expansão do Estado de Bem-Estar ao setor

civil”, principalmente nas áreas de educação, saúde, desemprego e assistência. Na

década de 1940, com base no “Relatório Marshall”, o Estado canadense evoluiu para o

que Grahan, citado por Lessa, chama de “Estado de Bem-Estar institucional”, sob o qual

“as instituições de bem-estar se tornaram a defesa primária contra as adversidades, e o

Estado é claramente o instrumento para responder aos riscos universais ao bem-estar

humano, característicos de uma sociedade industrial” (GRAHAN apud LESSA, 2013,

p. 179).

De acordo com Lessa, na Suécia, as raízes históricas do Estado de Bem-Estar

Social datam do final do século XIX. Assim como no Canadá, seu desenvolvimento

econômico é intensificado pelo processo de industrialização na passagem ao século XX.

Com um passado bem particular por não ter sido conquistada pelos romanos, não

conheceu o modo de produção feudal e, muito cedo, tornou-se uma monarquia. Até

hoje, a riqueza da Suécia encontra-se nas mãos de duas dezenas de famílias que

dominam e centralizam o poder político e econômico do país. “Esta base social

possibilitou que um governo socialista se mantivesse no poder, do final da Segunda

Guerra Mundial até 1976, com base em uma sólida aliança entre o grande capital e os

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grandes sindicatos dos trabalhadores”. Ao final do século XIX, “a aliança articulada por

Bismarck entre as classes dominantes da Alemanha teve forte impacto na Suécia, que

passou a adotar uma política semelhante nos primeiros anos de 1890”. Desde então,

muitas foram as iniciativas na área social de proteção aos acidentes no trabalho, com

destaque para o sistema de aposentadoria geral, o primeiro do mundo. O seguro

desemprego foi criado, embora não mantido pelo Estado, mas pelos sindicatos e pelas

centrais sindicais (LESSA, 2013, p. 179-180).

Hort afirma que não é verdadeira a tese de que as políticas públicas tenham se

generalizado somente nas décadas de 1930 ou 1940, tampouco, conforme acrescenta

Lessa, que sejam particulares ao período posterior à Segunda Guerra Mundial. A Suécia

é mais uma prova de que tais políticas públicas estavam ganhando forma desde o final

do século XIX até o início do século XX, na direção do que seria denominado Estado de

Bem-Estar Social (HORT apud LESSA, 2013, p. 180).

No caso da França, segundo Lessa, o processo de formação das políticas

públicas já se fazia presente desde o final do século XIX. No entanto, “foram as

consequências da Primeira Guerra Mundial que lançaram a França em direção ao que

viria a ser o seu Estado de Bem-Estar”. Os intensos processos de industrialização,

indispensáveis ao período de guerra, levaram “à criação de órgãos estatais de gestão

econômica, em íntima colaboração com as grandes organizações patronais”. A partir de

1914, o cenário francês foi marcado pelo grande deslocamento de trabalhadores para a

guerra, a carência de mão de obra qualificada para a indústria, a entrada das mulheres

no mercado de trabalho e o processo de racionalização do fordismo. Tudo isso

colaborou para “o crescimento do movimento grevista [dos trabalhadores] do final da

Primeira Guerra até 1919 e para a constituição de uma aristocracia operária que se

diferenciava cada vez mais da massa dos proletários”. Conforme o autor, os

investimentos do Estado na guerra produziam altos índices inflacionários; era necessário

evitar que os altos salários reivindicados pela classe trabalhadora conduzissem a uma

espiral inflacionária. Esse entendimento levou à divisão do salário, por meio de acordos

entre patrões e empregados (LESSA, 2013, p. 110).

Com o impasse do movimento grevista dos trabalhadores, o Estado assume a

responsabilidade de administrar a seguridade social. Nesse processo, Lessa destaca que

“a burguesia, que sempre lutara para manter sua autonomia, aceitou esta intervenção

como um mal inevitável”, no qual “os patrões passaram a aceitar qualquer intervenção

estatal – ainda que ao preço de perderem o controle sobre os recursos das caixas de

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compensação e não mais poderem contar com os benefícios familiares como

instrumento privado de controle do trabalho”. Menos mal que a perda de sua

estabilidade financeira. Já as instituições sindicais contavam com uma intervenção por

parte do Estado mais favorável aos interesses da classe trabalhadora; o Estado atuava

como um mediador na relação entre patrões e empregados (LESSA, 2013, p. 118).

As teses keynesianas surgem no período pós-guerra, principalmente aquelas

que defendiam uma maior intervenção estatal, com “a proposta de um sistema

centralizado e obrigatório para todos, a ser custeado pelos empresários, trabalhadores e

pela collectivité”. Nesse momento, conforme Lessa, as perspectivas de direita e

esquerda se uniam, na crença de que “um ‘Estado dirigista’ seria imprescindível não

apenas para a reorganização da França, mas também para garantir ganhos aos

trabalhadores”. De representantes da classe operária, os sindicatos passam a

administradores do sistema, através dos recursos destinados às políticas de bem-estar

social. Na prática, “são corresponsáveis pela coordenação entre as políticas públicas e as

políticas fiscais e monetárias do pós-guerra”. Dessa forma, estava consolidada na

França a relação de coparticipação dos sindicatos na administração da força de trabalho.

O que ocorreu na França após a Segunda Guerra Mundial não foi muito além do

processo de manter e estender a estrutura de serviços que já havia sido estabelecida

desde o final do século XIX (LESSA, 2013, p. 121).

No panorama histórico apresentado observa-se como, no final do século XIX e

no início do século XX, os países de capitalismo avançados e também os países da

periferia do sistema do capital passaram a adotar com certa regularidade a prática da

intervenção estatal por meio das políticas públicas. As ações do Estado no setor da

indústria bélica, nas obras de infraestrutura e nas áreas trabalhista e social estavam

diretamente associadas ao desenvolvimento econômico. De acordo com Lessa (2013),

as peculiaridades históricas de cada país não devem ser ignoradas, tampouco devem

ocultar o fato de que muito antes da Segunda Grande Guerra (1940) já existia uma

tendência a uma maior intervenção do Estado no setor econômico.

A nosso ver, é essa ausência de uma análise crítica de como se processou

historicamente a noção de Estado de Bem-Estar Social, ao longo do desenvolvimento

capitalista, que leva a maior parte da bibliografia acerca desse Estado a reproduzir uma

visão de mundo conservadora, que tem sua origem no pós-Segunda Guerra Mundial.

Entre muitos autores, Lessa toma como exemplo dois: Esping-Andersen e Ferran Coll.

O primeiro, muito citado no Brasil; o segundo, mais frequente no debate latino-

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americano. O que os dois têm em comum, no trato das políticas do Estado de Bem-Estar

Social, são três pontos: 1) ambos afirmam a existência do Estado de Bem-Estar Social;

2) postulam que essa forma de Estado seria um fenômeno novo na história da sociedade

capitalista, o qual promoveria uma “desmercadorização”; e 3) seria um avanço no

sentido da “democratização” pela aplicação das políticas públicas de caráter universal.

Para muitos estudiosos, esse modelo de Estado, quando levado às últimas

consequências, serve de mediação para a transição ao socialismo, porquanto o Estado

teria deixado de servir única e exclusivamente à classe burguesa e estaria a incorporar as

demandas da classe trabalhadora (LESSA, 2013, p. 17).

Em seu livro, Lessa cita o texto de Esping-Andersen, intitulado The three

worlds of Welfare Capitalism de 1997. Como a maior parte da bibliografia, este também

propõe um novo critério para avaliar os “30 anos dourados” do capital. O critério

proposto por esse autor é o da “desmercadorização33”, que corresponde ao ato de se

desfazer da mercadoria como categoria mais importante da sociedade. Segundo Esping-

Andersen, “o que caracterizaria o Estado de Bem-Estar seria uma radical virada na

história das sociedades capitalistas”, na qual “o Estado passaria a se preocupar com a

produção e a distribuição do bem-estar”.

Para o referido autor, tal fenômeno teria as seguintes características: no setor

econômico, representou a autonomia do mercado e estabeleceu o emprego como um

direito do cidadão; na área moral, defendeu as ideias de justiça social, solidariedade e

universalidade; e no âmbito político, o desenvolvimento do Estado de Bem-Estar Social

fez parte de um projeto de construção nacional, sustentado na democracia liberal, contra

o fascismo e o bolchevismo. Assim, os novos princípios estabelecidos pelo Estado de

Bem-Estar Social teriam possibilitado uma nova capacidade de organização da

sociedade capitalista (ESPING-ANDERSEN apud LESSA, 2013, p. 12).

O segundo autor citado por Lessa é Ferran Requejo Coll, que em seu texto Las

democracias, de 2008, também propõe uma nova categoria para analisar o Estado de

Bem-Estar Social. A categoria proposta pelo autor é a da “democratização”; parte da

análise do surgimento da democracia para explicar como o Estado de Bem-Estar Social

se desenvolveu na sociedade capitalista mediante as políticas públicas. Define tal forma

33 Para Esping-Andersen, desmercadorizar significa a capacidade de diminuir a condição do cidadão enquanto

mercadoria. Ou seja, o processo de “desmercadorização ocorre quando um serviço é prestado como uma questão de

direitos e quando uma pessoa pode manter um padrão de vida sem depender do mercado”. (ESPING-ANDERSEN

apud LESSA, 2013, p. 13).

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de Estado como “estruturas políticas vigentes nos sistemas democráticos de tradição

liberal a partir, sobretudo, da Segunda Guerra Mundial” (LESSA, 2013, p. 15).

Para Coll, a sociedade atual seria uma evolução “pós-materialista” da

democracia, e o Estado de Bem-Estar Social teria sido “um elo entre o Estado da época

de Bismarck (que intervinha para ‘corrigir’ os excessos do mercado) e o Estado

contemporâneo (o ‘pós-materialista’), e se caracterizaria pela busca da racionalidade

‘funcional do sistema’ do capital”. Dessa forma, as necessidades por uma dimensão

social teriam imposto uma eliminação da relação de dependência dos cidadãos aos

limites socioeconômicos do capital, pois sua própria lógica democrática precisa de uma

estrutura para a sua realização (COLL apud LESSA, 2013, p. 17).

Quanto à produção da esquerda, Lessa chama atenção para textos que, como o

de Corrigan e Leonard, Social Work Practice under capitalism – a Marxist Approaches,

de 1978, não conseguem estabelecer uma análise mais aprofundada acerca da noção de

Estado de Bem-Estar Social. Nele, os autores postulam “o tipo universal de Estado nas

sociedades capitalistas, sendo este o Estado de Bem-Estar”. Conforme Lessa, ainda que

eles reconheçam em seu estudo que para Marx, Engels e Lênin o Estado é um

instrumento da classe economicamente dominante contra os interesses dos

trabalhadores. também defendem que na sociedade de capitalismo moderno teria

ocorrido uma ruptura histórica, na qual “o Estado de Bem-Estar seria a expressão da

luta dos trabalhadores e teria adquirido tal autonomia em face do capital que poderia

representar os trabalhadores contra o capitalismo” (LESSA, 2013, p. 181).

Lessa entende que qualquer posicionamento a favor do Estado de Bem-Estar

Social, com base nessa argumentação, impede toda a potência crítica dos autores, pois

tal análise não estabelece nenhuma relação com a realidade objetiva. Todas as tentativas

improdutivas de precisar uma definição acerca dessa forma de Estado, oriundas das

variadas vertentes teóricas, indicam que não se trata de uma falha no conceito, mas da

dificuldade em explicar “um complexo da reprodução social, o Estado, desvinculado do

seu solo fundante, a reprodução material da sociedade, a economia”. Ou seja, o

problema encontra-se em construir uma análise de um determinado complexo social

sem perder de vista a totalidade social (LESSA, 2013, p. 181).

Com base nos dados e argumentações apresentadas pelos defensores do Estado

de Bem-Estar Social34, percebe-se que, devido aos autores mencionados, a exemplo de

34 Tais argumentações encontram-se no Capítulo I do livro de Lessa (2013).

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Esping-Andersen e Ferran Coll, entre outros, ignorarem os elementos do

desenvolvimento capitalista na sua fase monopolista, tais produções teóricas tornam-se

frágeis em sua fundamentação e falseiam a realidade. Assim, os fatores históricos

analisados comprovam que durante as “três décadas gloriosas” do capitalismo, o assim

denominado “Estado social” não democratizou o acesso da classe trabalhadora à riqueza

socialmente produzida, tampouco as relações políticas; nem colaborou no sentido do

avanço da luta do conjunto dos trabalhadores em direção a uma nova forma de

organização da sociedade, a socialista.

No item anterior, foi visto como as modificações operadas na base material de

reprodução do sistema do capital constituem o solo social sobre o qual o Estado de

Bem-Estar Social surgiu e se desenvolveu na sociedade moderna, acompanhado pelas

concepções que defendem a existência dessa noção de Estado, articulada às políticas

públicas no período do pós-Segunda Guerra Mundial, seja pelo processo de

democratização, seja pela desmercadorização do Estado burguês.

De acordo com Lessa, na constituição e difusão do “mito” acerca do Estado de

Bem-Estar Social muitas foram as teses que contribuíram para justificar sua existência,

no interior do movimento dos trabalhadores e nos partidos revolucionários. Destas, o

autor destaca dois elementos de fundamental importância. O primeiro, as argumentações

que “(...) tendem a substituir a exploração do homem pelo homem como fundante do

Estado, por uma concepção de transição ao comunismo que se daria pela mediação do

Estado”. O segundo elemento é “a negação do caráter de classe do Estado”. Nessa

última concepção há uma ampla aceitação da tese de que o Estado teria abandonado a

sua função social de instituição repressiva, para se converter em expressão da correlação

de forças entre as classes sociais, deixando de ser o representante da classe

economicamente mais poderosa, para atender às demandas dos trabalhadores (LESSA,

2013, p. 201).

Na análise de Lessa, um exemplo evidenciado pela história, das consequências

operadas pela ausência de fundamento do Estado de Bem-Estar Social são as revoluções

socialistas do século passado, que postulavam a possibilidade de transição ao socialismo

pela mediação do Estado. Todas fracassaram no seu objetivo: a superação da sociedade

capitalista. Isto porque, “ao encontrarem uma vida isolada, nacional, para o

desenvolvimento das relações produtivas, as revoluções não puderam romper com o

capital” e, consequentemente, “não puderam prescindir da presença do Estado, órgão de

repressão dos trabalhadores indispensável ao trabalho alienado”.

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Portanto, compreende-se que neste horizonte de argumentações, toda e

qualquer possibilidade crítica da realidade concreta está eliminada, já que todas essas

experiências se limitaram a reproduzir as mesmas relações de exploração entre os

homens. Ou seja, todas as tentativas de superar a sociedade capitalista por meio do

Estado apenas resultaram fortalecimento deste (LESSA, 2013, p. 202).

Com relação à negação do caráter de classe do Estado, Lessa observa que essa

tese também contribuiu para a ampla aceitação das alegações de que o Estado teria se

transformado num instrumento de defesa dos interesses da classe trabalhadora. Essa

perspectiva, de maior influência entre os estudiosos de Gramsci, postula “uma dada

interpretação do que seria a hegemonia de classes e conduz a ilusões sobre a

possibilidade de um ‘controle social’ sobre o Estado e o capital”. Outros movimentos,

ainda, afirmam a ilusão de tomar o poder econômico sem necessariamente tomar o

Estado.

Sobre a formação do “mito” acerca do Estado de Bem-Estar Social, Lessa

destaca que um primeiro movimento teórico surge do cancelamento do caráter de classe

do Estado, no momento em que o converte em mediação para a superação da

sociabilidade capitalista. Por meio de direcionamentos teóricos distintos, “o stalinismo e

a social-democracia”, que tinham a mesma direção, defendem que a transição se daria

pela mediação do Estado, por ele tanto atender às demandas da burguesia quanto às dos

trabalhadores, a depender do contexto histórico.

Também surgem formulações teóricas que separam o Estado e o trabalho

alienado, teses que da antropologia à ciência política não estabelecem nenhuma relação

entre o Estado e a propriedade privada, e que ganham uma aparência de ciência,

vinculadas à ideia de que o Estado democrático seria o ponto de partida para a

efetivação da liberdade. Sob essas argumentações teóricas ainda hoje se desenvolvem,

com “papel importante, as inúmeras e várias teses que, da direita à esquerda, postulam

que a transição ao socialismo se fará por meio e através do Estado” (LESSA, 2013, p.

205).

De acordo com Lessa, os movimentos ideológicos de esquerda que defendem a

separação do “Estado de sua base material e a consequente negação do seu caráter de

classe se fazem presentes nas teses que afirmam como fundante do Estado de Bem-Estar

um ‘pacto’ ou ‘compromisso’ entre patrões e trabalhadores”. Esses autores buscam

justificar a existência do Estado de Bem-Estar Social através dessa perspectiva, tanto no

Brasil como em outros países.

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Na sociedade atual, segundo o autor, as teses que afirmam ser “o

neoliberalismo uma ‘contrarrevolução’ ou ‘contrarreforma’ se baseiam na hipótese de

que o ‘compromisso’ do passado estaria sendo revertido pelo conservadorismo que

substituiria o caráter progressista do ‘pacto’ ou das ‘reformas’”. Portanto, a sustentação

de um “compromisso” entre capital e trabalho como fundamento do Estado de Bem-

Estar Social produz graves consequências, tanto de caráter político como ideológico,

por meio da crença de o Estado ser capaz de superar as desigualdades sociais (LESSA,

2013, p. 206).

Para Lessa, está-se diante de uma contradição, pois “ao cancelarmos a gênese e

o desenvolvimento do trabalho alienado (trabalho explorado) como momento

predominante na gênese e desenvolvimento do Estado, torna-se impossível descrever a

evolução do Estado enquanto tal”. É através do trabalho, do intercâmbio material com a

natureza, na condição de produtor do conteúdo material da riqueza social, que o

processo de expropriação do trabalho excedente pela classe dominante impõe a criação

e a reprodução de um poder político, o Estado, para administrar as relações sociais

contraditórias.

Assim, percebe-se que as relações de opressão e exploração como fundamento

do Estado, presentes em toda a história do desenvolvimento das sociedades de classes,

hoje já não se aplicariam à transição ao socialismo. Como visto no primeiro capítulo,

com base nas contribuições de Mészáros, o Estado como estrutura de comando político

do capital é uma exigência absoluta à manutenção e reprodução do sistema

sociometabólico do capital. Assim, sem a eliminação radical das estruturas que

sustentam a sociedade capitalista, não se teria como alcançar outra forma de

sociabilidade humana (LESSA, 2013, p. 217).

Portanto, compreender o Estado, nas variadas formas que ele assume, ao longo

do desenvolvimento da sociabilidade capitalista, requer não perder de vista a base

material que o fundou: o trabalho explorado, produtor de mais-valia. No caso do mito

acerca do Estado de Bem-Estar Social, entender a função social que esta forma de

Estado representou significa,

em primeiro lugar, “explicar” como evolução democrática em direção à

justiça social e as repercussões na totalidade social das transformações na

reprodução do capital em sua fase monopolista. Acima de tudo, realçar os

“aspectos positivos” da necessidade de uma superior articulação entre as

mais-valias relativa e absoluta com a geração de um mercado consumidor

que inclui parte dos trabalhadores. Em segundo lugar, “explicar” a disposição

à colaboração com a burguesia da aristocracia operária e da pequena

burguesia como consequência do fato de que o Estado teria se ampliado de

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modo a perder seu caráter de classe e a se converter, sempre

contraditoriamente, em expressão da totalidade da sociedade. (LESSA, 2013,

p. 214).

Após essas explicações, parece claro que a possibilidade de investimentos por

parte do Estado na área social surge como estratégia do grande capital, num período

determinado do desenvolvimento capitalista, para acentuar ainda mais a relação de

exploração da classe trabalhadora, visando à acumulação e à expansão da lucratividade

do sistema sociometabólico do capital.

Em linhas gerais, o que se observa é um processo de continuidade do Estado

capitalista antes, durante e depois de 1945. O Estado permanece com a mesma função

social, como o responsável por administrar os interesses comuns de toda a classe

burguesa. O que se alterou foram as condições de reprodução do capital, pois a classe

economicamente dominante tem agora novas necessidades. Portanto, entender este

processo de universalização das políticas públicas, desde o final do século XIX até os

dias atuais, com o surgimento do Estado neoliberal, tendo por base países com

contextos históricos tão distintos, exige revelar que as perspectivas que limitam a

intervenção do Estado ao momento posterior à Segunda Guerra Mundial não

correspondem à realidade objetiva do desenvolvimento econômico da sociedade

capitalista.

A partir de uma ampla pesquisa e análise acerca do Estado de Bem-Estar

Social, Lessa (2013) chega à conclusão de que este Estado não passou de um mito, um

conceito criado para capturar um momento determinado do desenvolvimento do sistema

capitalista, entre os fins da Segunda Guerra Mundial e a década de 1970. Para o autor, o

que ocorreu de fato, no curso desse período, foi uma modificação na relação do Estado

burguês com sua base material; os sucessos propagados no curto prazo pelas medidas

econômicas, sindicais e políticas foram muito expressivos para a reprodução ampliada

do sistema do capital.

No nosso entendimento, o mito ao qual o autor faz referência refere-se à

imagem criada em torno do conceito reproduzido na sociedade moderna de “bem-estar

social”, de que o capital se utilizou para legitimar-se como se fosse o modelo de

produção mais adequado para a sociedade. Para tanto, cooptou os trabalhadores através

dos seus sindicatos e partidos e se beneficiou das condições favoráveis de crescimento

econômico a fim de criar novas formas de dominação no capitalismo.

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Assim, para Lessa, o Estado de Bem-Estar Social “não passa de uma falsa

categoria para explicar um fato criado pela própria teoria”, que busca na sua utilidade

prática e imediata, comprovar a sua veracidade na justificação da ordem social vigente.

Nessa direção, afirmar a existência do Estado de Bem-Estar Social, associado à ideia de

um “Estado ampliado” que provavelmente teria por suas características rompido com o

seu passado, o denominado “Estado restrito”, na democratização da sociedade, na

distribuição mais igualitária da riqueza e na desmercadorização da vida cotidiana, para,

somente depois, buscar compreender o que seria o Estado de Bem-Estar Social, não

condiz com a realidade concreta, dadas as constatações históricas acerca do período

denominado “os 30 anos dourados” do capital (LESSA, 2013, p. 184).

Esses fatores objetivos e ideológicos articulados foram decisivos para a

propagação do mito acerca do Estado de Bem-Estar Social. A partir deste estudo,

entende-se que também no contexto do capitalismo monopolista a função social do

Estado permaneceu a mesma, direcionada à defesa dos interesses e à manutenção do

modo de controle do sistema sociometabólico do capital.

Dessa forma, a noção de Estado Bem-Estar Social surge na sociedade sem

romper com o velho Estado. Como ao longo do século XX modificaram-se as

necessidades de reprodução do capital, mudaram também as formas de atuação do

Estado, que consistem na forma política de organização do sistema sociometabólico. O

Estado permanece com a mesma função e continua a ser “o comitê encarregado de

administrar os negócios do conjunto da burguesia”. Em outras palavras, o seu caráter de

classe não se alterou; o que se modificou com o tempo foram as condições de

acumulação e expansão do sistema do capital, gerando na classe dominante novas

necessidades, acrescidas de novas contradições cada vez mais antagônicas (MARX;

ENGELS, 2008).

Como visto no primeiro capítulo, o Estado se desenvolveu historicamente para

cumprir as funções de ordenamento da reprodução social, independentemente das

variantes, aparentemente mistificadoras, que o Estado tenha assumido para manter o

mesmo papel e promover o desenvolvimento capitalista. De acordo com Lessa, a lógica

das modificações ocorridas no curso da história na relação do Estado para com a

sociedade civil está na economia, pois “a ‘autonomia relativa’ do Estado para com a

base material apenas existe no interior da determinação predominante da economia

sobre o complexo estatal”. Portanto, explicar a existência do Estado de Bem-Estar

Social com base na sua própria estrutura só pode conduzir a falsas argumentações

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teóricas que tendem a substituir a evolução da sociedade capitalista por várias formas de

ilusão, sem estabelecer relação com a realidade objetiva (LESSA, 2013, p. 184).

O capital não conseguiu dar conta de suas contradições nem mesmo com o

Estado de Bem-Estar Social, o que fez surgir a crise estrutural do sistema do capital e o

neoliberalismo.

4. A CRISE ESTRUTURAL DO CAPITAL E O NEOLIBERALISMO

A partir do pressuposto de que o Estado, como estrutura de comando político

do capital, atua de formas diferenciadas, a depender das necessidades desse sistema

sociometabólico em cada momento histórico, mantendo sua função social no curso do

desenvolvimento da sociabilidade burguesa – na administração dos defeitos estruturais

do capital, observa-se que os ciclos econômicos capitalistas expressos na relação entre

recessão e expansão do capital são determinantes para a forma de atuação do Estado

moderno, sobretudo no marco da crise estrutural do capital.

Neste capítulo, inicialmente, analisam-se as crises cíclicas do capital com as

mudanças das ações do Estado, tomando como exemplo a crise de 1929, na busca de se

entender como, no curso do desenvolvimento do sistema capitalista, de acordo com

Mészáros (2011), as crises periódicas evoluíram até uma nova fase de desenvolvimento,

a de depressão contínua. Em seguida, aborda-se a natureza da crise estrutural do capital

e suas determinações como um fenômeno que tem causado grandes transformações no

mundo da produção e na relação capital, no cenário atual, para o enfrentamento da crise

estrutural e de suas consequências para a luta e a organização dos trabalhadores. Dando

continuidade, explicitamos como ocorreram as mudanças econômicas, políticas e

sociais derivadas das tentativas do capital em reverter os efeitos da crise estrutural, tais

ações do capital e do Estado, baseadas na perspectiva neoliberal.

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4.1 Das crises cíclicas à autorreprodução destrutiva do capital

Como visto nos capítulos anteriores, o capitalismo, desde o início do século

XIX, tem vivenciado inúmeras crises cíclicas. Delas resultou o entendimento da sua

incapacidade para solucionar de forma duradoura o desequilíbrio expresso na relação

entre produção e consumo, já que este modo de produção busca produzir bem mais do

que a demanda na esfera do consumo. Os motivos para tanto desequilíbrio variam de

acordo com a fase do desenvolvimento capitalista em que as crises acontecem, porém há

um elemento comum que as diferencia: ser uma crise de abundância, e não mais de

escassez, como sucedia no passado, em razão de desastres naturais, epidemias ou de

guerras.

Como o que motivou e motiva até hoje a produção capitalista é a acumulação

de capital, cuja medida de eficiência é o lucro ampliado, as necessidades sociais são

transformadas em meras mediações para a sua realização, tendo como finalidade o uso

dos recursos naturais e humanos e o desenvolvimento científico e tecnológico, alocados

para atender às demandas do sistema do capital.

A mais importante crise de natureza cíclica conhecida é a “Grande Crise

Econômica” de 1929-1933, conforme visto no capítulo 3. Para Mészáros, este tipo de

crise se apresenta como “grandes tempestades” e se desenvolveu num cenário marcado

por fortes ilusões da fase de crescimento econômico que a antecedeu. Por maior que

fosse o alcance dessa crise, ela estava longe de ser uma crise de caráter estrutural, por

“deixar um grande número de opções abertas para a sobrevivência continuada do

capital, bem como para a sua recuperação e sua reconstituição mais forte do que nunca

em uma base economicamente mais saudável e mais ampla”. Deste período sucedeu um

novo ciclo de crescimento produtivo, com altas taxas de lucro e de expansão econômica

do sistema do capital, em nada comparável com as fases anteriores de acumulação, tanto

que as três décadas de grande expansão que sucederam a Segunda Guerra Mundial

ficaram conhecidas como os anos gloriosos do capitalismo (LESSA, 2011, p. 793).

Historicamente, as contradições postas pelo sistema do capital que surgem nos

momentos de crises agudas como essa podem, na fase seguinte, servir como alavanca

para o aumento no poder aparentemente ilimitado do sistema do capital. Contudo, cabe

destacar que esse mecanismo de deslocamento das contradições, por não enfrentar as

causas dos desequilíbrios como expressão da relação entre produção e consumo,

somente poderá administrar de forma temporária os efeitos inibidores da acumulação

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capitalista, pois logo em seguida encontrará uma reposição aprofundada dos mesmos

problemas estruturais, posta por uma lógica reprodutiva alienante que para se expandir

precisa subordinar o valor de uso às necessidades de consumo real do capital.

Ao contrário do que muitos defendem sobre a eliminação das contradições

históricas do capital, o que se tem observado ao longo do desenvolvimento dos ciclos de

crise desde o século XIX é que estas contradições foram se aprofundando ainda mais

diante do esgotamento das válvulas de escape que o sistema em algum momento pôde

utilizar como saída, bem como do efeito decrescente das medidas minimizadoras dos

seus aspectos estruturais mais explosivos.

O fato de se ter obtido, até certo tempo, êxito no deslocamento dos limites

relativos do sistema do capital, segundo Mészáros, fez o capitalismo avançar rumo a

uma nova fase, inédita e irreversível, de crise estrutural do capital. Neste contexto,

ocorre uma reavaliação do “avanço produtivo do capital; (...) a própria produtividade se

transforma num conceito enormemente problemático, já que parece ser inseparável de

uma fatal destrutividade”. O aprofundamento das contradições e o surgimento de outras

contradições do capital aparecem associados à utilização sempre crescente dos recursos

humanos e materiais do planeta (MÉSZÁROS, 2011, p. 527, grifos do autor).

De acordo com Mészáros, no contexto de crise estrutural o aspecto mais

significativo no processo de redefinição, por parte do capital, é o modo radicalmente

novo de administrar as crises, que se comparada com as fases anteriores de

desenvolvimento capitalista recaíam sobre a contradição entre produção e consumo. A

anormalidade das crises periódicas do passado recente passa, neste momento, a ser a

normalidade do “capitalismo organizado”. A mudança dramática é que “as crises

capitalistas sob as novas condições (...) não precisam assumir, de maneira alguma, a

forma pela qual a contradição entre produção e troca ‘descarrega a si mesma em

grandes tempestades’”, desde que “os seus pré-requisitos materiais e

políticos/ideológicos possam ser objetivamente reproduzidos” na sociedade

contemporânea (MÉSZÁROS, 2011, p. 695, grifos do autor).

Essa capacidade recém-descoberta pelo sistema do capital de evitar grandes

tempestades nas condições atuais, conforme visto no segundo capítulo, faz parte do

conjunto de transformações das estruturas produtivas da sociedade capitalista do

período pós-Segunda Guerra, seguido por um realinhamento de sua relação com o

Estado (tanto nos propósitos econômicos como na necessidade de legitimação

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ideológico-política), na passagem de um padrão tradicional de consumo para outro tipo

muito diferente, fundado no consumo supérfluo de mercadorias.

O novo dinamismo econômico teve como fundamento material de expansão o

complexo militar-industrial, que além de aperfeiçoar os meios pelos quais o capital

agora passa a lidar com todas as flutuações e contradições estruturais, também

proporciona um “salto quantitativo” no sentido de operações mais rentáveis do que as

que ocorriam nos estágios anteriores do desenvolvimento capitalista.

Neste contexto,

o novo sistema é caracterizado, por um lado, pela subutilização

institucionalizada tanto de forças produtivas como de produtos e, por outro,

pela crescente, mais constante do que brusca, dissipação ou distribuição dos

resultados da superprodução, por meio da redefinição prática da relação

oferta/demanda no próprio processo produtivo convenientemente

reestruturado. (MÉSZÁROS, 2011, p. 696-97).

Esta mudança na relação entre produção e consumo habilitou o capital a resistir

às consequências dos colapsos produzidos no passado, como, por exemplo, os efeitos

produzidos pela quebra da Bolsa de Valores de Nova Iorque em 1929. Por esta razão, de

acordo com Mészáros, “as crises do capital não são radicalmente superadas em nenhum

sentido, mas meramente ‘estendidas’, tanto no sentido temporal como em sua

localização estrutural na ordenação geral”. Os picos históricos de crises periódicas

podem ser substituídos por “um padrão linear de movimento”; o “capitalismo

organizado”, ao contrário do “capitalismo de crise”, parece “ser capaz de conviver

naturalmente com dificuldades e emergências de magnitude anteriormente

inimaginável”. Nesse sentido, as barreiras que o sistema do capital “encontra na sua

própria natureza”, quanto à relação entre produção e consumo, não parecem afetar

expressivamente seu poder de autoexpansão (MÉSZÁROS, 2011, p. 697-698).

Mészáros admite que enquanto “a relação atual entre os interesses dominantes

e o Estado capitalista prevalecer e impuser com sucesso suas demandas à sociedade, não

haverá grandes tempestades a intervalos razoavelmente distantes, mas precipitações de

frequência e intensidade crescentes por todos os lugares”. No entanto, a ausência de

flutuações extremas não significa “um desenvolvimento saudável e sustentado”, pois o

movimento característico da crise estrutural dá-se no sentido de um “continuum

depressivo”, que exibe as particularidades da universalidade de uma “crise cumulativa,

endêmica, mais ou menos permanente e crônica (...)” (MÉSZÁROS, 2011, p. 697,

grifos do autor).

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Sobre as características desconcertantes do capitalismo contemporâneo,

Mészáros afirma que é necessário realizar “uma distinção entre produção e

autorreprodução”. Isto porque o capital não está preocupado com a produção em si,

mas apenas com a autorreprodução. Em uma determinada circunstância histórica, a

“autorreprodução ampliada do capital” coincidiu com a “produção genuína” num

sentido positivo; enquanto isto ocorreu, “o sistema capitalista pôde cumprir seu ‘papel

civilizador’ de aumentar as forças produtivas da sociedade e estimular, até um ponto

não só possível, mas também ditado por seus próprios interesses, a emergência da

‘industriosidade geral’”. (MÉSZÁROS, 2011, p. 698-699, grifo do autor).

No entanto, com o passar do tempo, o capitalismo atingiu um estado em que “a

disjunção radical entre produção genuína e autorreprodução do capital não é mais uma

remota possibilidade, mas uma realidade cruel com as mais devastadoras implicações

para o futuro”. Em outras palavras, as barreiras para a produção do capital são

suplantadas pelo próprio sistema, de forma que asseguram sua própria reprodução, em

expansão e constante crescimento – hoje, na condição de autorreprodução destrutiva,

em oposição à produção genuína (MÉSZÁROS, 2011, p. 698-699).

Na atual conjuntura, os limites do capital não podem ser mais conceituados

como se fossem meros obstáculos materiais ao desenvolvimento da produtividade e da

riqueza social, ou como uma trava ao desenvolvimento; mas como um desafio direto à

existência de toda a humanidade. Num outro sentido, embora com as mesmas

consequências, quando os limites do capital se voltarem contra ele, “como mecanismo

controlador todo-poderoso do sociometabolismo”, ou seja, isso somente ocorrerá

quando o sistema do capital já não puder mais assegurar, sob quaisquer meios, as

condições necessárias à sua autorreprodução destrutiva, levando assim ao colapso do

sociometabolismo global (MÉSZÁROS, 2011, p. 699).

Portanto há, de acordo com Mészáros, uma incompatibilidade estrutural na

relação entre controle e capital, pois

o capital é totalmente desprovido de medida e de um referencial

humanamente significativos, enquanto seu impulso interno à autoexpansão é

a priori incompatível com os conceitos de controle e limite, para não

mencionar o de uma autotranscendência positiva. Por isso, ao invés de

aceitar as restrições positivas necessárias no interesse da produção para a

satisfação das necessidades humanas, corresponde à linha de menor

resistência do capital levar as práticas materiais da autorreprodução

destrutiva ampliada até o ponto em que levantem o espectro da destruição.

(MÉSZÁROS, 2011, p. 699).

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Como já visto, a produção da abundância na contramão da escassez era

totalmente compatível com os processos e aspirações do capital. Hoje, a situação é

radicalmente diferente, pois tais objetivos apenas aparecem nas racionalizações

ideológicas dos defensores do sistema estabelecido. Somente este fato é suficiente para

deixar claro o verdadeiro significado da reconstituição estrutural do capital nas últimas

décadas, em sua íntima relação com os ajustes correspondentes nas operações prestadas,

diretas e indiretas, pelo Estado burguês.

Agora, mais do que antes, “(...) o Estado capitalista precisa assumir um papel

intervencionista direto em todos os planos da vida social, promovendo e dirigindo

ativamente o consumo destrutivo e a dissipação da riqueza social em escala

monumental”. Portanto, sem a intervenção direta do Estado no processo

sociometabólico do capital, que não atua somente em situações imediatas, mas de forma

contínua, torna-se impossível manter a lógica da autorreprodução do sistema capitalista

em tempos de crise (MÉSZÁROS, 2011, p. 700, grifos do autor).

Entender a mudança do padrão e a profundidade das crises econômicas do

capital é de essencial importância para a configuração da crise atual, o que será feito a

seguir.

4.2 A crise estrutural do capital e suas determinações

Após as três décadas de grande expansão do capital, sucedeu uma grande crise

econômica na fase contemporânea do capitalismo, que está associada ao fim do

denominado Estado de Bem-Estar Social. Mészáros (2011) considera a crise do

fordismo e do keynesianismo como expressão fenomênica de um quadro crítico mais

complexo vivenciado pelo sistema do capital na atualidade, que exprime um significado

mais profundo, por se tratar de uma crise de caráter universal. Depois de vivenciar o

contexto de crises cíclicas, o sistema do capital adentrou em uma nova fase, de crise

estrutural; esta, em contraste com as anteriores, mostra-se mais duradoura e sistêmica.

De acordo com Mészáros, a crise econômica do capital que se estende de 1970

até o presente, é “fundamentalmente uma crise estrutural”. O referido autor explica que

o sistema do capital está intimamente relacionado à crise, pois “(...) crises de

intensidade e durações variadas são o modo natural de existência do capital”. Como se

pôde observar, da recuperação das crises capitalistas, através dos mais variados

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mecanismos de intervenção política e econômica, deriva um capitalismo mais

fortalecido; é com base nos ciclos econômicos, entre o período de crise e de auge, que o

capital passa a deslocar barreiras e entraves. A superação permanente de todas as crises

não é uma pretensão desse sistema, porque elas fazem parte de sua estrutura e o

impulsionam ao desenvolvimento (MÉSZÁROS, 2011, p. 795).

Mészáros identifica quatro aspectos principais da crise estrutural do capital:

(1) seu caráter é universal (...); (2) seu alcance é verdadeiramente global (no

sentido mais literal e ameaçador do termo), em lugar de limitado a um

conjunto particular de países (como foram todas as principais crises do

passado); (3) sua escala de tempo é extensa, contínua, se preferir,

permanente, em lugar de limitada e cíclica, como foram todas as crises

anteriores do capital; (4) em contraste com as erupções e os colapsos mais

espetaculares e dramáticos do passado, seu modo de se desdobrar poderia ser

chamado de rastejante (...). (MÉSZÁROS, 2011, p. 796, grifos do autor).

A respeito deste último aspecto, Mészáros faz a ressalva de que “nem sequer as

convulsões mais veementes ou violentas poderiam ser excluídas no que se refere ao

futuro”. O autor entende que essa maquinaria é poderosa e que o capital tem a

capacidade de dispor de novos instrumentos no seu vasto arsenal de defesa contínua. E

acrescenta que o fato de a maquinaria existente estar agindo com frequência crescente,

apesar de sua eficácia apresentar-se de maneira decrescente, constitui uma medida

apropriada à severidade da crise estrutural, que tende cada vez mais a se aprofundar

(MÉSZÁROS, 2011, p. 696).

Mészáros percebe a necessidade de se concentrar em alguns componentes da

crise em movimento:

Se, no período pós-guerra, tornou-se embaraçosamente antiquado falar de

crise capitalista – mais outro sinal da postura defensiva do movimento do

trabalho –, isso foi devido não apenas à operação prática bem-sucedida da

maquinaria que desloca (por difundir e por retirar a espoleta explosiva) as

próprias contradições. Foi também devido à mistificação ideológica (do “fim

da ideologia” ao “triunfo do capitalismo” organizado e à “interação da classe

trabalhadora” etc.) que apresentou o mecanismo de deslocamento sob o

disfarce de remédio estrutural e solução permanente. (MÉSZÁROS, 2011, p.

796, grifos do autor).

Foi durante o período do pós-Segunda Guerra que o mundo capitalista

conheceu o processo mais longo de crescimento econômico de sua história, num cenário

marcado, como visto no segundo capítulo, pela Primeira Guerra Mundial, seguida pelo

fordismo, com a introdução da gerência científica na esfera da produção capitalista. E

logo após, a Segunda Guerra Mundial, na junção das medidas keynesianas, com a

atuação do Estado na administração das relações em meio à contradição entre capital e

trabalho, bem como entre política e economia.

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O sistema do capital buscou resolver seus antagonismos e contornar os

entraves que impediam seu livre crescimento, tendo sempre como objetivo a

acumulação e a expansão de capitais. Mészáros esclarece que “para apreciar a novidade

histórica da crise estrutural do capital, precisamos localizá-la no contexto dos

acontecimentos sociais, econômicos e políticos do século 20”. Contudo, antes é

necessário fazer algumas observações gerais acerca dos critérios dessa crise, assim

como sobre as formas nas quais se pode idealizar sua solução.

Em termos simples e gerais, para o autor, “uma crise estrutural [é aquela que]

afeta a totalidade de um complexo social em todas as relações com suas partes

constituintes ou subcomplexos, como também a outros complexos aos quais é

articulada”. Por outro lado, “uma crise não estrutural afeta apenas algumas partes do

complexo em questão, e assim, não importa o grau de severidade em relação às partes

afetadas, não pode pôr em risco a sobrevivência contínua da estrutura global” do capital

(MÉSZÁROS, 2011, p. 796-797).

Portanto, entende-se, de acordo com Mészáros, que a possibilidade de

deslocamento das contradições só faz sentido se a crise for parcial, relativa e

interiormente manejável pelo sistema do capital; em outras palavras, se for uma crise

cíclica, pois ela apenas demanda mudanças no interior do próprio sistema.

Diferentemente, de uma crise estrutural, que “(...) põe em questão a própria existência

do complexo global envolvido, postulando sua transcendência e sua substituição por

algum complexo alternativo”.

A crise estrutural afeta todo o conjunto do sistema sociometabólico do capital,

e assim abre a possibilidade de transição para outra forma de sociabilidade. Segundo

Mészáros, “o mesmo contraste pode ser expresso em termos dos limites que qualquer

complexo social particular venha a ter em sua imediaticidade, em qualquer momento

determinado, se comparado àqueles além dos quais não pode concebivelmente ir”.

Assim, uma crise estrutural não está associada aos limites imediatos do sistema do

capital, mas aos limites últimos de uma estrutura global (MÉSZÁROS, 2011, p. 797).

Eis como Mészáros explicita a diferença entre os limites imediatos e os limites

últimos que compõem a estrutura global do sistema do capital. Os limites imediatos

podem ser ampliados de três maneiras distintas, quais sejam: a) pela modificação de

algumas partes de um complexo em questão; b) devido à mudança geral de todo o

sistema do capital aos quais os subcomplexos particulares pertencem; e, por último, c)

com a alteração significativa da relação do complexo global com outros complexos fora

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dele. Logo, “quanto maior a complexidade de uma estrutura fundamental e das relações

entre ela e outras com as quais é articulada, mais variadas e flexíveis serão suas

possibilidades objetivas de ajuste e suas chances de sobrevivência até mesmo em

condições extremamente severas de crise” (MÉSZÁROS, 2011, p. 797).

Portanto, as contradições parciais, ainda que severas em sua estrutura, podem

ser deslocadas e até mesmo neutralizadas pelas forças ou tendências contrárias – nos

marcos dos limites últimos ou estruturais do sistema do capital –, e ser transformadas

em forças que ativamente sustentam o sistema em questão. Mészáros ressalta a

integração de fato inegável das lideranças sindicais e partidárias da classe trabalhadora

ao sistema do capital, ao tempo que ocorre o desgaste das múltiplas possibilidades de

ajustes internos. Enfatiza que nem mesmo as relações de interdependência, que tendem

a paralisar as forças de oposição, não seriam capazes de evitar a desintegração da

estrutura final do sistema do capital, o que só pode se dar após um longo e doloroso

processo de “reestruturação radical” das suas próprias contradições (MÉSZÁROS,

2011, p. 797).

Desse modo, tal crise só poderá ser solucionada nos marcos de um processo

radical de mudanças na superação das próprias contradições do capital. Portanto, de

acordo com esta perspectiva, o sistema do capital, por sua própria natureza

contraditória, é incapaz de resolver as contradições que lhe são imanentes; por esse

motivo, as desloca para poder manter seu processo de acumulação e expansão.

No mundo do capital, as expressões de uma crise estrutural podem ser

identificadas tanto em suas dimensões internas como nas instituições políticas. Apesar

de articuladas, em cada uma destas esferas (econômica e política) a crise atua de forma

específica. Isso já foi observado no capítulo anterior, com a falência do Estado de Bem-

Estar Social e a consolidação do Estado neoliberal. É da própria natureza do capital

superar os entraves e barreiras que se apresentam no seu processo de acumulação e

expansão.

Segundo Marx, citado por Mészáros:

A tendência a criar o mercado mundial está presente diretamente no próprio

conceito do capital. Todo limite aparece como uma barreira a ser superada.

Inicialmente, para subjugar todo momento da produção em si à troca e para

suspender a produção de valores de uso direto que não participam da troca...

Mas o fato de que o capital define cada um desses limites como uma barreira

e, consequentemente, avance idealmente para além dela não significa, de

modo algum, que a tenha realmente superado. Já que toda barreira contradiz

seu caráter, sua produção se move em contradições que são constantemente

superadas, mas da mesma maneira são constantemente repostas. Além disso,

a universalidade que persegue irresistivelmente encontra barreiras em sua

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própria natureza, que em certa fase de seu desenvolvimento permite que ele

reconheça como sendo, ele próprio, a maior barreira e esta tendência, e

consequentemente o impulsionará para sua própria suspensão. (MARX apud

MÉSZÁROS, 2011, p. 798).

As três dimensões internas fundamentais do capital, que Mészáros identifica

como “produção, consumo e circulação/distribuição/realização”, “tendem a se fortalecer

e a se ampliar por um longo tempo, provendo também a motivação interna necessária

para a sua reprodução dinâmica recíproca em escala cada vez mais ampliada”. Mészáros

observa que, inicialmente, as “limitações imediatas” de cada uma em particular podem

ser superadas devido à interação entre elas. Ou seja, a barreira imediata da produção é

superada pela expansão do consumo. E assim os limites imediatos aparecem como

barreiras a ser superadas, e as contradições imediatas são deslocadas e utilizadas em

favor do capital, aumentando o poder aparentemente ilimitado de sua autorreprodução

(MÉSZÁROS, 2011, p. 798).

Com base nessa análise, entende-se que as crises cíclicas correspondem a este

mecanismo vital de autoexpansão, que ao mesmo tempo é o mecanismo para superar ou

deslocar as contradições internas do próprio sistema. As crises cíclicas afetam

diretamente uma das três dimensões fundamentais do capital e indiretamente, até que o

bloqueio seja removido, o que não coloca em questão os limites últimos da estrutura

global do capital, como foi o caso da “Grande Crise Econômica” de 1929-1933; esta

seria, para Mészáros (2011), o exemplo mais expressivo desse tipo de crise, por se tratar

de uma “crise de realização”, devido ao baixo nível de produção e consumo, se

comparado com o período do pós-Primeira Guerra, ao qual sobreveio um ciclo de

grande acumulação capitalista.

A partir dessa constatação, Mészáros (2011) afirma que a crise estrutural

emana das três dimensões internas fundamentais do capital, acima apresentadas. Apesar

das “disfunções” existentes em cada uma delas, consideradas separadamente, elas

“devem ser distinguidas da crise fundamental do todo, que consiste no bloqueio

sistemático das partes constituintes vitais”. Isto significa que não se pode confundir

crise cíclica com crise estrutural, porque a crise cíclica atinge somente uma parte das

dimensões fundamentais, e a crise estrutural atinge o conjunto das três dimensões.

Mészáros faz alguns esclarecimentos quanto à crise estrutural do capital: 1) a

crise estrutural, iniciada na década de 70, “se relaciona a algo muito mais modesto que

as tais contradições absolutas”; isto significa que as três dimensões da autoexpansão do

capital expõe perturbações cada vez maiores. Ela tanto rompe com o processo normal de

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crescimento, como também sinaliza uma falha “na sua função vital de deslocar as

contradições acumuladas do sistema”; 2) as dimensões internas e condições inerentes à

autoexpansão do capital constituíram desde muito cedo uma unidade contraditória, e

por isso problemática; nessa relação, uma tinha de ser “subjugada” à outra, de modo a

fazer funcionar o complexo global; 3) essa situação muda radicalmente quando os

interesses de cada unidade deixam de coincidir com os das outras. Neste momento, as

perturbações e as “disfunções” antagônicas não são mais

absorvidas/dissipadas/desconcentradas/desarmadas; pelo contrário, tendem a se tornar

cumulativas e, logo, estruturais, o que provoca um perigoso bloqueio ao complexo

mecanismo de deslocamento das contradições. (MÉSZÁROS, 2011, p. 799-800, grifos

do autor).

Mészáros acrescenta acerca do sistema do capital:

Seu modo normal de lidar com contradições é intensificá-las, transferi-las

para um nível mais elevado, deslocá-las para um plano diferente, suprimi-las

quando possível, e quando elas não puderem mais ser suprimidas, exportá-las

para uma esfera ou um país diferente. É por isso que o crescente bloqueio no

deslocamento e na exportação das contradições internas do capital é

potencialmente tão perigoso e explosivo. (MÉSZÁROS, 2011, p. 800).

Diante do exposto, fica claro que, desde os anos de 1970 o capital tem

encontrado maiores dificuldades para manter o seu mecanismo de deslocamento de

contradições. Como resultado desse bloqueio sistemático, a crise estrutural que se

vivencia nos dias atuais, que por sua própria natureza “não está confinada à esfera

socioeconômica” da sociedade burguesa, revela-se também “como uma verdadeira crise

de dominação em geral”.

A extensão da nova crise do capital a todas as esferas da atividade humana, daí

o seu caráter estrutural, conjuntamente com a crescente instabilidade das condições

socioeconômicas, tem exigido “novas ‘garantias políticas’, muito mais poderosas (...)”

do Estado capitalista. O esgotamento do Estado de Bem-Estar Social é a prova expressa

de que “a crise estrutural de todas as instituições políticas já vem fermentando sob a

crosta da ‘política de consenso’ há bem mais de duas décadas”. Isto porque “(...) as

contradições subjacentes de modo algum se dissipam na crise das instituições políticas;

ao contrário, afetam toda a sociedade de um modo nunca antes experimentado”

(MÉSZÁROS, 2011, p. 800, grifos do autor).

O que no passado era ideologicamente explorado como uma vantagem

histórica do sistema capital e sustentava sua “influência civilizadora”, e que permitiu ao

ser humano dominar a natureza e submetê-la às suas necessidades, hoje aparece como

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uma “devastação sistemática da natureza e a acumulação contínua do poder de

destruição (...)”, ao lado da “negação completa das necessidades elementares de

incontáveis milhões de famintos”.

De acordo com Mészáros:

O sistema existente de dominação está em crise porque sua raison d’être e

sua justificação histórica desapareceram e já não podem mais ser

reinventadas, por maior que seja a manipulação ou a pura repressão. Desse

modo, ao manter milhões de excluídos e famintos, quando os trilhões

desperdiçados35 poderiam alimentá-los mais de cinquenta vezes, põe em

perspectiva o absurdo desse sistema de dominação. (2011, p. 801, grifos do

autor).

Ainda conforme Mészáros, o mesmo acontece em outros âmbitos da esfera

humana, sob os quais reinam os conflitos de muitas gerações. Independentemente da

condição de desenvolvimento dos países capitalistas, observa-se a negação de

oportunidade de trabalho para milhões de homens. Há ainda a pressão da “aposentadoria

precoce” e a destruição da família, num processo de desumanização cada vez mais

crescente. O capital é incapaz de solucionar suas contradições, uma vez que “(...) as

soluções propostas nem sequer arranham a superfície do problema, sublinhando

novamente que estamos à frente de uma contradição interna insolúvel do próprio

capital” (MÉSZÁROS, 2011, p. 802).

Neste momento, para Mészáros (2011), o que está realmente em jogo é o papel

do trabalho no universo do capital, uma vez que já tendo alcançado o nível mais alto de

produtividade, para resolver as contradições geradas seria necessária uma reviravolta

que afetasse as condições materiais imediatas do trabalho e todas as facetas da vida

social, inclusive as mais íntimas.

Sobre a Grande Depressão de 1929, Mészáros destaca que, não sendo uma

crise global do capital,

forneceu estímulo e pressão necessários para o realinhamento de suas várias

forças constituintes, conforme as relações de poder objetivamente alteradas,

muito contribuindo, desse modo, para o desenvolvimento das tremendas

potencialidades do capital inerentes à sua “totalidade intensiva36”. (2011, p.

806).

De acordo com Mészáros (2011), essa crise teve consequências externa e

interna. Externamente, essa crise significou: uma mudança do imperialismo

multicentrado, ultrapassado, militar e político, perdulariamente intervencionista, para

35 Mészáros refere-se à quantidade de alimentos desperdiçados todos os dias, que poderia alimentar os milhões de

famintos de todo o mundo. 36 Trata-se de um novo dinamismo econômico, no estourar da crise em 1929, como resultado do grande impulso

produtivo recebido durante e após a Primeira Guerra Mundial, muito mais adequado ao deslocamento das

contradições do sistema capitalista do que a estrutura anteriormente predominante.

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um sistema de dominação global que, sob a hegemonia norte-americana, tornou-se mais

dinâmico e economicamente mais viável e integrável; o estabelecimento de um Sistema

Monetário Internacional e de vários outros órgãos importantes de regulamentação das

relações intercapitalistas, como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional; a

exportação de capital em grande escala, e com ela a situação de dependência dos países

subdesenvolvidos e o crescimento em larga escala das taxas de juros; e por último, a

incorporação relativa, em graus variados, das economias de todos os países ditos

“socialistas” na estrutura de intercâmbio capitalista.

Sob o aspecto interno, a história do êxito do capital, segundo Mészáros (2011),

significou: a utilização de várias formas de intervenção estatal com vistas à expansão do

capital privado; o processo de estatização, no qual ocorre a transferência de indústrias

privadas falidas, mas fundamentais, para o setor público, e a sua utilização para

novamente apoiar as operações do capital privado, através dos fundos estatais; a

implementação e o desenvolvimento de uma economia de “pleno emprego” durante o

período de guerra, incentivada por padrões de consumo supérfluo, mas de grande

sucesso; no plano da economia de consumo, houve a abertura de novos mercados e

ramos de produção, junto com o êxito do capital em criar e manter padrões

extremamente perdulários de consumo, como razão vital da existência de tal economia;

e por fim, o estabelecimento de um imenso “complexo industrial-militar” como

controlador e beneficiário direto da fração mais importante da intervenção estatal.

Apesar do valor intrínseco dessas realizações e de todos os problemas contidos

nelas, não deixou de haver uma autoexpansão dinâmica do capital, a favorecer a

continuidade da sua sobrevivência:

Precisamente por causa da sua importância central nos desenvolvimentos

capitalistas do século 20, a severidade da crise estrutural de hoje é fortemente

realçada pelo fato de várias das características mencionadas acima já não

serem mais verdades, e de as tendências subjacentes apontarem na direção da

sua completa reversão: a tendência a um novo policentrismo (pense-se no

Japão e na Alemanha, por exemplo), com consequências potencialmente

incalculáveis, a um persistente desemprego de massa (e suas implicações

óbvias para a economia de consumo) e à desintegração ameaçadora do

sistema monetário internacional e seus corolários. Seria tolice considerar

permanentes as posições poderosamente fortificadas do complexo industrial-

militar e sua capacidade de extrair e alocar para si mesmo, imperturbado, o

excedente necessário para seu funcionamento contínuo na escala atual, ainda

astronômica. (MÉSZÁROS, 2011, p. 807).

Alguns ideólogos do capital afirmam que, assim como esse sistema conseguiu

resolver seus problemas no passado, também conseguirá no futuro. Como a crise de

1929-33 impôs mudanças dramáticas ao sistema do capital, a crise estrutural também

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deverá produzir seus próprios remédios, que devem ser duradouros ou soluções

permanentes. Mészáros chama atenção para o perigo de se partir de meras analogias

com o passado, pelo fato de o assunto em questão tratar-se de uma crise estrutural e do

colapso de alguns mecanismos e determinações vitais ao capital, que se manifestam sob

a forma da própria crise de controle e dominação estabelecida. A menos que se possa

demonstrar que “as tendências contemporâneas de desenvolvimento do capital podem

realmente satisfazer a estas condições, toda conversa sobre sua capacidade intrínseca de

sempre resolver seus problemas será apenas um ‘assobiar no escuro’ para afugentar o

medo” (MÉSZÁROS, 2011, p. 807).

De acordo com Mészáros (2011), outra linha de argumentação insiste em

defender que o capital tem à sua disposição uma imensa força repressiva, que pode ser

utilizada livremente para resolver os seus problemas. Para o autor, é inquestionável a

capacidade de destruição e repressão acumulada pelo capital, ao longo do seu

desenvolvimento, junto ao seu aparato de controle político. Em seus estudos, ainda se

refere às características inerentes ao próprio capital, por ser este uma força muito

eficiente em mobilizar complexos recursos produtivos de uma sociedade muito

fragmentada. Entretanto, por mais que haja um sucesso temporário das tentativas

autoritárias de minimizar os efeitos da crise, para adiar ou até mesmo atrasar o

“momento da verdade”, somente podem intensificá-la.

Ainda, segundo Mészáros:

Os problemas estruturais descritos acima equivalem a um importante entrave

no sistema global de produção e distribuição. Dada a sua condição de

entrave, exigem remédios estruturais adequados, e não a sua multiplicação

pelo adiamento e pela repressão forçados. Em outras palavras, estes

problemas requerem uma intervenção positiva no próprio processo produtivo

problemático para enfrentar suas contradições perigosamente crescentes, para

removê-los à medida que o permita o ritmo da reestruturação real.

(MÉSZÁROS, 2011, p. 808).

Na situação atual de crise estrutural, imaginar a possibilidade de encontrar

“remédios duradouros” e “soluções permanentes” para ela torna-se algo muito

problemático. As condições para administrar a crise estrutural do capital estão

diretamente associadas a algumas contradições internas muito importantes que “afetam

tanto os problemas internos dos vários sistemas envolvidos como as relações entre eles”

(MÉSZÁROS, 2011, p. 807).

Esses problemas são classificados em quatro categorias:

(1) As contradições socioeconômicas internas do capital “avançado” que se

manifestam no desenvolvimento cada vez mais desiquilibrado sob o controle

direto ou indireto do “complexo industrial-militar” e do sistema de

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corporações transnacionais; (2) As contradições sociais, econômicas e

políticas da sociedade pós-capitalista, tanto isoladamente como em sua

relação com as demais, que conduzem à sua desintegração e, desse modo, à

intensificação da crise estrutural do sistema global do capital; (3) As

rivalidades, tensões e contradições crescentes entre os países capitalistas mais

importantes, tanto no interior dos vários sistemas regionais como entre eles,

colocando enorme tensão na estrutura institucional estabelecida (da

Comunidade Europeia ao sistema Monetário Internacional) e fazendo prever

o espectro de uma devastadora guerra comercial; (4) As dificuldades

crescentes de manter o sistema neocolonial de dominação (do Irã à África, do

sudeste Asiático à Ásia Oriental, da América Central à do Sul), ao lado das

contradições geradas dentro dos países “metropolitanos” pelas unidades de

produção estabelecidas e administradas por capitais “expatriados”.

(MÉSZÁROS, 2011, p. 808).

A tendência que se observa não é para a diminuição das contradições existentes

na sociabilidade capitalista, e sim para sua intensificação.

A severidade da crise é acentuada pelo efetivo confinamento da intervenção à

esfera dos efeitos, tornando proibitivo atacar as suas causas, graças à

“circularidade” do capital, mencionada acima, entre Estado político e

sociedade civil, por meio da qual as relações de poder estabelecidas tendem a se reproduzir em todas as suas transformações superficiais. (MÉSZÁROS,

2011, p. 808-9).

Nesse sentido, Mészáros conclui que:

Se a condição para solucionar a crise estrutural estiver associada à solução

dos quatro conjuntos de contradições mencionados acima, do ponto de vista

da contínua expansão global e da dominação do capital, a perspectiva de um

resultado positivo está longe de ser promissora. Pois é muito remota a

possibilidade de sucesso até mesmo dos objetivos relativamente limitados,

para não mencionar a solução duradoura das contradições de todas as quatro

categorias em conjunto. O mais provável é, ao contrário, continuarmos

afundados cada vez mais na crise estrutural, mesmo que ocorram alguns

sucessos conjunturais, como aqueles resultantes de uma relativa “reversão

positiva”, no devido tempo, de determinantes meramente cíclicos de crise

atual do capital. (2011, p. 810).

Diante do exposto, foi possível compreender sistematicamente as

determinações da crise estrutural como um desdobramento da própria estrutura

contraditória do sistema do capital, da sua natureza e de seus limites. Todas as propostas

de solução para a crise estrutural do capital dentro desse sistema fracassaram. Isso se

deve, segundo a análise realizada por Mészáros (2011), por dois importantes motivos:

primeiro, porque não há como eliminar a relação antagônica e irreconciliável entre

capital e o trabalho; e em consequência disto, pelo fato de todas as esferas da vida

humana ou regiões do planeta já estarem incorporadas às leis da lógica exploradora do

capital sobre o trabalho. Assim, a superação dos graves problemas atuais somente se

torna possível com a destruição das condições objetivas existentes nesta forma de

sociabilidade.

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Baseado nas reflexões até aqui apresentadas, sobre a crise estrutural do capital

e suas determinações, agora, busca-se a partir de agora entender como se processaram

as mudanças econômicas, políticas e sociais advindas das tentativas do sistema de

controle sociometabólico do capital no sentido de conter os efeitos dessa crise, por meio

da reestruturação produtiva, do processo de financeirização do capital e do ajuste

neoliberal na sociedade contemporânea.

4.3 Neoliberalismo: as estratégias do capital em face da crise estrutural

Nos itens anteriores, foi possível observar a relação do ciclo de crises do

capital com as mudanças operadas na forma de intervenção do Estado. Analisaram-se

também, com base nas contribuições de Mészáros (2011), a crise estrutural do capital e

suas determinações como um fenômeno que tem causado grandes transformações no

mundo da produção e na relação capital. Agora, dando continuidade a este estudo,

busca-se compreender como se processou as modificações econômicas, políticas e

sociais derivadas das tentativas do capital para reverter os efeitos da crise estrutural.

Tais ações desenvolvidas pelo grande capital, auxiliado pelo Estado, vão atuar de forma

decisiva na implementação das medidas neoliberais.

O neoliberalismo surge após a Segunda Guerra Mundial, como uma reação

teórica ao Estado intervencionista e de “bem-estar” social, baseado nas premissas do

economista austríaco Frederich Hayek (1899-1992). Naquela circunstância histórica, as

ideias neoliberais tinham sido rejeitadas devido ao “sucesso” das medidas keynesianas.

Somente com a crise econômica de 1970 essas teses puderam retornar ao debate teórico

como um movimento da classe dominante que visa retirar o capitalismo da crise e criar

as condições necessárias para a retomada da taxa de lucratividade do capital.

O novo conjunto de medidas adotadas age de forma diferenciada, a depender

dos interesses de classe que busca defender. De um lado, observa-se a utilização de uma

série de medidas visando à recuperação do lucro dos capitalistas; de outro, a

incorporação de medidas restritivas e autoritárias sobre a classe trabalhadora, que têm

resultado na degradação da vida e do trabalho humano.

De acordo com Behring (2002), a crise global demarca um momento de

inflexão na atitude da classe dominante. A necessidade de uma nova etapa no

desenvolvimento do sistema do capital, em crise pelo esgotamento do padrão de

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acumulação que se mantinha desde 1940, exige alternativas político-econômicas que

tenham por objetivo a retomada do crescimento econômico. Trata-se de um processo de

reação burguesa à crise estrutural do capital, marcado: pela refuncionalização do

Estado burguês; por uma revolução tecnológica e organizacional de produção,

denominada reestruturação produtiva; pela globalização da economia, com a

financeirização do capital; e pelo ajuste neoliberal. Esses movimentos implicaram uma

nova dinâmica para as políticas econômicas e industriais dos Estados nacionais e

possibilitaram um novo padrão da relação do Estado para com a sociedade civil.

Segundo Netto & Braz, o aprofundamento da crise econômica do capital, que

“na transição da década de sessenta à de setenta, pôs fim aos ‘anos dourados’, levou o

capital monopolista a um conjunto articulado de respostas que transformou largamente

o cenário mundial: mudanças econômicas, sociais, políticas e culturais” que estão em

processo até hoje, com fortes impactos sobre os Estados e nações de todo mundo, por

causa da taxa de lucros do capital em queda. Todas essas transformações decorrem da

própria relação de concorrência entre os capitalistas, e também da própria necessidade

de controlar as lutas sociais oriundas da relação de exploração do trabalho, o que acaba

produzindo as respostas do capital à sua crise estrutural (NETTO; BRAZ, 2010, p. 211).

Dessa forma, a reestruturação produtiva foi marcada por modificações

importantes no mundo da produção e nas condições de trabalho e, consequentemente, de

sua reprodução, a partir da generalização do modelo japonês, o toyotismo, também

chamado de produção flexível, que na sua composição altera “o padrão rígido fordista da

linha de montagem, da produção em massa para um consumo de massa”.

Nessa nova forma de organização produtiva, segundo Behring, forja-se

uma articulação entre descentralização produtiva e avanço tecnológico. Há

também uma combinação entre trabalho extremamente qualificado e

desqualificação. Contrapondo-se à verticalização fordista, a produção flexível

é horizontalizada/descentralizada. Trata-se de terceirizar e subcontratar uma

rede de pequenas/médias empresas, muitas vezes com perfil semiartesanal e

familiar. (2002, p. 178).

O novo padrão de acumulação do capital é conduzido pela demanda e

sustentado por uma produção de estoque mínimo. Nele, os trabalhadores passam a ser

multifuncionais ou polivalentes na operação de uma grande quantidade de máquinas

automatizadas, introduzidos num processo de trabalho intensificado que restringe ainda

mais a porosidade do trabalho (BEHRING, 2002). A acumulação flexível também

conduz a alterações significativas nas condições de trabalho, por se apoiar, segundo

Harvey, “na flexibilidade dos processos de trabalho, dos mercados de trabalho, dos

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produtos e padrões de consumo”, com o surgimento de “setores de produção

inteiramente novos, novas maneiras de fortalecimento de serviços financeiros, novos

mercados e, sobretudo, taxas altamente intensificadas da inovação comercial,

tecnológica e organizacional do trabalho” (HARVEY, 1992, p. 140).

Segundo Netto & Braz, a restruturação produtiva corresponde à base dessa

flexibilidade. Por um lado, a produção rígida do passado, realizada em grande escala e

própria do taylorismo-fordismo, passa agora a ser flexibilizada e destinada a mercados

específicos, procurando romper com a “estandardização”, de forma a atender às

diversidades culturais e regionais e voltando-se às particularidades do consumo; por

outro lado, “o capital lança-se a um movimento de desconcentração industrial: promove

a desterritorialização da produção”, ou seja, as unidades produtivas são transferidas

para outros espaços territoriais do mundo, principalmente nos países subdesenvolvidos,

onde se observa uma exploração mais intensa da força de trabalho, seja pelo baixo preço

dos salários, seja pela fragilidade das legislações trabalhistas locais. Essa

desterritorialização aumenta ainda mais “o caráter desigual e combinado da dinâmica

capitalista” (NETTO; BRAZ, 2010, p. 216, grifos dos autores).

A reestruturação produtiva é baseada numa “(...) intensiva incorporação à

produção de tecnologias resultantes de avanços técnico-científicos”, que visam reduzir

a demanda de trabalho vivo (NETTO; BRAZ, 2010, p. 216, grifos dos autores). Os

efeitos que a produção toyotista tem causado à força de trabalho são devastadores,

caracterizando-se, segundo Antunes, como “um processo de heterogeneização,

fragmentação e complexificação da classe trabalhadora”, e por Mattoso, como

fenômenos do “aprofundamento do desemprego estrutural, da rápida construção e

desconstrução de habilidades, da perda salarial e do retrocesso da luta sindical”. Dessa

forma, entende-se que as mudanças processadas no mundo da produção e do trabalho e,

ao mesmo tempo, a insegurança em manter o emprego revelam a tentativa do grande

capital em aumentar a produtividade do trabalho, na busca de recuperar o seu padrão

anterior de desenvolvimento expansionista (ANTUNES & MATTOSO apud

BEHRING, 2002, p. 179, grifos dos autores).

O toyotismo enquanto padrão de produção caracterizou-se pela racionalização

do processo produtivo, baseado num forte disciplinamento da força de trabalho e

estimulado pela necessidade de implantar formas de trabalho mais intensivas. As

funções realizadas antes pela gerência científica passaram agora a ser incorporadas às

atividades dos trabalhadores, mediante o trabalho em equipe, na transferência de

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responsabilidades de elaboração e controle da qualidade da produção. A exploração do

trabalho se expande pelo fato de os operários trabalharem simultaneamente com várias

máquinas diversificadas, e também pelo ritmo e pela velocidade da cadeia produtiva.

Assim, o padrão de produção e acumulação toyotista reinaugura um novo patamar de

intensificação e exploração da força de trabalho, na articulação das formas relativa e

absoluta da extração da mais-valia.

Como se pode perceber, e de acordo com Behring (2002), esses processos têm

abalado expressivamente as condições de vida e de trabalho da classe trabalhadora e

vêm causando mudanças significativas nas formas de sua organização política, com a

diminuição do poder de reivindicação dos sindicatos e de organização e mobilização dos

trabalhadores. Trata-se de uma expressão direta da dificuldade de se estabelecer um

contato mais próximo dos sindicatos e da classe trabalhadora, na busca de alianças entre

os setores representativos e aqueles trabalhadores precarizados, subcontratados, e

também os desempregados, o que enfraquece a luta dos trabalhadores e sua resistência

ao processo de reestruturação produtiva do sistema do capital.

Ao lado das mudanças operadas pelo padrão de acumulação toyotista, ocorre o

processo que alguns analistas designam como financeirização do capital. Trata-se,

segundo Husson, da formação de um mercado mundial unificado, através das

transnacionais, na padronização da forma de produção e distribuição de produtos e

serviços, incluindo uma redefinição das especialidades no mercado global. Um processo

que vem sendo intensificado pela revolução tecnológica, com a horizontalização das

empresas e sua ligação pela rede de informática, e também, pelo neoliberalismo, com o

afastamento dos obstáculos legais e políticos que impedem a circulação das mercadorias

e do dinheiro (HUSSON apud BEHRING, 2002).

Para Netto & Braz, os fluxos econômicos mundiais sempre fizeram parte do

capitalismo, mas a fase monopolista do capital acentuou-os ainda mais. No cenário

atual, “eles se apresentam com particularidades que não decorrem apenas da sua grande

expansão”, como, por exemplo, as interações comerciais, que “hoje são muito mais

significativas entre os países centrais do que entre os centros e as periferias” (NETTO;

BRAZ, 2010, p. 229).

Conforme Harvey, citado pelos referidos autores, o processo de

financeirização do capital vem crescendo desde 1973, com seu estilo especulativo e

predatório. As características centrais desse movimento no capitalismo contemporâneo

são:

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Valorizações fraudulentas de ações, falsos esquemas de enriquecimento

imediato, a destruição estruturada de ativos por meio da inflação, a

dilapidação de ativos mediante fusões e aquisições e a promoção de níveis de

encargos de dívidas que reduzem populações inteiras, mesmo nos países

capitalistas avançados, a prisioneiros da dívida, para não dizer nada das

fraudes corporativas e do desvio de fundos (...) decorrentes de manipulações

do crédito e das ações. (HARVEY apud NETTO; BRAZ, 2010, p. 230).

Por meio dos recursos informacionais, o processo de financeirização do capital

teve suporte na gigantesca concentração do sistema bancário e financeiro que, no curso

das três últimas décadas do século XX, acompanhou o processo de acumulação geral

operado na economia capitalista, rumo à monopolização do sistema financeiro. Netto &

Braz destacam que “a razão essencial da financeirização é outra: ela resulta da

superacumulação e, ainda, da queda das taxas de lucro dos investimentos industriais

registrada entre os anos setenta e meados dos oitenta”. É que “o capitalismo é um

sistema econômico que prefere não produzir em vez de produzir sem lucro” (NETTO;

BRAZ, 2010, p. 231).

Dessa forma, as finanças passaram a constituir, nas últimas décadas do século

XX, o “sistema nervoso” do capitalismo. Nela encontram-se a instabilidade e os

desequilíbrios da economia dessa fase do estágio imperialista. No marco da

financeirização foi possível ao capital aumentar o poder dos países centrais em

detrimento dos países subdesenvolvidos, através da dívida externa contraída por esses

países, com propostas de “ajustes” em suas economias, por meio das “reformas”

recomendadas e monitoradas pelas agências internacionais, pelo Fundo Monetário

Internacional (FMI) e pelo Banco Mundial (BM), que representam os interesses da

“oligarquia das finanças”. Netto & Braz constatam que “os países dependentes e

periféricos tornaram-se exportadores de capital para os países centrais” (NETTO;

BRAZ, 2010, p. 235, grifo dos autores).

Como uma das tentativas de solução da crise econômica global, o capital passa

a desenvolver a proposta neoliberal, que para Netto se direciona no sentido da regressão

que aponta para a barbarização em larga escala da vida social. O neoliberalismo surge

nos países de capitalismo central e considera o intervencionismo do Estado do passado

um impedimento ao livre desenvolvimento da economia de mercado. A ofensiva

neoliberal encontra apoio nesse movimento, que tem como essência “uma

argumentação teórica que restaura o mercado como instância mediadora societal

elementar e insuperável e uma proposição política que repõe o Estado mínimo como

única alternativa e forma para a democracia” (NETTO, 2007, p. 77, grifo do autor).

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De acordo com Netto & Braz, o que se denomina ideologia neoliberal

compreende “uma concepção de homem (considerado atomisticamente como

possessivo, competitivo e calculista), uma concepção de sociedade (tomada como um

agregado fortuito, meio de o indivíduo realizar seus propósitos privados)”, tudo isso

fundado na ideia de uma desigualdade necessária e natural entre os homens e numa

noção de liberdade como liberdade de mercado. O grande capital fomentou e patrocinou

um conjunto de teses conservadoras que se difundiu na sociedade contemporânea sob a

designação de neoliberalismo para legitimar o projeto do capital monopolista de romper

com as restrições sociopolíticas que limitavam a sua liberdade de movimento (NETTO;

BRAZ, 2010, p. 226).

Teixeira afirma que o neoliberalismo surge na sociedade como “uma reação

teórica e política ao modelo de desenvolvimento centrado na intervenção do Estado, que

passou a se constituir, desde então, na principal força estruturadora do processo de

acumulação de capital e de desenvolvimento social”. Os seus defensores consideram

essa intervenção como a principal causa da crise atual do sistema capitalista, passando a

atacar qualquer limitação dos mecanismos de mercado por parte do Estado e apontando

essa restrição como um ataque fatal à liberdade política e econômica.

Nessa direção, observa-se um retorno à tese do liberalismo clássico de que “o

mercado é a única instituição capaz de coordenar racionalmente quaisquer problemas

sociais, sejam eles de natureza puramente econômica ou política”. Dessa forma, a

preocupação da perspectiva neoliberal está em revelar o mercado como um mecanismo

insuperável na estruturação e coordenação das decisões de produção e investimentos

sociais, e também como um organismo indispensável para solucionar o problema do

desemprego e da distribuição de renda na sociedade (TEXEIRA, 1998, p. 195).

Por sua vez, Behring & Boschetti acrescentam que para os representantes do

pensamento neoliberal, a longa e profunda recessão da década de 1970 resultava do

“poder excessivo e nefasto dos sindicatos e do movimento operário, que corroeram as

bases da acumulação, e do aumento dos gastos sociais do Estado, o que desencadearia

processos inflacionários”. Outro argumento é que “a intervenção estatal na regulação

das relações de trabalho também é negativa, pois impede o crescimento econômico e a

criação de emprego”.

Os neoliberais defendem a ideia de que para retirar a sociedade da crise na qual

se encontra é necessário diminuir a intervenção estatal de forma a priorizar a

estabilidade financeira do mercado, “o que só seria assegurado mediante a contenção

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dos gastos sociais e a manutenção de uma taxa ‘natural’ de desemprego, associada a

reformas fiscais, com redução de impostos para os altos rendimentos”. Tudo em nome

da livre mobilidade de mercado, tendo em vista a recuperação do processo de

acumulação e expansão do sistema capitalista (BEHRING; BOSCHETTI, 2011, p. 126).

A defesa de um mercado livre, na perspectiva neoliberal, remete a sua

eficiência em termos de inovação e crescimento econômico, porquanto a intervenção

estatal é enfrentada como algo negativo, pois faz com que “a rede de informações do

sistema de preços emita sinais enganadores, além de reduzir o escopo da

experimentação econômica” (NETTO, 2007, p. 79). Nesse sentido, para os seus

representantes, o mercado é quem determina o espaço legítimo do Estado, ou seja, as

funções do Estado apenas se limitam a promover uma estrutura compatível com o livre

desenvolvimento do mercado e a ofertar serviços que o mercado não pode fornecer.

Netto identifica o objetivo das medidas restritivas neoliberais e esclarece que:

“o que desejam e pretendem, em face da crise contemporânea da ordem do capital, é

erradicar mecanismos reguladores que contenham qualquer componente democrático

de controle do movimento do capital”. Em outras palavras, “o que desejam e pretendem

não é ‘reduzir a intervenção do Estado’, mas encontrar as condições adequadas (hoje

só possíveis com o estreitamento das instituições democráticas) para direcioná-las

segundo seus interesses de classe” (NETTO, 2007, p. 81, grifos do autor).

De acordo com Netto & Braz, a recessão generalizada da década de 1970

exigia do capital monopolista a implementação de estratégias políticas globais para

reverter a conjuntura que lhe era desfavorável. A primeira estratégia apontada pelos

autores foi o ataque ao movimento sindical, sendo este “um dos suportes do sistema de

regulação social encarnado nos vários tipos de Welfare State”, no momento em que “o

capital atribui[a] às conquistas do movimento sindical a responsabilidade pelos gastos

públicos com as garantias sociais e a queda das taxas de lucro às suas demandas

salariais”. Esse ataque se processou por meio de medidas legais restritivas, que tendem

a reduzir o poder de organização e intervenção do movimento sindical dos trabalhadores

(NETTO; BRAZ, 2010, p. 215).

Nesse momento, a hegemonia neoliberal toma formas claramente repressivas,

de que são exemplos as ações desenvolvidas pelos governos Thatcher (Inglaterra, 1979)

e Reagan (EUA, 1980). Além destes, os governos Khol (Alemanha, 1982) e Schlutter

(Dinamarca, 1983) também se destacaram. Contudo, a política neoliberal não se limitou

apenas a esses países, mas se estendeu a quase todos os governos eleitos na Europa

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ocidental na década de 1980, que passaram a implementar programas seguindo suas

diretivas. Observa-se que todas as medidas restritivas tomadas nesses países não foram

capazes de solucionar a crise do sistema do capital nem alteraram os índices de recessão

e baixo crescimento econômico, conforme defendiam muitos autores.

Contudo, as medidas adotadas tiveram efeitos destrutivos e mudaram

significativamente as condições de vida dos trabalhadores, provocando o aumento do

desemprego, a destruição de postos de trabalho não qualificados, a redução dos salários

devido ao aumento da oferta de força de trabalho e a redução de gastos com políticas

públicas. Tais medidas concentraram-se na desregulamentação dos mercados, na

abertura comercial e financeira, na privatização do setor público e na redução do Estado

na área social (BEHRING; BOSCHETTI, 2011, p. 126).

O ajuste neoliberal também atingiu os países subdesenvolvidos. Na América

Latina, os efeitos da crise capitalista e o crescimento da dívida externa levaram à

implementação de reformas estruturais “recomendadas” pelo BM e pelo FMI, através do

Consenso de Washington37, e aceitas em quase todos os países como condição imposta

para a concessão de empréstimos aos países periféricos, baseadas na desregulamentação

dos mercados, na abertura comercial e financeira, na privatização do setor público e na

significativa redução da atuação do Estado na área social. Além disso, o plano

neoliberal propôs a elevação dos juros, a liberalização do mercado interno e a

dolarização das economias, com o objetivo de restabelecer a balança de pagamentos

(pagamento de dívida externa e importações) e controlar a inflação através de medidas

restritivas (MONTAÑO; DURIGUETTO, 2010, grifos dos autores).

Para Behring & Boschetti (2011), a reação burguesa à grande crise global do

capital desencadeou novas formas de pressões para uma reconfiguração do papel do

Estado capitalista nos anos 1980 e 1990, o que refletiu diretamente na forma de atuação

do Estado na área social, evidenciando que a crise estrutural apagou a ilusão de que as

crises capitalistas poderiam ser controladas por meio do intervencionismo estatal de tipo

keynesiano. Foi assim que, “diante das dificuldades de conter a espiral da crise, a

depender da opção política e social dos governos, iniciou-se a implementação de

37 Trata-se de um encontro convocado pelo Institute for Internacional Economics na capital dos Estados

Unidos, em 1989, entre os organismos de financiamento internacional de Bretton Woods – Fundo

Monetário Internacional, Banco Interamericano de Desenvolvimento e o Banco Mundial – e os

funcionários do governo norte-americano e economistas e governantes latino-americanos. Teve o objetivo

de avaliar as reformas econômicas da América Latina, fundadas na proposta neoliberal. A partir desse

evento o FMI e o BM passaram a orientar as políticas econômicas adotadas pelos Estados latino-

americanos mediante a adoção de programas de estabilização e de ajuste fiscal. (MONTAÑO;

DURIGUETTO, 2010).

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programas de austeridade de natureza deflacionista, os chamados ajustes estruturais”

(BEHRING & BOSCHETTI, 2011, p. 116).

A nova configuração do Estado surge na sociedade contemporânea articulada à

defesa de que essa instituição estaria passando por um processo de “reforma”. Tal

reforma tem por objetivo a negação de diversas conquistas (econômicas, políticas,

sociais e trabalhistas) obtidas ao longo do século XX. Assim, no lugar de uma “reforma

do Estado”, estar-se-ia vivenciando um verdadeiro movimento de “(contra)reforma do

Estado” moderno em todas as áreas de atuação.

De acordo com Montaño & Duriguetto (2010), o processo de “(contra)reforma

do Estado” tem como fundamento a crise estrutural do capitalismo e as respostas

neoliberais apresentadas pelo grande capital como saída para essa crise. Durante a fase

de pleno desenvolvimento econômico, desfruta-se de algumas conquistas na área social,

através da atuação do Estado, o que para muitos estudiosos caracterizou uma sociedade

de “abundância”, entre a década de 1940-1970.

No novo cenário social mundial de crise estrutural estaria ocorrendo um

processo contrário, o da “escassez” dos recursos estatais:

Se na sociedade da abundância o objetivo é o estímulo ao consumo, à

procura, passando o Estado (keynesiano) a intervir no fomento à demanda

efetiva, à circulação das mercadorias, ao consumo estatal; contrariamente, na

sociedade da escassez, a questão remete ao corte de “gastos supérfluos”,

particularmente os gastos com a força de trabalho e os gastos sociais do

Estado. (MONTAÑO; DURIGUETTO, 2010, p. 203).

Dessa forma, “a escassez levaria a uma crise fiscal do Estado, em que os gastos

superam as receitas, gerando déficit estatal, o que acaba por ser combatido, inicialmente

com inflação permanente, depois com os cortes orçamentários” no setor público. Como

decorrência desse movimento, a capacidade de intervenção do Estado na área social

passa a ser drasticamente reduzida, pois no neoliberalismo, contrariamente ao período

keynesiano, propõe-se

o fortalecimento da oferta, reduzindo os custo de produção, praticamente

com a diminuição do valor da força de trabalho (precarizando salários,

direitos trabalhistas e serviços e políticas sociais estatais); aqui, a ênfase não

está na ampliação da capacidade de consumo (para a produção em massa),

mas na diminuição dos custos e na flexibilização da produção (no contexto de

crise), e é esse o motivo pelo qual a orientação neoliberal recai na defesa da

“liberdade” do mercado e da não participação (social) do Estado.

(MONTAÑO; DURIGUETTO, 2010, p. 204).

Contudo, nesse contexto a ideia de um “Estado mínimo” não remete àquela do

liberalismo, em que o Estado apenas é um “guarda” da propriedade privada. Se, por um

lado, a chamada crise fiscal do Estado passa a constituir uma determinação essencial

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sobre as mudanças apresentadas pelo Estado na conjuntura neoliberal, por outro lado,

conforme sustenta Chesnais, a partir de 1978,

a burguesia mundial (...) empreendeu em proveito próprio (...) a modificação

internacional (...) das relações políticas entre as classes. Começou então a

desmantelar as instituições e estatutos que materializavam o estado anterior

das relações. As políticas de liberalização, desregulamentação e privatização

(...) devolveram ao capital a liberdade que havia perdido desde 1914, para

mover-se e desdobrar-se à vontade no plano internacional. (CHESNAIS apud

MONTAÑO; DURIGUETTO, 2010, p. 204-205).

Nesse sentido, o processo de “(contra)reforma do Estado” se expressa nos

“ajustes estruturais” de base monetarista e neoliberal, que se processam após a década

de 1970 nos planos econômico, politico e social dos Estados nacionais, por meio das

pressões exercidas pelas instituições financeiras internacionais. Foram exigências

estabelecidas pelo grande capital internacional como condição para os países receberem

os empréstimos e os investimentos das multinacionais. Adequar-se a esses “ajustes” era

uma necessidade para a inserção de um país na dinâmica capitalista contemporânea

(MONTAÑO; DURIGUETTO, 2010).

Para tanto, conforme Montaño & Duriguetto, a principal função econômica

desenvolvida pelo Estado passou a ser garantir as condições favoráveis aos

investimentos internacionais, tais como: a) a segurança das instituições, relacionada à

estabilidade do cenário político do país que recebe o investimento; b) a infraestrutura,

custeada pelos Estados nacionais com dinheiro público; c) a privatização e a

desnacionalização de empresas públicas, que significa a transferência das empresas

públicas para o setor privado transnacional; d) a redução e a restrição dos gastos

públicos sociais, que implica o corte dos gastos relacionados à área social, privatizando-

se a saúde, a assistência, a previdência social, a educação etc.; e) a desregulamentação

das relações de trabalho, com a diminuição dos salários e direitos trabalhistas, e a

flexibilização do trabalho; f) e a desobrigação, desoneração e remuneração do capital

especulativo, com base em incentivos fiscais e no crescimento das taxas de lucros do

capital financeiro do país (MONTAÑO; DURIGUETTO, 2010, p. 205-206).

O período keynesiano teve como orientação principal o desenvolvimento da

intervenção estatal na área social. O atendimento das demandas sociais foi concebido

devido à condição de expansão econômica do capital e da pressão reivindicativa da

classe trabalhadora. Para os neoliberais, a causa da suposta inflação deveu-se às

demandas dos trabalhadores, produzindo a crise fiscal do Estado. Combater a inflação

requeria mudanças nos custos de reprodução da força de trabalho. Esse argumento

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neoliberal sobre o corte dos gastos sociais apenas esconde os reais interesses por trás da

redução do custo do trabalho. A verdadeira explicação para a crise fiscal do Estado

reside “na reorientação do fundo público para as demandas do empresariado, combinada

à queda da receita engendrada pelo ciclo depressivo e à diminuição da taxação sobre o

capital” (MONTAÑO; DURIGUETTO, 2010, p. 208).

Traduzindo esse movimento, o Estado antes estava mais voltado às demandas

na área de proteção social, por causa da necessidade econômica de um maior consumo,

visando à ampliação da taxa de lucratividade do capital; com o aprofundamento da

crise, quando a tendência dominante se direciona ao controle das políticas monetárias e

fiscais, o Estado é redimensionado e passa a intervir mais diretamente na área

econômica, com medidas claramente protecionistas diante do agravamento das

condições materiais de reprodução do capital.

Portanto, na conjuntura neoliberal de liberalização do mercado e de

“(contra)reforma do Estado”, na recomposição da hegemonia capitalista, o Estado

assume uma nova forma, compatível com as estratégias atuais de acumulação do capital

e sob a orientação do comando financeiro.

Na conjuntura neoliberal, parece claro que o Estado continua a cumprir a sua

função social de garantidor das condições necessárias de produção e reprodução do

sistema do capital, ao facilitar o fluxo global de mercadorias e dinheiro através da

desregulamentação de direitos sociais, de garantias fiscais ao capital, do processo de

privatização e da viabilização dos superlucros capitalistas. A ideologia neoliberal foi

sustentada na necessidade de legitimar o projeto do capital monopolista de superar as

restrições sociais e políticas que limitam a sua liberdade de mercado.

Entretanto, “os representantes dos monopólios sabem que a economia

capitalista não pode funcionar sem a intervenção estatal”. O capital continua a

demandar a intervenção do Estado pelo simples fato de que ele não existe sem o Estado,

como aparato de comando político, que o auxilia em seu processo de autorreprodução

de valor. Na verdade, o objetivo real do grande capital não é diminuir a intervenção do

Estado, mas restringir as suas “funções estatais coesivas”, precisamente aquelas que

respondem às demandas direcionadas à satisfação dos direitos sociais (NETTO; BRAZ,

2010, p. 227).

O ataque do grande capital às dimensões democráticas da intervenção do

Estado começou tendo como alvo a regulamentação das relações de trabalho, mediante

o processo de flexibilização, e avançou na direção da redução, mutilação e privatização

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dos sistemas de seguridade social. Em seguida, estendeu-se à intervenção do Estado na

economia, através da imposição das “reformas” que privatizaram complexos industriais

inteiros e serviços de primeira necessidade (como distribuição de energia, transportes,

saneamento básico etc.).

Assim, o processo de privatização permitiu a abertura de espaços de produção

para setores monopolistas intervirem e lucrarem. A transferência dessa monumental

riqueza social, construída através dos recursos gerados pela massa de trabalhadores,

para o grupo monopolista, ocorreu nos países de capitalismo central, mas

principalmente nos países periféricos (NETTO; BRAZ, 2010).

No curso do desenvolvimento capitalista, o Estado tem por finalidade sustentar

uma ação coercitiva que visa realizar os objetivos de acumulação e de expansão do

capital, independentemente dos mecanismos e formas de atuação utilizadas, ainda que

aparentem ser contraditórios. Como visto, não deixam nenhuma possibilidade para que

se coloquem os interesses dos trabalhadores acima dos interesses dos capitalistas. No

contexto de crise estrutural do capital, não poderia ser diferente; o Estado passa a

atender às necessidades desse sistema em crise através de um conjunto de medidas

neoliberais de caráter restritivo e autoritário conforme as exigências postas para a

restauração da normalidade do crescimento econômico.

As aparentes alterações na forma do Estado nesse processo de substituição da

orientação keynesiana para a hegemonia neoliberal estabelecem uma continuidade à sua

atuação sempre fundamental e presente no auxílio e proteção da reprodução expansiva

do capital. Esta se torna cada vez mais importante, passando a se comprometer com a

sustentação de atividades diretas no setor de produção e circulação, numa colaboração

muito mais intervencionista do que no período anterior.

Nessa direção, cabe destacar aqui a ilusão daqueles que acreditam e orientam

suas ações contrárias ao processo de continuidade do neoliberalismo, na esperança de

um retorno imediato em benefício dos trabalhadores, com a retomada do

keynesianismo. E também daqueles que pensam que a solução para todos os problemas

da humanidade consiste na alteração da função do Estado, ao utilizá-lo como meio

facilitador das lutas e conquistas nas áreas sociais.

A história do século XIX até os dias atuais tem demonstrado a falência de todas

as tentativas realizadas para uma distribuição mais igualitária da riqueza produzida, e

como ao longo dos séculos as desigualdades sociais não só não diminuíram na

sociedade, como também se tornaram cada vez mais amplas e profundas. Se durante o

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desenvolvimento expansionista do capital, este pode conceder algumas conquistas à

classe trabalhadora, a partir da década de 1970, com a imposição da crise estrutural, isso

já não é mais viável. Pois o capitalismo, ao tempo que busca de todas as formas a

recuperação da sua taxa de lucratividade, produz miséria, pobreza e muita destruição em

todos os níveis, numa proporção nunca antes vista na história da humanidade.

Como visto com base em Mészáros (2011), a atual crise é uma crise de caráter

estrutural, e também geral das instituições capitalistas de controle social na sua

totalidade; por isso o capital está a atingir seus limites estruturais absolutos. Ademais,

todas as transformações promovidas pelo sistema capitalista, com o auxílio do Estado,

na busca da recuperação do seu patamar de crescimento econômico não resolvem os

problemas para a retomada de sua taxa de lucratividade, mas tão só contribuem para o

seu agravamento.

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5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A análise aqui apresentada sobre o Estado, com base em Marx, Engels e

Mészáros, e as várias formas de sua atuação durante o desenvolvimento do capitalismo

monopolista – no keynesianismo e no neoliberalismo –, em benefício do sistema do

capital e suas personificações, buscam recuperar sua função social como esfera de

dominação, legitimação e de conservação do poder material do capital na ordem social

constituída. Para entender como o Estado contribui para o controle sociometabólico do

capital, busca-se apreender a relação entre política e economia, ou seja, a relação entre

capital e Estado.

Primeiramente, analisam-se os fundamentos sócio-históricos do Estado.

Percebe-se que sua gênese esta intimamente relacionada à base material de reprodução

social, quando, no momento do surgimento do excedente produtivo e da propriedade

privada, houve a possibilidade da exploração do homem pelo homem, e

consequentemente, a divisão da sociedade em classes sociais completamente opostas

entre si. De acordo com Engels (1997) em suas teses sobre o Estado, entende-se que o

Estado não pode corresponder à função de um poder mediador (situado

“aparentemente” acima dos interesses das classes sociais), conforme pensado pelos

liberais, pois ele é sempre o Estado da classe mais poderosa, a classe economicamente

dominante, e que por intermédio dele tornou-se também a classe politicamente

dominante. Assim, o Estado se converte numa força de comando político para organizar

e administrar a sociedade de classes no seu processo de reprodução social.

Na passagem de uma forma de sociabilidade para outra, a exemplo do que

aconteceu na transição do feudalismo para o capitalismo, verifica-se que o Estado

mantém seus fundamentos ontológicos enquanto representante da classe mais poderosa,

a classe burguesa, e continua a auxiliar na administração e na manutenção da

reprodução material. As novas condições materiais deram origem a outras relações

sociais e, em função destas, foi exigida uma nova filosofia, uma nova concepção de

política e economia. Para tanto, o Estado teve de abandonar a sua forma absolutista, do

feudalismo, e passou a se constituir em sua forma moderna liberal, para melhor atender

às demandas reprodutivas da nova ordem de dominação social. Segundo Laski (1973), o

sistema do capital inicialmente transformou a sociedade em todas as esferas, para

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somente depois capturar o Estado, e desse modo ter em suas mãos o supremo poder

coercitivo da sociedade, utilizando-o de acordo com suas próprias finalidades.

Com as contribuições de Mészáros (2011) sobre a reprodução do sistema do

capital e a constituição do Estado moderno, constatou-se que o capital não se trata de

uma “entidade material”, tampouco de uma estrutura social racionalmente controlável,

pois sua atividade produtiva não tem como objetivo a satisfação das necessidades

humanas, mas sim a produção de lucros, e por isso sua atividade é orientada pela

expansão e movida pela acumulação constante de capital. Assim, o capital, no seu

processo de desenvolvimento histórico, constitui um sistema que detém em suas mãos

um poder totalizador que a tudo domina, em todas as esferas da sociedade, sejam elas

sociais, políticas, econômicas ou ideológicas, transformando-se no mais eficiente modo

de produção de extração de trabalho excedente e controlando todos os espaços da

existência humana.

Na condição de sociedade dividida em classes sociais antagônicas, a forma de

organização social capitalista também exige um poder para regular as relações sociais;

segundo Mészáros (2011), uma “estrutura de comando singular”, o Estado. Este passa a

complementar o poder de controle do capital de forma indispensável, não apenas

servindo-o de forma pontual, mas atuando nos aspectos essenciais para o

desenvolvimento desse sistema sociometabólico. Nessa relação de complementaridade à

base material do capital, o Estado não apenas auxilia na esfera jurídico-legal, mas

também intervém nas relações materiais de produção e reprodução social do sistema

capitalista. Assim, com base em Marx e Engels, e nas reflexões de Mészáros, o Estado é

o “comitê executivo da classe dominante”; enquanto esfera de comando político do

capital, ele exerce sua função de acordo com as demandas da classe capitalista.

Entende-se que não é através da estrutura de comando político do Estado que

se pode comandar o sistema do capital, como defendem muitos autores, pelo fato de que

o Estado não tem como impor limites ao capital, porquanto não possui autonomia em

relação à estrutura econômica do capital, por ser o capital quem orienta a sua forma de

atuação. Dessa forma, o Estado moderno funciona como um comando político

inseparável do capital, dada a necessidade deste de um poder abrangente para manter

em ordem a concorrência entre capitalistas e para administrar as relações antagônicas de

classe.

Ainda segundo Mészáros (2011), os defeitos estruturais do capital, causados

pela “ausência de unidade” de controle deste, geram contradições e provocam a

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desestabilização do sistema, através da separação entre: produção e controle; produção

e consumo; e produção e circulação, o que acarreta crises na sociedade capitalista.

Nesse processo, a intervenção remediadora do Estado, com o objetivo de assegurar o

funcionamento do sistema do capital, revela-se de forma mais explícita nos mecanismos

utilizados em sua atuação corretiva sobre os defeitos estruturais do capital.

A partir do pressuposto de que o Estado não modifica sua natureza no curso da

evolução da base material da reprodução social do capital, busca-se compreender como,

na fase do capitalismo monopolista, nos países imperialistas desenvolveu-se a noção de

Estado de Bem-Estar Social. De acordo com Lessa (2013), o ponto-chave para entender

o que genericamente se conhece como Estado de Bem-Estar Social acha-se nas

transformações das necessidades de reprodução do capital em sua fase monopolista,

sobre a qual se processam a gênese e a difusão dessa noção de Estado, que no momento

da reprodução do capital monopolista conduz a uma articulação superior da produção de

mais-valia, combinando a extração de mais-valia relativa e absoluta. Isso resulta nas

mudanças ocorridas no século XX na relação do Estado com a base econômica, na

formação da aristocracia operária, na separação da classe trabalhadora e no surgimento

dos sindicatos e partidos dos trabalhadores de caráter reformista e conservador.

Dessa forma, somente as modificações no desenvolvimento capitalista não

foram suficientes para a generalização do mito acerca do Estado de Bem-Estar Social.

Segundo Lessa (2013), uma operação ideológica de grandes proporções foi necessária.

O primeiro movimento é a negação do trabalho alienado como fundamento do Estado,

que tende a substituir a relação de exploração do homem pelo homem, como fundante

do Estado por uma concepção de transição ao comunismo que se daria pela mediação

daquele. O segundo movimento, intimamente articulado ao primeiro, consiste na

negação do caráter de classe do Estado. Ambos os movimentos forneceram elementos

teóricos indispensáveis ao processo de aceitação da noção de Estado de Bem-Estar

Social.

Destacam-se ainda as consequências políticas da propagação desse mito,

fundamentada na crença da capacidade de o Estado, pela via das políticas públicas,

poder superar as condições degradantes da humanidade no contexto contemporâneo.

Ademais, ressalta-se a função social dessa noção de Estado, que esconde o processo de

continuidade histórica entre a produção combinada de mais-valia relativa e absoluta e as

novas modalidades de intervenção do Estado na base econômica, pela mediação das

politicas públicas, e também para velar o movimento de continuação do Estado antes,

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durante e depois do período 1940-1970. Constata-se, portanto, que o Estado continua a

ser o responsável pela manutenção dos negócios da classe burguesa, na contramão do

que defendem muitos autores, pois o seu caráter de classe não se alterou.

No contexto da crise estrutural do capital, busca-se compreender como no

curso do desenvolvimento capitalista as crises cíclicas passaram a uma fase de contínuo

depressivo e, em seguida, analisa-se a natureza da crise estrutural e suas determinações

históricas, porquanto se entende que essa crise é um desdobramento da própria estrutura

contraditória do sistema sociometabólico do capital. Foi visto que todas as propostas

para solucionar a crise estrutural dentro dos limites desse sistema falharam. Segundo

Mészáros (2011), isso se deve a dois fatos. O primeiro deles é que não se pode eliminar

a relação antagônica e irreconciliável entre o capital e o trabalho; o segundo deve-se ao

fato de todas as esferas da vida humana na sociedade capitalista já estarem incorporadas

às leis da lógica exploradora do capital sobre o trabalho.

Os limites que se apresentam na conjuntura atual não representam apenas uma

“ausência de unidade”, mas um “impedimento real” de reprodução ampliada do capital

e do funcionamento de todo o seu sistema global. Mesmo com todas as medidas

implementadas pelo grande capital e seu Estado, na busca de solucionar a crise

estrutural do capital, através da reestruturação produtiva, da financeirização do capital e

do neoliberalismo, este sistema sociometabólico segue na direção do seu aniquilamento,

porque não pode mais se desviar de suas agudas contradições.

Quanto ao Estado nessa conjuntura, ele permanece como o defensor dos

interesses da classe de maior poder econômico. Mas a partir da crise estrutural, o capital

passa a exigir uma nova forma de atuação para o Estado, tendo em vista um maior

comprometimento com a base da reprodução material desse sistema sociometabólico.

Isso significa uma diminuição constante dos recursos na área social e a negação de

direitos sociais anteriormente conquistados pelos trabalhadores. As modificações

realizadas na forma de o Estado intervir sobre a realidade visaram torná-lo o mais

eficiente possível para manter o ordenamento da reprodução ampliada do sistema

capitalista no contexto atual.

Assim, o mesmo Estado democrático de antes que reconheceu a luta da classe

trabalhadora por direitos e os absorveu nos limites do capitalismo, no curso dos “30

anos dourados”, sem nenhuma alteração significativa em seus mecanismos de poder

político, vem desenvolvendo, há algumas décadas, o programa neoliberal, estruturado

num crescente autoritarismo. No contexto do capitalismo em crise, o mesmo Estado que

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aprovou os benefícios aos trabalhadores agora tende a retirá-los em razão das

necessidades de reprodução do sistema sociometabólico do capital em crise. Parece

claro que o que aconteceu foi apenas mais uma modificação histórica entre uma forma

de atuação e outra do Estado moderno, na passagem do keynesianismo ao

neoliberalismo, com a utilização de novos recursos no atendimento dos interesses do

sistema do capital global. Isto demonstra que não há nenhuma incompatibilidade entre a

função social exercida por ambas as formas de atuação do Estado.

Com relação à atuação do Serviço Social, nesse quadro de determinações

estruturais do capitalismo contemporâneo e da derrota da estratégia político-social da

classe trabalhadora, parece que em vez de gerar um movimento crítico da profissão ante

as consequências operadas pela crise econômica, na direção da superação das

desigualdades sociais, os profissionais desta área mantêm-se passivos em face das novas

transformações produzidas pela crise do capital e por seu Estado. Parece que também se

acham imersos no velho engano da luta por direitos, num contexto em que as

concessões do período keynesiano já não são mais compatíveis com a realidade atual,

pois os requisitos que sustentavam a sociedade que vivenciou um período de pleno

desenvolvimento econômico das forças produtivas desapareceram com as

consequências provocadas pela crise estrutural do capital (LESSA, 2013).

De acordo com Lessa (2013), com raras exceções, atualmente, “os assistentes

sociais enquanto categoria nos resumimos à ‘colaboração crítico-construtiva’ com o

Estado”, quando, “pautamo-nos por uma aceitação geral dos marcos globais da política

econômica e social do governo burguês com críticas pontuais para promover o

aperfeiçoamento destes mesmos marcos mais gerais”. Tanto isso é verdade, que basta

analisar os eventos e produções científicas atuais do Serviço Social; nestes, na sua

grande maioria, predominam os mesmos direcionamentos sobre a compreensão das

políticas sociais, da análise do neoliberalismo, da crítica à atuação autoritária do Estado

moderno e da crise estrutura do capital. No geral, são entendidos como movimentos da

sociedade capitalista passíveis de mudanças e ajustes ante uma crise analisada como

pano de fundo, e não como fundamento do processo de reordenamento das estratégias

do capital, com consequências diretas na organização da produção e na distribuição da

riqueza, e também na relação do Estado com a sociedade civil (LESSA, 2013, p. 225).

Dada a nova conjuntura social e as medidas efetivadas pelo sistema do capital

como respostas burguesas ao acirramento da crise estrutural do capital, o que se vem

notando é uma atuação profissional dos assistentes sociais voltada a uma atitude de

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adequação às restrições impostas pela realidade em crise, que acabam presas aos antigos

conceitos de políticas sociais de caráter reformador, entendidas como únicos espaços de

lutas de classe, distanciando-se assim dos avanços alcançados e da capacidade de crítica

teórica e social dos movimentos da sociabilidade capitalista que atuaram em outros

momentos da sua evolução histórica como profissão, com a entrada do marxismo no

Serviço Social, em face das novas determinações impostas pela necessidade expansiva

do sistema do capital.

Entender esse movimento implica que a produção teórico-crítica do Serviço

Social encontrou seus limites na esfera da emancipação política (da cidadania ou

democracia) e não evoluiu rumo a uma direção pautada pela superação da relação de

exploração da classe trabalhadora, mas ficou restrita ao âmbito da conquista por direitos

sociais e políticos. Os direitos sociais podem ser incorporados à sociedade capitalista

sem que necessariamente isso signifique a sua alteração, a depender de cada período

específico. Isto resulta na manutenção da desigualdade econômica, sustentada pela

ilusão e pela incapacidade dessas concessões no sentido da superação da desigualdade

social e da pobreza. Em outras palavras, parece que se deixou de lado a necessidade

histórica da emancipação humana e da destruição do capital como objetivos essenciais

das ações orientadoras do presente, dadas as circunstâncias devastadoras geradas pela

crise estrutural do capital.

A ofensiva neoliberal do capital, no contexto de crise estrutural, não teve por

finalidade a diminuição da intervenção do Estado na economia, mas a redução

significativa das funções estatais coesivas, principalmente aquelas que se direcionam à

garantia de direitos sociais. Os impactos produzidos pela não compreensão desse

movimento acarretaram o estreitamento da luta dos trabalhadores rumo à sua

emancipação e a diminuição dos recursos da riqueza social, através de políticas públicas

mais mercantilizadas, a exemplo das privatizações na área da saúde, educação,

transporte etc. Esses acontecimentos, por terem reflexo direto nesta profissão, deveriam

conduzir a questionar os alicerces do projeto democrático tão submisso aos limites

estruturais do sistema capitalista e da atuação política do Estado moderno.

Compreender os embates enfrentados todos os dias pelos assistentes sociais

na busca por melhorias, mesmo que paliativas, para a vida da classe trabalhadora, é

perceber que os problemas não estão na forma de utilização dos instrumentos e das

políticas públicas, mas na incompatibilidade que essas mediações têm no cenário atual

de crise estrutural, devido à queda expressiva da taxa de lucros e à necessidade

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constante de acumulação do capital. Com a crise estrutural novos sacrifícios foram

demandados à classe trabalhadora, dada a sua relação de dependência e subordinação ao

sistema capitalista. Essas contradições se expressam na sociedade na sua totalidade, na

qual a atividade profissional tem apenas uma função residual no atendimento imediato e

amenizador dos males sociais provenientes de relações causais que vão muito além da

profissão. Contudo, isso não pode isentar a profissão das responsabilidades tanto sociais

quanto profissionais no enfrentamento da “questão social”, que é fruto da relação

inconciliável entre as classes sociais fundamentais.

No atual estágio do desenvolvimento capitalista a derrota da concepção

democrática em reunir forças através das conquistas sociais dos trabalhadores,

colocadas em questão pelas consequências da crise estrutural e da ofensiva neoliberal do

capital, visando à recuperação da taxa de mais-valia em queda, leva a acreditar que o

Serviço Social parou no tempo, à espera por um milagre, reproduzindo na sua prática

profissional os mesmos instrumentos e políticas de intervenção do passado. A urgência

de uma crítica teórica contundente do movimento histórico no tempo presente, ante os

novos desafios impostos pela crise econômica, tem como objetivo primordial desvelar

as condições econômicas, políticas e sociais que sustentam o capitalismo

contemporâneo, na busca de compreender a base estrutural das novas tendências de

acirramento da “questão social”, visando à superação das desigualdades sociais e da

pobreza, bem como à destruição do sistema do capital e do seu Estado. Isso exige

orientar os estudos na defesa de outra forma de organização da humanidade, sem a

existência do trabalho explorado.

A nosso ver, é urgente recolocar em pauta a crítica do Estado burguês como

um ponto fundamental na luta dos trabalhadores no processo de transformação da

sociabilidade capitalista na sua totalidade. Entende-se que não é pela mediação do

Estado, com base na administração das desigualdades sociais, que as forças políticas da

classe trabalhadoras devem sustentar suas expectativas numa sociedade humanamente

emancipada, senão mediante a superação radical das estruturas que possibilitam a

continuidade do sistema sociometabólico do capital, sendo este um passo inicial na

direção da construção de uma sociedade sem capital e sem Estado, como resultado das

ações dos próprios homens.

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