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UNIVERSIDADE FEDERAL DE ALAGOAS - UFAL
FACULDADE DE SERVIÇO SOCIAL – FSSO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SERVIÇO SOCIAL
JACIARA PEREIRA CAMPOS
A FUNÇÃO SOCIAL DO ESTADO E O CONTROLE DO CAPITAL NO
CAPITALISMO DOS MONOPÓLIOS
Maceió/ AL
2016
JACIARA PEREIRA CAMPOS
A FUNÇÃO SOCIAL DO ESTADO E O CONTROLE DO CAPITAL NO
CAPITALISMO DOS MONOPÓLIOS
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação
em Serviço Social da Universidade Federal de Alagoas,
como requisito parcial para obtenção do título de Mestre
em Serviço Social.
Orientadora: Profa. Dra. Maria Cristina Soares Paniago
Maceió/AL
2016
Catalogação na fonte
Universidade Federal de Alagoas
Biblioteca Central Divisão de Tratamento Técnico
Bibliotecária Responsável: Helena Cristina Pimentel do Vale
C198f Campos, Jaciara Pereira.
A função social do Estado e o controle do capital no capitalismo dos
monopólios / Jaciara Pereira Campos. – 2016.
126f. : il.
Orientadora: Maria Cristina Soares Paniago.
Dissertação (Mestrado em Serviço Social) – Universidade Federal de
Alagoas. Faculdade de Serviço Social. Programa de Pós-graduação em
Serviço Social. Maceió, 2016.
Bibliografia: f. 125-126.
1. Serviço social – Aspectos políticos. 2. Estado. 3. Capitalismo – Crise.
Estrutural. 4. Monopólios. I. Título.
CDU: 364.1
Para José de Almeida, meu pai, e a
Edilene Campos, minha mãe, pela
paciência e incentivo de todos os dias.
AGRADECIMENTOS
Durante o processo de construção deste trabalho, muitos foram os desafios a
ser vencidos e obstáculos a ser superados. Precisei vencê-los. Agradeço às pessoas que
sempre acreditaram no meu potencial como pesquisadora, apoiando-me e incentivando-
me na realização deste mestrado.
Agradeço a meu pai, José de Almeida, a minha mãe, Edilene Campos, e ao
meu irmão Jatanael Campos – as pessoas mais importantes da minha vida –, pela
paciência e pelo apoio incondicional em todos os momentos do curso e, especialmente,
na elaboração deste trabalho de conclusão do mestrado.
Agradeço a todos os meus colegas de turma pelos momentos de reflexões
teóricas tão construtivas, em especial às minhas amigas Maria Roselane e Maryanna
Lins, por terem compartilhado as alegrias e as angústias desse processo e por terem me
ajudado, ou simplesmente me escutado, em todos os momentos difíceis que vivenciei
durante o curso.
Agradeço ao corpo docente do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social
(PPGSS) da Universidade Federal de Alagoas (UFAL), reconhecendo que aprendi
muito com os ensinamentos ministrados, em especial ao Professor Doutor Talvanes
Eugênio e à Professora Doutora Reivan Marinho, que com suas observações e sugestões
foram de muita relevância na finalização desta dissertação.
Agradeço principalmente à Professora Doutora Maria Cristina Soares Paniago,
que foi minha professora e orientadora e que contribuiu de maneira decisiva para o meu
amadurecimento como pesquisadora na construção deste trabalho.
Enfim, agradeço a todos que estiveram do meu lado e acreditaram em mim,
particularmente àqueles que, de forma direta ou indireta, colaboraram para que esta
etapa tão importante da minha vida profissional e pessoal fosse finalmente concretizada,
pois agora compartilham de mais esta vitória.
“A Classe laboriosa substituirá, no curso do seu
desenvolvimento, a antiga sociedade civil por
uma associação que excluirá as classes e seu
antagonismo, e não haverá mais poder político
propriamente dito, já que o poder político é o
resumo oficial do antagonismo na sociedade
civil”.
(Karl Marx)
RESUMO
Este trabalho apresenta uma análise histórica sobre a função social do Estado e tem por
objetivo investigar o controle exercido pelo sistema sociometabólico do capital na fase
do capitalismo dos monopólios, mediante a atuação do Estado. Para tanto, parte da
perspectiva marxiana dos fundamentos ontológicos do Estado burguês, com base em um
estudo sócio-histórico do surgimento do Estado e sua função social, assim como do
desenvolvimento do Estado moderno, nas suas diferentes formas de atuação na
sociabilidade capitalista. Promove uma análise acerca da reprodução do sistema do
capital e do papel do Estado moderno como uma estrutura de comando político
direcionada a defender os interesses da classe economicamente dominante,
complementando-a de forma essencial na manutenção da ordem social vigente. Busca
entender como o Estado no capitalismo monopolista redimensiona suas atividades e
atua mediante a garantia de “supostas” concessões à classe trabalhadora, através da
prestação de serviços na forma de direitos. Aborda a natureza da crise estrutural do
capital e suas determinações, destacando os aspectos que a diferenciam das crises
cíclicas. E por último, investiga as formas de enfrentamento da crise estrutural do
capital pelo Estado e as consequências dos “ajustes estruturais” desse sistema para a
área social e a classe trabalhadora, durante a ofensiva neoliberal do capital. A partir da
pesquisa realizada, de natureza bibliográfica, entende-se que o Estado, ao longo do
desenvolvimento das sociedades de classe, opera na manutenção do modo de produção
dominante por meio de mecanismos de caráter coercitivo e de controle sobre a classe
trabalhadora, a fim de manter e reproduzir continuamente os processos de produção e
acumulação da riqueza, ainda que postule ideologicamente a defesa dos interesses de
todos os homens na reprodução da forma de sociabilidade vigente.
Palavras-chave: Estado. Crise Estrutural do Capital. Capitalismo Monopolista.
ABSTRACT
This work presents a historical analysis on the social function of the State and aims to
investigate the control exercised by the sociometabolic system of capital in the phase of
capitalism of monopolies, through the performance of the State. To do so, it starts from
the Marxian perspective of the ontological foundations of the bourgeois state, based on
a socio-historical study of the emergence of the state and its social function, as well as
the development of the modern state, in its different forms of action in capitalist
sociability. It promotes an analysis of the reproduction of the system of capital and the
role of the modern state as a structure of political command directed at defending the
interests of the economically dominant class, complementing it in an essential way in
maintaining the current social order. It seeks to understand how the state in monopoly
capitalism reshapes its activities and acts by guaranteeing "supposed" concessions to the
working class through the provision of services in the form of rights. It addresses the
nature of the structural crisis of capital and its determinations, highlighting the aspects
that differentiate it from cyclical crises. Finally, it investigates ways of coping with the
structural crisis of capital by the state and the consequences of the "structural
adjustments" of this system to the social and working class during the neoliberal
offensive of capital. From the research carried out, of a bibliographical nature, it is
understood that the State, throughout the development of class societies, operates in the
maintenance of the dominant mode of production through mechanisms of coercive
character and control over the working class, In order to maintain and reproduce
continuously the processes of production and accumulation of wealth, even though
ideologically poses the defense of the interests of all men in the reproduction of the
current form of sociability.
Keywords: State. Structural Crisis of Capital. Monopolistic Capitalism.
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO ....................................................................................................... 10
2. OS FUNDAMENTOS ONTOLÓGICOS DO ESTADO E SUA FUNÇÃO
SOCIAL NA SOCIEDADE DE CLASSES ............................................................... 13
2.1 Os Fundamentos Ontológicos do Estado burguês .............................................. 14
2.2 O Estado Moderno: formação e função Social ................................................... 26
2.3 O Estado Moderno no Sistema Sociometabólico do Capital ............................. 43
3. O DESENVOLVIMENTO DO ESTADO NO CAPITALISMO DOS
MONOPOLÍOS: O Estado de Bem-Estar Social ..................................................... 65
3.1 Capitalismo dos Monopólios: base material do Estado de Bem-Estar Social
........................................................................................................................................ 66
3.2 O Estado de Bem-Estar Social: uma forma de controle do sistema do capital
........................................................................................................................................ 84
4. A CRISE ETRUTURAL DO CAPITAL E O NEOLIBERALISMO
........................................................................................................................................ 98
4.1 Das Crises Cíclicas à Autorreprodução Destrutiva do Capital ........................ 99
4.2 A Crise Estrutural do Capital e suas Determinações ....................................... 103
4.3 Neoliberalismo: as Estratégias do Capital em face da Crise Estrutural ........ 113
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................ 126
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .................................................................... 133
10
1. INTRODUÇÃO
O presente trabalho trata da função social do Estado e do controle do capital na
regulação das relações sociais da sociabilidade capitalista. Em particular, na fase do
desenvolvimento do capitalismo dos monopólios, promove uma análise que recupera o
movimento do desenvolvimento do capitalismo do pós-Segunda Guerra Mundial até o
cenário atual de crise estrutural do capital, ao tempo que a ação legal e repressiva do
Estado se generaliza e o acirramento das lutas dos trabalhadores encontra sua maior
resistência, num contexto marcado por profundas transformações na área econômica,
política e social. Para tanto, fez-se necessário apreender o surgimento do Estado como
um poder político capaz de manter certo ordenamento entre as classes sociais existentes,
através do uso de mecanismos coercitivos e consensuais por meio da sua administração
e organização política, intervindo sobre a consciência dos indivíduos.
O principal interesse em pesquisar e refletir sobre a temática em questão está
relacionado à necessidade de se apreender e revelar a verdadeira função social do
Estado, e de sua utilização pelo capital como mecanismo de controle para garantir os
interesses da classe economicamente dominante, com base na reprodução material da
riqueza. Nesse sentido, os estudos, os debates e as reflexões realizadas nas aulas
ministradas nas disciplinas (Trabalho na Sociedade Contemporânea; Estado, Políticas
Sociais e Serviço Social) do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social foram
fundamentais para a escolha do tema de investigação, visando à conclusão do Mestrado.
Para orientar a pesquisa, formulam-se algumas questões, quais sejam: 1. O que
impulsionou historicamente o surgimento do Estado e qual a sua natureza na reprodução
material da sociabilidade capitalista? 2. Como, na sociedade moderna, se desenvolveu a
noção de Estado de Bem-Estar Social e qual a sua função? 3. Como instituição que se
afirma na ordem social capitalista, o Estado altera sua essência na transição do
keynesianismo ao neoliberalismo? No intuito de responder a essas indagações,
buscamos fundamentar nosso estudo tendo como referência teórica de análise a
perspectiva marxiana, no resgate da crítica ontológica do Estado e da forma de
sociabilidade regida pelo capital.
O Estado ao longo do desenvolvimento capitalista tem sido objeto de várias
interpretações. Não há um consenso sobre a sua função na sociedade entre liberais e
marxistas, o que faz com que ele seja conceituado de muitas formas. Apesar de existir
11
uma perspectiva teórica, com adesão de poucos, que defende o Estado como
instrumento de opressão da classe trabalhadora a serviço dos interesses burgueses, ainda
há uma grande parte de teóricos que concebe o Estado como um poder neutro que ora
defende os interesses da classe burguesa, ora defende os interesses da classe
trabalhadora, a depender da correlação de forças entre elas na esfera política. Essa
posição tem colaborado para confinar as lutas sociais nos limites jurídico-legais e da
democracia na ordem social vigente, esgotando as formas combativas dos trabalhadores
diante das desumanidades produzidas pelo sistema do capital.
Considerando a importância que esse debate assumiu no decorrer do século
XX, colocado pelo capitalismo no momento de crise estrutural aos que se posicionam
na direção contrária à exploração da força de trabalho, faz-se necessária uma análise
crítica da trajetória da relação entre Estado e sociedade civil para a luta emancipatória
dos trabalhadores. Isso demanda um exame das mistificações teóricas reproduzidas na
organização social capitalista, fundamentais para a reprodução do sistema
sociometabólico do capital. Nessa direção, busca-se demostrar como o Estado moderno
exerce sua função de complementaridade numa íntima relação de dependência
ontológica com a totalidade social. Evidencia-se que o Estado, nos marcos da sociedade
capitalista, independentemente das várias formas de sua atuação, atende às necessidades
reprodutivas do sistema do capital por meio de uma ação coercitiva ou concessiva
compatível com os parâmetros e limites estruturais que lhe são imanentes.
O presente trabalho está estruturado em três seções. Na primeira delas, expõe-
se o processo de formação do Estado burguês e sua relação com a base de reprodução
material nas sociedades de classe; em seguida, aborda-se a constituição do Estado
moderno e sua função social no interior da reprodução sociometabólica da sociedade
capitalista, mediante o resgate dos fundamentos do liberalismo clássico; e por último,
analisa-se os defeitos estruturais do capital e a forma como o Estado atua na
administração das contradições desse sistema, geradas pela dissonância entre esses
defeitos na ordem social vigente.
Na segunda seção, trata-se dos marcos do desenvolvimento do Estado moderno
no capitalismo dos monopólios, em que a contextualidade histórica irá requisitar um
reordenamento da forma de atuação do Estado. Diante das novas demandas postas pela
produção e reprodução das relações sociais capitalistas, o aprimoramento das estratégias
do Estado e sua readequação aos processos históricos decorrentes da dinâmica
expansionista do capital serão o solo fundante sobre o qual se desenvolverá a noção de
12
Estado de Bem-Estar Social. Em seguida, analisa-se a função social do Estado de Bem-
Estar Social e suas consequências para a organização da luta da classe trabalhadora na
sociabilidade contemporânea, visando à manutenção do sistema do capital e seu
controle sobre os trabalhadores.
No terceiro capítulo, aborda-se a relação do ciclo de crises do sistema do
capital com as mudanças propagadas pelas ações do Estado moderno. Nesse sentido,
intenta-se entender o processo de formação das crises cíclicas na sociedade burguesa e
como a mudança do padrão e profundidade dessas crises é um fator de essencial
importância para a configuração da crise atual; em seguida, analisa-se a crise estrutural
do capital e suas determinações como um fenômeno que tem causado grandes
transformações no mundo da produção e na relação entre o capital e o trabalho. Dando
continuidade, explicita-se como ocorreram as mudanças econômicas, políticas e sociais
derivadas das tentativas do grande capital de reverter os efeitos causados por essa crise.
Tais ações do capital e do Estado, baseadas na perspectiva neoliberal, tiveram como
consequência o corte nos gastos sociais e trabalhistas, visando à recuperação da taxa de
lucratividade do sistema do capital em queda.
A partir das reflexões apresentadas, espera-se, com este estudo, contribuir
significativamente com o debate travado em torno da função social do Estado moderno
no contexto do capitalismo monopolista e como ela pode ser determinante na forma da
ação estatal direcionada à manutenção do modo de controle do sistema sociometabólico
do capital na sociedade contemporânea.
13
2. OS FUNDAMENTOS ONTOLÓGICOS DO ESTADO MODERNO NA
SOCIEDADE DE CLASSES
Na busca de apreender os fundamentos ontológicos do poder político na
sociedade de classes, inicialmente, parte-se do estudo sobre o Estado enquanto uma
instituição social e historicamente constituída. As razões do seu desenvolvimento são
fundamentais para identificar a necessidade de sua existência e sua função social na
sociedade moderna. Desse modo, para compreender as formas de atuação do Estado no
sistema capitalista e sua função social, não se pode separá-lo da totalidade social da qual
faz parte, pois buscar os seus fundamentos implica desvelar sua função como parte
integrante da base material de reprodução social desse sistema sociometabólico.
A realização dessa análise requer desvelar os nexos causais que determinaram
o desenvolvimento das sociedades de classes na sua processualidade histórico-concreta,
em conexão com categorias centrais da reprodução material. Para tanto, toma-se como
fundamento central ao desenvolvimento deste estudo o ponto de vista ontológico do ser
social e seu elemento fundante, o trabalho, como base para o entendimento das relações
sociais constituídas pela humanidade ao longo de toda a sua história. Dessa forma,
parte-se da compreensão de que a base da reprodução material da sociedade é que
explica todas as outras esferas da reprodução social, assim como o Estado.
Assim sendo, busca-se desvelar o caráter de classe do Estado e sua
determinação ontológica, enquanto prioridade da economia sobre o poder político, tendo
a sociedade como forma de organização para se reproduzir e satisfazer as necessidades
materiais de seus membros. Com base nesses processos serão capturados a formação e o
significado social do Estado, como também as formas de controle sociometabólico do
capital na sociedade contemporânea.
14
2. 1 Os fundamentos ontológicos do Estado burguês
Com o objetivo de analisar os fundamentos ontológicos do Estado, trata-se
primeiramente do Estado conectado à base de reprodução da sociedade. Para tanto,
parte-se dos pressupostos que no curso do desenvolvimento dos seres humanos
determinaram a necessidade da formação do Estado burguês.
É com referência na obra de Friedrich Engels (1820-1895), intitulada A Origem
da Família, da Propriedade Privada e do Estado, que se acha o fundamento ontológico
do Estado, sua origem, natureza e função social. Nela, Engels acompanha o processo de
desenvolvimento das relações sociais e toma como exemplo os povos gregos, romanos e
germanos, de acordo com os progressos obtidos na produção dos meios de subsistência.
Em seguida, realiza um exame das condições da produção material que na fase superior
da barbárie possibilitaram a entrada em cena da civilização. No capítulo IX, quando
trata dessa passagem da barbárie à civilização, o autor revela características da
organização gentílica das sociedades pré-históricas; nesses agrupamentos espontâneos
não cabiam as relações de dominação e servidão; assim, não havia razão para a divisão
da sociedade em diferentes classes sociais. Isso conduz ao exame da base econômica
dessa ordem social, para compreender como surgiu e se desenvolveu a sociedade de
classes e, a partir dela, a necessidade de um ordenamento político posto pelo Estado.
De acordo com Engels, na forma de organização social primitiva predominava
uma divisão sexual e espontânea do trabalho. Ao homem cabia a atividade da caça e da
pesca, a confecção de instrumentos e o combate às outras tribos. Já à mulher cabia a
tarefa de cuidar da casa, a coleta e o preparo da comida, a confecção das roupas e de
outros utensílios. O papel desempenhado pela mulher nessa forma de sociedade estava
diretamente relacionado ao desenvolvimento da economia doméstica. A produção
doméstica desempenhava uma função social coletiva, formada por um complemento de
atividades desenvolvidas por homens e mulheres; o produto do trabalho pessoal era de
usufruto comum. Portanto, para o autor, somente nessa forma de organização social “a
propriedade [é] fruto do trabalho pessoal”, porquanto os meios de produção utilizados
na reprodução da sociedade pertencem a todos os membros da comunidade (ENGELS,
1997, p. 179).
Tal regime social foi designado por alguns autores, como Marx, Engels e Netto
& Braz, de comunidade primitiva. Nela, grupos humanos viviam em abrigos
improvisados (cavernas ou choupanas), a alimentação era obtida através da caça, da
15
coleta de raízes, frutos, insetos comestíveis, entre outros, e imperava o nomadismo.
Nessas comunidades, em que dominavam a igualdade resultante da escassez e a
distribuição praticamente equitativa do pouco que se produzia, não existia diferenciação
social, apenas uma repartição de tarefas entre homem e mulher. O baixo
desenvolvimento das forças produtivas nesse período, aliado à carência generalizada,
tornava a existência daqueles grupos humanos restrita a condições de extrema pobreza.
A igualdade e o trabalho coletivo faziam com que a cooperação fosse condição
indispensável à sobrevivência de todos os indivíduos da tribo.
Segundo Engels (1997), na cooperação, essa forma primitiva de organização
coletiva do trabalho, as relações sociais estabelecidas no âmbito das sociedades
primitivas não representavam uma “hierarquia de poder” do homem sobre a mulher.
Como se verá, essa é uma expressão da sociedade de classes. Tampouco anulavam a
autonomia de cada indivíduo na realização de suas tarefas. Pelo contrário, “o exercício
da autonomia pressupunha a divisão de tarefas – e esta pressupunha a autonomia de
cada indivíduo para executá-las” na comunidade.
Nesse contexto, todos trabalhavam e usufruíam do fruto do trabalho, seja da
coleta de alimentos necessária à sobrevivência dos grupos, seja a partir do planejamento
e da execução de novas maneiras de transformar a natureza a partir das suas
necessidades. Quando os homens começam a dominar os eventos naturais, eles passam
a ter uma influência menor no desenvolvimento da história da humanidade (LEACOCK
apud LESSA, 2012, p. 19).
Com a fabricação de instrumentos menos rudes que os machados de pedras,
cada vez mais aperfeiçoados para a caça e a pesca, entre eles, as lanças, o arco e a
flecha, canoas e remos, assim como os primeiros rudimentos para se trabalhar a terra,
esses grupos humanos foram, pouco a pouco, diminuindo a sua condição de penúria1. À
medida que esses indivíduos evoluíam enquanto grupo, a produção tornava-se cada vez
mais satisfatória e a vida nômade dava lugar às comunidades sedentárias. Esse modo de
organização social, a comunidade primitiva, perdurou por mais de 30 mil anos. De
forma gradual, porém, gestaram-se no seu interior aqueles elementos que responderiam
por sua dissolução (NETTO; BRAZ, 2010).
Entre esses elementos, dois são de fundamental importância: a domesticação
de animais e o surgimento da agricultura. As comunidades que seguiram nessa direção 1 De acordo com Netto & Braz, “essa [condição de] penúria devia-se ao fato de tais grupos consumirem
imediatamente o pouco que podiam obter com os seus esforços – não conseguiam mais que sobreviver a duras penas”
(NETTO; BRAZ, 2010, p. 56).
16
logo se diferenciaram das demais, passaram a cultivar a terra e a criar animais,
desenvolvendo a agricultura e a pecuária, com o que deixaram o nomadismo e se
fixaram num território. Esse processo histórico “– que, segundo as informações
antropológicas, consolidou-se entre 5.500 e 2.000 anos antes de Cristo –, acarretou
significativas transformações na relação dessas comunidades com a natureza”. A
principal transformação consistiu em que, nessas comunidades, a ação do homem sobre
a natureza resulta numa produção de bens que ultrapassa as necessidades imediatas de
manutenção do grupo (NETTO; BRAZ, 2010, p. 56, grifos nossos).
Os progressos nos processos de trabalho, com o aprimoramento dos
instrumentos e o maior domínio do homem sobre a natureza, tornaram-no cada vez mais
produtivo. Conforme desenvolviam a agricultura e a pecuária, as tribos pastoras tinham
em suas mãos a vantagem de possuir mais leite, carnes e derivados; além disso,
dispunham de couro, peles e lãs para produzir vestimentas, o que lhes permitiu
acumular sua produção (ENGELS, 1997). A evolução do trabalho, no interior das
comunidades, possibilitou que as tarefas agrícolas (o cultivo, o pastoreio) aos poucos se
distinguissem daquelas atividades que criaram o artesanato (os instrumentos de pedra,
cerâmica e metal). Assim, gradualmente, o aumento da produção e da matéria-prima
forneceu as condições necessárias para a troca entre as diferentes tribos. Isso permitiu
que alguns indivíduos não necessitassem mais trabalhar para garantir o sustento de
todos (NETTO; BRAZ, 2010).
Nesse momento, a humanidade passa a conhecer um novo modo de produção
social até então desconhecido nas comunidades primitivas, fundado na relação de
exploração do homem pelo homem: o trabalho explorado ou alienado. A produção do
trabalho excedente sobre a forma na qual foi se estabelecendo na sociedade possibilitou
a relação de exploração entre os homens, fundada na apropriação privada dos bens. Do
intercâmbio material entre as diversas tribos nascia a mercadoria e, com ela, as
primeiras formas de comércio. Foi essa nova relação de troca que determinou a
diferenciação social entre os grupos. Dividiu-se a sociedade entre aqueles que produzem
o conjunto dos bens (os produtores diretos) e aqueles que se apropriavam dos bens
produzidos (os apropriadores do fruto do trabalho alheio). Essa nova característica
resultou na divisão da sociedade em duas classes fundamentais de interesses
inconciliáveis (NETTO; BRAZ, 2010).
Nessa direção, Engels considera que “o desenvolvimento de todos os ramos da
produção – criação de gado, agricultura, ofícios manuais domésticos – tornou a força de
17
trabalho do homem capaz de produzir mais do que o necessário para a sua manutenção”
e a da comunidade. Ou seja, a partir da Revolução Neolítica2, o acúmulo desencadeado
pelo excedente econômico3 permitiu à comunidade dividir-se antagonicamente entre
produtores diretos e apropriadores do fruto do trabalho alheio, ao tempo que implicou a
necessidade da ampliação do trabalho explorado. Logo, passou “a ser conveniente
conseguir mais força de trabalho, o que se logrou através da guerra”, na transformação
do homem livre em escravo. Isso significou, consequentemente que “da primeira grande
divisão social do trabalho nasceu a primeira grande divisão da sociedade em duas
classes: senhores e escravos, exploradores e explorados”. Em outras palavras, surge na
sociedade a primeira relação de exploração, como expressão da escravidão de um povo
por outro, o que conduzirá ao fim das comunidades primitivas (ENGELS, 1997, p. 181).
Essa necessidade de aumentar a produtividade fez com que as tribos
passassem, através das guerras, a conseguir mais força de trabalho. A guerra passou a
exercer uma função social específica na sociedade de classes; os prisioneiros de guerra
são transformados em trabalhadores escravos. Netto & Braz afirmam ser “a
possibilidade de um homem produzir mais do que consome – isto é: de produzir um
excedente – que torna compensador escravizá-lo”, já que “só vale a pena ter escravos se
seu proprietário puder extrair dele um produto excedente (ou sobreproduto)” (2010, p.
65).
Isso não acontecia nas comunidades primitivas. Quando os homens iam à
guerra, matavam os prisioneiros, porque não havia motivos para explorá-los. Portanto,
verifica-se que, “quando essa possibilidade (de acumulação) e [a] alternativa (de
exploração) se tornam efetivas, a comunidade primitiva – com a propriedade e a
apropriação coletiva que lhe eram inerentes – entra em dissolução, sendo substituída
pelo escravismo”. Nascia então um novo modo de produção social, fundado na
exploração do homem pelo homem4 (NETTO; BRAZ, 2010, p. 57, grifos dos autores).
Quando e como os rebanhos deixaram de ser propriedade comum da tribo e
tornaram-se propriedade privada dos chefes de famílias? Segundo Engels, isso deve ter
ocorrido nessa fase de transição ao escravismo, quando, “com a aparição dos rebanhos e
2 Referente às duas grandes descobertas da comunidade primitiva, que foram a agricultura e a domesticação de
animais. 3 O excedente econômico se caracteriza pela “(...) diferença entre o que a sociedade produz e os custos dessa
produção. O volume de excedente é um índice de produtividade e riqueza.” (BARAN; SWEEZY, 1974, p. 19).
4 Cabe destacar que a dissolução das comunidades primitivas não levou em todos os casos ao modo de produção
escravista; em outras situações, instituiu o modo de produção asiático, peculiar às civilizações da Pérsia,
Mesopotâmia, Egito etc.
18
de outras riquezas novas, operou-se uma revolução na família”. Foi visto que a coleta da
alimentação era atividade do homem; já o preparo do alimento e a produção artesanal
cabiam às mulheres. Os rebanhos constituíam a fonte de alimentos e utilidades; ao
homem competia a responsabilidade com sua domesticação. Por isso o gado se torna
sua propriedade, assim como as mercadorias e escravos que adquiriam através da troca.
Portanto, todo excedente obtido agora pela produção era propriedade do homem; a
mulher apenas participava no consumo, não possuía propriedade. Assim, a divisão
espontânea do trabalho na organização primitiva havia sido convertida na base para a
separação da propriedade privada do homem e da mulher, na transformação das relações
domésticas, pelo simples fato de ter modificado a divisão do trabalho fora do âmbito
familiar (ENGELS, 1997, p. 181).
O homem “selvagem”, caçador e guerreiro, que ocupava uma posição de
menor relevância na economia doméstica, dada a importância da mulher para a
alimentação e a reprodução das comunidades primitivas, passa à condição de pastor,
mediante a riqueza oriunda do excedente, ocupando um lugar de grande importância na
sociedade. Nesse momento, o trabalho doméstico desenvolvido pela mulher perdia sua
importância, comparado ao trabalho produtivo desempenhado pelo homem. A
supremacia do homem na família desfez os últimos obstáculos ao seu poder absoluto.
Esse poder do homem foi materializado na sociedade com a superação do direito
materno5, pela introdução do direito paterno, na passagem gradativa do matrimônio
sindiásmico à monogamia6 (ENGELS, 1997).
De acordo com Lessa, a ascendência histórica da família monogâmica se situa
na transição da comunidade primitiva para a sociedade de classes. Para que “a
resistência contra a exploração seja controlável, é fundamental que os escravos, os
servos e os proletários etc. busquem a sobrevivência de modo individual, não coletivo”.
Para tanto, faz-se necessária, segundo o autor, “a destruição dos laços primitivos que
faziam da sobrevivência de cada indivíduo a condição necessária à sobrevivência de
todos na comunidade”. Essa nova forma de organização da família se descola da vida
coletiva e constitui o núcleo privado na sociedade burguesa (LESSA, 2012, p. 26).
A monogamia é a expressão, na vida familiar, da relação de opressão do
homem sobre a mulher. Segundo Lessa (2012), na família monogâmica, a relação entre 5 Segundo Engels (1997), com base nos estudos de Morgan, o direito materno corresponde à base familiar sobre a
qual foi estruturada a constituição da gen iroquesa, das tribos indígenas norte-americanas, sendo esta a forma
primeira que deu origem à família patriarcal encontrada nas civilizações antigas: gregas, romanas e germanas. 6 Conforme se verá, “a monogamia é muito mais do que mero preceito moral da vida cotidiana – ela é, na verdade,
um aspecto decisivo da organização da sociedade de classes.” (LESSA, 2012, p. 11).
19
o homem e a mulher, pais e filhos, irmãs e irmãos etc. constitui relações
ontologicamente distintas daquelas encontradas no regime igualitário das gens. Neste
modo de organização social, não havia traços das relações de poder7 e opressão, que são
o fundamento do casamento monogâmico. Já em todas as sociedades, sem exceção,
fundadas numa das modalidades de trabalho explorado (ou alienado), tais como a
escravista, a feudal, a capitalista e a asiática, a relação de exploração impôs a família
monogâmica como substituta da família comunal.
O crescimento da população aos poucos exigiu a união das diferentes tribos,
que passaram a vincular-se a um único território. Conforme Engels, “a riqueza dos
vizinhos excitava a ambição dos povos, que já começavam a encarar a aquisição de
riquezas como uma das finalidades precípua da vida” em sociedade. A guerra, que antes
se dava por vingança, ou com o objetivo de conquistar mais territórios, agora era
empreendida para a pilhagem, transformada num negócio permanente. Dessa forma, a
guerra tornou-se uma operação regular na vida dos povos. A escolha do chefe militar, a
partir da introdução do direito paterno, passou de forma gradual à sucessão hereditária;
com isso, surgiram “(...) os alicerces da monarquia e da nobreza hereditária”. Nesse
momento, os órgãos da constituição gentílica (o chefe militar, o conselho e a assembleia
do povo) deixaram de ser instrumentos da vontade do povo e converteram-se em
instituições independentes, para dominar e oprimir seu próprio povo (ENGELS, 1997,
p. 184-185).
Evidenciam-se então as raízes do escravismo8, identificado por Engels como a
fase superior da barbárie: “a escravidão (...) converteu-se em elemento básico do
sistema social”. Os escravos deixaram de ser meros auxiliares na produção e foram
levados em grandes quantidades para trabalhar nos campos e nas oficinas manuais. A
produção foi dividida em dois ramos principais, agricultura e artesanato – o que resultou
na segunda divisão econômica do trabalho. Nesse momento, surgiram “a produção
diretamente para a troca, a produção mercantil, e com ela o comércio, não só no interior
e nas fronteiras da tribo, como também por mar”. À diferença entre indivíduos ricos e
pobres veio somar-se a diferença entre homens livres e escravos; a nova divisão social
do trabalho conduziu à divisão da sociedade em classes (ENGELS, 1997, p. 183-184).
7 No tocante à relação de poder, Lessa (2012) afirma que o poder advém do surgimento da propriedade privada. Esta
consiste na riqueza expropriada da massa de trabalhadores que retorna contra eles sob a forma de poder econômico,
político e militar. 8 Como modo de produção, “o escravismo é típico do Mundo Antigo. A escravatura instaurada nas Américas, no
processo de colonização que se seguiu à expansão marítima, será subordinada às formas sociais do modo de produção
capitalista.” (NETTO; BRAZ, 2010, p. 66).
20
No entanto, a civilização só é consolidada com o que Engels identifica como
sendo a terceira divisão econômica do trabalho:
A civilização consolida e aumenta todas essas divisões de trabalho já
existentes, acentuando, sobretudo, o contraste entre a cidade e o campo
(contraste que permitiu à cidade dominar economicamente o campo – como
na antiguidade (...), e acrescenta uma terceira divisão do trabalho, peculiar a ela e de importância primordial, criando uma classe que não se ocupa da
produção e sim, exclusivamente, da troca dos produtos: os comerciantes.
(ENGELS, 1997, p. 186).
Até aquele momento, somente a produção havia determinado os processos de
formação de novas classes sociais; as pessoas que participavam desse processo
dividiam-se entre produtores de pequena e grande escala. Agora, no curso da
civilização, surge uma nova classe, que sem fazer parte do processo produtivo,
conquista a direção e garante um espaço na sociedade. Trata-se, segundo Engels, de
“uma classe que se transforma no intermediário indispensável entre dois produtores, e
[que] explora a ambos”: a classe dos comerciantes. Desenvolve-se o comércio e, com
ele, o dinheiro em forma de moeda cunhada; “o não produtor domina o produto e sua
produção”, sendo esta a forma mais eficiente de se acumular riquezas (ENGELS, 1997,
p. 186-187).
De acordo com Engels (1997), ao lado da riqueza instituída em mercadorias,
escravos e dinheiro, nasceu a riqueza em terras, das quais a posse era concedida
primitivamente pelas gens ou pela tribo aos indivíduos. Esse direito foi fortalecido de
tal maneira que a terra podia ser transmitida por herança, e posteriormente transformada
em propriedade privada. Quando a terra era usurpada por um indivíduo ou família
particular, o que suprimia a liberdade das gens e das tribos no usufruto de um território,
desfazia-se o vínculo que unia o povo ao solo. Logo, a apropriação privada da terra e o
dinheiro possibilitaram que a terra fosse transformada numa mercadoria, que podia ser
comprada, vendida ou penhorada por seus proprietários.
No curso dessa revolução social, as comunidades primitivas encontravam-se
impotentes diante dos novos elementos que se tinham desenvolvido em seu concurso e
que responderiam por sua dissolução. Sua primeira condição de existência era que seus
membros partilhassem do mesmo território; no entanto, a vida sedentária via-se alterada
pelo movimento constante do comércio e pela venda das terras. Paralelamente, a
modificação das uniões gentílicas, a revolução nas relações econômicas e a consequente
diferenciação social exigiam novos órgãos. Decorrem daí a sociedade de classes e o
Estado.
21
De acordo com Lessa, da mesma forma como “o trabalho de coleta fundou o
modo de produção primitivo, também será o novo modo de intercâmbio material com a
natureza, o trabalho explorado, que fundará a sociedade de classes”. O autor entende
que “a gênese do trabalho explorado é, também, a gênese das classes sociais”; todas as
sociedades de classe seguiram esse curso histórico, a exemplo dos modos de produção
escravista, feudal, asiático9 e capitalista (LESSA, 2012, p. 21).
Na primeira delas, a sociedade escravista, as relações sociais eram orientadas
pelo antagonismo entre os escravos e seus proprietários. O trabalho era realizado
mediante a coerção, e o excedente produzido pelo produtor direto (o escravo) lhe era
retirado mediante o uso da violência. As condições degradantes de exploração
resultavam em revoltas; para subjugar os escravos a condições subumanas de trabalho
se fez necessária a divisão de tarefas. Além dos segmentos livres (dos artesãos), na
sociedade surge um corpo de funcionários ligados às atividades administrativo-
burocráticas (relacionadas à cobrança de impostos) e repressivas (combate às revoltas
dos escravos) e, com elas, a formação de grandes exércitos. O escravismo ajustou-se
bem com as formas imperiais. A conquista de novos territórios e de um grande número
de escravos, bem como o trabalho forçado, constituía a base da estrutura social. Essas
conquistas representavam para os proprietários de terras uma maior arrecadação de
impostos sobre os povos dominados (NETTO; BRAZ, 2010).
O escravismo, ao introduzir a propriedade privada dos meios de produção e o
trabalho explorado, diversificou a produção de bens e, com o incremento da produção
mercantil, estimulou o comércio entre as várias sociedades. Com a expansão do
comércio, o dinheiro e a propriedade territorial, ampliou-se rapidamente a concentração
das riquezas sociais em poder de uma pequena classe (os proprietários de terras e
escravos), resultando concomitantemente no empobrecimento da população
trabalhadora (escravos, artesãos, camponeses).
Uma sociedade dividida em classes sociais, com interesses contraditórios e
irreconciliáveis, não poderia ser mantida pela forma como se achava a organização
gentílica – com corporações fechadas, de democracia primitiva e espontânea – produto
9 Cabe destacar que o modo de produção asiático tinha uma forma primitiva de exploração do homem pelo homem
que se diferenciou do modo de produção escravista. Nas sociedades asiáticas, a classe dominante se apropriava da
riqueza produzida nas aldeias através dos impostos de maneira coercitiva, sempre recolhidos sob a ameaça do uso da
força militar. Com característica de solo restrito para a agricultura, a produção exigia construções de estruturas tais
como diques, represas e canais de irrigação, que permitissem o desenvolvimento das forças produtivas. (LESSA;
TONET, 2008).
22
de um regime social que não conhecia antagonismos interiores e não possuía outros
meios coercitivos além da opinião pública.
A partir dessa constatação, Engels afirma que:
Acabava de surgir (...) uma [nova] sociedade que, por força das condições
econômicas gerais de sua existência, tivera de se dividir em homens livres e
escravos, em exploradores ricos e explorados pobres; uma sociedade em que
os referidos antagonismos não só não podiam ser conciliados como ainda
tinham de ser levados a seus limites extremos. (ENGELS, 1997, p. 190).
Posto isto, continua o autor:
Uma sociedade desse gênero não podia subsistir senão em meio a uma luta
aberta e incessante das classes entre si, ou sob o domínio de um terceiro
poder que, situado aparentemente por cima das classes em luta, suprimisse os
conflitos abertos destas e só permitisse a luta de classes no campo
econômico, numa forma dita legal. O regime gentílico já estava caduco. Foi
destruído pela divisão do trabalho que dividiu a sociedade em classes, e
substituído pelo Estado. (ENGELS, 1997, p. 190, grifo do autor).
Nesses termos, identifica-se a primeira tese fundamental sobre o Estado
formulada por Engels (1997): a noção de um “terceiro poder”, que se encontra
supostamente acima das classes. O conflito gerado entre as classes sociais antagônicas
exige o domínio de um poder político, que passa a existir em sociedade na figura do
Estado. A concepção de existência desse “terceiro poder” se desenvolve
articuladamente com a visão liberal de Estado. Parte da ideia de o Estado dispor dum
poder que o coloca aparentemente acima das classes sociais, para gerenciar os conflitos;
uma instituição externa a elas, do qual todos participam, pela via democrática, das
decisões do Estado. Esta difere da concepção de Marx e Engels, em que o Estado nasce
com a função de administrar os conflitos entre as classes, na defesa dos interesses
particulares da classe economicamente mais poderosa, não sendo um mero
representante das classes em conflito.
Nas sociedades de classe, o Estado tem a função social de amortecer os
conflitos originários da relação de exploração do homem pelo homem; ele existe para
administrar e conter o acirramento dos conflitos sociais – dos proprietários de escravos
e dos escravos, da nobreza e dos servos, dos senhores feudais e dos servos, da burguesia
e dos trabalhadores –, cuja base está no modo como se desenvolveu historicamente a
produção material da riqueza.
Para Engels (1997), a importância desse “terceiro poder” reside na aparência de
neutralidade assumida pelo Estado nessa sociedade, mesmo não sendo esta a sua
natureza. O Estado surge historicamente como representante dos interesses de uma
classe em particular, a dominante, e não dos trabalhadores; ele não é um poder que brota
23
do interior da sociedade, mas um resultado desta quando ela atinge o auge do seu
desenvolvimento econômico, como um mecanismo de contenção de conflitos.
Como esclarece Engels:
O Estado não é, de modo algum, um poder que se impôs à sociedade de fora
para dentro; tampouco é “a realidade da ideia moral”, nem “a imagem e a
realidade da razão”, como afirma Hegel. É antes um produto da sociedade,
quando esta chega a um determinado grau de desenvolvimento; é a confissão
de que essa sociedade se enredou numa irremediável contradição com ela
própria e está dividida por antagonismos irreconciliáveis que não consegue
conjurar. (ENGELS, 1997, p. 191).
Nesta argumentação, Engels (1997) expressa com clareza a compreensão de
Marx no que se refere ao papel histórico e ao significado social do Estado nas
sociedades de classe. Assim, pode-se destacar esta como sendo a segunda tese, o Estado
como um produto dessa sociedade, que só surge quando ela atinge certo nível de
desenvolvimento econômico e social. É a manifestação de que essa forma de
organização social possui antagonismos inconciliáveis. Desse modo, o Estado é
concebido onde e na medida em que as lutas de classes já não podem ser objetivamente
conciliadas. Para tanto, foi necessária a formação de um poder político que
administrasse os interesses conflitantes desta nova forma de sociabilidade estruturada
em classes.
Para que esses antagonismos, essas classes com interesses econômicos
colidentes não se devorem e não consumam a sociedade numa luta estéril,
faz-se necessário um poder colocado aparentemente por cima da sociedade,
chamado a amortecer o choque e a mantê-lo dentro dos limites da “ordem”.
Este poder, nascido da sociedade, mas posto acima dela e se distanciando
cada vez mais, é o Estado. (ENGELS, 1997, p. 191).
A ampliação do poder coercitivo do Estado era fundamental para manter essa
forma de sociedade produzindo e se desenvolvendo economicamente. Diversamente do
antigo regime gentílico, o Estado assim se caracteriza: em primeiro lugar, pelo
agrupamento dos seus súditos de acordo com a divisão territorial. A ampliação do
comércio mobilizava os homens para comercializar com outras sociedades, porém o
território mantinha-se fixo. A divisão territorial legou aos homens o exercício da
cidadania; aos cidadãos cabia o exercício dos seus direitos e deveres sociais onde
estivessem localizados, independentemente das gens ou tribos a que pertenciam
(ENGELS, 1997, p. 192).
O segundo traço característico é “a instituição de uma força pública, que já não
mais se identifica com o povo em armas”. Segundo Lênin (1986), essa noção de “força
pública” desenvolvida por Engels, chamada de Estado, deriva da divisão da sociedade
24
em classes e impossibilita qualquer forma de organização armada do povo. Criou-se um
corpo de cidadãos armados (a polícia, o exército permanente), separado e distinto do
restante da população, e isso os coloca acima da sociedade. Essa força policial existente
em todo Estado “é formada não só de homens armados como, ainda, de acessórios
materiais, os cárceres e as instituições coercitivas de todo o gênero (...)”. Assim, foi
instituída uma nova esfera de opressão para auxiliar na reprodução material das
sociedades de classes (ENGELS, 1997, p. 192).
Para manter esse poder coercitivo, são exigidas contribuições por parte dos
cidadãos, na forma de impostos. Com o progresso da civilização, o Estado passa a
contrair empréstimos, formando a dívida pública. Na condição de “donos da força
pública e do direito de recolher os impostos, os funcionários, como órgãos da sociedade,
põem-se então acima dela”. Surge, nesse momento, a condição privilegiada dos
funcionários públicos em relação aos outros trabalhadores; eles são os representantes
dos interesses de uma classe em particular, a mais poderosa (ENGELS, 1997, p. 192).
Portanto, não se trata de um poder situado acima das classes, como Engels
explica:
Como o Estado nasceu da necessidade de conter o antagonismo das classes, e
como, ao mesmo tempo, nasceu em meio ao conflito delas, é, por regra geral,
o Estado da classe mais poderosa, da classe economicamente dominante,
classe que, por intermédio dele, se converte também em classe politicamente
dominante e adquire novos meios para a repressão e exploração da classe
oprimida. (1997, p. 192).
Desse modo, identifica-se a terceira tese na afirmação de Engels (1997): o
Estado é um Estado de classe. Não é de qualquer classe, mas o representante de uma
classe em particular: a economicamente mais poderosa, proprietária de toda a riqueza
materialmente produzida, e adquirida pela aplicação da força e da violência. Esta utiliza
o poder político – a dominação política – para manter a ordem em funcionamento, com
o objetivo de conter os conflitos, a fim de que não se coloque em risco a ordem vigente.
Em cada modo de produção e, consequentemente em cada forma de
sociabilidade dividida em classes sociais que a humanidade já vivenciou até hoje, o
Estado se apresenta com a mesma função social.
Conforme Engels,
o Estado antigo foi, sobretudo, dos senhores de escravos para manter os
escravos subjugados; o Estado feudal foi o órgão de que se valeu a nobreza
para manter a sujeição dos servos e camponeses dependentes, e o Estado
moderno representativo é o instrumento de que se serve o capital para
explorar o trabalho assalariado. (1997, p. 193-194).
25
Dessa forma, o Estado complementa o que já estava em processo de
andamento: a divisão da sociedade em classes sociais antagônicas. No entanto, o que
dirige a reprodução social da sociedade são as relações sociais derivadas da produção
material da riqueza social. A força política do Estado se desenvolveu para organizar e
administrar as sociedades de classe, proporcionando uma estabilidade mínima
necessária para que a reprodução material ocorra sem barreiras.
Engels (1997) afirma que, excepcionalmente, “há períodos em que as lutas de
classes se equilibram de tal modo que o poder do Estado, como mediador aparente,
adquire certa independência momentânea em fase das classes” sociais. Nesta situação
achava-se a monarquia absolutista dos séculos XVII e XVIII, o bonapartismo do
primeiro e segundo impérios franceses, e Bismarck na Alemanha. Em certos momentos
da história, o Estado parece assumir uma posição de conformação por não se apresentar
diretamente associado a nenhuma das classes, num processo de acomodação da sua
própria dominação, como foi o caso da burguesia comercial que nasce no feudalismo,
que ainda não havia conquistado o poder político e se utilizava da monarquia feudal
para fazer valer seus próprios interesses (ENGELS, 1997, p. 194).
Por último, identifica-se a quarta tese sobre o Estado em Engels, quando o
referido autor afirma que “o Estado não tem existido eternamente. Houve sociedades
que se organizaram sem ele, não tiveram a menor noção do Estado ou do seu poder”,
conforme vimos, na breve exposição sobre a organização social gentílica. A formação
do Estado foi uma necessidade histórica do desenvolvimento das sociedades divididas
em classes sociais. Isto leva a compreensão de que ao chegar a uma futura sociedade, a
existência dessas classes não será mais necessária, a organização da produção material
será realizada por uma associação livre de produtores iguais, o que conduzirá o Estado
para o museu de antiguidades, pois não haverá mais razão para sua existência na
sociedade (ENGELS, 1997, p. 195).
Desde o seu surgimento, a civilização se baseia na relação de exploração de
uma classe sobre a outra e o seu próprio desenvolvimento se opera numa constante
contradição. Assim, “cada progresso na produção é ao mesmo tempo um retrocesso na
condição de classe oprimida, isto é, da imensa maioria dos trabalhadores”. A essa
consequência produzida pela relação de exploração entre os homens, no modo de
produção do capital, Marx se refere na sua obra O Capital como a Lei Geral da
26
Acumulação Capitalista10, a qual se caracteriza pela grande concentração de riquezas à
disposição do capital, que ocorre de forma proporcional à progressão da miséria da
classe trabalhadora. Assim, “quanto mais progride a civilização, mais se vê obrigada a
encobrir os males que traz necessariamente consigo (...)”. A força de coesão necessária
à manutenção desta forma de sociedade civilizada “é o Estado, que, em todos os
períodos típicos, é exclusivamente o Estado da classe dominante e essencialmente uma
máquina destinada a reprimir a classe oprimida e explorada”, por sua própria natureza
de classe (ENGELS, 1997, p. 199-200).
Nesses termos, os pressupostos até aqui apresentados são de grande relevância
para a compreensão desta perspectiva teórica de Estado e, portanto, dos seus
fundamentos ontológicos. Isso desmistifica a real necessidade e a função social do
Estado no modo de produção capitalista. Com esta pretensão, no próximo item, analisa-
se o processo de desenvolvimento, a formação e função social do Estado moderno, com
base na obra O liberalismo europeu, de Harold Laski, que resgata os fundamentos do
liberalismo econômico na Europa.
2. 2 O Estado moderno: formação e função social
Foram postos os fundamentos gerais sobre em quais condições surgiu e se
desenvolveu o poder do Estado e o seu caráter de classe no interior da sociedade
escravista. Na mudança para uma nova forma de sociabilidade, a exemplo do processo
de transição do feudalismo para o modo de produção capitalista, será visto que a
natureza do Estado não se modifica e mantém seus fundamentos ontológicos, ou seja, o
Estado enquanto representante dos interesses de uma classe em particular, a classe
economicamente mais poderosa.
A análise aqui proposta sobre a evolução do Estado à sua fase moderna busca
recuperar a sua necessidade no curso desse processo de transição, entendendo que este
ao ser materializado na sociedade capitalista assume uma posição historicamente
10 De acordo com Pimentel, a Lei Geral da Acumulação Capitalista “consiste no fato de que, quanto mais o exército
industrial de reserva cresce em relação ao exército ativo de trabalhadores, tanto mais se materializa a superpopulação
relativa. Quanto maior for a camada miserável da classe trabalhadora e o exército industrial de reserva, maior será o
pauperismo oficial. Esse pauperismo se constitui naquela camada social que perdeu a capacidade de vender sua força
de trabalho e tem de mendigar a caridade pública. Ele se expressa na forma como o capital se apropria da força de
trabalho da classe trabalhadora através dos diversos mecanismos de exploração e dominação, com a finalidade de
assegurar a sua reprodução e a acumulação da riqueza por parte dos capitalistas e, contraditoriamente, produz a
acumulação da miséria, isto é, da classe que produz seu produto como capital”. (PIMENTEL, 2012, p. 44-45).
27
determinada, como instância de dominação (enquanto “estrutura hierárquica de
comando político”) e legitimação do poder material exercido pelo sistema do capital.
Dessa forma, não se pode analisar a formação e a função social do Estado moderno sem
entender como se configurou historicamente a estrutura de reprodução do capital; sem
compreender de que forma se organizou economicamente esse sistema, e
principalmente, sem identificar sua relação com a totalidade social. Portanto, sem
entender como a política se articula com a base econômica de reprodução material do
capital na sociedade moderna.
Ao fim de um período de transição, o modo de produção feudal se impôs na
sociedade. Teve início com a desintegração do Império Romano, após a pressão
exercida pelas chamadas “invasões bárbaras”, na metade do primeiro milênio da era
moderna. No feudalismo, a centralização imperial (característica do período greco-
romano) foi substituída pela divisão da terra em feudos; esses constituíam as unidades
econômico-sociais desse modo de produção. Os proprietários dos feudos (senhores
feudais) subjugavam os trabalhadores diretos (servos), na produção de bens materiais. A
propriedade da terra passa a constituir a base da nova estrutura social, na qual a
sociedade era dividida entre senhores e servos (NETTO; BRAZ, 2010, p. 68).
A condição servil dos trabalhadores do campo era muito distinta da escravidão
vivenciada pelos escravos, ainda que ambos fossem explorados (não só pela obrigação
do trabalho nas terras do senhor, mas também pela cobrança de tributos, além do dízimo
recolhido pela Igreja). Os servos dispunham dos meios de trabalho e retiravam o seu
sustento do que produziam na terra. “A economia do feudalismo era essencialmente
rural e autárquica”, e sua produção destinava-se basicamente ao autoconsumo. Deste
modo, a diferença consistia na relação que o escravo estabelecia com o seu dono; a
relação entre o servo e o senhor feudal implicava legalmente uma série de
compromissos mútuos (NETTO; BRAZ, 2010, p. 69).
Biossannade observa:
O sistema feudal, em última análise, repousava sobre uma organização que,
em troca de proteção, frequentemente ilusória, deixava as classes
trabalhadoras à mercê das classes parasitárias e concedia a terra não a quem
cultivava, mas aos capazes dela se apoderarem. (BIOSSANNADE apud
HUBERMAN, 1986, p. 15).
Assim, o feudalismo estruturou-se sobre a relação alienada de obrigações
mútuas entre as classes: a prestação de serviço por parte dos servos nas terras dos
senhores feudais, e estes lhes garantiam a proteção da vida. Essa relação de
28
reciprocidade significou a sujeição da classe trabalhadora aos interesses dos grandes
proprietários fundiários, o clero e a nobreza. Huberman (1986) afirma que o trabalhador
do campo no regime feudal vivia em condições miseráveis, tendo de trabalhar
arduamente no solo por longas horas para que pudesse obter algo nos dias em que não
trabalhasse para o seu senhor. Ademais, eles eram fortemente vigiados, haja vista as leis
e regras instituídas nas glebas.
O excedente econômico, ao ser produzido pelos servos, era desapropriado
mediante o monopólio da violência (real e potencial) praticada pelos proprietários das
terras, que administravam a lei no limite dos seus feudos, o que caracteriza no
feudalismo um poder descentralizado. A vida degradante dos servos, bem como o ódio
alimentado por seus senhores, levou às “rebeliões camponesas que marcaram tão
fortemente o período da baixa Idade Média, configurando um cenário de confrontos
sociais11 que se estenderão do século XIV ao século XVI” (NETTO; BRAZ, 2010, p.
69).
Por volta do século XI, na Europa, o sistema feudal encontra-se plenamente
consolidado. Os camponeses, que já produziam um significativo excedente agrícola,
eram expropriados pela classe dos proprietários fundiários. Paralelo à produção rural,
mantinha-se a produção destinada à troca, uma produção de mercadorias voltada a
atender ao consumo pessoal de senhores e servos e centrada no trabalho artesanal.
No curso desse século, o desenvolvimento do comércio, que teve início no
escravismo, com as primeiras relações de troca de mercadorias, ganha um novo
estímulo com as Cruzadas12; surgem as primeiras corporações artesanais e as
associações de mercadores, as chamadas ligas comerciais. O estabelecimento de rotas
comerciais para o Oriente amplia a quantidade de produtos e matérias-primas, o que
confere um novo dinamismo à atividade comercial, resultando no consumo de
especiarias pela nobreza. Tais eventos contribuíram decisivamente para a crise do
feudalismo e de suas instituições num longo período de transição que marcará
posteriormente a derrocada do Antigo Regime (NETTO; BRAZ, 2010).
Com efeito, o desenvolvimento das relações comerciais na velha organização
feudal apresentava-se como um entrave ao desenvolvimento da sociedade. Essa 11 A título de ilustração, Netto & Braz (2010) destacam alguns desses confrontos: a Guerra Camponesa na Flandres
Ocidental (1320); o levante do Campesinato Francês (1358); a Revolução Camponesa na Inglaterra (1381); a Revolta
dos Servos da Catalunha (1462); a Insurreição do Campesinato Calabrês (1469) e as Guerras Camponesas na
Alemanha (1525). 12 Trata-se de um movimento de disfarce religioso que foi orientado fundamentalmente pelas vantagens econômicas
que poderiam ser conquistadas por certos grupos financiadores das Cruzadas, como a Igreja, os nobres e os
cavaleiros. Na realidade, as Cruzadas constituíram guerras de pilhagem de bens e de terras. (HUBERMAN, 1986).
29
particularidade altera a característica fundamental do feudalismo, a terra como única
fonte de riqueza, para a posse do dinheiro baseada no lucro, regida pelos emergentes
comerciantes; estes, no interior da sociedade feudal, tornaram-se protagonistas
econômicos. De um lado, o consumo produzido pela nobreza, que não poderia ser
adquirido por meio do saque ou guerras, mas apenas pela relação fundada na troca por
dinheiro, conferindo a este uma função privilegiada na vida social; de outro, a relação
comercial entre as cidades mais distantes. As novas relações comerciais não apenas
romperam com o caráter de autoconsumo do feudalismo, mas também estimularam a
atividade comercial entre outras regiões, o que levou ao aparecimento das cidades, nas
quais os núcleos das redes comerciais se fixarão (NETTO; BRAZ, 2010).
É sob as novas relações de organização da produção (das corporações e
associações) que um grupo começa a ganhar destaque: os comerciantes, como
representantes do capital mercantil, orientados por um único desejo, a busca pelo lucro,
que só seria adquirido pelo processo de compra e venda de mercadorias. Com eles uma
nova forma de riqueza, diferente daquela própria da ordem feudal, ganha importância: a
riqueza mobiliária, traduzida pela acumulação de dinheiro. Dentro do próprio sistema
feudal nasce uma nova classe social que se desenvolve com essa prática comercial, a
burguesia, e esta, por sua vez, conduzirá à gênese da sociedade capitalista (NETTO;
BRAZ, 2010).
De acordo com Laski, essa nova classe social “afirmou seus direitos a uma
plena participação no controle do Estado”. A burguesia, para alcançar os seus
propósitos, “efetuou uma transformação fundamental nas relações legais entre os
homens”. O controle do poder político, que antes, no feudalismo, era exercido por uma
aristocracia cujo domínio assentava na propriedade da terra, passou gradualmente a ser
compartilhado com a burguesia nascente, cuja influência derivava da propriedade de
bens móveis. Em um longo processo de transição, o status foi substituído pelo contrato,
como fundamento jurídico da nova sociabilidade; a uniformidade religiosa deu lugar a
uma diversidade de credos; o império medieval cedeu ao poder da soberania nacional; o
campo deu lugar à cidade; a ciência substituiu a religião; a metafísica foi deixada pela
razão; e os conceitos de iniciativa social renderam-se aos de controle individual
(LASKI, 1973, p. 9).
Laski (1973) apresenta o fundamento básico para entender o desenvolvimento
histórico que marca a passagem do feudalismo ao capitalismo: “As novas condições
materiais, em resumo, deram origem a novas relações sociais; e em função destas,
30
desenvolveu-se uma nova filosofia para permitir uma justificação racional do novo
mundo que assim nascera”. Nessa direção, o autor demonstrou que as novas relações
materiais provocam mudanças significativas na estrutura da sociedade feudal. Elas
exigem uma nova filosofia de mundo – o liberalismo, e, por sua vez, uma nova
concepção de política e de economia, revolucionando as bases da antiga organização
social, num movimento histórico que conduzirá ao mundo moderno – a Revolução
Burguesa (LASKI, 1973, p. 9).
O pensamento liberal levou cerca de três séculos para se estabelecer na
sociedade, ao lado da construção do pensamento moderno, basicamente na formulação
da política e da economia. É difícil descrever com precisão como ocorreu o seu
desenvolvimento, mas ele ganhou forma e estruturou-se como uma doutrina coerente à
evolução da sociedade moderna. Contudo, também contribuíram para a formação das
ideias liberais eventos como: os descobrimentos geográficos; a nova cosmologia; as
invenções tecnológicas, e principalmente, as novas formas de relações econômicas. O
liberalismo representou um desafio aos interesses estabelecidos pelas tradições de meio
milhar de anos; as mudanças por ele efetuadas nas áreas econômica, política e social
implicarão uma nova forma de sociabilidade (LASKI, 1973).
A sociedade feudal entrou em colapso lentamente. As características daquela
forma de organização social, tais como: a posição social definida, o mercado
predominantemente local e uma produção voltada para o valor de uso, aos poucos se
desintegraram, sendo substituídas por outros elementos que caracterizam um processo
que já se achava em andamento: o nascimento de uma sociedade mais dinâmica, no
final da Idade Média. O mercado mundial surgia, e com ele o capital acumulava-se em
uma tão imensa escala, que a busca de lucros tornou-se a finalidade das ações e relações
humanas da nova forma de organização social, a capitalista. Dessa forma, o liberalismo
foi modelado como doutrina pelas necessidades dessa nova sociabilidade, e enquanto
filosofia social não pôde superar o meio em que nasceu (LASKI, 1973).
O liberalismo, enquanto “corpo doutrinário diretamente relacionado com a
liberdade, surgiu como uma concepção contrária aos privilégios de nascimento e credo”
(LASKI, 1973, p. 11). No entanto, a liberdade que ele proclamou não tinha foros de
universalidade, já que estava limitada aos homens que tinham propriedade a defender.
Desde o seu aparecimento, o liberalismo buscou limitar o âmbito da autoridade política,
sendo esta “a ideia por meio da qual a nova classe média [a burguesia] ascendeu a uma
posição de domínio político”, tendo como seu maior instrumento o chamado Estado
31
contratual. Para formular este Estado, o liberalismo procurou limitar a intervenção
política à área de manutenção da ordem pública, impedindo que o governo interferisse
na livre atividade econômica dos indivíduos, a partir da defesa dos chamados direitos
fundamentais, sobre os quais o Estado não teria autoridade legal para intervir (LASKI,
1973, p. 13).
De acordo com Laski, o Estado Contratual “nunca compreendeu ou nunca foi
capaz de reconhecer completamente que a liberdade de contrato jamais é genuinamente
livre enquanto as partes contratantes não dispuserem de igual poder de negociação e
barganha”. Trata-se de uma igualdade no âmbito formal, e isto é, necessariamente, “uma
função da igualdade de condições materiais”. Portanto, na relação entre capital e
trabalho, o trabalhador não possui a mesma liberdade que o capitalista ao negociar sua
força de trabalho, porque as condições materiais das classes sociais são completamente
desiguais (LASKI, 1973, p. 13).
Nessa direção, Laski afirma que:
A ideia de liberalismo está historicamente vinculada, de um modo inevitável,
à de posse de propriedade. Os fins a que ele serve são sempre os fins
daqueles homens que estão nessa posição. Fora desse estreito círculo, o
indivíduo – por quem o liberalismo se mostrava tão zeloso – nunca passou de
uma abstração, a quem os seus benefícios jamais puderam, de fato, ser
conferidos. (1973, p. 13-14).
De fato, o que o pensamento liberal buscou foi a liberdade de contrato,
vinculada à ideia de posse de propriedade, como condição para a legalização do trabalho
explorado. Os indivíduos têm igualdade de propriedade nas seguintes condições: como
proprietários dos meios de produção (o capitalista), e enquanto donos da força de
trabalho (o trabalhador), quando os encontros e negociações são realizados mediante a
firmação de contratos em que todos devem responder às suas partes. Tudo isto está
concebido neste modo de organizar a sociedade burguesa, ao “libertar” os servos dos
laços feudais, tornando-os trabalhadores “livres como os pássaros” lançados no mercado
de trabalho, para que eles, de forma “voluntária”, vendam-se como força de trabalho,
porém protegidos por um contrato, sendo este, um dos meios de mistificação da
igualdade entre as partes (MARX, 1996, p. 342).
Outra forma de liberdade proposta pelo liberalismo foi o desprendimento da
classe burguesa dos vínculos do Estado feudal – ou absolutista – de seu caráter
altamente intervencionista. Esse movimento, Marx designou de emancipação política,
no qual se emancipa o capital da interferência do Estado, ou seja, emancipam-se as
32
relações econômicas de produção da intervenção do poder político. O produto histórico
do embate entre as forças produtivas materiais existentes, no período de transição do
modo de produção feudal ao capitalista, foi a revolução política da sociedade burguesa.
No livro A Questão Judaica, Marx (1991) considera a revolução política da
classe burguesa como sinônimo da revolução da sociedade civil. Nesse sentido, a
emancipação política corresponde à expressão teórica da perspectiva da classe
dominante e, portanto, não pode deixar de ser limitada. À medida que ela deixa intacta a
base de reprodução do sistema capitalista, esta se torna incapaz, por sua própria
natureza, de permitir a plena realização dos homens em sociedade.
Nas Glosas Críticas Marginais ao Artigo “O rei da Prússia e a Reforma
Social” de Um Prussiano, Marx (2010) reconhece que a emancipação política
representou um importante passo rumo ao desenvolvimento da sociedade humana.
Contudo, ao superar a forma de organização feudal, a sociedade capitalista, tendo como
núcleo básico a relação de compra e venda da força de trabalho, trouxe à tona “uma
sociedade civil marcada pela divisão entre público e privado, pela oposição dos homens
entre si, pela exploração, pela dominação, pelo egoísmo, pelo afã de poder, enfim, por
uma fratura ineliminável no seu interior”. Para que essa forma de sociedade pudesse
reproduzir-se, exigiu o estabelecimento de uma igualdade regulada pelo princípio da
legalidade jurídico-política entre os homens. Todos deveriam ser colocados no mesmo
patamar de cidadãos, porém isto não caracteriza a eliminação da desigualdade social, e
sim a consolida (MARX, 2010, p. 26).
Na esfera da produção da nova sociedade, os homens enquanto participantes
diretos desse processo permanecem em condições desiguais, devido à apropriação da
riqueza socialmente produzida manter-se concentrada nas mãos de uma classe em
particular, a classe burguesa. A emancipação política, diz Marx – expressa pela
cidadania e pela democracia –, é, sem dúvidas, uma forma de liberdade superior àquela
liberdade existente no feudalismo, todavia, “na medida em que deixa intactas as raízes
da desigualdade social, não deixa de ser ainda uma liberdade essencialmente limitada,
uma forma de escravidão dos trabalhadores” (MARX, 2010, p. 27). Isto equivale a
afirmar que, na sociedade burguesa, apenas de forma indireta o homem é um homem
livre, uma vez que é na “escravidão da sociedade civil” que o Estado moderno tem o
seu “fundamento natural” (MARX, 2010, p. 20, grifo do autor).
Logo, entende-se que o liberalismo foi motivado pelo nascimento de uma nova
sociedade econômica, com o fim do feudalismo. Ele foi modelado como uma doutrina
33
pelas necessidades dessa nova ordem social. E foi através dela que a classe burguesa
elevou-se a uma posição de domínio político, tendo como seu instrumento o Estado
contratual, que tinha por objetivo limitar a intervenção política à área de manutenção e
administração da ordem pública.
De acordo com Laski, a essência da nova sociabilidade, a capitalista, em
primeiro lugar, se processou com “a redefinição das relações produtivas entre os
homens”. No término do século XV, as relações capitalistas de produção já haviam se
gestado no interior do feudalismo; “a busca da riqueza pela riqueza converteu-se no
principal motivo da atividade humana”. Já no período medieval a ideia de aquisição de
riqueza era orientada por um conjunto de regras morais impostas pela autoridade
religiosa e a usura era tida como um pecado. A partir do século XVI, a ideologia feudal
já não se justificava, e até se mostrava como barreira ao desenvolvimento da atividade
econômica. Para tanto, “eram necessárias novas concepções que legitimassem as novas
potencialidades de riqueza que os homens haviam descoberto, pouco a pouco, nas eras
precedentes”. Nessa direção, a doutrina liberal converteu-se na explicação filosófica das
novas práticas sociais (LASKI, 1973, p. 15).
Como as ideias e instituições feudais já não se adequavam à nova forma de
reprodução material, cabia transformá-las para melhor se ajustarem à nova realidade
social.
Conforme Laski:
(...) a lógica desse novo espírito (capitalista) compele-o a moldar o mundo
inteiro aos seus desígnios. Sempre que as ideias e instituições com que se
depara inibem o avanço de sua busca de riqueza, procura transformá-las de
molde a que se ajustem às suas próprias finalidades, pois oferece aos seus
adeptos satisfações tangíveis e diretas, alcançáveis nesta vida, e isto as
concepções antecedentes eram incapazes de oferecer. (1973, p. 17).
Para Laski, as potencialidades desse novo modo de produção já não podiam
continuar a ser exploradas no velho sistema feudal; por isso a sociedade capitalista
triunfou. Mas, para tanto, a ideia de capitalismo teve de passar por duas grandes fases:
primeiro, buscou transformar a sociedade, para só então capturar o Estado. Essa
transformação processou-se através das mudanças na base material, em que as relações
de produção dos bens necessários aos homens passam a justificar o esforço constante da
busca pela riqueza, visando ao bem social. Na mesma direção, “empenhou-se em
capturar o Estado porque, desse modo, teria em suas mãos o poder coercitivo da
sociedade e poderia usá-lo, conscientemente, para seus próprios fins”. Assim, foram
34
necessários cerca de três séculos para a consolidação dessas transformações, entre
revoluções e guerras (LASKI, 1973, p. 18).
A primeira delas ocorreu no âmbito religioso, no modo de produção feudal,
segundo Huberman (1986). A Igreja mostrou-se parte e membro importante desse
sistema, uma instituição que exercia forte influência na área política e econômica, na
condição de maior proprietária de terras desse período. Laski afirma que a destruição
desse poder eclesiástico na esfera econômica foi a maior contribuição reservada ao
século XVI, pois significou o desenvolvimento das relações de propriedade sem os
entraves da religião. O espírito capitalista encontrou, ao nascer no movimento que foi
denominado de Reforma13, o apoio necessário para desenvolver a formulação de suas
doutrinas. A Reforma Protestante destruiu a supremacia do poder de Roma, e ao fazê-lo,
deu origem a novas teorias, efetuando vastas mudanças na distribuição da riqueza, o que
provocou a formação do Estado secular (LASKI, 1973, p. 29).
Foi dessa maneira indireta que a Reforma Protestante veio em apoio da
doutrina liberal, abrindo o caminho ao individualismo burguês, ao confiscar as riquezas
que eram usadas para sustentar os princípios feudais que constituíam um obstáculo ao
avanço da atividade individual. Com o desaparecimento dessa forma de organização da
riqueza, a influência desses princípios também declinou. Lentamente, na sociedade
estruturou-se uma concepção secular de vida, que efetuou uma transformação no
conteúdo do princípio cristão de modo a ajustá-lo aos seus próprios interesses. Agora, já
não cabia ao novo espírito entrar em acordo com a Igreja, mas a Igreja que teria de
ceder e chegar a um acordo com o novo espírito capitalista. Isso habilitou as relações de
propriedade a se desenvolverem sem os entraves teológicos (LASKI, 1973).
Sob tais condições, surgiu o Estado secular, que buscou e conseguiu estruturar
a sua função numa base em que substituiu a Igreja enquanto guardiã do bem-estar
social. Nessa busca para a plena realização do liberalismo, o mercantilismo14 foi o
primeiro passo rumo à nova forma de organização estatal. Todas as contradições
desenvolvidas mediante a realização da atividade econômica, tais como: a imigração em
grande escala; uma moeda aviltada; a necessidade de proteger a aventura econômica
internacional; o domínio colonial; a confusão geral de normas e padrões; as lutas entre 13 Portanto, não resta dúvida que “a política representada pela Reforma é a expressão pura e simples do
desmoronamento da ordem econômica medieval. A expansão do comércio e da indústria requer uma monarquia forte,
capaz de governar no interesse dessa expansão”. (LASKI, 1973, p. 29-30). 14 Segundo Laski, “A raiz da ideia mercantilista esta no reconhecimento da necessidade de uma nova disciplina, de
um código de comportamento econômico que promova a prosperidade em vez da miséria, o trabalho no lugar da
indolência”. Nessa direção, “era natural contar-se com o Estado como o grande órgão regulador, através de cuja ação
benéfica a abundância poderia ser alcançada”. (LASKI, 1973, p. 44).
35
as classes sociais; a concorrência e; a criação de tarifas protetoras, tudo isso ressaltava a
necessidade da intervenção do Estado. Nessa direção, “a economia estatal, numa
palavra, era uma fase no caminho para a economia individual”; ela assegurava a ordem
social interna e, nesse aspecto, era bem recebida, pois a burguesia ainda não detinha o
poder político (LASKI, 1973, p. 46).
O modo como este poder político se configurou, no século XVI, foi de extrema
relevância para a estruturação da sociedade capitalista. Era desenvolvido sob o
argumento da busca pela paz e o poder material. Os novos homens de negócios estavam
ávidos de segurança; a aliança com as monarquias os ajudou, de modo definitivo, a
eliminar a autoridade dos senhores feudais. Dessa forma, “a burguesia nascente via
numa forte autoridade central a melhor garantia de sua própria sobrevivência e a melhor
esperança de sua própria prosperidade”. Os monarcas reconheciam a importância dessa
aliança com os novos comerciantes para a garantia de sua própria sobrevivência,
respondendo às necessidades que a classe burguesa reclamava, movidos pela ideia de
que, “quanto maior for a riqueza que a burguesia possa alcançar, mais poderoso será o
Estado” por ela constituído (LASKI, 1973, p. 59).
Para tanto, “o príncipe deveria encorajar e proteger os fabricantes,
proporcionar-lhes paz e uma justiça rápida e barata, uma disciplinada classe
trabalhadora devidamente instruída para dedicar-se ao trabalho, dócil rebanho a mando
dos interesses patronais”. Nesse sentido, quanto maior o poder do Estado, melhor para
os comerciantes, pois o Estado forte e em pleno desenvolvimento se converte num
grande comprador, estimulando o mercado (LASKI, 1973, p. 59).
Segundo Laski,
a necessidade de o Estado, se quiser elevar ao máximo seu poder e sua força,
atuar de acordo com os princípios que a burguesia está aplicando em sua
esfera privada converte o Estado, quase sem que ele se aperceba disso, num
Estado capitalista. Pois o Estado, nos alvores do século XVII, está
começando a perseguir objetivos que só poderá alcançar com êxito se adotar,
como próprios, os fundamentos do novo espírito econômico. (1973, p. 60-
61).
Portanto, os novos caminhos do poder terão de ser, cada vez mais, os caminhos
da burguesia. Uma classe social ainda em processo de ascensão, que começava a
dominar economicamente, mas ainda não detinha o controle do poder político. O fato de
os comerciantes, no século XVI, estarem convencidos da necessidade de combater a
monarquia, na luta pelo direito de controlar o Estado, constitui a prova do quanto a nova
concepção de administração e organização da sociedade, fundada na racionalização do
36
princípio administrativo, já havia avançado rumo a uma nova direção, na busca da
consolidação da sociabilidade capitalista (LASKI, 1973, p. 60-61).
Ao longo do século XVI foram lançados os alicerces da doutrina liberal. Cria-
se uma disciplina social própria, independente do ideário religioso, e um Estado
autossuficiente. Surge um novo mundo, tanto no sentido ideológico como no sentido
geográfico, em que a ciência e a filosofia procuram interpretar e explicar as mudanças
sociais que nele ocorrem. Dessa forma, “em sua essência, é a perspectiva de uma nova
classe que, uma vez investida de autoridade, está convencida de que pode remodelar os
destinos do homem, muito mais adequada e eficientemente do que foi feito no passado”
(LASKI, 1973, p. 62).
Por se tratar de um processo, Laski procura demonstrar que o desenvolvimento
de um século é resultado do movimento decorrente do século que o antecedeu. Em sua
análise do século XVII, identifica a continuidade das modificações na esfera econômica
e política que foram iniciadas no século anterior. É na Inglaterra que se pode observar
com maior nitidez esse movimento, onde se apresentou “a vitória do utilitarismo no
domínio moral, da tolerância no domínio religioso, e do governo constitucional na
esfera política”. No campo econômico, conforme o próprio autor afirma, “o Estado
converte-se no mordomo do comércio; seus hábitos modificam-se de acordo com os
requisitos do novo meio. Assim, o Estado passou a modificar sua forma de atuação para
atender às novas demandas do domínio econômico” (LASKI, 1973, p. 63).
Até mesmo suas guerras passam a ser orientadas pela posse de novos mercados
– as colônias –, que surgem como elementos de expansão do comércio. O homem da
cidade começa a desempenhar um papel consciente na vida política; nascem os partidos
políticos e o monarca já não se mantém como representante da lei, passando a ser
subordinado a ela. Por isso, “o mercador bem-sucedido já não é mais um suplicante de
favores do monarca; está cônscio de que os seus interesses dão formas às sugestões do
trono”. Verifica-se então que da revolução efetuada pela classe média inglesa, no
âmbito econômico modificou-se o Estado, que passou a atender às novas demandas
econômicas. A classe média, “ao estabelecer sua supremacia, mudou a substância e o
modo de pensar dos homens em diversas áreas do conhecimento: no teatro, na literatura,
na filosofia, na educação e na religião, tudo isso decorrente da nova concepção de
mundo que o capitalismo trazia consigo” (LASKI, 1973, p. 63-64).
Do mesmo modo, esse movimento de transformações decorrentes do
desenvolvimento do espírito capitalista na Inglaterra entrava em ação na França, embora
37
com atraso, por motivos históricos. “O feudalismo resistiu mais tempo na França do que
na Inglaterra ao avanço da burguesia pela conquista de um status político”. Em ambos
os países registrou-se um progresso semelhante no que se refere às “barreiras que a
religião colocava ao desenvolvimento capitalista, que foram derrubadas. O preço da
controvérsia religiosa foi o surgimento da descrença; a ciência e a filosofia abandonam,
progressivamente, os laços teleológicos” (LASKI, 1973, p. 72).
Tanto na França como na Inglaterra, a busca pelo lucro significou “a extensão
da escala de iniciativas econômicas [que] colocaram o problema do pobre em uma nova
perspectiva e resultam no aparecimento de uma nova disciplina estatal para seu
controle”. Com a ascensão da burguesia em ambos os países, emergiu uma nova força
pública que buscava apreender os contornos da política e mantê-los em controle, no
desenvolvimento de técnicas administrativas mais amplas, o Estado. Contudo, na
França, os críticos reconhecem que o bem-estar material é incompatível com a
autoridade arbitrária; eles defendiam um governo constitucional, com um sistema
tributário racional; com segurança a propriedade; liberdade de pensamento e de
comércio. Foram essas as exigências que o povo inglês tinha convertido em realidade
concreta durante o mesmo período (LASKI, 1973, p. 73).
No século XVII, o constitucionalismo inglês forneceu sua contribuição à ideia
liberal de duas maneiras. Por um lado, buscou estabelecer e definir as normas pelas
quais o caráter do poder político deveria guiar-se; por outro, impôs nessas normas a
ideia de proteger os cidadãos de interferências alheias ao curso da lei. Além disso, para
garantir essa forma de organização do poder político, intentou privar a autoridade do
soberano do controle do exército e das finanças, instrumentos pelos quais o despotismo
tornava-se possível.
Neste sentido, a revolução inglesa de 168815 foi a consecução dos objetivos
visados pela classe média liderada por Cromwell contra as tentativas do despotismo da
dinastia Stuart. O comerciante inglês não apenas gozava da ordem desejada, como
decidiu para que fins essa ordem deveria seguir. Assim, no século XVII, pôde definir
tão amplamente a doutrina liberal, que só emergiu efetivamente, em sua plena
maturidade, no século XVIII (LASKI, 1973).
15 A Revolução Gloriosa, no curso da ascensão da burguesia inglesa, significou o golpe de Estado de
1688, que depôs a dinastia dos Stuarts e instaurou uma monarquia constitucional, em 1689, com
Guilherme de Orange assumindo o trono. Essa forma de governo baseava-se na relação de compromisso
entre a aristocracia rural e a burguesia.
38
Duas coisas devem ser levadas em consideração: o liberalismo enquanto um
modo de vida e como uma teoria de Estado, que teve suas linhas gerais definidas pelas
experiências da Inglaterra no período que se estendeu do século XVI o século XVII. Na
Revolução Inglesa, a burguesia, ao realizar suas pretensões, elaborou uma solução que
foi concretizada na base de uma aliança entre a aristocracia rural e a classe média,
resultando em liberdades constitucionais que apenas satisfizeram frações da classe
trabalhadora, “mas não realizavam os sonhos daqueles que nada mais possuíam senão a
força do trabalho para garantir a vida”. Com o triunfo da revolução, estabeleceu-se um
Estado inglês compatível com os interesses dos homens e da propriedade a ser
defendida, com a liberdade civil e religiosa e o controle das forças armadas. Dessa
forma, o modo de produção capitalista se viu beneficiado por um ambiente que não lhe
punha mais obstáculos para explorar as novas fontes de riqueza (LASKI, 1973, p. 75).
Em sua análise do século XVII, Laski afirma que o pensamento filosófico
defendia a liberdade política, “um contínuo esforço de emancipação do indivíduo dos
vínculos que o privavam do gozo de uma liberdade plena”. A influência deste
pensamento “exerceu-se no sentido da erosão da autoridade teológica que prevenia o
indivíduo contra a livre interpretação e o egoísmo racional”. Foi nesse ambiente que a
filosofia seiscentista se propagou sob a base do individualismo econômico; o seu
resultado foi o afastamento da autoridade coletiva, no qual a interferência do Estado não
era mais aceita, mediante a alegação de que este inibia a plena realização das forças
produtivas (LASKI, 1973, p. 92).
Nesse sentido, a busca pelo lucro – característica do sistema do capital – “(...)
não pode ser concretizada porque o Estado ou a Igreja barram o caminho, então um ou
outro, ou ambos os obstáculos terão de ser removidos desse caminho”. A necessidade
liberal, numa palavra, “é a doutrina tecida com o fio da necessidade burguesa. É a lógica
das condições que os burgueses requerem para sua ascensão e triunfo final”. Assim, à
medida que a classe burguesa avançava na luta por maior influência no poder político,
passando a conquistar maior liberdade em sua atividade, acabou por promover ideias e
princípios que não tinha consciência de promover. Ela buscava um Estado secular e
tolerante, mas para efetuar essa ruptura da estrutura teológica daquela forma de Estado,
teve de aceitar uma nova filosofia. Nasce o mercantilismo (LASKI, 1973, p. 97).
No processo de desenvolvimento do mercantilismo, Laski faz referência à ação
da classe burguesa e afirma que ela “adapta primeiro a religião, e depois a cultura aos
seus próprios fins; o Estado seria a última de suas conquistas”. Deseja “a liberdade não
39
como um fim universal, mas como um meio para desfrutar da riqueza que se encontra
ao seu alcance”. E na busca pela riqueza, “faz do Estado, primeiro, um aliado, depois
um inimigo, enquanto prossegue na consecução de seus objetivos”. Isto é, alia-se ao
Estado para a proteção de sua real condição econômica e de sua propriedade; sua
principal função era a de uma agência policial, e o intima a manter-se afastado dos
domínios da ação econômica, que o burguês se propõe a explorar em seus próprios
termos (LASKI, 1973, p. 105).
Foi durante o século XVII que os fundamentos da filosofia liberal se
efetivaram de forma plena. Estabeleceu-se o Estado secular; a tolerância religiosa; o
racionalismo na ciência e na filosofia. Durante este processo, segundo Laski, “O Estado
converteu-se gradualmente numa congregação de homens prósperos; suas leis [são]
feitas para proteger as implicações do sucesso desses homens”, ou seja, o sucesso
material (LASKI, 1973, p. 112). O aparecimento dessa filosofia está vinculado
diretamente com a luta empreendida pela classe trabalhadora. “Foi a hegemonia
conquistada pela burguesia no terreno das ideias que lhe permitiu organizar o povo (o
conjunto do Terceiro Estado) e liderá-lo na luta que pôs fim ao Antigo Regime”
(LASKI, 2010, p. 75).
Da crise moral do século XVII emergiu o liberalismo econômico, ajustado às
implicações da nova religião de Estado, que tinha por objetivo o sucesso material. Isto
significou duas coisas: a primeira delas, a classe burguesa não permitia mais que a
religião interferisse no âmbito das relações econômicas; e a segunda, a fim de que os
trabalhadores se mantivessem no lugar que lhes competia, a religião era utilizada para
mantê-los fiéis aos seus princípios. A burguesia estava consciente de que os homens
privados de bens materiais necessitavam de alguma espécie de consolação, nesse caso, a
religião, com suas promessas de salvação para manter nos trabalhadores a esperança
num mundo melhor. Assim, a entrada no século XVIII, consumou uma separação entre
a religião e a moral que tornou a substância de ambas desigual para as diferentes classes
sociais em questão. Para os proprietários de bens materiais, a religião converteu-se num
assunto privado entre o homem cidadão e o homem religioso; já para os trabalhadores,
passou a ser uma instituição integrada no contexto social da necessidade de manutenção
da ordem pública (LASKI, 1973, p. 124).
40
No curso do século XVIII, a tendência para o laissez-faire16 na Inglaterra, no
processo da Restauração, converteu-se num movimento que se desenvolveu
principalmente em decorrência das concepções de Adam Smith sobre o papel do Estado.
O autor tinha uma aversão pela ação estatal, porém percebia a utilidade dele como poder
coercitivo para proteger contra a injustiça e a violência, e em especial a violência contra
a propriedade privada. Smith reconhecia a atuação do Estado em diversas atividades
consideradas não lucrativas, tais como a educação e as obras públicas. Para ele, além
desse âmbito restrito, a finalidade suprema do Estado é “a proteção das atividades
espontâneas dos indivíduos, pois garantindo a segurança, dificilmente se faz necessária
qualquer ação política” (LASKI, 1973, p.129).
Laski afirma que as concepções de Adam Smith completam uma evolução que
advinha da Reforma Protestante:
Esta substituiu a Igreja pelo príncipe como fonte das leis que regulavam o
comportamento social. Locke e sua escola substituíram o príncipe pelo
parlamento como mais adequado para impregnar as leis de um propósito
social. Adam Smith foi mais além e acrescentou que, com algumas exceções
secundárias, não havia necessidade alguma de o Parlamento interferir.
(LASKI, 1973, p. 130).
De acordo com Adam Smith, as relações econômicas seriam reguladas por uma
lei natural do mercado, chamada por ele de “a mão invisível”, o que fazia da
intervenção do Estado um obstáculo à plena realização da atividade econômica. Pois “o
melhor governo é aquele que menos governa”, e os comerciantes necessitavam de
liberdade para a realização dos seus interesses; assim trariam o bem social a toda a
sociedade. Estas ideias deram impulso à teoria liberal. O fato é que, “aceitos os seus
pressupostos, o liberalismo econômico foi uma doutrina limitada a serviço de uma
reduzida seção da comunidade, a classe detentora da riqueza material”. Nesse sentido, o
custo para o seu funcionamento foi pago pelos trabalhadores urbanos e rurais, que foram
“proibidos de se organizar, privados do direito de voto, sujeitos a tribunais de justiça
que consideravam a preservação da propriedade burguesa a finalidade básica da vida;
eram praticamente impotentes em face das novas disposições” (LASKI, 1973, p. 141).
Com base no exposto, percebe-se que o liberalismo econômico quebrou todos
os grilhões da servidão da classe média e a liberou das imposições do Estado secular;
esta, assim que emancipada, condenou a esses mesmos grilhões da servidão a classe
16 Trata-se de uma expressão do liberalismo econômico clássico, utilizada para se referir à defesa da ideia de
funcionamento livre do mercado, sem a interferência do poder político. Significado literal: “deixai fazer”.
41
trabalhadora que a havia ajudado a conquistar a liberdade, no âmbito econômico,
politico e social.
Isto se expressa bem a partir da Revolução Francesa de 178917, quando essa
“doutrina que começara por ser um método de emancipação da classe média converteu-
se, num método para disciplinar a classe trabalhadora”. A liberdade de contrato
advogada pela doutrina liberal emancipou os detentores de bens e propriedades de seus
grilhões do feudalismo, porém, na realização dessa liberdade, condenou à escravização
a maior parte da população, aqueles que nada tinham para vender senão a sua força de
trabalho. Portanto, o Estado nas mãos da burguesia tornou-se um poder coercitivo para
manter a classe trabalhadora sob o seu domínio (LASKI, 1973, p. 149).
No século XIX, surge outra concepção de Estado, com base na crítica da
doutrina liberal: o socialismo. Sua formulação derivou da compreensão de que “a ideia
liberal garantia à classe média uma participação total nos privilégios, ao mesmo tempo
que deixava o proletariado com seus grilhões de sempre”. O socialismo desenvolveu-se
no sentido de corrigir tais deformações. O Estado alicerçado pela teoria liberal nunca se
comportou como um órgão neutro que procurava agir em favor do “bem-estar” da
sociedade – como afirmavam os pensadores liberais –, e sim como um poder coercitivo
que impunha à classe trabalhadora a disciplina social requerida pelos detentores da
propriedade privada em sua busca pelo lucro (LASKI, 1973, p. 172).
Para Marx e Engels, o triunfo provocado pela revolução burguesa transferiu o
poder político efetivo dos latifundiários para os donos da propriedade industrial. Os
autores “argumentaram que, precisamente como a classe média derrubara a aristocracia
feudal, assim a classe trabalhadora seria também compelida a derrubar os seus patrões
(...)”, pois somente “com a transferência do poder econômico, através da ação
revolucionária da classe trabalhadora para a sociedade como um todo, os homens em
geral poderiam entrar na plena posse do seu patrimônio e herança”. Por isso, Marx e
Engels defendem que a verdadeira revolução não foi a do passado, proclamada pela
burguesia, mas a do futuro, que será realizada pela classe trabalhadora (MARX;
ENGELS apud LASKI, 1993, p. 173).
17 A Revolução Francesa foi resultado da ascensão da burguesia ao poder. A forma como os homens se organizavam
para produzir a riqueza material da sociedade não mais atendia à necessidade de expansão que a nova sociedade
impunha. Isso culminou na derrocada da velha forma de organização feudal, pela necessidade de suprimir os entraves
impostos à livre produção, no sentido de atender às demandas da sociedade que estava se formando. (SOBOUL,
1974).
42
Com base nas características apresentadas sobre o que é essa instituição
chamada de Estado, que cumpre uma função precisa no interior da totalidade social,
pode-se compreender seus principais aspectos. No que se refere ao seu desenvolvimento
e constituição enquanto Estado moderno, como esse Estado assume formas variadas no
processo de ascensão da classe média, sendo absolutamente determinante e
intervencionista no período mercantilista, e como, no curso do amadurecimento da
atividade econômica e do poder político, foi sendo capturado pela burguesia. Para Adam
Smith, o papel do Estado na sociedade deveria ser limitado a tal ponto que o autor
analisa a presença do Estado mercantilista na economia, ao tempo que reconhece a sua
utilidade como poder coercitivo para o desenvolvimento das relações econômicas.
Smith defendia a regulação da economia por uma força própria, chamada por ele de “a
mão invisível”, o que fazia da intervenção estatal um obstáculo à plena realização da
atividade econômica. Estes movimentos correspondem ao processo pelo qual se deu a
origem do Estado moderno, que tem movimentos contraditórios, mas que não provocou
nenhuma mudança na essência do Estado enquanto poder político (SMITH apud
LASKI, 1993).
O Estado na transição de um século para outro fez inflexões significativas, no
entanto, continuou sendo o mesmo Estado e a exercer a mesma função social que
defende e auxilia a reprodução da classe dominante. A história concede a verificação da
teoria, desse movimento dialético. Assim, compreende-se que a teoria liberal-
democrática tem uma finalidade muito específica, definida e determinada em termos de
classe social, sendo esta construída, desenvolvida e consolidada do ponto de vista dos
interesses de uma classe em particular, aquela economicamente mais poderosa, a
burguesia. Sobre esta o capitalismo se constituiu de modo a organizar as atividades
econômicas e as relações humanas, tendo o objetivo específico da busca da riqueza pela
riqueza, ou seja, do lucro em si mesmo.
Ao longo desse processo, fica evidente a forma como a burguesia foi
construindo as novas relações econômicas e como ela foi elaborando e investindo na
constituição de seu próprio poder político. O Estado moderno e a economia capitalista
de mercado se desenvolveram em ritmos diferenciados, mas sincronizados; as condições
materiais que proporcionaram o aparecimento deste novo modo de produção material se
deram dentro dos marcos do feudalismo, e o Estado era ainda eminentemente feudal nos
primeiros momentos de aparecimento do comércio. O desenvolvimento das relações na
esfera da produção material e na esfera da organização política, e como vão caminhando
43
em movimentos sincronizados, porém distintos, num processo de constituição do
capitalismo maduro, levou cerca de três séculos para se consolidar na sociedade.
A Revolução Burguesa constituiu toda uma época de revoluções sociais
durante o período mercantilista, que se inicia no século XV e vai até o século XVIII. A
classe burguesa, em processo de formação, beneficiou-se do poder do Estado, que
naquele momento era o Estado absolutista. A burguesia ainda não era suficientemente
forte para ter condições de reivindicar o poder político, porém os fundamentos do
Estado já estavam presentes, servindo aos seus interesses de classe. O Estado
desenvolve a mesma função social, de formas diferentes, em fases distintas de
desenvolvimento do capitalismo. No século XVIII, quando a nova classe já estava
constituída, o Estado se adequou às necessidades do capitalismo. Tornou-se o Estado do
capital para cumprir as funções de ordenamento da reprodução social, agora sob a lógica
do capital e da extração de mais-valia.
Assim, ao ser instaurado o Estado, garante-se a vida e os interesses particulares
de cada indivíduo, constituídos com base na vontade universal. É este pensamento
moderno, de base liberal, que subsidiará politicamente a organização social que regulará
as relações sociais e se tornará dominante na sociedade capitalista. Para tanto, se fez
necessário entender os fundamentos ontológicos do Estado, para em seguida apreender a
sua formação e função social no processo de transição para o modo de produção
capitalista. Com base nos estudos apresentados, em seguida se observará quais são as
principais formas de atuação do Estado moderno para auxiliar na produção e reprodução
do sistema sociometabólico do capital.
2.3 O Estado moderno no sistema sociometabólico do capital
Como já visto, a existência do Estado moderno está diretamente ligada à
reprodução sociometabólica da sociedade capitalista, pois esta é o fundamento
ontológico objetivo do próprio Estado. Na sociedade capitalista, o relacionamento entre
a dimensão econômica e a política não permite que o processo da produção social seja
unilateral, como o foi no passado, no modo de produção feudal, dada a determinação
reflexiva que se desdobra entre ambas as esferas, tendo como primazia a dimensão
econômica. No intercâmbio com a estrutura econômica do capital, o Estado encontra os
seus próprios limites, pelo fato de que a sua função social, por mais que esteja
44
intimamente vinculada à reprodução da estrutura econômica, revela-se sempre incapaz
de alterar a sua própria essência, conforme se verá a seguir.
Na condição de “estrutura totalizadora do comando político” do capital, o
Estado, ao longo do desenvolvimento da sociedade capitalista, desempenha as mais
variadas funções, complementando-o, à medida que assegura e protege a acumulação de
mais-valia. Na busca de analisar de formas mais abrangente os fundamentos do Estado
moderno, toma-se como referência o capítulo 2 do livro Para Além do Capital – rumo a
uma teoria de transição, de István Mészáros18, pois as contribuições deste autor são de
fundamental importância para as reflexões sobre a reprodução do sistema do capital e o
papel do Estado moderno nesse processo.
De acordo com Mészáros, para apreender a totalidade social do modo de
operação do sistema do capital, faz-se necessário confrontar a ordem estabelecida do
controle sociometabólico do capital com seus antecedentes históricos, ou seja, com os
modos de produção desenvolvidos pela humanidade até os dias atuais. Conforme visto
anteriormente, as estruturas da sociedade escravista e feudal serviram de base para a
organização da sociabilidade burguesa. Mészáros identifica algumas relações, sendo a
primeira delas a relação capital. Para o autor, “(...) o capital não é simplesmente uma
‘entidade material’ – também não é, (...) um ‘mecanismo’ racionalmente controlável,
(...) mas é, em última análise, uma forma incontrolável de controle sociometabólico”
(2011, p. 96, grifo do autor).
O capital é um controle sociometabólico incontrolável porque não é
racionalmente controlável pelo homem, no sentido de que ele tem uma lógica própria, a
lógica de valor que produz valor, sempre na esfera da expansão e acumulação. A esse
respeito, Mészáros (2011) afirma que o capital só existe à medida que subordina à força
de trabalho as necessidades de reprodução desse sistema. No processo de produção da
riqueza material da sociedade burguesa, o capital e o trabalho apresentam uma relação
de operação conjunta, pois um não produz sem a existência do outro, numa relação que
visa sempre a gerar valor.
Dessa forma, o modo de produção capitalista funda-se na divisão social e
hierárquica do trabalho e na propriedade privada dos meios de produção, em que a
produção capitalista se distingue dos anteriores modos de produção pela simples razão
de que essa propriedade não mais pertence aos produtores diretos, como no feudalismo,
18 A relevância dessa referência consiste em entender Mészáros como um elo contemporâneo às teses fundamentais
de Engels e Marx sobre o Estado.
45
e sim ao capitalista. Este modo de produção consolida-se na sociedade via exploração
da força de trabalho, que é comprada pelo capitalista mediante o pagamento do salário.
Isto significa dizer que é na esfera da circulação – da operação entre trabalho e capital –
que o lucro do capitalista se realiza. O produto dessa relação pode ser tudo que se
transforma materialmente em riqueza; logo, a fonte da riqueza não é a “entidade
material”, a propriedade privada. Por ser o capital que dá origem à propriedade privada;
esta corresponde a um efeito dessa relação que produz sempre riqueza nova; a
propriedade é só uma expressão material da riqueza e depende da relação social de
produção ente trabalho e capital.
Mészáros, ao analisar os fundamentos do sistema do capital, demonstra que
este nasce e se consolida em sociedade como “uma forma incontrolável de controle
sociometabólico”. No entanto, a ele cabe o controle de todas as formas de relação dos
indivíduos, que aparecem como personificação do capital ou do trabalho. Assim, por se
tratar de um poder totalizador que a tudo domina, em todas as esferas da vida em
sociedade, o autor afirma:
A razão principal por que este sistema forçosamente escapa a um
significativo grau de controle humano é precisamente o fato de ter, ele
próprio, surgido no curso da história como uma poderosa – na verdade, até o
presente, de longe a mais poderosa – estrutura “totalizadora” de controle à
qual tudo o mais, inclusive seres humanos, deve se ajustar, e assim provar sua
“viabilidade produtiva”, ou perecer, caso não consiga se adaptar.
(MÉSZÁROS, 2011, p. 96, grifo do autor).
Esse sistema baseia-se na exploração da força de trabalho e no processo de
alienação do trabalhador mediante a relação do que é produzido, ao passo que a
produção volta-se não mais para o atendimento das reais necessidades de reprodução
dos homens, como nas comunidades primitivas, senão para as demandas do mercado, de
modo a gerar mais-valia e garantir a operação contínua de sua acumulação. Dessa
forma, transforma-se no mais eficiente modo de extração da mais-valia e de controle
coercitivo da força de trabalho, que a tudo subordina às suas determinações
reprodutivas. Portanto, quem não se ajusta a estes critérios, a esta forma de
funcionamento, tende a perecer, tendo em vista que sua dominância “totalitária” no
âmbito material abrange todos os espaços da vida em sociedade.
Por essa razão, “não se pode imaginar um sistema de controle mais
inexoravelmente absorvente – e, neste importante sentido, ‘totalitário’– do que o
sistema do capital globalmente dominante (...)”, que sujeita aos mesmos imperativos a
questão da saúde e o comércio, a educação e a agricultura, a arte e a indústria
46
manufatureira, por sobrepor tudo aos seus próprios critérios de viabilidade. Desde as
menores unidades reprodutivas até as grandes empresas transnacionais, das mais íntimas
relações pessoais aos mais complexos processos de tomada de decisão dos mais amplos
monopólios industriais, sempre ocorrem a favor dos fortes e contra os fracos. Dessa
forma, entende-se que em todas as esferas da vida predomina seu critério imperativo de
gerar valor. Mesmo as relações afetivas, do pequeno aos gigantescos negócios, tendem a
operar de acordo com a lógica reprodutiva do capital (MÉSZÁROS, 2011, p. 96).
O sistema do capital, segundo Mészáros, é o primeiro na história da
humanidade que se constitui como “totalizador irrecusável e irresistível”; não importa
quanto repressiva tenha de ser a “imposição de sua função totalizadora”, porque esta
característica acaba tornando tal sistema “(...) mais dinâmico de que todos os modos
anteriores de controle sociometabólico juntos”. O preço a ser pago é, paradoxalmente,
“a perda de controle sobre os processos de tomada de decisão”. Isto não apenas se aplica
à classe trabalhadora, mas também aos capitalistas em geral, pois o seu poder sobre o
controle no conjunto do sistema do capital é absolutamente insignificante. Logo, “eles
têm de obedecer aos imperativos objetivos de todo o sistema, exatamente como todos os
outros, ou sofrer as consequências (...)”. Dessa forma, ninguém tem poder de decisão
sobre sua própria lógica; a contradição é parte integrante do sistema sociometabólico do
capital, em outros termos, é algo permanente que faz parte da sua base ontológica
(MÉSZÁROS, 2011, p. 97-98).
Devido a essa característica totalizadora do capital, Mészáros (2011) o
qualifica como um sistema de controle sociometabólico. No nosso entendimento, o
autor utiliza a expressão “sociometabólico” para especificar o conjunto da totalidade do
sistema social, ou seja, a forma como este sistema se reproduz e como desenvolve os
órgãos e instituições necessários para exercer sua função reprodutiva na sociedade como
um todo. Partindo desse pressuposto, Mészáros afirma que “na qualidade de modo
específico de controle sociometabólico, o sistema do capital inevitavelmente também se
articula e consolida como estrutura de comando singular”.
O processo de controle do sistema do capital não se observa apenas nas
unidades produtivas, ele também se estende a outras mediações da vida em sociedade;
uma delas é o Estado, na organização e administração dos conflitos sociais em questão,
quando auxilia na reprodução material do capital. Na condição de sociedade dividida
em classes, a forma de sociabilidade do capital também exige um poder regulador das
47
relações sociais. Isso sugere um controle do sistema social enquanto totalidade
(MÉSZÁROS, 2011, p. 98).
Na sociedade capitalista, as classes sociais exercem funções sociais vitais para
a manutenção do sistema, que não podem ser substituídas nem eliminadas. A inserção
dessas classes fundamentais na estrutura produtiva da riqueza material nos moldes do
sistema do capital independe da consciência que as classes tenham disso. Esse sistema
foi constituído no curso da história como sendo o mais eficaz produtor de trabalho
excedente apropriado mediante a produção de mais-valia. Mészáros chama atenção para
o fato de que, “(...) dada a modalidade única de seu metabolismo socioeconômico,
associada a seu caráter totalizador – sem paralelo em toda a história, até nossos dias –,
estabelece-se uma correlação anteriormente inimaginável entre economia e política”
(MÉSZÁROS, 2011, p. 98).
Até aqui, procurou-se compreender, mesmo que brevemente, como Mészáros
analisa o sistema do capital enquanto relação social, que se configura como um poder de
controle sociometabólico devido ao seu caráter totalizador que abrange todas as esferas
da vida em sociedade, estejam elas nas áreas sociais, econômicas ou ideológicas. Agora
se irá analisar a natureza do relacionamento entre economia e política no sistema de
reprodução sociometabólico do capital.
Mészáros assevera que, “como um modo de controle sociometabólico, o
capital, por necessidade, sempre retém seu primado sobre o pessoal por meio do qual
seu corpo jurídico pode se manifestar de formas diferentes nos diferentes momentos da
história” após seu nascimento. Este corpo jurídico ao qual o autor faz referência é o
Estado, que se ajusta para responder às demandas reprodutivas do capital, podendo se
constituir das formas mais variadas possíveis, porém sem alterar sua função social. No
entanto, o que determina a organização do metabolismo social é a reprodução da riqueza
material na relação capital, já que o capital retém seu primado como modo de controle
que a tudo subordina. O controle sociometabólico desse sistema encontra-se acima do
desejo das suas personificações – capitalistas e trabalhadores (MÉSZÁROS, 2011, p.
98).
Dessa forma, “(...) para poder funcionar como um modo totalizador de controle
sociometabólico, o sistema do capital deve ter sua estrutura de comando historicamente
singular e adequada para suas importantes funções”. Ou seja, nesse sistema,
consolidado historicamente enquanto “estrutura de comando singular”, o principal
objetivo dos capitalistas corresponde à extração da mais-valia e à valorização do capital,
48
“no interesse da realização dos objetivos metabólicos fundamentais adotados”. Com
isso, “a sociedade toda deve se sujeitar – em todas as suas funções produtivas e
distributivas – às exigências mais íntimas do modo de controle do capital
estruturalmente limitado (mesmo se dentro de limites significativamente ajustáveis)”.
Como reflexo dessa relação de sujeição, dá-se a divisão da sociedade em classes sociais
abrangentes e opostas entre si, tanto no que se refere à base da reprodução econômica
quanto na forma de instituição do controle político. Para tanto, faz-se necessário um
controle político do Estado a fim de manter essa forma de reprodução sociometabólica
em funcionamento (MÉSZÁROS, 2011, p. 98-99).
Mesmo sendo o Estado um elemento fundamental para a manutenção da
sociedade moderna, quanto ao modo de produção econômica e à dominação social, ele
assume apenas a função de apoio necessário. Para Mészáros, é no processo de
reprodução material, na esfera econômica, que se encontra a divisão que mantém essa
relação de sujeição, consolidada sob um denominador comum, um complicado “sistema
de divisão hierárquica do trabalho”. A reprodução da vida de ambas as classes sociais
depende de uma relação de subordinação de divisão hierárquica do trabalho.
Desse modo, não se trata apenas de uma questão de dominação política, mas de
uma condição da base de reprodução material do capital. Portanto, não se pode pensar
que a dominação acontece através da forma do Estado – isto pode levar a ilusões
perigosas de que modificando a forma do Estado pode-se acabar com a dominação de
classe. Resta claro que a relação de dominação ocorre na base material, que encontra
seu apoio e complementação na esfera de dominação política no Estado. Essa imposição
da divisão social hierárquica do trabalho na sociedade capitalista é uma necessidade
inevitável para a manutenção do sistema sociometabólico do capital (MÉSZÁROS,
2011, p. 99).
Constitui o Estado uma unidade de comando político inseparável19 do capital,
que tem como função administrar a ordem deste sistema sociometabólico para que ele
não perca seu autocontrole na manutenção do processo de produção e reprodução da
riqueza material. Com essa finalidade, o Estado atua nas mais variadas formas, sempre
mantendo sua essência, até mesmo atuando sobre os defeitos estruturais do capital.
Em seu desenvolvimento histórico, segundo Marx (1996), o modo de produção
capitalista teve, primeiramente, de cindir produção e controle – no período da
19 Mészáros (2011) utiliza esse termo para se referir à relação inseparável e de complementaridade entre o sistema
sociometabólico do capital e o Estado moderno.
49
acumulação primitiva –, para gerar força de trabalho assalariada. Houve a divisão da
sociedade em duas classes fundamentais e antagônicas: os proprietários dos meios de
produção e os proprietários da força de trabalho. A separação entre produção e controle
encontra-se na base do próprio sistema do capital.
Para Mészáros este é um problema estrutural e representa um defeito do
próprio sistema do capital. Como o capitalismo não tem um modo sustentável de
solucioná-lo, devido à total perda de controle sobre a relação entre produção e controle,
só lhe resta remediá-lo. Portanto, o primeiro defeito estrutural do capital é com relação
à produção e seu controle, que “(...) estão radicalmente isolados entre si e se acham
diametralmente opostos” no processo de produção. Encontram-se isolados entre si no
sentido de que não há uma comunicação possível, pois quem decide o que produzir e se
apropria da produção é uma classe (a burguesa); e quem produz é outra (os
trabalhadores). Dessa forma, não há conciliação possível entre as classes sociais em
questão (MÉSZÁROS, 2011, p. 105).
O segundo defeito estrutural do capital dá-se entre produção e consumo.
Mészáros afirma que,
no mesmo espírito e surgindo das mesmas determinações, a produção e o
consumo adquirem uma independência e uma existência separada
extremamente problemática, de modo que, no final, o “excesso de consumo”
mais absurdamente manipulado e desperdiçador, concentrado em poucos
locais, encontre seu corolário macabro na mais desumana negação das
necessidades elementares de incontáveis milhões de pessoas. (2011, p. 105).
Nesse sentido, a contradição apresentada pelo excesso de produção e a
restrição do consumo não acompanham o processo produtivo. Conforme teorizou Marx,
os pressupostos básicos dessa relação residem no caráter antagônico da acumulação
capitalista – que tem seu fundamento na Lei Geral da Acumulação Capitalista –, no
qual se gera a riqueza de um lado e a miséria de milhões de pessoas do outro, ou seja,
mais uma contradição insanável. Mészáros (2011) aduz que a classe trabalhadora, ao
mesmo tempo que é produtora, também assume a função no processo produtivo como
consumidora. Contudo, por mais que o capital incentive a capacidade de consumo do
produtor direto, não consegue dar vazão à superprodução cíclica que ele mesmo gera no
processo. Portanto, um dos problemas insanáveis do sistema do capital é precisamente a
consequência de sua Lei Geral da Acumulação, que do mesmo modo que garante a
acumulação, a expansão e a reprodução do capital, produz a miséria da classe
trabalhadora em grande escala.
50
No que se refere ao terceiro defeito estrutural, a disjunção entre produção e
circulação, verifica-se que o capital não se limita ao domínio da fábrica regional e
nacional, porquanto perpassa o mercado de consumo local e se expande à esfera
planetária do capital social total. Nessa direção, “(...) a necessidade de dominação e
subordinação prevalece, não apenas no interior de microcosmos particulares – por meio
da atuação de cada uma das ‘personificações do capital’ –, mas também fora de seus
limites (...)”. Daí por que “a força de trabalho total da humanidade se sujeita – com as
maiores iniquidades inimagináveis, em conformidade com as relações de poder
historicamente dominantes em qualquer momento particular – aos imperativos
alienantes do sistema do capital global”. Mészáros atesta a grandeza do sistema do
capital como modo de produção e dominação global, que atinge os Estados
internacionais e os Estados nacionais, os quais representam os interesses dos capitalistas
em cada território (MÉSZÁROS, 2011, p. 105, grifos do autor).
Nessa disjunção entre produção e circulação dá-se uma contradição
fundamental: o processo da circulação global não pode ser equilibrado, o que produz
uma relação de hierarquização entre os Estados envolvidos, a saber, os Estados com
economias desenvolvidas – os países centrais – e os Estados com economias que estão
integradas nessa lógica reprodutiva – os países periféricos (ou países dependentes/
subdesenvolvidos). A questão de hierarquia econômica de cada país, ou seja, a relação
entre países centrais e periféricos é também condicionada pela lógica concentradora do
sistema do capital.
Nessa direção, verifica-se uma relação de duplo padrão de acumulação. No
primeiro, observa-se uma forma de o capitalismo explorar e acumular riquezas nos
países avançados, que proporciona um padrão de vida bem mais elevado para a classe
trabalhadora; e no segundo, uma forma diferenciada e desigual de explorar e extrair
mais-valia da força de trabalho nos países de capitalismo periférico. No entanto, nas
últimas décadas se vem testemunhando certa equalização na taxa de exploração dos
trabalhadores em todos os países, centrais e periféricos (MÉSZÁROS, 2011, p. 105).
Qualquer tentativa de criar algum tipo de unidade para essas estruturas sociais
reprodutivas tende a ser problemática e temporária, pois não existe uma condição
concreta para o capital se manter sem essas bases estruturais. Em outras palavras, essa
ausência de unidade se “manifesta em conflitos fundamentais de interesse entre as
forças sociais hegemônicas alternativas”. Esses antagonismos sociais são disputados
entre capitalistas e trabalhadores, mas sempre favorecem o capital em detrimento do
51
trabalho. Contudo, “mesmo quando o capital sai vitorioso nessas lutas, os antagonismos
não podem ser eliminados (...), precisamente porque são estruturais”, isto é, fazem parte
da lógica reprodutiva desse sistema. Portanto, as contradições sociais que derivam
desses defeitos estruturais são necessariamente reproduzidas em todas as fases históricas
do sistema do capital (MÉSZÁROS, 2011, p. 105-106, grifo do autor).
Uma vez traçados os delineamentos fundamentais, ainda que de forma pontual,
que situam objetivamente os defeitos estruturais no interior do sistema sociometabólico
do capital, Mészáros identifica que a ação do Estado se direciona para a obrigação e o
comprometimento de atuar sobre tais defeitos. Para cumprir esta função, o poder
político cria diversas formas de atuação – desde investimentos diretos até políticas
sociais. O autor chama esse movimento de imperativos corretivos do capital e do
Estado, por se tratar de defeitos e contradições que têm de ser administrados
constantemente. São corretivos porque têm intenção de manter o mesmo modo de
reprodução social sem alterar a essência. Desse modo, “realiza-se uma ação corretiva –
em grau praticável na estrutura do sistema do capital – pela formação do Estado
moderno”. A constituição, a organização e a forma de atuação do Estado correspondem
a essa necessidade de manutenção do sistema sociometabólico do capital (MÉSZÁROS,
2011, p. 106).
Ainda segundo Mészáros:
(...) é tanto mais revelador que o Estado moderno tenha emergido com a
mesma inexorabilidade que caracteriza a triunfante difusão das estruturas
econômicas do capital, complementando-as na forma da estrutura
totalizadora de comando político do capital. Este implacável desdobramento
das estruturas estreitamente entrelaçadas do capital em todas as esferas é
essencial para o estabelecimento da viabilidade limitada desse modo de
controle sociometabólico tão singular ao longo de toda a sua vida histórica.
(2011, p. 106).
A análise até aqui apresentada por Mészáros refere-se ao capitalismo em sua
fase madura, quando o Estado passa a assumir um papel cada vez mais interventivo para
manter o funcionamento do sistema reprodutivo do capital. Agora, além de seu caráter
administrativo, o Estado passa a complementar a própria reprodução automática do
sistema do capital, adotando medidas, intervindo e atuando na esfera do sistema
reprodutivo do capital. Portanto, “a formação do Estado moderno é uma exigência
absoluta para assegurar e proteger permanentemente a produtividade do sistema” do
capital. Para o autor, o Estado é uma estrutura totalizadora do sistema do capital,
atuando enquanto unidade do comando político do capital e complementando as bases
das estruturas econômicas (MÉSZÁROS, 2011, p. 106).
52
Conforme visto nos itens anteriores, o poder político já existia antes mesmo do
desenvolvimento do sistema do capital. Em todas as formas precedentes de produção
que se baseavam na divisão da sociedade em classes sociais, o Estado aparece como um
poder que legitima a formação social em classes e defende os interesses da classe
economicamente mais poderosa. O Estado modificou sua forma de atuação de um tipo
de sociedade para a outra, porém manteve a sua essência, e não foi diferente com o
surgimento do capitalismo.
Mészáros afirma que “o capital chegou à dominância no reino da produção
material paralelamente ao desenvolvimento das práticas políticas totalizadoras que dão
forma ao Estado moderno”. Não é estranho que a crise de ascensão do capital no século
XX venha a coincidir com a crise política do Estado moderno em todas as suas esferas,
desde sua formação de Estados liberal-democrática e capitalista de extremo
autoritarismo até os regimes pós-coloniais e os pós-capitalistas de tipo soviético. É que
junto com a crise estrutural do capital vem a crise política em geral (MÉSZÁROS,
2011, p. 106).
Dessa forma, “em sua modalidade histórica específica, o Estado moderno passa
a existir, acima de tudo, para poder exercer o controle abrangente sobre as forças
centrífugas insubmissas que emanam de unidades produtivas isoladas do capital, um
sistema reprodutivo social antagonicamente estruturado”. O Estado, além de administrar
os antagonismos sociais e atender às demandas de reprodução material do capital, passa
a atuar para administrar as forças centrífugas. Nesse contexto, a atuação do Estado
torna-se fundamental para a manutenção de todo o sistema, pois administra a ordem da
relação de classes.
Também a relação de conflito e concorrência entre capitalistas requer uma
instância político-administrativa compatível com as estruturas do capital. Mészáros
acrescenta que “o Estado moderno constitui a única estrutura compatível com os
parâmetros estruturais do capital como modo de controle sociometabólico”. Acrescenta
que “sua função é retificar – deve-se enfatizar mais uma vez: apenas até onde a
necessária ação corretiva puder se ajustar aos últimos limites sociometabólicos do
capital – a falta de unidade em todos os três aspectos (...)” que resultam nos defeitos
estruturais do capital (MÉSZÁROS, 2011, p. 107).
Foi necessário analisar esses pontos destacados por Mészáros, para em seguida
entender a ação do Estado moderno em relação aos problemas estruturais do sistema do
capital. O Estado passa a complementar este sistema enquanto esfera de comando
53
político, mas sempre guiado pela lógica reprodutiva, para atender às demandas do
capital.
No que se refere ao primeiro defeito estrutural, a ausência de unidade entre
produção e controle, verifica-se que o Estado protege legalmente a relação de forças
estabelecidas no processo produtivo da sociedade, ao sancionar a ilusão de um
relacionamento entre iguais. Diante da “(...) possibilidade de administrar a separação e o
antagonismo estrutural de produção e controle, a estrutura legal do Estado moderno é
uma exigência absoluta para o exercício da tirania nos locais de trabalho”. Essa
estrutura política cumpre a função de sancionar e proteger a propriedade privada dos
meios de produção e os capitalistas – as personificações do capital – no processo de
reprodução econômica do capital. O capitalismo não é um sistema que funciona sem
esse aparato legal permanente de ajustes, que visa manter sob controle suas
contradições, a concorrência permanente e os antagonismos de classes (MÉSZÁROS,
2011, p. 107, grifo do autor).
Outro aspecto frisado por Mészáros (2011) na relação entre produção e
controle é que “o maquinário do Estado moderno é também uma exigência absoluta do
sistema do capital”. Ou seja, a relação entre capital e Estado é uma exigência absoluta; é
isso que está no fundamento ontológico. De modo que ele é necessário “para evitar as
repetidas perturbações que surgiriam na ausência de uma transmissão da propriedade
compulsoriamente regulamentada – isto é: legalmente prejulgada e santificada – de uma
geração à próxima, perpetuando também a alienação do controle dos produtores diretos”
(MÉSZÁROS, 2011, p. 108).
Mészáros também destaca a necessidade de intervenções políticas legais, sejam
elas diretas ou indiretas, diante das relações, nada harmoniosas, entre as “unidades
socioeconômicas particulares”. Contudo, verifica-se que este tipo de intervenção
corretiva acontece de acordo com “(...) a dinâmica mutante de expansão e acumulação
do capital, facilitando a prevalência dos elementos e tendências potencialmente mais
fortes até a formação de corporações transnacionais gigantescas e monopólios
industriais”. Deste modo, o Estado acaba favorecendo e deixando o capital mais forte,
porém sem perder de vista um certo equilíbrio entre as pequenas unidades produtivas e
os monopólios e as transnacionais.
Assim, o poder político nasce da absoluta necessidade material do sistema do
capital, e depois, na forma de uma reciprocidade dialética, torna-se uma precondição
fundamental para a relação subsequente de todo o conjunto.
54
Para Mészáros, isso significa que
o Estado se afirma como pré-requisito indispensável para o fortalecimento
permanente do sistema do capital, em seu microcosmo e nas interações das
unidades particulares de produção entre si, afetando intensamente tudo, desde
os intercâmbios locais mais imediatos até os de nível mais mediato e
abrangente, ou seja, atuando na totalidade do sistema capitalista.
(MÉSZÁROS, 2011, p. 108-109).
No que diz respeito ao segundo grupo de problemas, a ruptura entre produção e
consumo, característica da ausência de unidade do sistema do capital, essa relação
elimina algumas das principais restrições do passado, pois abandona a dominância da
produção para o valor de uso e tende a atingir seus limites absolutos em algum
momento da história, quando as contradições do capital já não puderem mais ser
ajustadas à lógica expansionista do capitalismo, de valor que sempre gera valor.
A expansão desenfreada do capital desses últimos séculos abriu-se não
apenas em resposta a necessidades reais, mas também por gerar apetites
imaginários ou artificiais – para os quais, em princípio, não há nenhum
limite, a não ser a quebra do motor que continua a gerá-los em escala cada
vez maior e cada vez mais destrutiva – pelo modo de existência independente
e pelo poder de consumo autoafirmativo. (MÉSZÁROS, 2011, p. 109).
Em seu desenvolvimento histórico, a produção capitalista solicitou cada vez
mais pessoas para o mercado de consumo, mas não de forma suficiente para atender a
toda a demanda de produção do capital, o que gera um problema. Mesmo nos momentos
de crise, e em face da crise estrutural, o capital mantém o ritmo de produção destrutiva,
pois continua a considerar, como diz Mészáros, que “o céu é o limite”, ou seja, que não
há limites para a reprodução desse sistema. O capital torna este um problema cada vez
mais grave por incentivar o consumismo desenfreado, e consequentemente
autodestrutivo20. Portanto, o consumo não visa mais o valor de uso, mas tem por
objetivo a propagação e a geração de apetites inimagináveis e necessidades artificiais.
Suas bases estão na separação entre produção e consumo, porquanto grande parte do
que é produzido não é consumida pela população; esse é um dos pontos que acarretam
as crises do sistema do capital (MÉSZÁROS, 2011, p. 109).
Evidencia-se, portanto, “o papel totalizador do Estado é essencial”, pois nesse
processo de produção desenfreado do capital o Estado torna-se um grande comprador.
Nesse sentido,
20 Tal fenômeno ocorre desde as origens da produção capitalista. Com o processo de industrialização, a
dimensão destrutiva já se mostrava um estimulo imanente à taxa decrescente do valor de uso das
mercadorias.
55
Ele deve ajustar suas funções reguladoras em sintonia com a dinâmica
variável do processo de reprodução socioeconômico, complementando
politicamente e reforçando a dominação do capital contra as formas que
poderiam desafiar as imensas desigualdades na distribuição e no consumo.
Além do mais, o Estado deve também assumir a importante função de
comprador/consumidor direto em escala sempre crescente. (MÉSZÁROS,
2011, p. 110).
Mészáros destaca que:
Nessa função, cabe a ele prover algumas necessidades reais do conjunto
social (da educação à saúde e da habitação e manutenção da chamada
“infraestrutura” ao fornecimento de serviços de seguridade social) e também
a satisfação de “apetites em sua maioria artificiais” (por exemplo, alimentar
não apenas a vasta máquina burocrática de seu sistema administrativo e de
imposição da lei, mas também o complexo militar-industrial, imensamente
perdulário, ainda que diretamente benéfico para o capital) – atenuando assim,
ainda que não para sempre, algumas das piores complicações e contradições
que surgem da fragmentação da produção e do consumo. (2011, p. 110).
Diante desse defeito estrutural do capital, da separação e oposição entre
produção e consumo, o Estado passa a exercer a função de grande consumidor; ele
passa a auxiliar o capital no consumo em grande escala. O Estado começa a comprar do
capital, ou seja, a consumir para manter sua gigantesca máquina burocrática,
concretizada em cargos e funções que não possuem outra finalidade a não ser a
dominação política. Em certos momentos de crises cíclicas21, o sistema do capital exigiu
um Estado comprador, principalmente, do complexo industrial-militar, como uma das
estratégias para retirar o capitalismo das crises. Este complexo se desenvolveu como
uma enorme válvula de escape da superprodução. Se isso é essencial para a lógica
reprodutiva do capital, não é, nem de longe, suficiente para manter sua lógica de
reprodução constante.
Essa intervenção totalizadora e a ação corretiva do Estado não podem produzir
uma unidade sobre este defeito, porque a separação entre produção e consumo, com a
radical alienação do controle dos produtores diretos, são determinações estruturais
internas do próprio sistema do capital, constituindo requisitos indispensáveis para a sua
constante reprodução. A ação corretiva do Estado é muito importante para a reprodução
social da base material no sistema do capital, na qual as estruturas políticas de comando
de seu modo de controle se relacionam de forma simbiótica. Esta correlação
problemática entre produção e consumo na base fragmentada da ordem sociometabólica
do capital tem seus limites determinados pela extensão na qual o Estado moderno pode
21 Isto será abordado no capítulo 4, item 4.1.
56
contribuir, de maneira eficiente, para a necessidade de expansão e acumulação do
sistema do capital (MÉSZÁROS, 2011).
Outro aspecto, não menos importante e decisivo, no tocante à ação do Estado
neste plano entre produção e consumo refere-se à transformação do trabalhador em
consumidor de supérfluos. Por via dessa intervenção totalizadora do Estado, os
trabalhadores são convocados a participar do universo de produtos industrializados,
intensificando os lucros dos capitalistas e aumentando a taxa de mais-valia para o
capital. Nesse sentido, “o trabalhador como consumidor desempenha um papel de
grande (ainda que muito variável ao longo da história) importância no funcionamento
saudável do capital”. É inevitável que os trabalhadores, além de serem alienados no
processo produtivo, não sejam alienados na esfera do consumo, pois passam a consumir
mercadorias supérfluas para a sua reprodução, o que contribui para a manutenção da
necessidade permanente do consumo do capital (MÉSZÁROS, 2011, p. 110).
No que diz respeito ao terceiro defeito estrutural, a fragmentação entre
produção e circulação, Mészáros aponta “a necessidade de criar a circulação como
empreendimento global das estruturas internamente fragmentadas do sistema do capital
ou, em outras palavras, a procura de alguma espécie de unidade entre produção e
circulação (...)”, em que “o papel ativo do Estado moderno é igualmente grande, se não
maior”. Ao concentrar sua atenção neste papel e ainda nas diversas funções no domínio
do consumo, o Estado prioriza sua atuação nas fronteiras nacionais, gerando
contradições. O autor menciona que “uma das contradições mais evidentes e, em última
análise, mais inadministráveis, é que historicamente as estruturas corretiva global e de
comando político do sistema do capital se articulam como Estados nacionais (...)”.
Ainda que enquanto modo de reprodução e controle sociometabólico seja inconcebível
que tal sistema se confine a tais limites (MÉSZÁROS, 2011, p. 111, grifos do autor).
Mészáros ressalta que duas tendências complementares do desenvolvimento
desta forma diferenciada de exploração são muito significativas. A primeira é que nas
últimas décadas testemunhou-se, “sob a forma de uma espiral para baixo que afeta o
padrão de vida do trabalhador nos países capitalistas mais avançados, certa equalização
no índice diferencial de exploração que tende a se firmar também como espiral para
baixo do trabalho nos países ‘centrais’ no futuro previsível”. Enquanto foi possível, o
capital manteve a taxa diferencial de exploração do trabalho entre países centrais e
periféricos. (MÉSZÁROS, 2011, p. 111-112, grifos do autor).
57
Ainda conforme o referido autor, na fase da crise estrutural do capital ocorre
uma equalização da taxa de exploração da mais-valia; antes, o índice era favorável à
classe trabalhadora dos países de capitalismo avançado, e agora tende a uma redução
acentuada. Observa-se que a classe trabalhadora desses países está perdendo direitos
concedidos em períodos anteriores, e a atividade produtiva está se tornando cada vez
mais precarizada; em outras palavras, os trabalhadores dos países centrais já não podem
mais ser poupados, como foram no passado. Isto significa um nível maior de
contradições e uma maior degradação da própria força de trabalho (MÉSZÁROS, 2011,
p. 111-112, grifo do autor).
Já a segunda tendência, paralelamente a esta equalização, do nível diferencial
da taxa de exploração, surge de seu “necessário corolário político”, sob a forma de um
“crescente autoritarismo nos Estados ‘metropolitanos’” e mediante “um
desencantamento geral, perfeitamente compreensível, com a ‘política democrática’, que
está profundamente implicada na virada autoritária do controle político nos países
capitalistas avançados”. Nessa direção, a estrutura democrática do Estado está sendo
utilizada adequadamente para acelerar e aprofundar a taxa de exploração da classe
trabalhadora tanto nos países periféricos quanto nos centrais. Mészáros chama a atenção
para o fato de que o autoritarismo do Estado, em grande parte dos países, está sendo
feito sob a forma democrática, e não ditatorial. No cenário atual, com base nos
princípios neoliberais, isso significa que o Estado diminui os recursos para o
atendimento das demandas sociais para financiar o sistema do capital em sua fase de
crise estrutural (MÉSZÁROS, 2011, p. 112, grifo do autor).
O Estado, enquanto “agente totalizador da criação da circulação global”, tende
a se comportar de forma distinta da que utiliza no plano da política nacional. Ou seja, o
Estado ordena a sua política externa de acordo com os interesses da sua classe
capitalista. Porém, internamente, ele assume a função de introduzir medidas legais para
manter em paralelo as atividades dos pequenos e grandes proprietários. Diante disso,
“(...) é necessário o cuidado de evitar – até onde for compatível com a dinâmica variável
de acumulação do capital – que a inexorável tendência à concentração e à centralização
do capital leve à eliminação prematura de unidades de produção ainda variáveis (...)”.
Isso afetaria desfavoravelmente “a força combinada do capital nacional em tais
circunstâncias”. Seu papel é manter a totalidade do sistema do capital em
funcionamento, conforme o movimento da economia, se as condições internas exigirem
e as condições gerais permitirem (MÉSZÁROS, 2011, p. 112-113).
58
No plano de sua política internacional, o Estado não busca restringir a
expansão monopolista ilimitada nas suas unidades econômicas dominantes. É por isso
que “o relacionamento entre o Estado e as empresas economicamente relevantes neste
campo é basicamente caracterizado pelo fato de o Estado assumir descaradamente o
papel de facilitador da expansão mais monopolista possível do capital no exterior”. O
Estado tem uma ação de política interna diferenciada da externa. As formas e recursos
deste papel facilitador dos Estados nacionais se alteram conforme as relações de força
no país e no exterior, decorrentes das circunstâncias históricas. Assim, entende-se que o
Estado despende todos os seus recursos e a sua disposição em defesa dos interesses
monopolistas do seu capital nacional (MÉSZÁROS, 2011, p. 113).
Com relação aos três principais aspectos do defeito estrutural do capital
discutidos anteriormente, o Estado moderno, na condição de “única estrutura corretiva
de comando viável, não surge depois da articulação de formas socioeconômicas
fundamentais, nem como mais ou menos diretamente determinado por elas”. O Estado
como estrutura de dominação política com relação aos defeitos estruturais não se propõe
a resolvê-los inteiramente, pelo contrário, ele auxilia o capital na administração destes
defeitos através, por exemplo, da compra e auxílio no consumo da superprodução; no
controle exercido sobre a classe trabalhadora; na circulação; na defesa dos interesses do
seu capital monopólico no exterior etc. O efeito coesivo é realizado com a função de
manter em funcionamento o modo de produção capitalista, monitorando e intervindo
para que o sistema não escape ao controle do capital (MÉSZÁROS, 2011, p. 117, grifos
do autor).
Em linhas gerais, o Estado como comando político do capital próprio da
sociedade burguesa nasce para complementar a lógica reprodutiva desse sistema. Uma
forma de dominação política que se compromete a favorecer e facilitar a expansão e
acumulação do capital constantemente, e que atualmente, na fase de crise estrutural,
busca manter a lógica da reprodução material desse sistema, intervindo demasiadamente
em termos de interesses econômicos, na utilização da sua própria superestrutura
jurídico-legal, para complementar as necessidades do capital e também auxiliar na base
de reprodução material. Dessa forma, não há como separar este Estado da estrutura
sociometabólica que o consolidou historicamente, porque ele é o Estado do capital.
Com referência à consideração de Engels, o Estado moderno é o representante da classe
economicamente mais poderosa; ele pode realizar sua função das mais variadas e
59
paradoxais formas, sem abdicar jamais da sua essência. Parte-se agora para a análise da
correspondência entre política e economia.
Inicialmente, Mészáros trata da questão da determinação unidirecional do
Estado moderno por uma base material independente. Afirma que o comando político
do capital – o Estado moderno – e a base material da reprodução social – o capital –
atuam complementarmente, pois estão integrados. Não é uma questão de que um
determina o outro, “pois a base socioeconômica do capital é totalmente inconcebível
separada de suas formações de Estado”. É a partir desse pressuposto que o autor
contradiz a visão determinista do Estado de que é a economia que determina a política.
Nesse sentido, “é certo e apropriado falar de ‘correspondência’ e ‘homologia’ apenas
em relação às estruturas básicas do capital, historicamente construídas (...), mas não de
funções metabólicas particulares de uma estrutura que corresponda às determinações e
exigências estruturais diretas de outra”.
Dessa forma, entende-se que existe uma relação de correspondência entre a
esfera da economia e da política, porém elas têm particularidades distintas em seu
processo de desenvolvimento histórico. As contradições que podem surgir entre
economia e política não modificam em nada a natureza e a função social do Estado e,
geralmente, quando essas contradições permanecem por mais tempo que o necessário,
contrariando os interesses predominantes do capital, as ações do Estado são ajustadas e
readequadas para atender às demandas do sistema sociometabólico do capital
(MÉSZÁROS, 2011, p. 117).
Mészáros observa que, paradoxalmente, “a ‘homologia das estruturas’ surge
primeiro de uma diversidade estrutural de funções cumpridas pelos diferentes órgãos
metabólicos (inclusive o Estado) na forma absolutamente única da divisão social
hierárquica do trabalho desenvolvida ao longo da história”. Ou seja, o Estado e a
economia estão envolvidos numa diversidade estrutural de funções, e isso não quer
dizer de antagonismo. Pois o Estado se desenvolve para desempenhar suas funções
específicas, e jamais ocorre uma disjunção entre economia e política. Entretanto, “esta
diversidade de funções produz uma separação extremamente problemática entre
‘sociedade civil’ e o Estado político sobre a base comum do conjunto do sistema do
capital, de que são partes constitutivas as estruturas básicas (ou órgão metabólicos)”
(MÉSZÁROS, 2011, p. 117, grifos do autor).
Assim, compreende-se que por mais competência que o Estado tenha para
exercer a sua função em correspondência com as necessidades do sistema do capital, ele
60
jamais poderá eliminar as contradições imanentes do próprio sistema reprodutivo do
capital. Em alguns momentos conjunturais, o Estado terá problemas para exercer essa
função em defesa dos interesses particulares da classe dominante, porque na essência
deste sistema sempre existirão contradições fundamentais, sendo estes alvos constantes
de intervenção administrativa do poder político, que busca formas de atenuá-las.
O Estado e suas estruturas criam seus próprios meios de dominação para
atender às demandas do capital, como também o capital desenvolve os meios para
realizar sua função na esfera da produção – através do desenvolvimento tecnológico, da
gerência científica, da reestruturação produtiva etc. Essas diferentes funções do Estado
se desenvolvem e ao longo do tempo acabam provocando contradições, mas sempre em
correspondência com o capital, isto é, sempre prevalecem os imperativos do capital na
orientação das ações desenvolvidas pelo Estado.
Mészáros apresenta algumas observações “a respeito da base material e dos
limites gerais em que se devem desempenhar as funções corretivas essenciais da
formação do Estado historicamente desenvolvido sob o sistema do capital”. Conforme
mencionado anteriormente, para o autor, “o capital é um modo singular de controle
sociometabólico, e nessa qualidade – o que é muito compreensível –, é incapaz de
funcionar sem uma estrutura de comando adequada”. Consequentemente, o capital é
uma articulação social e um tipo histórico específico de estrutura de comando
sociometabólico. O relacionamento entre as diversas unidades produtivas do capital e o
comando político deste sistema não pode ser de dominação unilateral, como em outros
modos de produção, por exemplo, no feudalismo, em que o fator predominante nessa
sociedade era o relacionamento fundado na esfera de dominação política (MÉSZÁROS,
2011, p. 118).
Diferentemente dos anteriores modos de produção, de acordo com Mészáros,
(...) o sistema do capital evoluiu historicamente a partir de constituintes
irrefreáveis, mas longe de ser autossuficientes. As falhas estruturais de
controle exigiam o estabelecimento de estruturas específicas de controle
capazes de complementar – no nível apropriado de abrangência – os
constituintes reprodutivos materiais, de acordo com a necessidade
totalizadora e a cambiante dinâmica expansionista do sistema do capital.
(MÉSZÁROS, 2011, p. 118-119).
Foi assim que o Estado se desenvolveu enquanto estrutura de comando político
do capital, tornando-se parte da “base material” desse sistema. Isso significa que o
capital como sistema incontrolável não consegue sobreviver sozinho em seu domínio
econômico sem uma estrutura de comando político; ele precisa de um complemento que
61
o auxilie em seu processo de autorreprodução do valor. O capital não existe sem o
Estado, como um aparato de comando político inseparável. O capitalista gerencia o
processo da exploração e da produção da riqueza na esfera da reprodução material, nas
suas unidades econômicas, também chamadas por Mészáros de microcosmos. Por sua
vez, o Estado proporciona o ordenamento político abrangente necessário à reprodução
do sistema, administrando os conflitos das forças centrífugas e exercendo o poder
coercitivo de comando político dessa ordem.
Como visto no capítulo anterior, foi com o liberalismo que esta cisão entre a
esfera econômica e política se consolidou; ela se apresenta na questão da autonomia de
suas ações, mas que se correspondem. Trata-se de uma divisão estrutural de função
entre ambos, pois o capital sozinho não poderia ordenar toda a massa de concorrentes e
manter sob controle a força de trabalho, de forma que se encontrassem “livres” no
mercado de trabalho para serem cooptados no processo produtivo. Portanto, para o
sistema capitalista se fez necessário o desenvolvimento de uma estrutura de dominação
política que assumisse estas funções e proporcionasse um ordenamento em ampla escala
desta forma de controle sociometabólico. Assim, a libertação das amarras do sistema
político do feudalismo projetou o grande desenvolvimento da acumulação do capital.
Essa liberdade gerou necessidades específicas, a saber, a administração do Estado, e as
contradições do próprio sistema e seus defeitos estruturais.
Mészáros destaca o caráter irrefreável do sistema do capital, que longe de ser
autossuficiente, estabeleceu-se na sociedade. Somente no controle de cada unidade
produtiva o capital não conseguiria manter este sistema em funcionamento global –
enquanto totalidade. Para tanto o capital, de acordo com suas necessidades, deu forma à
estrutura de comando político do Estado moderno, para atender, além dos interesses
particulares de cada capitalista, à defesa dos interesses do capital global, ou seja, do
desenvolvimento do capitalismo na sua totalidade.
Mészáros também cita a questão da temporalidade e do inter-relacionamento
desenvolvido entre as estruturas reprodutivas materiais diretas e o Estado moderno, que
se caracteriza pela categoria da simultaneidade e não pela determinação do “antes” e do
“depois” (MÉSZÁROS, 2011).
Assim, para o autor,
estas só podem se tornar momentos subordinados da dialética da
simultaneidade quando as partes constituintes do modo de controle
sociometabólico do capital surgem durante o desenvolvimento do capital
global, seguindo sua lógica interna de expansão e acumulação. Da mesma
forma, em relação à questão das “determinações”, só se pode falar
62
adequadamente de codeterminações. Em outras palavras, a dinâmica do
desenvolvimento não deve ser caracterizada sob a categoria do “em
consequência de”, mas em termos do “em conjunção a” sempre que se deseja
tornar inteligíveis as mudanças no controle sociometabólico do capital que
emergem da reciprocidade dialética entre sua estrutura de comando política e
a socioeconômica. (MÉSZÁROS, 2011, p. 119).
Assim, com relação à questão da temporalidade, de quando surge um ou
quando surge o outro, esse relacionamento integrado entre economia e política, ou entre
Estado e capital, se caracteriza pela simultaneidade: desenvolveram-se de forma
simultânea. É um desenvolvimento codeterminado, não unidirecional. Portanto, foi em
termos do “em conjunção a” que ambos influíram para o desenvolvimento da
estruturação de Estado moderno e do modo de reprodução do sistema do capital. Por
isso, existe uma reciprocidade dialética entre a estrutura de dominação política e a
estrutura socioeconômica do capital. Trata-se de um desenvolvimento dialético, porque
ambas as esferas interagem no processo reprodutivo, de forma que uma depende da
existência da outra para sobreviver em sociedade.
Nessa direção, seria completamente equivocado descrever o Estado como uma
superestrutura. Numa análise marxiana, Mészáros afirma que, “na qualidade de
estrutura totalizadora de comando político do capital (o que é absolutamente
indispensável para a sustentabilidade material de todo o sistema)”, o próprio poder
político não pode ser reduzido ao status de superestrutura. Isto porque o Estado em si,
como estrutura de comando abrangente do capital, tem suas próprias superestruturas, a
que Marx se refere como sendo uma “‘superestrutura legal e política’ – exatamente
como as estruturas reprodutivas materiais diretas têm suas próprias dimensões
superestruturais” (MÉSZÁROS, 2011, p. 119).
Sobre a afirmação da autonomia do Estado, Mészáros assevera que “como
estrutura de comando político abrangente do sistema do capital, o Estado não pode ser
autônomo, em nenhum sentido, em relação ao sistema do capital, pois ambos são um só
e inseparáveis”, pois sua natureza está diretamente associada à estrutura antagônica da
sociedade capitalista, uma vez que é o interesse do capital que orienta a sua ação. A
esfera econômica e política tem uma função estrutural específica, no entanto, “um
Estado historicamente dado contribui de maneira decisiva para a determinação – no
sentido já mencionado de codeterminação – das funções econômicas diretas, limitando
ou ampliando a viabilidade de algumas contra as outras”.
O Estado passa a intervir de forma a manter a totalidade em funcionamento.
Trata-se de uma função inseparável do capital; ele exerce essa função e pode até mesmo
63
gerar contradições no curso do seu exercício. Cabe lembrar que a forma de intervenção
não muda a natureza do Estado; ela corresponde a um ajuste necessário de adequação ao
melhor uso do seu aparato estatal para o desenvolvimento dos interesses do capital em
cada momento histórico (MÉSZÁROS, 2011, p. 119).
Para Mészáros, a explicação reside na relação ontológica entre capital e Estado,
em que “(...) o Estado moderno pertence à materialidade do sistema do capital e
corporifica a necessária dimensão coesiva de seu imperativo estrutural orientado para a
expansão e para a extração do trabalho excedente”. O Estado se compromete com a base
material na manutenção das garantias necessárias para a extração do trabalho excedente
(MÉSZÁROS, 2011, p. 121).
É isso que caracteriza
(...) todas as formas conhecidas do Estado que se articulam na estrutura da
ordem sociometabólica do capital. Precisamente porque as unidades
econômicas reprodutivas do sistema têm um caráter incorrigivelmente
centrífugo – caráter que, há longo tempo na historia, tem sido parte integrante
do incomparável dinamismo do capital, ainda que em certo estágio de
desenvolvimento ele se torne extremamente problemático e potencialmente
destrutivo –, a dimensão coesiva de todo o sociometabolismo deve ser
constituída como uma estrutura separada do comando político totalizador.
(MÉSZÁROS, 2011, p. 121).
Precisamente por serem unidades econômicas de caráter centrifuga, não podem
entrar em acordo para exercer a função de abrangência política do sistema do capital.
Por isso, elas encontram na estrutura do Estado um aparato aparentemente independente
da base econômica que administra a concorrência dessas unidades incorrigivelmente
centrífugas. A própria relação de concorrência impede que os capitalistas
desempenhem, no âmbito da produção, a dominação necessária para o estabelecimento
da ordem. O destaque de uma esfera em particular foi necessário para conter os
conflitos, mantendo em certa ordem os interesses do sistema do capital.
Diante das questões apresentadas por Mészáros no debate sobre o papel do
Estado moderno na base material do sistema do capital, percebe-se que, no capitalismo,
ele se faz necessário para administrar e conter a concorrência entre os diversos
capitalistas e manter em ordem os trabalhadores, os não proprietários dos meios de
produção, como também para assegurar o funcionamento da totalidade social, na defesa
dos interesses do capital.
Desse modo,
Como prova da substantiva materialidade do Estado moderno, realmente
descobrimos que, em sua condição de estrutura de comando político
totalizador do capital, ele não está menos preocupado em assegurar as
condições de extração do trabalho excedente do que com as próprias
64
unidades reprodutivas econômicas diretas, embora, naturalmente, ofereça à
sua própria maneira sua contribuição para um bom resultado. Entretanto, o
princípio estruturador do Estado moderno, em todas as suas formas –
inclusive as variedades pós-capitalistas –, é o seu papel vital de garantir e
proteger as condições gerais da extração da mais-valia do trabalho excedente.
(MÉSZÁROS, 2011, p. 121).
O Estado moderno como parte complementar da base material do sistema
global do capital deve articular sua superestrutura legal e política segundo suas
determinações estruturais inerentes e funções necessárias, criando as mais variadas
estratégias para cumprir a mesma função da forma mais eficiente possível. Deve
assumir, com superestrutura legal e política, “as formas parlamentaristas, bonapartistas
ou até de tipo soviético pós-capitalista, além de muitas outras, conforme exijam as
circunstâncias históricas específicas” (MÉSZÁROS, 2011, p. 121).
Acrescenta Mészáros:
mesmo dentro da estrutura da mesma formação socioeconômica (por
exemplo, capitalista), pode deixar de cumprir suas funções, digamos, em uma
rede legal e política liberal-democrática e passar a adotar uma forma
abertamente ditatorial de legislação e dominação política; e também neste
aspecto pode avançar e recuar. (MÉSZÁROS, 2011, p. 121).
Portanto, o movimento do capital é que determina as mudanças na forma da
superestrutural legal e política do Estado, porém as contradições permanecem as
mesmas, porque não podem ser resolvidas mantendo-se esse sistema sociometabólico.
Já a base material capitalista permaneceu estruturalmente a mesma durante todas as
transformações conjunturais, de avanço ou retrocesso, pelas quais passaram as
respectivas superestruturas legais e políticas do Estado moderno.
Diante das análises apresentadas por Mészáros, constata-se que a articulação da
estrutura abrangente de comando político na forma do Estado moderno representa
simultaneamente um ajuste necessário e um absoluto desajuste em relação às estruturas
sociometabólicas básicas do sistema do capital. A sua existência está diretamente
relacionada com o surgimento da propriedade privada e com o desenvolvimento das
sociedades de classes. É o caráter inconciliável da relação entre as classes fundamentais
que faz surgir o Estado como seu produto histórico.
Conforme afirmado por Marx e Engels, o Estado continua sendo o “comitê
executivo da burguesia”, e na forma de sociabilidade capitalista, ele se desenvolve como
estrutura de dominação legal e política, para auxiliar e manter em ordem as estruturas
das unidades reprodutivas socioeconômicas. Nessa direção, o Estado é essencialmente
vital para manter sob controle (ainda que seja incapaz de eliminar completamente) os
65
antagonismos inconciliáveis que surgem da dualidade disruptiva dos processos
socioeconômicos e políticos de tomada de decisão, sem os quais o sistema do capital
não poderia funcionar adequadamente (MARX; ENGELS, 2010).
3. O DESENVOLVIMENTO DO ESTADO NO CAPITALISMO DOS
MONOPÓLIOS: O Estado de Bem-Estar Social
Anteriormente, foi visto que na transição de um modo de produção para outro,
o Estado apenas adequou sua forma de atuação, mantendo sua essência, ou seja, sua
função social permaneceu a mesma: a garantia da manutenção da ordem social
constituída. E no período do desenvolvimento do capitalismo não foi diferente, com a
formação do Estado moderno. Portanto, é possível afirmar que o Estado moderno, como
estrutura de comando político do capital, é mais uma das formas de assegurar o controle
sociometabólico do sistema capitalista. Esse pressuposto orientará a construção deste
segundo capítulo.
Para tanto, buscar-se-á compreender de que forma se desenvolveu o Estado de
Bem-Estar Social durante a constituição da sociedade moderna, através de um resgate
histórico desse conceito, articulado ao contexto no qual ocorreu a sua consolidação e
desenvolvimento – o período monopolista do capitalismo. Observar-se-á que não houve
uma ruptura na essência do Estado burguês, senão um processo de continuidade das
relações entre o Estado e a base de reprodução material do sistema do capital, ao longo
do século XX, com base no estudo de Lessa (2013), em seu livro Capital e Estado de
Bem-Estar Social: o caráter de classe das políticas públicas22, e nas contribuições de
autores como: Netto (1992), Lênin (1987), Gounet (2002), Netto & Braz (2010),
Braverman (2012), Baran & Sweezy (1978), Behring & Boschetti (2011), entre outros23
que analisaram esse período do desenvolvimento capitalista.
22 Dando continuidade à análise do Estado em Marx, Engels e Mészáros, traz-se Lessa, em suas reflexões acerca do
denominado Estado de Bem-Estar Social. Uma discussão pautada pelas relações fundamentais que se estabelecem
entre o Estado moderno e a reprodução econômica do sistema do capital, no curso do desenvolvimento do
capitalismo monopolista. 23 São dignas de nota, entre outras, as contribuições de Rosa Luxemburgo, A Acumulação de capital. Contribuição ao
estudo econômico do imperialismo (São Paulo: Abril, 1985), e de V. I. Lênin, Imperialismo, fase superior do
capitalismo (São Paulo: Global, 1987).
66
3.1 Capitalismo dos monopólios: base material do Estado de Bem-Estar Social
Ao se estudar a história do capitalismo nos últimos quarenta anos do século
XIX, evidencia-se que este passou por uma série de substantivas transformações que
alteraram significativamente o seu ordenamento e a sua dinâmica econômica. Segundo
Netto & Braz (2010), nenhuma delas lhe retira a sua estrutura essencial, mas todas
apontam para a mesma direção: um novo estágio no desenvolvimento do capitalismo, o
imperialismo24. Trata-se do período em que ocorre a transição do capitalismo da sua
fase concorrencial para a fase monopólica. As mudanças apresentadas nesse curso pelo
capitalismo demonstraram a veracidade das análises de Marx sobre o seu caráter
essencial e o da ordem social burguesa, abordadas no capítulo anterior.
Fundamentado na crítica marxiana, Netto afirma que “o capitalismo
monopolista recoloca, em patamar mais alto, o sistema totalizante de contradições que
confere à ordem burguesa os seus traços basilares de exploração, alienações e
transitoriedade histórica (...)”. Nas dimensões econômico-social e histórico-política, a
ordem monopólica modificou completamente a dinâmica da sociedade burguesa; ela
intensificou as contradições fundamentais do capitalismo, que já estavam presentes no
estágio concorrencial, e as articulou com novas contradições e antagonismos.
A entrada do capitalismo no período imperialista consiste numa mudança no
seu estágio evolutivo, quando a sociedade burguesa ascendeu à sua maturidade
histórica, realizando assim “as possibilidades de desenvolvimento que, objetivadas,
tornam mais amplos e complicados os sistemas de mediação que garantem a sua
dinâmica” na ordem social burguesa (NETTO, 1992, p. 15-16).
Por sua vez, Lênin, ao analisar o estágio monopolista do capitalismo, constata
que o imperialismo25 é o capitalismo num dado momento do seu desenvolvimento,
quando se afirma a dominação dos monopólios e do capital financeiro. Segundo o autor,
o que existe de essencial nesse processo é a substituição da livre concorrência capitalista
pelos grandes monopólios. Sua gênese deriva dos primeiros cartéis, trustes, sindicatos
patronais e outras formas de combinação de capitais bancários. Contudo, os monopólios
não eliminam a livre concorrência de que nasceram; “eles existem acima e ao lado dela,
24 Assim denominado como estágio imperialista do capitalismo, a partir dos estudos de Lênin, de 1916 e publicado
em meados de 1917, no livro O Imperialismo, fase superior do capitalismo. 25 No curso da sua trajetória de pouco mais de um século, o imperialismo sofreu importantes transformações. Na
história desse modo de produção capitalista, Netto & Braz (2010) distinguem pelo menos três fases: a fase “clássica”,
que vai de 1890 a 1940; os “30 anos dourados” do capital, que vão do final da Segunda Guerra Mundial até a entrada
dos anos 70; e o capitalismo contemporâneo, de meados dos anos 60 aos dias atuais.
67
implicando assim contradições, fricções, conflitos particularmente agudos e violentos”.
Lênin afirma que o imperialismo constitui a passagem do capitalismo a um regime
econômico e social superior, que se desenvolve sob a égide dos monopólios (LÊNIN,
1987, p. 87).
Para Braverman, foi a partir dessas primeiras iniciativas assumidas pelos
monopólios que a estrutura da grande indústria moderna e das finanças capitalistas
começou a tomar forma. Ao mesmo tempo, “a rápida consumação da colonização do
mundo, as rivalidades internacionais e os conflitos armados pela divisão do globo em
esfera de influência econômica ou hegemonia inauguram a moderna era imperialista”.
Desse modo, o capitalismo em sua fase monopolista abrange “o aumento das
organizações monopolistas no seio de cada país capitalista, a internacionalização do
capital, a divisão internacional do trabalho, o imperialismo, o mercado mundial, o
movimento mundial do capital e mudanças na estrutura do poder estatal”
(BRAVERMAN, 2012, p. 215-216).
Netto destaca que a urgência da constituição da organização monopólica
obedece a um objetivo primário, qual seja: “o crescimento dos lucros capitalistas
através do controle dos mercados”. As tendências do capital à concentração e à
centralização, após a crise de 1873, confluíram na criação dos modernos monopólios.
Nesse momento, o que se observa é o redimensionamento do papel dos bancos (produto
da evolução das “casas bancárias”), ao tempo que se processa uma maior concentração
dos ramos industriais no setor bancário. Essa fusão entre o capital bancário e o capital
industrial deu origem ao capital financeiro (NETTO, 1992, p. 16, grifos do autor).
Netto ressalta alguns fenômenos introduzidos na dinâmica econômica burguesa
com a organização monopólica, tais como:
a) os preços das mercadorias (e serviços) produzidas pelos monopólios
tendem a crescer progressivamente; b) as taxas de lucro tendem a ser mais
altas nos setores monopolizados; c) a taxa de acumulação se eleva,
acentuando a tendência descendente da taxa média de lucro e a tendência ao
subconsumo; d) o investimento se concentra nos setores de maior
concorrência, uma vez que a inversão nos monopolizados torna-se
progressivamente mais difícil (logo, a taxa de lucro que determina a opção de
investimento se reduz); e) cresce a tendência a economizar trabalho “vivo”,
com a introdução de novas tecnologias; f) os custos de venda sobem, com um
sistema de distribuição e apoio hipertrofiado – o que, por outra parte, diminui
os lucros adicionais dos monopólios e aumenta o contingente de
consumidores improdutivos (contra-arrestando, pois, a tendência ao
subconsumo). (1992, p. 16-17).
Os efeitos na dinâmica econômica, provocados por esses fatores, causam
implicações muito profundas. De um lado, a tendência à equalização das taxas de lucro,
68
que já estava objetivada no estágio concorrencial do capitalismo, foi revertida em
benefício dos grandes grupos monopolistas; de outro, o processo de acumulação do
capital foi alterado, elevando-se em virtude da centralização que o monopólio opera. Os
grupos monopolistas, ao investirem além das suas próprias fronteiras, na periferia do
capital, tendem a economizar trabalho “vivo”, em razão do estimulo à inovação
tecnológica, aumentando, dessa forma, o número de trabalhadores desempregados.
Netto (1992) chama atenção ao fato de ser essa uma característica específica
dos monopólios, de fundamental importância para a compreensão do capitalismo
monopolista. A estrutura do monopólio produz um aumento na taxa de trabalhadores
desempregados, lançados ao que Marx denominou de “exército industrial de reserva”26.
Daí a necessidade de uma intervenção externa para administrar os antagonismos sociais
advindos das mudanças operadas na economia, provocadas por esse novo fenômeno.
Dois outros elementos, segundo Netto, típicos do processo de monopolização
surgem no cenário social, durante o período “clássico” do capitalismo monopolista. O
primeiro deles corresponde ao fenômeno da supercapitalização: o capital acumulado
encontra dificuldades para se valorizar; pois “é próprio do capitalismo monopolista o
crescimento exponencial desses capitais excedentes, que se tornam mais extraordinários
quanto mais se afirma a tendência descendente da taxa média de lucro”. O escoamento
desses capitais é contornado por inúmeros mecanismos, tais como: a emergência da
indústria bélica; a migração dos capitais excedentes por cima dos marcos estatais e
nacionais; a destruição do excedente em atividades que não geram valor, mas nenhum
deles encontra-se apto para dar solução à supercapitalização. Assim, “todos estes
mecanismos renovam a relação entre a dinâmica da economia e o Estado burguês”
(NETTO, 1992, p. 18).
O segundo elemento citado por Netto (1992) é o parasitismo que se instaura na
sociedade em razão do desenvolvimento do monopólio. Por um lado, o capitalismo
monopolista traz à tona a natureza parasitária da burguesia com a oligarquia
financeira27; por outro, com a “queima” do excedente em atividades que não criam
26 A respeito desse fenômeno, Marx afirma que “o exército industrial de reserva funciona como regulador do nível
geral de salários, impedindo que se eleve acima do valor da força de trabalho ou, se possível e de preferência,
situando-o abaixo desse valor. Outra função do exército industrial de reserva consiste em colocar à disposição do
capital a mão-de-obra suplementar de que carece nos momentos de brusca expansão produtiva, por motivo de
abertura de novos mercados, de ingresso na fase de auge do ciclo econômico etc.” (1996, p. 42). 27 Segundo Netto & Braz (2010), uma vez instaurado o imperialismo, a noção de oligarquia financeira corresponde a
um número reduzido de grandes capitalistas (industriais e banqueiros) que concentram em suas mãos a vida
econômica do seu país, e também daqueles em que seus grupos econômicos operam. Como detêm o poder
econômico, esses poucos monopolistas dispõem de uma forte influência política, em escala nacional e internacional.
69
valor, a monopolização dá lugar a uma generalizada burocratização da vida social, com
o repasse de várias de suas operações para o “setor terciário”, buscando formas de
conservação e/ou legitimação da própria ordem monopólica do capital.
A evolução do processo de produção data do mesmo período do capitalismo
monopolista. Sobre esse movimento econômico, Braverman chega à seguinte
conclusão: a gerência científica e a revolução técnico-científica são os dois principais
aspectos do capital monopolista. Neste caso, “tanto cronológica como funcionalmente,
elas são parte do novo estágio do desenvolvimento capitalista, decorrem do capitalismo
monopolista e o tornam possível”. As mudanças tecnológicas e gerenciais ensejam
novos e diferentes processos de trabalho, proporcionando uma nova distribuição
ocupacional dos trabalhadores empregados (BRAVERMAN, 2012, p. 216).
Nesse processo, o capital obtido em um ritmo frenético se lança a todas as
áreas de investimento das empresas capitalistas, reorganizando a sociedade burguesa.
Conforme Braverman, o capitalismo em seu estágio monopolista proporciona uma vida
social amplamente diferenciada daquela do período anterior. Esse autor ressalta que
uma das peculiaridades do capitalismo monopolista consiste em transformar toda e
qualquer atividade humana em mercadoria, com o objetivo de acumular mais capital.
Portanto, “é somente na era do monopólio que o modo capitalista de produção recebe a
totalidade do indivíduo, da família e das necessidades sociais e, ao subordiná-la ao
mercado, também os remodela para servirem às necessidades do capital”
(BRAVERMAN, 2012, p. 231).
De acordo com Braverman, até o período anterior ao capitalismo monopolista,
a produção dos bens de primeira necessidade (os alimentos, os vestuários e os utensílios
domésticos) ainda se dava no ambiente familiar. No entanto, com o desenvolvimento da
grande indústria capitalista, no curso do século XIX, tal produção passou a ter outra
configuração, o que de fato leva à dependência de toda a vida social. Com a inserção
maciça da força de trabalho na indústria, as mercadorias antes produzidas nas pequenas
fazendas, por todos os membros da família, passam agora a compor as inter-relações da
humanidade para com o mercado.
O autor chama atenção para o fato de que, com o passar do tempo, não só “as
necessidades materiais e de serviços, mas também os padrões emocionais de vida são
canalizados através do mercado”. Agora, a estrutura social, erguida sobre o mercado, é
No curso de todo o século XX, muitos são os exemplos da ação concentradora (na área econômica) e antidemocrática
(na área política) conduzida pela oligarquia financeira.
70
de tal forma que a relação entre indivíduos e grupos sociais não se desenvolve
diretamente, na forma cooperativa, mas através do mercado, na relação de compra e
venda de mercadorias (BRAVERMAN, 2012, p. 235).
Em resumo, Braverman menciona três passos para a criação do mercado
universal, no curso do capitalismo monopolista. O primeiro deles foi a conquista de toda
a produção de bens e serviços sob a forma de mercadoria; o segundo corresponde a uma
gama crescente de serviços e sua conversão em mercadorias; o terceiro marca um novo
“ciclo de produtos”, em que “os novos produtos e serviços se tornam indispensáveis, à
medida que as condições da vida moderna mudam para destruir alternativas”. Nessa
direção, o autor caracteriza as novas relações sociais fundadas pelo capitalismo
monopolista mediante a relação de compra e venda da força de trabalho, como relações
desumanizadoras, porquanto confinam um amplo segmento da população ao trabalho
desumano e degradante (BRAVERMAN, 2012, p. 239).
No livro Capital Monopolista, Baran & Sweezy destacam outro elemento
essencial do estágio monopolista do capital: “o crescimento do monopólio gera forte
tendência ao crescimento do excedente (...)”. Contudo, esse elemento surge sem
nenhum mecanismo adequado que proporcione sua absorção na sociedade, produzindo
assim as crises econômicas. Esses autores buscam, através de uma análise histórica da
economia do século XIX, compreender o processo de constituição do capitalismo dos
monopólios. Afirmam que se os efeitos depressivos do crescimento dos monopólios
tivessem funcionado sem controle, a economia mundial teria entrado em um período de
grande estagnação muito antes do final do século XIX. Com isso, buscam demonstrar
que a economia capitalista desse final de século contou com estímulos externos que
impediram os efeitos depressivos e possibilitaram o rápido crescimento econômico.
Para Baran & Sweezy, esses estímulos se processaram sob duas formas particulares: as
inovações tecnológicas e as guerras (BARAN; SWEEZY, 1978, p. 218).
As “invenções que marcaram época” são aqueles inventos que revolucionaram
toda a estrutura econômica, criando, além do capital que absorvem de forma direta,
outros mercados para investimento. No que se refere a estas invenções, três se
destacaram por afetarem significativamente tanto a localização da atividade econômica
quanto a composição do produto: a máquina a vapor, a estrada de ferro e o automóvel.
Cada um produziu alteração radical na geografia econômica com consequente
repercussão nas migrações internas e na formação de comunidades
inteiramente novas; cada um deles exigiu ou, pelo menos, tornou possível, a
produção de muitos bens a serviços novos; cada um deles, direta ou
71
indiretamente, ampliou o mercado para uma série de produtos industriais.
(BARAN; SWEEZY, 1978, p. 219).
Outras invenções tiveram grandes efeitos sobre a economia capitalista, no
entanto, com relação ao problema considerado – a adequação na absorção do excedente
–, nenhuma delas obteve as mesmas proporções que as três invenções acima citadas.
Para Baran & Sweezy, com relação ao processo de absorção do excedente, “(...) o que
dá propriamente significação a um invento é a amplitude com que [ele] abala toda a
estrutura da vida econômica” (BARAN; SWEEZY, 1978, p. 222).
Quanto ao segundo estímulo citado por Baran & Sweezy, o outro elemento
inibidor de estagnações no ciclo econômico é a guerra. Sabe-se que as guerras fazem
parte da história do capitalismo desde os seus primórdios. No entanto, no século XX,
sob a égide do imperialismo, as atividades a ela relacionadas ganham um novo
significado e se tornam um componente a mais para a economia monopolista. Com
relação às suas implicações na dinâmica econômica, os autores as dividem em duas
fases: a fase de combate e a fase do pós-guerra. Em ambas as fases, tal fenômeno
acarreta um abalo na estrutura econômica, pois “quanto mais radical e total for a guerra,
tanto maior será a duração de seus efeitos” na sociedade. Foi por esta razão que grandes
guerras como a de 1914-1918 e 1939-1945 igualaram-se, economicamente, aos inventos
que marcaram época (BARAN; SWEEZY, 1978, p. 223).
No curso da primeira fase, a de combate, observa-se que “a procura militar
naturalmente cresce muito; os recursos são transferidos para os setores da economia a
ela ligados, e a procura civil é reduzida através de uma forma combinada de aumentos
de preços e racionamento”. Com isso, a produção voltada ao mercado de bens duráveis
pode ser paralisada completamente, enquanto as fábricas existentes modificam-se para
atender à demanda da produção de guerra, canalizando para elas a maior parte dos
novos investimentos do fundo público. Desse modo, além de a produção total crescer
nos limites estabelecidos pelos recursos disponíveis, toda a estrutura da vida econômica
é drasticamente modificada. (BARAN; SWEEZY, 1978, p. 223).
Já na segunda fase, após o término das hostilidades do tempo de guerra, ocorre
um retorno ao estado de coisas antes existente. No período de combate, “os estoques
existentes de capitais particulares e de bens de consumo duráveis vinham sendo usados
com intensidade maior que a normal (...)”, ao tempo que a riqueza reprodutível da
sociedade retraía-se e o crescimento populacional acentuava as deficiências e a
72
escassez; enquanto isso, aumentava o fornecimento militar e a capacidade de supri-lo
(BARAN; SWEEZY, 1978, p. 223-224).
Foram esses eventos que deram origem ao acúmulo generalizado da procura na
área civil, que passou a existir após o fim das duas grandes guerras. Este acúmulo foi
suprido pela transformação da utilização militar das fábricas em utilização civil. Desse
modo, surgiam os mercados para investimentos que podem absorver, por vários anos,
grandes quantidades de excedentes. Essas duas fases desempenharam forte influência na
absorção do excedente econômico produzido no curso do capitalismo monopolista, a
primeira delas, através da enorme procura da máquina militar, e a segunda, através do
acúmulo da procura civil criada durante a fase de combate (BARAN; SWEEZY, 1978).
Netto & Braz (2010) concluem que o investimento na indústria bélica e sua
consequência, a guerra, correspondem a um excelente negócio para os capitais
monopolistas nela envolvidos, pois a enorme destruição de forças produtivas que a
guerra realiza abre um imenso campo para a retomada de ciclos econômicos antes
ameaçados pela crise. Portanto, não por acaso o século XX, na fase imperialista do
capital, é definido como o século das guerras. Cabe ressaltar que essas duas variáveis
não resolvem os problemas das crises, que se processam ao longo de todo o século; elas
integram a estrutura sociometabólica do sistema do capital e atuam como um redutor de
curto prazo da sua incidência.
Outro elemento que se faz necessário analisar sobre o período do capitalismo
monopolista são as crises econômicas. Segundo Netto & Braz, o desenvolvimento
capitalista, a partir da consolidação da produção pelo capital, é marcado por uma
sucessão de crises. Desde “(...) 1825 até às vésperas da Segunda Guerra Mundial, as
fases de prosperidade econômica foram catorze vezes acompanhadas por crises; a última
explodiu em 1937/1938, mas foi interrompida pela guerra” (2010, p. 156).
A principal crise econômica desse período foi a de 1929-1932, com
repercussões em todo o mundo capitalista. Trata-se de uma crise que se iniciou no
sistema financeiro americano e ganhou o mundo; provocou a quebra da Bolsa de
Valores de Nova Iorque; a falência de diversas empresas e indústrias; o desemprego em
massa e, principalmente instaurou a desconfiança sobre os pressupostos do liberalismo
econômico de que o mercado seria autorregulável (BEHRING; BOSCHETTI, 2011).
De acordo com Netto & Braz, “a crise de 1929 obrigou os dirigentes
capitalistas a ensaiar alternativas político-econômicas que, na fase seguinte, a dos ‘anos
dourados’ (1945-finais dos anos sessenta/inícios dos anos setenta), seriam
73
implementadas pelas principais potências imperialistas”, com o objetivo de minimizar
os efeitos da crise e recuperar o crescimento econômico. A principal mudança operada
em decorrência da Grande Depressão de 29 foi uma maior intervenção do Estado na
economia capitalista. Nesse contexto, cabe ressaltar mais uma vez que “(...) o Estado
burguês sempre interveio na dinâmica econômica, garantindo as condições externas
para a produção e acumulação capitalistas (...)”; no entanto, a crise de 1929, ao
evidenciar o equívoco liberal, revelou que novas modalidades interventivas por parte do
Estado tornavam-se necessárias, a saber, uma intervenção que envolvesse as condições
gerais (internas e externas) da produção e da acumulação capitalista (NETTO; BRAZ,
2010, p. 192).
Nessa época, de um ponto de vista global (ou seja, econômico, político e
ideológico), de acordo com Behring & Boschetti (2011), estavam em disputa três
projetos. Cada um poderia ser visto como uma possível solução para a grande crise do
capital, sendo duas propostas no campo burguês (o fascismo e o projeto liberal-
reformista), e outra no campo social, o projeto socialista, então sob a influência de
Stálin. Com o término da Segunda Guerra Mundial (1940-1945), a humanidade passa a
um período de Guerra Fria, com o contraponto entre o socialismo real e a democracia
liberal-burguesa nos seus diversos formatos.
Observa-se que no pós-1945 tais alternativas seriam implementadas, agora
apoiadas em novas perspectivas teóricas e com a função de regular os ciclos
econômicos. Foi nesse sentido que a derrota do fascismo28 no pós-Segunda Guerra
viabilizou o projeto social-democrata, que teve como protagonista o economista John
Maynard Keynes (1883-1946). Em sua obra Teoria geral do emprego, do juro e da
moeda, publicada em 1936, Keynes defendeu a intervenção do Estado com vistas a
reativar o processo produtivo, buscando uma maior intervenção estatal na economia, em
comum acordo com os fundamentos econômicos do New Deal29 e do nazifascismo.
No curso dos anos 30 ocorreram mudanças significativas no mundo capitalista;
tais encaminhamentos foram decisivos para o desenvolvimento econômico a partir de
1945. Desses processos complexos decorre “(...) uma espécie de ‘contestação burguesa’
do liberalismo ortodoxo, expressa principalmente na chamada ‘revolução keynesiana’”.
28 Conforme Netto & Braz, o fascismo “é um regime político ideal para os monopólios ou para o estabelecimento da
dominação dos monopólios” (2010, p. 194). 29 O New Deal corresponde a um conjunto de medidas econômicas e sociais tomadas no governo de Roosevelt, entre
os anos de 1933 e 1937, com o objetivo de recuperar a economia norte-americana da crise de 1929. Teve como
princípio básico a forte intervenção do Estado no setor econômico.
74
As proposições de Keynes encontraram sustentação na experiência do New Deal norte-
americano e inspiraram a superação da crise por parte dos países europeus.
Tais experiências tinham um ponto em comum: “a sustentação pública de um
conjunto de medidas anticrise ou anticíclicas, tendo em vista amortecer as crises cíclicas
de superprodução, superacumulação e subconsumo, ensejadas a partir da lógica do
capital”. Desse modo, segundo a análise keynesiana, cabia ao Estado a função de
restabelecer o equilíbrio no setor econômico, por meio de uma política fiscal, creditícia
e de gastos, na realização de investimentos que operassem nos períodos de depressão
como um estímulo à economia burguesa (BEHRING; BOSCHETTI, 2011, p. 71).
Assim, a política keynesiana, como ficou amplamente conhecida, a partir da
ação direta do Estado, de elevar a demanda global do mercado, antes mesmo de evitar a
crise, buscava amortecê-la através de alguns mecanismos que do ponto de vista da
burguesia liberal seriam impensáveis, tais como:
A planificação indicativa da economia, na perspectiva de evitar os riscos das
amplas flutuações periódicas; a intervenção na relação capital/trabalho
através da política salarial e do “controle de preços”; a distribuição de
subsídios; a política fiscal; a oferta de créditos combinada a uma política de
juros; e as políticas sociais. (BEHRING; BOSCHETTI, 2011, p. 86).
Esse conjunto de estratégias e técnicas anticrise realizadas pelo poder público
tinha por objetivo conter a tendência à queda da taxa de lucros e, consequentemente,
obter algum controle sobre o ciclo econômico do capital. Todas as soluções
apresentadas para a Grande Depressão de 1929 se deram no sentido de reativar o
emprego e o consumo de mercadorias. É nessa direção que se processou o investimento
do fundo público e da guerra para a manutenção da economia capitalista (NETTO;
BRAZ, 2010).
Entre as medidas tomadas na esfera da produção após a crise de 1929, em
especial uma merece atenção: diz respeito à organização do trabalho na indústria
capitalista. As formas modernas de controle do capital sobre o trabalho desenvolvidas
no final do século XIX, quando o capitalismo passou por profundas transformações que
modificaram parte do processo de produção e da organização do trabalho, na
consolidação do seu período monopolista, marcaram os anos de 1940 a 1970 – com uma
longa onda expansiva do crescimento econômico; estes foram designados como os “30
anos dourados” do capital ou, ainda, como as “três décadas gloriosas” do capitalismo.
Antes de adentrar nessa análise, cabe ressaltar que as primeiras formas de
controle do capital sobre o trabalho datam do início do desenvolvimento capitalista. O
75
sistema no curso da sua história procurou sempre aprimorar as formas de controle sobre
o trabalho na produção, buscando a melhor maneira possível para extrair a mais-valia.
Em sua obra O Capital30, Marx (1996) desvenda claramente as formas elementares de
controle do trabalho pelo capital, desenvolvidas nas antigas formas de cooperação31,
sendo esta a forma básica do modo de organização da produção capitalista na
manufatura32, que corresponde à primeira forma característica do processo de produção
capitalista de base cooperada, seguida pela grande indústria, com o emprego da
maquinaria.
De acordo com Braverman, o movimento da gerência científica, iniciado entre
fins do século XIX e princípios do século XX, por Frederick W. Taylor (1856-1915), foi
impulsionado pelas seguintes forças: aumento significativo do tamanho das empresas,
início da organização monopolista da indústria e internacionalização e sistemática
aplicação da ciência à produção. A gerência científica, como foi denominada, significou
“(...) um empenho no sentido de aplicar os métodos da ciência aos problemas
complexos e crescentes do controle do trabalho nas empresas capitalistas em rápida
expansão”.
Para o autor, a gerência não investiga o trabalho na sua totalidade social, mas a
adaptação do trabalho às necessidades do capital. Taylor procurou ocupar-se dos
fundamentos dessa organização sobre os processos de trabalho e o controle sobre eles.
Nesse sentido, “o taylorismo pertence à cadeia de desenvolvimento dos métodos e
organização do trabalho (...)”, e não se preocupava com a tecnologia empregada no
processo produtivo (BRAVERMAN, 2012, p. 82).
Segundo os historiadores que estudaram o movimento da gerência científica
através de publicação de manuais, análises de problemas de gerência, e no enfoque cada
vez mais requintado posto em prática desde a segunda metade do século XIX, “o que
Taylor fez não foi criar algo inteiramente novo, mas sintetizar e apresentar ideias num
todo razoavelmente coerente que germinaram e ganharam força na Inglaterra e nos 30 Referência à obra de Marx (1996), O Capital – Vol. I, Tomo I, Cap. XI e XII – Vol. II, Tomo I, Cap. XIII. 31 De acordo com Marx, chama-se de cooperação “a forma de trabalho em que muitos trabalham planejadamente lado
a lado e conjuntamente, no mesmo processo de produção ou em processos de produção diferentes, mas conexos”.
(MARX, 1996, p. 442). 32 Segundo Marx, analisar a origem da manufatura é compreender que sua formação é dúplice. “De um lado, ela parte
da combinação de ofícios autônomos de diferentes espécies, que são despidos de sua autonomia e tornados unilaterais
até o ponto em que constituem apenas operações parciais que se complementam mutuamente no processo de
produção de uma única e mesma mercadoria. De outro lado, ela parte da cooperação de artífices da mesma espécie,
decompõe o mesmo ofício individual em suas diversas operações particulares, isola-as e as torna autônomas até o
ponto em que cada uma delas torna-se função exclusiva de um trabalhador específico”. Portanto, a manufatura
introduz “(...) a divisão do trabalho em um processo de produção ou a desenvolve mais; (...) ela combina ofícios
anteriormente separados. Qualquer que seja seu ponto particular de partida, sua figura final é a mesma – um
mecanismo de produção cujos órgãos são seres humanos” (MARX, 1996, p. 455).
76
Estados Unidos durante o século XIX”. Portanto, ele produziu “uma filosofia e [deu]
título a uma série desconexa de iniciativas e experiências que representava a culminação
de uma tendência preexistente de organização da produção iniciada com a cooperação”
(URWICK; BRECH, apud BRAVERMAN, 2012, p. 85).
Sobre o controle do trabalho, Braverman afirma ser ele um aspecto decisivo da
gerência no curso da sua história, porém com Taylor ele adquiriu dimensões sem
precedentes. O revolucionamento provocado por Taylor no tocante ao conceito de
controle o elevou “(...) a um plano inteiramente novo, como uma necessidade absoluta
para a gerência adequada à imposição ao trabalhador da maneira rigorosa pela qual o
trabalho deve ser executado”. Nesse sentido, a gerência deveria efetuar o controle de
forma que determinasse ao trabalhador o modo concreto de execução de toda e qualquer
atividade na produção, desde a mais simples à mais complexa, sob um ritmo
determinado de trabalho, o do marca-passo, com objetivo de aumentar a produção e
extrair mais-valia em menos tempo (BRAVERMAN, 2012, p. 86).
Para Braverman, Taylor foi o responsável pelo desenvolvimento dos princípios
que regeram a gerência moderna de produção no capitalismo contemporâneo durante o
século XX. A generalizada aplicação da gerência científica coincidiu com a revolução
técnico-científica e as transformações fundamentais na estrutura funcional do
capitalismo e na composição da classe trabalhadora. O principal efeito causado pela
gerência científica sobre a classe trabalhadora foi a intensificação do processo de
separação do trabalho intelectual do trabalho manual, já iniciado na manufatura.
Para o autor, a consequência prática dessa separação de concepção e execução
“é que o processo de trabalho é agora dividido entre lugares distintos e distintos grupos
de trabalhadores”. No interior das fábricas são executados os processos físicos da
produção; já nos escritórios concentram-se o projeto, o planejamento, o cálculo e o
arquivo. Contudo, a consequência social não residiu na separação entre mão e cérebro,
concepção e execução, mas no rigor com o qual são divididos uma da outra; portanto,
“(...) ao estabelecer relações sociais antagônicas, de trabalho alienado, mão e cérebro
tornam-se não apenas separados, mas divididos e hostis, e a unidade humana de mão e
cérebro converte-se em seu oposto, algo menos que humano” (BRAVERMAN, 2012, p.
112-113).
O efeito degradante da gerência científica para o trabalhador foi ampliado
ainda mais com o aparecimento do fordismo, a partir de 1913, quando Henry Ford
(1863-1947) passou a aplicar os métodos da organização científica do trabalho em suas
77
fábricas de automóveis, para atender a uma potencial produção em massa. Antes dessa
mudança, como explica Gounet (2002), Ford se deparou com o antigo regime de
trabalho, a produção artesanal; o automóvel era fabricado por vários operários
especializados, uma produção lenta, que consequentemente aumentava o valor do carro.
Ford modificou todo esse processo com a aplicação dos métodos do taylorismo na
indústria automobilística. Essa nova organização na produção e no trabalho destinava-se
a fabricar mais veículos em menos tempo, como, por exemplo, o Modelo T, fabricado
por um preço relativamente baixo, em larga escala, à custa da degradação do trabalho
humano.
De acordo com Gounet (2002), o modelo de produção fordista apoia-se em
cinco transformações principais no processo produtivo, quais sejam: 1) a produção em
massa, com racionalização extrema das operações efetuadas pelos operários e combate
aos desperdícios, principalmente o de tempo; 2) o parcelamento de tarefas, com base na
divisão do trabalho, pois o trabalhador não precisa mais ser um especialista; sua função
se resume à operação de um número limitado de gestos simples, repetindo-os inúmeras
vezes durante sua jornada de trabalho, o que leva à desqualificação do trabalhador; 3) a
criação de uma linha de montagem que liga os trabalhadores individuais às diferentes
atividades, além de fixar um ritmo de trabalho controlado pela empresa; 4) a
padronização das peças, com a integração vertical da produção, ou seja, a realização do
controle direto do processo de produção; e 5) a automatização das fábricas (GOUNET,
2002, p. 18-19).
Inicialmente, tais transformações não foram bem-vistas pelos trabalhadores; os
operários preferiam o método antigo, por constrangê-los menos e os valorizar mais,
mantendo a sua qualificação. Assim, Ford não encontrava mão de obra necessária a sua
produção em massa, mesmo com a redução do tempo gasto para a produção. Conforme
afirma Braverman, “nesta reação inicial contra a linha de montagem percebemos a
repulsa natural do trabalhador contra a nova espécie de trabalho”. Isso se torna
perceptível pelo fato de que Ford estava competindo com modos anteriores de
organização do trabalho que ainda caracterizavam o restante das fábricas automotivas.
Porém, em regra, a classe trabalhadora acabou por se submeter ao modo
capitalista de produção e às formas sucessivas que ele assumiu no curso da sua história.
Isto acontece “(...) à medida que o modo capitalista de produção conquista e destrói
todas as demais formas de organização do trabalho, e com elas, todas as alternativas
para a população trabalhadora”. Foi o que Ford fez ao forçar a linha de montagem no
78
restante das fábricas automotivas; os trabalhadores agora eram obrigados a submeter-se
a ela devido ao desparecimento das antigas formas de trabalho nas fábricas
(BRAVERMAN, 2012, p. 132, grifo do autor).
A introdução, em 1914, de uma jornada de oito horas de trabalho a cinco
dólares, para os trabalhadores da linha de montagem da Ford – o dobro do que era pago
naquela época para uma jornada de trabalho – atraiu os operários para a sua produção.
Essa manobra, para Braverman, significou mais uma forma de “ajustamento” do
trabalhador, de caráter manipulativo, com a finalidade de assegurar a produção em
massa.
Logo,
a aclimatação aparente do trabalhador aos novos modos de produção surge da
destruição de todos os modos de vida, a contundência das barganhas salariais
que permitem certa maleabilidade dos costumeiros níveis de subsistência da
classe trabalhadora, o emaranhado da rede da vida capitalista moderna que
torna finalmente todos os outros meios de vida impossíveis. Mas por baixo
dessa aparente habituação continua a hostilidade dos trabalhadores às formas
degeneradas de trabalho a que são obrigados, como uma corrente subterrânea
que abre caminho para a superfície quando as condições de emprego
permitem, ou quando a tendência capitalista a maior intensidade de trabalho
ultrapassa os limites da capacidade física e mental. Renova-se em gerações
sucessivas, exprime-se no incontido sarcasmo e repulsa que grandes massas
de trabalhadores sentem por seu trabalho, e vem à tona repetidamente como
um problema social exigente de solução. (BRAVERMAN, 1978, p. 133-134).
Para Harvey, o que havia de novo em Ford (e que distinguia o fordismo do
taylorismo) era sua perspectiva de combinar uma produção em massa com o consumo
de massa; isto significava “um novo sistema de reprodução da força de trabalho, uma
nova política de controle e gerência do trabalho, uma nova estética e uma nova
psicologia, em suma, um novo tipo de sociedade democrática, racionalizada, moderna e
populista” (2011, p. 121). Behring & Boschetti (2011) afirmam que essa crença na
articulação entre uma produção em massa e um consumo em massa, como uma forma
de sustentação do modo de produção capitalista sem muitos abalos econômicos, para
Ford, sugeria o controle sobre o modo de vida e de consumo da classe trabalhadora.
Portanto, entende-se essa nova relação social, o fordismo, como um esforço de
produção voltado à criação de um novo trabalhador inserido numa nova sociedade. Para
tanto, em 1916, Ford contratou assistentes sociais para estabelecer esse controle, tendo
em vista gerar nos trabalhadores padrões de consumo compatíveis com a produção
capitalista em curso.
O método fordista de produção alastrou-se tanto na produção automobilística
como nas outras áreas de produção capitalista. Ele se tornou referência, principalmente
79
no período após a Segunda Guerra Mundial. Segundo Harvey (2011), isto se deve a um
conjunto de decisões individuais, corporativas, institucionais e estatais, em resposta às
tendências de crise do capitalismo, sobretudo à Grande Depressão da década de 30. Foi
preciso um forte abalo nas relações de classe para que tal desenvolvimento se
processasse, especialmente na Europa, incluindo a adequação do Estado às exigências
do sistema do capital, com base nas orientações keynesianas. As formas de controle do
trabalho taylorista/fordista juntamente com a ação política do Estado keynesiano,
durante as chamadas “três décadas gloriosas” (1940-1970), permitiram tanto a
recuperação da crise econômica quanto o aumento da produtividade do capital em
patamares nunca antes alcançados.
O keynesianismo e o fordismo, associados, constituíram os pilares do processo
expansionista do desenvolvimento capitalista no pós-1945. Nessa época, segundo
Behring & Boschetti (2011), houve acordos coletivos em torno dos ganhos de
produtividade e da expansão dos direitos sociais, viabilizados pelas políticas sociais,
especialmente em alguns países de capitalismo central onde vigorou o denominado
Welfare State (ou Estado de Bem-Estar Social). Esses ganhos voltados à área social só
foram possíveis devido ao crescimento do padrão de acumulação capitalista da época,
não só com a exploração da força de trabalho nos países de capitalismo central, mas
também, e principalmente, nos países de capitalismo periférico.
Lessa chama atenção para a questão de que existe, em algumas teorizações,
“uma certa idealização do Estado de Bem-Estar Social que o converte em argumento
empírico a favor da tese de que no pós-guerra teríamos assistido a uma profunda
transformação nas classes sociais e, portanto, na relação do Estado com a sociedade
civil”. E que no centro dessas transformações estaria presente “o desaparecimento da
classe operária (quer por sua fusão como os assalariados, quer pelo seu desaparecimento
puro e simples) e, portanto, a falência das categorias marxianas de revolução e de
socialismo”. Isto porque, a partir do momento em que o Estado passa a atender a uma
pequena demanda da classe trabalhadora, ele teria abandonado seu caráter de classe, e
assim poderia ser disputado na sociedade entre as classes sociais em questão. Isso
disseminou a ideia de que na transição ao socialismo ocorreria um processo de
transformação da sociedade, no qual os trabalhadores tomariam o poder político,
convertendo-o em instrumento não mais da classe burguesa, e sim da classe
trabalhadora (LESSA, 2011, p. 278-279).
80
O que muitos estudiosos não perceberam é que o Estado de Bem-Estar Social
foi apenas mais uma forma de atuação assumida pelo Estado burguês capturado pela
lógica dos monopólios para auxiliar no processo de reprodução sociometabólico do
capital. Tanto isso é verdade que, no período posterior à Segunda Guerra Mundial, o
que se observou foi um cenário marcado por profundas derrotas do movimento operário,
a exemplo do que aconteceu na Espanha, França, Itália e Grécia. Em toda a Europa os
movimentos revolucionários dos trabalhadores foram sufocados pela força do Estado
moderno, e desde então os países europeus nunca mais conheceram qualquer levante
revolucionário digno de tal importância.
Para Lessa, fica claro que:
Os anos que se iniciam com o fim da II Guerra Mundial marcam uma derrota
importante do movimento operário e não uma ascensão deste. As revoluções
ocorreram em países coloniais ou semicoloniais e foram muito mais
movimentos de libertação nacional que revoluções socialistas. Na avaliação
do Estado de Bem-Estar Social, este é o primeiro dos mitos a serem
reconsiderados. (2011, p. 279).
Cabe destacar que essa e outras argumentações que defendem a existência do
denominado Estado de Bem-Estar Social na sociedade moderna serão consideradas no
item seguinte deste capítulo, quando, com base em Lessa (2013), se analisar a função
social dessa forma de Estado.
No contexto do pós-guerra, o fenômeno da superprodução apareceu como uma
ameaça ao capitalismo internacional. Nesse sentido, Lessa (2011) faz referência a três
pontos que foram relevantes neste processo: o primeiro deles corresponde ao consumo
destrutivo promovido pela guerra, o qual já não era mais necessário; assim, a produção
em grande escala dos produtos direcionados à guerra teve suas demandas reduzidas do
dia para a noite. O segundo refere-se à propaganda contra o desperdício durante a
guerra, o que promoveu hábitos de consumo concentrados na economia de gastos. E o
terceiro diz respeito à volta dos soldados a vida civil, uma massa de trabalhadores para
os quais não havia perspectiva de emprego. Neste cenário, o desemprego era um
impedimento a mais para o desenvolvimento do consumo em escala ampliada.
De acordo com Lessa, a alternativa apontada passou a ser a organização de um
mercado capaz de um consumo cada vez mais elevado. É para atender a esta
necessidade do mercado que se criou o american way of life, nos Estados Unidos,
elevado a modelo mundial, um tipo de “circulo vicioso” no qual
produz-se em larga escala, reduzindo o preço final unitário de cada produto.
A queda do preço eleva o consumo, o que alavanca a produção.
Intensificando-se a produção em massa (com a intensificação correspondente
81
do fordismo e do taylorismo no interior das fábricas e escritórios), o preço cai
ainda mais, e o consumo se elevaria novamente. Com isso uma nova rodada
de aumento da produção seria possível. (LESSA, 2011, p. 281).
A necessidade do sistema no aumento do consumo de mercadorias demandava
uma população com maior poder aquisitivo e com tempo disponível para consumir, ou
seja, fora do ambiente de trabalho. Para tanto, “era preciso, pois, aumentar salários,
diminuir jornadas de trabalho, ampliar as férias anuais etc. É aqui que entram as grandes
estruturas sindicais dos trabalhadores”. Para Lessa (2011), a história particular do
movimento sindical em cada um dos países capitalistas centrais fez com que o
desenvolvimento social ocorresse de forma variável.
Mas, apesar dessas diferenças, no período pós-Segunda Guerra o que se
observa é
o desenvolvimento de centrais sindicais domesticadas que aceitavam exercer
a função que lhes destinava o sistema do capital: disciplinar a força de
trabalho através de acordos coletivos de trabalho e, por outro lado,
possibilitar a sintonia no aumento dos salários e na regulamentação dos
processos de trabalho entre as diferentes plantas de um mesmo ramo
industrial. (LESSA, 2011, p. 281-282).
O Estado de Bem-Estar Social, ao assim associar-se ao modo de produzir
fordista no decorrer dos “30 anos dourados” do capital, além de proporcionar as
condições adequadas para a ampliação da exploração da força de trabalho com maior
extração de mais-valia, mediada pela relação entre mais-valia absoluta e relativa,
acabou por cindir a entre a chamada aristocracia operária, constituída por aqueles
trabalhadores mais especializados, mais bem remunerados, que participam ativamente
do mercado, organizados nos maiores e mais influentes sindicatos, que produzem
também a mais-valia relativa, e os mais explorados, a saber, o restante dos
trabalhadores. Esse movimento acaba aprofundando as divisões internas dos
trabalhadores, enfraquecendo-os no confronto com o capital e com o Estado burguês, o
que dificulta ainda mais a luta operária de resistência à ordem social vigente, pois uma
parcela do operariado (a aristocracia), por ter melhorado de condições de vida e de
trabalho, auxilia na reprodução do sistema do capital e apoia a burguesia no seu
processo de exploração.
De acordo com Netto, no período monopolista do capital, a intervenção do
Estado na economia “ultrapassa a fronteira de garantidor da propriedade privada dos
meios de produção burgueses (...)”. A sua atuação passa a incidir na organização e na
dinâmica econômica, de maneira contínua e sistemática. Nessa nova fase do
desenvolvimento capitalista, as funções políticas do Estado se imbricam com as suas
82
funções econômicas. Assim, a necessidade de uma nova modalidade intervencionista
para o Estado decorre da demanda que o capitalismo monopolista tem de um vetor
extraeconômico, com a função de assegurar seus objetivos econômicos, ou seja, os
superlucros do capital; para tanto, enquanto poder político e econômico, o Estado passa
a realizar outras funções (NETTO, 1992, p. 21).
Netto (1992) divide as funções econômicas do Estado em atribuições diretas e
indiretas. Nas funções econômicas diretas, o Estado passou a se inserir como
empresário nos setores básicos não rentáveis; a assumir o controle de empresas
capitalistas em dificuldades (com sua estatização); a oferecer subsídios diretos aos
monopólios via fundo público e a lhes assegurar altas taxas de lucros. Já nas funções
econômicas indiretas, essa intervenção está mais relacionada às encomendas/compras
do Estado aos grupos monopolistas; aos investimentos públicos em meios de transporte
e infraestrutura; à preparação institucional da força de trabalho solicitada pelos
monopólios; e aos gastos com investigação e pesquisa. Assim, em função dos
monopólios, o Estado atua mais expressivamente no terreno estratégico, onde se
fundem as atribuições econômicas diretas e indiretas, através de planos e projetos de
médio e longo prazo, operando como um administrador dos ciclos de crise. O Estado
age como instrumento de organização da economia capitalista.
Segundo Netto (1992), para manter o processo de reprodução ampliado do
capital o Estado é obrigado não só a assegurar continuamente a reprodução e a
manutenção da força de trabalho, mas a regular os níveis de consumo, assim como a
criar mecanismos diversos que garantam a sua mobilização e alocação em função das
necessidades e projetos do monopólio. Articulado às funções econômicas e políticas do
Estado no capitalismo dos monopólios, para exercer a sua função no plano econômico,
na condição de “comitê executivo” da burguesia monopolista, ele deve buscar
legitimidade política na incorporação de demandas sociopolíticas, mediante a
generalização e a institucionalização de direitos civis e sociais. Em outras palavras, isto
lhe permite organizar um consenso e assegurar o desenvolvimento de suas atividades
para a manutenção da reprodução do capital. É, portanto, nesse momento do
desenvolvimento capitalista que se cria a falsa ideia de um “Estado social” como
mediador de interesses das classes sociais em conflito.
Daí se pode compreender que as respostas positivas às demandas da classe
trabalhadora, por parte do Estado keynesiano, no contexto do capitalismo monopolista,
são também funcionais a esta fase do sistema do capital, porquanto viabilizam a garantia
83
dos superlucros dos monopólios. Cabe destacar que essas respostas são dadas devido ao
processo de mobilização e a muita luta do conjunto dos trabalhadores. Esse processo,
em que o Estado capturado pela lógica dos monopólios busca legitimidade política, por
meio do qual responde às demandas da classe trabalhadora, é tensionado pelas
exigências da ordem monopólica e pelos antagonismos criados no seio da própria
sociabilidade capitalista.
É nesse sentido, conforme Netto, que “a transição ao capitalismo dos
monopólios realizou-se paralelamente a um salto organizativo nas lutas do proletariado
e do conjunto dos trabalhadores (...)”. Quando entende que as demandas econômico-
sociais e políticas imediatas postas por este processo reivindicatório não
vulnerabilizaram a estrutura econômica da ordem monopólica, mas devem ser por ele
absorvidas, o poder político demonstra que a sua legitimação é plenamente suportável
pelo Estado. E que no marco do capitalismo monopolista não só é suportável, como
também necessário, para que ele desempenhe a sua função econômica.
É no processo de reprodução do capital em sua fase monopolista, ao longo do
século XX, que se encontra o solo fundante da noção de Estado de Bem-Estar Social.
Ele surge a partir das necessidades de transformação da relação de produção de mais-
valia, na combinação de uma forma superior da mais-valia absoluta com a relativa,
articulado ao desenvolvimento tecnológico e à gerência cientifica do trabalho, o
taylorismo/fordismo. Essas transformações exigiram uma nova forma de intervenção
estatal, o Estado keynesiano, que passa a atuar diretamente nas relações econômicas, na
condição de administrador e garantidor das condições necessárias à reprodução do
sistema do capital.
Observou-se também que as alterações sofridas durante o desenvolvimento
deste século na relação do Estado com sua base econômica resultaram na formação da
aristocracia operária, gerando as estruturas sindicais e partidárias, totalmente
reformistas e contrarrevolucionárias. Foi através dessas transformações da base material
da reprodução social que a noção de Estado de Bem-Estar Social pôde surgir e se
desenvolver na sociedade moderna, como mais uma forma de controle do capital sobre
o trabalho. Portanto, entende-se que o Estado não só auxilia o capital na esfera jurídico-
legal, mas também na reprodução material da sociedade capitalista.
Enfoca-se, a seguir, o processo de generalização do Estado de Bem-Estar
Social. Essa noção se apresenta, em Lessa (2013), como um mito, um conceito criado
84
para capturar o “estado de espírito de uma época” em particular – o período do
capitalismo monopolista entre os anos de 1945 a 1975.
3.2 O Estado de Bem-Estar Social: uma forma de controle do sistema do capital
No item anterior, abordaram-se os processos históricos do período que marca o
auge do desenvolvimento capitalista e que deram origem ao Estado de Bem-Estar
Social. Agora, passa-se a analisar a função social que o denominado Estado de Bem-
Estar Social exerce na sociedade moderna, buscando compreender como sua
consolidação e desenvolvimento foram fundamentais à manutenção do sistema do
capital e ao seu controle no capitalismo dos monopólios.
Em seu livro Capital e Estado de Bem–Estar: o caráter de classe das políticas
públicas, Lessa (2013), no capítulo V, inicia com a seguinte pergunta: “O que é,
mesmo, o Estado de Bem-Estar Social?”. Segundo as definições dominantes, seria “o
Estado que, por inspiração keynesiana, ampliou-se para abrigar em seu interior as
necessidades dos trabalhadores”. Na contramão dos Estados que lhe antecederam ao
longo do desenvolvimento capitalista, “o Estado de Bem-Estar se caracteriza por uma
nova modalidade, mais humana e mais ética, de intervenção estatal na economia com a
utilização em larga escala de políticas públicas voltadas aos mais carentes”, também
denominado por seus defensores como “Estado Social”, “Estado Providência”, “Estado
desmercadorizador ou ético” etc. Contudo, para o autor, tais definições não possuem
nenhuma correspondência com a realidade objetiva, ou seja, com a história da evolução
do capital (LESSA, 2013, p. 175).
Com base nesse critério de argumentação, os Estados de Bem-Estar Social
seriam aqueles que empregaram as políticas públicas com maior intensidade. Lessa
ironiza ao afirmar que às mais típicas expressões dessa forma de Estado
corresponderiam “os da Alemanha nazista e da União Soviética”, uma vez que nesses
países “as políticas públicas foram empregadas com uma universalidade e generalidade
que nunca antes outro país jamais conheceu”. Porém, ao se comparar tais políticas,
observa-se que o Estado soviético com suas demanda direcionadas aos “mais carentes”
nem de longe correspondeu a qualquer política desenvolvida pelos chamados Estados de
Bem-Estar Social; da mesma forma, o Estado nazista com “seus programas de geração
de empregos, educação e formação dos trabalhadores, aposentadorias e pensões, de
85
construção de moradias etc.”, e também os programas governamentais da sociedade
moderna, “como o New Deal ou as iniciativas tomadas pelos governos da França e da
Inglaterra”. Cabe destacar que, no curso da história, estas iniciativas na área social se
tornam bem-sucedidas no sentido da propagação tanto do regime soviético quanto do
regime nazista (LESSA, 2013, p. 175).
Com base no mesmo critério de análise, conforme Lessa, para alguns autores,
também o Estado brasileiro, “sob a ditadura militar dos anos de 1960-1980, teria
passado por um processo de ‘consolidação do Estado de Bem-Estar’”. Segundo outros,
isso só teria acontecido com a Constituição de 1988; através da defesa de direitos
universais, o Brasil estaria dando os primeiros passos na direção de um Estado de Bem-
Estar Social. Para Lessa, buscar definir “o Estado de Bem-Estar pela adoção de políticas
públicas o torna tão amplo e abrangente que englobaria praticamente todos os Estados
do planeta, já que a grande maioria, em algum momento do século XX, implementou
políticas públicas”; os países acima citados seriam apenas alguns exemplos (LESSA,
2013, p. 175-176).
A esse critério foram acrescentados outros dois para qualificar os Estados
como de “Bem-Estar Social”, e assim excluir dessa definição alguns países, a exemplo
de Alemanha, União Soviética, Brasil, Argentina, entre outros. Em primeiro lugar,
precisariam ser “Estados democráticos, geridos por uma economia de livre mercado e,
em segundo, teriam existido no período posterior à Segunda Guerra Mundial”, nos “30
anos dourados” do capital.
Do mesmo modo, Lessa aponta problemas para ambos os critérios de
definição, quando questiona os seguintes fatos da história do desenvolvimento da
sociedade capitalista:
Podemos definir como democráticos Estados como os da França e dos
Estados Unidos, que discriminavam os argelinos e os negros,
respectivamente, de suas cidadanias? Poderiam ser democráticos Estados que
favoreceram com suas políticas urbanas a especulação imobiliária e
condenaram milhões de seus cidadãos aos guetos, slums, cortiços e favelas de
todos os tipos? Que financiaram a transformação da saúde em big business
nas mãos da indústria farmacêutica e afins? Que converteram a educação em
mercado consumidor de livros de outros materiais didáticos para maior glória
das grandes corporações? Que organizaram a sala de aula como centro de
lavagem cerebral e doutrinação de suas juventudes? Seriam democráticas as
ações da Inglaterra na Irlanda, dos EUA no Vietnã, da França na Indochina e
na Argélia, em uma lista de intervenções imperialistas que poderia se alongar
por algumas páginas? Em que definição de democracia seriam aceitáveis
Estados que, durante os “30 anos dourados”, desenvolveram, empregaram e
disseminaram o uso da clean torture, como a França, os Estados Unidos, a
Inglaterra e a Alemanha? Deportar milhões de suas crianças e adolescentes às
86
ex-colônias para servirem de mão de obra escrava qualifica um Estado como
democrático? (LESSA, 2013, p. 176).
Cabe a seguinte indagação: o que é a democracia? E o que torna um Estado
democrático? Para os autores que defendem os Estados de Bem-Estar Social como
democráticos, Lessa aponta duas alternativas, a nosso ver, corretas: eles “devem
redefinir a democracia para torná-la compatível com a tortura, com as políticas públicas
a serviço da ampliação da lucratividade do capital e com o imperialismo, ou, então, não
mais definir como democráticos os Estados de Bem-Estar” (LESSA, 2013, p. 176).
No capítulo II do seu livro, Lessa faz um relato bem detalhado acerca da
utilização pelo capital das “políticas públicas voltadas à saúde, à educação, à igualdade
racial e aos direitos civis, aos migrantes, às crianças e adolescentes”, implementadas ao
longo dos “30 anos dourados” de pleno desenvolvimento econômico do capitalismo, e
também anteriores e posteriores a tal período, em países tidos como típicas expressões
dos Estados de Bem-Estar Social. Nele, todos os levantamentos e dados apresentados
pelo autor sobre as políticas adotadas por essa forma de Estados sugerem o predomínio
de uma atuação voltada prioritariamente para a garantia do lucro e da estabilidade do
sistema do capital (LESSA, 2013, p. 35).
Em segundo lugar, o aparecimento dos Estados de Bem-Estar Social estaria
relacionado ao período posterior à Segunda Guerra Mundial (1945). De acordo com
Lessa, o critério apresentado teria a mesma complexidade dos problemas anteriormente
citados. O que se observa durante o período entreguerras (1914-1945), em países como
“a França, os Estados Unidos, a Austrália, a Nova Zelândia, o Uruguai, a Costa Rica,
além da Suécia, da URSS, da Alemanha, entre muitos outros”, é o emprego das mais
variadas políticas na “área da seguridade, da educação, da moradia, para a infância etc.”,
que na concepção de alguns estudiosos corresponderiam a típicas políticas da fase de
pleno desenvolvimento econômico do capitalismo (LESSA, 2013, p. 176-177).
Uma breve análise das políticas desenvolvidas na área social, no contexto que
antecede à década de 1940, será suficiente para demonstrar que tais políticas coincidem
com as ditas típicas expressões dos chamados Estados de Bem-Estar Social, e que sua
existência esta diretamente vinculada ao processo expansionista do capital. Avelãs
Nunes afirma que “as primeiras manifestações do Estado social poderão assinalar-se no
período imediatamente posterior à Primeira Guerra Mundial (...)” (AVELÃS NUNES
apud LESSA, 2013, p. 177).
87
De acordo com Lessa, a história da Inglaterra demonstra que as primeiras
iniciativas de política pública datam das primeiras Leis dos Pobres, em 1601, um
processo que antecede à Revolução Industrial. A entrada no século XIX, por sua vez, foi
palco de inúmeras intervenções do Estado Inglês na direção do “bem-estar” social, cuja
finalidade principal era garantir uma atividade comercial livre de qualquer entrave,
como “o Factory Act (1844), o Ten Hours Act (1847) e medidas voltadas ao saneamento
básico, moradia etc.”. O novo cenário que se apresentava na Inglaterra, no final do
século XIX, gerado pelo crescimento da Alemanha de Bismarck, com avanços na área
social e de intervenção do poder político, aumentou “a pressão pela busca de uma maior
eficiência e maior estabilidade da economia mediante uma intervenção estatal que
centralizasse e potencializasse os esforços localizados na reprodução da força de
trabalho, na sua educação e treinamento profissional”. Todo esse movimento foi
acompanhado por grandes manifestações trabalhistas durante a década de 1880, em
Londres, na busca por melhores condições de trabalho (LESSA, 2013, p. 177).
Na Inglaterra, a necessidade por um Estado mais interventor na esfera
econômica foi ampliada consideravelmente, segundo Lessa (2013), “primeiro pela
Guerra dos Boers (1899-1902) e, depois, pela Grande Guerra de 1914-1918”. Para o
autor, após a Primeira Guerra Mundial surgem as primeiras iniciativas na área de
seguridade social, no controle do preço dos imóveis alugados, seguidas pela redução do
desemprego e pelo aumento dos salários dos trabalhadores envolvidos na produção
bélica; ocorre, consequentemente, uma maior acumulação de capitais. Isso levou ao
aumento da pressão por parte da burguesia para que o Estado rompesse com a postura
liberal clássica, que buscava limitar sua atuação política à área de manutenção da ordem
pública, impedindo que o governo interferisse na livre atividade econômica dos
indivíduos, como visto em Laski (1973), a favor de um Estado mais intervencionista
(LESSA, 2013, p. 177).
Logo depois de ser colonizada pelos ingleses, a Austrália, no século XIX, ainda
segundo Lessa, devido ao seu processo de industrialização e “graças à destruição da
civilização aborígine e à exploração dos enormes recursos naturais, era a ‘nação mais
rica do mundo’”. Sua riqueza era superior à do Reino Unido, EUA, Canadá, França e
Alemanha. A insatisfação da classe trabalhadora se intensificou ainda mais com este
desenvolvimento, e os problemas de uma população que envelhecia rapidamente, ambos
associados a uma economia carente de força de trabalho especializada para a indústria.
No século XX, a Austrália passa a adotar políticas para os idosos, pensões para os
88
inválidos e cria uma taxa de incentivo à natalidade. Antes mesmo da Primeira Grande
Guerra, as políticas públicas implementadas já tinham formado a base do que seria o seu
Estado de Bem-Estar Social. De acordo com Lessa, a Primeira Guerra, a Grande
Depressão de 1929 e a Segunda Guerra Mundial provocaram intensas modificações na
relação do Estado com o setor econômico. Na Austrália, o período entre 1930 a 1945
representou um aumento nos custos do sistema de seguridade social, que além de
promover os benefícios aos cidadãos, visava garantir estabilidade econômica (LESSA,
2013, p. 178).
No Canadá, Lessa ressalta que “o processo de industrialização, associado a
uma forte tradição presbiteriana, conduziu à adoção de um ‘complexo processo de
financiamento da educação pública’”, já no final do século XIX. Com a greve dos
gráficos, em 1872, surge uma legislação federal sobre a regulamentação das instituições
sindicais e, uma década depois, as primeiras tentativas para regulamentar o trabalho
infantil e feminino. No século XX, mais exatamente em 1914, surge em todo o país “o
Workman’s Compensation Act, que indenizava os trabalhadores acidentados com um
pagamento mensal em dinheiro”. Com o fim da Primeira Guerra Mundial, o que se
observou foi a efetivação de “numerosos programas de assistência social para os
veteranos, que lançaram as bases para a expansão do Estado de Bem-Estar ao setor
civil”, principalmente nas áreas de educação, saúde, desemprego e assistência. Na
década de 1940, com base no “Relatório Marshall”, o Estado canadense evoluiu para o
que Grahan, citado por Lessa, chama de “Estado de Bem-Estar institucional”, sob o qual
“as instituições de bem-estar se tornaram a defesa primária contra as adversidades, e o
Estado é claramente o instrumento para responder aos riscos universais ao bem-estar
humano, característicos de uma sociedade industrial” (GRAHAN apud LESSA, 2013,
p. 179).
De acordo com Lessa, na Suécia, as raízes históricas do Estado de Bem-Estar
Social datam do final do século XIX. Assim como no Canadá, seu desenvolvimento
econômico é intensificado pelo processo de industrialização na passagem ao século XX.
Com um passado bem particular por não ter sido conquistada pelos romanos, não
conheceu o modo de produção feudal e, muito cedo, tornou-se uma monarquia. Até
hoje, a riqueza da Suécia encontra-se nas mãos de duas dezenas de famílias que
dominam e centralizam o poder político e econômico do país. “Esta base social
possibilitou que um governo socialista se mantivesse no poder, do final da Segunda
Guerra Mundial até 1976, com base em uma sólida aliança entre o grande capital e os
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grandes sindicatos dos trabalhadores”. Ao final do século XIX, “a aliança articulada por
Bismarck entre as classes dominantes da Alemanha teve forte impacto na Suécia, que
passou a adotar uma política semelhante nos primeiros anos de 1890”. Desde então,
muitas foram as iniciativas na área social de proteção aos acidentes no trabalho, com
destaque para o sistema de aposentadoria geral, o primeiro do mundo. O seguro
desemprego foi criado, embora não mantido pelo Estado, mas pelos sindicatos e pelas
centrais sindicais (LESSA, 2013, p. 179-180).
Hort afirma que não é verdadeira a tese de que as políticas públicas tenham se
generalizado somente nas décadas de 1930 ou 1940, tampouco, conforme acrescenta
Lessa, que sejam particulares ao período posterior à Segunda Guerra Mundial. A Suécia
é mais uma prova de que tais políticas públicas estavam ganhando forma desde o final
do século XIX até o início do século XX, na direção do que seria denominado Estado de
Bem-Estar Social (HORT apud LESSA, 2013, p. 180).
No caso da França, segundo Lessa, o processo de formação das políticas
públicas já se fazia presente desde o final do século XIX. No entanto, “foram as
consequências da Primeira Guerra Mundial que lançaram a França em direção ao que
viria a ser o seu Estado de Bem-Estar”. Os intensos processos de industrialização,
indispensáveis ao período de guerra, levaram “à criação de órgãos estatais de gestão
econômica, em íntima colaboração com as grandes organizações patronais”. A partir de
1914, o cenário francês foi marcado pelo grande deslocamento de trabalhadores para a
guerra, a carência de mão de obra qualificada para a indústria, a entrada das mulheres
no mercado de trabalho e o processo de racionalização do fordismo. Tudo isso
colaborou para “o crescimento do movimento grevista [dos trabalhadores] do final da
Primeira Guerra até 1919 e para a constituição de uma aristocracia operária que se
diferenciava cada vez mais da massa dos proletários”. Conforme o autor, os
investimentos do Estado na guerra produziam altos índices inflacionários; era necessário
evitar que os altos salários reivindicados pela classe trabalhadora conduzissem a uma
espiral inflacionária. Esse entendimento levou à divisão do salário, por meio de acordos
entre patrões e empregados (LESSA, 2013, p. 110).
Com o impasse do movimento grevista dos trabalhadores, o Estado assume a
responsabilidade de administrar a seguridade social. Nesse processo, Lessa destaca que
“a burguesia, que sempre lutara para manter sua autonomia, aceitou esta intervenção
como um mal inevitável”, no qual “os patrões passaram a aceitar qualquer intervenção
estatal – ainda que ao preço de perderem o controle sobre os recursos das caixas de
90
compensação e não mais poderem contar com os benefícios familiares como
instrumento privado de controle do trabalho”. Menos mal que a perda de sua
estabilidade financeira. Já as instituições sindicais contavam com uma intervenção por
parte do Estado mais favorável aos interesses da classe trabalhadora; o Estado atuava
como um mediador na relação entre patrões e empregados (LESSA, 2013, p. 118).
As teses keynesianas surgem no período pós-guerra, principalmente aquelas
que defendiam uma maior intervenção estatal, com “a proposta de um sistema
centralizado e obrigatório para todos, a ser custeado pelos empresários, trabalhadores e
pela collectivité”. Nesse momento, conforme Lessa, as perspectivas de direita e
esquerda se uniam, na crença de que “um ‘Estado dirigista’ seria imprescindível não
apenas para a reorganização da França, mas também para garantir ganhos aos
trabalhadores”. De representantes da classe operária, os sindicatos passam a
administradores do sistema, através dos recursos destinados às políticas de bem-estar
social. Na prática, “são corresponsáveis pela coordenação entre as políticas públicas e as
políticas fiscais e monetárias do pós-guerra”. Dessa forma, estava consolidada na
França a relação de coparticipação dos sindicatos na administração da força de trabalho.
O que ocorreu na França após a Segunda Guerra Mundial não foi muito além do
processo de manter e estender a estrutura de serviços que já havia sido estabelecida
desde o final do século XIX (LESSA, 2013, p. 121).
No panorama histórico apresentado observa-se como, no final do século XIX e
no início do século XX, os países de capitalismo avançados e também os países da
periferia do sistema do capital passaram a adotar com certa regularidade a prática da
intervenção estatal por meio das políticas públicas. As ações do Estado no setor da
indústria bélica, nas obras de infraestrutura e nas áreas trabalhista e social estavam
diretamente associadas ao desenvolvimento econômico. De acordo com Lessa (2013),
as peculiaridades históricas de cada país não devem ser ignoradas, tampouco devem
ocultar o fato de que muito antes da Segunda Grande Guerra (1940) já existia uma
tendência a uma maior intervenção do Estado no setor econômico.
A nosso ver, é essa ausência de uma análise crítica de como se processou
historicamente a noção de Estado de Bem-Estar Social, ao longo do desenvolvimento
capitalista, que leva a maior parte da bibliografia acerca desse Estado a reproduzir uma
visão de mundo conservadora, que tem sua origem no pós-Segunda Guerra Mundial.
Entre muitos autores, Lessa toma como exemplo dois: Esping-Andersen e Ferran Coll.
O primeiro, muito citado no Brasil; o segundo, mais frequente no debate latino-
91
americano. O que os dois têm em comum, no trato das políticas do Estado de Bem-Estar
Social, são três pontos: 1) ambos afirmam a existência do Estado de Bem-Estar Social;
2) postulam que essa forma de Estado seria um fenômeno novo na história da sociedade
capitalista, o qual promoveria uma “desmercadorização”; e 3) seria um avanço no
sentido da “democratização” pela aplicação das políticas públicas de caráter universal.
Para muitos estudiosos, esse modelo de Estado, quando levado às últimas
consequências, serve de mediação para a transição ao socialismo, porquanto o Estado
teria deixado de servir única e exclusivamente à classe burguesa e estaria a incorporar as
demandas da classe trabalhadora (LESSA, 2013, p. 17).
Em seu livro, Lessa cita o texto de Esping-Andersen, intitulado The three
worlds of Welfare Capitalism de 1997. Como a maior parte da bibliografia, este também
propõe um novo critério para avaliar os “30 anos dourados” do capital. O critério
proposto por esse autor é o da “desmercadorização33”, que corresponde ao ato de se
desfazer da mercadoria como categoria mais importante da sociedade. Segundo Esping-
Andersen, “o que caracterizaria o Estado de Bem-Estar seria uma radical virada na
história das sociedades capitalistas”, na qual “o Estado passaria a se preocupar com a
produção e a distribuição do bem-estar”.
Para o referido autor, tal fenômeno teria as seguintes características: no setor
econômico, representou a autonomia do mercado e estabeleceu o emprego como um
direito do cidadão; na área moral, defendeu as ideias de justiça social, solidariedade e
universalidade; e no âmbito político, o desenvolvimento do Estado de Bem-Estar Social
fez parte de um projeto de construção nacional, sustentado na democracia liberal, contra
o fascismo e o bolchevismo. Assim, os novos princípios estabelecidos pelo Estado de
Bem-Estar Social teriam possibilitado uma nova capacidade de organização da
sociedade capitalista (ESPING-ANDERSEN apud LESSA, 2013, p. 12).
O segundo autor citado por Lessa é Ferran Requejo Coll, que em seu texto Las
democracias, de 2008, também propõe uma nova categoria para analisar o Estado de
Bem-Estar Social. A categoria proposta pelo autor é a da “democratização”; parte da
análise do surgimento da democracia para explicar como o Estado de Bem-Estar Social
se desenvolveu na sociedade capitalista mediante as políticas públicas. Define tal forma
33 Para Esping-Andersen, desmercadorizar significa a capacidade de diminuir a condição do cidadão enquanto
mercadoria. Ou seja, o processo de “desmercadorização ocorre quando um serviço é prestado como uma questão de
direitos e quando uma pessoa pode manter um padrão de vida sem depender do mercado”. (ESPING-ANDERSEN
apud LESSA, 2013, p. 13).
92
de Estado como “estruturas políticas vigentes nos sistemas democráticos de tradição
liberal a partir, sobretudo, da Segunda Guerra Mundial” (LESSA, 2013, p. 15).
Para Coll, a sociedade atual seria uma evolução “pós-materialista” da
democracia, e o Estado de Bem-Estar Social teria sido “um elo entre o Estado da época
de Bismarck (que intervinha para ‘corrigir’ os excessos do mercado) e o Estado
contemporâneo (o ‘pós-materialista’), e se caracterizaria pela busca da racionalidade
‘funcional do sistema’ do capital”. Dessa forma, as necessidades por uma dimensão
social teriam imposto uma eliminação da relação de dependência dos cidadãos aos
limites socioeconômicos do capital, pois sua própria lógica democrática precisa de uma
estrutura para a sua realização (COLL apud LESSA, 2013, p. 17).
Quanto à produção da esquerda, Lessa chama atenção para textos que, como o
de Corrigan e Leonard, Social Work Practice under capitalism – a Marxist Approaches,
de 1978, não conseguem estabelecer uma análise mais aprofundada acerca da noção de
Estado de Bem-Estar Social. Nele, os autores postulam “o tipo universal de Estado nas
sociedades capitalistas, sendo este o Estado de Bem-Estar”. Conforme Lessa, ainda que
eles reconheçam em seu estudo que para Marx, Engels e Lênin o Estado é um
instrumento da classe economicamente dominante contra os interesses dos
trabalhadores. também defendem que na sociedade de capitalismo moderno teria
ocorrido uma ruptura histórica, na qual “o Estado de Bem-Estar seria a expressão da
luta dos trabalhadores e teria adquirido tal autonomia em face do capital que poderia
representar os trabalhadores contra o capitalismo” (LESSA, 2013, p. 181).
Lessa entende que qualquer posicionamento a favor do Estado de Bem-Estar
Social, com base nessa argumentação, impede toda a potência crítica dos autores, pois
tal análise não estabelece nenhuma relação com a realidade objetiva. Todas as tentativas
improdutivas de precisar uma definição acerca dessa forma de Estado, oriundas das
variadas vertentes teóricas, indicam que não se trata de uma falha no conceito, mas da
dificuldade em explicar “um complexo da reprodução social, o Estado, desvinculado do
seu solo fundante, a reprodução material da sociedade, a economia”. Ou seja, o
problema encontra-se em construir uma análise de um determinado complexo social
sem perder de vista a totalidade social (LESSA, 2013, p. 181).
Com base nos dados e argumentações apresentadas pelos defensores do Estado
de Bem-Estar Social34, percebe-se que, devido aos autores mencionados, a exemplo de
34 Tais argumentações encontram-se no Capítulo I do livro de Lessa (2013).
93
Esping-Andersen e Ferran Coll, entre outros, ignorarem os elementos do
desenvolvimento capitalista na sua fase monopolista, tais produções teóricas tornam-se
frágeis em sua fundamentação e falseiam a realidade. Assim, os fatores históricos
analisados comprovam que durante as “três décadas gloriosas” do capitalismo, o assim
denominado “Estado social” não democratizou o acesso da classe trabalhadora à riqueza
socialmente produzida, tampouco as relações políticas; nem colaborou no sentido do
avanço da luta do conjunto dos trabalhadores em direção a uma nova forma de
organização da sociedade, a socialista.
No item anterior, foi visto como as modificações operadas na base material de
reprodução do sistema do capital constituem o solo social sobre o qual o Estado de
Bem-Estar Social surgiu e se desenvolveu na sociedade moderna, acompanhado pelas
concepções que defendem a existência dessa noção de Estado, articulada às políticas
públicas no período do pós-Segunda Guerra Mundial, seja pelo processo de
democratização, seja pela desmercadorização do Estado burguês.
De acordo com Lessa, na constituição e difusão do “mito” acerca do Estado de
Bem-Estar Social muitas foram as teses que contribuíram para justificar sua existência,
no interior do movimento dos trabalhadores e nos partidos revolucionários. Destas, o
autor destaca dois elementos de fundamental importância. O primeiro, as argumentações
que “(...) tendem a substituir a exploração do homem pelo homem como fundante do
Estado, por uma concepção de transição ao comunismo que se daria pela mediação do
Estado”. O segundo elemento é “a negação do caráter de classe do Estado”. Nessa
última concepção há uma ampla aceitação da tese de que o Estado teria abandonado a
sua função social de instituição repressiva, para se converter em expressão da correlação
de forças entre as classes sociais, deixando de ser o representante da classe
economicamente mais poderosa, para atender às demandas dos trabalhadores (LESSA,
2013, p. 201).
Na análise de Lessa, um exemplo evidenciado pela história, das consequências
operadas pela ausência de fundamento do Estado de Bem-Estar Social são as revoluções
socialistas do século passado, que postulavam a possibilidade de transição ao socialismo
pela mediação do Estado. Todas fracassaram no seu objetivo: a superação da sociedade
capitalista. Isto porque, “ao encontrarem uma vida isolada, nacional, para o
desenvolvimento das relações produtivas, as revoluções não puderam romper com o
capital” e, consequentemente, “não puderam prescindir da presença do Estado, órgão de
repressão dos trabalhadores indispensável ao trabalho alienado”.
94
Portanto, compreende-se que neste horizonte de argumentações, toda e
qualquer possibilidade crítica da realidade concreta está eliminada, já que todas essas
experiências se limitaram a reproduzir as mesmas relações de exploração entre os
homens. Ou seja, todas as tentativas de superar a sociedade capitalista por meio do
Estado apenas resultaram fortalecimento deste (LESSA, 2013, p. 202).
Com relação à negação do caráter de classe do Estado, Lessa observa que essa
tese também contribuiu para a ampla aceitação das alegações de que o Estado teria se
transformado num instrumento de defesa dos interesses da classe trabalhadora. Essa
perspectiva, de maior influência entre os estudiosos de Gramsci, postula “uma dada
interpretação do que seria a hegemonia de classes e conduz a ilusões sobre a
possibilidade de um ‘controle social’ sobre o Estado e o capital”. Outros movimentos,
ainda, afirmam a ilusão de tomar o poder econômico sem necessariamente tomar o
Estado.
Sobre a formação do “mito” acerca do Estado de Bem-Estar Social, Lessa
destaca que um primeiro movimento teórico surge do cancelamento do caráter de classe
do Estado, no momento em que o converte em mediação para a superação da
sociabilidade capitalista. Por meio de direcionamentos teóricos distintos, “o stalinismo e
a social-democracia”, que tinham a mesma direção, defendem que a transição se daria
pela mediação do Estado, por ele tanto atender às demandas da burguesia quanto às dos
trabalhadores, a depender do contexto histórico.
Também surgem formulações teóricas que separam o Estado e o trabalho
alienado, teses que da antropologia à ciência política não estabelecem nenhuma relação
entre o Estado e a propriedade privada, e que ganham uma aparência de ciência,
vinculadas à ideia de que o Estado democrático seria o ponto de partida para a
efetivação da liberdade. Sob essas argumentações teóricas ainda hoje se desenvolvem,
com “papel importante, as inúmeras e várias teses que, da direita à esquerda, postulam
que a transição ao socialismo se fará por meio e através do Estado” (LESSA, 2013, p.
205).
De acordo com Lessa, os movimentos ideológicos de esquerda que defendem a
separação do “Estado de sua base material e a consequente negação do seu caráter de
classe se fazem presentes nas teses que afirmam como fundante do Estado de Bem-Estar
um ‘pacto’ ou ‘compromisso’ entre patrões e trabalhadores”. Esses autores buscam
justificar a existência do Estado de Bem-Estar Social através dessa perspectiva, tanto no
Brasil como em outros países.
95
Na sociedade atual, segundo o autor, as teses que afirmam ser “o
neoliberalismo uma ‘contrarrevolução’ ou ‘contrarreforma’ se baseiam na hipótese de
que o ‘compromisso’ do passado estaria sendo revertido pelo conservadorismo que
substituiria o caráter progressista do ‘pacto’ ou das ‘reformas’”. Portanto, a sustentação
de um “compromisso” entre capital e trabalho como fundamento do Estado de Bem-
Estar Social produz graves consequências, tanto de caráter político como ideológico,
por meio da crença de o Estado ser capaz de superar as desigualdades sociais (LESSA,
2013, p. 206).
Para Lessa, está-se diante de uma contradição, pois “ao cancelarmos a gênese e
o desenvolvimento do trabalho alienado (trabalho explorado) como momento
predominante na gênese e desenvolvimento do Estado, torna-se impossível descrever a
evolução do Estado enquanto tal”. É através do trabalho, do intercâmbio material com a
natureza, na condição de produtor do conteúdo material da riqueza social, que o
processo de expropriação do trabalho excedente pela classe dominante impõe a criação
e a reprodução de um poder político, o Estado, para administrar as relações sociais
contraditórias.
Assim, percebe-se que as relações de opressão e exploração como fundamento
do Estado, presentes em toda a história do desenvolvimento das sociedades de classes,
hoje já não se aplicariam à transição ao socialismo. Como visto no primeiro capítulo,
com base nas contribuições de Mészáros, o Estado como estrutura de comando político
do capital é uma exigência absoluta à manutenção e reprodução do sistema
sociometabólico do capital. Assim, sem a eliminação radical das estruturas que
sustentam a sociedade capitalista, não se teria como alcançar outra forma de
sociabilidade humana (LESSA, 2013, p. 217).
Portanto, compreender o Estado, nas variadas formas que ele assume, ao longo
do desenvolvimento da sociabilidade capitalista, requer não perder de vista a base
material que o fundou: o trabalho explorado, produtor de mais-valia. No caso do mito
acerca do Estado de Bem-Estar Social, entender a função social que esta forma de
Estado representou significa,
em primeiro lugar, “explicar” como evolução democrática em direção à
justiça social e as repercussões na totalidade social das transformações na
reprodução do capital em sua fase monopolista. Acima de tudo, realçar os
“aspectos positivos” da necessidade de uma superior articulação entre as
mais-valias relativa e absoluta com a geração de um mercado consumidor
que inclui parte dos trabalhadores. Em segundo lugar, “explicar” a disposição
à colaboração com a burguesia da aristocracia operária e da pequena
burguesia como consequência do fato de que o Estado teria se ampliado de
96
modo a perder seu caráter de classe e a se converter, sempre
contraditoriamente, em expressão da totalidade da sociedade. (LESSA, 2013,
p. 214).
Após essas explicações, parece claro que a possibilidade de investimentos por
parte do Estado na área social surge como estratégia do grande capital, num período
determinado do desenvolvimento capitalista, para acentuar ainda mais a relação de
exploração da classe trabalhadora, visando à acumulação e à expansão da lucratividade
do sistema sociometabólico do capital.
Em linhas gerais, o que se observa é um processo de continuidade do Estado
capitalista antes, durante e depois de 1945. O Estado permanece com a mesma função
social, como o responsável por administrar os interesses comuns de toda a classe
burguesa. O que se alterou foram as condições de reprodução do capital, pois a classe
economicamente dominante tem agora novas necessidades. Portanto, entender este
processo de universalização das políticas públicas, desde o final do século XIX até os
dias atuais, com o surgimento do Estado neoliberal, tendo por base países com
contextos históricos tão distintos, exige revelar que as perspectivas que limitam a
intervenção do Estado ao momento posterior à Segunda Guerra Mundial não
correspondem à realidade objetiva do desenvolvimento econômico da sociedade
capitalista.
A partir de uma ampla pesquisa e análise acerca do Estado de Bem-Estar
Social, Lessa (2013) chega à conclusão de que este Estado não passou de um mito, um
conceito criado para capturar um momento determinado do desenvolvimento do sistema
capitalista, entre os fins da Segunda Guerra Mundial e a década de 1970. Para o autor, o
que ocorreu de fato, no curso desse período, foi uma modificação na relação do Estado
burguês com sua base material; os sucessos propagados no curto prazo pelas medidas
econômicas, sindicais e políticas foram muito expressivos para a reprodução ampliada
do sistema do capital.
No nosso entendimento, o mito ao qual o autor faz referência refere-se à
imagem criada em torno do conceito reproduzido na sociedade moderna de “bem-estar
social”, de que o capital se utilizou para legitimar-se como se fosse o modelo de
produção mais adequado para a sociedade. Para tanto, cooptou os trabalhadores através
dos seus sindicatos e partidos e se beneficiou das condições favoráveis de crescimento
econômico a fim de criar novas formas de dominação no capitalismo.
97
Assim, para Lessa, o Estado de Bem-Estar Social “não passa de uma falsa
categoria para explicar um fato criado pela própria teoria”, que busca na sua utilidade
prática e imediata, comprovar a sua veracidade na justificação da ordem social vigente.
Nessa direção, afirmar a existência do Estado de Bem-Estar Social, associado à ideia de
um “Estado ampliado” que provavelmente teria por suas características rompido com o
seu passado, o denominado “Estado restrito”, na democratização da sociedade, na
distribuição mais igualitária da riqueza e na desmercadorização da vida cotidiana, para,
somente depois, buscar compreender o que seria o Estado de Bem-Estar Social, não
condiz com a realidade concreta, dadas as constatações históricas acerca do período
denominado “os 30 anos dourados” do capital (LESSA, 2013, p. 184).
Esses fatores objetivos e ideológicos articulados foram decisivos para a
propagação do mito acerca do Estado de Bem-Estar Social. A partir deste estudo,
entende-se que também no contexto do capitalismo monopolista a função social do
Estado permaneceu a mesma, direcionada à defesa dos interesses e à manutenção do
modo de controle do sistema sociometabólico do capital.
Dessa forma, a noção de Estado Bem-Estar Social surge na sociedade sem
romper com o velho Estado. Como ao longo do século XX modificaram-se as
necessidades de reprodução do capital, mudaram também as formas de atuação do
Estado, que consistem na forma política de organização do sistema sociometabólico. O
Estado permanece com a mesma função e continua a ser “o comitê encarregado de
administrar os negócios do conjunto da burguesia”. Em outras palavras, o seu caráter de
classe não se alterou; o que se modificou com o tempo foram as condições de
acumulação e expansão do sistema do capital, gerando na classe dominante novas
necessidades, acrescidas de novas contradições cada vez mais antagônicas (MARX;
ENGELS, 2008).
Como visto no primeiro capítulo, o Estado se desenvolveu historicamente para
cumprir as funções de ordenamento da reprodução social, independentemente das
variantes, aparentemente mistificadoras, que o Estado tenha assumido para manter o
mesmo papel e promover o desenvolvimento capitalista. De acordo com Lessa, a lógica
das modificações ocorridas no curso da história na relação do Estado para com a
sociedade civil está na economia, pois “a ‘autonomia relativa’ do Estado para com a
base material apenas existe no interior da determinação predominante da economia
sobre o complexo estatal”. Portanto, explicar a existência do Estado de Bem-Estar
Social com base na sua própria estrutura só pode conduzir a falsas argumentações
98
teóricas que tendem a substituir a evolução da sociedade capitalista por várias formas de
ilusão, sem estabelecer relação com a realidade objetiva (LESSA, 2013, p. 184).
O capital não conseguiu dar conta de suas contradições nem mesmo com o
Estado de Bem-Estar Social, o que fez surgir a crise estrutural do sistema do capital e o
neoliberalismo.
4. A CRISE ESTRUTURAL DO CAPITAL E O NEOLIBERALISMO
A partir do pressuposto de que o Estado, como estrutura de comando político
do capital, atua de formas diferenciadas, a depender das necessidades desse sistema
sociometabólico em cada momento histórico, mantendo sua função social no curso do
desenvolvimento da sociabilidade burguesa – na administração dos defeitos estruturais
do capital, observa-se que os ciclos econômicos capitalistas expressos na relação entre
recessão e expansão do capital são determinantes para a forma de atuação do Estado
moderno, sobretudo no marco da crise estrutural do capital.
Neste capítulo, inicialmente, analisam-se as crises cíclicas do capital com as
mudanças das ações do Estado, tomando como exemplo a crise de 1929, na busca de se
entender como, no curso do desenvolvimento do sistema capitalista, de acordo com
Mészáros (2011), as crises periódicas evoluíram até uma nova fase de desenvolvimento,
a de depressão contínua. Em seguida, aborda-se a natureza da crise estrutural do capital
e suas determinações como um fenômeno que tem causado grandes transformações no
mundo da produção e na relação capital, no cenário atual, para o enfrentamento da crise
estrutural e de suas consequências para a luta e a organização dos trabalhadores. Dando
continuidade, explicitamos como ocorreram as mudanças econômicas, políticas e
sociais derivadas das tentativas do capital em reverter os efeitos da crise estrutural, tais
ações do capital e do Estado, baseadas na perspectiva neoliberal.
99
4.1 Das crises cíclicas à autorreprodução destrutiva do capital
Como visto nos capítulos anteriores, o capitalismo, desde o início do século
XIX, tem vivenciado inúmeras crises cíclicas. Delas resultou o entendimento da sua
incapacidade para solucionar de forma duradoura o desequilíbrio expresso na relação
entre produção e consumo, já que este modo de produção busca produzir bem mais do
que a demanda na esfera do consumo. Os motivos para tanto desequilíbrio variam de
acordo com a fase do desenvolvimento capitalista em que as crises acontecem, porém há
um elemento comum que as diferencia: ser uma crise de abundância, e não mais de
escassez, como sucedia no passado, em razão de desastres naturais, epidemias ou de
guerras.
Como o que motivou e motiva até hoje a produção capitalista é a acumulação
de capital, cuja medida de eficiência é o lucro ampliado, as necessidades sociais são
transformadas em meras mediações para a sua realização, tendo como finalidade o uso
dos recursos naturais e humanos e o desenvolvimento científico e tecnológico, alocados
para atender às demandas do sistema do capital.
A mais importante crise de natureza cíclica conhecida é a “Grande Crise
Econômica” de 1929-1933, conforme visto no capítulo 3. Para Mészáros, este tipo de
crise se apresenta como “grandes tempestades” e se desenvolveu num cenário marcado
por fortes ilusões da fase de crescimento econômico que a antecedeu. Por maior que
fosse o alcance dessa crise, ela estava longe de ser uma crise de caráter estrutural, por
“deixar um grande número de opções abertas para a sobrevivência continuada do
capital, bem como para a sua recuperação e sua reconstituição mais forte do que nunca
em uma base economicamente mais saudável e mais ampla”. Deste período sucedeu um
novo ciclo de crescimento produtivo, com altas taxas de lucro e de expansão econômica
do sistema do capital, em nada comparável com as fases anteriores de acumulação, tanto
que as três décadas de grande expansão que sucederam a Segunda Guerra Mundial
ficaram conhecidas como os anos gloriosos do capitalismo (LESSA, 2011, p. 793).
Historicamente, as contradições postas pelo sistema do capital que surgem nos
momentos de crises agudas como essa podem, na fase seguinte, servir como alavanca
para o aumento no poder aparentemente ilimitado do sistema do capital. Contudo, cabe
destacar que esse mecanismo de deslocamento das contradições, por não enfrentar as
causas dos desequilíbrios como expressão da relação entre produção e consumo,
somente poderá administrar de forma temporária os efeitos inibidores da acumulação
100
capitalista, pois logo em seguida encontrará uma reposição aprofundada dos mesmos
problemas estruturais, posta por uma lógica reprodutiva alienante que para se expandir
precisa subordinar o valor de uso às necessidades de consumo real do capital.
Ao contrário do que muitos defendem sobre a eliminação das contradições
históricas do capital, o que se tem observado ao longo do desenvolvimento dos ciclos de
crise desde o século XIX é que estas contradições foram se aprofundando ainda mais
diante do esgotamento das válvulas de escape que o sistema em algum momento pôde
utilizar como saída, bem como do efeito decrescente das medidas minimizadoras dos
seus aspectos estruturais mais explosivos.
O fato de se ter obtido, até certo tempo, êxito no deslocamento dos limites
relativos do sistema do capital, segundo Mészáros, fez o capitalismo avançar rumo a
uma nova fase, inédita e irreversível, de crise estrutural do capital. Neste contexto,
ocorre uma reavaliação do “avanço produtivo do capital; (...) a própria produtividade se
transforma num conceito enormemente problemático, já que parece ser inseparável de
uma fatal destrutividade”. O aprofundamento das contradições e o surgimento de outras
contradições do capital aparecem associados à utilização sempre crescente dos recursos
humanos e materiais do planeta (MÉSZÁROS, 2011, p. 527, grifos do autor).
De acordo com Mészáros, no contexto de crise estrutural o aspecto mais
significativo no processo de redefinição, por parte do capital, é o modo radicalmente
novo de administrar as crises, que se comparada com as fases anteriores de
desenvolvimento capitalista recaíam sobre a contradição entre produção e consumo. A
anormalidade das crises periódicas do passado recente passa, neste momento, a ser a
normalidade do “capitalismo organizado”. A mudança dramática é que “as crises
capitalistas sob as novas condições (...) não precisam assumir, de maneira alguma, a
forma pela qual a contradição entre produção e troca ‘descarrega a si mesma em
grandes tempestades’”, desde que “os seus pré-requisitos materiais e
políticos/ideológicos possam ser objetivamente reproduzidos” na sociedade
contemporânea (MÉSZÁROS, 2011, p. 695, grifos do autor).
Essa capacidade recém-descoberta pelo sistema do capital de evitar grandes
tempestades nas condições atuais, conforme visto no segundo capítulo, faz parte do
conjunto de transformações das estruturas produtivas da sociedade capitalista do
período pós-Segunda Guerra, seguido por um realinhamento de sua relação com o
Estado (tanto nos propósitos econômicos como na necessidade de legitimação
101
ideológico-política), na passagem de um padrão tradicional de consumo para outro tipo
muito diferente, fundado no consumo supérfluo de mercadorias.
O novo dinamismo econômico teve como fundamento material de expansão o
complexo militar-industrial, que além de aperfeiçoar os meios pelos quais o capital
agora passa a lidar com todas as flutuações e contradições estruturais, também
proporciona um “salto quantitativo” no sentido de operações mais rentáveis do que as
que ocorriam nos estágios anteriores do desenvolvimento capitalista.
Neste contexto,
o novo sistema é caracterizado, por um lado, pela subutilização
institucionalizada tanto de forças produtivas como de produtos e, por outro,
pela crescente, mais constante do que brusca, dissipação ou distribuição dos
resultados da superprodução, por meio da redefinição prática da relação
oferta/demanda no próprio processo produtivo convenientemente
reestruturado. (MÉSZÁROS, 2011, p. 696-97).
Esta mudança na relação entre produção e consumo habilitou o capital a resistir
às consequências dos colapsos produzidos no passado, como, por exemplo, os efeitos
produzidos pela quebra da Bolsa de Valores de Nova Iorque em 1929. Por esta razão, de
acordo com Mészáros, “as crises do capital não são radicalmente superadas em nenhum
sentido, mas meramente ‘estendidas’, tanto no sentido temporal como em sua
localização estrutural na ordenação geral”. Os picos históricos de crises periódicas
podem ser substituídos por “um padrão linear de movimento”; o “capitalismo
organizado”, ao contrário do “capitalismo de crise”, parece “ser capaz de conviver
naturalmente com dificuldades e emergências de magnitude anteriormente
inimaginável”. Nesse sentido, as barreiras que o sistema do capital “encontra na sua
própria natureza”, quanto à relação entre produção e consumo, não parecem afetar
expressivamente seu poder de autoexpansão (MÉSZÁROS, 2011, p. 697-698).
Mészáros admite que enquanto “a relação atual entre os interesses dominantes
e o Estado capitalista prevalecer e impuser com sucesso suas demandas à sociedade, não
haverá grandes tempestades a intervalos razoavelmente distantes, mas precipitações de
frequência e intensidade crescentes por todos os lugares”. No entanto, a ausência de
flutuações extremas não significa “um desenvolvimento saudável e sustentado”, pois o
movimento característico da crise estrutural dá-se no sentido de um “continuum
depressivo”, que exibe as particularidades da universalidade de uma “crise cumulativa,
endêmica, mais ou menos permanente e crônica (...)” (MÉSZÁROS, 2011, p. 697,
grifos do autor).
102
Sobre as características desconcertantes do capitalismo contemporâneo,
Mészáros afirma que é necessário realizar “uma distinção entre produção e
autorreprodução”. Isto porque o capital não está preocupado com a produção em si,
mas apenas com a autorreprodução. Em uma determinada circunstância histórica, a
“autorreprodução ampliada do capital” coincidiu com a “produção genuína” num
sentido positivo; enquanto isto ocorreu, “o sistema capitalista pôde cumprir seu ‘papel
civilizador’ de aumentar as forças produtivas da sociedade e estimular, até um ponto
não só possível, mas também ditado por seus próprios interesses, a emergência da
‘industriosidade geral’”. (MÉSZÁROS, 2011, p. 698-699, grifo do autor).
No entanto, com o passar do tempo, o capitalismo atingiu um estado em que “a
disjunção radical entre produção genuína e autorreprodução do capital não é mais uma
remota possibilidade, mas uma realidade cruel com as mais devastadoras implicações
para o futuro”. Em outras palavras, as barreiras para a produção do capital são
suplantadas pelo próprio sistema, de forma que asseguram sua própria reprodução, em
expansão e constante crescimento – hoje, na condição de autorreprodução destrutiva,
em oposição à produção genuína (MÉSZÁROS, 2011, p. 698-699).
Na atual conjuntura, os limites do capital não podem ser mais conceituados
como se fossem meros obstáculos materiais ao desenvolvimento da produtividade e da
riqueza social, ou como uma trava ao desenvolvimento; mas como um desafio direto à
existência de toda a humanidade. Num outro sentido, embora com as mesmas
consequências, quando os limites do capital se voltarem contra ele, “como mecanismo
controlador todo-poderoso do sociometabolismo”, ou seja, isso somente ocorrerá
quando o sistema do capital já não puder mais assegurar, sob quaisquer meios, as
condições necessárias à sua autorreprodução destrutiva, levando assim ao colapso do
sociometabolismo global (MÉSZÁROS, 2011, p. 699).
Portanto há, de acordo com Mészáros, uma incompatibilidade estrutural na
relação entre controle e capital, pois
o capital é totalmente desprovido de medida e de um referencial
humanamente significativos, enquanto seu impulso interno à autoexpansão é
a priori incompatível com os conceitos de controle e limite, para não
mencionar o de uma autotranscendência positiva. Por isso, ao invés de
aceitar as restrições positivas necessárias no interesse da produção para a
satisfação das necessidades humanas, corresponde à linha de menor
resistência do capital levar as práticas materiais da autorreprodução
destrutiva ampliada até o ponto em que levantem o espectro da destruição.
(MÉSZÁROS, 2011, p. 699).
103
Como já visto, a produção da abundância na contramão da escassez era
totalmente compatível com os processos e aspirações do capital. Hoje, a situação é
radicalmente diferente, pois tais objetivos apenas aparecem nas racionalizações
ideológicas dos defensores do sistema estabelecido. Somente este fato é suficiente para
deixar claro o verdadeiro significado da reconstituição estrutural do capital nas últimas
décadas, em sua íntima relação com os ajustes correspondentes nas operações prestadas,
diretas e indiretas, pelo Estado burguês.
Agora, mais do que antes, “(...) o Estado capitalista precisa assumir um papel
intervencionista direto em todos os planos da vida social, promovendo e dirigindo
ativamente o consumo destrutivo e a dissipação da riqueza social em escala
monumental”. Portanto, sem a intervenção direta do Estado no processo
sociometabólico do capital, que não atua somente em situações imediatas, mas de forma
contínua, torna-se impossível manter a lógica da autorreprodução do sistema capitalista
em tempos de crise (MÉSZÁROS, 2011, p. 700, grifos do autor).
Entender a mudança do padrão e a profundidade das crises econômicas do
capital é de essencial importância para a configuração da crise atual, o que será feito a
seguir.
4.2 A crise estrutural do capital e suas determinações
Após as três décadas de grande expansão do capital, sucedeu uma grande crise
econômica na fase contemporânea do capitalismo, que está associada ao fim do
denominado Estado de Bem-Estar Social. Mészáros (2011) considera a crise do
fordismo e do keynesianismo como expressão fenomênica de um quadro crítico mais
complexo vivenciado pelo sistema do capital na atualidade, que exprime um significado
mais profundo, por se tratar de uma crise de caráter universal. Depois de vivenciar o
contexto de crises cíclicas, o sistema do capital adentrou em uma nova fase, de crise
estrutural; esta, em contraste com as anteriores, mostra-se mais duradoura e sistêmica.
De acordo com Mészáros, a crise econômica do capital que se estende de 1970
até o presente, é “fundamentalmente uma crise estrutural”. O referido autor explica que
o sistema do capital está intimamente relacionado à crise, pois “(...) crises de
intensidade e durações variadas são o modo natural de existência do capital”. Como se
pôde observar, da recuperação das crises capitalistas, através dos mais variados
104
mecanismos de intervenção política e econômica, deriva um capitalismo mais
fortalecido; é com base nos ciclos econômicos, entre o período de crise e de auge, que o
capital passa a deslocar barreiras e entraves. A superação permanente de todas as crises
não é uma pretensão desse sistema, porque elas fazem parte de sua estrutura e o
impulsionam ao desenvolvimento (MÉSZÁROS, 2011, p. 795).
Mészáros identifica quatro aspectos principais da crise estrutural do capital:
(1) seu caráter é universal (...); (2) seu alcance é verdadeiramente global (no
sentido mais literal e ameaçador do termo), em lugar de limitado a um
conjunto particular de países (como foram todas as principais crises do
passado); (3) sua escala de tempo é extensa, contínua, se preferir,
permanente, em lugar de limitada e cíclica, como foram todas as crises
anteriores do capital; (4) em contraste com as erupções e os colapsos mais
espetaculares e dramáticos do passado, seu modo de se desdobrar poderia ser
chamado de rastejante (...). (MÉSZÁROS, 2011, p. 796, grifos do autor).
A respeito deste último aspecto, Mészáros faz a ressalva de que “nem sequer as
convulsões mais veementes ou violentas poderiam ser excluídas no que se refere ao
futuro”. O autor entende que essa maquinaria é poderosa e que o capital tem a
capacidade de dispor de novos instrumentos no seu vasto arsenal de defesa contínua. E
acrescenta que o fato de a maquinaria existente estar agindo com frequência crescente,
apesar de sua eficácia apresentar-se de maneira decrescente, constitui uma medida
apropriada à severidade da crise estrutural, que tende cada vez mais a se aprofundar
(MÉSZÁROS, 2011, p. 696).
Mészáros percebe a necessidade de se concentrar em alguns componentes da
crise em movimento:
Se, no período pós-guerra, tornou-se embaraçosamente antiquado falar de
crise capitalista – mais outro sinal da postura defensiva do movimento do
trabalho –, isso foi devido não apenas à operação prática bem-sucedida da
maquinaria que desloca (por difundir e por retirar a espoleta explosiva) as
próprias contradições. Foi também devido à mistificação ideológica (do “fim
da ideologia” ao “triunfo do capitalismo” organizado e à “interação da classe
trabalhadora” etc.) que apresentou o mecanismo de deslocamento sob o
disfarce de remédio estrutural e solução permanente. (MÉSZÁROS, 2011, p.
796, grifos do autor).
Foi durante o período do pós-Segunda Guerra que o mundo capitalista
conheceu o processo mais longo de crescimento econômico de sua história, num cenário
marcado, como visto no segundo capítulo, pela Primeira Guerra Mundial, seguida pelo
fordismo, com a introdução da gerência científica na esfera da produção capitalista. E
logo após, a Segunda Guerra Mundial, na junção das medidas keynesianas, com a
atuação do Estado na administração das relações em meio à contradição entre capital e
trabalho, bem como entre política e economia.
105
O sistema do capital buscou resolver seus antagonismos e contornar os
entraves que impediam seu livre crescimento, tendo sempre como objetivo a
acumulação e a expansão de capitais. Mészáros esclarece que “para apreciar a novidade
histórica da crise estrutural do capital, precisamos localizá-la no contexto dos
acontecimentos sociais, econômicos e políticos do século 20”. Contudo, antes é
necessário fazer algumas observações gerais acerca dos critérios dessa crise, assim
como sobre as formas nas quais se pode idealizar sua solução.
Em termos simples e gerais, para o autor, “uma crise estrutural [é aquela que]
afeta a totalidade de um complexo social em todas as relações com suas partes
constituintes ou subcomplexos, como também a outros complexos aos quais é
articulada”. Por outro lado, “uma crise não estrutural afeta apenas algumas partes do
complexo em questão, e assim, não importa o grau de severidade em relação às partes
afetadas, não pode pôr em risco a sobrevivência contínua da estrutura global” do capital
(MÉSZÁROS, 2011, p. 796-797).
Portanto, entende-se, de acordo com Mészáros, que a possibilidade de
deslocamento das contradições só faz sentido se a crise for parcial, relativa e
interiormente manejável pelo sistema do capital; em outras palavras, se for uma crise
cíclica, pois ela apenas demanda mudanças no interior do próprio sistema.
Diferentemente, de uma crise estrutural, que “(...) põe em questão a própria existência
do complexo global envolvido, postulando sua transcendência e sua substituição por
algum complexo alternativo”.
A crise estrutural afeta todo o conjunto do sistema sociometabólico do capital,
e assim abre a possibilidade de transição para outra forma de sociabilidade. Segundo
Mészáros, “o mesmo contraste pode ser expresso em termos dos limites que qualquer
complexo social particular venha a ter em sua imediaticidade, em qualquer momento
determinado, se comparado àqueles além dos quais não pode concebivelmente ir”.
Assim, uma crise estrutural não está associada aos limites imediatos do sistema do
capital, mas aos limites últimos de uma estrutura global (MÉSZÁROS, 2011, p. 797).
Eis como Mészáros explicita a diferença entre os limites imediatos e os limites
últimos que compõem a estrutura global do sistema do capital. Os limites imediatos
podem ser ampliados de três maneiras distintas, quais sejam: a) pela modificação de
algumas partes de um complexo em questão; b) devido à mudança geral de todo o
sistema do capital aos quais os subcomplexos particulares pertencem; e, por último, c)
com a alteração significativa da relação do complexo global com outros complexos fora
106
dele. Logo, “quanto maior a complexidade de uma estrutura fundamental e das relações
entre ela e outras com as quais é articulada, mais variadas e flexíveis serão suas
possibilidades objetivas de ajuste e suas chances de sobrevivência até mesmo em
condições extremamente severas de crise” (MÉSZÁROS, 2011, p. 797).
Portanto, as contradições parciais, ainda que severas em sua estrutura, podem
ser deslocadas e até mesmo neutralizadas pelas forças ou tendências contrárias – nos
marcos dos limites últimos ou estruturais do sistema do capital –, e ser transformadas
em forças que ativamente sustentam o sistema em questão. Mészáros ressalta a
integração de fato inegável das lideranças sindicais e partidárias da classe trabalhadora
ao sistema do capital, ao tempo que ocorre o desgaste das múltiplas possibilidades de
ajustes internos. Enfatiza que nem mesmo as relações de interdependência, que tendem
a paralisar as forças de oposição, não seriam capazes de evitar a desintegração da
estrutura final do sistema do capital, o que só pode se dar após um longo e doloroso
processo de “reestruturação radical” das suas próprias contradições (MÉSZÁROS,
2011, p. 797).
Desse modo, tal crise só poderá ser solucionada nos marcos de um processo
radical de mudanças na superação das próprias contradições do capital. Portanto, de
acordo com esta perspectiva, o sistema do capital, por sua própria natureza
contraditória, é incapaz de resolver as contradições que lhe são imanentes; por esse
motivo, as desloca para poder manter seu processo de acumulação e expansão.
No mundo do capital, as expressões de uma crise estrutural podem ser
identificadas tanto em suas dimensões internas como nas instituições políticas. Apesar
de articuladas, em cada uma destas esferas (econômica e política) a crise atua de forma
específica. Isso já foi observado no capítulo anterior, com a falência do Estado de Bem-
Estar Social e a consolidação do Estado neoliberal. É da própria natureza do capital
superar os entraves e barreiras que se apresentam no seu processo de acumulação e
expansão.
Segundo Marx, citado por Mészáros:
A tendência a criar o mercado mundial está presente diretamente no próprio
conceito do capital. Todo limite aparece como uma barreira a ser superada.
Inicialmente, para subjugar todo momento da produção em si à troca e para
suspender a produção de valores de uso direto que não participam da troca...
Mas o fato de que o capital define cada um desses limites como uma barreira
e, consequentemente, avance idealmente para além dela não significa, de
modo algum, que a tenha realmente superado. Já que toda barreira contradiz
seu caráter, sua produção se move em contradições que são constantemente
superadas, mas da mesma maneira são constantemente repostas. Além disso,
a universalidade que persegue irresistivelmente encontra barreiras em sua
107
própria natureza, que em certa fase de seu desenvolvimento permite que ele
reconheça como sendo, ele próprio, a maior barreira e esta tendência, e
consequentemente o impulsionará para sua própria suspensão. (MARX apud
MÉSZÁROS, 2011, p. 798).
As três dimensões internas fundamentais do capital, que Mészáros identifica
como “produção, consumo e circulação/distribuição/realização”, “tendem a se fortalecer
e a se ampliar por um longo tempo, provendo também a motivação interna necessária
para a sua reprodução dinâmica recíproca em escala cada vez mais ampliada”. Mészáros
observa que, inicialmente, as “limitações imediatas” de cada uma em particular podem
ser superadas devido à interação entre elas. Ou seja, a barreira imediata da produção é
superada pela expansão do consumo. E assim os limites imediatos aparecem como
barreiras a ser superadas, e as contradições imediatas são deslocadas e utilizadas em
favor do capital, aumentando o poder aparentemente ilimitado de sua autorreprodução
(MÉSZÁROS, 2011, p. 798).
Com base nessa análise, entende-se que as crises cíclicas correspondem a este
mecanismo vital de autoexpansão, que ao mesmo tempo é o mecanismo para superar ou
deslocar as contradições internas do próprio sistema. As crises cíclicas afetam
diretamente uma das três dimensões fundamentais do capital e indiretamente, até que o
bloqueio seja removido, o que não coloca em questão os limites últimos da estrutura
global do capital, como foi o caso da “Grande Crise Econômica” de 1929-1933; esta
seria, para Mészáros (2011), o exemplo mais expressivo desse tipo de crise, por se tratar
de uma “crise de realização”, devido ao baixo nível de produção e consumo, se
comparado com o período do pós-Primeira Guerra, ao qual sobreveio um ciclo de
grande acumulação capitalista.
A partir dessa constatação, Mészáros (2011) afirma que a crise estrutural
emana das três dimensões internas fundamentais do capital, acima apresentadas. Apesar
das “disfunções” existentes em cada uma delas, consideradas separadamente, elas
“devem ser distinguidas da crise fundamental do todo, que consiste no bloqueio
sistemático das partes constituintes vitais”. Isto significa que não se pode confundir
crise cíclica com crise estrutural, porque a crise cíclica atinge somente uma parte das
dimensões fundamentais, e a crise estrutural atinge o conjunto das três dimensões.
Mészáros faz alguns esclarecimentos quanto à crise estrutural do capital: 1) a
crise estrutural, iniciada na década de 70, “se relaciona a algo muito mais modesto que
as tais contradições absolutas”; isto significa que as três dimensões da autoexpansão do
capital expõe perturbações cada vez maiores. Ela tanto rompe com o processo normal de
108
crescimento, como também sinaliza uma falha “na sua função vital de deslocar as
contradições acumuladas do sistema”; 2) as dimensões internas e condições inerentes à
autoexpansão do capital constituíram desde muito cedo uma unidade contraditória, e
por isso problemática; nessa relação, uma tinha de ser “subjugada” à outra, de modo a
fazer funcionar o complexo global; 3) essa situação muda radicalmente quando os
interesses de cada unidade deixam de coincidir com os das outras. Neste momento, as
perturbações e as “disfunções” antagônicas não são mais
absorvidas/dissipadas/desconcentradas/desarmadas; pelo contrário, tendem a se tornar
cumulativas e, logo, estruturais, o que provoca um perigoso bloqueio ao complexo
mecanismo de deslocamento das contradições. (MÉSZÁROS, 2011, p. 799-800, grifos
do autor).
Mészáros acrescenta acerca do sistema do capital:
Seu modo normal de lidar com contradições é intensificá-las, transferi-las
para um nível mais elevado, deslocá-las para um plano diferente, suprimi-las
quando possível, e quando elas não puderem mais ser suprimidas, exportá-las
para uma esfera ou um país diferente. É por isso que o crescente bloqueio no
deslocamento e na exportação das contradições internas do capital é
potencialmente tão perigoso e explosivo. (MÉSZÁROS, 2011, p. 800).
Diante do exposto, fica claro que, desde os anos de 1970 o capital tem
encontrado maiores dificuldades para manter o seu mecanismo de deslocamento de
contradições. Como resultado desse bloqueio sistemático, a crise estrutural que se
vivencia nos dias atuais, que por sua própria natureza “não está confinada à esfera
socioeconômica” da sociedade burguesa, revela-se também “como uma verdadeira crise
de dominação em geral”.
A extensão da nova crise do capital a todas as esferas da atividade humana, daí
o seu caráter estrutural, conjuntamente com a crescente instabilidade das condições
socioeconômicas, tem exigido “novas ‘garantias políticas’, muito mais poderosas (...)”
do Estado capitalista. O esgotamento do Estado de Bem-Estar Social é a prova expressa
de que “a crise estrutural de todas as instituições políticas já vem fermentando sob a
crosta da ‘política de consenso’ há bem mais de duas décadas”. Isto porque “(...) as
contradições subjacentes de modo algum se dissipam na crise das instituições políticas;
ao contrário, afetam toda a sociedade de um modo nunca antes experimentado”
(MÉSZÁROS, 2011, p. 800, grifos do autor).
O que no passado era ideologicamente explorado como uma vantagem
histórica do sistema capital e sustentava sua “influência civilizadora”, e que permitiu ao
ser humano dominar a natureza e submetê-la às suas necessidades, hoje aparece como
109
uma “devastação sistemática da natureza e a acumulação contínua do poder de
destruição (...)”, ao lado da “negação completa das necessidades elementares de
incontáveis milhões de famintos”.
De acordo com Mészáros:
O sistema existente de dominação está em crise porque sua raison d’être e
sua justificação histórica desapareceram e já não podem mais ser
reinventadas, por maior que seja a manipulação ou a pura repressão. Desse
modo, ao manter milhões de excluídos e famintos, quando os trilhões
desperdiçados35 poderiam alimentá-los mais de cinquenta vezes, põe em
perspectiva o absurdo desse sistema de dominação. (2011, p. 801, grifos do
autor).
Ainda conforme Mészáros, o mesmo acontece em outros âmbitos da esfera
humana, sob os quais reinam os conflitos de muitas gerações. Independentemente da
condição de desenvolvimento dos países capitalistas, observa-se a negação de
oportunidade de trabalho para milhões de homens. Há ainda a pressão da “aposentadoria
precoce” e a destruição da família, num processo de desumanização cada vez mais
crescente. O capital é incapaz de solucionar suas contradições, uma vez que “(...) as
soluções propostas nem sequer arranham a superfície do problema, sublinhando
novamente que estamos à frente de uma contradição interna insolúvel do próprio
capital” (MÉSZÁROS, 2011, p. 802).
Neste momento, para Mészáros (2011), o que está realmente em jogo é o papel
do trabalho no universo do capital, uma vez que já tendo alcançado o nível mais alto de
produtividade, para resolver as contradições geradas seria necessária uma reviravolta
que afetasse as condições materiais imediatas do trabalho e todas as facetas da vida
social, inclusive as mais íntimas.
Sobre a Grande Depressão de 1929, Mészáros destaca que, não sendo uma
crise global do capital,
forneceu estímulo e pressão necessários para o realinhamento de suas várias
forças constituintes, conforme as relações de poder objetivamente alteradas,
muito contribuindo, desse modo, para o desenvolvimento das tremendas
potencialidades do capital inerentes à sua “totalidade intensiva36”. (2011, p.
806).
De acordo com Mészáros (2011), essa crise teve consequências externa e
interna. Externamente, essa crise significou: uma mudança do imperialismo
multicentrado, ultrapassado, militar e político, perdulariamente intervencionista, para
35 Mészáros refere-se à quantidade de alimentos desperdiçados todos os dias, que poderia alimentar os milhões de
famintos de todo o mundo. 36 Trata-se de um novo dinamismo econômico, no estourar da crise em 1929, como resultado do grande impulso
produtivo recebido durante e após a Primeira Guerra Mundial, muito mais adequado ao deslocamento das
contradições do sistema capitalista do que a estrutura anteriormente predominante.
110
um sistema de dominação global que, sob a hegemonia norte-americana, tornou-se mais
dinâmico e economicamente mais viável e integrável; o estabelecimento de um Sistema
Monetário Internacional e de vários outros órgãos importantes de regulamentação das
relações intercapitalistas, como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional; a
exportação de capital em grande escala, e com ela a situação de dependência dos países
subdesenvolvidos e o crescimento em larga escala das taxas de juros; e por último, a
incorporação relativa, em graus variados, das economias de todos os países ditos
“socialistas” na estrutura de intercâmbio capitalista.
Sob o aspecto interno, a história do êxito do capital, segundo Mészáros (2011),
significou: a utilização de várias formas de intervenção estatal com vistas à expansão do
capital privado; o processo de estatização, no qual ocorre a transferência de indústrias
privadas falidas, mas fundamentais, para o setor público, e a sua utilização para
novamente apoiar as operações do capital privado, através dos fundos estatais; a
implementação e o desenvolvimento de uma economia de “pleno emprego” durante o
período de guerra, incentivada por padrões de consumo supérfluo, mas de grande
sucesso; no plano da economia de consumo, houve a abertura de novos mercados e
ramos de produção, junto com o êxito do capital em criar e manter padrões
extremamente perdulários de consumo, como razão vital da existência de tal economia;
e por fim, o estabelecimento de um imenso “complexo industrial-militar” como
controlador e beneficiário direto da fração mais importante da intervenção estatal.
Apesar do valor intrínseco dessas realizações e de todos os problemas contidos
nelas, não deixou de haver uma autoexpansão dinâmica do capital, a favorecer a
continuidade da sua sobrevivência:
Precisamente por causa da sua importância central nos desenvolvimentos
capitalistas do século 20, a severidade da crise estrutural de hoje é fortemente
realçada pelo fato de várias das características mencionadas acima já não
serem mais verdades, e de as tendências subjacentes apontarem na direção da
sua completa reversão: a tendência a um novo policentrismo (pense-se no
Japão e na Alemanha, por exemplo), com consequências potencialmente
incalculáveis, a um persistente desemprego de massa (e suas implicações
óbvias para a economia de consumo) e à desintegração ameaçadora do
sistema monetário internacional e seus corolários. Seria tolice considerar
permanentes as posições poderosamente fortificadas do complexo industrial-
militar e sua capacidade de extrair e alocar para si mesmo, imperturbado, o
excedente necessário para seu funcionamento contínuo na escala atual, ainda
astronômica. (MÉSZÁROS, 2011, p. 807).
Alguns ideólogos do capital afirmam que, assim como esse sistema conseguiu
resolver seus problemas no passado, também conseguirá no futuro. Como a crise de
1929-33 impôs mudanças dramáticas ao sistema do capital, a crise estrutural também
111
deverá produzir seus próprios remédios, que devem ser duradouros ou soluções
permanentes. Mészáros chama atenção para o perigo de se partir de meras analogias
com o passado, pelo fato de o assunto em questão tratar-se de uma crise estrutural e do
colapso de alguns mecanismos e determinações vitais ao capital, que se manifestam sob
a forma da própria crise de controle e dominação estabelecida. A menos que se possa
demonstrar que “as tendências contemporâneas de desenvolvimento do capital podem
realmente satisfazer a estas condições, toda conversa sobre sua capacidade intrínseca de
sempre resolver seus problemas será apenas um ‘assobiar no escuro’ para afugentar o
medo” (MÉSZÁROS, 2011, p. 807).
De acordo com Mészáros (2011), outra linha de argumentação insiste em
defender que o capital tem à sua disposição uma imensa força repressiva, que pode ser
utilizada livremente para resolver os seus problemas. Para o autor, é inquestionável a
capacidade de destruição e repressão acumulada pelo capital, ao longo do seu
desenvolvimento, junto ao seu aparato de controle político. Em seus estudos, ainda se
refere às características inerentes ao próprio capital, por ser este uma força muito
eficiente em mobilizar complexos recursos produtivos de uma sociedade muito
fragmentada. Entretanto, por mais que haja um sucesso temporário das tentativas
autoritárias de minimizar os efeitos da crise, para adiar ou até mesmo atrasar o
“momento da verdade”, somente podem intensificá-la.
Ainda, segundo Mészáros:
Os problemas estruturais descritos acima equivalem a um importante entrave
no sistema global de produção e distribuição. Dada a sua condição de
entrave, exigem remédios estruturais adequados, e não a sua multiplicação
pelo adiamento e pela repressão forçados. Em outras palavras, estes
problemas requerem uma intervenção positiva no próprio processo produtivo
problemático para enfrentar suas contradições perigosamente crescentes, para
removê-los à medida que o permita o ritmo da reestruturação real.
(MÉSZÁROS, 2011, p. 808).
Na situação atual de crise estrutural, imaginar a possibilidade de encontrar
“remédios duradouros” e “soluções permanentes” para ela torna-se algo muito
problemático. As condições para administrar a crise estrutural do capital estão
diretamente associadas a algumas contradições internas muito importantes que “afetam
tanto os problemas internos dos vários sistemas envolvidos como as relações entre eles”
(MÉSZÁROS, 2011, p. 807).
Esses problemas são classificados em quatro categorias:
(1) As contradições socioeconômicas internas do capital “avançado” que se
manifestam no desenvolvimento cada vez mais desiquilibrado sob o controle
direto ou indireto do “complexo industrial-militar” e do sistema de
112
corporações transnacionais; (2) As contradições sociais, econômicas e
políticas da sociedade pós-capitalista, tanto isoladamente como em sua
relação com as demais, que conduzem à sua desintegração e, desse modo, à
intensificação da crise estrutural do sistema global do capital; (3) As
rivalidades, tensões e contradições crescentes entre os países capitalistas mais
importantes, tanto no interior dos vários sistemas regionais como entre eles,
colocando enorme tensão na estrutura institucional estabelecida (da
Comunidade Europeia ao sistema Monetário Internacional) e fazendo prever
o espectro de uma devastadora guerra comercial; (4) As dificuldades
crescentes de manter o sistema neocolonial de dominação (do Irã à África, do
sudeste Asiático à Ásia Oriental, da América Central à do Sul), ao lado das
contradições geradas dentro dos países “metropolitanos” pelas unidades de
produção estabelecidas e administradas por capitais “expatriados”.
(MÉSZÁROS, 2011, p. 808).
A tendência que se observa não é para a diminuição das contradições existentes
na sociabilidade capitalista, e sim para sua intensificação.
A severidade da crise é acentuada pelo efetivo confinamento da intervenção à
esfera dos efeitos, tornando proibitivo atacar as suas causas, graças à
“circularidade” do capital, mencionada acima, entre Estado político e
sociedade civil, por meio da qual as relações de poder estabelecidas tendem a se reproduzir em todas as suas transformações superficiais. (MÉSZÁROS,
2011, p. 808-9).
Nesse sentido, Mészáros conclui que:
Se a condição para solucionar a crise estrutural estiver associada à solução
dos quatro conjuntos de contradições mencionados acima, do ponto de vista
da contínua expansão global e da dominação do capital, a perspectiva de um
resultado positivo está longe de ser promissora. Pois é muito remota a
possibilidade de sucesso até mesmo dos objetivos relativamente limitados,
para não mencionar a solução duradoura das contradições de todas as quatro
categorias em conjunto. O mais provável é, ao contrário, continuarmos
afundados cada vez mais na crise estrutural, mesmo que ocorram alguns
sucessos conjunturais, como aqueles resultantes de uma relativa “reversão
positiva”, no devido tempo, de determinantes meramente cíclicos de crise
atual do capital. (2011, p. 810).
Diante do exposto, foi possível compreender sistematicamente as
determinações da crise estrutural como um desdobramento da própria estrutura
contraditória do sistema do capital, da sua natureza e de seus limites. Todas as propostas
de solução para a crise estrutural do capital dentro desse sistema fracassaram. Isso se
deve, segundo a análise realizada por Mészáros (2011), por dois importantes motivos:
primeiro, porque não há como eliminar a relação antagônica e irreconciliável entre
capital e o trabalho; e em consequência disto, pelo fato de todas as esferas da vida
humana ou regiões do planeta já estarem incorporadas às leis da lógica exploradora do
capital sobre o trabalho. Assim, a superação dos graves problemas atuais somente se
torna possível com a destruição das condições objetivas existentes nesta forma de
sociabilidade.
113
Baseado nas reflexões até aqui apresentadas, sobre a crise estrutural do capital
e suas determinações, agora, busca-se a partir de agora entender como se processaram
as mudanças econômicas, políticas e sociais advindas das tentativas do sistema de
controle sociometabólico do capital no sentido de conter os efeitos dessa crise, por meio
da reestruturação produtiva, do processo de financeirização do capital e do ajuste
neoliberal na sociedade contemporânea.
4.3 Neoliberalismo: as estratégias do capital em face da crise estrutural
Nos itens anteriores, foi possível observar a relação do ciclo de crises do
capital com as mudanças operadas na forma de intervenção do Estado. Analisaram-se
também, com base nas contribuições de Mészáros (2011), a crise estrutural do capital e
suas determinações como um fenômeno que tem causado grandes transformações no
mundo da produção e na relação capital. Agora, dando continuidade a este estudo,
busca-se compreender como se processou as modificações econômicas, políticas e
sociais derivadas das tentativas do capital para reverter os efeitos da crise estrutural.
Tais ações desenvolvidas pelo grande capital, auxiliado pelo Estado, vão atuar de forma
decisiva na implementação das medidas neoliberais.
O neoliberalismo surge após a Segunda Guerra Mundial, como uma reação
teórica ao Estado intervencionista e de “bem-estar” social, baseado nas premissas do
economista austríaco Frederich Hayek (1899-1992). Naquela circunstância histórica, as
ideias neoliberais tinham sido rejeitadas devido ao “sucesso” das medidas keynesianas.
Somente com a crise econômica de 1970 essas teses puderam retornar ao debate teórico
como um movimento da classe dominante que visa retirar o capitalismo da crise e criar
as condições necessárias para a retomada da taxa de lucratividade do capital.
O novo conjunto de medidas adotadas age de forma diferenciada, a depender
dos interesses de classe que busca defender. De um lado, observa-se a utilização de uma
série de medidas visando à recuperação do lucro dos capitalistas; de outro, a
incorporação de medidas restritivas e autoritárias sobre a classe trabalhadora, que têm
resultado na degradação da vida e do trabalho humano.
De acordo com Behring (2002), a crise global demarca um momento de
inflexão na atitude da classe dominante. A necessidade de uma nova etapa no
desenvolvimento do sistema do capital, em crise pelo esgotamento do padrão de
114
acumulação que se mantinha desde 1940, exige alternativas político-econômicas que
tenham por objetivo a retomada do crescimento econômico. Trata-se de um processo de
reação burguesa à crise estrutural do capital, marcado: pela refuncionalização do
Estado burguês; por uma revolução tecnológica e organizacional de produção,
denominada reestruturação produtiva; pela globalização da economia, com a
financeirização do capital; e pelo ajuste neoliberal. Esses movimentos implicaram uma
nova dinâmica para as políticas econômicas e industriais dos Estados nacionais e
possibilitaram um novo padrão da relação do Estado para com a sociedade civil.
Segundo Netto & Braz, o aprofundamento da crise econômica do capital, que
“na transição da década de sessenta à de setenta, pôs fim aos ‘anos dourados’, levou o
capital monopolista a um conjunto articulado de respostas que transformou largamente
o cenário mundial: mudanças econômicas, sociais, políticas e culturais” que estão em
processo até hoje, com fortes impactos sobre os Estados e nações de todo mundo, por
causa da taxa de lucros do capital em queda. Todas essas transformações decorrem da
própria relação de concorrência entre os capitalistas, e também da própria necessidade
de controlar as lutas sociais oriundas da relação de exploração do trabalho, o que acaba
produzindo as respostas do capital à sua crise estrutural (NETTO; BRAZ, 2010, p. 211).
Dessa forma, a reestruturação produtiva foi marcada por modificações
importantes no mundo da produção e nas condições de trabalho e, consequentemente, de
sua reprodução, a partir da generalização do modelo japonês, o toyotismo, também
chamado de produção flexível, que na sua composição altera “o padrão rígido fordista da
linha de montagem, da produção em massa para um consumo de massa”.
Nessa nova forma de organização produtiva, segundo Behring, forja-se
uma articulação entre descentralização produtiva e avanço tecnológico. Há
também uma combinação entre trabalho extremamente qualificado e
desqualificação. Contrapondo-se à verticalização fordista, a produção flexível
é horizontalizada/descentralizada. Trata-se de terceirizar e subcontratar uma
rede de pequenas/médias empresas, muitas vezes com perfil semiartesanal e
familiar. (2002, p. 178).
O novo padrão de acumulação do capital é conduzido pela demanda e
sustentado por uma produção de estoque mínimo. Nele, os trabalhadores passam a ser
multifuncionais ou polivalentes na operação de uma grande quantidade de máquinas
automatizadas, introduzidos num processo de trabalho intensificado que restringe ainda
mais a porosidade do trabalho (BEHRING, 2002). A acumulação flexível também
conduz a alterações significativas nas condições de trabalho, por se apoiar, segundo
Harvey, “na flexibilidade dos processos de trabalho, dos mercados de trabalho, dos
115
produtos e padrões de consumo”, com o surgimento de “setores de produção
inteiramente novos, novas maneiras de fortalecimento de serviços financeiros, novos
mercados e, sobretudo, taxas altamente intensificadas da inovação comercial,
tecnológica e organizacional do trabalho” (HARVEY, 1992, p. 140).
Segundo Netto & Braz, a restruturação produtiva corresponde à base dessa
flexibilidade. Por um lado, a produção rígida do passado, realizada em grande escala e
própria do taylorismo-fordismo, passa agora a ser flexibilizada e destinada a mercados
específicos, procurando romper com a “estandardização”, de forma a atender às
diversidades culturais e regionais e voltando-se às particularidades do consumo; por
outro lado, “o capital lança-se a um movimento de desconcentração industrial: promove
a desterritorialização da produção”, ou seja, as unidades produtivas são transferidas
para outros espaços territoriais do mundo, principalmente nos países subdesenvolvidos,
onde se observa uma exploração mais intensa da força de trabalho, seja pelo baixo preço
dos salários, seja pela fragilidade das legislações trabalhistas locais. Essa
desterritorialização aumenta ainda mais “o caráter desigual e combinado da dinâmica
capitalista” (NETTO; BRAZ, 2010, p. 216, grifos dos autores).
A reestruturação produtiva é baseada numa “(...) intensiva incorporação à
produção de tecnologias resultantes de avanços técnico-científicos”, que visam reduzir
a demanda de trabalho vivo (NETTO; BRAZ, 2010, p. 216, grifos dos autores). Os
efeitos que a produção toyotista tem causado à força de trabalho são devastadores,
caracterizando-se, segundo Antunes, como “um processo de heterogeneização,
fragmentação e complexificação da classe trabalhadora”, e por Mattoso, como
fenômenos do “aprofundamento do desemprego estrutural, da rápida construção e
desconstrução de habilidades, da perda salarial e do retrocesso da luta sindical”. Dessa
forma, entende-se que as mudanças processadas no mundo da produção e do trabalho e,
ao mesmo tempo, a insegurança em manter o emprego revelam a tentativa do grande
capital em aumentar a produtividade do trabalho, na busca de recuperar o seu padrão
anterior de desenvolvimento expansionista (ANTUNES & MATTOSO apud
BEHRING, 2002, p. 179, grifos dos autores).
O toyotismo enquanto padrão de produção caracterizou-se pela racionalização
do processo produtivo, baseado num forte disciplinamento da força de trabalho e
estimulado pela necessidade de implantar formas de trabalho mais intensivas. As
funções realizadas antes pela gerência científica passaram agora a ser incorporadas às
atividades dos trabalhadores, mediante o trabalho em equipe, na transferência de
116
responsabilidades de elaboração e controle da qualidade da produção. A exploração do
trabalho se expande pelo fato de os operários trabalharem simultaneamente com várias
máquinas diversificadas, e também pelo ritmo e pela velocidade da cadeia produtiva.
Assim, o padrão de produção e acumulação toyotista reinaugura um novo patamar de
intensificação e exploração da força de trabalho, na articulação das formas relativa e
absoluta da extração da mais-valia.
Como se pode perceber, e de acordo com Behring (2002), esses processos têm
abalado expressivamente as condições de vida e de trabalho da classe trabalhadora e
vêm causando mudanças significativas nas formas de sua organização política, com a
diminuição do poder de reivindicação dos sindicatos e de organização e mobilização dos
trabalhadores. Trata-se de uma expressão direta da dificuldade de se estabelecer um
contato mais próximo dos sindicatos e da classe trabalhadora, na busca de alianças entre
os setores representativos e aqueles trabalhadores precarizados, subcontratados, e
também os desempregados, o que enfraquece a luta dos trabalhadores e sua resistência
ao processo de reestruturação produtiva do sistema do capital.
Ao lado das mudanças operadas pelo padrão de acumulação toyotista, ocorre o
processo que alguns analistas designam como financeirização do capital. Trata-se,
segundo Husson, da formação de um mercado mundial unificado, através das
transnacionais, na padronização da forma de produção e distribuição de produtos e
serviços, incluindo uma redefinição das especialidades no mercado global. Um processo
que vem sendo intensificado pela revolução tecnológica, com a horizontalização das
empresas e sua ligação pela rede de informática, e também, pelo neoliberalismo, com o
afastamento dos obstáculos legais e políticos que impedem a circulação das mercadorias
e do dinheiro (HUSSON apud BEHRING, 2002).
Para Netto & Braz, os fluxos econômicos mundiais sempre fizeram parte do
capitalismo, mas a fase monopolista do capital acentuou-os ainda mais. No cenário
atual, “eles se apresentam com particularidades que não decorrem apenas da sua grande
expansão”, como, por exemplo, as interações comerciais, que “hoje são muito mais
significativas entre os países centrais do que entre os centros e as periferias” (NETTO;
BRAZ, 2010, p. 229).
Conforme Harvey, citado pelos referidos autores, o processo de
financeirização do capital vem crescendo desde 1973, com seu estilo especulativo e
predatório. As características centrais desse movimento no capitalismo contemporâneo
são:
117
Valorizações fraudulentas de ações, falsos esquemas de enriquecimento
imediato, a destruição estruturada de ativos por meio da inflação, a
dilapidação de ativos mediante fusões e aquisições e a promoção de níveis de
encargos de dívidas que reduzem populações inteiras, mesmo nos países
capitalistas avançados, a prisioneiros da dívida, para não dizer nada das
fraudes corporativas e do desvio de fundos (...) decorrentes de manipulações
do crédito e das ações. (HARVEY apud NETTO; BRAZ, 2010, p. 230).
Por meio dos recursos informacionais, o processo de financeirização do capital
teve suporte na gigantesca concentração do sistema bancário e financeiro que, no curso
das três últimas décadas do século XX, acompanhou o processo de acumulação geral
operado na economia capitalista, rumo à monopolização do sistema financeiro. Netto &
Braz destacam que “a razão essencial da financeirização é outra: ela resulta da
superacumulação e, ainda, da queda das taxas de lucro dos investimentos industriais
registrada entre os anos setenta e meados dos oitenta”. É que “o capitalismo é um
sistema econômico que prefere não produzir em vez de produzir sem lucro” (NETTO;
BRAZ, 2010, p. 231).
Dessa forma, as finanças passaram a constituir, nas últimas décadas do século
XX, o “sistema nervoso” do capitalismo. Nela encontram-se a instabilidade e os
desequilíbrios da economia dessa fase do estágio imperialista. No marco da
financeirização foi possível ao capital aumentar o poder dos países centrais em
detrimento dos países subdesenvolvidos, através da dívida externa contraída por esses
países, com propostas de “ajustes” em suas economias, por meio das “reformas”
recomendadas e monitoradas pelas agências internacionais, pelo Fundo Monetário
Internacional (FMI) e pelo Banco Mundial (BM), que representam os interesses da
“oligarquia das finanças”. Netto & Braz constatam que “os países dependentes e
periféricos tornaram-se exportadores de capital para os países centrais” (NETTO;
BRAZ, 2010, p. 235, grifo dos autores).
Como uma das tentativas de solução da crise econômica global, o capital passa
a desenvolver a proposta neoliberal, que para Netto se direciona no sentido da regressão
que aponta para a barbarização em larga escala da vida social. O neoliberalismo surge
nos países de capitalismo central e considera o intervencionismo do Estado do passado
um impedimento ao livre desenvolvimento da economia de mercado. A ofensiva
neoliberal encontra apoio nesse movimento, que tem como essência “uma
argumentação teórica que restaura o mercado como instância mediadora societal
elementar e insuperável e uma proposição política que repõe o Estado mínimo como
única alternativa e forma para a democracia” (NETTO, 2007, p. 77, grifo do autor).
118
De acordo com Netto & Braz, o que se denomina ideologia neoliberal
compreende “uma concepção de homem (considerado atomisticamente como
possessivo, competitivo e calculista), uma concepção de sociedade (tomada como um
agregado fortuito, meio de o indivíduo realizar seus propósitos privados)”, tudo isso
fundado na ideia de uma desigualdade necessária e natural entre os homens e numa
noção de liberdade como liberdade de mercado. O grande capital fomentou e patrocinou
um conjunto de teses conservadoras que se difundiu na sociedade contemporânea sob a
designação de neoliberalismo para legitimar o projeto do capital monopolista de romper
com as restrições sociopolíticas que limitavam a sua liberdade de movimento (NETTO;
BRAZ, 2010, p. 226).
Teixeira afirma que o neoliberalismo surge na sociedade como “uma reação
teórica e política ao modelo de desenvolvimento centrado na intervenção do Estado, que
passou a se constituir, desde então, na principal força estruturadora do processo de
acumulação de capital e de desenvolvimento social”. Os seus defensores consideram
essa intervenção como a principal causa da crise atual do sistema capitalista, passando a
atacar qualquer limitação dos mecanismos de mercado por parte do Estado e apontando
essa restrição como um ataque fatal à liberdade política e econômica.
Nessa direção, observa-se um retorno à tese do liberalismo clássico de que “o
mercado é a única instituição capaz de coordenar racionalmente quaisquer problemas
sociais, sejam eles de natureza puramente econômica ou política”. Dessa forma, a
preocupação da perspectiva neoliberal está em revelar o mercado como um mecanismo
insuperável na estruturação e coordenação das decisões de produção e investimentos
sociais, e também como um organismo indispensável para solucionar o problema do
desemprego e da distribuição de renda na sociedade (TEXEIRA, 1998, p. 195).
Por sua vez, Behring & Boschetti acrescentam que para os representantes do
pensamento neoliberal, a longa e profunda recessão da década de 1970 resultava do
“poder excessivo e nefasto dos sindicatos e do movimento operário, que corroeram as
bases da acumulação, e do aumento dos gastos sociais do Estado, o que desencadearia
processos inflacionários”. Outro argumento é que “a intervenção estatal na regulação
das relações de trabalho também é negativa, pois impede o crescimento econômico e a
criação de emprego”.
Os neoliberais defendem a ideia de que para retirar a sociedade da crise na qual
se encontra é necessário diminuir a intervenção estatal de forma a priorizar a
estabilidade financeira do mercado, “o que só seria assegurado mediante a contenção
119
dos gastos sociais e a manutenção de uma taxa ‘natural’ de desemprego, associada a
reformas fiscais, com redução de impostos para os altos rendimentos”. Tudo em nome
da livre mobilidade de mercado, tendo em vista a recuperação do processo de
acumulação e expansão do sistema capitalista (BEHRING; BOSCHETTI, 2011, p. 126).
A defesa de um mercado livre, na perspectiva neoliberal, remete a sua
eficiência em termos de inovação e crescimento econômico, porquanto a intervenção
estatal é enfrentada como algo negativo, pois faz com que “a rede de informações do
sistema de preços emita sinais enganadores, além de reduzir o escopo da
experimentação econômica” (NETTO, 2007, p. 79). Nesse sentido, para os seus
representantes, o mercado é quem determina o espaço legítimo do Estado, ou seja, as
funções do Estado apenas se limitam a promover uma estrutura compatível com o livre
desenvolvimento do mercado e a ofertar serviços que o mercado não pode fornecer.
Netto identifica o objetivo das medidas restritivas neoliberais e esclarece que:
“o que desejam e pretendem, em face da crise contemporânea da ordem do capital, é
erradicar mecanismos reguladores que contenham qualquer componente democrático
de controle do movimento do capital”. Em outras palavras, “o que desejam e pretendem
não é ‘reduzir a intervenção do Estado’, mas encontrar as condições adequadas (hoje
só possíveis com o estreitamento das instituições democráticas) para direcioná-las
segundo seus interesses de classe” (NETTO, 2007, p. 81, grifos do autor).
De acordo com Netto & Braz, a recessão generalizada da década de 1970
exigia do capital monopolista a implementação de estratégias políticas globais para
reverter a conjuntura que lhe era desfavorável. A primeira estratégia apontada pelos
autores foi o ataque ao movimento sindical, sendo este “um dos suportes do sistema de
regulação social encarnado nos vários tipos de Welfare State”, no momento em que “o
capital atribui[a] às conquistas do movimento sindical a responsabilidade pelos gastos
públicos com as garantias sociais e a queda das taxas de lucro às suas demandas
salariais”. Esse ataque se processou por meio de medidas legais restritivas, que tendem
a reduzir o poder de organização e intervenção do movimento sindical dos trabalhadores
(NETTO; BRAZ, 2010, p. 215).
Nesse momento, a hegemonia neoliberal toma formas claramente repressivas,
de que são exemplos as ações desenvolvidas pelos governos Thatcher (Inglaterra, 1979)
e Reagan (EUA, 1980). Além destes, os governos Khol (Alemanha, 1982) e Schlutter
(Dinamarca, 1983) também se destacaram. Contudo, a política neoliberal não se limitou
apenas a esses países, mas se estendeu a quase todos os governos eleitos na Europa
120
ocidental na década de 1980, que passaram a implementar programas seguindo suas
diretivas. Observa-se que todas as medidas restritivas tomadas nesses países não foram
capazes de solucionar a crise do sistema do capital nem alteraram os índices de recessão
e baixo crescimento econômico, conforme defendiam muitos autores.
Contudo, as medidas adotadas tiveram efeitos destrutivos e mudaram
significativamente as condições de vida dos trabalhadores, provocando o aumento do
desemprego, a destruição de postos de trabalho não qualificados, a redução dos salários
devido ao aumento da oferta de força de trabalho e a redução de gastos com políticas
públicas. Tais medidas concentraram-se na desregulamentação dos mercados, na
abertura comercial e financeira, na privatização do setor público e na redução do Estado
na área social (BEHRING; BOSCHETTI, 2011, p. 126).
O ajuste neoliberal também atingiu os países subdesenvolvidos. Na América
Latina, os efeitos da crise capitalista e o crescimento da dívida externa levaram à
implementação de reformas estruturais “recomendadas” pelo BM e pelo FMI, através do
Consenso de Washington37, e aceitas em quase todos os países como condição imposta
para a concessão de empréstimos aos países periféricos, baseadas na desregulamentação
dos mercados, na abertura comercial e financeira, na privatização do setor público e na
significativa redução da atuação do Estado na área social. Além disso, o plano
neoliberal propôs a elevação dos juros, a liberalização do mercado interno e a
dolarização das economias, com o objetivo de restabelecer a balança de pagamentos
(pagamento de dívida externa e importações) e controlar a inflação através de medidas
restritivas (MONTAÑO; DURIGUETTO, 2010, grifos dos autores).
Para Behring & Boschetti (2011), a reação burguesa à grande crise global do
capital desencadeou novas formas de pressões para uma reconfiguração do papel do
Estado capitalista nos anos 1980 e 1990, o que refletiu diretamente na forma de atuação
do Estado na área social, evidenciando que a crise estrutural apagou a ilusão de que as
crises capitalistas poderiam ser controladas por meio do intervencionismo estatal de tipo
keynesiano. Foi assim que, “diante das dificuldades de conter a espiral da crise, a
depender da opção política e social dos governos, iniciou-se a implementação de
37 Trata-se de um encontro convocado pelo Institute for Internacional Economics na capital dos Estados
Unidos, em 1989, entre os organismos de financiamento internacional de Bretton Woods – Fundo
Monetário Internacional, Banco Interamericano de Desenvolvimento e o Banco Mundial – e os
funcionários do governo norte-americano e economistas e governantes latino-americanos. Teve o objetivo
de avaliar as reformas econômicas da América Latina, fundadas na proposta neoliberal. A partir desse
evento o FMI e o BM passaram a orientar as políticas econômicas adotadas pelos Estados latino-
americanos mediante a adoção de programas de estabilização e de ajuste fiscal. (MONTAÑO;
DURIGUETTO, 2010).
121
programas de austeridade de natureza deflacionista, os chamados ajustes estruturais”
(BEHRING & BOSCHETTI, 2011, p. 116).
A nova configuração do Estado surge na sociedade contemporânea articulada à
defesa de que essa instituição estaria passando por um processo de “reforma”. Tal
reforma tem por objetivo a negação de diversas conquistas (econômicas, políticas,
sociais e trabalhistas) obtidas ao longo do século XX. Assim, no lugar de uma “reforma
do Estado”, estar-se-ia vivenciando um verdadeiro movimento de “(contra)reforma do
Estado” moderno em todas as áreas de atuação.
De acordo com Montaño & Duriguetto (2010), o processo de “(contra)reforma
do Estado” tem como fundamento a crise estrutural do capitalismo e as respostas
neoliberais apresentadas pelo grande capital como saída para essa crise. Durante a fase
de pleno desenvolvimento econômico, desfruta-se de algumas conquistas na área social,
através da atuação do Estado, o que para muitos estudiosos caracterizou uma sociedade
de “abundância”, entre a década de 1940-1970.
No novo cenário social mundial de crise estrutural estaria ocorrendo um
processo contrário, o da “escassez” dos recursos estatais:
Se na sociedade da abundância o objetivo é o estímulo ao consumo, à
procura, passando o Estado (keynesiano) a intervir no fomento à demanda
efetiva, à circulação das mercadorias, ao consumo estatal; contrariamente, na
sociedade da escassez, a questão remete ao corte de “gastos supérfluos”,
particularmente os gastos com a força de trabalho e os gastos sociais do
Estado. (MONTAÑO; DURIGUETTO, 2010, p. 203).
Dessa forma, “a escassez levaria a uma crise fiscal do Estado, em que os gastos
superam as receitas, gerando déficit estatal, o que acaba por ser combatido, inicialmente
com inflação permanente, depois com os cortes orçamentários” no setor público. Como
decorrência desse movimento, a capacidade de intervenção do Estado na área social
passa a ser drasticamente reduzida, pois no neoliberalismo, contrariamente ao período
keynesiano, propõe-se
o fortalecimento da oferta, reduzindo os custo de produção, praticamente
com a diminuição do valor da força de trabalho (precarizando salários,
direitos trabalhistas e serviços e políticas sociais estatais); aqui, a ênfase não
está na ampliação da capacidade de consumo (para a produção em massa),
mas na diminuição dos custos e na flexibilização da produção (no contexto de
crise), e é esse o motivo pelo qual a orientação neoliberal recai na defesa da
“liberdade” do mercado e da não participação (social) do Estado.
(MONTAÑO; DURIGUETTO, 2010, p. 204).
Contudo, nesse contexto a ideia de um “Estado mínimo” não remete àquela do
liberalismo, em que o Estado apenas é um “guarda” da propriedade privada. Se, por um
lado, a chamada crise fiscal do Estado passa a constituir uma determinação essencial
122
sobre as mudanças apresentadas pelo Estado na conjuntura neoliberal, por outro lado,
conforme sustenta Chesnais, a partir de 1978,
a burguesia mundial (...) empreendeu em proveito próprio (...) a modificação
internacional (...) das relações políticas entre as classes. Começou então a
desmantelar as instituições e estatutos que materializavam o estado anterior
das relações. As políticas de liberalização, desregulamentação e privatização
(...) devolveram ao capital a liberdade que havia perdido desde 1914, para
mover-se e desdobrar-se à vontade no plano internacional. (CHESNAIS apud
MONTAÑO; DURIGUETTO, 2010, p. 204-205).
Nesse sentido, o processo de “(contra)reforma do Estado” se expressa nos
“ajustes estruturais” de base monetarista e neoliberal, que se processam após a década
de 1970 nos planos econômico, politico e social dos Estados nacionais, por meio das
pressões exercidas pelas instituições financeiras internacionais. Foram exigências
estabelecidas pelo grande capital internacional como condição para os países receberem
os empréstimos e os investimentos das multinacionais. Adequar-se a esses “ajustes” era
uma necessidade para a inserção de um país na dinâmica capitalista contemporânea
(MONTAÑO; DURIGUETTO, 2010).
Para tanto, conforme Montaño & Duriguetto, a principal função econômica
desenvolvida pelo Estado passou a ser garantir as condições favoráveis aos
investimentos internacionais, tais como: a) a segurança das instituições, relacionada à
estabilidade do cenário político do país que recebe o investimento; b) a infraestrutura,
custeada pelos Estados nacionais com dinheiro público; c) a privatização e a
desnacionalização de empresas públicas, que significa a transferência das empresas
públicas para o setor privado transnacional; d) a redução e a restrição dos gastos
públicos sociais, que implica o corte dos gastos relacionados à área social, privatizando-
se a saúde, a assistência, a previdência social, a educação etc.; e) a desregulamentação
das relações de trabalho, com a diminuição dos salários e direitos trabalhistas, e a
flexibilização do trabalho; f) e a desobrigação, desoneração e remuneração do capital
especulativo, com base em incentivos fiscais e no crescimento das taxas de lucros do
capital financeiro do país (MONTAÑO; DURIGUETTO, 2010, p. 205-206).
O período keynesiano teve como orientação principal o desenvolvimento da
intervenção estatal na área social. O atendimento das demandas sociais foi concebido
devido à condição de expansão econômica do capital e da pressão reivindicativa da
classe trabalhadora. Para os neoliberais, a causa da suposta inflação deveu-se às
demandas dos trabalhadores, produzindo a crise fiscal do Estado. Combater a inflação
requeria mudanças nos custos de reprodução da força de trabalho. Esse argumento
123
neoliberal sobre o corte dos gastos sociais apenas esconde os reais interesses por trás da
redução do custo do trabalho. A verdadeira explicação para a crise fiscal do Estado
reside “na reorientação do fundo público para as demandas do empresariado, combinada
à queda da receita engendrada pelo ciclo depressivo e à diminuição da taxação sobre o
capital” (MONTAÑO; DURIGUETTO, 2010, p. 208).
Traduzindo esse movimento, o Estado antes estava mais voltado às demandas
na área de proteção social, por causa da necessidade econômica de um maior consumo,
visando à ampliação da taxa de lucratividade do capital; com o aprofundamento da
crise, quando a tendência dominante se direciona ao controle das políticas monetárias e
fiscais, o Estado é redimensionado e passa a intervir mais diretamente na área
econômica, com medidas claramente protecionistas diante do agravamento das
condições materiais de reprodução do capital.
Portanto, na conjuntura neoliberal de liberalização do mercado e de
“(contra)reforma do Estado”, na recomposição da hegemonia capitalista, o Estado
assume uma nova forma, compatível com as estratégias atuais de acumulação do capital
e sob a orientação do comando financeiro.
Na conjuntura neoliberal, parece claro que o Estado continua a cumprir a sua
função social de garantidor das condições necessárias de produção e reprodução do
sistema do capital, ao facilitar o fluxo global de mercadorias e dinheiro através da
desregulamentação de direitos sociais, de garantias fiscais ao capital, do processo de
privatização e da viabilização dos superlucros capitalistas. A ideologia neoliberal foi
sustentada na necessidade de legitimar o projeto do capital monopolista de superar as
restrições sociais e políticas que limitam a sua liberdade de mercado.
Entretanto, “os representantes dos monopólios sabem que a economia
capitalista não pode funcionar sem a intervenção estatal”. O capital continua a
demandar a intervenção do Estado pelo simples fato de que ele não existe sem o Estado,
como aparato de comando político, que o auxilia em seu processo de autorreprodução
de valor. Na verdade, o objetivo real do grande capital não é diminuir a intervenção do
Estado, mas restringir as suas “funções estatais coesivas”, precisamente aquelas que
respondem às demandas direcionadas à satisfação dos direitos sociais (NETTO; BRAZ,
2010, p. 227).
O ataque do grande capital às dimensões democráticas da intervenção do
Estado começou tendo como alvo a regulamentação das relações de trabalho, mediante
o processo de flexibilização, e avançou na direção da redução, mutilação e privatização
124
dos sistemas de seguridade social. Em seguida, estendeu-se à intervenção do Estado na
economia, através da imposição das “reformas” que privatizaram complexos industriais
inteiros e serviços de primeira necessidade (como distribuição de energia, transportes,
saneamento básico etc.).
Assim, o processo de privatização permitiu a abertura de espaços de produção
para setores monopolistas intervirem e lucrarem. A transferência dessa monumental
riqueza social, construída através dos recursos gerados pela massa de trabalhadores,
para o grupo monopolista, ocorreu nos países de capitalismo central, mas
principalmente nos países periféricos (NETTO; BRAZ, 2010).
No curso do desenvolvimento capitalista, o Estado tem por finalidade sustentar
uma ação coercitiva que visa realizar os objetivos de acumulação e de expansão do
capital, independentemente dos mecanismos e formas de atuação utilizadas, ainda que
aparentem ser contraditórios. Como visto, não deixam nenhuma possibilidade para que
se coloquem os interesses dos trabalhadores acima dos interesses dos capitalistas. No
contexto de crise estrutural do capital, não poderia ser diferente; o Estado passa a
atender às necessidades desse sistema em crise através de um conjunto de medidas
neoliberais de caráter restritivo e autoritário conforme as exigências postas para a
restauração da normalidade do crescimento econômico.
As aparentes alterações na forma do Estado nesse processo de substituição da
orientação keynesiana para a hegemonia neoliberal estabelecem uma continuidade à sua
atuação sempre fundamental e presente no auxílio e proteção da reprodução expansiva
do capital. Esta se torna cada vez mais importante, passando a se comprometer com a
sustentação de atividades diretas no setor de produção e circulação, numa colaboração
muito mais intervencionista do que no período anterior.
Nessa direção, cabe destacar aqui a ilusão daqueles que acreditam e orientam
suas ações contrárias ao processo de continuidade do neoliberalismo, na esperança de
um retorno imediato em benefício dos trabalhadores, com a retomada do
keynesianismo. E também daqueles que pensam que a solução para todos os problemas
da humanidade consiste na alteração da função do Estado, ao utilizá-lo como meio
facilitador das lutas e conquistas nas áreas sociais.
A história do século XIX até os dias atuais tem demonstrado a falência de todas
as tentativas realizadas para uma distribuição mais igualitária da riqueza produzida, e
como ao longo dos séculos as desigualdades sociais não só não diminuíram na
sociedade, como também se tornaram cada vez mais amplas e profundas. Se durante o
125
desenvolvimento expansionista do capital, este pode conceder algumas conquistas à
classe trabalhadora, a partir da década de 1970, com a imposição da crise estrutural, isso
já não é mais viável. Pois o capitalismo, ao tempo que busca de todas as formas a
recuperação da sua taxa de lucratividade, produz miséria, pobreza e muita destruição em
todos os níveis, numa proporção nunca antes vista na história da humanidade.
Como visto com base em Mészáros (2011), a atual crise é uma crise de caráter
estrutural, e também geral das instituições capitalistas de controle social na sua
totalidade; por isso o capital está a atingir seus limites estruturais absolutos. Ademais,
todas as transformações promovidas pelo sistema capitalista, com o auxílio do Estado,
na busca da recuperação do seu patamar de crescimento econômico não resolvem os
problemas para a retomada de sua taxa de lucratividade, mas tão só contribuem para o
seu agravamento.
126
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A análise aqui apresentada sobre o Estado, com base em Marx, Engels e
Mészáros, e as várias formas de sua atuação durante o desenvolvimento do capitalismo
monopolista – no keynesianismo e no neoliberalismo –, em benefício do sistema do
capital e suas personificações, buscam recuperar sua função social como esfera de
dominação, legitimação e de conservação do poder material do capital na ordem social
constituída. Para entender como o Estado contribui para o controle sociometabólico do
capital, busca-se apreender a relação entre política e economia, ou seja, a relação entre
capital e Estado.
Primeiramente, analisam-se os fundamentos sócio-históricos do Estado.
Percebe-se que sua gênese esta intimamente relacionada à base material de reprodução
social, quando, no momento do surgimento do excedente produtivo e da propriedade
privada, houve a possibilidade da exploração do homem pelo homem, e
consequentemente, a divisão da sociedade em classes sociais completamente opostas
entre si. De acordo com Engels (1997) em suas teses sobre o Estado, entende-se que o
Estado não pode corresponder à função de um poder mediador (situado
“aparentemente” acima dos interesses das classes sociais), conforme pensado pelos
liberais, pois ele é sempre o Estado da classe mais poderosa, a classe economicamente
dominante, e que por intermédio dele tornou-se também a classe politicamente
dominante. Assim, o Estado se converte numa força de comando político para organizar
e administrar a sociedade de classes no seu processo de reprodução social.
Na passagem de uma forma de sociabilidade para outra, a exemplo do que
aconteceu na transição do feudalismo para o capitalismo, verifica-se que o Estado
mantém seus fundamentos ontológicos enquanto representante da classe mais poderosa,
a classe burguesa, e continua a auxiliar na administração e na manutenção da
reprodução material. As novas condições materiais deram origem a outras relações
sociais e, em função destas, foi exigida uma nova filosofia, uma nova concepção de
política e economia. Para tanto, o Estado teve de abandonar a sua forma absolutista, do
feudalismo, e passou a se constituir em sua forma moderna liberal, para melhor atender
às demandas reprodutivas da nova ordem de dominação social. Segundo Laski (1973), o
sistema do capital inicialmente transformou a sociedade em todas as esferas, para
127
somente depois capturar o Estado, e desse modo ter em suas mãos o supremo poder
coercitivo da sociedade, utilizando-o de acordo com suas próprias finalidades.
Com as contribuições de Mészáros (2011) sobre a reprodução do sistema do
capital e a constituição do Estado moderno, constatou-se que o capital não se trata de
uma “entidade material”, tampouco de uma estrutura social racionalmente controlável,
pois sua atividade produtiva não tem como objetivo a satisfação das necessidades
humanas, mas sim a produção de lucros, e por isso sua atividade é orientada pela
expansão e movida pela acumulação constante de capital. Assim, o capital, no seu
processo de desenvolvimento histórico, constitui um sistema que detém em suas mãos
um poder totalizador que a tudo domina, em todas as esferas da sociedade, sejam elas
sociais, políticas, econômicas ou ideológicas, transformando-se no mais eficiente modo
de produção de extração de trabalho excedente e controlando todos os espaços da
existência humana.
Na condição de sociedade dividida em classes sociais antagônicas, a forma de
organização social capitalista também exige um poder para regular as relações sociais;
segundo Mészáros (2011), uma “estrutura de comando singular”, o Estado. Este passa a
complementar o poder de controle do capital de forma indispensável, não apenas
servindo-o de forma pontual, mas atuando nos aspectos essenciais para o
desenvolvimento desse sistema sociometabólico. Nessa relação de complementaridade à
base material do capital, o Estado não apenas auxilia na esfera jurídico-legal, mas
também intervém nas relações materiais de produção e reprodução social do sistema
capitalista. Assim, com base em Marx e Engels, e nas reflexões de Mészáros, o Estado é
o “comitê executivo da classe dominante”; enquanto esfera de comando político do
capital, ele exerce sua função de acordo com as demandas da classe capitalista.
Entende-se que não é através da estrutura de comando político do Estado que
se pode comandar o sistema do capital, como defendem muitos autores, pelo fato de que
o Estado não tem como impor limites ao capital, porquanto não possui autonomia em
relação à estrutura econômica do capital, por ser o capital quem orienta a sua forma de
atuação. Dessa forma, o Estado moderno funciona como um comando político
inseparável do capital, dada a necessidade deste de um poder abrangente para manter
em ordem a concorrência entre capitalistas e para administrar as relações antagônicas de
classe.
Ainda segundo Mészáros (2011), os defeitos estruturais do capital, causados
pela “ausência de unidade” de controle deste, geram contradições e provocam a
128
desestabilização do sistema, através da separação entre: produção e controle; produção
e consumo; e produção e circulação, o que acarreta crises na sociedade capitalista.
Nesse processo, a intervenção remediadora do Estado, com o objetivo de assegurar o
funcionamento do sistema do capital, revela-se de forma mais explícita nos mecanismos
utilizados em sua atuação corretiva sobre os defeitos estruturais do capital.
A partir do pressuposto de que o Estado não modifica sua natureza no curso da
evolução da base material da reprodução social do capital, busca-se compreender como,
na fase do capitalismo monopolista, nos países imperialistas desenvolveu-se a noção de
Estado de Bem-Estar Social. De acordo com Lessa (2013), o ponto-chave para entender
o que genericamente se conhece como Estado de Bem-Estar Social acha-se nas
transformações das necessidades de reprodução do capital em sua fase monopolista,
sobre a qual se processam a gênese e a difusão dessa noção de Estado, que no momento
da reprodução do capital monopolista conduz a uma articulação superior da produção de
mais-valia, combinando a extração de mais-valia relativa e absoluta. Isso resulta nas
mudanças ocorridas no século XX na relação do Estado com a base econômica, na
formação da aristocracia operária, na separação da classe trabalhadora e no surgimento
dos sindicatos e partidos dos trabalhadores de caráter reformista e conservador.
Dessa forma, somente as modificações no desenvolvimento capitalista não
foram suficientes para a generalização do mito acerca do Estado de Bem-Estar Social.
Segundo Lessa (2013), uma operação ideológica de grandes proporções foi necessária.
O primeiro movimento é a negação do trabalho alienado como fundamento do Estado,
que tende a substituir a relação de exploração do homem pelo homem, como fundante
do Estado por uma concepção de transição ao comunismo que se daria pela mediação
daquele. O segundo movimento, intimamente articulado ao primeiro, consiste na
negação do caráter de classe do Estado. Ambos os movimentos forneceram elementos
teóricos indispensáveis ao processo de aceitação da noção de Estado de Bem-Estar
Social.
Destacam-se ainda as consequências políticas da propagação desse mito,
fundamentada na crença da capacidade de o Estado, pela via das políticas públicas,
poder superar as condições degradantes da humanidade no contexto contemporâneo.
Ademais, ressalta-se a função social dessa noção de Estado, que esconde o processo de
continuidade histórica entre a produção combinada de mais-valia relativa e absoluta e as
novas modalidades de intervenção do Estado na base econômica, pela mediação das
politicas públicas, e também para velar o movimento de continuação do Estado antes,
129
durante e depois do período 1940-1970. Constata-se, portanto, que o Estado continua a
ser o responsável pela manutenção dos negócios da classe burguesa, na contramão do
que defendem muitos autores, pois o seu caráter de classe não se alterou.
No contexto da crise estrutural do capital, busca-se compreender como no
curso do desenvolvimento capitalista as crises cíclicas passaram a uma fase de contínuo
depressivo e, em seguida, analisa-se a natureza da crise estrutural e suas determinações
históricas, porquanto se entende que essa crise é um desdobramento da própria estrutura
contraditória do sistema sociometabólico do capital. Foi visto que todas as propostas
para solucionar a crise estrutural dentro dos limites desse sistema falharam. Segundo
Mészáros (2011), isso se deve a dois fatos. O primeiro deles é que não se pode eliminar
a relação antagônica e irreconciliável entre o capital e o trabalho; o segundo deve-se ao
fato de todas as esferas da vida humana na sociedade capitalista já estarem incorporadas
às leis da lógica exploradora do capital sobre o trabalho.
Os limites que se apresentam na conjuntura atual não representam apenas uma
“ausência de unidade”, mas um “impedimento real” de reprodução ampliada do capital
e do funcionamento de todo o seu sistema global. Mesmo com todas as medidas
implementadas pelo grande capital e seu Estado, na busca de solucionar a crise
estrutural do capital, através da reestruturação produtiva, da financeirização do capital e
do neoliberalismo, este sistema sociometabólico segue na direção do seu aniquilamento,
porque não pode mais se desviar de suas agudas contradições.
Quanto ao Estado nessa conjuntura, ele permanece como o defensor dos
interesses da classe de maior poder econômico. Mas a partir da crise estrutural, o capital
passa a exigir uma nova forma de atuação para o Estado, tendo em vista um maior
comprometimento com a base da reprodução material desse sistema sociometabólico.
Isso significa uma diminuição constante dos recursos na área social e a negação de
direitos sociais anteriormente conquistados pelos trabalhadores. As modificações
realizadas na forma de o Estado intervir sobre a realidade visaram torná-lo o mais
eficiente possível para manter o ordenamento da reprodução ampliada do sistema
capitalista no contexto atual.
Assim, o mesmo Estado democrático de antes que reconheceu a luta da classe
trabalhadora por direitos e os absorveu nos limites do capitalismo, no curso dos “30
anos dourados”, sem nenhuma alteração significativa em seus mecanismos de poder
político, vem desenvolvendo, há algumas décadas, o programa neoliberal, estruturado
num crescente autoritarismo. No contexto do capitalismo em crise, o mesmo Estado que
130
aprovou os benefícios aos trabalhadores agora tende a retirá-los em razão das
necessidades de reprodução do sistema sociometabólico do capital em crise. Parece
claro que o que aconteceu foi apenas mais uma modificação histórica entre uma forma
de atuação e outra do Estado moderno, na passagem do keynesianismo ao
neoliberalismo, com a utilização de novos recursos no atendimento dos interesses do
sistema do capital global. Isto demonstra que não há nenhuma incompatibilidade entre a
função social exercida por ambas as formas de atuação do Estado.
Com relação à atuação do Serviço Social, nesse quadro de determinações
estruturais do capitalismo contemporâneo e da derrota da estratégia político-social da
classe trabalhadora, parece que em vez de gerar um movimento crítico da profissão ante
as consequências operadas pela crise econômica, na direção da superação das
desigualdades sociais, os profissionais desta área mantêm-se passivos em face das novas
transformações produzidas pela crise do capital e por seu Estado. Parece que também se
acham imersos no velho engano da luta por direitos, num contexto em que as
concessões do período keynesiano já não são mais compatíveis com a realidade atual,
pois os requisitos que sustentavam a sociedade que vivenciou um período de pleno
desenvolvimento econômico das forças produtivas desapareceram com as
consequências provocadas pela crise estrutural do capital (LESSA, 2013).
De acordo com Lessa (2013), com raras exceções, atualmente, “os assistentes
sociais enquanto categoria nos resumimos à ‘colaboração crítico-construtiva’ com o
Estado”, quando, “pautamo-nos por uma aceitação geral dos marcos globais da política
econômica e social do governo burguês com críticas pontuais para promover o
aperfeiçoamento destes mesmos marcos mais gerais”. Tanto isso é verdade, que basta
analisar os eventos e produções científicas atuais do Serviço Social; nestes, na sua
grande maioria, predominam os mesmos direcionamentos sobre a compreensão das
políticas sociais, da análise do neoliberalismo, da crítica à atuação autoritária do Estado
moderno e da crise estrutura do capital. No geral, são entendidos como movimentos da
sociedade capitalista passíveis de mudanças e ajustes ante uma crise analisada como
pano de fundo, e não como fundamento do processo de reordenamento das estratégias
do capital, com consequências diretas na organização da produção e na distribuição da
riqueza, e também na relação do Estado com a sociedade civil (LESSA, 2013, p. 225).
Dada a nova conjuntura social e as medidas efetivadas pelo sistema do capital
como respostas burguesas ao acirramento da crise estrutural do capital, o que se vem
notando é uma atuação profissional dos assistentes sociais voltada a uma atitude de
131
adequação às restrições impostas pela realidade em crise, que acabam presas aos antigos
conceitos de políticas sociais de caráter reformador, entendidas como únicos espaços de
lutas de classe, distanciando-se assim dos avanços alcançados e da capacidade de crítica
teórica e social dos movimentos da sociabilidade capitalista que atuaram em outros
momentos da sua evolução histórica como profissão, com a entrada do marxismo no
Serviço Social, em face das novas determinações impostas pela necessidade expansiva
do sistema do capital.
Entender esse movimento implica que a produção teórico-crítica do Serviço
Social encontrou seus limites na esfera da emancipação política (da cidadania ou
democracia) e não evoluiu rumo a uma direção pautada pela superação da relação de
exploração da classe trabalhadora, mas ficou restrita ao âmbito da conquista por direitos
sociais e políticos. Os direitos sociais podem ser incorporados à sociedade capitalista
sem que necessariamente isso signifique a sua alteração, a depender de cada período
específico. Isto resulta na manutenção da desigualdade econômica, sustentada pela
ilusão e pela incapacidade dessas concessões no sentido da superação da desigualdade
social e da pobreza. Em outras palavras, parece que se deixou de lado a necessidade
histórica da emancipação humana e da destruição do capital como objetivos essenciais
das ações orientadoras do presente, dadas as circunstâncias devastadoras geradas pela
crise estrutural do capital.
A ofensiva neoliberal do capital, no contexto de crise estrutural, não teve por
finalidade a diminuição da intervenção do Estado na economia, mas a redução
significativa das funções estatais coesivas, principalmente aquelas que se direcionam à
garantia de direitos sociais. Os impactos produzidos pela não compreensão desse
movimento acarretaram o estreitamento da luta dos trabalhadores rumo à sua
emancipação e a diminuição dos recursos da riqueza social, através de políticas públicas
mais mercantilizadas, a exemplo das privatizações na área da saúde, educação,
transporte etc. Esses acontecimentos, por terem reflexo direto nesta profissão, deveriam
conduzir a questionar os alicerces do projeto democrático tão submisso aos limites
estruturais do sistema capitalista e da atuação política do Estado moderno.
Compreender os embates enfrentados todos os dias pelos assistentes sociais
na busca por melhorias, mesmo que paliativas, para a vida da classe trabalhadora, é
perceber que os problemas não estão na forma de utilização dos instrumentos e das
políticas públicas, mas na incompatibilidade que essas mediações têm no cenário atual
de crise estrutural, devido à queda expressiva da taxa de lucros e à necessidade
132
constante de acumulação do capital. Com a crise estrutural novos sacrifícios foram
demandados à classe trabalhadora, dada a sua relação de dependência e subordinação ao
sistema capitalista. Essas contradições se expressam na sociedade na sua totalidade, na
qual a atividade profissional tem apenas uma função residual no atendimento imediato e
amenizador dos males sociais provenientes de relações causais que vão muito além da
profissão. Contudo, isso não pode isentar a profissão das responsabilidades tanto sociais
quanto profissionais no enfrentamento da “questão social”, que é fruto da relação
inconciliável entre as classes sociais fundamentais.
No atual estágio do desenvolvimento capitalista a derrota da concepção
democrática em reunir forças através das conquistas sociais dos trabalhadores,
colocadas em questão pelas consequências da crise estrutural e da ofensiva neoliberal do
capital, visando à recuperação da taxa de mais-valia em queda, leva a acreditar que o
Serviço Social parou no tempo, à espera por um milagre, reproduzindo na sua prática
profissional os mesmos instrumentos e políticas de intervenção do passado. A urgência
de uma crítica teórica contundente do movimento histórico no tempo presente, ante os
novos desafios impostos pela crise econômica, tem como objetivo primordial desvelar
as condições econômicas, políticas e sociais que sustentam o capitalismo
contemporâneo, na busca de compreender a base estrutural das novas tendências de
acirramento da “questão social”, visando à superação das desigualdades sociais e da
pobreza, bem como à destruição do sistema do capital e do seu Estado. Isso exige
orientar os estudos na defesa de outra forma de organização da humanidade, sem a
existência do trabalho explorado.
A nosso ver, é urgente recolocar em pauta a crítica do Estado burguês como
um ponto fundamental na luta dos trabalhadores no processo de transformação da
sociabilidade capitalista na sua totalidade. Entende-se que não é pela mediação do
Estado, com base na administração das desigualdades sociais, que as forças políticas da
classe trabalhadoras devem sustentar suas expectativas numa sociedade humanamente
emancipada, senão mediante a superação radical das estruturas que possibilitam a
continuidade do sistema sociometabólico do capital, sendo este um passo inicial na
direção da construção de uma sociedade sem capital e sem Estado, como resultado das
ações dos próprios homens.
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