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UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS CAMPUS CATALÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM GEOGRAFIA GEOGRAFIA E ORDENAMENTO DO TERRITÓRIO ALTACIR BUNDE OS IMPACTOS DO AGRONEGÓCIO DOS AGROCOMBUSTÍVEIS SOBRE O CAMPESINATO EM GOIÁS. CATALÃO (GO) 2011

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    UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIS

    CAMPUS CATALO

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO STRICTO SENSU EM GEOGRAFIA

    GEOGRAFIA E ORDENAMENTO DO TERRITRIO

    ALTACIR BUNDE

    OS IMPACTOS DO AGRONEGCIO DOS

    AGROCOMBUSTVEIS SOBRE O CAMPESINATO EM

    GOIS.

    CATALO (GO)

    2011

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    D

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    Dedicatria

    Dedico este trabalho aos meus pais,

    Silvino Bunde e Elda Helbig Bunde;

    minha querida esposa, Aline Cristina Nascimento;

    a todos(as) os(as) militantes do MCP e

    queles e quelas que, de alguma forma,

    contriburam e/ou me motivaram para que

    esta produo fosse possvel.

  • 5

    Agradecimentos

    Durante minha caminhada acadmica, que culmina, agora, nesta dissertao, foram

    inmeras as pessoas que, de alguma maneira, contriburam para que eu pudesse trilhar o rumo

    certo do conhecimento e da pesquisa. Mas, quero aqui agradecer principalmente aos

    militantes do Movimento Campons Popular (MCP), por ter nos proporcionado a

    oportunidade de conhecer, a partir de um outro olhar, o olhar militante, a realidade, que, junto

    com o conhecimento cientfico, fez com que pudssemos observ-l e interpret-l de outra

    forma.

    Quero destacar que esta contribuio que fao Geografia foi possvel graas aos meus

    pais, Silvino Bunde e Elda Helbig Bunde, que me puseram no mundo e que me ensinaram os

    valores e a importncia da vida. Tambm, aos meus trs irmos, Rugar Renato, Adilson e

    Daniel, os quais, juntamente comigo, viveram todas as dificuldades, durante a infncia e a

    juventude, que as necessidades materiais acarretam s famlias camponesas.

    Agradeo, com todo o carinho e o amor, minha querida companheira, esposa e amiga,

    Aline, pelo apoio incondicional em todos os momentos desta pesquisa, pela compreenso

    durante minhas ausncias, motivaes, sonhos etc...

    Sou grato a todos os professores que fizeram parte do meu aprendizado e me ensinaram o

    sentido de diversas coisas, em especial, a importncia do conhecimento cientfico e, com isso,

    me instigaram a prosseguir nos estudos.

    Agradeo principalmente a dedicao do professor Marcelo Mendona que, desde a minha

    entrada no curso de Ps-graduao em Geografia, rea at ento estranha a mim, me

    incentivou e alimentou meu desejo de buscar explicaes para diversas dvidas.

    Agradeo ao Alfredo Arantes que contribuiu enormemente na elaborao de alguns mapas

    que apresento nesta pesquisa.

    Aos professores do Mestrado em Geografia da UFG/CAC, pelas contribuies tericas e

    metodolgicas.

    Aos colegas do Mestrado, pelas discusses e pelos debates, muitas vezes, acalorados.

    Ao Professor Gilmar Avelar, pela oportunidade para a realizao do estgio de docncia

    na disciplina Geografia e Movimentos Sociais.

    Aos membros da Banca de Qualificao (Prof. Dr. Antnio Thomaz Jr. e professora

    Helena Anglica de Mesquita), que contriburam enormemente mostrando as possibilidades

    da pesquisa terica e emprica na Geografia.

  • 6

    A todas e todos as/os entrevistadas/os durante a pesquisa de campo, especialmente s

    camponesas e camponeses e aos militantes da luta social no campo, verdadeiros sujeitos desta

    pesquisa, e aos representantes das agroindstrias canavieiras que se disponibilizaram a dar

    entrevistas e/ou fornecer informaes.

    CAPES, por fornecer a bolsa, que foi fundamental para a realizao da pesquisa terica

    e emprica, especialmente para os trabalhos de campo.

    Enfim, sou grato a todas e todos os sujeitos envolvidos nesta pesquisa e que, de alguma

    forma, contriburam para esta criao e que, por serem tantos, no foram citados aqui.

  • 7

    Sumrio

    Resumo............................................................................................................... 14

    Abstract............................................................................................................... 15

    Apresentao....................................................................................................... 16

    Introduo........................................................................................................... 22

    CAPTULO I. O CAMPESINATO NO CAPITALISMO: Extinguir?

    Resistir? Existir?...............................................................................................

    25

    1.1 A via inglesa de desenvolvimento do capitalismo no campo............................. 30

    1.2 A via prussiana de desenvolvimento do capitalismo no campo......................... 39

    1.3 A via junker de desenvolvimento capitalista no campo..................................... 40

    1.4 A via farmer de desenvolvimento do capitalismo no campo............................. 42

    1.5 O campesinato no sculo XXI: sua luta e teimosia em existir........................... 44

    CAPTULO II. AGRONEGCIO DOS AGROCOMBUSTVEIS: a

    nova face da acumulao de capital no campo

    53

    2.1 Os agrocombustveis e o discurso ambientalmente correto............................... 54

    2.2 A utilizao do etanol como combustvel e a cana-de-acar como fonte de

    matria-prima para a sua produo.....................................................................

    66

    2.3 O plantation: modelo de produo da cana-de-acar no Brasil Colnia. 73

    2.4 O agronegcio: modelo atual de produo da cana-de-acar. ......................... 81

    2.5 O agronegcio dos agrocombustveis no Brasil no perodo atual ..................... 83

    2.6 Os agrocombustveis e a formao dos monoplios e oligoplios: o processo

    de centralizao de capital..................................................................................

    96

    CAPTULO III. OS IMPACTOS DO AGRONEGCIO DOS

    AGROCOMBUSTVEIS SOBRE O CAMPESINATO EM GOIS

    116

    3.1 O agronegcio dos agrocombustveis no estado de Gois.................................. 117

    3.2 A instalao das agroindstrias canavieiras no estado de Gois........................ 131

    3.3 Impactos da expanso da rea plantada com cana-de-acar sobre a produo

    de alimentos, no estado de Gois........................................................................

    143

    3.4 Os impactos da expanso da lavoura de cana-de-acar sobre as famlias

    camponesas.........................................................................................................

    153

    Tecendo algumas consideraes...................................................................... 188

    Referncias........................................................................................................ 194

  • 8

    Lista de Quadros

    Quadro 01 Evoluo da rea plantada de cana-de-acar, no estado de Gois

    1960 a 2011...............................................................................................

    122

    Quadro 02 rea plantada (em hectares) com cana-de-acar, no estado de Gois,

    por microrregies geogrficas 1990 a 2009...........................................

    125

    Quadro 03 Evoluo da produo de etanol e acar no estado de Gois Safra

    1990/91 a 2009/10.....................................................................................

    132

    Quadro 04 Nmero de agroindstrias canavieira no estado de Gois em operao,

    instalao e em projeto 2009.................................. ...............................

    135

    Quadro 05 Quantidade de cana-de-acar processada pelas agroindstrias

    canavieiras e origem desta matria prima no estado de Gois

    2010...........................................................................................................

    160

    Lista de Mapas

    Mapa 01 Distribuio da rea plantada de cana-de-acar nos municpios do

    estado de Gois..........................................................................................

    130

    Mapa 02 Distribuio das agroindstrias canavieira de acar e lcool pelos

    municpios no estado de Gois em 2009...................................................

    137

    Lista de Tabelas

    Tabela 01 Nmero de estabelecimentos agropecurios no estado de Gois srie

    histrica (1970/2006)................................................................................

    120

    Tabela 02 Nmero de agroindstrias canavieiras em operao no estado de Gois,

    2000 2009...............................................................................................

    135

    Lista de grficos

    Grfico 01 Evoluo da rea plantada com cana-de-acar no Brasil 1975 a

    2010...........................................................................................................

    70

    Grfico 02 Evoluo da produtividade mdia, por hectare, da cana-de-acar, no

    Brasil 1975 a 2010..................................................................................

    70

    Grfico 03 Produo brasileira de acar e etanol safras 1990/91 a 2008/09.......... 85

    Grfico 04 Evoluo da produo brasileira de etanol por regio 1990/91 a

    2008/09......................................................................................................

    87

    Grfico 05 Vendas de automveis e veculos comerciais leves por tipo de

    combustvel no Brasil 1979 a 2010........................................................

    92

    Grfico 06 rea (em ha) de cada estabelecimentos srie histrica

  • 9

    (1970/2006)............................................................................................... 120

    Grfico 07 Evoluo da rea plantada com cana-de-acar no estado de Gois

    1990 a 2011...............................................................................................

    123

    Grfico 08 Participao, em percentual, das microrregies geogrficas, do estado

    de Gois, na rea plantada de cana-de-acar 1990...............................

    127

    Grfico 09 Participao, em percentual, das microrregies geogrficas, do estado

    de Gois, na rea plantada com cana-de-acar 2009............................

    128

    Grfico 10 Evoluo da rea plantada (em hectares) de cana-de-acar nas

    Microrregies de Quirinpolis, Meia Ponte, Sudoeste, Vale do Rio dos

    Bois e Ceres, 1990 2009.........................................................................

    129

    Grfico 11 Evoluo da produo de etanol e de acar, no estado de Gois

    Safras 1990/91 a 2010/11..........................................................................

    133

    Grfico 12 Evoluo da cana-de-acar processada (toneladas), no estado de Gois

    Safras 1990/91 a 2010/11.......................................................................

    134

    Grfico 13 Classificao das agroindstrias canavieiras quanto a quantidade de

    cana (em toneladas) processada no estado de Gois

    2010...........................................................................................................

    138

    Grfico 14 Evoluo do efetivo do rebanho bovino (por cabea) nas Microrregies

    de Quirinpolis, Meia Ponte, Sudoeste, Vale do Rio dos Bois e Ceres

    1990 a 2009...............................................................................................

    145

    Grfico 15 Evoluo da produo de leite (mil litros) nas Microrregies de

    Quirinpolis, Meia Ponte, Sudoeste, Vale do Rio dos Bois e Ceres

    1990 a 2009...............................................................................................

    146

    Grfico 16 Evoluo da rea plantada (em hectares) com soja nas Microrregies de

    Quirinpolis, Meia Ponte, Sudoeste, Vale do Rio dos Bois e Ceres

    1990 a 2009...............................................................................................

    147

    Grfico 17 Evoluo da rea plantada (em hectares) com milho nas Microrregies

    de Quirinpolis, Meia Ponte, Sudoeste, Vale do Rio dos Bois e Ceres

    1990 a 2009...............................................................................................

    148

    Grfico 18 Evoluo da rea plantada (em hectares) com arroz e feijo no estado

    de Gois 1960 a 2009.............................................................................

    149

    Grfico 19 Evoluo da rea plantada (em hectares) com arroz nas Microrregies

    de Quirinpolis, Meia Ponte, Sudoeste, Vale do Rio dos Bois e Ceres

    1990 a 2009...............................................................................................

    150

  • 10

    Grfico 20 Evoluo da rea plantada (em hectares) de feijo nas Microrregies de

    Quirinpolis, Meia Ponte, Sudoeste, Vale do Rio dos Bois e Ceres

    1990 a 2009...............................................................................................

    151

    Grfico 21 Evoluo da rea plantada (em hectares) com mandioca nas

    Microrregies de Quirinpolis, Meia Ponte, Sudoeste, Vale do Rio dos

    Bois e Ceres 1990 a 2009.......................................................................

    152

    Lista de fotos

    Foto 01 Usina CRV de acar e lcool, em Carmo do Rio Verde (GO)................ 162

    Foto 02 Comunidade gua Branca, municpio de Ipiranga de Gois (GO):

    propriedade cercada pela plantao de cana-de-

    acar.........................................................................................................

    165

    Foto 03 Propriedade camponesa cercada pela cana, municpio de Goiatuba

    (GO)...........................................................................................................

    167

    Foto 04 Comunidade Crrego da Boa Vista, municpio de Ipiranga de Gois

    (GO): caminho transportando cana-de-acar.........................................

    170

    Foto 05 Municpio de Nova Glria (GO): homem queimando a cana-de-acar

    antes do corte.............................................................................................

    171

    Foto 06 Comunidade Bom Jesus, Crrego do Caf, Ipiranga de Gois (GO):

    propriedade cercada por cana-de-

    acar.........................................................................................................

    171

    Foto 07 Cidade de Maurilndia (GO) cercada pela plantao de cana-de-

    acar.........................................................................................................

    173

    Foto 08 Comunidade Crrego da Boa Vista, municpio de Ipiranga de Gois

    (GO): abaixo-assinado com mais de 300 assinaturas pedindo

    providncias s autoridades para o fim da

    poluio.....................................................................................................

    173

    Foto 09 rea abandonada, fazenda Santa Juliana, municpio de Bom Jesus

    (GO)...........................................................................................................

    175

    Foto 10 rea aps ocupao, fazenda Santa Juliana, municpio de Bom Jesus

    (GO)...........................................................................................................

    175

    Foto 11 Casa destruda, rea ocupada na fazenda Santa Juliana, municpio de

    Bom Jesus (GO)........................................................................................

    176

    Foto 12 Casa destruda, rea ocupada na fazenda Santa Juliana, municpio de

    Bom Jesus (GO)........................................................................................

    176

  • 11

    Foto 13 Destroos da casa e de brinquedos que foram destrudos durante a

    expulso das famlias camponesas da fazenda Santa Juliana, municpio

    de Bom Jesus (GO)....................................................................................

    177

    Foto 14 Acampamento de sem-terras, municpio de Rubiataba (GO).................... 178

    Foto 15 Acampamento de sem-terras, municpio de Bom Jesus (GO)................... 179

    Lista de figuras

    Figura 01 Esquema do ciclo biogeoqumico do nitrognio com as principais rotas

    de emisses, transporte, transformaes e mudana de fase dos

    compostos de nitrognio no ambiente, adaptado de World Health

    Organization (1997)..................................................................................

    66

    Figura 02 Produo brasileira de cana-de-acar, safra 1989-1990.......................... 88

    Figura 03 Produo brasileira de cana-de-acar safra 2007................................. 89

    Figura 04 Localizao das reas aptas para a expanso da plantao de cana-de-

    acar para a produo de etanol..............................................................

    91

    Figura 05 Classificaao dos cinco maiores grupos multinacionais do agronegcio

    dos agrocombustveis no Brasil.................................................................

    98

    Figura 06 Participao dos grandes grupos nacionais e multinacionais na

    comercializao de etanol.........................................................................

    99

    Figura 07 Zoneamento da cana-de-acar no estado de Gois 2009...................... 142

    Lista de siglas e abreviaturas

    AEAC lcool Etlico Anidro Combustvel.

    AFC Associao de Fornecedores de Cana.

    ANFAVEA Associao Nacional dos Fabricantes de Veculos Automotores.

    BA Bahia.

    CAI Complexo Agro-Industrial.

    CANASAT Mapeamento da Cana via Imagens de Satlites de Observao da Terra

    CANG Colnia Agrcola Nacional de Gois.

    CEM Usina.

    CEPAGRI/UNICAMP Centro de Pesquisa Meteorolgicas e Climticas Aplicadas a

    Agricultura da Universidade de Campinas.

    CFC Clorofluor carbonado.

    CH4 Metano.

    CO2 Dixido de Carbono.

  • 12

    CONAB Companhia Nacional de Abastecimento.

    COOPERCAR Cooperativa dos Produtores de Acar e lcool do Estado de So Paulo.

    COOPER-RUBI Cooperativa Agroindustrial de Rubiataba Ltda.

    CV Cavalos Potncia.

    DF Distrito Federal.

    DIGEM Diretoria de Logstica e Gesto Empresarial.

    E Leste/Yest.

    EMBRAPA Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuria.

    EPA Agencia de Proteo Ambiental dos Estados Unidos.

    EUA Estados Unidos da Amrica.

    FMI Fundo Monetrio Internacional.

    FOMENTAR Programa de Incentivo Fiscal Estadual Gois.

    GATT Acordo Geral sobre Pautas Aduaneiras e Comrcio.

    GEE Gs de Efeito Estufa.

    GO Gois

    HA Hectares.

    IAA Instituto Brasileiro do Acar e do lcool.

    IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica.

    ICMS Imposto Sobre Circulao de Mercadorias e Servios.

    IED Investimento Externo Direto.

    ISPN Instituto Sociedade, Populao e Natureza.

    LTDA Companhia Limitada.

    MAPA Ministrio da Agricultura, Pecuria e Abastecimento.

    MG Minas Gerais.

    MPA Movimento dos Pequenos Agricultores.

    MS Mato Grosso do Sul.

    N Norte.

    N2O xido Nitroso.

    NAFTA Acordo de Livre Comrcio da Amrica do Norte.

    OCDE Organizao para Cooperao e Desenvolvimento Econmico.

    OMC Organizao Mundial do Comrcio.

    OPEP Organizao dos Pases Exportadores de Petrleo.

    PROLCOOL Programa Nacional do lcool.

    PRODUZIR Programa de Desenvolvimento Industrial de Gois.

  • 13

    PT Partido dos Trabalhadores.

    R$ Real.

    S Sul.

    S/A Sociedade Annima.

    SEPIN Superintendncia de Pesquisa e Informao.

    SEPLAN Secretaria de Planejamento do Estado de Gois.

    SF6 Hexafluoreto de Enxofre.

    SIFACAR Sindicato da Indstria de Fabricao de Acar.

    SIFAEG Sindicato da Indstria de Fabricao de lcool de Gois.

    SIGABrasil Sistema de Informao Geogrfica da Agricultura

    SNA Sociedade Nacional de Agricultura.

    STR Sindicato dos Trabalhadores Rurais.

    TEP Toneladas Equivalentes de Petrleo.

    TO Tocantins.

    U$ Dlar.

    UDOP Unio dos Produtores de Bioenergia.

    UNICA Unio das Indstrias de Cana-de-acar.

    UNICAMP Universidade de Campinas.

    W Oeste/West.

  • 14

    Resumo

    A presente pesquisa versa sobre os impactos causados pelo agronegcio dos

    agrocombustveis sobre o campesinato no estado de Gois. na etapa agrcola, na produo

    da cana-de-acar, que so mais visveis as caractersticas capitalistas desta atividade

    econmica, os danos scio-ambientais que causa e suas contradies. O capitalismo, a partir

    de e devido a condies histricas e econmicas, se desenvolveu primeiramente no campo

    brasileiro no sistema de plantation. A evoluo (modernizao) do plantation chegou ao que

    se tem atualmente: o agronegcio, que, no perodo atual, mesmo impactando de forma brutal

    o campesinato, dada a violncia posta e imposta sobre ele, no foi capaz de elimin-lo. A luta

    e a resistncia do campesinato determinaram a sua presena na histria como sujeito social,

    nos dias atuais, em alguns locais com mais e em outros com menos fora.

    A expanso da rea plantada de cana-de-acar em Gois vem ocorrendo devido ao

    aumento da demanda do mercado externo e interno por acar, ao aumento do consumo

    interno de etanol e a sua adio na gasolina, em propores que podem chegar a 25%. O

    discurso de defesa do aumento da produo de etanol tem se baseado em dois argumentos:

    substituir os combustveis fsseis e reduzir as emisses de CO2 (dixido de carbono) na

    atmosfera. Este setor vem passando por um processo de concentrao e centralizao de

    capital na produo e na comercializao que leva formao de monoplios e oligoplios. O

    Brasil e o estado de Gois, a fim de atrair o agronegcio dos agrocombustveis, vm

    afrouxando ao mximo a regulamentao e a fiscalizao ambiental, trabalhista, social etc. e,

    ao mesmo tempo, vem blindando poltica e juridicamente empresas do setor, acobertando

    os crimes por elas cometidos contra as famlias camponesas com e/ou sem terras e sendo, em

    muitos casos, o prprio agente da violncia. Comprova-se, assim, que o Estado um dos

    principais fomentadores do setor. Para tanto, outra maneira de o Estado agir com a

    transferncia do errio pblico ao capital privado, nacional e internacional, na forma de

    incentivos e isenes fiscais.

    Em Gois, nas fraes do territrio onde j se produz e para onde se expande a cana que

    se desenvolvem os mais intensos conflitos. A produo da cana-de-acar em grande escala

    traz srias consequncias principalmente para as famlias camponesas que vivem nestes

    territrios, coloca-se em risco a produo de alimentos e degrada-se os recursos naturais e a

    biodiversidade do Cerrado.

    Palavras-chave: Campesinato. Agronegcio. Espao. Territrio. Territorialidade.

  • 15

    Abstract

    This research focuses on the impacts caused by the agrofuels business on the peasantry in

    the state of Gois, Brazil. It is in the agriculture phase, especially in the sugarcane production,

    in which the capitalist characteristics, the socio-environmental damage, and their

    contradictions are most visible. From the historical and economical conditions, the Capitalism

    developed first in the Brazilian countryside by the plantation system. The plantation

    development (modernization) reached what is currently called agribusiness, which was unable

    to eliminate the peasantry, but causing impact on its life way, putting and imposing the

    violence on it. The peasantry struggle and resistance led to its presence in history as a social

    subject, nowadays, with more force in some places and in others with less force.

    The expansion of the sugarcane plantation in Gois is happening due to the rising demand

    from domestic and international markets for sugar, increased domestic ethanol consumption

    and with its addition to gasoline in proportions of up to 25%. The defense speech of increased

    ethanol production has been based on two arguments that are to replace fossil fuels and reduce

    CO2 (carbon dioxide) emissions into the atmosphere. This sector has been undergoing a

    process of the capital concentration and the centralization in the production and marketing

    that leads to the monopolies and oligopolies formation. Brazil, mainly the state of Goias, in

    order to attract the agrofuels business is loosening the regulation and the environmental

    monitoring, labourite, social etc. At the same time, they come "shielding" political and legal

    sector companies, covering up the crimes they commit against the peasant families with

    and/or no land and being itself the violence agent in many cases. It proves so that the state is

    one of the main promoters of the sector. Another way that the State is acting, it is transferring

    the public funds to the private capital, national, and international by incentives and tax

    exemptions.

    In Gois, the greatest conflicts are taking place in the territory fractions where the

    sugarcane is already produced and expanded. The sugarcane production in a large scale brings

    some serious consequences especially for the rural families living in these territories, putting

    at risk the food production and degrading the natural resources and the Cerrado (Brazilian

    Savannah) biodiversity.

    Keywords: Peasantry. Agribusiness. Space. Territory. Territoriality

  • 16

    Apresentao

    As inquietaes e as preocupaes com os impactos causados pela expanso do

    agronegcio dos agrocombustveis sobre o campesinato no estado de Gois surgiram ao se

    conhecer os relatos das famlias camponesas, especialmente na Microrregio de Ceres,

    durante a militncia nos movimentos sociais do campo no estado de Gois e nos longos

    debates na Via Campesina do Brasil sobre o tema. Essas inquietaes levaram necessidade

    de se proceder a um estudo mais acurado sobre o assunto.

    A clara percepo dos impactos que a expanso do plantio da cana-de-acar, matria-

    prima para fabricao de etanol e acar, vem causando para o campesinato e a conscincia

    da importncia do campesinato para a sociedade e para as necessrias transformaes dessa

    sociedade requeria avanos. A militncia nos movimentos sociais camponeses,

    especialmente no Movimento Campons Popular MCP, a vivncia, a militncia, a

    experienciao levantavam indagaes s quais era preciso tentar responder. A expanso do

    agronegcio dos agrocombustveis e suas tendncias de crescimento ainda maior so uma

    ameaa real, em andamento, s famlias camponesas em Gois. Respostas, sugestes de

    soluo e aes poderiam surgir com o desenvolvimento desta dissertao de mestrado.

    Durante a graduao, as tentativas de apreenso e compreenso das desigualdades sociais

    em nosso pas se deram por outro caminho, o da Economia, e culminaram na monografia de

    bacharelado sobre a distribuio de renda no Brasil. De l para c, muitas coisas mudaram.

    Mas, foi a militncia nos movimentos sociais do campo e as oportunidades de conhecer e

    manter contato com pesquisadores renomados na Geografia como Ariovaldo Umbelino de

    Oliveira, Bernardo Manano Fernandes e Carlos Walter Porto-Gonalves, entre outros, que

    mostraram a possibilidade de buscar na Geografia explicaes para a desigual e injusta

    realidade do campo. Mas, entre tantos e to importantes motivos e estmulos para estudar o

    assunto, h um fato determinante: minha origem camponesa. Essa, sim, talvez tenha sido o

    motivo decisivo, posto que foi no campo que nasci e vivi toda a minha infncia e a minha

    juventude. Foi no campo, como filho de camponeses, e como campons, junto com meus trs

    irmos, que vivi na pele a dureza de um Brasil extremamente injusto, desigual e

    preconceituoso.

    Assim posto, a dissertao de mestrado que ora apresentamos um estudo inicial sobre os

    impactos causados pela expanso do agronegcio dos agrocombustveis sobre o campesinato

    no estado de Gois. Com esta pesquisa busca-se apreender, compreender e apontar alguns

    elementos para a reflexo sobre as diversas contradies geradas pelo agronegcio dos

  • 17

    agrocombustveis e seus impactos para o campesinato. Para isso, utilizou-se algumas

    categorias de anlise da Geografia, tais como espao, territrio e territorialidade, situando-as

    no contexto do desenvolvimento desigual e combinado do capitalismo no campo.

    No que se refere metodologia ou procedimentos metodolgicos e/ou tcnicas que foram

    utilizadas para buscar informaes e/ou respostas s questes apresentadas na

    problematizao desta pesquisa, foram percorridos as seguintes etapas: a) pesquisa terica; b)

    pesquisa documental; e, c) pesquisa de campo. Segundo Alves-Mazzotti e Gewandsznajder

    (2002), essas tcnicas e procedimentos so utilizados em pesquisas de carter qualitativas,

    como o caso. Alm disso, estas pesquisas possuem um carter multimetodolgico, devido ao

    qual podem ser utilizados diversos mecanismos para a coleta de dados.

    Para estudar o movimento contraditrio do capital no campo, no que se refere aos temas

    relacionados ao campesinato, foram realizadas leituras de obras de autores como: K. Marx, R.

    Luxemburgo, V. I. Lnin, Karl Kautsky, A. V Chayanov, T. Shanin, J. Gorender, J. de S.

    Martins e A. U. Oliveira, entre outros. No que se refere ao processo de

    concentrao/centralizao de capital centrou-se os estudos sobre autores como: K. Marx, R.

    Luxemburgo, V. I. Lnin, D. Harvey, F. Chesnais, J. D. van der Ploeg, entre outros. No que

    refere ao debate sobre territrio, foram analisadas obras de autores como: Calabi, Indovina,

    Raffestin, A. U. Oliveira, entre outros autores que abordam as diferentes teorias de

    desenvolvimento do capitalismo no campo, formuladas a partir do pensamento de Marx.

    No que se refere s pesquisas documentais, elas foram de fundamental importncia, posto

    que, com elas encontramos informaes importantes para a pesquisa, como estatsticas,

    anlises j realizadas etc., que ajudaram a orientar tanto a pesquisa terica como a pesquisa de

    campo. No nosso caso, centraram-se as anlises em documentos e dados extrados de rgos

    como: IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica, CANASAT Mapeamento da

    Cana via Imagens de Satlites de Observao da Terra, CONAB Companhia Nacional de

    Abastecimento, SEPIN Superintendncia de Pesquisa e Informao, SEPLAN Secretaria

    de Planejamento do Estado de Gois, UDOP Unio dos Produtores de Bioenergia, UNICA

    Unio das Indstrias de Cana-de-acar e ANFAVEA Associao Nacional dos Fabricantes

    de Veculos Automotores, entre diversos outros.

    No que se refere pesquisa de campo, Segundo Luna (2000), ao realizar uma pesquisa de

    campo, o pesquisador poder se deparar com vrios problemas, principalmente devido a

    dificuldades de acesso s informaes. No nosso caso, para as entrevistas dos/as sujeitos

    campons/a devido militncia no MCP Movimento Campons Popular e convivncia

    com as famlias camponesas, em vrias regies do estado de Gois, houve uma confiana

  • 18

    entre as partes, com a qual vrias barreiras foram superadas. O desafio maior, porm, foi fazer

    entrevistas com usineiros ou diretores de agroindstrias canavieiras. Neste caso, o acesso s

    informaes foi obtido atravs de solicitao formal de visitas e entrevistas. A incluso deste

    sujeito foi de fundamental importncia para poder identificar o contraditrio.

    O procedimento para recolher as informaes foi o relato verbal (oral), que foi gravado

    aps a autorizao dos/as entrevistados/as em uma entrevista semi-estruturada, tanto com os

    sujeitos camponeses/as quanto com usineiros e/ou diretores de agroindstrias canavieira. Os

    trabalhos de campo foram iniciados antes mesmo de entrarmos no Mestrado em Geografia, ou

    seja, teve incio no ms de maio de 2009, quando foram realizadas algumas visitas e

    entrevistas preliminares, como parte da pesquisa, no municpio de Ipiranga de Gois, sendo

    encerrada em fevereiro de 2011. Durante o trabalho de campo tambm se buscou registrar os

    problemas causados pela expanso da plantao de cana-de-acar sobre o campesinato

    mediante o registro em imagem fotogrfica.

    Quanto amostragem utilizada em nossa pesquisa, usou-se o mecanismo de amostragem

    deliberada, pois atravs dele pode-se deliberar quais seriam os sujeitos que compuseram o

    estudo. Segundo Turato (2003), na amostragem deliberada o pesquisador fica livre para

    deliberar sobre as caractersticas pessoais. Alm disso, neste tipo de amostragem no se deve

    quantificar quantos indivduos sero entrevistados, mas, sim, pensar critrios gerais e a

    incluso de sujeitos potenciais. Diante disso, ns optamos, no caso dos sujeitos

    camponeses/as, por entrevistar lideranas locais.

    Com a pesquisa, chegou-se a um nmero de 32 (trinta e duas) entrevistas realizadas com

    os sujeitos sociais camponeses/as e 5 (cinco) entrevistas com sujeitos usineiros e/ou diretores

    de agroindstrias canavieiras. As entrevistas com os sujeitos foram realizadas em cinco

    Microrregies do estado de Gois, sendo elas: Meia Ponte, Sudoeste de Gois, Quirinpolis,

    Ceres e Vale do Rio dos Bois. Isso ocorreu porque nestas reas que est concentrada grande

    parte da plantao de cana-de-acar e localizadas as agroindstrias canavieiras.

    As entrevistas com os camponeses/as foram realizadas nos municpios de Ipiranga de

    Gois, Nova Gloria, Rubiataba, Carmo do Rio Verde, Itapuranga, Quirinpolis, Itumbiara,

    Bom Jesus, Maurilndia, Santa Helena de Gois e Goiatuba. Com os usineiros, nos

    municpios de Carmo do Rio Verde, Rubiataba, Goiatuba, Quirinpolis e Itumbiara.

    Nosso objetivo, com o trabalho de campo, foi perceber e buscar respostas para as

    perguntas elaboradas em nossa problemtica, assim como, fazermos uma leitura mais coerente

    e o mais prxima possvel da realidade concreta e identificar o contraditrio. Mas, tambm,

  • 19

    serviu para apontarmos, de forma mais clara, as aes e os interesses de classe, envolvidos no

    tema.

    Assim, essa dissertao de mestrado se baseou na identificao das contradies

    existentes no agronegcio dos agrocombustveis, bem como nas suas novas territorialidades e

    estratgias, na apreenso e na discusso dos rearranjos espaciais e redefinies desencadeadas

    nas atividades do campo por este setor do agronegcio, tendo como eixo principal os impactos

    sobre as famlias camponesas e a reflexo sobre a consolidao deste setor que vem ocorrendo

    em Gois.

    Foram considerados aspectos julgados relevantes, tais como: o campesinato e as diferentes

    vias de desenvolvimento do capitalismo no campo; o agronegcio do agrocombustvel e seu

    discurso ambientalmente correto; o processo de expanso das reas de cultivo da cana-de-

    acar, frente perspectiva de aumento do consumo do etanol e do acar e de seus

    subprodutos nos mercados interno e externo; a concentrao e a centralizao de capitais que

    vo formar monoplios e oligoplios que, posteriormente, se territorializaram e

    monopolizaram territrios e, por fim, os impactos causados pela expanso do agronegcio dos

    agrocombustveis sobre o campesinato no estado de Gois.

    Com essas anlises pde-se perceber que o capitalismo no campo brasileiro, organizado

    na forma do agronegcio, agora contando com esse setor especfico dos agrocombustveis,

    vem formulando uma nova estratgia para garantir a expanso da acumulao de capital:

    firmar alianas entre a produo, a circulao e o capital financeiro (este no comando), para

    formar, assim, grandes monoplios e oligoplios. Esta estratgia de ao do capital no campo

    visa territorializao dos monoplios e oligoplios, via desterritorializaao dos camponeses

    e monopolizao de territrios atravs da sujeio e subjugao da renda da terra, oriunda

    tanto das relaes de produo capitalistas quanto das relaes no capitalistas.

    no estudo e na anlise das caractersticas da acumulao e da reproduo ampliada do

    capital no campo brasileiro que podem ser encontradas explicaes, em suas prprias

    contradies, para as transformaes e prejuzos territoriais, sociais e ambientais decorrentes

    da expanso do agronegcio dos agrocombustveis no estado de Gois, produto da

    modernizao e expanso capitalista no campo.

    No desenvolvimento da investigao emprica, na anlise de documentos e na reflexo

    terica procurou-se considerar, sobretudo, os desdobramentos do processo de apropriao e o

    consequente reordenamento espacial que atinge as famlias camponesas e que estabelece a

    luta pelo territrio de pertencimento. Para isso, levou-se em conta a ideia defendida por

    alguns estudiosos do tema de que o agronegcio dos agrocombustveis produz um discurso,

  • 20

    muitas vezes, respaldado pelas aes e pelo discurso do Estado, de que essa atividade capaz

    de produzir combustvel ecologicamente correto, limpo, e, assim, contribuir para enfrentar a

    crise climtica. O fato de que o agronegcio historicamente concentrador de terra e de

    capital, explorador da fora humana que trabalha (inclusive com trabalho escravo), no gera

    emprego, renda e desenvolvimento econmico e social onde est instalado e/ou onde se

    instala e, ao mesmo tempo, causa grandes impactos para o campesinato e para o meio

    ambiente pde ser comprovado nesta pesquisa. Alm disso, ficou claro que o modelo

    tecnolgico usado na produo da matria-prima, a cana-de-acar, para a fabricao do

    etanol, na verdade um modelo petrodependente dada a quantidade de insumos oriundos de

    combustveis fsseis consumidos e mesmo de leo diesel, durante o plantio, a colheita e o

    transporte da cana e do etanol.

    Constatou-se na pesquisa emprica a luta de classes no campo, envolvendo o conjunto dos

    trabalhadores, especialmente as famlias camponesas, em defesa do direito terra de

    trabalho, do acesso e/ou da permanncia nela, e que, enquanto sujeitos sociais tm se oposto

    reproduo ampliada do capital no campo, sendo por este considerados um obstculo, um

    empecilho que precisa ser removido para limpar a terra.

    Nesta pesquisa, no que diz respeito ao recorte geogrfico, foi adotada a diviso em

    microrregies feita pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica (IBGE), segundo a qual

    o estado de Gois possui dezoito microrregies geogrficas. Destas, cinco, segundo dados da

    Produo Agrcola Municipal, srie histrica do mesmo rgo, se destacam na plantao de

    cana. So elas: Quirinpolis, Meia Ponte, Sudoeste de Gois, Vale do Rio dos Bois e Ceres.

    nelas que est concentrada grande parte (cerca de 77%) da plantao de cana-de-acar do

    estado. Nessa poro do estado, o discurso e o iderio dessa nova territorializao do

    agronegcio dos agrocombustveis vm utilizando os benefcios que a expanso do cultivo

    de cana-de-acar proporciona, o que expressa a fundamentao econmica do agronegcio

    dos agrocombustveis, para se firmar e afirmar. Foi por este motivo que, durante o

    desenvolvimento dessa dissertao, acompanhou-se o discurso desenvolvimentista do

    agronegcio dos agrocombustveis, respaldado pelo Estado, e constatou-se que ele adquire

    visibilidade e territorializa-se com as novas configuraes com que o capital se apresenta.

    Entre os principais percursos terico-metodolgicos que nortearam a pesquisa emprica e

    a formulao dessa dissertao est a leitura geogrfica da correlao de foras, que

    envolve, de um lado, capital e Estado e, de outro, as famlias camponesas. Nesse embate, a

    contradio do capital fica explcita na materialidade e nos fenmenos presentes na expanso

    do agronegcio dos agrocombustveis. E a conscincia dessa contradio que leva luta

  • 21

    pela permanncia na terra de trabalho e/ou pelo acesso a ela. Ou seja, a leitura geogrfica

    mostra as disputas pelo territrio entre famlias camponesas (com ou sem terra) e capital, na

    construo e/ou manuteno de territorialidades. Enfim, trata-se da luta das famlias

    camponesas pela sobrevivncia contra o capital (agronegcio dos agrocombustveis) que

    busca no campo a sua reproduo e ampliao.

    No pretenso desta pesquisa, como no pode ser de nenhuma outra, esgotar o assunto.

    Intencionou-se demonstrar que, em algumas fraes do territrio, no estado de Gois, est em

    curso um processo de reordenamento territorial e produtivo pautado por um conjunto de aes

    estratgicas, econmicas e polticas, adotadas pelo agronegcio dos agrocombustveis com o

    apoio do Estado, que vm causando srios problemas no uso e posse da terra, por exemplo, a

    diminuio da produo de alimentos, especialmente os produzidos pelas famlias

    camponesas que vivem nestes territrios. Assim, esto postos novos desafios para os

    movimentos sociais do campo na busca de mecanismos de resistncia e superao da ao do

    capitalismo no campo.

    As obras lidas, analisadas e interpretadas durante a pesquisa, somadas investigao

    emprica e aos levantamentos de dados em fontes secundrias, forneceram os elementos

    necessrios para a elaborao dessa dissertao.

    Com essa pesquisa espera-se ter contribudo para mostrar a importncia da cincia

    geogrfica e, especialmente, ter esclarecido algumas questes e proposto assuntos para novas

    pesquisas. Alm disso, procuramos deixar clara nossa posio diante da realidade encontrada,

    pois pior do que no compreender os problemas causados pelo agronegcio dos

    agrocombustveis s famlias camponesas compreender e no tomar posio, no fazer nada,

    tratar com indiferena, ignor-los.

    Diante disso, apresenta-se esta dissertao para atender s exigncias do Programa de Ps-

    Graduao Stricto Sensu em Geografia, da Universidade Federal de Gois, Campus Catalo,

    na rea de concentrao Geografia e Ordenamento do Territrio e na linha de pesquisa

    Trabalho e Movimentos Sociais com o intuito de obter o ttulo de Mestre em Geografia.

    Mestre no quem sempre ensina, mas quem, de repente, aprende, segundo Joo

    Guimares Rosa que, por meio de um dos seus personagens tambm disse: Saber de muitas

    coisas eu no sei; mas, desconfio.

  • 22

    Introduo

    O espao geogrfico onde se realiza esta pesquisa o estado de Gois. Situado no centro

    do pas, Gois possui 341.300 Km de rea total, com suaves declives em grande parte de seu

    territrio, extensos planaltos, tambm chamados de chapades e chapadas, nascentes que do

    origem a bacias hidrogrficas importantes como a Amaznica, a do Prata, a do So Francisco

    e a do Tocantins-Araguaia (CASTRO; BORGES; AMARAL, 2007). Mas, as anlises feitas

    concentraram-se sobre os lugares onde est localizada grande parte da plantao de cana-de-

    acar, como o caso das Microrregies de Quirinpolis, Meia Ponte, Sudoeste, Vale do Rio

    dos Bois e Ceres.

    O capitalismo, formado a partir de condies histricas, polticas e econmicas se

    desenvolveu, ao longo da histria, a partir da Revoluo Industrial ocorrida entre o final do

    sculo XVIII e o incio do seculo XIX na Inglaterra. No campo, seu desenvolvimento ocorreu

    a partir de diferentes vias, como a inglesa, a prussiana, a junker e a farmer. Mas, nos pases

    colonizados, como o caso do Brasil, a forma capitalista de produo que predominou foi o

    plantation que influenciou tambm a formao do meio urbano, visto que o Brasil teve na

    agropecuria sua principal atividade econmica at sua industrializao, que ainda est em

    curso. Da modernizao do plantation surgiu a forma atual: o agronegcio.

    A ao capitalista no campo vem causando impactos brutais para os camponeses, dada a

    violncia posta e imposta sobre eles, mas, mesmo assim, no foi capaz de elimin-los, pois

    sua resistncia fez com que eles continuassem presentes na histria, nos dias atuais, inclusive

    nas sociedades capitalistas, em alguns locais com mais e em outros com menos fora e

    presena. Isso ocorre, segundo Shanin (1983; 2005) porque fatores econmicos desagregam e,

    ao mesmo tempo, o agregam, assim como, fatores polticos (poltica conjuntural) desagregam

    e, ao mesmo tempo, agregam (transformaes espaciais) o campesinato e ele, ento, para

    sobreviver, recria-se.

    No Brasil, o capitalismo no campo, que teve incio com o plantation e na produo de

    cana-de-acar, sua principal atividade econmica, passou, ao longo da histria, por diversas

    transformaes at chegar sua fase atual, o agronegcio. No perodo recente, devido s

    crises climticas e relativa proximidade do fim do petrleo, o capital encontrou no campo

    brasileiro, mais especificamente no agronegcio dos agrocombustveis, uma nova

    oportunidade para realizar e ampliar ainda mais a sua acumulao. Utilizando um discurso

    ambientalmente correto, o capital vai construindo novos mecanismos e/ou estratgias de

    acumulao o que d a ele uma nova face.

  • 23

    Como resultado, ocorre um reordenamento territorial e produtivo em fraes do territrio

    goiano, mais especificamente a partir do ano de 2005/06, momento em que a rea plantada

    com cana-de-acar sofre enorme expanso, provocada por trs fatores, que so: 1) o aumento

    na demanda dos mercados externo e interno por acar; 2) o aumento do consumo interno de

    etanol como combustvel de veculos automotores; e 3) a adio de lcool anidro gasolina.

    Em defesa do etanol, o discurso capitalista tem se baseado principalmente em dois

    argumentos. O primeiro deles que o etanol uma alternativa de combustvel renovvel para

    substituir os combustveis fsseis que vo acabar num futuro no muito distante

    considerando-se o tempo histrico; o segundo a necessidade de reduzir as emisses de CO2

    na atmosfera, cujo principal responsvel so os combustveis fsseis. So estes os principais

    argumentos utilizados nos discursos para justificar a expanso do setor que, atualmente, vem

    promovendo a concentrao e a centralizao de capital, tanto na produo como na

    distribuio e comercializao do etanol, formando oligoplios e monoplios.

    No Brasil, entretanto, a produo do agrocombustvel, o etanol, petrodependente, porque

    a produo da matria-prima para a fabricao do etanol, a cana-de-acar, altamente

    dependente do consumo de venenos, fertilizantes, mquinas e equipamentos, caminhes etc.

    que consomem uma grande quantidade de combustvel fssil e seus derivados. Portanto, na

    verdade, o etanol no um combustvel limpo como propagado e, mesmo assim, no Brasil,

    sua produo vem se expandindo justificada como um meio para enfrentar a crise ambiental e

    as possibilidades reais do fim do petrleo.

    Alm disso, no Brasil, vem ocorrendo uma crescente concentrao e centralizao na

    produo e nas vendas de etanol e acar por grandes grupos econmicos multinacionais, o

    que condiz com o que Franois Chesnais chamou de mundializao do capital. Neste sentido,

    o capitalismo no campo brasileiro, no caso, o agronegcio dos agrocombustveis, vem

    construindo um conjunto de aes para garantir a expanso da acumulao de capital e, para

    isso, est firmando uma aliana entre a produo, a circulao e o capital financeiro,

    formando, assim, grandes monoplios e oligoplios, tendo sempre frente os grupos de

    empresas transnacionais e estas, por sua vez, controladas e/ou dirigidas pelo capital

    financeiro. Portanto, h, de fato, uma tendncia formao de monoplios e oligoplios no

    agronegcio dos agrocombustveis no Brasil.

    A formao de monoplios e oligoplios ocorre por meio do processo de fuso e

    aquisio no setor sucroalcooleiro no Brasil, que pode ser explicada, a partir das teorias sobre

    o imperialismo, elaborada por autores como Marx, Lnin, Luxemburgo, Harvey e Ploeg, entre

  • 24

    outros. Mas, as explicaes mais prximas realidade podem ser encontradas nas anlises

    sobre a mundializao do capital realizadas por Franois Chesnais.

    A luta de classes, travada entre as famlias camponesas e o capital, no caso o agronegcio

    dos agrocombustveis, conforme Oliveira (2007), que estuda a luta dos camponeses pela

    permanncia em seus territrios, produto do prprio desenvolvimento do capital que faz

    do territrio objeto de um longo e constante processo de

    construo/destruio/manuteno/transformao para dele se apropriar para aquilo que for

    conveniente no momento, neste caso, para exercer o agronegcio dos agrocombustveis. a

    partir da expanso da rea plantada com cana-de-acar sobre os territrios camponeses que

    surge a luta pelo territrio, que tem levado construo de novas territorialidades e, com isso,

    tem provocado enormes contradies.

    Esta dissertao dividida em trs captulos, os quais abordam os seguintes temas:

    a) Captulo I: as relaes entre o capitalismo e o campesinato a partir das diferentes vias

    de desenvolvimento do capitalismo no campo. Para isso, foram analisadas vrias vias de

    desenvolvimento, desde as clssicas at as mais recentes.

    b) Captulo II: trata das novas faces de acumulao do capital e seu discurso

    ambientalmente correto; do agronegcio dos agrocombustveis no Brasil; da expanso das

    reas de cultivo da cana-de-acar, frente a perspectiva de aumento do consumo do etanol e

    do acar nos mercados interno e externo; da concentrao e da centralizao de capitais que

    vo formar oligoplios e monoplios.

    c) Captulo III: apresenta os impactos causados pelo agronegcio dos agrocombustveis

    sobre o campesinato no estado de Gois. Neste captulo so apontadas as diversas

    contradies geradas por esse setor do capital no campo. Para tanto, deu-se nfase ao estudo

    em reas de maior concentrao das agroindstrias sucroalcooleiras e de plantao de cana-

    de-acar.

    Por fim, apresentam-se as consideraes e alguns apontamentos, embora o tema

    pesquisado requeira muitos outros e permanentes estudos. Espera-se que a pesquisa seja til

    para a Cincia Geogrfica, para os sujeitos envolvidos nesta pesquisa, ou seja, para as famlias

    camponesas, bem como, de alguma forma, para grande parte do povo brasileiro.

  • 25

    CAPTULO I. O CAMPESINATO NO CAPITALISMO: Extinguir? Resistir? Existir?

    Os camponeses no falam, so falados.

    (Pierre Bourdieu citado por Gerard Mauger)

    Para se analisar a presena do campesinato na sociedade capitalista e apreender,

    compreender e apontar alguns elementos para a reflexo sobre sua extino, resistncia e/ou

    existncia, faz-se necessrio entender as diferentes vias de desenvolvimento adotadas pelo

    capitalismo no campo, desde o seu surgimento at os dias atuais.

    Nesta pesquisa, o tema proposto ser abordado a partir da Geografia Agrria. Neste campo

    da Geografia, h certo consenso que o compreende como o conjunto de problemas inerentes

    ao desenvolvimento do capitalismo no campo.

    No Brasil, no comeo dos anos de 1960, Orlando Valverde foi um dos precursores do

    debate sobre a Geografia Agrria a partir de um olhar crtico. Segundo Valverde (2006), ao se

    estudar a explorao agrcola, necessrio que se tenha um profundo conhecimento sobre o

    solo, a geologia, o relevo, o abastecimento de gua natural, o clima, a vegetao, a formao

    econmica, as influncias sociais etc. Mas, para ele, alm de se compreender esses elementos,

    faz-se necessria uma anlise maior de aspectos como a ao modificadora dos homens por

    motivos de ordem econmica, social, histrica e religiosa. Por isso, mostra ainda que a

    Geografia Agrria no deve restringir-se a uma simples anlise e classificao dos sistemas

    agrcolas e, sim, deve ir alm, porque

    A Geografia Agrria , em ltima anlise, a interpretao dos vestgios que o

    homem do campo deixa na paisagem, na sua luta pela vida, quotidiana e silenciosa.

    Ela permanece, desse modo, no seu substrato, como um estudo essencialmente

    econmico. No foi por acaso que ela foi estruturada quase um sculo depois da

    Economia Poltica. S assim, bem caracterizada no seu aspecto qualitativo e

    quantitativo, a Geografia Agrria adquirir cunho cientfico e ter utilidade prtica.

    Amputada de uma de suas partes, ela poder proporcionar matria para elegantes

    conferncias, cheias de erudio, mas jamais contribuir para a soluo de qualquer

    dos problemas que afligem o homem (VALVERDE, 2006, p. 15).

    Referindo-se realizao de trabalhos de campo, Valverde (2006) considera que,

    [...] o instrumento mais importante que o gegrafo leva para o campo o prprio

    crebro. L, ele no se limita a olhar, pois que assim o fazem todos os que viajam:

    turistas, viajantes. O gegrafo precisa ver o que significa olhar, associado ao ato

    inteligente de refletir: observar, enfim (VALVERDE, 2006, p. 07).

    Referindo-se origem da Geografia Crtica no Brasil, Oliveira (2005) esclarece que ela

    surgiu nos anos 1970 tendo-se atribudo a ela a caracterstica crtica, porque intentava-se

    fazer a crtica ao modo de produo capitalista que se consolidava vorazmente no campo

    brasileiro naquele momento.

  • 26

    Para Bray (2008), em Manuel Correia de Andrade que encontra-se uma ampliao dos

    estudos de Geografia Agrria no Brasil, pois, segundo ele, os estudos de Andrade rompem

    com a chamada neutralidade da Geografia ao incluir em suas discusses os movimentos

    agrrios do Nordeste, especialmente as Ligas Camponesas. Na viso de Bray, Andrade seguia

    o mesmo caminho de outros estudiosos da agricultura brasileira poca, principalmente, Caio

    Prado Jnior, que prefaciou uma das principais obras de Andrade, A Terra e o Homem no

    Nordeste, publicada no comeo dos anos 1960, momento no qual se discutia a Questo

    Agrria e as Lutas Camponesas em diferentes segmentos da sociedade brasileira.

    Segundo Bray (2008), devido a essa comunho do gegrafo com os movimentos sociais

    que pode-se considerar Manuel Correia de Andrade o primeiro gegrafo brasileiro a romper

    com os formalismos e as formalidades, do positivismo neutralidade. Para Bray, foi a partir

    desse momento que Andrade passou a produzir cincia como cientista e como cidado. Nesse

    sentido, A ligao da obra A Terra e o Homem no Nordeste com Caio Prado Jnior colocava

    a necessidade do trabalho emprico sensvel que o gegrafo nacional desenvolveu, no estudo

    das relaes de produo e de trabalho (BRAY, 2008, p. 08).

    Seguiu esta linha de pensamento e tambm considerado um dos precursores deste debate

    o professor e gegrafo Ariovaldo Umbelino de Oliveira, com a defesa, em 1978, de sua tese

    de doutorado intitulada "Contribuio para o estudo da Geografia Agrria: crtica ao

    Estado isolado de Von Thnen"1. Sobre o estudo do campo pela Geografia, Oliveira afirma

    que preciso construir uma Geografia que [...] possa servir de instrumento para a

    transformao do campo e, se possvel, tambm, da cidade (OLIVEIRA, 2001, p.7)2.

    Em suas anlises sobre a Geografia Agrria, Oliveira inseriu temas como a luta pela terra

    e a lgica do sistema capitalista. Para tanto, nas discusses envolvendo o estudo das relaes

    sociais no campo, foram incorporadas a Sociologia e a Economia para buscar explicaes

    para a complexa realidade no campo. Mas, claro que isso no se fez sem que houvesse

    crticas por parte de alguns gegrafos3.

    De todo modo, como bem ressalta Thomaz Jr (2009),

    [...] o que queremos com esse raciocnio chamar a ateno do leitor para o fato de

    que a Geografia Agrria tem como elemento fundamental e fundante o fato de

    termos uma questo agrria no Brasil [...] habitada, pois, por contradies,

    polmicas histricas e renovadas nos ltimos anos pelos efeitos irradiadores do

    1 Ver Atlas da Questo Agrria Brasileira, disponvel em:

    http://www4.fct.unesp.br/nera/atlas/questao_agraria.htm. 2 Ver Atlas da Questo Agrria Brasileira, disponvel em:

    http://www4.fct.unesp.br/nera/atlas/questao_agraria.htm. 3 Para identificar alguns crticos e para uma maior compreenso do tema ver Atlas da Questo Agrria

    Brasileira, disponvel em: http://www4.fct.unesp.br/nera/atlas/questao_agraria.htm.

  • 27

    destrutivismo do desenvolvimento das foras produtivas capitalistas atravs do

    agronegcio, em particular na primeira dcada do segundo milnio (THOMAZ JR,

    2009, p. 27-28).

    Como os debates e a discusso sobre a Geografia Agrria Crtica no Brasil tiveram incio

    no final da dcada de 1960 e comeo dos anos de 1970, tambm, nesta pesquisa, para o

    entendimento das diferentes vias de desenvolvimento do capitalismo no campo, recorrer-se-

    a autores clssicos, tanto da Economia como da Sociologia, especialmente Marx e autores

    marxistas, porque escolher os mtodos e conhecer suas implicaes importante em todas as

    pesquisas.

    Mas, antes preciso, mesmo de forma resumida, pois no inteno aprofundar este

    debate nessa pesquisa, conceituar o que o capitalismo enquanto modo de produo.

    Entre os consensos existentes entre intelectuais das mais diferentes correntes que, a partir

    de um olhar extremamente tcnico, analisaram no ltimo sculo e meio o sistema capitalista

    est o entendimento de que capitalismo refere-se: acumulao financeira, posse privada

    dos meios de produo que destinada totalmente comercializao para obteno de lucro,

    portanto, todos os produtos so mercadorias, inclusive o homem.

    Mas, dentre as principais correntes de anlise e interpretao deste sistema de produo,

    duas correntes chocam-se e divergem substancialmente, seja no que se refere s origens, seja

    no que se refere s consequncias deste sistema para a sociedade. Nesse caso, est se falando

    de dois grandes pensadores: Karl Marx e Max Weber4.

    A primeira crtica sistematizada feita ao capitalismo foi elaborada por K. Marx, para quem

    o capitalismo tem sua origem em e formado a partir de condies histricas e econmicas.

    Marx define o capitalismo como um modo de produo de mercadorias que teve origem na

    Idade Moderna. O seu desenvolvimento, enquanto modo de produo, deu-se a partir da

    Revoluo Industrial.

    4 claro que existem diversos outros autores que abordaram o tema como Werner Sombart; Maurice Dobb, com

    seus Estudos sobre o desenvolvimento do Capitalismo; Paul Sweezy e Rodney Hilton, cujo conjunto de debates

    foi publicado nos livros A transio do feudalismo para o capitalismo, publicado no Brasil pela Editora Paz e

    Terra e Do feudalismo ao capitalismo, livro organizado por Theo Santiago e que foi publicado no Brasil pela

    Editora Contexto. Tambm existe a obra de Karl Polanyi, A grande transformao. Alm disso, nos anos de

    1970 o livro de Perry Anderson, Linhagens do Estado Absolutista. Entre os mais recentes destaca-se a obra de

    Ellen M. Wood, A origem do capitalismo, publicada em 1999 e traduzida no Brasil em 2001. Mendona (2008),

    por exemplo, afirma que O capitalismo uma construo histrica e, portanto, passvel de ser superada, na

    medida em que em condies objetivas, o capitalismo surge em espaos e tempos diferenciados, contudo,

    notrio o seu pioneirismo na Inglaterra em meados do sculo XVII (MENDONA, 2004, p. 03). A opo pelas

    obras de K. Marx e Max Weber deu-se porque, de certa forma, eles acabaram influenciando as demais, que

    acabaram por concordar ou no com as abordagens destes dois tericos.

  • 28

    Para Marx o modo de produo capitalista no se restringe somente s questes

    econmicas, entranha-se nas relaes sociais estabelecidas a partir da relao entre capital e

    trabalho, na qual a fora de trabalho (os trabalhadores) no proprietria dos meios de

    produo, o que leva a um outro aspecto fundamental para o funcionamento do sistema

    capitalista: a transformao da fora de trabalho em mercadoria. Logo, esta fora de trabalho

    pode ser levada ao mercado e trocada livremente. Feito isso, para Marx estava posta a

    caracterstica fundamental deste sistema: a diviso da sociedade em classes sociais. De um

    lado, as classes que so proprietrias dos meios de produo (burguesia e proprietrios de

    terra), e, de outro, outra classe, cuja nica fonte de sobrevivncia a venda de sua fora de

    trabalho.

    Outra explicao alternativa de Marx, e que ganhou muitos adeptos, inclusive na

    Geografia, foi apresentada por Max Weber em sua obra A tica protestante e o esprito do

    capitalismo. Weber centraliza sua anlise em aspectos culturais, pois, para ele, o desejo de

    acumular riquezas sempre existiu nas sociedades humanas. Para Weber este desejo esteve

    presente no Imprio Romano, assim como nas Grandes Navegaes. Mas, ainda faltavam

    condies sociais para garantir seu desenvolvimento contnuo e ininterrupto.

    Weber afirma ainda que as condies sociais necessrias ao desenvolvimento pleno do

    capitalismo surgiram somente aps a Reforma Religiosa Protestante ocorrida no sculo XVI.

    Demonstra isso a partir da anlise que faz das condenaes feitas pela Igreja Catlica s

    prticas da usura e do lucro por comerciantes durante os sculos XV e XVI. Afirma tambm

    que, se as restries tivessem sido mantidas, no se teria chegado "acumulao primitiva".

    Ento, para Weber, a mudana fundamental ocorrida, e que permitiu retirar as amarras ao

    desenvolvimento do capitalismo, foi a Reforma Religiosa5 promovida por Lutero e Calvino.

    Segundo Weber, tanto para Lutero como para Calvino, as atividades profissionais devem ser

    vistas como um dom, uma vocao divina, e seria da vontade de Deus que elas fossem

    exercidas. No entendimento de Weber, foi a partir deste momento que o trabalho, que at

    ento era visto como um mal necessrio, passa a ter um valor positivo. Ainda, na viso de

    Calvino, o trabalho a nica forma de salvao e a acumulao de riquezas a partir do

    trabalho um sinal de predestinao.

    Para Max Weber, esses novos dogmas religiosos, somados a outros como a contabilidade

    diria etc., passaram a formar os fundamentos de uma tica que, a partir de ento, regeria a

    5 Conjunto de movimentos de carter religioso, mas que chegaram ao campo poltico e econmico contestando

    os dogmas catlicos. Ocorreu entre os anos de 1517 e 1564. Iniciou-se na Alemanha e provocou a separao na

    comunidade catlica da Europa que deu origem ao protestantismo.

  • 29

    conduta diria dos fiis protestantes. Logo, estavam dados os elementos fundamentais para a

    consolidao do capitalismo aos quais chamou de: A tica protestante e o "esprito" do

    capitalismo.

    Estas duas diferentes formas de interpretar o capitalismo, descrita acima, guardam

    divergncias entre elas. Diante disso, toma-se posio no apenas por questes ideolgicas,

    mas tambm por questes lgicas pois seguir analisando, de um lado, as ideias de Weber,

    e/ou autores weberianos, e, de outro, Marx e/ou autores marxistas se constituiria um exerccio

    tautolgico. Alm disso, as opes terico-metodolgicas so necessrias para a realizao de

    quaisquer trabalhos cientficos. Ou se est com um ou se est com outro, especialmente no

    que se refere s interpretaes sobre o capitalismo. Assim seguir-se- nesta pesquisa as ideias

    de Karl Marx, at porque o conceito de capitalismo de Marx rigorosamente unvoco. No h

    margem para subterfgios. J o idealismo das teorias elaboradas por Max Weber, centradas

    numa certa orientao capitalista de lucro, poderiam levar as interpretaes dos fatos a vrias

    formas de capitalismo.

    A seguir, sero discutidas as principais vias de desenvolvimento do capitalismo na

    agricultura a partir das obras de Marx e de autores marxistas, fato importante para poder se

    perceber os impactos da ao do capitalismo, especialmente do setor do agronegcio dos

    agrocombustveis sobre as famlias camponesas. Alm disso, a partir dessas vias pode-se

    confirmar ou no as predies de autores clssicos sobre a extino do campesinato em todo o

    mundo.

    Compreender este processo histrico do capitalismo e suas diferentes vias de

    desenvolvimento faz-se necessrio porque a sua forma de ao/expanso no foi homognea,

    o capitalismo foi se metamorfoseando conforme a necessidade de cada realidade histrica.

    Alm disso, h diferentes interpretaes sobre os impactos causados pelo seu

    desenvolvimento sobre o campesinato.

    Diante disso, pergunta-se: Por que, mesmo depois de cerca de um sculo da proclamao

    do fim do campesinato, os camponeses continuam presentes em todo o mundo, em alguns

    locais, com mais, e, em outros, com menos presena? O que ento explicaria sua permanncia

    nestas sociedades capitalistas? Que elementos (fatores) levaram sua extino, sua

    permanncia, sua recriao? Que futuro lhe espera especialmente onde se expande o

    agronegcio dos agrocombustveis como vem ocorrendo em Gois? Estas questes tm

    levado a grandes polmicas e precisam ser mais bem analisadas pelos estudiosos.

    Inmeras discusses sobre o campesinato, desde os clssicos at os mais recentes,

    perpetuaram diferenas entre as atividades desenvolvidas no campo, a realidade camponesa, e

  • 30

    as no camponesas, que vo desde as suas formas de existncia at as relaes sociais e

    tcnicas nelas presentes, como por exemplo: proprietrios da terra x no proprietrios;

    tecnificados x no tecnificados; especializados x diversificados; dinmicos x conservadores;

    modernos x atrasados.

    Quanto s discusses envolvendo a racionalidade camponesa do processo decisrio so

    bastante comuns discusses abordando temas como: maximizador de renda x minimizador de

    fadiga x minimizador de risco.

    Enfim, estas e tantas outras discusses, a partir de teorias totalizantes, tm sido colocadas

    nos ltimos tempos sobre a presena do campesinato na sociedade capitalista.

    H ainda os que advogam a incapacidade estrutural das unidades camponesas de

    sobreviver na sociedade capitalista. Mas, h tambm os que, opondo-se queles, argumentam

    que os camponeses tm seus mecanismos prprios de resistir ao econmica do capitalismo

    no campo. De qualquer forma, as predies sobre o futuro dos camponeses so elaboradas a

    partir de diferentes interpretaes das diferentes vias de desenvolvimento do capitalismo no

    campo; entre as clssicas alguns autores marxistas identificam as vias inglesa, prussiana,

    junker, farmer e a plantation e a atual, o agronegcio. Neste captulo, sero abordadas apenas

    as quatro primeiras. As demais sero tratadas no captulo seguinte.

    1.1 A via inglesa de desenvolvimento do capitalismo no campo

    Entre os que realizaram uma primeira interpretao sobre o desenvolvimento do

    capitalismo a partir de uma viso crtica esto autores clssicos, como Karl Marx, Friedrich

    Engels e Rosa Luxemburgo que centraram suas anlises no desenvolvimento do capitalismo

    na Inglaterra porque foi l, na Inglaterra, que o capitalismo teve seu incio a partir da

    Revoluo Industrial ocorrida entre o final do sculo XVIII e o incio do seculo XIX e que

    levou a um conjunto de mudanas tcnicas e tecnolgicas que causou grandes impactos no

    processo produtivo, assim como mudanas econmicas, polticas, culturais e sociais

    profundas.

    Estes autores so tidos por muitos, assim como sero tidos nesta pesquisa, como aqueles

    que interpretam o desenvolvimento, nessa fase inicial, do capitalismo como a chamada via

    inglesa.

    Karl Marx (2005), no livro I, V. II, Cap. XXIV de O Capital, foi o primeiro a partir de

    uma viso crtica e a utilizar o conceito de acumulao primitiva em suas abordagens

  • 31

    histricas sobre o desenvolvimento do modo de produo capitalista e os impactos causados,

    por meio de sua expanso, sobre o campesinato na Inglaterra.

    Neste captulo, Marx denuncia o modo violento e criminoso com que a nova classe social

    (a burguesia), que se formava na Europa, especialmente na Inglaterra, se apoderou de toda a

    riqueza fundiria, que pertencia historicamente grande massa camponesa (na Idade Mdia),

    aps o declnio da sociedade feudal.

    Para Marx, o desenvolvimento do modo de produo capitalista se alicera na dissociao

    dos trabalhadores de seus meios de produo atravs da expropriao e da extrao da mais-

    valia.

    [...] a acumulao do capital pressupe a mais-valia, a mais valia, a produo

    capitalista, e esta, a existncia de grandes quantidades de capital e de fora de

    trabalho nas mos dos produtores de mercadoria [...] Todo esse movimento tem,

    assim, a aparncia de um ciclo vicioso, do qual s poderemos escapar admitindo uma

    acumulao primitiva, anterior acumulao capitalista, uma acumulao que no

    decorre do modo capitalista de produo, mas seu ponto de partida (MARX, 2005,

    p. 827).

    A histria do capitalismo para Marx, no que se refere ao acmulo de terras, sempre se deu

    pela expropriao dos camponeses ou de povos tradicionais6, que eram a maioria, em proveito

    de uma minoria. Marx denominou este processo de acumulao primitiva.

    Para Marx a acumulao primitiva teve seu incio com a expropriao dos camponeses na

    Inglaterra atravs dos enclosures, ou seja, dos cercamentos, e, posteriormente, se estendeu

    s colnias7, de uma forma ainda mais brutal e violenta, tendo presente o trabalho escravo.

    Assim, impelida pela necessidade de mercados sempre novos, a burguesia invade todo o

    globo. Necessita estabelecer-se em toda parte, explorar em toda parte, criar vnculos em toda

    parte (MARX; ENGELS, s/d, p. 24). E,

    Devido ao rpido aperfeioamento de todos os instrumentos de produo e ao

    constante progresso dos meios de comunicao, a burguesia arrasta para a torrente da

    civilizao mesmo as naes mais brbaras. Os baixos preos de seus produtos so a

    artilharia pesada que destri todas as Muralhas da China e obrigam a capitularem os

    6 Existem, claro, outras formas de interpretao sobre a origem do capitalismo. Na viso de Ellen M. Wood, por

    exemplo, O capitalismo nasceu bem no cerne da vida humana, na interao com a natureza, da qual depende a

    prpria vida, e a transformao dessa interao pelo capitalismo agrrio revelou os impulsos intrinsecamente

    destrutivos de um sistema em que os prprios fundamentos elementares da vida ficam sujeitos aos requisitos do

    lucro (WOOD, 2001, p. 126). 7 Para Ellen M. Wood, Uma vez estabelecido o capitalismo num dado pas, a partir do momento em que ele

    comeou a impor seus imperativos [quais sejam: desapropriao, extino dos direitos consuetudinrios,

    imposio dos imperativos do mercado (como os de competir e acumular) e destruio ambiental] ao resto da

    Europa e, por fim, ao mundo inteiro, seu desenvolvimento em outros lugares nunca pde seguir o mesmo curso

    que ele tivera em seu lugar de origem. A partir de ento, a existncia de uma sociedade capitalista transformou

    todas as demais, e a expanso posterior dos imperativos capitalistas alterou constantemente as condies do

    desenvolvimento econmico (WOOD, 2001, p.126-127).

  • 32

    brbaros mais tenazmente hostis aos estrangeiros. Sob pena de morte, ela obriga todas

    as naes a adotarem o modo burgus de produo, constrange-as a abraar o que ela

    chama de civilizao, isto , a se tornarem burguesas. Em uma palavra, cria um

    mundo a sua imagem (MARX; ENGELS, s/d, p. 25).

    Como resultado deste processo, a burguesia criou aglomeraes de pessoas nas cidades,

    centralizou os meios de produo e concentrou a propriedade da terra, o que,

    consequentemente, levou centralizao poltica.

    Realizada a separao dos trabalhadores dos seus meios de produo, destrudas as

    diferentes formas organizativas de povos primitivos ou outros modos de produo (Primitivo,

    Asitico e/ou Feudal), Em seu lugar, estabeleceu-se a livre concorrncia, com uma

    organizao social e poltica correspondente, com a supremacia econmica e poltica da classe

    burguesa (MARX; ENGELS, s/d, p. 26).

    Para Marx, o sistema capitalista, em seu processo histrico, como histria universal,

    pressupe a dissociao entre os trabalhadores e a propriedade dos meios de produo pelos

    quais realizam o trabalho, o que corresponde separao entre homem e natureza. Em meio a

    esta contradio, a luta de classes aparece como agente propulsor deste processo. Ainda,

    segundo ele, quando a produo capitalista se torna independente, no se limita apenas a

    manter essa dissociao, dedica-se a reproduzi-la em escala cada vez mais ampliada. Por isso,

    os mecanismos que criam o sistema capitalista esto alicerados na retirada do trabalhador da

    propriedade de seus meios de trabalho. Um processo que transforma em capital os meios

    sociais de subsistncia e de produo e converte em assalariados os produtores diretos.

    Da a acumulao primitiva, para Marx, ser o processo histrico que dissocia o

    trabalhador dos meios de produo e que separa homem e natureza. E considerada primitiva

    porque constitui a pr-histria do capital e do modo de produo capitalista. Neste sentido,

    [...] a expropriao da massa do povo que fica assim sem terra forma a base do modo

    capitalista de produo (MARX, 2005, p. 884) e o principal mecanismo de produo do

    capital.

    Portanto, para Marx, a acumulao primitiva constituiu a base do desenvolvimento do

    modo de produo capitalista e,

    Marcam poca, na histria da acumulao primitiva, todas as transformaes que

    servem de alavanca classe capitalista em formao, sobretudo aqueles

    deslocamentos de grandes massas humanas, sbita e violentamente privadas de seus

    meios de subsistncia e lanadas no mercado de trabalho como levas de proletrios

    destitudos de direitos. A expropriao do produtor rural, do campons, que fica

    assim, privado de suas terras, constitui a base de todo o processo (MARX, 2005, p.

    829-830).

  • 33

    Para Marx, a estrutura econmica da sociedade capitalista nasceu da decadncia da

    estrutura econmica da sociedade feudal. A desagregao do feudalismo liberou os elementos

    necessrios para a formao do sistema capitalista. Com a dissoluo do sistema feudal que,

    em toda a Europa, segundo Marx, se caracterizava pela grande distribuio8 das terras entre os

    camponeses, que teve incio o processo ento chamado de enclosures.

    Os enclosures, ou cercamentos, consistiam na destituio das terras antes em posse dos

    camponeses, as terras comunais, desses camponeses, para dar lugar criao de ovelhas, com

    a finalidade de fornecimento de matria-prima (l) para abastecer a indstria de tecelagem que

    se desenvolvia poca. Como resultado deste processo, a terra transforma-se em mera

    mercadoria.

    Para garantir o cercamento das terras comuns, neste perodo (sculos XV e XVI), o

    instrumento utilizado foi a violncia e o terrorismo, que garantiram, assim, a transformao

    das lavouras em pastagens. Se a situao do campons j era ruim, com a usurpao das terras

    comuns e a revoluo agrcola que a acompanhava, agravou-se (MARX, 2005).

    Alm disso, vrias outras aes de violncia e vrios outros mecanismos de expropriao

    dos camponeses foram utilizados na Inglaterra, durante este perodo. Tudo para afastar os

    camponeses do seu meio de produo a terra , e, assim, [...] o ltimo e grande processo de

    expropriao dos camponeses finalmente a chamada limpeza das propriedades, a qual

    consiste em varrer desta os seres humanos (MARX, 2005, p. 842). Como resultado, [...] a

    expropriao da populao rural cria imediatamente apenas grandes proprietrios de terras

    (MARX, 2005, p. 856).

    Segundo Marx (2005), com o furto das terras da Igreja, com a alienao dos domnios do

    Estado, com a ladroeira das terras comuns e com a transformao da propriedade feudal e do

    cl em propriedade privada levados a cabo atravs de violncia implacvel, configuraram-se

    os mtodos idlicos da acumulao primitiva que permitiram o ganho das terras para o capital

    e [...] conquistaram o campo para a agricultura capitalista, incorporaram as terras ao capital e

    proporcionaram indstria das cidades a oferta necessria de proletrios sem direitos

    (MARX, 2005, p. 847).

    Efetivado este processo de expropriao e expulso dos camponeses de suas terras, estas

    foram enquadradas na disciplina exigida pelo sistema de trabalho assalariado, por meio do

    terrorismo legalizado, que empregava o aoite, o ferro em brasa e a tortura9. Mas, segundo

    8 Entendida como posse, como terra para trabalho.

    9 Sobre o tema ver tambm a obra Costumes em comum - estudos sobre a cultura popular tradicional de E. P.

    Thompson. Nela o autor aborda temas relacionados histria do trabalho, dos motins, do radicalismo, do crime,

  • 34

    Marx (2005), para o desenvolvimento do capitalismo, no bastava apenas que houvesse, de

    um lado, condies de trabalho sob a forma de capital e, do outro, seres humanos que nada

    tinham a vender alm de sua fora de trabalho, tampouco bastava for-los a vender

    livremente sua fora de trabalho. Para progredir a produo capitalista, era preciso que se

    desenvolvesse tambm uma classe trabalhadora que, por educao, tradio e costume,

    passasse a aceitar as exigncias daquele modo de produo como leis naturais evidentes.

    Essas condies foram dadas, durante a Idade Mdia, conforme (MARX, 2005), ao

    surgirem duas formas de capital das quais emergiram o capitalismo: o capital usurrio e o

    capital mercantil. Mas, o capital dinheiro, formado tanto pela usura quanto pelo comrcio, era

    impedido de transformar-se em capital industrial devido existncia do sistema feudal no

    campo e organizao corporativa na cidade, as corporaes de ofcio. Estes entraves foram

    postos abaixo com a dissoluo das vassalagens feudais e com a expropriao e expulso das

    populaes rurais.

    Para Marx (2005), os vrios acontecimentos ocorridos durante o processo de

    desenvolvimento do perodo manufatureiro caracterizam-no como perodo de acumulao

    primitiva. Entre eles, O sistema colonial, a dvida pblica, os impostos pesados, o

    protecionismo, as guerras comerciais etc., esses rebentos do perodo manufatureiro,

    desenvolvem-se extraordinariamente no perodo infantil da indstria moderna (MARX,

    2005, p. 870-71). Assim, mediante enormes sofrimentos para as populaes que,

    Estabeleceram-se as eternas leis naturais do modo capitalista de produo,

    completou-se o processo de dissociao entre os trabalhadores e suas condies de

    trabalho, os meios sociais de produo e de subsistncia se transformaram em capital,

    num polo, e, no polo oposto, a massa da populao se converteu em assalariados

    livres, em pobres que trabalham, essa obra prima da indstria moderna [...] o

    capital, ao surgir, escorrem-lhe sangue e sujeira por todos os poros, da cabea aos ps

    (MARX, 2005, p. 873-74).

    Durante todo esse processo, agitavam-se no seio da sociedade foras e paixes que se

    sentiam prejudicadas e que deveriam ser destrudas e o foram. Sua destruio significou a

    transformao dos meios de produo individual em meios socialmente concentrados que

    transforma as posses minsculas de muitos em propriedades gigantes de poucos. Assim, a

    expropriao dos camponeses, expulsos de suas terras, de seus meios de subsistncia e de seus

    instrumentos de trabalho, constitui a pr-histria do capital (MARX, 2005).

    dos costumes, das leis etc. Analisa tambm os hbitos dos setores populares britnicos, como a defesa do uso

    comunal das terras diante da intensificao dos cercamentos, as novas noes de tempo trazidas pelo capitalismo

    industrial, a cruel punio aplicada a quem desrespeitasse as regras dos vilarejos etc. como defesa de direitos

    imemoriais ou estratgias de manipulao da lei numa sociedade que se defrontava com as novas imposies do

    capitalismo.

  • 35

    No entendimento de Marx (2005), desintegrada a velha sociedade e convertidos os

    camponeses e demais trabalhadores em proletrios e suas condies de trabalho em capital e

    posto o modo de produo capitalista a andar sobre seus prprios ps, surgiria uma nova etapa

    em que prosseguiriam, agora, sob nova forma, a socializao do trabalho e a converso do

    solo e dos meios de produo em meios de produo coletivamente empregados em

    propriedade comum , o que levaria uma nova expropriao. Nesta nova etapa, [...] o que

    tem de ser expropriado agora no mais aquele trabalhador independente, e, sim, o capitalista

    que explora muitos trabalhadores (MARX, 2005, p. 876).

    Para Marx (2005), essa expropriao10

    ocorreria pela ao das prprias leis imanentes da

    produo capitalista, que levam ao processo de centralizao do capital e constituio de

    monoplios, que se estenderiam pelo mundo, dando origem ao carter internacional do regime

    capitalista, o que, de fato, ocorreu. Todo este processo de centralizao dos meios de

    produo e socializao do trabalho, contudo, podem atingir patamares que o tornaro

    incompatvel com o prprio envoltrio capitalista, que romper-se- e, ento, soar a hora final

    da propriedade particular capitalista, na qual os expropriadores, agora, sero expropriados.

    nesta contradio que a produo capitalista vai gerar sua prpria negao, como um processo

    natural. a negao da negao. Se antes houve a expropriao da massa do povo por poucos,

    agora se trata da expropriao de poucos usurpadores pela massa do povo. No entanto, esse

    no um processo que ocorre por inrcia ou naturalmente. preciso que os expropriados

    da massa do povo ajam no vcuo que as contradies capitalistas geram.

    Ao se analisar, a partir da viso de Marx, o futuro do campesinato na sociedade

    capitalista, percebe-se que o campons para ele funcionalizvel para o capital mercantil e

    usurrio (momento da dominao indireta do capital), porm incompatvel com o domnio

    direto e a subsuno real. Neste sentido, para Marx, no existe a possibilidade de permanncia

    (sobrevivncia) do campesinato na sociedade capitalista, pois os fatores econmicos

    identificados no desenvolvimento do capitalismo na Inglaterra levariam ao seu fim.

    Contrapondo-se tese de Marx, Rosa Luxemburgo (1985), em sua obra A Acumulao de

    Capital, no captulo XXVII em que aborda A Luta Contra a Economia Natural, afirma que

    O capitalismo vem ao mundo e se desenvolve historicamente em meio social no-

    capitalista. Nos pases da Europa ocidental ele se desenvolve inicialmente no meio

    feudal, o que lhe comunica sua forma primitiva [...] aps a queda do feudalismo, ter

    por ambiente o meio campons-artesanal, ou seja, o meio da produo simples, de

    10

    Esta expropriao da massa do povo deu origem ao conceito de exrcito industrial de reserva desenvolvido por

    F. Engels em seu trabalho sobre As condies da classe trabalhadora na Inglaterra e que veio a integrar o

    ncleo central da economia poltica desenvolvida posteriormente por Marx.

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    cunho mercantil, seja agrcola, seja artesanal [...] esse o meio em que prossegue a

    marcha do processo capitalista de acumulao (LUXEMBURGO, 1985, p. 253).

    Embora seguidora do pensamento de Marx, Rosa Luxemburgo v o futuro do campesinato

    de uma forma diferente da de Marx. Para ela, h trs fases importantes a se observar neste

    processo, que so: a luta do capital contra a economia natural; a luta contra a economia

    mercantil; e a concorrncia do capital no cenrio mundial, em luta pelas condies restantes

    de acumulao (LUXEMBURGO, 1985, p. 253).

    Para Luxemburgo (1985), as formas de produo da economia natural de nada servem

    para o capital para a realizao de seu fim, que o lucro, pois nestas formas de produo seus

    produtos so destinados satisfao das necessidades prprias e, por isso, seus praticantes no

    necessitam de mercadorias estrangeiras e nem registram excedentes de produtos prprios que

    os obriguem a deles se desfazerem. Alm disso, nesta economia e em todas as suas formas de

    produo existe sempre um vnculo entre os meios de produo e a mo-de-obra, seja ela nas

    comunidades camponesas onde a posse da terra era comum, como na propriedade feudal, seja

    em outras. Nestas economias, estabelece-se como base de sua organizao a sujeio dos

    principais meios de produo terra e fora de trabalho conforme o direito e a origem.

    por isso que a economia natural cria empecilhos s exigncias do capital e tambm por isso

    que o capitalismo, onde quer que seja, busca sempre destru-la.

    Para Luxemburgo (1985), os objetivos econmicos da luta do capitalismo contra as

    sociedades de economias naturais eram os seguintes:

    a) apossar-se diretamente das principais fontes de foras produtivas, tais como terra,

    caa, das florestas virgens, minrios, pedras preciosas e metais, produtos vegetais

    exticos, como a borracha etc. b) liberar fora de trabalho e submet-la ao capital,

    para o trabalho; c) introduzir a economia mercantil e; d) separar a agricultura do

    artesanato (LUXEMBURGO, 1985, p. 254).

    Na acumulao primitiva, segundo Luxemburgo (1985) o encampamento do pequeno

    estabelecimento agrcola pelo grande, constituiu, na Inglaterra e no continente europeu, o

    meio mais importante para a transformao macia dos meios de produo e da fora de

    trabalho em capital. Esta situao prevaleceu e foi levada adiante, em escala bem maior, por

    meio das polticas de colonizao. Na viso da autora pura iluso, entretanto, esperar que o

    capital se contente com os meios de produo obtidos somente da via comercial.

    Mas, o capital encontrou resistncia para se implantar. Entre as principais dificuldades

    estava o fato de que, em grandes regies do mundo, as foras produtivas se encontravam sob

    o controle de formaes sociais que rejeitavam o comrcio ou no podiam oferecer ao capital

    os principais meios de produo que lhe interessavam. Isso aconteceu principalmente com a

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    terra e com a riqueza que ela continha. Esperar pelo processo de desagregao dessas regies

    de economia natural, at que isso resultasse na alienao, pelo comrcio, dos principais meios

    de produo, significaria para o capital a renncia total s foras de produo desses

    territrios. Isso explica por que o capitalismo utilizou a apropriao violenta dos principais

    meios de produo em terras coloniais (LUXEMB