UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO ......3.6 Ilha das Flores 97 3.7 Negócio Fechado 105...

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE LINGUAGENS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DE LINGUAGEM JEAN CARLOS DOURADO DE ALCÂNTARA CURTA-METRAGEM: GÊNERO DISCURSIVO PROPICIADOR DE PRÁTICAS MULTILETRADAS CUIABÁ-MT/2014

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE LINGUAGENS

    PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DE LINGUAGEM

    JEAN CARLOS DOURADO DE ALCÂNTARA

    CURTA-METRAGEM: GÊNERO DISCURSIVO PROPICIADOR DE PRÁTICAS MULTILETRADAS

    CUIABÁ-MT/2014

  • JEAN CARLOS DOURADO DE ALCÂNTARA

    CURTA-METRAGEM: GÊNERO DISCURSIVO PROPICIADOR DE PRÁTICAS MULTILETRADAS

    Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagem da Universidade Federal de Mato Grosso como exigência parcial para a obtenção do título de mestre em Estudos de Linguagem. Linha de pesquisa: Práticas textuais e discursivas: múltiplas abordagens Orientadora: Prof.ª Dr.ª Simone de Jesus Padilha.

    CUIABÁ-MT/2014

  • Ficha catalográfica

    Alcântara, Jean Carlos Dourado de. Curta-metragem: gênero discursivo propiciador de práticas Multiletradas / Jean Carlos Dourado de Alcântara – Cuiabá: UFMT, 2014. 138 f. :il. Dissertação (Mestrado) -- Universidade Federal de Mato Grosso, Instituto de Linguagem, Programa de pós-graduação em estudo de linguagem, 2014. Orientação: : Prof.ª Dr.ª Simone de Jesus Padilha. 1. Linguística. 2. Curta-metragem. 3. Linguagem - filosofia. 4. Teoria – cinema. 5. Bakhtin, Mikhail

  • Dedico esta conquista ao pequeno Matheus, que veio ao mundo para me constituir enquanto sujeito pai.

  • AGRADECIMENTOS

    À Universidade Federal de Mato Grosso – UFMT, em especial à Maria Santíssima

    de Lima;

    Ao Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagem – MeEL, em especial à

    Divanize Carbonieri;

    À Secretaria Estadual de Educação de MT – SEDUC, em especial à Angelise Cecília

    Carmo Verlangieri;

    Ao Sindicato dos Trabalhadores em Educação da UFMT – Sintuf-MT, em especial à

    Leia Souza de Oliveira;

    Aos teóricos e autores consultados para esta pesquisa, em especial ao Mikhail

    Bakhtin;

    A todos os meus professores, desde a pré-escola até o mestrado, em especial à

    professora Simone de Jesus Padilha;

    A todos os amigos e colegas que contribuíram com este trabalho, em especial à

    Dinaura Batista de Pádua;

    A todos os familiares que contribuíram com este trabalho, em especial à Donata

    Alves Bonfim (minha mãe).

  • RESUMO

    Diante do crescente aumento dos recursos audiovisuais que têm adentrado o espaço escolar atualmente, esta pesquisa objetiva refletir sobre o uso didático da linguagem audiovisual, mais especificamente a do curta-metragem, por professores de língua portuguesa na construção de suas práticas de ensino. Discutimos, neste trabalho, não apenas o caráter pedagógico dessa ferramenta, mas também o seu potencial de produzir transformação nos alunos, tornando-os sujeitos ativos na construção e negociação de sentidos. Buscamos também, por meio do estudo da linguagem cinematográfica, caminhos que levem à valorização e respeito ao cotidiano, à diversidade e à pluralidade dos estudantes, conforme preceituado pelos PCN. Nossas reflexões têm como base as experiências de professores que se serviram do projeto Curta na Escola, desenvolvido pela Petrobrás, desde 2006, o qual disponibiliza em seu site curtas-metragens brasileiros, acompanhados de sequências didáticas, para uso de profissionais cadastrados. Nos relatos selecionados, buscamos verificar, por meio das práticas de ensino, as concepções de linguagem adotadas pelos professores, bem como sua relação com a linguagem do cinema e seus sistemas representativos. Esta pesquisa está respaldada pela teoria enunciativo-discursiva, de abordagem sócio-histórica, elaborada pelo filósofo russo Mikhail Bakhtin. Além disso, buscamos, à luz da teoria do cinema, compreender o processo de produção de sentidos pela linguagem audiovisual, utilizada nas produções cinematográficas. E, por fim, estabelecemos um diálogo entre as duas teorias, a fim de constatar a natureza dialógica também presente na linguagem cinematográfica. Para isso, aplicamos, nos enunciados fílmicos, bem como na análise dos relatos, categorias bakhtinianas, tais como: dialogia, exotopia, excedente de visão, cronotopia etc. Após análise dos dados, concluímos que os professores ainda carecem de formação para lidar com a linguagem audiovisual numa perspectiva enunciativo-discursiva. Pretendemos, com esta pesquisa, contribuir para que os docentes preencham essa lacuna ao lidar com as representações cinematográficas. Palavras-chave: Dialogismo. Cinema. Curta-metragem. Discurso. Linguagem.

  • ABSTRACT

    In view of the growing amount of audio-visual resources that have entered into the

    school currently, this research aims to reflect about the didactic use of audiovisual

    language, specifically the short film, by Portuguese teachers in the development of

    teaching practices. The intention was to discuss not only the pedagogical nature of

    this tool, but also its potential to produce a transformation in students, making them

    active subjects in the construction and negotiation of meanings. Through the study of

    film language, It also sought paths that lead to the valuing and respect to the daily

    situations, to the diversity and plurality of the students, as specified by the NCP. Our

    reflections will be based on the experiences of teachers who have used the Short

    School project, developed by Petrobras since 2006, which provides on its site

    Brazilian short films. Each short is accompanied by didactic sequences, for use by

    registered educators. We seek to verify In selected reports, through teaching

    practices, conceptions of language adopted by teachers, as well as their relationship

    with the language of cinema and its representative systems. This research is

    anchored in the enunciation-discursive theory, of social-historical approach,

    developed by Russian philosopher Mikhail Bakhtin. In addition, we seek, in the light

    of the cinema theory, understand the process of meaning production of audiovisual

    language, used in film productions. And, finally, we establish a dialogue between the

    two theories, in order to determine the dialogic nature also present in film language.

    To achieve this We applied Bakhtinian categories in the analyze the reports, such as:

    dialogism, exotopy, surplus of seeing, chronotope etc. After analyzing the data, we

    concluded that teachers still need training to tackle with the audiovisual language in a

    enunciative-discursive perspective. Through this research, We intend to contribute

    for the teachers fill the gap by dealing with cinematic representations.

    Keywords: Dialogism. Cinema. Short film. Speech. Language.

  • SUMÁRIO

    INTRODUÇÃO 9

    CAPÍTULO I 16

    GÊNERO CURTA-METRAGEM: ASPECTOS FORMAIS, HISTÓRICOS,

    POLÍTICOS E PEDAGÓGICOS 16

    1.1 Curta-metragem no Brasil: história e política econômica 17

    1.2 Curta com personalidade 20

    1.3 Demarcando território 21

    1.4 Espaço público e independência: a reconquista 24

    1.5 Curta-metragem e o conceito de gênero discursivo 26

    1.6 Pertinência didático-pedagógica 31

    CAPÍTULO II 38

    CINEMA, LINGUAGEM E DISCURSO 38

    2.1 Concepção(es) de linguagem: Fundamentos dialógicos do Círculo 39

    2.2 Linguagem cinematográfica: diálogos entre cinema e as ideias de Bakhtin44

    2.3 Categorias bakhtinianas: contribuições para uma análise dialógica do

    discurso cinematográfico 48

    2.3.1 Dialogia para uma compreensão ativa responsiva 48

    2.3.2 O ético e o estético: a indissolubilidade entre arte e vida 54

    2.3.3 Cronotopia: para uma análise contextualizada 57

    2.3.4 Arquitetônica: em busca do (in)acabamento 61

    2.4 Multiletramento: as linguagens multimodais no mundo contemporâneo 65

    2.5 Os signos cinematográficos e seus efeitos de sentido 72

    CAPÍTULO III 80

    ANÁLISE DOS DADOS 80

    3.1 Fundamentos Metodológicos 80

  • 3.2 Procedimentos metodológicos 82

    3.3 Análise dos relatos 85

    3.4 O Lobisomem e o Coronel 86

    3.5 Velha História 92

    3.6 Ilha das Flores 97

    3.7 Negócio Fechado 105

    3.8 Xadrez das Cores 111

    CONSIDERAÇÕES FINAIS 118

    REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 124

    ANEXOS 129

  • 9

    INTRODUÇÃO

    O Cinema, há muito tempo, tem sido notadamente uma profícua ferramenta

    pedagógica utilizada pela escola nas aulas de linguagem. Contudo, segundo Duarte

    (2002), essas instâncias culturais não se reconheciam enquanto parceiras na

    formação social do sujeito. Isso acontecia porque o filme, na maioria das vezes, era

    utilizado como pretexto para introduzir algum conteúdo curricular, ou como forma de

    preencher o tempo. Tal postura se deveu, em parte, à omissão dos teóricos em

    educação em refletir e orientar práticas educativas nas quais o texto fílmico

    estivesse presente, gerando um hiato entre cinema e educação.

    No entanto, segundo Sousa (2005), a partir dos anos 2000, com Robson

    Loureiro, Rosália Duarte e Marcos Napolitano, emerge uma preocupação no meio

    acadêmico em impingir um caráter educativo formal aos estudos de cinema e sua

    relação com o ensino. A partir daí, com a presença cada vez mais frequente dos

    filmes em ambientes escolares, tornou-se evidente a necessidade de assumir o

    cinema enquanto objeto de pesquisa obrigatório nos estudos educacionais.

    Essas iniciativas investigativas acerca do uso de filmes, inicialmente longas-

    metragens, em sala de aula, revelaram o potencial desse recurso para desenvolver

    nos estudantes certa medida de competência nos âmbitos socioculturais, linguísticos

    e comunicacionais. Todavia, por questões estruturais, curriculares e temporais, o

    uso do longa mostrou-se inadequado. Atualmente ele tem sido utilizado de forma

    cada vez mais esporádica nas escolas, como em datas comemorativas, semanas

    culturais ou eventos científicos promovidos pelas instituições de ensino. Por outro

    lado, os filmes de curta-metragem, dada a sua duração e relativa acessibilidade,

    resolveriam esse inconveniente. No entanto, os professores ainda não aderiram

    plenamente ao gênero curta como elemento pedagógico substituinte dos longas-

    metragens em sala de aula.

    Diante disso, colocada a necessidade de pensar sobre a incontestável

    presença do cinema na escola, considerando também a exiguidade dos estudos que

    se dedicam a deslindar essas questões acerca do curta-metragem, coube-nos

    propor esta pesquisa, cujo objetivo geral é elaborar uma descrição reflexiva acerca

    das concepções e formas como esse gênero discursivo vem sendo utilizado pelos

    professores em sala de aula. A ideia é conhecer melhor os reflexos, implicações e

  • 10

    potencialidades pedagógicas concernentes ao uso dessa ferramenta no âmbito

    escolar. Além disso, buscamos também investigar a razão da parca adesão por

    parte dos educadores a essa variante curta do cinema e, em que pese à resistência

    em utilizá-la de forma mais efetiva, procuramos fundamentar, teórica e

    pragmaticamente, a eficácia do seu emprego no ensino de língua materna.

    E como objetivos contíguos, tencionamos oportunizar novas perspectivas com

    relação à linguagem cinematográfica, dar a conhecer possibilidades outras de leitura

    que esse gênero proporciona, tanto nos aspectos cultural e ideológico quanto no

    aspecto textual. Ambicionamos também propiciar ao leitor parâmetros de análise e

    interpretação do texto fílmico, de como explorar os recursos e estratégias utilizados

    pelo discurso cinematográfico e seus modos de significação e produção de sentido;

    empenhamo-nos igualmente em demonstrar o efeito potencializador que as

    narrativas fílmicas exercem na capacidade dos alunos de interpretar textos verbais,

    por meio do confronto com outros gêneros que circulam socialmente, bem como as

    possibilidades de uso didático de curtas-metragens nas atividades de leitura e

    escrita.

    Tais objetivos nortearão a busca de respostas às nossas perguntas de

    pesquisas: 1- Qual a concepção de linguagem adotada pelo professor de Língua

    Portuguesa na sua prática com curta-metragem? 2- Quais as motivações levam o

    professor a valer-se de um texto audiovisual em sala de aula? Por último e não

    menos importante: 3- Quais as dificuldades mais recorrentes encontradas nesse

    processo?

    Ao levantarmos tais questões, partimos dos pressupostos de que os recursos

    mencionados no parágrafo anterior, em princípio, fortes aliados metodológicos nas

    aulas de Língua portuguesa, vêm sendo utilizados, na maioria das vezes, de forma

    infecunda, banalizada e deturpada, sendo relegados ao plano do mero

    entretenimento, ou pretexto para o ensino da norma culta da língua, ou ainda como

    meio de abordar temas transversais; e que tais fatores podem obstar a aplicação, de

    forma efetiva, dos aspectos comunicativos da linguagem não verbal, bem como

    mitigar seu potencial discursivo.

    E para confirmar, ou não, essas e outras conjecturas, partimos das

    experiências concretas vivenciadas em sala de aula por professores de língua

    portuguesa que fizeram uso de curtas-metragens, conforme relatos publicados no

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    site do projeto Curta na Escola1, desenvolvido pela Petrobrás. O objetivo do projeto

    é incentivar o uso de filmes de curta metragem brasileiros como material de apoio

    pedagógico em sala de aula. A iniciativa já consolidou, e vem ampliando a cada dia,

    uma rede colaborativa de aprendizagem em torno de conteúdos relacionados ao uso

    desses recursos em escolas de todo o país. Essa rede é alimentada por meio de

    comentários, discussões em fóruns e, principalmente, pelo envio dos relatos por

    parte dos professores que fizeram uso dos filmes com seus alunos em suas práticas

    de ensino.

    PETROBRÁS. Projeto Curta na Escola. Disponível em: www.curtanaescola.org.br/

    Idealizado em 2006, o projeto oferece indicações de uso pedagógico para

    centenas de curtas, cuja exibição é disponibilizada por meio do site. Profissionais

    especializados produzem pareceres sobre como utilizar os curtas em cada

    disciplina, bem como orientações de como abordar os temas transversais utilizando

    as temáticas apresentadas nos filmes. Aos professores cadastrados é concedido um

    espaço no banco de relatos, no qual suas experiências e estratégias relacionadas ao

    uso dos curtas-metragens, baseadas nos pareceres dos especialistas ou não,

    1 Disponível em: . Acesso em: 15/06/2013.

    http://www.curtanaescola.org.br/http://www.curtanaescola.org.br/

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    podem ser compartilhadas com milhares de outros educadores. E para aqueles que

    possuem cadastro, é permitida a criação de sua própria cinemateca para fazer uso

    dela no momento mais adequado, além de poderem compartilhar os links dos filmes

    assistidos nas redes sociais das quais fazem parte. Os curtas são organizados e

    classificados a partir de critérios como faixa etária, séries em que podem ser

    trabalhados, bem como as disciplinas e os temas transversais aos quais podem ser

    relacionados.

    PETROBRÁS. Projeto Curta na Escola. Disponível em: www.curtanaescola.org.br/

    Em 2007 o projeto lançou, em DVD, a Coleção Curta na Escola, que já está

    no terceiro volume. São três compêndios compostos de seleções de curtas-

    metragens, considerados pela equipe de educadores do projeto de alto potencial

    didático. Todos os filmes selecionados vêm acompanhados de planos de aulas

    elaborados por uma equipe multidisciplinar de professores, que indicam alguns

    caminhos possíveis para uso didático dos curtas em diversas disciplinas, dentre elas

    Língua Portuguesa. Até o momento, cerca de 4 mil escolas da rede pública de todo

    o país já foram beneficiadas com os DVDs da coleção, patrocinada pela Petrobrás e

    distribuída de forma gratuita. Para esta pesquisa vamos utilizar o primeiro volume da

    http://www.curtanaescola.org.br/

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    coleção, o qual contém oito curtas-metragens, dos quais seis possuem indicações

    metodológicas para utilização em aulas de Língua Portuguesa.

    PETROBRÁS. Projeto Curta na Escola. Disponível em: www.curtanaescola.org.br/

    É nesse universo que se encontra nosso objeto de pesquisa, o qual será

    explanado mais detalhadamente na seção metodológica. Passemos agora à base

    teórica que fundamenta esta pesquisa.

    Este trabalho está calcado na teoria do pensador russo Mikhail Bakhitn,

    principalmente no que diz respeito à concepção de linguagem, dialogia, alteridade e

    interação verbal. Outros conceitos desenvolvidos pelo filósofo, tais como exotopia,

    excedente de visão, arquitetônica, cronotopia e a relação que ele estabelece entre o

    ético e estético, bem como entre o autor e o herói, também serão imprescindíveis

    para nosso estudo e fundamentais para entendermos melhor a linguagem

    cinematográfica. Tais noções tornam-se especialmente importantes para discutir a

    autonomia entre as vozes que se fazem presentes nas produções cinematográficas

    de hoje, cada vez mais centralizadas na figura do diretor. A base do pensamento

    bakhtiniano reside na estreita relação que ele estabelece entre o mundo ético, ou

    seja, o mundo em si, a realidade, e o mundo estético, ou seja, sua representação

    http://www.curtanaescola.org.br/

  • 14

    por meio da linguagem. A partir daí, ele estrutura a arquitetônica do seu

    pensamento, na qual a relação com o outro ocupa um lugar de centralidade.

    Acreditamos sim que seja possível abordar o estudo da linguagem

    cinematográfica sob a ótica de Bakhtin, embora este nunca tenha realizado algum

    estudo sobre o cinema e seu sistema de significação. No entanto, partindo do

    pressuposto de que o cinema tornou-se um meio de informação e expressão

    artística, a linguagem passa a compor de forma intrínseca esse processo. E sendo

    a linguagem a ponte necessária para qualquer interação, julgamos pertinente pensar

    a linguagem do cinema e seu potencial educativo à luz das teorias bakhtinianas

    acerca das interações sociais. Robert Stam (1992) obteve sucesso ao aplicar o

    pensamento de Bakhtin à teoria do cinema, quando empregou, ao analisar

    Macunaíma (1969), o conceito de carnavalização, que tem como mote central a

    sátira e a inversão da hierarquia dominante, presente no texto “A Cultura Popular na

    Idade Média e no Renascimento” (BAKHTIN, 1987).

    Assim também procedendo, tentamos, na medida do possível, erigir nossas

    análises dos filmes e das experiências relatadas pelos professores com base nas

    categorias do pensamento bakhtiniano mencionadas acima, visando identificar e

    esclarecer os processos linguísticos e interacionais presentes na relação entre o

    sujeito social professor, o aluno e a linguagem cinematográfica, bem como seus

    efeitos de sentido, seja na sala escura do cinema, seja no ambiente formal da

    escola. Como constatado por Robert Stam (1992, p.59), “Embora a influência de

    Bakhtin tenha-se feito sentir amplamente em estudos culturais, em disciplinas que

    vão da crítica literária à linguística, essa influência ainda precisa revelar sua

    fecundidade potencial na área dos estudos de cinema (...)”.

    E assim como Stam (idem), prosseguimos reverberando esse diálogo

    imaginário com Bakhtin a respeito de um tema sobre o qual o pensador russo nunca

    tinha mencionado. Atende-se, portanto, sua convicção com relação à capacidade

    das obras, ao caírem no grande tempo, de se enriquecerem com novos sentidos,

    sendo o “autor um prisioneiro de sua época, de sua atualidade, esperando que os

    tempos posteriores o libertem dessa prisão” (BAKHTIN, 2003, p.364).

    No que se refere à ordenação metodológica, este trabalho está organizado

    em três etapas que, embora distintas, se complementam. A primeira parte dedica-se

    à contextualização histórica e caracterização do gênero curta-metragem, bem como

    à fundamentação do seu potencial didático em sala de aula. No segundo capítulo,

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    mergulhamos nas concepções teóricas sobre linguagem e cinema, bem como sobre

    o uso de meios audiovisuais, sobretudo o cinema, no processo de letramento em

    língua materna. E por último, buscamos demonstrar, por meio das análises dos

    relatos, como interpretar um enunciado audiovisual, de modo a encará-lo como uma

    unidade de sentido e não como mera ilustração para explicar o conteúdo do

    currículo. Além disso, nessa etapa, ressaltamos as múltiplas possibilidades de

    exploração didática que o gênero curta-metragem oferece para trabalhar de forma

    dialógica o estudo de linguagem, embora não seja essa a sua natureza. Os

    fundamentos e os procedimentos metodológicos da pesquisa e análise dos dados

    estão detalhados no capítulo III.

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    CAPÍTULO I

    GÊNERO CURTA-METRAGEM: ASPECTOS FORMAIS, HISTÓRICOS,

    POLÍTICOS E PEDAGÓGICOS

    Neste capítulo, buscamos oferecer ao leitor uma noção do conceito de curta-

    metragem, suas características definidoras e sua evolução como gênero discursivo.

    Pretendemos, também, abordar seus aspectos históricos, bem como a política

    econômica que, de certa maneira, deu os contornos que atualmente ele apresenta.

    E por último, idealizamos elencar algumas vantagens de usar este gênero nas aulas

    de linguagem, sobretudo se comparado com o longa-metragem. Na última seção,

    procuramos fundamentar a aplicabilidade, bem como a pertinência pedagógica de

    usar o curta-metragem como instrumento de ensino nas aulas de língua portuguesa.

    Além disso, pretendemos, tendo como norte balizador os PCN, apresentar

    possibilidades de aplicação concretas desse recurso em sala de aula.

    Discutimos ainda o papel a ser desempenhado pelo professor na utilização

    dessa ferramenta, desde a escolha do material até o desfecho do processo, com

    vistas a contribuir para o ainda tímido emprego dos curtas no ensino de língua

    materna. E, embora este trabalho não seja sobre curta-metragem, e sim sobre

    professores que fazem uso dele em sua prática de ensino, faz-se mister trazer à luz

    informações de natureza técnico-histórica sobre esse tipo de filme, que nos ajudarão

    a entender melhor a importância desse gênero como um canal por meio do qual

    múltiplas vozes puderam e ainda podem ecoar seus pensamentos de modo livre e

    democrático.

    Nos primórdios da história do cinema, a definição do curta-metragem era

    associada a uma limitação técnica. Dessa forma, a produção de curtas não era uma

    questão de escolha de seus produtores; ao contrário, tratava-se da única forma

    possível de realização cinematográfica naquele momento embrionário das

    produções cinematográficas. Mais de cem anos se passaram, as possibilidades e

    aparatos tecnológicos se multiplicaram, os avanços estéticos vieram e algumas das

    características e critérios que identificavam um curta-metragem naquela época ainda

    são válidos até hoje: um curta-metragem é definido pela sua extensão. Todavia,

    esse conceito foi adquirindo propriedades controversas. Cada vez mais surgiam

    posições díspares e opiniáticas em torno da definição de um curta-metragem.

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    Segundo definição da maioria dos dicionários, esse tipo de produção é definido

    como Filme Curto, cuja duração é geralmente inferior a 30 minutos.

    No entanto, as características de um curta-metragem vão muito além do seu

    formato. Outras propriedades relacionadas à sua curta duração conferem-lhe

    peculiaridades discursivas importantes, como o reduzido número de personagens e

    diálogos, condensação narrativa que, por sua vez, leva à condensação da

    linguagem e da ação; tempo da história, na maioria dos casos, linear;

    verossimilhança com a realidade, grande carga emotiva e sugestiva, além de

    apresentar desfechos geralmente surpreendentes. E, pela sua natureza

    cinematográfica, é grande a possibilidade de veicular conteúdos culturais com

    valores educativos. Por isso mesmo, torna-se uma fonte inesgotável e valiosa para

    trabalhar aspectos da interação humana, como cultura e linguagem.

    Mas algumas dúvidas ainda restam com relação ao que vem a ser um curta-

    metragem. Ribeiro (2013) problematiza levantando a seguinte indagação: Embora

    quase todos os dicionários estipulem o limite máximo de 30, 40 e até 50 minutos,

    haveria um limite mínimo para um filme curto? Outra controvérsia lembrada por ela

    refere-se ao nome “curta-metragem”, em oposição ao “longa-metragem”. Dessa

    relação, pode-se deduzir, pondera a pesquisadora, que ambos estariam inseridos na

    categoria “filme cinematográfico”. No entanto, a realidade sugere outra classificação

    aos curtas, a de “produção audiovisual”, uma vez que sua difusão e exploração

    comercial não estão, a princípio, direcionadas para as telas das salas de cinema,

    embora partilhe das características definidoras de um filme cinematográfico. Essa

    questão será tratada com mais profundidade na seção que se segue.

    1.1 Curta-metragem no Brasil: história e política econômica

    Para além de uma investigação sobre a definição do curta-metragem, faz-se

    necessário um levantamento histórico do processo de formação e transformação

    pelo qual o curta passou desde que se fez presente no Brasil. Qualquer conclusão

    sobre o assunto baseada apenas em sua conjuntura atual seria superficial e até

    mesmo equivocada. Na abordagem dialógica na qual nos baseamos, entendemos

    que qualquer concepção, sobre qualquer assunto, é construída de forma dialogal

    com os aspectos sócio-históricos que a constituem. Assim, consideramos

    indispensável conhecer a história do gênero curta-metragem desde sua gênese no

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    Brasil, bem como os fatos e circunstâncias sócio-políticas e culturais com os quais

    se relacionou.

    Desde 1895, com a invenção dos irmãos Lumière, mesmo com imagem

    ampliada, o que se via eram filmes no formato curto, o único disponível naquele

    período, haja vista as limitações da época. Superada essa fase, com a evolução

    técnica e estética, da qual rapidamente se apropriou a indústria cinematográfica, o

    curta adquire um caráter de complemento, uma espécie de coadjuvante do longa-

    metragem. Perde sua posição de atração principal e assume uma posição

    complementar em relação ao longa, formato que prosperava e atingia o gosto da

    maioria das pessoas, cada vez mais submetidas à cultura de massa - motivo

    suficiente para um maciço investimento da indústria cultural, que logo organizou um

    sistema de comércio cinematográfico, de distribuição e, principalmente, de exibição,

    que crescia dia a dia, o que resultou na consolidação da cultura do entretenimento

    (NETO, 2012).

    Diante desse fenômeno, já na década de 1950, o cinema passa a ser

    encarado principalmente como divertimento, fator que passa a balizar o mercado

    cinematográfico, tornando-se uma febre mundial, seguindo, em todos os cantos, o

    modelo norte-americano. O fato é que o curta foi, de forma progressiva e rápida,

    perdendo seu espaço, uma vez que o longa caiu no gosto popular - critério

    necessário e suficiente, na lógica de mercado, para investir sem reservas no produto

    em questão, no caso o longa-metragem. Ao curta restou a função de laboratório

    para inovação e experimento de novas linguagens por parte da indústria

    cinematográfica, sobretudo pelo seu baixo custo de produção. E o longa é eleito o

    formato apropriado para competir no acirrado mercado do entretenimento

    (BERNADET, 1995; DUARTE, 2002; NETO, 2012).

    Com a chegada de Getúlio Vargas ao poder e a implantação do Estado Novo

    no final da década de 1930, o curta-metragem adquire novos e imprescindíveis

    papéis, agora, com proteção oficial. Não deixou de ser um complemento, mas desta

    feita com status de oficialidade, novos tempos para o curta-metragem. O gênero

    deixa de assumir uma posição de coadjuvante e passa a protagonizar um papel

    fulcral, não nas salas de cinema, mas na educação. Os curtas-metragens passam a

    ser instrumentos de ensino e meio de veiculação da ideologia varguista, baseada no

    nacionalismo integrador. Isso só foi possível devido às mudanças realizadas no

    processo de produção, distribuição e exibição de filmes, até então regulado apenas

  • 19

    pelas leis de mercado. A ideia dos getulistas de universalização do ensino e da

    informação, principalmente a oficial, valorizou os canais de difusão cultural e impôs

    uma nova relação entre cinema e o poder (ALENCAR, 1988; NETO, 2012).

    É nesse cenário que surge o intelectual, extremamente nacionalista,

    admirador ardoroso dos novos meios de comunicação de massa, Roquette Pinto. É

    ele quem vai conduzir um inédito processo de construção de uma legislação para a

    indústria cinematográfica, até então regida apenas pelo mercado. A partir disso, ao

    filme estrangeiro foi imposta a obrigação de pagar uma taxa, a qual tinha o objetivo

    de financiar a produção de filmes curtas nacionais de caráter educacional. Uma

    medida governamental fixa uma proporção de filmes educativos nacionais a serem,

    obrigatoriamente, exibidos nas salas de cinema em todo o país. E, em 1936, o

    governo pedetista de Getúlio Vargas, tendo como mentor intelectual Roquette Pinto,

    cria o Instituto Nacional de Cinema Educativo (INCE), que passa a produzir filmes

    curtos de caráter educativo. “Em seis anos, o órgão produziu cerca de 200 curtas

    escolares, encaminhados para escolas e institutos culturais, bem como para os

    circuitos de exibição pública de todo o país” (apud: Neto, 2012, p. 33).

    Até aqui, temos um quadro no qual o curta-metragem figura como agente

    didático de brasilidade, totalmente financiado pelo estado, não passando de mero

    reprodutor de conhecimento e de propaganda ideológica, situação que impedia a

    produção ficcional e autoral, uma vez que a perspectiva artística não interessava ao

    financiador. A visão de que a narrativa ficcional e o entretenimento visando ao lucro

    cabiam ao longa-metragem perpetuou absoluta até a década de 1960

    (ALENCAR,1988; BERNARDET, 1995).

    E é nesse período que alguns cineastas mineiros, entre eles Humberto

    Mauro, começam a criar um ambiente fértil para o renascimento, ou retomada, da

    chamada produção autoral. Ele inaugura um período em que os produtores,

    influenciados por movimentos como o francês Nouvelle Vague, e o americano

    Cinema Direto2, passam a buscar novos modelos estéticos produzidos pelo então

    cinema moderno do pós-guerra. Um novo modelo de curta-metragem se impõe aos

    certames brasileiros, graças, em parte também, a festivais internacionais, que

    2 Movimentos artísticos dos cinemas francês e americano que se inserem no movimento contestatário

    próprio dos anos sessenta. Participavam desse movimento novos cineastas, sem grande apoio financeiro. Os primeiros filmes dessa escola eram caracterizados pela juventude dos seus autores, unidos por uma vontade comum de transgredir as regras normalmente aceitas para o cinema mais comercial.

  • 20

    passam a influenciar a estética, inclusive, de longas. Inaugura-se, então, como

    veremos em seguida, uma nova etapa para o curta-metragem no Brasil (NETO,

    2012).

    1.2 Curta com personalidade

    A partir do final da década de 1950, jovens autores, sedentos de expor suas

    habilidades em produzir narrativas ficcionais, sem uma finalidade propriamente

    didática, mas como expressão estética, ávidos a mostrar suas visões de mundo por

    meio da sétima arte, cansados de produzir um cinema acrítico e de ser sala de

    espera para os longas internacionais, partem para uma nova etapa da produção de

    curtas no Brasil. Nesse período passam a abordar livremente os reais problemas da

    sociedade brasileira, bem como explorar com mais liberdade os aspectos da

    linguagem cinematográfica, agora voltada para uma nova estética, a do cinema

    novo. Apesar dos primeiros filmes dessa época ainda serem, em parte, financiados

    por órgãos fomentadores do governo e ainda apresentarem resquícios do modo

    didático de produção, ainda um pouco reticentes diante das avançadas técnicas

    trazidas pelas vanguardas da época, já era possível perceber um discurso mais

    ousado, independente, diferente dos “envernizados”, produzidos pelo INCE (NETO,

    2012).

    É nessa época que os curtas brasileiros de ficção, como Couro de Gato, de

    Joaquim Pedro (1961), ganham vários prêmios em festivais internacionais,

    fenômeno que reforça a convicção da capacidade de produtores brasileiros

    realizarem curtas autorais de ficção, de forma independente, afastando-se cada vez

    mais do padrão “Complemento Nacional”. E, para coroar o bom momento do curta

    nacional, uma tendência já praticada na Europa chega ao Brasil. Tratava-se de um

    expediente que juntava alguns curtas transformando-os em um longa, estratégia

    que, além de reduzir significativamente o custo da produção, garantia-lhes um

    espaço na exibição pública nas principais salas de cinema do país. Foi assim com

    Couro de gato, acoplado a Um favelado, de Marcos Farias, por sua vez acoplado

    ao Zé da cachorra, de Miguel Borges, também acoplado ao Escola de samba,

    alegria de viver, de Carlos Diegues e ao Pedreira de São Diogo, de Leon Hirszman,

  • 21

    formando o longa Cinco vezes favela, produzido pelo CPC da UNE3 (ALENCAR,

    1988; NETO, 2012).

    Com o crescente interesse dos jovens autores pela produção cinematográfica,

    surgem os primeiros cursos de cinema no Brasil. A UNB, com Nelson Pereira e

    Jean-Claude Bernardet, toma a frente no projeto de fundar um curso de graduação

    em cinema, sonho interrompido pelo endurecimento do regime militar. Diante dessa

    tentativa frustrada, Pereira realiza nova investida, desta vez bem sucedida, em

    Niterói – RJ, fundando o curso de cinema da UFF. Já Bernardet volta a São Paulo e

    cria o curso de cinema na ECA – USP. O formato curto, por questões financeiras,

    será o modelo de filme escolhido para as produções universitárias. E mais uma vez

    o curta-metragem é protagonista num momento importante da história. Em uma

    época de crescente endurecimento político, eles serão um importante instrumento

    estético de militância e resistência.

    Com a criação de vários cursos de cinema pelo país, o Jornal do Brasil,

    visando à produção dessa nova geração de cineastas, prestes a se lançarem no

    mercado, cria o Festival Brasileiro de Cinema Amador. Na sua primeira edição, em

    1965, teve como tema o quarto centenário da cidade do Rio de Janeiro. Os filmes

    foram exibidos no cinema Paissandu, ponto de encontro de muitos diretores

    famosos e críticos consagrados de cinema. Jovens produtores, os quais ficaram

    conhecidos como „geração Paissandu‟, sonhavam com uma carreira de cineasta.

    Eles queriam ser vistos e comentados pelos seus ídolos presentes no festival. Todos

    desejavam fazer parte do movimento de mudança em processo. Muitos curta-

    metragistas tiveram suas carreiras de cineasta alavancadas com o sucesso obtido

    pelo festival, que passa a se chamar, a partir de 1971, Festival Nacional de Curta-

    metragem. Começa aí uma nova era para o curta no Brasil.

    1.3 Demarcando território

    Os novos produtores queriam ser reconhecidos e exigiam a intervenção do

    estado na política de distribuição e exibição de filmes nacionais; no entanto, não

    abriam mão da experimentação de novas linguagens e da crítica frente ao sistema

    que ficou conhecido como anos de chumbo. O fato era que o governo possuía

    3 Centro Popular de Cultura, organização associada à União Nacional de Estudantes - UNE, criada

    em 1961, na cidade do Rio de Janeiro, por um grupo de intelectuais de esquerda, com o objetivo de criar e divulgar uma "arte popular revolucionária".

  • 22

    programas de fomento oficiais via Embrafilme, mas jamais financiaria filmes de

    caráter crítico, que revelassem as mazelas da sociedade brasileira da época. Na

    concepção oficial, o cinema deveria prestar-se unicamente a entreter a população.

    Esta era a função primeira do cinema: proporcionar filmes com abordagens lúdicas,

    pouco politizadas, desvinculados da vida concreta. Por outro lado, os autores da

    época queriam fazer uso expressivo de uma estética não oficial, a estética das ruas,

    dos guetos, do lixo, experimentar novas linguagens, não padrão, como forma de

    fazer frente ao regime militar (ALENCAR, 1988).

    Diante de toda essa dificuldade de ordem financeiro-estrutural e da

    imprescindibilidade de testemunhar cinematograficamente aquele período histórico

    de forma crítica, surge o associativismo. Era preciso garantir o direito de expressar

    visões díspares da propaganda oficial, que também se utilizava do mesmo recurso,

    porém muito mais bem paramentada (MOURA, 2003). Esse movimento foi fruto da

    luta política por mais espaço e liberdade estética. Nessa toada, é fundada, em 1973,

    a Associação Brasileira de Documentaristas, que, apesar do nome, acolhia não só

    os produtores de documentários, mas também os curta-metragistas ficcionistas.

    Essa iniciativa produziu um efeito muito positivo para os produtores da época, os

    quais tiveram seus filmes vistos em vários festivais amadores e profissionais de

    curta-metragem. Esse período teve seu auge no início dos anos 80 com a criação da

    CORCINA - Cooperativa dos Realizadores Cinematográficos Autônomos (ídem).

    Mas era preciso ampliar a esfera de circulação dessas produções, as quais só eram

    exibidas em festivais e centros culturais.

    A grande luta dos produtores era a regulamentação da exibição dos curtas

    ficcionais nas salas de cinema, dominadas exclusivamente pelos grandes produtores

    de longas. Depois de muitas reivindicações e debates com produtores e governos, a

    ABD conseguiu, finalmente, em 1979, a elaboração e aprovação da chamada Lei do

    Curta. Tal dispositivo legal pôs fim a uma inquietude de há muito por parte dos curta-

    metragistas ficcionais. A lei regulou a exibição do curta ficcional, experimental e

    documentários nas salas do circuito comercial de todo o país. O órgão responsável

    por fiscalizar e fazer com que a lei se cumprisse foi o CONCINE – Conselho

    Nacional de Cinema4. Esse acordo estendeu a obrigatoriedade, em todo o país, de

    4 O CONCINE tinha como objetivo formular políticas para o cinema brasileiro, bem como normatizar e

    fiscalizar as atividades cinematográficas no país, como produção, reprodução, comercialização, venda, locação, permuta, exibição, importação e exportação de obras cinematográfica.

  • 23

    exibição de curtas-metragens brasileiros antes dos longas estrangeiros. Começava

    aí um novo ciclo para o gênero curta-metragem no Brasil.

    Diante do sucesso alcançado pelos curta-metragistas independentes,

    produtores da grande indústria cinematográfica começaram a produzir seus próprios

    curtas de baixa qualidade, com o único objetivo de fazer com que o público se

    voltasse contra o gênero e protestasse contra sua obrigatoriedade nas salas do

    circuito oficial de cinemas. Mais uma vez, foi necessária a intervenção do CONCINE,

    o qual, por meio de uma resolução, institui o chamado “sistema do curta-metragem”.

    Essa medida criava um júri especial composto por membros da ABD, da Embrafilme,

    do Sindicato dos Produtores de curta-metragem e por intelectuais pesquisadores de

    cinema, os quais passaram a selecionar os filmes considerados aptos a serem

    exibidos, garantindo com isso a qualidade das obras a serem assistidas pelo púbico.

    Além disso, outra resolução do CONCINE cria um fundo, mantido por um percentual

    da renda das sessões de cinema em todo o país, para fomentar a produção do

    curta, fato que o levou a presenciar sua melhor fase, sendo chamada, segundo

    Caetano (2006 apud NETO, 2012), de “Primavera do Curta”.

    Ante as conquistas e transformações pelas quais passou o filme curto no

    Brasil, os frutos não tardariam a chegar. Um dos curtas mais aclamados de todos os

    tempos, Ilha das Flores (1989), de Jorge Furtado, ganha o Festival de Berlim, em

    1989, sendo eleito pela crítica europeia um dos 100 curtas mais importantes do

    século XX. Esse sucesso foi resultado da intensa interação entre produtores de

    curtas ficcionais e documentaristas que conviveram por muito tempo na ABD,

    período em que sofreram influências mútuas dos estilos e linguagens de cada

    gênero. Resultado disso, tivemos o curta mencionado, que, dentro de um panorama

    metalinguístico, faz uma paródia dos estilos já consagrados, além de criticar a

    suposta objetividade e autoridade da linguagem documental até então praticada,

    sem deixar de ser também um documentário, embora haja controvérsia. O mesmo

    sucesso é obtido por A garota das telas (1988) e Frankestein Punk (1986),

    de Cao Hamburger, e A revolta dos carnudos, de Eliana Fonseca (1988) (NETO,

    2012). Contudo, o “sistema do curta-metragem”, cujo sucesso era patente, teve seu

    fim com a chegada de Fernando Collor ao poder em 1990. Com sua avidez por

    privatização, põe fim à Embrafilme, aos CONCINES e conselhos afins. Mais uma

    vez, o curta precisa se reinventar, uma nova batalha recomeça.

  • 24

    1.4 Espaço público e independência: a reconquista

    A era Collor desestruturou um sistema que vinha funcionando de forma

    equilibrada. A produção cinematográfica reduziu drasticamente, inclusive dos

    longas. Em meio a essa falta de perspectiva para a produção e exibição de filmes

    curtos nacionais, as salas de exibição do circuito de cinema voltam a sofrer o

    monopólio dos filmes estrangeiros, sobretudo das produções homogêneas norte-

    americanas. É nesse cenário desanimador que produtores apaixonados e amantes

    do gênero, frutos da “primavera” da década anterior, engendram, em 1990, o

    Festival Internacional de Curtas de São Paulo e, anos depois, no Rio de Janeiro,

    criam o Curta Cinema. Esses dois espaços foram os responsáveis pela

    reorganização e reestruturação do gênero, tornando-se referenciais de apoio, crítica

    e divulgação do curta-metragem até os dias de hoje. Produções como Esta não é

    sua vida e A matadeira (1991), de Jorge Furtado, revelam que os novos cineastas

    mantêm muito da estética da época primaveril dos curtas, mas apresentam uma

    nova tendência significativa.

    Nota-se, nesse período, um certo arrefecimento da ficção e um ressurgimento

    da preocupação com as questões sociais, fato que reivindica uma estética que

    explore o aspecto poético da linguagem, sem, contudo, perder a ligação com a

    realidade, com a vida. Essa tendência pode ser percebida nos documentários Vala

    Comum (1994), de João Godoy e Socorro Nobre (1995), de Walter Salles (RAMOS,

    2004). Outro fenômeno importante é o surgimento de subgêneros do curta-

    metragem, como o curta-piada5 e o curta-portifólio6, os quais ganham simpatizantes

    e depreciadores na mesma proporção. Independentemente da aprovação ou

    desaprovação dos cinéfilos de plantão, o fato é revelador, na medida em que

    evidencia a potência criativa desse gênero. E essa plasticidade criativa do gênero

    curta ocorre em razão de não haver restrição a que estão submetidos os longas

    comerciais no seu processo de criação e produção.

    Essa nova retomada da produção de filmes curtas no Brasil demonstrou que,

    por fim, o gênero tinha alcançado uma estabilidade permanente. Tal afirmação é

    5 São curtas que contam, de forma humorada, histórias que teriam tudo pra ser um drama. Uma

    forma descontraída de fazer crítica social. Como forma de denúncia, brincam com elementos que revelam as mazelas sociais. 6 São curtas produzidos por diretores que possuem a intenção de atuar com longas. Por isso não têm

    compromisso com a estética e linguagem próprias do gênero. Esse tipo de produção está bem próximo dos padrões comerciais de um longa, porém no formato curto.

  • 25

    possível por duas razões. A primeira está vinculada ao fato de diretores já

    consagrados preferirem criar seus filmes no formato curto, deixando de encará-lo

    apenas como trampolim para uma carreira de produtor de longas. Já era possível

    construir uma carreira cinematográfica como produtor de curta-metragem. A

    segunda razão tem a ver com o incentivo governamental e apoio advindos de

    instituições privadas.

    Com o impeachment de Collor e ascensão dos tucanos ao poder, cria-se a

    chamada renúncia fiscal em favor das artes, e põe-se em prática o plano de retomar

    a produção cinematográfica brasileira. Leis de incentivo à cultura são criadas e

    milhares de espaços dedicados à arte são espalhados pelo país, tais como os do

    Banco do Brasil e do Itaú, para citar os mais importantes. Isso permitiu que outras

    regiões, para além do eixo Rio – São Paulo, entrassem para o circuito dos festivais.

    No entanto, um fenômeno ainda mais contundente iria selar, de uma vez por todas,

    o futuro do curta-metragem.

    Em 1995, surge uma novidade que impactaria todos os aspectos da produção

    humana, fossem eles científico, cultural ou comercial. Trata-se da Internet. Nunca

    uma estrutura de rede representou tão bem o “Tecendo a Manhã”, de João Cabral

    de Melo Neto. Enfim, o galo canta e todos podem ouvir, porque há tantos galos

    quanto necessários a postos na rede, levando o seu grito a outro e a outros até que

    todos possam ouvi-los, e com uma rapidez que João Cabral sequer sonhava. É o

    espaço de exibição de filmes curtos mais eficaz e democrático que um produtor

    independente puderia desejar. Em 1998, surge o site Portacurtas, que reúne em um

    portal milhares de curtas nacionais e os disponibiliza, online, para quem quiser

    assistir, em qualquer lugar do planeta. Isso numa época em que a tecnologia

    webstreaming7 e a banda larga estavam apenas começando. O site é patrocinado

    pela Petrobrás, financiadora das principais produções cinematográficas do país.

    O Portacurtas possui atualmente mais de oito mil curtas catalogados, é o

    maior banco de dados online de curtas brasileiros. O projeto disponibiliza as fichas

    técnicas de todos os filmes, numa cinemateca acessível 24h por dia. Além desse

    7 Tecnologia que permite a transmissão instantânea de dados de áudio e vídeo através das redes. Com

    ela, o usuário consegue assistir a filmes ou escutar música sem a necessidade de fazer download, o que torna mais rápido o acesso aos conteúdos online.

  • 26

    espaço, há outros espaços virtuais, como o Youtube e o Vmeo8, onde o próprio

    produtor pode atuar como divulgador e exibidor de seus trabalhos. Por meio da rede,

    produtores independentes podem organizar seus próprios festivais, abordando os

    temas que desejarem, como é o caso do Festival Internacional de Cinema na

    Internet, o Fluxus9.

    Tal realidade proporcionada pela internet, na avaliação de Moletta (2009),

    levou ao rompimento definitivo da fronteira entre produção cinematográfica e

    audiovisual, acabando com a barreira entre película e fita, porque, na web, a

    reputação de uma produção não está na bitola do filme ou no formato mini DV ou

    HD; o prestígio de um filme está na quantidade de acesso e comentários dos

    usuários, através do qual se obtém, em tempo real, a reação do público.

    Assim, finalmente, o gênero curta-metragem atingiu sua maturidade, tanto em

    independência quanto em público, conquistando de vez liberdade temática, esfera

    de circulação e suporte infinitos. A Internet é um espaço onde as hegemonias ainda

    encontram resistência. Lugar onde a tendência única perde sua força, um verdadeiro

    sítio de exploração, no qual se acomodam e se compatibilizam todas as estéticas,

    todas as linguagens e discursos. A internet, espaço não oficial, passou, num

    movimento contrário, a influenciar decisivamente os espaços oficiais,

    retroalimentando a exibição de filmes nos espaços físicos, impactando a frequência

    do público tanto nas salas de cinema quanto nos centros culturais. Os festivais e

    premiações, frequentemente, acabam contemplando diretores que começaram sua

    carreira cinematográfica na internet.

    1.5 Curta-metragem e o conceito de gênero discursivo

    Quando pensamos na vasta produção cultural existente no mundo, das mais

    variadas natureza, ordem, tipo, categoria, gênero, padrão e outros termos

    classificatórios que possam existir, esbarramos com a dificuldade de encontrar

    sistemas e teorias classificatórios que deem conta da complexidade dos fenômenos

    culturais que atualmente presenciamos. Encontrar uma teoria capaz de abarcar esse

    mundo cultural que se nos apresenta, cujas características principais são a

    8 Assim como o Youtube, trata-se de um serviço de compartilhamento de vídeos na Internet. Possui

    também versões para celulares e tablets. Com ele o usuário pode fazer vídeos e postar diretamente na rede.

  • 27

    plasticidade, versatilidade e mutabilidade nos parece uma incumbência quase

    impossível. De todas as teorias que se propõem a cumprir tal tarefa hercúlea, a que

    nos parece mais adequada aos nossos tempos é a teoria de gênero discursivo

    concebida pelo filósofo da linguagem Mikhail Bakhtin. Isso porque suas proposições

    teóricas levam em conta aqueles aspectos pertinentes à produção cultural acima

    citados: plasticidade, versatilidade e mutabilidade. Nas palavras dele:

    O gênero sempre é e não é o mesmo, sempre é novo e velho ao mesmo tempo. O gênero renasce e se renova em cada nova etapa do desenvolvimento da literatura e em cada obra individual de um dado gênero. Nisto consiste a sua vida (BAKHTIN, 2003, p. 91).

    Embora Bakhtin nunca tenha abordado questões referentes à produção

    cinematográfica, restringindo-se, como os demais teóricos do Círculo que se

    incumbiram do estudo do gênero discursivo, à análise de produções literárias nas

    formas impressas e orais, consideramos profícua a aplicação de sua teoria sobre

    gênero discursivo ao estudo específico do curta-metragem brasileiro. Não seremos

    pioneiros em estabelecer essa aproximação entre Bakhtin e o cinema. O

    pesquisador de cinema Robert Stam também enveredou por esse caminho:

    Embora a influência de Bakhtin tenha-se feito sentir amplamente em estudos culturais, em disciplinas que vão da crítica literária à antropologia e à linguística, essa influência ainda precisa revelar sua fecundidade potencial na área dos estudos de cinema (...) Estarei conduzindo, portanto, um diálogo imaginário com Bakhtin a respeito de um tópico sobre o qual ele nunca se pronunciou: o cinema (STAM, 1992, p.58-59).

    No entanto, o que pretendemos, de maneira singular neste capítulo, é aplicar

    a teoria de gênero discursivo ao curta-metragem, especificamente. Trata-se de uma

    categoria cinematográfica que emprega uma estética própria em seus filmes, cujas

    características discursivas guardam especificidades, como conteúdo temático

    inclinado para a crítica social, esfera própria de circulação, estrutura composicional

    diferenciada, entre outras, que nos autorizam a classificá-lo como um gênero

    discursivo dentro da concepção de gênero de Bakhtin. É importante salientar que

    não estamos questionando sua classificação enquanto gênero cinematográfico, o

    qual tem seus princípios definidores alicerçados na teoria do cinema. Não é nosso

    escopo aqui questionar tal classificação.

    Para Bakhtin, o fator responsável pela organização e uso adequado, de forma

    orientada, plausível, de modo a garantir a inteligibilidade da linguagem, não é o

  • 28

    sistema abstrato da língua, a gramática, e sim o gênero. De acordo com o filósofo, é

    o gênero que regula as ações de linguagem nas diversas esferas da atividade

    humana. Ele é encarregado de guardar e fornecer ao usuário da língua, sempre que

    necessário, as tendências, vocações e propensões mais constantes e regulares da

    linguagem, acumuladas ao longo das gerações de falantes, o que asseguraria uma

    “relativa estabilidade” aos enunciados em determinada esfera comunicacional.

    Ao gênero cabe ainda, segundo o autor, a função de organizador das formas

    de pensamento apropriadas a determinados tipos de enunciados, além de

    mantenedor de meios e recursos expressivos utilizados em determinada cultura, de

    modo a garantir a comunicabilidade entre os seus falantes hodiernos e a

    continuidade dessas matrizes discursivas junto a comunidades futuras. Poderíamos

    afirmar também, dentro de uma perspectiva dialógica, que, pelo gênero, e só por

    meio dele, é que conseguimos acessar nossas memórias, inclusive a de futuro. Sim,

    só é possível acessar a memória de futuro10 por meio do gênero projeto e outros

    afins, já a memória do passado é recuperada recorrendo a nossos conhecidos

    arquivos, cartas, biografias, memórias, relatos, e outros tantos.

    No entanto, não podemos concluir daí que os gêneros do discurso são

    imutáveis e limitados. Com a mesma força que procuram manter essa estabilidade

    comunicativa, os gêneros se renovam, se adequam, aglutinam novas tendências,

    dialogam com outros gêneros, com o mesmo objetivo de manter a comunicabilidade.

    Porque o mesmo risco que correria o falante de viver um pandemônio linguístico

    caso não houvesse essa relativa estabilidade na língua, ele correria se não

    acompanhasse as mudanças impostas pela dinamicidade das interações sociais em

    constantes transformações. É por isso que, às vezes, os gêneros se reorganizam,

    desaparecem, surgem novos, alguns predominam mais em determinada região

    geográfica do que em outras, às vezes se subdividem em subgêneros, de acordo

    com as demandas sociais. Tudo isso revela a amplitude dessa teoria, bem como a

    diversidade amalgamar do gênero discursivo. Nas palavras de Bakhtin:

    A riqueza e a diversidade dos gêneros discursivos são ilimitadas, porque as possibilidades de atividade humana são também inesgotáveis e porque cada esfera de atividade contém um repertório

    10

    Para Bakhtin, o sentido concreto do presente é o resultado da fusão entre a memória do passado e a memória do futuro, o devir. Aquela que faz com que o sujeito não se baseie apenas num passado, mas num devir, tornando-o um ser inacabado. As projeções do que se quer realizar constituem a memória de futuro, interferindo na forma de pensar e de se posicionar perante a vida.

  • 29

    inteiro de gêneros discursivos que se diferenciam e se ampliam na mesma proporção que cada esfera particular se desenvolve e se torna cada vez mais complexa (BAKHTIN, 2003, p. 279).

    E no que se refere ao curta-metragem, podemos dizer que se trata de um

    gênero discursivo na concepção bakhtiniana? Um ponto de partida para refletirmos

    sobre essa indagação é levantar as seguintes questões: Trata-se de uma atividade

    humana? Produz enunciados concretos? Esses enunciados circulam em alguma

    esfera específica de atividade humana? São utilizados para cumprir uma função

    social? A resposta a todas essas perguntas é sim. Bakhtin afirma que só é possível

    acessar determinada realidade via gênero do discurso, “como um filtro através do

    qual visualizamos a realidade da vida social” (BARROS, 2012, p. 36). Neste ponto,

    podemos afirmar que o curta-metragem é um gênero discursivo. Ele nos

    proporciona, por meio de sua estética peculiar e seu forte vínculo com o real,

    embora seja um enunciado da esfera artística, um contato com a realidade social,

    sob um ponto de vista ímpar, singular e crítico ao mesmo tempo, com que, por outro

    meio, não teríamos a mesma experiência.

    Se pensarmos que o curta, no seu processo histórico, como vimos na seção

    anterior, para além de suas conceituações e caracterizações formais, ganhou uma

    conotação discursiva muito forte, na medida em que é pensado como instrumento

    meio de crítica social, podemos afirmar que o mesmo cumpre uma função social,

    assim como o cinema de entreter, a notícia de informar, a receita de orientar, o

    artigo de expressar opinião, etc. Com isso, queremos dizer que o curta-metragem é

    um gênero que tem como principal função fazer a crítica social. Não apenas pelo

    caráter “marginal” que ocupou na história do cinema, mas também pela sua

    capacidade atual de influenciar e ser influenciado. Portanto, se, conforme afirma

    Bakhtin, só é possível cumprir uma função social por meio de um gênero, podemos

    concluir que o curta-metragem é um gênero por meio do qual o enunciador cumpre

    uma função social.

    Sobre esse assunto, é pertinente lembrarmos as considerações do

    pesquisador Sidney de Paulo (2009), o qual destaca a função social como elemento

    determinante do gênero e não seus aspectos formais. Como exemplo, ele cita o

    texto literário adaptado para o cinema; ao transformar-se num roteiro, deixa de

    pertencer ao campo literário e passa a compor o campo do cinema. Isso acontece

    porque, de acordo com Bakhtin, o gênero está relacionado à atividade humana. Com

  • 30

    outro exemplo, ele fecha a questão: Uma receita de bolo não constitui gênero receita

    de bolo pelo simples fato de ter em sua composição termos do campo semântico

    culinário, ou por apresentar estrutura sequenciada, ou por apresentar verbos

    predominantemente no imperativo. Receita de bolo apresenta-se como gênero

    quando, em um evento social, por exemplo, uma visita, o anfitrião, ao preparar um

    bolo, segue um roteiro de como fazê-lo. A mesma estrutura poderia estar no meio de

    uma carta e, neste caso, não ser mais uma receita de bolo (Paulo, 2009, p. 69).

    Sendo assim, torna-se improdutivo ficar questionando se um texto com uma

    estrutura composicional parecida com uma receita presente em uma letra de canção

    pertence ao gênero canção ou receita, já que o gênero está relacionado à atividade

    humana. Ao ouvir uma canção no momento de lazer, com objetivo de relaxar ou

    dançar, enfim, se divertir, isso é letra de canção, é ponto pacífico, pois se presta à

    função social de entretenimento. Se um texto, mesmo apresentado uma estrutura

    composicional típica de um poema, é utilizado para fazer um bolo de café da manhã,

    então será do gênero receita. Pois o elemento determinante de um gênero é a sua

    função social, sua relação com as atividades humanas. Nesta toada, um parecer de

    um juiz, com a forma de um poema, nunca deixará de ser uma sentença, a menos

    que saia da esfera jurídica e adquira outra função, a de produzir prazer literário.

    Portanto, a esfera em que o enunciado circula e sua função social são

    determinantes para definir o gênero, e não sua estrutura composicional, seu formato.

    Todo gênero, de acordo com a teoria, necessita se materializar em algum tipo

    de texto. Portanto, afirmar que o curta-metragem constitui um gênero discursivo

    equivale dizer que o curta consiste em um texto. Sim, trata-se de um texto fílmico,

    que, assim como qualquer outro tipo de texto, possui seus sistemas específicos de

    significação, compostos principalmente de imagens e sons, os quais, ao serem

    manipulados, por meio de planos, luzes e movimentos de câmera, além de outros,

    produzem determinados efeitos de sentido. Assim, podemos afirmar que o objeto de

    análise em questão, o gênero curta-metragem, está materializado no texto fílmico,

    que se utiliza da linguagem cinematográfica para produzir seus sentidos, assim

    como o texto verbal utiliza a escrita.

    Quando pensamos no conteúdo temático, será que o curta-metragem nos dá

    alguma garantia do assunto que será tratado? Se pensarmos de forma isolada, a

    resposta é não, assim como ocorrerá com qualquer outro gênero. No entanto, se

    contextualizarmos, a resposta é clara. Entre um longa-metragem exibido sábado à

  • 31

    tarde, na sala de cinema do Shopping Pantanal, em Cuiabá, e um curta-metragem

    exibido no centro cultural de São Paulo, durante o Festival Internacional de Curta-

    Metragem, de qual desses dois enunciados espera-se um conteúdo voltado para a

    crítica social? A resposta é óbvia.

    Assim, o curta-metragem, enquanto gênero, atende àqueles requisitos formais

    relacionados por Bakhtin em sua teoria, quais sejam: estilo de composição,

    conteúdo temático, esfera de circulação e suporte de veiculação; embora, como já

    frisado anteriormente, sua característica central deve estar relacionada ao uso social

    e não à forma. Pois, como sabemos, o gênero é moldado o tempo todo pelo

    contexto a sua volta, exposto a mudanças sociais e tecnológicas, em que novas

    tendências e meios expressivos surgem numa velocidade assustadora, gerando

    múltiplas combinações e possibilidades enunciativas e, consequentemente,

    diferentes formas composicionais. Como reforça Stam: “O gênero cinematográfico,

    da mesma maneira como antes dele o gênero literário, também é permeável às

    tensões históricas e sociais” (STAM, 2003, p.29).

    Coerentemente, não cabe aqui tentarmos estabelecer uma delimitação teórica

    fechada para o gênero curta-metragem, pois acreditamos que mais importante do

    que definir o gênero é refletir sobre as múltiplas possibilidades de relacioná-lo de

    forma dialógica a outros gêneros, estabelecendo diálogos com outros discursos,

    absorvendo contribuições advindas das mais divergentes áreas, tanto em termos

    éticos quanto estéticos, assim como tem sido em todo seu processo histórico, para,

    a partir daí, estabelecermos uma ponte com a educação, conforme veremos na

    próxima seção.

    1.6 Pertinência didático-pedagógica

    Quando analisamos uma narrativa por meio de um curta-metragem, podemos

    perceber facilmente a riqueza de elementos linguísticos e extralinguísticos, próprios

    da interação humana, o que nos faz aproximar do texto fílmico e seus mecanismos.

    As imagens que constituem o texto nos remetem automaticamente a um universo

    cultural reconhecidamente nosso ou próximo de nós. Essa característica,

    principalmente nas produções brasileiras, abre caminho para abordagens de

    conteúdos socioculturais, além de revelar aspectos interculturais que nem sempre

    são mostrados com tanta expressividade nos livros didáticos. Não queremos aqui

  • 32

    defender a exclusividade de um recurso, no caso, o audiovisual. Compreendemos

    que todos devem igualmente ser valorizados. No entanto, pretendemos colocar em

    xeque a pretensa hegemonia que algumas escolas e professores ainda persistem

    em atribuir ao livro didático.

    Isso não significa que vamos tecer neste trabalho uma comparação crítica

    entre os recursos que temos disponíveis em nossas escolas. Apenas desejamos

    despertar uma consciência que contemple e respeite as diversidades culturais de

    nossos alunos. E esse respeito às diferenças precisa reverberar também nas formas

    e meios de ensinarmos e, ainda, nas escolhas dos instrumentos didáticos. Nesse

    aspecto, merece aplausos a iniciativa do projeto Curta na Escola, que nos oferece a

    oportunidade de diversificarmos nossas abordagens no ensino de linguagem,

    fornecendo-nos direcionamento para trabalharmos textos fílmicos que nos

    aproximam do mundo concreto onde os professores e alunos vivem de verdade.

    De fato, ao “ler” um curta-metragem, a tarefa de recuperar os elementos

    extraverbais fica menos árdua, porque a maioria deles está à mostra no texto,

    potencializados por meio dos recursos da linguagem cinematográfica, como

    mudanças de planos e efeitos sonoros. Tomemos, como exemplo, o curta 10

    Centavos, o qual mostra o drama de um garoto, morador do subúrbio ferroviário de

    Salvador, que ganha a vida guardando carros no centro histórico da capital baiana.

    Ao contemplarmos esse objeto estético, notamos a existência de um elemento

    vincular com a realidade, o que torna o processo de interação mais fluido.

    Acreditamos que isso aconteça por se tratar de uma forma de representar a vida,

    que, de alguma maneira, nos conecta ao enunciado, sem comprometer seu valor

    artístico. Um dos fatores que proporcionam essa conexão é a imagem. Ela nos

    permite fazer associações com a nossa realidade e ativar processos cognitivos que

    levam à compreensão do enunciado. Por exemplo, na imagem em que o garoto

    aparece pegando o trem, é possível, mesmo que não haja esse meio de transporte

    na localidade de alguns, perceber realidades análogas entre o mundo representado

    e o mundo real do aluno, como a precariedade do transporte público e o sofrimento

    de quem o utiliza.

    Mas isso vale também para o longa, alguém poderia questionar. Sem dúvida,

    alguns filmes de longa-metragem também possuem esse potencial de estabelecer

    uma estreita relação com o contexto sociocultural, oferecendo possibilidades de

    atividades variadas e dinâmicas, portanto atrativas. Em suma, qualquer produção

  • 33

    audiovisual pode vir a ser um excelente instrumento para explorar a linguagem, bem

    como os aspectos socioculturais. O problema começa quando consideramos o

    tempo de cada aula na escola, geralmente 40 ou 50 minutos. Tendo em vista esse

    fator, teremos que trabalhar apenas trechos de um filme longo. Ao utilizar essa

    estratégia, compromete-se a compreensão ativa do aluno, pois ele terá pouco

    elemento para oferecer uma resposta ao enunciado, além de desperdiçar o potencial

    expressivo do recurso. Por mais que escolhamos um trecho que melhor represente a

    obra toda, por mais que contextualizemos a obra, dificilmente conseguiremos

    envolver os alunos na história e, principalmente, apreender o discurso. Isso porque

    nos longas e nos romances, o discurso aparece disperso ao longo da obra.

    E qual é problema disso? Ora, considerando o contexto de sala de aula, em

    que nem sempre é fácil estabelecer uma relação de continuidade, sobretudo nas

    escolas públicas, em que a falta de assiduidade de professores e alunos é notória, o

    estudante corre o risco de não identificar os fios discursivos presentes no filme e, por

    consequência, não entender a obra. E, com base na concepção bakhtiniana de

    dialogia, não podemos compreender um discurso sem sua contraposição com outros

    discursos presentes no enunciado. Dificuldade que o professor não vai encontrar se

    utilizar um curta-metragem, pois, em apenas uma sessão, o aluno consegue

    assimilar e identificar os elementos discursivos produtores de sentido presentes na

    obra, permitindo que ele estabeleça as várias relações necessárias para uma

    compreensão ativa, refletindo e refratando os temas abordados na interação.

    Não menos importante é o cuidado de não submeter o aluno a longos

    períodos de exibição de um filme de que ele não goste. Pode ocorrer de o professor

    não realizar uma boa escolha e a classe não apreciar o filme, impedindo o

    envolvimento da turma na narrativa. Querendo ou não, todos somos, em certa

    medida, expectadores críticos, e já passamos, pelo menos uma vez, pela

    desagradável situação de termos que assistir até o fim a um filme que não nos

    despertou interesse. Com o curta, esse risco é quase nulo, pois seu caráter

    compacto apresenta argumentos sintetizados, menor número de elementos

    secundários durante a narrativa, o que dificulta o desvio da atenção por parte do

    telespectador. Contudo, usar excessivamente e sem critério, seja qual tipo for de

    obra cinematográfica, pode levar também à perda de interesse.

    A ideia de incorporar o uso de curtas-metragens no ensino de linguagem está

    de acordo com as orientações dos PCN, na medida em que apresentam amostras

  • 34

    da língua real e comunicação contextualizada, capazes de desenvolver nos

    telespectadores uma atitude ativa, transformando-os em agentes sociais. Isso faz

    todo sentido, porque, ao assistir a uma produção cinematográfica em aula, é (ou

    deveria ser) desencadeado um movimento semelhante àquele que ocorre ao assistir

    a um filme em outro espaço, em que o indivíduo, por meio de processos pessoais de

    assimilação e interpretação acaba, naturalmente, desenvolvendo competências,

    tanto de natureza comunicativa, como de uma forma geral (DUARTE, 2002). De fato,

    os PCN lembram que o desenvolvimento de qualquer capacidade humana, seja ela

    comunicativa ou não, baseia-se sempre em aspectos volitivos. Ou seja, o aluno

    precisa ter vontade, e esse processo deve ser natural, assim como ocorre em outras

    esferas em que ele atua.

    Assim, ao assistirem ativamente a um curta-metragem, os alunos deverão se

    sentir em uma ação concreta, real, como fazendo parte de seu dia a dia e não

    apenas como atividade escolar; caso contrário aquele processo desencadeador de

    capacidades e habilidades, visto anteriormente, não será disparado. Acreditamos

    que o curta-metragem contribui com esse conjunto de processos mentais, detonador

    da compreensão ativa e de competências comunicativas dos alunos, preparando-os

    para eventuais interações verbais em diferentes esferas. Isso acontece porque

    entram em contato com representações de diversas situações contextualizadas com

    a sua própria realidade. E, no processo de interpretação e associações, trazem à

    tona aspectos práticos, comuns do seu cotidiano.

    O curta Xadrez das Cores, de Marco Schiavon, 2004, pode ser um bom

    exemplo. A narrativa mostra a tensa relação entre patroa e empregada. Cida é uma

    mulher negra, de 40 anos, que vai trabalhar para dona Stella, uma senhora branca

    de oitenta anos, extremamente racista. Por ser esta uma situação vivida por

    milhares de pessoas no mundo, aqui já se estabelece um link com a realidade. Cida,

    apesar de ser tripudiada frequentemente pela patroa, consegue - na arena da

    palavra, demonstrando habilidade e competência comunicativas, adequando seu

    discurso à situação, mantendo os ritos discursivos protocolares exigidos na relação

    patroa – empregada - inverter o “jogo” a seu favor. Esse enunciado, embora seja da

    esfera artística, possui um vínculo com a realidade, o que leva o telespectador a se

    conectar com a obra. E é isso que faz ativar nele os processos desencadeadores de

    competências e habilidades na interação com o filme.

  • 35

    Esse diálogo com a realidade concreta, mais presente nos curtas-metragens,

    torna-se especialmente útil para entendermos essa natureza social da linguagem, de

    que falava Bakhtin, pois evidencia a linguagem como produto das interações sociais

    entre sujeitos reais, sem as quais a língua torna-se irreal, abstrata. Compreendendo

    melhor: numa produção cinematográfica que mostra uma situação de interação entre

    um europeu branco, o dominador, e um africano negro, o dominado, em que a

    linguagem utilizada por ambos é homogênea, predominantemente do dominador, a

    língua é artificializada. Essa linguagem apresentada nessa relação jamais estaria

    presente numa real interação social entre tais sujeitos. Essa representação

    monoglota do real perde a força vincular com a realidade concreta, diminuindo

    sensivelmente seu potencial desencadeador de habilidades e competências

    comunicativas. Além disso, transmite uma ideia distorcida da realidade, por maquiar

    a linguagem com intuito de atingir a um gosto padrão. Ocorre também o apagamento

    do sujeito; sua identidade cultural é anulada, uma vez que esse se constitui nas

    interações verbais, necessariamente dialógicas.

    Por outro lado, essa força comunicativa, do falar real, da língua praticada pelo

    sujeito falante concreto, está presente sobremaneira nos curtas-metragens, que

    apresentam sujeitos reais, inseridos numa sociedade, que se comunicam e

    interagem de forma heterogênea, apresentando suas variedades linguísticas e os

    acentos próprios dos sujeitos da interação, sem a tentativa de artificializar a

    linguagem. Isso quer dizer que, de forma polifônica, o negro falará com as suas

    idiossincrasias linguísticas; como podemos perceber na personagem Cida, do Curta

    Xadrez das Cores, o jovem com suas gírias imanentes, a mulher com seus usos

    expressivos característicos e o homossexual com seus estilos e marcas discursivas,

    sem contudo ser estereotipado, como acontece em alguns filmes hollywoodianos

    que trazem representações desses sujeitos. Essa heteroglossia linguística presente

    nos curtas-metragens de cunho autoral, presentes no projeto Porta Curtas, favorece

    o desenvolvimento da competência comunicativa do aluno, isso porque o indivíduo

    se identifica por meio de grupos, classes, categorias, gêneros e pela linguagem. Se

    ele não se vê numa representação, só lhe restará assumir uma posição passiva,

    imaginativa, diante do discurso apresentado.

    A esse respeito, podemos citar como exemplo o curta produzido em 2006 por

    Gustavo Melo, Pintinho, Picolé e Pipa. Essa narrativa mostra a euforia das crianças

    do Morro do Vidigal no dia em que passa o carro do “troca-troca”, o qual permuta

  • 36

    garrafa velha, bacia velha e outros utensílios por picolé, pintinho e pipa. Esse filme

    retrata a heterogeneidade inerente da favela, e a força expressiva dele está, do

    princípio ao fim, na linguagem. Logo no início, a Kombi aparece e o alto-falante

    “grita”: “Alô, garotada, o carro do troca-troca está passando, garrafa velha, bacia

    velha, panela velha, o moço troca por picolé, pintinho e pipa”. É tão real que parece

    ser a própria rotina da favela. E o que provoca esse efeito de realidade é

    exatamente a linguagem utilizada, aquela que se usaria naquele contexto. Num

    outro momento da narrativa, que também demonstra, por meio da linguagem, o

    vínculo com a realidade, ocorre quando uma garrafa cai e se quebra, um dos amigos

    de Pedrinho diz: “Esse moleque é o maior vacilão! Espera só eu pegar ele na rua,

    vou destruir ele!”, reproduzindo o discurso do traficante que domina as favelas

    cariocas, e em quem muitas crianças do morro se espelham.

    Para além das habilidades comunicativas, o uso do curta-metragem permite-

    nos conhecer os aspectos sociais e culturais de um povo. Os curtas permitem a

    análise da cultura do país que o produziu, pois, assim como acontece com qualquer

    produto cultural, eles revelam hábitos e costumes de quem os produziu. Assim, um

    curta-metragem pode se apresentar como projeção socioeconômica e cultural do

    seu país de origem, dos seus anseios, desejos, lutas e perspectivas. Por exemplo,

    no festival de Cannes11 de 1960, houve uma participação significativa de curtas-

    metragens africanos. Nessa época, havia um forte movimento anticolonial por lá.

    Esse desejo de liberdade, de se livrar do colonialismo, foi demonstrado nos filmes

    curtos apresentados no festival. A voz da liberdade, reprimida em seu próprio país

    pelos verdugos europeus, ecoou e ganhou força, ironicamente, na terra dos

    colonizadores (MOURA, 2003).

    Isso reflete o que Bakhtin (1992) postulou sobre a ideologia do cotidiano,

    aquela que é libertadora, o espaço onde todos os arquétipos da oficialidade ilusória

    e alienante são desnudados e virados de ponta-cabeça. Bakhtin (1987) chamou a

    isso de carnavalização. Assim, uma produção artística que não tem compromisso

    com a estética monológica, limitadora e conformadora, financiada pelo capital, está

    livre para mostrar, denunciar e provocar reflexão. Dentro dessa perspectiva, estavam

    os filmes longas produzidos no Brasil, na década de 50, no chamado Cinema Novo,

    11

    Festival de Cannes é um festival de cinema criado em 1946, um dos mais prestigiados e famosos festivais de cinema do mundo. Acontece todos os anos no mês de maio, na cidade francesa de Cannes. O mercado de filmes é, em boa medida, influenciado pelo festival.

    http://pt.wikipedia.org/wiki/1946http://pt.wikipedia.org/wiki/Cinemahttp://pt.wikipedia.org/wiki/Fran%C3%A7ahttp://pt.wikipedia.org/wiki/Cannes

  • 37

    no qual jovens cineastas, revoltados com o sistema e os critérios de financiamento

    de filmes, comandados pelas grandes companhias cinematográficas, resolveram

    reivindicar um cinema com mais realidade e menos ilusão, com mais conteúdo e

    menos capital (BERNARDET, 1995).

    Os filmes dessa época eram constituídos segundo a ideologia do cotidiano.

    Utilizavam-se da estética do lixo, aquela que choca, que revela o lado feio, sombrio

    e miserável da sociedade. Por isso mesmo, não recebiam ajuda financeira do

    capital, sendo produzidos com pouco ou quase nada de recurso financeiro. Esse

    modo de fazer cinema contrapunha-se à estética utilizada nas representações

    hollywoodianas, que mostravam sempre um mundo ideal, perfeito, todo mundo

    consumindo; um mundo de glamour e fantasia, totalmente abstrato, descolado da

    realidade e da língua utilizada nas interações sociais reais. É verdade que nem

    todos os longas possuem essa natureza seriada de produção, no entanto, uma parte

    considerável deles são, principalmente os famosos enlatados americanos.

    Assim, encerramos este capítulo, no qual traçamos, de forma breve, um

    panorama histórico do gênero curta-metragem no Brasil, situamos essa forma de

    expressão cultural dentro da concepção bakhtiniana de gênero discursivo, além de

    demonstrar sua viabilidade didática. No capítulo que segue, abordaremos o

    arcabouço teórico no qual foram embasadas nossas análises e reflexões.

  • 38

    CAPÍTULO II

    CINEMA, LINGUAGEM E DISCURSO

    Neste capítulo, travamos um debate acerca das possibilidades de diálogo

    entre o pensamento do Círculo de Bakhtin e a teoria do cinema, primordialmente no

    que se refere à compreensão do fenômeno da linguagem cinematográfica. Para

    tanto, como já mencionado no capitulo anterior, contamos, para esta reflexão, com

    os estudos realizados pelo pesquisador e professor de Teoria Literária, o inglês

    Robert Stam, o primeiro a estabelecer essa interação.

    Nossa proposição neste trabalho foi repensar alguns conceitos de Bakhtin e

    empregá-los na assimilação da linguagem cinematográfica, levando em conta as

    peculiaridades do gênero curta-metragem. Nessa empreitada, revisitamos alguns

    conceitos e concepções do pensamento de Bakhtin, como dialogia, heteroglossia,

    alteridade, exotopia, cronotopia, arquitetônica, interação verbal, dentre outros, a fim

    de oferecer ao leitor uma nova perspectiva de análise dos textos fílmicos, ao fazer

    uso de categorias que, até pouco tempo, eram utilizadas apenas em análise de

    textos verbais.

    Inicialmente, nos empenhamos em trazer à baila a concepção de linguagem

    para Bakhtin, pois entendemos que, ao pensar em quaisquer conceitos da sua

    teoria, faz-se necessário articulá-los à concepção de linguagem adotada pelo Círculo

    e a tudo o que está envolvido nessa noção. Procuramos também estabelecer

    paralelos e pontos de contato entre a ideia de interação verbal apresentada por

    Bakhtin e a concepção de cinema enquanto linguagem, especialmente quando

    tomada pela esfera educacional. E, por fim, envidamos esforços no sentido de

    evidenciar a proficuidade das categorias bakhtinianas na análise dialógica do

    discurso cinematográfico.

    A razão que nos move em direção a esse árduo e complexo, porém

    necessário, empreendimento é a premência de realizar uma leitura mais crítica da

    linguagem audiovisual, cada vez mais sofisticada e sutil e cada vez mais presente

    na vida de nossos alunos, nas mais variadas esferas das quais eles participam, por

    meio do cinema, televisão, publicidade, computadores, jogos eletrônicos, celulares,

    tablets etc. Por esse motivo, torna-se imperioso compreendermos como o mundo é

    representado pela indústria cinematográfica, sobretudo nas produções

  • 39

    padronizadas, como acontece com alguns filmes produzidos pela indústria o

    entretenimento. Para tanto, consideramos extremamente adequadas as ideias e

    categorias bakhtinianas, as quais nos oferecem um novo horizonte para analisar o

    cinema, levando em conta, além da dimensão estética, a dimensão ética (social,

    cultural, ideológica), presentes nas obras cinematográficas.

    2.1 Concepção(es) de linguagem: Fundamentos dialógicos do Círculo

    Para começarmos essa reflexão, faz-se mister trazer à baila o modo de

    pensar a linguagem presente nas correntes estruturalistas, o qual Bakhtin

    denominou de “objetivismo abstrato”, para, de forma dialógica, trazer à luz a

    concepção de linguagem construída pelo Círculo. Essa corrente, da qual o mestre

    genebrino Ferdinand de Saussure é compositor e regente, nos apresenta a seguinte

    dicotomia: Língua e Fala, sendo o primeiro elemento dessa bifurcação considerado a

    dimensão social da linguagem, e o segundo é encarado pelo linguista como

    expressão individual de cada sujeito falante.

    Saussure, ao instituir as categorias analíticas fundamentais para estudo da

    língua, como a fonética e a morfologia, baseou-se nos estudos da linguística

    comparativa indo-europeia, aquela criada para estudar, de forma mais adequada, as

    línguas mortas e as estrangeiras. Saussure não negava o aspecto social da língua,

    contudo o modo de fazer ciência da sua época exigia que o objeto de estudo

    apresentasse comportamentos idênticos, portanto passíveis de normatização, como

    a fonética, a morfologia etc. Mas esse modo de tratar a língua atava a diversidade, a

    pluralidade e a mutabilidade, constitutivas da linguagem, em um sistema fechado de

    regras.

    Dentro dessa perspectiva estruturalista de pensar o fenômeno da linguagem,

    as variações sociais da língua, bem como as variantes individuais dos falantes não

    podiam ser consideradas nos estudos linguísticos. Para os estruturalistas, esses

    fatores eram considerados desordenados, demasiadamente heterogêneos e

    aleatórios, fugindo do padrão e do rigor exigidos pela ciência. Isso fez com que a

    fala assumisse um papel quase que irrelevante, nos estudos linguísticos do final do

    século XIX, a fim de não inviabilizar o projeto estruturalista de instituir uma unidade

    da língua como sistema.

  • 40

    Esse modelo positivista de conceber a linguagem como um sistema abstrato,

    tomando por base suas característica