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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO ALINE DE SOUZA CAMPOS A MULHER QUE LOGO SOU Estilo, escritura e otobiografia Cuiabá-MT 2016

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO

INSTITUTO DE EDUCAÇÃO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

ALINE DE SOUZA CAMPOS

A MULHER QUE LOGO SOU

Estilo, escritura e otobiografia

Cuiabá-MT

2016

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO

INSTITUTO DE EDUCAÇÃO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

ALINE DE SOUZA CAMPOS

A MULHER QUE LOGO SOU

Estilo, escritura e otobiografia

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em Educação da Universidade Federal de

Mato Grosso, como requisito para a obtenção do

título de Mestre em Educação na Linha de Pesquisa

Cultura, Memória e Teorias em Educação.

Orientador: Prof. Dr. Silas Borges Monteiro

Cuiabá-MT

2016

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Àquelas que me ampararam durante todo esse percurso, dividindo

ausência, dores e alegrias:

Minha mãe, Cleonice, que mesmo sem entender “para que estudar

tanto”, esteve ao meu lado incentivando e acolhendo.

Layane, obrigada por tanto carinho, cumplicidade e compreensão.

Agora é minha vez de retribuir.

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Agradeço,

Ao meu amigo-orientador, Silas Borges Monteiro, que lá em 2012, pelo Twitter, me

convidou para conhecer o Grupo Estudos de Filosofia e Formação (EFF). Leme do veleiro que

com paciência e dedicação me auxiliou nas direções tomadas durante esta viagem. Obrigada

pelo mundo que me apresentou.

Aos meus pais, por me proporcionarem condições de caminhar até aqui.

Aos membros da banca, professores Luciano Bedin da Costa, Henrique de Oliveira Lee

e Vera Lúcia Blum, ouvidos e vozes fundamentais para a construção deste trabalho.

Aos amigos do EFF, em especial aqueles que me acompanharam mais de perto: Márcia,

pelas palavras de sabedoria e aconchego; Alessandra, pelas preciosas dicas e seu HD iluminado;

Polyana, pela companhia virtual em momentos de crise e pela leitura tão criteriosa; Emília,

conviver contigo é aprender a todo tempo; Vanessa e Vithória, por me ouvirem em momentos

de desespero; Fernanda (Major Leonel) que, com seus vários broches milimétricamente

espetados ao longo da farda, ou de jeans e rasteirinha, dividiu o barco comigo durante esses

dois anos; Layane, que com tanto carinho e companheirismo, tornou este processo mais leve

Ao Fabricio, meu amigo-irmão, pela atenciosa leitura do texto e parceria à distância em

mais uma etapa.

Às alunas do curso de Psicologia e Pedagogia da Universidade Federal de Mato Grosso,

que aceitaram participar da Oficina de Transcriação Vita Femina, fundamentais para este

trabalho.

À equipe do Programa de Pós-Graduação em Educação, Profª. Drª. Márcia Ferreira,

Luiza e Marisa que tanto orientaram minhas dificuldades burocráticas.

À turma de Psicologia 2015/1, pela acolhida durante o estágio em docência

À CAPES pelo fundamental apoio financeiro para a realização desta pesquisa.

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Resumo

Este trabalho se propôs a uma escuta dos estilos do feminino das alunas dos cursos de Psicologia

e Pedagogia da Universidade Federal de Mato Grosso, campus Cuiabá. Num movimento de

experimentação, ouvi os ecos de minhas vivências, enquanto psicóloga-mulher-pesquisadora,

na produção escrita dessas estudantes. Para mobilizar essa escuta, fiz uso da Oficina de

Transcriação, concebida e operacionalizada como conceito-prática de pesquisa pelo projeto

Escrileituras: Um modo de ler-escrever em meio à vida. Através da Oficina de Transcriação

Vita Femina, utilizei textos de Virginia Woolf e Florbela Espanca investindo em uma nova

tipologia: Oficina de Transcriação Otobiografemática. A escuta das produções escritas deu-se

por meio da investigação otobiográfica, desenvolvida por Monteiro a partir da noção

nietzschiana de vivências e do conceito de otobiografias, proposto por Derrida. Desse

movimento suscitam as possibilidades quanto à composição, experimentação e variação de

estilos próprios.

Palavras-chave: Otobiografia. Estilo. Escritura. Feminino. Vivências. Nietzsche. Derrida.

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Abstract

This work proposes a listening to the feminine's styles of the Psychology and Pedagogy students

at the Federal University of Mato Grosso, Cuiabá. In a movement of experimentation, I heard

the echoes of my life-experiences while psychologist-woman-researcher on the written

production of those students. To mobilize that listening, I used the Workshop of Transcreation,

designed and operationalized as a concept and practice of research by the project Writreadings:

a way of reading-writing amidst life. Through the Workshop of Transcreation Vita Femina, I

used texts by Virginia Woolf and Florbela Espanca investing in a new typology: a

Otobiografemática Workshop. The listening of that written production took place through the

otobiographic research, developed by Monteiro from the Nietzschean concept of life-

experiences and the otobiographie concept, proposed by Derrida. From this movement raise

the possibilities of composition, experimentation and variations of individual styles.

Keywords: Otobiography. Style. Scripture. Feminine. Life-experience. Nietzsche. Derrida

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Notação Bibliográfica ............................................................................................................... 10

Içando velas .............................................................................................................................. 12

“Em casa ou na cozinha” .......................................................................................................... 19

O véu e a dissimulação da ausência ......................................................................................... 33

Nietzsche, Derrida e o estilo esporante .................................................................................... 41

Um método labirinto ................................................................................................................. 50

É preciso apequenar as orelhas ................................................................................................. 59

Referências ............................................................................................................................... 73

Mais, ainda ............................................................................................................................... 80

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Notação Bibliográfica

Adoto, para este texto, a configuração de citação convencionada pela edição das obras

completas de Friedrich Nietzsche elaborada por Giorgio Colli e Mazzino Montinari.

Sistematizo abaixo as obras e suas respectivas siglas:

EH – Ecce Homo

BM - Para além de bem e mal

GC - A gaia ciência

ZA - Assim falou Zaratustra

DD - Ditirambos de Dionísio

HH II - Humano, demasiado humano (vol. 2)

Exclusivamente para o caso das obras de Freud, adoto o modelo de publicação

reimpressas, item 3.2.12 da 6ª edição da APA (Associação Americana de Psicologia), uma vez

que a ABNT (Associação Brasileira de Normas Técnicas) não traz recomendações a este

respeito. Dessa forma, primeiramente é citado o ano de publicação original seguido do ano da

obra consultada. Assim, quando aparece Freud (1931/1996), estou me referindo ao texto

originalmente publicado em 1931, consultado na obra datada de 1996.

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“La escritura es lo desconocido. Antes de escribir no sabemos nada de

lo que vamos a escribir. Y con total lucidez. [...] Si se supiera algo de

lo que se va a escribir, antes de hacerlo, antes de escribir, nunca se

escribiría. No valdría la pena. ”

Marguerite Duras - Escribir

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Içando velas

O estilo é, de certa maneira, o começo da escritura: mesmo

timidamente, oferecendo-se a grandes riscos de

recuperação, ele prepara o terreno para o reino do

significante.

Barthes (2003, p. 89)

Quando esta pesquisa ainda era um projeto submetido ao processo seletivo de mestrado,

uma armadilha iminente me rondava: falar de mulheres e femininos sem me envolver na defesa

por uma posição de sexo, gênero ou movimento social. Esta dissertação se propõe a uma escuta

dos estilos do feminino das alunas dos cursos de Psicologia e Pedagogia da Universidade

Federal de Mato Grosso, campus Cuiabá. Por conta disso, é necessário elucidar, desde já, que

a proposta que se estabelece não afirma e tampouco condena algum estilo de feminino. Não

procuro tomar nenhum deles como verdadeiro ou falso, certo ou errado, qualidade ou defeito,

pois como bem declara Nietzsche: “bom estilo em si — pura estupidez, mero ‘idealismo’, algo

assim como o ‘belo em si’, como o ‘bom em si’, como a ‘coisa em si'...” (EH, Por que escrevo

tão bons livros, § 4). Ora, ter apenas um estilo não é nada senão ter estilo nenhum: “se há estilo,

eis o que nos insinua a mulher (de) Nietzsche, deve haver mais de um” (DERRIDA, 2013, p.

106).

Ademais, “a coisa em si” referida por Nietzsche também não é objeto de investigação

desse texto, porque ela não existe propriamente. O questionamento sobre “o que é” é puramente

metafísico, busca a essência das coisas, o que é determinado por sua natureza e que constitui

algo como único. A partir do pensamento da filosofia da diferença, busca-se

desterritorializações, a produção de pensamentos inéditos, a superação da metafísica tradicional

que se utiliza do “o quê?” propondo, então, o “quem?”. Deleuze, um dos referenciais do

pensamento da diferença, assim se expressa:

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‘Quem?’, segundo Nietzsche, significa o seguinte: sendo uma coisa dada, quais são

as forças que dela se apoderam, qual é a vontade que a possui? Quem é que se exprime,

se manifesta, e mesmo se esconde nela? Somos conduzidos à essência apenas pela

questão: Quem? Porque a essência é apenas o sentido e o valor da coisa; a essência é

determinada pelas forças com afinidade com a coisa e pela vontade com afinidade

com essas forças. Mais ainda: quando colocamos a questão: ‘O que é?’ caímos apenas

na pior metafísica, de fato, não fazemos mais do que pôr a questão: Quem? mas de

uma maneira indireta, cega, inconsciente e confusa. (DELEUZE, 1987, p. 116-117).

Deleuze, em sua leitura nietzschiana, aponta que as questões acerca do “o que é?” se

limitam a uma redução à essência, assim a fórmula mais adequada quando se deseja chegar até

as forças que colocam um texto em movimento se apresentaria, então, como “quem?”.

E quanto ao feminino, por sua vez, de quem eu falo? Quem é essa figura que chamo de

mulher? Para responder à essa questão, recorro à personagem chamada Uhma Mvlier, criada

pela professora Sandra Corazza no livro Linhas de Escrita (TADEU; CORAZZA; ZORDAN,

2004). Uhma Mvlier é uma professora-pesquisadora que já não consegue mais entender o que

funciona ou não, quando se toma a pesquisa em educação. Uhma viu todas as suas concepções

acerca da pesquisa em educação caírem por terra, “nada funcionava mais, tinha perdido toda a

fecundidade” (CORAZZA, 2004, p. 8) e entra em crise diante dessa escuridão desorientada. É

certo que Corazza, por meio de Uhma Mvlier, em seu texto vai muito além do que foi exposto

acima, contudo o que me interessa neste momento é que Uhma se trata de todas e de nenhuma

professora ao mesmo tempo.

Aqui, o nome Uhma Mvlier é próprio, mas também é impessoal; se refere a todas as

mulheres, mas também a nenhuma. O nome “Uhma” faz referência ao pronome indefinido

“uma”, que pode ser usado tanto para determinar uma mulher específica, quanto para indicar

qualquer uma. Uhma não tem identidade, assim como nesta dissertação não há a identidade da

mulher “talvez seja ela, como não-identidade, não-figura” (DERRIDA, 2013, p. 32), para além

disso, a mulher neste contexto “engole, vela pelo fundo, sem fim, sem fundo, de toda

essencialidade, toda identidade, toda propriedade”.

Não houve, em momento algum, a pretensão de denominar um ou outro estilo como

verdadeiramente feminino, como próprio da mulher. O feminino, enquanto um estilo, se

apresenta sob a perspectiva do derridiano jogo do “nem/nem” (DERRIDA, 2001, 2005). Não é

sensibilidade nem insensibilidade; nem certo nem errado; nem altruísta nem egoísta; nem bem

nem mal; nem verdade nem não-verdade.

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***

nem Lilith/nem Eva

nem Santa/nem Outra

nem Geni/nem Amélia

nem Emma Bovary/nem Macabéa

nem Orlando/nem Tirésias

nem Joana D’arc/nem Diadorim

***

A mulher não é nada disso, embora seja tudo isso ao mesmo tempo, o jogo infinito do

“nem/nem quer dizer ‘ou ao mesmo tempo’ ou ‘ou um ou outro’.” (DERRIDA, 2001, p. 50). A

mulher é ambígua, é dupla, é múltipla, não pode ser definida em binarismos, é impossível

estabelecer sua unidade: “há uma ambiguidade feminina, que não é aceita na

complementaridade de seus polos opostos. Um clamor pela unidade daquela que, desde o

princípio dos tempos, foi múltipla” (CORAZZA, 2002, p. 85). Em consonância ao que Corazza

afirma sobre a multiplicidade da mulher, Irigaray amplia para a sexualidade feminina:

Talvez seja hora de voltar a essa entidade reprimida, a fêmea imaginária. Então,

mulher não tem um órgão sexual? Ela tem pelo menos dois deles, mas eles não são

identificáveis como aquele uno. De fato, ela tem muitos mais. Sua sexualidade,

sempre no mínimo dupla, ainda mais: é plural (IRIGARAY, 1985, p. 28, tradução

minha, grifo da autora).

É a partir desse não-lugar, dessa pluralidade que o feminino integra esta pesquisa.

Tomo emprestado de Derrida parte do título desta dissertação. A mulher que logo sou,

faz clara referência ao O animal que logo sou, título de sua fala no Colóquio de Cerisy-la-Salle

em 1997, publicada no Brasil no ano de 2002. Penso ser importante esclarecer que o uso

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adaptado desse título está longe de intentar uma comparação entre a figura do animal e da

mulher. Explico-me: Derrida, em um determinado momento do referido texto, problematiza a

imposição do conceito singular “o animal” em oposição ao “homem” (humanidade). Ao fazer

isso, o filósofo coloca em suspeita a condição de que tudo que não é próprio do homem é, então,

do animal:

não há o animal no singular genérico, separado do homem por um só limite indivisível.

É preciso considerar que existem ‘viventes’ cuja pluralidade não se deixa reunir em

uma figura única da animalidade simplesmente oposta à humanidade. (DERRIDA,

2002, p. 87).

É a essa superação da hierarquização do conceito de animal em oposição a tudo que não

é humano que se estabelece uma relação com a denominação de mulher/feminino a tudo que

não é “próprio” do homem/masculino. Isto é, a determinação do que é próprio da mulher é

pensada a partir do que não é do homem, como no caso da sexualidade feminina, que é

conceituada a partir da oposição aos parâmetros masculinos. (IRIGARAY, 1985). Assim como

é o homem quem nomeia os animais, é também ele quem institui a essência feminina. “É o

‘homem’ que acredita que seu discurso sobre a mulher ou sobre a verdade — […] diz respeito

à mulher” (DERRIDA, 2013, p. 44). Historicamente, é sempre o homem quem diz onde a

mulher deve estar, qual seu lugar próprio, o que condiz sua natureza — como no processo de

feminização das profissões — em busca da manutenção da tradição falogocêntrica.

O problema desta pesquisa nasce diante da posição histórica que a mulher tem ocupado

do ponto de vista de sua profissionalização, na Psicologia e na Pedagogia, em específico. A

proposta que se estabelece enquanto objetivo da pesquisa é, por meio da filosofia de Nietzsche

e Derrida, ouvir as vivências que permeiam a produção escrita dessas alunas, o texto como

produção de si. Desta forma, não apresento aprofundadas discussões sociológicas ou históricas

acerca da profissionalização da mulher, mas ainda assim é necessário partir de aspectos

históricos para compreender o processo de feminilização (aspecto quantitativo) e feminização

(aspecto qualitativo) das profissões em questão, para mais tarde compreender como as vivências

dessas estudantes se encontram ou desencontram com a história institucional e das profissões

escolhidas por elas. É disso que se trata o primeiro segmento deste texto.

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No segundo capítulo, em um movimento de aproximação e afastamento, introduzo

algumas questões da Psicanálise. É por volta da década de 1960 que Derrida passa a demonstrar

interesse pelas questões da psicanálise em seu projeto filosófico, e em 1966, em uma

conferência no Instituto de Psicanálise a convite de André Green, o filósofo marca a inserção

de sua presença nesse campo (PEETERS, 2013). A conferência é publicada pela primeira vez

em 1967 sob o título de Freud e a cena da escritura, em que Derrida desenvolve uma reflexão

acerca dos temas traço e escritura na obra freudiana. A partir de então, Derrida e a Psicanálise

se envolvem em uma intensa relação, longe de ser unívoca. A crítica ao falogocentrismo é um

ponto marcante na relação de Derrida com a psicanálise freudiana e também lacaniana. Embora

Lacan indique meios de escapar ao falogocentrismo, ele ainda opera nesta lógica.

Em Nietzsche, Derrida e o estilo esporante, introduzo os principais conceitos que atuam

neste texto. Vivências, estilo, mulher, escritura e otobiografia se apresentam como conceitos-

chave para esta pesquisa. Em Esporas, os estilos de Nietzsche, Derrida (2013) explora a questão

da mulher [verdade/não-verdade] nas obras de Nietzsche e analisa a leitura que Heidegger

estabelece com esses textos. Assim, em três vozes, Derrida trabalha a ideia da mulher como um

indecídivel, um estilo-estilete que perfura e rompe com as essências e binarismos próprios da

metafísica. Para evitar confusões ao longo do texto em relação ao uso dos termos mulher e

feminino, Haddock-Lobo (2007, p. 356) esclarece:

Derrida, propositadamente, confunde os termos “mulher” e “feminino”, para que […]

não haja possibilidade de categorizar isto que justamente deve fugir a qualquer

categorização. O uso indiscriminado de mulher e feminino, mas também a utilização

do pronome “ela” para se referir à mulher, à verdade, ao velamento, à distância faz

com que o leitor de Esporas não saiba a quem Derrida está se referindo.

A “confusão” de nomes e pronomes é mais um artifício da estratégia desconstrutora

utilizada por Derrida em seu texto. Entretanto, sua artimanha é prudente, quando se refere aos

conceitos de mulher e feminino inseridos na metafísica dicotômica, o filósofo alerta sobre os

“fetiches essencializantes que são justamente o que se crê conquistar quando se permanece na

tolice do filósofo dogmático, do artista impotente ou do sedutor sem experiência”. (DERRIDA,

2013, p. 37).

No quarto capítulo do texto, abordo a questão do método. Das Oficinas de Transcriação,

enquanto práticas de pesquisa do projeto Escrileituras: um modo de ler-escrever em meio à

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vida, à investigação otobiográfica. Da produção de biografemas à escuta das vivências do texto

sempre autobiográfico.

Em É preciso apequenar as orelhas, apresento a composição da Oficina de Transcriação

Vita Femina e o exercício da investigação otobiográfica. No momento em que este texto é

escrito, minhas orelhas ainda estão em processo de encurtamento. Assim como as orelhas de

Ariadne diminuem com as vivências compartilhadas com Dionísio, as minhas se apequenam

nas transcriações desse texto. Entro no labirinto colocando meus ouvidos e minhas vivências

ao exercício da escuta otobiográfica. Talvez as vivências que ouço hoje, enquanto pesquisadora-

mulher-psicóloga, não sejam as mesmas de amanhã, o que me leva à frase da Profª. Drª. Vera

Blum dita no momento do exame de qualificação: “A pesquisa é a própria errância da

experimentação”. De velas içadas ao vento que sopra forte, é preciso começar a navegar e

experimentar.

***

“Duas esporas ao menos, eis a herança [échéanc]. Entre elas, o abismo onde lançar,

arriscar, perder talvez, a âncora.” (DERRIDA, 2013, p. 106).”

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SUICÍDIO DE LUCRÉCIA, DE LUCAS CRANACH, O VELHO (1526)

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“Em casa ou na cozinha”1

Pois, se a mulher é verdade, ela sabe que não há verdade,

que a verdade não tem lugar e que não se tem a verdade.

Derrida (2013, p. 34)

Processo de feminização-feminilização

Ocorre uma espécie de guetização das mulheres em cursos de graduação e, por

consequência, em profissões que envolvam o ato do cuidado. Bourdieu (2012) em A dominação

masculina denomina como carreiras femininas as profissões que se organizam em quatro

núcleos: cuidar de crianças (pedagogas, professoras primárias), de doenças (enfermeiras), da

casa (governantas, empregadas domésticas) e de pessoas (secretárias, psicólogas). Essa

realidade parece estar ligada a aspectos e características socialmente construídas e estabelecidas

como próprias das mulheres, tais como paciência, sensibilidade, cuidado, passividade e

dedicação ao outro.

Importante esclarecer que não abordo a questão do cuidado como inteiramente negativa

ou prejudicial, tanto na relação terapêutica quanto educacional. O cuidado e seus

desdobramentos – cuidar, ser cuidado e autocuidar – são primordiais para a sobrevivência e

desenvolvimento em diversos momentos da vida e, com atenção ao que interessa nessa

pesquisa, “atividades de cuidar fazem parte das obrigações e tarefas específicas de todos os

profissionais das áreas da saúde e da educação” (FIGUEIREDO, 2007, p. 13). Assim, o ponto

problematizado nesta dissertação se refere aos limites e funções do cuidado que vêm ocupando

o imaginário social quando se trata da prática profissional de pedagogas e psicólogas. Ou seja,

1 O título desta seção faz referência ao questionamento de Derrida acerca da necessidade de se estabelecer um

lugar como próprio da mulher: “Não tem medo de que, enquanto nos envolvemos no caminho dessa topografia,

nos encontraremos forçosamente de volta ao ‘em casa ou na cozinha’ […] Por que haveria necessidade de um

lugar para mulher? E por que um, somente um, um essencial?” (DERRIDA, 2008, p. 160, tradução minha).

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até que ponto o cuidado dentro dessas profissões se limita ao ato de acolher e amparar como

funções predominantemente femininas?

Para me ajudar a pensar esta questão, trago Figueiredo (2007) e seu texto A

metapsicologia do cuidado em que ele apresenta dois modos de atuação do agente cuidador: a

presença implicada e a presença em reserva. A primeira diz respeito ao fazer por parte do agente

cuidador, enquanto a segunda é onde o outro assume a postura do fazer, e o cuidador se mantem

em reserva, ainda que disponível, pois a reserva não implica em ausência. O autor ressalta a

importância do equilíbrio entre essas duas presenças e os malefícios do excesso tanto da reserva

quanto da implicação “mesmo quando, e principalmente quando, são justificados pelas

melhores razões humanitárias: salvar, socorrer, curar a todo custo” (Ibid., p. 21). Educar

crianças ainda é confundido com cuidar de crianças, assim como a atenção da terapeuta é

confundida com o cuidado materno. Em ambos os casos, as distorções estão atreladas à função

feminina dentro da família. Há um recorrente discurso messiânico em defesa da vocação em

cuidar e em ensinar, na maioria das vezes expressos pelas próprias profissionais de ambas as

categorias que parecem buscar “salvar, socorrer, curar a todo custo”.

Sobre agente cuidador, Figueiredo (2007, p. 13) se refere a “mães e pais, médicos,

enfermeiros, professores, assistentes sociais, fonoaudiólogos etc, sem exclusão dos próprios

psicanalistas”. Ora, se homens e mulheres, enquanto pais ou profissionais, se apresentam como

agentes do cuidado, por que costumeiramente associamos o cuidado à função materna? A mãe

(mulher) como quem deve, por obrigação e vocação, acolher, cuidar e zelar o outro? É certo

que isso constitui uma meia verdade, pois a função materna é apenas uma das funções do

cuidado, sendo complementada pela função paterna, de igual importância e necessidade. Por

que, então, as profissões que requerem a prática do cuidado são profissões feminilizadas?

Esforço-me para responder essa questão ao longo deste capítulo.

Não há como considerar a prática do cuidado como propriamente feminina, sem levar

em conta sua direta relação com os espaços públicos e privados. Rousseau afirmava que as

funções da mulher eram definidas pela “essência do feminino”2. Esta diferença essencializante

2 O pensamento chamado de “essência do feminino” exposto aqui, toma como base a essência aristótelica:

“essência necessária ou substância, que é a resposta (à mesma pergunta) que enuncia o que a coisa não pode não

ser e que é o porquê da coisa, como quando se diz que o homem é um animal racional, pretendendo-se dizer que

o homem é homem porque é racional” (ABBAGNANO, 2007, p. 359, grifo do autor).

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da mulher dizia respeito às características biológicas e espirituais consideradas como mais

harmônicas ao espaço privado, ou seja, a mulher era naturalmente propícia para a ocupação das

atividades domésticas e maternas. Tal pensamento extinguia a culpa do social enquanto ditador

da mulher enclausurada e subjugada à família, justificando tal condição pela via da natureza

(NERI, 2005).

Os pais tinham papel fundamental na aprendizagem das crianças ainda na primeira

infância. Enquanto os meninos saíam para o campo acompanhando o pai para aprender sobre o

trabalho, as meninas ficavam em casa, na companhia da mãe, aprendendo sobre o papel de

mulher que exerceria em um futuro próximo. Meninos e meninas eram educados de maneira a

preservar os papéis para os quais foram designados, supostamente por natureza, preparando-os

em função da continuidade da família.

O discurso em defesa da “natureza feminina” surge por volta do século XIX respaldado

por questões biológicas e médicas, e ainda parece estar presente na sociedade. Os médicos que

se diziam estudiosos das mulheres, não só se dedicaram às especificações da saúde feminina,

como a gravidez, “mas também formularam uma definição de seu ser social fundada na

natureza, ou melhor dizendo, no seu corpo” (MARTINS, 2004, p. 15). Dessa forma, eram esses

médicos que diziam e marcavam o papel da mulher, assim como suas funções, características

psicológicas, direitos, atribuições e proibições. Resultando em um gerenciamento do corpo

feminino vigente ainda nos dias atuais: “hoje não pesam nossos cérebros, nem nos reduzem à

materialidade de nossos úteros e ovários. No entanto, nossos corpos continuam a forjar nossos

destinos, a nos pregar peças [...]” (Ibid., p. 16).

A respeito disso, Kehl (1998, p. 15) afirma que o grande problema da mulher é a

dificuldade em “deixar de ser objeto de uma produção discursiva muito consistente, a partir da

qual foi sendo estabelecida a verdade sobre sua ‘natureza’.”. A construção do discurso sobre a

natureza feminina não teve nenhuma participação ou influência das mulheres, foi desenvolvido

exclusivamente por homens, da maneira mais conveniente e conforme suas necessidades e

interesses.

Em relação à soberania da voz masculina enquanto formadora da cultura, Kehl lança o

questionamento: “o significante do homem é o pênis ou o Verbo?” (Ibid., p. 315). A autora

revela o caráter provocativo da questão ao afirmar que não pretende respondê-la, ao menos

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nesta ocasião. Fisgada pelo anzol que me é lançado, arrisco dizer que respondo à essa pergunta

ao longo deste texto. O falo está na fala. Se no início era o Verbo e o Verbo se fez carne, o que

resta à mulher senão o silêncio? A escritura.

Assoun (1993, p. 176) afirma que “na origem, a mulher não fala [...] ela é falada pelo

homem, ou condenada a existir à margem do Verbo” e, mais ainda, a primeira fala de Eva é

dirigida à serpente. Deste modo, o seu pecado consistiria apenas em não ter resistido à vontade

de falar, pois era somente Adão quem sabia da Lei de Deus acerca do fruto proibido, mas ainda

assim o peso do pecado original recai todo sobre a mulher.

Do Gênesis até a década de 1970 são milhares de anos passados, no entanto, é em 1976

que Cixous escreve: “é hora das mulheres começarem a marcar seus feitos em linguagem escrita

e oral.” (CIXOUS, 1976, p. 880, tradução minha). É hora de romper com o silêncio que lhe foi

instaurado e passar a ser sujeito de sua própria produção discursiva.

Retomando o argumento essencialista que estabelece o feminino como uma grande

característica unívoca a todas as mulheres, este infere que ao adentrar os espaços públicos e,

consequentemente, ao mercado de trabalho, a mulher transfira para a vida pública a posição

subjetiva que ocupa no espaço familiar. Afinal, esta é a sua "essência".

Elegendo como objeto de análise a profissionalização das mulheres, é comum encontrar

na literatura especializada dois tipos de situações: os termos feminilização e feminização

enquanto categorias diferentes, e obras que utilizam apenas o termo feminização como uma

espécie de síntese desse processo. Aqui, opto por fazer uso da distinção conceitual estabelecida

por Yannoulas (2011) entre essas duas categorias:

Um significado quantitativo que optamos por denominar de feminilização: refere-se

ao aumento do peso relativo do sexo feminino na composição de uma profissão ou

ocupação; sua mensuração e análise realizam-se por meio de dados estatísticos e um

significado qualitativo que denominaremos feminização que alude às transformações

de significado e valor social de uma profissão ou ocupação, originadas a partir da

feminilização [...] (p. 271, grifo meu).

O conceito de feminilização é atribuído ao caráter quantitativo que uma profissão

adquire em decorrência do expressivo aumento no número de mulheres que a compõem. Já a

feminização corresponde aos valores e significados sociais que são atribuídos a uma profissão

em decorrência do processo de feminilização.

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Ao primeiro olhar, deduz-se que o processo de feminilização necessariamente implica,

por consequência, na feminização. Para quê, então, fazer uso de ambos os termos? Yannoulas

(2011) destaca que a distinção dos termos é importante para que possamos compreender de

maneira global a complexidade desse processo. A feminização vai além das questões

meramente estatísticas, propondo uma análise aprofundada da incorporação da mulher em

determinada profissão.

Analisando o processo de feminilização-feminização do magistério brasileiro, por

exemplo, é clara a influência direta do pensamento naturalista. Inicialmente, se tratava de uma

profissão passível de ser exercida por ambos os sexos. Porém, o discurso essencialista de que

as mulheres poderiam desempenhar melhor essa função devido sua natureza, juntamente com

a baixa remuneração, contribuiu para uma feminização da profissão docente. Partindo do ponto

em que mulheres são naturalmente boas cuidadoras e educadoras, além de não haver

necessidade de altos salários, pois o principal provedor do lar é o homem, seja pai ou marido.

Há um outro discurso sobre o mesmo fenômeno demonstrando que a ênfase na docência

como profissão feminina se apresentava, também, como uma estratégia para justificar a saída

dos homens do magistério em virtude da baixa remuneração (ALMEIDA, 1998). Esse

movimento é visto como uma “bola de neve” por Bourdieu (2012), pois as profissões passam a

ser feminilizadas por conta de um já existente processo de desvalorização: a evasão masculina

resultante dos baixos salários. Deste modo, ao ter um número elevado de mulheres a profissão

passa a ter características, valores e significados atrelados à “essência feminina”, que funciona

como uma retroalimentação da desvalorização e do baixo reconhecimento econômico e social.

Em relação à feminilização na Psicologia, é possível observar este processo no trabalho

de Lhullier (2013) que coordenou e desenvolveu uma pesquisa juntamente com o Conselho

Federal de Psicologia (CFP) questionando a relação entre as psicólogas e a Psicologia.

Constituindo um dos resultados mais expressivos, o estudo constatou que as mulheres são 89%

da categoria, ou seja, entre dez profissionais de Psicologia, nove são mulheres. Em uma

pesquisa anterior realizada no ano de 1988, o percentual feminino era de 87%, o que demonstra

um pequeno crescimento em relação ao resultado mais recente.

Apesar do aumento de apenas 1% em 24 anos, é importante destacar que a pesquisa de

1988 recebeu o título de “Quem é o psicólogo brasileiro?”, enquanto a edição mais recente foi

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nomeada como “Quem é a psicóloga brasileira?”. A mudança do gênero utilizado na

representação do profissional da Psicologia demonstra o que arrisco chamar aqui de

feminização propriamente dita. Isto é, o impacto da primazia feminina na profissão vai além de

uma questão quantitativa e estatística (feminilizada), implicando, até mesmo, em uma flexão

de gênero.

No entanto, essa predominância numérica feminina diminui quando se trata das

posições de destaque dentro da própria profissão. No site do CFP3 há um arquivo com os dados

de identificação e contato dos 23 Conselhos Regionais de Psicologia (CRP) existentes no Brasil.

CFP e CRP foram criados a partir da Lei nº 5.7664, de 20 de dezembro de 1971 que, dentre

outras providências, trata da constituição de cargos que integram os conselhos. Assim, todos os

conselhos seguem a mesma estrutura de cargos, concentrando na diretoria suas principais

ocupações distribuídas em: presidente, vice-presidente, secretário e tesoureiro.

Dos cargos que compõem a diretoria, a presidência é o primeiro em ordem hierárquica,

o cargo que possui maior poder, representatividade e responsabilidade. Dos 23 Conselhos

Regionais, atualmente 11 são presididos por homens e 12 por mulheres. Ainda que o número

de mulheres ocupando o cargo de presidência seja superior ao número de homens, essa

diferença é mínima se considerarmos a absoluta maioria de mulheres que compõem a profissão

como um todo. Essa situação demonstra que as relações de gênero e poder no trabalho atuam

mesmo em profissões feminilizadas-feminizadas. Por mais que se tenha uma expressiva maioria

de mulheres, e que a profissão carregue significados e valores feminizados, os números

aparecem muito equilibrados quando tratamos de poder.

Com atenção aos discentes dos cursos de graduação em Psicologia, tomo como fonte de

dados o Relatório de Síntese do Exame Nacional de Desempenho de Estudantes (ENADE),

realizado por concluintes do curso no ano de 2012. Em relação ao sexo dos estudantes, o

documento revela uma situação semelhante a dos profissionais: 83,4% dos estudantes

pertencem ao sexo feminino.

3 Disponível no site do Conselho Federal de Psicologia <http://site.cfp.org.br/cfp/sistema-conselhos/conselhos-

pelo-brasil/>. Acesso em 4 out. 2015. 4 Disponível no Portal da Presidência da República do Brasil

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L5766.htm>. Acesso em em 4 out. 2015

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Sinto-me na necessidade de explicar o motivo do uso, ao longo do texto, de ambas

palavras: sexo e gênero. Além de respeitar a maneira que os dados aparecem nos documentos

originais — na situação acima, por exemplo, o feminino e o masculino são conceituados como

sexo — há também um comprometimento teórico. Nietzsche e Derrida tecem este texto comigo,

dão o direcionamento conceitual à minha escrita, tratam-se de autores reconhecidos pela intensa

busca pela subversão à ordem do discurso da metafísica. Derrida se opõe ao binarismo, ao

essencialismo, à diferença sexual reduzida aos pares opositivos, isto faz com que a distinção

entre sexo e gênero se torne irrelevante para o que nos interessa aqui. Afinal, se gênero está

atrelado à construção social e sexo à biologia, a oposição de ou um ou outro se mantém. Esta

questão será melhor explorada na seção intitulada Nietzsche, Derrida e o estilo esporante, por

ora, seguimos com o processo de feminização das profissões.

Para investigar o aspecto feminilizado da Pedagogia, utilizo o estudo exploratório com

base nos resultados do Censo Escolar da Educação Básica de 2014. De acordo com a pesquisa,

há no Brasil um total de 2.190.743 professores atuando na Educação Básica e deste número

80% é composto por mulheres. Na Educação Infantil o número de professoras é ainda mais

expressivo, chegando a 97%. Já no Ensino Superior, conforme o Resumo Técnico do Censo da

Educação Superior de 2013, há uma situação distinta: dos 383.683 docentes em exercício,

apenas 45% pertencem ao gênero feminino5.

A massiva participação das mulheres como docentes na Educação Infantil, contrapondo

à baixa atuação no Ensino Superior, demonstram que ainda hoje o pensamento da natureza

feminina como propícia ao cuidado de crianças e às funções maternas prevalecem.

Ainda com atenção aos dados, agora com enfoque na comunidade discente, tomo como

fonte o Relatório de Síntese da prova do ENADE aplicada aos concluintes do curso de

Pedagogia, no ano de 2011. Compareceram à prova 85.428 estudantes, deste número 93,4%

eram do sexo feminino.

É possível observar que tanto a Psicologia quanto Pedagogia consistem em cursos e

profissões feminizadas e, para além disso, ambas exerceram grande influência no processo de

feminização uma da outra. É impossível pensar a história da Psicologia no Brasil sem considerar

5 O Censo da Educação Superior considerou docentes vinculados à Universidades, Centros Universitários,

Faculdades e Institutos Federais.

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a estreita relação com o campo da Educação, pois é por meio da abertura a ele que as mulheres

passam a frequentar os espaços da Psicologia. Enquanto a Psicologia, por sua vez, contribui

com a educação mediante seu saber científico.

História das mulheres na Pedagogia brasileira

A questão que aqui se coloca nasce de uma posição histórica que a mulher tem ocupado

na educação, do ponto de vista de sua profissionalização. Chamon (2006) indica que no Brasil

do século XIX a educação de meninas era um privilégio restrito à elite, que aprendiam em casa

por intermédio de professores contratados, ou em escolas regidas por congregações religiosas.

No entanto, o que essas meninas aprendiam era limitado às aulas de dança, canto, piano, Francês

e algumas habilidades manuais; raramente se fazia uso de leituras, exceto no caso dos livros de

orações. “Na realidade, o fim último da educação era preparar a mulher para atuar no espaço

doméstico e incumbir-se do cuidado com o marido e os filhos, não se cogitando que pudesse

desempenhar uma profissão assalariada” (ALMEIDA, 1998, p. 19). Desta forma, até então, o

conhecimento transmitido para as meninas era voltado para que futuramente se tornassem boas

esposas e mães.

É no contexto do Brasil do século XIX, com a implementação das primeiras Escolas

Normais, que as mulheres se inserem na docência, pois além do fato de ser uma das poucas

profissões consideradas moralmente adequadas, havia a influência da característica natural

feminina, já abordada anteriormente. As Escolas Normais eram instituições de ensino que se

preocupavam com a formação dos professores, produção de saber e normas da produção. Deste

modo, as Escolas Normais selecionavam e formavam os futuros professores, o que constitui um

marcante episódio na formação da identidade profissional.

Em decorrência da inserção das mulheres, a profissão docente passa por um processo

de feminização, adotando um discurso de vocação e dedicação, que resulta em uma

desvalorização financeira. Essa desvalorização, típica de profissões feminizadas, é explicada

por Fernandez (1994) como uma consequência das atividades domésticas como inerentes à

“natureza” das mulheres. Este tipo de trabalho não é considerado produtivo, mas sim

reprodutivo, não tem valor capitalista, remuneração e nem reconhecimento, o que faz com que

não se constitua em um trabalho propriamente dito.

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Ao considerar o cuidado das crianças como algo próprio das mulheres, a atividade

docente se transforma em uma prática não criativa, não didática e desvalorizada, sendo vista

apenas como uma extensão do trabalho doméstico, reproduzindo no público o que acontece no

privado.

Tomando a educação infantil como foco, ao considerar o cuidado das crianças como

constituinte da essência feminina, Fernandez (1994) ainda aponta para o fato de que esta

perspectiva da atividade docente não prejudica apenas as mulheres, mas resulta em uma

desqualificação da criança em decorrência da infantilização das relações. O que,

consequentemente, implica também em uma infantilização das professoras que “padecem, pois

são usadas pelo sistema como agentes mantenedores da infantilização do espaço educativo”

(Ibid., p. 68).

Por mais que professores ganhassem mais que professoras, e que o nível de salário fosse

estabelecido pelas matérias ministradas, estes profissionais não eram valorizados pelo Estado6,

“afinal, por que valorizar o profissional do ensino público, se o próprio ensino público não era

valorizado?” (CHAMON, 2006, p. 7). Logo, o baixo salário e o pouco prestígio profissional

fizeram com que a profissão de professor fosse vista como desonrosa para um homem, o que

colaborou para que as mulheres ganhassem mais espaço na profissão. Essa tendência ganha

maior amplitude quando se considera o fato de que até meados de 1930, o magistério era a única

profissão respeitável para uma mulher, pois “se o destino primordial da mulher era a

maternidade, bastaria pensar que o magistério representava, de certa forma ‘a extensão da

maternidade’, cada aluno ou aluna vistos como um filho ou uma filha ‘espiritual’. ” (LOURO,

2004, p. 450). Dessa forma, já que a mulher é destinada a ser mãe de seus filhos biológicos, não

haveria problema ou dificuldade em ser mãe (professora) de “filhos espirituais” (alunos).

Libâneo (1999) distingue que os professores primários e pré-primários eram formados

pelo Curso Normal nos Institutos de Educação, eram conhecidos como normalistas e em sua

maioria, composto por mulheres. Já os professores destinados a outros níveis escolares, eram

formados por faculdades. O curso específico de Pedagogia aparece pela primeira vez na

6 Ainda que a lei determinasse salários iguais para homens e mulheres, esse valor variava de acordo com as

disciplinas ministradas. A matéria de geometria, por exemplo, exclusivo da educação masculina, era mais

valorizada que bordado, componente curricular próprio da formação de mulheres. (LOURO, 2004).

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Faculdade Nacional de Filosofia, criada no governo Getúlio Vargas a partir do Decreto-Lei n°

1.190 de 1939, que tinha dentre suas propostas a capacitação de professores para o magistério

do ensino normal, como também para o ensino secundário.

Além disso, no mesmo período da criação da Faculdade Nacional de Filosofia, é

constituída a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo,

instituindo o curso de Psicologia que se dedica à diversas pesquisas e produções voltadas à

educação (MONTEIRO, 2004). É neste contexto que Pedagogia e Psicologia se encontram na

educação brasileira, e a Psicologia passa a ser uma disciplina de grande ênfase na grade

curricular do curso de Pedagogia.

História das mulheres na Psicologia brasileira

O pensamento psicológico, enquanto preocupação com os fenômenos da mente, é

presente desde a filosofia clássica grega. Platão, por exemplo, em diversos momentos de seu

projeto filosófico se voltou para questões da consciência humana. Para o filósofo, a consciência

está ligada ao conhecimento de nossos estados; aos processos cognitivos em geral, como

memória, juízo e raciocínio (ABBAGNANO, 2007). No entanto, a Psicologia só adquire os

moldes de ciência, com métodos e objetivos, no século XIX com Wilhelm Wundt e seu

Laboratório de Psicologia Experimental em Leipzig, Alemanha.

No Brasil, o movimento de inserção da Psicologia na sociedade ocorre de maneira muito

parecida. Embora, só seja reconhecida como profissão por meio da promulgação da Lei 4.1197

de 27 de agosto de 1962, a Psicologia dava seus sinais de aparição desde os tempos do Brasil

colônia. Assim como no exterior, mesmo ainda não existindo como ciência, as preocupações

com o pensamento psicológico surgiam como pertencentes a outros campos do saber como

Teologia, Medicina e Pedagogia. Essas preocupações tratavam de temas como “emoções,

sentidos, autoconhecimento, educação de crianças e jovens, características do sexo feminino

[...] e aplicação do conhecimento psicológico à prática médica” (ANTUNES, 2014, p. 18).

7 Disponível no Portal da Presidência da República do Brasil <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/1950-

1969/L4119.htm>. Acesso em 4 out. 2015.

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Chama atenção a preocupação com “características do sexo feminino” presente neste

momento do Brasil colonial. Várias produções expressavam a preocupação com o dito papel da

mulher, a maternidade e sua natureza psicológica:

O interesse pela psicologia da mulher nasce como parte da tentativa de definição do

papel da mulher na sociedade colonial e pós-colonial. Há uma diferença muito grande

entre a função ou valores atribuídos à mulher índia e o que se atribuem à mulher

“colonizada” de acordo com os hábitos da cultura portuguesa. (MASSIMI apud

ANTUNES, 2014, p. 19).

Tomando como exemplo a citação acima, é possível notar que o interesse pelas

“características do sexo feminino” se restringia somente a isso, não se estendendo aos

interesses, vontades, direitos e bem estar das mulheres. A preocupação se voltava para o que

seria feito da mulher agora colonizada, quais seriam seus novos valores; atribuições; funções;

comportamento e todos os outros meios de controlar e esculpir as mulheres conforme convinha

à sociedade.

Porém, é importante destacar que, mesmo em menor número, alguns autores trilhavam

a contramão dessas ideias apresentando pontos como a defesa da instrução feminina e o

combate à ideia de inferioridade mental da mulher, pensamento muito defendido pelo modelo

de medicina da época.

Em relação à essa concepção de inferioridade, Virginia Woolf (1985) em seu livro Um

teto todo seu, faz a seguinte crítica:

[...] professor Von X., empenhado em escrever sua obra monumental intitulada A

inferioridade mental, moral e física do sexo feminino [...]. Ele remeteu evidentemente

àquele livro, àquela frase que havia despertado o Demônio: a afirmação do professor

sobre a inferioridade mental, moral e física das mulheres. Meu coração tinha dado um

salto. As faces inflamaram-se. Eu enrubescera de raiva. [...] Qualquer que seja a razão,

todos esses livros, pensei, inspecionando a pilha sobre a escrivaninha, são

imprestáveis para meus fins. Quer dizer, eram imprestáveis cientificamente [...].

Possivelmente, quando o professor insistia com ênfase demais na inferioridade das

mulheres, não estava preocupado com a inferioridade delas, mas com sua própria

superioridade. Era isso que ele estava protegendo de modo um tanto exaltado e com

excessiva ênfase. (WOOLF, 1985, p. 40-42)

No livro em questão, a personagem principal precisa escrever um artigo sobre mulheres

e ficção e para isso ela se dedica, inicialmente, à uma pesquisa sobre o tema. Em meio a suas

leituras, se depara com o professor Von X., defensor da tese sobre a inferioridade mental das

mulheres. A personagem afirma que ao se preocupar com a inferioridade das mulheres, o

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professor está, na verdade, preocupado com a manutenção da sua superioridade. A mulher culta

e instruída é uma ameaça a determinados tipos de homens, "há alguns homens (bem poucos)

que não têm medo da feminilidade" (CIXOUS, 1976, p. 885, tradução minha).

Para Mannoni, (1999) a crítica de Woolf é um claro ataque não somente ao discurso

masculino dominante na época vitoriana, como também à Psicanálise e ao próprio Freud “o

professor Von X.”. A relação de Virginia Woolf com a Psicanálise pode ser considerada um

tanto ambígua. Embora, em conjunto com seu esposo Leonard, foram pioneiros na publicação

dos textos de Freud pela Hogarth Press8, Woolf mantém até 1939 uma postura de evitação aos

textos de Psicanálise, pois “receia que esta possa ‘colonizar’ o campo literário” (Ibid., p. 31).

No fim de 1939, ela decide por iniciar a leitura das obras de Freud, não obstante “a relação de

V. Woolf com a psicanálise permanece ambivalente. Freud a perturba, e V. Woolf não cessa de

o interpelar” (Ibid., p. 61).

Quanto a inserção das mulheres no campo da Psicologia brasileira, isso só acontece

muito mais tarde pela via da educação e por influência do movimento higienista, que

considerava a doutrinação dos corpos e a modificação do comportamento como funções

relevantes à educação. O movimento higienista chega ao Brasil ao final do século XIX, tendo

como principal preocupação a saúde da população através de cuidados da alimentação,

saneamento básico e prevenção de doenças. No entanto, em um determinado momento a

“higienização” física pregada pelo movimento acaba contemplando aspectos morais,

psicológicos e sociais, fazendo com que a escola e a família constituíssem espaços primordiais

para uma educação higienista: “os higienistas pretendiam ter na escola alunos amáveis,

conscientes do seu dever, para uma comunhão social equilibrada” (MANSANERA; SILVA,

2000, p. 124). Deste modo, a melhor ferramenta para disciplinar crianças com o intuito de que

mais tarde se tornassem adultos ajustados à sociedade, era o saber científico da Psicologia, que

através de testes e técnicas de mensuração da capacidade mental do aluno, atenderia as

necessidades para um melhor desempenho escolar.

8 Em 1917, Virginia e seu marido Leonard Woolf fundaram a editora Hogarth Press.

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A mulher dentro desse contexto já tinha uma considerável participação na vida pública,

fruto das diversas lutas e transformações sociais, atuando de uma maneira mais ativa na

economia da sociedade mediante seu trabalho e não apenas restrita à economia doméstica.

Tradicionalmente atribuído à mulher o papel de cuidar do lar, educar, disciplinar e transmitir

valores aos filhos, após sua inserção no mercado de trabalho a responsabilidade de agente

disciplinador se estende para a vida pública:

A necessidade de higienizar, disciplinar e ajustar as pessoas socialmente fez com que

se tornasse fundamental que as professoras se preparassem de acordo com os preceitos

da escola nova e tivessem estudos suficientes em psicologia, para terem capacidade

de direcionar as divergências das crianças para um caminho considerado correto

(VILELA et. al, 2009, p. 2).

Essa necessidade de que as normalistas fizessem uso de saberes próprios da Psicologia

acabou por somar ao movimento de reforma da Escola Normal que, por conta dos preceitos

higienistas, começava a dar maior atenção às questões voltadas para a qualidade da formação

de professores primários em decorrência da preocupação com a formação “moral e higiênica

dos alunos” (Ibid., p. 3). Neste cenário a mulher “precisaria ser, em primeiro lugar, a mãe

virtuosa, o pilar de sustentação do lar, a educadora das gerações do futuro”. (LOURO, 2004,

p. 446, grifo da autora). Ou seja, embora houvesse incentivo para o ensino e formação das

mulheres, as velhas concepções essencialistas continuavam sendo reforçadas por meio das

disciplinas que integravam o currículo dos cursos femininos e da imagem da mulher como

profissional-mãe.

Assim, a disciplina de Psicologia é inserida no currículo das Escolas Normais, via

decreto, no ano de 1928, fazendo com que seja possível afirmar que “o ensino sistemático da

Psicologia ocorreu originalmente nas Escolas Normais” (ANTUNES, 2014, p. 76). No entanto,

o curso de Psicologia, aos moldes e exigências da formação profissional que predominam até

hoje, só foi instituído 29 anos mais tarde, em 1957 na Pontifícia Universidade Católica no Rio

de Janeiro, e em São Paulo na Universidade de São Paulo (PEREIRA; NETO, 2003). A

presença do curso universitário de Psicologia nos dois principais centros políticos e econômicos

do país colaborou com a legitimação do conhecimento e do exercício profissional, tendo sua

principal conquista em 1962 com a regulamentação da profissão.

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Vale salientar que o que foi relatado até aqui não se propõe à uma síntese do processo

histórico da Psicologia no Brasil, me interessa, enquanto pesquisadora, a específica participação

da mulher nesta construção. Ora, não podemos ignorar que uma grande parte da história da

Psicologia brasileira foi construída por profissionais fortemente atrelados à Psicologia

Experimental e Medicina e, embora a maioria dos nomes sejam masculinos, Helena Antipoff

foi uma mulher de extrema importância neste contexto. Psicóloga e educadora russa, chegou ao

Brasil em 1929 para lecionar na Escola de Aperfeiçoamento9 em Belo Horizonte, no Estado de

Minas Gerais. Além de ministrar a disciplina de Psicologia, Antipoff também era coordenadora

do Laboratório de Psicologia da instituição, condição que possibilitava que suas aulas teóricas

fossem observadas também na prática no Laboratório (CAMPOS, 2003). Mais tarde, na década

de 40, Escola Normal e Escola de Aperfeiçoamento se uniram formando o Instituto de

Educação. De todo modo, sob um aspecto ou outro, prevalece a aproximação da mulher na

Psicologia através de questões relacionadas à Educação.

Após essa breve retomada histórica, é possível perceber as semelhanças, aproximações

e interseções ao longo do processo de feminização em ambas as profissões abordadas. O

pensamento essencialista, que rotulou a mulher como ser inerentemente sensível e dedicado ao

outro, exerceu extrema influência para que essas profissões sejam concebidas como femininas

ainda hoje.

9 “A Escola de Aperfeiçoamento foi a primeira experiência, feita no Brasil, de implantação de instituição de ensino

superior na área da Educação, e funcionou por duas décadas, tendo-se tornado instituição modelo na formação de

educadores no país. As alunas da Escola eram normalistas que já trabalhavam no sistema de ensino público do

Estado, selecionadas por mérito.” (CAMPOS, 2003, p. 216)

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O véu e a dissimulação da ausência

o humano não pára de querer falar daquilo que não pode

dizer (a mulher, a morte e o pai). [...] Aquilo de que não se

pode falar, é preciso dizê-lo!

André (1998, p.10)

Roudinesco (2000, formato epub) destaca que: “sempre houve o feminino na origem da

Psicanálise, e tudo aconteceu como se a emergência desse feminino fosse necessária para a

realização de uma transformação subjetiva universal”. Foi Freud quem, na Viena do final do

século XIX e início do século XX, escutou o mal-estar feminino em um contexto que expressava

uma crise da identidade masculina, tendo em pauta um drama paradoxal: o estreitamento e

consequente perda de limites entre o masculino e feminino, o que acabava por ameaçar o

masculino enquanto posição de identidade10, e ao mesmo tempo um movimento de afirmação

ao feminino (NERI, 2005).

Ainda sobre a inserção do feminino na psicanálise, Neri (2005, p. 13) afirma: “a

psicanálise como uma produção discursiva que emerge para dar conta de uma diferença, que,

em razão da entrada do feminino na cena social, não pode mais ser evitada.” Deste modo, a

psicanálise se constitui como o primeiro discurso que se dedica a uma interrogação do feminino,

subvertendo a lógica filosófica vigente. A relação da psicanálise com o feminino nasce em uma

situação ambígua. Enquanto Anna O. é considerada a histérica que “inaugura” a psicanálise,

Bertha Pappenheim (nome verdadeiro de Anna O.) se estabelece como figura feminina pioneira

no campo da literatura, feminismo e assistência social. A história da relação psicanálise e

10

Em 1903, Daniel Paul Schreber publica sua autobiografia intitulada As memórias de um neuropata. No seguinte

trecho, por meio do delírio de Schreber, temos uma ilustração da situação da modernidade acerca da polaridade

masculino e feminino: “A ordem do mundo reclamava imperiosamente minha emasculação [...] não podia fazer

mais nada do que me reconciliar com a ideia de minha metamorfose em mulher [...] uma fecundação para a criação

de uma nova humanidade [...] a partir daí inscrevi o culto da feminilidade.” (LE RIDER apud NERI, 2005, p. 68).

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feminismo durante o século XX é cheia de aproximações e distanciamentos (AMBRA; SILVA

JR, 2014).

A presença das mulheres na psicanálise, que se deu inicialmente por meio das histéricas

suscetíveis à hipnose enquanto instrumento de progressão do saber médico, aos poucos, em

decorrência dos vários movimentos de emancipação religiosa, social e sexual, passam a ocupar

um outro lugar: tornam-se médicas e psicanalistas. Sabina Spielrein, por exemplo, teve seu

primeiro contato com a psicanálise enquanto paciente, para mais tarde se tornar a “primeira

analista com um impacto teórico significativo na psicanálise” (APPIGNANESI; FORRESTER,

2010, p. 315).

Outra figura feminina importante na história da psicanálise é Melanie Klein, que teve

seu grupo original de seguidores predominantemente feminino. No entanto, isso não poupou

Klein de um início de carreira frequentemente criticado e tortuoso. O início de seu trabalho se

deu a partir de “observações analíticas” de seu próprio filho, uma teorização que, de fato,

“começou ‘em casa’” (FIGUEIREDO; CINTRA, 2004, p. 50). Nota-se, nesta passagem da vida

de Klein, o panorama da condição da mulher do final do século XIX: restrita à vida privada. À

esta situação, acrescenta-se o fato de que Klein não tinha qualquer formação universitária e,

consequentemente, pouca habilidade na escrita científica, o que era pauta de acusação por parte

de seus opositores:

[...] sua carreira acadêmica havia sido impedida pelo casamento e pelo nascimento dos

filhos, e sabe-se que o seu interesse pelo estudo e pela pesquisa teve de aguardar muito

tempo antes de se realizar. A descoberta tardia de que se precipitara em um casamento

infeliz e as tarefas de mãe e dona de casa expuseram-na a um longo período de

frustrações e espera, com episódios de depressão, que se transformaram em uma longa

crise existencial (FIGUEIREDO; CINTRA, 2004, p. 52).

Interessante notar na citação acima a presença do conflito entre mãe-esposa x

profissional. Klein iniciou na Universidade de Viena os cursos de Arte e História, porém sem

conclui-los. Ao que interessa nesta pesquisa, surge a indagação: quantas mulheres ainda hoje

vivem nesse conflito em que não há espaço para que exista, ao mesmo tempo, a mãe-esposa-

profissional?

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Tornar-se mulher: um percurso

A questão da identidade sexual, em Freud, é construída a partir da relação do sujeito

com o objeto. Essa relação se inicia com o Complexo de Édipo que, se vivenciado normalmente,

no caso do menino, será a mãe seu primeiro objeto de desejo e passará, então, a rivalizar com

o pai. No caso das mulheres, o primeiro objeto amoroso também é a mãe (fase pré-edipiana),

porém, durante o trajeto normal, esse objeto sofre uma guinada e passa a ser o pai. Desta forma,

tonar-se mulher, consiste em um caminho a ser percorrido em busca da feminilidade completa,

que só é alcançada pela vida da maternidade.

No artigo intitulado Sexualidade Feminina (1931/1996), Freud fala sobre uma

bissexualidade inerente ao ser humano que, para ele, aparece mais claramente nas mulheres que

nos homens, pelo fato de que essas possuem duas zonas sexuais: a vagina, como o órgão sexual

propriamente dito, e o clitóris, como analogia ao órgão masculino. Deste modo, a vagina não

existe para a menina durante algum tempo, fazendo com que sua sexualidade fique dividida em

duas fases: inicialmente com caráter masculino (o clitóris como zona sexual) e apenas mais

tarde adquire o caráter feminino (vagina). É nesse momento que o pai passa a ser o objeto de

desejo da mulher, ou seja, ocorre uma mudança no próprio sexo e no sexo do objeto de desejo.

Um dos principais conceitos estruturantes da teoria psicanalítica e fundamental para

construção psíquica do sujeito é o Complexo de Édipo. Freud, em A dissolução do complexo

de Édipo (1924/1996), relata que esse processo do desenvolvimento feminino é vago, tendo

poucas discussões e certezas de sua organização. Sabe-se, porém, que os efeitos do complexo

de castração na mulher ocorrem de maneira distinta aos homens.

Freud, novamente em Sexualidade feminina (1931/1996), chama atenção à fase pré-

edipiana nas mulheres que, segundo ele, ainda não tinha sido dedicada adequada importância:

algumas mulheres permanecem retidas na ligação objetal original, não substituindo a ligação

com a mãe pela ligação com o pai e, consequentemente, não atingindo a mudança em direção

aos homens. Deste modo, o complexo de Édipo na menina pode ser dividido em duas fases:

negativa e positiva, “a mulher só atinge a normal situação edipiana positiva depois de ter

superado um período anterior que é governado pelo complexo negativo” (Ibid., p. 234).

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O Édipo negativo ocorre quando a menina tem a mãe como objeto de amor e vê o pai

como um invasor da relação. Em uma segunda fase do processo, a chamada positiva, a menina

passa a ter o pai como investimento de seu amor objetal e a rivalizar com a mãe. Essa transição

de objeto acontece quando a menina percebe que a mãe não lhe dará todos componentes para

que se sinta um ser completo. Ao notar que o que lhe falta em direção à completude é o pênis,

a menina se afasta da mãe e se aproxima do pai, com a esperança de que ele lhe complete. É

importante destacar que Freud só considera a travessia do Édipo feminino completa quando se

alcança a segunda fase, assim o primeiro momento se constitui como uma etapa pré-edipiana,

apenas uma passagem, que tem como finalidade a introdução na fase positiva.

Porém, a transição da fase negativa para a positiva não se dá de uma única maneira.

Esmiuçando esse processo, Freud (1931/1996) acrescenta que, ao reconhecer a superioridade

do homem e a própria inferioridade, a mulher se revolta contra isso e em decorrência deste

sentimento surgem três tipos de desenvolvimento. Na primeira linha, a menina cresce

insatisfeita com seu clitóris, abandonando a sexualidade em geral e decorrendo em uma neurose

narcísica. A segunda linha é caracterizada por uma posição de defesa da masculinidade

ameaçada, em que a menina mantém até uma idade tardia a esperança de que um dia conseguirá

um pênis. Freud nomeia essa posição de “complexo de masculinidade” (1931/1996, p. 238) e

aponta como possível razão para a manifestação de uma escolha objetal homossexual. Por fim,

a terceira linha de desenvolvimento, considerada por Freud como atitude feminina normal —

édipo positivo — ocorre quando a menina toma o pai como objeto de desejo, indicando a forma

feminina do complexo de Édipo. É importante dizer que a situação feminina só se estabelece

quando “o desejo do pênis for substituído pelo desejo de um bebê” (FREUD, 1933/1996, p.

128), isto é, a feminilidade só e alcançada, de forma efetiva, pela via da maternidade.

Freud concebe a sexualidade feminina a partir do masculino, do que falta à mulher em

relação ao homem:

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Sabemos menos acerca da vida sexual de meninas do que de meninos. Mas não é

preciso envergonharmo-nos dessa distinção; afinal de contas, a vida sexual das

mulheres adultas é um “continente negro” para a psicologia. Mas aprendemos que as

meninas sentem profundamente falta de um órgão sexual que seja de igual valor ao

masculino; elas se consideram por causa disso inferiores, e essa “inveja do pênis” é a

origem de todo um grande número de reações femininas características (FREUD,

1926/1996 p. 209).

Para além da distinção entre sexualidade feminina e masculina, a citação acima chama

atenção quanto ao desconhecimento diante da vida sexual feminina e a atribuição de “continente

negro” para a psicologia. Por meio dessa expressão, Freud destina à mulher ao desconhecido,

ao mistério, ao segredo, ao enigma, ao véu.

Ele não parece ter algum acanhamento em dizer que pouco sabe acerca da mulher e a

feminilidade, e que as considerações que teceu sobre este tema não vão além de uma descrição

da natureza da mulher enquanto determinada por sua função sexual. Em diversos momentos de

sua obra é possível encontrar essa questão, como ao dizer que “se desejarem saber mais a

respeito da feminilidade, indaguem da própria experiência de vida dos senhores ou consultem

os poetas, ou aguardem até que a ciência possa dar-lhes informações mais profundas e

coerentes” (FREUD, 1933/1996, p. 134).

A famosa frase “O que quer a mulher?” expressa um questionamento justamente diante

desse campo desconhecido, da incerteza sobre o desejo das mulheres. Ao utilizar o artigo

definido a, Freud faz referência ao que todas as mulheres querem, algo comum a todas e

peculiar à natureza feminina.

A figura do genital feminino gera horror, incomodo, desconforto, estranhamento. Freud

em A cabeça de Medusa (1922/1996) afirma que a imagem da Medusa decapitada corresponde

ao terror da castração, “decapitar = castrar”. A expressão de terror expressa pela Medusa

decapitada se assemelha ao temor diante da ameaça de castração, quando o menino,

horrorizado, se depara pela primeira vez com o órgão genital feminino — geralmente da mãe.

Sobre o cabelo de Medusa, Freud diz que as serpentes que envolvem sua cabeça, por

mais assustadoras que sejam, servem para diminuir o temor diante da castração. As serpentes

substituem a ausência do pênis, aliviando o horror que a falta deste pode causar.

A imagem da Medusa decapitada, além de provocar o horror pela ameaça de castração,

também diz respeito ao que Freud chama de “ato apotropaico” (Ibid., p. 284), a exposição do

órgão genital feminino desperta terror em quem o vê. Esse sentimento diante do genital

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feminino pode ser encontrado por meio das sensações provocadas pelo famoso quadro de

Gustave Courbet, A origem do Mundo, de 1886.

Roudinesco (2011) conta que a história da obra passa por várias situações

constrangedoras em decorrência da representação do órgão feminino. Durante a longa

peregrinação entre acervos pessoais, contou com a sobreposição de um painel de madeira, com

o intuito de esconder a obra original e evitar o desconforto provocado. A história de “evitação”

diante da imagem conta com a participação de um importante nome da Psicanálise. Lacan

adquiriu o quadro em 1954, foi o último proprietário da obra que atualmente faz parte do acervo

do Museu d’Orsay, em Paris. Devido ao incômodo que a imagem provocava em sua esposa,

Sylvia Lacan, o casal encomendou uma tela de André Masson para que servisse como uma

cortina sob o primeiro quadro. Ao deslizar de um lado para o outro, o quadro de Masson

funcionava como um véu, submetendo ao desejo de Lacan em revelar ou esconder as sensações

que a obra suscitava. “Lacan adorava surpreender suas visitas deslizando sutilmente o painel

para afirmar que Courbet já era lacaniano: ‘O falo está dentro do quadro’[...].” (Ibid., 2011, p.

90).

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A ORIGEM DO MUNDO, DE ANDRÉ MASSON (1955)

“Sobre o véu pinta-se a ausência” (LACAN, 1995, p. 157).

Esconder, enigma e véus são palavras que, em um exercício parecido com a associação

livre, me remetem à seguinte afirmação freudiana: “parece que as mulheres fizeram poucas

contribuições para as descobertas e invenções na história da civilização; no entanto, há uma

técnica que podem ter inventado – trançar e tecer” (FREUD, 1933/1996, p. 131). Freud, nessa

afirmação, se refere à vaidade da mulher em decorrência de sua inferioridade sexual, e que ao

tecer e trançar fios, além de valorizar seus encantos com enfeites, os véus e echarpes apresentam

outra finalidade: disfarçar a deficiência/ausência sexual. Dessa forma, ao esconder sua falta, a

mulher “se recusaria a se expor à nudez, onde ‘não há mais nada a esconder’. E disso extrairia,

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secundariamente, um lucro, ao transformar a falta assim ocultada num tesouro de ‘encantos’.”

(ASSOUN, 1993, p. 171), ela converte a ausência em sedução.

Retomando a afirmação lacaniana relatada por Roudinesco (2011), sobre o falo estar

dentro do quadro de Coubet, há uma clara referência ao estudo de Freud acerca do fetichismo.

O véu como o objeto que mascara o falo ausente da mulher. Aqui, a espora derridiana faz a

incisão entre a operação feminina (verdade que não se deixa conquistar) e “a feminilidade da

mulher, a sexualidade feminina e outros fetiches essencializantes que são justamente o que se

crê conquistar quando se permanece na tolice do filósofo dogmático, do artista impotente ou do

sedutor sem experiência” (DERRIDA, 2013, p. 37, grifo do autor).

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Nietzsche, Derrida e o estilo esporante

Bastaria suspender o véu ou deixá-lo cair de um outro

modo para que não houvesse mais verdade ou apenas a

‘verdade’ — assim escrita. O véu/cai.

Derrida (2013, p. 39)

[inverter.deslocar.transbordar]

Um dos mais importantes projetos filosóficos de Derrida é a crítica ao logocentrismo,

que ao longo de sua obra se estende ao fonocentrismo e ao falocentrismo, como conceitos

interligados. Uma crítica ao logofonofalocentrismo se apresenta como uma crítica ao logos

(razão), phoné (voz presente) e phallus (falo) como conceitos privilegiados na metafísica

ocidental, estabelecidos em uma posição hierárquica em que a fala e o falo estão associados à

presença, razão e verdade.

Em consonância à essa crítica, Derrida introduz a desconstrução como uma via de

rompimento aos discursos metafísicos. Santiago (1976, p. 17), em seu glossário derridiano,

apresenta a desconstrução como uma “operação que consiste em denunciar num determinado

texto (o da filosofia ocidental) aquilo que é valorizado e em nome de quê e, ao mesmo tempo,

em desrecalcar o que foi estruturalmente dissimulado nesse texto”. O movimento da

desconstrução se dá, primeiramente pela denúncia, para depois provocar uma superação das

estruturas binárias hierárquicas em que um elemento está sempre subordinado a outro:

fala/escritura, presença/ausência, masculino/feminino, entre outras oposições.

O gesto da desconstrução é realizado por meio de um movimento que o filósofo

denomina como duplo. “É preciso, por um lado, inverter11 o conceito tradicional […] e, ao

mesmo tempo, marcar a distância, cuidar para que ele não possa ser — em razão da inversão e

11

Santiago (1976) opta pelo uso da palavra original renversement, mas indica o termo inversão como seu

correspondente mais próximo na língua portuguesa. Duque-Estrada (2002), utiliza o termo inversão, mas aponta

que o conceito de renversement também reúne os sentidos de subversão, perturbação e derrubamento.

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pelo simples fato de conceptualização — reapropriado” (DERRIDA, 2001, p. 66, grifo do

autor). Duque-Estrada (2002) destaca que ao ser deslocado o “conceito” é inserido em um outro

sistema que escapa das oposições metafísicas. O gesto se configura como duplo, porque não

apenas inverte, mas continua com o movimento rumo ao deslocamento. São necessários dois

momentos, inverter primeiro, para deslocar depois. Apenas inverter não provoca, não

movimenta, não vai além. Em um gesto único a cena permanece a mesma, embora invertida.

Em Coreografías12, ao ser questionado sobre como descreveria o lugar da mulher,

Derrida atenta para o fato de que a constante busca do movimento feminista por um lugar da

mulher, pode ser uma armadilha:

Não tem medo de que, enquanto nos envolvemos no caminho dessa topografia, nos

encontraremos forçosamente de volta ao ‘em casa ou na cozinha’ ou para prisões

domiciliares [assignations à résidence], como se diz na língua francesa? […] Por que

haveria necessidade de um lugar para mulher? E por que um, somente um, um

essencial? (2008, p. 160, tradução minha).

Importante ressaltar que ao falar sobre a busca do movimento feminista por um lugar

para a mulher, Derrida se refere a uma questão específica: a acusação de que as feministas

querem tomar o lugar dos homens. Essa postura por uma inversão acabaria por manter a

oposição binária e, para o filósofo, a mulher é a possibilidade de abertura ao plural, da superação

da diferença como oposição de polos. Logo no início do texto, McDonald apresenta o caso de

Emma Goldman, feminista do final do século XIX que diante da impossibilidade do movimento

feminista em indicar este não lugar da mulher, afirma: “se eu não posso dançar, não quero fazer

parte de sua revolução.” (Ibid., p. 157, tradução minha). É esse desejo de dançar, de não se

fixar, de transitar entre todos os lugares, de substituir a topografia pela coreografia, de “deixar

o élitro flutuar entre o masculino e feminino” (DERRIDA, 2013, p. 24) que Derrida defende

aqui.

Derrida complementa sua resposta dizendo que a afirmação sobre não haver lugar para

mulher, pode ser encarada como um pensamento anti-feminista, mas que, na verdade, não é

anti-feminista e tampouco feminista. Ao defender o não-lugar da mulher, ele propõe uma

desconstrução, a necessidade de um lugar que não pode ser compreendido pela metafísica

12

Choreographies, é resultado da troca de correspondências entre Derrida e a feminista francesa Christie

McDonald, no ano de 1981.

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ocidental — por isso não é feminista, nem anti-feminista. A crítica de Derrida diz respeito

determinadas posturas que parecem não realizar o duplo gesto da desconstrução, ao buscarem

por um novo lugar para mulher, acabam apenas invertendo a oposição homem/mulher e não

avançam ao deslocamento. Não se trata de “mudar ou inverter os termos de uma hierarquia

dada, mas transformar a estrutura mesma do hierárquico” (DERRIDA, 2013, p. 57).

Santiago (1976, p. 77) expõe o funcionamento do duplo gesto desconstrutor utilizando

o conceito de escritura: “não basta recorrer ao conceito de escritura e renderes simplesmente a

dissimetria. Trata-se de produzir um novo conceito de escritura”. Pela subversão do

fonocentrismo, Derrida desconstrói a lógica tradicional que considera a escrita como uma mera

representação secundária da linguagem falada, ou um complemento da voz, propondo a

superação da escrita como instância subjugada ao discurso. Ele promove um novo modo de se

voltar ao tema quando aponta para a criação de uma nova concepção de escritura, que possibilita

operar a desconstrução da supremacia das oposições de caráter binário.

Em “A Farmácia de Platão”, Derrida apresenta o mito da criação da escritura através da

narrativa contada por Sócrates aos seus discípulos Platão e Fedro. O mito tem como

personagens principais Thamous e Theuth, o primeiro era rei de todo o Egito, enquanto Theuth

a divindade criadora de diversas artes, incluindo os “caracteres da escritura (grámmata)”

(SÓCRATES apud DERRIDA, 2005). Em uma apresentação de suas criações ao Rei Deus

Thamous, chega a vez de introduzir a escritura, a qual Theuth anuncia:

Eis aqui, "Eis aqui, oh, Rei", diz Theuth, "um conhecimento (máthema) que terá por

efeito tornar os egípcios mais instruídos (sophoterous) e mais aptos para se rememorar

(mnemenikotérous): memória (mnéme) e instrução (sophía) encontraram seu remédio

(phármakon)" (Ibid., p. 44).

Assim, a intenção de Teuth ao apresentar a escritura era a de apresentar ao Deus Rei

uma solução, um remédio para a memória, algo que auxiliasse a memória e, por consequência,

colaborasse com a sabedoria dos egípcios. Porém, a sentença de Thamous não é favorável. Ele

caracteriza a invenção como o contrário, pois ao utilizar a escritura, os homens não utilizarão

mais a memória, passando a depender das “marcas externas e não do dentro e graças a si

mesmos” (Ibid., 49). Dessa forma, “a escritura é essencialmente nociva, exterior à memória,

produtora não de ciência mas de opinião, não de verdade mas de aparência. (Ibid., p. 50). Ou

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seja, recorrer a algo escrito, exterior a si, não implica no verdadeiro conhecimento, apenas em

uma reprodução:

escrita como simples representação da fala, esta sim capaz de produzir o verdadeiro

conhecimento como função da memória autêntica. O poder do lógos, o discurso vivo,

na presença e sob o controle de quem fala, está na razão direta de sua proximidade

para com a origem, entendida como função de uma presença plena, a do pai do

discurso ou, como se diz modernamente, o “sujeito falante”. (NASCIMENTO, 2004,

p. 21, grifo do autor).

A lógica fonocêntrica, “o poder do logos”, implica na seguinte relação: a fala — phoné

— como algo autêntico, presença, inteligível, verdadeiro; e a escritura como aquilo que vem de

fora, passa pelo sensível, aparência, falso. De acordo com a metafísica da presença, o discurso

é a presença viva da verdade, enquanto a escritura é parricida, é ausência. Até aqui vimos que

a ausência está fortemente atrelada ao feminino, “a mulher é sedentária, o homem é caçador,

viajante; a mulher é fiel (ela espera), o homem é conquistador (navega e aborda)” (BARTHES,

1985, p. 27). Enquanto o homem é presença, a mulher é ausência, do mesmo modo em que, na

metafísica da presença, o discurso vivo é verdadeiro, enquanto a escritura é ausência.

Superando o privilégio da phoné sobre o grama que pairava sobre o discurso filosófico,

Derrida caracteriza a escritura pelo seu transbordamento da linguagem, pois “não depende de

nenhuma plenitude sensível, audível ou visível, fônica ou gráfica. Ela permite a articulação da

fala e da escrita num sentido corrente.” (Ibid., p. 30). A escritura, na perspectiva derridiana,

ultrapassa os limites da compreensão metafísica.

Retomando Coreografías, Derrida discorre sobre o sonho da sexualidade inumerável:

“Certamente, não é impossível que o desejo de sexualidade inumerável, venha ainda nos

proteger, como um sonho, contra um destino implacável que sela todos perpetuamente com o

número 2” (DERRIDA; MCDONALD, 2008, p. 160, tradução minha). Aqui, retomo a questão

suscitada no capítulo anterior sobre o não comprometimento pelo uso dos conceitos de gênero

ou sexo. Derrida fala sobre o desejo de uma sexualidade sem número, que escapa à sentença da

dualidade. Dessa forma, neste contexto, substituir o termo sexo por gênero, consiste em apenas

uma inversão da metafísica, não avança, não vai além. Ao sonhar com a superação do

binarismo, ao qual estamos destinados, “descortina na economia do sexual a possibilidade de

uma outra lógica que não a da diferença enquanto oposição” (CONTINENTINO, 2002, p. 74),

nem como ausência ou subordinação. A escritura, o phármakon e a mulher são indecidíveis

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derridianos, elementos que não se permitem compreender sob a lógica binária. Eles a

desorganizam, desestruturam, não são dialéticos, nunca apresentam um terceiro termo

(DERRIDA, 2001).

O estilo esporante

O tradicional colóquio de Cerisy-la-Salle teve, no ano de 1972, o tema “Nietzsche

hoje?”. Reuniu em históricos debates, importantes nomes da filosofia como Gilles Deleuze,

Pierre Klossowski, Sarah Kofman e Jacques Derrida. La question du style é o título original da

conferência de Derrida nesta ocasião. Kofman, após a fala de Derrida, abre o momento para

debate anunciando: "eu queria primeiro agradecer a Jacques Derrida por ter feito uma

conferência tão bonita. Seu pronunciamento foi realmente soberano e nada mais temos a dizer

depois dele…” (PEETERS, 2013, p. 311). A fala de Kofman, enquanto estudiosa de Nietzsche

e importante figura dos chamados “estudos femininos”, evidencia que este foi um momento

importante na aproximação do pensamento derridiano com as questões sobre as mulheres e as

teorias feministas.

Essa conferência resulta, anos mais tarde, no livro Esporas, os estilos de Nietzsche13.

Logo nas páginas iniciais, Derrida (2013, p. 21) esclarece: “o título destinado para esta seção

seria a questão do estilo. Mas — a mulher será meu tema”. Dessa forma, o filósofo anuncia a

relação que será estabelecida, ao longo do texto, entre estilo e mulher em Nietzsche.

“o instrumento adequado para a escrita era mesmo da incisão: o estilete.”

(BLANCHOT, 2010, p. 66).

Derrida (2013) prossegue dizendo que a questão do estilo é exame de um objeto

pontiagudo, que pode ser uma pluma, mas também um estilete. É com esse estilete que ele

pretende, ao longo do texto, dar estocadas no pensamento que toma a diferença sexual como

oposição binária, “dobrando-se, então, ou redobrando-se, em fuga, por detrás dos véus e das

velas” (Ibid., p. 23). Sobre véus e velas, a tradutora destaca que ao usar a palavra voile, Derrida

13

Publicada pela primeira vez em Paris, no ano de 1978, sob o nome Éperons, les styles de Nietzsche.

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faz um importante movimento em busca da superação da dicotomia sexual. Na língua francesa,

voile designa tanto o substantivo masculino véu, quanto o feminino vela: “e quanto aos véus e

as velas — aí nos encontramos — Nietzsche teria praticado todos os gêneros” (Ibid., p. 24).

A operação feminina, o estilo, a escritura, não se encaixam na lógica metafísica

ocidental, ao que Derrida chama de “binarismo ordenador” (2005, p. 121), não se trata da

distinção entre sexos, ou da oposição binária, “não há essência da mulher porque a mulher afasta

e se afasta de si mesma” (DERRIDA, 2013, p. 24). Na leitura derridiana de Nietzsche, “a

‘mulher’ funciona, assim, como ruína da metafísica, caracterizada pelo filósofo alemão como

campo de oposições duais regidas pela negatividade (FERRAZ, 2013, p. 12)”.

+ / -

phoné / grama

significante / significado

presença / ausência

masculino / feminino

ativo / passivo

verdade / falsidade

logos / pathos

No prólogo de Para além de bem e mal, datado de junho de 1885 em Sils Maria,

Nietzsche utiliza de uma metáfora ao colocar a verdade como mulher: “Supondo que a verdade

seja uma mulher – não seria bem fundada a suspeita de que todos os filósofos, na medida em

que foram dogmáticos, entenderam pouco de mulher?” (BM, Prólogo). Ao fazer essa

aproximação entre mulher e verdade, Nietzsche trata da metafísica. A verdade-mulher como a

busca da metafísica, a frustração de todos os filósofos que a desejaram e, ao se depararem com

o véu feminino, esperavam encontrar a verdade por trás deste. A verdade-mulher é inalcançável,

inconquistável. Pobres dogmáticos!

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Na mesma obra, mais adiante, Nietzsche fala sobre a perda de estilo da mulher ao dizer

sobre o processo de emancipação das mulheres: “A mulher quer ser independente: e com tal

objetivo começa a esclarecer os homens sobre a "mulher em si" — este é um dos piores

progressos no enfeamento geral da Europa” (BM, § 232). Em um primeiro olhar corremos o

risco de entender de maneira equivocada o que Nietzsche propõe com o uso do termo

independente. Giacóia Jr. (2002, p. 14) aponta para o fato de que a relação estabelecida entre

mulher e independência nesta seção, na verdade, se trata da relação entre “mulher e o

Esclarecimento (Aufklärung) ou, ainda, da relação entre o feminino, a verdade e a objetividade

científica.”

“A mulher em si” remete ao idealismo metafísico do “bom em si” criticado em Ecce

Homo, na tentativa de esclarecer aos homens sobre “a mulher em si” instaura-se uma

“metafísica ‘da mulher’, ficciona algo como uma essência objetiva do feminino, fixa ‘a mulher’

num conceito” (Ibid., p. 15). É neste ponto que consiste a crítica nietzschiana acerca da

emancipação das mulheres. A mulher não se encaixa no pensamento platônico, seu estilo é o

véu; enquanto a verdade é para os dogmáticos, os iludidos.

“É por meio das vivências que nos tornamos o que somos”14

O questionamento nietzschiano “como tornar-se o que se é”, é proposto no livro

denominado Ecce Homo, escrito em 1888. O texto expressa uma retrospectiva da obra de

Nietzsche, sendo considerado como sua autobiografia. Se nos voltarmos para o texto de

Nietzsche e para sua vida, notaremos composições de estilos, um escrever marcado de vivências

que impregnam o corpo, e vive-se com diversos estilos. Acerca da arte do estilo Nietzsche

declara:

14 MONTEIRO, 2004, p. 44.

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Direi ao mesmo tempo uma palavra geral sobre a minha arte do estilo. Comunicar um

estado, uma tensão interna de Phatos por meio de signos, incluído o tempo desses

signos – eis o sentido de todo estilo; e considerando que a multiplicidade de estados

interiores é em mim extraordinária, há em mim muitas possibilidades de estilo – a

mais multifária arte do estilo de que um homem já dispôs. Bom é todo estilo que

realmente comunica um estado interior, que não se equivoca nos signos, no tempo dos

signos, nos gestos – todas as leis do período são arte dos gestos. Nisso meu instinto é

infalível [...]. (EH, “Por que escrevo livros tão bons”, § 4).

O texto escrito é expressão de estilos. Estes, por sua vez são impregnados de vivências;

viver é composição de estilos. Escrever, além de produzir conhecimento, é a afirmação da vida

através de estilos, é manifestação de tensões internas, o que atravessa o corpo aplicado em

palavras. Para Marton (2000, p. 42) “o estilo indica quais impulsos dominam o autor num

determinado momento, quais afetos dele se apoderam e, por conseguinte, quais estimativas de

valores nele se expressam.” Deste modo, todo texto é autobiográfico na medida em que se trata

de uma “confissão pessoal de seu autor, uma espécie de memórias involuntárias e inadvertidas”

(NIETZSCHE, BM, “O preconceito dos filósofos”, § 6).

Ao considerar vida e obra como inseparáveis15, é necessário o esclarecimento de que

não se trata da busca por relações de causa e consequência entre vida e obra, nem explicações

acerca do pensamento filosófico com relação à trajetória biográfica. Não há psicologismos, as

vivências do autor estão presentes em sua produção, para além de uma projeção de dramas

psicológicos.

Tornar-se o que se é não significa a busca pela essência do “eu verdadeiro”, também

não se assemelha ao pensamento socrático-platônico “conhece-te a ti mesmo” como um

exercício de se voltar para si em busca de auto-conhecimento, não se trata de “examinar suas

motivações interiores ou fazer brotar o conhecimento conservado no pavilhão da memória”

(MONTEIRO, 2004, p. 44). Tornar-se o que se é, é um caminho formativo de experimentações

e vivências no processo de constituição de si. Viver é vontade de potência, não é se adaptar,

mas criar; não há vida sem criação.

“O que, afinal?, perguntei, curioso. ‘Quem, afinal?, é que tu deverias perguntar.’ Assim

falou Dionísio e silenciou em seguida, do modo que lhe é próprio, a saber, experimentalmente”

(NIETZSCHE, fragmento póstumo 2[25] Outono de 1885 - Outono de 1886). Esta é a questão

15

“só artificialmente podemos separar um texto da vida de seu autor” (MONTEIRO, 2004, p. 69).

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que se configura neste trabalho, ouvir as vivências, buscar a constituição dos estilos que

permeiam a produção escrita.

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Um método labirinto

“[…] escrileitor à deriva

perdido num mundo que não compreende

não sabe o que quer dizer

quando diz não sabe o que significa

nem pode ter certeza

chave quebrada na fechadura

porta sem”

Corazza (2008, p. 24)

Agosto, 2012

Ingressei no EFF quando ainda cursava a graduação em Psicologia, era o primeiro

encontro com muitos textos, personagens e conceitos, dentre eles: escrileituras. Lembro-me do

misto de sensações diante do vocabulário de conceitos e autores desconhecidos que, à medida

em que eu lia, com mais páginas ficava! Ânimo para aprender e desânimo diante da ignorância;

interesse pelo desconhecido e insegurança frente ao novo; vontade de ir afundo e receio de se

afogar, afinal não sei nadar — nada!

Fevereiro, 2016

Ainda não sei nadar, mas prossigo e insisto. Vez ou outra acabo engolindo um pouco de

água, mas nada de pânico; tudo dentro do sofrimento esperado. Muitos litros ainda serão

engolidos. Eventualmente fico presa em fortes correntes d’água, em alguns momentos luto para

conseguir me livrar; em outros me entrego à deriva para ver onde ela me levará. Acho que foi

uma dessas que me trouxe até aqui, que me levou até o EFF e me fez experimentar a escrileitura.

Não sei se um dia serei capaz de nadar de braçadas, na verdade nem me importa. Foram as

águas engasgadas e as sacolejadas das ondas que me trouxeram até aqui.

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Algumas notas iniciais sobre o método

Segundo o dicionário, a palavra método significa “uma técnica particular de pesquisa,

[...] indica um procedimento de investigação organizado, repetível e autocorrigível, que garanta

a obtenção de resultados válidos.” (ABBAGNANO, 2007, p. 668). Isto é, um procedimento

investigativo estruturado em etapas que, considerando previamente erros e acertos, atinja como

finalidade um resultado verdadeiro.

Problematizando a definição de método, em especial sua inflexibilidade, suposta

precisão e garantia da verdade, Monteiro e Biato (2008) apontam para a impossibilidade do

compromisso pela descoberta do conhecimento tomado como único e verdadeiro. Para chegar

a essa conclusão, os autores apresentam a concepção de método em Aristóteles, Bacon,

Descartes e Augusto Comte, em oposição aos avisos feitos por Nietzsche sobre o perigo de se

enveredar por esse caminho e acabar captado por “teias metafísicas” (Ibid., p. 255). No caminho

do texto até as duas impossibilidades relacionadas ao método, os autores fazem uso do mito de

Ariadne e como Descartes e Nietzsche se utilizaram desta mesma narrativa com a intenção de

demonstrar dois modos distintos de entendimento acerca do método. Antes de prosseguir,

embora se trate de uma citação extensa, penso ser importante apresentar ao leitor em que

consiste o mito de Ariadne:

Ariadne é filha de Minos, rei de Creta. Minos, quando ainda jovem, pediu a Poseidon,

deus dos mares, que fizesse sair das águas o mais belo e imponente touro já visto. O

rei passou a usar esse touro divino como reprodutor de rebanho, levando Poseidon à

ira; como pena, o deus jogou dupla maldição sobre o rei: em primeiro lugar fez do

touro uma fera assassina, em segundo, e pior castigo, o deus fez a rainha apaixonar-

se perdidamente pelo temível animal. Usando de sua astúcia, com ajuda do engenheiro

Dédalo, a rainha foi possuída pelo animal. Dessa união maldita nasceu um ser metade

homem, metade touro, o Minotauro. Minos, desesperado pelas consequências de sua

desobediência a Poseidon, decidiu esconder aos olhos dos homens essa aberração,

praticamente um filho bastardo. Pediu a Dédalo que projetasse um lugar onde

esconder o monstro, e foi assim construído o Labirinto de Knossos. Eram sacrificados

anualmente catorze jovens, lançados no labirinto para serem devorados pelo monstro.

Teseu, filho de Egeu, rei de Atenas, heroicamente ofereceu-se como vítima, disposto

a liquidar o monstro. Durante a apresentação dos jovens a Minos, a bela princesa

cretense Ariadne encantou-se com o rapaz. E, na primeira oportunidade que teve,

jurou-lhe amor eterno. Ariadne prometeu ajudá-lo a sair do labirinto depois de ter

matado o Minotauro, sob a condição de Teseu levá-la embora de Creta como esposa.

Segurando um dos extremos de um longo barbante, Ariadne permaneceu na entrada

do labirinto, e conforme seu amado adentrava pelos infinitos corredores, o barbante

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ia sendo desenrolado. Ele matou o temível Minotauro e, guiado pelo fio de Ariadne,

encontrou-se livre para voltar a Atenas com Ariadne. Como a viagem era prolongada,

a embarcação fez uma escala na Ilha de Naxos para pernoitar. Ali Ariadne acordou na

manhã seguinte, sozinha, vendo ao longe o navio de Teseu, que já sumia no horizonte.

Outra versão do mito diz que ela era noiva de Dioniso, que a resgatou da ilha e se

casou com ela. Teseu seguiu sua vida. Ariadne, a dela. (Ibid., p. 264)

A princesa Ariadne salva seu amado Teseu graças à ponta do fio do barbante que ela

segura no lado de fora, enquanto ele segura a outra extremidade do fio e se aventura no terrível

e confuso Labirinto de Knossos. Em decorrência à sagaz estratégia encontrada por Ariadne,

Descartes a considera uma racionalista que fazendo uso de raciocínio lógico, consegue atingir

um objetivo. É por influência dessa concepção cartesiana que o termo “fio de Ariadne” é

utilizado como o método aplicado para a solução de um difícil problema.

É importante dizer que a forma como Nietzsche enxerga Ariadne é decorrente de um

processo de construção — talvez mais da parte de Nietzsche, que da princesa — relatado ao

longo de suas obras. Monteiro e Biato (2008) esclarecem que a primeira referência à Ariadne

feita por Nietzsche é concernente à mesma figura apresentada por Descartes, “aquela capaz de

trazer a luz para a saída do túnel, [...] aquela que é capaz de esclarecer as mentes a respeito dos

problemas impostos pelo conhecimento” (p. 264). Em um segundo momento, Nietzsche

apresenta Ariadne como noiva de Dioniso, não apenas a salvadora de Teseu, mas ainda com a

característica de descobridora da verdade. É somente ao tratar das “reflexões anti-metafísicas”

que Nietzsche faz menção à Ariadne criadora, de orelhas cada vez menos longas à medida em

que aprende: “com suas vivências, suas orelhas vão diminuindo” (p. 265).

As orelhas longas têm relação com o método de ensino acroamático criticado por

Nietzsche, nele o aluno está atado ao professor pelo ouvido, há um cordão umbilical que

estabelece essa relação de dependência, como o fio de Ariadne na visão cartesiana. O aluno fica

conectado pelo ouvido à fala do professor, não se estabelece um diálogo, não há espaço para a

fala do aluno. Desse modo, o aluno apenas escuta enquanto o professor fala, aumentando ainda

mais suas longas e pontudas orelhas:

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O método de ensino acroamático cumpre o papel de dilatar orelhas, pois seduz pelo

prazer de ouvir sem exigir o empenho da resposta, do diálogo. São ouvintes

passivos. Não é esse ouvinte que Nietzsche qualifica como bom para ouvir as

vivências. (MONTEIRO, 2004, p. 71).

É Dioniso que agora se apresenta como o labirinto de Ariadne, que com suas vivências

passa a ter suas orelhas cada vez menores. No lugar das longas orelhas de asno, Ariadne adquire

orelhas pequenas e labirínticas. Assim, a mesma Ariadne, autora do mesmo feito, é vista de

maneira diferente por Nietzsche. Enquanto a Ariadne de Descartes descobre o único caminho

para salvação de Teseu, a Ariadne nietzschiana, noiva do deus Dionísio, cria caminhos e

possibilidades múltiplas para soluções diversas. Desta maneira, o método deixa de ser um

procedimento de investigação da verdade para ser um “caminho do conhecimento” que muitas

vezes pode ser tortuoso e incerto, mas sempre criativo, criador.

É ao método de caráter nietzschiano que se caracteriza esta pesquisa, não há busca pelo

“fato em si” e nem garantias metodológicas. E como pesquisadora que não escapa à

impossibilidade da neutralidade, “uma vez que as interpretações resultam do querer”

(MONTEIRO; BIATO; 2008, p. 269), assumo o fazer de uma pesquisa em que “não há nenhum

acontecimento em si. O que acontece é um grupo de fenômenos interpretados e sintetizados a

partir de um ser interpretativo.” (NIETZSCHE, Fragmento póstumo 1 [115] outono de 1885 -

início do ano 1886). No lugar da investigação metafísica em torno do “o que é?” e em busca de

um resultado absoluto, comparece o questionamento “quem?” e as possibilidades de criação

que a indagação propicia. “Seu ‘conhecer’ é criar, seu criar é legislar, sua vontade de verdade

é — vontade de poder” (NIETZSCHE, BM, §211).

Teceduras de escrileituras

Embora a escrita deste texto tenha sido desenvolvida após o encerramento do projeto

Escrileituras: um modo de ler-escrever em meio à vida, ela ainda se inclui no projeto, uma vez

que faço uso de práticas, conceitos e desdobramentos concebidos nesse contexto. O projeto

Escrileituras foi desenvolvido sob a coordenação geral da Profª. Drª. Sandra Mara Corazza

entre os anos de 2011 e 2014, com núcleos de realização em quatro universidades brasileiras:

Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS); Universidade Federal de Pelotas

(UFPEL); Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE) e Universidade Federal de

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Mato Grosso (UFMT). Coordenados respectivamente pela Profª. Drª. Sandra Mara Corazza

(UFRGS); Profª. Drª. Carla Gonçalves Rodrigues (UFPEL); Profª. Drª. Ester Maria Dreher

Heuser (UNIOESTE) e pelo Prof. Dr. Silas Borges Monteiro (UFMT).

O conceito de escrileituras diz respeito à proposta de um movimento de constante

experimentação da escrita pela leitura e leitura pela escrita, como potência criadora do novo.

Escrita-e-leitura são tomadas como indissociáveis, não há como ler sem escrever, nem como

escrever sem ler. Mas há diversos modos de ler-escrever. A leitura concebida para além do

simples exercício de decodificação do leitor diante dos códigos distribuídos no texto pelo autor.

Assim, na escrileitura, ao mesmo tempo em que se lê se escreve, o leitor exerce um papel ativo

diante do texto que “solicita do leitor uma colaboração prática” (BARTHES, 2004, p. 74). Ela

transita por terrenos não visitados operando aspectos ocultos e desconhecidos, além de

mobilizar novos e potentes pensamentos (BIATO et al., 2014). Assume o texto para além de

um texto e se configure como exercício de pensamento construído conjuntamente por um

escritor-leitor e leitor-escritor.

As Oficinas de Transcriação (OsT) são concebidas e operacionalizadas como práticas

de pesquisa pelo projeto Escrileituras, se apresentam como espaços em que ocorre uma relação

entre a Transcriação e a prática tradutória. Corazza (2011, p. 53) as define como “oficinas

processuais de Pesquisa, Criação e Inovação” que se valem da arte com intuito de desnaturar a

experiência comum e disparar novos estilos de pensamento. É um “campo artistador de

variações múltiplas”, que investe em inovação e criação de saberes, cuja densidade se dá pelas

“linhas de vida e devires reais”. Isto é, toma a vida não como a materialização rígida da

experiência, mas como movimento, como vir-a-ser. Vias para além do ordinário em busca da

criação de outros territórios ainda não explorados.

O trabalho realizado pelas oficinas promove múltiplas possibilidades na produção de

texto tendo a vida como atuante, já diz Corazza (2011, p. 54) “a matéria principal da OsT é a

vida”.

No desdobrar da oficina ocorre um múltiplo movimento de transcriação, entre

oficineiros e participantes. Estes, transcriam porque não apenas traduzem, não reproduzem e

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nem copiam16, mas criam a partir da experimentação do material utilizado na oficina. Transcriar

é traduzir criando, é não se prender a mera reprodução do texto original, é lançar-se para além

da tradução, “a qual será mais ou menos inventiva, segundo a habilidade de cada tradutor, nas

operações tradutórias” (Ibid., p. 65)

Oficineiros também transcriam quando em contato com as produções dos participantes,

o que, certamente, implica na impossibilidade da neutralidade do pesquisador, que conforme já

exposto anteriormente não se constitui como um problema, pois assumo nesta pesquisa que o

“percurso de conhecimento biografemático, estabelece-se ‘como criação e não como

descoberta’, desde que o percurso é conhecer; seu método, a criação, o ensaio” (CORAZZA,

2010, p. 85). Em meio ao método, somos todos escrileitores.

O projeto propõe, inicialmente, seis modalidades de oficinas: oficina de artes visuais;

de biografemas; filosofia; música e corpo; pensamento matemático e teatro. No entanto, há

abertura para que possibilidades de experimentação e desdobramentos não se limitem aos

modelos, visto que estes se apresentam sob a forma de “linhas de intensidade a serem

multiplicadas numa cartografia intensiva” (DALAROSA, 2011, p. 21).

Faço uso dessa brecha intencional e invisto em uma nova tipologia: Oficina de

Transcriação Otobiografemática. A gênese deste termo é apresentada pelo professor Silas

Monteiro (2011) mediante o título de uma subseção de seu texto intitulada Cartografar

otobiografemas. Ele indica uma aproximação entre biografema e otobiografia ao dizer que “a

estratégia de otobiografar nos apresenta como uma posição (lugar e opinião) de dupla criação

diante do texto, sabendo-o como obra autobiográfica, quando o escreve e quando o lê.” (Ibid.,

p. 107).

Biografema e otobiografia. São conceitos mesclados nesta oficina que ocorre aos

moldes biografemáticos e se desdobra na escuta otobiográfica. Ouvir uma história que não está

na história.

A biografia busca a história, enquanto o “biografema invade a história” (COSTA, 2011,

p. 122). Biografemas surgem quando a biografia flerta com a ficção, uma “biografia-

descontínua” (Ibid., p. 34) que não se restringe a uma vida histórica cronológica, cede espaço

16

“Só não vale copiar, só não repetir, só não definir, só não dicionarizar, só não reproduzir igualzinho”

(CORAZZA, 2008, p. 27)

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para a potência de uma nova vida através de traços biografemáticos aparentemente

insignificantes, mas disparadores de novos sentidos. Nas palavras de Costa (Ibid., p. 12), “ao

invés daquilo que é exemplar, ilustrativo e explicativo, o biografema testemunha o traço

insignificante produzido pelo que foge, por aquilo que é comum e ordinário numa vida”.

Na Oficina de Transcriação Vita Femina, realizada no contexto desta pesquisa, Virginia

Woolf e Florbela Espanca foram as autoras selecionados para serem reinventadas nos textos

das participantes. A escolha por essas autoras — um pouco tendenciosa17, é claro — foi pensada

a partir dos fortes traços de individuação em seus escritos, por representarem grandes

referências femininas na literatura, mas que, apesar das semelhanças, apresentam estilos

distintos.

Tomando todo texto como autobiográfico, estamos falando de vida, vida de quem

escreve que se transfere para o texto. Ao “biografematizar”, não se estabelece correlações de

fatos, origens e encadeamentos cronológicos. Construir biografemas é se lançar às

possibilidades de novas e diversas vidas, novos outros e novos eus. Virginia Woolf (2015), em

A arte da biografia, ao dizer sobre as diferenças entre aqueles que escrevem romances e os que

escrevem biografias, afirma que “o romancista está livre; o biógrafo está amarrado” (2015,

formato epub). Um biografema pode ser pensado, então, como produto de uma fusão entre

romancista e biógrafo, aquilo que não se ancora em fatos fidedignos e cronológicos, mas que

também não se desfaz da vida e seus personagens. A escrita biografemática não se restringe a

história do autor, ela expande possibilidade de uma nova escritura — vida — e de um

autor/texto reinventado.

A escuta das produções escritas se desenvolve por meio da investigação otobiográfica,

desenvolvida por Monteiro (2004) a partir da noção nietzschiana de vivências e do conceito de

otobiografias, proposto por Derrida (2009), no livro Otobiografias. La enseñanza de Nietzsche

y la política del nombre proprio. O neologismo otobiographies é mais um movimento de

Derrida em busca da superação do fonocentrismo. O prefixo auto (próprio, si mesmo) e oto

(ouvido), possuem a mesma sonoridade na língua francesa, desta forma as palavras

autobiographie e otobiographie possuem a mesma pronúncia, impossibilitando sua distinção.

17

“Escrevemos quem amamos” (CORAZZA, 2010, p. 91.)

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Este jogo entre oto e auto faz com que o conceito de otobiografias só possa ser identificado em

sua forma gráfica, na palavra escrita.

Em sua tese de doutoramento, Monteiro (2004, p. 21) faz uso da otobiografia “como

método de acesso às vivências formadoras das professoras-estudantes, captadas por suas falas

presentes nos dossiês de conclusão de curso.” É nos dossiês das “professoras-em-formação”

(Ibid., p. 23) que suas vivências ressoam, tanto no que tange aos processos formativos, como a

vida de maneira geral. Não há procura por significados na escuta das vivências, não se busca

“o quê” o autor quis dizer em seu texto, mas o que aquilo diz sobre sua vivência.

A investigação otobiográfica se articula com reflexão acerca do tornar-se o que se é, a

partir da provocação nietzschiana em Ecce Homo (MONTEIRO, 2004). Aqui, o foco da

pesquisa otobiográfica está em se ouvir as vivências que tracejam a produção escrita, da vida-

biografada nas produções realizadas por meio da Oficina de Transcriação. Não se trata de uma

investigação da verdade, é labirinto em virtude da metáfora do ouvido e também enquanto

percurso de criação, pois “estando as vivências no âmago da argumentação com a proposta de

ouvi-las, assim como no labirinto mitológico. É preciso se distanciar da escuta analítica em

direção a uma escuta da vida que transita pelo texto, se apresenta como o duplo gesto do leitor-

desconstrutor derridiano, que se aproxima e se afasta do texto, evitando o movimento de síntese

e redução, “nesse sentido, desconstruir é também descoser” (SANTIAGO, 1976, p. 19).

Desconstruir é desfazer os fios que compõe o tecido para tecer novamente sob uma outra

disposição e, depois, descoser mais uma vez.

A otobiografia não procura por relações entre o que acontece na vida do autor e sua

produção filosófica, como costumeiramente é feito ao associar o pensamento de Freud e

Nietzsche acerca da mulher, como consequência da influência das figuras femininas que

passaram por suas vidas. Nietzsche contesta este tipo de interpretação ao afirmar “uma coisa

sou eu, outra são meus escritos” (EH, Por que escrevo livros tão bons, § 1), o texto nietzschiano

não se limita a uma representação de sua vida, é expressão de suas vivências e da multiplicidade

de estilos que o compõem, falam de suas superações.

Para Derrida (2009, p. 31), a otobiografia não “pretende explicar a gênese do sistema

de acordo com processos empíricos do tipo psicologicista, incluindo o tipo psicanalista,

historicista ou sociologista.”

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O que se pretende ouvir, então? As vivências que tracejam os escritos, as forças que

põem em movimento o texto, as criações do autor que levam sua assinatura única, isto é, a vida

do autor afirmada em sua assinatura, o texto sempre autobiográfico. Ouvir as vivências é sempre

um desafio, para compreendê-las é preciso compartilhá-las, de acordo com Nietzsche “para

aquilo que não se tem acesso por vivência, não se tem ouvido” (EH, “Por que escrevo livros tão

bons”, § 1) e “em todas as almas, um mesmo número de vivências recorrentes obteve primado

sobre aquelas de ocorrência rara: com base nelas as pessoas se entendem cada vez mais

rapidamente” (NIETZSCHE, BM, § 268). Portanto, ao ouvir as vivências das estudantes, ouço

também – talvez mais ainda – as minhas vivências enquanto pesquisadora, mulher e psicóloga.

Escuto o que me afeta, a multiplicidade de vivências para as quais eu tenho ouvido e

compartilho. O que ouço, na verdade, são ressonâncias das minhas vivências.

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É preciso apequenar as orelhas

“Dionísio:

Sê prudente, Ariadne!...

tens orelhas pequenas, tens minhas orelhas:

enfia nelas uma palavra prudente! [...]

Eu sou teu labirinto…”

Nietzsche, DD, O lamento de Ariadne

Vita Femina

Nos meses de abril e maio de 2015, realizou-se a Oficina de Transcriação Vita Femina,

com a colaboração de membros do grupo Estudo de Filosofia e Formação18. Ao todo foram

quatro encontros: dois com estudantes do curso de Pedagogia e dois com o curso de Psicologia.

As turmas participantes foram o primeiro e quinto semestre do curso de Psicologia, e primeiro

e terceiro ano do curso de Pedagogia.

O nome da oficina foi escolhido a partir do título da seção 339 de A gaia Ciência. Quer

dizer “A vida é uma mulher”, por vezes, dependendo da tradução, aparece como Femina Vita.

Mas talvez esteja nisso o mais forte encanto da vida: há sobre ela, entretecido de ouro,

um véu de belas possibilidades, cheio de promessa, resistência, pudor, desdém,

compaixão, sedução. Sim, a vida é uma mulher! (GC, § 339).

Nesta seção, Nietzsche apresenta a figura da mulher como metáfora da verdade, enigma

da aparência, como um véu que, no movimento de sedução feminina, captura a atenção do outro

diante da exibição dissimulada; o véu que não esconde, mas também não revela o suficiente.

Revelar, aliás, não é o desejo atuante aqui, “basta para o agente feminino da experiência na sua

exibição sutil que se produza o engolfamento do olhar de vários outros, expostos às artimanhas

18

Houve o apoio das pesquisadoras Luana Burema e Cláudia Moreira, dos mestrandos João Batista e Fernanda

Leonel, da doutoranda Rúbia Yatsugafu e dos bolsistas de iniciação científica Layane Buosi, Vinícius Borges,

Vithória Duarte e Barbara Lopes.

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da sedução” (BIRMAN, 1999, p. 60). O gozo existe em provocar o desejo do outro por meio

da sedução, não se estende para além disso, conforme Derrida (2013, p. 37) “a mulher (a

verdade) não se deixa conquistar”, ou seja, a impossibilidade da captura, da contenção e

assujeitamento.

Se bem compreendo, Nietzsche faz o mesmo movimento ao seduzir seus leitores

quando, por meio do que ele chama de “estilo da cautela”, escolhe ser lido por quem ele deseja:

“eu escrevo de modo que nem o populacho, nem os populi [povos], nem os partidos de toda

espécie me queiram ler” (HH II, O andarilho e sua sombra, § 71). Olini (2012, p. 17), neste

sentido, corrobora: “tanto em Nietzsche como em Derrida, a questão do estilo está

indissoluvelmente ligada com o conteúdo do texto, selecionando e seduzindo o leitor”. Sobre

esse estilo sedutor, Marton (2000, p. 41) diz “é no âmbito da relação entre autor e leitor que o

autor e seu alter ego situam as questões estilísticas. […] Repele quem lhe é estranho; atrai quem

é do seu feitio”. Nietzsche escolhe os olhares que se voltarão a ele, mas também não se deixa

conquistar, não revela a verdade em (de) seus textos, não existe verdade nietzschiana. O estilo

de Nietzsche tem seu compromisso com a vida, não com a verdade.

A oficina foi sistematizada visando três movimentos: proporcionar às alunas a

experimentação das forças que põem em movimento o texto, um espaço de criação enquanto

autoras de sua própria vida, a afirmação de suas vidas através do texto como confissão;

possibilitar a experimentação dos traços do feminino nos textos das autoras experimentadas a

partir da escrileitura; e a provocação de novos pensamentos quanto aos estilos do feminino

(fugindo de essências, binarismos e desvelações). Quando me refiro a essências e binarismos,

trato da tradição metafísica dicotômica: masculino-mais, feminino-menos.

O contato com as estudantes se deu por meio dos professores, que acolheram a proposta

da oficina cedendo um espaço de suas aulas. A não participação dos homens na oficina é

justificada pelo fato de que além de não se tratar do objetivo da pesquisa para qual a atividade

se apresentou, buscou-se proporcionar um espaço de maior liberdade, naturalidade e abertura,

para que as estudantes se sentissem confortáveis para a discussão. Homens podem ter

experiências do feminino, mas não vivências a partir da perspectiva nietzschiana da qual se

trata este trabalho. Vivências não são experiências, não podem ser racionalizadas, conforme

afirma Viesenteiner (2009, p. 7) pertencem a outra ordem: “trata-se de uma noção que,

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patheticamente, não pode ser conceitualmente sistematizada e nem sequer comunicada através

de signos linguísticos.". As vivências não são contempladas nem pela via do raciocínio, nem

pela elaboração freudiana, são digeridas, ruminadas, “nutrem os instintos” (MONTEIRO, 2004,

p. 43) e são incorporadas à cada célula que tornam alguém o que se é.

Uma proposta para a oficina foi apresentada às participantes, sempre mantendo o

cuidado de evitar direcionamentos e escapando dos imperativos. Afinal, a escrileitura e os

conceitos que a percorrem agem como disparadores da fluidez do pensamento, de circulação de

novas práticas e possibilidades.

OFICINA DE TRANSCRIAÇÃO VITA FEMINA

1. Invente, ficcionalize, fabule, transcrie experimentações autobiográficas;

2. Revisite a experiência do feminino, da escrita, da leitura, da palavra;

3. Tratamos aqui, acima de tudo, da vida;

4. Entregue-se ao inesperado, à imprevisibilidade do texto, aos pensamentos inéditos, à

ruptura do ordinário;

5. Sinta-se livre, todo texto é autobiográfico.

6. E por fim, não se acanhe quanto à identificação, os grandes autores usavam

pseudônimos.

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Embora a escrileitura se dê em um contínuo movimento de escrita e leitura, é necessário

a sistematização da oficina a partir de um roteiro. Partindo da condição indissociável entre vida

e reflexão filosófica (MARTON, 2000), foi apresentada uma breve exposição sobre a vida das

autoras. Esse início foi importante para a contextualização da OsT, pois muitas estudantes

estabeleceram neste momento o primeiro contato com as autoras.

O poema A Mulher, de Florbela Espanca, trata do retrato da mulher romântica, trágica,

complexa e dissimulada. Embora Florbela apresente ao longo de sua obra traços de diferentes

estilos femininos, a maioria de seus textos é composta por figuras do feminino que sofrem por

amor em um contexto erótico e místico.

Embora escrito na mesmo época, o texto de Virginia Woolf, trata de um outro estilo

feminino. Profissões para mulheres, foi lido para a Sociedade Nacional de Auxílio às Mulheres

em 21 de janeiro de 1931, ocasião em que a autora foi chamada para falar sobre suas

experiências profissionais. Além de um relato de sua vida e atividades profissionais, Virginia,

em seu texto, elabora diversos questionamentos a respeito da visão tradicional e predominante

no início do século XX (ou até hoje?) da mulher como “Anjo do lar”19, sobre como ela superou

essa posição, e todas as dificuldades e desafios que a mulher enfrentava para sua inserção no

mundo intelectual e profissional da época.

Durante a leitura em conjunto dos textos, irromperam diversas discussões. Muitas

alunas, com predominância maior no curso de Pedagogia, devido a faixa etária um pouco mais

elevada, disseram das dificuldades que enfrentam diariamente com maridos e filhos para

conseguir cursar a graduação. A intimidação exercida pelo anjo-fantasma foi presente nas

discussões e em grande parte dos textos produzidos:

Quer dizer, na hora em que peguei a caneta para resenhar aquele romance de um

homem famoso, ela logo apareceu atrás de mim e sussurrou: ‘Querida, você é uma

moça. Está escrevendo sobre um livro que foi escrito por um homem. Seja afável; seja

meiga; lisonjeie; engane; use todas as artes e manhas do nosso sexo. Nunca deixe

ninguém perceber que você tem opinião própria. E principalmente seja pura’

(WOOLF, 2012, formato epub).

19

The angel in the house, poema de Conventry Patmore (1823-1896) que celebrava o amor conjugal e idealizava

o papel doméstico das mulheres.

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O anjo assassinado por Woolf se assemelha à falsa mulher descrita por Cixous (1976),

e a necessidade de matar a falsa mulher para que a verdadeira possa respirar. Essa mulher é

caracterizada como falsa não por um aspecto moral, mas por se tratar da sombra do homem, de

um simulacro, uma construção do que os homens esperam que as mulheres sejam. Esse

assassinato se dá, novamente, pelo meio da escrita, da “emancipação do texto” (Ibid., p. 880,

tradução minha). Vale salientar que essa imagem da mulher é sempre favorável e conveniente

à ideia de superioridade masculina, conforme afirma Woolf (1985, p. 45) “em todos esses

séculos, as mulheres têm servido de espelhos dotados do mágico e delicioso poder de refletir a

figura do homem com o dobro de seu tamanho natural”.

O fantasma, datado do ano de 1864, ainda parece reprimir e censurar a produção escrita

dessas mulheres, mesmo nos espaços acadêmicos.

Em estudo sobre a alfabetização na Europa do século XVIII, Chartier (1991) utiliza

como fonte de dados os registros paroquianos de assinatura de noivos. Nesses documentos, o

número de homens assinantes se sobrepõe ao de mulheres, atingindo, muitas vezes, uma

superioridade de 25% a 30%. Vale ressaltar que, quando se refere à alfabetização, Chartier leva

em conta apenas a escrita, deste modo, a ínfima participação da mulher em seus resultados não

se estende proporcionalmente à leitura, “de fato, nas sociedades antigas a educação das meninas

inclui a aprendizagem da leitura, mas não a da escrita, inútil e perigosa para o sexo feminino”

(CHARTIER, 1991). Como exemplo dessa situação, Chartier apresenta a peça teatral Escola

de Mulheres, de Moliere. Nesta peça, Arnolphe deseja que Agnés leia e aprenda as “Máximas

do casamento”, porém se espanta com o fato de ela escrever.

Deste modo, em relação à pesquisa de Chartier, o número de assinaturas femininas não

pode servir como um indicativo de mulheres que sabem ler, pois muitas leitoras nunca

aprenderam a escrever. Era reservado à mulher apenas o direito de ler o que foi escrito por

homens, mas não produzir sua própria escritura.

Como estratégia à ausência da alfabetização, alguns grupos de mulheres criavam seu

próprio sistema secreto de escrita, como é o caso do nushu, exposto por Rosa Montero (2012)

no livro Historia de Mujeres. Segundo a autora, o nushu consiste em um sistema complexo de

escrita, criado há milhares de anos pela amante de um imperador chinês diante da necessidade

de conversar com suas amigas sobre sua vida intima e amorosa e, ao mesmo tempo, evitar os

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riscos de ser descoberta. No entanto, muitas mulheres aprenderam o nushu por não saber

escrever no idioma chinês oficial, uma vez que eram estrategicamente mantidas analfabetas.

Esse sistema de escrita clandestino deu à essas mulheres não só o poder da escrita, enquanto

meio de comunicação, mas a força de resistência à privação intelectual que lhes era imposta. A

escrita atua como possibilidade de mudança, como “espaço que pode servir como um trampolim

para o pensamento subversivo, o movimento precursor de uma transformação das estruturas

sociais e culturais” (CIXOUS, 1976, p. 879, tradução minha).

Essa necessidade de manter a mulher alheia às atividades intelectuais, é caracterizada

por Cixous como uma manifestação de medo e insegurança diante da mulher empoderada. Para

exemplificar este medo do qual fala Cixous, retomo a obra de Moliere com a seguinte fala de

Arnolphe:

[...] eu sei o que custou a alguns casarem com mulheres cheias de talento; me caso

com uma intelectual, interessada apenas em conversas de alcova, escrevendo

maravilhas em prosa e verso, frequentada por marqueses e gente de espírito, e fico

sendo apenas o marido de madame, discreto a um canto, como um santo sem crentes.

Não, não, agradeço esses espíritos cheios de sutilezas. Mulher que escreve sabe mais

do que é preciso! (MOLIERE, 1996, p. 7, grifo meu).

Sofie Charlote, estudante de Psicologia, afirma em seu texto:

Escrever é uma forma de registro, de desabafo, de afirmação. Hoje escrevo consciente

do atual papel da mulher na sociedade, muitas vezes não reconhecido, e outras,

influenciado pela figura do “Anjo do Lar”, aquele que agrada a todos, menos a si

mesmo. [...] Por ora, prefiro esconder aquilo que talvez possa causar muito impacto e

surpresa, somado às limitações que ainda hoje são impostas às mulheres.

A estudante parecer ser a encarnação do medo de Arnolphe em relação à “mulher que

escreve”. No entanto, escrever parece ainda não ser, efetivamente, um campo aberto às

mulheres. Sofie está consciente de que escrever é um modo de se afirmar, mas ao mesmo tempo,

opta pelo resguardo diante do que pode soar impactante para ouvidos despreparados. Um teto

todo seu parece não ser tudo de que a uma mulher precisa para escrever livremente. A escrita

feminina ainda secreta e culpada como a masturbação (CIXOUS, 1976).

Soror Juana Inês de la Cruz (1651-1695), intelectual e musa da poesia barroca mexicana,

já próxima de sua morte é obrigada a escrever uma declaração em que se desfaz de todas as

suas posses materiais, abandona sua vida de estudos e escritos e se desculpa pelo pecado do

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anseio pelo conhecimento e pela audácia de escrever o que pensa. Assina tal declaração com o

próprio sangue e se identifica como “Yo, la peor de todas”20. Tal como Nietzsche afirma em

seu Zaratustra21, o empenho da leitura é recompensado quando se lê o que alguém escreve com

o próprio sangue, Soror Juana ultrapassa os limites da metáfora do alter ego nietzschiano.

A produção escrita marca presença nos cursos de graduação, por vezes tenta "dar as

caras", aparecer como elemento da constituição de si e expressão de suas superações. Embora

haja momentos e disciplinas que incentivem a escrita criativa e como produção de si, ainda

parece operar uma lógica aniquiladora das diferenças e peculiaridades, sufocando

subjetividades a partir do que é convencionado como normal e moral. Além disso, foi possível

notar um movimento de descompromisso e apatia em situações que escapem à objetividade

científica, como a Oficina de Transcriação, dentro da Universidade. Nos encontros com as

turmas de Psicologia e Pedagogia ficou claro o desinteresse por parte das estudantes de

semestres mais avançados, em oposição ao ânimo dos primeiros anos. Tal situação me leva a

pensar que a academia cada vez menos sede espaço para a possibilidade de transcriação, o que

provoca nas estudantes estranheza e falta de interesse em participar de atividades que fujam das

aulas com métodos tradicionais.

É na otobiografia que se “desconcerta o hermeneuta”22

Uma única orientação para a produção foi dada às estudantes: que elas assinassem seu

texto. No entanto, esta assinatura estava aberta a possibilidade de ser o nome próprio, ou nomes

fabulados e pseudônimos.

A maior parte das produções é assinada com nome e sobrenome. Vinte textos são

assinados apenas com primeiro nome, que se compreende entre a possibilidade de ser próprio

ou inventado. Poucos são assinados com nomes claramente inventados: Única; Princesa Lulu;

Passarinho; Pé-cá, Pé-lá; Neles Neles; KGC; Virginia Espanca; e Já me lê.

20

“Eu, a pior de todas” 21

“De tudo escrito, amo apenas o que se escreve com o próprio sangue. Escreve com sangue: e verás que sangue

é espírito.” (ZA, Do ler e do escrever). 22 “Este limite está prescrito por sua estrutura textual, confunde-se com ela; e é ela que, com seu jogo, provoca e

desconcerta o hermeneuta.” (DERRIDA, 2013, p. 101).

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Tomemos então, como um ponto, a assinatura. Em seu Otobiografias, Derrida discorre

sobre a noção nietzschiana de vivências que no livro se apresentam como habitantes do texto,

forças que o colocam em movimento, as criações do autor que levam a sua assinatura — mesmo

que sob muitos nomes.

Derrida (2009), ao se referir a Nietzsche em sua cena do Ecce Homo, discorre sobre os

diversos pseudônimos23 e “comunidade de máscaras” (p. 35) adotados pelo filósofo alemão.

Ressalta que a vida é dissimulação que se afirma a todo tempo. Assim, o texto, por ser vida,

também é dissimulação.

Na segunda parte de Otobiografías, Derrida (2009, p. 30) insere a relação entre vida-e-

morte e biografia: “um discurso sobre vida-e-morte deve ocupar certo espaço entre o logo e o

grama […] E como se trata da vida, o traço que relaciona lógica ao gráfico deve funcionar entre

o biológico e o biográfico, o tanatológico e o tanatográfico”. Para ele, ao contar sobre si mesmo

e assinar sua vida, o autor assina, também, a sua morte. As múltiplas assinaturas de Nietzsche,

seus nomes supostamente próprios, não impedem que sua biografia seja uma autobiografia. Ao

contrário, dizem de sua constituição.

Neste dia perfeito, em que tudo amadurece e não só a videira doura, caiu-me na vida

um raio de sol: olhei para trás, olhei para a frente, jamais vi tantas e tão boas coisas

de uma só vez. Não foi em vão que enterrei hoje o meu quadragésimo quarto ano, era-

me lícito sepultá-lo — o que nele era vida está salvo, é imortal. O primeiro livro da

Transvaloração de todos os valores, as Canções de Zaratustra, o Crepúsculo dos

ídolos, meu ensaio de filosofar com o martelo — tudo dádivas desse ano, aliás de seu

último trimestre! Como não deveria ser grato à minha vida inteira? — E assim me

conto minha vida. (NIETZSCHE, EH, Prólogo).

A citação compreende um excerto localizado entre o final do prólogo e o primeiro

capítulo. Nietzsche parece agradecer à vida, nessa ocasião. Ao enterrar seus quarenta e quatro

anos de superações e realizações, ele salva o que foi vivido. Nas palavras de Derrida (2013, p.

43):

esse relato que enterra o morto e salva o salvo como imortal não é auto-biográfico

porque o assinante conta sua vida, o retorno de sua vida passada enquanto vida e não

enquanto morte, mas sim que, justamente porque se conta e ele é o primeiro e único

destinatário da narração.

23

“Dionísio”; “o crucificado”; “F.N.”

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Desta forma, todo texto é autobiográfico na medida em que o narrador-signatário é o seu

próprio destinatário: “e assim me conto minha vida”.

***

“Esqueci meu guarda-chuva” é o título do último capítulo de Esporas. Derrida (2013)

repete a mesma frase na primeira linha do capítulo, na sequência explica que essa frase está

escrita, entre aspas, em meio a fragmentos inéditos de Nietzsche. A partir disso, Derrida elenca

alguns possíveis significados para essa frase: “talvez uma citação. Talvez tenha sido retirada de

alguma parte. Talvez tenha sido ouvida aqui ou ali. Talvez fosse a intenção de uma frase a

escrever aqui ou ali” (Ibid., p. 93).

No entanto, questionar o significado dessa frase é recorrer a hermenêutica. Este é o

ponto em que Nehamas (1985) estabelece como mais uma crítica de Derrida à hermenêutica de

Heidegger e sua busca pelo verdadeiro pensamento nietzschiano. “Esqueci meu guarda-chuva”

é um indecidível, não obedece à ordem da interpretação e do sentido, “estruturalmente

emancipada de todo querer-dizer vivo, ela pode sempre nada querer-dizer, não ter nenhum

sentido decidível” (DERRIDA, 2013, p. 100). Jamais saberemos quem esqueceu o guarda-

chuva, se foi um relato verídico, se foi feita por Nietzsche sobre ele mesmo, nem ao menos

saberemos se houve, de fato, um guarda-chuva esquecido.

***

"só textos-bizarros são comestíveis” (CORAZZA, 2008 p. 31).

***

Suelem parece seguir o Manifesto (della scrilettura cannibale) corazziano ao

biografematizar uma receita de pudim:

Receita de pudim de leite condensado 03 ovos 01 lata de leite condensado 01 lata de leite (a mesma do leite condensado) Açúcar Coloque o açúcar na forma e leve ao fogo para caramelizar, e deixe esfriar. Coloque

todos os ingredientes no liquidificador e bata em velocidade alta por 05 minutos,

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depois coloque na forma caramelizada e leve ao fogo em banho maria por 30 minutos,

espera esfriar. Retire da forma e leve à geladeira e sirva a vontade.

O texto de Suelem, embora tenha aspecto de receita gastronômica, possui suas

vivências, sua vida-morte assinada como produção de si. No entanto, assim como o guarda-

chuva nietzschiano, jamais saberemos o que a autora quis dizer, nem mesmo se ela “quis que

algo fosse feito” (DERRIDA, 2013, p. 94). Talvez Suelem estivesse com fome de pudim? Ou

tomada por um sentimento altruísta, quis compartilhar uma boa receita com a pesquisadora?

Ou ainda, escreveu a receita como uma forma de protesto por não estar disposta a participar da

atividade? Não sei. Nunca saberemos.

Entretanto, ao tratar do desconcerto do hermeneuta diante de textos indecidíveis, como

o pudim de Suelem e o guarda-chuva (supostamente) esquecido de Nietzsche, Derrida não

propõe o abandono do texto, mas sugere um outro modo de aproximação que implique em

“afastar a decifração para tão longe quanto for possível” (Ibid., p. 101). Não se trata de

investigar a verdade oculta do texto, nem dentro nem fora dele. É preciso ouvir às margens,

questionar “a dynamis do texto, designando-a como a força, a potência virtual e móbil que dão

ao texto vivência.” (MONTEIRO, 2004, p. 65). É preciso escutar as vivências, mobilizar o gesto

otobiográfico.

***

“Por um otobiografema contra a psicanálise, contra, na proposta corazziana, ‘a

cronologia de vida e a ilusão biográfica’.” (MONTEIRO, 2011, p. 107)

***

Ana Carolina, estudante de Pedagogia, escreve em seu texto:

E mais que isso fazer tudo isso, ser uma mulher de expressão, sem perder a delicadeza

de uma mulher, sem perder a graça, a sutileza que a faz ser tão encantadora e: mulher.

(Ana Carolina, estudante de Pedagogia)

A autora traz o traço característico do que para ela é um estilo feminino: a delicadeza e o

encanto. Como se houvesse uma essência do feminino, e essa essência se relacionasse ao

encanto. Para ela, são as características historicamente atribuídas ao feminino que a constituem;

é por meio da tradição metafisica que a mulher é pensada. Delicadeza, sutileza e encanto

marcam a impossibilidade da mulher como não-lugar, como não-identidade.

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Ana Mel parece concordar com Ana Carolina ao defender a sensibilidade como uma

característica que, apesar de matar o anjo do lar, a mulher não deve perder. No entanto, revela

sufocar algumas vontades que, para ela, não se encaixam em seu papel:

Gosto de ser esposa, meiga, atenciosa a meu marido, porque acho que o mesmo irá

retribuir, me proteger. Sou uma verdadeira “Amélia”, para fazer alguma coisa tenho

que ter a aprovação do meu marido, isso não me incomoda. Me traz segurança. Mas

as vezes me canso de tudo isso, me dá vontade de jogar tudo para cima. Hoje sou

estudante de Psicologia e uma esposa exemplar, e tenho sim desejos de ter uma família

completa com filhos. Este lado Amélia e independente estão sempre em conflito. Eu

acho que para ser mulher tem que ter esses dois pontos, senão estaríamos

negligenciando o nosso papel biológico. (Ana Mel, estudante de Psicologia).

O papel biológico da mulher, do qual Ana Mel fala, é a maternidade. Não desejar uma

família composta por marido e filhos é não exercer o papel de mulher por completo. Pensamento

que se aproxima das influências essencialistas e da psicanálise freudiana que encaram a

maternidade como etapa final do percurso em busca da feminilidade. No trecho da estudante, é

possível observar a renúncia do próprio desejo como resposta ao que o outro solicita.

Eu mataria o Anjo do Lar. E chamaria Florbela para prosear. Talvez convidasse ambas

para ver um parto, é neste momento que a mulher-Woolf e a mulher-Espanca não só

se encontram, mas se misturam e se confundem na existência de muitos anjos. (Aline

Rossi, estudante de Pedagogia).

A maternidade é um ponto presente na maior parte da produção das estudantes, ao sinal

de que parece ser impossível falar sobre mulher/feminino sem dizer da maternidade, da mulher-

mãe. Penso que esteja aqui, bem marcado, um ponto de encontro entre o processo de

feminização de ambas as profissões, relatado no início deste texto, e o que ocupa o imaginário

social ainda nos dias atuais. Seja para defender a ideia de que a feminilidade está intrínseca à

maternidade, ou para afirmar as outras possiblidades de feminino, a maternidade se faz presente.

E a maternidade, como já tratei aqui, está relacionada diretamente ao cuidado e suas profissões.

Por outro lado, esteve presente também a multiplicidade de estilos, possibilidades de

coexistências:

A escrita, estruturada, a ser defendida vem indagar sobre a possibilidade de vitas

feminas e é em primeira pessoa que as possibilidades existem como forças, não

opostas ou traduzidas como um bem ou mal, mas que se revelam pela impregnação

da/pela problemática ou pelo simples encobrimento histórico-cultural dos bons anjos

dos lares. Há possibilidade de trânsito de todas as vitas. Há no que preferem

denominar “presente” (digo reduto de um passado mutante) uma força entre

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rendimentos e papéis sociais, são nada mais do que tentativas torpes de usar do dócil,

doce e delicado para categorizar mulher. Na realidade, o que são essas repetições de

léxicos iniciados por “D” e que atravessam gerações, décadas e, talvez, futuros?” (Já

me lê, estudante de Psicologia).

O que essa mulheres, estudantes de Psicologia e Pedagogia, desejam de suas vidas e de

suas profissões? Essa pesquisa, em momento algum, se dedicou a isso. Foi possível até aqui,

nessa “experimentação errante”, experimentar estilos, perceber quem são essas estudantes e os

desafios que ainda hoje atravessam seus caminhos formativos.

Ao disponibilizar meu ouvidos às vivências das estudantes, ouvi os ecos de minhas

próprias vivências. Ao propor o desconhecido, fui eu mesma lançada ao inesperado. A mulher

que logo sou? Todas e nenhuma.

Perfura[dor]

uma auto-otobiografia

Os ventos que sopravam as velas içadas no início deste texto, aliás, no início do meu

caminho no mestrado, agora está mais modesto. Bem mais modesto. As velas, plenas,

estendidas ao máximo, com cheiro de novo e receptiva a todo tipo de vento que ventar, também

não são mais as mesmas. Como o percurso opera mudanças no navegador!

Na fala-qualificação, professor Luciano Bedin da Costa lança-me à (a) questão: qual a

minha fantasia ao escrever? Que imagem-guia me acompanha? E só agora, ao escrever as

últimas linhas desse texto, me deparo com a fantasia dessa dissertação, eu, mulher, psicóloga e

pesquisadora presa à circularidade metafísica, ausento-me — em muitos momentos — da

escrita, para dar voz aqueles que acredito falarem melhor do que eu: Nietzsche, Derrida,

Barthes, Freud, etc. Claro que para um trabalho desse porte, necessito de um coro

epistemológico, mas e a minha voz? Quando fala? Quando escreve?

A escrita me rompe, me perfura, me enfraquece, tal qual a adaga de Lucrécia.

A mulher que logo sou, só sabe sê-lo em círculos e fragmentos.

Termino silente com Derrida! Experimentei a impossibilidade da verdade. Não há

verdade. Há desmembramento. Há falta... separação... castração... a mulher que se separa dela

mesma. Experimento.

Desfaço-me; destroço-me; Recomponho-me para desmoronar novamente.

Um parto! Não foi Eva a culpada pelo suplício feminino?

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Debrucei meus ouvidos aos textos produzidos pelas estudantes. Dois anos. Incisões.

“Tempos de fins, Aline”, é o que me diz Alessandra Abdala neste momento. Como dói o

ponto final!

Por trás do véu, o vazio.

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Na novela Sarrasine, falando de um castrado disfarçado em mulher,

Balzac escreve esta frase: "Era a mulher, com seus medos repentinos,

seus caprichos sem razão, suas perturbações instintivas, suas audácias

sem causa, suas bravatas e sua deliciosa finura de sentimentos". Quem

fala assim? E o herói da novela, interessado em ignorar o castrado que

se esconde sob a mulher? É o indivíduo Balzac, dotado, por sua

experiência pessoal, de uma filosofia da mulher? E o autor Balzac,

professando ideias "literárias" sobre a feminilidade? E a sabedoria

universal? A psicologia romântica? Jamais será possível saber, pela

simples razão que a escritura é a destruição de toda voz, de toda

origem. A escritura é esse neutro, esse composto, esse oblíquo pelo qual

foge o nosso sujeito, o branco-e-preto em que vem se perder toda

identidade, a começar pela do corpo que escreve

Barthes – O Rumor da Língua

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Mais, ainda

OFICINA DE TRANSCRIAÇÃO VITA FEMINA

Trecho retirado do texto “Profissões para mulheres”, de Virginia Woolf. Lido para a

Sociedade Nacional de Auxílio às Mulheres em 21 de janeiro de 1931.

“E o fantasma era uma mulher, e quando a conheci melhor, dei a ela o nome da

heroína de um famoso poema, ‘O Anjo do Lar’24

. Era ela que acostumava aparecer

entre mim e o papel enquanto eu fazia as resenhas. Era ela que me incomodava,

tomava meu tempo e me atormentava tanto que no fim matei essa mulher. Vocês,

que são de uma geração mais jovem e mais feliz, talvez não tenham ouvido falar dela

- talvez não saibam o que quero dizer com o Anjo do Lar. Vou tentar resumir. Ela era

extremamente simpática. Imensamente encantadora. Totalmente altruísta. Excelente

nas difíceis artes do convívio familiar. Sacrificava-se todos os dias. Se o almoço era

frango, ela ficava com o pé; se havia ar encanado, era ali que ia se sentar - em suma,

seu feitio era nunca ter opinião ou vontade própria, e preferia sempre concordar com

as opiniões e vontades dos outros. E acima de tudo - nem preciso dizer - ela era pura.

Sua pureza era tida como sua maior beleza - enrubescer era seu grande encanto.

Naqueles dias - os últimos da rainha Vitória - toda casa tinha seu Anjo. E, quando fui

escrever, topei com ela já nas primeiras palavras. Suas asas fizeram sombra na página;

ouvi o farfalhar de suas saias no quarto. Quer dizer, na hora em que peguei a caneta

para resenhar aquele romance de um homem famoso, ela logo apareceu atrás de mim

e sussurrou: ‘Querida, você é uma moça. Está escrevendo sobre um livro que foi

24

Poema de Conventry Patmore (1823-1896) que celebrava o amor conjugal e idealizava o papel doméstico das

mulheres.

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escrito por um homem. Seja afável; seja meiga; lisonjeie; engane; use todas as artes

e manhas do nosso sexo. Nunca deixe ninguém perceber que você tem opinião

própria. E principalmente seja pura’. E ela fez que ia guiar minha caneta. E agora eu

conto a única ação minha em que vejo algum mérito próprio, embora na verdade o

mérito seja de alguns excelentes antepassados que me deixaram um bom dinheiro -

digamos, umas quinhentas libras? -, e assim eu não precisava só do charme para viver.

Fui para cima dela e agarrei-a pela garganta. Fiz de tudo para enganá-la. Minha

desculpa, se tivessse de comparecer a um tribunal, seria legítima defesa. Se eu não a

matasse, ela é que me mataria. Arrancaria o coração de minha escrita. (...) Matar o

Anjo do Lar fazia parte da atividade de uma escritora.”

Poema de Florbela Espanca, escrito em 1916.

A MULHER

Ó Mulher! Como é fraca e como és forte!

Como sabes ser doce e desgraçada!

Como sabes fingir quando em teu peito

A tua alma se estorce amargurada!

Quantas morrem saudosas duma imagem

Adorada que amaram doidamente!

Quantas e quantas almas endoidecem

Enquanto a boca ri alegremente!

Quanta paixão e amor às vezes têm

Sem nunca o confessarem a ninguém

Doces almas de dor e sofrimento!

Paixão que faria a felicidade

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Dum rei; amor de sonho e de saudade,

Que se esvai e que foge num lamento!