UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus....

155
UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO DE ARTES E COMUNICAÇÃO DEPARTAMENTO DE ARQUITETURA E URBANISMO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DESENVOLVIMENTO URBANO CAMILLA GOMES UMA MEMÓRIA OFICIAL EM CONSTRUÇÃO: Do tombamento ao monumento nas ladeiras de Olinda (1966-1980) Recife 2019

Transcript of UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus....

Page 1: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO

CENTRO DE ARTES E COMUNICAÇÃO

DEPARTAMENTO DE ARQUITETURA E URBANISMO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DESENVOLVIMENTO URBANO

CAMILLA GOMES

UMA MEMÓRIA OFICIAL EM CONSTRUÇÃO: Do tombamento ao monumento

nas ladeiras de Olinda (1966-1980)

Recife

2019

Page 2: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

CAMILLA GOMES

UMA MEMÓRIA OFICIAL EM CONSTRUÇÃO: Do tombamento ao monumento

nas ladeiras de Olinda (1966-1980)

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Urbano da Universidade Federal de Pernambuco, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestra em Desenvolvimento Urbano.

Área de concentração: Conservação

Integrada

Orientadora: Profa. Dra. Renata Campello Cabral

Coorientador: Prof. Dr. Antônio Paulo de Morais Rezende.

Recife

2019

Page 3: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

Catalogação na fonte

Bibliotecária Jéssica Pereira de Oliveira, CRB-4/2223

G633m Gomes, Camilla Uma memória oficial em construção: do tombamento ao monumento

nas ladeiras de Olinda (1966-1980) / Camilla Gomes. – Recife, 2019. 154f.: il.

Orientadora: Renata Campello Cabral. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal de Pernambuco.

Centro de Artes e Comunicação. Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Urbano, 2019.

Inclui referências, anexos e apêndice.

1. Memória Cultural Urbana. 2. Olinda. 3. Tombamento. 4. Monumento Nacional. I. Cabral, Renata Campello (Orientadora). II. Título.

711.4 CDD (22. ed.) UFPE (CAC 2019-113)

Page 4: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

CAMILLA GOMES

UMA MEMÓRIA OFICIAL EM CONSTRUÇÃO: Do tombamento ao monumento

nas ladeiras de Olinda (1966-1980)

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Urbano da Universidade Federal de Pernambuco, como requisito parcial para a obtenção do título de mestra em Desenvolvimento Urbano.

Aprovada em: 31/01/2019.

BANCA EXAMINADORA

_________________________________________________

Profa. Dra. Virgínia Pitta Pontual (Examinadora Interna)

PPGDU - Universidade Federal de Pernambuco

_________________________________________________

Profa. Dra. Isabel Cristina Martins Guillen (Examinadora Externa)

PPGH - Universidade Federal de Pernambuco

_________________________________________________

Prof. Dr. George Alexandre Ferreira Dantas (Examinador Externo)

Universidade Federal do Rio Grande do Norte

Page 5: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

AGRADECIMENTOS

A dissertação é um trabalho solitário que seria impossível realizar sozinha.

Cada contribuição, direta ou indireta, para o desenvolvimento deste trabalho, assim

como para minha formação enquanto pesquisadora, foi importante para a construção

do conhecimento que aqui proponho sobre a memória de Olinda.

O primeiro agradecimento não poderia deixar de ser para minha mãe, por toda

a orientação para a vida. Desde criança, sempre me incentivou a estudar, a ir além,

mostrando que era o conhecimento a maior riqueza, algo que só faz sentido quando

compartilhado. Desde pequena, sempre sonhou que eu iria longe, que iria alcançar

caminhos que ela não teve a oportunidade de percorrer. Sigo no caminho acadêmico

muito por sua força e incentivo. Obrigada, mainha.

Minha gratidão ao CNPq, pelo fomento à pesquisa através da bolsa de pós-

graduação. Num momento de transição profissional, esse fomento é essencial para

os estudantes pesquisadores, e foi crucial para que eu pudesse cursar o mestrado e

me dedicar à pesquisa. Mesmo num momento em que os investimentos em Educação

vêm sendo tolhidos, é fundamental resistir.

Depois de ter me ajudado a segurar a barra do adoecimento mental na pós-

graduação, minha psicóloga Flávia Mucarbel merece todo meu agradecimento e

reconhecimento, por ter me ouvido, me aconselhado, me acalmado tantas vezes,

mesmo quando me questionei se realmente era capaz. Flutuando entre momentos de

certeza e de completa descrença, crises de ansiedade, bloqueio de escrita, o apoio

psicológico foi fundamental para conseguir passar por essa etapa. Obrigada, Flávia!

Não teria conseguido desenvolver a dissertação se não tivesse um Norte. É

esse o papel dos orientadores, direcionar os alunos, sobretudo quando estão

perdidos. Estive perdida durante o Mestrado, mas Renata Cabral foi aquela

orientadora que me deu Norte, me deu direção, luz. Admiro Renata desde quando fui

sua aluna na graduação. Percebi que ela, diferente de outros, realmente se importava

com o processo de construção do conhecimento desenvolvido em sala de aula. Ela

se importa com o aluno. Por mais que entendamos que isso deveria ser um pré-

requisito de qualquer professor, infelizmente isso é algo raro no mundo acadêmico.

Além de excelente professora, ela é pesquisadora de referência. A maneira como olha

as fontes, as problemáticas, é realmente inspiradora. Como orientadora, ela foi muito

compreensiva quando me senti perdida e precisava de ajuda. Isso é muito importante.

Page 6: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

Sensibilidade, sensatez, ao passo que também questiona, inquieta, cobra. As revisões

do texto são muito pertinentes, ela faz apontamentos sempre muito fundamentados,

de quem tem um olhar que vai além. É esse tipo de professora orientadora que eu

desejo para qualquer pesquisador em formação. É esse tipo de professora orientadora

que me inspira, e em quem quero me espelhar. Obrigada, Renata, por ser uma grande

referência para mim.

Antônio Paulo Rezende, meu querido co-orientador, trabalha pela perspectiva

da sensibilidade, do afeto. Assim é também na orientação. Ele nos faz sentir capazes,

quando estamos mais incrédulos de nosso potencial. Ele nos ouve. Dá importância a

nossas angústias, como pessoas e como pesquisadores em formação. Suas palavras

me inspiraram a pensar a narrativa da dissertação por uma ótica mais poética. A

narrativa da memória é o trançado onde dança o esquecimento. Obrigada, Antônio,

por me despertar um olhar mais amplo e sensível.

Um agradecimento especial às professoras Isabel Guillen e Virgínia Pontual,

que na banca de qualificação me deram muitos direcionamentos pertinentes.

À professora Virgínia Pontual, coordenadora do Laboratório de Urbanismo e

Patrimônio Cultural, LUP, e à todas as professoras e membros do Laboratório, pelas

contribuições e discussões enriquecedoras, muito obrigada. Em especial, agradeço à

profa. Maria Luiza Freitas, por ter me cedido seu computador para escrever a

dissertação, e à professora Natália Miranda, também vice coordenadora do programa

de pós-graduação, pelo apoio.

Dário Santos foi um colega que conheci no mestrado de História, que se tornou

amigo e fiel conselheiro. Eu digo que ele é meu terceiro orientador e que já é um

grande Mestre. Obrigada Darinho, por todas as indicações, orientações e conselhos.

Aos meus colegas da turma do MDU, pela construção conjunta do

conhecimento, em especial agradeço a Davi Valentim, que é sempre generoso em

compartilhar conhecimento, pela parceria e admiração mútua. Agradeço às colegas

Naru Ferraz, Karla Passos, Andreza Cruz e Aline Bacelar, por podermos contar umas

com as outras no processo.

Aos professores do mestrado, em especial Ana Rita Sá Carneiro e Luiz de la

Mora (in memoriam), por ensinar que a construção do conhecimento é um processo

de contínua desconstrução do eu.

Às secretárias da Coordenação do MDU, Renata Albuquerque e Carla, pela

paciência, solicitude.

Page 7: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

Obrigada à arquiteta doutoranda e colega de orientação Julia Pereira pelas

dicas, indicações e apoio.

Agradeço ao arquiteto do IPHAN-Olinda Philipe Sidharta Razeira, pelas

numerosas contribuições e sugestões, com quem pude contar desde o início.

Obrigada também à arquiteta do IPHAN-Olinda Vânia Cavalcanti, pela torcida e

contribuição valiosa, além do chefe do escritório técnico do IPHAN-Olinda, Fernando

Augusto, pelas discussões.

Ao arquivo central do IPHAN, pela boa receptividade para a pesquisa em

acervo, assim como a Andressa Aguiar, que me foi solícita em enviar o material para

pesquisa.

Aos amigos que acompanharam de perto nessa jornada Léuson, Marcella,

Gabriel, Daniel e Pedro, que, em tempos de muita turbulência emocional, foram

âncoras.

Aos queridos colegas da turma de História, por me mostrar que o processo de

aprendizagem é infinito e que nesta vida podemos chegar a um entendimento holístico

do mundo através da compreensão dos processos históricos. Obrigada Caio, Silvio,

Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus.

Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial

a Adriano Barbosa e Jucicleide Barbosa, por todo o apoio e suporte.

Page 8: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

A memória é uma ilha de edição - um qualquer

passante diz, em um estilo nonchalant,

e imediatamente apaga a tecla e também

o sentido do que queria dizer.

...

Esgotado o eu, resta o espanto do mundo não ser

levado junto de roldão.

Onde e como armazenar a cor de cada instante?

Que traço reter da translúcida aurora?

Incinerar o lenho seco das amizades esturricadas?

O perfume, acaso, daquela rosa desbotada?

...

Ela é recheada de locais de desova, presuntos,

liquidações, queimas de arquivos, divisões de capturas,

apagamentos de trechos, sumiços de originais,

grupos de extermínios e fotogramas estourados.

[...]

Trecho de “Carta Aberta a John Ashbery”, Waly Salomão.

Olinda,

Das perspectivas estranhas,

Dos imprevistos horizontes,

Das ladeiras, dos conventos e do mar.

Olho as palmeiras do velho seminário,

O horto dos jesuítas;

E neste mar distante e verde, neste mar

Numeroso e longo

Ainda vejo as caravelas...

Olinda, quando o luxo, o esplendor, o incêndio

E os Capitães-mores e os jesuítas

E os Bispos e os Doutores em Cânones e Leis.

[...]

Trecho de “Olinda”, Joaquim Cardozo, 1925.

Page 9: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

RESUMO

A presente dissertação parte da ideia de que existe uma memória cultural

urbana que é construída e portada através de meios e lugares de memória. Ao

perscrutar o processo de tombamento do conjunto urbanístico, paisagístico e

arquitetônico de Olinda, revelou-se algumas entrelinhas dessa memória cultural em

seu extrato oficial. Essa construção da memória oficial está relacionada com o

contexto político e com a construção da identidade que se pretendia para o Brasil na

época. Dentro da periodização proposta (1966-1980), a dissertação revela a memória

construída no discurso de seleção, reconhecimento e proteção do patrimônio cultural.

Dessa forma, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional se coloca como

sujeito construtor dessa memória oficial da cidade de Olinda, a qual viemos, então,

revelar. Ao entender que a memória cultural urbana é tudo aquilo que nos chega como

herança sócio cultural e baliza toda a nossa compreensão de mundo, devido às

permanências que provoca, assim como os traços culturais que traz em si, é essa

memória que nos dá referência de identidade, pertencimento e entendimento de

mundo. A partir da memória que é introjetada na vivência sócio cultural, respondemos

individual e coletivamente como portadores dessa memória. Isso implica em como nos

entendemos enquanto sociedade. A partir disso, no recorte do Sítio Histórico de

Olinda, vamos entender como parte da memória cultural urbana foi construída e nos

é portada desde o período proposto para a análise. Revelar essa memória cultural

urbana oficial é também revelar os processos de construção de nossa própria

identidade.

Palavras-chave: Memória Cultural Urbana. Olinda. Tombamento. Monumento

Nacional.

Page 10: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

ABSTRACT

This dissertation is based on the idea that there is an urban cultural memory

that is constructed and carried through means and places of memory. When examining

the preservation process of the urban, landscape and architectural complex of Olinda,

some lines of this cultural memory in its official extract were revealed. This construction

of the official memory is related to the political context and to the construction of the

identity that was intended for Brazil at the time. Within the given period (1966-1980)

the dissertation reveals the memory built up in the discourse of selection, recognition

and protection of cultural heritage. Thus, the National Historic and Artistic Heritage

Institute places itself as the constructor subject of the official memory of Olinda, which

we have come to reveal. When we understand that the urban cultural memory is all

that comes to us as socio-cultural heritage and that it guides our whole world

comprehension, due to the permanences that it causes, as well as the cultural traits it

brings itself, it is this memory that gives us reference of identity, belonging and

understanding of the world. From the memory that is introjected in the socio-cultural

experience, we respond individual and collectively as bearers of this memory. This

implies how we understand ourselves as a society. From this, in the historical site of

Olinda, we will understand how part of the urban cultural memory was constructed and

carried since the intended period for the analysis. Revealing this official urban cultural

memory is also revealing the process of building our own identity.

Keywords: Urban Cultural Memory. Olinda. Preservation. National Monument.

Page 11: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

LISTA DE IMAGENS

Imagem 1 – Capa do Volume I do Processo de Tombamento do conjunto

urbanístico, paisagístico e arquitetônico de Olinda-PE,

processo nº 674 -T- 62............................................................. 67

Imagem 2 – Projeto Rede de Arquivos do IPHAN....................................... 75

Imagem 3 – Coluna do Correio da Manhã de 24/04/1968, processo nº 674-

T-62.......................................................................................... 82

Imagem 4 – Certificação do Tombamento do Conjunto Arquitetônico e

Urbanístico da cidade de Ouro Preto-MG em fevereiro de

1938. Processo nº 70-T-38...................................................... 96

Imagem 5 – Fotografia da Antiga residência e colégio dos Jesuítas e Igreja

de N. Senhora das Graças....................................................... 101

Imagem 6 – Referência da Fotografia Anterior, datada de 1967................. 101

Imagem 7 – Foto Panorâmica tirada de um ponto próximo à fronteira da

Sé, onde se veem: em primeiro plano, telhados das casas da

Ladeira de São Francisco; em segundo plano, ao centro: a

Igreja de N. Senhora do Carmo, à direita, o Mosteiro e Igreja

de São Bento, a Igreja de São Pedro; e aos fundos,

Recife...................................................................................... 102

Imagem 8 – Desenho, em linha tracejada, da Poligonal de Tombamento

proposta pelos arquitetos citados. Processo nº 674-T-62........ 106

Imagem 9 – Cópia Autêntica do Tombamento do conjunto urbanístico,

paisagístico e arquitetônico de Olinda-PE. Processo nº 674-T-

62............................................................................................. 112

Imagem 10 – Decreto que erige Ouro Preto em Monumento Nacional, de

1933......................................................................................... 115

Imagem 11 – Trecho do Jornal O Globo, de 7 de setembro de 1972,

constante no processo 674-T-62.............................................. 122

Page 12: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

Imagem 12 – Telex enviado de Renato Soeiro para Jarbas Passarinho

sobre a urgência de providências sobre a destruição de

Olinda. Data de 19 de outubro de 1972..................................... 132

Imagem 13 – Trecho do Jornal do Commercio de 3 janeiro de 1973. Consta

no Processo 674-T-62, Vol. 3, pp. 44. Série Tombamento........ 134

Page 13: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

LISTA DE TABELAS

Tabela 1 – Bens Móveis e Imóveis inscritos nos Livros do Tombo do

Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional em

Olinda, até 1968........................................................................ 85

Page 14: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

Arena Aliança Renovadora Nacional

BNDES Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social

CFC Conselho Federal de Cultura

CNV Comissão Nacional da Verdade

CONARQ Conselho Nacional de Arquivos

CPDOC Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea

do Brasil

DPHAN Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional

FGV Fundação Getúlio Vargas

FUNDARPE Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado de

Pernambuco

ICEI Instituto de Cooperação Econômica Internacional

ICOMOS Conselho Internacional de Monumentos e Sítios

IHGB Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro

IPHAN Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional

MDB Movimento Democrático Brasileiro

MEC Ministério de Educação e Cultura

PCH Programa Integrado de Reconstrução das Cidades Históricas

PDLI Plano de Desenvolvimento Local Integrado

SPHAN Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional

UNESCO Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a

Cultura.

Page 15: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO. A MEMÓRIA É UMA ILHA DE EDIÇÃO................. 16

1.1 Caracterização do Problema........................................................... 16

1.2 Objetivos geral e específicos.......................................................... 21

1.3 Referencial teórico e diálogos historiográficos............................ 22

1.4 Procedimentos Metodológicos....................................................... 26

1.5 Estruturação da Dissertação........................................................... 27

2 O PATRIMÔNIO A PARTIR DA MEMÓRIA: ESCOLHAS TEÓRICAS.........................................................................................

30

2.1 Macondo como representação do mundo. Atenas como representação da vida.....................................................................

30

2.2 Mnemósyne e Clio – O mito da memória....................................... 35

2.3 A memória e o paradoxo da lembrança......................................... 39

2.4 Cidade: memória e patrimônio........................................................ 47

2.5 Lugares de memória e a memória dos lugares............................. 51

3 DO TEXTO AO CONTEXTO. A DITADURA E A CONSTRUÇÃO DA MEMÓRIA OFICIAL....................................................................

57

3.1 Do universo da memória urbana ao recorte da memória oficial.. 57

3.2 Ditadura Militar e as reverberações no IPHAN.............................. 61

3.3 Processo, Arquivo e os Armazenadores da memória................... 65

3.4 Comissão Nacional da Verdade e o Direito à memória................ 71

4 UMA OLINDA CRISTÃ E VERDE. DO TOMBAMENTO (1966-1968)..................................................................................................

76

4.1 E esqueceste a velha Olinda, distraída?........................................ 79

4.2 Dos monumentos barrocos ao conjunto urbanístico................... 93

5 A MARTIRIZADA OLINDA CONTA A HISTÓRIA PÁTRIA. DO MONUMENTO (1972-1980)...............................................................

113

5.1 Do monumento ao tombamento e vice-versa................................ 113

Page 16: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

5.2 A martirizada Olinda........................................................................ 121

5.3 Olinda, Monumento Nacional.......................................................... 135

6 A MEMÓRIA DE OLINDA REVELADA. CONSIDERAÇÕES FINAIS...............................................................................................

140

REFERÊNCIAS................................................................................. 146

APÊNDICE A – DOCUMENTOS......................................................... 152

ANEXO A – IMAGEM 7...................................................................... 153

ANEXO B – IMAGEM 8...................................................................... 154

Page 17: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

16

1 INTRODUÇÃO. A MEMÓRIA É UMA ILHA DE EDIÇÃO

Nas palavras do poeta Waly Salomão, a memória é lugar de constante edição daquilo

que é visto, entendido, assimilado pela percepção; é também o lugar onde tudo é

monitorado e escolhido; escolhe-se quais imagens, quais perspectivas irão

representar o fato. Esse processo de seleção, edição, escolha, implica,

necessariamente, na exclusão de outras imagens. Memória é manipulação. É também

silenciamento e esquecimento. O que se recorda é fruto de escolha, cuja intenção tem

relação com os jogos de poder. Escolhe quem está no poder.

Olinda, como cidade patrimônio, é também objeto de escolhas. O patrimônio, aliás, é

a própria seleção daquilo que é representativo de determinada sociedade. O que

permanece é o que se deve recordar. No jogo da memória, o patrimônio é a

permanente recordação do traço que constrói identidade. A cidade é patrimônio, mas

também discurso. Memória e patrimônio não estão descolados de uma realidade

exterior e complexa que orquestra a recordação através dos instrumentos do poder.

Esta dissertação trata da memória cultural urbana, em seu extrato oficial, mostrando

a Olinda construída nas ações preservacionistas do IPHAN.

1.1 Caracterização do Problema

O problema central de uma pesquisa é aquela questão que inquieta o pesquisador,

que o desperta para o entendimento mais profundo do que está envolvido nesse

determinado extrato da realidade, quem são os sujeitos, qual o contexto, quais são as

incógnitas da equação. O problema central desta dissertação gira em torno da

memória cultural. Diante do problema empírico, elaboramos mentalmente as relações

e partimos para aquilo que o esclareça, que aprofunde o nosso conhecimento do

mundo. Desde o entendimento do conceito até a elaboração da pergunta plausível, a

presente pesquisa relaciona a memória cultural e o objeto de estudo: Olinda.

A priori, comecei a questionar as relações entre memória e patrimônio cultural. Me

inquietava o fato de estudar alguns textos e correntes teóricas dentro do patrimônio

Page 18: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

17

cultural que muito mais falam sobre a materialidade e os desafios da conservação dos

aspectos estilístico e formal. Obviamente tudo tem sua importância dentro do

processo de construção do conhecimento. A conservação do patrimônio cultural e

suas disciplinas mais aplicadas ao restauro e teorias afins são imprescindíveis até

mesmo para a discussão do que o patrimônio significa enquanto memória. Mas o que

me inquietava era precisamente essa relação. De que forma estava a memória

epistemologicamente ligada ao patrimônio cultural e por que vivemos uma época em

que o significado do patrimônio, a história que ele traz e as vivências que representa

são sobremaneira relegadas? Como se houvesse um processo de esquecimento do

que o patrimônio representa, de que vivências passadas ele é testemunho.

Essa percepção empírica me levou a questionamentos sobre o que é memória

coletiva, histórica e cultural, e o contato com novas bibliografias foi-me dando novas

percepções e instrumentos de discussão e análise. Como diz Huyssen (2000, pp. 9),

vivemos uma época de “emergência da memória, como uma das preocupações

culturais e políticas centrais das sociedades ocidentais”.

Desde o início, sabia que meu “objeto de estudo” seria Olinda. É a cidade que

investiguei no trabalho de graduação, e onde também tive experiência profissional de

estágio no IPHAN. É uma cidade com importância nacional e mundial, por ser

patrimônio da humanidade. Mas mais do que isso: é que Olinda me encanta.

Olinda se coloca como o objeto de estudo que mostrará o processo de disputas pela

representação da memória. O esforço de historicizar o processo de patrimonialização

mostra a desnaturalização do patrimônio cultural e seu entendimento como criação de

memória.

A aproximação com a ideia de memória cultural foi me dando as ferramentas para

elaboração do problema central da pesquisa. Inserido no campo dos Estudos

Culturais, o tema de minha pesquisa é precisamente a Memória Cultural Urbana.

Tema interdisciplinar, encontra fundamentação teórica em estudos realizados nas

áreas de História Urbana e Arquitetura e Urbanismo. Aliás, se for partir da minha

principal referência teórica, Aleida Assmann, em seu livro Espaços da Recordação,

Formas e transformações da Memória Cultural, posso dizer que a questão da

memória caminha ainda por áreas tão diversas como teoria da literatura, cultura e

mesmo história da memória.

Page 19: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

18

A memória cultural é essa memória que ultrapassa a memória dos humanos, que está

para além da memória geracional e coletiva; seria o entendimento mais próximo da

memória que é construída e herdada como signo da cultura e sob forma de cultura. A

memória que lança bases de uma identidade comum sem necessariamente pertencer

a um grupo fechado que comunica essa memória através das gerações, é algo que

transcende esse processo, como fala a autora quando diz que ela “pode ultrapassar

amplamente a memória dos seres humanos” (Assmann, 2011, p. 17). Além disso,

relaciona-se com o exercício do poder:

[...] a memória coletiva foi posta em jogo de forma importante na luta das

forças sociais pelo poder. Tornarem-se senhores da memória e do

esquecimento é uma das grandes preocupações das classes, dos grupos,

dos indivíduos que dominaram e dominam as sociedades históricas. Os

esquecimentos e os silêncios da história são reveladores desses mecanismos

de manipulação da memória coletiva. (LE GOFF, 2003, p. 422)

Fazendo-nos entender que a construção da memória é sempre um jogo político,

muitas vezes está também relacionado à ideia da guerra pela memória, refletindo as

relações de poder vigentes. Entendo que a memória cultural urbana é a construção

desse “processo social de esquecer e recordar” a cidade (ASSMAN, 2011, p. 441).

Aliás, englobe-se ao entendimento de cidade os conjuntos urbanos e os bens culturais

que a compõem. Sobre essas pedras são edificadas as representações de uma

sociedade e de sua identidade nacional, através de processos de seleção,

reconhecimento e proteção do chamado Patrimônio Cultural.

No campo do Patrimônio Cultural, por sua vez, é possível entender, a partir de um

processo de alargamento desta noção, a importância da cultura e da memória como

fundamentos epistemológicos do que se entende enquanto Patrimônio Cultural. Por

isso, estudar a questão da memória está, em sua própria natureza conceitual,

relacionada com a questão dos bens culturais e de sua conservação.

Para efeito de justificativa epistemológica da questão, nos interessa falar sobre

memória pelo esforço de pensar o patrimônio cultural a partir de uma perspectiva que

vai no cerne de sua constituição, cultura e memória, trazendo a compreensão de que

a cultura construtiva dos locais vai além de estilos e padrões estéticos, mas contém e

porta referências culturais, histórias, acontecimentos, significados, e a força simbólica

dos lugares, que é intangível, despertando então para uma discussão que trata

Page 20: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

19

patrimônio cultural edificado para além da materialidade, entrando no limiar entre

matéria e significado. Para Carsalade,

A noção de Patrimônio Cultural contemporânea é muito mais ampla do que

aquela que se fazia há poucas décadas atrás, quando ela se estabelecia

apenas sobre os pilares da história e da arte, época em que a

excepcionalidade artística ainda tutelava o reconhecimento histórico. [...] Dois

conceitos fundamentais para o entendimento contemporâneo do patrimônio

– a cultura e a memória - não foram explorados, mas apesar disso, a prática

contemporânea aplica a teoria brandiana indiscriminadamente aos bens a

serem preservados, desconhecendo que toda ela foi estabelecida apenas

com relação às obras de arte, hoje apenas uma parcela de nosso vasto

patrimônio. (CARSALADE, 2011, p.1).

O esforço de entender a memória como constituinte do patrimônio cultural pode

apontar caminhos para compreender que o lugar não subsiste sem sua história, sua

memória. O que é patrimônio cultural, senão a herança de uma vivência, de uma

produção, de uma construção muito além do cal e da pedra, construção que lança os

fundamentos de uma identidade coletiva?

Eu parto da ideia de que existe uma memória cultural da cidade de Olinda que reside

nas mais diversas mídias, como diz Assmann (2011) e que, através de procedimentos

analítico-interpretativos da documentação selecionada (documentação essa que é um

recorte plausível das mídias da memória), me permite interpretar essa memória ou

trazê-la analiticamente à tona, à superfície da lembrança. A análise se debruça

especificamente sobre mídias relacionadas à construção de uma memória oficial da

cidade, sendo, portanto, um substrato substancial da memória urbana. Chamo de

memória oficial porque é a memória criada pelas ações do órgão federal de

preservação do patrimônio histórico. Isso me leva a questão central: Que memória

cultural de Olinda é construída a partir do processo de tombamento do IPHAN?

O IPHAN, neste trabalho, é entendido como sujeito criador dessa memória oficial da

cidade de Olinda, mesmo entendendo que não se trata de uma instituição coesa, visto

que os agentes e as vozes dentro do jogo institucional são, muitas vezes, dissonantes

e outras vezes subalternos aos interesses que estão por trás das políticas de

patrimônio, o objetivo da dissertação está mais relacionado a descobrir a narrativa da

memória da cidade do que necessariamente discutir as dissonâncias dentro da

Page 21: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

20

instituição, mais uma vez compreendendo os recortes necessários e possíveis dentro

da pesquisa do mestrado.

Essa pergunta central gera várias inquietações adjacentes. Dentro da busca pela

memória cultural de Olinda, atendendo ao extrato “oficial” dessa memória, que traços

culturais são levados ao esquecimento? Quais são as lacunas dessa memória? Que

sociedade essa memória representa, ou que grupos sociais? Quais as intenções

políticas relacionadas a essa memória cultural urbana? As perguntas são suscitadas

ao longo do trabalho como recurso narrativo que abre portas e levanta questões não

necessariamente respondidas, visto que, como dissertação de mestrado, delimita-se

à questão temporal e aos objetivos a atingir. É pertinente, porém, deixar questões

abertas não só à reflexão, como também a possíveis futuras pesquisas.

A espacialidade proposta, para não falar em recorte, é o Sítio Histórico de Olinda. O

processo de tombamento tem início em 1966 e os processos de patrimonialização de

Olinda seguem até hoje em curso. Dentro dessa temporalidade, fiz o recorte que vai

de 1966 a 1980 para investigação na presente pesquisa. O ano de 1980 marca a

nomeação de Olinda como Monumento Nacional. Proponho, na narrativa aqui

construída, como será visto adiante, duas periodizações: a primeira (1966-1968) trata

especificamente do tombamento e a segunda (1972-1980) trata da Olinda Monumento

Nacional. A temporalidade proposta traz, portanto, o contexto político da Ditadura

Militar, e isso implicará na análise dessa construção memorial.

Em relação à justificativa para a pesquisa proposta, além de acreditar estar

contribuindo para o avanço da História e da Ciência no Brasil, e por conseguinte,

acrescentando um tijolinho na construção do conhecimento, que são em si

justificativas tão mais amplas quanto pertinentes para qualquer pesquisa, acredito que

estudar a construção da memória oficial de Olinda em um período de repressão militar,

cheio de entrelinhas e esquecimentos compulsórios, é trazer à tona memórias

reveladas, discutir que sociedade ou que estratos da sociedade são representados

por essa memória construída e o que esse tipo de tombamento significava para a

construção da identidade nacional do Brasil à época.

É importante falar de memória sobretudo em um momento em que a memória nacional

tem sido lacerada, a exemplo da perda trágica do Museu Nacional e seu acervo

inigualável, de valor inestimável, como também pelas ameaças que nossa jovem

Page 22: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

21

democracia tem sofrido com declarações de figuras políticas que remontam ideais

autoritários, apologia à ditadura e à tortura e enunciados que violentam a História do

Brasil, distorcendo em completude aquilo que os historiadores construíram enquanto

conhecimento histórico, em total desrespeito não apenas ao trabalho dos historiadores

como, sobretudo, aos cidadãos brasileiros.

O estudo da memória não é importante apenas para a História do Brasil ou para a

Conservação do Patrimônio Cultural, mas também para entender nossa sociedade

hoje, de que forma delineamos uma suposta identidade nacional, que tipos de

esquecimento ou lacunas da memória nacional ainda persistem e de que forma a

herança cultural que nos chega pode ser interpretada como seletiva e representante

de determinadas vontades políticas do período da Ditadura, nos levando a tentar

entender o que é a memória cultural urbana construída hoje. A pesquisa é importante

não só para historiadores ou profissionais do patrimônio, mas para uma nação que

está em constante processo de construção de sua memória.

1.2 Objetivos geral e específicos

O objetivo geral desse estudo é chegar a uma narrativa do que é a memória cultural

urbana na Olinda do IPHAN.

Como objetivos específicos, podemos propor:

Chegar a apontamentos teóricos sobre o conceito de memória cultural urbana,

em diálogo com os estudiosos de memória, como Assmann, Le Goff e Nora, de

forma a trazer para a realidade brasileira a aproximação mais pertinente do

conceito.

Fazer análise interpretativa dos documentos que compõem o processo de

tombamento do conjunto urbanístico, paisagístico e arquitetônico de Olinda, o

processo 674-T-62.

Analisar o processo de tombamento de forma a delinear que tipo de identidade

nacional se buscava no período. Construir a ideia de memória cultural urbana

a partir dos bens culturais que receberam proteção até culminar no

Page 23: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

22

tombamento do conjunto urbano, e a partir de aí problematizar que significados

tem essa memória oficial, e de que esquecimentos ela está imbuída.

Discutir a relação entre memória e esquecimento dentro da perspectiva da

força política da construção da memória oficial, com a finalidade de delinear

que esquecimentos compulsórios acontecem e por quê. Quais são as “lacunas”

da memória nacional? Que valores e memória social são representados pelos

bens culturais salvaguardados e que grupos são porventura “esquecidos”.

Entender o que esse jogo de memória e esquecimento significa para a

construção da identidade nacional na época pode apontar que possíveis

rebatimentos essa estruturação tem em nossa sociedade contemporânea.

Entender a Olinda Monumento Nacional e que relações há entre esse pleito e

os valores baseados no patriotismo e nacionalismo da época da ditadura

militar.

1.3 Referencial teórico e diálogos historiográficos

Minha proposta de pesquisa envolve, claramente, para além da análise documental,

uma elucubração sobre o conceito de memória, que desenvolvo no primeiro capítulo.

Acredito que, como mestranda, não tive a maturação intelectual necessária para

propor um conceito, ou uma nova perspectiva para o conceito, portanto, me coube

assimilar uma construção das noções de memória a partir da revisão bibliográfica.

Partindo da interlocução entre três autores que tratam do conceito de memória,

Assmann, Le goff e Nora, construo o quadro teórico a partir do qual desenvolvi minha

pesquisa, considerando os conceitos desenvolvidos por esses autores,

respectivamente a memória cultural, a memória histórica e social e os lugares de

memória.

Como já citada anteriormente, minha principal referência teórica é a alemã Aleida

Assmann em seu livro Espaços da Recordação, Formas e transformações da Memória

Cultural. A obra é a chave do conceito de memória cultural, como citado na

Introdução. Cabe mostrar que, para Assmann:

A comunicação entre épocas e gerações interrompe-se quando um dado

repositório de conhecimento partilhado se perde. [...]. Há então um paralelo

Page 24: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

23

entre memória cultural, que supera épocas e é guardada em textos

normativos, e a memória comunicativa, que normalmente liga três gerações

consecutivas e se baseia nas lembranças legadas oralmente. (ASSMANN,

2011, p. 17).

Assim sendo, a memória cultural está para além da memória “geracional”,

transcendendo a noção de grupo e podendo abarcar, por exemplo, a ideia de memória

nacional. O que signos de gerações passadas comunicam sobre a história e vivência

daqueles grupos que importaria para o entendimento de quem somos hoje enquanto

sociedade?

Assmann fala sobre a memória dos locais, que é uma contribuição riquíssima à ideia

de memória e sua relação com os bens culturais. Ela defende “[...] que os locais

possam tornar-se sujeitos, portadores de recordação e possivelmente dotados de uma

memória que ultrapassa amplamente a memória dos seres humanos” (Assmann,

2011, p. 317).

Assmann também fala que a memória cultural depende de mídias e de políticas, já

que “no nível coletivo e institucional esses processos são guiados por uma política

específica de recordação e esquecimento”, o que reforça a ideia da guerra de

memórias, e que a memória nacional é moldada segundo intenções políticas bem

definidas, o que precisamente iremos desenvolver na pesquisa proposta.

Le goff, no clássico História e Memória, traz já uma trajetória do conceito, debruçando-

se sobre a memória dentro da história e da antropologia, mas trazendo conceitos

freudianos, por exemplo, que ajudam a entender os mecanismos psíquicos que regem

a balança entre recordação e esquecimento, mostrando que o entendimento de

memória em outros campos do conhecimento pode servir como metáfora para o

entendimento das memórias social e histórica. Além de explorar os mais diversos

entendimentos de memória, desde a mitologia grega até os desenvolvimentos da

cibernética sobre a memória, ele, como um bom medievalista, traz a ideia da memória

medieval no Ocidente e trabalha o conceito até seus desenvolvimentos

contemporâneos.

Contemporâneo e colega de Le Goff, Pierre Nora é o historiador francês que vem

desenvolver o conceito de Lugares de Memória, em seus estudos na École des Hautes

Études, a partir de 1978. Como bem situam Oliveira e Tedeschi,

Page 25: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

24

Os lugares de memória, para Nora, são lugares, com efeito, nos três sentidos

da palavra: material, simbólico e funcional simultaneamente, somente em

graus diversos. Em sua complexidade pertencem ao domínio do simples e do

ambíguo, do natural e do artificial, do diretamente oferecido à experiência

sensível e, ao mesmo tempo, à abstrata elaboração. Os lugares de memória

nascem da vontade de memória (OLIVEIRA E TEDESCHI, 2011, p. 52).

A princípio, esse conceito deu o aporte teórico que eu precisava para conseguir falar

do Patrimônio Cultural pela perspectiva da memória, falar da intangibilidade

praticamente invisível nos discursos patrimoniais, falar das cidades históricas não

apenas como amontoados de pedra e cal, ou de valores imagéticos ou estéticos como

são os valores artístico e histórico, mas para falar de valores enquanto memória, falar

dos significados e histórias portados por esses sítios. Lugares de memória expressam

dimensões além da matéria, como as relações indissociáveis entre matéria e

significado.

Além da minha tríade Assmann, Le Goff e Nora, tem muitas contribuições sobre o

entendimento de memória que enriquecerá essa construção teórica autores como

Ruskin, na Lâmpada da Memória; teóricos da memória como Halbwachs, na memória

coletiva e Jeanne Marie Gagnebin, quando fala da “morte da memória” em seu livro

Sete aulas sobre linguagem, memória e história; e Andreas Huyssen, que vem

tratando da “onda memorial” que tem marcado os estudos a partir da década de 1990,

como um fenômeno de “emergência da memória como uma das preocupações

culturais e políticas centrais das sociedades ocidentais” (Huyssen, 2000, p. 9).

Com essa dissertação se quer dialogar, também, com estudos dedicado a entender a

atuação do IPHAN e os processos de ruptura e continuidades na seleção do que

preservar e para quem preservar, a exemplo do recente texto de Marins (2016), citado

nas conclusões, em que faz um balanço das políticas patrimoniais no Brasil após

1980.

Outras obras que me foram essenciais no pensamento das políticas preservacionistas

do IPHAN foram O Patrimônio em Processo. Trajetória da política federal de

preservação no Brasil, de Cecília Londres Fonseca; A tese de doutorado de Ana Paula

da Silva, O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (iphan) e a Construção

da Memória Histórica Nacional por meio dos Bens Culturais Imóveis Inscritos no Livro

do Tombo Histórico (1937-1985); Sérgio Miceli, num texto sobre o IPHAN como

Page 26: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

25

“refrigério da cultura oficial” e o texto de Marcia Chuva e Laís Lavinas O Programa de

Cidades Históricas (PCH) no Âmbito das Políticas Culturais dos anos 1970: Cultura,

Planejamento e Nacional Desenvolvimentismo, que cita o contexto político do regime

militar. Pontual e Milet no artigo Olinda, Memória e Esquecimento, trazem uma

primeira discussão sobre a memória urbana relacionada a “que práticas urbanísticas

levam ao esquecimento ou a memória da história do lugar? ” (PONTUAL E MILET,

2002, p. 40). O texto busca em documentos e relatos de memorialistas traços da

memória da cidade, fazendo uma reconstrução da memória histórica de Olinda e

trazendo a discussão das práticas urbanísticas que revelam ou escondem essa

história em suas ações. Minha proposta para o entendimento da memória urbana

parte, porém, das ações do IPHAN como sujeito que cria a memória oficial da cidade

a partir do processo de tombamento, o que difere, portanto, do artigo pioneiro de

Pontual e Milet.

Esses trabalhos ao mesmo tempo me dão embasamento e dialogam com meu

propósito de pesquisa: a busca da narrativa da memória cultural urbana – oficial-

construída sobre Olinda nas políticas e ações preservacionistas do IPHAN. Centrar

atenção numa determinada memória de Olinda, a oficial, me possibilitou não ter que

ir, obrigatoriamente, a pesquisas já feitas sobre outras memórias culturais urbanas de

Olinda e outros agentes1.

1 Sobre participação dos moradores nos processos de salvaguarda em Olinda ver dissertação de

Juliana Barreto, De Montmartre nordestina a mercado persa de luxo: o Sítio Histórico de Olinda e a

participação dos moradores na salvaguarda do patrimônio cultural (UFPE, 2008).

Page 27: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

26

1.4 Procedimentos metodológicos

As fontes da pesquisa são os documentos constantes no processo de tombamento do

conjunto urbanístico, paisagístico e arquitetônico de Olinda, o processo 674-T-62, da

Série Tombamento, do IPHAN. Como veremos no desenrolar do trabalho, esses

documentos também são considerados mídias nas quais se ancora a memória da

cidade, conforme Assmann (2011). Além do processo de tombamento, a ida ao

Arquivo Noronha Santos me propiciou o contato com documentos constantes na Série

Inventário, onde pude encontrar algumas fotografias da cidade, inclusive algumas

citadas no próprio processo de tombamento, mas não constates nele.

O Arquivo Noronha Santos, arquivo central do IPHAN, localizado no Palácio Gustavo

Capanema (Temporariamente realocado para o Centro Empresarial Teleporto, Cidade

Nova, RJ) é o principal arquivo para a pesquisa documental da pesquisa.

Dialogando com a História Cultural, que tem ampliado não só as temáticas estudadas

como também a validade das diversas naturezas de fontes históricas, ainda que

estejamos propondo análise de documentos “oficiais”, propõe-se analisar os

documentos buscando a construção da memória, a representação dessa memória no

discurso e na seleção proposta pelo tombamento para qual cidade salvaguardar para

a memória nacional. Como lembra Pesavento,

O que cabe destacar é a abordagem introduzida pela História Cultural: ela

não é mais considerada só como um locus, seja da realização da produção

ou da ação social, mas sobretudo como um problema e um objeto de reflexão.

Não se estudam apenas processos econômicos e sociais que ocorrem na

cidade, mas as representações que se constroem na e sobre a cidade. Indo

mais além, pode-se dizer que a História Cultural passa a trabalhar com o

imaginário urbano, o que implica resgatar discursos e imagens de

representação da cidade que incidem sobre espaços, atores e práticas

sociais (PESAVENTO, 2008, p.78).

A análise interpretativa dos documentos é a busca da memória da cidade no discurso.

Na primeira parte analítica, busco, no tombamento, a memória oficial criada da cidade

de Olinda, a partir daquilo que se selecionou e o contexto das intenções dos agentes

envolvidos no processo. A exemplo, monto tabela que permite a comparação

cronológica dos bens culturais tombados antes do tombamento da cidade enquanto

Page 28: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

27

conjunto, para que seja possível uma leitura comparada e holística do que é o

patrimônio urbano de Olinda construído desde os primórdios do IPHAN.

Na segunda parte analítica, busco, no pleito de transformar Olinda em Monumento

Nacional, a memória oficial criada a partir dos valores e entrelinhas que viam no

Regime Militar a principal força para a preservação da cidade, de modo a buscar uma

ratificação dos valores defendidos pelo regime.

1.5 Estruturação da dissertação

Componho a análise a partir de cinco capítulos.

1 – Capítulo Teórico- O Patrimônio a Partir da Memória: Escolhas Teóricas

Momento de investigação e construção de diferentes perspectivas sobre a memória.

A partir da revisão da contribuição de alguns autores como Aleida Assmann, Pierre

Nora, Jacques Le Goff e Maurice Halbwachs, construo a ideia de memória que será

trabalhada durante toda a dissertação, ao passo que faço a costura com o conceito

de patrimônio cultural, buscando então o nexo do que seria o conceito central do

trabalho: memória cultural urbana.

2 – Capítulo Contextual- Do Texto ao Contexto, A Ditadura e a Construção da Memória

Oficial

Neste capítulo, falo sobre a memória cultural urbana em seu universo e explico o

recorte escolhido a ser analisado na pesquisa, a memória oficial, relacionada às ações

preservacionistas do órgão oficial de preservação do patrimônio cultural. Também

exploro a relação entre o IPHAN e a Ditadura Militar. Falo sobre as fontes da pesquisa,

o arquivo como armazenador de memória e as relações de poder que regem o direito

à memória.

3 – I Capítulo analítico– Uma Olinda Cristã e Verde. Do Tombamento (1966-1968)

Page 29: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

28

Momento de análise do discurso dos agentes envolvidos no tombamento de Olinda.

As várias naturezas de documento que compõem o processo são analisadas e

relacionadas ao contexto vivido, em busca da criação da memória cultural de Olinda

na preservação dos bens culturais. É no discurso que encontro a memória revelada

de Olinda e trago à superfície da lembrança.

4 – II Capítulo analítico– A martirizada Olinda conta a História Pátria. Do Monumento

(1972-1980)

Novamente, análise de documentos que compõem o processo, mas agora uma nova

periodização e um novo nexo para a memória cultural urbana: o entendimento de

Olinda enquanto Monumento Nacional, buscando relacionar o discurso ao contexto

histórico e aos valores pretendidos na criação desta memória urbana.

5 – Capítulo conclusivo- Memória de Olinda revelada. Considerações finais.

A partir da contribuição dos capítulos anteriores e daquilo que a análise documental

revelou, apresento considerações sobre a memória cultural de Olinda, mostrando

tanto os traços memoriais que foram ressaltados nos documentos, quanto a relação

política da construção da memória oficial, de forma a revelar Olinda em sua faceta

oficial que se apresenta como memória cultural urbana.

Page 30: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

29

A índia, porém, explicou a eles que o mais terrível da

enfermidade da insônia não era a impossibilidade de dormir,

pois o corpo não sentia cansaço algum, mas sua inexorável

evolução rumo a uma manifestação mais crítica: o

esquecimento. Queria dizer que quando o enfermo se

acostumava com seu estado de vigília, começavam a se

apagar de sua memória as recordações da infância, depois o

nome e a noção das coisas, e por último a identidade das

pessoas e a consciência do próprio ser, até afundar numa

espécie de idiotice sem passado.

García Márquez em Cem anos de solidão, p.86.

Page 31: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

30

2 O PATRIMÔNIO A PARTIR DA MEMÓRIA: ESCOLHAS TEÓRICAS

2.1 Macondo como representação do mundo. Atenas como representação da

vida

A importância da memória, no trecho supracitado, é mostrada a partir das

consequências que o esquecimento geraria, não apenas para a identidade, o saber

quem se é, como para a completa noção daquilo que nos cerca: uma espécie de

sequela que García Márquez chama de “idiotice sem passado”.

Enquanto alegoria, esse trecho nos serve bem para introduzir e discutir a importância

da memória, entendida, neste caso, como a faculdade de registrar lembranças (a partir

também de seu negativo, o esquecimento), de forma que o todo constitui um conjunto

dotado de sentido, capaz de representar identidades - e a isto caibam as questões

mais ontológicas - assim como de fornecer um complexo de referências sobre o

mundo, sobre as pessoas, sobre a vivência.

Esquecimento não é contrário à memória, faz parte dela. É preciso esquecer para

lembrar. É uma situação problemática, porém, quando esse esquecimento afeta as

referências daquilo que nos faz entender quem somos e o que é mundo ao nosso

redor. Por que a importância da memória é dada pelo que seria o estado crítico do

esquecimento? É isso que a alegoria proposta em Cem anos de solidão nos remete,

ao mostrar que, fazendo parte da faculdade memorial, o esquecimento pode chegar a

afetar determinadas lembranças que seriam cruciais para a construção das

identidades.

Porque a correção da memória pesa definitivamente sobre o indivíduo e

somente sobre o indivíduo, como sua revitalização possível repousa sobre a

sua relação pessoal com seu próprio passado. A atomização de uma

memória geral em memória privada dá à lei da lembrança um intenso poder

de coerção interior. Ela obriga cada um a se lembrar e a reencontrar o

pertencimento, princípio e segredo da identidade (NORA, 1993, p. 12).

Quando os personagens de García Márquez são atingidos pela peste da insônia e,

como consequência, passam pelos episódios de evasão da memória, eles acabam

não apenas esquecendo o nome das coisas, mas “até os fatos mais impressionantes

Page 32: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

31

de sua infância”. Como artifício de manter a memória e a referência daquilo que os

circundava, eles começaram a marcar todas as coisas com seus respectivos nomes:

“mesa, cadeira, relógio, porta, parede, cama, caçarola”2.

Essa alegoria é ótima para entender a transição de uma memória vivida na oralidade

para a escrita. Etiquetavam as coisas ao redor para não esquecer o que eram, para

que serviam. No momento em que a memória se esvai, procuram desesperadamente

gatilhos de memória. Anotar para não esquecer. Em se esquecendo, anotavam os

nomes das coisas. A salvação da memória se dava pela própria rememoração em

signos exteriores ao corpo. A memória viva transformava-se, então, numa prótese.

Essa transição da oralidade para a escrita é, no diálogo de Fredo3, chamada de “a

condenação platônica da escrita”. Platão fala sobre os “limites internos da

comunicabilidade”. Na Atenas de Platão, a escrita ganhava espaço com a difusão do

livro, mas a palavra oral continuava tendo força de constituição das identidades,

através dos poetas. Sobre a transição cada vez mais crescente da palavra oral para

a escrita, Platão resiste:

As resistências de Platão são de outra ordem: remetem aos deslocamentos

socioculturais que a difusão do texto escrito provoca em relação à tradição e

à memória coletivas. Enquanto o poeta, na época arcaica, era o detentor de

uma memória que permitia, graças a essa palavra sagrada, dádiva das Musas

ao serviço de Apolo, a um povo inteiro de se construir e de se assegurar uma

identidade, a transferência cada vez maior dessa “função de tesaurização

mnêmica” ao escrito acarreta, simultaneamente, sua democratização e sua

dessacralização, isto é, segundo Platão, a banalização até a perversão da

atividade do lembrar (GAGNEBIN, 2005, p.51).

Esse processo de marcar as coisas com seus respectivos nomes, em Macondo, é

uma alegoria para mostrar que a memória se evadia da função psíquica do corpo e ia

se ancorar, então, em suportes externos. A escrita, neste caso, é o suporte “que

removeu a memória de dentro do ser humano e a tornou fixa e independente dos

portadores vivos” (Assmann, 2011, p. 367). Pode-se entender, então, que, para

2 García Márquez, Cem anos de solidão, 2011, Record, p.89.

3 Texto da filosofia grega clássica em que Platão descreve Sócrates em diálogo com Fredo, nas

margens de um rio. Platão, entre outras temáticas, revela sua baixa confiança em qualquer discurso

fixado na escrita, o que vem a ser conhecido como “condenação platônica da escrita”.

Page 33: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

32

Platão, a escrita dessacralizava a memória à medida que a ancorava em um suporte

exterior ao corpo. Para Gagnebin (2005, p. 51) “Mnemósyne retira-se e deixa lugar à

fidelidade exangue do rastro escrito, acessível a todos, mas – ou talvez, segundo

Platão, muito mais por isso mesmo – desprovido do segredo que garantia a plenitude

da palavra rememoradora. ”

Mas, García Márquez vai além na evasão da memória:

Pouco a pouco, estudando as infinitas possibilidades do

esquecimento, percebeu que podia chegar o dia em que as

coisas seriam reconhecidas por suas inscrições, mas ninguém

se lembraria de sua utilidade. Então foi mais explícito. O letreiro

que pendurou no cachaço da vaca era uma mostra exemplar da

forma pela qual os habitantes de Macondo estavam dispostos a

lutar contra o esquecimento: Esta é a vaca, e deve ser

ordenhada todas as manhãs para que se produza leite, e o leite

deve ser fervido para ser misturado com o café e fazer café com

leite. E assim continuaram vivendo numa realidade

escorregadia, momentaneamente capturada pelas palavras,

mas que fugiria sem remédio quando fosse esquecido o valor da

letra escrita.4

A palavra, oral ou escrita, também precisa da memória para que cumpra sua função

de comunicação. Entendemos, então, que a memória é algo anterior à própria palavra.

O acontecimento de Macondo é uma espécie de absurdismo, onde tudo está à beira

de perder-se devido à evasão da memória. A memória funciona, podemos pensar,

como âncora, onde todas as nossas referências de vida estão aportadas. Inclusive a

palavra, a comunicabilidade, a compreensão de nós mesmos e daquilo que nos cerca.

O que seria da comunidade de Macondo sem a memória das coisas?

José Arcádio Buendía decidiu então construir a máquina da

memória que um dia desejou para se lembrar dos maravilhosos

inventos dos ciganos. O artefato se baseava na possibilidade de

4 García Marquez, Ibid.

Page 34: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

33

repassar, todas as manhãs, e do princípio até o final, a totalidade

dos conhecimentos adquiridos ao longo da vida.5

A máquina da memória é uma invenção que não serve para a memória, mas para a

rememoração. Aliás, compreendendo também as faculdades da memória, seria

impossível repassar a totalidade vivida. A memória sem o esquecimento também não

é possível, porque reviver a totalidade vivida através da lembrança nos impediria de

viver. O excesso de recordação nos prenderia em um looping da lembrança, nos

impedindo de construir novas vivências para rememorar depois. Seria o eterno

passado no presente. A sorte dos Buendía é que Melquíades chegou com o frasco

cuja substância trouxe à luz sua memória!

Para Platão, entretanto, a memória continua sendo, por essência, uma capacidade

interior. À medida em que se ancora em suportes externos, a memória é

dessacralizada e destituída de sua aura. No diálogo de Fredo, Platão descreve um

encontro entre Fredo e Sócrates, em que conversam sobre muitas coisas, desde o

amor, a alma, a loucura, até a questão que nos interessa: a memória. Sobre isso,

Platão cria uma narrativa para expressar sua condenação da escrita:

Sócrates conta então uma história lendária que parece um mito, mas que ele

inventou sem dúvida para as necessidades do momento, sobre a origem da

escrita: há muito tempo, no Egito [...] o jovem Thot, o inventor dos números e

dos jogos de dados, apresentou sua nova invenção, a escrita, ao deus

soberano e solar, Tamuz, modelo do rei-juiz arcaico cuja palavra tem força

de lei. A escrita deveria resolver os problemas de registro e de acumulação

do saber; Thot a define como “uma droga para a memória e para a sabedoria”

(mnèmès te gar kai sophias pharmakon 274e). Tamuz, o rei solar que não

precisa escrever para garantir a durabilidade de sua palavra, contradiz essa

definição: a escrita só fará aumentar o esquecimento dos homens pois eles

colocarão sua confiança “em signos exteriores e estrangeiros” (exothen

hypo’allotriôn typôn) ao invés de treinarem a única memória verdadeira, a

memória interior à alma (ouk endothen autous hyp’autôn

anamimneskomenous [275 a]). Vem então o juízo famoso: “Não é para a

memória, é para a rememoração que descobriste um remédio” (GAGNEBIN,

2005, p. 52).

5 Ibidem.

Page 35: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

34

O que há em comum entre o que se passa em Macondo e Atenas? Apesar de

recorrermos à literatura fantástica, as duas narrativas se entrelaçam de maneira

análoga quando falam da memória que é retirada da interioridade e é transferida para

a exterioridade. Há tanto um processo de evasão da memória, quanto de sua

transposição para signos externos. Macondo sucumbe à realidade imaginária. Atenas

passa por uma revolução da escrita, que vem a marcar profundamente, a posteriori,

os processos de vivência da memória.

De uma maneira ou de outra, a importância da memória é mostrada através da

compreensão do que pode ser ou se tornar um mundo em que nossa memória

desapareça. Uma realidade imaginária, uma “idiotice sem passado”, uma “alucinada

lucidez”, segundo Márquez. A memória, que já não habita os humanos, seria uma

prótese de conhecimento à beira do abismo do esquecimento.

Apesar da condenação platônica, de outro ponto de vista, a alemã Aleida Assmann

considera a escrita como medium de eternização e suporte da memória. Ela contradiz

Platão quando diz que foram os próprios egípcios que “enalteciam a escrita como o

medium mais seguro da memória” (Assmann, 2011, p. 195). Como o fenômeno que

marcara o “início da História”, ou, se podemos assim considerar, o fim do “período

ágrafo”, seria a condenação da memória? Para a autora, “Um papiro do século XIII de

nossa era compara a força preservadora de túmulos e livros e chega, com isso, ao

resultado de que a escrita é uma das armas mais eficientes contra a segunda morte

social, o esquecimento” (Assmann, ibidem).

É precisamente esse paradoxo que Platão sugere, e que comparece em Macondo,

como vimos. Lá, a anotação teria como objetivo não esquecer, mas se comportaria

como um remédio para a rememoração, porque a memória em si já se esvai.

Se a tarefa essencial do poeta, na Grécia arcaica, era a de “contar os acontecimentos

passados, conservar a memória, resgatar o passado, lugar contra o esquecimento”

(GABNEBIN, 2005, p. 15), então, podemos dizer que essa mesma tarefa coube ao

texto escrito.

O paradoxo da escrita há de se revelar suporte da memória. Se memória é tanto uma

faculdade do espírito quanto aquela transmitida oralmente, vemos, então, duas

esferas possíveis. Uma esfera interior, que corresponde ao desenvolvimento

individual da compreensão do mundo por meio das informações ancoradas na

Page 36: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

35

memória, e outra, exterior, construída coletivamente pela palavra oral, pelo relato, pelo

compartilhar de vivências que se faz em comunidade e entre gerações. A escrita é

também uma esfera exterior da memória, mas que nasce a partir da construção seja

individual que coletiva. Para Assmann:

“A escrita não é só medium de eternização, ela é também um suporte da memória. A

escrita é, ao mesmo tempo, médium e metáfora da memória. O procedimento da

anotação e da inscrição é a mais antiga e, através da longa história das mídias, ainda

hoje a mais atual metáfora da memória” (Assmann, 2011, p. 199).

Visitar Platão e o diálogo de Fredo é uma maneira de trazer à memória aquilo que

está estabelecido como pilar fundador da nossa sociedade ocidental, a filosofia grega,

e contemplar o paradoxo de Platão ao condenar a escrita se utilizando dela própria.

A figura de Melquíades como aquele que vem curar a comunidade de Macondo da

peste da insônia e do esquecimento, por sua vez, é alentadora quando relacionamos

com o papel do pesquisador e do historiador na nossa sociedade contemporânea.

Muitas vezes cabe a nós portar aquela “substância de cor suave naquela maleta

entulhada de objeto indecifráveis” que, porventura, trará luz sobre a memória.

Cabe-nos agora uma estrada de compreensão da memória enquanto categoria,

conceito e fenômeno, até chegarmos a um entendimento possível do conceito chave

desta pesquisa que vem a ser a ideia da memória cultural urbana.

2.2 Mnemósyne e Clio – O mito da memória

La vida no es la que uno vivió, sino la que

recuerda y cómo la recuerda para contarla.

(García Márquez, em Vivir para contarla)

Nossa tradição de pensamento tem sempre a necessidade da busca pelo mito

fundador, e, como pilar fundante de nossa sociedade, temos a razão grega, que, entre

filosofia, política e mitologia, tem muito a nos dizer sobre nossa identidade ocidental.

Se olharmos para sua mitologia, a Grécia Antiga tem muito a nos ensinar, a nos fazer

entender onde está a origem de compreensões que temos hoje sobre o mundo.

Page 37: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

36

Do grego, memória - mnèmes - denota o significado de conservação de uma

lembrança, assim como no latim - memoria. Para os gregos, a memória estava

relacionada à divindade Mnemósyne, mãe das musas, protetora das artes e da

história.

Ao radical grego podemos relacionar também algumas categorias da filosofia

platônica do conhecimento: “especificamente ‘anamnese e a hypomnese, a

reminiscência da essência e a lembrança da escrita” (Gagnebin, 2005, p. 53).

Anamnese (do grego ana, trazer de novo e mnesis, memória – trazer de novo à

memória) também é entendida como a reminiscência de uma recordação ou uma

lembrança incompleta e é uma categoria utilizada na área da medicina. Hypomnese

ou hypomnema, também do grego, tem várias significações possíveis nos diferentes

idiomas: pode significar memória comemorativa, lembrete, nota, normalmente

relacionada à escrita.

Também temos a mnemotécnica, que significa “a arte da memória”, sendo arte aqui

entendida no seu sentido antigo, de técnica. A mnemotécnica é talvez uma velha

conhecida dos procedimentos didáticos, a chamada memorização. Também remonta

à antiguidade6, tendo sido considerada como método de armazenamento das

informações.

Diz a mitologia grega7 que Mnemósyne, filha de Urano (o Céu) e de Gaia (a Terra) é

uma força primitiva da natureza e a guardiã da memória. Ela é não só guardiã da

memória, como sua própria personificação. Como um ser fantástico, a titânica

Mnemósyne é também irmã do titã Cronos. Trazendo para nossa reflexão, a memória

é irmã do tempo, aquele que, na compreensão antiga (em particular em Platão e em

Aristóteles), relacionava-se ao movimento dos corpos externos, em particular em

relação ao movimento dos astros (Gagnebin, 2005, p. 68).

Mnemósyne teve com Zeus nove filhas, as chamadas musas, entre as quais Calíope,

a musa da eloquência; Erato, a musa da poesia romântica; Polimnia, a musa da poesia

lírica; Melpômene, a musa da tragédia; Talia, a musa da comédia; Euterpe, a musa

da música; Terpsícore, a musa da dança; Urânia, a musa da astronomia e astrologia

6 Ver Assmann, Espaços da Recordação. Campinas, 2011, p. 31.

7 Ver mais em HESÍODO. Teogonia, A Origem dos Deuses. Estudo e tradução de Jaa Torrano, São

Paulo: Iluminuras, 1992.

Page 38: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

37

e finalmente Clio, a musa da história. Assim, simbolicamente para nós, a história é

filha da memória.

Dessa forma, Mnemósyne é tida como a protetora das artes e da história, e o

simbolismo disso para nossa compreensão significa que é pela memória que

construímos e desenvolvemos os sistemas culturais. A música, a literatura, o teatro, a

dança... tudo e toda a compreensão do mundo está ancorada na memória. Somos

filhos da memória, daquilo que respalda uma existência anterior à nossa memória

individual e psíquica, mas que através do tempo tem estabelecido as compreensões

do mundo. Para Rosário,

A Grécia arcaica da mesma forma que diviniza a função psicológica da

Memória, diviniza a possibilidade de suas funções: a poesia é uma espécie

de possessão pelas Musas, de delírio divino que toma o poeta e o transforma

no intérprete de Mnemósine, daquela que tudo sabe, e como nos canta

Hesíodo "inspiraram-me um canto divino para que eu gloreie o futuro e o

passado".8 Apud ROSARIO, 2002, p. 2

Essa ideia de que a história é filha da memória é muito clareadora do conflito

contemporâneo que alguns historiadores têm travado sobre esse tema. Há quem as

assemelhe, há quem as antagonize. Se nos ativermos à diferença primeira entre os

dois sentidos de História (no alemão, Geschichte, como o conjunto dos

acontecimentos passados e Historie como a disciplina histórica, a narração dos

acontecimentos passados), já podemos entender que a disciplina História é

claramente uma ação baseada em pesquisa e articulação da linguagem para se referir

ao passado. A disciplina histórica tem no passado sua matéria-prima para a

construção do conhecimento. Ela é bastante distinta da Memória. Já a História

(Geschichte), como o conjunto de acontecimentos consolidados no passado, mas que,

em totalidade, forma uma significação consistente sobre a vida, essa se assemelha

mais à memória, que por sua vez é entendida como lembrança corpórea ou o conjunto

de lembranças que nos dá a referência de quem somos e do mundo ao nosso redor.

Uma vez que esse tema envolve os objetivos e fundamentos do próprio

trabalho historiográfico, muitos pesquisadores debruçaram-se sobre ele

(como Jacques Le Goff, Pierre Nora e Maurice Halbawachs) concluindo que

a memória não pode ser interpretada apenas como um processo de lembrar

8 HESÍODO. Teogonia ... p. 31-32.

Page 39: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

38

fatos passados, ela é uma construção de referenciais sobre o passado dos

diferentes grupos sociais que são influenciados pelas mudanças culturais

(BISCOUTO FRESSATO, 2005, p.5).

Mas a memória está para além da lembrança corpórea. Ela pode inclusive não ter sido

vivida testemunhalmente, como no caso das memórias cultural e histórica. Memória

abarca em si a História, quando pensamos na nossa história enquanto indivíduos ou

como cidadãos dotados de uma identidade nacional ou de grupo.

A nossa história seria o conjunto de tudo o que vivemos e a nossa memória seria

aquilo que traz significação a nossa vida, é aquilo que constitui nossa identidade,

nosso entendimento do mundo, porque não somos capazes de lembrar da totalidade

dos acontecimentos, mas é a tarefa de seleção e balanço entre o lembrar e o esquecer

que nos dá um conjunto dotado de sentido, e, a partir de então, podemos construir

uma compreensão dos processos por que passamos até nos tornarmos nós, isso tanto

na escala individual quanto coletiva. Para Nora,

Memória, história: longe de serem sinônimos, tomamos consciência que tudo

opõe uma à outra. A memória é vida, sempre carregada por grupos vivos e,

nesse sentido, ela está em permanente evolução, aberta à dialética da

lembrança e do esquecimento, inconsciente de suas deformações

sucessivas, vulnerável a todos os usos e manipulações, susceptível de

longas latências e de repentinas revitalizações. A história é a reconstrução

sempre problemática e incompleta do que não existe mais. A memória é um

fenômeno sempre atual, um elo vivido no eterno presente; a história, uma

representação do passado (NORA, 1993, p. 9).

Tentando esclarecer ainda mais a distinção, podemos pensar que, quando Heródoto,

que é considerado o ‘pai da história, nas primeiras linhas das historiai, diz que sua

investigação é “para que a memória dos acontecimentos não se apague entre os

homens com o passar do tempo”, ele está falando do propósito da história, em ser

esse tipo de “guardiã” da memória. Mnemósyne é divindade, é a memória em si, é a

que mantém os acontecimentos vivos, a que luta contra as águas do esquecimento,

sendo âncora e fundamento para todas as expressões culturais, desde a escrita da

história, a palavra poética até as flutuações da música. Memória é aquela que nos dá

toda possível referência e entendimento do mundo.

Page 40: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

39

2.3 A memória e o paradoxo da lembrança

Na parede da memória

Esta lembrança

É o quadro que dói mais

(Belchior em Como nossos Pais)

Para Le Goff (2003, p. 419), “A memória, como propriedade de conservar certas

informações, remete-nos em primeiro lugar a um conjunto de funções psíquicas,

graças às quais o homem pode atualizar impressões ou informações passadas, ou

que ele representa como passadas”. O estudo da memória é diverso e complexo.

Diverso porque essa é uma categoria estudada por distintas áreas do conhecimento.

Os estudos culturais têm várias ramificações que estudam a memória: História,

Literatura, Sociologia.

As ciências naturais estudam as funções psíquicas da memória, como nos campos da

“psicologia, psicofisiologia, neurofisiologia, biologia e psiquiatria”, segundo Le Goff.

Além disso, nas últimas décadas, temos visto o surgimento das ciências e tecnologias

da informação, que também se apropriam da categoria da memória, justamente como

a capacidade de reter dados. É interessante pensar que tudo isto está interligado. O

diálogo e a perspectiva transdisciplinar nos presenteiam diversas metáforas e

analogias para entender a memória sob a perspectiva cultural.

Balança simbólica entre o recordar e o esquecer, a memória é mais do que a

capacidade de armazenar informações ou dados, é mais do que as funções cognitivas

individuais, mas passa por essas condições transcendendo para o seio social. A

memória é também construção coletiva. Vontade política, jogo de poder. A memória é

fenômeno deveras complexo para ser alcançada numa simples categoria. Para

Assmann, “Recordar e esquecer interpenetram-se e transmutam-se sob a forma do

declínio sorrateiro, do apagamento permanente das experiências dos sentidos e das

noções do tempo” (Assmann, 2011, p. 108).

Antes de tentar explicar o conceito, é preciso compreender, então, que não podemos

fechar um entendimento absoluto sobre o que é memória, por se tratar de um

fenômeno complexo e que é objeto de estudo de diversas áreas do conhecimento,

Page 41: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

40

conformando-se como um campo aberto em que se adicionam perspectivas para a

compreensão e avanço da construção do conhecimento sobre o tema. A própria

Aleida Assman fala que “o fenômeno da memória, na variedade de suas ocorrências,

não é transdisciplinar somente no fato de que não pode ser definido de maneira

unívoca por nenhuma área; dentro de cada disciplina ele é contraditório e controverso”

(ASSMANN, 2011, p. 20).

A memória traz em si uma idiossincrasia paradoxal. Freud pergunta “de que maneira

apresentar a simultaneidade das funções opostas de preservar e apagar? ”9 Como

conciliar a lembrança e o esquecimento dentro do fenômeno da memória?

Le Goff, no verbete Memória10 escrito para a enciclopédia Einaudi, consegue ser

sucinto em nos dar chaves de compreensão para esta categoria. Ele diz que a

memória é um fenômeno individual e psicológico que também está ligado à vida social.

Varia de acordo com a sociedade, pois pode ocorrer mais por meio da oralidade ou

por meio da escrita. Talvez uma das compreensões que mais se aplique a este

trabalho é a de que a memória é objeto da atenção do Estado que, para conservar os

traços de qualquer acontecimento do passado, produz diversos tipos de documentos

e monumentos, faz escrever a história e acumula objetos.

Como dito nos procedimentos metodológicos, esta pesquisa se debruçará sobre o

processo de tombamento da cidade de Olinda, então, entender memória como essa

da ação do Estado que conserva traços de acontecimentos passados é uma chave

analítica importante para quando estivermos falando especificamente da memória de

Olinda, visto que entenderemos o próprio Estado como sujeito criador de memória.

Uma das possíveis analogias para entender a dialética da lembrança e do

esquecimento na Memória seria a Conservação do Patrimônio Cultural. Na

Conservação, estamos também em uma balança: entre a permanência e a mudança.

A mudança é um fenômeno ininterrupto, está acontecendo através do tempo, todo o

tempo. A permanência é quando os traços são mantidos por mais tempo, resistindo

aos processos de transformação, mas nunca sendo, no caso dos bens culturais, o

mesmo de antes, sofrendo, pouco a pouco, em diversas escalas, mutações. A

9 Freud apud Assmann, 2011, p. 168.

10 Le Goff, História e Memória, 2003, Editora da Unicamp, pp. 419.

Page 42: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

41

lembrança está para a permanência assim como o esquecimento está para a

mudança. A lembrança se comporta como um traço riscado no terreno do

esquecimento. São esses traços que nos dão a baliza da nossa existência, o nosso

Norte em relação ao tempo decorrido, e se nessa analogia tempo e espaço se

confundem, é porque a memória é já outra dimensão. A lembrança é permanência na

memória, o esquecimento é um processo inerente à memória. Os bens culturais são,

neste caso, permanência e lembrança, são narrativa e testemunho de sociedades e

experiências consolidadas no passado, que atravessaram o tempo, e que, apesar do

tempo, nos trazem à memória aquilo que é essencial para nosso entendimento do

mundo. A esse respeito Chauí diz que "[...] memória é uma evocação do passado. É

a capacidade humana para reter e guardar o tempo que se foi, salvando-o da perda

total. A lembrança conserva aquilo que se foi e não retornará jamais" (CHAUÍ, 2005,

p. 138).

Para que se faça luz no entendimento sobre a memória, trataremos de alguns pontos

centrais dos estudos desenvolvidos sobre essa grande e complexa categoria. Como

já vimos um pouco da proposição de Le Goff, e sabendo que em seu verbete Memória

ele faz uma história da memória, vamos seguir adiante. Com Halbwachs, vamos

entender um pouco sobre a memória individual e coletiva. Com Assmann, vamos

compreender a ideia de memória cultural. Mais adiante, com Nora, vamos entender a

noção de lugares de memória.

Halbwachs se destaca na questão da confrontação entre memória individual e

coletiva, e também no desenvolvimento do conceito de memória histórica. Se

pensarmos na relação dialética entre memória individual e coletiva, entendemos que

uma não existe sem a outra. Ao passo que a nossa memória individual é também

construída pelo testemunho dos outros, daqueles que compõem a nossa vivência, o

conjunto das memórias é sempre feita a partir de cada contribuição individual. E assim

se retroalimentam as memórias, sendo que a memória coletiva faz parte de um

processo de reivindicação de identidade e pertencimento, especialmente relacionada

a grupos, e é o que assegura a manutenção desses laços, do sentimento alentador

de uma identidade que dá sentido àquele agrupamento, um passado político, um

território conquistado, um traço cultural. Assmann nos explica que

A investigação de Halbwachs em torno dessa “memória coletiva” resultou no

seguinte: a estabilidade da memória coletiva está vinculada de maneira direta

Page 43: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

42

à composição e subsistência do grupo. Se o grupo se dissolve, os indivíduos

perdem em sua memória a parte de lembranças que os fazia asseguraram-

se e identificarem-se como grupo. Mas também a alteração de um contexto

político pode levar ao apagamento de determinadas lembranças, já que

estas, segundo Halbwachs, não têm uma força imanente de permanência e

carecem essencialmente de interação e atestação sociais (ASSMANN, 2011,

p. 144).

Se pensarmos que a memória coletiva é uma construção social, temos que fazer o

contraponto dialético de que tudo o que vivenciamos coletivamente também é incutido

na nossa memória individual. Halbwachs fala que a memória coletiva pode também

“reorientar” nossa memória individual, ao passo que a ela se incorpora. Para ele,

“dentro desse conjunto de depoimentos exteriores a nós, é preciso trazer como que

uma semente de rememoração, para que ele se transforme em uma massa

consistente de lembranças” (Halbwachs, 1990, p. 28).

Halbwachs também desenvolve o entendimento sobre memória coletiva. Para o autor,

a memória coletiva está também no cerne do entendimento de formação de

identidade, pertencimento a determinado grupo ou nação, e, por conseguinte,

relacionada também à construção daquilo que se entende como patrimônio cultural,

visto que a atribuição de valores aos monumentos, cidades, paisagens, conjuntos,

expressões ou imaterialidades parte das ideias da identidade coletiva e de uma

herança que nos chega a partir de um passado comum, de forma a passar para a

nossa geração aquilo que vem de gerações que nos precederam.

Em relação à memória histórica, que é outro conceito que Halbwachs propõe, ele

esquematiza a ideia que parte da construção coletiva:

Durante o curso de minha vida, o grupo nacional de que eu fazia parte foi o

teatro de um certo número de acontecimentos, dos quais digo que me lembro,

mas que não conheci a não ser pelos jornais ou pelos depoimentos daqueles

que participaram diretamente. Eles ocupam um lugar na memória da nação.

[...]. Quando eu os evoco, sou obrigado a confiar inteiramente na memória

dos outros, que não vem aqui completar ou fortalecer a minha, mas que é a

única fonte daquilo que eu quero repetir (HALBWACHS, 1990, p. 54).

Ele compõe então o entendimento de “memória histórica” como uma “memória

emprestada”, que não é de nossa vivência, mas sim do conjunto de lembranças que

formam os traços sobre a história da nação.

Page 44: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

43

É também interessante pensar, a partir de Huyssen (2000) que as transformações

ocorridas no presente século já sacodem as formas de lidar com a memória, não só

pela multiplicação de mídias e vetores de memória como nas transformações vividas

na forma de se inter-relacionar de um possível grupo. Para ele, “[...] as velhas

abordagens sociológicas da memória coletiva – tal como a de Maurice Halbwachs,

que pressupõe formações de memórias sociais e de grupos relativamente estáveis -

não são adequadas para dar conta da dinâmica atual da mídia e da temporalidade, da

memória, do tempo vivido e do esquecimento” (Huyssen, 2000, p. 19).

Assmann (2011, p. 21), na questão da memória, deixa claro no início de seu livro

Espaços da Recordação que “quem procurar uma teoria unificadora nas próximas

páginas não obterá sucesso, pois uma tal teoria mal conseguiria ligar com o caráter

contraditório das descobertas. Esse caráter contraditório é, em si mesmo, uma parte

irredutível do problema. ” Ela mostra que o fenômeno da memória é deveras complexo

para que seja alcançado por uma teoria que a defina. Apesar disso, ela traz diversas

perspectivas, metáforas, considerações sobre a memória que nos aproxima de uma

visão holística, de um possível entendimento.

A partir disso, uma das perspectivas mais interessantes sobre o entendimento de

memória cultural que ela traz é quando se utiliza daquilo que Huyssen chama de

“lugar-comum universal da memória”. Para esse autor, “É precisamente a emergência

do Holocausto como uma figura de linguagem universa que permite à memória do

Holocausto começar a entender situações locais específicas, historicamente distantes

e politicamente distintas do evento original” (Huyssen, 2000, p. 13).

Assman se utiliza dessa metáfora da memória, que é a memória do Holocausto, para,

precisamente, trazer à luz o entendimento de memória cultural:

O evento do Holocausto não ficou pálido e descolorido com o passar dos

anos, mas, paradoxalmente, está mais próximo e vivo do que se imaginaria.

[...]. Isso se deve ao fato de que a memória experiencial das testemunhas da

época, caso não se deva perder no futuro, deve traduzir-se em uma memória

cultural da posteridade. Dessa forma, a memória viva implica uma memória

suportada em mídias que é protegida por portadores materiais como

monumentos, memoriais, museus e arquivos. [...]. Já que não há auto-

organização da memória cultural, ela depende de mídias e de políticas, e o

salto entre a memória individual e viva para a memória cultural e artificial é

Page 45: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

44

certamente problemático, pois traz consigo o risco da deformação, da

redução e da instrumentalização da recordação (ASSMANN, 2011, p. 19).

Vindo então do entendimento de Halbwachs, percebemos que Assmann dá um salto

no entendimento de memória cultural. É uma memória que não necessariamente foi

vivenciada, mas que é engendrada em nós através do conhecimento histórico,

suportada pelas mídias ou meios de memória e que nos pertence enquanto

consciência da nossa humanidade.

Nós recebemos como herança uma memória que não vivemos. Essa memória é

cultural. Construída coletivamente e transpassada ao longo do tempo através das

pessoas e dos vetores da memória. Apesar de não termos vivenciado, essa memória

nos constitui enquanto cidadãos, fundamentando nossa memória enquanto seres

sociais pertencentes a uma coletividade, mas também enquanto seres individuais, já

que nascemos dentro de uma cultura que moldará a nossa existência, desde a forma

como nos portamos, a maneira de pensar, de se expressar e de entendermos o mundo

que nos cerca.

Para aproximar-nos do entendimento de memória cultural, podemos dizer que é

aquela memória que “supera épocas e é guardada em textos normativos” (Assmann,

2011, p. 17). Ou, ainda, quando ela fala sobre os locais da recordação, “[...] que os

locais possam tornar-se sujeitos, portadores de recordação e possivelmente dotados

de uma memória que ultrapassa amplamente a memória dos seres humanos”

(Assmann, 2011, p. 317). Essa memória que ultrapassa a memória dos humanos, que

está para além da memória geracional e coletiva, seria o entendimento mais próximo

da memória que é construída e herdada como signo da cultura e sob forma de cultura.

A memória que lança bases de uma identidade comum sem necessariamente

pertencer a um grupo fechado que comunica essa memória através das gerações é

algo que transcende esse processo. Como fala a autora, “pode ultrapassar

amplamente a memória dos seres humanos”. Além disso, temos, amparados em Le

Goff, que:

...a memória coletiva foi posta em jogo de forma importante na luta das forças

sociais pelo poder. Tornarem-se senhores da memória e do esquecimento é

uma das grandes preocupações das classes, dos grupos, dos indivíduos que

dominaram e dominam as sociedades históricas. Os esquecimentos e os

Page 46: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

45

silêncios da história são reveladores desses mecanismos de manipulação da

memória coletiva. (LE GOFF, 2003, 422).

O autor nos faz entender que a construção da memória é sempre um jogo político,

que muitas vezes está também relacionado à ideia da guerra pela memória, refletindo

as relações de poder vigentes. Entendo que a memória cultural urbana é a construção

desse “processo social de esquecer e recordar”11 a cidade, a partir do reconhecimento

e proteção de determinados traços urbanos. Aliás, englobe-se ao entendimento de

cidade os conjuntos urbanos e os bens culturais que a compõem. Sobre essas pedras

são edificadas as representações de uma sociedade e de sua identidade, através

também de processos de seleção, reconhecimento, proteção do chamado Patrimônio

Cultural.

Ainda sobre memória cultural, Assmann fala sobres os meios da memória, que são os

suportes externos em que ela se ancora. A autora traz, em seu livro, a ideia de que a

escrita, a imagem, o corpo e os locais constituem meios da memória, e são os

portadores materiais da memória cultural. Além disso, os arquivos, os museus e

monumentos também são meios, mas são sobretudo “armazenadores” da memória,

que podem abarcar uma memória que está em seu estado de potência, e,

eventualmente, vir à superfície daquilo que ela chama de “memória funcional”, “O que

existe no estado de latência momentaneamente inacessível pode ser redescoberto

por uma época posterior, reinterpretado e imaginativamente reavivado por ela”

(Ibidem, p. 439).

Ela faz, então, a distinção entre memória cumulativa e memória funcional, fazendo a

correlação com as estruturas psíquicas da “memória consciente”. Ela equipara a

memória funcional à memória habitada, aquela que nos permite a produção de

configurações de sentido, a partir das lembranças e experiências mantidas à

disposição. De memória cumulativa, ela chama a memória das memórias, é a que

contém elementos inertes, latentes, mas as vezes fora do alcance da atenção.12 Assim

sendo, “enquanto os processos de recordação ocorrem espontaneamente no

indivíduo e seguem regras gerais dos mecanismos psíquicos, no nível coletivo e

institucional esses processos são guiados por uma política específica de recordação

11 Assmann, 2011, p. 441.

12 Cf. Assmann, 2011, p. 148.

Page 47: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

46

e esquecimento” (Ibidem, p. 19). A memória cultural está ancorada, pois, em suportes

e mídias, e, enquanto constructo social, precisa de políticas de memória para que

esteja na superfície dos “espaços da recordação”.

Nora seria o teórico que completaria nosso entendimento sobre a noção da memória

a partir da noção de lugares de memória. Veremos um pouco mais adiante, ainda

neste capítulo. Mas ainda há algumas construções interessantes antes de

adentrarmos o conceito de lugares de memória, que tem se alçado tão importante no

cenário internacional e especialmente no Brasil com o reconhecimento do Cais do

Valongo como lugar de memória pela UNESCO em 2017.

Page 48: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

47

2.4 Cidade: memória e patrimônio

Há apenas dois fortes vencedores do esquecimento dos

homens: Poesia e Arquitetura; e a última de alguma forma inclui

a primeira, e é mais poderosa na sua realidade.

(Ruskin, A Lâmpada da Memória, p. 54)

Ruskin, homem do século XIX, distoa dos autores aqui citados, por ocupar um lugar

na história mais distanciado dos tempos atuais. Sem historicizar o contexto de suas

inquietações, o usamos brevemente aqui, para nos ajudar na aproximação à

conservação da cultura material na sua relação com a memória. Autores recentes,

como Assmann, continuam a iluminar as ideias aqui expostas.

Ruskin fala que a Arquitetura é essencial para a rememoração. Que o testemunho

material não pode ser comparado a outro tipo de representação, seja documental, seja

um relato. Que a sensação trazida pela nossa interação com o espaço edificado é

incomparável enquanto âncora dos significados trazidos pelas gerações, pois

representa não apenas o que as populações pensaram ou sentiram, mas o que com

suas mãos edificaram, pedra a pedra. Com isso, ele diz ser imprescindível a

conservação da Arquitetura como a mais preciosa de todas as heranças, por trazer

significados e sensações em sua tridimensionalidade.

É como centralizadora e protetora dessa influência sagrada13, que a

Arquitetura14 deve ser considerada por nós com a maior seriedade. Nós

podemos viver sem ela, orar sem ela, mas não podemos rememorar sem ela.

Como é fria toda a história, como é sem vida toda fantasia, comparada àquilo

13 Refere-se ao escrito no capítulo I quando descreve “uma sensação de um grande poder começando

a manifestar-se na terra”, e fala sobre a sensação de estar nesse lugar (uma floresta de pinheiros no

Jura), e depois de rememorar a sensação que teve quando esteve nesse lugar), mostrando a lembrança

ser insuficiente para transmitir todas as sensações que o lugar transmitira.

14 Importante notar que Ruskin escreve em 1849, quando a noção de Arquitetura abarcava noções que

só viriam a se desenvolver a posteriori como Paisagem e Conjunto Urbano. Assim sendo, quando fala

da Arquitetura, podemos tomar como entendimento que está falando do Patrimônio Arquitetônico.

Page 49: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

48

que a nação viva escreve, e o mármore incorruptível ostenta! - quantas

páginas de registros duvidosos não poderíamos nós dispensar, em troca de

algumas pedras empilhadas umas sobre as outras! (RUSKIN, 2008, p. 54)

Para usar um conceito de Assmann, seria a Arquitetura um “gatilho” imprescindível

para a memória da humanidade? A arquitetura, a cidade, a paisagem são constructos

testemunhais da relação das sociedades com o meio, em qualquer que seja o contexto

locacional. É produto direto dessa relação e imbuída de significados que mostram não

apenas culturas construtivas, mas formas de organização do espaço, de

hierarquização das relações sociais, de estratégias de defesa, de adaptações às

condições ambientais e até mesmo de ornamentos que indicam posição social ou

prestígio. Toda a organização espacial culturalmente materializada carrega em si

memórias sociais.

Ruskin fala que a Memória é a Sexta Lâmpada da Arquitetura:

[...] é ao se tornarem memoriais ou monumentais que os edifícios civis e

domésticos atingem uma perfeição verdadeira; e isso em parte por eles

serem, com tal intento, construídos de uma maneira mais sólida, e em parte

por suas decorações serem consequentemente inspiradas por um significado

histórico ou metafórico (RUSKIN, 2008, p. 55).

Fala tanto da arquitetura doméstica quanto dos monumentos e como eles são

testemunhos da vivência dos povos. Ele escreve que a arquitetura, como nosso

domicílio terrestre, é aquela que testemunha e mesmo compartilha nossas alegrias e

sofrimentos e que é esse lugar que conta a história, como se o lugar fosse em si

mesmo sujeito da ação narrativa da memória, que revela também as marcas que as

vivências humanas deixaram na materialidade.

Ruskin fala na conservação da arquitetura enquanto conservação da memória vivida,

fazendo com que Choay, em A Alegoria do Patrimônio (2001, p. 181) diga que sua

abordagem para com o patrimônio é de tipo “memorial”: “(...) Para ele [Ruskin], é

sacrilégio tocar nas cidades da era pré-industrial; nós devemos continuar a habitá-las,

e habitá-las como no passado. Elas são as garantias de nossa identidade, pessoal,

local, nacional e humana. ”

Segundo Assmann (2011, p. 318), os locais “solidificam e validam a recordação, na

medida em que a ancoram no chão, mas também por corporificaram uma continuidade

Page 50: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

49

duradoura que supera a recordação relativamente breve de indivíduos, épocas e

também culturas, que está concretizada em artefatos”.

A arquitetura como lâmpada da memória é então a memória materializada e

corporificada na experiência humana que a edificou, sendo a mais completa tradução

da relação homem-meio. Num nível mais abstrato, a arquitetura que atravessa as

gerações, sendo então um patrimônio, é, portanto, mais uma âncora material e

externa que suporta a memória dos povos.

Segundo Arantes (2009, p.11), “Os grupos humanos atribuem valor diferenciado a

estruturas edificadas e a elementos da natureza que balizam seus territórios, ancoram

suas visões de mundo, materializam crenças ou testemunham episódios marcantes

da memória coletiva”. Isso nos mostra que a cidade e seus componentes são âncoras

da memória coletiva, da vivência dos povos. É claro que ocupações que não se

encaixam na categoria de “cidade” também podem configurar essa mesma

ancoragem, afinal, estamos lidando com territórios, marcos paisagísticos, vivências,

lugares providos de significado atribuído pelos povos. Mas a cidade é, por excelência,

o lugar do desenvolvimento das culturas e sociedades, e entendamos isso desde a

pólis, a villa, até a cidade, tal qual a entendemos hoje, em suas várias escalas. Como

fenômeno cultural, a cidade é também o registro da vivência dos povos, e, portanto,

passa pelo mecanismo sociocultural de produção de memória.

A ideia de que cidade é documento e registro de memória e vivência é válida em toda

a sua abrangência, mas por que apenas alguns sítios são patrimonializados? O que

isso tem a ver com a construção da memória?

Imaginemos uma cidade em desenvolvimento, que tenha passado por vários

processos históricos, que apresente várias camadas de construção ao longo do

tempo. Imaginemos patrimonializar toda essa cidade, todas essas camadas. É como

entender que memória seria o conjunto de todas as vivências de um indivíduo ou

sociedade. Pergunto: a memória é o conjunto das vivências? Para Silva,

A nossa memória colectiva modelada pelo passar do tempo não é mais de

que uma viagem através da história, revisitada e materializada no presente

pelo legado material, símbolos particulares que reforçam o sentimento

colectivo de identidade e que alimentam no ser humano a reconfortante

sensação de permanência no tempo (SILVA, 2000, p. 219).

Page 51: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

50

Talvez História (no sentido de vivência, do que passou) seja esse conjunto completo.

A memória é a organização seletiva que fazemos para entendermos nossas

referências culturais e nossa construção indentitária. Tanto como indivíduos como

quanto sociedade, é impossível lembrar de tudo. Seria como a máquina da memória

proposta por José Arcadio Buendía, que passaria todas as manhãs a totalidade de

conhecimentos adquiridos. Nem no nível ficcional, nem na realidade individual ou

coletiva isso seria possível, é por isso que a memória é seletiva, porque precisamos

daquilo que é imbuído de significado para a construção indentitária, seja individual que

coletiva.

Do mesmo jeito se comporta a ideia de cidade como memória. Se tudo fosse

patrimonializado, por exemplo, o que seria então o significado excepcional, aquilo que

faz sentido para a construção do sentido e da identidade da cidade? É por isso que

temos monumentos, lugares de memória, conjuntos e sítios reconhecidos em função

de sua excepcionalidade, seja artística, cultural, histórica, etc.

A cidade é o campo das memórias possíveis. E mesmo aquilo que não está

efetivamente protegido (ou a cidade que se transforma) pode deixar registro de

memória, da construção memorial que um dia foi. Sim, o conjunto das vivências

importa, mas a memória, assim como a cidade, tem sua seletividade daquilo que é

importante que se mantenha ao alcance da consciência, e daquilo que, no demolir do

esquecimento, apenas faz parte da construção cultural das sociedades, sem precisar

estar no nível da memória funcional. Nem só de pedra e cal é construída uma cidade,

mas também de memórias.

Assim sendo, podemos entender a memória como constituinte não só da noção de

patrimônio cultural, mas também como um elemento central da dimensão intangível

deste patrimônio, porque é essencialmente uma relação. Frente a isso, a memória

constitui-se como ponto-chave de discussão.

Quando Calvino fala sobre as cidades e a memória, ele destaca que a descrição

apenas física da cidade seria inútil, pois a cidade é feita das “relações entre as

medidas de seu espaço e os acontecimentos do passado” 15

15 “Inutilmente, magnânimo Kublai, tentarei descrever a cidade de Zaíra dos altos bastiões. Poderia

falar de quantos degraus são feitas as ruas em forma de escada, da circunferência dos arcos dos

Page 52: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

51

Sabemos que nesse universo de memórias urbanas possíveis, há, para além da

memória oficial, a memória histórica, as memórias que estão também na condição de

memória cumulativa, ou também a memória que está nos lugares não reconhecidos

como patrimônio. E essa própria seletividade do patrimônio tem muito a revelar sobre

a construção da memória, sobretudo em determinados recortes temporais.

Como Calvino falava, a cidade é feita das relações, e buscaremos, nesta dissertação,

trazer à tona relações entre o espaço e os acontecimentos de Olinda, discutindo o

substrato de sua memória oficial, tendo a consciência da infinitude de suportes da

memória cultural urbana.

2.5 Lugares de memória e a memória dos lugares

É importante separar do conceito de memória a noção de lugares de memória de

Pierre Nora, não só pela sua especificidade teórica, como por se tratar de uma nova

categoria dentro da ação preservacionista do IPHAN e da UNESCO, como no caso

do Cais do Valongo, conforme veremos a seguir. O cais foi reconhecido como

patrimônio da humanidade pela instituição não só como sítio arqueológico, mas

também na categoria de lugar de memória.

Como estamos a trabalhar com memória cultural urbana, a memória do lugar, da

cidade, é essencial trabalhar com Nora em diálogo com Assmann. Conforme Assmann

falava dos meios de memória, é imprescindível relacionar aos lugares de memória de

Nora, trabalhando a ideia que os documentos que me servirão como fonte de análise

da memória da cidade são também lugares de memória, e, partir dessa visão analítico-

interpretativa, a memória da cidade será problematizada.

A obra Lieux de Mémoire é colossal. Foram sete volumes publicados ao longo de nove

anos (1984-1993), e que contou com a colaboração de cerca de 130 intelectuais do

pórticos, de quais lâminas de zinco são recobertos os tetos; mas sei que seria o mesmo que não dizer

nada. A cidade não é feita disso, mas das relações entre as medidas de seu espaço e os

acontecimentos do passado: a distância do solo até um lampião e os pés pendentes de um usurpador

enforcado; [...]” (CALVINO, 2003, p. 7).

Page 53: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

52

panteão acadêmico francês, em sua maioria historiadores. Essa foi a obra que lançou

Nora no cenário dos grandes intelectuais da França, o que viria a lhe render o Grande

Prêmio Nacional de História (Grand Prix National d’Histoire) em 1993 e lhe projetaria

para ocupar uma cadeira na Academia Francesa, entrando então para a constelação

dessa instituição. Tudo isso se deve ao trabalho de Nora na coordenação dessa obra

de monumentalização da memória nacional e na proposição dessa noção que tem

atravessado fronteiras.

Nora fala, na entrevista concedida ao periódico História Social16, que esse conceito foi

desenvolvido ao longo de muitos anos, com ajuda de intelectuais colaboradores e que

sofreu transformações com o tempo, assim como ultrapassou as fronteiras da França,

ganhando novas significações em diferentes contextos:

Eu acredito que um dos efeitos dos Lugares de memória não foi somente de

inventar temas, mas de lhes dar um brilho, uma centralidade que nunca

tiveram. Então, pouco a pouco, todo um campo se desdobrou diante de mim

e, evidentemente, eu não poderia explorá-lo sozinho. [...]. Eu levei muito

tempo para fazê-la, e ela evoluiu muito lentamente, porque se eu me precipitei

sobre a expressão os lugares de memória, que me pareceu se impor desde

o princípio para abranger objetos tão diferentes uns dos outros, essa noção

em si mesma, [...] ela, progressivamente, se transformou (Nora apud BREFE,

1999, p. 26).

Nora diz que achava que o conceito seria “pouco exportável”, mas que se enganou, e

que, devido ao que ele chama de “onda memorial”, o conceito foi apropriado e aplicado

a diferentes contextos nacionais, inclusive na América Latina, devido à crise de

identidade americana como um tipo de interrogação para a “recuperação de seu

próprio passado” ou devido a uma “necessidade premente de memória de nossa

sociedade contemporânea”.

Os lugares de memória nascem e vivem do sentimento [de] que não há

memória espontânea, que é preciso criar arquivos, que é preciso manter

aniversários, organizar celebrações, pronunciar elogios fúnebres, notariar

atas, porque essas operações não são naturais (...). [Os lugares de memória]

são bastiões sobre os quais se escora. Mas, se o que eles defendem não

estivesse ameaçado, não se teria, tampouco, a necessidade de construí-los

(NORA, 1993, p.13)

16 História Social, Campinas-SP, Nº 6, 13-33, 1999, entrevistado por Ana Cláudia Fonseca Brefe.

Page 54: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

53

Nora preconiza, nesse conceito, todo um entendimento da onda memorialista em que

vivemos e de como o alargamento da noção de Patrimônio Cultural tem abarcado os

aspectos intangíveis e simbólicos, incorporando o pensamento de muitos estudiosos

da área (como o do próprio Nora) para a compreensão cada vez mais global do que

nossa geração porta ao futuro e de que forma a herança que recebemos do passado

passa por processos de ressignificação importantes para o entendimento do próprio

tempo presente. Lugares de memória expressa dimensões além da matéria, como as

relações indissociáveis entre matéria e significado. Para Oliveira e Tedeschi,

Os lugares de memória, para Nora, são lugares, com efeito, nos três sentidos

da palavra: material, simbólico e funcional simultaneamente, somente em

graus diversos. Em sua complexidade pertencem ao domínio do simples e do

ambíguo, do natural e do artificial, do diretamente oferecido à experiência

sensível e, ao mesmo tempo, à abstrata elaboração. Os lugares de memória

nascem da vontade de memória (OLIVEIRA E TEDESCHI, 2011, p. 52).

Nora tem uma posição bem definida quando praticamente coloca memória e história

em posições antagônicas. As relações entre Mnemósyne e Clio são postas em

conflito. Antes de chegar à ideia de Lugares de memória, porém, ele faz divagação

teórica sobre memória:

A memória é a vida, sempre carregada por grupos vivos e, nesse sentido, ela

está em permanente evolução, aberta à dialética da lembrança e do

esquecimento, inconsciente de suas deformações sucessivas, vulnerável a

todos os usos e manipulações, susceptível de longas latências e repentinas

revitalizações (NORA, 1993, p.9).

Retoma Halbwachs quando relaciona a memória à vivência de grupos, à entidade

carregada e transpassada dentro de uma organização social. Usa também a postura

dialética da lembrança e do esquecimento como mecanismos da memória. Quando

fala em deformação, é impossível não relacionar com as políticas de memória, que,

enquanto ação do Estado, podem tanto deformar quanto provocar silenciamentos e

esquecimentos compulsórios.

O que Nora chama de lugares de Memória, Assmann chama de meios de memória.

“A memória se enraíza no concreto, no espaço, no gesto, na imagem, no objeto” (Nora,

1993, p. 9). Associado a esses dois entendimentos, podemos pensar na a ideia de

vetores de memória, aqueles que portam em si a memória e que são gatilhos da

memória, quando provocam a epifania dos significados e dos valores simbólicos que

Page 55: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

54

estão ali arraigados. “[...] museus, arquivos, cemitérios e coleções, festas,

aniversários, tratados, processos verbais, monumentos, santuários, associações, são

marcos testemunhais de uma outra era, das ilusões de eternidade” (Ibidem, p. 13).

Nora fala que, à medida que a memória verdadeira desaparece, que é aquela que

existe no processo mental, nós sentimos a necessidade de ancorá-la em suportes

exteriores e “referências tangíveis de uma existência que só vive através delas”

(Ibidem. p. 14). Ele fala então da “materialização da memória”. Vejamos se o que Nora

fala não figura exatamente o episódio de Macondo? Quando a memória verdadeira,

viva e interior começou a se evadir dos personagens, eles sentiram a necessidade de

ancorar sua memória em suportes externos, através da escrita, que, segundo

Assmann, é a metáfora primeira da memória. Os lugares de memória, então, são

âncoras da memória, mas sempre atendem, para Nora, às três dimensões propostas:

material, funcional e simbólica, em coexistência. Para ele,

É material por seu conteúdo demográfico; funcional por hipótese, pois

garante, ao mesmo tempo, a cristalização da lembrança e sua transmissão;

mas simbólica por definição visto que caracteriza por um acontecimento ou

uma experiência vivida por um pequeno número uma maioria que deles não

participou (NORA, 1993, p. 22).

Os lugares de memória são, então, não necessariamente “lugares”, no sentido físico.

Um minuto de silêncio pode ser um lugar de memória, por exemplo. Porque sua

materialidade, nesse caso, vem da ideia de “unidade temporal”. O que importa é que

os lugares onde a memória se ancora estão no “incessante ressaltar de seus

significados”. Sendo, então, o significado o que mais importa. Os lugares de memória

são “lugares onde se ancora, se condensa e se exprime o capital esgotado de nossa

memória coletiva” (Ibidem, p. 28).

Podemos, pelo exposto, fazer um paralelo desses “lugares” com a noção de

Patrimônio Cultural, já que este é legitimado para representar e significar uma série

de referências culturais que nos representam enquanto sociedade. Patrimônio é

memória chancelada. É criação de memória oficial. Cada bem cultural protegido pelo

Estado é memória que se cria.

Page 56: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

55

Por ser um conceito surgido a partir de 1984 com o trabalho de Nora17, não podemos

cometer o anacronismo de querer aplicá-lo a tombamentos e reconhecimentos

anteriores, porque o próprio processo de alargamento da noção de Patrimônio mostra

etapas importantes da mentalidade das épocas passadas, assim como o surgimento

desta noção marca a mentalidade de nossa época. Esquivando-nos do anacronismo,

podemos, porém, repensar o patrimônio que chega para nós hoje, o que ele significa,

e como o queremos portar ao futuro, e isso implica pensar nossas cidades e sítios

históricos enquanto lugares de memória, visto que a compreensão desses lugares e

do passado que sobre eles paira, e da memória que através deles chega é a pedra

sobre a qual fundamos nossa identidade coletiva e a forma pela qual colocamos

expectativa no futuro.

Em sendo o lugar de memória um portador da herança, podemos usar este conceito

como metáfora para as cidades e sítios históricos patrimonializados, mais

especificamente para a dita dimensão intangível do Patrimônio Cultural material, afinal

o que seria essa herança edificada senão um portador de memória? O uso do conceito

de Nora é, sobretudo, uma estratégia de discutir o patrimônio enquanto memória,

justamente porque o conceito lugares de memória fala de uma dimensão intangível,

ou seja, mesmo que os edifícios sejam restaurados e não tenham mudança aparente,

há algo além da matéria, o que Jokilehto18 mostra ser o que dá o verdadeiro

significado.

17 Les Lieux de Mémoire, Pierre Nora, 1984

18 JOKILEHTO, 2006, Considerations on authenticity and integrity in world heritage context. City & Time

2 (1): 1. [online] URL: http://www.ceci-br.org/novo/revista/docs2006/CT-2006-44.pdf “The physical

presence of the temple and the god’s image in themselves do not yet assign the significance to the site,

but it is the god’s presence, the spiritual or the intangible dimension, when evoked, that gives the real

meaning.” Jokilehto fala da dimensão espiritual e intangível do sítio, que, quanto evocadas, é que dão

o verdadeiro significado.

Page 57: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

56

Olinda, Cidade Eterna

Olinda, cidade heróica,

Monumento secular

Da velha geração...

Olinda!

Serás eterna e eternamente viverás

No meu coração!

Quisera ver

Teu passado, Olinda,

Quando era ainda cheia de ilusão,

Para contemplar a tua paisagem

Para olhar teus mares,

Ver teus coqueirais...

Pular na rua com a meninada,

Brincar de roda e de cirandinha...

Depois subir a ladeira do mosteiro,

Rezar a Ave Maria E nada mais,

Rezar a Ave Maria E nada mais...

Olinda! Eterna!

Olinda! Eterna!

(Capiba)

Page 58: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

57

3 DO TEXTO AO CONTEXTO: A DITADURA E A CONSTRUÇÃO DA

MEMÓRIA OFICIAL

3.1 Do universo da memória urbana ao recorte da memória oficial

O aporte teórico e o entendimento da memória cultural urbana nos dão um universo

possível de mídias e meios da memória de Olinda. Dentro deste universo, fazemos

um recorte plausível da construção de uma memória oficial a partir dos processos e

ações do IPHAN. Entendendo, ainda, que o universo da memória tem sua

complexidade de fontes e pontos de vista, de registros e sensibilidades tão

abrangentes quanto a própria narrativa da memória urbana.

Nem só de pedra e cal é construída uma cidade, mas também de discursos. A

memória da cidade se ancora em diversos tipos de mídia. A memória cultural urbana

pode se escorar em diversas âncoras, como proposto por Assmann. A escrita, a

imagem, o corpo e os locais, como veremos, podem ser essas âncoras.

Se pensarmos na construção proposta por Assmann, tanto a cidade em si, em seu

traçado, em seu conjunto edificado, quanto tudo o que se produz a partir disso é

construção de memória, sobretudo a partir das vivências. Para seguir a ideia da

autora, podemos realizar o exercício de elencar diversas dessas âncoras da memória

para Olinda, sem pretensão de esgota-las:

A Escrita – tudo o que se escreve sobre Olinda, desde poemas, literatura, jornal,

música, documento, memórias de moradores, trabalhos técnicos, descrição turística,

o próprio processo de tombamento do IPHAN, e tudo o que cabe dentro deste

universo.

A Imagem – Fotografias, desenhos, ilustrações, filmagem, produção audiovisual

ficcional, documentários, e tudo o que se refira à imagem da cidade.

Corpo – A exemplo da vivência do carnaval de Olinda, como é marcada no corpo. Mas

não só o carnaval, que é um momento de exceção, como o caminhar pelas ladeiras,

o sentir o cheiro, os sabores de Olinda, o ver com os olhos do corpo.

Locais – O próprio conjunto urbanístico, paisagístico e arquitetônico é memória

cultural urbana, assim como locais em específico, que, por ventura, estejam mais

Page 59: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

58

relacionados à criação de uma memória afetiva ou que marquem em especial

determinados grupos, a exemplo dos pontos de cultura e dos trajetos das

procissões19.

É bom entender que essa é uma mentalidade que também a Nova História20 propôs

para o entendimento dos novos tipos de fonte histórica. Além da multiplicidade das

fontes, cabe pensar também a multiplicidade de olhares sobre o objeto. A História

Cultural permite uma análise da cidade que se debruce sobre as representações que

dela são feitas, como no caso de entendermos os vetores em que a memória cultural

se ancora, particularmente a memória cultural urbana, a memória de Olinda. Para

Pesavento,

O que cabe destacar é a abordagem introduzida pela História Cultural: ela

não é mais considerada só como um locus, seja da realização da produção

ou da ação social, mas sobretudo como um problema e um objeto de reflexão.

Não se estudam apenas processos econômicos e sociais que ocorrem na

cidade, mas as representações que se constroem na e sobre a cidade. Indo

mais além, pode-se dizer que a História Cultural passa a trabalhar com o

imaginário urbano, o que implica resgatar discursos e imagens de

representação da cidade que incidem sobre espaços, atores e práticas

sociais. [...] Mas, destruir e remodelar a urbe implica julgar aquilo que se deve

preservar, aquilo que, em termos de espaço construído, é identificado como

ponto de ancoragem da memória, marco de reconhecimento e propriedade

19 Em relação aos locais, como pesquisadora que já teve experiência profissional, durante a graduação,

em Olinda, posso trazer um relato que me marcou profundamente nos meus anos de IPHAN-escritório

técnico de Olinda. Certa vez, em visita ao Convento Franciscano, a arquiteta responsável perguntou

ao frade o que ele achava de haver manifestações de religiões de matriz africana no lugar onde é o

Cruzeiro do Conjunto Franciscano. Ele falou, para a surpresa da arquiteta, que achava muito válida

aquela apropriação, porque aqueles que vivenciavam aquele espaço dentro de uma outra crença

estavam apenas ratificando que aquele se tratava de um Lugar Sagrado. Esse relato nunca me saiu da

cabeça, porque é construção de memória de Olinda.

20 “Neste ponto, cabe mostrar que a História Cultural não exclui a política de suas análises, como

apontam alguns de seus críticos. Pelo contrário, o campo do político tem demonstrado ser um dos mais

ricos para o estudo das representações, com o que se pode mesmo afirmar que a História Cultural

trouxe novos aportes ao político, colocando questões renovadoras e sugerindo novos objetos. Não

seria demais falar em uma verdadeira renovação do político, trazida pela História Cultural”

(PESAVENTO, 2008, p. 75).

Page 60: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

59

coletiva. Lugares de memória, políticas de patrimônio, definições de

identidades urbanas são algumas das vias temáticas que se abrem com esse

campo de pesquisa (PESAVENTO, 2003, p. 77-79).

Ou seja, o universo da memória, se assim podemos entender, faz jus à sua definição

de infinitude. Como, então, trabalhar com a memória cultural urbana dentro de uma

pesquisa de Mestrado? Essa foi uma das questões centrais que me acompanhou nas

divagações teóricas. O fato é, como estamos trabalhando o entendimento de memória

como um ato político, sobretudo na definição que Le Goff faz sobre memória, como

vimos anteriormente, desenvolvemos a hipótese de que há uma “memória oficial” da

cidade, que não necessariamente abarca todo esse universo das memórias possíveis

de Olinda, mas é um substrato desse universo. É uma memória chancelada, criada a

partir das ações preservacionistas do IPHAN, que é o órgão federal de proteção do

patrimônio cultural.

A partir desse entendimento da criação da “memória oficial” da cidade, a qual

gostaríamos de discutir a fundo nesta pesquisa, justamente para entender quais são

as “lacunas” dessa memória, e os porquês envolvidos nesse “jogo da memória”,

decidimos partir da análise do processo de tombamento da cidade de Olinda, o

processo 674-T-72, para entender essa criação de memória feita pelo Estado, e quais

as implicações relacionadas a isso.

Mas, a análise do processo ficará para mais adiante. Agora cabe-nos entender a

cidade como memória, em toda a sua complexidade de relações e vetores possíveis.

Um trabalho desenvolvido em Olinda pelo ICEI (Instituto de Cooperação Econômica

Internacional) merece destaque como uma âncora de memória. O livro intitulado

Olinda – patrimônio cotidiano. Memória coletiva dos seus Moradores recolheu, por

metodologia de história oral, muitos relatos de moradores que moram no sítio

histórico. Cerca de 80 moradores foram entrevistados e foram também recolhidas

fotos pessoais para retratar suas vivências e memórias da cidade. No prefácio do livro

se pergunta: “Quantas histórias de vida, significados, lembranças estão escondidos

em uma ladeira, em uma casa, em uma paisagem?”. Destaca-se que o entendimento

de preservação do patrimônio passa pela salvaguarda da memória coletiva. Segue-

se: “Este registro oral, plasmado no papel, é uma contribuição simples e necessária

para consolidar a memória coletiva de uma comunidade que luta para conhecer,

Page 61: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

60

reconhecer e manter seus costumes, tradições e histórias que compõem sua

identidade”.

Que memória guarda a cidade? Essa pergunta pode ser interpretada nos sentidos

ativo e passivo, que alternam os sujeitos em suas posições de ação.

Primeiro, a memória como sujeito: que memórias guardam a cidade? Que tipo de

memória é guardiã de uma narrativa sobre Olinda? Que memórias constroem Olinda

enquanto cidade viva de tradição, de cultura, de arte, de expressão do mais puro

Pernambuco? Que memórias narram Olinda enquanto a cidade eterna de Capiba?

Que memória guarda Olinda em suas tramas de lembrança e esquecimento?

Inversamente, Olinda como sujeito: que memórias Olinda guarda? Quantas e tantas

memórias vividas e construídas na cidade-mulher de Alceu? Quantas vivências,

quantas temporalidades, quantas populações envolvidas na construção da cidade?

Que memórias terá Olinda que revelar? Que memórias essa cidade guarda em suas

formas, volumes, traçados, espaços e lugares? O que os becos de Olinda têm a

revelar de sua memória? O que sua composição material tem a revelar do processo

construtivo? Das relações sociais que se escondiam nos muxarabis?

A memória tem relação direta com a seleção dos discursos. “A memória também é

alvo das disputas políticas e ela é feita mais de esquecimentos do que de lembranças”

dizia Migowski. Os discursos estão permeados por jogos de poder. Há a memória

oficial, que supomos aqui ser construída pelo IPHAN, à medida que protege o

patrimônio. O ato de tombar é também um discurso. Tombe-se.

E é também importante entender de que modo essa construção da memória oficial da

cidade está relacionada com as vontades do Estado, num momento em que havia

intenções muito claras da criação de uma identidade nacional aglutinadora. Talvez

seja pertinente olhar para a construção da memória pelo prisma que Silva (2017, p.

15) propõe em sua tese. Para ela:

Ao selecionar por muito tempo bens cuja história remetia-se a uma ideia de

Brasil branco, católico, elitista, de origem lusitana, ordeiro e disciplinado que

se queria construir do Brasil na década de 1930 o IPHAN contribuiu para a

afirmação de imaginário e princípios sociais afeitos ao Brasil do autoritarismo,

correspondendo especialmente aos interesses do Estado Novo e da Ditadura

Militar.

Page 62: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

61

Atentos a isto, procuremos entender o contexto e, logo em seguida, a análise crítica

fundamentada dos documentos selecionados.

3.2 Ditadura Militar e as reverberações no IPHAN

É importante pensar que o SPHAN/DPHAN/IPHAN, como órgão federal ligado ao

Ministério de Educação e Cultura (à época), não é isento em atender a interesses

políticos do Governo ao qual estava subordinado. A construção da memória, como

dito, atende a vontades políticas, que podem tanto afirmar determinados traços, como

promover um esquecimento compulsório de outros, dentro das intenções próprias da

criação e afirmação de uma identidade, dita, nacional.

A documentação proposta para análise nesta dissertação inicia-se em 1966, já dentro

do período do Regime Militar. As periodizações propostas também ocorrem dentro

deste regime. Pensar o tombamento de Olinda e, logo após, sua elevação à condição

de Monumento Nacional é também tentar enxergar as entrelinhas da afirmação de um

Patrimônio elegido para representar determinada sociedade. O patrimônio legitimado

é objeto de políticas públicas, afinal.

Fonseca (1997, p. 42), no livro Patrimônio em Processo, diz que a trajetória da política

federal de preservação esteve ligada, desde os primórdios, à ideia da elaboração da

identidade nacional através de um patrimônio histórico e artístico.

Através da seleção, reconhecimento e proteção desse patrimônio é que nos cabe

questionar que identidade é essa? Que traços culturais foram realçados, no caso de

estarem relacionados a determinados grupos sociais, e que marcas da cultura que

constrói patrimônio foram apagadas, portadas ao esquecimento?

É claro que essa construção existe em diversas pesquisas com enfoque num recorte

nacional, mas a dissertação proposta intenta verificar a construção dessa memória

oficial no âmbito da Cidade de Olinda, avaliando que podemos entender como “oficial”

aquela memória que está relacionada a ações do órgão federal de proteção ao

patrimônio histórico.

Silva (2017, p. 22), em sua tese de doutoramento, trata

Page 63: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

62

[...] de que forma a prática de tombamento estabelecida pelo SPHAN

privilegiou tombamentos que se remetiam à memória coletiva de grupos

privilegiados da sociedade e apresentavam o Brasil como um país católico,

branco, elitista, ordeiro e disciplinado. Embora a ênfase seja nas

caraterísticas dos trabalhos desenvolvidos na fase de 1937 a 1964, sobretudo

durante o Estado Novo, obviamente a representatividade desses

tombamentos não se alterou imediatamente a favor de outros, portanto,

abordamos a continuidade e as semelhanças que transcorreram até 1985.

É exatamente a criação dessa memória cultural urbana, que se coloca como oficial,

que cria a ideia da identidade coesa e harmoniosa de um Brasil branco, cristão e

barroco. É quando o patrimônio é usado para legitimar essa suposta identidade, de

modo a selecionar não apenas bens culturais, mas traços culturais que devem ser

legitimados como fundadores da memória. Em contrapartida, há os esquecimentos.

Fonseca (1997, p. 59) fala que “a noção de patrimônio se inseriu, portanto, no projeto

mais amplo de construção de uma identidade nacional, e passou a servir ao processo

de consolidação dos Estados-nações modernos”. Ela mostra que a legitimação do

patrimônio estava ligada a determinadas “funções simbólicas”, tais como:

1- Reforçar a noção de cidadania a partir dos bens culturais que agora pertencem aos

cidadãos;

2- Reforçar a ideia de Nação, de forma que essa “coesão” nacional é necessária para

a própria defesa do patrimônio comum;

3- Legitimar o poder atual a partir do “mito de origem da nação”;

4- Instrução dos cidadãos pela noção de pertencimento em relação aos bens culturais.

Tudo isso é formador de sentimento de pertencimento a um grupo ou coletividade. As

funções simbólicas do patrimônio são, portanto, fundadoras da identidade nacional,

quando legitimado pelas políticas públicas de preservação.

Na década de sessenta, em pouco mais de trinta anos de atuação, o IPHAN21

mantinha uma política de preservação pautada nos tombamentos e obras. Neste

período, entra, porém, numa fase de desgaste e retração econômica, devido à falta

de recursos destinados à preservação. Fonseca (1997, p. 158) aponta que

21 À época, SPHAN.

Page 64: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

63

Esse desgaste ficou evidente na contundente campanha movida pelo

jornalista Franklin de Oliveira, de novembro de 1966 ao final de 1967, através

do jornal O Globo, denunciando a degradação do patrimônio, com o título de

“Morte da memória nacional”. (Oliveira, 1991)

O jornalista denunciava a precarização da proteção ao patrimônio, falando da carência

dos recursos financeiros destinados às políticas de preservação. A partir de 1965 o

IPHAN começa a alinhar suas políticas preservacionistas à UNESCO, de modo a não

apenas reforçar sua atuação no campo da preservação do patrimônio, como também

responder a interesses desenvolvimentistas que viriam a transformar os bens culturais

em mercadorias de potencial turístico (FONSECA, 1997, p. 161).

Como narrativa nacional, Gonçalves afirma que a criação e legitimação do patrimônio

cultural no Brasil é, sim, construção de memória: “Interpreto esses discursos como

‘narrativas nacionais’, isto é, modalidades discursivas cujo propósito fundamental é a

construção de uma ‘memória’ e de uma ‘identidade’ nacionais” (GONÇALVES,1996,

p. 11).

O nexo do patrimônio como objeto dessa construção memorial vem desde os

primórdios do IPHAN, atravessando o Estado Novo e a Ditadura Militar, como disse

Silva22 acima. Gonçalves (1996) fala que essa busca da construção da memória e

identidade nacionais se vale, muitas vezes, de um conjunto heterogêneo e

fragmentário de itens culturais para formar esse composto homogêneo chamado de

“cultura brasileira”. Para o autor,

Redimida enquanto “civilização” e “tradição”, a nação, na narrativa de Rodrigo

[Melo Franco de Andrade], individualiza-se, na medida mesmo em que

consegue resgatar e preservar essas entidades que sustentam sua memória

e identidade. [...] O Brasil é simbolicamente visualizado por meio de

elementos concretos e contingentes, tais como objetos, monumentos,

cidades históricas, que são usadas para representar verdades

transcendentes como a “tradição” e a “civilização”. (GONÇALVES, 1996, p.

120)

22 Cf. SILVA, Ana Paula da. O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) e a

construção da memória histórica nacional por meio dos bens culturais imóveis inscritos no Livro do

Tombo Histórico (1937-1985). 2017. 230 f. Tese (Doutorado em História) – Faculdade de Ciências

Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista ―Júlio de Mesquita Filho‖, Franca, 2017.

Page 65: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

64

O Estado autoritário militar buscava, na construção dessa identidade nacional, a

afirmação de uma civilização que herdava a cara portuguesa em sua cultura

construtiva. Nação “civilizada”. Buscava-se uma noção de brasilidade vinculada ao

nacionalismo da época militar.23

Importante pontuar nessa época o surgimento do Conselho Federal de Cultura, em

1966. O conselho foi pensado para fortalecer justamente as instituições culturais

ligadas ao MEC que passavam por desgaste político-institucional e financeiro, além

de tentar remediar a imagem negativa que o Regime Militar tinha nos setores culturais.

Na 255ª sessão plenária do CFC, em 1971, Josué Montello narra o episódio

de quando convenceu o presidente Castelo Branco sobre a necessidade de

criação do CFC. Montello conta que sabia da preocupação de Castelo Branco

em relação às constantes campanhas de “Terrorismo Cultural” que se

alastravam nos estados do Rio de Janeiro e de São Paulo, sendo que nestas

localidades encontravam-se muitos grupos artísticos e intelectuais de

oposição ao regime. Assim, apresentou o projeto do CFC como uma forma

de reação as críticas e as crises institucionais e financeiras do setor cultural

do MEC. De acordo com Tatyana Maia (2010a), o Conselho Federal de

Cultura “aparecia como uma opção à imagem negativa construída pela

atuação extremamente repressora de setores do governo na cultura”

(LAVINAS, 2014, p. 75).

É nesse contexto que se insere a construção da memória nas ações do IPHAN.

Levando em consideração todas as contradições do período, as entrelinhas e

sobretudo as intenções na busca de uma identidade nacional coesa. De um lado, o

“terrorismo cultural” contra os grupos de artistas e intelectuais que eram contrários ao

regime, com destaque para o Tropicalismo e o Teatro Oficina, de outro, a tentativa de

remediação e afirmação de uma política preservacionista preocupada com a “tradição”

e civilidade da nação, protetora dos monumentos e cidades históricas,

salvaguardando os objetos que têm valor simbólico de um nacionalismo exaltado.

Quando os militares assumiram o poder político em 1964 o patrimônio cultural

já traduzia uma imagem que lhes interessava, a do Brasil ordeiro e

disciplinado, conduzido por determinados grupos, e um Estado forte, capaz

23 Cf. Laís Villelaa Lavinas, Um animal político na cultura brasileira: Aloísio Magalhaes e o campo do

patrimônio cultural no Brasil (anos 1966-1982). 2014. 223f. Dissertação (Mestrado em História).

UNIRIO, 2014.

Page 66: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

65

de defender o país desde os portugueses que expulsaram holandeses,

franceses e espanhóis e posteriormente lutaram pela independência, um

povo de bom caráter e fiel a Deus. O que estava representado no patrimônio

cultural protegido e inscrito no Livro do Tombo Histórico não era o Brasil

explorado por Portugal, composto pelas três raças que guardavam diferenças

e conflitos entre si, com cultos religiosos sincréticos etc., mas sim o Brasil da

homogeneidade e da suposta democracia racial (SILVA, 2017, p. 178).

Como sabemos, o governo militar criou o Programa das Cidades Históricas (PCH),

organizado a partir do final de 1972. O IPHAN atuou como fiscalizador de obras de

restauro, chancelando escolhas como a de destruição da feição eclética da Sé de

Olinda, em detrimento de um retorno a uma, em parte inventada, feição seiscentista

(CABRAL, 2016). Apesar do PCH ser elemento importante para pensar a construção

da memória oficial de Olinda, com marcas na materialidade dos bens produzidas pelas

restaurações, priorizamos o documento de tombamento do conjunto urbanístico, por

ter no IPHAN seu agente principal e por inaugurar, cronologicamente, um

entendimento do que seria a Olinda merecedora de preservação24.

3.3 Processo, Arquivo e os Armazenadores da Memória

Como já apontado anteriormente, nos procedimentos metodológicos, o conjunto de

documentos utilizados como base de análise da presente pesquisa compõe o

processo de tombamento da cidade de Olinda. Dessa forma, esta dissertação utiliza

como fonte primária de pesquisa os documentos oficiais da instituição à época

nominada DPHAN (Departamento do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional),

autarquia federal ligada ao então Ministério da Educação e Cultura - MEC.

Para melhor entendimento, processo é a forma burocrática de registro de como se

dão as ações administrativas da instituição, no que concerne aos seus trâmites legais.

Assim sendo, dentro deste processo, encontramos diversos tipos de documentos de

diferentes naturezas, tais como cartas, ofícios, informações, mapas, fotografias,

propostas, pareceres, atas de reunião do Conselho Consultivo, notificações etc., tudo

24 Para maiores informações sobre o PCH ver Dossiê organizado pelos Anais do Museu Paulista

(vol.24 no.1 São Paulo jan./abr. 2016).

Page 67: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

66

devidamente protocolado e datado, para entendimento e consulta pública. O processo

tem início em 1966 e, embora haja presença de alguns manuscritos, a maioria dos

documentos é registrada em sua forma datilografada.

No que se refere ao tombamento, é em 1937 que ocorre o estabelecimento de seu

marco legal, através do Decreto-Lei Nº 25, de 30 de novembro do referido ano. O

tombamento constitui-se enquanto instituto jurídico por meio do qual um conjunto de

bens selecionados pelo Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, atual

IPHAN, será objeto de proteção especial por parte do Estado. Através do Art. 4º do

Capítulo II do Decreto Lei, o então “Presidente da República dos Estados Unidos do

Brasil”, Getúlio Vargas, estabelece a proteção ao que era então considerado

patrimônio histórico e artístico nacional, a ver:

DO TOMBAMENTO Art. 4º O Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico

Nacional possuirá quatro Livros do Tombo, nos quais serão inscritas as obras

a que se refere o art. 1º desta lei, a saber: 1) no Livro do Tombo Arqueológico,

Etnográfico e Paisagístico, as coisas pertencentes às categorias de arte

arqueológica, etnográfica, ameríndia e popular, e bem assim as mencionadas

no § 2º do citado art. 1º. 2) no Livro do Tombo Histórico, as coisas de interêsse

histórico e as obras de arte histórica; 3) no Livro do Tombo das Belas Artes,

as coisas de arte erudita, nacional ou estrangeira; 4) no Livro do Tombo das

Artes Aplicadas, as obras que se incluírem na categoria das artes aplicadas,

nacionais ou estrangeiras. § 1º Cada um dos Livros do Tombo poderá ter

vários volumes. § 2º Os bens, que se incluem nas categorias enumeradas

nas alíneas 1, 2, 3 e 4 do presente artigo, serão definidos e especificados no

regulamento que for expedido para execução da presente lei (BRASIL, 1937).

Assim sendo, o processo de tombamento é o registro dos trâmites legais e ações

administrativas concernentes a essa proteção legal - a inscrição nos Livros do Tombo

- dada aos bens culturais considerados patrimônio histórico e artístico de relevância

nacional.

Olinda já havia tido processos de tombamento anteriores, relacionados, porém, a bens

arquitetônicos em específico, em sua maioria igrejas barrocas.25 O processo que

vamos analisar se difere dos anteriores porque traz o entendimento de que se constitui

25 No capítulo seguinte são listadas as igrejas e monumentos tombados isoladamente pelo IPHAN antes

do tombamento de Olinda enquanto conjunto.

Page 68: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

67

como patrimônio não mais apenas elementos arquitetônicos isolados, mas o conjunto

urbano.26

Imagem 1 - Capa do Volume I do Processo de Tombamento do conjunto urbanístico, paisagístico e arquitetônico de Olinda-PE, processo nº 674-T-62.

Fonte: Arquivo Noronha Santos - IPHAN

26 Sobre isso, aprofundaremos adiante a relação da Carta de Veneza (1964) com as ressonâncias no

modo de atuar do SPHAN, à época.

Page 69: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

68

Atendendo pelo código 674-T-62, o processo em suas vias físicas originais encontra-

se no arquivo central do IPHAN, no Rio de Janeiro, o chamado Arquivo Noronha

Santos27.

O arquivo, que nasceu como biblioteca, teve a contribuição de Carlos Drummond de

Andrade na organização de sua coleção. Em 1954, passa a chamar-se Arquivo

Noronha Santos, em ocasião da morte do historiador Francisco Agenor Noronha

Santos, membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro – IHGB, e também

insigne colaborador do SPHAN. O Arquivo, hoje, está subordinado ao Departamento

de Identificação e Documentação do IPHAN e lhe é atribuída a salvaguarda da

documentação produzida no âmbito da instituição, tais como os processos de

tombamento, entre outros, sendo de suma importância para o desenvolvimento de

estudos sobre políticas de cultura, memória e patrimônio e sobre a atuação do Estado

Brasileiro na preservação do patrimônio histórico.

Situado no Palácio Gustavo Capanema, o Arquivo Noronha Santos guarda

documentação organizada em quatro séries: Inventário, Arqueologia, Obras e

Tombamento. A série Tombamento é precisamente composta dos processos de

tombamento, onde, portanto, pode-se encontrar o processo que estamos a trabalhar,

o 674-T-92. As demais séries contam com documentos textuais e iconográficos,

compondo importante referência de pesquisa sobre as obras realizadas no âmbito da

instituição, além de inventário de bens culturais das mais diversas naturezas. Além

dessas séries documentais, o arquivo também possui os Livros de Tombo. É nos livros

de Tombo que se registra os bens que receberão proteção especial do Estado

Brasileiro, conforme apontado anteriormente, segundo o que diz o Decreto Lei Nº

25/1937.

Segundo Assmann (2011, p. 367), “A palavra ‘arquivo’ vem do grego arché, que além

de ‘início’, ‘origem’ e ‘autoridade’, significa ‘repartição pública’ e ‘escritório público’. [...]

O arquivo está ligado desde o seu princípio com a escrita, a burocracia, a

administração e aos atos administrativos. ” É importante, então, entender que há

27 Importante destacar que este arquivo, referência para muitos pesquisadores brasileiros, nasce como

Biblioteca do Patrimônio, em 1936, criada por quem viria a ser o primeiro presidente do SPHAN, em

1937, Rodrigo Mello Franco de Andrade.

Page 70: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

69

relações fundamentais entre o arquivo, a escrita e a memória, concebendo o arquivo

como mais do que uma simples instituição armazenadora e organizadora de

documentos, mas um lugar que possui caráter político e crucial importância para a

memória da sociedade, funcionando como o que eu chamaria de âncora da memória.

Arquivos podem ser organizados tanto como memórias funcionais quanto

como memórias de armazenamento; no primeiro caso, eles contêm

documentos e peças comprobatórias que asseguram a base legitimadora das

relações de poder vigentes; no outro caso, revelam fontes potenciais que

perfazem o fundamento do saber histórico de uma cultura (ASSMANN, 2011,

p. 438).

A autora fala que a existência dos arquivos é possibilitada pela técnica da escrita, “que

removeu a memória de dentro do ser humano e a tornou fixa e independente dos

portadores vivos” (Assmann, 2011, p. 367), e daí vemos a primeira relação essencial

entre escrita, arquivo e memória. O surgimento do arquivo está relacionado, então,

com esse volume de documentos escritos, sendo, portanto, um armazenador em

essência. Ainda segundo Assmann, “Assim, a partir do arquivo como memória da

economia e da administração, surge o arquivo como testemunho do passado” (Idem).

A escrita também está imbricada com a memória desde seu nascimento e é um meio

essencial para o suporte dessa memória e seu passar entre as gerações, como

herança. Nos primórdios da História28, a escrita é já colocada como suporte da

memória.

A escrita é meio de memória, nas palavras de Assmann, “Escrita é medium de

eternização e suporte da memória”, podendo, ao longo do tempo, resistir, em seu

suporte material, até mais do que monumentos arquitetônicos.

Já os antigos egípcios enalteciam a escrita como o medium mais seguro da

memória. Quando olhavam retrospectivamente para a própria cultura, em um

28 “Heródoto de Halicarnassus apresenta aqui os resultados da sua investigação, para que a memória

dos acontecimentos não se apague entre os homens com o passar do tempo, e para que os feitos

admiráveis dos helenos e dos bárbaros não caiam no esquecimento; ele dá, inclusive, as razões pelas

quais eles se guerrearam” (I, 1). Heródoto retoma e transforma a tarefa do poeta arcaico: contar os

acontecimentos passados, conservar a memória, resgatar o passado, lutar contra o esquecimento.

Tarefa essencial que a voz do poeta--numa sociedade sem escrita como o era a Grécia arcaica--

encarnava, e que continuou também no texto poético escrito. ” (GAGNEBIN, 2005, p.15)

Page 71: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

70

lapso temporal de mais de mil anos, ficava-lhes claro que construções

colossais e monumentos jaziam em ruínas, mas os textos daquela mesma

época ainda eram copiados, lidos e estudados. ASSMANN, 2011, p. 195

Assim sendo, podemos inferir que a escrita é mídia, suporte da memória, e o arquivo

é um armazenador da memória, sendo este também relacionado à memória na ideia

da guerra pela memória, ou seja, refletindo as relações de poder vigentes. Se

tomarmos como exemplo os arquivos secretos de regimes ditatoriais, a exemplo da

Ditadura Militar no Brasil, fica clara a ideia de o poder sobre o arquivo ser o poder

sobre a memória. Para Derrida, “A questão jamais pode ser posta como questão

política entre outras questões. Ele define todo o campo e na realidade decide de A e

Z a respeito da res publica. Não há poder político sem o controle sobre os arquivos,

sem o controle sobre a memória” (DERRIDA, 1995, p. 10).

Dessa forma, temos relações basilares entre escrita, arquivo e memória, de forma a

entender que a escrita surge como sistema de registro da memória, tornando possível

levar a memória para além da herança de três gerações ligadas pela oralidade, para

além da memória humana, configurando-se então como memória cultural, como

discutido anteriormente. Além disso, tem-se o arquivo, que deriva da acumulação da

escrita, e que é armazenador de memória, sendo espaço de memória em potencial,

justamente porque há relações políticas que agem sobre o arquivo, colocando a

memória como objeto de disputas de poder.

O arquivo é, primeiramente, a lei daquilo que se pode dizer, o sistema que

comanda o surgimento das afirmações como acontecimentos individuais.

Mas o arquivo também é aquilo que faz com que tudo que é dito não se

amontoe até o infinito em uma pilha enorme e amorfa, e também não

desapareça por causa de condições externas repentinas. [...] Arquivo [...] é o

que desde o princípio, nas raízes de uma própria afirmação, define o sistema

de sua expressividade enquanto acontecimento, e isso no próprio corpo em

que essa afirmação se dá (FOUCAULT, 1973, p. 186).

Page 72: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

71

3.4 Comissão Nacional da Verdade e o Direito à Memória

No âmbito nacional, os arquivos públicos são regulamentados pela Lei Federal no

8.159/1991. Em seu Art. 7º define-se que “Os arquivos públicos são os conjuntos de

documentos produzidos e recebidos, no exercício de suas atividades, por órgãos

públicos de âmbito federal, estadual, do Distrito Federal e municipal, em decorrência

de suas funções administrativas, legislativas e judiciárias”. Esta mesma Lei

regulamenta a organização e administração dos arquivos, mostrando como essas

instituições armazenadoras de memória estão sob a tutela do Estado e,

consequentemente, sob relações de poder, o que tanto pode significar processos de

ocultamento da memória nacional, no caso de documentos dos arquivos secretos da

ditadura, como processos de revelação da memória, a exemplo da instauração da

Comissão Nacional da Verdade29, tendo sido instaurada em governo democrático, que

teve intenção política de revelação da memória, como nenhum governo anterior já no

período democrático.

Ao se tornarem públicos, os documentos levantados e os trabalhos

desenvolvidos durante a vigência de uma Comissão da Verdade, reforçam

esses três objetivos30, que forma parte dos eixos da Justiça de Transição.

29 Cf. http://cnv.memoriasreveladas.gov.br/, acesso em set/2018. A Comissão Nacional da Verdade,

instituída no Governo Dilma Rousseff, conta com a presença de vasta equipe de conselheiros e

pesquisadores ligados às principais universidades públicas do país, os pensadores da ciência e da

história do Brasil

30 Objetivos gerais da Comissão da Verdade instaurada no Governo Dilma:

1. Analisar os contextos sociais e históricos nos quais se passaram os abusos e violações,

esclarecendo, na medida do possível, os fatos que muitas vezes foram encobertos ou distorcidos por

mecanismos do próprio Estado. Assim, frequentemente as Comissões da Verdade enfrentam uma

cultura do esquecimento com que se pretende negar o acontecido e dificultar a apuração das evidências

que permitam apontar os responsáveis pelas violações de direitos humanos ocorridas no período.

2. Reconhecer e proteger as vítimas exigindo que o Estado valorize seus testemunhos como

fundamentais para a construção da verdade histórica e repare, mesmo que parcialmente, os danos

decorrentes das violências sofridas.

3. Elaborar relatórios e recomendações, com sugestões de reformas institucionais, revisões

constitucionais e processos de justiça que possam garantir o aperfeiçoamento da democracia.

Page 73: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

72

Além disso, possibilitam que um amplo debate social se estabeleça e que a

população e as instituições reflitam sobre seu passado, tentando, assim,

impedir que graves violações aos direitos humanos sigam ocorrendo no

presente. (CNV, 2014)

A Comissão Nacional da Verdade fala da construção de uma “narrativa da memória”

como forma de não só resgatar o passado, revelar as verdades ocultadas sobre as

violências e práticas repressivas da ditadura militar, como também para que a

memória viva sirva de exemplo para que “nunca mais” se repitam tais atos contra a

democracia, contra os direitos humanos.

A memória foi o dever da Argentina posterior à ditadura militar e o é na maioria

dos países da América Latina. O testemunho possibilitou a condenação do

terrorismo do Estado; a ideia do “nunca mais” se sustenta no fato de que

sabemos a que nos referimos quando desejamos que isso não se repita

(SARLO, 2007, p.20).

Aliás, cabe aqui mostrar o paralelo entre a ascensão do discurso da memória e o

movimento transnacional pelos direitos humanos, que, segundo Huyssen, “são

construções complexamente sobredeterminadas, geradas por constelações políticas

específicas do final do século XX, as quais resultaram do fim das ditaduras na América

Latina, [...] ” e de outros movimentos políticos sociais da época.31

O recurso na presente narrativa à Comissão da Verdade, que coloca em jogo vidas,

não pretende igualar os esquecimentos no campo da cultura material aos dessas

vidas, mas atentar para a importância simbólica de ocultamentos de memórias de

determinados grupos e sua invisibilidade enquanto formadores do patrimônio dito

nacional.

A ideia da memória exemplar é essencial nessa guerra de memórias, em que o

processo de esquecimento “precisa ser situado num campo de termos e fenômenos

como silêncio, desarticulação, evasão, apagamento, desgaste, repressão”

(HUYSSEN, 2014, p.158), de modo a manipular a memória nacional, fazendo cumprir

intenções políticas de ocultamento da verdade, típico de posturas autoritárias. A

31 Cf. Huyssen, Os direitos humanos internacionais e a política da memória: limites e desafios. In:

Culturas do passado-presente. Modernismos, artes visuais, políticas da memória. Rio de Janeiro:

Contraponto, 2014, pp.195-213

Page 74: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

73

memória é exemplar na medida em que, constantemente trazida à tona, nos impede

de repetir os mesmos erros, ou de, enquanto sociedade democrática, permiti-los, ou

ainda nos dá a consciência das atrocidades cometidas no passado, nos dando luz

sobre processos presentes, como golpes e discursos que laceram a memória

nacional.

Democratizar o acesso aos arquivos públicos e aos documentos e coleções é uma

forma de administração que visa a aproximação do público aos registros de memória.

É possível observar a transformação da intenção política quando se compara a Lei nº

8.159, de 8 de janeiro de 1991, do então governo Collor de Melo, com a Lei nº 12.527,

de 18 de novembro de 2011, do governo Dilma Rousseff, e isso é importante porque

o arquivo é objeto de disputas de poder (segundo Assmann, 2011, p. 368, “controle

do arquivo é controle da memória”). No primeiro momento, é garantido o acesso à

informação contida nos documentos do arquivo “ressalvadas aquelas cujos sigilo seja

imprescindível à segurança da sociedade e do Estado, bem como à inviolabilidade da

intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das pessoas”. Especificamente o

capítulo V, que em 1991 versava sobre o “acesso e sigilo dos documentos públicos”,

é revogado pela lei de 2011, que garante um processo de reclassificação dos

documentos considerados sigilosos, mas garante o acesso àqueles fundamentais

para a luta contra as atrocidades cometidas durante a ditadura militar, a ver:

Art. 21. Não poderá ser negado acesso à informação necessária à tutela

judicial ou administrativa de direitos fundamentais.

Parágrafo único. As informações ou documentos que versem sobre condutas

que impliquem violação dos direitos humanos praticada por agentes públicos

ou a mando de autoridades públicas não poderão ser objeto de restrição de

acesso. (BRASIL, 2011)

Um detalhe que não me passou despercebido é a presença de Jarbas Passarinho32

na Lei de 1991, como ministro da Justiça do governo Collor, devido a sua presença,

como veremos no capítulo a seguir, em documentos do Processo de Tombamento de

32 Cf. http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-biografico/jarbas-goncalves-passarinho

acesso em set/2018. PASSARINHO, JARBAS (*militar; gov. PA 1964-1966; sen. PA 1967; min. Trab.

1967-1969; min. Educ. 1969-1974; sen. PA 1974-1983; min. Prev. Social 1983-1985; sen. PA 1986-

1990, 1992-1994; const. 1988; min. Just. 1990-1992.)

Page 75: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

74

Olinda, quando era então Ministro de Educação e Cultura do regime militar durante o

período Médici. Segundo o Centro de Pesquisa e Documentação de História

Contemporânea do Brasil – CPDOC-, ligado à Fundação Getúlio Vargas –FGV-,

“Como todos os ministros que integravam o Conselho de Segurança Nacional, Jarbas

Passarinho foi signatário do AI-5. ” Esse detalhe corrobora para a ideia de Derrida,

que fala que “Não há poder político sem o controle sobre os arquivos, sem o controle

sobre a memória”33.

Em tempos de conversão de mídias analógicas para digitais, pensar em formas de

digitalização de acervos é uma estratégia sine qua non para o funcionamento e a

democratização dos arquivos, quando há essa intenção política. O Conselho Nacional

de Arquivos – CONARQ –, criado em ocasião da Lei de 1991, ligado ao Arquivo

Nacional, chegou a recomendações técnicas para a digitalização de documentos

arquivísticos permanentes34 em 2010. A recomendação traz que:

A digitalização de acervos é uma das ferramentas essenciais ao acesso e à

difusão dos acervos arquivísticos, além de contribuir para a sua preservação,

uma vez que restringe o manuseio aos originais, constituindo-se como

instrumento capaz de dar acesso simultâneo local ou remoto aos seus

representantes digitais35 como os documentos textuais, cartográficos e

iconográficos em suportes convencionais, objeto desta recomendação.

CONARQ, 2010, p. 4

Desde 2010, o IPHAN tem feito um trabalho de digitalização dos documentos originais

do Arquivo Central como ação de preservação desses próprios exemplares. Através

do Programa de Preservação de Acervos 2010/2011, financiado pelo Banco Nacional

de Desenvolvimento Econômico e Social – BNDES -, têm sido disponibilizados muitos

documentos digitalizados para acesso por meio da internet, no portal do IPHAN, na

aba ‘Rede de Arquivos do IPHAN’.

33 Derrida, Jacques. Archive Fever. A Freudian Impression, Diacritics 20.2, 1995, pp 9-63; o trecho

citado está nas pp. 10-1. Apud Assmann, 2011, p. 368.

34 Lei Federal nº 8.159/1991, Art 8º, § 3º - Consideram-se permanentes os conjuntos de documentos

de valor histórico, probatório e informativo que devem ser definitivamente preservados.

35 Representante digital - (digital surrogate) - Nos termos dessa Recomendação é a representação em

formato de arquivo digital de um documento originalmente não digital. É uma forma de diferenciá-lo do

documento de arquivo nascido originalmente em formato de arquivo digital (born digital). CONARQ,

2010, p. 4

Page 76: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

75

A iniciativa possibilita acesso às informações existentes nos arquivos do

Iphan por meio da Rede de Arquivos Iphan, além do tratamento e

conservação preventiva dos documentos para evitar o manuseio indevido das

fontes históricas. Preservando adequadamente os originais, garante-se a

perenidade das informações e futuras digitalizações ou o uso de novas

tecnologias que poderão surgir. (IPHAN, Rede de Arquivos)

Assim sendo, o repositório de documentos do IPHAN é uma iniciativa que democratiza

o acesso à documentação que é de interesse público, mostrando uma postura de

socialização do poder sobre a memória nacional.

Imagem 2 - Projeto Rede de Arquivos do IPHAN

Levando em conta os 80 anos de atuação do IPHAN, a iniciativa de digitalizar e

disponibilizar os documentos entre os quais “inventários, imagens, plantas, dossiês,

relatórios de obras e processos de tombamento, além de rica documentação

iconográfica e cartográfica”, é não apenas importante para pesquisadores, como para

toda uma sociedade, que ancora sua memória nesses suportes e armazenadores, nas

formas “cumulativa” e “funcional”, como vimos anteriormente. Para Assmann, “Nas

culturas escritas tem-se as duas formações, e o futuro da cultura depende em grande

medida de que essas memórias continuem existindo lado a lado, também sob as

condições proporcionadas pelas novas mídias” (Assmann, 2011, p. 154).

São 80 anos de políticas de cultura, memória e patrimônio, registradas nessa vasta

documentação que mostra o alargamento da noção de patrimônio cultural rebatido em

políticas de preservação. A seleção, reconhecimento e proteção desse patrimônio

mostra também uma certa construção da memória e identidade de uma nação, que

precisa ser compreendida em seu contexto de produção, sob o risco de continuarmos

em certas direções, sem quebrarmos verdadeiramente determinadas lógicas e

escolhas.

Page 77: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

76

4 UMA OLINDA CRISTÃ E VERDE: DO TOMBAMENTO (1966-1968)

Meu pai também acreditava que o banho de mar salutar era o

tomado antes do sol nascer. Como explicar o que eu sentia de

presente inaudito em sair de casa de madrugada e pegar o

bonde vazio que nos levaria para Olinda ainda na escuridão?36

O trecho do conto de Lispector é o exemplo de uma memória ligada à cidade de

Olinda. No conto, ela fala sobre os banhos de mar que tomara lá, e tudo relacionado

ao trajeto, às sensações, ao próprio mar. Para Assmann (2011), a memória ancora-

se em diversos meios, sejam eles a escrita, a imagem, o corpo, o lugar, além dos

armazenadores, como vimos, o caso do arquivo.

Quando falamos de memória da cidade, estamos falando de um universo de “mídias”

ou vetores que portam em si vivências, como signos do passado, tal como o edifício

é suporte para a pátina que nele depõe, assim são os vetores para a memória. A

memória da cidade é também composta de muitas memórias possíveis. Podemos

pensar sobre a memória dos moradores; a memória de quem tem alguma vivência em

Olinda que lhe seja cara; a memória dos carnavais; a memória na literatura, na poesia,

nas cantorias, nos maracatus; a memória que repousa nas fotografias, nas ilustrações,

nos desenhos, nos mapas e estudos. A memória, também, que está nos rituais, nas

expressões religiosas, no caminhar das procissões ou no coco pisado. Há uma

infinidade de memórias e de meios nos quais a memória se ancora.

Dentro deste universo de possíveis memórias, falar sobre memória oficial é buscar um

substrato desse universo que reflita uma memória construída por meios oficiais, como

no caso de estarmos trabalhando com o processo de tombamento da cidade,

documentação produzida por um órgão federal de proteção ao patrimônio nacional.

O processo encaixa-se então com um constructo da memória oficial da cidade. Assim

sendo, podemos entender a documentação como meio de memória, sendo a mídia de

escrita depositada no armazenador da memória, o arquivo. Podemos também

entender o ato de tombar, de selecionar, reconhecer e proteger determinada parte da

36 LISPECTOR, Clarice. “Banhos de mar”. In: Clarice Lispector, Todos os contos.

Page 78: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

77

cidade também como uma forma de construção da memória urbana, à medida em que

salvaguarda e porta para futuras gerações o testemunho do vivido, do construído,

daquilo que vai ser base para a identidade da sociedade vindoura, memória urbana

ancorada em ‘pedra e cal’.

O processo de tombamento de Olinda é composto por quatro volumes e um anexo. O

volume I inicia-se em 1966, com a abertura do processo, contendo uma carta37 do

arquiteto Augusto da Silva Telles endereçada ao arquiteto José Luís da Mota

Meneses. É o início da proposta. Nesta dissertação, vamos nos ater à documentação

referente às seguintes periodizações propostas para o entendimento da memória

urbana:

A primeira, de 1966 a 1968, onde trata-se exatamente do tombamento, da inscrição

do polígono urbanístico nos Livros do Tombo. A segunda, de 1972, ano de retomada

do processo, até 1980, ano em que é concedido o título de Monumento Nacional à

cidade de Olinda, buscando analisar não apenas a história de como se deu a definição

do polígono e a proteção da cidade em âmbito federal, como também buscar entender

que processos de criação de memória urbana estão engendrados nessa seleção e na

concessão do título de Monumento Nacional.

Porém, temos mais três volumes e um anexo, em que constam os seguintes assuntos:

Volume II – contém algumas segundas vias de documentos do volume I, acrescido de

proposições como um:

Plano de preservação de uma área entre o Recife e Olinda na qual

não fossem consentidas construções, de forma a permitir a visão

desembaraçada da paisagem e das velhas construções olindenses –

seus montes, suas casas, suas igrejas, sua vegetação – e o visitante,

ao aproximar-se da cidade-mater da civilização portuguesa em todo o

Norte brasileiro, percebesse desde então a importância histórica e

artística da antiga capital.38

37 Dphan, 674-T-26, Vol I, Carta nº 370, de 30 de set. de 1966. Documento assinado por Augusto da

Silva Telles.

38 Proposição, 674-T-62, Vol. II, S.E.N.E.C, Conselho Estadual de Cultura, de 18 de junho de 1974.

Documento assinado por Luiz Delgado.

Page 79: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

78

Proposição feita por Luiz Delgado, então membro do Conselho Estadual de Cultura,

ligado à então Secretaria de Estado dos Negócios de Educação e Cultura, do Estado

de Pernambuco. Entre outros documentos, é também citada a missão da UNESCO

na figura de Michel Parent. O volume é dedicado, sobretudo, ao estudo da extensão

do tombamento.

O volume III versa propriamente sobre a discussão de Olinda tornar-se Monumento

Nacional. E a isto vamos dar a devida profundidade.

O Volume IV trata da rerratificação do polígono de tombamento, sendo já uma

documentação que data de 1985 em diante.

O anexo contém alguns processos jurídicos relacionados ao Ministério Público

Federal processando a Prefeitura de Olinda sobre possíveis danos ao patrimônio etc.

Como dito, vamos nos ater às duas periodizações propostas, para entender não

apenas o processo de tombamento como criação de memória urbana, como a

elevação de Olinda a condição de Monumento Nacional, como proteção e criação de

identidade balizadas por interesses específicos e seletivos sobre a memória da nação.

Tentaremos percorrer estradas de análise que nos permitam uma narrativa da memória

da cidade sob perspectivas inovadoras, para que tragamos à luz memórias reveladas.

Para isso, propomos como chaves analíticas as seguintes ideias:

1- Identificar, no tombamento proposto, quais são as representações da memória

da cidade. Por representações da memória entenda-se o que é selecionado,

reconhecido, classificado e legitimado como patrimônio que simboliza a

memória da cidade.

2- Identificar, no tombamento proposto, que grupos sociais são representados e

o que isso significa enquanto construção de uma memória oficial. Entendendo

enquanto memória oficial aquela construída e proposta pelo órgão federal de

proteção e salvaguarda do patrimônio, o IPHAN.

Como procedimento analítico-interpretativo dos documentos, a análise do discurso,

dentro da perspectiva da História Cultural, coloca-se para nós enquanto metodologia

fundamental para o desenvolvimento da pesquisa, funcionando como espécie de

“lupa”, cuja lente se intermedia entre meu olhar de pesquisadora e a documentação.

A análise de discurso está em busca da construção do sentido, através da retomada

Page 80: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

79

de outros discursos e da relação das estratégias discursivas com a História. Conforme

vimos no capítulo anterior, o contexto histórico não é apenas pano de fundo, mas

permeia as ações, os sujeitos e as relações políticas na construção da memória

através, no nosso caso, das ações preservacionistas do IPHAN.

A análise documental traz à luz uma série de entrelinhas vividas no processo de

tombamento da Cidade de Olinda. Como lugar de memória, o documento é em si

registro e representação do vivido, sendo também vetor de memória, que é agora

desvelada, mas que se constitui enquanto memória cumulativa e potencial, evocada

para o entendimento do que significa este patrimônio cultural protegido e regido sob a

maestria do Estado, na figura do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional,

na época, Diretoria.

Como antes dito, dentro do processo encontram-se as mais diversas naturezas

documentais, dentre documentos oficiais protocolados e repercussões da imprensa

local na época. Uma delas, a que gostaria de iniciar explorando neste primeiro

momento do processo (1966-1968), é uma coluna do Correio da Manhã39, datada em

24/04/1968, escrita pelo poeta Carlos Drummond de Andrade.

4.1 E esqueceste a velha Olinda, distraída?

Chefe de gabinete do ministro Gustavo Capanema por 15 anos, Carlos Drummond de

Andrade usa um poema de Manuel Bandeira, Cotovia, escrito saudoso de um Recife

passado, para fortalecer a iniciativa do DPHAN de proteger o sítio histórico de Olinda,

cidade vizinha, também em Pernambuco. O texto de Drummond nos servirá para

problematizar a dupla “memória e esquecimento” antes de entrarmos na análise do

processo de tombamento. Segundo Drummond,

O poeta nacional Manuel Bandeira (que na moita, acaba de completar

82 anos gloriosos) encontrou-se com uma cotovia de suas relações,

que há muito não aparecia. Perguntou-lhe por onde tinha andado.

39 IPHAN, Série Tombamentos, Processo 674-T-62, Vol I, pp. 34.

Page 81: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

80

Como a resposta mencionasse diferentes ares e lugares, menos um

certo, recriminou-a:

-E esqueceste Pernambuco, distraída?

Não, a cotovia em suas voanças (existirá a palavra? Fica existindo),

pousara no Cais da Rua da Aurora, lugar dileto do bardo. Assim

também, ao ver a DPHAN colocar sob sua especial proteção conjuntos

urbanos tradicionais, como Ouro Preto, Diamantina, e outros, em

Minas, Parati no Estado do Rio, Pilar em Goiás, Alcântara, no

Maranhão, seria o caso de inquirir-lhe: “E esqueceste a velha Olinda,

distraída? ”

Não houve esquecimento, os principais monumentos arquitetônicos de

Olinda, desde Igrejas e conventos até casas de requintado muxarabi,

já estavam inscritos há longo tempo nos Livros do Tombo da instituição

federal. Isso era bastante, dadas as condições estáticas que definiam

a vida da cidade de Duarte Coelho, em sua pacatez de coqueiros e

praias posando para namorados.

[...]

Já agora, a industrialização, taxa demográfica ascendente, loteamento

e turismo (elemento vitalizador e, ao mesmo tempo, deformador),

conjugando-se, armam grave ameaça à fisionomia secular de Olinda,

exigindo cuidados de vigilância e assistência técnica só praticáveis

pelo tombamento completo do acervo paisagístico e urbanístico da

cidade. É o que acaba de fazer a DPHAN, na hora certa, por iniciativa

do arquiteto Augusto da Silva Telles, da nova geração de especialistas

em preservação de monumentos, formada sob a influência e o

exemplo dos mestres Rodrigo M. F. de Andrade e Renato Soeiro. O

conselho consultivo do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional,

unânime, aprovou o parecer de Paulo F. Santos, favorável à medida,

e mandou que Olinda, em sua área poligonal de mais viva

caracterização antiga, com o casario disposto em arruamento

espontâneo (a casa impondo, aqui e ali, a formação irregular da rua)

entrasse para a categoria dos monumentos nacionais, na companhia

ilustre de suas irmãs de outros Estados.

[...]

Page 82: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

81

Mas o importante, a meu ver, é que decisões como essa do Conselho

não devem ficar escondidas na monotonia gráfica do Diário Oficial.

Toda vez que se movimenta um grupo de técnicos, eruditos e

pesquisadores, para proteger o acervo nacional de arte e história,

inserindo o passado no presente, em harmonia com os imperativos do

desenvolvimento, sentimos que a atualidade não é feita apenas de

fofocas e violências; que há um pensamento sério, construtivo,

animando pessoas de boa-vontade e saber, para que o Brasil não se

despeça de si mesmo, e mantenha a unidade de cultura. Olinda

monumento nacional é desses sinais alentadores.

O título da coluna é Olinda, monumento nacional, porém, gostaria precisamente de

desfazer o equívoco. Ao que Drummond se refere por monumento nacional é o

reconhecimento de Olinda como cidade-patrimônio nacional pelo Tombamento - a

inscrição de Olinda nos Livros do Tombo, que foi o que ocorreu em ocasião de 1968.

A ideia de Monumento Nacional como título implica em “regime excepcional de

proteção” e na adoção de um plano urbanístico específico, com captação de recursos

para a preservação do sítio.40 A elevação de Olinda a Monumento Nacional só vem a

ocorrer em 1980, pela Lei nº 6.863, de 26 de novembro de 1980, publicada no Diário

Oficial da União em 27 de novembro de 1980, que é a segunda periodização que

vamos explorar, mais adiante. Até aqui, atenhamo-nos ao tombamento, que é sobre

o que Drummond trata nesta coluna.

40 Como exemplo, temos a cidade de Paraty, RJ. Foi inscrita nos Livros do Tombo do Patrimônio

Histórico e Artístico Nacional em 1945 e somente em 1966 foi erigida à condição de Monumento

Nacional, através do Decreto nº 58.077 de 24 de março de 1966.

Page 83: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

82

Imagem 3 - Coluna do Correio da Manhã de 24/04/1968, processo nº 674-T-62.

Fonte: Arquivo Noronha Santos – IPHAN

O poeta utiliza uma figura de linguagem para mostrar que a cidade de Olinda,

enquanto conjunto urbanístico, foi relegada pela proteção do Patrimônio Histórico por

algum tempo em relação a outras cidades históricas brasileiras, como as citadas na

coluna, Ouro Preto, Diamantina, entre outras, que tiveram o reconhecimento e

proteção vindos muito mais cedo, o que favoreceu sua preservação. “E esqueceste a

velha Olinda, distraída? ” Engraçado perceber que o processo de construção da

memória implica necessariamente em esquecimentos.

Nas palavras de Assmann (2011, p. 437), “O que se seleciona para a recordação

sempre está delineado por contornos de esquecimento. O recordar que enfoca e

concentra implica esquecimento, [...]”. O SPHAN, como se chamava na época,

protegeu, a priori, aquilo que se entendia significar os mais importantes traços da

Page 84: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

83

memória e identidade nacionais, e, ao longo dos anos, essa compreensão e proteção

vai se ampliando e agregando novas representações de memória.

A ação preservacionista do IPHAN se coloca, então, como uma força de criação de

memória cultural urbana. Se formos pensar epistemologicamente, o que chega até

nós não é apenas patrimônio, herança de cultura material. O que nos chega é a

memória cultural do que foi essa construção em processo de nosso país, de nossa

identidade enquanto nação e de uma cultura chamada brasileira.

Para aproximar-nos do entendimento de memória cultural, podemos dizer que é

aquela memória que “supera épocas e é guardada em textos normativos” (ASSMANN,

2011, p. 17). Ou ainda, quando a autora fala sobre os locais da recordação: “[...] que

os locais possam tornar-se sujeitos, portadores de recordação e possivelmente

dotados de uma memória que ultrapassa amplamente a memória dos seres humanos”

(ASSMANN, 2011, p. 317).

Essa memória que ultrapassa a memória dos humanos, que está para além da

memória geracional e coletiva, seria o entendimento mais próximo da memória que é

construída e herdada como signo da cultura e sob forma de cultura. A memória que

lança bases de uma identidade comum sem necessariamente pertencer a um grupo

fechado que comunica essa memória através das gerações, é algo que transcende

esse processo, como fala a autora.

O patrimônio que chega até nós e que é legitimado pelo órgão federal é o suporte

exterior onde “se ancora, se condensa e se exprime o capital esgotado de nossa

memória” (NORA, 1993, p. 28) e, portanto, o patrimônio cultural remanescente da

cultura material que atravessa o passado e chega até nós é constituinte

epistemológico da noção de memória cultural. Herdamos não apenas conjuntos

urbanos, monumentos arquitetônicos ou linhas e formas estilísticas, mas todo o

significado e a simbologia imbuída nesses representantes. Herdamos a memória.

Acredita-se que o conceito de memória cultural urbana consegue abarcar em si um

entendimento que vai muito além da cultura material, da pedra e cal, ou de aspectos

formais e estilísticos. Ademais, vai além de uma memória coletiva que se comunica

pela oralidade, restrita a grupos ou comunidades. Estamos falando de uma memória

em escala nacional, transepocal, que se constitui como fundamento da identidade

nacional, que é transmitida por uma série de mídias e vetores de memória, mas que,

Page 85: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

84

no caso específico que estamos analisando, de uma memória advinda de documentos

oficiais de órgão federal, integra uma faceta da memória “oficial”.

Some-se a isto a ideia daquilo que é urbano. A memória cultural urbana criada a partir

das ações do IPHAN é o traço fundante do nosso entendimento de mundo, de nossa

cultura, do passado no qual caminhamos, em cada traçado urbano preservado, em

cada monumento que nos comunica desde o passado, pelo seu atravessar-o-tempo.

A nossa vivência enquanto sociedade é marcada pela memória cultural urbana, que

nos dá o senso não só de herança e do passado do nosso país, mas de que processos

fundaram tudo aquilo que somos hoje enquanto sociedade. Desde o modus vivendi

de sociedades passadas, a oferta de materiais à época, a forma de ordenamento das

ruas, o traçado, as relações espaciais de igrejas, pátios, largos e ruas, o testemunho

da presença das ordens religiosas e sua importância na forma de estruturação da

cidade, etc. Memória que nos faz compreender como chegamos aqui, como as coisas

se construíram até o que temos hoje enquanto sociedade, abrindo margem para o

entendimento de diversos traços culturais de nosso corpo social.

As ações preservacionistas do IPHAN nos fazem entender que a construção da

memória é sempre um jogo político, que muitas vezes está também relacionado à

ideia da guerra pela memória, refletindo as relações de poder vigentes. Entendemos

que a memória cultural urbana é a construção desse “processo social de esquecer e

recordar”41 a cidade. Aliás, englobe-se ao entendimento de cidade os conjuntos

urbanos e os bens culturais que a compõem. Sobre essas pedras são edificadas as

representações de uma sociedade e de sua identidade nacional, através de processos

de seleção, reconhecimento, proteção do chamado Patrimônio Cultural.

Se prestarmos atenção nos monumentos citados por Drummond que já eram

tombados antes da efetivação da proteção do conjunto urbanístico, podemos trazer

em mente que monumentos eram esses e em que sequência temporal receberam a

proteção do tombamento. A relevância disso é entender o que era considerado

importante e representante da memória nacional dos primórdios do IPHAN até o

momento do tombamento do conjunto urbanístico de Olinda, em 1968. Não omitamos

disto o alinhamento das ações preservacionistas do IPHAN com o desenvolvimento

das políticas patrimoniais internacionais, através, por exemplo, dos congressos de

41 Assmann, 2011, p. 441.

Page 86: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

85

arquitetos que culminaram nas cartas de Atenas, 1933, e Veneza, 1964, além do

desenvolvimento das teorias da restauração e conservação no âmbito mais

acadêmico dos pesquisadores, intelectuais e teóricos da área. O processo de

alargamento da noção de Patrimônio Cultural está diretamente ligado a essas

reverberações internacionais, e temos que levá-lo em conta, embora nosso viés de

pesquisa se apoie sobre a ideia da construção da memória nacional, em específico, a

memória cultural urbana de Olinda.

Para entender o desenrolar dos processos de tombamento na cidade de Olinda antes

de seu tombamento enquanto conjunto urbanístico, paisagístico e arquitetônico,

desenvolvemos uma tabela que mostra, em ordem cronológica, os bens imóveis

inscritos nos Livros do Tombo do IPHAN. A ver:

Tabela 1 - Bens Móveis e Imóveis inscritos nos Livros do Tombo do Instituto do Patrimônio Histórico e

Artístico Nacional em Olinda, até 1968.

Bens Móveis e Imóveis inscritos nos Livros do Tombo do

Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional em Olinda, até 1968

Nome Imagem Processo Livro do Tombo Data

Seminário de Olinda

131-T-38

Livro de Belas Artes, Vol. 1,

Insc. 69, Folha 13

17/05/1938

Palácio Episcopal (Antigo)

131-T-38

Livro de Belas Artes, Vol.1,

Insc. 70, Folha 13

17/05/1938

Page 87: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

86

Igreja e Convento de São Bento

050-T-38

Livro de Belas Artes, Vol. 1,

Insc. 179, Folha 31 e

Livro Histórico, Vol. 1, Insc. 86,

Folha 16

16/07/1938

Igreja de N. S. do Monte

170-T-38

Livro de Belas Artes, Vol. 1,

Insc. 181, Folha 32 e

Livro Histórico, Vol. 1, Insc. 87,

Folha 16

16/07/1938

Convento de São

Francisco

143-T-38

Livro de Belas Artes, Vol.1,

Insc. 189, Folha 33

22/07/1938

Igreja da Misericórdia

124-T-38

Livro de Belas Artes, Vol.1,

Insc. 202, Folha 35

05/08/1938

Igreja de Santa Teresa

142-T-38

Livro de Belas Artes, Vol. 1,

Insc. 203, Folha 35

05/08/1938

Page 88: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

87

Igreja de N. S. do

Carmo

148-T-38

Livro de Belas Artes, Vol. 1,

Insc. 217, Folha 38 e

Livro Histórico, Vol. 1, Insc.

108, Folha 19

05/10/1938

Casa com Muxarabi à

Rua do Amparo, nº

28

192-T-38

Livro de Belas Artes,Vol. 1,

Insc. 237, Folha 41

27/04/1939

Casa com Muxarabi à Praça João Alfredo, nº

7

191-T-38

Livro de Belas Artes,Vol. 1,

Insc. 238, Folha 41

27/04/1939

Casa do Antigo Aljube

638-T-61 Livro Histórico,

Vol. 1, Insc. 386, Folha 62

16/03/1966

Page 89: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

88

Capela de São Pedro Advíncula

638-T-61 Livro Histórico,

Vol. 1, Insc. 387, Folha 62

16/03/1966

Fonte: Tabela desenvolvida pela autora com dados do IPHAN, 1994.

Vendo essa tabela, podemos enxergar a emergência desses primeiros tombamentos,

enquadrados dentro da noção de Belas Artes, feitos nos primeiros anos de fundação

do IPHAN. Para Rodrigo Melo Franco de Andrade, presidente do IPHAN desde sua

criação até 1967, esses primeiros anos de criação do Serviço do Patrimônio, como

então era conhecido (SPHAN), foram marcados pela busca de um mapa da civilização

brasileira em monumentos. Em suas palavras, “[...] teríamos de considerar a obra de

civilização realizada no país: a produção material e espiritual que herdamos”

(Andrade apud RUBINO, 1996, p.97). O texto de Rubino problematiza que o passado

“mapeado” pelos pioneiros do IPHAN era precisamente o passado que aquela

geração “tinha olhos para ver”. Essa construção é interessante porque dialoga

metalinguisticamente com o olhar que nós lançamos sobre o passado que, por sua

vez, tem o olhar próprio de seu tempo para lançar sobre o retrovisor. O passado que

eles viam, descobriam e se propunham a salvaguardar revela o prisma específico do

que eles consideravam importante nesse mapeamento das obras significativas de

uma identidade nacional. Temos que ter em mente que o olhar que lançamos do nosso

presente é diferente e permeado por filtros e condicionantes próprios da nossa época.

A tabela acima figura um tipo específico de bem cultural que foi reconhecido em

Olinda, desenhando, então, a proposta de uma memória oficial urbana em escala

nacional. Para Rubino (idem) “O conjunto de bens tombados desenha um mapa de

densidades, períodos e tipos de bens, formando conjuntos fechados e finitos”. O

enquadramento desses primeiros tombamentos era relacionado, sobretudo, a valores

históricos e artísticos. Como vemos na tabela, a maioria dos bens é inscrito no Libro

Page 90: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

89

de Belas Artes, mas o entendimento do tombamento também trazia um olhar sobre a

memória histórica: “O decreto que criou o SPHAN definia o patrimônio histórico e

artístico nacional como ‘o conjunto de bens móveis e imóveis existentes no país, quer

por sua vinculação a fatos memoráveis, quer por seu excepcional valor arqueológico,

etnográfico, bibliográfico ou histórico’” (RUBINO, 1996, p.98) (grifo nosso).

A salvaguarda dos monumentos católicos barrocos foi prioridade absoluta em 1938.

Monumentos quase todos brancos. Quase todos barrocos. Que representam uma

memória que, de quase europeia, como verdade é tratada42. A memória de um traço

específico de nossa herança cultural: o português, branco, europeu, cristão-católico,

que ostenta o ouro e os traços religiosos definidos como fundantes da memória

cultural urbana. Sim, o processo de tombamento é construção de memória, porque

não apenas reconhece o que vem do passado, como projeta ao futuro as bases do

que é reconhecido enquanto memória oficial.43

Se Pierre Janet44 ”considera que o ato mnemônico fundamental é o “comportamento

narrativo”, que se caracteriza antes de mais nada pela sua função social”, o que dizer

dessa narrativa da memória urbana de Olinda? Seminário dos Jesuítas, patrimônio

legitimado, Antigo Palácio Episcopal, tombado, Igreja e Convento dos Beneditinos,

Igreja de N. S. do Monte, Convento dos Franciscanos, Santa Teresa, Ordem dos

Carmelitas, recebem salvaguarda. São as ordens religiosas, afinal, que constituem a

memória urbana. Foram elas que ditaram a formação da cidade, são elas, então,

traços fundantes da memória de Olinda. “O conjunto eleito revela o desejo por um país

passado, com quatro séculos de história, extremamente católico, guardado por

canhões, patriarcal, latifundiário, ordenado por intendências e casa de câmara e

cadeia, e habitado por personagens ilustres, que caminham entre pontes e chafarizes”

(RUBINO, 1996, p. 98).

42 Citação indireta de Haiti, Caetano Veloso.

43 A predileção do patrimônio colonial, em especial do século XVIII, é tocada por Rubino em seu texto

Entre o CIAM e o SPHAN: Diálogos entre Lúcio Costa e Gilberto Freyre, onde mostra como Freyre

influenciou os arquitetos do patrimônio com suas teses sobre a arquitetura colonial que demonstrava

traços de ‘abrasileiramento’.

44 Apud Le Goff, 2003, p. 421.

Page 91: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

90

As casas com muxarabi, enquanto traço da arquitetura moura que penetrou a cultura

construtiva da península ibérica, são também traços da herança portuguesa, mas que

trazem à tona peculiaridades de um momento mouro naquela arquitetura, o que talvez

destoasse do nexo europeu ocidental cristão que é tão marcante na formação dessa

memória.

Nora faz uma reflexão, no tocante aos lugares de memória, sobre os lugares

“dominantes” e os lugares “dominados”, que se encaixa de maneira ímpar à trajetória

de tombamentos dos monumentos olindenses, visto que esse tipo de proteção aos

monumentos barrocos, “espetaculares e triunfantes”, era uma ação impositiva do

Instituto (à época Serviço-SPHAN) validada pelos intelectuais, sem nenhum tipo de

representação ou representatividade popular, porque, à época, claramente, não se

discutia esse tipo de ação democrática. Mas para além da participação e da ideia do

patrimônio que representa uma identidade coletiva, atenhamo-nos ao contraponto que

faz Nora sobre os lugares de memória “dominante” sobre os “dominados”, e

imaginemos tantos lugares de memória negra e indígena que foram esquecidos e

silenciados na construção da memória nacional.

Oporemos, por exemplo, os lugares dominantes aos lugares dominados? Os

primeiros, espetaculares e triunfantes, imponentes e geralmente impostos,

que por uma autoridade nacional, quer por um corpo constituído, mas sempre

de cima, tem, muitas vezes a frieza ou a solenidade de cerimônias oficiais.

Mais nos deixamos levar do que vamos a eles. Os segundos são lugares de

refúgio, o santuário das fidelidades espontâneas e das peregrinações do

silêncio. É o coração vivo da memória (NORA, 1993, p. 26).

Conforme temos discutido que a construção da memória é feita por contornos de

esquecimento, pensar a ideia de lugares dominantes e dominados é também

compreender as relações de poder que envolvem a legitimação dos patrimônios que

nos chegam como herança. Aliás, o legitimar é o ponto central nas ações do Instituto

(SPHAN/DPHAN/IPHAN). É através do tombamento, por exemplo, que se cria a ideia

de Patrimônio Nacional, e, por conseguinte, de Memória Nacional. O que significa,

então, os esquecimentos? O silenciamento dos lugares “dominados”? De que forma

as lacunas na memória reverberam na criação da identidade? Seriam esses

silenciamentos análogos à uma amnésia compulsória?

[...] num nível metafórico, mas significativo, a amnésia é não só uma

perturbação no indivíduo, que envolve perturbações mais ou menos graves

Page 92: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

91

da presença da personalidade, mas também a falta ou a perda, voluntária ou

involuntária, da memória coletiva dos povos e nas nações, que pode

determinar perturbações graves de identidade coletiva (Le Goff, 2003, p.

421).

É importante entender isso porque a Memória Cultural ou Histórica é engendrada nas

sociedades tanto de forma coletiva como individual. Se há perturbação da memória,

no caso metafórico, a amnésia, há, por conseguinte, perturbação na identidade, e não

só coletiva. É essa memória, cultural e histórica, que nos dá o sentimento de

pertencimento a um determinado grupo ou nação. De forma análoga, é esse

sentimento de pertencimento que constrói nossa identidade, novamente, tanto coletiva

quanto individual.

Porque a correção da memória pesa definitivamente sobre o indivíduo e

somente sobre o indivíduo, como sua revitalização possível repousa sobre a

sua relação pessoal com seu próprio passado. A atomização de uma

memória geral em memória privada dá à lei da lembrança um intenso poder

de coerção interior. Ela obriga cada um a se lembrar e a reencontrar o

pertencimento, princípio e segredo da identidade (NORA, 1993, p. 12).

Ao entender o processo de criação de identidade, ligado à ideia da memória que não

foi necessariamente vivida, mas que vem de um passado comum, como podemos

então entender que determinados traços de nossa memória são compulsoriamente

esquecidos? E se formos olhar para a memória urbana construída pelo IPHAN neste

momento trabalhado, só veremos um tipo de identidade.

Drummond, em sua coluna, mostra ser imprescindível o tombamento do conjunto

urbanístico e paisagístico da cidade, dadas as pressões advindas dos processos de

industrialização, crescimento demográfico, loteamento e turismo. A fala do poeta

marca a dinâmica vivida na época, o desenvolvimento urbano que, na falta de um

planejamento integrado à conservação, ameaçava a cidade colonial, ameaçava o

traçado urbano, a herança cultural.

É importante perceber como o próprio processo anterior, demonstrado na tabela da

inscrição dos bens imóveis nos Livros do Tombo, de criação de memória através dos

tombamentos dos monumentos isolados, vai reverberar na poligonal escolhida para o

conjunto urbanístico, paisagístico e arquitetônico proposto em 1966 e aprovado em

1968. É como se todos os monumentos tombados anteriormente agora ditassem qual

Page 93: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

92

será a poligonal de tombamento do conjunto, mantendo, dessa forma, uma coerência

com a construção da memória cultural urbana que perpassa o governo Vargas e a

Ditadura Militar.

As ordens religiosas ditam as linhas da memória. E cada vez mais é legitimada uma

memória barroca como memória oficial da cidade de Olinda, segundo as ações do

IPHAN. É o que o momento pedia.

Isso se confirma no seguinte trecho da Proposta de tombamento do acervo

urbanístico, paisagístico e arquitetônico da cidade de Olinda-PE.45

[...]

Demarcado a partir das edificações religiosas que se foram

construindo, e acompanhando a topografia local, o arruamento antigo,

que ainda se conserva, a despeito dos acrescentamentos que se

foram somando, é espontâneo, com a característica dos arruamentos

dos povoados portugueses de origem medieval.

[...]

Um ponto importante na fala de Drummond é: “[...] para que o Brasil não se despeça

de si mesmo, e mantenha a unidade da cultura. ” O que se pretendia na época era a

criação de uma identidade nacional coesa, de uma cultura única, em unidade, de uma

memória nacional que representasse uma cara brasileira. No olhar que lançamos do

presente para essa construção passada de um ideário, temos visto que essa “unidade

de cultura” tem representado, na realidade, o processo de esquecimento de alguns

grupos do nosso corpo social.

Ao selecionar por muito tempo bens cuja história remetia-se a uma ideia de

Brasil branco, católico, elitista, de origem lusitana, ordeiro e disciplinado que

se queria construir do Brasil na década de 1930 o IPHAN contribuiu para a

afirmação de imaginário e princípios sociais afeitos ao Brasil do autoritarismo,

correspondendo especialmente aos interesses do Estado Novo e da Ditadura

Militar (SILVA, 2017, p. 15).

45 Proposta de tombamento do acervo urbanístico, paisagístico e arquitetônico da Cidade de Olinda -

PE. Arquivo Noronha Santos/IPHAN, Série Tombamentos, Processo 674-T-62, Vol. 1, pp. 5, de 24 de

janeiro de 1967, RJ. Documento assinado pelo arquiteto Augusto da Silva Telles.

Page 94: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

93

Quando partimos das ações preservacionistas do IPHAN, podemos ver um nexo

cultural muito definido, do cristão branco europeu, representado pela Igreja e pelo

Estado. A memória é política e o esquecimento compulsório das representações

culturais de determinados grupos sociais podem hoje ser enxergadas com mais

clareza. Le Goff (2003, p. 422) afirma:

Do mesmo modo, a memória coletiva foi posta em jogo de forma importante

na luta das forças sociais pelo poder. Tornar-se senhores da memória e do

esquecimento é uma das grandes preocupações das classes, dos grupos,

dos indivíduos que dominaram e dominam as sociedades históricas. Os

esquecimentos e os silêncios da história são reveladores destes mecanismos

de manipulação da memória coletiva.

A fala de Drummond no Correio da Manhã coroa a declaração de tombamento da

cidade de Olinda e traz à memória uma cidade não esquecida, mas com

reconhecimento tardio em relação “as suas irmãs de outros Estados”. Cidade que

havia tido uma construção memorial baseada no tombamento dos monumentos

religiosos portugueses. Cidade de memória cristã, onde as ordens religiosas

delinearam sua identidade. Diria Capiba: “Quisera ver teu passado, Olinda, / [...]/

Depois subir a ladeira do Mosteiro/ Rezar a Ave Maria e nada mais/[...]”.

Mas já que Drummond termina a coluna falando de “sinais alentadores”, temos que o

tombamento do conjunto urbanístico foi, sem dúvida, uma ação de preservação da

memória urbana. Legitimação e construção dessa memória. Ou podemos também

dizer que o tombamento do conjunto é revelador dos “mecanismos de manipulação

da memória”?

4.2 Dos monumentos barrocos ao conjunto urbanístico

Antes mesmo da Carta de Veneza46, de 1964, que é a grande marca da mudança de

compreensão de conjunto urbano enquanto Patrimônio Cultural, o alargamento das

noções já ocorria tanto no Brasil quanto no cenário internacional.

46 “Fruto do II Congresso Internacional de Arquitetos e de Técnicos de Monumentos Históricos,

realizado em Veneza de 25 a 31 de maio de 1964. Essa Carta permanece como documento-base do

Page 95: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

94

As primeiras cidades no Brasil tombadas enquanto “conjunto urbano” são as cidades

mineiras, a exemplo de Ouro Preto e Diamantina, entre outras47. Até chegar a Olinda,

muitas outras cidades receberam tal proteção, como diversos trechos da cidade de

Salvador e Cachoeira na Bahia e conjuntos arquitetônicos e urbanos em Goiás e Pilar

de Goiás. Isso dá a entender que Olinda estava esquecida pelo IPHAN, como falou o

poeta.

Logo nos primeiros anos de ação do recém-criado SPHAN, aquelas cidades

receberam o reconhecimento de Patrimônio Cultural enquanto totalidades ou

conjuntos arquitetônicos e urbanos, não apenas os monumentos isolados. Ouro Preto,

por exemplo, é tombada enquanto “conjunto urbano” em 1938, com inscrição no Livro

do Tombo de Belas Artes, mas só em 198648 recebe inscrição nos Livros Histórico e

Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico.

As primeiras ações do Patrimônio nos centros tombados tratavam a cidade

como expressão estética, entendida segundo critérios estilísticos, de valores

que não levavam em consideração sua caraterística documental, sua

trajetória e seus diversos componentes como expressão cultural em parte de

um todo socialmente construído (MOTTA, 1987, p. 108).

Icomos, criado em 1965 e acolhido pela Unesco como órgão consultor e de colaboração. ” (KUHL,

2010, p.288).

47 Lista de bens tombados e processos em andamento. A tabela mostra nome e localização do bem,

classificação relacionada à forma de proteção (se é edificação, conjunto urbano, patrimônio natural,

sítio rural, sítio arqueológico, bem móvel ou integrado etc.), número do processo, ano de abertura,

situação do processo e em que livro do tombo recebeu inscrição, no caso de ter sido tombado.

Informações do Portal do IPHAN,

http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/Lista_bens_tombados_processos_andamento_20

18 Acesso em 21/10/2018.

48 A Informação 110/86 constante no processo de tombamento de Ouro Preto (70-T-38), assinada por

Augusto da Silva Telles em 30 de julho de 1986 mostra muito bem essa ampliação de compreensão

devido à Carta de Veneza. Ele fala que “A inscrição foi realizada, apenas, no Livro das Belas Artes.

No entanto, entende-se hoje, que um conjunto urbano constitui, mais do que um bem de valor artístico,

um acervo que representa uma paisagem urbana e, mesmo, se integra forçosamente à paisagem

natural na qual está inserida. A Carta de Veneza, de 1964 é enfática, quando diz que ‘a conservação

de um monumento implica ade uma moldura à sua escala’. ” E então, o arquiteto solicita a inscrição de

Ouro Preto também nos Livros nº 1 e 2: Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico e no Histórico.

Page 96: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

95

O entendimento de conjunto arquitetônico e urbanístico da cidade de Ouro Preto em

1938 é uma compreensão, como diz Motta, ligada sobretudo a aspectos formais e

estilísticos, tanto que é inscrito primeiramente no Livro do Tombo de nº 3, o de Belas

Artes. No entanto, isso foi essencial para a conservação dessa e de tantas cidades

que receberam proteção nessa época.

É importante pontuar como a noção de conjunto urbanístico e paisagístico está

também relacionada a Carta de Veneza, de 1964. Não podemos deixar de lado o

contexto internacional e sua reverberação nas políticas de patrimônio nacionais. A

Conservação enquanto processo tem revisto suas práticas à medida em que se alarga

a compreensão do que se constitui enquanto Patrimônio Cultural. E por isso podemos

ver essa transição entre os tombamentos monumentais, baseados sobretudo em

compreensões de traços artísticos e históricos, como os Livros de Belas Artes e o

Livro Histórico, e o tombamento do conjunto urbanístico, paisagístico e arquitetônico

de Olinda, na compreensão sobretudo da harmonia de sua totalidade.

Page 97: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

96

Imagem 4 - Certificação do Tombamento do Conjunto Arquitetônico e Urbanístico da cidade de Ouro

Preto-MG em fevereiro de 1938. Processo nº 70-T-38.

Fonte: Arquivo Noronha Santos-IPHAN.

Consta na Carta de Veneza:

Portadores de mensagem espiritual do passado, as obras monumentais de

cada povo perduram no presente como testemunho vivo de suas tradições

seculares. A humanidade, cada vez mais consciente da unidade dos valores

humanos, as consideram um patrimônio comum e, perante gerações futuras,

se reconhece solidariamente responsável por preservá-las, impondo a si

mesma o dever de transmiti-las na plenitude de sua autenticidade. [...]

Artigo 1º - A noção de monumento histórico compreende a criação

arquitetônica isolada, bem como o sitio urbano ou rural que dá testemunho

de uma civilização particular, de uma evolução significativa ou de um

acontecimento histórico. Estende-se não só às grandes criações, mas

também às obras modestas, que tenham adquirido, com o tempo, uma

significação cultural (ICOMOS, 1964)

Page 98: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

97

A carta de Veneza49 traz a compreensão de que não é só o monumento arquitetônico

de vultuoso traçado que tem valor patrimonial, mas também o ordinário, o cotidiano, o

“comum” sítio urbano e rural, desde que tenha adquirido significação cultural ou que

seja testemunho excepcional do passado, que carregue em si a memória histórica e

cultural do processo de construção e, se assim podemos chamar, “evolução” da

humanidade. Na Carta de Veneza, “o caráter de documento histórico dos bens

culturais é enfatizado e, por isso, tais bens não são reproduzíveis e não devem ser

desnaturados” (Kühl, 2010, p. 293). Esse alargamento da compreensão de Patrimônio

Cultural não só acende o entendimento do conjunto urbano como bem cultural, como

realça a condição de produto da cultura, documento histórico, exemplar de uma

memória construtiva da cidade.

A Carta de Veneza é marco da compreensão de que não apenas os traços materiais,

monumentais, ostentadores de uma excepcionalidade imagético-estética na cidade

eram merecedores da valoração patrimonial. A cidade era agora entendida como o

próprio processo histórico de construí-la, as culturas construtivas, a oferta de

materiais, o modus operandi das sociedades que deixaram a cidade com testemunho

de sua ocupação e domínio. Para Nascimento (2016, p. 125):

O conceito de “testemunho da história” validará as ações de preservação na

esfera alargada do ambiente urbano. Todas as edificações teriam o direito de

permanecer às gerações futuras, sejam monumentais, sejam modestas, na

medida em que documentavam a história. Para Laurajane Smith, a Carta de

Veneza é um dos textos fundacionais das práticas e dos movimentos de

preservação nos anos 1960 em diante, formando a base filosófica dos

processos técnicos de gerenciamento do patrimônio nas décadas seguintes.

Kühl mostra que a Carta de Veneza vem reverberar no Brasil e ter sua discussão

aprofundada sobretudo na década seguinte à sua publicação. Ela destaca que o

arquiteto Augusto da Silva Telles, peça central no tombamento de Olinda, foi um dos

professores do curso ofertado na USP em 1974 e é em suas aulas que a Carta é

“extensa e fundamentadamente perscrutada”. 50

49 A esse respeito, cf. Beatriz Kuhl, Notas sobre a Carta de Veneza, Anais do Museu Paulista. São

Paulo. N. Sér. v.18. n.2. p. 287-320. jul.- dez. 2010.

50 Augusto da Silva Telles, também deu cursos sobre a Carta de Veneza em Recife, em 1976. Sabendo

que esses cursos foram posteriores ao tombamento de Olinda em si, é importante apontar que ele

Page 99: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

98

Em relação a ser testemunho excepcional do passado, Olinda se coloca, então, no

processo de tombamento, como exemplar das primeiras ocupações nas terras que

viriam a ser o Brasil. É registro da ocupação, sendo documento histórico, ao passo

que é escoramento do traçado urbano que é testemunho desse passado. Memória de

uma vivência que nos antecede enquanto sociedade, ao passo que nos forma como

tal.

Olinda é testemunho da ocupação das terras conquistadas pelos portugueses, no

século XVI, conforme trecho da Proposta de tombamento do acervo urbanístico,

paisagístico e arquitetônico da cidade de Olinda-PE51, sendo, portanto, vista como

pedra fundante da história e memória urbanas do Brasil, com permanências de

atributos como topografia e aspecto paisagístico:

OLINDA, a vila fundada, logo a seguir a de Igaraçu, no mesmo ano de

1535, pelo Donatário Duarte Coelho Pereira, na elevação junto ao mar

denominada pelos gentios, de “Marim”, apresenta, ainda, muito da

topografia e do aspecto paisagístico antigos.

mostrava ter uma visão aprofundada da Carta de Veneza. “As aulas do professor Augusto da Silva

Telles, técnico do Iphan, tratavam da legislação e dos conceitos de ambiência urbana, arquitetura

‘menor’ e o valor documental da cidade e da arquitetura (TELLES, 1976). Na ementa de sua disciplina

Teoria da Conservação, no Curso de Especialização de 1976 em Recife, o item Carta de Veneza traz

a seguinte explicação, reveladora do nível de conhecimento que se pretendia passar aos alunos:

‘Análise dos conceitos de monumento e de bem cultural – sua ambientação – a ‘mise-en-valeur’ ou

valorização – sua integração ao entorno em que se situa e o testemunho histórico que representa –

estudo através das definições dos documentos internacionais/ regionais.‘ (TELLES, 1976)”

(NASCIMENTO, 2016, p. 125)

51 Proposta de tombamento do acervo urbanístico, paisagístico e arquitetônico da Cidade de Olinda -

PE. Arquivo Noronha Santos/IPHAN, Série Tombamentos, Processo 674-T-62, Vol. 1, pp. 5, de 24 de

janeiro de 1967, RJ. Documento assinado pelo arquiteto Augusto da Silva Telles.

Page 100: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

99

[...]O parecer histórico52, dado por Paulo F. Santos53 à proposta de Silva Telles

também destaca a excepcionalidade da cidade de Olinda, e ratifica a importância de

seu tombamento enquanto conjunto:

Olinda é um dos nossos mais expressivos exemplos de cidade de

plano informal, cuja evolução pode ser acompanhada através das

plantas que constam nos livros de Gaspar Barleus (1647) e Gioseppe

di Santa Teresa (1698), comparativamente à que se insere no

Processo. Vê-se em como os caminhos indicados nas duas primeiras,

aproximadamente retilíneos, foram adquirindo, quando se

transformaram em ruas, a extrema irregularidade que aparece no

terceiro mapa-, o que faz presumir que foi não a rua, mas a casa, que

promoveu o traçado da cidade, constatação que a ser verdadeira

atestaria uma reminiscência da prática usada na Idade Média

Peninsular, a Mulçumana e a Cristã. No que tange ao traçado, é

importante conservar a Cidade tal como se acha, assim tão densa de

tradição. Se tiver de crescer, cresça para o lado de fora, e o faça

seguindo as imposições da técnica urbanística moderna. No que tange

à arquitetura, além da preservação dos monumentos principais, vários

dos quais já tombados pela D.P.H.A.N., preservem-se também outros

menos ambiciosos e, à proporção que forem sendo feitas reformas nos

demais já abastardados, procure-se melhorar as frontarias, como, com

certeza saberá fazer o esclarecido e exemplar chefe do 1º Distrito da

D.P.H.A.N., o engenheiro Ayrton Carvalho, a quem o tombamento da

Cidade conferirá para tanto os poderes que merece ter.

Opinamos pois, pelo tombamento da Cidade de Olinda nos limites

fixados conjuntamente pelo autor da proposta, arquiteto Augusto da

SilvaTelles em saudável colaboração com o engenheiro Ayrton

Carvalho e os arquitetos Lúcio Costa, Paulo Thedim Barreto e José

Luiz da Mota Menezes.

52 Arquivo Noronha Santos/IPHAN, Série Tombamentos, Processo 674-T-62, Vol. 1, pp. 15, de 14 de

janeiro de 1968, RJ. Documento assinado pelo arquiteto Paulo Ferreira Santos.

53 Arquiteto e historiador da arte, Paulo Ferreira Santos foi professor da Universidade do Brasil, antiga

Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), conselheiro do Iphan durante 25 anos, autor de

diversos livros e artigos.

Page 101: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

100

O tombamento do conjunto foi precedido da proteção de muitos monumentos isolados,

como já vimos, que acabaram por ditar a poligonal do conjunto urbanístico, conforme

veremos a seguir. A excepcionalidade histórica de Olinda vem como traço muito mais

importante para seu reconhecimento em 1968 do que necessariamente os traços e

reminiscências baseados no entendimento do Livro de Belas Artes, cujo valor artístico

é o principal condicionante para a valoração, como foi, por exemplo, o tombamento

de Ouro Preto em 1938, que, por sua vez, também teve o entendimento de seu

tombamento alargado depois da Carta de Veneza54.

O testemunho da ocupação e colonização portuguesas, da invasão holandesa, da

cidade que subsistiu no tempo mantendo seu traçado, é, neste caso, um gatilho de

memória para o entendimento de seu vulto simbólico e semântico. É o testemunho, a

memória ancorada nos traços urbanos que a tornam excepcional. O “burgo Duartino”

manteve em si a topografia e os quintais arborizados que lhe conferem singularidade

paisagística, aos braços do mar.55

O processo faz referência a algumas fotografias de Olinda que foram enviadas junto

ao estudo da poligonal: “A Proposta vem acompanhada de uma planta da Cidade de

Olinda, com indicação das “Áreas Históricas-1966” e 18 fotografias, das quais 5

panorâmicas”. 56 Dentre as fotografias, as seguintes correspondem melhor à ideia da

Olinda Verde, dos quintais arborizados que compõem a paisagem da cidade. Temos

a seguinte descrição: “VI- Foto da antiga residência e colégio dos jesuítas e Igreja de

N. Senhora da Graça, tirada do terraço do segundo pavimento do edifício da Caixa

d’Água. ” Conforme vemos na correspondência a seguir:

54 Cf. nota 48.

55 Gilberto Freyre já havia ressaltado a singularidade paisagística de Olinda no sentido de apontar para

a composição feita entre o mar e as colinas. Em 1941, no Correio da Manhã (Rio), ele escreve uma

coluna intitulada “As praias e os montes de Olinda”, em que diz: “Praias e montes, nisto pode simplificar-

se Olinda. As corografias se estendem em detalhes, mas a ladainha de todos os autores é essa:

‘Olinda... situada à beira mar sobre os montes’ ... ‘Olinda... baixa junta à costa, e logo ondulada de

montes’. Olinda: quatro praias e oito montes.” 22-11-1941. Excerto do Jornal Correio da Manhã, Série

Inventário, PE, Cx. 0321. Arquivo Noronha Santos-IPHAN.

56 Arquivo Noronha Santos/IPHAN, Série Tombamentos, Processo 674-T-62, Vol. 1, pp. 14, de 27 de

outubro de 1967, RJ. Documento assinado pelo arquiteto Paulo T. Barreto.

Page 102: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

101

Imagem 5 - Fotografia da Antiga residência e colégio dos Jesuítas e Igreja de N. Senhora das Graças.

Fonte: Série Inventário, Pernambuco, Cx. 0322. Arquivo Noronha Santos-IPHAN

Imagem 6 - Referência da Fotografia Anterior, datada de 1967.

Fonte: Arquivo Noronha Santos-IPHAN

Page 103: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

102

Mas acreditamos que nenhuma das fotografias pertencentes ao processo traduz

melhor a memória da Olinda Verde, da Olinda dos “quintais arborizados aos braços

do mar” como a seguinte57:

Imagem 7 - Foto Panorâmica tirada de um ponto próximo à fronteira da Sé, onde se veem: em

primeiro plano, telhados das casas da Ladeira de São Francisco; em segundo plano, ao centro: a

Igreja de N. Senhora do Carmo, à direita, o Mosteiro e Igreja de São Bento, a Igreja de São Pedro; e

aos fundos, Recife.

Fonte: Série Inventário, Pernambuco, Cx. 0322. Arquivo Noronha Santos-IPHAN

A história de Olinda é lugar de memória. O documento, o tombamento, a cidade. Em

tudo se ancora o pulsar da lembrança. Espaços da recordação. Locais de

hasteamento da memória. São, nesse sentido, narrados os lugares por onde a cidade

se ramifica e cria civilização:

O povoado teve início no alto, onde se encontram, hoje, a Sé, o antigo

Palácio dos Bispos, a Caixa d’Água e a Misericórdia. Aí, Duarte

Coelho, em 1535, construiu a primeira igreja (depois Matriz e Sé) e o

“Castelo”, - obra de fortificação para defesa contra os índios e já

desaparecido.

Logo a seguir, em 1540, funda-se a Misericórdia. Em 1551, no

arruamento demarcado pela Matriz (atual Sé), e pela Misericórdia,

num dos extremos, no mais próximo ao mar, onde existia a ermida de

Nossa Senhora da Graça, localizaram-se os Padres Jesuítas. Mais

abaixo, já nas faldas do outeiro, os franciscanos se instalaram em

1577, em uma outra ermida, dedicada à Nossa Senhora das Neves.

57 Foto reproduzida e ampliada no Anexo A, para melhor visualização.

Page 104: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

103

No sopé do outeiro, no extremo do recente povoamento, em um

montículo junto ao mar, na capela aí existente, de Santo Antônio e São

Gonçalo, fixaram-se, em 1580, os frades carmelitas.

Em 1592 é edificada, no primeiro arruamento da vila, no extremo

oposto ao litoral, a capela de São João Batista. Aí se alojaram,

inicialmente, os beneditinos. Estes, depois de passarem um par de

anos na ermida do Monte, foram se localizar em ponto distante, na

falda do outeiro de Olinda, no lado mais próximo ao rio Beberibe. Aí

vão dar início, anos depois, à construção de seu mosteiro e igreja.58

Como antes dito, as ordens religiosas ditam as linhas da memória. Ditam o traçado da

cidade, que se molda às suas ocupações e se curvam a suas bendições. É a Igreja

que dita a cidade, no século XVI, e dita o reconhecimento dessa cidade como

Patrimônio Nacional, no século XX. É a Igreja que dita a poligonal de tombamento de

Olinda como conjunto urbano, tendo ditado também os tombamentos individuais, a

criação de memória urbana a partir da salvaguarda dos monumentos. Nas linhas da

memória da Olinda Cristã e Verde, os autores do Processo percebem como de grande

valor os espaços verdes:

Será no espigão entre São Bento e a capela de São João, assim como

nas suas faldas e vertentes, no perímetro demarcado pelas igrejas de

São Bento, São João Batista, Misericórdia, Sé, Nossa Senhora da

Graça, Nossa Senhora das Neves e Carmo, que a vila, depois cidade,

se vai desenvolver, principalmente depois da restauração

pernambucana, quando a maioria de seus edifícios, incendiados ou

depredados, vão ser reconstruídos, e muitos outros edificados.

Com suas faldas e vertentes, suas praças, seus jardins e cercas

conventuais, verdejantes de árvores e coqueiros, a cidade ainda

aparece, hoje, imersa e envolvida em densa arborização que a enfeita

e lhe confere graça excepcional.59

58 Proposta de tombamento do acervo urbanístico, paisagístico e arquitetônico da Cidade de Olinda -

PE. Arquivo Noronha Santos/IPHAN, Série Tombamentos, Processo 674-T-62, Vol. 1, pp. 5, de 24 de

janeiro de 1967, RJ. Documento assinado pelo arquiteto Augusto da Silva Telles.

59 Ib.

Page 105: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

104

O caráter paisagístico é destacado na proposta de tombamento como atributo que

realça Olinda e lhe confere excepcionalidade. Não apenas os quintais e jardins

arborizados, mas a ideia de conjunto verde, em harmonia com o ambiente construído,

numa colina aos pés do mar, conforme testemunharam as fotografias. O testemunho

da ocupação portuguesa em alta colina, que, a priori, tinha propósitos de defesa do

território, alinhava aos bons auspícios uma excepcional vista para o mar, que é

generoso com a cidade, e lhe compõe belíssimos pontos de vista. Enquadramentos

paisagísticos de beleza estonteante, a velha Olinda verdejante anuncia os coqueiros

para o mar, em suas “faldas e vertentes”.

Além disso, a manutenção das alturas das edificações, ainda permitindo uma visão

de conjunto harmonioso é destacada no documento. O edifício em altura da Caixa

d’Água, o mais verticalizado, não comprometeria essa harmonia, já que considerado

marco da nova arquitetura. Lembra-se que Lúcio Costa, um dos colaboradores da

proposta, segundo Paulo Santos, diria, nos anos 1930, que a boa arquitetura sempre

combina com a boa arquitetura60:

Além disto, em toda a área antiga, um único edifício de caráter

comercial moderno existe com mais de dois pisos (excluído o da Caixa

d’Água, considerado marco da nova arquitetura, no Nordeste).

Da mesma forma, são poucas as construções irrecuperáveis para um

plano geral de restauração. Existem algumas, mas essas se perdem

entre as de boa origem, não chegando a comprometer o conjunto.

Mesmo na área litorânea, a zona nova, os prédios possuem, no

máximo 3 pavimentos.

60 Em Carta a Rodrigo M. F. de Andrade, então presidente do então SPHAN, Lúcio Costa fala sobre a

inserção de um hotel modernista projetado por Niemeyer em Ouro Preto, e faz a seguinte reflexão: “’De

excepcional pureza de linhas, e de muito equilíbrio plástico, é, na verdade, uma obra de arte, e, como

tal, não deverá estranhar a vizinhança de outras obras de arte, embora diferentes, porque a boa

arquitetura de um determinado período vai sempre bem com a de qualquer período anterior’ [...]” Apud

Motta, 1987, p. 109.

Page 106: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

105

Cremos, por isto, que ainda é tempo de salvar-se Olinda, e urge que

isto se faça rápido, antes que a febre imobiliária a descubra e a

desfigure por completo.61

O processo de tombamento tem abertura em 30 de setembro de 1966 com uma carta62

do arquiteto Augusto da Silva Telles, arquiteto da DPHAN, para o então servidor do

1º distrito da DPHAN, em Pernambuco, José Luiz da Mota Menezes. Segundo Cabral

(2016, p. 196) “Menezes tinha grande aproximação com Ayrton Carvalho, referindo-

se a si mesmo como o ‘motorista do gordo’ na labuta diária de estagiário voluntário no

Iphan por aproximadamente dez anos”. Na carta, Telles diz estar ultimando as

propostas de tombamento do pátio de São Pedro (Recife) e de Olinda, como

tombamento paisagístico e urbanístico. Participaram dos estudos da proposta da

poligonal de tombamento de Olinda os arquitetos Lúcio Costa, Ayrton Carvalho, José

Luís da Mota Menezes e Augusto da Silva Telles. Logo em seguida, ele descreve a

poligonal proposta:

- Em Olinda, a ideia é de incluir, como área tombada, a delimitada pela

seguinte poligonal:

Av. Joaquim Nabuco até o encontro do segmento que vindo da Igreja

de N. Senhora do Monte tangencia os fundos da capela de São João.

Seguiria por este segmento de reta até a referida Igreja de N. Senhora

do Monte, donde seguiria por outro seguimento que daí passasse pelo

Farol até o litoral. Seguiria pelo litoral até encontrar o início da Av.

Joaquim Nabuco.

Nesta área, o tombamento seria paisagístico e urbanístico, nele

incluindo-se, principalmente, o traçado urbano existente e a

vegetação, tanto pública, quanto particular. Todas as novas

edificações a serem feitas nesta área, deverão ocupar, no máximo,

61 Proposta de tombamento do acervo urbanístico, paisagístico e arquitetônico da Cidade de Olinda –

PE. Arquivo Noronha Santos/IPHAN, Série Tombamentos, Processo 674-T-62, Vol. 1, pp. 6, de 24 de

janeiro de 1967, RJ. Documento assinado pelo arquiteto Augusto da Silva Telles.

62 Arquivo Noronha Santos/IPHAN, Série Tombamentos, Processo 674-T-62, Vol. I, pp. 2, Carta nº 370

de 30 de setembro de 1966. Documento assinado por Augusto da Silva Telles.

Page 107: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

106

25% dos respetivos terrenos, e deverão ser cobertos telhados de

telhas canais de feito antigo.

O arquiteto Lúcio Costa sugeriu, outrossim, a inscrição com

tombamento, também em caráter arquitetônico, das edificações de

alguns logradouros; talvez o arruamento: Rua de São Bento, Rua 13

de Maio, Rua do Amparo.

A poligonal63 proposta pelos arquitetos compreende o que hoje entendemos por setor

de preservação rigorosa da rerratificação, incluindo setores A, B e C. O processo

mostra que “a proposta vem acompanhada de uma planta da Cidade de Olinda, com

a indicação das “Áreas Históricas-1966” e 18 fotografias, das quais 5 panorâmicas”64.

Imagem 8 – Desenho, em linha tracejada, da Poligonal de Tombamento proposta pelos arquitetos

citados. Processo nº 674-T-62.

Fonte: Arquivo Noronha Santos - IPHAN

A carta de Silva Telles para Mota Menezes traz para nós a ideia do trabalho conjunto

desenvolvido pelos arquitetos:

63 Foto reproduzida e ampliada no Anexo B, para melhor visualização.

64 Processo 674-T-62, Vol. I, pp. 14.

Page 108: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

107

[...]

Indago, então aos Caros Amigos:

- Julgam a delimitação certa? - ou sugerem alguma redução ou

acréscimo? - Há um grupo de edificações novas que, talvez, penetrem

nesta área, no trecho entre a Igreja do Rosário e a do Monte? Julgam

que devamos excluí-las? - A denominação Av. Joaquim Nabuco vem

desde o mar, ou tem início na Estrada que vem do Recife?

-Concordam com as características do tombamento? Acho que não

há possibilidade em ser Olinda tombada como conjunto

arquitetônico na sua totalidade. Ela está muito deturpada. Assim,

só paisagístico, poderá ser incluída a área litorânea, que ficará, desta

forma, preservada, no que concerne a gabaritos e densidade de

construções novas.

-E quanto ao arruamento a ser preservado como conjunto

arquitetônico? Propõe inclusão de alguma outra rua, ou praça, a ele

ligado, ou isolado?

[...]65

(grifo nosso)

As transformações vividas pela cidade são apontadas pelo arquiteto como uma

deturpação de seu estado, impossibilitando a ideia de um tombamento enquanto

conjunto arquitetônico íntegro. A ideia aqui é que o reconhecimento do patrimônio

cultural respeita uma certa ordem do fazimento antigo, que deve ser mantido para que

seja considerado algo de valor, algo que valha o reconhecimento e proteção. Diferente

de suas “irmãs de outros Estados”, Olinda não teve um reconhecimento imediato na

criação do SPHAN. Talvez essa própria falta de proteção tenha acarretado ou

permitido essas ‘’deturpações” no conjunto arquitetônico, como citado por Silva Telles.

Quando pensamos em arquitetura como “lugar de memória”, ideia já lançada por Le

Goff (1993, p.467) quando fala que a “História que fermenta a partir do estudo dos

‘lugares’ da memória coletiva, [...] lugares monumentais como os cemitérios ou as

arquiteturas”, fazemos a correlação de que esses lugares carregam em si uma

65 Arquivo Noronha Santos/IPHAN, Série Tombamentos, Processo 674-T-62, Vol. I, pp. 2, Carta nº 370

de 30 de setembro de 1966. Documento assinado por Augusto da Silva Telles.

Page 109: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

108

linguagem que atravessa o tempo, e que caso se “deturpe” em sua expressão

arquitetônica, significa uma perturbação também da memória. Assmann (2011, p. 317)

fala “a respeito de uma força específica da memória e do poder vinculativo dos locais”.

O conservar dos locais é também o conservar da memória, entendendo que os locais,

as arquiteturas são também lugares e sujeitos da memória, e neste caso, podemos

pensar na memória cultural urbana como essa que é vinculada aos locais.

Ainda que o próprio processo de Conservação seja uma forma de interferir na

arquitetura, através de restaurações ou intervenções na matéria, isso mesmo faz parte

da compreensão de que nem a materialidade nem a imaterialidade são estáticas ou

atravessam o tempo de forma “congelada”. O próprio atravessar-o-tempo é uma

transformação constante dos lugares, das arquiteturas, da memória. A memória em si

é um processo, uma construção social, a entidade que traz para nós linguagem e

referência do passado, mas que é também modificada e construída por nossa

interpretação mesma sobre o passado. “O lugar se torna o portador e o gatilho da

mémoire, e a palavra em francês (e também em português) traz o significado de

memória tanto como uma recordação quanto como uma faculdade mental,

dependendo do contexto” (DOLFF-BONEKAMPER, 2017, p. 70).

Ainda assim, vemos que a proposta de Lúcio Costa de inserir alguns arruamentos com

casario preservado foi de suma importância para a preservação desses traços

arquitetônicos, que, dentro da proposta de tombamento de conjunto, figura uma ideia

de representação imagética e estética da memória urbana, que não poderia ser feita

apenas pelo traçado das ruas, tampouco por um conjunto volumetricamente

harmônico, mas que já não portasse os traços antigos em suas casas. A proposta de

Costa é importante para a memória urbana em sua representação da arquitetura de

uma cidade colonial.

Ao responder a carta de Silva Telles, Mota Meneses acrescenta às sugestões de

Costa as seguintes ruas:

Apenas informaria o seguinte adendo: Acrescentaria no tombamento

de ruas tradicionais parte das ruas 27 de Janeiro – casas anexas ao

sobrado do páteo São Pedro – tombamento de gabarito e Rua

Prudente de Morais casas quase defronte ao mesmo sobrado

tombamento em gabarito, isto é, fixação do gabarito máximo de um

pavimento. Os conjuntos de residências em ruas tradicionais são

Page 110: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

109

melhores os da rua do Amparo embora gostasse de também incluir

como ruas além do Amparo as ruas 13 de Maio e Bernardo Vieira de

Melo.

[...]

Não se me tornem bem claro no que proponho. Espero que você, que

percorreu Olinda toda comigo, possa traduzir para a proposta de

tombamento esses adendos.66

A fala de Mota Menezes traz, além de sugestões de tombamentos de conjuntos

arquitetônicos, uma ideia bem interessante, que é o fato de Silva Telles ter percorrido

Olinda toda com ele. Sua memória de Olinda o faria entender o que Zé Luís M.

Menezes estava sugerindo67.

Visto isso, chegamos à compreensão de que a memória cultural urbana é tanto a

construída coletivamente, quanto a própria experiência corpórea daqueles arquitetos

que foram responsáveis pelo tombamento da cidade de Olinda. É tanto a construção

social da cidade, quanto a construção social que se faz a partir da cidade. Memória é

mais do que uma faculdade cognitiva, é um processo complexo e amplo, que

transcende a materialidade e se apresenta como um conjunto de significados e

expressões simbólicas apreendidas por uma coletividade, a cada unidade temporal

em que herdamos do passado determinada herança. O “percorrer Olinda toda” dos

arquitetos que propuseram a poligonal de tombamento é também, como diria Nora,

“atomização” da memória geral.

Chegando ao consenso, Silva Telles completa a proposta:

Propomos, portanto, a inscrição do conjunto urbano e paisagístico de

Olinda, nos Livros do Tombo criados pelo Decreto-lei nº 25, de 30 de

novembro de 1937, correspondente à área delimitada pelo seguinte

perímetro: -partindo-se da orla marítima, pelas ruas Santos Dumont e

Joaquim Nabuco até encontrar o prolongamento do rumo que passa

66 Trecho da carta do arquiteto José Luís Meneses, de 5/XI/66, ao arquiteto Silva Telles. Arquivo

Noronha Santos/IPHAN, Série Tombamentos, Processo 674-T-62, Vol. I, pp. 4.

67 O caminhar e a experiência corpórea, segundo Dolff-Bonekamper (2017, p. 62), podem ser

potencializadores da memória.

Page 111: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

110

pelas igrejas Nossa Senhora do Monte e São João Batista, este rumo,

seguindo-se até a citada igreja do Monte; daí por um segundo rumo,

passando-se pelo Farol até a orla marítima; por esta orla marítima, até

o início da Rua Santos Dumont , por onde se principiou.

Seriam inscritos, dentro deste perímetro, os conjuntos urbanísticos e

arquitetônicos das Ruas 13 de Maio, Amparo e Bernardo Vieira de

Melo.

Nas demais áreas e arruamentos, ficaria a inscrição feita como

extensão do tombamento dos vários monumentos tombados, e,

principalmente, além dos arruamentos agora sugeridos, das igrejas de

Nossa Senhora do Carmo, de São João Batista, da Misericórdia, da

Conceição, de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, do Amparo, do

Monte, do Convento de Nossa Senhora das Neves, da antiga

residência dos jesuítas e da igreja de Nossa Senhora das Graças, do

Mosteiro de São Bento, do antigo Palácio dos Bispos, do antigo Aljube,

atual Museu de Arte Contemporânea, e da casa no Páteo de São

Pedro.

Essa preservação referir-se-á, principalmente, à manutenção do

gabarito e do caráter plástico das edificações – frontispícios e telhados

de telhas antigas (procurando-se, com o tempo, alterar as novas

edificações), e à fixação da densidade máxima de 20%, com vista aos

seus terrenos e limitadas a um único pavimento, as novas

construções. A única exceção seria na área plana, do litoral, aonde

não haveria limite de densidade, mas tão somente limite de gabarito,

de dois pavimentos.

Rio de Janeiro, 24 de janeiro de 1967.68

Destacamos mais uma vez que, mesmo se tratando de uma proposta que considera

o conjunto urbanístico, paisagístico e arquitetônico, a presença dos monumentos

religiosos cristãos são ênfase absoluta na memória da cidade.

68 Proposta de tombamento do acervo urbanístico, paisagístico e arquitetônico da Cidade de Olinda –

PE. Arquivo Noronha Santos/IPHAN, Série Tombamentos, Processo 674-T-62, Vol. 1, pp. 6, de 24 de

janeiro de 1967, RJ. Documento assinado pelo arquiteto Augusto da Silva Telles.

Page 112: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

111

Em sessão ordinária do Conselho Consultivo da DPHAN, “aos doze dias do mês de

março de mil novecentos e sessenta e oito, às quinze horas, no recinto do Plenário do

Conselho Federal de Cultura”, reuniram-se os conselheiros sob a presidência de

Renato Soeiro, então Diretor do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, e

deliberaram pelo tombamento da cidade:

Processo 674-T-62 Monumento: conjunto urbanístico, paisagístico e

arquitetônico de Olinda-PE. Relator: Paulo F. Santos.

Resolução: o Conselho deliberou, por unanimidade, de acordo com as

conclusões do voto do Relator, proceder ao tombamento.69

Paulo F. Santos foi o que concedeu o parecer histórico, citado acima. Após a

resolução de tombamento, foram notificados a Prefeitura de Olinda, na pessoa do

prefeito Benjamim Machado e o Chefe do Distrito da DPHAN em Pernambuco, Ayrton

de Carvalho. Olinda teve as seguintes inscrições: Sob o número 44, fls. 11, Livro do

Tombo nº 1; Sob o número 412, fls. 66, Livro do Tombo nº 2; Sob o número 487, fls.

88, Livro do Tombo nº 3.

69 Ata da quinquagésima reunião ordinária do Conselho Consultivo da Diretoria do Patrimônio Histórico

e Artístico Nacional. Arquivo Noronha Santos/IPHAN, Série Tombamentos, Processo 674-T-62, Vol. 1,

pp. 15.

Page 113: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

112

Imagem 9 - Cópia Autêntica do Tombamento do conjunto urbanístico, paisagístico e arquitetônico de

Olinda-PE. Processo nº 674-T-62.

Fonte: Arquivo Noronha Santos – IPHAN

Desta forma se dá a construção da Memória Cultural de uma Olinda Cristã e Verde,

que tanto assimila a identidade de uma Olinda Barroca, quanto debruça suas colinas

verdes sobre o mar em sua peculiaridade paisagística. A Olinda do saudoso poeta.

Olinda tombada. Sob as asas do IPHAN está, então, o burgo Duartino.

Page 114: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

113

5 A MARTIRIZADA OLINDA CONTA A HISTÓRIA PÁTRIA: DO MONUMENTO

(1972-1980)

Como fênix, ave fabulosa da mitologia, Olinda vive muitos séculos. E

queimada, renasce das próprias cinzas. Como no incêndio do

passado, como na destruição recente. A força do renascimento vem

de suas próprias entranhas. Do encantamento e do mistério de seu

nome. Esconde-se nesses montes, nesses verdes, nesses mares. E,

em 1980, desceu do alto como um dom de Deus. Como um sonho do

Fundador da Cidade, no V centenário de Duarte Coelho. Do velho

Donatário, a valiosa lição. O brasão de armas, como o lendário Leão

do Norte, a parta em riste, pronto para lutar. Para conquistar palmo a

palmo, o que por direito lhe foi dado às léguas. Para erigir Olinda, no

Congresso, Monumento Nacional. E, na UNESCO, Patrimônio Cultural

da Humanidade.

Germano Coelho, Prefeito de Olinda.

5.1 Do monumento ao tombamento e vice-versa.

Ouro Preto foi a primeira cidade brasileira a ser erigida à condição de Monumento

Nacional, antes mesmo da existência do SPHAN, que só viria a ser efetivamente

criado em 1937. Já em 1933, diante de inquietações sobre a proteção do patrimônio

cultural, com o surgimento de projetos de lei para criação de Inspetorias dos

Monumentos Históricos, criação de Inspetorias estaduais, etc. Ouro Preto é

condecorada com o título honroso de Monumento Nacional70.

A propósito, é nas primeiras décadas do século passado que há esse despertar para

a proteção do patrimônio arquitetônico no Brasil. E Minas Gerais é enxergada como o

“berço de uma civilização brasileira”. Tanto é que já em 1938, com o advento do

70 Decreto nº 22.928 de 12 de julho de 1933. Assina Getúlio Vargas. Processo 0070-T-38. Vol.1, pp. 4.

IPHAN-Série Tombamento.

Page 115: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

114

tombamento, muitas cidades mineiras foram tombadas e protegidas como conjuntos

urbanos, a exemplo de Ouro Preto, como citado no capítulo anterior.

Foi numa viagem a Minas, em 1916, que Alceu Amoroso Lima e o então

jovem Rodrigo Melo Franco de Andrade “descobriram” o Barroco e

perceberam a necessidade de proteger monumentos históricos. Foi numa

viagem a Diamantina, nos anos 20, que o arquiteto Lúcio Costa, então adepto

do estilo neocolonial, teve desperta sua admiração pela arquitetura colonial

brasileira. Foi também em viagens a Minas, uma delas em 1924,

acompanhado do poeta Blaise Cendras, que Mário de Andrade entrou em

contato com a arte colonial brasileira [...] O fato é que não só mineiros, como

cariocas, paulistas e outros passaram a identificar em Minas o berço de uma

civilização brasileira, tornando-se a proteção dos monumentos históricos e

artísticos mineiros – e, por consequência, do resto do país- parte da

construção da tradição nacional (FONSECA, 1997, p. 99).

Nascia a cara do Brasil, um Brasil barroco, pautado na herança colonial branca e

cristã, que é a mais fiel representação da identidade que aquela sociedade queria

enxergar. Para Miceli (1987, p. 44), “Essa geração de jovens intelectuais e políticos

mineiros converteu sua tomada de consciência do legado barroco em ponto de partida

de toda uma política de revalorização daquele repertório que eles mesmos mapearam

e definiram como a ‘memória nacional’”.

Page 116: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

115

Imagem 10 – Decreto que erige Ouro Preto em Monumento Nacional, de 1933.

Fonte: Arquivo Noronha Santos-IPHAN.

Em 12 de julho de 1933, o chefe do Governo Provisório da República dos Estados

Unidos do Brasil, Getúlio Vargas, em decreto, diz:

Page 117: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

116

Considerando que é dever do Poder Público defender o patrimônio

artístico da Nação e que fazem parte das tradições de um povo os

lugares em que se realizaram os grandes feitos de sua história;

Considerando que a Cidade de Ouro Preto, antiga capital do Estado

de Minas Gerais, foi teatro de acontecimentos de alto relevo histórico

na formação da nossa nacionalidade e que possui velhos

monumentos, edifícios e templos de arquitetura colonial, verdadeiras

obras d’arte, que merecem defesa e conservação;

O decreto deixava claro que, a partir daquela data, a cidade e todos os bens nela

contidos, como obras de arte ou bens eclesiásticos, ficariam entregues “à vigilância e

guarda” do Estado.

Como vimos no capítulo 2, o tombamento é instituição jurídica própria do SPHAN. A

ideia de Monumento Nacional, que foi aplicada a Ouro Preto, ocorreu pela primeira

vez antes da existência da instituição. Seu surgimento tem a ver com a circulação de

ideias sobre nacionalidade, também relacionadas ao Movimento Modernista e às

missões culturais de intelectuais brasileiros que desbravavam os rincões do Brasil.71

Nos permitindo sair do contexto brasileiro e explorando a ideia de Monumento

Nacional, podemos lembrar o entendimento de Le Goff sobre a palavra Monumentum:

A palavra latina monumentum remete à raiz indo-europeia men, que exprime

uma das funções essenciais do espírito (mens), a memória (memini). O verbo

monere significa “fazer recordar”, de onde “avisar”, “iluminar, “instruir”. O

monumentum é um sinal do passado. Atendendo às duas origens filológicas,

o monumento é tudo aquilo que pode evocar o passado, perpetuar a

recordação, por exemplo, os atos escritos (LE GOFF, 2003, p. 526).

Le Goff ressalta que o monumento é, por excelência, um legado da memória coletiva.

Assim sendo, a ideia de monumento como título honorífico dado à cidade traduz sua

importância na manutenção da memória coletiva, e, no entendimento mais

contemporâneo de Assmann, na ancoragem da memória cultural. O documento

assinado por Vargas se refere, também, à ligação desses monumentos com a

“História Pátria”.

71 Sobre isso, cf. FONSECA, 1997, p. 93. Capítulo “O Movimento Modernista e o Patrimônio”.

Page 118: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

117

Como já é bem sabido, é na França que a ideia de monumento, passível de proteção

e de pertencimento comum, vai ganhar forma, a partir das repercussões da Revolução

Francesa de 1789. Fonseca (1997, p. 58) diz que os bens ameaçados de destruição

“passaram a ter também um valor como documentos da nação, e se converteram em

objetos de interesse não apenas cultural como também político”. A gênese da ideia

de patrimônio comum, da faceta pública e do dever civil de protegê-lo, vem desse

contexto. Para a autora (ibidem), “A ideia de posse coletiva como parte do exercício

da cidadania inspirou a utilização do termo patrimônio para designar o conjunto de

bens de valor cultural que passaram a ser propriedade da nação, ou seja, do conjunto

de todos os cidadãos”. A autora fala que foi durante o período revolucionário francês

que o valor de nacionalidade dos bens se sobrepunha aos demais valores, trazendo,

desde sua gênese, um nexo muito político no entendimento e na proteção do

patrimônio. Para Nunez,

A partir do século XIX, passou a considerar-se o monumento nacional como

o elemento básico que integraria o patrimônio como herança em comum,

baseado no valor de antiguidade, acima inclusive do valor artístico. [...]. Os

nacionalismos europeus do século XIX, portanto, viram nos monumentos os

testemunhos das virtudes e da identidade dos povos, e por isso os

monumentos foram definidos como monumentos nacionais (NUNEZ, 2016,

p.197).

É na lógica de servir ao Estado como aglutinador de uma pretensiosa nacionalidade

que o patrimônio é pensado, e alavanca-se, então, a ideia de Monumento Nacional.

Mas Olinda andava esquecida, como disse Drummond. Em livro72 comemorativo à

sua elevação enquanto Monumento Nacional, Fernando Coelho, autor do projeto de

lei que solicitava tal feito, fala sobre o processo:

Outras cidades brasileiras – quase todas mais novas e com presença menos

assinalada na nossa história e na nossa vida cultural - já haviam sido

distinguidas com o título honroso de “Monumento Nacional”. Com o título e

com o tratamento a que o título obriga. Enquanto Olinda permanecia

esquecida. Discriminada nos orçamentos federais. Sem conseguir sequer os

recursos imprescindíveis para conter o avanço do mar, as inundações do

Beberibe, o deslizamento dos morros. Injustiçada com a negativa do galardão

72 Edição comemorativa à Elevação de Olinda a Cidade Monumento Nacional 1982. Direitos reservados

da edição à Prefeitura de Olinda.

Page 119: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

118

e dos serviços públicos a que tinha direito. Abandonada à sua própria sorte,

sem meios nem ao menos para conservar o conjunto arquitetônico do Sítio

Histórico, ameaçado de destruição (COELHO, 1982, p. 13).

Devemos, porém, problematizar que o significado de Ouro Preto ter sido erigida à

condição de Monumento Nacional em 1933 é diferente do que representa Olinda ter

sido alçada a esta condição em 1980. Não apenas porque os contextos políticos eram

diferentes, mas sobretudo porque eram diversos os conceitos, dado o próprio

alargamento da noção de Patrimônio Cultural. Além disso, em 1980, já se havia uma

experiência prática de políticas culturais voltadas à preservação do patrimônio de, pelo

menos, 40 anos.

Olinda é reconhecida como “Monumento Nacional” doze anos após seu tombamento

em 1968, o que nos dá margem a pensar que o tombamento não havia sido

“suficiente” para sua preservação, como sugere o trecho transcrito de Coelho (1982),

e questionar o que significou, então, esse título honorífico para a esquecida e

injustiçada cidade.

Após um hiato de três anos, o processo 674-T-62 tem continuidade a partir de 1972,

com a documentação enviada à DPHAN por Luiz Vital Duarte, que será explorada

adiante.

É importante, antes, contextualizar brevemente, que nesse momento há uma série de

eventos acontecendo em paralelo e que são, em intensidades diferentes, também

construtores de uma memória oficial.

Sabe-se que, entre novembro de 1966 e junho de 1967, uma comissão de técnicos

da UNESCO percorreu o Brasil com o objetivo de estudar a proteção e a valorização

do patrimônio cultural brasileiro em perspectivas de desenvolvimento turístico e

econômico.73

Nessas missões da UNESCO, de reconhecimento do patrimônio brasileiro, é que

temos a presença de Michel Parent e suas famosas impressões sobre Olinda,

constituidoras de representações da cidade.

73 Proposição do Conselho Estadual de Cultural de Pernambuco. Documento assinado em 18 de junho

de 1974 por Luiz Delgado. Consta no Processo 674-T-62, Vol. 2, pp. 19-21. Série Tombamento, IPHAN.

Page 120: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

119

Os intelectuais do Conselho Estadual de Cultura também lutavam nessa construção

de sentidos, investindo na imagem de Olinda como um grande jardim:

Olinda é uma joia do Brasil. Nela se reúnem admiravelmente a paisagem

marinha e a cidade de arte, com uma riqueza de vinte igrejas barrocas e um

grande número de casas antigas pintadas em vivas cores. [...] em Olinda a

arquitetura surge dentre os esplendores da natureza tropical. O oceano

aparece no fundo do quadro, por trás das torres e dos coqueiros. Entre as

ruelas, a vegetação luxuriante enche a colina. Essa feição esparsa do tecido

urbano deve ser absolutamente preservada. Olinda não é uma cidade: é um

jardim recheado de obras primas de arte. 73

No início dos anos 1970, como informado por Augusto da Silva Telles74, desenvolvia-

se um Plano de Desenvolvimento Local Integrado para Olinda75.

O plano, entre outras coisas, definia a área de preservação rigorosa, áreas non

aedificandi, áreas de preservação ambiental etc. Tratava-se de um plano diretor para

o desenvolvimento da cidade integrado aos preceitos da conservação do patrimônio

cultural.

Em parecer76 de 1975 do Conselho Estadual de Cultura, o relator José Antônio

Gonsalves de Mello fala que o arquiteto José Luís da Mota Menezes, agora

trabalhando pela Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado de

Pernambuco - FUNDARPE, havia feito um estudo sobre a ampliação da poligonal de

tombamento de Olinda, especificando setores, taxas de ocupação e gabaritos para

que o acelerado processo de urbanização que ocorria no Recife não embaraçasse a

visão de Olinda, “de forma a permitir a visão desembaraçada da paisagem e das

74 “Estive em Olinda, em companhia do Sr. Chefe do 1º Distrito para assistir ao segundo e último

seminário sobre o plano de desenvolvimento local integrado que a prefeitura olindense encomendou

sob o financiamento do SERFHAU”. Informação nº 261, de 20 de novembro de 1972. Assunto: Plano

de Desenvolvimento Local Integrado de Olinda. Documento assinado por Augusto da Silva Telles.

Processo 674-T-2, Vol. 1, pp. 41. Série Tombamento. IPHAN.

75 Sobre O PDLI, ver Aline Bacelar em O PDLI DE OLINDA E O TURISMO CULTURAL: conceituação

e práticas, 2017, XV Seminário de História da Cidade e do Urbanismo.

76 Parecer do Conselho Estadual de Cultura. Documento assinado em 05 de maio de 1975 por José

Antônio Gonsalves de Mello. Consta no Processo 674-T-62, Vol. 2, pp. 22-24. Série Tombamento,

IPHAN.

Page 121: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

120

velhas construções olindenses – seus montes, suas casas, suas igrejas, sua

vegetação – e o visitante, ao aproximar-se da cidade-mater da civilização portuguesa

em todo o Nordeste brasileiro, percebesse desde então a importância histórica e

artística da antiga capital” 76

O presidente do Conselho Estadual de Cultura, à época, Gilberto Freyre, encaminhou,

então, os estudos elaborados por Mota Menezes em anuência com o corpo técnico

da FUNDARPE, ao IPHAN, para prosseguimento do processo. A ampliação do

tombamento do IPHAN requerida no processo, pedia: “[...] cumpre ampliar a área

tombada, para incluir a planície de aproximação da cidade, tanto do Sul, do Recife,

quanto do Norte, de Rio Doce, e o trecho a oeste da mesma, que abrange as fraldas

do ‘Monte’ e de Guadalupe” 76

A extensão do polígono de tombamento vem a se concretizar em 1979, já na gestão

de Aloísio Magalhães.

Olinda foi palco, ainda, de obras financiadas pelo Programa Integrado de

Reconstrução das Cidades Históricas, mais conhecido como PCH77. O Programa foi

uma importante iniciativa no âmbito das políticas culturais nos anos 1970, políticas

que vinham se fortalecendo desde a criação do Conselho Federal de Cultura de 1966.

Alinhados a ambições de desenvolvimento pelo turismo cultural, também relacionado

com as missões da UNESCO no Brasil, os militares investiram em políticas de

recuperação das cidades históricas que estavam degradadas. As políticas culturais

entravam no nexo desenvolvimentista do período78.

77 Para o assunto, ver Márcia Chuva e Laís Vilela Lavinas, O Programa de Cidades Históricas (PCH)

no âmbito das políticas culturais dos anos 1970: cultura, planejamento e nacional desenvolvimentismo,

An. Mus. Paul.,vol.24, nº1,São Paulo, Jan/Abr 2016.

78 Ao longo das duas décadas que se seguiram à Carta de Veneza, o Brasil esteve sob a ditadura civil-

militar, instaurada também em 1964, mesmo ano da carta. O período será repleto de desafios,

mudanças conceituais, políticas e práticas para o campo disciplinar da preservação no Brasil. Do papel

fundamental dos consultores internacionais por meio da Unesco ao Programa de Cidades Históricas

(PCH), gestado fora do Iphan como política de governo dos militares, a Instituição focará seus esforços

na gestão e viabilidade econômica dos monumentos protegidos por lei (CORREA, 2012;

NASCIMENTO; MARINS, 2016). Apud NASCIMENTO, 2016, p. 126.

Page 122: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

121

Obras de restauro como a da Sé de Olinda, que destruiu sua feição eclética, são

transformações materiais carregadas de sentido do que seria a Olinda a preservar

para a posteridade79.

Esses processos paralelos e imbricados configuram criação da memória urbana,

assim como foi o tombamento, mas a perspectiva adotada no presente trabalho ratifica

a questão da memória e sua força na criação da identidade nacional, muito mais por

questões de significação simbólica, e, por tanto, a ideia de Monumento Nacional cabe

mais apropriadamente aos objetivos da dissertação.

5.2 A martirizada Olinda

Em carta80 a Carlos Drummond de Andrade, o então presidente do IPHAN, Renato

Soeiro, fala, já em 1968, dos problemas que Olinda enfrentava. Primeiro com o avanço

do mar, que foi solucionado com a construção de um quebra-mar em torno dos anos

1960. Falava também dos riscos de deslizamento das encostas.

As insatisfações sobre a degradação de Olinda continuam por alguns anos, com

repercussões na imprensa.

79 A respeito do restauro, ver CABRAL, 2016.

80 Carta endereçada a Carlos Drummond de Andrade, em 28 de março de 1968, assinada por Renato

Soeiro. Processo 674-T-62, Vol. 1, pp. 28. Série Tombamento, IPHAN.

Page 123: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

122

Imagem 11 - Trecho do Jornal O Globo, de 7 de setembro de 1972, constante no processo 674-T-62.

Fonte: Arquivo Noronha Santos-IPHAN

Trecho do Jornal O Globo, de setembro de 1972, mostra que o então prefeito de

Olinda, Ubiratã de Castro, seguiria para se encontrar com o ministro da Justiça para

tratar sobre o tombamento de Olinda e sua possível inclusão na zona de segurança

nacional. Diz o prefeito:

[...] há muito o Governo Federal deveria ter dado à antiga ‘Marim dos

Caetés’ o tratamento dispensado a Ouro Preto. O Patrimônio Histórico

e Artístico Nacional não pode deixar a cidade abandonada, com suas

relíquias – com os velhos templos e mosteiros, seu casario e o

seminário – ameaçados de se transformarem em ruínas. Precisamos

de verbas para conservar Olinda, 437 anos de luta pela cultura do

Brasil. 81

81 Trecho do Jornal O Globo, de 7 de setembro de 1972, constante no processo 674-T-62, Vol. 1, pp.

42. Série Tombamento, IPHAN.

Page 124: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

123

Diante do cenário desolador da cidade, uma série de articulações foram feitas para

chamar atenção para a preservação do patrimônio cultural, considerando todos os

processos que corriam em paralelo, como o próprio andamento do Plano de

Desenvolvimento Local Integrado.

Como figura central na petição de Olinda como cidade Monumento Nacional, Luiz Vital

Duarte, enviara, em setembro de 1972, uma documentação que pedia o

reconhecimento da velha Marim dos Caetés.

[...] vem, respeitosamente, submeter à alta apreciação de V.

Excelência, por intermédio do Excelentíssimo Senhor Ministro da

Educação e Cultura, com fundamento no parágrafo 30 do art. 153 da

Constituição Federal82, a proposta que objetiva transformar a CIDADE

DE OLINDA em “MONUMENTO NACIONAL”, ouvidos se assim o

Governo Federal o desejar os Ministério da Justiça e Conselho de

Segurança Nacional, a qual ficaria sob a administração direta do

Governo da República, através da pessoa idônea e de plena confiança

do Presidente da República [...]83

Vital Duarte era oficial da reserva do Exército (Major), residia em Olinda e também era

membro do Instituo Histórico de Olinda. Era, ainda, presidente da Irmandade de N. S.

da Conceição dos Militares.

Sobre os aspectos legais do título honorífico, e que talvez traga maior clareza sobre a

diferença da lei do tombamento, Vital Duarte diz:

A Decretação, pelo Governo da República, da Cidade de Olinda como

Monumento Nacional com a prerrogativa de ter na Chefia do Executivo

um administrador da confiança do Chefe da Nação, é uma medida que

garantiria ao Município o fiel cumprimento das disposições do Decreto-

lei nº 25 de 30 de novembro de 1937 que dispõe sobre as medidas de

proteção do patrimônio histórico e artístico nacional, impedindo,

realmente, que as coisas tombadas continuassem a ser destruídas e,

82 § 30. É assegurado a qualquer pessoa o direito de representação e de petição aos Podêres Públicos,

em defesa de direito ou contra abusos de autoridade. (Artigo 153 da Constituição Federal de 1967)

83 Processo protocolado como MEC 001549, enviado por Luiz Vital Duarte à Presidência da República

para requerer a elevação de Olinda à Monumento Nacional. Datado de 25 de setembro de 1972.

Processo 674-T-72, Vol. III, pp. 2-20. Série Tombamento, IPHAN.

Page 125: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

124

também, sem prévia autorização especial do Instituto do Patrimônio,

continuassem a sofrer, como tem sofrido Olinda, pinturas,

restaurações e reparos contrastando flagrantemente com as suas

linhas fundamentais, com flagrante descaracterização.

[...]

O Administrador Federal da “Cidade Monumento” diligenciaria no

sentido de que, por falta de iniciativa das autoridades encarregadas de

mandar executar as obras consideradas necessárias à conservação

de edificações de real valor histórico artístico e cultural, os

proprietários das coisas tombadas não viessem a exercer o direito que

lhes faculta a lei de requerer o destombamento; diligenciaria também

para que, em caso da verificação de urgência na realização de obras

e conservação ou reparação em qualquer coisa tombada, estas

fossem imediatamente projetadas e executadas com a assistência e

participação do Serviço do Patrimônio, independente de qualquer

outra formalidade que viesse obstaculizar a sua ação fiscalizadora,

tendo em vista a preservação dos monumentos de real valor histórico

e artístico existentes na Cidade Monumento.83

O que propõe Vital Duarte, então, é uma forma de administração mais direta e

centralizada sobre a cidade, pois vinda de indicação do “Chefe da Nação”. Seria o

Poder Executivo como interventor federal para gerir o patrimônio histórico e artístico

de Olinda, sem desconsiderar o significado do Decreto-lei nº 25 de 1937, e levando

em consideração o trabalho fiscalizador do IPHAN. Em relação a esse órgão, ele deixa

claro, porém, que não entende estar sendo suficiente para a preservação da cidade:

“[...] conclui-se que a ação fiscalizadora da DPHAN não tem conseguido resultados

mais positivos para a preservação dos monumentos, sobretudo em face da indiferença

dos Prefeitos que tem ocupado a Chefia daquela Cidade, [...]”83, diz o major.

Vemos como o contexto político traz uma outra semântica para o título honorífico de

Monumento Nacional, se formos comparar à elevação de Ouro Preto em 1933. Não

se trata apenas de um título de honra que a equipararia “às suas irmãs de outros

Estados”, mas de uma intervenção federal na administração e gestão da cidade e de

seu patrimônio cultural, além de ser uma medida protetiva que poderia angariar mais

recursos da União em sua restauração.

Page 126: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

125

O título conversa com as intenções de recuperação de cidades históricas para

promoção da indústria turística, como era intenção do governo militar, em seu mote

de desenvolvimentismo nacionalista, assim como corroboraria para o trabalho que a

UNESCO vinha desenvolvendo no reconhecimento de bens culturais como Patrimônio

da Humanidade, como viria a ocorrer a Olinda anos mais tarde.

Politicamente, o Major busca também o nexo da brasilidade que o patrimônio tem por

representação. Clama a Olinda um lugar no panteão dos deuses da memória nacional,

a memória oficial que representaria o Brasil que se tentava construir naquela época.

Continua o Major:

As forças políticas de Olinda não são atuantes nem coesas, [...]

desprovidas de objetivos sociais e políticos de grande envergadura,

entregam-se comumente nos bastidores, às práticas condenáveis e

mesquinhas de uma política partidária alheia aos superiores

interesses da coletividade, subestimando, como é óbvio, as mais

autênticas tradições que Olinda tem, como legado de seus

antepassados que sempre primaram pelo respeito à ordem e à

liberdade, fazendo do poder político a força latente que faria florescer

a grandeza e os sentimentos de brasilidade de olindenses, então

empenhados em estabelecer a autonomia e a independência das suas

manifestações culturais e políticas.

Nas suas campanhas [...] limitam-se aos ataques pessoais [...] quando

deviam debater com as massas os problemas nacionais,

esclarecendo-lhes acerca das medidas de alto nível que vem sendo

tomadas pelo Governo da Revolução.

[...]

As facções políticas do Município, em vez de estimularem a formação

de valores, procuram alijar das hostes partidárias municipais, homens

inteligentes e perspicazes preparados para administrar porque

conhecedores dos males que afligem os diferentes setores da

atividade púbica municipal, muitos deles aliando a um grande fervor

patriótico o desejo apaixonado de servir à coisa pública, só porque tais

elementos não se prestariam para agenciar suas barganhas,

contrariando os princípios fundamentais da Revolução de Março de

1964.

Page 127: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

126

[...]

Se ocorrer a derrota da Arena, então assumirá o candidato do MDB,

acarretando para Olinda uma situação político-administrativa

insustentável, completamente divorciada dos verdadeiros objetivos

nacionais e sem a força necessária para postular junto ao Governo

Central, a implantação de certos melhoramentos que importam no

bem-estar, no progresso da Comunidade Olindense.

[...]

Uma solução justa e razoável que consiste na sua transformação em

Cidade-Monumento Nacional, antes mesmo da realização das

eleições, a fim de que nenhuma relação possa existir entre os

resultados do pleito e a concretização da medida aqui sugerida.

De outra forma, o Governo ficará impossibilitado de acorrer às

angústias da população Olindense, pois não encontrará no seio dos

emedebistas aquela indispensável confiança que lhe possibilite aplicar

no Município, os recursos que o mesmo carece para a conjugação dos

seus esforços com a União Federal, na execução dos planos nacionais

de desenvolvimento. 83

Os aspectos políticos trazidos pelo Major Luiz Vital Duarte em seu discurso

demonstram total alinhamento com o Regime Militar, de forma a exaltar os valores

prezados pelo governo autoritário como “respeito à ordem”, mostrando que os

problemas que, segundo ele, o poder executivo enfrentava, acabava afetando os

“interesses superiores da coletividade”, de modo a não provocar o “sentimento de

brasilidade” que os cidadãos deviam endossar na época.

Em crítica ao governo municipal, fala que “homens inteligentes e perspicazes” eram

alijados do governo, homens que, como ele, possuíam grande desejo de servir à

Nação, aliado a “grande fervor patriótico”.

Frisa que o reconhecimento de Olinda como Monumento Nacional legitimaria a

intervenção do Governo Federal na administração da cidade. Em relação à Segurança

Nacional, o Major continua:

Quanto aos aspectos relativos à segurança nacional, a medida se

apresenta como das mais alvissareiras, visto como Olinda, sede de

Page 128: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

127

quatro unidades militares, e transformada em Cidade Monumento

Nacional sob a Administração Central da União, eventualmente, pode

constituir-se ponto estratégico para a manutenção da ordem política e

social.

É importante frisar ainda que pela sua condição estratégica, Olinda

teve em seu território, recentemente, vários aparelhos de subversão

desbaratados pela polícia, os quais se situavam ao longo de suas

praias.

Demonstrando claro apreço à “manutenção da ordem política” vigente, o Major via em

Olinda “Monumento Nacional” o ponto estratégico de representação do governo

autoritário.

Nessa documentação enviada à Presidência da República através do Ministério de

Educação e Cultura, protocolada pelo Departamento de Assuntos Culturais como

Processo MEC 001549, Vital Duarte destrincha as razões pelas quais fazia o pleito

pela Olinda Monumento:

Por sua arquitetura típica do período colonial brasileiro, quando do

fastígio da agro indústria do açúcar nos séculos XVII e XVIII, Olinda

de há muito já devia ter sido oficialmente reconhecida como Cidade

monumento, o que teria preservado a inteireza de muitas de suas

edificações mais historicamente expressivas que, pela ação predatória

e inconsequente de administradores incapazes, sofreram ao longo de

muitos anos, deformações imperdoáveis com a conivência descabida

e ilegal da administração do Município, irregularidade que ainda

subsiste, inobstante a ação fiscalizadora do IPHAN. 83

Vemos que Vital Duarte realça a importância da arquitetura colonial, do testemunho

histórico que ela representa e mostra que Olinda andava esquecida pelas autoridades,

e que seu prévio reconhecimento como Monumento Nacional poderia ter evitado muito

de sua degradação. Insiste em falar, então, do momento de degradação e desolação

vivido pela cidade, que vinha sendo denunciado e percebido há anos, porém sem

atitudes efetivas para remediá-la. Se pensarmos, então, nos processos paralelos que

ocorriam no período, vemos que as missões da UNESCO foram muito importantes

para o reconhecimento do valor excepcional da cidade, assim como para o clamor

pela “proteção absoluta”, além de já falar sobre as ameaças sofridas pela cidade.

Page 129: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

128

A partir do intento do Governo autoritário em explorar o potencial turístico das cidades

históricas, em parceria com a UNESCO, foram pensadas políticas de cultura que

revalorizassem os sítios históricos, que restaurassem as cidades degradas, o que

culminou, então, no PCH. Tudo estava ocorrendo em paralelo e de forma interligada,

assim como os estudos para a expansão do polígono de tombamento e o próprio PDLI,

que tinha como uma de suas premissas o desenvolvimento local através do potencial

do turismo cultural. Segundo Chuva e Lavinas,

Destacaremos também uma questão de natureza teórica, relativa ao conceito

de Estado que embasa a interpretação das políticas culturais (e do PCH)

como parte do processo de modernização autoritária do Estado

implementada pelo regime militar - que aprofundou as relações capitalistas

no Brasil e complexificou o Estado e a integração de redes sob seu

controle (CHUVA e LAVINAS, 2016, pp. 77).

Vital Duarte realça a importância histórica da cidade esquecida, como se esse fosse

o traço mais forte de uma memória que era carregada pela cidade, pelos lugares, em

seu traçado urbano, em seu casario, em sua espacialidade marcada pelos eventos

históricos, sobretudo do passado colonial:

[...] fundada por Duarte Coelho Pereira, Donatário da Capitania de

Pernambuco, e, oficialmente, reconhecida como vila por Alvará Régio

de 12 de março de 1537, teve considerável importância na história

política, social e econômica de Pernambuco e do Brasil, merecendo,

portanto, o seu conjunto arquitetônico e urbanístico, cuidados

especiais para que conserve as características expressivas da arte

Tradicional Brasileira e, também, as significativas peculiaridades

regionais. 83

O major clama por proteção federal à cidade (como se o IPHAN e o tombamento já

não cumprissem essa função), dizendo que a municipalidade permite que sejam

realizadas obras, tanto de cunho privado quanto estaduais, à revelia da lei de

tombamento federal (de 1968), o que provoca progressiva descaracterização do

conjunto arquitetônico e urbanístico.

É flagrante os processos de desvalorização e descaracterização vivido pela cidade

durante esses anos. Avanço do mar, enchentes do rio Beberibe, construções

irregulares, abandono de monumentos, como o Seminário de Olinda. Todo esse

Page 130: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

129

processo entra no âmago do impulso de preservação empreendido pelo major Duarte.

E no processo, o autor continua a salientar as relações da cidade com os eventos

históricos, clamando para a importância da permanência material desse testemunho:

[...] os monumentos históricos de Olinda se destacam não só pela sua

imponência, mas, principalmente, pela relação com os mais

importantes fatos ligados à formação e ao desenvolvimento da

nacionalidade brasileira. Encontram-se no município monumentos de

destaque como: o Antigo Colégio dos Jesuítas, primeira instituição de

ensino primário do Brasil, até que em 1796, Azeredo Coutinho, Bispo

de Olinda, o transformou em Seminário, emprestando-lhe caráter de

escola secundária, a melhor escola desse nível até então fundada no

país. Foi no velho seminário de Olinda que o célebre Padre Antônio

Vieira ensinou retórica. A sua fundação está ligada a iniciativa de

Jesuítas ilustres como Manuel da Nóbrega e Luís de Grã. Frequentou-

o como aluno o Padre João Ribeiro, herói e mártir da Revolução de

1817. Encontra-se hoje, praticamente abandonado.

Outro monumento de real valor que V. Exa. bem conhece é o mosteiro

de São Bento, onde funcionaram os primeiros cursos jurídicos do

Brasil, criados pelo Decreto Imperial de 11 de agosto de 1822[...]

O prédio que fora construído por Duarte Coelho para funcionamento

do Senado da Câmara e depois doado a D. Estevão Brioso de Oliveira,

Bispo de Olinda, que o converteu em Palácio Episcopal, denominação

que ainda hoje conserva, permanece sem os cuidados especiais que

lhe deviam ser dispensados, somente recebendo ligeiras reparações

e pinturas por iniciativa da Cúria, sem a preocupação de reproduzir

exatamente os aspectos originais da construção.

Além desses, há vários outros monumentos e igrejas que difícil seria

enumerá-los todos, podendo, todavia, ressaltar mais alguns como: A

casa que viveu Fernandes Vieira, o Herói da Restauração, a única

casa que escapou ao fogo ateado pelos Holandeses e mais uma série

de pontos em que se desenvolveram fatos importantes da história

colonial do Brasil e a igreja de S. João dos militares que também

escapou às chamas do incêndio, merecedores, por conseguinte, da

mais rigorosa proteção que até hoje não lhes tem sido dispensada.

Page 131: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

130

A proteção que submeto à honrada apreciação de V. Exa., e do

Excelentíssimo Senhor Presidente da República, assenta, sobremodo,

no fato de ter sido Olinda, depois da chegada de Duarte Coelho, em

1535, construída sobre as encostas de uma colina, dominada por uma

capela e fortificação, constituindo destarte, o primeiro exemplo na

América, de cidade portuguesa tipicamente medieval, de ruas e

ladeiras tortuosas e íngremes e de súbitas declividades.

Outro acontecimento de real significação histórica que teve lugar em

Olinda, sem dúvida alguma, é o nascimento do “Teatro entre nós em

1575, no Colégio dos Jesuítas”, então Seminário de Olinda onde os

seus alunos levaram à cena uma tragédia inspirada na parábola “Rico

avarento e Lázaro pobre”, constituindo, destarte, tal encenação a

primeira manifestação da arte teatral brasileira que mais tarde se

expandiria por todo País.

A casa da Praça Conselheiro João Alfredo apresentando um

expressivo conjunto de elementos arquitetônicos que nos permitem

identificá-la como um valoroso remanescente da arquitetura

residencial do mais remoto período colonial brasileiro, encontra-se

hoje em ruínas, sem que ao menos a Municipalidade em conjunto com

o IPHAN, se disponha a colocar uma fortificação qualquer para evitar

o seu desmoronamento.

O conhecimento e a vivência que tenho dos problemas de Olinda, me

têm despertado para a análise dos fatos atentatórios da integridade do

seu patrimônio histórico e arquitetural, levando-me a propor a

autoridades como V. Exa. e o Chefe da Nação, medidas de defesa

capazes de impedir a sua desvalorização e amesquinhamento, pois,

inobstante a legislação em vigor que proíbe, expressamente, a

destruição desse patrimônio, predominam acontecimentos de

natureza diversa e de origem variada [...] todos virtualmente

prejudiciais à proteção do acervo artístico cultural da velha e

legendária Olinda. 83

Atenção para o nexo de nacionalidade que reclama o Major a Olinda. Em diversos

momentos de sua fala, apela para o marco primeiro, o mito de origem que Olinda

significa para o Brasil. Primeiro colégio, primeiros cursos jurídicos, primeiro teatro,

primeiro exemplo na América da cidade portuguesa. Essa busca pelo lugar fundador

Page 132: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

131

é a busca pela âncora da memória. É o estandarte da memória que reside nos locais,

como diria Assmann. A autora remonta ao teórico da mnemotécnica romana para falar

da “força da memória que reside no interior dos locais” (ASSMANN, 2011, pp. 317). A

autora fala que os locais “solidificam e validam a recordação, na medida em que a

ancoram no chão, mas também por corporificarem uma continuidade da duração que

supera a recordação relativamente breve de indivíduos, épocas e também culturas,

que está concretizada em artefatos” (ASSMANN, 2011, pp. 318).

Já diria o hino do estado de Pernambuco: A República é filha de Olinda. Vital traz à

tona os marcos importantes da História não só de Pernambuco, como do Brasil, que

tiveram como cenário Olinda. A construção, o incêndio, a restauração, o primeiro grito

da república, o atravessar-o-tempo, são processos de desenvolvimento em que a

cidade se transforma ao passo que porta em si, em sua materialidade, em seus

lugares, a memória cultural. Vive e testemunha os eventos históricos, de forma a

representar um monumento (em Le Goff, o legado da memória coletiva) com

expressão de uma nacionalidade requerida, que estava em construção e buscava

âncoras do nexo identitário, portanto, sim, Monumento Nacional.

O relatório de Luiz Vital Duarte é então recebido pelo Departamento de Assuntos

Culturais do IPHAN e analisado por Silva Telles, que encaminha ao diretor, Renato

Soeiro, uma informação84 dando aval ao pedido do Major, dizendo que “tal decreto

dará maior ênfase e responsabilidade às autoridades municipais e estaduais, para a

preservação do acervo urbano”.

84 Informação nº 258 de 17 de novembro de 1972 cujo assunto era: Preservação de Olinda PE como

“Monumento Nacional”. Documento assinado por Augusto da Silva Telles. Processo 674-T-62, Vol. III,

pp. 25. Série Tombamento-IPHAN.

Page 133: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

132

Imagem 12 - Telex enviado de Renato Soeiro para Jarbas Passarinho sobre a urgência de

providências sobre a destruição de Olinda. Data de 19 de outubro de 1972.

Fonte: Arquivo Noronha Santos-IPHAN

Em outubro do mesmo ano, Soeiro envia Telex ao ministro de Educação e Cultura,

Jarbas Passarinho, falando da urgente situação de Olinda, dizendo ser necessária

sua presença no local. Em linguagem que cabia à tecnologia do Telex, disse ao

ministro: “ [...] a necessidade urgente da presença do senhor em Olinda para estudar

in loco providencias serem adotadas salvar destruição monumentos históricos aquela

cidade.”85

Após ser enviado e protocolado no Ministério de Educação e Cultura, o processo de

Luiz Vital Duarte foi enviado ao ministro pelo próprio diretor do IPHAN, Renato Soeiro.

85 Telex enviado de Renato Soeiro para o ministro de Educação e Cultura Jarbas Passarinho sobre a

urgência de providências sobre a destruição de Olinda. Data de 19 de outubro de 1972. Processo 674-

T-62, vol. 1, pp. 44. Série Tombamento-IPHAN.

Page 134: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

133

Em informação86, o diretor diz que o relatório do major traz informações de que “os

conjuntos de valor histórico e artístico correm risco quanto à sua integridade”, e por

isso mesmo e do fato de já ser tombado, o diretor julga “cabível e de interesse a sua

transformação em Monumento Nacional”. Ele fala que para que ocorra devida

proteção, as cidades-monumento devem ser consideradas áreas de defesa nacional,

e, por isso, propõe que seja feito um projeto de lei para enquadrá-las nessa zona.

Chuva e Lavinas contextualizam esse movimento da cultura em aproximação à defesa

nacional:

Observando ainda o documento da "Política Nacional de Cultura: diretrizes",

verificamos que a preservação da cultura tornou-se uma questão de

segurança nacional87, aspecto que até então não havia sido elaborado

nesses termos. A defesa da cultura era comparada à "defesa do território, dos

céus e dos mares pátrios", pois "contribui para a formação e a identificação

da personalidade nacional" e visava "edificar uma sociedade aberta e

progressista". Aliar desenvolvimento e cultura como medidas estratégicas

relacionadas à segurança nacional foi posto claramente nesse documento,

ao lado da noção de Brasil Grande [...] (CHUVA e LAVINAS, 2016, p. 81).

O trabalho de Luiz Vital Duarte foi reconhecido e repercutido como pioneiro para a

elevação de Olinda a Monumento Nacional, embora devamos considerar que os

trabalhos desenvolvidos pela FUNDARPE na pessoa de José Luís da Mota Meneses

e equipe para a rerratificação do polígono de tombamento de Olinda, assim como o

PDLI também era inciativas que presavam pela preservação do patrimônio cultural da

cidade. Também interessava ao Governo da época a reconstrução das cidades

históricas para seu aproveitamento na indústria turística, como vimos. O seguinte

trecho do Jornal do Commercio enfatiza a “preservação do barroco” nessas inciativas

governamentais.

86 Departamento de Assuntos Culturais. Informação encaminhada ao ministro de Educação e Cultura,

em 6 de dezembro de 1972. Documento assinado por Renato Soeiro. Processo 674-T-62, Vol. 1, pp.

47. Série Tombamento-IPHAN.

87 Chuva E Lavinas (2016, pp 81) falam que “A ideologia da Segurança Nacional durante o regime

militar teve seus princípios básicos formulados pela Escola Superior de Guerra e serviu como amparo

fundamental para o discurso de legitimação do golpe de 1964. Além de ser utilizada como justificativa

para a continuidade do regime. ”

Page 135: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

134

Imagem 13 - Trecho do Jornal do Commercio de 3 janeiro de 1973. Consta no Processo 674-T-62,

Vol. 3, pp. 44. Série Tombamento.

Fonte: Arquivo Noronha Santos-IPHAN

São sobrelevados os traços da memória branca, cristã e barroca na preservação deste

patrimônio. O trecho acima cita que seriam portados “para a posteridade os

remanescentes da arte barroca no Nordeste”, com destaque para as ações que

elevam “Olinda e Igarassu à condição oficial de redutos de barroco nordestino”.

A luta de Vital Duarte teve repercussão na imprensa local, com devido apoio de

intelectuais e entidades da sociedade que queriam a preservação de Olinda. Porém,

como processo burocrático que é, passou anos em “processo”, sem nenhuma

resposta ou atitude por parte do governo militar. Em 1974, o major Duarte fala em

Cartas à Redação do Diário de Pernambuco de 4 de outubro.

[...]

O Instituto Histórico de Olinda, defensor das mais autênticas tradições

artístico-históricas e culturais da “cidade-símbolo” que é realidade e

Page 136: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

135

grandeza, em cuja formação houve a meditação do sábio e o sacrifício

do herói, envidou o melhor de seus esforços pelo reconhecimento de

Olinda como cidade MONUMENTO NACIONAL. A maioria de seus

componentes à frente seu operoso Presidente o Patriarca Gaston

Manguinho, responsabiliza o atual Prefeito da sofrida e martirizada

cidade por não haver mantido nenhuma gestão em prol do

mencionado movimento salvador.

É oportuno salientar que Porto Seguro, dada a importância do Monte

Pascoal, por haver contado com o integral apoio de seu Prefeito (e do

Governador da Bahia), já é CIDADE MONUMENTO NACIONAL,

enquanto Olinda está injustamente relegada ao esquecimento, pelo

indiferentismo e falta de sensibilidade às gloriosas tradições

olindenses, por parte de seu edil que é “considerado inimigo da

cultura”.88

Olinda martirizada estava relegada ao esquecimento. Havia outros esforços em prol

da preservação da cidade, mas a cidade ainda não tinha a certidão de Monumento

Nacional, e, pelo menos em mais alguns anos, a batalha de Vital Duarte continuaria.

5.3 Olinda, Monumento Nacional

Olinda, multicentenária, mítica e mística, preserva nas pedras de suas

ladeiras e monumentos, as marcas desses sonhos e lutas “que por

seu viver morreram”, desde os mais aguerridos Tabajaras e Caetés,

aos heróis do Capitão André Temudo contra o invasor batavo, dos

mártires da República e da Liberdade, na Guerra fraticida contra os

Mascates, aos mais humildes do povo marginalizado que vegeta nos

manguezais da Ilha do Maruim, num painel feito de sonhos, fantasias,

idealismo e horror, por entre as extasiantes paisagens dos seus

“imprevistos horizontes” e das suas cores de azuis e de vermelhos

poentes.

88 Trecho do Diário de Pernambuco, 4 de outubro de 1974. Cartas à Redação, por Luiz Vital Duarte.

Consta no Processo 674-T-62, Vol. 3, pp. 67. Série Tombamento-IPHAN.

Page 137: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

136

Uma cidade – a mais antiga e brasileira das cidades brasileiras – no

quanto de Brasil Colonial, seja Portugal dos Trópicos, e seja barroco

acachapado, e seja fé cristã sincretizada, e seja escravidão e ideais

libertários, e seja tradição e renovação, conspiração e lealdade,

bravura e mansidão, canto, forma e cor, cantigas de amor e cantochão

de amor divino no ádrio sombrio dos conventos, palmeiras ao vento,

sons de sinos, jasmineiros em flor, praias e ladeiras, infância,

senectude, começo e fim, entrudo carnavalesco e sisudez monástica

das quaresmas medievais.

Cidade símbolo. Muito, muito mais que apenas MONUMENTO

NACIONAL – o mais belo testemunho do Homem nos trópicos

americanos, produto do Engenho, do Sonho, da Arte das três culturas

fundamentais brasileiras, amalgamando-se, miscigenando-se e

construindo no Novo Mundo uma Civilização nova e um dia, a Deus

querer, uma Nova ordem mais humana, mais cristã e mais digna do

que a hoje imperante no dual e conturbado universo dominado pelo

sistema industrial capitalista.

Olímpio Bonald Neto, prefácio do livro Olinda Monumento Nacional, de

Fernando Coelho, 1982.

O prefácio do livro ensaia uma cidade vitoriosa, que havia apenas sido condecorada

com o título de Monumento Nacional e representava, na visão daqueles que lutaram

pelo título, toda a glória, ainda que por uma perspectiva deveras otimista, da cidade

que carregava “nas pedras de suas ladeiras e monumentos” a memória de feitos,

eventos, povos, e heróis que viveram a cidade, e que essa memória cultural chegava

então àquele presente de Olímpio B. Neto89 como a herança dessa cidade gloriosa,

agora Monumento.

89 “Olimpio Bonald Neto da Cunha Pedrosa, advogado, jornalista, folclorista, escritor, poeta e pintor,

nasceu em Olinda, no dia 7 de outubro de 1932. Participou ainda do Movimento de Artes da Ribeira,

em Olinda, na década de 1960, com várias exposições. Em 1966, recebe o prêmio de Poesia, conferido

pela União Brasileira de Escritores, e em 1976 é agraciado com o prêmio de Ensaio pela Academia

Pernambucana de Letras. ” Para mais informações: ANDRADE, Maria do Carmo. Olímpio Bonald Neto.

Pesquisa Escolar online, Fundação Joaquim Nabuco, Recife. Disponível em:

<http://basilio.fundaj.gov.br//>. Acesso em 26 dez. 2018.

Page 138: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

137

O processo, porém, levou mais alguns anos para ter vitória. A luta pela Olinda-

Monumento Nacional começara em 1972 e iria até 1980, passando pelo processo de

redemocratização do país. Enquanto isso, a cidade enfrentava cheias do Beberibe,

avanço do mar, deslizamento de morros, descaracterização de seu patrimônio.

Em 1975 é apresentado à Câmara dos Deputados o projeto de lei nº 1.140 por

Fernando Coelho, então deputado federal do MDB-PE, que, no texto, retoma muito do

que foi dito pelo major Duarte. Fernando Coelho usa as palavras do major, publicada

precedentemente em “Carta Aberta ao Presidente Geisel”, publicada no Jornal do

Commercio, do Recife, edição de 27 de setembro de 1975. Em palavras do major,

dentro do projeto de lei90, consta:

A vetusta Olinda, fundada por Duarte Coelho, em 1537, antiga “Capital

Eclesiástica pernambucana” e “florão de nossas glórias”, representa,

exatamente a melhor e mais preciosa relíquia de nosso passado, de

gloriosas tradições nacionais, por ser recordista do pioneirismo: da

arte barroca do Nordeste; das moendas de açúcar de Pernambuco;

dos cursos jurídicos do Mosteiro de São Bento, cenóbio transfigurado

em templum juris, do lançamento da semente do ensino primário e

eclesiástico do Nordeste, do teatro, da Santa Casa de Misericórdia, do

Jardim Botânico, do desenho e lirismo brasileiros; da fundição, da

Alfândega, das Irmandades, Ordens Religiosas, do atendimento

hospitalar e das Escolas de Agronomia e Veterinária pernambucana;

do Seminário para formação de padres católicos, “foco de irradiação

das ideias liberais” fundado por Azeredo Coutinho, em 1800; dos

Conventos Carmelitanos e Franciscanos e dos Escritores do Brasil;

dos formosos monumentos nacionais, dos autênticos movimentos

libertários: da guerra dos mascates, no nativismo, da Revolução

Praieira, da Revolução Pernambucana de 1817 e da Convenção de

Beberibe, antecipando a independência lograda no “Leão do Norte”,

onze meses antes que o Príncipe D. Pedro respondesse às Cortes que

ficariam no Brasil; dos heróis que erigiram o grande edifício da

nacionalidade; do berço da civilização e da cultura nacionais e do

90 Projeto de Lei nº 1.140 de 1975, Câmara dos Deputados, por Fernando Coelho. Consta no processo

674-T-62, vol. 3, pp. 74-75. Série Tombamento-IPHAN.

Page 139: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

138

primeira general brasileiro, cuja história e evolução do tempo não

conseguirá apagar.

A martirizada Olinda, digna de veneração, dentro de cujos templos se

ouviram os mais pungentes gemidos da pátria opressa, como

ecoavam em suas abóbadas as notas melodiosas dos hinos e ações

de graças pelas vitórias conquistadas a custo de muito sacrifício e

derramamento de sangue que tingiu os chãos sagrados de Olinda,

pelos seus mais valentes defensores que escreveram páginas de

heroísmo na nossa história-Pátria, oferece aos estudiosos da vida

pernambucana um conjunto de aspectos e de sugestões do mais

incomparável valor. Em sua fisionomia paisagística, relembra um tanto

a velha Coimbra; e se de Portugal emigrou para o Brasil a semente da

tradicional Faculdade de Direito, fazendo na lendária Marim, de

batismo Tabajara, segundo Frei Santa Maria Jaboatão, nascer a

formação jurídica brasileira, na expressão de Oliveira Lima, novos

estabelecimentos de cultura universitária se firmam para avivar nela

os traços ainda existentes de sua fisionomia coimbrã. 90

Em conclusão de seu projeto, Coelho diz “Quando se condena e se tenta evitar, a todo

custo, a perda da memória nacional; quanto o país se empenha em conservar vivo o

passado que serviu de alicerce à sua grandeza no presente – a homenagem que

deveremos prestar à cidade de Olinda, através da presente proposição, constitui um

ato de justiça a que não poderá faltar o Congresso Nacional”. 90

O projeto tramita no Congresso Nacional durante cinco anos, trajetória narrada no livro

do próprio Fernando Coelho intitulado Olinda Monumento Nacional, edição

comemorativa ao feito, que, portanto, dá conta dos vaivéns do projeto no Congresso.

O importante é mostrar que o projeto de lei partiu das palavras do Major Vital Duarte.

A Lei nº 6. 863 de 26 de novembro de 1980 erigiu Olinda em Monumento Nacional,

sancionada por João Figueiredo.91 Olinda já corria, nesse momento, em busca do

título de Patrimônio da Humanidade pela UNESCO. Coelho afirma que “’Monumento

91 Lei que erige Olinda Monumento Nacional em 1980. Consta no processo 674-T-62, Vol. 3, pp. 183.

Série Tombamento-IPHAN

Page 140: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

139

Nacional’ e ‘Patrimônio Cultural da Humanidade’ são títulos que distinguem e

notabilizam uma cidade – mesmo aquelas já consagradas como tais” (COELHO, 1982,

pp. 102). Ele diz que mais do que título honorífico, a condição de Monumento Nacional

traria os recursos e os caminhos para a restauração da velha cidade e “para a melhoria

das condições de vida do seu povo sofrido e abandonado à própria sorte, durante

tantos anos”.

O discurso do Major foi, desde o início, gatilho da memória cultural urbana, visto que

trazia à tona os eventos históricos vividos naquele lugar, o sangue dos heróis

derramado naquele chão. Vemos um apelo que se alinhava ao patriotismo e

nacionalismo da época, de modo a esperar do governo militar uma espécie de “defesa”

da cidade, quando é proposta a ideia de colocá-la na zona de segurança nacional.

Vemos o quanto alinhado ao regime estava o major Duarte, e podemos, então, refletir,

que Olinda Monumento Nacional é, portanto, traço desse patrimônio branco, cristão,

ordeiro, patriota e reconhecidamente filha do regime militar, que buscava, no

patrimônio, o monumento nacional, a ideia de “brasilidade” defendida pelo major.

Vemos que a ideia de Monumento Nacional está relacionada à criação possível da

identidade que se pretendia dentro dos anseios do regime militar. A memória oficial

nos discursos do IPHAN e do Congresso que a consagrou em 1980. O burgo Duartino,

a Marim dos Caetés, a martirizada Olinda, passava a ser, agora, Monumento Nacional

reconhecida dentro do regime que foi enxergado como “salvador da pátria” para a

salvaguarda de seu patrimônio.

Page 141: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

140

6 A MEMÓRIA DE OLINDA REVELADA. CONSIDERAÇÕES FINAIS

[...]

E na janela do dia

Olinda erguida de dentro d’água.

(Renata Rosa em Janela do dia)

As análises documentais trouxeram à superfície da lembrança muitos traços de

Olinda, que são memória urbana, como sua relação paisagística com o mar. Como a

cidade que é erguida de dentro d’água. A Olinda que se vê desde o mar. Dos banhos

de Clarice no mar de Olinda, à Marim dos caetés, a “elevação junto ao mar” tem sua

composição entre o mar e as colinas ressaltada por Freyre. A paisagem marinha de

Parent, com “o oceano que aparece no fundo do quadro”. A orla marítima é linha

formadora da poligonal de tombamento, como citada pelos arquitetos.

A Olinda verde das fotografias que foram utilizadas nos estudos para o polígono de

tombamento (Anexos A e B). Quintais arborizados e coqueiros que anunciam sua

glória. “Com suas faldas e vertentes, suas praças, seus jardins e cercas conventuais,

verdejantes de árvores e coqueiros, a cidade ainda aparece, hoje, imersa e envolvida

em densa arborização que a enfeita e lhe confere graça excepcional” 92. O jardim de

Parent, recheado de obras primas.

A Olinda cristã e barroca. Como mostra a tabela de tombamentos anteriores ao

tombamento do conjunto, Olinda é, desde o início, representação do barroco no

Nordeste brasileiro. A memória barroca é a primeira força de memória que é legitimada

e ratificada até o tombamento do conjunto e mesmo até enquanto Monumento

Nacional. Como dito, as ordens religiosas ditam as linhas da memória de Olinda.

“Demarcado a partir das edificações religiosas que se foram construindo, e

acompanhando a topografia local, o arruamento antigo, que ainda se conserva, a

92 Proposta de tombamento do acervo urbanístico, paisagístico e arquitetônico da Cidade de Olinda -

PE. Arquivo Noronha Santos/IPHAN, Série Tombamentos, Processo 674-T-62, Vol. 1, pp. 5, de 24 de

janeiro de 1967, RJ. Documento assinado pelo arquiteto Augusto da Silva Telles.

Page 142: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

141

despeito dos acrescentamentos que se foram somando, é espontâneo[...]”93. Como

disse Miceli (1987, p. 44), o barroco foi ponto de partida para o que as políticas de

cultura delinearam enquanto “memória nacional”.

Dentro da construção de uma memória oficial da cidade, a partir do processo de

tombamento do IPHAN, encontramos uma Olinda esquecida, diante de “suas irmãs

de outros estados”. Reclama-se que tanto o tombamento quanto o título de

Monumento Nacional já deveriam ter sido concedidos, enquanto a cidade sofria,

martirizada, descaracterizações em sua forma devido tanto a causas naturais, como

o avanço do mar, as cheias do rio Beberibe e o deslizamento das colinas, quanto por

obras irregulares realizadas pelos chamados “inimigos da cultura”.

O processo de tombamento mostra a representação da memória da cidade,

construída em cada etapa, no tombamento em si, nos estudos da rerratificação do

polígono, no plano de desenvolvimento local integrado, no título de Monumento

Nacional, etc. porém, dentro deste recorte temporal explorado, a representação dessa

memória está relacionada à herança lusitana de sua construção, especificamente por

representar a arquitetura portuguesa que se “adaptou” aos trópicos, “com a

característica dos arruamentos dos povoados portugueses de origem medieval.”94 O

burgo Duartino é chamado de Portugal dos Trópicos e de Coimbra Brasileira. Ainda

que seja também a Marim dos Caetés e Tabajaras, nenhum traço indígena é

ressaltado nas reminiscências da cultura material que são, então, protegidas e

seladas sob as faculdades legais do Instituto do Patrimônio. Com isso, encontramos

muito mais a representação da Olinda portuguesa, colonial, barroca, cristã e branca

do que propriamente traços de outros grupos sociais que porventura tenham

amalgamado a sociedade representada nessa construção memorial. Uma

permanência nos modos de operar do IPHAN, que insiste em ser predominante,

apesar de importantes rupturas e ganhos, como aponta Marins (2016). Para ele,

93 Proposta de tombamento do acervo urbanístico, paisagístico e arquitetônico da Cidade de Olinda -

PE. Arquivo Noronha Santos/IPHAN, Série Tombamentos, Processo 674-T-62, Vol. 1, pp. 5, de 24 de

janeiro de 1967, RJ. Documento assinado pelo arquiteto Augusto da Silva Telles.

94 Proposta de tombamento do acervo urbanístico, paisagístico e arquitetônico da Cidade de Olinda -

PE. Arquivo Noronha Santos/IPHAN, Série Tombamentos, Processo 674-T-62, Vol. 1, pp. 5, de 24 de

janeiro de 1967, RJ. Documento assinado pelo arquiteto Augusto da Silva Telles.

Page 143: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

142

Os traços de permanência do padrão elitista oriundo tanto das escolhas

realizadas quanto dos que escolhem, que Miceli chamou de “marca classista”

do IPHAN, da intensa hierarquização e da sub-representação dos grupos

étnicos e das práticas religiosas, bem como da canonização de uma certa

noção de mestiçagem – dimensões essas que serviram simultaneamente à

celebração e à opacidade de agentes formadores do Brasil (MARINS, 2016,

p. 12).

É justamente por ser a herança do projeto dos Modernistas, que as políticas de

preservação do IPHAN continuaram por tantos anos a perpetuar práticas de seleção

de memória baseadas num “atavismo exclusivo e excludente que é a marca da

trajetória federal de preservação no Brasil” (MARINS, 2016, p. 12). Quando vemos a

trajetória dos tombamentos dos bens culturais de Olinda desde 1938 até a culminância

do tombamento do conjunto urbanístico, paisagístico e arquitetônico, fica claro o

alinhamento dessas políticas de preservação do patrimônio com a ideia de um Brasil

cuja identidade se construía na supressão de grupos sociais desprivilegiados. Para

Miceli, “O reverso desse tesouro tão apreciado é a amnésia da experiência dos grupos

populares, das populações negras e dos povos indígenas, para citar apenas aqueles

referidos pelo projeto andradino” (MICELI, 1987, p. 44).

São também realçadas suas excepcionalidades históricas. No tombamento elas

aparecem no que se refere ao traçado urbano, que representa temporalidade e cultura

construtiva do período de colonização portuguesa das terras que viriam a ser o Brasil,

sendo “um dos nossos mais expressivos exemplos de cidade de plano informal”95,

que também “atestaria uma reminiscência da prática usada na Idade Média

Peninsular, a Mulçumana e a Cristã”96. No Monumento Nacional, essas

excepcionalidades aparecem na exaltação dos marcos históricos, os eventos, os

heróis, os marcos de início para o país e seu feitio de “brasilidade”. O burgo Duartino,

reconhecido como vila em 1537, é palco de muitos eventos históricos que chegam até

nós e até aqueles que pleitearam pelo título como memória histórica. Vital Duarte

chega a dizer que a importância de Olinda não está apenas na imponência de seus

95 Arquivo Noronha Santos/IPHAN, Série Tombamentos, Processo 674-T-62, Vol. 1, pp. 15, de 14 de

janeiro de 1968, RJ. Documento assinado pelo arquiteto Paulo Ferreira Santos.

Page 144: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

143

monumentos, mas na relação deles com os fatos ligados à “formação e

desenvolvimento da nacionalidade brasileira”96.

A análise do contexto político trouxe, sobretudo no discurso do major Duarte, uma

clareza sobre o alinhamento daqueles que buscavam a proteção do patrimônio com

os valores e intenções do Regime Militar. Tanto que a elevação à condição de

Monumento Nacional significaria, na prática, uma intervenção federal, colocando

Olinda na “zona de segurança nacional”. Esse nexo traz também a ideia de que esse

era o Brasil e a cara brasileira que se construía e que se pretendia na época, e que

Olinda era a joia representativa desse “fervor patriótico”, como disse o major.

Para Marins,

A canonização da arquitetura monumental, do barroco e da mestiçagem

como evidência do ethos nacional chegara à década de 1980 ainda plena de

vitalidade, assim como a herança autoritária e excludente das práticas de

eleição patrimonial, concentrada nos técnicos e na aparente neutralidade de

suas escolhas, derivadas sobretudo da descrição formalista e estilística dos

monumentos artísticos (MARINS, 2016, p. 11).

Olinda, ainda martirizada, foi exaltada em sua memória histórica e cultural, como a

fênix que se reconstruiu depois do incêndio dos holandeses, como a cidade onde

nasceu a educação (dado o Colégio dos Jesuítas, primeira instituição de ensino

primário do Brasil, como também os primeiros cursos jurídicos) e cultura (o nascimento

do Teatro no Brasil), de modo a significar um “mito de origem” para o desenvolvimento

da nação. O Portugal dos Trópicos que sincretiza a sacralidade da fé cristã em suas

igrejas, é também palco de profano carnaval.

As considerações sobre a memória trouxeram à luz a ideia do universo possível da

memória, que reside e se ancora em diversas mídias ou “lugares”. Trouxe também a

ideia desse “extrato oficial” da memória que se constrói politicamente, no caso de

Olinda, através das ações e políticas preservacionistas do IPHAN, e, por conseguinte,

nos trouxe o entendimento de que a memória é política e também responde a jogos e

interesses de poder. A medida em que se selecionaram determinados traços a serem

96 Processo protocolado como MEC 001549, enviado por Luiz Vital Duarte à Presidência da República

para requerer a elevação de Olinda à Monumento Nacional. Datado de 25 de setembro de 1972.

Processo 674-T-72, Vol. III, pp. 2-20. Série Tombamento, IPHAN.

Page 145: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

144

lembrados, a partir de “critérios de seleção da memória e da identidade nacionais

construídos pelo IPHAN desde a década de 1930” (Marins, 2015, pp.15), também

entendemos que houveram traços de grupos sociais que foram excluídos dessa

construção memorial, levando ao esquecimento compulsório, tornando a memória

oficial, então, lacunar.

Revelar essas lacunas, ou a memória oficial “em negativo”, aquilo que ficou de fora e

os grupos não representados, requereria adentrar em bibliografias as mais diversas e

já existentes sobre a memória cultura urbana de Olinda e seus agentes não oficiais.

Nessa dissertação, que, como todo trabalho acadêmico tem data de início e fim, não

nos foi possível precisar ao leitor a riqueza da memória não oficial. Pode-se, no

entanto, anotar ausências importantes como o terreiro de pai Edu, no Alto da Sé,

também conhecido como Palácio de Iemanjá, que desde os anos 1950 constitui

importante centro de cultura de matriz africana, e mesmo igrejas coloniais que

representam herança não necessariamente ligadas à cristandade branca, como a

Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos e a Igreja de Nossa Senhora

de Guadalupe, que não haviam tido seu tombamento enquanto monumentos, e são

somente comtempladas com o polígono de tombamento do conjunto urbano.

No extremo oposto da pirâmide social estavam as irmandades de negros e

pardos mestiços. As de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos eram

constituídas das matrizes, construindo posteriormente igreja própria. Por

volta de 1630, essa irmandade já existia em Olinda e, em meados do século,

em Recife. As atuais igrejas são, entretanto, reconstruções do século XVIII.

A primeira irmandade de pardos a se constituir em Pernambuco foi a de

Nossa Senhora de Guadalupe, em Olinda, que iniciou a construção de sua

igreja em 1626. (OLIVEIRA e RIBEIRO, 2015, p.48)

A memória cultural urbana que é toda a referência de mundo, aquilo que baliza nossa

percepção de herança cultural e pertencimento a um grupo social, é objeto de

construção política, e, por conseguinte, representativa de determinados jogos e

relações de poder. Sérgio Miceli (1987) diz que o patrimônio histórico e artístico,

dentro da trajetória de tombamentos do IPHAN, é o inventário feito à imagem e

semelhança das elites brasileiras. Dialogando com Miceli, mas refletindo a partir de

um levantamento atualizado quantitativamente e qualitativamente das seleções de

tombamento mais recentes do IPHAN, Marins aponta um importante caminho. Para

ele,

Page 146: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

145

O peso da tradição, e sobretudo de uma herança conceitual simultaneamente

agregadora e segregadora, sintética e hierarquizadora, é parte constitutiva

dessa mesma trajetória de patrimonialização, o que certamente não pode ser

olvidado para um devir que seja pautado pelo equilíbrio dos agentes que

compõe o país (MARINS, 2016, p. 26).

Se a busca pelo equilíbrio fica como meta a ser alcançada pelo órgão, olhando para

atrás, particularmente para Olinda, pode-se dizer que a memória cultural urbana de

Olinda foi, então, revelada como construção de uma cidade martirizada e gloriosa,

cristã e verde, branca e barroca. Do tombamento ao Monumento, Olinda conta a

História Pátria, e grande é a forçada memória que nos chega como signo de cultura e

sob forma de cultura.

Olinda, afinal, é testemunho material dessa herança segregadora que forjou a nossa

“brasilidade”.

Page 147: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

146

REFERÊNCIAS

ARANTES, Antonio. Patrimônio Cultural e Cidades. In Fortuna, Carlos e Leite,

Rogério Proença. Plural de Cidade: Novos Léxicos Urbanos, 11-24. Coimbra:

Almedina, 2009.

ASSMANN, Aleida. Espaços da Recordação. Formas e Transformações da Memória

Cultural. Tradução: Paulo Soethe. - Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2011.

BACELAR, Aline. O PDLI de Olinda e o Turismo Cultural: conceituação e práticas,

2017, XV Seminário de História da Cidade e do Urbanismo.

BISCOUTO FRESSATO, Soleni. De mãos dadas com Mnemosine e Clio: narradores

de memórias e sujeitos históricos no filme Narradores de Javé. Museu da Pessoa,

Hipertexto, 2005.

BRASIL. Decreto-Lei nº 25, de 30 de novembro de 1937. Organiza a proteção do

patrimônio histórico e artístico nacional. Rio de Janeiro, RJ. Disponível em:

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/Del0025.htm. Acesso em: 10 de

outubro de 2018

_______. Lei nº 12.527, de 18 de novembro de 2011. Regula o acesso a informações.

Brasília, DF. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-

2014/2011/lei/l12527.htm. Acesso em: 28 de setembro de 2018

BREFE, Ana Cláudia Fonseca. Pierre Nora, ou o historiador da memória. In: História

Social, 13-33, nº 6, 1999.

CABRAL, Renata Campello. Entre destruições, achados e invenção: a restauração da

Sé de Olinda no âmbito do Programa Integrado de Reconstrução das Cidades

Históricas do Nordeste. In: Anais do Museu Paulista. São Paulo. v.24. n.1. p. 181-203.

jan.- abr. 2016.

CALVINO, Ítalo. Cidades Invisíveis. São Paulo: Biblioteca Folha, 2003.

CARSALADE, Flávio de Lemos. A preservação do patrimônio como construção

cultural. Arquitextos, São Paulo, ano 12, n. 139.03, Vitruvius, 2011. Disponível em

<http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/12.139/4166>.

Page 148: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

147

CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. 13 ed. São Paulo: Ática. 2005.

CHOAY, Françoise. A Alegoria do Patrimônio. São Paulo: UNESP, 2001.

CHUVA, Márcia e LAVINAS, Laís Villela. O Programa de Cidades Históricas (PCH) no

âmbito das políticas culturais dos anos 1970: cultura, planejamento e nacional

desenvolvimentismo. In: Anais do Museu Paulista. São Paulo. N. Sér. v.24. n.1. p. 75-

98. jan.- abr. 2016.

CNV- Comissão Nacional da Verdade. 2014. Disponível em:

http://cnv.memoriasreveladas.gov.br/. Acesso em: setembro de 2018.

COELHO, Fernando. Olinda Monumento Nacional. Edição comemorativa à Elevação

de Olinda a Cidade Monumento Nacional. Prefeitura de Olinda: GTB, 1982.

CONARQ, Recomendações para digitalização de documentos arquivísticos

permanentes. 2010. Disponível em:

<http://www.conarq.arquivonacional.gov.br/media/publicacoes/recomenda/recomend

aes_para_digitalizao.pdf>. Acesso em: set. 2018.

CPDOC. Verbete: Jarbas Passarinho. Disponível em:

http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-biografico/jarbas-goncalves-

passarinho. Acesso em: setembro de 2018.

DERRIDA, Jacques. Archive Fever. A Freudian Impression, In: Diacritics 20.2, pp 9-

63, 1995.

DOLFF-BONEKAMPER, Gabi. Caminhando pelo passado dos outros. In

CYMBALISTA, Renato; FELDMAN, Sarah e KUHL, Beatriz. Patrimônio Cultural.

Memória e Intervenções urbanas, 61-88. São Paulo: Annablume, 2017.

FONSECA, Cecilia Londres. O patrimônio em processo: trajetória da política federal

de preservação no Brasil. Rio de Janeiro: UFRJ/Iphan, 1997.

FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Frankfurt, pp. 186-8. 1973.

GAGNEBIN, Jeanne Marie. Sete aulas sobre linguagem, memória e história. 2 ed. Rio

de Janeiro: Imago, 2005.

Page 149: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

148

GONÇALVES, José Reginaldo. A retórica da perda. Os discursos do patrimônio

cultural no Brasil. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ/ Iphan, 1996.

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. Tradução: Laurent Léon Schaffter. – São

Paulo, SP: Vértice, 1990.

HESÍODO. Teogonia, A Origem dos Deuses. Estudo e tradução de Jaa Torrano, São

Paulo: Iluminuras, 1992.

HUYSSEN, Andreas. Seduzidos pela Memória: arquitetura, monumentos, mídia. Rio

de Janeiro, RJ: Aeroplano, 2000.

________. Culturas do Passado-Presente. Modernismos, artes visuais e políticas da

memória. Tradução: Vera Ribeiro - Rio de Janeiro, RJ: Contraponto: Museu de Arte

do Rio, 2014.

ICEI Brasil- Instituto de Cooperação Econômica Internacional. Olinda-patrimônio

cotidiano: memória coletiva dos seus moradores. Coord. Diego Di Niglio. Recife: Icei

Brasil, 2017.

ICOMOS- Conselho Internacional de Monumentos e Sítios. Carta de Veneza. II

Congresso Internacional de Arquitetos e Técnicos dos Monumentos Históricos, 1964.

IPHAN. Bens móveis e imóveis inscritos nos Livros do Tombo do Instituto do

Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. MinC/IPHAN. 4ª ed. rev. e ampl. – Rio de

Janeiro, IPHAN, 1994.

_______. Rede de Arquivos do IPHAN. Disponível em:

http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/1223. Acesso em: 10 de outubro de 2018.

JOKILEHTO, Jukka. Considerations on authenticity and integrity in world heritage

context. In: City & Time, 1-16. CECI, 2006. Disponível em http://www.ceci-

br.org/novo/revista/docs2006/CT-2006-44.pdf

KUHL, Beatriz Mugayar. Notas sobre a Carta de Veneza. In: Anais do Museu Paulista:

Historia e Cultura Material, São Paulo, v. 18, n. 2, p. 287-320, jul.-dez. 2010.

Page 150: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

149

LAVINAS, Laís Villela. Um animal político na cultura brasileira: Aloísio Magalhaes e o

campo do patrimônio cultural no Brasil (anos 1966-1982). 2014. 223f. Dissertação

(Mestrado em História). UNIRIO, 2014.

LE GOFF, Jacques. História e Memória. Tradução: Bernardo Leitão... [et al.].

Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2003.

MARINS, Paulo César Garcez. Novos Patrimônios, um novo Brasil? Um balanço das

políticas patrimoniais federais após a década de 1980. In: Estudos Históricos. Rio de

Janeiro, vol. 29, nº 57, pp. 9-28, jan./abr. 2016.

MICELI, Sérgio. SPHAN: refrigério da cultura oficial. In: Revista do Patrimônio

Histórico e Artístico Nacional, Brasília, n. 22, p.44-47, 1987.

MOTTA, Lia. A Sphan em Ouro Preto: uma história de conceitos e critérios. In: Revista

do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Rio de Janeiro, n. 22, p. 108‑122, 1987.

NASCIMENTO, Flávia Brito do. Patrimônio Cultural e escrita da história: a hipótese do

documento na prática do Iphan nos anos 1980. Anais do Museu Paulista: História e

Cultura Material, São Paulo, v. 24. n.3. p. 121-14 . set.-dez. 2016.

NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. (Traduzido de:

Les lieux de Mémoire. Paris: Gallimard, 1984). In: Projeto História. São Paulo: PUC-

SP. N° 10, p. 12. 1993.

NUNEZ, Lorraine Oliveira. As transformações no conceito de patrimônio do IPHAN e

suas práticas de tombamento no estado do Espírito Santo. In: Faces da História,

Assis-SP, v.3, nº2, p. 194-212, jul.-dez., 2016.

OLIVEIRA, Eliene Dias de, e TEDESCHI, Losandro Antonio. Nos Caminhos da

Memória, nos Rastros da História: Um Diálogo Possível. Revista Rascunhos Culturais

Coxim, MS, v.2, nº 4, pp. 45-54, jul./dez. 2011.

OLIVEIRA, Myriam Andrade Ribeiro e RIBEIRO, Emanuela Sousa. Barroco e Rococó

nas Igrejas de Recife e Olinda. Coleção Roteiros do Patrimônio. Vol. 1. Brasília, DF:

IPHAN, 2015.

PESAVENTO, Sandra. História e História Cultural. 2. ed. – Belo Horizonte: Autêntica

2008.

Page 151: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

150

PONTUAL, Virgínia e MILET, Vera. Olinda: Memória e Esquecimento. In: Revista

Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais. Nº 5, maio de 2002.

ROSARIO, Cláudia Cerqueira do. O Lugar mítico da Memória. In: Morpheus-Revista

eletrônica em Ciências Humanas. V 1, nº 1, 2002.

RUBINO, Silvana. O mapa do Brasil passado. In: Revista do Patrimônio Histórico e

Artístico Nacional, Rio de Janeiro, n. 24, p. 96-105, 1996.

________. Entre o CIAM e o SPHAN: Diálogos entre Lúcio Costa e Gilberto Freyre.

In: Gilberto Freyre em quatro tempos. KOSMINSKY, Ethel Volfzon; LÉPINE, Claude;

PEIXOTO, Fernanda Arêas. São Paulo: Fapesp/Editora Unesp. Bauru: Edusc, p.267-

285, 2003.

RUSKIN, John. A lâmpada da memória. Tradução: Maria Lucia Bressan Pinheiro.

Coleção Artes & ofício, Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2008.

SARLO, Beatriz. Tempo Passado. Cultura da memória e guinada subjetiva. Tradução:

Rosa Freire d’Aguiar.- São Paulo: Companhia das Letras; Belo Horizonte: UFMG,

2007.

SILVA, Ana Paula da. O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN)

e a construção da memória histórica nacional por meio dos bens culturais imóveis

inscritos no Livro do Tombo Histórico (1937-1985). 2017. 230 f. Tese (Doutorado em

História) – Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista

―Júlio de Mesquita Filho‖, Franca, 2017.

SILVA, Elsa Peralta da. Patrimônio e Identidade. Os Desafios do Turismo Cultural. In:

ANTROPOlógicas, Lisboa, Nº 4, pp. 218-224, 2000.

Literatura, Poesia e Música

BELCHIOR. Como nossos pais. In: BELCHIOR. Alucinação. Universal Music Ltda.,

1976. Disco de vinil.

CAPIBA. Olinda, cidade eterna. Voz de VELOSO, Caetano. In: Mestre Capiba por

Raphael Rabello e convidados. Acari Records, 2002. CD.

Page 152: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

151

CARDOZO, Joaquim. Olinda. 1925. Série Inventário. Pernambuco. Cx.0322. Pt 0001.

E1. IPHAN, Arquivo Noronha Santos.1925.

LISPECTOR, Clarice. Todos os Contos. Org. Benjamim Moser. Rio de Janeiro: Rocco,

2016.

MARQUEZ, Gabriel García. Cem anos de solidão. Tradução: Eric Nepomuceno. Rio

de Janeiro: Record, 2011.

________. Vivir para contarla. 5ª ed. Editora: Debolsillo, 2013.

ROSA, Renata. Janela do dia. In: ROSA, Reanta. Manto dos Sonhos. Independente.

2008.

SALOMÃO, Waly. Algaravias. Rio de Janeiro: Editora 34, 1996.

VELOSO, Caetano. Haiti. In: VELOSO, Caetano. Noites do Norte (ao vivo). Universal

Music Ltda., 2001.CD.

Page 153: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

152

APÊNDICE A - DOCUMENTOS

Foram consultadas duas séries documentais no arquivo central do IPHAN, o arquivo

Noronha Santos97, as séries Inventário e Tombamento. Todos os documentos

consultados constantes nos processos estão devidamente assinalados nas

respectivas notas de rodapé.

Processos de tombamento:

IPHAN. Processo nº 674-T-62. Seção de História. Tombamento do conjunto

urbanístico, paisagístico e arquitetônico de Olinda-PE. Volumes I, II, III, IV e Anexo I.

_______. Processo nº 70-T-38. Seção de História. Tombamento do conjunto

arquitetônico e urbanístico de Ouro Preto-MG. Volumes I e II.

97 Endereço temporário no Centro Empresarial Teleporto - Avenida Presidente Vargas, 3131, sala 1404

- Cidade Nova – Rio de Janeiro/RJ.

Page 154: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

153

ANEXO A - IMAGEM 7

Foto Panorâmica tirada de um ponto próximo à fronteira da Sé, onde se veem: em primeiro plano, telhados das casas da Ladeira de São Francisco; em segundo plano, ao centro: a Igreja de N.

Senhora do Carmo, à direita, o Mosteiro e Igreja de São Bento, a Igreja de São Pedro; e aos fundos, Recife. Fonte: Série Inventário, Pernambuco, Cx. 0322. Arquivo Noronha Santos-IPHAN

Page 155: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CAMILLA ......Isadora, Rafaella, Maria, Emerson e Mateus. Agradeço a toda minha família, que me apoiou e esteve na torcida, em especial a Adriano

154

ANEXO B - IMAGEM 8

Desenho, em linha tracejada, da Poligonal de Tombamento proposta pelos arquitetos citados. Processo nº 674-T-62. Fonte: Arquivo Noronha Santos - IPHAN