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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS MESTRADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS Ana Graciela Videla da Cunha DESOBEDIÊNCIA CIVIL? UM ESTUDO SOBRE A OCUPAÇÃO NA REITORIA DA UFSM EM 2011 Santa Maria/RS 2017

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA

CENTRO DE CINCIAS SOCIAIS E HUMANAS

PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM CINCIAS SOCIAIS

MESTRADO EM CINCIAS SOCIAIS

Ana Graciela Videla da Cunha

DESOBEDINCIA CIVIL? UM ESTUDO SOBRE A OCUPAO NA

REITORIA DA UFSM EM 2011

Santa Maria/RS

2017

Ana Graciela Videla da Cunha

DESOBEDINCIA CIVIL? UM ESTUDO SOBRE A OCUPAO NA

REITORIA DA UFSM EM 2011

Dissertao apresentada no Curso de Mestrado do

Programa de Ps-Graduao em Cincias Sociais,

da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM),

como requisito parcial para a obteno do ttulo

de Mestre em Cincias Sociais

Orientadora: Prof.a Dra. Rosana Soares Campos

Santa Maria/RS

2017

Ana Graciela Videla da Cunha

DESOBEDINCIA CIVIL? UM ESTUDO SOBRE A OCUPAO NA

REITORIA DA UFSM EM 2011

Dissertao apresentada no Curso de Mestrado do

Programa de Ps-Graduao em Cincias Sociais,

da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM),

como requisito parcial para a obteno do ttulo

de Mestre em Cincias Sociais

AGRADECIMENTOS

Primeiramente, gostaria de agradecer a todos os participantes deste trabalho, que

gentilmente se dispuseram a colaborar com as entrevistas para que este pudesse ser realizado.

Agradeo, especialmente, minha orientadora, Rosana Soares Campos, por me

conduzir nesta pesquisa, tornando a tarefa menos rdua. Obrigada pelo constante incentivo e

pela confiana depositada!

Agradeo aos professores do Departamento de Cincias Sociais, que contriburam para

a minha formao e, com isso, para a realizao deste trabalho.

Agradeo minha filha Karen Giovana, a maior incentivadora da minha trajetria

acadmica, que, com seu exemplo e apoio, fez com que eu enfrentasse os desafios que

surgiram no decorre do percurso.

Agradeo minha filha Nicol e ao meu neto Felipe, que, mesmo a distncia, estiveram

sempre presentes, brindando-me com seu apoio e incentivo.

Agradeo os professores da banca examinadora, professor Cleber Ori Cuti Martins e

professor Carlos Artur Gallo, pela gentileza de ler e avaliar este trabalho.

Agradeo aos colegas dos grupos de pesquisa em Cincia Poltica do NEDD e Do

NPCP, pelos debates e pelo acolhimento.

Agradeo s amigas Denise, Juliana, Camille, Thais e Leila, pelos inmeros momentos

agradveis, que tornaram esta caminhada mais leve.

Agradeo a todos os colegas do Mestrado, que, de uma maneira ou de outra,

contriburam para o meu aprendizado. Especialmente, agradeo Renata, ao Willian, ao

Bolvar, Danielle, Jamile, Letcia, Flora e ao Daniel.

Agradeo colega e amiga Rachel Loureiro, pela acolhida no Mestrado e pelo apoio

incondicional nesta etapa do mestrado.

Agradeo tambm ao Marcelo e a Jane, sempre dispostos a nos ajudar nos diversos

momento em que precisamos.

Meu agradecimento, por fim, todas as pessoas que tornam o prdio 74-A mais humano

e alegre, dos quais gostaria de mencionar, em participar, a Rose e colegas da recepo.

Muito obrigada!

RESUMO

Dissertao de Mestrado

Programa de Ps-Graduao em Cincias Sociais

Universidade Federal de Santa Maria

DESOBEDINCIA CIVIL? UM ESTUDO SOBRE A OCUPAO NA REITORIA DA

UFSM EM 2011

AUTORA: ANA GRACIELA VIDELA DA CUNHA

ORIENTADORA: ROSANA SOARES CAMPOS

Data e Local da Defesa: Santa Maria, 07 de dezembro de 2017.

No ano de 2007, comeou uma onda de ocupaes de reitorias de diversas universidades

pblicas brasileiras. Essas ocupaes concentraram-se nesse ano, mas houve ocupaes

tambm em anos posteriores. De um modo geral, o que levou os alunos a promoverem tais

ocupaes foi a tentativa de garantir direitos dos quais eles se consideram detentores A crena

que pareceu nortear a prtica de referidos atos de que o no cumprimento por parte do poder

pblico de certos deveres para com a comunidade estudantil conferiria a esta o direito de

promover as ocupaes. Entretanto, ao realizar ditas ocupaes, os alunos acabaram por violar

a ordem jurdica vigente em nosso pas, praticando atos ilegais. Pode-se pensar, pelo menos

num primeiro momento, que os atos dos estudantes poderiam ser classificados como o que se

costuma chamar em Cincia Poltica de atos de desobedincia civil, os quais so

considerados justificados pela maioria dos autores quando atendidas algumas condies. O

objetivo geral desta pesquisa fazer um estudo de caso da ocupao da reitoria da

Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) ocorrida em 2011, a fim de responder duas

questes: (1) tal ocupao pode ser considerada como um genuno ato de desobedincia civil

e, (2) em caso positivo, ela pode ser considerada uma desobedincia civil justificada. O

trabalho est estruturado em trs captulos. No primeiro deles, ser realizada uma

caracterizao de nossa categoria central de anlise, a desobedincia civil. No segundo

captulo, apresentaremos um panorama geral das principais ocupaes ocorridas em diferentes

universidades brasileiras no ano de 2011, com foco especfico nas instituies federais de

ensino, a fim de que compreendamos o cenrio de manifestaes estudantis em que se inseriu

a ocupao da reitoria da UFSM de 2011. No terceiro captulo, ser realizado o estudo de caso

da ocupao da reitoria da UFSM de 2011, com a descrio pormenorizada da ocupao da

reitoria da UFSM de 2011 e anlise dos dados coletados durante a realizao da pesquisa,

tentando-se, a partir disso, fornecer respostas s questes a que se props a pesquisa. Aps a

anlise de cada um dos aspectos relevantes da ocupao da reitoria da UFSM de 2011,

chegamos concluso de que tal ocupao, embora preencha quase todos os requisitos

necessrios para seu enquadramento como ato de desobedincia civil e at mesmo satisfaa as

condies requeridas para ser uma desobedincia civil justificada, no pode, rigorosamente

falando, ser considerada uma prtica de desobedincia civil de acordo com a maneira como a

desobedincia civil caracterizada pela maioria dos autores dedicados ao tema. No obstante,

isto no significa que a ocupao no possa ser considerada uma prtica legtima e justificada.

O que significa to somente que, para demonstrarmos isso, teramos que tomar, como dito

antes, outras vias de anlise e pesquisas que no as adotadas neste trabalho.

Palavras-chave: Desobedincia Civil. Ocupaes em reitorias de universidades. UFSM.

REUNI.

ABSTRACT:

Masters Thesis

Postgraduate Programo in Social Sciences

Federal University of Santa Maria

CIVIL DISOBEDIENCE? A STUDY ON OCCUPATION IN THE RECTORY OF

UFSM IN 2011

AUTHOR: ANA GRACIELA VIDELA DA CUNHA

ADVISOR: ROSANA SOARES CAMPOS

Date and Place of Defense: Santa Maria, December 7, 2017.

In 2007, a wave of occupations of rectors of several Brazilian public universities began. These

occupations were concentrated in that year, but there were occupations also in later years. In

general, what led the students to promote such occupations was the attempt to guarantee rights

which they consider to be holders. The belief that seemed to guide the practice of said acts is

that the failure of the public power to fulfill certain duties to the student community would

give it the right to promote occupations. However, in carrying out these occupations, students

eventually violated the legal system in force in our country, practicing illegal acts. It may be

thought, at least at first, that the acts of the students could be classified as what is commonly

called in Political Science of "acts of civil disobedience", which are considered justified by

most authors when certain conditions are met. The general objective of this research is to

make a case study of the rectory of the Federal University of Santa Maria (UFSM) in 2011, in

order to answer two questions: (1) such occupation can be considered as a genuine act of civil

disobedience and, (2) if so, it may be considered a justified civil disobedience. The work is

structured in three chapters. In the first of these, a characterization of our central category of

analysis, civil disobedience, will be carried out. In the second chapter, we will present an

overview of the main occupations that took place in different Brazilian universities in 2011,

with a specific focus on the federal educational institutions, in order to understand the

scenario of student demonstrations that included the occupation of the UFSM rectory 2011. In

the third chapter, a case study of the UFSM Rector's occupation of 2011 will be carried out,

with a detailed description of the occupation of the rectory of UFSM 2011 and analysis of the

data collected during the research, attempting to from this, provide answers to the questions

that the research proposes. After analyzing each of the relevant aspects of the occupation of

the rectory of UFSM 2011, we came to the conclusion that such occupation, although

fulfilling almost all the necessary requirements for its framing as an act of civil disobedience

and even satisfies the conditions required to be a justified civil disobedience, can not, strictly

speaking, be considered a practice of civil disobedience according to the manner in which

civil disobedience is characterized by the majority of authors dedicated to the subject.

However, this does not mean that occupation can not be considered a legitimate and justified

practice. What it means is only that, to demonstrate this, we would have to take, as said

before, other avenues of analysis and research than those adopted in this work.

Keywords: Civil Disobedience. Occupations in rectors of universities. UFSM. REUNI.

SUMRIO

INTRODUO ...................................................................................................................... 15

1. DESOBEDINCIA CIVIL ................................................................................................ 19

1.1. BREVE INTRODUO HISTRICA AO TEMA ...................................................................... 20

1.2. O QUE OS AUTORES DIZEM SOBRE A DESOBEDINCIA CIVIL? ........................................... 23

1.2.1. Henry David Thoreau ............................................................................................. 23

1.2.2. Hanna Arendt ......................................................................................................... 26

1.2.3. John Rawls .............................................................................................................. 30

1.2.4. Michael Walzer ....................................................................................................... 31

1.2.5. Jrgen Habermas ................................................................................................... 32

1.2.6. Norberto Bobbio ..................................................................................................... 34

1.3. CARACTERIZAO GERAL DA DESOBEDINCIA CIVIL ...................................................... 37

1.3.1. Caractersticas da desobedincia civil ................................................................... 37

1.3.2. Condies para a justificao da desobedincia civil ........................................... 45

A. Fatores relacionados ao tipo de ao escolhida ......................................................... 45

B. Fatores relacionados motivao dos desobedientes ................................................. 47

1.4. CONSIDERAES FINAIS .................................................................................................. 48

2. OCUPAES DE REITORIAS NAS UNIVERSIDADES PBLICAS

BRASILEIRAS: UM PANORAMA GERAL DE 2011 ...................................................... 51

2.1. REUNI ........................................................................................................................... 52

2.2. PANORAMA GERAL DAS OCUPAES ............................................................................... 58

2.2.1. Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) ................................................. 58

2.2.2. Universidade Federal do Paran (UFPR) ............................................................. 60

2.2.3. Fundao Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) .................................. 62

2.2.4. Fundao Universidade Federal de Sergipe (UFS) ............................................... 63

2.2.5. Universidade Federal do Esprito Santo (UFES)................................................... 65

2.2.6. Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) ......................................... 69

2.2.7. Universidade Federal de Pelotas (UFPEL) ........................................................... 69

2.2.8. Universidade Federal de Alagoas (UFAL) ............................................................ 72

2.2.9. Universidade Federal Fluminense (UFF) .............................................................. 74

2.2.10. Fundao Universidade Federal de Rondnia (UNIR) ....................................... 76

2.2.11. Universidade Federal do Amazonas (UFAM) ..................................................... 78

2.2.12. Universidade de Braslia (UnB) .......................................................................... 80

2.2.13. Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) .................................................. 81

2.3. CONSIDERAES FINAIS ................................................................................................. 83

3. OCUPAO DA REITORA DA UFSM DE 2011: ESTUDO DE CASO .................... 86

3.1. FATOS QUE CULMINARAM NA OCUPAO DA REITORIA .................................................. 86

3.2. DESCRIO DOS FATOS OCORRIDOS DURANTE A OCUPAO .......................................... 93

3.3. ANLISE DOS DADOS A FIM DE RESPONDER AS QUESTES DE PESQUISA ....................... 104

3.3.1. Ato ilcito .............................................................................................................. 104

3.3.2. Ato consciencioso ................................................................................................. 106

3.3.3. Ato com carter comunicativo ............................................................................. 108

3.3.4. Ato praticado com o objetivo de chamar a ateno das pessoas para a injustia de

uma lei ou prtica estatal e obter, com isso, uma mudana nessa lei ou prtica ......... 108

3.3.5. Ato poltico ........................................................................................................... 109

3.3.6. Ato praticado publica ou abertamente................................................................. 109

3.3.7. Ato coletivo .......................................................................................................... 110

3.3.8. Ato no violento em regra .................................................................................... 110

3.3.9. Ato praticado com a disposio para aceitar a punio ..................................... 110

CONSIDERAES FINAIS .............................................................................................. 116

REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ............................................................................... 119

ANEXOS ............................................................................................................................... 125

INTRODUO

No ano de 2007, comeou uma onda de ocupaes de reitorias de diversas

universidades pblicas brasileiras. Essas ocupaes concentraram-se nesse ano, mas houve

ocupaes tambm em anos posteriores. De um modo geral, o que levou os alunos a

promoverem tais ocupaes foi a tentativa de garantir direitos dos quais eles se consideram

detentores. A crena que pareceu nortear a prtica de referidos atos de que o no

cumprimento por parte do poder pblico de certos deveres para com a comunidade estudantil

conferiria a esta o direito de promover as ocupaes. Entretanto, ao realizar ditas ocupaes,

os alunos acabaram por violar a ordem jurdica vigente em nosso pas, praticando atos ilegais.

Pode-se pensar, pelo menos num primeiro momento, que os atos dos estudantes poderiam ser

classificados como o que se costuma chamar em Cincia Poltica de atos de desobedincia

civil, os quais so considerados justificados pela maioria dos autores quando atendidas

algumas condies. Frente a isso, surgem as questes que a presente pesquisa pretendeu

responder primordialmente: (1) A ocupao dos estudantes s reitorias pode ser de fato

considerada como genuno ato de desobedincia civil? (2) Se sim, trata-se de uma

desobedincia civil justificada?

H que se esclarecer, no entanto, que no se pretendeu abordar a questo de forma to

ampla, abarcando as ocupaes de reitorias de um modo geral. O objeto de estudo especfico

da pesquisa proposta foi a ocupao promovida pelos estudantes na reitoria da Universidade

Federal de Santa Maria (UFSM) no ano de 2011.1 O objetivo geral da pesquisa foi, portanto,

analisar essa ocupao da reitoria da UFSM em particular sob a ptica da desobedincia civil,

no contexto da onda de ocupaes das reitorias das universidades pblicas brasileiras, a fim

de aferir se ela pode ser considerada a prtica de um ato de desobedincia civil justificado.

A realizao da pesquisa justificou-se, primeiramente, pela relevncia da possibilidade

de compreenso das ocupaes como o exerccio de um direito, rompendo-se, assim, com

esteretipo negativo a elas vinculado pela populao em geral, a qual costuma desconsiderar,

em sua avaliao, os motivos que ensejaram as ocupaes, bem como as circunstncias em

que ocorreram. Alm disso, a realizao da pesquisa visou contribuir para a supresso de uma

lacuna, tendo em vista no haver ainda, ao tempo de sua propositura, estudos analisando

1 Houve tambm ocupaes na reitoria da UFSM em 2007 e em 2012. A ocupao ocorrida em 2012 no ser

objeto de estudo pelo fato de ter sido realizada pelos servidores tcnico-administrativos da universidade, embora

com a presena de alguns estudantes. Ela foi excluda porque desviaria o foco que se pretende dar nos estudantes

enquanto uma coletividade que partilha interesses. J a ocupao ocorrida em 2007 foi excluda do estudo

porque possui elementos que mostram, sem maiores necessidades de pesquisa e anlise, que no se trata de

desobedincia civil.

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especificamente as ocupaes de reitorias procedidas pelos estudantes sob a tica da

desobedincia civil, sobretudo das ocupaes ocorridas na Universidade Federal de Santa

Maria, que foram particularmente abordadas neste estudo.

Quanto ao referencial terico, vale dizer que a desobedincia civil no ser tratada sob

a perspectiva de um autor especfico, mas sim a partir de uma caracterizao geral mdia de

tal categoria, ou seja, de um conjunto de caractersticas que mais comumente so consideradas

pelos autores como tpicas de atos de desobedincia civil, assim como aquelas condies que

mais frequentemente so tidas como necessrias para que tais atos sejam justificados (o que

faremos seguindo de perto as indicaes de Kimberley Brownlee (2017) a respeito). com

essa caracterizao geral que trabalharemos no decorrer deste trabalho e aquela com a qual

faremos nossas anlises.

A opo pela utilizao de tal caracterizao pareceu-nos a mais adequada pelo

seguinte. A concepo sobre a desobedincia civil que constitui o ponto de partida bsico do

debate contemporneo a defendida por John Rawls (1971). No entanto, embora o

pensamento do autor possa ser considerado o ponto de partida do debate, muitas crticas

foram feitas a aspectos particulares de sua concepo, no havendo, portanto, uma aceitao

completa dos elementos que ele considera caracterizadores da desobedincia civil, nem dos

que ele aponta como justificadores da mesma. (BROWNLEE, 2017, p. 1) De um modo geral,

podemos dizer que impossvel apresentarmos uma definio exata de desobedincia civil

que seja massivamente aceita pelos estudiosos do tema, uma definio que no suscite crticas

de vulto. Assim, a opo pela adoo de tal caracterizao geral mdia, no apenas parece

combinar melhor com o estado atual do debate sobre o tema, mas vai ao encontro das vises

de John Rawls a respeito, que admite que qualquer definio de desobedincia civil ser, de

algum modo, arbitrria, o que, naturalmente, inclui a sua e a de qualquer outro autor em

particular cuja definio poderamos querer adotar como ponto de partida deste trabalho.

(BEDAU, 1991, p. 12)

O objeto da pesquisa realizada foi a ocupao da reitoria da UFSM ocorrida no ano de

2011. Os sujeitos da pesquisa foram os estudantes que participaram dos atos de ocupao da

UFSM em 2011, bem como os representantes legais da UFSM que dialogaram e participaram

das negociaes com os estudantes.

Quanto aos mtodos de investigao, h que se esclarecer que a pesquisa foi

desenvolvida atravs do enfoque qualitativo. O mtodo de investigao emprica utilizado foi

o estudo de caso, dividido em trs etapas, interligadas pela categoria matriz do estudo, a

desobedincia civil.

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(1) Anlise terica: A desobedincia civil, analisada atravs das ocupaes, foi

observada a partir de critrios tericos definidos pela reviso bibliogrfica. Foi realizada uma

anlise de fatores, a partir dos autores estudados, que podem explicar as aes de

desobedincia civil. Verificou-se se esses fatores estavam presentes nas ocupaes.

(2) Realizao de um mapeamento das ocupaes de reitorias de universidades

pblicas no Brasil para verificar a localizao, objetivos, semelhanas e diferenas entre as

ocupaes. Para alcanar este objetivo, esta parte da pesquisa foi realizada a partir de anlise

em jornais, revistas e documentos resultantes de acordos feitos entre estudantes e

representantes das instituies. A anlise de documentos deu-se atravs de dois aspectos:

registro e contexto.

(3) Realizao de uma descrio e anlise da ocupao na reitoria da UFSM em 2011.

Esta etapa da pesquisa foi realizada atravs de documentos resultantes de acordos entre as

partes interessadas, partir de anlise documental de registro e contexto, e atravs de

entrevistas em profundidade, realizadas com estudantes participantes das ocupaes e

representantes da UFSM que participaram das negociaes. As entrevistas foram realizadas a

partir de definio gradual, atravs da amostragem terica. A saturao terica foi utilizada

para decidir o nmero de entrevistas. Os entrevistados foram os estudantes participantes da

ocupao em 2011 e representantes da instituio que participaram das negociaes para as

desocupaes.

A fim de apresentar os resultados da pesquisa realizada, a presente dissertao ser

dividida em trs captulos. No primeiro deles, ser realizada uma caracterizao de nossa

categoria central de anlise, a desobedincia civil. No segundo captulo, apresentaremos um

panorama geral das principais ocupaes ocorridas em diferentes universidades brasileiras no

ano de 2011, com foco especfico nas instituies federais de ensino, a fim de que

compreendamos o cenrio de manifestaes estudantis em que se inseriu a ocupao da

reitoria da UFSM de 2011. Como muitas das ocupaes tiveram questes relacionadas ao

programa REUNI dentre suas motivaes, esclareceremos, nessa oportunidade, o que o

programa REUNI e por que muito se insurgiram contra ele. No terceiro captulo, realizaremos

nosso estudo de caso, com a descrio pormenorizada da ocupao da reitoria da UFSM de

2011 e anlise dos dados coletados durante a realizao da pesquisa, tentando-se, a partir

disso, fornecer respostas s questes a que se props a pesquisa: se os atos praticados pelos

estudantes durante a ocupao da reitoria da UFSM em 2011 satisfazem os requisitos para

serem considerados atos de desobedincia civil e, caso sim, se eles podem ser considerados

como atos justificados.

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1. DESOBEDINCIA CIVIL

Um primeiro passo para a consecuo do objetivo desta pesquisa responder em que

consiste a desobedincia civil, que nossa categoria central de anlise. Porm, ao passarmos

os olhos sobre o que foi e ainda est sendo produzido pelos estudiosos sobre o tema,

possvel perceber que no h um consenso completo entre eles sobre a definio exata de

desobedincia civil e tampouco sobre as condies sob as quais ela seria uma prtica

justificada.

A concepo sobre a desobedincia civil que constitui o ponto de partida bsico do

debate contemporneo a defendida por John Rawls (1971). No entanto, embora o

pensamento do autor possa ser considerado o ponto de partida do debate, muitas crticas

foram feitas a aspectos particulares de sua concepo, no havendo, portanto, uma aceitao

completa dos elementos que ele considera caracterizadores da desobedincia civil, nem dos

que ele aponta como justificadores da mesma. (BROWNLEE, 2017, p. 1)

Dada a impossibilidade de apresentarmos uma definio exata de desobedincia civil

que seja massivamente aceita pelos estudiosos do tema, uma definio que no suscite crticas

de vulto, tentaremos delinear uma caracterizao geral mdia de tal categoria, ou seja,

apresentaremos as caractersticas que mais comumente so consideradas pelos autores como

tpicas de atos de desobedincia civil, assim como aquelas condies que mais

frequentemente so tidas como necessrias para que tais atos sejam justificados. com essa

caracterizao geral que trabalharemos no decorrer deste trabalho e aquela com a qual

faremos nossas anlises. A opo pela adoo de tal caracterizao geral mdia, no apenas

parece combinar melhor com o estado atual do debate sobre o tema, mas vai ao encontro das

vises de John Rawls a respeito, que admite que qualquer definio de desobedincia civil

ser, de algum modo, arbitrria, o que, naturalmente, inclui a sua e a de qualquer outro autor

em particular cuja definio poderamos querer adotar como ponto de partida deste trabalho.

(BEDAU, 1991, p. 12)

At chegarmos a essa caracterizao geral, percorreremos as seguintes etapas ao longo

deste captulo. Em um primeiro momento, faremos uma breve introduo histrica geral

temtica, por meio da meno a alguns dos acontecimentos comumente citados como prticas

de desobedincia civil e de consideraes sobre como surgiu e se desenvolveu a reflexo

terica sobre acontecimentos desse tipo enquanto atos de desobedincia civil. Em um segundo

momento, ser apresentado um resumo das concepes de alguns dos principais autores que

trataram da desobedincia civil ao longo da histria, a fim de dar uma amostra dos

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desenvolvimentos tericos sobre o tema. Nessa ocasio, apresentaremos um pequeno resumo

das concepes de Henry David Thoreau (1849), Hannah Arendt (1973), John Rawls (1997),

Michael Walzer (1977), Junges Habermas (1985) e Norberto Bobbio (2010). Em um terceiro

momento, por fim, ser apresentada a caracterizao geral de desobedincia civil (bem como

das condies necessrias para ser justificada) com a qual trabalhamos em nossa pesquisa, o

que faremos seguindo de perto as indicaes de Kimberley Brownlee (2017) a respeito.

1.1. Breve introduo histrica ao tema

Em uma caracterizao intuitiva e provisria, a desobedincia civil pode ser vista

como o ato de desobedecer a lei motivado por uma boa ou justa causa. Partindo-se disto,

vemos que a histria da desobedincia civil enquanto um acontecimento, como destaca Hugo

Adam Bedau (1991, p. 1), bastante antiga.

J na mitologia grega antiga podemos encontrar exemplos de atos de desobedincia

civil, embora se trate, claro, de mitos. Um deles o comportamento de Prometeu frente

deciso de Zeus de esconder o fogo dos homens (fogo este que, antes, estava acessvel a todos

na copa de um tipo de rvores, os freixos), o qual decidiu desobedecer a Zeus, roubando o

fogo divino e entregando-o aos homens. (BEDAU, 1991, p. 1) Outro exemplo encontra-se na

obra Antgona, de Sfocles, e diz respeito ao comportamento de Antgona, personagem

cujos irmos, Etocles e Polinices, morreram aps lutarem entre si pelo trono de Tebas. Aps

a morte dos irmos de Antgona, o trono foi assumido por seu tio, Creonte, o qual determinou

que o corpo de Policines (ao contrrio do que seria feito com o corpo de Etocles) no

recebesse um sepultamento digno de acordo com as tradies locais da poca. Antgona,

considerando injusta a deciso de seu tio, decidiu desobedec-lo e providenciou um

sepultamento adequado a seu irmo. (BEDAU, 1991, p. 1)

Deixando de lado a mitologia e partindo para acontecimentos histricos, tambm so

antigos, segundo Bedau (1991, p. 1), os exemplos de desobedincia civil. Porm, como no

pretendemos apresentar um histrico detalhado deles, mencionaremos apenas aqueles

exemplos que so quase sempre citados e tidos como casos paradigmticos.

O primeiro exemplo a ser mencionado consiste na conduta de Henry David Thoreau

(1817-1862) de deixar de pagar seus impostos como forma de demonstrar sua insatisfao

com as prticas do governo dos Estados Unidos. Thoureau era contrrio escravido, ento

vigente no pas, bem como guerra que era travada contra o Mxico na poca. Como a verba

arrecadada com a coleta de impostos contribua para financiar o estado, ela contribua tambm

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para a manuteno de prticas estatais que ele considerava injustas. Sendo assim, Thoureau

decidiu manifestar-se contra tais injustias por meio do no pagamento de seus impostos, pelo

que acabou sendo preso por curto perodo. Alm de praticar essa conduta, Thoureau tambm

escreveu, em 1849, o famoso escrito A desobedincia civil, no qual ele cunhou a expresso

para fazer referncia a manifestaes como a que empreendeu2 e exps suas ideias a respeito

do tema (das quais trataremos brevemente mais adiante).

O segundo famoso exemplo de desobedincia civil foi liderado por Mohandas Gandhi.

Desde o sculo XVIII, a ndia permaneceu durante longo perodo como uma colnia britnica

e, embora tenham surgido j em 1885 movimentos a favor de sua independncia, a existncia

de diferentes e conflitantes grupos religiosos no permitiu a formao de um movimento

unificado nesse sentido. Essa situao perdurou at que um dos movimentos acabou ganhando

destaque, o Partido do Congresso, que era o partido dos hindus e que era liderado por Gandhi.

Gandhi defendeu a unio dos indianos (ignorando-se as diferenas religiosas e de outra

natureza), assim como a desobedincia s leis britnicas e aceitao da sano legal pertinente

como forma de fortalecer a causa nacionalista indiana e alcanar a independncia da ndia, da

ser citado como exemplo de desobedincia civil. Dentre as aes empreendidas pelos

indianos, esteve o boicote aos produtos britnicos, assim como a realizao de greves de

fome, por exemplo. Ao longo das quatro dcadas de luta, muitos atos de desobedincia s leis

britnicas foram cometidos e muitos indianos foram presos em decorrncia disso, inclusive o

prprio Gandhi.

As principais bandeiras de Gandhi foram a no violncia nas manifestaes e a

realizao coletiva e organizada das mesmas. Como Bedau (1991, p. 2) explica, Gandhi

percebeu que uma resistncia planejada, em massa e no violenta, em conjugao com outras

presses polticas e morais, poderia fortalecer a causa do nacionalismo indiano. Como

resultado da srie de prticas que constituram a luta dos indianos pela independncia e do

enfraquecimento da Inglaterra aps a Segunda Guerra Mundial, a ndia tornou-se

independente no ano de 1947. (BEDAU, 1991, p. 2)

Outro exemplo bastante citado de desobedincia civil so as prticas ocorridas na luta

contra o regime do apartheid na frica do Sul, a qual teve em Nelson Mandela sua figura de

liderana central. O apartheid foi o regime de segregao racial legalmente institudo na

frica do Sul e que teve vigncia entre 1948 e 1994. Apenas para termos uma ideia, nesse

regime havia uma Lei de Classificao da Raa, que, como o nome sugere, determinava que

2 Como Rohling (2016, p. 2) observa, a expresso desobedincia civil foi utilizada antes de Thoureau pela

primeira vez por Etien La Botie, no escrito Discours de la Servitude Voluntarie, de 1577.

22

as pessoas no europeias fossem classificadas conforme a raa, uma Lei de Casamentos

Mistos, que proibia que pessoas de raas diferentes se casassem, e uma Lei de reas de

Grupos, que determinava o local onde as pessoas deveriam morar conforme sua raa. No

transcorrer das lutas contra o regime do apartheid, foram realizados boicotes, greves e vrios

outros atos de desobedincia lei como forma de protesto contra a injusta segregao racial e

manifestao da vontade de mudana de tal realidade. Tais aes resultaram na priso de

muitos, incluindo Mandela. 3

Outro exemplo frequentemente citado de desobedincia civil so as prticas ocorridas

durante a luta pelos direitos civis dos negros nos Estados Unidos sob a liderana de Martin

Luther King. Dentre as prticas que integraram tal luta, vale citar o boicote ao nibus de

Montgomery em 1955.

Neste nibus, vigiam regras de segregao racial segundo as quais a parte da frente do

nibus era reservada pessoas brancas, enquanto a parte de traz, a pessoas negras. Na hiptese

de estarem preenchidos todos os lugares e de uma pessoa branca entrar no nibus, as pessoas

negras sentadas mais frente no veculo (isto , prxima metade do veculo) deveriam ceder

lugar para que a pessoa branca pudesse sentar, o que no ocorreria caso uma pessoa negra

entrasse, devendo esta percorrer o trajeto em p.

O estopim para o movimento de boicote ao nibus de Montgomery foi a deciso de

Rosa Parks de, no dia 1 de dezembro de 1955, no se levantar para ceder o assento para um

passageiro branco. Com isso, Parks desobedeceu as regras aplicadas na poca para aquele

veculo de transporte e, em virtude disso, acabou sendo presa e multada. A priso de Parks

estimulou lideranas negras a organizarem um movimento de boicote ao sistema de nibus

pela populao negra, a qual passou a se locomover a p, de bicicleta e outros meios de

transporte, a fim de no utilizar o transporte de nibus. Este boicote durou de 1 de dezembro

de 1955 at 20 de dezembro de 1956 e teve um forte impacto financeiro sobre o sistema de

transporte urbano. O fim do boicote se deu com a deciso da Suprema Corte dos Estados

Unidos que considerou como inconstitucional a segregao racial dentro dos nibus.

Apesar do fim do boicote, a luta pelos direitos civis das pessoas negras nos Estados

Unidos durou ainda cerca de uma dcada, durante a qual houve a prtica de vrios atos de

desobedincia lei, a exemplo do boicote. No entanto, algo que Luther King sempre

enfatizava era que tais atos deveriam ser praticados de forma no violenta, assim como

defendeu Gandhi na ndia.

3 CF. Mandela simbolizou resistncia contra o apartheid. In: BBC Brasil, 2013. Disponvel em:

(Acesso em Jan. 2016)

http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2013/12/130328_mandela_obit_apartheid_lk

23

Os exemplos aqui mencionados no so os nicos exemplos que os estudiosos citam

como prticas de desobedincia civil, mas eles so os mais comumente citados e servem para

dar uma ideia do tipo de prtica de que estamos tratando. No entanto, apesar de a histria da

desobedincia civil enquanto uma acontecimento ser antiga, esse tipo de prtica no foi objeto

de discusso ampla e aprofundada pelos filsofos e cientistas polticos h tanto tempo assim

na histria do pensamento. Embora haja meno desobedincia civil (no com essa

denominao) em obras de pensadores ao longo da histria, como, por exemplo, no dilogo

Crito, de Plato, o primeiro movimento de maior ateno ampla, coletiva ao tema por parte

de estudiosos no to antigo, tendo ocorrido em 1961, por ocasio do simpsio Political

Obligation and Civil Disobedience. (BEDAU, 1991, p. 3) Como Bedau (1991, p. 4)

descreve, a partir da dcada de 1960 comearam a ser produzidos vrios trabalhos dedicados a

discutir e refletir sobre a desobedincia civil mais seriamente, tendo comeado, a partir de

ento, a haver um intenso debate acerca do tema.

1.2. O que os autores dizem sobre a desobedincia civil?

Embora tenha se formado um intenso debate acerca da desobedincia civil, o mesmo

no poder ser apresentado aqui em sua completude. Apresentaremos apenas um breve

resumo das concepes de alguns dos principais autores que trataram da desobedincia civil

ao longo da histria, a fim de dar uma amostra dos desenvolvimentos tericos sobre o tema.

Nessa ocasio, apresentaremos um pequeno resumo das concepes de Henry David Thoreau

(1849), Hannah Arendt (1973), John Rawls (1997), Michael Walzer (1977), Junges Habermas

(1985) e Norberto Bobbio (2010).

1.2.1. Henry David Thoreau

Embora tenha havido alguma elaborao terica sobre um conceito semelhante ao de

desobedincia civil em autores contratualistas, tais como John Locke, que falou sobre o

direito de resistncia, a expresso desobedincia civil, assim como o tratamento terico

especfico do atual conceito de desobedincia civil surgiram com a publicao da obra

Desobedincia Civil, de Henry David Thoreau, em 1849. O contexto histrico em que

estava inserido o autor era o dos Estados Unidos da primeira metade do sculo XIX, que,

como dito antes, mantinha um regime escravocrata e que travava uma guerra contra o Mxico,

24

guerra esta financiada, sobretudo, pelo dinheiro arrecadado com a cobrana de impostos.

Thoreau foi um forte crtico do Estado em que vivia, o qual, em sua viso, cometia graves

injustias ao escravizar indivduos e ao empreender uma guerra contra o Mxico. O autor era

tambm contrrio cobrana de impostos para a manuteno do Estado, o qual, a seu ver,

deveria buscar maneiras de se sustentar sozinho, sem extorquir os indivduos. Tais medidas

so consideradas por Thoreau como graves injustias pelo fato de sobreporem o Estado aos

indivduos, o que ele condena veemente. Estes, por sua vez, teriam o dever de fazer aquilo

que julgam certo e, sentindo-se injustiados pelas medidas do Estado, deveriam se insurgir

contra ele, mediante a desobedincia a suas medidas injustas. Thoreau considera inadequada,

portanto, a atitude muito comum entre os indivduos de ficar esperando por mudanas nas leis

ou maneiras de atuao por parte do Estado para que cessem as injustias.4

Na obra de Thoureau, ento, encontra-se uma crtica ao cinismo e demagogia dos

polticos e cidados contemporneos do autor, os quais no raramente afirmavam discordar do

sistema escravocrata (sobretudo da comercializao de escravos) ou da guerra que estava

sendo travada, mas no se manifestavam publicamente a respeito a fim de modificar a

situao existente. Como observa Porto (2015), Thoreau pensa que seguir leis,

simplesmente, jamais tornou as pessoas mais justas; ao contrrio, seguindo o que elas

determinam, as pessoas acabam, frequentemente, tornando-se agentes da injustia. Tal se

daria, justamente, em virtude da existncia de leis injustas, a qual muito bem apontada por

Thoureau. Uma vez que existem leis injustas, surge, ento, a questo crucial sobre a qual o

autor se debrua: o que deve fazer o cidado? Seria mais correto as obedecer silenciosamente

ou empregar todos os esforos para corrigi-las?

Como j mencionado acima, Thoureau (1997) entende que o cidado deveria resistir

obedincia a leis injustas. Mas no apenas isso; ele pensa que deveria ser reconhecido ao

cidado o direito revoluo, resistncia ao governo quando a tirania e a ineficincia

tornam-se insuportveis. Segundo o autor,

[s]e algum me dissesse que este um mau governo porque tributa

determinadas mercadorias estrangeiras trazidas a seus portos, bastante

provvel que eu no movesse uma palha a respeito, j que posso passar sem

elas. Todas as mquinas tm seu atrito, e isto possivelmente tem um lado

bom que compensa o lado ruim. De qualquer modo, seria bastante nocivo

fazer muito alvoroo por causa disso. Mas quando o atrito chega ao ponto de

controlar a mquina, e a opresso e o roubo se tornam organizados, digo que

4

Tanto Thoreau pensava que a atitude adequada seria a desobedincia civil que ele prprio a praticou contra a

cobrana de imposto por parte do Estado, medida que ele considerava injusta, negando-se a pagar seus impostos,

o que ensejou sua priso, da qual foi libertado aps outra pessoa ter efetuado o pagamento de sua dvida.

25

no devemos mais ficar presos a tal mquina. Em outras palavras, quando

um sexto da populao de uma nao que se comprometeu a ser o abrigo da

liberdade formado por escravos, e um pas inteiro injustamente invadido

e conquistado por um exrcito estrangeiro e submetido lei militar, penso

que no demasiado cedo para os homens honestos se rebelarem e darem

incio a uma revoluo. O que torna este dever ainda mais urgente o fato de

que o pas invadido no o nosso mas nosso o exrcito invasor

(THOREAU, 1997, p. 3).

Para Thoreau (1997), a desobedincia civil no apenas uma opinio, uma mera

desaprovao do carter e das medidas dos governos; ela uma ao baseada em um

princpio, em uma percepo e na execuo de um direito, a qual capaz de modificar coisas

e relaes. Nas palavras do autor, [ela ] essencialmente revolucionria e no condiz

inteiramente com nada que lhe seja anterior. Ela no divide apenas Estados e Igrejas, mas

tambm famlias, ah!, divide o indivduo, separando nele o diablico do divino

(THOUREAU, 1997, p. 3).

Sobre a privao da liberdade dos cidados, muitas vezes consequncia de atos de

desobedincia civil, Thoreau afirma que o Estado possui meios suficientes para subjugar os

seus corpos, porm no possui fora para reverter ou modificar as suas vontades e convices

morais. O autor sustenta que, mesmo que houvesse um nmero superior de agentes do Estado

em relao ao de indivduos insurgentes, o que poderia facilitar o aprisionamento fsico destes

ltimos, no haveria como aprisionar suas mentes. Com afirmaes como essas, o autor tenta

enfatizar a ideia de que os indivduos, embora muitas vezes possam ser privados de liberdade

fsica, possuem liberdade de pensamento, a qual deve ser exercida no momento em que

formam suas convices, no devendo deixar-se guiar por outrem nessa esfera.

Algo muito importante a ser destacado que, em Thoreau, a desobedincia civil

concebida como um ato do indivduo, ou seja, ela no vista como um ato que deva ser

praticado coletivamente, como outros autores a ele posteriores iro exigir, como ser visto

adiante.

Apesar de sua defesa da desobedincia civil como a postura adequada dos cidados

perante leis e medidas estatais injustas, cabe notar, por fim, que Thoreau ctico em relao

aos aparatos democrticos do Estado, deixando bastante claras as suas dvidas quanto

democracia ser o modo de governo mais desenvolvido sobretudo no que se refere s

liberdades, aos direitos e ao reconhecimento de seus cidados. Para Thoureau, um estado justo

seria um estado no qual todos os homens fossem tratados com justia, igualdade e respeito,

at mesmo os homens que optassem por viver parte dele. E essa concepo de estado justo

26

est na base do entendimento do autor sobre o que seja uma real democracia. Para ele, uma

real democracia deve ser constituda pela vontade de todos os cidados, e no pela vontade de

uma minoria que se perpetua no poder durante geraes e cujos interesses estariam em prol do

que til e conveniente para eles prprios (PORTO, 2015). Nas palavras de Thoureau:

Ser a democracia, tal como a conhecemos, o ltimo desenvolvimento

possvel em matria de governo? No ser possvel dar um passo mais alm

no sentido do reconhecimento e da organizao dos direitos do homem?

Jamais haver um estado realmente livre e esclarecido at que este venha a

reconhecer o indivduo como um poder mais alto e independente, do qual

deriva todo seu prprio poder e autoridade, e o trate de maneira adequada.

Agrada-me imaginar um estado que, afinal, possa permitir-se ser justo com

todos os homens e tratar o indivduo com respeito como um seu semelhante;

que consiga at mesmo no achar incompatvel com a sua prpria paz o fato

de uns poucos viverem parte dele, sem intrometer-se com ele, sem serem

abarcados por ele, e que cumpram todos os seus deveres como homens e

cidados (THOUREAU, 1997, p.26).

1.2.2. Hanna Arendt

Alm de sua inaugurao por Thoureau, o tema da desobedincia civil tambm foi

abordado por Hanna Arendt (1973). A autora parte da narrao da experincia de governo

totalitarista da Alemanha nazista para elaborar sua peculiar noo de poder, a qual est

intimamente relacionada com a de desobedincia civil e cuja compreenso necessria para

entender esta ltima. (AGUIAR, 2011, p. p. 116) O objetivo da autora parece ser negar que

poder seja algo do qual o Estado detentor. Conceb-lo dessa maneira abriria a possibilidade

de confundi-lo ou assimil-lo fora e violncia, como ocorreu no Estado totalitarista

alemo. Para Arendt, poder no seria algo constitudo, mas sim constituinte, isto , poder seria

mais como uma potncia, uma capacidade, do que algo dado, estabelecido. Essa potncia,

segundo a autora, seria atualizada no momento em que os homens se renem para conviver.

Como ela afirma, o poder passa a existir entre os homens quando eles agem juntos e

desaparece quando eles se dispersam. (ARENDT, 1983, pp. 212-213) O poder, portanto,

seria algo inerente a uma reunio de homens, e no algo do qual o Estado ou mesmo qualquer

indivduo detentor.

A partir dessa concepo de poder, o Estado passa a precisar constantemente do apoio

atual, efetivo mesmo que tcito dos cidados s suas aes, pois ele no detm, de

antemo, o poder para tomar as medidas que bem entender mesmo a contragosto dos

governados. Neste contexto, a figura da desobedincia civil surge, na concepo arendtiana,

27

como um meio para reinstaurar o espao pblico, o espao em que os homens agem em

conjunto, a fim de criar novas relaes e situaes, em substituio quelas com as quais no

esto satisfeitos. Ao ser capaz de reinstaurar o espao pblico, a desobedincia civil acaba por

ter o papel de sempre renovar e, assim, fortalecer a comunidade e, ao ser capaz de criar novas

relaes entre os homens, ela assume, na concepo de Arendt, um carter poltico.

(AGUIAR, 2011, pp. 123-124)

Para Arendt, uma vez que os cidados no estejam satisfeitos com as leis ou a forma

de atuao do Estado, eles podem e mesmo conveniente que o faam praticar atos de

desobedincia civil. Mas tais atos devem ser praticados em conjunto com outros cidados,

todos movidos por interesses em comum, e no praticados individualmente e por interesse

individual. Alm disso, eles tm de ser praticados na esfera pblica, objetivando dar

visibilidade reivindicao de mudana subjacente ao ato e chamar outros cidados para a

discusso. Ademais, a desobedincia civil no pode consistir, para Arendt, em atos de

violncia, o que compreensvel, a partir das vises da autora, que, como anteriormente

mencionado, pretende evitar a confuso ou assimilao de poder fora e violncia.

(ARENDT, 1983, pp. 212-213)

Ao discorrer sobre o tema da desobedincia civil, Arendt (1999) o faz no contexto de

um questionamento sobre a validade da lei, tema este proposto para um congresso em Nova

York na dcada de 1970 e sobre o qual ela faz comentrios. A preocupao da autora era

entender o que teria despertado o interesse dos estudiosos por essa questo, isto , se seria o

aumento da delinquncia nas ruas simplesmente ou se seria a percepo de que os males

causados pelas tiranias modernas fizeram com que os cidados perdessem a confiana nas

leis. Em conexo com a perda da confiana nas leis, ento, que a autora comea a tecer suas

consideraes sobre a desobedincia civil, uma vez que, segundo ela, atos de desobedincia

civil, quando bem organizados, trazem resultados positivos no que se refere a mudanas

eficazes na legislao que eventualmente possa estar desacreditada pelos cidados.

Como Arendt procura destacar, ao tratar da desobedincia civil, a literatura, de um

modo geral, costumar citar como exemplos os atos praticados por Scrates e por Thoreau. A

conduta adotada por estes pareceu induzir os juristas da poca da autora a pensar que quem

pratica atos de desobedincia civil s leis estaria disposto a aceitar e a desejar as punies,

sendo esta, portanto, a nica forma de justificar tal desobedincia.

Este pensamento, por sua vez, coadunava-se com a maneira como o prprio Estado

americano tratava os desobedientes civis na poca em que Arendt viveu. Como ela prpria

relata, ocorriam diversos conflitos no pas na dcada de setenta, com a ocorrncia de diversos

28

atos de desobedincia civil. Segundo a autora, tais atos eram tratados pelo governo como atos

de desobedincia comum, ou seja, como se fossem praticados por delinquentes. Sendo vistos

assim, os desobedientes civis deveriam sofrer punio, assim como quaisquer outros

transgressores da lei. (ARENDT,1999).

A postura do governo, ao tomar semelhante medida, era vista como sendo absurda.

Uma vez que se tratasse um desobediente civil como um infrator comum, ele teria de ser

levado a julgamento e, portanto, ser defendido por um advogado. Este advogado, entretanto,

acabaria enfrentando dificuldades no momento de elaborar sua argumentao em defesa do

desobediente civil, ora ru do processo, visto que teria de admitir que seu cliente desejava a

punio, o que parece ir de encontro com qualquer maneira plausvel de se conceber uma

defesa propriamente dita.

Arendt pensa que, independentemente das causas que levaram desordem social

daquele momento, se fazia imperioso delinear uma melhor maneira de interpretar os atos de

desobedincia civil, os quais estavam sendo tratados at o momento de forma confusa, na

medida em que se tentava justifica-los fazendo uso de argumentos baseados em questes que

dizem respeito tanto moral quanto lei. Ao serem vistos dessa forma, alm de surgir a

recm mencionada dificuldade de elaborao de uma argumentao plausvel de defesa dos

desobedientes levados a julgamento, surgiria tambm um problema adicional tambm

apontado por Arendt. Tal problema consiste em no distinguir claramente atos de

desobedincia civil de atos de objeo de conscincia ou mesmo de atos pelos quais um

homem questiona a constitucionalidade de alguma lei, os quais se assemelham queles, mas

com eles no se confundiriam segundo a autora. Referidos tipos de atos no poderiam ser

confundidos com os atos praticados pelos desobedientes civis por serem atos praticados por

um indivduo, diferentemente do que ocorre com os de desobedincia civil, que somente se

manifestam em grupo. Segundo Arendt (1999), estes ltimos se diferenciam justamente por

tratar-se de atos praticados em grupos apoiados em interesses comuns. Trata-se de grupos

minoritrios que se organizam para defender a opinio comum do grupo frente a polticas

adotadas pelo governo, mesmo sabendo que estas polticas contam com o apoio das maiorias.

Na concepo arendtiana, as manifestaes que tm como princpio o apelo

conscincia individual no podem ser entendidas como atos polticos, j que a conscincia

apoltica e no pode estar interessada no mundo e seus problemas. Ela cita o exemplo de

Thoreau para dizer que, embora este tenha protestado contra a injustia da lei, essa forma de

protesto no estava baseada na relao de um cidado com a lei, mas sim na conscincia

individual, ou seja, na obrigao moral da conscincia.

29

Portanto, a desobedincia civil no pode ser avaliada no mesmo nvel que a

moralidade individual, porque as normas da conscincia dependem de um interesse por si

mesmo e no de um interesse relacionado com as questes sociais. Ainda assim, pode

acontecer de algum tipo de objeo de conscincia vir a se tornar politicamente produtiva.

Para Arendt, isso seria possvel

[] quando chegam a coincidir certo nmero de conscincias e os objetores

de conscincia decidam recorrer praa pblica e fazer ouvir suas vozes em

pblico. Mas ento j no estamos tratando com indivduos ou com um

fenmeno cujo critrio possa ser derivado de Scrates ou Thoreau. O que se

decidiu in foro conscientiae se converteu agora em parte da opinio

pblica e, mesmo que este grupo particular de desobedientes civis possa

proclamar sua validade inicial-suas conscincias-cada um deles j no se

apoia em si mesmo. Na praa, a sorte da conscincia no muito diferente

da sorte da verdade do filsofo: se converte em uma opinio, indistinguvel

de outras opinies. E a fora da opinio no depende da conscincia seno

do nmero de aqueles com os que est associada o acordo unnime de que

x um mal... acrescenta crdito opinio de que x um mal

(ARENDT,1999, p.76).

Do ponto de vista jurdico o desobediente civil visto, na percepo da autora, como

sendo um criminoso tambm, isso porque ele comete atos contrrios lei. Em consequncia

disso recai sobre os desobedientes civis as suspeitas de que estes atos acabam por atrair uma

diversidade criminal, isso por se tratar de atos praticados publicamente. Arendt (1999) lembra

que esses indivduos, presentes nos movimentos radicais no so encontrados em

manifestaes de desobedincia civil. Eles podem sim ser encontrados nos atos

revolucionrios, representando uma ameaa para a poltica e a sociedade como um todo. por

essa e outras razes que a desobedincia civil no pode ser comparada desobedincia

criminal.

Ela acionada quando um elevado nmero de cidados acredita que atravs dos canais

convencionais de mudanas, no tero as suas reivindicaes ouvidas ou atendidas, tampouco

daro lugar aes futuras ou tambm em situaes em que o governo est prestes a realizar

mudanas cuja legalidade e constitucionalidade esto propensas dvidas.

Hannah Arendt (1999) lembra que, por todas as partes do mundo vem crescendo um

fenmeno de massas, como o caso das desobedincias s leis, civis e penais. Isso somente

serve para demostrar a vulnerabilidade dos governos e suas leis e para colocar em evidncia o

descontentamento dos cidados e a legitimidade dos governos. Ela afirma ainda que as

grandes mudanas ocorridas na sociedade ao longo dos tempos so sempre o resultado de

aes promovidas fora da lei, contando unicamente com a opinio pblica.

30

Essas mudanas comeam de forma ilegal, ou seja, atravs de atos de desobedincia

civil, e somente depois que passam legalidade. Referidos atos foram responsveis por

promover mudanas histricas, como ocorreu com a deciso tomada pelo Supremo Tribunal

americano, quando este se negou a julgar sobre a legitimidade da guerra do Vietn. Foram

referidos atos que promoveram esta mudana. Tambm no mbito laboral, o direito greve

o resultado de anos de aes de desobedincia. Tampouco foi atravs da lei que o crime de

escravido e a comercializao de escravos teve o reconhecimento como tal. (ARENDT,

1999, p.84).

O pensamento da autora que os atos de desobedincia civil podem ser compatveis

com as leis, tendo em conta a considervel diferena entre estes atos e outros praticados

ilegalmente. Enquanto os atos criminosos so praticados s escondidas e em benefcio

prprio, os atos de desobedincia civil atuam em nome e a favor de um grupo, desafiando as

leis publicamente. Trata-se de grupos minoritrios organizados e com uma opinio de

qualidade. Estas minorias desobedientes no podem ser tratadas como rebeldes ou traidoras,

pois, segundo Arendt, considerar as minorias desobedientes como rebeldes e traidores ir

contra a letra e o esprito de uma constituio, cujos criadores se mostraram especialmente

sensveis aos perigos do irrefreado domnio da maioria (ARENDT, 1999, p.84).

Cabe lembrar ainda que a autora, assim como a maioria dos autores que trata deste

tema, considera a no violncia como uma das caractersticas fundamentais para o sucesso

dos atos dos desobedientes civis. E justamente esta caracterstica que diferencia referidos

atos dos atos praticados por grupos revolucionrios, pois, enquanto os desobedientes civis

aceitam a autoridade e a legitimidade do sistema de leis, o grupo revolucionrio nega esse

mesmo sistema.

1.2.3. John Rawls

John Rawls (1997) outro autor que se manifesta a respeito da desobedincia civil, o

que feito no contexto de sua teoria da justia. Conforme o autor, para chegar-se aos

princpios de justia adequados para guiar as estruturas mais bsicas da sociedade, ter-se-ia de

supor indivduos em uma posio original, isto , uma posio hipottica na qual eles estariam

sob o que o autor chama de vu da ignorncia, que consistiria no desconhecimento por

partes dos indivduos da condio social e econmica que eles ocupariam na sociedade, bem

como de suas aptides fsicas e intelectuais. Rawls pensa que, estando nessa posio, os

indivduos estabeleceriam a liberdade e a igualdade como os princpios de justia adequados

31

para reger a sociedade.

O autor define a desobedincia civil como um ato

[...] pblico, no violento, consciente e no obstante um ato poltico,

contrrio lei, geralmente praticado com o objetivo de provocar uma

mudana na lei e nas polticas de governo. Agindo desse forma, algum se

dirige ao senso de justia da maioria da comunidade e declara que, e sua

opinio ponderada, os princpios da cooperao social entre homens livres e

iguais no esto sendo respeitados. (RAWLS, 1997, p. 404)

A desobedincia civil surge, no contexto da teoria da justia de Rawls, como um

mecanismo de correo: ela serviria para apontar eventuais injustias nas instituies sociais e

para tentar promover uma reforma corretiva nas mesmas. Com isso, ela contribuiria para

reforar as instituies justas, constituindo, assim, uma prtica legtima, embora ilegal.

(RAWLS, 1997, p. 424) Rawls ressalta, entretanto, que a desobedincia civil deve ser

praticada apenas quando se tiverem esgotados todos os meios legalmente institudos para

reclamar acerca das injustias, sendo, portanto, a ltima alternativa disponvel.

1.2.4. Michael Walzer

Michael Walzer tambm est entre os autores que discorreram sobre o tema da

desobedincia civil. Este autor, contudo, tem uma postura um pouco mais enftica a respeito

da necessidade de sua prtica. Para ele, desobedecer em certos casos no seria apenas

legtimo; seria, mais precisamente, um dever que surgiria para os indivduos em determinadas

circunstncias. (POGREBINSCHI, 2004, p. 64) As circunstncias sob as quais surgiria tal

dever seriam aquelas em que h conflito entre os deveres dos indivduos decorrentes de seu

pertencimento a grupos menores e os deveres decorrentes de seu pertencimento a um grupo

maior, como o Estado, por exemplo. Sendo assim, os deveres de um indivduo enquanto

cidado de um Estado no se sobreporiam, na viso de Walzer, a seus deveres, por exemplo,

enquanto um membro de uma comunidade minoritria. (WALZER, 1977, p. 11)

Por ser uma consequncia da prevalncia de deveres de grupos menores que o Estado,

natural que o dever de desobedecer, segundo Walzer, tenha de ser cumprido em grupo,

configurando um ato coletivo. Tal ato tem tambm de ser praticado em pblico, mostrando a

seriedade e o comprometimento de seus praticantes em se explicar perante os demais

cidados. (WALZER, 1977, p. 14) Cabe apontar, porm, que um aspecto em que as vises de

Walzer se distanciam das dos demais autores aqui tratados consiste em sua posio acerca do

32

carter violento ou no dos atos de desobedincia civil. De acordo com ele, embora seja mais

adequado empreender a desobedincia sem o uso da violncia, tal uso seria, por vezes,

necessrio para atingir os objetivos pretendidos. A ineficcia de meios no violentos

justificaria, para Walzer, o uso de violncia contra a propriedade, sem que, com isso, seja

comprometida a legitimidade da prtica. (WALZER, 1977, p. 21)

1.2.5. Jrgen Habermas

Jrgen Habermas tambm se debruou sobre o tema desobedincia civil em sua obra

A desobedincia civil: pedra de toque do Estado Democrtico de Direito, publicado em

1985. Conforme o autor, a desobedincia civil seria um ato poltico realizado pelos cidados

com o objetivo de se insurgir contra normas ou leis injustas, sendo, portanto, um mecanismo

para a garantia de direitos. Em sua viso, as normas de uma sociedade devem ser discutidas e

debatidas por todos aqueles que ela pode vir a afetar. Quando porventura uma norma venha a

ser considerada injusta pelos cidados, estes podero praticar atos de desobedincia civil a fim

de sanar tal injustia, os quais so considerados pelo autor como prticas legtimas. O autor,

contudo, reconhece a dificuldade de aceitao desse tipo de prtica no bojo de uma sociedade,

uma vez que ela vista por muitos como o primeiro estgio de uma caminhada que

conduzir violncia e ao terrorismo (HANSEN, 2010).

Habermas analisa acontecimentos ocorridos na Alemanha Ocidental na dcada de 80,

momento em que as autoridades alems se posicionam de maneira demasiadamente arbitrria

em relao a atos de desobedincia civil. Nesse momento, os desobedientes se manifestaram

contrrios instalao de msseis norte-americanos na Alemanha Ocidental, manifestaes

estas inspiradas, ao ver de Habermas, nos atos de desobedincia, ocorridos nos Estados

Unidos, como forma de protesto contra a Guerra do Vietn. (HABERMAS, 1985, p.96) As

manifestaes ocorridas na Alemanha Ocidental trouxeram uma srie de questionamentos

com relao s formas de analisar atos de desobedincia civil, em especial sobre como definir

seus limites. (HABERMAS, 1985, p. 97)

Habermas compara tais manifestaes ocorridas na dcada de 80 na Alemanha

Ocidental com movimentos que haviam ocorrido a partir de meados dos anos 70, no mesmo

pas com o objetivo de questionar as formas econmicas e as polticas vigentes e buscando

formas alternativas de se viver. Ao proceder tal comparao, o autor percebe que uma

caracterstica presente nas manifestaes da dcada de 80, mas ausente nas manifestaes

ocorridas na dcada de 70 que as manifestaes foram iniciadas por grupos de cidados

33

trabalhando de forma descentralizada, heterognea e, por vezes, dispersa e organizada

espontaneamente. (HABERMAS, 1985, p. 98) Essa circunstncia acaba por distinguir as

manifestaes da dcada de 80 daquelas ocorridas em 70, uma vez que estas ltimas, por

estarem questionando as formas econmicas e as polticas vigentes, poderiam sofrer uma

maior limitao imposta pelo Estado, que poderia fazer isso mediante a proibio de partidos

e sindicatos. Habermas destaca a diferena afirmando: [e]ssa mistura de movimentos

pacifista, ambientalista, feminista, entre outros, [a qual estava presente nos movimentos da

dcada de 80, mas no nos da dcada de 70] constitui algo que no pode ser simplesmente

proibido, como poderia ocorrer comum partido ou sindicato. (HABERMAS, 1985, p. 98)

Habermas analisa a maneira como atos de desobedincia civil podem ser interpretados

e chama a ateno para a possibilidade, sempre presente, de eles serem confundidos com atos

de vandalismo, se vistos de uma forma restrita. A instalao dos msseis na Alemanha

Ocidental, que ensejou as manifestaes da dcada de 80, fora interpretada pela mdia como

uma forma de defesa. Os desobedientes civis, por seu turno, foram considerados como

inimigos de guerra e, portanto, reprimidos como tal. Habermas pensa que, em uma

democracia constitucional, os atos de desobedincia civil deveriam ser considerados um

componente normal, j que so necessrios prpria cultura poltica.

Habermas considera os atos de desobedincia civil de fundamental importncia para

uma democracia constitucional, uma vez que a sociedade teria como responsabilidade a

resoluo dos problemas de interesse da comunidade em geral. Segundo ele,

a sociedade civil, entendida enquanto um conjunto de associaes e

movimentos, de motivaes variadas geradas espontaneamente no mundo da

vida, desvinculados diretamente do poder administrativo do Estado e da

economia capitalista, exerce ento um poder crucial. A sociedade civil

responsvel por captar os problemas sociais das esferas privadas,

sintetizando-os e transmitindo-os esfera poltica. Assim, atravs de sua

ao, que inclui atos de desobedincia civil, abrir os caminhos para a soluo

dos problemas de interesse geral. (HABERMAS, 1997, p. 99)

Habermas observa, ainda, que a desobedincia civil s faz sentido em um estado

democrtico de direito, porque somente este tipo de estado tem sua legitimidade dependente

dos governados e, na medida em que estes se insurgem como o estado, a legitimidade deste

ficaria ameaada.

Assim como Arendt, Habermas tambm tenta deixar clara a distino entre atos de

desobedincia civil e outros tipos de atos que com eles possam ser confundidos. Como o autor

34

observa, os contestadores civis reconhecem a legalidade da ordem existente em uma

democracia; sendo assim, atos de desobedincia civil podem vir a ser justificados se a

legalidade vier a ser considerada ilegtima. A justificao de atos de desobedincia civil,

portanto, no se baseia em uma moralidade privada ou em algum direito especial.

(HABERMAS, 1985, p. 103) Com tais observaes, Habermas tanta deixar explcita a

diferena entre os atos praticados pelos desobedientes civis e os anseios revolucionrios pela

tomada de poder. (HABERMAS, 1985, p. 103)

importante ressaltar, neste momento, que Habermas se posiciona de forma contrria

legalizao dos atos de desobedincia civil. Ele menciona que muitos contemporneos seus

defenderam a necessidade de tornar legais referidos atos. Os que defendem a legalizao de

tais atos fazem-no com recurso a direitos como os de expresso e de associao, assim como a

justificativas morais. Porm, o reduzido impacto dos resultados gerados a partir de preceitos

como o direito liberdade de expressam e associao atestaria, segundo Habermas, o porqu

de no ser vivel a legalidade dos atos de desobedincia civil. Isso porque, se for retirada a

base puramente moral (no legal) que move a ao dos desobedientes civis quando praticam

seus atos, e se estes indivduos no correrem riscos pessoais, torna-se nfima a efetividade e o

apelo dos atos de desobedincia civil. Para o autor, a desobedincia civil deve situar-se entre a

legalidade e a legitimidade e deve ser entendida como necessria para se efetivar uma cultura

poltica. (HABERMAS, 1985, p. 106)

1.2.6. Norberto Bobbio

Na pretenso de definir o conceito de desobedincia civil para o seu Dicionrio de

Poltica, Bobbio (2010) tenta deixa claro que ela seria uma forma particular de desobedincia,

havendo, portanto, tambm outras formas. Segundo o autor, a desobedincia civil seria

caracterizada por ser

[...] executada com o fim imediato de mostrar publicamente a injustia da lei

e com o fim mediato de induzir o legislador a mud-la. Como tal,

acompanhada por parte de quem a cumpre de justificativas com a pretenso

de que seja considerada no apenas como lcita mas como obrigatria e seja

tolerada pelas autoridades pblicas diferentemente de quaisquer outras

transgresses. [...], a desobedincia civil um ato que tem em mira, em

ltima instncia, mudar o ordenamento, sendo, no final das contas, mais um

ato inovador do que destruidor. (BOBBIO, 2010, p. 335).

A desobedincia comum, por outro lado, seria, para Bobbio, [...] um ato que

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desintegra o ordenamento e deve ser impedida ou eliminada a fim de que o ordenamento seja

reintegrado em seu estado original. (BOBBIO, 2010, p. 335).

Conforme o autor, a desobedincia civil torna visvel os que os cidados consideram

como falhas do sistema, compreendidas como injustas, ilegtimas ou invlidas. E nesse

sentido que o autor fala da importncia da publicizao do ato para que outros cidados se

sintam identificados.

Para o autor, portanto, a desobedincia civil tem por objetivo imediato tornar pblicas

as injustias da lei e com isso promover a sua modificao por parte do legislador. Os

desobedientes civis procuram justificar seus atos com a inteno de que, estes sejam

entendidos por parte das autoridades pblicas como sendo atos no somente lcitos, mas

tambm obrigatrios. Existe uma grande diferena entre desobedincia civil e a desobedincia

comum, afirma ele, enquanto que os atos empreendidos pelos desobedientes comuns

promovem uma como desintegrao do ordenamento, os atos de desobedincia civil podem

ser entendidos sendo atos inovadores.

Essa forma particular de desobedincia chamada de civil justamente porque quem

apela para esses atos, o faz como forma de demonstrar que o seu comportamento est de

acordo com o comportamento de um bom cidado e, portanto, no est transgredindo as

normas. Para Bobbio (2010), a ampla publicidade que os atos de desobedincia pretendem,

de fundamental importncia para atingir os objetivos pretendidos e para dessa maneira,

estabelecer-se uma diferenciao entre esta desobedincia e a desobedincia comum. Ao

contrrio da desobedincia civil, que tem como uma de suas principais caractersticas ser

praticada publicamente, os atos dos desobedientes comuns tm como caracterstica

fundamental o sigilo, so praticados s escondidas como forma de lograr os seus objetivos.

Segundo Bobbio (2010), os desobedientes civis partem do princpio de que, as leis

consideradas injustas, ou as que sejam ilegtimas ou as leis invlidas no podem ser

consideradas leis. Portanto, ele afirma que:

o principal argumento deles o de que o dever (moral) de obedecer s leis

existe na medida em que respeitado pelo legislador o dever de produzir leis

justas (conformes aos princpios de direito natural ou racional, aos princpios

gerais do direito ou como se lhes queira chamar) e constitucionais (ou seja,

conforme aos princpios bsicos e s regras formais previstas pela

constituio). Entre cidado e legislador haveria uma relao de

reciprocidade; se verdade que o legislador tem direito obedincia,

tambm verdade que o cidado tem o direito de ser governado com

sabedoria e com leis estabelecidas (BOBBIO, 2010, pg. 335).

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Dentre as diversas formas de resistncia, a desobedincia civil, considerada

eticamente justificada por quem a prtica, surge como mais uma das formas de violar a lei.

Estes atos, segundo Bobbio (2010), pertencem a uma forma intermediria de resistncia,

considerada por ele como sendo nem passiva e nem ativa. Assim:

[] tal como concebida habitualmente na filosofia poltica contempornea

que leva em considerao as grandes campanhas no violentas de Gandhi ou

as campanhas para a abolio da discriminao racial nos Estados Unidos -

ela omissa, coletiva, pblica, pacfica, no necessariamente parcial (a ao

de Gandhi foi certamente uma ao revolucionria) e no necessariamente

passiva (as grandes campanhas contra a discriminao racial tendem a no

reconhecer ao Estado o direito de punir os pretensos crimes de lesa

descriminao (BOBBIO, 2010, p. 337).

Com o intuito de no confundi-la com outras formas de resistncia, Bobbio destaca

duas caractersticas fundamentais e que devem estar presentes nesses atos, eles devem ser

praticados em grupos e nunca individualmente, a outra caracterstica que eles no podem ser

praticados de forma violenta. Pelo fato de serem praticados por grupos da sociedade, eles no

tem como ser confundidos com os atos praticados pelo objetor de conscincia, e nem por

qualquer outro tipo de ato individual.

Outra das caractersticas que serve para diferenciar os atos de desobedincia civil de

outros atos de resistncia, que estes atos so no violentos e dessa maneira no podem

tampouco ser confundidos com as vrias formas de resistncia praticada por grupos,

geralmente acompanhadas de atos de violncia, como o caso das revolues. Ainda para

diferenciar das formas de contestao, ele argumenta que estas so realizadas de forma verbal,

atravs de discursos crticos, enquanto que os atos de desobedincia civil so meramente

demonstrativos.

Uma outra diferena diz respeito aos atos praticados como forma de protestos,

referidos atos so realizados como uma maneira de demonstrar insatisfao com alguma

situao atravs de uma ao exemplar, como o caso da greve de fome, por exemplo. A

grande diferena neste caso que, embora possa ser considerado um ato exemplar, ele no

pode ser considerado um ato ilegal, e como tal, no pode ser confundido com desobedincia

civil.

Para Bobbio (2010), as justificativas para a prtica de tais atos de transgresso da lei,

esto baseados principalmente na ideia religiosa da doutrina do direito natural, ou seja, est

assentada em princpios de obrigao moral, a partir dos ditames da conscincia. Outra forma

de justificativa seria baseada na doutrina jusnaturalista, a qual defende que o indivduo possui

37

alguns direitos originrios e inalienveis. Pois o Estado teria surgido a partir de um consenso

entre os prprios indivduos, e teria que lhes proporcionar proteo e promover uma

convivncia pacfica entre eles atravs do contrato social.

Por fim, estaria a justificativa inspirada na

ideia libertria da perversidade essencial de toda a forma de poder sobre o

homem, especialmente do mximo poder que o Estado com o corolrio de

que todo o movimento que tende a impedir a prevaricao do Estado uma

premissa necessria para instaurar o reino da justia, da liberdade e da paz

(Bobbio,2010,p.338).

1.3. Caracterizao geral da desobedincia civil

Aps mencionarmos alguns exemplos emblemticos habitualmente classificados como

prticas de desobedincia civil e de apresentarmos uma amostra dos desenvolvimentos

tericos a respeito, passaremos, agora, a apresentar uma caracterizao geral mdia de

desobedincia civil, ou seja, apresentaremos as caractersticas que mais comumente so

consideradas pelos autores como tpicas de atos de desobedincia civil, assim como aquelas

condies que mais frequentemente so tidas como necessrias para que tais atos sejam

justificados. com essa caracterizao geral, como dito antes, que trabalharemos no decorrer

deste trabalho e aquela com a qual faremos nossas anlises. Tal caracterizao ser delineada

seguindo de perto as indicaes de Kimberley Brownlee (2017) a respeito.

1.3.1. Caractersticas da desobedincia civil

Uma primeira e mais bvia caracterstica da desobedincia civil ser um ato ilcito,

isto , um ato que viola alguma lei ou regra vigente. Porm, no se trata de qualquer ato

ilcito, o que nos remete a uma segunda caracterstica que os autores costumam vincular

desobedincia civil, a saber, a de ser um ato consciencioso, ou seja, ser um ato que as pessoas

praticam movidas por algum princpio ou convico moral que possuem (BROWNLEE, 2017,

p. 4). Por exemplo, quando Thoureau desobedeceu a lei que determinava que deveria pagar

certa quantia em dinheiro a ttulo de imposto, ele o fez movido pela convico de que se

tratava de uma lei injusta e que seu cumprimento contribuiria para a manuteno de prticas

tambm injustas por parte do estado, a saber, a de escravizar pessoas e a de empreender uma

guerra contra o Mxico, na qual pessoas inocentes estavam morrendo. Do mesmo modo, Rosa

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Parks violou as regras que determinavam que ela deveria ceder seu lugar para uma pessoa

branca no nibus de Montgomery movida pela convico de que se tratava de uma regra

injusta, que no tratava brancos e negros com igualdade. Estes exemplos mostram que, para

ser considerada desobedincia civil, uma violao lei no pode ser acidental ou mesmo fruto

de um capricho; o desobediente civil precisa ser movido por algum princpio ou convico

moral que possui.

O desobediente civil pode, claro, estar assumindo uma postura moralmente

reprovvel ao manter esse princpio ou convico, ou seja, pode ser esse princpio ou

convico moral no seja aceitvel ou digno de ser um guia para o comportamento humano

(uma pessoa pode, por exemplo, ter a crena moralmente reprovvel nos dias atuais de que

pessoas brancas possuem dignidade superior que possuem pessoas negras). No entanto, isto

no excluiria que a pessoa tenha praticado desobedincia civil na hiptese de desobedecer

alguma lei com base nesse princpio ou convico. O que ocorre essa desobedincia civil

no ser, como veremos adiante, uma prtica justificada do ponto de vista moral.

Uma terceira caracterstica que os autores atribuem desobedincia civil seu carter

comunicativo. A desobedincia a uma lei por parte de um desobediente civil um instrumento

pelo qual ele deseja se comunicar, tanto com o estado ou, mais precisamente, com as

autoridades estatais, quanto com a populao em geral. Sendo assim, o desobediente civil no

desobedece lei a fim de auferir as eventuais vantagens que porventura possa obter pelo

descumprimento, como o embolso de certa quantia em dinheiro que seria destinada ao

pagamento de impostos, no caso de Thoureau, ou percorrer o trajeto de nibus acomodada em

um assento, ao invs de em p, no caso de Rosa Parks, para seguirmos os exemplos

anteriores.

Ao falarmos do carter comunicativo da desobedincia civil, somos remetidos,

automaticamente, pergunta: o que o desobediente civil deseja comunicar e com qual

finalidade? Como dito antes, a desobedincia civil costuma ser caracterizada como um ato

consciencioso, isto , um ato que o desobediente pratica movido por algum princpio ou

convico moral. Agora que sabemos do carter comunicativo da desobedincia civil, vemos

que, quando ele desobedece uma lei, ele est querendo expressar, dar voz a esse princpio ou

convico moral, comunicando s autoridades estatais e populao em geral que

determinada lei ou prtica do estado ferem esse princpio e convico moral que ele considera

muito valoroso. Como Brownlee (2017, pp. 6-7) explica, um dos aspectos do carter

comunicativo da desobedincia civil, portanto, transmitir o repdio do desobediente a

determinada lei ou prtica estatal.

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Neste momento, temos que acrescentar que a desobedincia civil pode ser classificada

em direta ou indireta. Ela ser direta quando consistir na violao da lei que o desobediente

considera injusta e ser indireta quando consistir na violao de uma lei que o desobediente

no considerada injusta como forma de expressar seu repdio a outra lei ou prtica estatal

que ele considera injusta. (BROWNLEE, 2017, p. 6)

Seja qual for o caso, no se trata to somente da expresso de um repdio a uma lei ou

prtica estatal. J que o desobediente considera a lei ou prtica estatal como injusta, ele deseja

tambm uma mudana da situao atual, ele deseja que essa lei ou prtica seja eliminada,

extinta. Assim, um segundo aspecto do carter comunicativo da desobedincia civil chamar

a ateno das autoridades e dos cidados de um modo geral para que estes percebam a

injustia da lei ou prtica e que, assim como o desobediente, sejam convencidos de que deve

haver uma mudana nessa lei ou prtica. (BROWNLEE, 2017, pp. 5-6)

Como podemos perceber, ento, a terceira caracterstica da desobedincia civil, de ter

um carter comunicativo, vincula-se a uma quarta caracterstica comumente atribuda a ela, a

saber, ser uma prtica com o objetivo de chamar a ateno das pessoas para a injustia de uma

lei ou prtica estatal e obter, com isso, uma mudana nessa lei ou prtica.

Sobre esta caracterstica da desobedincia civil, Bedau (1991, p. 7) complementa

chamando a ateno para o fato de que a desobedincia civil tem dentre seus objetivos a

educao moral da sociedade em geral e afirma:

A desobedincia civil assim concebida deve ser vista como um exerccio em

educao moral pblica, como uma ttica para obter a reforma da lei.

Portanto, a desobedincia propriamente chamada de civil porque ela

parte da vida cvica da sociedade.

importante acrescentar tambm que, por ter como objetivo chamar a ateno das

pessoas para a injustia de uma lei ou prtica estatal e obter, com isso, uma mudana nessa lei

ou prtica, os estudiosos costumam atribuir desobedincia civil a caracterstica de ser um

ato poltico. Uma vez que a desobedincia civil possui esse objetivo, isto , obter uma

modificao no sistema jurdico vigente, pode-se dizer que a mesma uma forma de exerccio

do poder pelos cidados, o poder que, em uma democracia, originariamente deles. Sendo

assim, tratar-se-ia de um ato poltico.

Uma sexta caracterstica tipicamente vinculada desobedincia civil sua

publicidade, a qual est intimamente relacionada com seu carter comunicativo e com seu

objetivo. Se a desobedincia civil caracterizada por ser uma violao lei feita para

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comunicar s demais pessoas que se repudia determinada lei ou prtica e para que elas passem

tambm a repudi-la e sejam convencidas de que essa lei ou prtica deve ser modificada,

ento necessrio que a desobedincia seja um ato praticado abertamente, em pblico, para

que todos possam ter conhecimento dele, e no um ato praticado em sigilo, de forma oculta,

tal como outros tipos de violao lei. Algum que simplesmente deixa de pagar seus

impostos em sigilo, cuidando para que no seja descoberto, por exemplo, no estar

praticando desobedincia civil. A publicidade, portanto, uma condio para que a

desobedincia civil adquira seu carter comunicativo e atinja seu objetivo junto sociedade.

Sobre a exigncia de publicidade para a desobedincia civil, Brownlee acentua que

muitos autores, como John Rawls, por exemplo, pensam que, alm de praticar o ato de

desobedincia abertamente, em pblico, o desobediente civil deve avisar previamente as

autoridades estatais sobre sua inteno de praticar o ato. No entanto, h autores, como Brian

Smart (1991), por exemplo, que entendem que, em certas circunstncias, a exigncia de aviso

prvio simplesmente inviabilizaria o sucesso do ato de desobedincia. Brownlee explica

muito bem isso da seguinte maneira:

Se uma pessoa divulga sua inteno de violar a lei, ento ela oferece tanto

aos adversrios polticos quanto s autoridades legais a oportunidade de

abortar seus esforos para se comunicar (Smart 1991, 206). Por essa razo, a

desobedincia no anunciada ou (inicialmente) oculta s vezes prefervel

s aes realizadas publicamente e com aviso prvio. Exemplos incluem a

libertar animais de laboratrios de pesquisa ou vandalizar propriedade

militar; para ter sucesso em realizar essas aes, os desobedientes teriam de

evitar a publicidade do tipo que Rawls defende. (BROWNLEE, 2017, p. 7)

Aps este esclarecimento sobre a necessidade de aviso prvio s autoridade e da

divergncia entre os autores que ela suscita, podemos acrescentar mais uma caracterstica que

os autores comumente atribuem desobedincia civil: ser um ato no violento. Como

pudemos notar a partir dos exemplos paradigmticos de Thoureau, Gandhi, Mandela e Luther

King, a no violncia do ato algo recorrente nos casos considerados desobedincia civil e

foi, inclusive, uma caracterstica abertamente defendida por seus proponentes. Do mesmo

modo, pudemos perceber que a maioria dos autores aqui mencionados colocam a no

violncia como elemento caracterstico da desobedincia civil (com exceo de Michael

Walzer). Sendo assim, como uma regra, na desobedincia civil a violao da lei no implica

violncia contra pessoas (como ferir ou matar algum, por exemplo) ou contra sua

propriedade (como causar danos a bens mveis ou imveis de algum, por exemplo).

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Algo que poderamos pensar imediatamente a favor da exigncia de no violncia para

uma desobedincia ser civil que infringir violncia contra pessoas ou contra sua propriedade

algo moralmente errado e, sendo assim, parece que o desobediente civil, que algum que

age movido por algum princpio ou convico moral, estar sendo incoerente (ou ao menos

parcial) se ele praticar um ato de violncia. Outra razo a favor dessa exigncia,

frequentemente usada pelos autores, que a prtica de violncia tem um efeito negativo sobre

o objetivo dos desobedientes, porque diminui a probabilidade de conseguirem o apoio das

demais pessoas para a causa que defendem. Neste sentido, o uso de violncia obscureceria o

carter comunicativo e colocaria em risco a obteno do objetivo da desobedincia civil.

(BROWNLEE, 2017, p. 8)

Entretanto, como Brownlee (2017, pp. 7-8) destaca, h muita discusso entre os

estudiosos sobre o tema sobre a admissibilidade de atos violentos na desobedincia civil.

Sobre este assunto, o autor chama a ateno para trs problemas que surgem quando se pensa

sobre essa questo, os quais desafiam os defensores da exigncia de no violncia para haver

desobedincia ci