Universidade Federal de Sergipe Pró-Reitoria de Pós...
-
Upload
vuonghuong -
Category
Documents
-
view
215 -
download
0
Transcript of Universidade Federal de Sergipe Pró-Reitoria de Pós...
0
Universidade Federal de Sergipe
Pr-Reitoria de Ps-Graduao de Pesquisa
Ncleo de Ps-Graduao e Pesquisa e Cincias Sociais
Mestrado em Sociologia
A construo do Museu de Arte Sacra de So Cristvo (MASC): agentes e prticas no
campo do patrimnio cultural sergipano
Marcelo Santos
So Cristvo-Sergipe
2010
Livros Grtis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grtis para download.
1
A construo do Museu de Arte Sacra de So Cristvo (MASC): agentes e prticas no
campo do patrimnio cultural sergipano
Marcelo Santos
Dissertao apresentada ao Ncleo de Ps-
Graduao e Pesquisa em Cincias Sociais da
Universidade Federal de Sergipe como pr-
requisito para obteno do ttulo de Mestre em
Sociologia.
Orientador: Professor Dr. Hippolyte Brice
Sogbossi
Banca examinadora:
Professor Dr. Hippolyte Brice Sogbossi (UFS) - Orientador
_______________________________________
Professor Dr. Ulisses Neves Rafael ( UFS )
_______________________________________
Professora Dra. Lina Maria Brando de Aras (UFBA)
_______________________________________
Suplente:
Professor Dr. Wilson Jos Ferreira de Oliveira (UFS)
______________________________________
So Cristvo-Sergipe
2010
i
2
FICHA CATALOGRFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA CENTRAL
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE
S237c
Santos, Marcelo
A construo do Museu de Arte Sacra de So Cristvo (SE) :
agentes e prticas no campo do patrimnio sergipano / Marcelo
Santos. So Cristvo, 2010.
161f. : il.
Dissertao (Mestrado em Sociologia) Ncleo de Ps-
Graduao em Cincias Sociais, Universidade Federal de Sergipe,
2010.
Orientador: Prof. Dr. Hippolyte Brice Sogbossi
1. Sociologia da arte. 2. Museu de Arte Sacra de So Cristvo -
Sergipe. 3. Patrimnio artstico - Sergipe. I.Ttulo.
CDU 316.7:7(813.7)
3
Agradecimentos
Ao meu orientador o professor Dr. Hippolyte Brice Sogbossi pelo cuidado de me
recolocar no caminho quando me desviava, sempre com a preocupao de no impor diretivas,
mas propor um dilogo. Estendo meus agradecimentos aos professores Ulisses Neves Rafael,
Frank Marcon e Lina Maria Brando de Aras.
Aos funcionrios do Museu de Arte Sacra de So Cristvo, principalmente, Izabel
Cristina, Conceio, Rita, Selma e Denise, que contriburam de forma relevante para o acesso
s fontes e ao mundo dos museus e suas dimenses.
Telma Rosita, Rosa Macrio, Roslia dos Santos, Frei Enoque, Maria Jos
Faustino (irm Zez) e Raimundo Bezerra Lima (paj Raimundo).
Arquidiocese de Aracaju, por acolher nossas solicitaes e viabilizar nosso
acesso s fontes sob sua guarda.
s equipes do Arquivo da Universidade Federal de Sergipe, do Memorial da
Universidade Tiradentes, do Instituto Histrico e Geogrfico de Sergipe e do Instituto Dom
Luciano Cabral Duarte.
amiga Joceneide Cunha, por ampliar minhas perspectivas sobre a pesquisa e sobre a
vida, atravs de suas leituras do texto e conselhos generosos.
minha companheira de jornada Walkria e ao pequeno Gabriel que dividiram comigo
os momentos alegres e difceis. A esses, somaram-se dona Nivalda, minha querida me,
Edileide, Wellington, Rosenaldo, seu Fausto, dona Marielza, o amigo Anselmo e a professora
Vernica Nunes. A eles dedico esse trabalho.
ii
4
Resumo
O principal objetivo deste estudo consiste em analisar a formao de uma configurao de
agentes e as prticas por eles utilizadas para instituir e manter o Museu de Arte Sacra da cidade
de So Cristvo (MASC), localizado no estado de Sergipe. A base emprica desta pesquisa
composta, principalmente, por fontes escritas e orais submetidas s metodologias da crtica
histrica, da histria oral, do mtodo indicirio e do esboo biogrfico. Sob a inspirao do
conceito de configurao do socilogo Norbert Elias, constatamos que foi formada, a partir de
1974, uma configurao social integrada por um grupo de agentes vinculados ao governo do
estado de Sergipe, Igreja Catlica e Universidade Federal de Sergipe (UFS). As relaes
pessoais e o discurso de preservao da memria, da histria e da identidade religiosa dos
sergipanos foram os princpios que contriburam para a formao dessa rede social. Baseados
nestes princpios, esses agentes utilizaram prticas de preservao do patrimnio cultural de
acordo com o contexto que estavam inseridas as instituies, nas quais estavam posicionados. A
presena desses agentes nesta configurao, e suas prticas, se revelaram como uma
possibilidade de distino social. Ainda como resultado dessa configurao, os bens culturais
que corriam risco de serem dilapidados foram preservados, mesmo que em alguns momentos
estas prticas de preservao tenham gerado lutas em torno das identidades de comunidades em
alguns municpios sergipanos.
Palavras-chave: Museu de Arte Sacra de So Cristvo; agentes; prticas.
iii
5
Abstract
The main objective of this study consists of analyzing the formation of a configuration of agents
and the practical ones for them used to institute and to keep the Museum of Sacra Art of the city
of So Cristvo, located in the state of Sergipe. The empirical base of this research is
composed, mainly, for sources written and prays submitted to the methodologies of critical the
historical one, of verbal history, the indication method and the biographical sketch. Under the
inspiration of the concept of configuration of sociologist Norbert Elias, we evidence that it was
formed, from 1974, a social configuration integrated by a group of entailed agents the
government of the state of Sergipe, to the Church Catholic and the Federal University of
Sergipe (UFS). The personal relations and the speech of preservation of the memory, the history
and the religious identity of the peoples from Sergipe had been the principles that had
contributed for the formation of this social net. Based in these principles, these agents had in
accordance with used practical of preservation of the cultural patrimony the context that were
inserted the institutions, in which were located. The presence of these agents in this
configuration, and its practical, if had disclosed as a possibility of social distinction. Still as
resulted of this configuration, the cultural goods that ran risk to be embezzled had been
preserved, same that at some moments these practical of preservation have generated fights
around the identities of communities in some cities from Sergipe.
Key Words: Museum of Sacra Art; agents; practical.
iv
6
Lista de Figuras
Figura 1: Dom Jos Vicente Tvora e o Governador Lourival Batista........................76
Figura 2: Fachada do MASC.......................................................................................79
Figura 3: Visitantes no interior do MASC....................................................................80
Figura 4: Dom Luciano e outro padre diante do Museu La Plata, Uruguai, 1947........82
Figura 5: Dom Luciano diante do Museu do Prado, Espanha,1955.............................82
Figura 6: Dom Luciano diante do Museu do Luvre, Frana, 1956...............................82
Figura 7: El Greco, Metropolitan Museum, EUA.........................................................83
Figura 8: Museu Santa Sofia, Turquia, 1954................................................................83
Figura 9: L Aurige, Museu de Delfos, Grcia.............................................................83
Figura 10: Conjunto So Francisco-SE.........................................................................85
Figura 11: Fachada do Museu de Arte Sacra de So Cristvo-SE...............................85
Figura 12: Compndio dos Franciscanos......................................................................88
Figura 13: Carto telefnico.........................................................................................90
Figura 14: Carto Postal. .............................................................................................90
Figura 15: Dom Luciano e o Ministro Reis Veloso......................................................96
Figura 16: Dom Luciano recebendo o ttulo de comendador pelo Presidente Mdici..96
Figura 17: Lourival Batista e Ronivon ............................................................................98
Figura 18: Reunio do Conselho Diretor da UFS (1967). Em destaque Dom Luciano..100
Figura 19: Dom Luciano e o governador Paulo Barreto (1973).................................103
Figura 20: Organograma da administrao do MASC ..............................................136
Figura 21: Organograma da administrao do MASC a partir de 1985.....................141
v
7
Lista de grficos e quadros
Grfico 1 Distribuio do agrupamento de bens no acervo do MASC......................124
Grfico 2 Distribuio temporal dos bens do acervo do MASC...............................125
Grfico 3 Origem dos bens do acervo do MASC......................................................126
Quadro 1- Museus e casa de cultura nas dcadas de 1960 e 1970..............................104
Quadro 2- Tipologia do Acervo do MASC...................................................................123
Quadro 3- Municpios de Origem do Acervo do MASC...............................................128
Quadro 4- Relao de parentesco e amizade nos museus sergipanos a partir da dcada de
1980...............................................................................................................................143
Lista de Mapas
Mapa 1- rea de procedncia do Acervo do MASC....................................................130
Mapa 2- Jurisdio da Arquidiocese de Aracaju..........................................................130
vi
8
Sumrio
Introduo.........................................................................................................................9
Captulo 1: Do singular ao plural: a construo da identidade nacional no campo do
patrimnio brasileiro .....................................................................................................23
1.1 Vestgios de uma teia ..............................................................................................27
1.2 Identidades e prtica preservacionista.....................................................................30
1.3 Os museus e a identidade nacional ........................................................................36
1.4 Criao do Servio do Patrimnio Histrico e a identidade nacional........................45
1.5. meia luz...............................................................................................................55
1.6. A ditadura militar e o campo cultural....................................................................58
Captulo 2: A construo de um museu.......................................................................67
2.1 O Clero e o campo cultural....................................................................................69
2.2 O padre e o intelectual.............................................................................................81
2.3 Uma visita ao museu: histria, memria e identidade..........................................85
2.4. O lugar do Museu...................................................................................................92
2.5 Construindo a teia...................................................................................................96
2.6 A dcada dos museus.............................................................................................103
2.7 Relaes de foras ...............................................................................................106
Captulo 3: A construo de um discurso sobre a identidade sergipana................112
3.1 Impresses sobre o MASC....................................................................................115
3.2 Tipologia do Acervo............................................................................................121
3.3. Formas de Aquisio: Vozes e silncios............................................................126
3.4. Administrao e funcionrios do MASC............................................................134
3.5 Os funcionrios.....................................................................................................145
Consideraes finais.....................................................................................................148
Fontes............................................................................................................................152
Referncias bibliogrficas...........................................................................................156
vii
9
Introduo
Em um estudo anterior, mostramos possibilidades de utilizao do Museu de
Arte Sacra da cidade de So Cristvo (MASC), no Estado Sergipe, como uma instncia
na qual pode ser aplicado um dispositivo pedaggico para a promoo do ensino de
histria da cultura afro-sergipana. A abordagem se restringiu no mbito da rea de
metodologia do ensino de Histria. Tratava-se de uma contribuio para a efetivao de
prticas educativas solicitadas pela Lei n 10.639/03, que tornou obrigatrio o ensino de
Histria da frica e de Cultura Africanas e Afro-brasileiras nas escolas. Focalizamos
nossas anlises em parte do acervo da referida instituio, as imagens sacras
relacionadas s experincias religiosas dos afro-sergipanos no campo do catolicismo,
nos perodos colonial e imperial (SANTOS, 2008).
Durante a pesquisa, identificamos a escassez de estudos sobre a histria do
museu e de seu acervo. Como resultado, refletimos sobre os limites que esta carncia
poderia impor no s aos pesquisadores e professores de Histria, mas, tambm, aos
profissionais de outras reas do saber que venham a colocar o MASC como uma
referncia em seus estudos ou como uma das suas prticas pedaggicas. Assim, o
conhecimento parcial sobre os processos de instituio e manuteno do museu e de seu
acervo, se no foi um obstculo instransponvel para o xito do trabalho realizado,
apresentou-se como desafio a ser enfrentado posteriormente. Diante disso, a posio do
museu no campo do patrimnio, os agentes e as relaes sociais referentes estes
processos foram negligenciados na pesquisa citada.
Dentre s diversas possibilidades de anlise que esses processos sugerem,
resolvemos retomar a questo anterior neste estudo, no s no sentido de historiciz-los,
mas, principalmente, compreender os agentes e as prticas sociais neles envolvidos.
Alm da escassez de estudos, dois outros motivos presidiram a nossa opo por esse
tipo de abordagem. O primeiro, foi a incurso preliminar s fontes; o segundo, foi um
conjunto de leituras tericas realizadas no campo da Sociologia que se mostrou
pertinente para tratar o assunto. Na leitura inicial da documentao, observamos a
preocupao dos agentes responsveis pela constituio do acervo, criao e
manuteno do museu, em destacar a importncia da instituio no que se refere
10
preservao da histria, da memria e da identidade religiosa dos sergipanos. Contudo,
estas fontes se apresentavam como vestgios, vozes sufocadas, peas desarticuladas de
um quebra-cabea a ser montado e preenchido; fios de uma teia que precisavam ser
identificados com mais preciso, relacionados e unidos para compor um texto, um
discurso possvel sobre o passado que contribusse para expandir a nossa compreenso
sobre os processos sociais referentes constituio e reconstruo de memrias e
identidades no campo do patrimnio cultural.
Na operao de entendermos este emaranhado de fios, nosso cabedal terico e
metodolgico necessitava ser enriquecidos com estudos em campos de conhecimentos
que nos fornecesse instrumentos para no s descrever a histria do MASC, mas que
tambm identificasse e analisasse processos e prticas culturais que pareciam emergir
da documentao consultada.
Frisamos que no estamos simplificando o conhecimento histrico a um simples
desfile de acontecimentos organizados numa perspectiva linear, nem to pouco,
diminuindo as possibilidades de leituras sobre os processos sociais em diferentes
tempos e espaos que este conhecimento pode proporcionar, apesar da escassez da
produo histrica brasileira neste campo (JULIO, 2008: 10). Caso assim
procedssemos estaramos ignorando as diversas contribuies de historiadores e de
cientistas sociais que j demonstraram a complexidade e a riqueza deste tipo de
conhecimento.
Podemos mencionar Roger Chartier, que se autodenomina como sendo um
pesquisador que se preocupa em estudar as relaes entre discursos e as prticas sociais
e se interessa pelos limites e possibilidades tericas e metodolgicas da Histria, alm
de apontar o dilogo que os historiadores devem ter com as questes sociolgicas
(2002: 7-18). Porm, as primeiras fontes consultadas nos convidaram para a elucidao
de uma complexa teia de relaes sociais cujo nosso percurso no mestrado de
Sociologia contribuiu para a execuo dessa tarefa, ou ao menos, nos ajudou a lanar
um olhar sobre essa realidade social, que no se restringia ao espao do MASC. Logo,
abria-se a oportunidade de adentrarmos numa questo extensamente debatida na teoria
social e na sociedade contempornea, a construo de identidades culturais (HALL,
2005: 7), num espao social especfico, o campo do patrimnio.
11
Num primeiro momento, os processos de instituio e manuteno do museu e
seu acervo poderiam ser pensados enquanto objetos de interesse exclusivo de
historiadores pois, numa anlise diacrnica, eles podem ser situados em um recorte de
espao e de tempo bem delimitados: a cidade de So Cristvo na dcada de 1970.
Contudo, este tipo de anlise no privilgio da Histria. Alm disso, o espao e o
tempo na historiografia contempornea recente j no so mais os critrios que
garantem a plausibilidade do conhecimento histrico.
Socilogos como Pierre Bourdieu e Norbert Elias tambm utilizaram a
perspectiva diacrnica para compreenderem seus objetos de estudo. Para Bourdieu
(2004: 26) o espao social produto das lutas histricas, portanto, a compreenso das
prticas culturais dos agentes devem ser historicizadas, at os instrumentos analticos,
conceitos e categorias, que so utilizados no campo cientfico no devem ser isentos
deste tipo de exame. A Sociedade dos Indivduos(1994) e Mozart: Sociologia de um
gnio (1995) so dois trabalhos de Norbert Elias que podem ser integrados s obras do
campo da sociologia histrica.
Acrescentando-se ao rol dos que incentivam investigaes deste tipo, podem ser
citados outros estudiosos, como por exemplo, Raymond Willams e Peter Berger. Em
uma anlise sobre a sociologia da cultura, perspectiva da qual esta pesquisa tambm se
aproxima, Raymond Willams (2008: 33-4) refora a possibilidade de uma abordagem
sociolgica se concentrar em analisar relaes sociais em tempos mais recuados. Por
sua vez, Peter Berger afirma que quando o objeto do socilogo construdo tendo como
referncia o passado, torna-se difcil distingui-lo de um historiador (1996: 30). nesta
tnue fronteira de dilogo entre as disciplinas que procuramos nos situar.
De qualquer forma, quer seja no campo da Histria ou da Sociologia, tais
processos necessitam ser problematizados para se constiturem em objeto cientfico.
Pierre Bourdieu et al. (2005) nos auxiliam no entendimento de que o objeto sociolgico
construdo levando em considerao as evidncias empricas e os conhecimentos
tericos disponveis no campo do saber. Estes elementos permitem a construo do
problema a ser investigado.
Foi a partir destas orientaes, consolidadas pelas leituras e discusses nas
disciplinas do mestrado, que retornamos consulta dos documentos sobre o Museu de
12
Arte Sacra de So Cristvo e identificamos um conjunto de indcios que no s
forneciam possibilidades de reconstruirmos os processos acima citados, como tambm
evidenciavam as condies sociais em que eles foram efetuados bem como os agentes e
suas prticas no campo do patrimnio cultural. Portanto, comeava a ser esboada a
construo de um objeto sociolgico em que uma anlise resultante de abordagens
diacrnica e sincrnica poderia ser efetuada.
Apesar de adotarmos a perspectiva sociolgica importante destacar que da
construo do objeto de pesquisa teia que este texto se constitui existe a convergncia
de diversas possibilidades, alimentadas por interesses e categorias analticas fornecidas
tambm por outros campos, como o da Histria, da Museologia e da Antropologia. No
Brasil, h mais de 20 anos profissionais destas reas vm desenvolvendo pesquisas
sobre museus e colees.
Para a museloga Maria Clia Teixeira Santos, a perspectiva multidisciplinar e
interdisciplinar fundamental para uma reflexo terica e para as prticas dos
profissionais da rea (1993: 9). Neste sentido, so diversos os olhares que os
pesquisadores podem lanar sobre o museu, principalmente se compactuarmos com a
perspectiva do antroplogo Jos Reginaldo Gonalves ao afirmar que este espao social
constitudo, social e simbolicamente, pelo tenso entrecruzamento de diversas relaes
entre grupos tnicos, classes sociais, naes, categorias profissionais, pblico,
colecionadores, artistas, agentes do mercado de bens culturais, agentes do Estado
(2005: 255).
Visto neste enfoque, o museu pode ser compreendido como uma arena de lutas
culturais e palco de diversas relaes e prticas sociais. Assim, conforme assinalou o
muselogo Mrio Chagas, existe um sinal de sangue em cada museu (1999: 19). Foi
possivelmente com a intuio desse sinal de sangue e com a identificao de prticas
de preservao de bens culturais, reveladoras de conflitos sociais implcitos, que a
sociloga Myriam Seplveda Santos (2006) estudou o Museu Histrico Nacional e o
Museu Imperial de Petrpolis, ambos localizados no Estado do Rio de Janeiro. Ela
mostrou, entre outros aspectos, como foram construdos os discursos expositivos dessas
instituies. Destacou, ainda, no personalismo de seus diretores, a nfase na construo
de uma narrativa mtica sobre o passado e as estratgias de domnio do campo em
13
questo. Tal sinal de sangue tambm pode ser visto na pesquisa da historiadora Lilia
Moritz Schwarcz (2007) quando analisou a construo de representaes raciais no
Brasil em instituies culturais, dentre elas os museus, na segunda metade do sculo
XIX e nas primeiras dcadas do sculo XX.
Na parca produo sergipana sobre museus e sobre o campo do patrimnio
cultural, raros so os momentos em que possvel perceber que estes espaos foram
criados por agentes sociais de carne e osso, que tm objetivos, desempenham funes,
ocupam determinadas posies e defendem interesses individuais e coletivos.
Em um dos estudos sobre museus, Joselita Maria Santos identificou problemas
de compreenso do discurso expositivo do Museu Afro-brasileiro, situado na cidade de
Laranjeiras. Para a pesquisadora, as prticas de exposio dos bens culturais do museu
no proporcionavam uma comunicao adequada entre o museu e seu pblico, fato que
pode ser atribudo, dentre outros fatores, pela presena de objetos descontextualizados
(SANTOS, 1997: 73). Contudo, apesar de aguar a nossa expectativa quanto aos
agentes construtores desse discurso, o referido estudo no aprofunda as anlises sobre
esses agentes nem a posio que eles ocupam no campo cultural. Isto importante frisar
porque os discursos expositivos dos museus no so neutros, fazem parte de uma
determinada concepo de sociedade, de tempo, de espao, de agentes sociais. Este tipo
de anlise tambm carente em outros estudos sobre instituies congneres sergipanas
(LIMA, 1994). Em consequncia, a compreenso da relao entre museu e poder
obscurecida, o sinal de sangue desprezado.
As lutas culturais que envolvem os museus e seus agentes podem ser percebidas
tambm atravs da anlise da prtica de visita. No campo dos estudos sociolgicos,
particularmente nas pesquisas que deixam evidentes os interesses sociais que esto por
trs do museu, possvel citar um dos trabalhos de Pierre Bourdieu. Em meados da
dcada de 1960, Pierre Bourdieu e Alain Darbel (2007), empreenderam uma pesquisa
em museus de artes em alguns pases europeus. O objetivo geral daquele estudo era
analisar o pblico dessas instituies, em particular, a prtica de visitas. Os autores
chegaram concluso de que, principalmente devido s diferenas de escolarizao, as
classes mdias e superiores frequentavam e usufruam mais dos museus do que as
classes populares. Dentre os motivos que explicam esse fenmeno estava a questo do
14
habitus. Este definido por Pierre Bourdieu como um princpio gerador e unificador
que retraduz as caractersticas intrnsecas e relacionais de uma posio em um estilo de
vida unvoco, isto , em um conjunto unvoco de escolhas de pessoas, de bens, de
prticas (2001, 21).
Aplicado ao campo cultural, habitus o que define prticas sociais como o
gosto, as condutas e a frequncia dos agentes nos museus, ou seja, pode ser entendido
como sendo a competncia inculcada em determinados grupos de agentes para se
apropriarem das obras expostas de uma determinada forma, chamada de legtima. Neste
sentido, os museus desempenham a funo de inculcar nos agentes que os visitam uma
determinada conduta e disposio, contribuindo, assim, para a reproduo da sociedade.
Uma outra prtica em que possvel percebermos um sinal de sangue nos
museus a constituio do acervo. A formao do acervo de um museu se realiza
atravs de pesquisas, troca, compra, emprstimos ou doaes. Contudo, no mbito do
campo do patrimnio cultural, estas prticas tambm revelam tenses, disputas
envolvendo agentes, grupos sociais e instituies.
A literatura museal, da qual citamos alguns exemplos, principalmente os estudos
ancorados numa perspectiva interdisciplinar, permite a compreenso de diferentes
dimenses da vida social: esttica, liberdade, coero, tempo, identidade, riqueza,
histria, esquecimento, memria, poder, etc. Leituras e releituras so possveis de serem
efetuadas, visto que os museus so instituies sociais dinmicas.
O exame das prticas culturais de adquirir, pesquisar, preservar e expor se
constitui em uma oportunidade de revelar tais dimenses, em tempos e espaos
distintos. Contudo, diante da impossibilidade de evidenciarmos estas dimenses em sua
plenitude, ou em um s golpe, e mesmo correndo o risco de simplificar o exame de uma
instituio e de um campo to complexo, operamos no sentido de nos aproximarmos da
dimenso social-histrica, ou seja, enquanto arena de lutas culturais. Tal aproximao se
inspira na leitura das instituies museais propostas por Mrio Chagas. Este autor, ao
destacar a multiplicidade de expresses dos museus, reconhece que essas instituies
esto atravessadas por interesses polticos diversos, por dispositivos de maior ou
menor controle social, por disputas de memria e poder (CHAGAS, 2009: 51).
15
As prticas de adquirir, preservar e expor bens culturais, principalmente em
museus, revelam uma teia social cuja compreenso exige uma anlise que leve em
considerao no apenas as relaes dentro do museu, mas as mltiplas relaes
estabelecidas num espao social mais amplo, o campo cultural. Estas perspectivas
contriburam para compreendermos a configurao social responsvel pela criao e
manuteno do Museu de Arte Sacra de So Cristvo.
Nesta empreitada o uso da categoria de configurao, segundo o socilogo
Norbert Elias, se apresentou como um instrumento analtico importante na medida em
que possibilitou a compreenso das relaes sociais entre agentes situados em campos
de atuao profissional distintos. De acordo com Norbert Elias (1994: 22) as pessoas se
ligam com as outras, inclusive com as desconhecidas, por laos invisveis, sejam estes
laos de trabalho e propriedade, sejam de instintos e afetos. Assim, nem sempre o
exerccio de uma mesma atividade profissional, a mesma ascendncia tnica, o mesmo
nvel de renda e de educao garantem a coeso de um grupo social e a defesa de seus
interesses (ELIAS: 2000). Logo, agentes que aparentemente se situam em campos
sociais to distintos, podem, a partir de alguns interesses comuns formarem uma
configurao especfica suficiente para criar e manter um museu. Neste sentido, uma
das questes que aflora nessa proposta de leitura sobre a sociedade a indagao sobre
as foras sociais que fazem com que os indivduos constituam uma configurao
especfica, e, consequentemente construam representaes sobre suas identidades e se
distingam de outros grupos. Elias entende foras sociais como foras exercidas pelas
pessoas, sobre outras pessoas e sobre elas prprias (ELIAS, 2005: 17). Foi nesta
perspectiva que procuramos compreender como foi constituda uma configurao social
- composta por agentes com profisses, posies sociais e nveis de instrues
diferentes capaz de instituir e manter o MASC.
A pesquisa em foco teve como principal objetivo analisar a formao de uma
configurao de agentes e suas prticas que tornaram possvel a criao e a manuteno
do Museu de Arte Sacra da cidade de So Cristvo, no Estado de Sergipe.
Constatamos que, principalmente, entre as dcadas de 1970 a 1990, estes agentes
utilizaram um conjunto de prticas e estratgias para a construo de uma representao
sobre a identidade, a memria e a histria religiosa dos sergipanos e colocar o museu,
16
bem como alguns dos seus agentes, numa posio de destaque no campo do patrimnio
cultural sergipano.
As prticas de preservao de alguns desses agentes, como as do ex-arcebispo de
Aracaju Dom Luciano Cabral Duarte e do ex-governador de Sergipe Lourival Batista,
atingiam no o MASC, mas tambm, o campo do patrimnio cultural sergipano de uma
forma geral. De acordo com Norbert Elias, numa configurao social para os
ocupantes de certas posies sociais, o carter individual e a deciso pessoal podem
exercer considervel influncia nos acontecimentos histricos (1994: 51). Nesta
perspectiva, esses agentes tinham capital social para transitar em diferentes campos da
sociedade, o que permitiu o estabelecimento de uma rede de relaes importantes para a
instituio e manuteno do MASC. As aes desses dois agentes, originalmente
posicionados nos campos religioso e poltico, respectivamente, so indcios de uma das
caractersticas do campo do patrimnio cultural brasileiro, qual seja, a sua
interdependncia em relao a outros campos da sociedade.
Em termos gerais, existem homologias estruturais e funcionais entre os campos
(BOURDIEU, 2007: 67). O grau de dependncia do campo do patrimnio cultural, e
principalmente de algumas instituies como os museus, em relao a outros campos
nos conduziu a levar em considerao as aproximaes, os pontos de convergncias,
enfim, as homologias com outros campos, como o religioso e o poltico. Isto no
significa que negligenciamos as especificidades desses campos, mas devemos ter a
clareza que, no caso brasileiro, as fronteiras do campo do patrimnio com outros
espaos sociais so porosas, tnues.
Assim, estas aproximaes entre os campos sociais que exercem influncia sobre
as prticas relativas ao patrimnio cultural brasileiro sugeriram o uso do conceito de
campo, desenvolvido por Pierre Bourdieu, como uma inspirao terica. Ou seja, nesta
condio, tomamos a concepo de campo deste autor entendendo-a como um espao
social em que os agentes, instalados em instituies ou no, procuram manter ou
conquistar uma posio de destaque em relao a outros agentes construindo e
utilizando discursos e prticas conforme seus interesses.
17
Foram realizadas pesquisas documentais nos arquivos das seguintes instituies:
Museu de Arte Sacra de So Cristvo (MASC); Arquivo Central da Universidade
Federal de Sergipe (UFS), Cria Metropolitana da Arquidiocese de Aracaju(CMA),
Instituto Dom Luciano Cabral Duarte (IDLC); no Instituto Histrico e Geogrfico de
Sergipe (IHGS) e no Centro de Documentao Lourival Batista da Universidade
Tiradentes (UNIT). Alm dessas instituies, empreendemos duas incurses aldeia
dos ndios xoc, no municpio de Porto da Folha, e s cidades de Poo Redondo e Porto
da Folha, em Sergipe. Nestes municpios realizamos entrevistas com alguns agentes no
sentido de evidenciarmos questes relacionadas formao do acervo do MASC. Nas
instituies de pesquisas entramos em contato com fontes escritas como: ofcios, cartas,
livros de registros, documentos, notcias de jornais, projetos e publicaes de catlogos.
Estas informaram, por exemplo, as relaes estabelecidas entre o MASC e outras
instituies culturais e prticas de preservao dos agentes situados no campo do
patrimnio sergipano. Foram importantes para a nossa pesquisa os registros fotogrficos
preservados no IDLC e no Centro de Documentao Lourival Batista (UNIT).
Na secretaria do MASC, a consulta a alguns documentos e aos livros de registros
de doaes foi restrita, sendo necessria uma autorizao do presidente da Fundao
Museu de Arte Sacra de Sergipe, que disponibilizou para a consulta tais documentos,
contudo, o caminho entre a autorizao e a efetivao da pesquisa no museu nem
sempre foi percorrido sem os entraves inerentes a um tipo de documentao que outrora
no poderia ser consultada. De fato, apesar das tentativas, no foi possvel consultarmos
os registros de doao dos bens culturais que formam o acervo da instituio. Ainda
sobre as fontes de pesquisa, preciso registrar que a documentao do Centro de
Documentao Lourival Batista se encontra, at o momento, em processo de
catalogao, ficando comprometida a referncia completa sobre as mesmas neste
trabalho.
Apesar de termos um conjunto significativo de fontes escritas, no dispensamos
a utilizao da metodologia da histria oral. As fontes orais foram construdas atravs
de entrevistas com alguns dos agentes relacionados histria do MASC. Tais
evidncias so fundamentais para a reconstruo das redes sociais, de esboos
biogrficos e para a compreenso de motivaes das prticas dos agentes (FRANK,
18
1999: 110). Foi com o auxlio deste tipo de fonte que percebemos como a amizade, a
confiana e as relaes de parentesco fizeram parte de um conjunto de valores que
contriburam para a constituio da configurao social responsvel pela
institucionalizao e manuteno do MASC.
Fizemos uso de entrevistas semiestruturadas com agentes ligados ao MASC ou
s instituies situadas no campo do patrimnio sergipano. Tnhamos como objetivo
entrevistar todas as ex-diretoras do museu, contudo, apesar de alguns contatos firmados,
condies alheias a nossa vontade no possibilitaram a concretizao do nosso
propsito. princpio, no houve recusa, porm, a espera por um momento oportuno
nos fez prosseguir sem realizar todas as entrevistas planejadas.
A cautela dos entrevistados do MASC, como o acesso restrito a alguns
documentos escritos, nos fez adotar uma estratgia de preservar suas identidades em
alguns momentos do nosso texto. Assim, optamos por substituir alguns nomes por letras
do alfabeto. Este cuidado ficou evidente principalmente ao elaborarmos o terceiro
captulo deste trabalho. Ressaltamos que a entidade administrada por uma instituio
de carter privada, portanto, alguns atos administrativos e questes foram preservados
pelo fato de alguns documentos no estarem disponibilizados em arquivo aberto ao
pblico ou a consulta dos mesmos serem efetuadas de forma restrita. Espervamos
contar com as entrevistas de Irm Wilma, primeira diretora do museu, e de Paulo
Barreto, um dos governadores que contriburam para a criao do MASC. Estas
entrevistas, j transcritas, fizeram parte de um estudo biogrfico realizado pela
professora Gizelda Moraes (2008) sobre Dom Luciano Cabral Duarte, o principal
idealizador do MASC, e se encontram, at o momento, indisponveis para consulta
pblica no IDLC. O acesso a elas poderia fornecer mais informaes sobre a fundao e
os primeiros anos do museu. Contudo, parece-nos que os danos no foram to grandes,
ao menos, no que se refere ao alcance dos objetivos definidos.
A disperso dessas fontes em diversos institutos de pesquisas, particulares e
pblicos, parece-nos a percepo de um indcio dos diversos campos em que nossos
agentes transitavam1. Esta evidncia pode ser constatada com a multifacetada
1 Alm da especificidade do objeto de pesquisa, no podemos esquecer que ainda predomina nas nossas
instituies de pesquisa a deficincia de instrumentos de pesquisas que permitam ao pesquisador o acesso
19
personalidade de Dom Luciano Cabral Duarte. No geral os agentes envolvidos na
criao e manuteno do MASC eram religiosos, polticos, intelectuais e funcionrios
pblicos que atuaram em seus respectivos campos. Contudo, o trabalho em torno da
construo e preservao da histria, da identidade e da memria religiosa dos
sergipanos, atravs do MASC, funcionou como elemento aglutinador na formao de
uma configurao especfica.
Neste sentido, enfatizamos, mais uma vez, que optamos por nos referir noo
de campo como um espao social em que os agentes esto posicionados de acordo com
seus capitais simblicos e agem, e procuram interpretar a realidade social- conforme o
habitus especfico do referido campo, em torno da luta por um tipo especfico de bem,
conforme o socilogo francs Pierre Bourdieu teoriza, tal uso indicado, em Sergipe,
aos campos religioso, poltico e intelectual em suas formas completas.
No que diz respeito metodologia, optamos por perseguir vestgios materiais e
imateriais deixados pelos agentes que nos permitiram compreender suas prticas e
representaes sociais. Por vezes, so os pequenos indcios, as fontes opacas e escassas,
os silncios e os gestos, na documentao consultada e nas entrevistas realizadas, que
revelam tramas sociais importantes de um agente, de uma sociedade. Neste sentido,
compreendemos a nfase que o paj dos ndios xoc, dava posio social por ele
ocupada, bem como o fato de ele fazer questo de colocar o cocar quando solicitamos
uma fotografia na nossa primeira visita Ilha de So Pedro2.
Em outra entrevista realizada na cidade de Porto da Folha, desta vez com a
irm Zez, observamos o semblante de contentamento que a entrevistada demonstrou
e o sorriso expressado ao afirmar ser ndia xoc com muito orgulho3. No
desconsiderando a problemtica da tnue fronteira que existe entre representao e
contedo no processo de interpretao da cultura, como nos alerta o antroplogo
Clifford Geertz (1978: 26), questo que alis deve ser considerada at no momento da
transcrio do relato oral como j discutimos em outro momento (SANTOS, 2008), tais
s fontes de uma forma mais eficaz. Entretanto, preciso observa que esta no uma situao apenas do
nosso Estado, se estende vrios cantos do pas (PINSKY, 2006: 42-52). 2 Entrevista concedida por Raimundo Bezerra Lima(paj Raimundo) na Ilha de So Pedro, municpio de
Porto da Folha (SE), em 16 de julho de 2009. 3 Entrevista concedida por Maria Jos Faustino (irm Zez) na cidade de Porto da Folha (SE), em 13 de
julho de 2009.
20
indcios revelam a nfase dada por esses agentes no reconhecimento das suas
identidades, da posio social e o uso de objetos culturais como indicativo das mesmas.
No menos relevantes foram os rascunhos de um dos textos que integrou um dos
catlogos do MASC. Neste rascunho a autora descreve o seu descontentamento com
agentes que deveriam cuidar do patrimnio e no o fizeram. Esta observao e outras
dificuldades citadas para manter o MASC, no esto inseridas no catlogo publicado
pela instituio, mas sobreviveu como um registro de uma ao humana situado no
campo em que atuam a memria e o esquecimento.
Priorizamos utilizar o mtodo indicirio proposto pelo historiador italiano Carlo
Ginzburg (1991) para identificar e interpretar as fontes utilizadas na nossa pesquisa.
Diversas so as reas de conhecimentos em que este mtodo pode ser aplicado.
Acreditamos que a sociologia uma delas, pois de acordo com Peter Berger o
socilogo o homem que tem de ouvir mexericos mesmo a contragosto, o homem que
sente tentao de olhar atravs de buracos de fechadura, ler correspondncias alheias,
abrir armrios fechados (BERGER, 1996: 29).
Porm, muitos desses mexericos, registrados no nosso dirio de campo
permaneceram como segredos de famlia. Revel-los, privilgio de cientistas que se
ocupam em pesquisar perodos remotos em que as leis sobre a preservao da vida
alheia no os alcanam. De qualquer forma, o mtodo indicirio aplicado amplamente
no campo da Histria pode, portanto, coadunar com a perspectiva sociolgica. Este
mtodo foi til, pois algumas das fontes so documentos administrativos (ofcios,
convnios, projetos, rascunhos) que, aparentemente no deixam evidentes as estratgias
utilizadas pelos agentes numa determinada figurao do campo considerado. Este
mtodo foi utilizado, juntamente com a Crtica Histrica. Esta consiste, basicamente, no
estabelecimento da autenticidade e sinceridade dos testemunhos.
Os agentes selecionados para as entrevistas, alm dos citados anteriormente,
foram os seguintes: diretores e funcionrios do MASC; ex-integrante do Conselho
Diretor do Museu (UFS) e membro do Conselho Estadual de Cultura do Estado de
Sergipe. O critrio de seleo dos entrevistados foi a participao deles nas teias que
formaram a configurao dos agentes responsveis pela criao e manuteno do
21
MASC. Conforme tentamos demonstrar, um dos principais elos que une esses agentes
so os laos de amizades estabelecidos ao longo dos anos, que inclusive, parece ser,
tambm um dos requisitos importantes na ascenso social de alguns destes agentes no
espao social em que atuaram, consequentemente, fazendo parte do habitus do campo.
Selecionados alguns agentes, fizemos esboos biogrficos. Estes procuraram se
distanciar da tentativa de compreend-los do bero ao tmulo.
Afastamo-nos, portanto, da difcil tarefa de traar uma biografia do agente com a
ambio de abarcarmos toda a complexidade e amplitude de uma vida (BORGES, 2001:
3). Interessou-nos, conforme as orientaes do socilogo Pierre Bourdieu (2001), situ-
los no espao social em que estavam inseridos, trazendo elementos das suas trajetrias
que nos permitissem compreender suas posies no campo cultural e as relaes sociais
nele vividas.
Assim, realizamos esboos biogrficos que procuraram articular elementos
diacrnicos e sincrnicos. Na identificao da posio de alguns desses agentes, diante
de um contexto histrico social limitador das aes individuais e coletivas
democrticas, percebe-se a construo de uma configurao social que tornou possvel a
criao e manuteno do MASC. Entretanto, se o recorte temporal da pesquisa
compreende parte da Ditadura Militar brasileira, e apesar de estabelecermos algumas
relaes de alguns agentes com o alinhamento ao regime poltico, nossa proposta de
estudo no teve como preocupao principal trazer elementos biogrficos da ao deles
no campo poltico, apesar de que, em alguns casos, isto seja inevitvel. Procuramos nos
deter nas suas aes no campo cultural.
Diante dos milhares de visitantes que conheceram o Museu desde a sua criao,
em 1973, consultamos os registros de visitantes que foram selecionados pelos
responsveis pelo MASC para deixarem suas declaraes no chamado Livro de
Impresses. Selecionamos 78 agentes, de um universo no muito amplo de pouco mais
de 150 registros de pessoas importantes que foram agraciadas pelos funcionrios do
MASC para registrarem suas impresses sobre o Museu, entre 1974 2005. Exclumos
os registros pouco legveis, aqueles que s continham assinatura ou suas impresses
apresentavam muita semelhana com as dos agentes j selecionados. Ressaltamos que o
tratamento dado a estes registros foi qualitativo. Nossa preocupao foi mostrar como
22
estas impresses foram utilizadas pelos agentes responsveis pela instituio como uma
prtica importante na manuteno do MASC e na distino de seus idealizadores e
mantenedores. Este procedimento foi utilizado numa tentativa de construirmos uma
interpretao mais cuidadosa no terceiro captulo ao operarmos com os dados
disponveis retirados desta fonte.
A dissertao composta de trs captulos. No primeiro, cujo titulo Do
singular ao plural: a construo da identidade nacional no campo do patrimnio
brasileiro, situaremos os museus nas discusses em torno da construo da identidade
nacional, principalmente, durante o processo de estruturao do campo do patrimnio
cultural brasileiro, foco principal do captulo. Em seguida apresentaremos o contexto
cultural e poltico que contribuiu para a fundao do MASC.
No segundo captulo, A construo de um museu, faremos um exame da
formao da configurao social que tornou possvel a criao e a manuteno do
MASC. Neste captulo, destacaremos os principais agentes desta configurao e suas
prticas no campo do patrimnio cultural sergipano. Finalmente, no terceiro captulo, A
construo de um discurso sobre a identidade sergipana, destacamos como a posio
deste museu no campo do patrimnio cultural sergipano est relacionada ao trabalho
dos agentes do MASC na construo do discurso sobre a preservao da histria, da
memria e da identidade religiosa dos sergipanos. Procuramos, ainda, analisar as
caractersticas do acervo da instituio, as prticas de aquisio dos objetos e a prtica
administrativa da instituio. Nesta pesquisa, o recurso noo de estratgia revela as
lutas culturais entre os agentes no campo especfico. Para Michel Certeau as estratgias
escondem sob clculos objetivos a sua relao com o poder que os sustenta, guardado
pelo lugar prprio ou pela instituio (1994: 47). Assim, a concepo de prtica
utilizada nesta pesquisa est articulada com a noo de estratgia utilizada por Michel
Certeau.
23
Captulo 1
Do singular ao plural: a construo da identidade nacional no campo do
patrimnio brasileiro
As instituies responsveis pela seleo, aquisio, pesquisa e divulgao de
bens culturais indicativos de memrias e de identidades de grupos sociais ocupam um
lugar de destaque na sociedade brasileira contempornea. Assistimos a aes
protagonizadas pelo poder pblico e pela sociedade civil em torno da constituio,
manuteno e desenvolvimento de instituies como arquivos, memoriais, centros
culturais e museus em todas as regies do territrio nacional.
No mbito do governo federal, uma parte significativa dessas aes podem ser
atribuda intelectuais e aos agentes ligados, profissionalmente, ao Ministrio da
Cultura (MinC) e s instituies a ele subordinadas, como o Instituto do Patrimnio
Histrico e Artstico Nacional (IPHAN) e a Fundao Palmares. No caso da sociedade
civil, perceptvel as iniciativas de grupos e movimentos sociais que reivindicam o
atendimento de suas demandas no campo do patrimnio cultural, consequentemente, o
reconhecimento das suas identidades e do direito de ter suas memrias e histrias
reveladas. Neste caso, podemos citar as presses exercidas no referido campo pelos
grupos tnico-raciais, como os afrodescendentes e indgenas (FONSECA, 2003: 62).
Neste quadro, no menos relevantes so as aes dos governos estaduais e
municipais para a promoo de instituies voltadas para a preservao de bens
culturais. No Estado de Sergipe, no final da primeira dcada do sculo XXI, dois
eventos esto relacionados ao contexto nacional de ampliao de aes pblicas neste
campo e no envolvimento de outros agentes que, raramente eram convocados para atuar
na deciso do que deveria ser preservado. O primeiro o incentivo do Poder Executivo
para a candidatura da Praa So Francisco, na cidade de So Cristvo, para conseguir a
chancela de Patrimnio da Humanidade, concedida pela Organizao das Naes
Unidas para a Educao, a Cincia e a Cultura (UNESCO). O segundo a
reinaugurao do Palcio Olmpio Campos, na cidade de Aracaju, capital do Estado.
A Praa, alm de ser um vestgio de uma prtica administrativa do governo
espanhol durante a Unio Ibrica (1580-1640) no Brasil, se caracteriza por abrigar um
24
conjunto de edificaes construdas a partir do sculo XVII voltadas, principalmente,
para prticas religiosas catlicas. Por sua vez, o Palcio, agora com a chancela de
museu, foi construdo em 1856 com o propsito de servir de moradia para os
governadores e como palco das suas prticas administrativas4, em um perodo em que
os sancristovenses ainda praguejavam por ter perdido a condio de capital da Provncia
de Sergipe para Aracaju em 1855 (SANTIAGO, 2009: 95).
Situadas no campo do patrimnio cultural e submetidas aos critrios de seleo
prprios deste espao social, aps serem tombadas estas construes foram
ressacralizadas e ressignificadas pelos agentes encarregados de gerenciar o campo do
patrimnio, ou seja, transformaram-se em objetos de elaborao de representaes e
prticas sobre a histria, a memria e a identidade de agentes e grupos sociais. Foram
iadas categoria de patrimnios histricos e institudas tambm como objetos de
distino e consagrao social de intelectuais e polticos5.
A Praa So Francisco foi palco de importantes festas religiosas e procisses
solenes desde o perodo colonial. Nela, fiis de diferentes condies scio-econmicas e
origens tnico-raciais se aglomeravam e se distinguiam, em suas respectivas irmandades
religiosas, em torno da Festa de Nosso Senhor dos Passos, da Procisso de Cinzas e da
Procisso de Corpus Christi, dentre outras. Algumas dessas festas j no ostentam a
visibilidade social que tinham em tempos de outrora, conforme relata Serafim Santiago
(2009). Com exceo da Festa de Nosso Senhor dos Passos, as outras, apesar de no
sucumbirem por completo, se constituem em vestgios de teias de diversas prticas e
representaes sociais que atualmente so lembradas e reconstrudas, cotidianamente,
atravs da arquitetura religiosa e dos discursos elaborados por guias tursticos e
4 O Palcio continua a ser utilizado como espao para os atos administrativos do governo. A sua
reinaugurao como museu, segue a tendncia do que ocorreu em outros palcios como no Distrito
Federal, na Bahia, em Alagoas e em Pernambuco. Como afirmou o governador do Estado de Sergipe, o
ambiente servir tambm para receber lideranas, entregar condecoraes, e receber, ao menos uma vez
por semana cidados e autoridades: apud: Jornal da Cidade, 26 mai. 2010; p. B7. 5 Em meio s comemoraes alusivas ao feito da ascenso da Praa categoria de Patrimnio Mundial,
destacam-se s prticas de elogios s autoridades pblicas e civis, promessas de condecoraes queles
que se dedicaram ao xito do empreendimento (Cf: Jornal da Cidade, 03 de agosto de 2010,
B3;http://pracasaofrancisco.se.gov.br/novidades/2010/08/praca-em-sergipe-e-o-novo-patrimonio-cultural-
dahumanidade/;http://www.infonet.com.br/cultura/ler.asp?id=101779&titulo=cultura Acessados em 03-
08-2010). Est prtica, comum no Brasil, no raramente, esmaece os esforos de tantos outros agentes
que ao longo da histria, contriburam para a insero dos bens sergipanos na categoria de patrimnio
cultural. Alm disso, sinaliza os diversos usos do patrimnio cultural pelo campo poltico.
http://pracasaofrancisco.se.gov.br/novidades/2010/08/praca-em-sergipe-e-o-novo-patrimonio-cultural-dahumanidade/http://pracasaofrancisco.se.gov.br/novidades/2010/08/praca-em-sergipe-e-o-novo-patrimonio-cultural-dahumanidade/http://www.infonet.com.br/cultura/ler.asp?id=101779&titulo=cultura
25
especialistas no trato com as questes patrimoniais ou so encenadas e recriadas, com
menos pompa, pelos fiis em momentos especficos do calendrio religioso catlico.
Somam-se aos intelectuais, polticos e especialistas do campo do patrimnio,
tantos outros agentes que, por diferentes motivos, reivindicam a preservao deste
patrimnio em nome do turismo, da memria, da histria e da identidade sergipana,
como professores dos ensinos bsico e superior, operadores do turismo e parte da
populao.
As polticas pblicas relativas ao patrimnio no alcanaram ainda, de forma
eficaz, tantos outros agentes que se apropriam deste patrimnio de maneira diferente do
que almejam seus formuladores, ao ponto de no considerarem os benefcios
econmicos, polticos e culturais que este patrimnio pode trazer para as suas vidas e
questionarem o grau de sentimento de pertencimento a ele. Este um dos desafios que
as instituies que operam e cuidam do patrimnio cultural no Brasil- a exemplo do
IPHAN- enfrentam, no sentido de contribuir para a democratizao deste campo e
justificar o retorno social dos recursos aplicados na preservao do patrimnio
(MICELI, 2001: 363).
no campo da construo e apropriaes do patrimnio, e nas lutas envolvendo
lembranas e esquecimentos, que podem ser compreendidos os posicionamentos dos
agentes sociais sobre a preservao de bens culturais. Sobre este aspecto podemos citar
alguns exemplos que ilustram as relaes de foras existentes no campo do patrimnio.
Ao ser solicitada por um jornal para testemunhar sobre o ttulo de Patrimnio Mundial
concedido Praa, uma balconista comentou: Eu soube desse prmio da Unesco, todo
mundo fala nisso. Mas eu no gostei foi da forma que fizeram a praa. Tiraram os
bancos, s tem uma rvore. Fica parecendo uma praa de eventos6. Este relato destaca
o carter utilitrio da praa ser um espao em que as pessoas desenvolvem prticas de
sociabilidades, como as conversas nos bancos sombra das rvores7. Diferente do que
ocorre com as representaes construdas pelos grupos sociais envolvidos com as
questes patrimoniais, a comparao da Praa que esta balconista estabelece tem como
6 Jornal da Cidade, Aracaju, 03 de agosto de 2010.
7 Ao observar alguns registros fotogrficos da praa possvel perceber que ela j teve, em alguns
momentos de sua histria, um maior nmero de rvores, apesar de predominar no seu conjunto a escassez
das mesmas.
26
referncia outras praas contemporneas utilizadas pelo poder pblico e pela sociedade
civil para realizar eventos com um pblico amplo. A memria desta moradora diz
respeito a outras experincias, diferente das que pretendem construir, sedimentar e
inculcar os especialistas do patrimnio nas suas construes sobre o passado, com suas
diferentes estratgias. Como destacou o historiador Le Goff apodera-se da memria e
do esquecimento uma das grandes preocupaes das classes, dos grupos, dos
indivduos que dominaram e dominam as sociedades histricas (2000: 12).
Sobre a mesma Praa, o mesmo jornal que colheu o relato da balconista, deu a
seguinte informao: to logo soube da notcia, o padre da igreja So Francisco
interrompeu a missa e levou todos os fiis para o centro da praa para uma orao que
comoveu a todos os moradores de So Cristvo8. Diferentemente do que o jornal
divulgou, a missa do domingo estava prestes a acontecer quando o proco da cidade
soube da notcia. Segundo declarao de moradores da cidade, os fiis foram
convidados a ir at a praa e, de mos dadas, orarem como forma de agradecimento ao
ttulo alcanado. Feito este esclarecimento, o que nos interessa constatar que o
posicionamento do padre coaduna-se com a prtica que a Igreja Catlica espera dos seus
especialistas responsveis pela gesto dos bens de salvao ao lidar com questes
culturais. Filho de seu tempo, ou seja, formado dentro da perspectiva do Conclio
Vaticano II(1962-1965), este agente orientado a perceber a importncia da cultura na
vida da comunidade e a promov-la, sob diferentes formas que se apresentarem, desde
que no esteja dissociada dos valores cristos9. Alm disso, o posicionamento do proco
diante do reconhecimento da Praa So Francisco como Patrimnio da Humanidade
compreensvel pela insero da Igreja Catlica, no Brasil, nas questes sobre o
patrimnio histrico, pois grande parte do patrimnio arquitetnico protegido
composto pelos bens relacionados Igreja Catlica, a exemplo do prprio Conjunto
Franciscano, no qual se encontra o MASC.
8 Jornal da Cidade, Aracaju, 03 de agosto de 2010.
9 O posicionamento que os padres devem ter diante das questes culturais na sociedade contempornea
foram explicitados na Constituio Pastoral Gaudim Et Spes sobre a Igreja no Mundo de Hoje, mais
especificamente, na Seo I, Situao da Cultura no Mundo Atual. EM: COSTA, Loureno (org.).
Documentos do Conclio Vaticano II (1962-1965). So Paulo: Paulos, 1997. p.606-620.
27
1.1 Vestgios de uma teia
O movimento que foi organizado em torno da transformao da Praa So
Francisco em Patrimnio da Humanidade exemplifica a complexidade da compreenso
das prticas preservacionistas no campo do patrimnio na sociedade contempornea,
pois nele novas e antigas prticas esto presentes. A nfase na participao popular no
movimento em defesa deste patrimnio, registrada atravs de abaixo-assinados em prol
da candidatura, um dos indcios de uma prtica preservacionista recente em Sergipe,
ao menos no que diz respeito a sua amplitude e estratgias utilizadas para conseguir as
adeses. Mesmo que se trate do atendimento de uma das exigncias da UNESCO, e que
j existissem dispositivos legais nacionais que garantem a participao popular na
indicao de bens representativos das suas histrias, das memrias e das identidades,
essa ao, juntamente com outras estratgias utilizadas pelos organizadores do
movimento, como a intensificao da participao dos estudantes nos eventos
organizados, demonstrou a necessidade de um dilogo entre as entidades responsveis
pela preservao dos bens culturais e os grupos sociais a quem esses bens possam
interessar10
.
Os critrios e as justificativas para a insero de um bem na categoria de
Patrimnio da Humanidade so diferentes dos utilizados para elev-lo categoria de
patrimnio local e nacional e, consequentemente, os discursos e as estratgias dos
agentes representantes dos pases interessados em alcanar o ttulo almejado tendem a
se adequar ao espao social no qual a disputa ocorre11
. Logo, estamos destacando
apenas um dos aspectos que foram considerados para a obteno do ttulo, o
envolvimento da populao com o bem local.
Neste sentido, a demonstrao dos possveis benefcios que o resultado deste
movimento traria para a populao local, por exemplo, esbarra na falta de uma resposta
10
As atividades desenvolvidas junto populao local, em parte, visavam atender a um dos critrios (vi)
que justificavam a solicitao do ttulo junto a UNESCO. Neste sentido, os proponentes deveriam mostrar
a relevncia do espao para a manifestao das expresses culturais da populao. Cf : Proposio de
Inscrio da Praa So Francisco em So Cristvo/SE na lista do Patrimnio Mundial.EM:
pracasaofrancisco.se.gov.br/ downloads/ .p.15 .Acessado, agosto de 2010. 11
Na construo do discurso que justifica a obteno do ttulo, mais do que a importncia da praa para a
memria e a histria local e nacional foi destacado a sua singularidade, nobreza e harmoniae os
valores excepcionais universais Cf: Proposio de Inscrio da Praa So Francisco em So
Cristvo/SE na lista do Patrimnio Mundial. EM: pracasaofrancisco.se.gov.br/downloads/ Acessado,
agosto de 2010.
28
definitiva do poder pblico, de uma forma geral, e de algumas instituies especficas,
como o IPHAN e a Secretria Estadual de Cultura, a questionamentos apresentados a
partir da dcada de 1940, quando as primeiras construes da cidade foram tombadas.
No campo do turismo, uma das atividades que poderiam responder, em parte,
demanda da sociedade por benefcios vindos de uma poltica de preservao do
patrimnio, at o final da primeira dcada do sculo XXI, moradores e turistas
convivem com a falta de uma infraestrutura adequada para o desenvolvimento dessas
atividades (ARAGO, 2009). Assim, levando em considerao a fala da balconista e a
ao do padre acima mencionadas, nas prticas preservacionistas, em diferentes tempos
e espaos em que o patrimnio surgiu como uma prtica social especfica de um campo,
as perguntas clssicas feitas por Carlos Lemos (2004) - Por que preservar? O que
preservar? Como preservar? - continuam sendo importantes pontos de reflexes tanto na
academia quanto em outros espaos sociais.
No caso da reinaugurao do Palcio do Governo, houve um tempo em que as
vozes dos trabalhadores e de outros segmentos da sociedade civil rompiam as portas e
janelas do Palcio para solicitarem o atendimento das suas demandas12
. Contudo deste
passado da Praa Fausto Cardoso, local em que se encontra o Palcio-Museu Olmpio
Campos (PMOC), poucos vestgios da presena dos trabalhadores so evidenciados.
Essas vozes, apesar de insistentes, dependendo dos seus propsitos, podem apenas
refletir nos espelhos mudos que protegem as fotografias dos governadores que ali
passaram, possivelmente reverberaram nos visitantes consumidos pelo efeito de
deslumbramento do lugar, e, talvez, sejam sufocadas por objetos, doados pelos
familiares dos governadores13
, que lutam para ter seu espao no discurso expositivo do
PMOC. Discurso este que procura afetar o visitante e conduzi-lo a uma compreenso de
si e do mundo em que ele est inserido, inculcando-lhe uma determinada forma de
leitura sobre a sociedade e esquecendo outras. Na perspectiva do governador do Estado,
o PMOC um dispositivo pedaggico para os sergipanos aprenderem a edificar o
12
Um ex-presidente de um grmio estudantil, testemunhou seu orgulho sobre a restaurao e novo uso do
Palcio e se lembra da sua participao em diversas manifestaes, sempre em frente a este Palcio.
Grifo nosso. Cf: http://www.palacioolimpiocampos.se.gov.br/noticia/em-dois-dias-de-funcionamento-o-
pmoc-recebeu-aproximadamente-550-visitantes. Acessado em 24-07-2010. 13
http://www.palacioolimpiocampos.se.gov.br/noticia/palacio-museu-olimpio-campos-recebe-fotografias-
de-importantes-figuras-politicas-do-estado-de-sergipe. Acessado em 21-06-2010
http://www.palacioolimpiocampos.se.gov.br/noticia/em-dois-dias-de-funcionamento-o-pmoc-recebeu-aproximadamente-550-visitanteshttp://www.palacioolimpiocampos.se.gov.br/noticia/em-dois-dias-de-funcionamento-o-pmoc-recebeu-aproximadamente-550-visitanteshttp://www.palacioolimpiocampos.se.gov.br/noticia/palacio-museu-olimpio-campos-recebe-fotografias-de-importantes-figuras-politicas-do-estado-de-sergipe.%20Acessado%20em%2021-06-2010http://www.palacioolimpiocampos.se.gov.br/noticia/palacio-museu-olimpio-campos-recebe-fotografias-de-importantes-figuras-politicas-do-estado-de-sergipe.%20Acessado%20em%2021-06-2010
29
futuro, atravs do conhecimento do passado14
. Para o presidente da Fundao Nacional
de Arte (FUNARTE), o PMOC est relacionado a uma redescoberta da identidade, da
histria e criao de uma autoestima e um olhar para o futuro15
.
Provavelmente este Museu uma das instituies sergipanas que mais
exemplificam a tnue e tensa fronteira entre os campos da cultura e da poltica,
costurada ao longo de dcadas. As novas tecnologias que compem seu discurso
expositivo e a proposta museolgica utilizadas que enfatiza a preservao, pesquisa e
divulgao de bens culturais-, dividem espao, at o momento, com prticas sociais de
outrora, inerente dinmica da maioria dos museus histricos pblicos brasileiros,
como a celebrao de determinadas memrias em detrimentos de outras; a utilizao de
instituies como instncias consagradoras de agentes polticos e intelectuais; e o
reforo da dependncia de intelectuais com relao ao campo poltico, no sentido de
instituir e manter instituies museais.
A forma como est prevista o recrutamento dos agentes responsveis pelos
principais cargos administrativos do POMC amplia a margem de interferncia dos
governantes no desenvolvimento das atividades da instituio, visto que os cargos por
eles ocupados so comissionados16
e, portanto, podem ser preenchidos por agentes cujas
posies estejam mais alinhadas com a configurao poltica do momento que com as
demandas da populao objetivo maior das polticas de preservao- ou as
competncias tcnicas que algumas funes exigem. Esta prtica exercida, at o
momento, em outras instituies museais sergipanas administradas pelo poder pblico,
como o Museu Histrico de Sergipe (1960), situado na cidade de So Cristvo e o
Museu Afro-Brasileiro (1978), localizado na cidade de Laranjeiras. Possivelmente, esta
prtica no exclusiva das instituies culturais sergipanas contemporneas, pois ela
acompanha a histria das instituies pblicas brasileiras, de uma forma geral.
Analisando as relaes entre o Estado e os intelectuais entre 1930 1945, durante o
Regime do Estado Novo, especificamente, no que se refere ascenso aos cargos
14
Jornal da Cidade, 26 mai. 2010; p. B7. 15
http://www.palacioolimpiocampos.se.gov.br/noticia/ministro-da-cultura-fica-impressionado-com-
estrutura-do-pmoc: acessado em 23-06-2010. 16
SERGIPE. Lei N 6.874, de 11 de janeiro de 2010. Dispe sobre a criao do Palcio-Museu
Olmpio Campos, e d providncias correlatas. Cf: Dirio Oficial N 25917, do dia 15/01/2010. Aracaju.
Dirio Oficial, 2010.
http://www.palacioolimpiocampos.se.gov.br/noticia/ministro-da-cultura-fica-impressionado-com-estrutura-do-pmochttp://www.palacioolimpiocampos.se.gov.br/noticia/ministro-da-cultura-fica-impressionado-com-estrutura-do-pmoc
30
pblicos pelos intelectuais desprovidos de trunfos especficos que alguns cargos
exigem, Srgio Miceli, chegou a seguinte concluso:
Se para a elite intelectual do regime possvel apreender os liames
entre sua competncia escolar e profissional e as modalidades de
trabalho que ela assume, nesse segundo grupo, o acesso s posies
repousa, quase por completo, nas provas de amizade e, por
conseguinte, na preservao dos anis de interesses de que so
legtimos porta-vozes e os principais beneficirios. (2001: 212)
Neste sentido, como observou Norbert Elias (1994) os instrumentos de poder
que um agente controla podem fornecer a margem de deciso que ele tem sobre a
configurao. Na medida em que, na relao de foras entre os agentes situados no
campo poltico e no campo cultural, os primeiros se destacam por deter e fornecer as
condies bsicas materiais e institucionais que tornam possveis a manuteno de
determinadas instituies culturais, abre-se a possibilidade dos agentes polticos
ampliarem o seu poder. Inclusive, no que diz respeito s possibilidades de intervir e
tomar decises em discusses relativas aos aspectos museolgicos e museogrficos das
instituies, nas quais no tem, ou no lhes so concedidas, teoricamente, a condio de
especialistas, visto que no detm trunfos acadmicos para se posicionarem neste
espao especfico ou no dispe de um habitus que lhe permita uma ao legtima.
Contudo, no se pode afirmar que os agentes inseridos nas instituies culturais
configuradas dessa forma, no tenham possibilidades de exercer suas atividades da
forma que acreditam que devam ser exercidas, mas, nas condies j relatadas, quanto
mais fortes forem os laos que unem os agentes situados no campo poltico com os
agentes situados no campo cultural, menores so as possibilidades de liberdade de ao.
neste contexto que compreendemos a crtica, na dcada de 1990, de alguns
muselogos, como Antnio Oliveira, endereadas aos pequenos grupos que utilizam os
museus como instrumentos de reproduo de seus interesses (SANTOS, 1993:6).
1.2 Identidades e prtica preservacionista
Tanto a Praa So Francisco quanto o Palcio Museu Olmpio Campos tem suas
existncias justificadas, dentre outros fatores, por serem apresentados como patrimnios
arquitetnicos e bens culturais constituintes da histria, da memria e da identidade dos
31
sergipanos. Na sociedade contempornea as questes sobre as identidades culturais
colocam desafios aos agentes encarregados de gerenciar os bens no campo do
patrimnio cultural na medida em que novas demandas e novos agentes so inseridos
neste espao. De acordo com Stuart Hall (2005: 10), a identidade do indivduo da
sociedade ps-moderna se caracteriza por ser descentrada, mvel, fragmentada, assim,
pode-se conjecturar que os bens culturais oferecidos a estes agentes se diversificam e a
concorrncia entre os agentes e instituies encarregadas de ofertar estes bens tenha
uma outra dinmica.
A compreenso da emergncia dessas identidades e a sua relao com as prticas
preservacionistas podem ser estabelecidas tomando como referncia a anlise do
socilogo Norbert Elias (1994). Para ele, na estrutura das sociedades contemporneas a
identidade-eu, ou seja, a individualidade altamente mais valorizada do que a
identidade-ns, o que as pessoas tm mais em comum, o coletivo. Esta valorizao da
identidade-eu no pode ser tomada como algo natural. Na Antiguidade, mais
especificamente, na Repblica Romana, a identidade-ns de cada pessoa, ou seja, o
sentimento de pertencer famlia, tribo e ao Estado era forte. Com a integrao
econmica dos Estados atuais, o problema da relao dos indivduos com a sociedade, a
exemplo de suas identidades sociais, se coloca, em alguns aspectos diversamente do que
50 anos atrs - narra o socilogo na dcada de 1980.
As identidades, portanto, so construdas e reconstrudas social e historicamente.
Consequentemente, o conceito normativo de pertencimento, adotado pela poltica de
preservao do patrimnio cultural predominante no Brasil at 1980, questionvel. Os
pertencimentos so mltiplos. nesta perspectiva que se pode compreender as crticas
direcionadas s instituies museolgicas que tm a guarda de bens culturais
representativos de diversos grupos sociais, mulheres e afrodescendentes e constroem
discursos expositivos que negligenciam ou sub-utilizam esses bens. nesse movimento,
que pode ser entendido a diversidade tipolgica dessas instituies como uma das aes
de determinados grupos sociais em identificar, preservar, pesquisar e expor bens
indicativos de suas memrias, histrias e identidades.
De acordo com a noo de configurao, para que um bem cultural possa ser
caracterizado como indicativo patrimonial da identidade de um grupo necessrio que
32
exista a aceitao dos integrantes desse grupo e que esses bens possam ser reconhecidos
pela sociedade em que o grupo est inserido. Entretanto, deve-se tambm compreender
que a identificao de um grupo com esse bem dinmica, mvel. Dependendo da
configurao do campo em questo esse bem pode, em um determinado tempo e espao,
ser um elemento identitrio desse grupo social ou no.
Retornemos Praa So Francisco. Nas antigas instalaes da Ordem Terceira
de So Francisco de Assis funciona, desde 1973, o Museu de Arte Sacra de So
Cristvo. Seu acervo formado por centenas de objetos sacros relacionados
religiosidade catlica. So mveis, jias, quadros ou telas, imagens de santos e santas,
dentre outros objetos culturais, produzidos entre os sculos XVII, XVIII, XIX e XX.
Dentre estes, destacamos uma imagem do sculo XVIII, a de Nossa Senhora do Rosrio
que pertenceu Irmandade dos Homens Pretos do Rosrio17
. Exposta no Museu, ela
pode ser apropriada como um exemplar do barroco sergipano, pode suscitar lembranas
de uma prtica cultural de imposio dos dogmas catlicos a grupos tnico-raciais
distintos, ou ser representativa de prticas culturais (re)construtoras de memrias,
identidades e histrias de africanos e seus descendentes.
Neste sentido, para que a imagem de Nossa Senhora do Rosrio seja um
indicativo de identidade dos negros da cidade de So Cristvo fundamental que eles
reconheam a imagem enquanto indicativo da sua identidade e tenham a imagem
reconhecida, pelos outros grupos sociais, como pertencente a sua identidade, a exemplo
do que ocorreu com os negros da irmandade do Rosrio no sculo XIX (OLIVEIRA,
2008). Neste caso, estamos pensando na ideia de um tipo de identidade, a tnica-racial.
Para Fredrik Barth os traos diacrticos como o estilo de vida, a lngua, a moradia e os
padres de moralidades podem ser apontados como elementos formadores das
identidades dos grupos tnicos (1998: 194). Portanto, a imagem de Nossa Senhora do
Rosrio pode ser considerada um elemento de identidade dos afro-sergipanos, ou de So
Cristvo ou de alguma outra localidade.
17
As irmandades religiosas podem ser definidas como associaes religiosas catlicas de leigos, cuja
finalidade principal era promover o culto a um santo padroeiro, bem como desenvolver prticas de
assistncia espiritual e material aos seus integrantes e populao das sociedades nas quais estavam
inseridas. No Brasil, elas existiram desde os tempos coloniais e podem ser classificadas segundo critrios
tnicos-raciais, sociais e econmicos adotados para a insero de seus membros. Assim, existiam
irmandades de homens brancos, negros e pardos. A Irmandade do Rosrio da cidade de So Cristvo era
composta por negros escravos e sua presena registrada desde o final do sculo XVII.
33
No mesmo museu encontrava-se tambm, at 1980, uma imagem de So Pedro
procedente da Igreja de So Pedro, no municpio de Porto da Folha/SE, mais
especificamente, nas terras em disputa entre os ndios xoc e uma famlia de
latifundirios da regio. Vencida a primeira fase do litgio, em 1979, os ndios
retomaram a referida imagem do museu e a levaram para as terras reconquistadas. A
imagem foi levada com grande solenidade e com muito jbilo do povo da ilha
(REGNI, 1987: 218). Temos, portanto um indcio de que os ndios fizeram uso de um
bem cultural que contribuiu para o reconhecimento de sua identidade e de suas terras.
Assim, se reapropriaram de uma forma diferente de um bem que at ento estava
exposto no museu com o propsito de provocar outros sentidos18
.
Apesar das imagens de Nossa Senhora do Rosrio e de So Pedro serem,
potencialmente, indicativos patrimoniais das identidades tnicas de grupos sociais
sergipanos, em determinados momentos e espaos, quando integraram o acervo do
MASC elas passaram por uma homogeneizao do sentido dos valores, ou seja, foram
transformados em bens representativos da histria, da memria, da tradio e da
identidade religiosa dos sergipanos. Da a importncia dos mediadores culturais, como
os agentes situados no campo do patrimnio, na construo de um determinado
discurso.
Diante das consideraes precedentes, aceita-se a constatao de que os bens
culturais, quer sejam materiais ou imateriais, so pontos de referncia que estruturam a
memria, so indicadores empricos da memria coletiva e das identidades dos grupos
sociais e objetos de disputas entre os agentes e instituies situados no campo. A
memria fundamenta e refora os sentimentos de pertencimento. Segundo o historiador
Jos Bittencourt,
A memria, em qualquer nvel abordado, fator de identidade e
acesso ao passado, faces de uma mesma moeda, e, portanto, objeto de
interveno poltica. Logo, a poltica da memria jogo intensamente
18
Sobre a relao entre as imagens de So Pedro e a religiosidade dos ndios xoc, bem como questes
sobre esse caso especfico, foram realizadas no ms de julho de 2009 trs entrevistas, com o padre
responsvel pela parquia na poca do retorno da imagem, com uma missionria e com o paj do povo
xoc. Todos estes agentes so considerados testemunhas oculares pois, participaram, de forma direta,
deste processo de reconhecimento.Uma anlise mais detalhada deste episdio ser efetuada numa parte do
terceiro captulo do nosso trabalho, quando estudaremos as prticas relativas ao processo de formao do
acervo do MASC.
34
disputado por competidores altamente preparados e motivados.
(2002: 207).
Nesta perspectiva, os bens patrimoniais indicativos das identidades do indivduo
se diversificam na configurao social contempornea, contrariando os esforos de
agentes e instituies que o percebe, ainda, como se sua identidade fosse imvel,
definida. Abre-se ento, um espao para que outros agentes e instituies possam
utilizar tticas e estratgias que visem atender a esta demanda e lutar por posies no
campo do patrimnio e questionar discursos hegemnicos. Em consequncia, os
princpios que sustentam a formao das configuraes sociais em torno da adeso a um
bem indicativo das suas identidades so postos como desafios a serem objeto de
reflexes no campo cientfico. A Fundao Palmares, os museus de religies
evanglicas, indgenas, de religies afro-brasileiras, podem ser citados como exemplos
de novos agentes e instituies que procuram responder a esta nova demanda. Estes
agentes operam conforme outras mudanas na sociedade contempornea, como a
pluralidade e a diversidade do campo religioso brasileiro, que contribui para que os
agentes encarregados de gerenciar os bens de salvao lancem tticas de tomada de
posio em outros campos. A opinio de uma internauta sobre a criao do Museu
Evanglico do Amap pode ser inserida neste contexto19
. Ela se expressa nos seguintes
termos:
Eu acho relevante a iniciativa da pessoa que pensou esse projeto de
museu para os evanglicos {sic}, uma vez que nos somos pessoas que
temos tambm{sic} o que preservarmos se tratando de cultura, o que
na maioria das vesez{sic} acontece que no temos no nosso meio
iniciativa nesse sentido e com isso a nossa indentidade{sic} acaba
perdendo no tempo.20
Para Ulpiano Bezerra Menezes (1992) no existem exibies ingnuas ou
neutras de artefatos em instituies como os museus histricos e antropolgicos. Por
sua vez, Jos Bittercourt (2002) demonstrou as disputas sociais que ocorreram no
19
Cristina Bruno (1996: 296) ao discutir sobre a formao das colees de objetos no sculo XVII na
Europa, aponta os interesses de catlicos e protestantes neste campo. Desconhecemos, at o momento,
anlises mais aprofundadas sobre o interesse dos protestantes no campo da preservao de bens culturais.
Inclusive seria interessante uma pesquisa de opinio sobre a pertinncia da conservao e preservao de
bens culturais que levasse em considerao a crena religiosa dos entrevistados. 20
Cf: http://www.lucianacapiberibe.com/2006/11/29/museu-evangelico-do-amapa/ Acessado em 21-07-
2010.
35
campo do patrimnio cultural brasileiro, tendo como um dos seus principais palcos, o
IPHAN. Por outro lado, as polticas culturais dos movimentos sociais podem ser lidas
como desafiadores das polticas culturais dominantes, podendo suas demandas ir alm
dos ganhos materiais e institucionais recebidos, desafiando os discursos sobre o
patrimnio que tentam justificar os ganhos econmicos que determinadas prticas
podem gerar; e a sociedade civil no um bloco homogneo posto que existem relaes
de poder no seu interior (ALVAREZ, 2002), ou seja, possvel que dentro de
determinados movimentos sociais, existam divergncias sobre os bens indicativos das
identidades dos indivduos que deles faam parte. Logo, os agentes situados neste
campo disputam posies sociais, constroem representaes e discursos que visam
manter ou modificar uma dada realidade social.
Assim, os discursos sobre a construo de identidades atravs das prticas de
preservao de bens culturais devem ser lidos a partir de um quadro mais amplo, pois,
desta maneira, poderemos compreender as relaes sociais estabelecidas em uma
sociedade especfica e a formao de configuraes que tornam possveis determinadas
prticas sociais, como a institucionalizao e manuteno dos museus e a preservao
de bens culturais. Nestas prticas, seguindo a inspirao de Mrio Chagas (1999)
existem sinais de sangue, ou seja indcios de lutas culturais.
Como os critrios para a definio de bens culturais representativos de um pas
ou grupos sociais, bem como os interesses, so dinmicos e construdos historicamente,
h um trabalho de busca de consenso constante, elaborado pelos que tm posies
privilegiadas no campo. Neste caso, h a utilizao de estratgias como a propaganda e
o recrutamento de intelectuais e polticos que, com seus capitais sociais, possibilitam a
plausibilidade de suas representaes e prticas. Neste sentido, as prticas de
preservao de bens culturais esto inseridas num espao social em que o discurso de
uma identidade, tradio, histria e memria comum se apresenta como elemento
fundamental na dinmica do campo do patrimnio cultural, justificando, inclusive, a
manuteno ou mudana das posies dos agentes no espao social.
A anlise dos usos do patrimnio cultural como atrativos tursticos, indicativos
de identidades, de memrias e histrias de grupos sociais como dispositivo pedaggico
e como estratgias de distino social de agentes so algumas das possibilidades de
36
compreender como os agentes e instituies sociais se relacionam e se posicionam em
um campo de lutas culturais. No se pretende negar outras possibilidades de leituras
sobre o patrimnio, mas destacar prticas, agentes e relaes sociais no to
enfatizadas, ao menos quando se discute o campo do patrimnio cultural em Sergipe,
um esforo vlido. Trata-se, portanto de uma tentativa de olhar realidades sociais por
trs de bastidores conforme aconselha o socilogo Peter Berger (1996: 40). Este olhar
se torna necessrio, visto que, os museus brasileiros se encontram numa crise de
identidade e de vocao (JULIO, 2008: 9). Esta consiste no esgotamento de antigos
modelos e indefinio nos rumos a serem tomados. Situao que se torna mais
complexa com a emergncia de novos atores com suas identidades e demandas a exigir
outras prticas no campo cultural.
1.3 Os museus e a identidade nacional
Situados no campo do patrimnio, os museus, principalmente os histricos,
arqueolgicos e de artes, esto inseridos nos debates sobre a construo de identidades
culturais. Por seu turno, os museus antropolgicos, os museus de histria natural e de
cincias em geral, esto situados nas discusses sobre o lugar que devem ocupar na
defesa do meio ambiente e no desenvolvimento cientfico e tecnolgico das sociedades
em que esto localizados. O prprio meio ambiente pode ser lido como um elemento
relevante na construo e exerccio de determinadas prticas culturais importantes para
a construo e reconstruo das identidades culturais de grupos sociais. Reconhecemos
que esta descrio de funes insuficiente para termos uma viso satisfatria da
posio dos museus no espao social por no contemplar, por exemplo, a diversidade
tipolgica e as diferentes representaes sociais que podem ser construdas sobre essas
instituies e sobre os processos sociais a elas relacionados ao longo dos anos. Como
exps o antroplogo Mrio Chagas (2007),
Para alm de suas possveis serventias polticas e cientficas museu e
patrimnio so dispositivos narrativos, servem para contar histrias,
para fazer a mediao entre diferentes tempos, pessoas e grupos.
nesse sentido que se pode dizer que eles so pontes, janelas ou portas
poticas que servem para comunicar e, portanto, para nos humanizar.
37
Apesar desta amplitude de leituras possveis sobre os museus, e de estarmos
cientes dos riscos de um tipo de anlise diacrnica, que compreende um recorte
temporal e espacial extenso, a descrio de algumas funes e os provveis usos
polticos e cientficos destas instituies sugerem a presena de discursos que procuram
justificar a existncia e a relevncia de prticas sociais referentes ao campo do
patrimnio nas sociedades contemporneas.
Um dos elementos que caracterizam o campo do patrimnio cultural a
continuidade de discursos sobre a construo de identidades, memrias e histrias. Na
trajetria dos museus brasileiros, estes discursos foram utilizados por vrios agentes,
como intelectuais e polticos, par