UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ CENTRO DE … · Monografia submetida à coordenação do curso ......

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ CENTRO DE HUMANIDADES DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA GABRIELA MEDEIROS RODRIGUES AGUIAR ENTRE O UNIVERSAL E O PARTICULAR: O DIREITO À CONVIVÊNCIA FAMILIAR E O ACOLHIMENTO INSTITUCIONAL SOB UMA PERSPECTIVA PSICANALÍTICA FORTALEZA 2016

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ

CENTRO DE HUMANIDADES

DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA

GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA

GABRIELA MEDEIROS RODRIGUES AGUIAR

ENTRE O UNIVERSAL E O PARTICULAR: O DIREITO À CONVIVÊNCIA

FAMILIAR E O ACOLHIMENTO INSTITUCIONAL SOB UMA PERSPECTIVA

PSICANALÍTICA

FORTALEZA

2016

2

GABRIELA MEDEIROS RODRIGUES AGUIAR

ENTRE O UNIVERSAL E O PARTICULAR: O DIREITO À CONVIVÊNCIA FAMILIAR E

O ACOLHIMENTO INSTITUCIONAL SOB UMA PERSPECTIVA PSICANALÍTICA

Monografia submetida à coordenação do curso

de Psicologia, da Universidade Federal do

Ceará, como requisito parcial para a aprovação

na disciplina HF025 – Monografia em

Psicologia. Área de concentração: Psicanálise.

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Karla Patrícia Holanda

Martins.

FORTALEZA

2016

3

GABRIELA MEDEIROS RODRIGUES AGUIAR

ENTRE O UNIVERSAL E O PARTICULAR: O DIREITO À CONVIVÊNCIA

FAMILIAR E O ACOLHIMENTO INSTITUCIONAL SOB UMA PERSPECTIVA

PSICANALÍTICA

Monografia submetida à coordenação do curso

de Psicologia, da Universidade Federal do

Ceará, como requisito parcial para a aprovação

na disciplina HF025 – Monografia em

Psicologia. Área de concentração: Psicanálise.

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Karla Patrícia Holanda

Martins

Aprovada em: ___/___/______.

BANCA EXAMINADORA

________________________________________

Prof.ª Dr.ª Karla Patrícia Holanda Martins

(Orientadora)

Universidade Federal do Ceará (UFC)

_________________________________________

Prof.ª Dr.ª Caciana Linhares Pereira

Universidade Federal do Ceará (UFC)

_________________________________________

Prof.ª Ms. Emilie Fonteles Boesmans

Universidade Estadual do Ceará (UECE)

4

“Nos poetas daquela família para quem a

composição é procura, existe como que um

pudor de se referir aos momentos em que,

diante do papel em branco, exercitaram sua

força.” (João Cabral de Melo Neto)

Aos meus pais, que são motivo de força,

orgulho e inspiração para mim, todos os dias.

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AGRADECIMENTOS

Esse trabalho representa para mim muito mais do que sou capaz de expressar. Ele

marca do encerramento de mais um ciclo, de um período muito importante da minha vida que

agora cede lugar para novas descobertas, novos caminhos, novos recomeços. Mas se pude

caminhar até aqui, é porque não estive sozinha. Tive ao meu lado pessoas muito especiais,

sem as quais nada teria sido possível, sendo uma prazerosa tarefa agradecê-las e dedicá-las

essa monografia.

Aos meus queridos pais, presença e conforto constante na minha vida. Foram eles que

me ensinaram a ter os pés firmes no chão, sem nunca se esquecer de às vezes abrir as asas,

porque é preciso sonhar - e sonhar sempre. Eles são os meus maiores exemplos de coragem,

sensibilidade e entrega, e de quem me orgulho todos os dias por ser filha. Não consigo colocar

em palavras minha gratidão pelo amor e pela confiança que sempre tiveram por mim, por tudo

que tiveram que abrir mão, pelo cuidado e pelo carinho de todos os momentos, desde o

princípio.

Às minhas avós e bisavó, que para mim foram sempre exemplos de mulheres fortes,

ternas e de fé, que superaram muito e estariam dispostas a muito mais se fosse preciso. Que

com sua simplicidade e sabedoria me ensinam mais do que imagino. Muito do que sou devo a

elas. Por meio delas, lembro também meus avôs, que são presença e exemplo diariamente,

ainda que não estejam mais aqui. Espero que esse agradecimento alcance o céu, para que eles

sintam o quanto eu gostaria que estivessem.

À minha irmã, Lara, minha pequena. Que é pura garra e sensibilidade, que me orgulha

ao vê-la crescer e se tornar uma mulher inteligente, linda por dentro e por fora, sempre pronta

para ajudar quem precise. Eu sei que hoje não seria nem metade do que sou se um dia ela não

tivesse chegado, se não fosse por sua companhia e amizade, todos os dias.

Aos meus tios e tias, que foram sempre pais e mães “postiços”, que estiveram

presentes em todos os momentos da minha vida, cuidando, torcendo e vibrando em cada

ocasião, a quem vou ser eternamente grata por tudo. À minha madrinha, Alaíde, fonte

inesgotável de carinho e zelo, que cuidou de mim desde o princípio até hoje e me ensinou que

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o amor não precisa de muitas palavras, mas se deixa sentir por gestos concretos. Aos meus

primos, irmãos de outras barrigas, pelo presente que foi crescer junto deles, por todos os

momentos compartilhados, pelas lições aprendidas e pelo companheirismo de sempre.

Ao meu amor, Gabriel, que acompanhou de perto os momentos mais importantes

dessa graduação. Ele que é amor, aconchego e paciência constantes, que faz do cotidiano um

lugar melhor e que vale a pena ser divido. Que caminha ao meu lado entre tantas descobertas,

angústias e felicidades, acreditando em mim quando eu mesma não consigo. Por ser fortaleza

e ternura todos os dias, deixando tudo mais simples e mais bonito.

Aos meus amigos do colégio, a quem estou unida por laços mais fortes que o tempo e

a distância, que dão leveza, segurança e colorido à vida desde antes do que sou capaz de

lembrar até os dias de hoje. Espero que nossos caminhos continuem nos conduzindo uns aos

outros. E assim, agradeço também ao Colégio Santa Cecília, do qual me orgulho em dizer que

sou filha, por ter sido sempre uma segunda casa, palco de muitos e importantes momentos da

minha vida, onde aprendi valores que me acompanham por onde vou.

Aos meus amigos da Universidade, que me acolheram generosamente desde o início, e

que dividiram comigo os trabalhos, as angústias, as alegrias, as músicas, os “vinhos” e os

intervalos de café e pão de queijo dessa graduação. Com quem muito aprendi e amadureci,

que fizeram esses anos serem muito felizes. A todos os amigos que a vida trouxe, pelos bons

momentos compartilhados, pela sorte de estarmos juntos e por conferirem mais alegria ao

cotidiano.

Ao Laboratório de Psicanálise da UFC, que foi sem dúvida meu principal espaço de

formação dentro da Universidade, lugar de tantos encontros e aprendizagem. O agradecimento

vai extensivo à sua coordenadora, Profª Laéria Fontenele, pela oportunidade de ter sido

bolsista do núcleo e pelo seu esforço incessante de transmissão da psicanálise dentro da

Universidade; e ao Miguel Fernandes, por todo ensinamento que me proporcionou dentro do

Laboratório, pelo cuidado, dedicação e amizade. À Profª Caciana Linhares, pessoa que tanto

admiro e que é de imensurável importância na minha formação ética e profissional, por ter

proporcionado tantas descobertas, oportunidades e inquietações neste processo.

À Université Lumière Lyon 2, que me acolheu durante um período da graduação, pela

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abertura e pela aprendizagem que ultrapassou os limites simplesmente acadêmicos. Às minhas

amigas que a França permitiu encontrar, com quem compartilhei as alegrias e as angústias de

se descobrir no mundo longe de casa, que, na distância, são presença.

Ao Núcleo de Psicologia do Fórum, todos os seus profissionais e estagiárias, com

quem tenho tido a alegria de conviver e aprender durante os últimos meses, pela acolhida e

oportunidade.

À Dra. Antonia Lima, promotora da 7ª Promotoria da Infância e Juventude de

Fortaleza, pela gentileza e abertura em me receber nas inspeções do Ministério Público nas

Unidades de acolhimento institucional, que foram de importância singular para este trabalho e

minha formação profissional.

Um agradecimento muito especial à Prof.ª Karla Patrícia, que tão gentilmente aceitou

orientar este trabalho, e que exerceu essa função com cuidado e maestria. É um verdadeiro

privilégio ter sido acompanhada por ela em diversos momentos da graduação, pessoa que

tenho como exemplo de profissional, em sua ética e dedicação. Agradeço imensamente por

todas as oportunidades, por todo aprendizado, pela confiança e pela amizade.

Finalmente, agradeço à minha Universidade, que foi um sonho tornado realidade,

palco de tantos momentos importantes e de muito amadurecimento. A todos os professores e

profissionais que fizeram parte desta graduação, pelas lições ensinadas, pelo esforço e

dedicação em nos transmitir conhecimento e valores éticos. À Prof.ª Emilie Boesmans e Prof.ª

Caciana Linhares que atenciosamente aceitaram o convite de ler este trabalho e compor a

banca de avaliação.

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RESUMO

As instituições de abrigamento para crianças e adolescentes no Brasil estiveram

historicamente associadas a discursos de cunho normativo, que, em linhas gerais, atribuíam à

família pobre um estigma de ameaça à ordem social, qualificando-a como inapta de

encarregar-se do cuidado e orientação de seus filhos. A legislação brasileira voltada para a

infância esteve inicialmente acompanhando estes discursos, fomentando amplas práticas de

institucionalização. No final da década de 1980, entretanto, o movimento de redemocratização

nacional conduz a uma reestruturação das normativas e políticas direcionadas para a criança e

o adolescente, reverberando também sobre a lógica das instituições de abrigamento, ao

privilegiar a convivência familiar e comunitária. O presente trabalho, fundamentado pela

psicanálise de orientação lacaniana, objetivou investigar de que modo esta poderia posicionar-

se frente aos ditames dos referidos discursos, na contramão de uma lógica excludente e

normatizante. Além disso, também pretendeu articular essas contribuições teóricas a

observações da dinâmica de instituições de acolhimento nos dias de hoje, a fim de observar a

direção que essas práticas têm tomado, após a modificação das diretrizes jurídicas que lhe

orientavam. A partir da pesquisa empreendida, observou-se que a perspectiva psicanalítica

proposta, ao tomar a família enquanto lugar privilegiado da transmissão de uma ordem

simbólica, aproxima-se do direcionamento jurídico que destaca a fundamentalidade da

convivência familiar no desenvolvimento infantil e considera sobretudo os laços afetivos

envolvidos nesta dinâmica. Esta transmissão à qual a psicanálise refere-se pode ser possível

pela marca de um interesse particular dos pais – ou de quem ocupe estas funções – sobre a

criança, favorecendo sua subjetivação enquanto sujeito desejante. No âmbito das instituições

de acolhimento, porém, percebem-se ainda muitas dificuldades de adequação às novas

diretrizes, comprometendo, dentre outros fatores, as possibilidades que a criança teria de

constituir-se psiquicamente.

Palavras-chave: Psicanálise; constituição psíquica; direito à convivência familiar e

comunitária; acolhimento institucional.

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ABSTRACT

The sheltering institutions for children and adolescents in Brazil have been historically

associated to normative discourses which attributed to the poor family a stigma of threat to

social order, qualifying it as inapt to take charge of the care and orientation of their children.

Brazilian law directed toward childhood has initially accompanied these speeches,

encouraging broad institutionalization practices. However, in the late 1980s, national

democracy movement led to a reorganization of laws and policies addressed for children and

adolescents, reverberating also on the logic of sheltering institutions, to focus on family and

community life. This paper, based by lacanian psychoanalysis, aimed to investigate how this

one could position itself ahead the dictates of those speeches, against an exclusionary and

normalizing logic. It also intends to articulate these theoretical contributions to observations

of the dynamics of the sheltering institutions these days, in order to observe the direction that

these practices have taken after the modification of legal guidelines. From the research done,

it was observed that the psychoanalytic perspective, taking the family as a privileged place of

the transmission of a symbolic order, approaches the legal guidance that highlights the

fundamentality of family life in child development, considering speacially the affective bonds

involved in this dynamic. This transmission to which psychoanalysis refers, may be possible

by the mark of a particular interest of parents - or who occupy these functions - on the child,

favoring their subjectivation while subject of desire. In the context of the sheltering

institutions, however, is still possible to perceive many difficulties to adapt themselves to the

new guidelines, compromising, among other factors, the chances that the child would have to

be constituted psychically.

Keywords: Psychoanalysis; psychical constitution; right to family and community life; shel-

tering institutions.

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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

CF-88 Constituição Federal de 1988

CMM Código Mello Mattos

DUDC Declaração Universal dos Direitos das Crianças

ECA Estatuto da Criança e do Adolecente

FEBEM Fundações Estaduais do Bem-Estar do Menor

FUNABEM Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor

MDS Ministério do Desenvolvimento Social e do Combate à Fome

PNBEM Política de Bem-Estar do Menor

PNCFC Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e

Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária

SAM Serviço de Assistência ao Menor

SUAS Sistema Único de Assistência Social

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO................................................................................................. 12

2 CRIANÇA E FAMÍLIA: RETOMADA SOCIOJURÍDICA........................ 16

2.1 Representações sociais da criança e da família pobre como motores da

exclusão social e intervenção do Estado..........................................................

17

2.2 A doutrina da situação irregular e a política de “proteção

social”.................................................................................................................

19

2.3 A doutrina da proteção integral e o direito fundamental à convivência

familiar e comunitária......................................................................................

24

3 FAMÍLIA E FUNÇÃO SIMBÓLICA: UMA PERSPECTIVA

PSICANALÍTICA.............................................................................................

29

3.1 Os complexos familiares e ordem simbólica................................................... 29

3.2 Notas sobre a constituição subjetiva............................................................... 33

4 CRIANÇA INSTITUCIONALIZADA: ENTRE O PARTICULAR E O

UNIVERSAL.....................................................................................................

39

4.1 Cuidado e subjetivação nas instituições de acolhimento............................... 40

4.2 Acolhimento, transmissão e manutenção dos laços familiares..................... 43

4.3 Aplicação da medida protetiva: a pressa em concluir................................... 45

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS........................................................................... 50

REFERÊNCIAS................................................................................................ 54

12

1 INTRODUÇÃO

Lembro com detalhes da primeira vez que entrei em uma instituição de acolhimento,

ainda como aluna do ensino fundamental: as cores, os cheiros, os corredores estreitos. Na

calçada, antes de adentrar, os alunos mais velhos nos fizeram a última e principal

recomendação: jamais perguntar a nenhuma das crianças quem eram ou onde estavam seus

pais. Mesmo sem compreender o motivo, seguia à risca a orientação, a mesma que tempos

depois também passei a reproduzir para outros alunos que se juntavam ao projeto. Tais

questões, que permaneciam não ditas e tampouco respondidas, ressoam ainda em mim como

uma inquietação: quem eram e onde estavam os pais daquelas crianças? Por quais motivos

elas estavam ali? O que justificava que fossem tantas naquela mesma situação?

Durante o percurso acadêmico me aproximei das questões ligadas à infância a partir

de um viés psicanalítico, inicialmente ainda procurando conhecer diferentes posicionamentos

de autores da psicanálise sobre esta problemática. Ainda que sob diferentes destaques, eles

pareciam convergir no reconhecimento da importância dos primeiros anos de vida para a

subjetivação do ser humano, especialmente por meio da ênfase nas relações primordiais que

se estabelecem entre o bebê e as pessoas que desde o princípio se encarregam de seus

cuidados.

Já me aproximando do fim da graduação, tive uma experiência de estágio no qual

parte das atividades aconteceram em contato com crianças e adolescentes em situação de

acolhimento institucional na cidade de Fortaleza. Instigada pelo “reencontro” com esse

campo, além de procurar me apropriar dos argumentos jurídicos e das políticas em que se

sustenta o serviço oferecido por meio destas instituições, busquei também articular minhas

observações ao conhecimento que vinha somando durante a graduação, especialmente em

relação à psicanálise com crianças.

Não demorou para que pudesse observar, a partir destas investigações, duas questões:

a primeira é que, mesmo após 25 anos da promulgação do Estatuto da Criança e do

Adolescente (Lei nº 8.069 de 13 de julho de 1990) ainda encontramos, enquanto sociedade e

serviços de atenção à população, muita dificuldade em atender aos “novos” fundamentos que

esta lei instituiu, principalmente o de reconhecer a criança e adolescente como sujeitos de

direitos. A segunda questão é que não podemos falar da constituição do sujeito psíquico

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desconsiderando os aspectos contextuais envolvidos na complexa rede em que está inserida a

criança, que torna o desenvolvimento de cada uma delas um processo singular. No âmbito do

acolhimento institucional, particularmente, essas questões nos revelam profundas

problemáticas sociais, que influenciam diretamente a dinâmica e funcionamento dos serviços

oferecidos. É neste sentido que surge o interesse em abordar o tema neste trabalho.

Abordar a questão do acolhimento institucional nos dias de hoje vem com o propósito

de chamar a atenção para essas questões e, de modo mais abrangente, para o cuidado que tem

sido prestado à infância e juventude brasileira. De acordo com dados do Conselho Nacional

do Ministério Público (2013), em levantamento realizado a partir das inspeções periódicas

dos Ministérios Públicos estaduais às unidades de acolhimento, até o início de 2013, a

estimativa é que o número de crianças acolhidas fosse superior a 30 mil crianças. Apesar do

que instituem as legislações voltadas para a infância, de que a carência material não poderia

ser considerada causa para o acolhimento, os indicadores da mesma pesquisa demonstram

que cerca de 26% das crianças e adolescentes acolhidos encontravam-se nessa situação por

este motivo. De modo correlato, 75% das entidades estudadas, afirmaram estar acolhendo

crianças que não recebem visitas dos pais há mais de dois meses, expressando a dificuldade

na execução da política de manutenção de vínculos familiares. Os dados mais alarmantes, no

entanto, referem-se ao tempo de permanência, pois o maior percentual de crianças abrigadas

(31%) estava institucionalizadas há mais de dois anos, contrariando também as diretrizes do

Estatuto da Criança e do Adolescente (BRASIL, 1990). Diante destas referências, instiga-nos

analisar que fatores estão por trás destes dados, que caracterizam um cenário de violação de

direitos fundamentais de crianças e adolescentes no Brasil.

Desse modo, objetivamos neste trabalho investigar quais representações estiveram

circundando a família pobre durante diferentes momentos históricos, fomentando extensivo

emprego da medida de institucionalização. Mais especificamente, nos perguntamos de que

modo a psicanálise de orientação lacaniana poderia se posicionar frente a esses ditames, na

contramão de uma lógica excludente e normatizante, ao tomar a família enquanto lugar

privilegiado da transmissão de uma ordem simbólica, que propicia a subjetivação da criança

enquanto sujeito desejante. Finalmente, pretendemos articular tais contribuições teóricas a

observações da dinâmica de instituições de acolhimento nos dias de hoje, visando observar a

direção que essas práticas têm tomado.

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Para este feito, procuraremos, no primeiro capítulo, identificar os discursos e

representações sociais sobre a infância que prevaleceram em diferentes momentos históricos,

e que estiveram respaldando a norma jurídica instituída de acordo com alguns marcos

históricos. Veremos que, inicialmente, vigorou um discurso de fundamentos higiênicos, que

corroborava com práticas de controle e intervenção sobre as famílias, por meio da primazia

de um modelo familiar tido como sustentáculo da vida digna e atenta aos bons costumes.

Verificaremos de que modo esse discurso repercutiu principalmente sobre as famílias mais

pobres, entendidas, a partir destes fundamentos, como ameaças à ordem social. Mais tarde,

veremos esse panorama ganhar outros contornos, com as fortes movimentações sociais que

reivindicavam a garantia dos direitos humanos a diversos grupos socialmente marginalizados,

incitando o desenvolvimento de normativas que passaram a reconhecer a família como o

lugar propício para o crescimento de crianças e adolescentes. Em ambos os momentos,

estaremos observando como as instituições de acolhimento estiveram na retaguarda da

aplicação das políticas públicas, que atualizavam os discursos em vigor em cada época.

Para contemplar os aspectos referentes ao primeiro momento histórico, nos

remeteremos principalmente aos autores Jurandir Freire Costa (1979) e Sylvio de Sousa

Gadelha Costa (1998). Na esfera jurídica, partiremos de documentos como os revogados

Códigos de Menores (BRASIL, 1927; 1979), o Estatuto da Criança e do Adolescente

(BRASIL, 1990), e o Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças

e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária (BRASIL, 2006). Além desses,

traremos também contribuições de autores importantes da psicologia social, que estiveram

implicados nas problemáticas da infância e institucionalização (RIZZINI, 2000; RIZZINI &

RIZZINI, 2004; PINHEIRO, 2006).

Partindo deste cenário, abriremos o segundo capítulo apresentando um possível

posicionamento da psicanálise de orientação lacaniana sobre o tema da família diante dos

imperativos higiênicos que apontavam a preeminência de um determinado modelo familiar,

em detrimento de outros modelos. Observaremos, neste sentido, como a psicanálise, ao

evidenciar a prevalência dos fatores culturais sobre os naturais na questões que concernem à

família, se distancia de perspectivas normatizadoras. Seguidamente, traçaremos algumas

considerações sobre como a família viabiliza a inserção da criança na cultura e sua

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constituição subjetiva enquanto sujeito desejante, pelo agenciamento das funções parentais

que favorecem o acesso a uma ordem simbólica.

Como principais referências bibliográficas para esta etapa, tomaremos inicialmente

um texto precursor do ensino de Lacan, “Complexos Familiares na Formação do Indivíduo”

(1938/1987), com o auxílio da leitura crítica deste escrito realizada por Jacques-Alain Miller

(1984), que nos atualiza de algumas questões tratadas por Lacan nesse texto que serão

retomadas posteriormente em seus seminários sob outros contornos. Logo em seguida,

objetivando traçar algumas considerações sobre a constituição psíquica, retomaremos

principalmente as contribuições de Lacan e de autores de orientação lacaniana. Recebem

destaque “O Seminário: Livro 11” (LACAN, 1964/2008), sobre os quatro conceitos

fundamentais da psicanálise, e a “Nota sobre a criança” (LACAN, 1969/2003).

Finalmente, nos esforçaremos em articular tais proposições teóricas a aspectos práticos

observáveis nas instituições de acolhimento nos dias de hoje, que se distanciam dos

postulados jurídicos que já haviam instituído a necessidade de um trato mais particularizado à

criança e sua família, favorecendo a manutenção de seus laços afetivos, entendidos como

primordiais ao desenvolvimento infantil. Apontaremos, a partir de um viés psicanalítico, de

que maneira a dinâmica das instituições guarda consigo um potencial de dessubjetivação da

criança, ao mantê-la afastada da convivência familiar e submetida à ordem institucional. Para

construir nossa discussão, nos basearemos também em observações e apontamentos sobre a

dinâmica de instituições de acolhimento realizados pelas psicanalistas Sônia Altoé

(1990/2008; 2010) e Emilie Boesmans (2015), a primeira em internatos do Rio de Janeiro,

antes da promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente, e a segunda em pesquisa

recente em unidades de acolhimento da cidade de Fortaleza.

16

2 CRIANÇA E A FAMÍLIA: RETOMADA SOCIOJURÍDICA

Neste capítulo teremos como objetivo retomar de que maneira o olhar sobre a criança

e a família foi normatizado a partir dos discursos que vigoraram em diferentes tempos. Para

tanto, faremos alusão a um ideal que se construiu em torno de um modelo familiar específico,

a partir de saberes que se articularam socialmente qualificando uma suposta inadequação de

outras organizações familiares no cuidado de seus filhos.

Observaremos como esse entendimento reverberou no âmbito jurídico em um primeiro

momento histórico, no qual os textos jurídicos voltados para a infância legitimaram extensa

intervenção do Estado sobre as famílias mais vulneráveis, baseando-se em um discurso que

dissemina, dentre outros aspectos, a ideia de fracasso das famílias pobres na criação de seus

filhos. Tal percepção esteve justificando, por exemplo, práticas massivas de

institucionalização de crianças e adolescentes pobres em grandes internatos ou centros de

correção. Em seguida, examinaremos a passagem deste momento a um outro, no qual as

diretrizes jurídicas, quando passam a falar da criança enquanto sujeito de direitos que merece

a proteção integral da sociedade, adotam um discurso de reconhecimento da família como a

base para o cuidado e atenção à infância, elegendo uma perspectiva mais ampla sobre a

mesma, que prima pela valorização dos laços afetivos. Como veremos, esta guinada conduziu

a uma reestruturação dos serviços de acolhimento de jovens e crianças de modo a atender às

novas solicitações.

Para este efeito, lançaremos mão do Código de Menores de 1927 (Código Mello

Mattos), o Plano Nacional do Bem-Estar do Menor (PNBEM) de 1964 e o Código de

Menores de 1979 para pensar o primeiro momento histórico. Em seguida, para o segundo

momento, tomaremos a Constituição Federal de 1988, o Estatuto da Criança e do Adolescente

(ECA) de 1990 e o Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e

Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária (PNCFC) de 2006. Para construir este

panorama e contextualizar os discursos que vigoraram em cada tempo, teremos o auxílio de

pesquisadores que debruçaram-se sobre o tema da história social da infância e da família no

Brasil, e de comentadores das normativas jurídicas elegidas para esta discussão.

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2.1 Representações sociais da criança e da família pobre como motores da exclusão

social e intervenção do Estado

A questão da infância enquanto preocupação social começa a ser tema recorrente no

Brasil a partir do início do século XX, associada ao período de industrialização e de

crescimento acelerado das áreas urbanas, no qual as camadas populares enfrentavam péssimas

condições de vida e miséria. De acordo com Sylvio de Sousa Gadelha Costa (1998, p. 101), a

esta altura, “as difíceis condições de habitação, a insalubridade, a promiscuidade, a difícil

inserção no mercado de trabalho, uma alta taxa de mortalidade infantil e o grave perigo das

epidemias marcam o cotidiano da vida dos pobres”. A combinação destes fatores seria o

principal disparador do crescente número de crianças e adolescentes ditos abandonados, que

passam a circular nas ruas das grandes cidades, provocando a inquietação das classes mais

abastadas e do poder administrativo. O assunto foi alvo de muitas discussões que, em suma,

alertavam sobre uma ameaça à ordem pública e acentuavam a urgência em regularizar a

situação dessas crianças, através da concessão de maior poder interventivo ao Estado por

meio de órgãos e normativas específicas (RIZZINI, 2000).

Foi um período histórico marcado pela primazia da ação médico-higienista sobre a

população, em busca do seu aperfeiçoamento físico, intelectual e moral, o que seria possível

através da “implementação de uma disciplina e de um regulamento fundamentado na ordem”

(COSTA, J., 1979, p. 181). Estes objetivos iam ao encontro do discurso nacionalista que

procurava se instalar desde o século anterior, fundado nos princípios de ordem e

desenvolvimento, tendo sido o saber médico uma importante ferramenta de disseminação

desse discurso na sociedade, possibilitando crescente intervenção do Estado sobre as famílias.

Jurandir Freire Costa, em sua obra “Ordem Médica e Norma Familiar” (1979, p. 64),

condensa este mecanismo de articulação:

Os trabalhos médicos sobre a higiene mostram como, no nível do saber, essa troca

de favores entre a medicina e o Estado foi teorizada. Um mesmo eixo lógico

orientava todos eles. De início, o fenômeno físico, cultural ou emocional era

aspirado e convertido em fato médico e, em seguida, reinjetado no tecido social

conforme a articulação prevista. Dessa forma, o repertório de sentimentos e condutas

antes administrado pela família era encapado pela medicina e, através dela,

devolvido ao controle estatal.

18

O autor destaca que, a princípio, a política higienista que fincava seus pilares desde o

Brasil Colônia dirigia-se precisamente para a família de elite, “que podia educar seus filhos e

aliar-se ao Estado” (COSTA, J., 1979, p. 69). Neste sentido, “os domínios do lar burguês e do

trabalho aparecem como baluartes da vida digna, ordeira e atenta aos bons costumes”

(COSTA, S., 1998, p. 102). Por família burguesa entendemos o modelo de família “nuclear e

conjugal” (COSTA, J., 1979, p. 13), centrada na autoridade do pai, que é seu provedor. A

mulher, estavam destinadas as tarefas de zelar pela casa e pela educação dos filhos, exercendo

através deles uma função central de manutenção do modelo de estrutura familiar. Uma

preocupação central deste modelo é a regulação higiênica do corpo e da sexualidade, esta

última fortemente repreendida. O conjunto destes fatores desencadeia processos importantes

na ordem social, como podemos observar em Jurandir Freire Costa (1978, p. 13):

Por um lado, o corpo, o sexo e os sentimentos conjugais, parentais e filiais passaram

a ser programadamente usados como instrumentos de dominação política e sinais de

diferenciação social daquela classe. Por outro lado, a ética que ordena o convívio

social burguês modelou o convívio familiar, reproduzindo, no interior das casas, os

conflitos e antagonismos de classes existentes na sociedade.

O autor destaca a educação higiênica, mais especificamente a educação sexual, como

um aspecto através do qual é possível observar a dinâmica destes fatores citados acima, de

modelagem do convívio familiar e dominação social desta classe. Pois bem, esta educação

forjou a ideia de homens e mulheres como “reprodutores e guardiões de proles sãs” (COSTA,

J., 1979, p. 14), reduzindo as atividades sexuais masculina e feminina às funções de pai e

mãe. No entanto, estas funções são somente sustentadas a longo termo através da intervenção

de especialistas, que ordenam essas relações através de normas específicas que podem variar

conforme a necessidade de regulação social, em diferentes tempos históricos. Deste modo,

podemos apontar duas questões importantes: que esse modelo familiar dominante necessita de

constante mediação destes especialistas para manter-se como tal, e que contribui para deixar

outros modelos familiares à margem, dentre os quais destacamos os estigmas que se

produziram em torno da família pobre.

Se inicialmente o paradigma médico-higienista voltava-se sobretudo para a regulação

das famílias mais abastadas, ele operava de modo indireto sobre as camadas mais pobres da

população, que representavam a fonte de todas as degenerações da sociedade e “funcionavam

como admoestação à obediência dos preceitos higiênicos” (LOBO, 2008, p. 303), o que

19

justificava a exclusão social. Somente mais tarde, “a medicina social tomou a caridade das

mãos dos leigos, estendendo discursos e práticas normalizadoras ao resto da população”

(LOBO, 2008, p. 303).

Considerando que neste momento histórico as perspectivas médicas e jurídicas

estiveram alinhadas, veremos que ao atribuir à família pobre uma ideia de fracasso na tarefa

de orientar e zelar pelos seus filhos, foi possível legitimar extensa intervenção do Estado

sobre esse grupo, tomando como instrumento suas crianças. É neste contexto que se instituem

as primeiras leis brasileiras voltadas para a infância, como veremos a seguir.

2.2 A doutrina da situação irregular e a política de “proteção social”

O primeiro Juízo de Menores brasileiro foi instituído em 1923, tendo desempenhado

importante papel no sentido do controle social que nos referíamos acima, porém voltado

sobretudo para as famílias pobres, por meio dos amplos poderes que o juiz detinha em suas

funções de “vigilância, regulamentação e intervenção direta sobre esta parcela da população”

(RIZZINI & RIZZINI, 2004, p. 29). Nesta sequência, é aprovado em 1927 o primeiro Código

de Menores do país, que ficou conhecido pelo nome de seu redator, José Cândido de

Albuquerque Mello Mattos, o então juiz de menores da capital federal. Como a própria

denominação adianta, este código foi redigido para tratar de um público específico: os

“menores” em situação de carência, abandono e delinquência, categorias que o legislador se

propõe a detalhar em 231 artigos, procurando dar conta de todas as condições que enquadram

o menor nesta classificação, as medidas a serem tomadas em decorrência destas condições e

quem se encarrega delas. Antes de mais nada, é importante ressaltar que a denominação

“menor” passou a ser utilizada, a partir deste Código, para referenciar exclusivamente a

infância pobre e marginalizada, de modo estigmatizante, não abrangendo crianças e

adolescentes como um todo. Como veremos, esta terminologia esteve presente no âmbito

jurídico delimitando um campo de atuação específico, quase sempre ligado à esfera da

assistência social; como também a um conjunto de políticas para o “menor”, de caráter

disciplinatório e controlador (COSTA, S., 1998).

20

De acordo com Irene Rizzini (2000, p. 28), o que impelia o legislador do Código

Mello Mattos (CMM) “era ‘resolver’ o problema dos menores, prevendo todos os possíveis

detalhes e exercendo firme controle sobre os menores, por meio de mecanismos de ‘tutela’,

‘guarda’, ‘vigilância’, ‘reeducação’, ‘reabilitação’, ‘preservação’, ‘reforma’ e ‘educação’”. De

modo geral, esses mecanismos convergiam para a internação dos menores em grandes

orfanatos ou centros de correção, sendo pouco relevante a diferença entre as categorias de

abandono e delinquência. Estes centros tão logo tornaram-se grandes depósitos de filhos de

famílias pobres, fortalecendo, juntamente com a legislação, a ideia de controle e autoridade do

Estado sobre as crianças em detrimento do poder das famílias, tidas como incapacitadas e

desajustadas. “Resolver o problema do menor” indicava distanciá-lo do contexto que teria

causado - ou causaria - uma ameaça à ordem e segurança pública, de acordo com o discurso

corrente. Acreditava-se que se permanecessem ociosos e com livre circulação nas ruas, muito

provavelmente se inclinariam para a delinquência, de modo que a institucionalização servia ao

duplo propósito de manter os “menores” sob a vigilância e o controle do Estado, e de prepará-

los enquanto mão-de-obra produtiva para “servir aos ditames do desenvolvimento do Estado,

de preferência sem causar-lhe problema” (PINHEIRO, 2006, p. 57). Neste sentido,

destacamos o entendimento sobre a família pobre enquanto ambiente nefasto, amplamente

difundido através das políticas higienistas, as quais já nos referimos. Essa ideia de nocividade

da família miserável, “pode ser tomada como o grande trunfo médico na luta pela hegemonia

educativa das crianças” (COSTA, J., 1979, p. 171), representada principalmente pelas

instituições totais de internação e abrigamento.

Em 1941 é criado o Serviço de Assistência ao Menor (SAM) (Decreto-Lei nº 3.3799

de 5 de novembro de 1941), de acordo com as diretrizes do CMM. Ele tinha por finalidade

coordenar todos os serviços voltados para os “menores” desvalidos e delinquentes, tanto no

âmbito jurídico quanto administrativo. Dentre os princípios do decreto que instituiu o SAM, já

constavam as funções de recolher e abrigar os menores em detrimento de qualquer menção à

manutenção dos vínculos familiares. Efetivamente, este órgão atendeu aos objetivos citados

anteriormente, de afastar os “menores” da influência familiar, considerada nociva, e “educá-

los” para que servissem à Nação (KRAMER, 1992 apud PINHEIRO, 2006). De acordo com

Ângela Pinheiro (2006, p. 122), as práticas de internação largamente difundidas nesse período

“estavam sedimentadas na representação social da criança e do adolescente como objetos de

21

repressão social, ao mesmo tempo que fortaleciam tal representação e a legitimavam”. No

período em que esteve ativo, o SAM foi alvo de muitas denúncias de corrupção na sua

prestação de serviços e de crueldade no trato que era dispensado aos internos de seus

estabelecimentos, que destacavam seu fracasso na meta de proteção social dos “menores” em

todo território nacional (RIZZINI & RIZZINI, 2004; PINHEIRO, 2006). Como consequência

do seu desprestígio, o Serviço é substituído, em 1964, pela Fundação Nacional de Bem-Estar

do Menor (FUNABEM), que incorpora seu patrimônio e suas atribuições.

As normativas exploradas até este momento levam a entender que essa ideia de

proteção social dos “menores”1 estava ligada apenas à prevenção e correção da delinquência,

por meio de mecanismos de contenção social, que consistiam basicamente no afastamento do

“menor” do contexto que acreditava-se ser capaz de lhe corromper: a família. A Política de

Bem-Estar do Menor (PNBEM), da qual a FUNABEM era o órgão centralizador, inaugura na

legislação brasileira sobre a infância aspectos que dão relevo à convivência familiar, tema que

terá maior destaque a partir da década de 1980. O artigo 6° da lei que sanciona a PNBEM

dispõe sobre as diretrizes para esta política, apontando como prioridade os “programas que

visem à integração do menor na comunidade, através de assistência na própria família e da

colocação familiar em lares substitutos” (grifo nosso), além de deliberar o aprimoramento das

instituições para “menores” adotando características que remetam à vida familiar. Sabe-se que

para a construção da PNBEM foi utilizada como base a normativa internacional voltada para

os direitos da criança (PINHEIRO, 2006), especialmente a Declaração Universal dos Direitos

das Crianças (DUDC)2, que consolida a noção da criança enquanto sujeito de direitos

especiais, e propõe fundamentos que devem se estender a todas as crianças, sem distinção.

Trata-se de um quadro bem distinto do que acontecia no Brasil, onde as crianças – uma parte

específica delas – eram objeto da lei, e não sujeitos de direitos.

Porém, não se pode afirmar que a PNBEM tenha atuado ainda na direção da defesa

dos direitos das crianças e adolescentes, nem mesmo na direção contrária das violências

cometidas pelo SAM. O que pôde ser constatado da aplicação destas diretrizes referentes à

integração social e convivência familiar, por via das Fundações Estaduais de Bem-Estar do

1 Cabe sublinhar que a legislação sobre a infância existente até aqui não se estende, ainda, a todas as crianças,

mas a um público específico, os “menores” em situação de abandono, carência ou delinquência. 2 Aprovada em 20 de novembro de 1959 pela Assembleia Geral das Nações Unidas.

22

Menor (FEBEMs), foi o caminho contrário, que dirigia-se à intensificação das práticas de

exclusão e repressão, que apontam para “uma política deliberada de não só ‘limpar’ as ruas da

cidade dos elementos indesejáveis, mas de punição, pelo afastamento da família e de

desarticulação, ao retirá-los do seu meio social” (RIZZINI & RIZZINI, 2004, p. 38). Com

Pinheiro (2006, p. 138), encontramos que essa rede institucional contribuiu também para

ratificar as diretivas do Estado de controle social:

Em verdade, esse sistema [FUNABEM/FEBEMs] buscava efetivar uma ruptura com

a imagem perversa de assistência do SAM, mantendo-se, de fato, em nome da

integração e da educação, na perspectiva do controle, do disciplinamento e da

repressão […]. Inegavelmente, no seu mister de integração ajustadora, de

atendimento controlador e repressivo, para moldar caráter, FUNABEM e FEBEMs

cumpriram importante missão institucional, no interior do regime ditatorial,

inteiramente voltada para a “manutenção da ordem e a proteção da sociedade”.

Podemos inferir, com base neste apontamento de Pinheiro, que a manutenção da

ordem e a proteção da sociedade, dizem respeito também à família, pois a intervenção sobre

as crianças e os jovens implica de algum modo a intervenção sobre suas respectivas famílias.

Deste modo, a criança viria a ser utilizada como instrumento de poder - “contra os pais, em

favor do Estado” (COSTA, J., 1978, p. 175).

Tendo em vista todos estes discursos do Estado sobre a criança, o jovem e a família,

cabe salientar o modo como este e a sociedade civil se isentaram da responsabilidade pela

própria situação dita irregular destas famílias, alvos de leis coercitivas. A todo momento

manifesta-se, por detrás destes discursos, um ideário de culpabilidade exclusiva das famílias

quanto ao “desvio” de seus filhos, acusando sua incapacidade e desinteresse em educá-los e

regê-los, o que justificava as internações em massa. As pesquisadoras Irene e Irma Rizzini

(2004, p. 40) apontam que, no entanto, as famílias não permaneceram passivas frente estes

estigmas, mas “passaram a dominar a ‘tecnologia do internamento’, interferindo, manejando e

adquirindo benefícios do sistema”, buscando as internações com o objetivo de garantir

melhores condições de alimentação, habitação e instrução para os filhos.

A PNBEM ainda está enraizada na doutrina da situação irregular, que é a base do

Código Mello Mattos (CMM), ainda que este não se utilize desta terminologia, e do Novo

Código de Menores (Lei nº 6.697 de 10 de outubro de 1979), no qual a doutrina encontra-se

bem consolidada. De acordo com este último, os “menores” considerados em situação

23

irregular seriam aqueles privados das condições básicas à sua subsistência, saúde e instrução;

vítimas de maus tratos; aqueles expostos a atividades contra a moral e os bons costumes; que

apresentassem desvios de conduta; ou fossem autores de infração penal, o que nos leva a

considerar que ele não apresenta uma novidade em relação às categorias atendidas pelo

CMM. A principal diferença é o caráter genérico que a classificação passa a ter: ao se

abranger as mais diferentes situações de vulnerabilidade em uma só categoria, a de situação

irregular, qualquer situação é passível de ser enquadrada como tal, oportunizando a aplicação

arbitrária de medidas coercitivas, especialmente a internação. Quanto à execução destas

medidas, o Juízo de Menores ainda mantém como retaguarda os órgãos vinculados a

FUNABEM, que só encerrará suas atividades anos após a promulgação do ECA.

O que o Novo Código regulamenta, que merece atenção especial, é em relação à ação

e às atribuições do juiz de menores, pois legitima poderes ainda mais amplos ao mesmo. De

acordo com a lei (BRASIL, 1979, grifo nosso) que sancionou este código,

Art. 7º À autoridade judiciária competirá exercer diretamente, ou por intermédio de

servidor efetivo ou de voluntário credenciado, fiscalização sobre o cumprimento das

decisões judiciais ou determinações administrativas que houver tomado com relação

à assistência, proteção e vigilância a menores.

Parágrafo único. A fiscalização poderá ser desempenhada por comissários

voluntários, nomeados pela autoridade judiciária, a título gratuito, dentre pessoas

idôneas merecedoras de sua confiança.

Art. 8º A autoridade judiciária, além das medidas especiais previstas nesta Lei,

poderá, através de portaria ou provimento, determinar outras de ordem geral, que, ao

seu prudente arbítrio, se demonstrarem necessárias à assistência, proteção e

vigilância ao menor, respondendo por abuso ou desvio de poder. (grifo nosso)

Desta feita, é possível observar a amplitude dos poderes reservados ao juiz, que a

partir do seu prudente arbítrio pode legislar livremente sobre crianças e famílias tidas em

situação irregular. É também da sua alçada deliberar quem se encontra na vasta classificação

de irregularidade, por meio das autoridades administrativas as quais ele nomeasse, que foram

reconhecidamente a polícia e o comissariado de menores (SÊDA, 1991 citado em RIZZINI,

2000). Com base nestes destaques e nas atribuições já conhecidas desde o CMM, de que o

Juizado de Menores teria como função primordial centrar todas as problemáticas referentes

aos “menores”, podemos apontar que o juiz desempenha, acima de tudo, uma conduta de

tutela sobre as crianças pobres, em detrimento da autoridade familiar sobre as mesmas.

24

No entanto, o Novo Código teve um curto período de vigência. A partir do momento

histórico de abertura política, que culminou o fim do Regime Militar, irromperam em diversas

camadas da sociedade civil uma enorme gama de debates acerca da garantia irrestrita de

direitos humanos. Estes debates reverberaram também na questão da infância, fazendo com

que os conceitos e práticas voltadas para esse grupo fossem revistas, como discutiremos a

seguir.

2.3 A doutrina da proteção integral e o direito fundamental à convivência familiar e

comunitária

A grande revolução no direito da infância no Brasil sem dúvida aconteceu com a

promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069 de 13 de julho de 1990),

que rompeu com a tradição penal, de controle social e de objetificação da criança perante a lei

própria das normativas até então voltadas para esse público, garantindo o lugar da criança

enquanto sujeito de direitos. Além disso, adota o caráter de universalidade da lei, que se

estende para todas as crianças e adolescentes brasileiros, independente de qualquer aspecto

etário, econômico ou social. Todas estas dimensões já estão previstas na Constituição Federal

de 1988 (CF-88) no artigo 2273, que é incluso a partir de forte movimentação social e de

diversas entidades em defesa dos direitos da criança em tempos de redação da Carta Magna

pela Assembleia Constituinte.

Ao falar da criança enquanto cidadã que deve receber da família, da sociedade e do

Estado proteção integral em todas as esferas da vida, a lei que institui o ECA (BRASIL, 1990)

se desloca da doutrina da situação irregular que, como vimos, fundamentava a legislação

menorista que vigorava no país, de caráter eminentemente excludente. O Estatuto passa então

a adotar a doutrina da proteção integral, legitimada pela Convenção Internacional sobre os

Direitos da Criança (1990), ocasião na qual um conjunto de países, dentre eles o Brasil,

procuraram definir quais os direitos fundamentais e comuns a todas as crianças, objetivando

compor alicerce para formulação de normativas aplicáveis em qualquer nação. O artigo 227

3Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com

absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura,

à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda

forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

25

da CF-88 e o ECA se sustentam nestas diretrizes que, em linhas gerais, dispõem que a

infância deve ser tratada com prioridade absoluta e atenção especial, devendo seus direitos

fundamentais ser protegidos independente de qualquer situação. Estado, sociedade e família

devem agir integrados em favor da criança, salvaguardando o princípio do interesse maior

desta. A Convenção (1990) ressalta ainda a família como ambiente natural para o crescimento

da criança, sendo responsabilidade dela prover cuidado e proteção à criança. Quando na

privação destes direitos, é dever do Estado garanti-los, através de instituições e serviços de

assistência específicos, bem como proteger e auxiliar a família a exercer seu encargo

(PEREIRA, 1996).

Destacamos, então, a correspondência direta deste último aspecto com o Capítulo III

do ECA que dispõe sobre o direito fundamental da criança e do adolescente à convivência

familiar e comunitária, que já era previsto pelo artigo 227 da CF-88, ganhando contornos mais

definidos no Estatuto (BRASIL, 1990):

Art. 19. Toda criança ou adolescente tem direito a ser criado e educado no seio da

sua família e, excepcionalmente, em família substituta, assegurada a convivência

familiar e comunitária, em ambiente livre da presença de pessoas dependentes de

substâncias entorpecentes. [...]

§ 3o A manutenção ou reintegração de criança ou adolescente à sua família

terá preferência em relação a qualquer outra providência, caso em que será

esta incluída em programas de orientação e auxílio, nos termos do parágrafo

único do art. 23, dos incisos I e IV do caput do art. 101 e dos incisos I a IV do

caput do art. 129 desta Lei. [...]

Art. 20. Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os

mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias

relativas à filiação.

Art. 21. O poder familiar será exercido, em igualdade de condições, pelo pai e pela

mãe, na forma do que dispuser a legislação civil, assegurado a qualquer deles o

direito de, em caso de discordância, recorrer à autoridade judiciária competente para

a solução da divergência.

Art. 22. Aos pais incumbe o dever de sustento, guarda e educação dos filhos

menores, cabendo-lhes ainda, no interesse destes, a obrigação de cumprir e fazer

cumprir as determinações judiciais.

Art. 23. A falta ou a carência de recursos materiais não constitui motivo suficiente

para a perda ou a suspensão do poder familiar.

§ 1º Não existindo outro motivo que por si só autorize a decretação da

medida, a criança ou o adolescente será mantido em sua família de origem, a

qual deverá obrigatoriamente ser incluída em programas oficiais de auxílio.

Com base nestes artigos, podemos observar sua dessemelhança com as normativas

estudadas no tópico anterior, que regeram as práticas voltadas para a infância, especialmente

26

em relação à situação de carência econômica da família, que não mais poderá justificar a

suspensão ou destituição do poder familiar sobre seus filhos, como vimos ser ação recorrente

em momento histórico anterior. Pelo contrário, a família deverá ser também zelada pelo

Estado, de modo que possa ter os recursos necessários para exercer sua função de cuidado e

proteção, tendo em vista que lei considera a condição da criança como pessoa em

desenvolvimento e a família como lugar a ser priorizado para seu crescimento (BRASIL,

1990).

Anos após a aprovação do ECA, observou-se a necessidade de ordenar as políticas

públicas em favor da manutenção da convivência familiar e comunitária, a partir do processo

político-social que culminou no estabelecimento do Sistema Único de Assistência Social

(SUAS), em 2005. É assim que, em 2006, é aprovado o Plano Nacional de Promoção,

Proteção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e

Comunitária (PNCFC), que converge com as diretrizes apontadas pela Política Nacional de

Assistência Social (2004) e pela reformulação do Código Civil, datada de 2002, que também

estabelecem medidas e normativas que concernem à infância, à juventude e, sobretudo, à

família.

O PNCFC parte do antecedente do qual já tratamos, de que, no Brasil, a família pobre

esteve historicamente associada a um discurso que alega sua inaptidão de criar e orientar seus

filhos, produzindo políticas no sentido da contenção social, como suspensões e destituições do

poder familiar sobre as crianças, e decorrente institucionalização destas. O Plano defenderá,

em consonância com a CF-88 e o ECA, que o direito da criança à manutenção dos vínculos

familiares deve ser salvaguardado pelo Estado, e no caso de enfraquecimento ou risco

eminente destes, “as estratégias de atendimento deverão esgotar as possibilidades de

preservação dos mesmos, aliando o apoio socioeconômico à elaboração de novas formas de

interação e referências afetivas no grupo familiar” (BRASIL, 2006, p. 16, grifo nosso). É a

partir deste último aspecto que o PNFCF se propõe a considerar a família em sentido mais

amplo, abarcando laços naturais, afetivos e civis, admitindo diferentes arranjos familiares.

Com isso, o Plano visa favorecer o rompimento com a cultura de institucionalização

de crianças e adolescentes no Brasil, de modo que se propõe a articular políticas, programas e

serviços com esta finalidade. Dentre outros aspectos – como o aprimoramento dos

procedimentos de adoção e a implementação do programa de famílias acolhedoras –, essa

27

iniciativa aponta diretrizes para a reformulação e qualificação dos serviços de acolhimento

institucional, com base no que já fora instituído pelo ECA anos antes. De acordo com o Plano

(BRASIL, 2006, p. 40), “todas as entidades que desenvolvem programas de abrigo devem

prestar plena assistência à criança e ao adolescente, ofertando-lhes acolhida, cuidado e espaço

para socialização e desenvolvimento”, trabalhando, sobretudo, no sentido da preservação dos

vínculos familiares e da promoção da reintegração familiar, tal como propõe o artigo 92 do

ECA (BRASIL, 1990). As entidades devem também priorizar o atendimento em pequenos

grupos, procurar atender diversas faixas etárias e ambos os sexos, de modo a evitar o

desmembramento de grupos de irmãos e favorecer a participação na vida da comunidade local

(BRASIL, 2006).

O ECA, em seu Art. 101, 1º parágrafo, estabelece o caráter provisório e excepcional

da aplicação da medida, configurando-se como um forma de transição para a reintegração

familiar ou a colocação em família substituta. Ainda de acordo com esta lei (BRASIL, 1990),

a intervenção deve acontecer prioritariamente em conformidade com o interesse superior da

criança e do adolescente e somente se indispensável à garantia de sua proteção. Além disso, a

permanência da criança ou adolescente na instituição não deve exceder o limite de dois anos

(salvo quando comprovada necessidade que atenda ao seu interesse), e sua situação deve ser

reavaliada no máximo a cada seis meses durante a sua permanência, devendo a autoridade

competente, com base em relatório psicossocial fornecido pela instituição, deliberar acerca da

possibilidade de retorno ao lar. Cabe destacar ainda, que a aplicação da medida somente será

feita mediante decisão judicial, ainda que as instituições possam acolher crianças e

adolescentes em caráter excepcional e de urgência sem a prévia determinação do juiz, desde

que comunique o fato em até 24 (vinte e quatro) horas à autoridade competente (BRASIl,

1990).

De acordo com Boesmans (2015), os principais argumentos jurídicos envolvidos na

decisão pela aplicação da medida de acolhimento no Brasil são o supremo interesse da

criança, o afeto e o cuidado como valores jurídicos, e a condição especial de sujeito em

desenvolvimento. Para cada argumento, a autora busca apresentar um percurso histórico que

antecede seu estabelecimento, levando-nos a observar que

Quando tratamos da separação das crianças de suas famílias, observamos a

justificativa legislativa de que isto se faz em nome do bem-estar, do interesse

28

supremo e do desenvolvimento integral da criança, mas está historicamente fundada

sobre o controle da família pobre, subalterna, popular ou trabalhadora

(BOESMANS, 2015, p. 70-71).

De modo correlato ao que já apontamos nos tópicos anteriores, podemos inferir que tal

paradoxo se fundamenta na difusão de uma norma higiênica que estabeleceu um ideal de

estrutura familiar ao qual a família pobre não logra em alcançar.

Se pensarmos através de um possível posicionamento da psicanálise, no entanto,

veremos que essa ideia de estrutura familiar adequada não poderia se sustentar, tendo em vista

que a psicanálise se orienta a partir de uma ordem do desejo. A família, neste sentido, surge

como lugar de articulação de funções simbólicas, que inscrevem o sujeito na cultura a partir

da transmissão dos interditos que regem a vida em sociedade. É pela via do simbólico que se

realiza a passagem do instinto à cultura, de modo a entender que o arranjo das funções

parentais não parte de um lugar predeterminado, dito natural, mas surge a partir das relações

de desejo envolvidas no complexo acontecimento que é o nascimento de uma criança.

Dessa maneira, investigaremos, a partir da psicanálise de orientação lacaniana, a

função da família na irredutibilidade de uma transmissão, que possibilite as condições

necessárias para que a criança se constitua enquanto sujeito psíquico. Destaca-se, neste

sentido, a transmissão da cultura e o acesso à linguagem, sem perder de vista que o modo

como o indivíduo se posiciona frente ao Outro é absolutamente singular.

29

3 FAMÍLIA E FUNÇÃO SIMBÓLICA: UMA PERSPECTIVA PSICANALÍTICA

Tendo como plano de fundo o panorama sócio-histórico que tratamos nas páginas

anteriores, nos dedicaremos a partir de então a tecer algumas considerações sobre um possível

posicionamento da psicanálise frente aos ditames de um modelo familiar supostamente ideal

para o desenvolvimento de uma criança, disseminados socialmente através de saberes e

práticas que legitimam até os dias de hoje condutas de controle e exclusão social.

Para dar corpo a este capítulo, iniciaremos retomando um texto precursor do ensino de

Lacan, os “Complexos Familiares na Formação do Indivíduo”, de 1938, no qual o autor

destaca a primazia dos aspectos culturais nos fenômenos que concernem à família, apontando

o caminho na direção de uma Lei primordial que possibilita a passagem da natureza à cultura

na ação humana. Em seguida, traçaremos algumas considerações sobre de que maneira a

família representa, no plano individual, uma função simbólica de inserção do ser na cultura,

oferecendo o alicerce sobre o qual ele pode vir a se constituir psiquicamente enquanto sujeito.

Estaremos, assim, aferindo o papel fundamental que representam as funções parentais nesse

processo por meio de uma relação desejante que não seja anônima, na direção daquilo que

Lacan postulou na “Nota sobre a criança” (1969/2003, p. 369), sobre a “irredutibilidade de

uma transmissão” assegurada pela família.

3.1 Os Complexos familiares e ordem simbólica

O texto sobre o qual deteremo-nos agora refere-se a um momento anterior aos

seminários de Lacan, de modo que ainda lhe faltam muitos dos fundamentos que serão mais

tarde cruciais em sua obra. No entanto, não deixa de anunciar alguns aspectos que

posteriormente serão desenvolvidos mais a fundo, nem de nos fornecer, de antemão,

elementos importantes para o assunto que objetivamos tratar. Como já adiantamos, trata-se do

ensaio “Os complexos familiares na formação do indivíduo”, de 1938, escrito a pedido de

Henri Wallon para integrar o volume dedicado à vida mental na Encyclopédie Française,

veiculado inicialmente pelo título “A Família”, republicado em 1984 por Jacques-Alain Miller

sob seu título original.

30

Lacan inicia seu artigo dizendo que a família, em sentido amplo, é tomada

inicialmente como um grupo natural de indivíduos unidos através da geração dos próprios

membros do grupo, e da função de garantir as condições necessárias para o desenvolvimento

dos mais jovens. Nas espécies animais, essa função possibilita o aparecimento de

comportamentos instintivos e frequentemente complexos. Tomando a espécie humana, o autor

afirma que esta é caracterizada por “um desenvolvimento singular das relações sociais” e

“uma economia paradoxal dos instintos”, que dão ocasião a “comportamentos adaptativos de

variedade infinita” (1938/1987, p. 11). Estes comportamentos, por dependerem diretamente da

comunicação entre os membros da espécie, são fruto de obra coletiva e fundam a cultura.

A partir deste momento do texto, já é possível vislumbrar que pensar a família a partir

da psicanálise, é pensar, sobretudo, a cultura. De acordo com Lacan, em 1938, é a cultura que

“introduz uma nova dimensão na realidade social e na vida psíquica. Esta dimensão especifica

a família humana como, de resto, todos os fenômenos sociais no homem” (p. 11-12). É

partindo desta definição que ele apresentará a ideia de complexo que de modo simples,

consiste em um fator da cultura, antitético ao do instinto, não se tratando propriamente de um

conceito psicanalítico, mas de uma noção generalizada (MILLER, 1984).

Lacan (1938/1987) destaca o papel dos complexos como organizadores no

desenvolvimento psíquico, apontando a imago - enquanto representação inconsciente - como

um dos elementos fundamentais que permitiu que a família se tornasse objeto de uma análise

concreta, possibilitando seu entendimento enquanto objeto e circunstância psíquica, em

detrimento das teses moralizantes das quais ela sempre foi alvo. Desse modo, Lacan

(1938/1987) tratará de três complexos relacionados a diferentes momentos do

desenvolvimento psíquico, mantendo entre eles, porém, estreita relação. São o complexo do

desmame, o complexo da intrusão e o complexo de Édipo.

O primeiro deles, o complexo do desmame, configura-se como o mais primitivo do

desenvolvimento humano, que apesar de estar profundamente ligado à dimensão biológica

através da sua relação direta com a nutrição, está inteiramente submetido à dimensão cultural.

Isso porque é condicionado por um conjunto de regras e costumes definidos socialmente e

marca o desencadear das primeiras relações da criança com o mundo. Nele destaca-se o início

da composição da imago materna, que agencia a perda primordial, a perda do seio, esta que é

fundamental para que novos complexos se incorporem ao psiquismo. Assim, Lacan não rejeita

31

que esse complexo tenha um fundamento biológico, vez que supre uma necessidade vital, mas

detém-se sobre a regulação da função social que ele desempenha.

O segundo complexo ao qual Lacan refere-se, o de intrusão, trata do papel da relação

fraterna na gênese da sociabilidade. Sendo o ciúme aquele que rege essas relações, Lacan

observa que ele representa não a rivalidade, mas a identificação ao semelhante. Na relação

com o irmão menor, o sujeito tem acesso à própria imagem de quando ainda não havia

realizado a marca do desmame, lugar agora ocupado por um outro, permitindo significar a

perda de gozo que a perda do seio presentificou. Nesse sentido, Lacan antecipa sua teorização

acerca do estádio do espelho, colocando no cerne do complexo a relação imaginária com o

outro.

No terceiro e último complexo, o de Édipo, Lacan destaca como aquele

que elucida mais particularmente as relações psíquicas na família. Ele

marca o advento da sexualidade, ao mesmo tempo em que também

agencia a sua repressão pela fantasia de castração, tal como Lacan

nomeia. Na interpretação de Miller (1984), neste complexo tem papel

primordial a imago do pai, na medida em que figura a sublimação, pois

“se verá surgir ali, com o pai, um tipo de objeto completamente

diferente do anterior, um tipo de objeto que não é de satisfação, mas,

para falar com propriedade, de identificação ideal” (p. 14).

De acordo com estes três complexos aos quais Lacan se refere, é possível verificar,

desde os primeiros momentos do desenvolvimento humano, a dominância da dimensão

cultural sobre os aspectos naturais. A família desempenha, neste sentido, atribuições

indispensáveis ao desenvolvimento psíquico humano, relacionadas à transmissão da cultura,

especialmente no que tange à transmissão da língua materna e das leis que organizam as

relações sociais e de parentesco (LACAN, 1938/1987).

Lacan recorrerá a autores da sociologia e da antropologia para contemplar alguns

aspectos neste escrito de 1938. Quando defronta a questão dos fatores culturais com os

naturais, para afirmar que os primeiros têm prevalência sobre os últimos, o autor evoca a

questão da família como correntemente se concebe, formada por pai, mãe e filhos, que dispõe

dos mesmos componentes em relação à família biológica. Entretanto, afirma que essa

similitude, que facilitaria imaginar que esse modelo familiar representa um modelo fundado

na constância dos instintos, não passa de uma casualidade, tendo em vista que, se assim fosse,

esse mesmo modelo precisaria ser verificado em organizações familiares mais primitivas.

32

Nestas últimas, é possível observar características essenciais de uma estrutura familiar, como

a autoridade, os modos de parentesco e sucessão, o funcionamento regido por interdições e

leis, no entanto, “longe de nos mostrarem a pretensa célula social, vê-se nessas famílias,

quanto mais primitivas são, não apenas um agregado mais amplo de casais biológicos, mas

sobretudo um parentesco menos conforme os laços naturais de consanguinidade” (LACAN,

1938/1987, p. 14). Desse modo, podemos indicar que a ideia de uma família elementar não se

sustentaria, mas ainda seria possível apontar um sentido através do qual a família foi passando

por modificações até adquirir seu formato nuclear. Tendo o casamento assumido importante

papel no reordenamento dessas estruturas, Lacan (1938/1987) sugere a utilização do termo

“família conjugal” (p. 16), proposto por Émile Durkheim (1921), para distingui-lo da família.

No início da década de 1950, a aproximação com a antropologia de Claude Lévi-

Strauss conduziu Lacan a uma virada conceitual em seu ensino, pela via do estruturalismo.

Para este efeito, é notória a contribuição da obra “As estruturas elementares do parentesco” de

Lévi-Strauss (1982), em suas formulações acerca das trocas, alianças e relações de parentesco,

destacando a dimensão da interdição do incesto. Para o antropólogo (1982), tal proibição

encontra-se no centro destas relações, precisamente como aquela que rege as trocas e alianças

entre os indivíduos, garantindo, através do casamento exogâmico, a perpetuação e

preservação dos grupos sociais. Mas não só isso, uma vez que “a proibição do incesto não é

uma proibição igual às outras, mas a proibição, na forma mais geral, aquela que talvez todas

as outras se reduzem” (1982, p. 534). Ao questionar-se sobre a universalidade desta interdição

- que poderia ser confundida com uma perspectiva naturalista, já que está presente em todas

as culturas - o autor conclui que ela não pode fazer outra coisa a não ser instituir a marca que

permite a passagem da natureza à cultura.

Segundo Birman (1991), a psicanálise e a antropologia social convergem na forma

como suas atividades teóricas concebem o real, ainda que não sejam formas semelhantes e

que seus objetos de interesse sejam distintos, a realidade psíquica e a realidade social,

respectivamente. Elas têm em comum, no entanto, a concepção de que o real só pode ser

reconhecido a partir de um registro simbólico: “o real apenas se constitui como realidade pela

mediação da ordem simbólica, lhe oferece consistência significativa, para que possa ser

compartilhada por uma comunidade social determinada, dotada da mesma tradição histórica e

33

linguística” (BIRMAN, 1991, p. 8). Desse modo, podemos pensar também a dimensão da

cultura que Lacan adota no texto de 1938, que acabamos de tratar.

Segundo Miller (1984), “a referência essencial formulada por Lacan é a seguinte: onde

quer que busquemos na espécie humana – isto não vale apenas para a psicanálise – não há

natureza que não seja remanejada pela cultura, de tal maneira que o fator cultural domina” (p.

3). Mas em que consiste a cultura à qual Lacan se refere? Ainda de acordo com Miller (1984),

aquilo que Lacan nomeia de cultural é um substituto do simbólico, conceito que ainda lhe

falta em 1938, mas “percebe-se que ele é evocado de todas as formas possíveis” (p. 3). Se na

espécie humana toda natureza é remanejada pela cultura, ainda que Lacan não formule nesse

momento que toda mensagem dessa comunicação verbal se forma no domínio do Outro, ela já

está submetida à dominação do fator cultural (MILLER, 1984).

Como observamos no início deste capítulo, o indivíduo ao nascer já está imerso em

um mundo simbólico, cultural, mas é somente pelo campo do Outro que ele poderá acessar as

leis da cultura, para então constituir-se subjetivamente. São estes aspectos que objetivamos

tratar a seguir.

3.2 Notas sobre a constituição subjetiva

Já tivemos oportunidade de observar que é a entrada dimensão simbólica que permite

que o homem se separe das conjunções tão somente naturais, por meio do acesso às leis da

cultura e da inscrição no universo da linguagem. No entanto, essa passagem se dá por meio de

um complexo processo, no qual diversas operações envolvendo a criança e os outros que se

endereçam a ela se articulam a partir de determinadas condições.

Tal como Lacan referiu-se à prematuração do nascimento do ser humano (1949/1998),

Freud (1950[1895]/1996) também já havia apontado a condição de desamparo inicial do

homem, que faz ser necessário que outros se encarreguem da criança durante tempo

considerável a partir do seu nascimento para que ela possa sobreviver. Como sabemos, o

traçado das primeiras relações da criança com o mundo se dá por meio da satisfação de suas

necessidades essenciais, como a alimentação, por exemplo. Porém, semelhante ao que

observamos em relação ao complexo do desmame proposto por Lacan (1938/1987), esses

34

primeiros cuidados, além de suprir uma necessidade vital, estão ligados também à delimitação

de uma função simbólica. Do lugar do Outro, encarnado pela mãe ou quem desempenhe essa

função, vem para a criança “não apenas o alimento, mas a palavra” (FERREIRA, 2000, p. 38).

Freud (1950[1895]/1996) propõe que o aumento de tensão no organismo é

experiementado pela criança como desprazer. O choro do bebê funcionaria, simultaneamente,

como descarga do acúmulo de tensão e como forma de comunicação. De acordo com Ferreira

(2000), é justamente esse grito que figura o ingresso do sujeito na linguagem, na medida em

que a mãe produz um saber sobre o apelo da criança, escutando-o como uma demanda. Trata-

se da operação fundamental da função materna - a mãe supõe que a criança quer alguma

coisa, e ao fazê-lo, supõe ali também um sujeito desejante. Jerusalinsky (1999) lembra-nos

que a mãe, neste sentido, produz uma interpretação e não uma descrição em relação ao que

ocorre com a criança, pois esta última possibilidade significaria apenas partir de uma

predeterminação, restringindo a formulação de uma hipótese relativa ao desejo da criança.

Cabe ainda destacar que tal aposta elabora-se tendo por base a própria subjetividade da mãe, a

partir de seu universo simbólico e fantasmático, portanto, estabelecendo uma relação “com

aquele bebê singular” (PIRES, 2011, p. 70, grifo nosso). Deste modo, seguindo Lacan

(1969/2003), aludimos a uma relação marcada por um desejo particular.

Em síntese, o acesso da criança ao universo da linguagem pode acontecer na medida

em que um Outro produza significações sobre seus atos e experiências, a partir das quais ela

pode se constituir, vez que ainda não fala por si mesma. Isso representa, entretanto, uma via

de mão dupla: ao mesmo tempo que é condição para que ela sobreviva, a criança também

passa a estar capturada no campo do Outro, ao significante primeiro que este lhe confere, o

traço unário. Trata-se da operação de alienação, a qual Lacan apresenta como a primeira

operação essencial em que se funda o sujeito (LACAN, 1964/2008).

Essa operação só se faz possível, no entanto, após o tempo constitutivo do imaginário,

o qual Lacan representou por meio do estádio do espelho (1949/1998), responsável por

estabelecer uma relação entre o organismo e a sua realidade. O indivíduo, pela via da

identificação a uma imagem especular, antecipa para si a imagem de um todo único que não

corresponde ainda ao seu corpo em desenvolvimento, e daí então “para a armadura enfim

assumida de uma identidade alienante, que marcará com sua estrutura rígida todo o seu

desenvolvimento mental” (LACAN, 1949/1998, p. 100).

35

Todo esse primeiro momento de constituição subjetiva está referido à antecipação de

um lugar a ser ocupado pela criança, que já está dado mesmo antes de seu nascimento. Freud

já havia adiantado essa questão em sua introdução ao narcisismo (1914/2004), quando fala

que o amor parental nada mais é que uma revivescência do narcisismo há muito abandonado

dos pais, transformado em amor objetal e investido na criança. A partir dos seus próprios

ideais infantis, registrados mnemicamente, os pais podem ver-se compelidos a proteger a

criança dos imperativos da cultura que uma vez eles tiveram que acatar, legando à criança a

função de materializar seus desejos irrealizados, a partir da imagem de “His Majesty the

Baby”4 (FREUD, 1914/2004, p. 110).

Flesler (2007), em consonância com o ensino de Lacan, localiza principalmente em

relação à mãe essa operação de antecipação “do sujeito por vir” (p. 42), condição

imprescindível para que a criança possa ser investida narcisicamente e sobreviva, dando

ocasião a processos de subjetivação ulteriores. De acordo com a autora, é fundamental a

diferença que Lacan situa, no decorrer de sua obra, entre “o falo como significante, naipe

elementar para pôr em jogo uma lógica de incompletude na delicada dinâmica da relação

mãe-filho, e o falo imaginário, como tempo de cobertura e véu dessa primeira falta que

provocou na mãe o desejo de ter um filho” (FLESLER, 2012, p. 43), lembrando neste último

caso a correspondência entre pênis e filho que Freud propõe no tocante ao desejo materno

(FREUD, 1924/1996). Essa questão produz, portanto, um lugar delicado para a criança, de ser

ou não ser o falo para a mãe.

Em seu seminário sobre as relações de objeto, Lacan (1956-7/1995) pergunta-se em

que momento e sob que circunstâncias o sujeito descobre a falta na mãe, a partir da qual ele

próprio sujeito se vê levado a ocupar esse lugar. O autor conclui que

É somente depois do segundo tempo da identificação imaginária especular à imagem

do corpo, que está na origem do seu eu e que dá a matriz deste, que o sujeito pode

realizar o que falta à mãe. A experiência especular do outro como formando uma

totalidade é uma condição prévia. É com referência a esta imagem que o sujeito

realiza que, a ele, alguma coisa pode faltar. O sujeito leva assim para além do objeto

do amor esta falta a que pode ser conduzido a substituir, a se propor ele mesmo

como o objeto que a preenche (LACAN, 1956-7/1995, p. 180).

4 “Sua Majestade, o Bebê”, em tradução direta.

36

Se não há um corte nessa relação objetal, a criança permanece capturada pelo

significante materno, em posição de alienação. Neste sentido, é necessária uma segunda

operação, a de separação, que Lacan (1964/2008) aponta como a via de retorno da primeira,

quando o sujeito pode formular uma questão sobre o desejo da mãe.

É nesta cena que surge o significante do Nome-do-Pai, conferindo um nome ao desejo

materno. Esta operação é a que permite inscrever a criança na ordem da filiação e introduzir

uma restrição ao gozo na relação mãe-filho por meio da transmissão da interdição do incesto.

De acordo com Flesler (2012, p. 46), a operação de nominação realizada pelo pai

[…] vetoriza a proibição e limita o gozo em vários sentidos. Para o filho, ao indicar

que há uma mulher com a qual ele não terá satisfação. Para a mãe, ao desejá-la como

não-toda mãe; e para si mesmo, por sua vez, ao recordar que seu lugar de pai é

devedor de um nome.

É a operação da função paterna que permite a passagem que vai da relação dual,

imaginária, na qual a criança está alienada ao significante oferecido pelo Outro materno, ao

advento das relações de objeto propriamente ditas, lugar em que a criança se inscreve

enquanto sujeito do desejo e da linguagem, sob a lógica de uma ordem simbólica.

Freud, em sua perspectiva, já antecipara a questão da filiação e da ordem simbólica em

“Totem e Tabu” (1912-3/1996), narrando o mito do pai da horda primitiva. O pai da horda era

detentor de todas as fêmeas da tribo, desfrutando portanto de um gozo ilimitado. Seus filhos,

que eram impedidos de fazer o mesmo, reúnem-se e voltam-se contra o pai, assassinando-o e

depois comendo seu cadáver. Em seguida, porém, são acometidos pela culpa, e o que antes o

pai lhes impedia, eles agora impedem a si mesmos, renunciando as fêmeas da sua tribo. Além

disso, elegem um totem para a tribo, que é representação do pai e tem estatuto de sagrado.

Observamos, assim, como Freud ilustra através do mito a passagem da vida eminentemente

institual ao campo das representações, pelo agenciamento da proibição do incesto. Lacan

(1953/1998), evocando as alianças presentes nas relações de parentesco, retoma a questão da

interdição afirmando que ela é o “eixo subjetivo” (p. 278) da Lei primordial, “aquela que, ao

reger a aliança, superpõe o reino da cultura ao reino da natureza, entregue à lei do

acasalamento” (p. 278). É no nome do pai (LACAN, 1953/1998, grafado ainda em letras

minúsculas) que encontramos a representação dessa Lei e o suporte da função simbólica que

opera na constituição subjetiva da criança.

37

É o agenciamento da interdição do incesto, através da metáfora paterna, que barra o

gozo que seria desempenhado junto à mãe, perda que passa a sustentar a regulação dos outros

gozos humanos (FLESLER, 2012). Outras perdas também são significativas: a do acesso

direto ao real, que será mediado agora pelas leis da linguagem, e a perda do objeto

considerado natural para satisfação das necessidades, que operava dentro de uma lógica

instintiva. Assim, falamos de um distanciamento da dimensão natural do ser humano, para o

advento de uma ordem simbólica, pelas leis da cultura. Consequentemente, essas perdas

também possibilitam ganhos, dentre os quais Flesler (2012, p. 22) destaca o despertar do

desejo, tendo em vista que o objeto não está dado: “só quando o objeto não é predestinado

pelo instinto pode existir escolha de objeto; graças a ter se perdido, o objeto pode se renovar

[…]. E sem a fixidez do real, abrem-se por sua vez as alternativas oferecidas pelo jogo do

Simbólico”. Podemos dizer que a ordem simbólica estrutura a criança enquanto sujeito

desejante.

Depois de termos traçado esse percurso, é possível, então, aferir o papel primordial

que representam as funções materna e paterna no processo que se encaminha na direção do

advento do sujeito do inconsciente. Antes de mais nada, destacamos que são, precisamente,

funções, tomadas por Lacan de modo estrutural. Desse modo, existe uma distinção clara entre

o desempenho de uma função simbólica e a representação de papéis sociais, que Lacan

apresenta, por exemplo, pela discordância entre o pai simbólico e o pai real (1956-7/1995).

Ainda que não haja uma predeterminação, digamos, imaginária, de quem deveria ocupar o

lugar de tais funções, é necessário que exista, de fato, alguém neste lugar, “implicando a

relação com um desejo que não seja anônimo” (LACAN, 1969/2003, p. 39).

Em sua “Nota sobre a criança” (1969/2003, p. 369), Lacan referiu-se à marca de um

desejo particular que a mãe representa sobre a criança, “nem que seja por intermédio de suas

próprias faltas”. Neste sentido, quando lembramos a discussão iniciada no capítulo anterior,

sobre o imaginário que se produziu em torno da família nuclear burguesa como espelho da

moral e dos bons costumes, a partir de uma lógica higienista que prima pelo que poderíamos

chamar de uma assepsia das relações, vemos que essas ideias se encaminham na contramão

daquilo que Lacan formula nessa passagem que acabamos de destacar.

Quando pensamos, por exemplo, em relação às dinâmicas das instituições de

acolhimento, é salutar questionar o lugar que resta para esse interesse particularizado,

38

enquanto fator constituinte primordial. Neste sentido, trazemos ao centro do debate a questão

do acolhimento institucional, enquanto medida protetiva prevista pelo ECA. Não podemos

cair no erro de condenar a medida pelo simples argumento de que a criança não deve, sob

hipótese alguma, ser separada da família, pois bem sabemos da existência de conjunturas

extremas que colocam em risco a própria vida da criança. Mas podemos questionar em que

proporção essas instituições ainda são regidas por uma lógica excludente e sanitária, que se

deixa entrever por meio de diversos fatores, como, por exemplo, o grande número e a longa

permanência de crianças internadas por situação de rua ou pobreza. Sem dúvida, tratam-se de

questões delicadas por estarem profundamente enraizadas no modo como nossa sociedade se

organizou desde a origem, mas que devem ser problematizadas. É esse esforço que faremos

no próximo capítulo, no qual dados de observações dessas instituições serão buscados e

articulados com as considerações que tecemos sobre um posicionamento da psicanálise frente

à constituição do sujeito.

39

4 CRIANÇA INSTITUCIONALIZADA: ENTRE O PARTICULAR E O UNIVERSAL

Dentre os fatores que apontamos como uma possível aproximação sobre a família a

partir de um viés psicanalítico, destacamos a marca de um interesse particularizado sobre a

criança, que se denota elementar para que esta se constitua enquanto sujeito desejante. Esse

processo acontece por meio do amalgamento de algumas operações psíquicas, que envolvem

o desempenho de funções eminentemente simbólicas por parte das pessoas que se encarregam

pela criança, que podem supor neste ser um desejo, e portanto, um sujeito, antes que a criança

se reconheça como tal. É neste sentido que nos questionamos quanto às possibilidades que a

instituição tem de, em alguma medida, prestar um cuidado singular e a atento à cada criança,

abrindo caminho para a subjetivação desta.

Não objetivamos com isso apontar, por exemplo, fatores de risco ao desenvolvimento

da criança que estariam envolvidos nos processos de institucionalização, atribuindo uma

relação de causa e efeito, mesmo porque consideramos que o modo através do qual cada

sujeito se posiciona frente ao Outro é absolutamente singular, ainda que possamos observar a

importância das operações às quais nos referimos. O que pretendemos é abordar situações do

cotidiano destas instituições, que destoam das normativas jurídicas e orientações técnicas que

já haviam avançado na direção de uma conduta mais individualizada em relação à criança e

sua família, refletindo uma dificuldade de superar o modelo asilar e assistencialista das

instituições totais próprias às políticas “menoristas” que antecederam a promulgação do ECA,

modelo que, do ponto de vista da psicanálise, podemos considerar que opera através de

condutas que têm um potencial de dessubjetivação.

Em junho de 2015, tivemos a oportunidade de participar de algumas inspeções do

Ministério Público do Estado do Ceará (MP-CE) nas unidades de acolhimento de crianças e

adolescentes na cidade de Fortaleza, diante do gentil convite da Sra. Antônia Lima, promotora

de Justiça da 7ª Promotoria da Infância e Juventude desta comarca. Trata-se de uma atividade

regular do MP-CE, realizada trimestralmente em todas as unidades de acolhimento do referido

município, para averiguar se o serviço oferecido pelas unidades encontra-se em consonância

com as diretrizes propostas pelo Ministério do Desenvolvimento Social e do Combate à Fome

(MDS), identificando possíveis violações de direitos e operacionalizando a articulação entre

as instituições e as entidades governamentais. O Conselho Nacional do Ministério Público

40

fornece uma guia para realização da inspeção, na qual a maior parte dos itens refere-se ao

Projeto Político Pedagógico (PPP) da unidade, aquele que orienta todo o funcionamento do

serviço em questão, contemplando tanto aspectos do funcionamento interno da unidade, como

sua relação com a rede que inclui as famílias e comunidades dos jovens e crianças sob seu

encargo (BRASIL, 2009). Após as inspeções, o MP-CE emite um parecer técnico sobre o

serviço da unidade em questão.

Acompanhamos quatro inspeções em diferentes unidades, sendo três delas

coordenadas por organizações não governamentais e uma poder público estadual, que

atendiam faixas etárias distintas. Ainda que tenham sido breves aproximações com o cotidiano

destas instituições, as observações realizadas nas visitas às unidades, assim como alguns

indicadores apontados pela guia de inspeção, nos chamaram a atenção para certas

problemáticas, as quais trataremos a seguir em articulação com a perspectiva psicanalítica

trabalhada no capítulo anterior. Além disso, estaremos em constante diálogo com autores que

em suas pesquisas estiveram observando mais a fundo a dinâmica de instituições congêneres.

Dentre os diversos elementos observados, aqueles que nos servirão de norte para a

discussão serão principalmente os seguintes: o impasse de promover um cuidado mais

individualizado à criança; a dificuldade da manutenção dos vínculos familiares; e a

complexidade de realizar e aprofundar a análise da situação familiar que poderia justificar a

aplicação da medida, considerando aspectos relacionados aos laços sociais e à situação

econômicas, além dos fatores destacados anteriormente, inspirados numa perspectiva da

psicanálise.

4.1 Cuidado e subjetivação nas instituições de acolhimento

De acordo com Altoé (1990/2008), o formato dos internatos sob o antigo regime da

FUNABEM assemelhava-se à lógica das instituições totais, conceito traçado por Goffman

(1996). Para este autor, a instituição total além de apresentar “tendências de fechamento”

(GOFFMAN, 1996, p. 16), impondo obstáculos à relação social de seus internados com o

mundo exterior, também é definida a partir do seguinte conjunto de características:

41

Em primeiro lugar, todos os aspectos da vida são realizados no mesmo local e sob

uma única autoridade. Em segundo lugar, cada fase da atividade diária do

participante é realizada na companhia imediata de um grupo relativamente grande de

outras pessoas, todas elas tratadas da mesma forma e obrigadas a fazer a mesma

coisa em conjunto. Em terceiro lugar, […] toda a sequência de atividades é imposta

de cima, por um conjunto de regras formais explícitas e um grupo de funcionários.

Finalmente, as várias atividades obrigatórias são reunidas num plano racional único,

supostamente planejado para atender aos objetivos oficiais da instituição

(GOFFMAN, 1996, p. 17-18).

Depreendemos, então, que o núcleo organizador das instituições totais gira em torno

de relações de hierarquia e autoridade, da imposição de regras e da indiferenciação entre os

internos, bem como o afastamento das suas comunidades de origem.

Partindo ainda deste quadro, mas já lançando uma pergunta para o momento seguinte

que é de reestruturação do sistema para atender às prerrogativas do ECA, Altoé (2010) se

questiona se a psicanálise teria algo para dizer sobre o trabalho institucional com crianças e

adolescentes. A autora formula a seguinte interrogação, que nos será de suma importância:

[…] como dentro de uma escola ou estabelecimento de atendimento a crianças e

jovens é possível conciliar a visão universalizante e normativa de toda política

educativa com o respeito e a promoção que valorizam as diferenças, caracterizando

cada um como sujeito desejante e singular? (ALTOÉ, 2010, p. 53-54, grifo nosso).

Durante as visitas que participamos, acompanhando as inspeções do MP-CE, foi

possível observar um esforço neste sentido, especialmente em duas instituições que tinham

sua capacidade total em acordo com as orientações do MDS, de no máximo 20 crianças e/ou

adolescentes. Nestas, os acolhidos tinham, por exemplo, possibilidade de guardar consigo

alguns objetos pessoais, como roupas, brinquedos e produtos de higiene pessoal, e

principalmente, de eleger o momento de utilizá-los. Os gestores e educadores das instituições

que acompanharam essas duas visitas reiteravam a importância da manutenção de tal aspecto

para as crianças e adolescentes da instituição, observando o apego que as crianças

desenvolvem a tais objetos. Nas outras duas entidades, que têm a capacidade total superior a

70 internos, já não é dada essa possibilidade, sendo praticamente todos os objetos e espaços

de uso coletivo, de acordo com os gestores.

Já no final dos anos 80, no estado do Rio de Janeiro, Altoé (1990/2008) observou a

dinâmica de sete internatos de uma fundação ligada à FUNABEM e enumerou diversos

pontos que guardam relação com a questão que acabamos de colocar. Em relação à questão da

42

privacidade e do objeto particular, afirma que pela dinâmica destes internatos restaria às

crianças pouca ou nenhuma “referência que as individualize, que as situe como singulares no

mundo em que vivem” (ALTOÉ, 1990/2008, p. 57), mas que a criança busca os meios de, em

alguma medida, preservar um objeto que seja unicamente seu. A autora exemplifica essa

operação com a observação de uma cena recorrente nos internatos, na qual as crianças

carregavam por toda parte em sacolas ou bolsos do uniforme os poucos pertences que lhe são

permitidos manter, como um brinquedo ou agasalho trazido de casa. Isso porque não haveria

lugar “seguro” para guardá-los. Segundo a psicanalista, a opção para as crianças confiá-los às

cuidadoras seria inexistente, pelo descaso que poderiam ter para com o objeto.

Vemos aí, mais uma vez, o esforço institucional para apagar qualquer diferenciação

que possa existir entre os internos. Se um objeto é propriedade particular, ele é

diferente. Poder se reconhecer num objeto particular que tenha sua marca, seu

cheiro, sua história, é construir sua identidade. E uma forma de você se reconhecer

dentro de um espaço que não lhe dá qualquer reconhecimento (ALTOÉ, 1990/2008,

p. 63).

A autora aborda também elementos que remontam a um período ainda mais precoce

do desenvolvimento, relativo ao processo de aquisição da linguagem. Afirma que em geral,

nestes abrigos em formato de instituição total, não há estimulação para que a criança se

expresse por meio da linguagem, e ela acaba sendo transmitida dissociada da experiência,

portanto de forma limitada. Por meio deste processo, “todos os significados são dados de

forma alienante” (ALTOÉ, 1990/2008, p. 31), ao que a autora exemplifica através das relações

que a criança institui com a satisfação das próprias necessidades: como toda a dinâmica do

internato segue uma rotina, existe o momento certo para alimentar-se, para ir ao banheiro,

para beber água. Nada pode subverter essa ordem, principalmente, o desejo da criança.

Disso podemos assinalar um elemento central, que remete a outros igualmente

importantes: que nesse formato institucional não resta muito espaço para que a criança possa

advir enquanto sujeito de desejo. Na dinâmica institucional não há suposição de um desejo na

criança, tal qual observamos em relação à realização da função materna, quando o agente

desta função produz uma interpretação sobre a necessidade que o bebê exprime pelo choro,

presumindo que ele quer exprimir algo, operando a partir da suposição de um sujeito. A

dimensão da suposição fica reduzida na instituição pela rígida rotina, na qual tudo já está dado

- a ordem, os horários, quanto comer, quanto beber -, com poucas condições para que a

43

criança formule uma demanda própria e um enigma sobre o desejo do Outro. Do mesmo

modo, resta pouco espaço nessa dinâmica para a dimensão do singular, pois os cuidados

seguem normas e devem ser os mesmos para todos.

À guisa de conclusão deste ponto, retomemos a questão de Altoé (2010) sobre o que a

psicanálise teria a contribuir no trabalho com crianças e adolescentes em instituições.

Reportando-se a Holvoet (1993), afirma que uma contribuição possível se daria no sentido de

“tornar a instituição não-toda” (ALTOÉ, 2010, p. 57). Como vimos, a instituição opera

fornecendo todas as respostas sobre a criança, sem permitir que ela se interrogue sobre o

próprio desejo, logo, dificultando o surgimento de um sujeito. Tornar a instituição “não-toda”

significaria permitir que a criança se questione quanto ao que querem dela, colocando em

questão sua posição subjetiva frente à demanda do Outro.

4.2 Acolhimento, transmissão e manutenção dos laços familiares

Nas referidas ocasiões em que tivemos a oportunidade de acompanhar a inspeção do

MP-CE nas unidades de acolhimento, observou-se que, quando os gestores referiam-se às

questões particulares de um certo caso, objetivando obter dos representantes do MP

informações sobre o assunto, quase sempre estavam reportando-se a alguma dificuldade

encontrada na manutenção dos laços familiares das crianças acolhidas ou de viabilizar o

retorno da criança ao lar.

Dentre os pontos abordados pela guia de inspeção do MP-CE, consta um item que

questiona quantas crianças e adolescentes acolhidos estão sem receber visita dos pais ou

responsáveis há mais de dois meses. Apenas duas unidades - as quais a capacidade total

encontra-se dentro das orientações técnicas do MDS - souberam responder a pergunta,

afirmando que cerca de um terço das crianças e adolescentes sob sua tutela estão dentro deste

parâmetro. As outras duas instituições, disseram não conseguir reunir esses dados rapidamente

devido ao grande número de crianças que acolhem, mas foram enfáticos em responder que

muitas estavam nessa situação, por um período inclusive superior a dois meses.

As instituições colocaram que isso acontece por diversos fatores, mas é recorrente a

problemática que se impõe devido à distância entre o município de origem da família e o local

44

onde a criança encontra-se abrigada, muitas vezes porque as famílias não têm condições

financeiras de custear o translado. A partir de outros itens da guia, foi possível observar que

um número alarmante de internos dessas quatro instituições tem suas famílias residindo em

outro município, em proporção que varia de 10% a 50% das crianças e adolescentes

acolhidos. Outra dificuldade apontada pelos gestores é relativa ao horário de visitas, que

geralmente acontece de segunda a sexta em horário comercial, quando a equipe técnica está

na unidade. Assim, muitas famílias não conseguem manter a frequência por não ser possível

se ausentarem do trabalho para este efeito. Ainda que nas respostas da entrevista os gestores

afirmem que há flexibilidade nos horários, seu discurso denota que tratam-se de exceções,

pois tal permissão comprometeria a dinâmica institucional.

Destarte, já identificamos entre estes aspectos várias dificuldades que dizem respeito à

própria rede de assistência, como a carência de unidades de acolhimento em comarcas do

interior do estado, de programas nos quais a família pudesse ser também cuidada para então

exercer sua parentalidade, e de um corpo maior de profissionais dos serviços de assistência e

proteção, que dariam maior celeridade aos casos, bem como realizar de modo mais

aprofundado o estudo social de cada caso, evitando internações desnecessárias. Mas também

não podemos deixar passar a relação direta que existe entre a dificuldade de retorno ou

permanência da criança junto à família por critérios da ordem de carência material.

Em sua dissertação de mestrado, na qual investigou as relações entre o princípio do

melhor interesse da criança e a aplicação da medida de acolhimento, Boesmans (2015)

ressalta, através de vários casos de crianças atendidas em uma unidade de acolhimento da

cidade de Fortaleza, a veracidade desta relação entre pobreza e institucionalização. A partir de

seu recorte, a autora analisou os prontuários de 17 crianças, verificando incongruências entre

os motivos assinalados nas guias de acolhimento e outros dados recolhidos, como por

exemplo nas guias de irmãos acolhidos pelas mesmas circunstâncias, nas quais, entretanto,

constavam motivos diferentes da guia do primeiro. Aponta, com isso, que os critérios

assinalados no instrumental podem estar encobrindo um motivo anterior, notadamente a

internação pela falta de recursos financeiros da família. Nos prontuários analisados constam

frequentemente os motivos de negligência e situação de risco justificando a medida, porém

uma avaliação mais atenta dos casos revelava o impasse em devolver as crianças às famílias

por razões de ordem material e financeira.

45

Outro ponto levantado pelo trabalho de Boesmans (2015, p. 115) é quanto à

precipitação na aplicação da medida, apontada pela “discrepância entre o tempo que se leva

para avaliar a situação da criança antes do acolhimento e para o retorno familiar”, questão que

ensaiaremos articular no próximo tópico, mas que suscita uma indagação importante para a

autora: a retirada da criança do seio da família de fato atendeu ao princípio do seu melhor

interesse? Neste sentido, faz menção ao interesse particularizado que a família poderia dirigir

à criança, diferente do que a instituição poderia oferecer ao partir de uma esfera universal,

como já discutido. A autora lembra-nos, por fim, que “não é a materialidade que se faz central

para a constituição psíquica, e sim o desejo e a disponibilidade psíquica de cada pai ou mãe

em ocupar uma função no interior da família” (BOESMANS, 2015, p. 121).

Podemos falar, portanto, da dificuldade encontrada não apenas pelo poder público,

mas pela sociedade brasileira como um todo, de superar a doutrina da situação irregular; e de

uma visível discrepância entre a aplicação da medida e o texto jurídico que assegura que a

carência material não pode constituir motivo suficiente para suspensão ou destituição do

poder familiar. Se por um lado tivemos, em relação à legislação e às políticas voltadas para os

direitos infância e juventude, um avanço em ressaltar o importante papel desempenhado pela

família no cuidado à criança e ao adolescente, por outro lado, temos ainda a manutenção de

mecanismos de controle e exclusão social na operacionalização destas regulamentações.

4.3 Aplicação da medida protetiva: a pressa em concluir

O estudo de caso ao qual nos referimos consiste em um estudo social realizado junto à

família em questão, com o objetivo de subsidiar a decisão judicial acerca da aplicação ou não

da medida de acolhimento institucional. De acordo com as orientações técnicas do MDS

(BRASIL, 2009, p. 24), ele deve “incluir uma criteriosa avaliação dos riscos a que estão

submetidos a criança ou o adolescente e as condições da família para superação das violações

de direitos observadas e o provimento de proteção e cuidados”. A decisão cabe sempre ao juiz,

porém, em situações excepcionais de risco ou emergência o Conselho Tutelar pode aplicar a

medida, apresentando uma recomendação técnica que tenha partido do estudo cuidadoso de

cada família afetada (BRASIL, 2009). O referido estudo embasa também a Guia de

Acolhimento da criança (documento expedido pela autoridade judicial) na qual se encontram

46

registradas todas as informações recolhidas sobre a criança, por exemplo, a sua identificação,

o contato de pessoas de referência e os motivos do afastamento familiar (BRASIL, 1990).

Cabe ressaltar, que tal documento é indispensável para o abrigamento da criança ou

adolescente.

No instrumental que orienta as inspeções do MP-CE consta um item no qual questiona

se existe alguma criança acolhida sem a respectiva Guia de Acolhimento. Das quatro

instituições vistoriadas, apenas uma disse que todas as crianças estavam com a documentação

completa. Os responsáveis pelas demais instituições, ao serem questionados quanto aos

motivos dessa irregularidade, responderam que acontece recorrentemente o pedido de

acolhimento de crianças e adolescentes por parte do Conselho Tutelar atribuindo caráter

emergencial à ação, no entanto, em muitas dessas ocasiões a pressa em acolher a criança

compromete a emissão da Guia concomitantemente à institucionalização. Questionamo-nos,

nesse sentido, se o que fica comprometido seria não a emissão do documento propriamente,

mas a realização da arguição que a antecede, estabelecendo motivos claros para a suspensão

do poder familiar.

Recorremos mais uma vez à pesquisa de Boesmans (2015), que observou situação

semelhante ter destaque no caso5 de um grupo de irmãos. Neste caso não havia,

aparentemente, nenhuma irregularidade em relação à presença das Guias nos prontuários das

crianças, mas se sobressaía um impasse no retorno das crianças ao lar, bem como um período

relativamente longo em que um dos irmãos permaneceu acolhido, enquanto o outro

permaneceu com a família. Para a pesquisadora, a situação revela “uma discrepância entre o

tempo que se leva para avaliar a situação da criança antes do acolhimento e para o retorno

familiar, deixando a família impotente e, assim, incapacitada de prover os cuidados dos

filhos” (BOESMANS, 2015, p. 115).

5 Trata-se do caso dos irmãos Dênis e João, descrito pela autora em sua pesquisa (BOESMANS, 2015, p. 114-

116). João foi acolhido com 6 meses de idade, por motivo de situação de risco, após sua mãe ter sido agredida

enquanto lhe segurava. No momento, ela estava alcoolizada e não soube informar onde a criança poderia ficar

provisoriamente. Depois da aplicação da medida, os pais passaram a visitar o filho na instituição diariamente e se

empenharam em modificar a situação em que viviam para recebê-lo de volta de acordo com o que lhe fora

requisitado, tendo a mãe inclusive recuperado-se aparentemente do uso abusivo do álcool. No entanto, não foi

tomada nenhuma decisão judicial de retorno durante longo período, ainda que a família sempre solicitasse o

retorno da criança. Chegou a se decidir que a criança passasse os fins de semana com os pais, mas a equipe da

instituição entendeu não existirem condições para tanto. Neste intervalo de tempo, o casal teve outro filho,

Dênis, que inicialmente permaneceu com eles, porém dois anos mais tarde, foi também acolhido, ao ser

encontrado na companhia da mãe alcoolizada em uma praça.

47

Podemos inferir, deste modo, que o estudo social tem uma importância fundamental

para que a medida de acolhimento seja eficaz na tarefa que se propõe de ser um lugar de

transição para a reintegração familiar, e principalmente, para que tal medida seja inclusive

desconsiderada caso se observe que a questão familiar agravante pudesse ser apaziguada ou

solucionada por outras vias, que não o afastamento da criança do lar. Mas na prática o que se

observa é uma precipitação na decisão sem que haja um cuidado em observar atentamente a

dinâmica envolvida, tornando custosa a reversão da medida mais tarde, pois “uma vez

incluídos no sistema, sob os olhos dos profissionais da assistência e da Vara da Infância e

Juventude, torna-se difícil para a família sair da tutela estabelecida pelos profissionais”

(BOESMANS, 2015, p. 114).

Sob a perspectiva da psicanálise, acompanhamos a proposição do psicanalista Gilles

Garcia (2015)6 e retomar em três tempos lógicos - a saber, o instante de olhar, o tempo para

compreender e o momento de concluir (LACAN, 1945/1998) – o processo que vai da

identificação de um problema à formulação de um diagnóstico situacional do campo da

assistência social. Para Lacan (1945/1998), o instante de olhar é aquele em que se formula um

enigma, que “introduz a forma que, no segundo momento, cristaliza-se como hipótese

autêntica, pois vem a visar à verdadeira incógnita do problema (p. 205), que é o tempo para

compreender. Este, por sua vez, não possui um limite definido entre o primeiro e o terceiro

tempo, que é sua conclusão, movida por uma urgência e representada por um ato.

No caso aqui proposto (BOESMANS, 2015), a decisão judicial pela medida de

acolhimento pode ser identificada como o ato do momento de concluir. O que podemos

indicar é que, nas situações em que ocorre uma defasagem no estudo que é realizado em

relação às famílias, acontece uma supressão do tempo para compreender, pela urgência em

produzir um ato, dinâmica recorrente na alçada jurídica. Lacan (1945/1998, p. 207) ainda

aponta que a motivação da conclusão toma a forma de um “para que não haja...” ou mesmo de

um “por medo de que...”. Se trouxermos a questão para o contexto que objetivamos trabalhar,

de que modo poderíamos concluir essas sentenças?

6 Tal proposição foi apresentada pelo psicanalista em comunicação na mesa redonda “A criança em risco: relatos

de experiências de psicanalistas em instituições francesas”, promovida pelo Laboratório de Estudos sobre

Psicanálise, Cultura e Subjetividade (LAEPCUS) da Universidade de Fortaleza (UNIFOR), realizada nessa

instituição no dia 18 de agosto de 2015.

48

Se retornarmos à época do direito “menorista”, fincado na doutrina da situação

irregular, poderíamos pensar o ato da internação de crianças e jovens pobres motivado por um

medo de que houvesse um contágio à delinquência, uma vez que esta era atribuída à suposta

incapacidade das famílias pobres de orientarem seus filhos na direção da moral e dos bons

costumes; e para que não houvesse nenhuma ameaça à ordem social imposta, baseada em

princípios normatizantes e excludentes, mas tudo sob a égide de uma dita proteção social da

infância.

No entanto, o que verificamos a partir de um viés psicanalítico é a impossibilidade de

estabelecer um modelo ideal de família, que seria entendido como natural para o

desenvolvimento da criança. Pois, retomando Lacan (1938/1987), ainda que exista uma

semelhança entre a família nuclear conjugal e o modelo biológico que permite a reprodução,

para a primeira ser entedida como natural, seria preciso verificar tal configuração em

organizações familiares mais primitivas, e nem sempre se deu assim, como já apontado.

Temos, com isso, que os laços de parentesco se organizam menos de acordo com laços

naturais de consanguinidade do que por outros fatores, como laços civis e afetivos, que se

organizam culturalmente.

Nesse sentido, reiteramos também que a dimensão da família está intimamente ligada

à dimensão da cultura, como observado em relação aos complexos familiares (LACAN,

1938/1987). Estes, organizam o desenvolvimento psíquico, pela via da transmissão da cultura,

da linguagem e das leis que organizam as relações sociais, tratando-se portanto da operação

de uma função simbólica. Em um plano individual, tal função é agenciada pela combinação

das funções parentais, que podem favorecer a constituição subjetiva da criança enquanto

sujeito de desejo, desde alguém encarne a função, voltando à criança um interesse particular

(LACAN, 1969/2003).

Desse modo, nos preocupam quais as condições que as entidades de acolhimento

dispõem para oferecer esse cuidado particularizado à criança, tendo em vista as dificuldades

já apresentadas de superar o modelo asilar de institucionalização, ocasionando o apagamento

da dimensão do sujeito. Temos princípios jurídicos bem formulados, que superaram em alguns

e importantes aspectos essa lógica, como a abertura para considerar a família primeiramente

por meio de seus laços afetivos (BRASIL, 2006), ou mesmo a proposta de reestruturação dos

serviços de acolhimento que vai no sentido de uma perspectiva mais humanizante, e da

49

ampliação das alternativas à instituição no caso de medidas protetivas (como as famílias

acolhedoras e casas-lares) (BRASIL, 2009).

Mesmo assim, temos testemunhado nos últimos anos um verdadeiro retrocesso em

relação a essas determinações, como, por exemplo, a recente aprovação na Câmara dos

Deputados do projeto de lei que concebe a família estritamente como a união entre homem e

mulher, e as discussões acaloradas em torno da redução da maioridade penal, por iniciativa e

interesse de grupos isolados, que dispõem, porém, de elevado poder midiático. Sobretudo

agora, não podemos perder de vista os sujeitos que permanecem marginalizados e

objetificados enquanto tais conflitos se desenrolam. Zelar pela infância e pela juventude, resta

ainda - inclusive constitucionalmente - um dever nosso enquanto sociedade.

50

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

No inicio do desenvolvimento deste trabalho apresentamos um processo histórico

através do qual foram se sedimentando determinadas representações sociais sobre a criança e

o adolescente, principalmente os de classe social mais pobre, que formavam a categoria dos

“menores”. Vimos que as instituições de abrigamento e centros de correção desempenharam

um papel significativo de viabilizar o controle e a intervenção do Estado sobre esses jovens e

suas famílias, sob a justificativa de proteção social dos primeiros. Durante os anos em que

vigoraram os códigos de menores e seus órgãos de execução de medidas, notavelmente o

SAM e a FUNABEM, inúmeras foram as denúncias de práticas nocivas cometidas sobre

internos das instituições gerenciadas por esses serviços (RIZZINI; RIZZINI, 2004;

PINHEIRO, 2006), evidenciando que seu trato ia no sentido contrário da pretensa proteção.

Como produto de fortes movimentações sociais em busca da garantia dos direitos

humanos, que culminariam o fim do regime militar no Brasil, o ECA surge instituindo um

novo paradigma no direito da criança e do adolescente, que é o da proteção integral. Como já

apresentado, um de seus principais fundamentos refere-se ao direito à convivência familiar e

comunitária, reverberando tanto sobre as medidas de proteção, como os órgãos aplicadores

das mesmas, apontando a necessidade de uma reestruturação desse sistema. Assim, a medida

de acolhimento institucional para crianças e adolescentes passa a ser, de acordo com o

Estatuto, uma providência de caráter provisório e aplicável excepcionalmente quando na

ameaça ou violação dos direitos da criança, que inviabilize sua permanência no lar, não

constituindo medida de privação de liberdade (BRASIL, 1990). No entanto, deve-se

privilegiar medidas que favoreçam a manutenção dos vínculos familiares, sendo a família

também auxiliada para exercer seu papel de cuidado e responsabilização por seus filhos. Para

tanto, faz-se imprescindível uma análise situacional cuidadosa, que observe a família e a

criança em sua singularidade (BRASIL, 2009), atentando para a manutenção dos laços

afetivos que unem aquele grupo à criança, reconhecidos como fundamentais para seu

desenvolvimento (BRASIL, 2006).

Em seguida, observamos que, em última instância, essa tentativa converge com uma

perspectiva psicanalítica sobre a família, tomada a partir de um complexo no qual se

entrelaçam funções eminentemente simbólicas, que possibilitam o sujeito se inscrever na

51

cultura, distanciando-se de uma perspectiva normativa. Tais funções são operadas a partir de

uma complexa trama de relações regidas por um desejo singular e não-anônimo (LACAN,

1969/2003) daqueles que se encarregam da criança, a partir do qual ela pode também

constituir-se enquanto sujeito desejante.

Vimos que neste processo constitutivo são centrais duas operações básicas, a de

alienação e de separação (LACAN, 1964/2008). A primeira, intimamente ligada à função

materna, consiste no momento em que a criança permanece capturada no campo do Outro, na

medida em que este produz significações sobre suas experiências, que correspondem a uma

hipótese de um desejo da criança, que ainda não fala por si. A separação, por sua vez,

acontece quando a criança pode formular uma questão sobre o desejo da mãe pela introdução

do significante do Nome-do-Pai, este que a insere na ordem de uma filiação e institui a

proibição do incesto, lei fundamental que possibilita o distanciamento de uma dimensão

instintual a uma ordem simbólica.

Em seguida, articulamos os dois campos, da psicanálise e das políticas voltadas à

infância e juventude, a partir de observações da dinâmica de instituições de acolhimento,

problematizando três aspectos: as questões do cuidado individualizado, da manutenção dos

vínculos familiares e do momento anterior à aplicação da medida, representado pela análise

situacional da família. Em relação ao primeiro ponto, observamos que a dinâmica das

instituições de acolhimento, se restrita a rígidas normas e rotina, deixa pouco espaço para a

dimensão singular de cada criança, e dificulta o surgimento de um sujeito de desejo, vez que

não há espaço para desejar quando tudo já está preestabelecido.

No que concerne à segunda questão, foi possível aferir uma significativa defasagem na

aplicação das políticas de assistência à família, que possivelmente evitariam a

institucionalização de muitas crianças, ou facilitariam seu retorno ao lar, caso fossem

acolhidas. Neste sentido, podemos apontar uma desconsideração dos aspectos psíquicos e

afetivos envolvidos na complexa trama dos vínculos familiares, e do que estes fatores

representam para o processo de subjetivação da criança. Foi possível atentar, ainda, que este

ponto de análise guarda estreita relação com o terceiro, pois indica um impasse na avaliação

dos casos particulares de cada criança e família, que deveria ser realizada antes da aplicação

da medida, de modo a assegurar que o melhor interesse da criança fosse atendido. No entanto,

52

tal como a relação sugerida pelo psicanalista Gilles Garcia7 entre a formulação de um

diagnóstico situacional na esfera da assistência social e os três tempos lógicos apontados por

Lacan (1945/1998), observamos uma supressão do tempo para compreender na pressa em

concluir através de um ato, por motivos que parecem ir além da proteção social da criança, e

que nos remetem ao momento histórico trabalhado inicialmente, marcado por mecanismos de

exclusão e controle social.

Dentre os desafios encontrados na realização deste trabalho, destacou-se a

complexidade envolvida em delimitar um tema de pesquisa, tendo em vista a vastidão do

campo elegido. Tanto no âmbito do acolhimento institucional, quanto no da psicanálise,

inúmeras questões seriam pertinentes e possíveis de ser trabalhadas em articulação umas com

as outras, mas era necessário, em nome da objetividade que exige a natureza do trabalho,

restringir a discussão a poucos - porém relevantes - tópicos.

Consideramos, por exemplo, que teria sido valoroso ter trazido as perspectivas de

outros autores da psicanálise, como Bowlby (1998), Spitz (1996) e Winnicott (2011), que

durante o período pós-guerra na Europa estiveram comprometidos com a urgente questão

social que surgiu diante da grande quantidade de crianças órfãs ou afastadas da família em

decorrência do conflito mundial. Tais autores desenvolveram, a partir deste contexto,

importantes contribuições teórico-clínicas sobre os vínculos afetivos, o luto na infância e

também sobre as vicissitudes da institucionalização de crianças. Cabe destacar como outro

desafio encontrado no desenvolvimento do trabalho, a escassez de pesquisas de autores de

orientação lacaniana que versassem sobre estes temas, permitindo inferir que essas

preocupações estiveram predominantemente ligadas aos psicanalistas pertencentes à escola

inglesa de psicanálise.

Alguns dos assuntos que não puderam ser contemplados no presente trabalho têm

incitado muitos debates na atualidade, como a questão das chamadas novas configurações

familiares, que convoca a psicanálise, por exemplo, a posicionar-se diante de reinvindicações

sociais que têm tomado maior proporção com o passar dos anos. Neste mesmo sentido, temos

também as discussões em torno da noção de parentalidade (LEBRUN, 2009; TEPERMAN,

7 Relação apresentada na seção anterior, tópico 4.3, com base em comunicação realizada pelo psicanalista na

mesa redonda “A criança em risco: relatos de experiências de psicanalistas em instituições francesas”, promovida

pelo Laboratório de Estudos sobre Psicanálise, Cultura e Subjetividade (LAEPCUS) da Universidade de

Fortaleza (UNIFOR), realizada nessa instituição no dia 18 de agosto de 2015.

53

2012), surgidas inicialmente na França, pela inclusão desta terminologia na legislação do país

em substituição a termos como paternidade e maternidade, e assim questionando também os

paradigmas familiares socialmente estabelecidos. Observamos que ambas as questões

guardam similaridade com o tema da convivência familiar, considerando-se a inclinação que a

norma legislativa brasileira tem demonstrado no sentido de considerar a família em

perspectivas mais amplas, abrangendo, sobretudo, os laços afetivos que lhe são próprios.

Finalmente, concluímos que o trabalho realizado poderia ter sido grandemente

enriquecido por uma pesquisa de campo mais aprofundada, que permitisse maior contato com

a realidade das instituições abordadas. Principalmente, em se tratando do trabalho com

crianças e adolescentes institucionalizados e todas as peculiaridades que esse tema envolve,

como amplamente discutido nos capítulos anteriores. Sem dúvida, este seria um possível

desdobramento desta pesquisa em trabalhos futuros, que poderia também abordar aspectos

como o lugar do analista e sua ética em instituições dessa natureza, considerando a

complexidade de trabalhar na esfera da assistência social, em contato com diversas demandas

sociais e políticas, com equipes multidisciplinares, crianças, adolescentes e suas respectivas

famílias.

54

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