UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO CENTRO DE...
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPRITO SANTO
CENTRO DE CINCIAS HUMANAS E NATURAIS
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA
KARLA CONSTANCIO DE SOUZA
AS NARRATIVAS JUDAICO-CRISTS SOBRE O MARTIROLGIO ASHKENAZI
MEDIEVAL (SCS. XI E XII): CONSTRUO E RESSIGNIFICAO DO KIDUSH
HASHEM NAS CRNICAS HEBRAICAS E LATINAS
VITRIA
2018 ~ 5778
KARLA CONSTANCIO DE SOUZA
AS NARRATIVAS JUDAICO-CRISTS SOBRE O MARTIROLGIO ASHKENAZI
MEDIEVAL (SCS. XI E XII): CONSTRUO E RESSIGNIFICAO DO KIDUSH
HASHEM NAS CRNICAS HEBRAICAS E LATINAS
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-
Graduao em Histria do Centro de Cincias
Humanas e Naturais da Universidade Federal do
Esprito Santo, como requisito parcial para a
obteno do ttulo de Mestre em Histria, na rea de
concentrao Histria Social das Relaes Polticas.
Linha de Pesquisa: Representaes e Ideias Polticas
Orientador: Prof. Dr. Sergio Alberto Feldman
VITRIA
2018 ~ 5778
Dados Internacionais de Catalogao-na-publicao (CIP)
(Biblioteca Setorial do Centro de Cincias Humanas e Naturais da Universidade
Federal do Esprito Santo, ES, Brasil)
Souza, Karla Constancio de, 1991-
S729n As narrativas judaico-crists sobre o martirolgio ashkenazi
medieval (scs. XI e XII) : construo e ressignificao do Kidush
haShem nas crnicas hebraicas e latinas / Karla Constancio de Souza.
2018.
236 f. : il.
Orientador: Sergio Alberto Feldman.
Dissertao (Mestrado em Histria) Universidade Federal do
Esprito Santo, Centro de Cincias Humanas e Naturais.
1. Judasmo Histria Perodo medieval e moderno, 425-1789. 2.
Cruzadas Primeira, 1096-1099. 3. Judasmo Relaes
Cristianismo. 4. Judasmo Cerimnias e prticas. 5. Martirolgios
Sc. XI. 6. Martirolgios Sc. XII. 7. Sacro Imprio Romano-
Germnico Histria At 1517. I. Feldman, Srgio Alberto. II.
Universidade Federal do Esprito Santo. Centro de Cincias Humanas e
Naturais. III. Ttulo.
CDU: 93/99
Elaborado por Saulo de Jesus Peres CRB-6 ES-676/O
KARLA CONSTANCIO DE SOUZA
AS NARRATIVAS JUDAICO-CRISTS SOBRE O MARTIROLGIO ASHKENAZI
MEDIEVAL (SCS. XI E XII): CONSTRUO E RESSIGNIFICAO DO KIDUSH
HASHEM NAS CRNICAS HEBRAICAS E LATINAS
Dssertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Histria do Centro de Cincias
Humanas e Naturais da Universidade Federal do Esprito Santo, como requisito parcial para a
obteno do ttulo de Mestre em Histria, na rea de concentrao Histria Social das
Relaes Polticas.
Aprovada em 03 de agosto de 2018.
Comisso Examinadora:
__________________________________________
Prof. Dr. Srgio Alberto Feldman
Orientador
Universidade Federal do Esprito Santo
__________________________________________
Profa. Dra. Ana Paula Tavares Magalhes Tacconi
Examinadora Externa
Universidade de So Paulo
__________________________________________
Profa. Dra. Leni Ribeiro Leite
Examinadora Interna
Universidade Federal do Esprito Santo
AGRADECIMENTOS
Ao meu orientador, Srgio Alberto Feldman, que esteve comigo do incio ao fim, confiou e
acreditou na minha capacidade quando nem eu mesma acreditava. Este trabalho fruto de seis
anos de pesquisa entre a graduao e o mestrado, nos quais ele me acompanhou e deu todo
suporte que podia. Agradeo toda a afeio, carinho e cuidado que nunca se poupou em
demonstrar, e compreendeu minhas necessidades sempre que precisei. Obrigada por tudo,
professor. .
Ao Natan Henrique Taveira Baptista, quem nunca me deixou desistir, e tirou as rodinhas da
minha bicicleta para que eu pudesse andar sozinha. Amigo, voc esteve presente em todos os
momentos mais importantes da minha trajetria acadmica. Este trabalho nunca teria se
tornado realidade sem voc, que sempre contribuiu imensamente e se dedicou de maneira
absurda para que eu pudesse concluir minha dissertao. Quem aguentou todos os meus
humores instveis no processo de escrita, e segurou minha mo at o fim. Gratias tibi ago,
amice.
Aos meus pais, Carlos e Odete, que sempre acreditaram nos meus sonhos e sem os quais eu
jamais teria chegado at aqui. Entenderam e suportaram minhas ausncias todos esses anos de
dedicao e pesquisa, assim como meu irmo Alexandre. Obrigada voc tambm, irmo.
Ainda que estejam a um oceano de distncia, estiveram sempre comigo, me dando foras e
energia na composio de cada frase deste trabalho. Um pouco de vocs certamente est aqui.
s minhas magistrae, Luiza Helena Rodrigues de Abreu Carvalho e Ktia Regina Giesen, por
inmeras coisas, sobretudo por me ajudarem com o latim e por terem tornado o processo de
escrita nos dias de vero menos doloroso. Luiza compartilhou comigo as maiores alegrias e
frustraes da vida acadmica; e Ktia, como minha revisora, deu o melhor de si para
aprimorar este trabalho. Minhas Brancas de Neve, vocs trouxeram luz quando eu me sentia
desmotivada.
Leni Ribeiro Leite, meu grande exemplo de trajetria e profissional acadmicos. Obrigada
pelas contribuies imprescindveis para este trabalho, que foi construdo com a ajuda dos
seus conhecimentos compartilhados sempre com muita solicitude e delicadeza. Obrigada
tambm por me fazer querer sempre dar o melhor de mim, por me acolher muitas vezes em
seu prprio grupo de pesquisa e por acreditar na minha competncia.
Ana Paula Tavares Magalhes Tacconi, que aceitou to diligentemente ler e avaliar este
trabalho como membra da banca. Querida professora, suas consideraes feitas com tamanho
esmero e gentileza foram fundamentais para aperfeioar ainda mais este texto quando ele
ainda estava em fase de composio. Obrigada por ser afeto e representar uma grande fagulha
de fineza, competncia e elegncia neste universo acadmico; , certamente, tambm um dos
meus grandes exemplos de conduta profissional a se seguir.
Anny Mazioli, minha companheira de caminhada nesses dois anos intensos. Juntas
pesquisamos, escrevemos, viajamos, criamos nosso laboratrio, o Letamis, organizamos
nosso primeiro evento, secretariamos a Revista gora, entre muitas outras coisas difceis de
enumerar neste curto espao. Por fim, juntas, encerramos esta etapa de nossa trajetria
acadmica de mos dadas. Obrigada pela amizade e pelo companheirismo sempre dedicado,
amiga.
Caroline Faria Gomes e ao Niti, pela fora que me deram e por compartilhar to
generosamente seu lar e muitos momentos ldicos durante o processo de escrita. Vocs
estiveram presentes nos dias mais difceis e mais alegres, e, juntamente Camilla Ferreira
Paulino, foram um refgio onde pude me sentir segura e acolhida nos momentos de maior
fragilidade. Camilla, meus eternos agradecimentos por ser sempre solcita nas contribuies
e insights sobre Anlise do Discurso, que me ajudaram a enriquecer este trabalho. Vocs
tambm foram luz, amigas.
A todos os integrantes do meu grupo de pesquisa, que estiveram presentes do decurso da
minha trajetria acadmica, e compartilharam das angstias, mas tambm das alegrias e
satisfaes de nosso ofcio. Obrigada Laila Lua Pissinati, Joana Scherrer Carniel, Jos Mrio
Gonalves, Ludmila Portela, Roni Tomazelli, Raphael Leite Reis, Milena Ferreira, Ingrid
Alves Pereira, Taynah Martins, Pablo Gatt (membro honorrio), Kellen Jacobsen Follador e
Regilene Amaral.
Por fim, e no menos importante, agradeo Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de
Nvel Superior (Capes) pelo financiamento, e ao Conselho Nacional de Desenvolvimento
Cientfico e Tecnolgico (CNPq), primeira instituio a incentivar o desenvolvimento desta
pesquisa ainda na Iniciao Cientfica dos anos de graduao.
Para conhecer os judeus voc deve se indagar o que eles estavam
fazendo entre os pogroms e ponderar no apenas como eles
morreram; mas acima de tudo, como eles viveram.
Y. H. Yerushalmi
RESUMO
Este estudo discute as influncias dos massacres antijudaicos durante a Primeira Cruzada
(1096) no processo de transformao cultural e religiosa das comunidades ashkenazim das
principais cidades germnicas do Vale do Reno, no Sacro Imprio Romano-Germnico, a
saber: Mogncia, Colnia, Espira, Vormcia, Trveris, Metz e Ratisbona. Tais eventos
representaram um marco para o judasmo, pois implicaram em grandes consequncias na
interpretao ashkenazi sobre os preceitos fundamentais da religio. O auge dessa
confluncia cultural entre cristos e judeus deu-se a partir do momento em que os discursos
religiosos de ambos se imbricaram, originando uma nova concepo da prtica religiosa
judaica do suicdio ritual, nomeadamente, o Kidush HaShem. De modo a melhor elucidar o
objetivo principal, o texto discute o legado dessa convergncia cultural entre as tradies
judaica e crist e suas implicaes para o judasmo medieval, assim como para o prprio
cristianismo que, naquele momento, ainda lutava por afirmao dentro da lgica de poder na
sociedade medieval. Uma possvel consequncia dessa convergncia cultural para o
cristianismo era um processo de inverso, ou seja, os setores clericais da Igreja, contando
com a adeso popular, poderiam ter desenvolvido, a partir do martrio judaico, a noo de
crime ritual, e, posteriormente, dos libelos de sangue, isto , acusaes voltadas contra os
judeus que apareceram de maneira sistemtica entre o sculo XII e XIII, momento das
Cruzadas, mas que transpem este recorte temporal e tem, em um processo de longa durao,
seus ltimos casos documentados na Rssia czarista, j no final do sculo XIX. De modo a
desenvolver e comprovar as hipteses aventadas, so examinados, como documentao, um
conjunto de crnicas hebraicas, escritas aproximadamente entre o final do sculo XI e a
metade do XII, por trs diferentes autores rabi Salomo bar Sanso, rabi Eliezer bar
Nathan, e o Annimo de Mogncia , e uma pliade de textos latinos, de clrigos que
narraram ou comentaram os massacres da primeira Cruzada, ou que relataram,
posteriormente, os crimes rituais. Como exemplos, citam-se duas crnicas escritas
contemporneas aos massacres de 1096, de autoria dos monges Bernoldo de Constana e
Frutolfo de Michelsberg, e outra escrita entre os anos de 1125 e 1150 pelo cnego e cronista
medieval Alberto de Aquisgro. A partir do exame dessas documentaes primrias, luz da
Anlise do Discurso proposta pela escola russo-francesa, tambm chamada de base
enunciativa, este estudo realiza uma abordagem sociocultural das representaes observveis
nas diversas construes narrativas sobre os eventos e enfatiza o conflito discursivo dentro
das esferas que compunham o clero no que concerne questo judaica. Diante das anlises
empreendidas, este texto dissertativo conclui que o conflito discursivo parece surgir no
entorno da circularidade das ideias em duas esferas: primeiro, nos dois segmentos clericais
que defendiam ou contrariavam a violncia contra judeus e batismos forados, representadas
respectivamente por setores da baixa e alta hierarquias clericais, e, em segunda instncia, na
influncia religiosa e cultural mtua, bem como na demarcao das identidades e alteridades
prprias das relaes entre o judasmo e o cristianismo no Medievo Central.
Palavras-chave: Germnia Medieval. Primeira Cruzada. Martirolgio. Kidush HaShem.
ABSTRACT
In this study we discuss the influences of the anti-Jewish massacres during the First Crusade
(1096), in the cultural and religious transformations process of the Ashkenazim communities
of the Rhineland in the Holy Roman Empire: Mainz, Cologne, Speyer, Worms, Trier, Metz
and Regensburg. Such events represented a milestone for Judaism, because they led to great
consequences in the Ashkenazi interpretation of the fundamental precepts of religion. The
culmination of this cultural confluence between Christians and Jews occurred from the
moment in which religious discourses of both were interwoven, originating a new conception
of the Jewish religious practice of the ritual suicide, namely, Kidush HaShem. To elucidate
our main objective, this work discusses the legacy of the cultural convergence between
Jewish and Christian traditions and their implications for the medieval Judaism, as for the
Christianity itself, which, at that time, was still struggling for assertion within the logic of
power in medieval society. A possible consequence of this cultural convergence to
Christianity was a process of inversion, that is, the clerical sectors of the Church, counting on
popular adherence, may have developed from the Jewish martyrdom the notion of ritual
crime, and later the libels of blood, in other words, accusations against the Jews, which
appeared systematically between the twelfth and thirteenth centuries, from the events of the
Crusades, even transposing this time-cut into a long-lasting process, with its last documented
cases in Czarist Russia, already in the nineteenth's end. In order to develop our aim and to
prove our hypotheses we will use as sources the set of Hebrew chronicles, written
approximately between the end of the eleventh and the middle of the twelfth century, by three
different authors - Rabbi Solomon Bar Samson, Rabbi Eliezer Bar Nathan, and the Mainz
Anonymous - as well as a Latin texts pleiad, of clerics who described or commented the First
Crusades massacres, and others who later reported on ritual crimes. For instance, we quote
two chronicles written contemporaneous with the massacres of 1096, written by the monks
Bernold of St. Blasien and Frutolf of Michelsberg, and another written between the years
1125 and 1150 by the cleric and medieval chronicler Alberto of Aachen. From these primary
documents study, in the light of Discourse Analysis proposed by the Russian-French school,
also called enunciative basis, we have made a sociocultural approach to the representations
from the various narrative constructions about the events, focusing the discursive conflict
regarding the Jewish question within the spheres which made up the clergy. In our opinion,
the discursive conflict seems to arise around the cultural circularity in two spheres: first, in
the two clerical spheres that defended or opposed violence against Jews and forced baptisms,
respectively represented by sectors of the lower and upper clerical hierarchies; and in the
second instance, in the mutual religious and cultural influence, as well as in the identities and
alterities demarcation proper to the relations between Judaism and Christianity in the
Central Middle Ages.
Keywords: Medieval Germany. First Crusade. Anti-judaism. Kidush HaShem.
LISTA DE ABREVIATURAS
A. Crnica Annima
AD Anlise do Discurso
CCSL Corpus Christianorum, Series Latina
E. Eliezer bar Nathan
MGH Monumenta Germaniae Historica
PL Patrologia Latina
RB Regula Benedicti
RHC Recueil des Historiens des Croisades
RHGF Recueil des historiens des Gaules et de la France
S. Salomo bar Sanso
SUMRIO
INTRODUO ......................................................................................................... 14
1 OS JUDEUS, ASHKENAZ E O SACRO IMPRIO ENTRE O SCS. XI-XII .. 41
1.1 OS JUDEUS E A CIDADE: CONSIDERAES SOBRE A SHUM ......................... 43
1.2 O SACRO IMPRIO E A RENNIA NA IDADE MDIA CENTRAL .................. 48
1.2.1 O bairro judaico: leis, cotidiano e topografia .......................................................... 55
1.3 A PRIMEIRA CRUZADA (1096-1099) E A VIDA JUDAICA NA CIDADE ......... 63
1.3.1 De christianus sum, non possum militare ao bellum justum .................................. 65
1.3.2 Da deflagrao em Clermont (1095) aos massacres na Rennia (1096) ................ 73
2 A RESSIGNIFICAO DA IDEOLOGIA DO MARTIROLGIO JUDAICO 89
2.1 OS JUDEUS E A ERUDIO: MEMRIA E HISTRIA ........................................ 90
2.1.1 Educao judaica e cultura rabnica em Ashkenaz medieval ................................. 99
2.2 CRNICAS HEBRAICAS: DA LEI AO KIDUSH HASHEM .................................... 105
2.2.1 As crnicas hebraicas na historiografia ................................................................... 108
2.2.2 O suicdio ritual na Lei judaica: entre a proibio, a exceo e a regra .............. 116
2.3 UMA NOVA IDEIA DE KIDUSH HASHEM NAS CRNICAS HEBRAICAS ....... 123
2.3.1 A cenografia das crnicas e a criao do thos do mrtir medieval ..................... 126
3 OS LIBELOS DE SANGUE LUZ DO KIDUSH HASHEM .............................. 143
3.1 O DISCURSO CLERICAL E A DETERIORAO DO STATUS JUDAICO ........... 148
3.1.1 Agostinho de Hipona, a questo judaica e o discurso oficial de tolerncia ........... 148
3.1.2 A degradao do discurso de tolerncia (sc. XI-XIII) ........................................... 152
3.2 AS TENSES SOCIAIS NO BOJO DA CRUZADA POPULAR .............................. 161
3.2.1 As lideranas laicas e clericais nas crnicas latinas................................................. 164
3.3 ESTADO DA QUESTO: OS LIBELOS DE SANGUE NO MEDIEVO ................. 171
3.4 CIRCULARIDADE DISCURSIVA E FORMULAO DO LIBELO DE SANGUE 180
3.4.1 thos, posicionamento discursivo e cenografia nas crnicas latinas .................... 181
3.4.2 A permanncia da narrativa de crime ritual no Sacro Imprio (sc. XII-XIII) ... 193
CONCLUSO ............................................................................................................ 205
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS .................................................................... 212
DOCUMENTAO PRIMRIA IMPRESSA ........................................................... 212
Crnicas medievais hebraicas e latinas ................................................................... 212
Obras de referncia da legislao judaica ............................................................... 213
Demais documentaes antigas e medievais ............................................................ 214
OBRAS DE APOIO .................................................................................................... 215
14
INTRODUO1
I
As mltiplas faces das relaes judaico-crists medievais vm se tornando objeto de estudos
amplamente discutido na historiografia israelense e ao longo de produes difundidas no
plano internacional, principalmente nas universidades e revistas acadmicas norte-americanas,
francesas e inglesas.2 A ateno desses historiadores recai principalmente sobre os massacres
de judiarias do Sacro Imprio Romano-Germnico no incio da Primeira Cruzada (1096),
sobre as consequncias culturais e religiosas resultantes dos momentos de violncia extrema
que se sucederam, bem como sobre a representao desse movimento para as duas religies
em conflito nas dcadas subsequentes. Partilham desta temtica a origem e o objeto desta
dissertao. Ao nos depararmos com a fortuna narrativa das fontes medievais hebraicas e
latinas sobre os eventos cruzadistas que tocaram to profundamente o judasmo ashkenazi,
notamos a sutileza do discurso, que entrelaa os acontecimentos e d sentido ao corolrio das
relaes entre judeus e cristos em toda Ashkenaz3 do sculo XII. Por atravs deste corolrio,
entendemos a ressignificao de prticas religiosas judaicas, que fundaram a tradio
martirolgia ashkenazi fundamentadas em um novo discurso e interpretao da Lei.
1 A construo do objeto desta dissertao advm das problemticas inicialmente estudadas no mbito do
Programa Institucional de bolsas de Iniciao Cientfica (Pibic), com bolsa de pesquisa do Conselho Nacional de
Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico (CNPq) nos subprojetos intitulados: Os judeus nas Cruzadas:
judasmo ashkenazi no Medievo Germnico, entre 2012 e 2013, e O fundamento e a razo: os massacres
antijudaicos durante a Primeira Cruzada no Imprio Germnico do sc. XI, entre 2013 e 2014. Em razo disso,
uma verso preliminar do texto que ora compe parte desta introduo foi publicada em: SOUZA, Karla
Constancio de. Kidush Hashem: reflexes sobre a violncia antijudaica na Primeira Cruzada (sc. XI-XII). In:
Anais do XXVIII Simpsio Nacional de Histria Lugares dos historiadores: velhos e novos desafios (27 a 31 de
julho de 2015). Florianpolis: Anpuh, 2015. p. 01-12. 2 Cf. Association for Jewish Studies Review (1978); Jewish History (1986); Annales. Histoire, Sciences Sociales
(1994); Speculum (2001); Past and Present (2007) e Vetus Testamentum (2007). 3 Entendemos por Ashkenaz a regio geogrfica que compreendia a maior parte do norte da Europa durante o
Medievo. Esse topnimo tem sua gnese no idiche nomeando tambm os agrupamentos judaicos que viviam
nessa regio, ou seja, os judeus ashkenazim ou judeus do Norte que partilharam uma cultura comum e tambm o
idioma idiche, um dialeto nascente de base hebraica que possua influncias do latim e alemo. Neste trabalho, a
anlise est focada especialmente em parte do territrio ashkenazi, nomeadamente, o Sacro Imprio Romano-
Germnico, bem como o norte da Frana e a Inglaterra.
15
A imigrao judia, a partir de Roma, foi considerada a origem mais provvel dos primeiros
judeus germnicos ou asquenazes (heb. transl. ashkenazi; pl. ashkenazim), uma vez que
registros histricos denotam evidncias da presena de comunidades judaicas ao norte dos
Alpes e Pirineus desde os sculos VII e IX (ROTH, 1966, p. 302-303; FALBEL, 2001, p. 45).
Assim, entende-se por judasmo ashkenazi, a modalidade de judasmo proveniente da Europa
central e oriental que se assentou e desenvolveu na regio da Germnia Medieval4 e que
possuiu caractersticas culturais singulares (COCHRAN; HARPENDING, 2009, p. 195-196).
Uma delas foi o idioma yidish ou idiche, fruto de uma compilao lingustica diversificada
que se desenvolveu dentro da cultura asquenazita, a partir do sculo X, e se espalhou para
outras regies do planeta com a emigrao de seus praticantes. Um exemplo dessa
provenincia particular a prpria palavra asheknazi que deriva do termo Ashkenaz, ou seja, o
topnimo que nesse dialeto significa Alemanha ou Germnia (HARSAHAV, 1994, p. i-vii;
JACOBS, 2005 p. 55).
As dataes dos primeiros assentamentos judaicos nas regies que os romanos chamavam
Germnia Superior, Germnia Inferior e Magna Germnia durante a Repblica e o incio do
Imprio no so conhecidas. Contudo, o primeiro documento que relata a presena de uma
comunidade suficientemente grande e organizada nessa regio, localizada em Colnia, no
Vale do Reno (LEVINE, 2008, p. 1042; HUFFMAN, 2001, p. 187), data de aproximadamente
321 d.e.c. A existncia dessa comunidade parece atestar, como afirmou Haverkamp (1988, p.
212), que os judeus contriburam amplamente para a urbanizao das cidades em territrio
germnico, pois suas atividades comerciais estavam voltadas, em grande maioria, para os
centros urbanos.
O status legal do judeu era o mesmo durante todo o Imprio Romano sabemos que h
presena judaica nos limites do Imprio desde 139 a.e.c, quando o domnio romano chegou
regio da Palestina: eles gozavam de algumas liberdades civis, mas a prtica do seu
proselitismo era restringida, bem como a posse de escravos cristos e a ocupao de cargos
pblicos. Entretanto, judeus eram livres para praticar qualquer outro tipo de ocupao
permitida aos demais cidados, como a agricultura, comrcio, artesanato, ao mesmo tempo
4 Ao utilizarmos a terminologia Germnia para nomear a regio do Sacro-Imprio Romano Germnico medieval,
no estamos fazendo referncia obra de Pblio Cornlio Tcito (56-57 d.e.c), De Origine et situ Germanorum,
e a seu conceito de germanidade. Acreditamos apenas que o uso da palavra Alemanha em lugar de Germnia
pode soar anacrnico e remeter ao moderno estado alemo.
16
que iniciavam sua prtica no emprstimo de dinheiro (STOW, 1995, p. 18-19; FELDMAN,
2010, p. 131-137). Tais condies continuaram sob os reinos brbaros francos e burgndios
posteriores, principalmente sob as dinastias merovngia (aprox. 457-751) e carolngia (751-
987) (BARROS, 2010, p. 07-17). A Igreja ainda no era uma instituio consolidada nessa
poca, portanto no contou com o respaldo do governo secular para restringir o status cvico e
social dos judeus. A finalidade da Igreja, para Carlos Magno (768-814), era infundir coerncia
nas partes pouco unidas de seu Imprio, por isso empreendeu uma instrumentalizao da lei
cannica. Assim, dentre as funes que os judeus desempenhavam nesse momento estavam as
de comerciantes, proprietrios de terras, funcionrios, mdicos ou artesos, alm de possurem
influncia mesmo entre os altos dignitrios da Igreja, para os quais prestavam servios ou
tinham relaes de amizade, podendo assumir, por vezes, cargos diplomticos para o governo
(POLIAKOV, 1955, p. 24; TOCH, 2012, p. 67; p. 239). No entanto, uma mudana gradual
ocorreu na vida dos judeus, mudana essa que acompanhou a ascenso do poder clerical na
sociedade medieval europeia.
Com a proibio aos cristos de praticarem o emprstimo de dinheiro a juros a usura, agora
considerada pecado grave a prtica foi legada aos judeus, que no possuam nenhum
comprometimento com as restries da doutrina crist ortodoxa. Tal fato causou uma reao
paradoxal nos membros da Cristandade: ao mesmo tempo em que procuravam judeus
prestamistas para conseguirem emprstimos, os evitavam, pois essa posio causava
estranhamento e at, em certo nvel, medo (SELTZER, 1990, p. 327). A ambivalncia sobre o
trato para com os judeus ocorreu porque seu capital era indispensvel, enquanto o seu negcio
era visto como vergonhoso (BELL, 2001, p. 467). Essa combinao de circunstncias
aumentou a influncia judaica, fazendo com que alcanassem a proteo dos governos
seculares e se estabelecessem em diversas outras reas e cidades do Sacro Imprio Romano-
Germnico.5 Alm de Colnia, eles se fixaram em outras localidades como Mogncia, Espira
5 Os nomes das cidades variam e podem ser comumente encontrados nas suas variaes inglesas, latinas ou
transliteradas do hebraico. De modo geral, optamos por referir aos topnimos pelas formas sinonimizadas na
lngua verncula, ou seja, ao invs do nome Mainz, adotamos Mogncia. O mesmo se aplica s cidades de
Speyer, para ns, Espira; Worms, Vormcia; Trveris e Ratisbona ou invs de suas formas toponmicas Trier e
Regensburg, respectivamente. O referido se aplica ainda para todas as demais localidades com topnimos
grafados e utilizados no presente estudo, sejam antigos, medievais, modernos ou contemporneos.
17
e Vormcia, e ocuparam posteriormente outras cidades e territrios dentro da Rennia
(HIRSCHMAN, 2009, p. 16-21).6
No incio do sculo X, populaes judaicas j estavam bem estabelecidas na Europa do Norte,
com importantes povoamentos na Rennia (NICHOLAS, 1999, p. 202; FALBEL, 2001, p.
45). Foi nesse momento tambm que os ltimos reis carolngios passaram a dar mais abertura
s demandas clericais e, em muitos casos, segui-las em suas vidas pessoais. Cada vez mais, os
bispos ganhavam influncia na aprovao de leis cannicas antijudaicas que restringiam seus
direitos e os segregavam do convvio com cristos, o que teve como consequncia direta o
crescimento da desconfiana dos cristos em relao aos judeus (TUCHMAN, 1990, p. 36-
40). Foi nesse mesmo sculo que as atividades antijudaicas comearam a surgir na cultura
crist, por exemplo as malhaes de Judas, o traidor de Cristo, durante a Semana Santa
(SORLIN, 1974, p. 18; SELTZER, 1990, p. 327). Entretanto, as comunidades judaicas ainda
contavam com a proteo dos governantes fossem eles prncipes leigos ou at mesmo nas
cidades governadas por prncipes clrigos, que eram os casos dos bispados uma vez que os
impostos cobrados das atividades comerciais e prestamistas judaicas eram essenciais para o
bom funcionamento da economia da cidade medieval (HAVERKAMP, 1988, p. 212; BELL,
2001, p. 467).
Assim, embora os judeus fossem to ignorantes quanto seus contemporneos com relao aos
estudos seculares, sua cultura religiosa os obrigava ou ao menos os incentivava a ler e
entender as oraes em hebraico. Em um nvel superior, estimulava tambm os jovens a se
iniciarem nos estudos dos preceitos das leis judaicas postas na Tor e no Talmude, em
oposio s altssimas taxas de analfabetismo nas demais camadas populares
(STEMBERGER, 2003, p. 92). Dessa maneira, os estudos halachistas comearam a florescer
por volta do ano mil.7 Um dos primeiros halachistas foi Rabeinu Guershom ben Juda Mer
6 As comunidades judaicas destas trs ltimas cidades formavam uma liga, representada pelo acrnimo ShUM,
pois as comunidades nas margens do rio Reno dentro desses agrupamentos urbanos se tornaram o centro da vida
judaica ashkenazi durante os tempos medievais. O acrnimo formado pelas primeiras letras dos nomes
hebraicos das cidades. Elas possuam at mesmo um conjunto de decretos e sanes especficas, o Takkanot
Shum, formulados e acordados durante dcadas pelos lderes das comunidades judaicas locais e seus rabinos nos
sculos XII e XIII (HIRSCHMAN, 2009, p. 16-23). 7 Halach o nome dado ao conjunto de leis e costumes que regem a religio judaica. formada pelas Mitzvot,
os 613 mandamentos contidos na Tor e pelos mandamentos rabnicos (derabanan) e talmdicos acumulados a
partir dos costumes (minhag) estabelecidos pelas comunidades, que dizem respeito s tradies, costumes e
18
Hagol (955-1028),8 que teve pupilos em Mogncia e Metz. Ele descrito na historiografia
judaica como um modelo de homem sbio, pio e humilde. Conhecido pelo epteto de Luz da
Dispora, foi o primeiro a estimular seus correligionrios nos estudos de sua literatura e
filosofia religiosas (MALKIEL, 2009, p. 2-5; p. 16-18). O estudo contnuo da Tor e do
Talmude produziu tal devoo ao judasmo que seus fiis chegaram ao ponto de considerarem
que uma vida sem a sua religio no valia a pena ser vivida, posio que ficou clara no tempo
das Cruzadas, quando foram obrigados a escolher entre a vida e a f (KRIEGEL, 2002, p. 37).
A Primeira Cruzada (1096) representou um reforo na prtica de perseguies contra os
judeus, no s na Germnia, mas por toda Europa. Com isso, agravou a tendncia de
intolerncia e o tratamento violento em relao s judiarias (CARR, 2000, p. 149; p. 156-
157). A Cruzada havia sido oficialmente deflagrada por toda Europa ao fim do ano de 1095,
no discurso do Conclio de Clermont. O papa Urbano II (1088-1099) viajou pelas diversas
regies promovendo discursos em que pregava a necessidade imediata dos cristos irem
socorrer seus irmos no Oriente que sofriam o jugo dos infiis muulmanos, de modo a
reconquistar assim a Terra Santa, Jerusalm (FALBEL, 2001, p. 104; KREY, 1921, p. 33;
RUNCIMAN, 2003, p. 104). A Primeira Cruzada, porm, deu-se de forma desorganizada, e
contou com os humores exaltados das populaes, fomentados por discursos de dio
promovidos por monges itinerantes representantes da baixa hierarquia clerical. O contedo
principal dessas pregaes dizia respeito justia em se exterminar os judeus que viviam no
seio da prpria sociedade crist ocidental, pois eram to infiis quanto os muulmanos
orientais, ou piores, pois haviam trado Cristo (ROUSSET, 1980, p. 14; FALBEL, 2001, p.
104 e ss.; CARDINI, 2006, p. 475).
Comunidades judaicas inteiras foram dizimadas, como as de Mogncia, Vormcia, Colnia e
Trveris. O bispo de Espira, por exemplo, conseguiu salvar os judeus de sua cidade, mas em
Mogncia os mortos podem ter chegado a mil e duzentos. Ao subjugar comunidades judaicas
inteiras, os cruzados contriburam para acionar o gatilho que desencadeou uma prtica
regras (Shulchan Aruch sc. XVI); ou seja, um guia para o modus vivendi judaico. Nesse sentido, o halachista
era aquele que contribua para a criao e aprimoramento dos preceitos judaicos (ELON, 2003, p. 15 e ss.). 8 Por vezes o axinimo Rabeinu (transliterao do hebraico para a lngua portuguesa) aparece como uma locuo
de tratamento que acompanha o nome de rabinos e personalidades religiosas importantes do judasmo. Significa
Nosso Mestre. Tambm podem ser encontradas variaes desta transliterao tanto para o portugus, como para
os outros idiomas, como Rabbenu ou Rabbeinu.
19
largamente utilizada pelos judeus nas situaes de escolha entre converso ou morte durante
os massacres renanos: preferiram cometer o suicdio ritual em santificao do Nome de Deus,
ao invs de apostatarem da f (FALBEL, 2001, p. 76-78; p. 98-112). Por consequncia, os
judeus teriam reagido da forma mais fiel ao judasmo que conseguiram, ideia que apareceu
como uma construo discursiva desde o momento em que se comeou a escrever sobre os
massacres. Sobre essa questo, uma discusso aprofundada ter lugar no segundo captulo. A
construo desta prtica cultural ficou conhecida pelo nome de Kidush Hashem ou Qiddush
ha-Shem, e deu aos judeus ashkenazi o status de forma mais pura do judasmo (FALBEL,
2001, p. 66-73). Posteriormente, a gama de acusaes e conspiraes contra os judeus que
objetivaram rechaar o judasmo do seio da sociedade crist apoiaram-se na imagem do
suicdio ritual judaico que permaneceu presente na memria popular, criando justificativas
para novas perseguies s judiarias europeias. Uma dessas acusaes foi a alegao de uma
suposta prtica judaica de assassinato ritual de cristos, baseada na crena de que judeus
precisavam de sangue cristo para fins ritualsticos (FELDMAN, 2013, p. 15 ss.).
Desta forma, em nossa problemtica propomo-nos questionar se houve uma confluncia
cultural religiosa entre judasmo e cristianismo que resultou na criao de um novo conceito e
de uma nova prtica, o Kidush Hashem, que representou, ao seu fim, uma transformao
doutrinria sobre o martrio; alm disso, discutimos se o status de pureza do judasmo
ashkenazi, apesar de ter elegido o martrio em lugar da converso e da abdicao de sua f,
poderia ter sofrido influncias de concepes religiosas crists para a forja do conceito. Outro
aspecto de nosso problema elucidar o papel dos discursos veiculados por clrigos da baixa
hierarquia da Igreja na promoo dos episdios de violncia antijudaica e como esse
posicionamento discursivo se diferencia dentro do seu campo discursivo, contrapondo-se
quele da alta hierarquia clerical. Por fim, buscamos verificar se houve uma ressignificao
crist do suicdio ritual que possa ter influenciado a elaborao das acusaes de assassinato
ritual, as quais justificaram novas perseguies aos judeus regularmente pelos sculos
seguintes.
Ao propor este trabalho, acreditamos poder contribuir para a compreenso poltica, social e
cultural do Medievo Central e das problemticas relacionadas ao judasmo dentro e a partir
desse recorte temporal. O estudo desses aspectos insuficiente na historiografia brasileira,
20
ainda que contemos com algumas pesquisas na rea,9 o que no visualizado na demanda por
publicaes que contemplem o tema. Portanto, para ampliar as formulaes tericas a
respeito, esta pesquisa objetiva discutir as influncias que os massacres antijudaicos da
Primeira Cruzada nas principais cidades renanas do Sacro Imprio (sc. XI-XII) provocaram
na cultura e religio judaicas. A importncia de nosso trabalho se revela tambm na
perspectiva que adotamos sobre a relao judaico-crist: entendemo-las como uma via de mo
dupla, em que o dilogo e as influncias mtuas existiram, apesar da constante tenso entre
ambos os grupos. Esta questo imprescindvel, pois enriquece a anlise das trocas culturais
entre cristos e judeus ashkenazim, algo que permaneceu por muito tempo como um tabu no
estudo do judasmo germnico, tido como uma das formas mais puras de manifestao
religiosa judaica. Acreditamos que as crnicas hebraicas ainda so pouco exploradas no
Brasil, pois encontramos apenas um trabalho de mestrado (BARROS, 2014) que utilizou a
mesma temtica ashkenazi, porm com abordagem e problemtica diversa. Apesar da massiva
produo de materiais relacionados questo judaica nas Cruzadas em nvel internacional, os
estudos no penetraram ainda nas produes acadmicas brasileiras, onde a maioria das obras
so desconhecidas, o que pode ser comprovado ao analisar a ideia de que transformaes
culturais religiosas aconteceram no seio do judasmo ashkenazi como fruto dos massacres
cruzadistas e de influncias recebidas do cristianismo, ideia esta rejeitada at as dcadas de 50
e 60.
Devidamente apresentado o objeto desta pesquisa, cumpre elucidar os objetivos previamente
almejados ao longo desta dissertao. De maneira geral, nos propusemos analisar as
transformaes socioculturais e religiosas que afetaram diretamente os judeus ashkenazim a
partir do perodo de massacres de comunidades judias na Primeira Cruzada e as
consequncias a curto e mdio prazo desses eventos para a vida, cultura e discurso religioso
destes agrupamentos sociais, incluindo a reao e percepo crist desses acontecimentos.
Deste modo, a partir da diferenciao dos posicionamentos discursivos entre o nicho monacal,
9 O marco inicial para o desenvolvimento de pesquisas brasileiras sobre o tema dos massacres de judeus na
Primeira Cruzada se deu com a publicao das crnicas hebraicas em lngua portuguesa, traduzidas pelo
professor Dr. Nachman Falbel (2001), que disponibilizou, para alm das tradues, tambm uma variedade de
informaes sobre a conjuntura e perodo em que essas documentaes foram produzidas. Posteriormente,
sobressai a defesa da dissertao de mestrado de Cristiano Ferreira de Barros, na Universidade Federal Rural do
Rio de Janeiro, intitulada O Pietismo medieval nas comunidades judaicas germnicas e a representao
sociorreligiosa presente no Sefer Hassidim (2014), orientado pela Prof. Dra. Renata Rozental Sancovsky.
21
representado pelo clero de origem popular baixa hierarquia , e os clrigos pertencentes
alta hierarquia da Igreja, identificamos os nveis de atitude clerical e secular em relao aos
judeus e investigamos como esses posicionamentos geraram prticas que impactaram o
cotidiano das judiarias renanas a partir do sculo XI. Detectando as posies dos dois
segmentos clericais, sobretudo com base no entendimento ou reinterpretao de ambos
sobre a concepo agostiniana da funo dos judeus na sociedade crist, discutimos como a
Igreja Catlica e sua ortodoxia tolerou, incentivou ou condenou tais prticas.
A partir da leitura das crnicas latinas e hebraicas, explanamos tambm o comportamento da
nobreza, grupo social dirigente e paralelo ao clero, que demonstrou ser tambm agente ativo
nos massacres e investigamos ainda quais efeitos e consequncias os massacres de 1096
causaram ao judasmo ashkenazi a curto e mdio prazo no mbito social, cultural e religioso,
tal como suas influncias no surgimento de uma nova prtica de Kidush Hashem, perceptveis
sobretudo nas crnicas hebraicas. Outrossim, analisamos as trocas culturais entre cristos e
judeus e a maneira como as influncias mtuas refletiram mudanas nas prticas e costumes
cotidianos para ambas as comunidades.
Por fim, examinamos a ressignificao do suicdio ritual em dois nveis: o da transformao
do conceito de Kidush Hashem no martirolgio judaico, que se diferencia daquele
previamente estabelecido na Lei judaica, e o da apropriao deste conceito pelos cristos, que
resultou numa ressignificao prpria, a partir da qual se construiu a ideia do assassinato
ritual, ou libelo de sangue, crimes dos quais judeus foram sistematicamente acusados durante
vrios sculos aps o surgimento do termo e do primeiro caso.
II
De modo a harmonizar com a vertente historiogrfica que nos inscrevemos, ou seja, a Nova
Histria Cultural, e com os corpos documentais selecionados, bem como para viabilizarmos
nossa hiptese, consideramos adequada para esta pesquisa a adoo do exame textual crtico
advindo da teoria e mtodo da Anlise do Discurso, da qual tratamos adiante ainda nesta
seo. Elucidemos primeiro nossas consideraes sobre o aparato conceitual proveniente das
22
contribuies da Nova Histria Cultural. Esta vertente surgiu como uma modalidade
historiogrfica que se abre aos estudos mais variados como a cultura popular, a cultura
letrada, as representaes, o poder e as prticas discursivas praticadas por diversos grupos
sociais (BARROS, 2005, p. 126). Alm disso, ela foca no apenas os mecanismos de
produo dos objetos culturais, como tambm os seus mecanismos de recepo, pois a prpria
recepo tambm uma forma de produo cultural (BARROS, 2005, p. 128). Se
transportarmos tal perspectiva para o nosso objeto, notamos que o impacto do conflito
discursivo entre os nveis do clero catlico culminou na efervescncia de ideias e
interpretaes populares e no populares sobre a questo e o lugar dos judeus na sociedade
crist, e que a recepo dessas ideias, assim como a construo da representao destas,
gerou um comportamento prprio nas populaes urbanas da Germnia, levando aos
massacres contra os judeus ashkenazim na Primeira Cruzada, especialmente na regio da
Rennia. Como resultado, houve uma completa reinterpretao por parte da populao e
alguns setores do clero sobre a produo de ideias religiosas e conceitos teolgicos da elite
clerical da Igreja medieval.
Assim, um conceito fundamental para a interpretao do contexto o de representao,
juntamente com a perspectiva de identidade e alteridade que esto relacionadas ao
antijudasmo, circularidade de ideias e violncia. As representaes, conceito cunhado
por Roger Chartier (1990), so, por sua vez, indissociveis das prticas culturais, que so
aquelas [...] realizadas por seres humanos em relao uns com os outros e na sua relao com
o mundo, o que em ltima instncia inclui tanto as prticas discursivas como as prticas
no-discursivas (BARROS, 2005, p. 129). Assim, tanto os objetos culturais seriam
produzidos entre prticas e representaes, como os sujeitos produtores e receptores de
cultura circulariam entre estes dois plos, que de certo modo corresponderiam
respectivamente aos modos de fazer e aos modos de ver [a realidade] (CHARTIER, 1990, p.
126). vlido notar que as representaes do mundo social [...] so sempre determinadas
pelos interesses de grupo que as forjam (CHARTIER, 1990, p. 16-17), noo que se interliga
diretamente s postulaes referentes s identidades e alteridades. Tais conceitos so
precisamente visveis e presentes em nossa perspectiva do perodo medieval em foco.
Como postula Tomaz Tadeu Silva (2000), a identidade concebida apenas como um fato
autnomo, algo estritamente pautado na positividade. Nessa perspectiva, a identidade s tem
23
como referncia a si prpria: ela autocontida e autossuficiente. Do mesmo modo, a diferena
tambm concebida por entidade independente, neste caso, em oposio identidade: a
diferena aquilo que o outro , mas que por algum motivo, eu no venho a ser. As
afirmaes sobre diferena s fazem sentido se compreendidas em sua relao com as
afirmaes sobre a identidade (SILVA, 2000, p. 73). Portanto, a partir deste olhar, identidade
e diferena (alteridade) so inseparveis, vistas como mutuamente determinadas.
Como tambm analisou Norbert Elias (2000), alm da interdependncia entre a identidade e a
alteridade, imprescindvel que destaquemos que os grupos estabelecidos (a maioria; em
nosso caso, os cristos) geralmente atribuem a si mesmos caractersticas humanas superiores,
excluem o outro do contato social e mantm tabus, restries e proibies sob esses contatos,
atravs do controle social (ELIAS, 2000, p. 20) manifesto pela posse de poder dentro do
grupo. No recorte desta pesquisa, o poder pela maioria numrica e religiosa dos cristos em
relao aos judeus. Assim, interessa-nos o conceito de poder nas obras de Elias, na
confluncia de sua anlise das relaes de poder que surgem entre os indivduos, pois essa
convergncia elucida aspectos do controle social, ou seja, da prtica. No embate entre cristos
e judeus medievais, essa prtica se manifesta por ambas as partes e de maneira clara: tanto
uma quanto a outra comunidade, portadoras de nveis diferentes de poder, deviam evitar
contatos, em outras palavras, deviam evitar se misturar.
O conceito de poder em Norbert Elias (1994a; 1994b) um atributo das relaes sociais, um
fruto do contato entre os indivduos e das suas aes a todo instante, sejam elas no campo
poltico, econmico, cognitivo ou cotidiano. Dessa forma, Elias no toma o poder somente
como algo em termos monetrios, ou seja, algo concreto relacionado ao controle de coisas, de
objetos e de pessoas. Para Elias (1994a), o conceito de poder deixou de ser uma substncia
para se transformar numa relao entre duas ou mais pessoas. O poder um atributo destas
relaes que se mantm num equilbrio instvel de foras. Se o poder tem como fonte as
relaes humanas mais variadas, ele tambm pode assumir diversas formas. Na linguagem
eliasiana, isso quer dizer que h grupos ou indivduos que [...] podem reter ou monopolizar
aquilo que os outros necessitam, como por exemplo, comida, amor, segurana, conhecimento,
etc. Portanto, quanto maior as necessidades desses ltimos, maior a proporo de poder que
detm os primeiros (ELIAS, 1994a, p. 53). Assim, o poder no se resume ao que ocorre entre
senhores e servos, dominadores e dominados, mas pode ocorrer entre indivduos de um
24
mesmo grupo ou entre membros de grupos diferentes; pode manifestar-se tambm nas mais
variadas situaes, como na maneira que os indivduos se portam mesa, em como se vestem,
e na aceitao ou no em atividades cotidianas e de sociabilidade. , pois, nessa forma de ver
as relaes de poder e, consequentemente, de marginalizao e de excluso que nosso
trabalho se compromete a elucidar os aspectos sociais entre os cristos e judeus, pois [...] a
pea central dessa figurao um equilbrio instvel de poder, com as tenses que lhe so
inerentes. Essa tambm a pr-condio decisiva de qualquer estigmatizao eficaz de um
grupo outsider por um grupo estabelecido (ELIAS, 2000, p. 23).
Para alm do poder que se manifesta no controle social, ainda h possibilidade de um grupo
fixar no outro o rtulo de portador de inferioridade, um ser humano menor: O grupo
estabelecido tende a atribuir ao conjunto do grupo outsider as caractersticas ruins de sua
poro pior de sua minoria anmica. Em contraste, a autoimagem do grupo estabelecido
tende a se modelar em seu setor exemplar, mais nmico ou normativo na minoria de seus
melhores membros (ELIAS, 2000, p. 22- 23). Um grupo s pode estigmatizar o outro com
eficcia se j estiver bem instalado em posies de poder das quais o outro grupo foi excludo,
quando ocorre, de acordo com a definio de Elias (2000, p. 23), [...] uma relao entre
grupos com diferenciais de poder acentuados. essa ocorrncia que observamos clareza
numa sociedade onde a diferena numrica entre estabelecidos-cristos era abissal em relao
aos outsiders- judeus.
De acordo com a anlise de Elias (2000, p. 33), quando a discrepncia da posse dos
diferenciais de poder era muito grande entre os grupos estabelecidos e outsiders, e estes no
tinham nenhuma utilidade para o grupo dominante, mas por vezes os atrapalhavam em termos
de posse monopolista de status e poder, o que geralmente acontecia era o extermnio ou a
opresso do grupo pretensamente inferior (ELIAS, 2000, p. 33). No caso dos massacres das
Cruzadas, o grupo dominante ou que possua um diferencial de poder superior aos judeus
responsvel pelo extermnio foi o dos cruzados e da populao citadina que aderiu s aes
desse pequeno exrcito liderado por nobres belicosos e cavaleiros armados. Entretanto,
devemos ressaltar que estes no eram a autoridade principal, os porta-vozes do poder
estabelecido; eles eram os desajustados dentro da maioria, pois tanto o imperador do Sacro-
Imprio, como a alta hierarquia da Igreja usavam os judeus em seu benefcio, davam-lhes uma
funo na sociedade.
25
A discusso sobre essas relaes de poder traz tona as teorias concernentes ao antijudasmo
e violncia como conceitos. Entendemos o antijudasmo medieval como um fenmeno
singular em relao a outras manifestaes de comportamentos antijudaicos ao longo da
histria. Como explica Paulo Geiger (2008), o antijudasmo medieval foi multifacetado. Ele
aparece em vrios contextos, pocas e momentos distintos, e deve ser entendido como uma
hostilidade ou [...] oposio total ou parcial ao Judasmo e aos judeus como adeptos desta
religio por pessoas que aceitam um sistema concorrente de crenas e prticas e consideram
certas crenas e prticas judaicas genunas como inferiores (LANGMUIR, 1996, p. 57).
Foram tantas as suas manifestaes, contextos, expresses, motivaes e alegaes diferentes,
que acreditamos no de tratar de um nico e mesmo fenmeno, mas de fenmenos diversos,
cada qual com seu prprio efeito, isto , o antijudasmo grego, romano ou o nazista possuram
sua prpria estrutura, causa e consequncia, porm todos eles estiveram ligados por um eixo
comum: a rejeio do fenmeno coletivo do povo judeu (GEIGER, 2008, p. 256). Portanto, se
analisarmos conceitualmente o que foi o antijudasmo atravs do tempo chegaramos
concluso de que no se trata de apenas um fenmeno com vrias expresses, mas de
fenmenos diferentes aos quais dado o mesmo nome. Cada caso de perseguio e rejeio
um caso parte, e no justifica o termo antijudasmo em sua generalidade (GEIGER, 2008, p.
260). Desta maneira, estamos falando sempre de antijudasmos, ou seja, de um conceito plural
e no generalizado.
A fim de conceituar violncia, trazemos para esta abordagem o pensamento poltico-filosfico
de Hannah Arendt (orig. 1970; 2004), para quem o conceito est totalmente imbricado com o
de poder e de fora, o que demonstra a originalidade de sua proposio. Para ela, a violncia
contrape-se ao poder, pois onde predomina o primeiro, est ausente o segundo (ARENDT,
2004, p. 35). O conceito de violncia tem, nesse contexto, um sentido de meio ou instrumento
de coao que constitui recursos ao servio de uma dada autoridade no exerccio de uma dada
forma de poder, uma vez que a violncia parece ocorrer sempre que h condies como perda
de autoridade ou determinadas transformaes nas relaes de poder (ANDRS, 2012, p. 6).
Em relao fora, a autora leva em considerao a anlise de Hobbes de que muitos atores
sociais vistos como fracos se fortalecem quando unidos, porm para ela o poder no pode
perpetuar-se atravs da fora, uma vez que, quando ele acaba, a fora tambm se encerra.
Portanto, poder o contraste de fora (ARENDT, 2004, p. 23).
26
Ao aplicarmos essas noes no trato de nosso objeto, vemos que a violncia empregada nos
massacres antijudaicos por cruzados cristos carregava algumas dessas premissas. A fora
repressiva exercida naquele momento no vinha mais das autoridades eclesisticas ou
imperiais. Essa mudana ocorreu porque os discursos e leis que protegiam os judeus foram
invalidados quando o papa deflagrou a Primeira Cruzada, e nobres cavaleiros, respaldados
pela multido de cristos, tomaram para si um poder momentneo e, dispondo de fora para
tal, subjugaram as diversas comunidades judaicas ashkenazim. Nesse momento, se nota a
natureza instrumental da violncia, que serviu para legitimar o discurso popular que pregava a
livre presena judaica no seio da Cristandade como uma afronta. Arendt parte de uma tica
contempornea, ou seja, da discusso de acontecimentos polticos atuais, para desenvolver seu
pensamento sobre a temtica da violncia tnica, mas se mostra surpreendentemente coerente
com o momento proposto como nosso recorte temporal. Uma vez que entramos nos campos
das Cruzadas, cabe destacar que a autora determina a guerra como o sistema social bsico,
dentro do qual as outras organizaes sociais conflitam ou conspiram (ARENDT, 2004, p. 8).
A fim de posicionar as situaes, aes e comportamentos individuais e coletivos dos grupos
sociais analisados, faz-se necessrio tocarmos na discusso terica que Michel de Certeau
(2008) prope sobre o conceito de cotidiano. O autor sugere estudar a cultura cotidiana como
parte da vida das pessoas para alm das tticas de sobrevivncia diria e entender a
operao epistemolgica que nomeia, codifica e enquadra essas experincias sociais. Assim,
entendemos cotidiano como as prticas humanas realizadas pelos atores sociais no seu dia-a-
dia, o que no quer dizer ele se resuma mecanicidade da rotina. Apesar de serem, na maioria
das vezes, vistas como algo banal ou insignificante, as aes cotidianas compem um campo
extremamente frutfero para o desenvolvimento das relaes sociais e, consequentemente, de
estudos sobre a sociedade. Dentre as principais caractersticas do cotidiano destacam-se a
probabilidade, a espontaneidade, a sociabilidade, a polissemia e a heterogeneidade nas
relaes humanas, pois [...] no raro, so exatamente estes ltimos, os fenmenos triviais,
que nos do uma noo clara e simples da estrutura e desenvolvimento [...] das relaes
sociais intergrupos (ELIAS, 1994b, p. 125).
Empregando essa teoria para a observao de nosso objeto, vemos como a sociabilidade entre
cristos e judeus se d no cotidiano de suas relaes e que as barreiras que ambos cerravam
em torno de seus rebanhos de fiis eram fluidas. Torna-se ainda possvel identificar como,
27
nesse mesmo cotidiano de relaes ambivalentes, surge um discurso de extermnio contra os
judeus amplamente creditado pelos cristos. Devemos atentar tambm para o fato de que as
identidades adquirem sentido por meio de linguagens e dos sistemas simblicos pelos quais
so representadas no mundo social e em funo desses significados construdos pelas
representaes que damos sentido nossa experincia e quilo que somos, ou melhor, ao que
no somos, ao que demarca nossa identidade (WOODWARD, 2012, p. 8-18 e ss.) e que
denota a complexidade das interaes sociais que so estabelecidas nas redes de
sociabilidades que perpassavam membros da comunidade crist, bem como da judaica.
Outro conceito terico que elucida parte importante de nossa problemtica e hiptese o de
circularidade das ideias, famoso na obra O queijo e os Vermes, de Carlo Ginzburg (1987).
Apesar de esta ser uma contribuio terica aplicada aos problemas da Micro-histria, no
nosso objetivo fazer uma abordagem microanaltica tpica dessa corrente, mas utilizar uma de
suas nuances tericas para embasar mais precisamente nossa anlise. Acreditamos, como o
autor, que a produo cultural e de ideias no era feita apenas no mbito da cultura erudita,
mas que ela passa pela dinmica da circularidade cultural, conceito inspirado em Mikhail
Bakhtin e definido pela ideia de que entre a cultura das classes dominantes e a das classes
subalternas existiu [...] um relacionamento circular feito de influncias recprocas, que se
movia de baixo para cima, bem como de cima para baixo (GINZBURG, 2006, p. 10).
Importa-nos esse conceito, uma vez que nossa problemtica feita a partir de questes que
envolvem a confluncia de ideias entre cultura popular e cultura erudita a populao geral e
o clero popular em contraposio a uma faixa composta principalmente pelo clero letrado
para elucidar o que havia por trs do conflito discursivo entre esses setores advindos de
realidades socioeconmicas absolutamente diferentes. A teoria tambm abrange outros
mbitos de nossa pesquisa, dada a confluncia de ideias interculturais e religiosas entre
cristianismo e judasmo, fator decisivo para a construo do conceito religioso do Kidush
Hashem dentro do judasmo ashkenazi;10 e posteriormente ainda, o surgimento de uma
possvel ressignificao desse conceito contribuindo na criao de todo o aporte mitolgico
10 As confluncias interculturais entre judeus e cristos no so exclusivas das relaes cristos e ashkenazim. O
foco de nossa anlise recai sobre esses dois grupos, mas preciso informar que uma variedade de estudos
apresenta tambm a importante relao entre cristos e judeus sefaradim na Pennsula Ibrica, como
exemplificam Follador (2016), Sancovsky (2007) e Rozental (2001).
28
antijudaico medieval que levou a diversas outras perseguies, principalmente aquelas
relacionadas aos crimes rituais, chamados tambm de libelos de sangue.
Por fim, entendemos os domnios da Nova Histria Cultural e da Anlise do Discurso (AD)
como plenamente adequveis entre si, pois as representaes so discursos, e vice-versa. Para
o exame das fontes de que dispomos, utilizamos a vertente de Anlise de Discurso proposta
pela Escola Francesa como ferramenta terica e metodolgica, com base em Patrick
Charaudeau e Dominique Maingueneau (2016), Helena Hathsue Nagamine Brando (1994) e
Eni Puccinelli Orlandi (2005). De modo geral, o conceito de discurso apresentado como um
produto social, cultural e historicamente produzido. Em funo disso, a teoria e mtodo da
Anlise do Discurso procura interpretar vestgios que levam contextualizao situacional
imediata, institucional e sociocultural mais ampla. Nesse sentido, a anlise do discurso no
pode ser vista como uma interpretao semntica do contedo, mas uma tentativa de
esclarecer ou detectar os motivos pelos quais o texto diz determinada coisa ou omite,
elucidando, desta forma, os modos de dizer, de mostrar, de interpretar, ou de seduzir
(ORLANDI, 2005). Concebendo o discurso como uma prtica social, observamos tambm
que ele, sendo capaz de incitar uma ao ou justific-la, um dos mbitos onde se realizam as
disputas sociais. Por isso, no podemos perder de vista que, principalmente em confronto, os
discursos no so neutros, mas carregados de sentidos (PINTO, 1999, p. 24).
O discurso articula saber e poder, pois quem fala, fala de algum lugar, e tem o direito
reconhecido institucionalmente: seu discurso est ligado a uma pressuposio de verdade, a
uma instituio, o que nos leva a perceber os protagonistas do discurso no pela sua
individualidade, mas como pertencentes a determinados lugares sociais (BRANDO, 1994, p.
49-50). Para compreender os sentidos de um discurso, portanto, preciso observar o sujeito
que o enuncia. Esse sujeito sempre est alocado em uma categoria social, pois sua voz
representa um segmento de uma sociedade histrica, isto , ele fala a partir de um
determinado lugar histrico e social. Brando (1994) caracteriza a linguagem no apenas
como um veculo de comunicao, mas um instrumento de significao da realidade sendo
ela mesma parte da realidade , fato que revela certa distanciao entre o objeto representado
e o smbolo que o representa. Desta forma, a linguagem enquanto discurso no constitui um
universo de smbolos que serve apenas como instrumento de comunicao ou suporte de
pensamento, mas , alm disso, uma interao e um modo de produo social. A interao
29
com o simblico permanente, portanto necessitamos da contribuio da AD para interpret-
los, sem, contudo, mantermos a iluso de uma compreenso global de sentido.
Apresentadas as informaes bsicas sobre a abordagem que a AD realiza do discurso, faz-se
necessrio explanar o modo como aplicamos um conjunto selecionado de conceitos
elaborados por Charaudeau e Maingueneau (2016) ao longo dos captulos, sobretudo na
anlise de nossas crnicas hebraicas e latinas, a fim de verificar nossas hipteses. Utilizamos,
na observao desses textos, o conceito de discurso constituinte, que so aqueles propostos
como discursos de origem, cuja principal caracterstica serem validados por uma cena de
enunciao que autoriza e legitima a si mesma (MAINGUENEAU, 2009, p. 60). Um exemplo
de discurso constituinte o discurso religioso. Esse conceito foi aplicado no intuito de
compreender a frequente remisso que as crnicas hebraicas, buscando legitimidade teolgica
de ao ou interpretao, fazem Tor e ao Talmude; e comparar a maneira como apresentam
uma repaginao de um conceito de martrio, bastante adverso quele presente nos livros
sagrados de base.
Antes de nosso trato analtico das fontes, estabelecemos uma explanao sobre as condies
de produo dos discursos presentes nas narrativas, as quais desempenham um papel
essencial na construo desses corpora documentais. Esse conceito uma forma mais
complexa de lidar com o que comumente se costuma denominar de circunstncias ou
contexto nos quais os discursos foram produzidos, mas se diferencia deste por permitir
explicitar, dentro deste contexto, aquilo que condiciona e perpassa o discurso
(CHARAUDEAU; MAINGUENEAU, 2016, p. 114), por isso no apenas uma forma de
situar o leitor do momento histrico ou do background em questo. Neste trabalho as
condies de produo vm atreladas a uma das principais mximas da AD: o interdiscurso.
Este conceito define que todo discurso caracterizado pela interdiscursividade, cuja
propriedade uma relao de atravessamento multiforme com outros discursos. Em um
sentido mais restrito, o interdiscurso configura-se tambm em [...] um espao discursivo, um
conjunto de discursos (de um mesmo campo discursivo ou de campos distintos), que mantm
relaes de delimitao recproca uns com os outros, [...] uma articulao contraditria de
formaes discursivas que se referem a formaes ideolgicas antagnicas
(CHARAUDEAU; MAINGUENEAU, 2016, p. 286). E em um sentido mais amplo, chama-se
tambm interdiscurso, [...] o conjunto das unidades discursivas (que pertencem a discursos
30
anteriores do mesmo gnero, de discursos contemporneos de outros gneros, etc.) com os
quais um discurso particular entra em relao implcita ou explcita (CHARAUDEAU;
MAINGUENEAU, 2016, p. 286).
A noo de interdiscurso ou, mais propriamente, da primazia do interdiscurso11 se mostra
necessria para identificar como a formao discursiva de cristos e judeus influenciou
mutuamente as crnicas latinas e hebraicas no processo de construo de certas categorias
analisadas nos textos, como a de mrtir, nas crnicas hebraicas; assim como para verificar a
presena do interdiscurso nas crnicas latinas, nomeadamente em seus enunciados sobre o
comportamento judeu, marcados por um discurso tido como popular.
Imbricado ao postulado da interdiscursividade, elegemos o conceito de posicionamento
discursivo para explicar como as crnicas hebraicas buscam, alocadas dentro do universo
discursivo do norte da Europa ou Ashkenaz nos sculos XI e XII, do campo discursivo
religioso, e dos espaos discursivos da crnica hebraica e da crnica latina, posicionar-se no
interdiscurso apreendido tanto nas identidades com que esto em contato, nomeadamente a
crist, quanto naquela capturada na Lei religiosa, que seu discurso constituinte. Aplicamos o
mesmo conceito, ainda, para entender como o posicionamento discursivo do cronista latino
em relao aos judeus mostrou-se prximo a um posicionamento identificado como popular,
ou seja, perifrico em relao ao campo discursivo religioso em questo, pois ele divergia
daquele central, fundamentado no discurso oficial da Igreja. Alm disso, buscamos entender
de que maneira pode influenciar na construo da acusao de crime ritual meio sculo depois
de 1096.
11 A primazia do interdiscurso ou primado do interdiscurso significa a precedncia do interdiscurso sobre o
discurso, em que a unidade de anlise pertinente no o discurso, mas esse espao de trocas construdo pelo
analista. Essa ideia do primado implica considerar que os discursos, assim como formula Maingueneau (2008a),
no se constituem independentemente uns dos outros para serem, em seguida, colocados em relao, mas que
eles se constituem de maneira regulada, no interior de um interdiscurso. Esta noo desdobrada ainda em uma
trade: universo, campo e espao discursivos. O universo discursivo entendido como o conjunto de formaes
discursivas (ou posicionamentos discursivos) de todos os tipos que interagem em uma conjuntura dada. Ele um
conjunto finito que delimita o horizonte a partir do qual so construdos domnios menores, suscetveis a serem
estudados, os campos discursivos, compreendidos como o conjunto de formaes discursivas que se encontram
em concorrncia, num processo de delimitao recproca seja em confronto, aliana ou neutralidade em uma
regio determinada do universo discursivo. Essa concorrncia se d entre discursos que possuem a mesma
funo social, mas divergem sobre o modo pelo qual essa funo deve ser preenchida. no interior do campo
que Maingueneau (2008b, p. 34) isola o espao discursivo, que o autor entende como um lugar de trocas
construdo por subconjuntos de formaes discursivas, cuja relao o analista, a partir de hipteses fundadas
sobre um conhecimento dos textos e um saber histrico, julga pertinente considerar (SOUZA-E-SILVA, 2015, p.
100).
31
Do arcabouo terico da AD selecionamos tambm o conceito de cenografia, para demonstrar
a forma como o cronista dispe os mrtires na cena englobante (o discurso religioso) e na
cena genrica da crnica, a fim de construir um novo conceito de mrtir. Relacionando a
cenografia com o thos do cronista judeu, ou seja, com a identidade enunciativa que se
posiciona dentro de seu campo, procuramos interpretar como este ajudou tambm na criao
da nova concepo de mrtir e, tal qual o posicionamento discursivo do cronista latino, pode
ajudar e corroborar o discurso reelaborado de crime ritual. Uma abordagem mais
pormenorizada acerca de todos esses conceitos, bem como uma maior explicao e
detalhamento de cada um deles, ser feita ao longo dos captulos e nos momentos de
operacionalizao terico-metodolgica da leitura, anlise e interpretao de nossas
documentaes literrias.
Elucidado o instrumental terico e metodolgico a sustentar nossas hipteses, discutamos a
primeira destas. Partimos da teoria da circularidade das ideias e do conjunto de conceitos da
AD supracitados, sobretudo o da interdiscursividade, para explicar como a influncia mtua
entre judasmo e cristianismo contribuiu, a partir do imbricamento de noes religiosas de
ambos, na criao do conceito e prtica do Kidush Hashem. Refutamos a noo que atribui
um status de mais pura manifestao da religio judaica aos ashkenazim, uma vez que muitas
de suas manifestaes religiosas e crenas no mbito popular se originavam claramente de
aspectos do credo e da religiosidade crists. Os lderes judeus, rabinos e eruditos estudiosos
dos preceitos, combateram o que acreditavam serem crendices que nada tinham a contribuir
para o judasmo e que faziam com que sua comunidade se aproximasse cada vez mais do
cristianismo. Apesar disso houve interao entre as duas crenas tanto no nvel popular, como
entre rabinos, judeus ricos e clrigos eruditos ou governantes de bispados, bem como entre
governantes seculares, que muitas vezes mantinham certo dilogo ou relaes amistosas. Este
aspecto liga-se, portanto, s nossas noes de identidade e alteridade, pois, apesar de ambos,
judeus e cristos, definirem seus costumes a partir da negao do outro ou do que cada um
no , no cotidiano de suas relaes a sociabilidade garantiu a fluidez nas barreiras que eles
cerraram na inteno de demarcarem suas identidades e hegemonias.
Definimos a segunda hiptese a partir do pressuposto de que a violncia se d em momentos
de vazios de poder. Assim, os massacres da Primeira Cruzada se justificam em uma poca na
qual os poderes seculares e religiosos esto divididos no que concerne s prticas e
32
representaes do judasmo medieval, o que permitiu o fortalecimento do sentimento
antijudaico naquela sociedade e que se estendeu pelos sculos posteriores aos acontecimentos.
Dentre as consequncias dessas representaes est a ressignificao do conceito de Kidush
Hashem pelos membros da Cristandade, resultando na elaborao da acusao de assassinato
ritual, os chamados libelos de sangue, uma denncia amplamente aceita e acreditada pelos
cristos. Essas acusaes aconteceram sistematicamente, a partir do sculo XII (1144), mas o
impacto que o suicdio ritual ashkenazi havia gerado na representao crist desta prtica j se
mostra presente no imaginrio popular e letrado desde o perodo contemporneo aos eventos.
Essa impresso negativa dos martrios judaicos pode ser observada nas crnicas latinas a
partir de determinadas descries que os cronistas reservaram a estes casos, possibilitando
que, atravs delas, essa representao permanecesse viva e sedimentada.
III
O corpus documental que elegemos para o presente estudo composto por sete fontes
escritas, dentre elas, trs crnicas hebraicas e quatro latinas. Os textos de origem hebraica
fazem parte de um conjunto de crnicas sobre as Cruzadas traduzidas diretamente do
hebraico pelo historiador brasileiro e catedrtico de Histria Medieval da Universidade de
So Paulo, Prof. Dr. Nachman Falbel (2001). A primeira e mais longa delas atribuda ao
rabino RSalomo bar Sanso. A segunda, mais curta e repleta do que Robert Chazan (1978)
chama de ornamentaes poticas, deve sua autoria ao rabino Eliezer bar Nathan (1090-
1170), tambm conhecido como Eliezer, o velho, ou Eliezer, rabino de Mogncia. A ltima,
a mais organizada e coerente delas, tem autoria desconhecida, por isso identificada como
Crnica Annima, Annimo de Mogncia ou ainda A narrativa das antigas perseguies, e
d nfase aos acontecimentos do bispado de Mogncia.12 Essas crnicas chegaram at ns
em grande parte pelos chamados manuscritos de Darmstadt, datados do sculo XIV, tendo
sua publicao como conjunto apenas no sculo XIX, em uma verso bilngue alemo-
hebraico de 1892, por Adolf Neubauer, professor de Hebraico Rabnico na Universidade de
12 No decorrer do texto tambm nos referimos s crnicas de forma abreviada, a partir da autoria: S. (Salomo
bar Sanso), E. (Eliezer bar Nathan), e A. (Crnica Annima).
33
Oxford, e Moritz Abraham Stern, professor de matemtica na Universidade de Gttingen,
intitulada Hebrische Berichte ber die Judenverfolgungen Whrend der Kreuzzge.
A crnica de Salomo bar Sanso preservou-se em apenas um manuscrito, o Cdice 28,
flios 151-163, da biblioteca do Jews College em Londres. De acordo com seus editores
alemes Neubauer e Stern (1892), o cdigo foi escrito em Treviso, em 1453. A crnica de
Eliezer bar Nathan, por sua vez, encontrava-se originalmente em cinco manuscritos. O
primeiro deles o Hebrew d. II, especialmente os flios 232-236, da Biblioteca Bodleiana,
em Oxford, um cdice com datao aproximada a 1325. O segundo manuscrito est no
cdice Hebrew n. 2585, 4 D, flios 93 e ss., que parece uma cpia do citado anterior, tambm
atualmente localizada da Biblioteca Bodleiana. O terceiro o Hebreu n. 45, flios 8-11, hoje
disponvel na Bibliothque nationale et universitaire de Estrasburgo, na Frana, datada do
ano de 1631. O quarto encontrava-se no cdice 171, flios 22-28, Biblioteca do Jdisch-
Theologisches Seminar de Breslau, Alemanha, com ltima consulta datada do incio do
sculo XVIII, mas na atualidade desaparecido desde os violentos eventos resultantes da
Segunda Guerra Mundial (1938-1945). O quinto e ltimo manuscrito encontrava-se no
Minhagbuch (Livro dos Costumes Religiosos) da comunidade de Worms, datando de 1625,
mas que tambm foi perdido posteriormente em data sinistra aos estudiosos e historiadores.
A Crnica Annima, por sua vez, encontra-se apenas em um manuscrito, o Codex orientalis
25, flios 17-22, da Hessische Landes-und Hochschulbibliotek, de Darmestdio, localizado
na parte sul da regio metropolitana Frankfurt/Reno-Meno, na Alemanha. Neubauer e Stern
(1892) chegam a mencionar a existncia de um segundo manuscrito na Biblioteca Bodleiana,
mas ele no foi encontrado. Fragmentos das duas primeiras crnicas foram traduzidas para o
yidish; um encontra-se em um manuscrito do sculo XVI e o outro no livro Maase nissim
(Um acontecimento milagroso), de Yuspi Shammash de Amsterd (FALBEL, 2001, p. 65-
66).
Quanto circulao e recepo das narrativas sobre as perseguies de 1096, Falbel (2001, p.
305) defende que as crnicas so fruto das histrias vivenciadas e transmitidas oralmente, at
que passaram a ser escritas na forma de narrativas de cunho didtico-pedaggico. O objetivo
principal era que fossem lidas ou lembradas ocasionalmente s comunidades em certos
momentos, como em dias de recordao dos mortos, de jejuns e penitncias, de luto, entre
outras ocasies. Essa uma situao similar aos Memorbcher (Livros das recordaes) que
34
diversas sinagogas compunham para registrar e lembrar seus mrtires. Assim, aps sua
compilao, as crnicas comearam a ser lidas para o pblico das comunidades, a fim de
manter a recordao das vtimas e seus sofrimentos, da mesma forma que as composies de
piyyutim (poesias litrgicas) e dos Memorbcher acabaram tambm incorporados liturgia.
Essa linha interpretativa encontra um reforo em Baer (1953), que acredita que essas
histrias tenham sido finalmente escritas na inteno de fortificar a f daqueles que perderam
o nimo aps os acontecimentos na Rennia, e que provavelmente eram lidas nas sinagogas
em forma de poesia litrgica (piyyut) de dor ou lamento (kinot), tradio que se firmou no
rito judaico at a atualidade, quando trechos das narrativas ainda so lidos nas preces da noite
de Rosh Hashan, festividade que comemora o incio do ano novo judaico (FALBEL, 2001,
p. 67).
Como assinala Falbel (2001), a interrelao entre as trs crnicas e suas dataes so
extremamente complexas. Diversos autores publicaram estudos e concluses sobre a natureza
dessa relao, mas at este momento no h um consenso, por isso podemos apenas fazer
especulaes e hipteses assentadas sobre seus manuscritos defeituosos e copiados duzentos
anos aps os eventos que descrevem. Ana Sapir Abulafia (1982) resume as concluses dos
diversos estudiosos das crnicas, alm de suas prprias, mas tende a comungar com
interpretao de Robert Chazan (1978) de que a crnica de Eliezer bar Nathan depende
diretamente da crnica de Salomo bar Sanso, sendo que esta e a Crnica Annima, ainda
que independentes uma da outra, provm de uma fonte comum no que diz respeito s
informaes referentes a Mogncia. Abulafia discorda apenas na teoria de Chazan sobre a
ideia de que a primeira crnica foi contempornea aos ataques de 1096 (FALBEL, 2001, p.
70-71).
Para esclarecer este quadro, entendemos que a proposta sobre a interrelao dos textos, em
linhas gerais, respeita quatro aspectos fundamentais: i. as crnicas so dependentes umas das
outras; ii. a crnica de rabi Salomo bar Sanso uma compilao da crnica de rabi Eliezer
bar Nathan, da Crnica Annima, e de outras fontes, especialmente de cartas que eram
trocadas pelas comunidades judias sob ameaa; iii. a crnica de rabi Salomo foi
primeiramente compilada por um annimo e posteriormente usada pelo rabino como fonte
para o seu texto, j a crnica de rabi Eliezer foi realmente de sua autoria, enquanto, a
Crnica Annima provavelmente foi escrita por algum judeu de Mogncia; iv. rabi Salomo
35
bar Sanso escreveu por volta de 1140 a 1146, rabi Eliezer bar Nathan escreveu antes de
1146, e a Crnica Annima contempornea s perseguies (FALBEL, 2001, p. 70).
Pouco se sabe a respeito da vida e obra desses autores. Sobre o Annimo de Mogncia, a
nica especulao que possumos que o autor era provavelmente um judeu de Mogncia,
uma vez que sua crnica foca, sobretudo, nos acontecimentos daquela cidade e redondezas,
especialmente Vormcia e Espira. Quanto ao rabi Salomo bar Sanso, as nicas informaes
de que dispomos so aquelas retiradas de sua prpria crnica, em que o autor se apresenta
claramente dizendo: At aqui, no ano 900 [do quarto milnio; ano cristo de 1140], eu,
Salomo bar Sanso, copiei isto sobre o que aconteceu em Mogncia. L eu perguntei aos
ancios sobre todos os acontecimentos, e aquilo que eles me relataram, ordenei caso por caso,
segundo seu carter, e foram eles que me contaram sobre essa santificao (Salomo bar
Sanso. Trad. de Nachman Falbel, 2001, p. 107). Tais informaes apenas nos dizem que o
autor realizava um tipo de trabalho tpico para um rabino naquela poca: relatar
acontecimentos importantes para a comunidade judaica e garantir que a memria fosse
preservada a partir de depoimentos de testemunhas oculares ou descries consuetudinrias,
comportamento que demonstrava a necessidade judaica de manter a coeso social e a
identidade de seu grupo.
Rabi Eliezer bar Nathan (aprox. 1090-1170) o mais conhecido dos nossos autores. Foi um
grande halachista, um dos primeiros tosafistas e um importante poeta litrgico.13 Em seu
crculo contemporneo se correspondeu com os primeiros tosafistas, a citar o Rabino Jacob
ben Meir (aprox. 1100-1171), normalmente conhecido como Tam, e o Rabino Samuel ben
Meir (aprox. 1080-1160), conhecido como Rashbam, ambos netos de Rabi Shlomo Yitzchaki
(aprox. 1040-1105), o Rashi, considerado um dos maiores intrpretes do Tanakh (conjunto
13 Os termos referem-se Halach, j detalhada em nota anterior, e aos Tosafot. Os Tosafot so os comentrios
sobre passagens selecionadas do Gemara (ou seja, o componente do Talmude que compreende a anlise
rabnica e comentrios sobre o Mishnah) ou notaes sobre o comentrio de Rashi Geralmente os Tosafot
levantam problemas e questes que, em muitos casos, envolvem discusses. So, assim, adies ou suplementos
compostos por alunos e sucessores de Rashi, muitos deles seus prprios parentes, principalmente netos e genros.
Quando Rashi faleceu no ano de 4865 (1105), comeou a era dos tosafistas, que durou cerca de 200 anos. O
tosafista , portanto, o estudioso do Talmude que viveu na regio da atual Frana e Alemanha durante os sculos
XII e XIII. Os tosafistas ou Ba'alei haTosfos no se consideram uma nova escola de interpretao talmdica, eles
apenas adicionam ou esclarecem os comentrios do rabino Rashi, que so entendidos como de grande sabedoria
e conhecimento, ao mesmo tempo que concisos e simples. Os Tosafot so impressos no exterior do texto, perto
da margem da pgina; isto , quando se olha para um livro aberto, se v os Tosafot nas colunas mais prximas
das bordas das pginas (PERLMUTTER, 1996, p. 8 e ss.).
36
principal de livros sagrados, sendo o mais prximo do que se pode chamar de uma Bblia
judaica) e do Talmude. Rashi foi a primeira pessoa conhecida a fazer uma anlise de forma
abrangente e sistemtica do Talmude e seu neto, o Rabeinu Tam, foi um dos nomes de maior
influncia dentro da construo da Halach e dos Tosafot. Tamanha foi a importncia dessas
personagens que seus comentrios esto presentes nas edies do Talmude at os dias atuais.
Atravs de suas quatro filhas, Eliezer se tornou o ancestral de vrias famlias conhecidas, que
exerceram uma grande influncia sobre a vida religiosa nos sculos subsequentes. Com base
nessas informaes biogrficas do rabino Eliezer, entendemos os motivos pelos quais a sua
crnica foi a mais popular, apesar de ser a mais incompleta e menos informativa delas. Sua
popularidade pode ser comprovada se levarmos em considerao que ela foi a mais
reproduzida e preservada em um maior nmero de manuscritos. Segundo Chazan (2000), a
estrutura narrativa dessa crnica composta de quatro poemas, que so seu elemento
original, uma contribuio nica pela combinao poesia e prosa.
Assim como ocorre nas hebraicas, h, entre as quatro crnicas latinas, um autor incgnito: a
crnica do Annimo Saxo. Das demais, duas so atribudas a monges: uma a Bernoldo de
Constana, e outra a Frutolfo de Michelsberg e Eceardo de Aura. Uma ltima conferida ao
cnego Alberto de Aquisgro. O texto atribudo ao Annalista Saxo (ou Annimo Saxo),
terminologia cunhada por Leibniz no incio do sculo XVII, um conjunto de fatos dispostos
cronologicamente que iniciam em 741 e terminam abruptamente em 1142, em decorrncia da
perda de, pelo menos, duas folhas no final do nico manuscrito sobrevivente. Alm disso,
algumas folhas foram perdidas no meio documento, privando-nos do incio da entrada em
1024 e todas as entradas para 1033 e 1034. O contedo da crnica baseia-se na narrao de
feitos e acontecimentos durante os reinados dos reis germnicos e seus predecessores
carolngios. A data da escrita da crnica pode ser determinada de forma bastante precisa. Seu
corpo principal foi concludo entre 1148 e 1152, mas notas marginais e adies foram talvez
feitas alguns anos mais tarde. Sua composio se deu quando o autor teve acesso a mais de
cem tipos de fontes diferentes e organizou tais informaes cronologicamente no formato de
anais. Quanto identidade do cronista, ela permanece uma incgnita, mas acredita-se que foi
um monge da Abadia de Nienburg, um monastrio beneditino localizado na regio da Baixa
Saxnia. O manuscrito original foi publicado pela primeira vez no sculo XVI, mas
restaurado apenas em 1993 e atualmente est disponvel na Bibliothque nationale de
37
France, em Paris, sob a classificao de Codex Latino 11851. Utilizamos aqui a edio alem
e latina de traduo e organizao do Prof. Dr. Klaus Nass (Ludwig-Maximilians-Universitt
Mnchen), intitulada Die Reichschronik des Annalist Saxo, publicada em 2006, e as
tradues pontuais de Lon Poliakov (1955) e Nachman Falbel (2001).
Bernoldo de Constana ou Bernold von St. Blasien, autor da segunda crnica latina, foi um
historiador e telogo cristo medieval que viveu aproximadamente entre 1054 e 1100. Ele
entrou para a escola de Constana, onde teve uma rpida ascenso por seus grandes
progressos no estudo. Ficou conhecido pelos seus dezessete tratados apologticos poltica
papal que primava pela aplicao das reformas gregorianas no monasticismo europeu de sua
poca, bem como por numerosos tratados litrgicos e contribuies lei cannica. O excerto
de sua obra, o Chronicon, em que trata das perseguies de judeus na Primeira Cruzada foi
contemporneo aos eventos. A partir desta informao, possvel identificar os motivos
pelos quais suas opinies em relao aos judeus apresentaram um carter negativo, uma vez
que as ideias gregorianas determinavam tolerncia zero s heresias e a ampliao do poder
do papa at mesmo nos governos seculares. Ainda que o judasmo na prtica no
representasse uma heresia, poca das Cruzadas os conceitos se confundiram ao ponto da
perseguio de judeus tornar-se to justa e incentivada como a de hereges, pois ambos
representavam a ruptura e a desordem na sociedade crist. Nas concepes de muitos assim
como o cronista em questo, que era um clrigo letrado e erudito os judeus eram um
empecilho poltica de consolidao do poder papal. Empregamos neste estudo a edio e
traduo bilngue ingls-latim do Prof. Dr. Ian S. Robinson (Trinity College, Dublin),
intitulada Eleventh-Century Germany: The Swabian Chronicles para a Manchester Medieval
Sources Series, publicada em 2008.
Frutolfo de Michelsberg ou Fruitolf von Michaelsberg foi o prior beneditino da Abadia de
Michelsberg, na cidade germnica de Bamberg. No se sabe ao certo a data de seu
nascimento, mas viveu at 1103. Frutolfo desempenhou diversas funes importantes em seu
monastrio, dentre elas a de ensinar o quadriuium, mas acima de tudo, foi bibliotecrio e
monge copista, tanto que muitos de seus manuscritos foram preservados at hoje. O cronista
foi autor de um dos mais importantes e extensos trabalhos historiogrficos medievais, a
chamada Crnica do Mundo (Chronica), que narra desde a Criao at o ano de 1099. Aps
sua morte em 1103, o trabalho foi expandido pelo abade e reconhecido cronista medieval
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Eceardo de Aura, ou Ekkehard de Aura. Essa crnica a compilao de um notvel nmero
de fontes, por isso reflete a grande erudio dos autores, dado o esforo pela integrao de
todas essas fontes em uma narrativa unificada e coerente. Mesmo fora de sincronia com os
textos de Beda, o Venervel, o trabalho de Eceardo parece ser o mais rico e bem
desenvolvido de sua poca, comparvel apenas crnica universal de Sigeberto de
Gembloux (1030-1112). Alm disso, sua contribuio para teorias histricas foi relevante,
pois desenvolveu uma noo mais crtica da histria e o conceito de anacronismo.
Conhecendo o lugar que Frutolfo ocupava na sociedade crist e dentro do prprio corpo
clerical, nossa concepo de que a circularidade de ideias era uma realidade na poca pode
ser comprovada, quando analisamos o tom antijudaico de seus escritos sobre os massacres da
Rennia, ainda que fosse, assim como o Bernoldo de Constana, um erudito historiador. Na
condio de lder de um monastrio, possvel tambm que suas opin