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Universidade Federal do Maranhão

Programa de Pós-graduaçãoem Ciências Sociais

ISSN 1983-4527

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© 2011 – Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal do Maranhão

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste caderno poderá ser reproduzida, seja por quais forem os meios empregados, sem a permissão por escrito da Coordenação do Programa. As idéias, pensamentos, opini-ões, conceitos ou visões emitidos em artigos assinados são de inteira responsabilidade de seus autores.

Universidade Federal do Maranhão

REITORProf. Dr. Natalino Salgado Filho

PRÓ-REITOR DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃOProf. Dr. Fernando Carvalho Silva

COORDENADOR DO PPGCSocProf. Dr. Igor Gastal Grill

EDITORIAEditores: Prof. Dr. Horácio Antunes Sant’Ana Júnior | Prof. Dr. Igor Gastal Grill |Prof. Dr. Sérgio Figueiredo FerrettiSecretária: Soraya Cristina Barbosa CarvalhoNormalização: Maria Stela Martins Veloso Design gráfico: Raquel NoronhaEditoração eletrônica: Raquel Noronha | Yuri Nogueira

INDEXADOR: Latindex

Revista Pós Ciências Sociais/Universidade Federal do Maranhão, Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais, v.8, n.15, 2011. 230p. São Luís: EDUFMA, 2011.

v. 8, n. 15 Semestral, 230p. ISSN: 1983-4527 Continuação de Caderno Pós Ciências Sociais (ISSN: 1807-3492)

1. Ciências Sociais - Periódicos. I. Universidade Federal do Maranhão. II. UFMA. Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais. III. Título.

CDD 300.05 CDU 3.05

Revista Pós Ciências Sociais - Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais - Centro de Ciências Hu-manas - Universidade Federal do MaranhãoAv. dos Portugueses, s/n. Campus do Bacanga - São Luís - MA - CEP: 65.085-580Tel: 98 3301-8325 Site: www.ppgcsoc.ufma.br E-mail: [email protected]

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COMITÊ EDITORIAL

Profa. Dra. Arleth Santos BorgesProfa. Dra. Eliana Tavares dos ReisProf. Dr. Horácio Antunes Sant’Ana JúniorProf. Dr. Igor Gastal GrillProf. Dr. Marcelo Domingos Sampaio CarneiroProfa. Dra. Mundicarmo Maria Rocha FerrettiProf. Dr. Sérgio Figueiredo FerrettiJoão Marcelo de Oliveira Macena (Doutorando)Allysson de Andrade Perez (Mestrando)Bruno da Silva Azevêdo (Mestrando)Jorge Luiz Feitosa Machado (Mestrando)Paulo Roberto Melo Sousa (Mestrando)

CONSELHO EDITORIAL

Prof. Dr. Afrânio Garcia Jr. (École des Hautes Études en Sciences Sociales)Prof. Dr. Alejandro Frigério (Universidad Católica Argentina)Prof. Dr. Alfredo Wagner Berno de Almeida (Universidade Federal do Amazonas)Prof. Dr. André Marenco Santos (Universidade Federal do Rio Grande do Sul)Prof. Dr. César Barreira (Universidade Federal do Ceará)Profa. Dra. Ednalva Maciel Neves (Universidade Federal da Paraíba)Profa. Dra. Elizabeth M. B. Coelho (Universidade Federal do Maranhão)Profa. Dra. Irlys Barreira (Universidade Federal do Ceará)Prof. Dr. José Ricardo Ramalho (Universidade Federal do Rio de Janeiro)Prof. Dr. José Vicente Tavares dos Santos (Universidade Federal do Rio Grande do Sul)Prof. Dr. Leopoldo Waizbort (Universidade de São Paulo)Profa. Dra. Lúcia Maria Machado Bógus (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo)Profa. Dra. Maria José da Silva Aquino (Universidade Federal do Pará)Profa. Dra. Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcante (Universidade Federal do Rio de Janeiro)Profa. Dra. Marie-France Garcia-Parpet (Institut National de la Recherche Agronomique)Prof. Dr. Marion Aubrée (EHESS/ IHEAL/ Paris III)Profa. Dra. Maristela de Paula Andrade (Universidade Federal do Maranhão)Prof. Dr. Martin Gegner (Brandenburg University of Technology)Prof. Dr. Miguel Serna (Universidad de la República)Profa. Dra. Mona-Josée Gagnon (Université de Montreal)Prof. Dr. Pierre Teisserenc (Université Paris XII)Prof. Dr. Ricardo Rezende Figueira (Universidade Federal do Rio de Janeiro)Prof. Dr.Richard Price (Univerity of Yale)Prof. Dr. Roberto Malighetti (Universitá Degli Studi di Milano Bicocca-Itália)Prof. Dr. Sidney Greenfield (University of Wisconsin)Profa. Dra. Stefania Capone (Université Paris Ouest Nanterre)Prof. Dr. Vagner Gonçalves da Silva (Universidade de São Paulo)

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EDITORIAL 07

DOSSIÊ

APRESENTAÇÃO | ELITES: RECURSOS E LEGITIMAÇÃO 09

Mario Grynszpan | Igor Gastal Grill

O EPISCOPADO BRASILEIRO E O ESPAÇO DO PODER: 15

UMA CULTURA ECLESIáSTICA EM MUTAÇÃO

Ernesto Seidl | Wheriston Neris

TITULAÇÃO ESCOLAR, MERCADO E CAPITAL SOCIAL 39

NA HIERARQUIzAÇÃO ESCOLAR: AS RELAÇõES ENTRE A OBTENÇÃO

DO TíTULO DE DOUTOR EM SOCIOLOGIA E O INGRESSO NA CARREIRA

Odaci Luiz Coradini

UM CAPITAL POLíTICO MULTIPLICADO NO TRABALHO GENEALÓGICO 55

Letícia Bicalho Canêdo

MEMÓRIAS DA ELITE: ARQUIVOS, INSTITUIÇõES E PROJETOS MEMORIAIS 77

Luciana Quillet Heymann

AS DISPUTAS E CONVERGÊNCIAS DAS ELITES BRASILEIRAS DIANTE 97

DA CRISE FINANCEIRA DE 2009: CONSEQüÊNCIAS EMPíRICAS E ANALíTICAS

Roberto Grün

ARTIGOS

A CORRUPÇÃO NA AGENDA DA NOVA SOCIOLOGIA ECONôMICA 115

Edmilson Lopes

REDES DE PRODUÇÃO GLOBAIS (RPGS): 127CONTRIBUIÇõES CONCEITUAIS PARA A PESQUISA EM CIÊNCIAS SOCIAIS

Rodrigo Salles Pereira dos Santos

REDES DE PRODUÇÃO GLOBAIS E A ANáLISE DO DESENVOLVIMENTO ECONôMICO 141

Jeffrey Henderson | Peter Dicken | Martin Hess | Neil Coe | Henry Wai-Chung Yeung

ESQUERDA E DIREITA NO BRASIL: UMA ANáLISE CONCEITUAL 169

Rafael Machado Madeira | Gabriela da Silva Tarouco

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ENTREVISTA

ARTESANATO EM DEBATE: PAULO KELLER ENTREVISTA RICARDO GOMES LIMA 185

Paulo Keller

RESENHA

INTELECTUAIS EUROPEUS: TRANSAÇõES CULTURAIS, CIRCULAÇÃO DE IDÉIAS 209

E DISPUTAS EM TORNO DA DEFINIÇÃO DE “INTELECTUAL”

Eliana Tavares dos Reis

RESUMOS DISSERTAÇõES DO PPGCSOC-UFMA 217

NORMAS PARA PUBLICAÇÃO 227

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A Revista Pós Ciências Sociais chega ao seu número 15. Desde 2004, com o título inicial de Caderno Pós Ciências Sociais (al-terado para a denominação atual a partir do número 4) o periódico vem sendo se aprimo-rando gradativamente com vistas a atender, cada vez mais, às características de um peri-ódico científico de qualidade.

Em 2009, obtivemos o conceito B3 no Qualis/CAPES, na Área de Sociologia, e, des-de então, estabelecemos um conjunto de metas e objetivos que acreditamos ter alcançado. En-tre elas: 1) atualizamos a nossa periodicidade; 2) adotamos um novo projeto gráfico; 3) estru-turamos os números também mediante dossiês temáticos; 4) indexamos a Revista no Diretó-rio Latindex, no primeiro semestre de 2011; 5) cumprimos os parâmetros do Scielo para soli-citar indexação no segundo semestre de 2011; 6) renovamos o nosso conselho editorial.

Desse modo, em 2009, veiculamos os nú-meros 11 (o primeiro com o novo projeto grá-fico) e 12 (pioneiro na apresentação de dossiês, com o dossiê “Amazônia e Paradigmas do De-senvolvimento”) relativos ao primeiro e ao se-gundo semestre do respectivo ano. Em setem-bro de 2010, o número 13 (referente ao primei-ro semestre de 2010) foi lançado com o Dossiê “Sociologia Econômica”. O número 14 (refe-rente ao segundo semestre de 2010), contou com o dossiê “Educação Indígena”.

O número 15, que temos a grata satisfa-ção de apresentar à comunidade acadêmica, traz o dossiê “Elites”. Organizado pelos pro-fessores Igor Gastal Grill (UFMA) e Mario Grynszpan (CPDOC-FGV e UFF), o dossiê re-úne pesquisadores que participam da consti-tuição de uma rede de estudos sobre elites no Brasil e é composto por 05 artigos que tratam da constituição de diversos segmentos de eli-tes, especialmente no que diz respeito às su-as composições sociais, recursos e instrumen-tos de legitimação. Seguindo a linha editorial

de contemplar outras temáticas, além daque-la privilegiada no dossiê, a revista conta ain-da com 04 artigos discutindo a corrupção na agenda da nova sociologia econômica e ana-lisando conceitualmente tanto a esquerda e a direita no Brasil quanto as Redes de Produ-ção Globais (RPG), com uma resenha e com uma entrevista sobre o artesanato, com o an-tropólogo Ricardo Gomes Lima, pesquisador do Centro Nacional de Folclore e Cultura Po-pular (CNFCP/IPHAN/Ministério da Cultura), realizada pelo Professor Dr. Paulo Keller, do Departamento de Sociologia e Antropologia da UFMA. Foram incluídos também 10 resu-mos de dissertações de mestrado defendidas no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais no primeiro semestre de 2011. Neste número, continuamos a contar com o finan-ciamento da Fundação de Amparo à Pesquisa e ao Desenvolvimento Científico e Tecnoló-gico do Maranhão (FAPEMA) via recursos do edital APUB-00960/10.

A Revista contou com 46 artigos nos cin-co últimos números, além de 01 entrevis-ta, de 05 resenhas de obras recentes e resu-mos de dissertações dos alunos do Progra-ma de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal do Maranhão (UF-MA). Dos referidos artigos, 38 (83%) são de autores vinculados a outras instituições do Brasil e do exterior e 08 (17%) são assinados por pesquisadores da UFMA. Desde o núme-ro 11, temos como prática assinalar as datas de recebimento e de aprovação dos artigos pelo comitê editorial.

Com a edição de mais este número, nos-sa Revista continua na sua busca se fortale-cer, cada vez mais, como espaço de divulga-ção e de interlocução de reflexões no âmbito das Ciências Sociais.

São Luís, junho de 2011Coomitê Editorial

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Este número da Revista Pós Ciências So-ciais apresenta um dossiê sobre a constitui-ção de diversos segmentos de elites, especial-mente no que diz respeito às suas composi-ções sociais, recursos e instrumentos de legi-timação. Os estudos de elites têm um percurso bastante longo. Eles remontam a meados do século XIX e são coetâneos do próprio pro-cesso de afirmação e institucionalização das Ciências Sociais. Os autores tidos como seus pais fundadores, Gaetano Mosca e Vilfredo Pareto, apresentavam-se como instituidores da Ciência Política e da Sociologia. Ambos acreditavam haver descoberto uma lei uni-versal básica dos grupos humanos: eles são sempre dirigidos por minorias, não importan-do tempo, lugar, forma, dimensão ou ideolo-gia. Robert Michels, mais novo e influencia-do pelas idéias de Mosca e Pareto, denominou esse princípio de lei de ferro da oligarquia.

Mario GrynszpanIgor Gastal Grill

DOSSIÊ: ELITES

ELITES: RECURSOS E LEGITIMAÇÃO

Na sua origem, essas formulações tinham um caráter antidemocrático, dando funda-mento científico à desqualificação política das massas, tipo de argumento classificado por Albert O. Hirschman como “tese da futi-lidade”, uma das vertentes da retórica da in-transigência. Benito Mussolini delas se apro-priou para justificação do fascismo. Isso não significa, é claro, que aqueles autores fossem antecipadores ou profetas do fascismo. Pare-to, elevado à condição de ícone por Mussoli-ni, manifestou reservas em relação a este em cartas próximas ao seu falecimento, ocorri-do no início da década de 1920, quando os fascistas apenas chegavam ao poder. Mos-ca apoiou a ascensão de Mussolini, como fi-zeram os liberais italianos de maneira geral, assombrados pelo fantasma da Revolução de 1917, mas tornou-se seu opositor a par-tir de 1924, com o assassinato pelos fascistas

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do deputado socialista Giacomo Matteotti. Já Michels, embora fosse alemão, aproximou-se de fato de Mussolini e do fascismo, mas, em 1911, quando publicou “Sociologia dos parti-dos políticos”, o fez como uma crítica ao Par-tido Social-Democrata da Alemanha, no qual havia militado.

Pelo menos dois elementos são impor-tantes para se entender a longevidade dos estudos de elites. O primeiro foi uma ruptura com sua marca de origem antidemocrática, o que os poupou de sucumbir ante a legiti-mação e a disseminação da democracia. Es-sa ruptura se deu, em grande parte, pela sua apropriação pelas Ciências Sociais nos Esta-dos Unidos, onde os textos dos autores eli-tistas foram sendo neutralizados, isto é, des-pidos de seu caráter de tomada de posição política, lidos não como opositores da de-mocracia em geral, mas como críticos rea-listas da democracia participativa. O segun-do, que guarda relação com o anterior, foi a progressiva autonomização do objeto elites em relação à teoria que o fundou, impon-do-se como relevante na pauta de objetos científicos legítimos. Com a autonomização, o objeto elites passou a ser abordado a par-tir de perspectivas teóricas e quadros con-ceituais diversos. Mais, os trabalhos sobre as elites foram se tornando recorrentes mesmo em disciplinas que antes lhes eram avessas, como a Antropologia, enriquecendo-se pe-la incorporação de temas caros a esta, como família, parentesco, rituais, entre outros.

No Brasil, os estudos de elites foram du-rante muito tempo praticamente exclusivos à Ciência Política. Ainda hoje, é, sobretudo nos cursos de teoria política, que os alunos de graduação em Ciências Sociais tomam conta-to com o tema e com as idéias de Mosca, Pa-reto e Michels. Em parte, isso se deve à for-te influência que aqui teve a Ciência Política americana. Foi nela que se formou uma par-

cela substantiva dos cientistas políticos bra-sileiros e também por seu intermédio que se deu a apropriação do tema das elites, isto é, pelas suas leituras ou interpretações. Igual-mente por isso, a Ciência Política no Brasil, à diferença do que ocorreu na Sociologia, foi menos permeável à orientação do marxismo e à deslegitimação do estudo de elites, como se este expressasse uma adesão a uma postu-ra social e intelectual ela mesma elitista. Mais claramente a partir dos anos 1980 esse qua-dro foi mudando, tornando-se mais frequente o investimento de sociólogos e mesmo de an-tropólogos nos estudos de elites. Não há co-mo desconhecer a importância que tiveram nessa mudança as idéias de Pierre Bourdieu. Elas são atualmente, sem dúvida, a principal referência nos estudos de elites nas Ciências Sociais em seu conjunto.

Logo, é sintomático que uma gama de au-tores que se dedicou a reconstituir o debate em torno do estudo das chamadas elites – as definições de ciência que comportavam, as lutas ideológicas que espraiavam e as alter-nativas teóricas e metodológicas que ofere-ciam – identifique os anos 1970 como marco do esgotamento ou refluxo de uma agenda. Não sem deixar de concordar que o referen-cial de Bourdieu significou, nesse mesmo pe-ríodo, um novo impulso e renovação na aná-lise de distintas configurações do campo do poder; dos critérios de hierarquização dos di-versos espaços sociais que o compõem e en-tre eles; da diferenciação/autonomização das esferas; da fixação de especialistas e das su-as relações com os profanos; dos mecanismos de legitimação em pauta; entre outras vias de análise possíveis.

Do mesmo modo, não é de se estranhar a constituição de redes de pesquisadores no Brasil que se aproximaram, mediante o uso e o diálogo conduzidos a partir do esquema analítico formulado por Bourdieu, bem co-

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Elites: recursos e legitimação 11

mo uma miríade de temáticas de investigação que suscitou em mais de trinta anos. O que se traduziu, por sua vez, em Grupos de Traba-lho (como o que se reuniu nas últimas edições dos encontros da ANPOCS, intitulado inicial-mente “Elites e Instituições Políticas” e, pos-teriormente, “Grupos Dirigentes e Estruturas de Poder), dossiês (em especial “Sociologia do Poder e das Elites” da Revista TOMO de 2008 e “Elites Políticas” da Revista de Sociologia e Política, também de 2008) e o lançamento de coletâneas (“Estudos de Grupos Dirigentes no Rio Grande do Sul: algumas contribuições re-centes”, organizada por Odaci Luiz Coradini e publicada em 2008; “Circulação Internacio-nal e Formação Intelectual das Elites Brasi-leiras”, organizadas por Ana Maria Almeida, Letícia Canêdo, Afrânio Garcia e Agueda Bit-tencourt e publicada em 2004; “Por outra his-tória das elites”, organizada por Flávio Heinz e publicada em 2006, entre outras).

O espaço dos estudos de elites, assim, ex-perimentou uma enorme diversificação no plano internacional e nacional. As análises, que anteriormente privilegiavam as elites po-líticas ou, em menor escala, as econômicas, passaram também a focar outros grupos, co-mo culturais, científicos, religiosos e pro-fissionais. Mas a diversificação que se ope-rou não resultou apenas em uma ampliação no conjunto de grupos estudados. Ela se deu igualmente nos enfoques de que esses grupos passaram a ser objeto. Ao lado dos de caráter mais objetivista, centrados, por exemplo, nos mecanismos de recrutamento e seleção, nas transformações morfológicas dos espaços so-ciais e nas reconversões sociais, observam-se outros de viés interpretativo, voltados para as linguagens específicas de grupos, estratégias e disputas discursivas, ações performativas, rituais, valores e visões de mundo, passando por aqueles centrados nas lógicas de engaja-mento social e de justificação, nas redes e re-

lações pessoais, locais ou internacionais, nas estratégias de reprodução e de consagração social e estilos de vida.

Não se trata aqui, é claro, de esgotar o le-que de possibilidades que se abrem para os estudos de elites hoje, mas de destacar a sua ampliação e diversificação crescentes. Na verdade, o que cabe também enfatizar, in-do além, é que a ampliação e a diversificação observadas não se caracterizaram simples-mente por um acréscimo de temáticas, atores e enfoques, mas por uma diluição mesmo das fronteiras canônicas entre estes. Desse modo, mais do que a presença de diferentes disci-plinas se acotovelando no espaço dos estudos de elites, cada uma demarcando e defenden-do seu território com seu arsenal de concei-tos, teorias, metodologias, o que se verifica é uma constante redefinição desses territórios e seus limites, a formação de zonas de interse-ção, demandando um trânsito entre eles, ca-da vez mais franco, de atores, problemáticas e instrumentos de análise. O que fica mais evi-dente é que o poder heurístico dos estudos de elites, como de resto também ocorre em ou-tros domínios temáticos das Ciências Sociais, será tanto maior quanto mais se basearem em um diálogo efetivo entre as diferentes tradi-ções disciplinares.

Foi justamente esse quadro que, dentro dos limites impostos por uma publicação pe-riódica, se buscou contemplar na montagem do presente dossiê. Ele reúne cinco trabalhos sobre segmentos distintos de elites. Todavia, o que de fato confere singularidade aos tex-tos reunidos é não propriamente a diferença entre os grupos estudados, mas os modos co-mo o fazem, os temas e questões que privi-legiam. Ao mesmo tempo em que se distin-guem, entretanto, as análises se assemelham pela busca, cada uma ao seu modo, de um tratamento interdisciplinar para os seus ob-jetos. É também interessante destacar como,

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apesar das diferentes formações e dos percur-sos acadêmicos de cada autor, de suas distin-tas filiações disciplinares, é evidente em todos os trabalhos a forte referência a Bourdieu, o peso estruturador que têm nas análises con-ceitos como campo, capital e habitus. Se isso é um indicador da posição dominante ocupa-da pelas idéias do autor nas Ciências Sociais de maneira geral, e nos estudos de elites de forma específica, também é revelador da sua pregnância, da sua capacidade de abrir múlti-plas possibilidades de análise.

O primeiro texto, de Ernesto Seidl e Whe-riston Neris, faz um estudo comparado dos percursos dos membros do episcopado cató-lico brasileiro nos últimos cinqüenta anos. Os autores demonstram como, ao longo desse período, alteraram-se os recursos sociais ne-cessários ao reconhecimento e à legitimação nas altas camadas da hierarquia católica, ga-nhando importância crescente a diversifica-ção dos capitais culturais e, em particular, a passagem por escolas de prestígio no exterior. Essa passagem é importante tanto pelo peso da filiação e do diploma em si, quanto pelas redes de relações nas quais os indivíduos pas-sam a se inscrever e que constituem um capi-tal social significativo.

Diplomas e redes são também recursos fundamentais para os destinos profissionais e institucionais dos pós-graduandos em Socio-logia, como mostra o texto de Odaci Luiz Co-radini, o segundo que compõe o dossiê. Tra-balhando com dados disponibilizados pe-la CAPES, seu banco de teses, seu ranking de programas de pós-graduação, o autor explora as correlações entre os destinos profissionais dos alunos, ou mais especificamente as insti-tuições onde se tornam professores, e aquelas onde atuam seus orientadores e os membros de suas bancas de tese. Para além do diplo-ma, então, são fundamentais na inserção pro-fissional dos jovens doutores as redes que os

vinculam aos seus orientadores e, igualmen-te, aos membros de suas bancas. Nessa pers-pectiva, a inserção do jovem sociólogo pode ser, em parte, uma componente dos circuitos de dons e contradons que se observam no in-terior das redes. Mas se o prestígio do orien-tador é importante na carreira e, sobretudo, na iniciação profissional do jovem sociólo-go, a recíproca também é verdadeira. O suces-so da linhagem contribui para o sucesso do orientador. Na verdade, a gestão da linhagem é parte importante da gestão do prestígio so-cial em grupos sociais os mais diferentes, co-mo fica claro no terceiro texto do dossiê, de autoria de Letícia Bicalho Canêdo.

Canêdo reúne dados produzidos a par-tir de diferentes tipos de fontes para acom-panhar percursos de famílias de elite mi-neiras na longa duração, traçando um rico painel em que se entrecruzam temas como gênero, família, casamento, política, patri-mônio, entre outros. A autora mostra co-mo aquelas famílias puderam acumular e reconverter recursos diversos que lhes ga-rantiram, no decorrer do tempo, a manu-tenção de posições dominantes em um es-paço político em transformação. Um in-vestimento significativo por elas realizado com esse fim foi o do controle de suas ge-nealogias em, pelo menos, um duplo sen-tido. Em primeiro lugar, controle efetivo das alianças matrimoniais, das filiações, linhagens e redes. Em segundo lugar, con-trole das narrativas memoriais das genea-logias, destacando alguns de seus elemen-tos e relegando outros ao esquecimento.

É também de gestão da memória como recurso político que trata o quarto texto do dossiê, de Luciana Heymann. Mais especifi-camente, o que Heymann lida é com a ges-tão da memória objetivada em lugares, ins-tituições e acervos documentais, tomando dois casos específicos: o de Darcy Ribeiro

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com a fundação que leva o seu nome e Fer-nando Henrique Cardoso e seu instituto. A autora mostra como a preservação do pas-sado traduz, ao mesmo tempo, uma preocu-pação daqueles que a promovem com suas posições no presente e as possibilidades que projetam de futuro. As instituições de me-mória podem ser, portanto, expressão de fortes investimentos políticos, resultado de inumeráveis atos e operações que estão lon-ge de se circunscrever unicamente à preser-vação, envolvendo um intenso trabalho de seleção do que deve ou não ser preservado, do que deve ou não ser lembrado, do que cabe ou não ser patrimonializado, revestido de valor histórico. O passado, assim, emer-ge como construção, como recurso simbóli-co de poder disputado por aqueles que criam ou dão nome àquelas instituições, mas tam-bém por numerosos outros atores com eles envolvidos, como seus herdeiros biológicos, políticos, intelectuais, entre outros.

A imposição de narrativas sobre o mun-do passado, presente ou futuro como recur-so simbólico de dominação, presente em Hey-mann, é também uma preocupação do artigo de Roberto Grün, que fecha o dossiê. Partin-do das reações de setores das elites brasileiras à crise internacional de 2009, suas disputas, divergências e convergências, Grün se volta para o que chama de um campo financeiro no país e sua dominação não apenas na eco-nomia, mas também na política, sua imbri-cação com o campo do poder. Essa domina-ção, como procura mostrar o autor, é cultu-ral em larga medida, compreendendo a capa-cidade que têm os agentes associados àque-le campo de impor esquemas e categorias de compreensão, leituras e diagnósticos autori-zados do mundo, profecias sobre o seu futu-ro, o que significa também influenciar políti-cas e tomadas de decisão de indivíduos e ins-tituições. Com a crise, porém, essa capacida-

de se viu afetada, comprometendo a adesão incondicional aos discursos por eles proferi-dos e abrindo brechas para a emergência de discursos concorrentes. Desse contexto, Grün busca extrair conclusões mais gerais sobre as dinâmicas das relações entre as elites e destas com a sociedade de maneira mais ampla.

É sempre arriscado, em uma apresentação, destacar o que seriam pontos centrais dos ar-tigos reunidos em um dossiê. É arriscado pe-las injustiças que podemos, inadvertidamen-te, cometer contra algum trabalho. E esse ris-co é sem dúvida bastante grande nos casos em que os textos, como os deste dossiê, são mais densos e ricos. Outro risco é o de im-por aos leitores um quadro de compreensão dos artigos que, de fato, é o dos organizado-res. Não foi essa a nossa intenção e, se fo-mos injustos, desde já nos desculpamos. O que pretendemos foi tornar explícita aos lei-tores a lógica que presidiu o ordenamento que demos aos textos. Ele não traduz, é im-portante que fique claro, qualquer hierarquia nem tampouco seqüência necessária. As pon-tes destacadas e a seqüência definida são op-ções fundadas na compreensão que tivemos dos trabalhos. O leitor, portanto, poderá se-guir outros percursos, construir outras liga-ções. Isso certamente ocorrerá estimulado pe-la qualidade dos artigos. E é isso, de fato, o mais importante: que o dossiê possa alimen-tar a reflexão e dar uma dimensão da diversi-dade, da riqueza, das múltiplas possibilidades de temas, questões, abordagens, métodos ho-je presentes no espaço dos estudos de elites.

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Nota Sobre oS aUtoreS

Mario Grynszpan é formado em História pela UFF, mestre e doutor em Antropologia Social pelo PPGAS-UFRJ. É pesquisador e professor do CPDOC-FGV e do Departamento de História da UFF e pesquisador do CNPq. Tem trabalhos pu-blicados sobre elites no Brasil, teoria das elites e questão agrária. Sua pesquisa mais recente é sobre a gênese do agronegócio no Brasil.

Igor Gastal Grill é formado em Ciências So-ciais, mestre e doutor em Ciência Política pela UFRGS. É professor do Departamento de So-ciologia e Antropologia e do Programa de Pós--Graduação em Ciências Sociais da UFMA. Tem se dedicado a pesquisas que examinam processos de seleção de elites políticas e cons-tituição de “heranças”, “etiquetas” e “ismos” na política.

reFerêNCIaS

CORADINI, O. L. (Org.). Estudos de grupos dirigentes no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2008.

HEINZ, F.M. (Org.) Por uma outra história das elites. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006.

ALMEIDA, A.M.F.; CANÊDO, L.B.; GARCIA, A.; BITTENCOUT, A.B. Circulação internacional e formação intelectual das elites brasileira. CAMPINAS, SP: Editora da Unicamp, 2004.

REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA. Dossiê: Elites e instituições políticas. Departamento de Ciências Sociais/Universidade Federal do Paraná. Curitiba-PR, v. 16, n.30, 2008.

REVISTA TOMO. Dossiê: Sociologia do poder e das elites. São Cristovão-SE, NPPCS/UFS, v. 10, n.13, 2008.

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15

dossiê

reSUMo O trabalho explora as transformações dos mecanismos de legitimação do alto clero católico brasileiro nas últimas cinco dé-cadas. Para tanto, parte de informações biográficas sobre os bispos (em exercício ou eméritos) no país e sobre aqueles que compuseram as presidências da Confe-rência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) desde sua fundação. O estudo pri-vilegia dados relativos a seus itinerários sociais e profissionais, com destaque aos recursos escolares e culturais acumula-dos e à composição de carreiras religio-sas, com vistas a: a) realização de um exame morfológico sincrônico do episco-pado brasileiro na atualidade; b) análise diacrônica dos padrões de recrutamento para os postos centrais da CNBB. Os re-sultados apontam uma redefinição dos mecanismos de legitimação da alta esfera católica, com maior exigência de compe-tências culturais diversificadas, sobretu-do de recursos e experiências escolares obtidos no exterior.

PalavraS-Chave Igreja Católica. Episcopado. Espaço do po-der. Carreiras religiosas

abStraCt This work is focused on the changes under-gone by the legitimating mechanisms of the Brazilian Catholic high clergy in the last five decades. It is mostly based on bio-graphical information on the bishops (in charge or retired) and on those who com-posed the presidencies of the National Con-ference of Brazilian Bishops (CNBB) since its foundation. The study focuses on data related to their social background and pro-fessional itineraries, especially on the cul-tural resources they accumulated through-out their religious careers. Two main axes of analysis were pursued a) a synchronous morphologic analysis of the Brazilian Bish-ops at present; b) a diachronic analysis of the patterns of recruitment to the main post at the CNBB. The results point out an ongoing redefinition of the legitimating mechanisms of the Catholic high sphere, in which more diversified cultural skills – mainly experiences and training abroad - are requested.

KeywordSCatholic Church. Bishops. Field of power. Religious careers

Ernesto Seidl Wheriston Neris

O EPISCOPADO BRASILEIRO E O ESPAÇO DO PODER: UMA CULTURA ECLESIáSTICA EM MUTAÇÃO

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1 Introdução

O fenômeno do aumento nos investi-mentos em recursos culturais e escolares valorizados e diversificados como requisi-to para ocupação de postos dirigentes não é apanágio de alguns grupos e ocorre em escala mundial1. No que concerne à esfe-ra católica, a imposição de uma compe-tência religiosa progressivamente basea-da na competência escolar, ou intelectu-al, configura sem dúvida uma das dimen-sões mais centrais dos mecanismos de re-gulação do espaço católico. A intensifi-cação considerável na obtenção de diplo-mas acadêmicos por agentes religiosos co-mo base para ocupação de cargos superio-res - implicando a realização de percursos escolares mais longos – é perceptível, so-bretudo, entre os membros do episcopado. Ela faz ver com clareza o espaço conferido à cultura escolarmente legitimada dentro dos instrumentos de adaptação da Igreja a públicos mais urbanos e escolarizados e a novas tomadas de posição institucionais. Não apenas a expansão da oferta de for-mação religiosa, mas também a diversifi-cação do tipo de qualificação e das formas de saber, com destaque à incorporação de áreas “não-tradicionais” da teologia e uma variedade de disciplinas “profanas”, apon-tam para essa direção.

Ao mesmo tempo em que diversas ou-tras temáticas religiosas adquiririam rele-vo entre os trunfos acadêmicos valoriza-dos na ascensão profissional – sagrada es-critura, catequese, espiritualidade, história

eclesiástica, pastoral -, também uma plu-ralidade de áreas profanas do saber, pra-ticamente ausentes dos percursos escola-res dos sacerdotes episcopáveis antes dos anos 70, passaram a integrar a composi-ção de carreiras religiosas bem sucedidas. Como previsto, predominam diplomas de licenciatura nas áreas de “humanidades”, com destaque, ao lado dos cursos de Direi-to e Letras, àqueles relacionados a ativi-dades da esfera escolar, tais como Educa-ção e Pedagogia, adquiridos majoritaria-mente em faculdades católicas pouco tem-po após a ordenação sacerdotal. Em menor quantidade figuram igualmente diplomas em disciplinas das ciências exatas e bioló-gicas ou correlatas (Agronomia, Química, Matemática, Demografia, Economia), em-bora raramente haja indicações de uso es-pecífico desses recursos ao longo dos tra-jetos sociais de seus detentores.

Uma das consequências de maior visi-bilidade e importância da centralidade ad-quirida pelo saber escolar sobre as formas de dominação simbólica da Igreja foi justa-mente uma redefinição nos modos de exer-cício da autoridade religiosa, percebida com mais intensidade no âmbito das funções “intelectuais”. Na esteira de Vaticano II, a readequação dos instrumentos pedagógicos religiosos através da aproximação com a es-fera de produção de conhecimento científi-co, notadamente faculdades e universida-des, marcou em definitivo o deslocamento do espaço de reprodução intelectual do cor-po religioso das instituições escolares con-sagradas (de formato “rural”, “fechadas”),

1. Entre vários estudos, destacamos Bourdieu (1989), Bauer e Bertin-Mourot (1997), Saint Martin (2001), Suleiman (1997) e Wagner (1998) para o caso das elites política, administrativa e empresarial na França e outros países europeus, e os trabalhos de Coradini (2002), Garcia e Canedo (2004-2005), Grill (2007), Grün (2004), Loureiro (1998), Almeida e Nogueira (2004), Seidl (2003; 2009) e Reis e Grill (2008), igualmente para diversos grupos e frações dirigentes no Brasil.

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para ambientes muito pouco diferenciados do mundo escolar leigo.

Diante disso, e inscrita numa série de discussões e pesquisas, parte das quais ain-da em curso, acerca das transformações his-tóricas do espaço católico dentro do cam-po do poder (BOURDIEU; SAINT MARTIN, 1982; MICELI, 1988; SEIDL, 2003, 2007, 2009; GRIGNON, 1977; NERIS, 2009), a ex-ploração sociológica da redefinição das es-tratégias de legitimação do episcopado con-centra-se, neste trabalho, nas intersecções e efeitos da aquisição de novos e mais diversi-ficados recursos escolares e culturais inter-

nacionalizados sobre os trajetos dos agen-tes que ocupam posições dominantes nesse grupo. Para tanto, a partir de informações biográficas relativas aos bispos brasilei-ros em exercício e daqueles que compuse-ram as presidências da Conferência Nacio-nal dos Bispos Brasileiros2(CNBB) desde sua fundação, o estudo que segue busca combi-nar dois níveis de análise: a) a realização de uma sociografia do episcopado brasileiro na atualidade a partir de informações recolhi-das junto à CNBB3; b) a análise diacrônica dos perfis de recrutamento para os postos de direção nacional da Conferência.

2. Criada em 1952, a Conferência Nacional dos Bispos constitui uma espécie de setor intermédio na macro--estrutura da hierarquia oficial católica, tendo acima de si o Conselho Episcopal Latino Americano (CELAM) e a Santa Sé e abaixo, as Arquidioceses, Dioceses e Paróquias. As circunscrições eclesiásticas do Brasil estão organizadas em regiões episcopais, os quais possuem os seus conselhos regionais: a) Região Norte 1 (Ama-zonas e Roraima); b) Regional Norte 2 (Pará); c) Regional Nordeste 1 (Ceará); d) Regional Nordeste 2 (Per-nambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Alagoas); e) Regional Nordeste 3 (Bahia e Sergipe); f) Regional Nordeste 4 (Piauí); g) Regional Nordeste 5 (Maranhão); h) Regional Leste 1 (Rio de Janeiro); i) Regional Les-te 2 (Minas Gerais e Espírito Santo); j) Regional Sul 1 (São Paulo); l) Regional Sul 2 (Paraná); m) Regional Sul 3 (Rio Grande do Sul); n) Regional Sul 4 (Santa Catarina); o) Regional Centro-Oeste (Goiás, DF, Tocan-tins); p) Regional Oeste 1 (Mato Grosso do Sul); q) Regional Oeste 2 (Mato Grosso); r) Regional Nordeste (Ron-dônia, Acre e Amazonas); s) Circunscrições eclesiásticas pessoais.3. Constituindo um amplo repertório de informações biográficas dependente das lógicas e objetivos de apresentação e consagração dos representantes da cúpula da Igreja Católica, o banco de dados da CNBB contém informações de interesse sobre o episcopado (“arcebispos”, bispos “titulares”, “eparcas”, “coadju-tores”, “auxiliares” e “eméritos”). Estas foram complementadas com pesquisas em outras fontes produzi-das pela Igreja, acervos documentais e sites na internet. O tratamento destes dados mais gerais desdobra--se em dois planos: (I) um enfoque centrado sobre o exame dos trajetos sociais e profissionais dos 443 ca-sos selecionados, dos quais foram privilegiadas variáveis relativas ao país, ano e local de nascimento; aos espaços de escolarização religiosa (passagem ou não por seminário entre o 1º e 2º Grau); aos anos de or-denação sacerdotal, episcopal e às médias diacrônicas entre as mesmas; ao tipo de vinculação religiosa; à passagem ou não por funções paroquiais; ao exercício da função docente e/ou passagem por funções de direção/reitoria de seminários, faculdades católicas ou profanas; em outro plano (II), a pesquisa concen-trou-se sobre o exame do perfil de estudos dos bispos nascidos no Brasil, abordando os estudos básicos de filosofia e teologia - lugar de realização, região de origem e país de destino, bem como demais modalida-des de cursos obtidos pós-ordenação e suas respectivas áreas de estudo: Doutorado, Mestrado, Especiali-zação (quando mencionado pós-graduação ou especialização); “Graduação/Licenciatura e/ou Bacharela-do” (quando mencionados expressamente no referido campo) e cursos sem especificação (os quais podem incluir agentes com formação nos demais níveis).

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2 elementos históricos para uma sociogra-fia do episcopado brasileiro

Até o rompimento com a condição histó-rica de corporação subsidiada do Estado, a condição ambígua da instituição eclesial in-corria na ausência de uma cultura organiza-cional dotada de procedimentos uniformes e autônomos de gestão e estilo homogêneo de comando. A deterioração do relaciona-mento simbiótico entre o Estado e a Igreja, do qual esta retirava parte de seu prestígio e status social, colocou nas mãos dos prela-dos a tarefa urgente de definir outra mol-dura organizacional que favorecesse a auto-nomia material, institucional e doutrinária (MICELI, 1988). Frente à necessidade de as-sumir uma nova legitimidade institucional, o processo de expansão organizacional da Igreja traduziu-se não somente pela diversi-ficação das estratégias de afirmação, como também por uma impressionante ampliação da estrutura de postos e carreiras que com-põem o espaço católico4.

A evolução das relações entre o corpo sacerdotal, a diversificação e a intensifica-ção das disputas no mercado de trabalho religioso e as transformações correlativas no espaço social e na estrutura do campo do poder no Brasil traduziram-se em di-versas modificações, tanto na imagem so-cial dos bispos quanto na composição e morfologia do episcopado. Sem pretender abranger todas essas mutações, o recurso à comparação diacrônica entre algumas das propriedades do episcopado na atualida-

de com as da alta hierarquia na Repúbli-ca Velha (MICELI, 1988) permite visualizar algumas dessas transformações e/ou per-manências.

Em primeiro lugar, enquanto que outro-ra os prelados eram originários quase que exclusivamente do Brasil, a presença de es-trangeiros sendo tecnicamente inexpressiva (apenas dois, nascidos em Portugal e Ale-manha), na atualidade esse quadro encon-tra-se sensivelmente alterado. Ao combinar o ano de nascimento com o país de origem dos 443 casos examinados (todos nascidos entre 1914 e 1964), verifica-se que os nas-cidos no estrangeiro compõem nada menos que ¼ do episcopado nacional (115 de 443 com informações disponíveis). Entre estes, predominam os nascidos na Itália (11,28% de 443 com informações disponíveis), se-guidos à distância pelos espanhóis (2,93%) e alemães (2,48%) - sendo bastante reduzi-do o número de prelados oriundos de ou-tras nações.

O fluxo constante de estrangeiros com destino ao Brasil, especialmente de italia-nos, fornece uma ideia do tipo de mobilida-de internacional de agentes e de importação de modelos que paulatinamente foi impondo--se, inicialmente via romanização, no seio do episcopado nacional. De fato, anteriormente à chegada desses agentes ao Brasil por vol-ta das décadas de 50-60, os representantes de cúpula da instituição em plano nacional já promoviam a vinda frequente de estrangei-ros (especialmente através das ordens) como estratégia de criação de uma Igreja renovada

4. Exemplo disso, a comparação entre a quantidade de circunscrições eclesiásticas existentes na Repúbli-ca Velha revela que de 90 circunscrições (entre dioceses [69], prelazias [18] e prefeituras apostólicas [3]), passou-se a 272, conforme dados de 2009 (entre as quais, 41 Arquidioceses; 211 Dioceses; 3 Eparquias; 13 Prelazias; 1 Exarcado; 1 Ordinariado para fiéis de rito oriental sem ordinário próprio; 1 Ordinariado Mili-tar e 1 Administração apostólica pessoal).

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O episcopado brasileiro e o espaço do poder 19

frente à herança da Igreja colonial e à crise de vocações sacerdotais. Não estranha, pois, co-mo lembra Della Cava (1975), que nesse perí-

odo Roger Bastide estigmatizasse a romani-zação como um processo de desnacionaliza-ção da Igreja Brasileira.

Quadro 1

ano de Nascimento e País de origem

PaÍSeS 1914-1924 1925-1934 1935-1944 1945-1954 1955-1964 total (%)

BRASIL 22 95 75 88 48 328 (74,04%)

ITALIA 7 8 14 20 1 50 (11,28%)

ESPANHA - 3 5 5 - 13 (2,93%)

ALEMANHA 1 3 6 - 1 11 (2,48%)

PORTUGAL 1 1 3 1 - 6 (1,35%)

EUA 1 3 1 - - 5 (1,12%)

POLÔNIA - 1 1 3 - 5 (1,12%)

BELGICA - - 2 1 1 4 (0,90%)

FRANÇA - - 2 - 1 3 (0,67%)

LIBANO - 1 1 - 1 3 (0,67%)

AUSTRIA - - 2 - - 2 (0,45%)

HOLANDA - 1 1 - - 2 (0,45%)

MALTA - 1 - 1 - 2 (0,45%)

SUIÇA - 1 1 - - 2 (0,45%)

AUSTRÁLIA - - 1 - - 1 (0,22%)

CHINA - - 1 - -- 1 (0,22%)

EGITO 1 - - - - 1 (0,22%)

IRLANDA - - - 1 - 1 (0,22%)

MÉXICO - 1 - - - 1 (0,22%)

PARAGUAY - - 1 - - 1 (0,22%)

URUGUAI - - - 1 - 1 (0,22%)

Total (%) 33 (7,44%) 119 (26,86%) 117 (26,41%) 121 (27,31%) 53 (11,96%) 443

Fonte: CNbb, 2009.

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Em sentido semelhante, ainda que na atualidade se possa falar em um predomínio do pólo hierárquico na composição do epis-copado, caso dos diocesanos, houve subs-tancial incremento de prelados oriundos do clero religioso. Enquanto que entre os 79 bispos da alta hierarquia analisados por Sérgio Miceli (1988, p. 82), apenas 12 (15%)

Quadro 2

tipo de vinculação dos bispos

vinculação Frequência Percentual

DIOCESANO (241); 241 54%

OFM (25); SDB (24); OFMCap (23); CSSR (10); 202 46% SCJ (9); CSS (8); OCarm (6); CM (5); CSSp (5); OAR (5); OFMConv (5); OSB (4); SJ (4);CS (3); IMC (3); OSBM (3); PIME (3); SAC (3); SSS (3); SVD (3);CP (2); DC (2);; FDP (2); MSC (2); MSF (2); Ocist (2); OdasM (2); OP (2); OPraem (2);OSJ (2); OSM (2);PSDP (2); SDN (2); AA (1); CFM (1); CPPS (1); CR (1); CRL (1); CRSP (1); CS (1); CSF (1); FAM (1); ICM (1); MCCJ (1); MSP (1); OAD (1); OLM (1); OP. (1); SdC (1); SDM (1); SDS (1); SDV (1); SPS (1); SSCC (1); TOR (1).

Fonte: CNbb, 2009.

provinham de ordens, hoje esse percentual aumentou para quase 50% (202 prelados). Assim, ao lado dos 54% bispos de origem secular (241 de 443), encontra-se uma di-versidade notória de altos representantes recrutados em congregações religiosas - na-da menos que 55.

A classificação efetuada entre os bispos nascidos no Brasil (74,04% de 443 com in-formações disponíveis) conforme o ano, a região e o estado de nascimento permi-te assinalar outra alteração significativa. Enquanto que na elite eclesiástica do iní-cio do século passado havia predominância de bispos originários de estados nordestinos (cerca de 50%), seguidos pelos 20% nasci-dos e educados em Minas Gerais, 14% de São Paulo e 14% dos demais estados do Sul e Sudeste (Rio Grande do Sul apresentava

apenas 2), atualmente nota-se amplo pre-domínio de indivíduos vindos das regiões Sul/Sudeste. Reunidas, as regiões Norte (5), Nordeste (64) e Centro-Oeste (5) contabili-zam hoje pouco mais de 1/5 dos membros do episcopado (74 de 328 com informações disponíveis), enquanto que as regiões Su-deste e Sul contam a expressiva parcela de 4/5 dos bispos brasileiros (254 de 328 com informações disponíveis), com predomí-nio de paulistas (69), mineiros (68), gaúchos (52) e catarinenses (32).

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O episcopado brasileiro e o espaço do poder 21

5. Na perspectiva de Della Cava (1975), a consolidação de uma burocracia única e centralizada sob a ba-tuta do cardeal Sebastião Leme da Silveira Cintra (1882-1842) parece ter demarcado o fim da predominân-cia da aristocracia fundiária na hierarquia eclesiástica inaugurando a mobilização efetiva dos leigos de classe média e afirmado a operacionalização do catolicismo universal (europeu) para a Igreja, o clero e o laicato brasileiros.

Quadro 3

distribuição do episcopado pelo ano, região e estado de nascimento

reGIÃo/ 1914-24 1925-34 1935-44 1945-54 1955-64 total/ totaleStado estado (%) região (%)

Norte AM - 1 2 - - 3 5 (1,52%) PA - - - - 1 1 TO - - - - - 1

Nordeste PE 1 6 - 4 2 13 64 (19,51%) BA - 2 1 6 2 11 CE 2 4 2 - 1 9 AL 2 1 3 - 1 7 RN 1 2 1 2 1 7 SE - 1 - - 5 6 MA - 2 - 1 1 4 PI - 2 - 1 1 4 PB 1 - 1 1 - 3

Centro- GO 1 2 - - 1 4 5 (1,52%) Oeste MT - 1 - - - 1

Sudeste SP 3 18 15 22 11 69 156 (47,46%) MG 7 19 20 10 12 68 RJ 1 4 2 4 3 17 ES - 1 2 2 - 5

Sul RS 1 16 15 17 3 52 98 (29,87%) SC 2 8 9 13 - 32 PR - 5 2 4 3 14

Total 22(6,70%) 95(28,96%) 75(22,86%) 88(26,82%) 48(14,63%) 328conhecido

Fonte: CNbb, 2009.

Esta distribuição bastante desigual re-flete o processo histórico de deslocamen-to dos centros de decisão política, econô-mica e institucionais do Brasil do nordes-te para o centro-sul, o qual vinha ope-rando-se desde meados do século XIX só se completa com o deslocamento do cen-tro de poder nacional da Igreja no fim dos

anos 20 e início dos anos 30 do século passado5. Coincidentemente ou não, fa-to é que esse predomínio no recrutamento da população construída se expressa de forma mais evidente a partir desse mesmo período, mantendo-se superior em quais-quer dos critérios de divisão do grupo di-rigente em pauta.

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Mais do que isso, o predomínio de indi-víduos originários das principais circunscri-ções religiosas em termos de estrutura insti-tucional e de contingente profissional (São Paulo, Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Santa Catarina) sugere também a existên-cia de um acesso muito desigual aos “cen-tros de excelência” mais disputados da Igre-ja católica. Tudo leva a crer que tal dese-quilíbrio nas condições de reprodução dos dirigentes administrativos e intelectuais da Igreja brasileira reforce a estrutura de su-as relações de força, centrada em forte he-gemonia dos estados acima mencionados, a qual pode ser apreendida, entre outros, na distribuição dos principais cargos da CNBB, na exposição aos grandes meios de comu-nicação e no uso da palavra autorizada pe-la instituição. A rigor, estas distinções pare-cem demarcar um princípio de hierarquiza-ção social do espaço geográfico que guar-da correspondências com as desigualdades regionais e demarca as relações de centro e periferia no interior do episcopado.

Em comum com a alta hierarquia eclesi-ástica de outrora, o exame das origens geo-gráficas sugere ainda uma associação sig-nificativa entre a reprodução do corpo cle-rical e o universo rural e de pequenos mu-nicípios. Entre os 328 casos analisados de prelados brasileiros, apenas 25 (7,62% de 328 com informações disponíveis) nasce-ram em capitais: São Paulo (9); Rio de Ja-neiro (8); Aracaju (3); Belo Horizonte (1); Boa Vista (1); Maceió (1); Manaus (1); Re-cife (1). Quanto aos demais, sua maioria ab-soluta era originária de cidades do interior dos estados. Embora o mero fato de nascer em cidades do interior não indique necessa-riamente uma origem rural, as informações detalhadas disponíveis sobre o episcopado gaúcho e mineiro mostram origens geográ-ficas fortemente rurais (SEIDL, 2003).

Entre os 443 prelados, a alta frequência daqueles que tiveram passagem em sua fase de escolarização básica (1º e 2º graus) pelo sistema escolar da Igreja pode ser visualiza-da através do número dos que informaram ter estudado em seminários menos, maiores, ou em ambos. Nada menos que 46,04% (204 de 443 com informações disponíveis) apre-sentam tal passagem em seu trajeto escolar. O restante encontra-se dividido entre os que não apresentaram informações detalhadas a esse respeito (sem informações) e os que não detalharam o tipo de instituição, se pú-blica, privada, privada católica, técnica etc.

Entre outros fatores, o contingente ex-pressivo de agentes que foram beneficiários de serviços educacionais prestados pela ins-tituição católica, em sua fase de escolariza-ção, resultou da política expansionista que marcou a atuação da igreja na primeira me-tade do século XX. Como se sabe, um dos fios condutores dessa política consistiu no investimento maciço em instituições de en-sino (primárias, secundárias, femininas e/ou masculinas) destinadas às elites regionais, as quais também poderiam abrigar agentes que encontrariam nas escolas da Igreja alternati-vas mais seguras frente a ausência de pers-pectivas atreladas a uma origem social mo-desta. Para estes, face às baixas probabilida-des de mobilidade social determinadas por uma escassez de trunfos escolares importan-tes e pela estrutura escolar deficitária dessas zonas, os seminários e casas de formação da Igreja não somente contrapunham chances palpáveis de acesso a uma cultura distintiva (não muito distante daquela fornecida a fra-ções dos grupos dirigentes), como também possibilidades de ascender a posições de des-taque dentro de um espaço cujos postos es-tavam em franco processo de expansão. As-sim, diversos desses religiosos davam início ao longo processo de formação escolar e de

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O episcopado brasileiro e o espaço do poder 23

iniciação na vida eclesiástica, contexto em que, avaliados sob a dupla ótica das compe-tências religiosas e escolares, eram objetos e artífices de uma filtragem decisiva sobre o seu futuro profissional.

Partindo para o exame específico de ou-tros indicadores, nota-se que ao lado do longo percurso escolar de exposição às re-

gras, costumes e valores da instituição que, entre outros, caracterizaria a opção pe-la carreira clerical (MICELI, 1988), o exame geral das médias de ordenação sacerdotal e episcopal, bem como entre uma e outra, revela um tendência ao recrutamento mais “tardio”. É o que se nota a partir do exame dos gráficos 1, 2 e 3, expostos a seguir.

Gráfico 1

Média de ordenação sacerdotal

Fonte: CNbb, 2009.

obs: <1960 (129 casos); 1960-1969 (122); 1970-1979 (108); 1980-1989 (68); 1990-1999 (16)

Gráfico 2

Média de ordenação episcopal

Fonte: CNbb, 2009.

obs: <1960 (7 casos); 1960-1969 (21); 1970-1979 (75); 1980-1989 (87); 1990-1999 (98); 1999> (155).

0

<1960

1960-1969

1970-1979

1980-1989

1990-1999

25,44

26,36

26,65

29,27

33,87

0<1960

1960-1969

1970-1979

1980-1989

1990-1999

1999>

37,85

41,76

45,60

50,58

52,51

53,35

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0<1960

1960-1969

1970-1979

1980-1989

1990-1999

2000>

13,71

16,66

19,65

23,54

26,13

25,39

No geral, todas as médias apresentam a mesma tendência de crescimento. Verifi-ca-se, no entanto, que em relação à média de ordenação sacerdotal, parece haver um aumento considerável no contexto do pa-pado de João Paulo II (1978-2005), quan-do a média salta dos 25-26 anos para 29 e finalmente para 33. No que tange à orde-nação episcopal, nota-se um aumento con-tínuo, em torno de 5 anos, nas médias da décadas de 1960/70, apresentando taxa de crescimento semelhante em 80, quando en-tão estaciona entre 50-55 anos nas décadas seguintes. O mesmo pode ser dito quanto ao tempo entre a ordenação sacerdotal e epis-copal: enquanto entre os sete bispos orde-nados antes da década de 60, a média era relativamente curta (13 anos), ao passar das décadas ela foi sendo ampliada em torno de 3 anos até alcançar o topo das médias (26) na década de 90, quando o índice cai para 25 anos no início deste século.

É possível que a aposta da instituição em sacerdotes mais velhos e em sua sagração como bispos depois de um período de expe-riência mais extenso derive de uma maior

“prudência” na escolha de agentes “compro-metidos” com a instituição, buscando evitar os riscos de perda e abandono causados por eventuais interrupções de projetos sacerdo-tais e, de maneira geral, frente à questão da “crise do sacerdócio” e de “vocações”, parti-cularmente evidentes no contexto pós-con-ciliar. Essa tendência parece também estar associada a toda uma “política de recentra-mento na esfera governamental” que, com a ascensão de Karol Wojtyla ao pontificado, pautou-se pela nomeação de um episcopa-do mais “conservador” (PORTIER, 2010, p. 19). Em todo caso, esse efeito não deixou de ser sentido entre os bispos nascidos no Bra-sil que detêm os títulos mais internacionali-zados, afinal, a partir da década de 1980, a Igreja deixa de enviar seminaristas ao exte-rior e passa a limitar tal modalidade de estu-dos a sacerdotes já sagrados e mais velhos, em busca de recursos escolares através de cursos de especialização, como discutido na próxima seção.

Ainda que as informações prestadas pe-los prelados não se apresentem de forma homogênea quanto às diferentes atividades

Gráfico 3

Média entre ordenação sacerdotal e episcopal

Fonte: CNbb, 2009.

obs: <1960 (7 casos); 1960-1969 (21); 1970-1979 (75); 1980-1989 (87); 1990-1999 (98); 1999> (155).

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O episcopado brasileiro e o espaço do poder 25

exercidas antes do episcopado, procurou-se verificar quais, entre os 443 casos exami-nados, passaram a) por funções de adminis-tração pastoral direta (pároco, vigário, cura,

capelão); b) aqueles que exerceram funções docentes e/ou c) passaram por funções de reitoria ou direção de seminários, faculda-des católicas ou profanas.

Quadro 4

exercício de funções de administração pastoral direta

Passagem por uma < 1960 1960-69 1970-79 1980-89 1990-99 2000 > totalparóquia antes do Nº %episcopado

Menos de 5 anos - 4 11 4 4 19 42 9,6

5 a 9 anos 2 7 10 6 8 19 52 11,7

10 anos ou mais 4 4 24 15 30 56 133 30

Sim, sem detalhes 1 1 10 41 38 41 132 29,7

dos anos

Jamais - 5 20 19 14 17 75 16,9

Sem informações - - - 2 4 3 9 2

Total 7 21 75 87 98 155 443 100

Fonte: CNbb, 2009.

Quadro 5

exercício da função docente

exercício da função <1960 1960-69 1970-79 1980-89 1990-99 2000 > totalde docente Nº %

Sim 5 14 45 39 47 77 227 51,24

Não 2 7 30 46 47 75 207 46,72

Sem informações - - - 2 4 3 9 2,04

Total 7 21 75 87 98 155 443 100

Fonte: CNbb, 2009.

Quadro 6

reitoria de seminários, faculdades católicas e/ou profanas

Passagem por função <1960 1960-69 1970-79 1980-89 1990-99 2000 > totalde reitoria seminário Nº %faculdade católica ou profana

Sim 1 7 22 30 48 71 179 40

Não 6 14 53 55 46 81 255 57,56

Sem informações - - - 2 4 3 9 2,04

Total 7 21 75 87 98 155 443 100

Fonte: CNbb, 2009.

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No que tange ao exame dos cargos que os prelados informam em sua descrição pro-fissional antes do episcopado, importa sa-lientar aqui dois aspectos. Em primeiro lu-gar, conforme se pode notar no Quadro IV, a grande maioria desses agentes informa al-guma passagem por funções de adminis-tração direta, sendo mais restrito o núme-ro daqueles que não enumeram tal percurso (75 entre 443) ou que o realizaram de forma bastante breve (42 com menos de 5 anos). Entre aqueles, as categorias que apresen-tam maior crescimento ao longo do período dão conta de que: 30% (133) permaneceram “10 ou mais anos”; 29,7% (132) informam passagem sem detalhar os anos; 11,7% (52) enumera experiências em torno de “5 a 9 anos” e 9,4% (42) com “menos de 5”.

O segundo aspecto mais geral reside na expressividade dos trajetos centrados no exercício de funções relacionadas ao ensino, bem como de administração do clero, o qual pode ser visualizado a partir do exame dos Quadros V e VI. Quanto às funções docentes, nada menos que 51,24% (227 de 443) infor-mam ter assumidos funções de professor, frequentemente exibindo também na descri-ção de suas experiências profissionais fun-ções de caráter não pastoral como assistente espiritual, coordenador diocesano, etc. Vá-rios dentre eles, inclusive, além das funções de docente, enfatizam em seu curriculum o exercício de funções de reitoria e/ou direção de seminários, faculdades católicas ou pro-fanas (179 entre 443), conforme se pode ve-rificar no quadro VI.

Desse modo, ao longo do período e com maior ênfase a partir da década de 70, o per-fil da população recortada indica que a pas-sagem por cargos de direção e ensino em se-minários, faculdades ou institutos (somados aos agentes que exerceram funções de pro-eminência na administração de ordens, con-

gregações religiosas e organismos fora do pa-ís), fortalece-se como uma das principais eta-pas de treinamento antecedendo a ascensão desses sacerdotes ao episcopado. Em que pe-se muitos desses bispos terem passado por pe-lo menos um cargo paroquiano, é expressivo o quantitativo de agentes que receberam sua nomeação episcopal no exercício dessas fun-ções - o que sugere que o exercício das mes-mas vai ao encontro do acúmulo de recursos e das disposições exigidas e apreciáveis às ta-refas dominantes no interior da organização.

Esse ponto de vista precisa ser matizado, no entanto. Se a indicação geral de ativida-des de ensino e gestão oferece uma noção do tipo de cursus valorizado na seleção do cor-po episcopal, deve-se levar em conta que as variações na posição de cada instituição em que se insere o respectivo cargo (paroquiano em dioceses centrais ou em periféricas; pro-fessor ou reitor de instituições provincianas ou de seminários, institutos e faculdades cen-trais) possuem efeitos que não são idênticos. Da mesma forma, não se pode excluir o peso do capital social resultante, entre outros, dos contatos mais prolongados com religiosos em posição central nos círculos hierárquicos, o que permite acumular certo capital de rela-ções pessoais importantes no rumo das de-signações de função, bem como na avaliação das oportunidades e conhecimento dos me-canismos que regem os destinos sacerdotais.

3 Perfil de estudos dos bispos nascidos no brasil

Quanto ao exame da imposição de com-petências culturais associadas à circulação internacional na formação do corpo religio-so episcopal, a alternativa de análise con-sistiu, primeiramente, em concentrar-se apenas sobre os bispos nascidos no Brasil (328 de 443 com informações disponíveis)

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O episcopado brasileiro e o espaço do poder 27

e, dentre estes, dividir a população entre os que realizaram cursos no exterior e os de-mais. Deixa-se para outro momento a dis-cussão dessa temática em relação aos bispos nascidos no estrangeiro. Dessa forma, fo-ram privilegiadas informações relativas ao país de destino, titulação obtida, área de es-tudos e sua distribuição com base em ou-tros princípios de hierarquização, dentre os quais a posição de origem na hierarquia so-cial do espaço geográfico, ou nas relações centro-periferia (postos dominantes e domi-nados no universo episcopal).

Numa perspectiva mais geral, a exposição que segue demonstra que a passagem por Ro-ma (e em muitíssimo menor escala, por ou-tros países centrais) ainda persiste como re-curso chave no acesso às posições de coman-do no seio do espaço episcopal, habilitando os seus detentores às disputas por posições de comando e de maior prestígio social. Ajus-tando-se às tentativas e necessidades institu-cionais de promover uma formação bastante homogênea e afinada de seus altos represen-tantes, a concentração predominante da Itá-lia como destino de estudos, permite ver que as frequentes manifestações de “unidade” e “família” que tanto apetecem ao alto escalão desse grupo de representação não deixam de ter afinidades com o treinamento tendencial-mente homogêneo que recebem seus porta--vozes mais destacados.

Convém salientar ainda que a cartogra-fia bastante restrita dos países de destino da-queles que obtiveram títulos no exterior en-tre os membros do episcopado denota tam-bém uma particularidade do tipo de circu-lação internacional realizada por esse gru-po, em comparação àquele que tem se afir-mado/mantido entre outras elites. Enquan-to que em outros grupos dirigentes, esse flu-xo encontra-se mais dependente da posse de recursos sociais, econômicos e culturais da

família dos agentes considerados (tenden-do a diversificar-se ainda conforme as áre-as de saber e as posições detidas pelos países e instituições de destino no mercado trans-nacional), é a instituição católica a principal e quase exclusiva patrocinadora dos estudos realizados pelos seus representantes.

Nessas condições, há motivos para argu-mentar que as chances de realizar estudos no exterior, mediadas pela instituição, ain-da que nunca tenham sido equitativamen-te distribuídas, desde longas datas confe-rem um grau de abertura para agentes de origem social modesta em uma escala pou-co comum ao comparado com outras eli-tes. Historicamente, como aponta Garcia Jr. (2005, p. 521), se até o fim da Segun-da Guerra Mundial os estudos superiores no exterior eram monopólio virtual das gran-des famílias brasileiras – grandes proprietá-rios de terras, grandes comerciantes do co-mércio exterior, grandes políticos ou altos funcionários –, as exceções eram justamen-te os membros do clero católico, dado que os candidatos aos postos do alto clero eram enviados a Roma à custa da Igreja.

Realizadas essas observações, passemos à descrição dos principais resultados da análise, expostos a seguir. No que concerne aos níveis mais básicos de formação (filosofia e teologia), predominam numericamente aqueles que es-tudaram no Brasil - 97,86% em filosofia (301 de 443) e 81,09% em teologia (266 de 328). A principal variação no quadro apresentado fi-ca por conta daqueles que obtiveram forma-ção em teologia no exterior (62), quando com-parados aos de filosofia (27). Em todos os cri-térios de divisão por região de origem predo-minam aqueles oriundos do Sul e Sudeste, se-ja para estudos no Brasil ou exterior. O país mais escolhido como destino de estudos entre todos aqueles que tiveram passagem pelo ex-terior nessa fase é a Itália (84,26%).

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Quadro 7

lugar de realização dos estudos em Filosofia e teologia

CUrSo lugar de realização distribuição por região total

FILOSOFIA Brasil 301 SE (148); S (84); NE (60); CO (5); N (4) 328

Exterior 27 S (14); SE (8); NE (4); N (1)

TEOLOGIA Brasil 266 SE(131); S (76); NE(53); CO (4); N (2) 328

Exterior 62 SE (25); S (22); NE (11); N (3); CO (1)

Fonte: CNbb, 2009.

Quadro 8

destino mais frequente para realização dos estudos de Filosofia e teologia

CUrSo reGIÃo PaÍS total

FILOSOFIA Norte Eua (1) 27

Nordeste Itália (4)

Sul Itália (12); Argentina (1); França (1)

Sudeste Itália (6); Canadá (1); Chile (1)

TEOLOGIA Norte Itália (2); Eua (1) 62

Nordeste Itália (11)

Centro-oeste França (1)

Sul Itália (20); Argentina (1); França (1)

Sudeste Itália (20); Canadá (1); Chile (1); Espanha (1);

França (1); Eua (1)

Fonte: CNbb, 2009.

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O episcopado brasileiro e o espaço do poder 29

A análise que segue se concentra sobre as informações presentes no banco de da-dos da CNBB nos campos “especialização” e “outros cursos”. Salienta-se novamen-te o caráter não homogêneo das informa-ções preenchidas afetou a precisão da di-visão da população, especialmente no que tange aos títulos mais baixos (os quais re-quisitarão cruzamentos com outras fon-tes em trabalhos vindouros). O tratamento dos dados consistiu na divisão da popula-ção entre aqueles que informaram um ou vários cursos pós-ordenação (261) e aque-les que não (67). De acordo com as infor-mações prestadas nos currículos, e tendo em vista o maior título obtido, aqueles fo-ram distribuídos então atentando para as seguintes modalidades de curso: “Doutora-do”; “Mestrado”; “Especialização” - quan-do mencionado pós-graduação ou especia-lização; “Graduação/Licenciatura e ou Ba-charelado” e “Cursos em especificação” (os quais englobam desde os de curta duração até aqueles aos quais não fora informado o grau da titulação).

Em termos absolutos, contabilizados to-dos os cursos informados pelos prelados, organizados conforme a classificação desta-cada acima, e independentemente de terem sido realizados por um mesmo agente, os dados evidenciam um alto grau de interna-cionalização da elite em pauta: observa-se que a maior parte dos estudos foram reali-zados no exterior - 53,76% (186 de 346 com informações disponíveis), frente àqueles re-alizado no Brasil (46,24% de 346). Esse ca-ráter majoritário, entretanto, não se expres-sa de forma homogênea conforme as dife-rentes modalidades de curso, uma vez que a incidência dos estudos no exterior tende

a se concentrar nos níveis de qualificação mais altos, invertendo-se nos mais baixos (exceção feita à última modalidade, dada a sua heterogeneidade).

Nos níveis de titulação mais altos, as fre-qüências respectivas de realização de estu-dos no exterior são as seguintes: 80,9% en-tre doutores; 73,6% entre mestres e 71,4% entre especialistas. Contrastando essa ten-dência, especialmente os cursos de “licen-ciatura e ou bacharelado” e de forma me-nos expressiva os “cursos sem especifica-ção” já apresentam uma tendência inversa, com realização de estudos preponderante-mente no Brasil.

Em relação aos países mais procurados para realização de estudos no exterior, em uma perspectiva mais geral, a análise do quadro a seguir evidencia que a cartografia dos países de destino é quase que exclusiva-mente dominada pela Itália, seguido à dis-tância pela França, Estados Unidos e demais nações. Ao contabilizarem-se os casos de agentes que tenham realizado estudos em uma mesma modalidade de formação e em países diferentes (trata-se dos casos em que é mencionado mais de um país), observa-se que enquanto a passagem pela Itália che-ga à expressiva quantidade de 163 ocorrên-cias, o país de destino mais próximo nume-ricamente, a França, apresenta apenas 11. Por outro lado, o exame do quadro também aponta que o acesso a esses centros de exce-lência encontra-se desigualmente distribuí-do, demarcando fortes distinções por Esta-do e Região. Como em todo o resto, as regi-ões Sul e Sudeste (especialmente São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Santa Catari-na e Rio Grande do Sul) predominam sobre as demais regiões.

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Com efeito, em um organismo que as-sume desde longa data um caráter interna-cional, entende-se que essa forte discrepân-cia denota não apenas a sua evidente asso-ciação com a concentração dominante dos centros de excelência religiosos na Itália, mas principalmente um efeito histórico es-pecífico da imposição hegemônica do cen-tro da ortodoxia eclesiástica como lócus de exportação legitimada de tecnologias e mo-delos institucionais. Essa concentração dos centros de excelência, por sua vez, traba-lha então para estabelecer e reproduzir os padrões que estabelecem fronteiras entre os que possuem tais títulos, numericamen-

te mais restritos, e os que não possuem tais recursos, ajustando-se em maior ou menor grau à estrutura de distribuição de poder em âmbito nacional.

Procurou-se saber ainda como essa po-pulação encontrava-se distribuída de acordo com o critério do maior título alcançado e conforme os temas e áreas de estudo predo-minantes no Brasil e no exterior. A estraté-gia para agrupamento das informações con-sistiu primeiramente em contabilizá-las do maior ao menor título de forma excluden-te; dessa forma, por exemplo, os cursos de mestrado só foram contados quando o agen-te em questão não realizou posteriormente o

Quadro 9

distribuição por País de formação, estado e região de origem

ModalIdade PaÍSeS eStado reGIÃoForMaÇÃo

Doutorado (38) Itália (34); França (2); SP (10); RS (6); SC (6); MG (5); Sudeste (17); Espanha (1); Alemanha (1) BA (2); PE (2); RJ (2); CE (1); Sul (13); PI (1); PR (1); RN (1); SE (1) Nordeste (8)

Mestrado (53) Itália (49); França (3); RS (10); SP (10); MG (7); PR (4); Sudeste (20); Eua (1) SC (4); BA (3); PB (2); PE (2); Sul (18); PI (2); RJ (2); AL (1); AM (1); Nordeste (12); ES (1); GO (1); MA (1); Norte (2); PA (1); RN (1). Centro-Oeste (1)

Especialização Itália (8); Eua (1); SP (3); MG (2); RS (2); ES (1); Sudeste (7); (10) México (1) PR (1); RJ (1) Sul (3)

Graduação/ Itália (20); França (5) MG (6); SP (5); RS (4); SC (4); Sudeste (12); Licenciatura e/ Eua (2); AM (2); AL (1); BA (1); PE (1); Sul (9);ou Bacharelado PR (1); RJ (1); SE (1) Nordeste (4); (27) Norte (1)

Curso sem Itália (47); Itália e MG (11); RS (10); SC (10); SP (8) Sudeste (22);especificação Jerusalém (2); Bélgica (1); PE (5); RN (4); CE (3); RJ (3); Sul (22); (58) Canadá (1); Equador (1); PR (2); AL (1); AM (1) Nordeste (13); Montevidéu (1); Suiça (1); Norte (1) Venezuela (1); Itália e França (1); Itália e Perú (1); Não informado (1)

Fonte: CNbb, 2009.

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curso de doutorado, e assim sucessivamen-te. Dessa forma, conforme a modalidade de curso, essa população (261 casos) encontra--se distribuída respectivamente nos seguin-tes percentuais: 47 (18% de 261 com infor-mações disponíveis) fizeram doutorado; 50 cursaram mestrado (19,2% de 261); 16 ob-tiveram especialização (6,1% de 261); 54 fi-zeram graduação (20,7%) e 94 a cursos que não foram especificados (36%).

Correlativamente, verifica-se também uma grande diversidade de temas e áre-as de estudo. Em um plano mais geral, dis-tinguem-se dois pólos no que tange a esse quesito. De um lado, nos níveis de doutora-do e mestrado e, predominantemente, entre aqueles que obtiveram formação no exte-rior, há uma tendência a prevalecer as áreas de formação propriamente religiosas e se-rem menos comuns as incidências e combi-nações com cursos em áreas profanas. Entre aqueles, por exemplo, nota-se que as “disci-plinas” dominantes são “teologia” (agregan-do dogmática, moral, pastoral), “direito ca-nônico”, pastoral e espiritualidade, e na área profana destacam-se os cursos de filosofia, Pedagogia, Educação, Ciências Sociais e Le-tras. Em outro pólo, composto pelas quali-ficações obtidas no Brasil e particularmen-te nas últimas três modalidades construídas, observa-se uma incidência bem maior e di-versificada de cursos profanos e da combi-nação entre formações diversas.

Em suma, todos os aspectos até ago-ra mencionados permitem indicar que não é qualquer agente e tampouco qualquer ti-po de passagem ou estudos no exterior que está em condições de servir como recurso para acesso às posições dominantes no in-terior dessa estrutura de poder. A compa-ração cronológica dos temas e títulos ad-quiridos pelos futuros prelados faz perce-ber, na realidade, que mesmo face à valo-

rização na ascensão profissional de novos títulos acadêmicos e áreas de saber, a ocu-pação dos postos de maior visibilidade na-cional (direção da CNBB nacional, lideran-ça dos principais núcleos hierárquicos no país) ainda permanece apanágio de um nú-mero bastante restrito de prelados que exi-bem um “itinerário de herdeiro” combinado com um “habitus internacional” (XAVIER DE BRITO, 2004).

4 o altíssimo clero: a direção da CNbb

Se contarmos apenas seus presidentes e secretários-gerais, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), órgão máxi-mo da Igreja brasileira, foi dirigida por não mais do que 16 homens ao longo de quase seis décadas de existência. Dado impressio-nante para uma instituição que se declara democrática e utiliza voto secreto para es-colher seus dirigentes em assembleia a ca-da quatro anos. Baixa circulação de nomes, portanto, pois três bispos secretários-ge-rais também vieram a assumir, em segui-da, a presidência. Assim sendo, apenas esses três nomes estiveram na secretaria-geral da Conferência por 19 anos e, na presidência, por 24 anos! A saber, dois gaúchos e primos entre si, D. Aloísio Lorscheider e D. José Ivo Lorscheiter, e o mineiro D. Luciano Mendes de Almeida. Considerando, ainda, que o pri-meiro secretário-geral, do órgão, D. Hélder Câmara, permaneceu no cargo por 12 anos sem interrupção, percebemos que durante mais de três décadas a CNBB teve em seu posto-chave somente quatro bispos.

Se é evidente que o episcopado brasilei-ro reserva a pouquíssimos seus postos de maior poder, tudo indica que as qualidades encaradas como necessárias à execução das tarefas de alto comando também não este-jam ao alcance de qualquer bispo. Já de iní-

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cio, estar lotado em alguma diocese cen-tral aparece como requisito importante pa-ra acúmulo de crédito frente ao conjunto do episcopado. A concentração de religio-sos oriundos de dioceses e arquidioceses de grandes capitais indica o peso desigual da Igreja dentro do país. Mais da metade dos dirigentes da CNBB ocupava postos nas ar-quidioceses de São Paulo (6) e do Rio de Ja-neiro (3) quando eleitos à cúpula da Igreja. Dois trabalhavam em Salvador (BA), mais antiga diocese do país (primaz), um atua-va em Brasília, sede da CNBB desde 1977 e outro em Porto Alegre (RS). Ainda um bis-po encontrava-se na importante diocese mineira de Mariana e dois outros vinham de dioceses sem maior expressão do inte-rior do Rio Grande do Sul (Santo Ângelo e Pelotas). Pode-se, assim, fazer a hipótese de que, embora importante, a centralidade da diocese não seja suficiente para explicar o reconhecimento de seus bispos.

É interessante notar que quase todos (oi-to de nove) religiosos que ocuparam o posto de secretário-geral da CNBB foram nomea-dos inicialmente bispos-auxiliares e encon-travam-se nessa condição quando levados à secretaria. O bispo auxiliar não possui di-reito à sucessão do bispo diocesano a quem auxilia. Somente arquidioceses contam com bispos auxiliares e esse tipo de nome-ação costuma servir como período de expe-riência ao recém-bispo, o qual é preparado para assumir o comando de outra circuns-crição (às vezes, recém-criada), dentro ou fora do estado em que atua. A rigor, cabem aos bispos auxiliares tarefas variadas – ad-ministração, direção da ação pastoral, exer-cício do poder judiciário - de gestão da cú-ria diocesana na condição de vigários-ge-rais. Têm a oportunidade, assim, de adqui-rir treinamento, já como bispos, em ativi-dades bastante diversificadas de organiza-

ção cotidiana de dioceses complexas e, ao mesmo tempo, são expostos com maior in-tensidade aos mecanismos próprios do alto poder eclesiástico e aos padrões de exercí-cio do cargo.

O relativamente pouco tempo na função de bispo indica que é muito menos a experi-ência episcopal em si do que o percurso pre-gresso (o passado pré-episcopal) de um bis-po que o gabarita objetivamente ao coman-do do secretariado-geral. Diferentemente do que ocorre com os presidentes da CNBB, o tempo médio decorrido entre a nomeação episcopal e a eleição ao cargo de secretário--geral é de cerca de cinco anos – com ca-sos extremos de bispos com apenas alguns meses de episcopado e com 12 anos na fun-ção. Essa característica permanece inaltera-da desde a criação da Conferência. Os dois últimos secretários, incluindo o atual, con-tavam respectivamente um e quatro anos de episcopado quando eleitos.

Para uma compreensão mais precisa dos atributos que credenciam os futuros líderes da CNBB é necessário, contudo, associar os elementos mencionados com o conjunto de competências culturais e com o capital re-ligioso adquirido em itinerários profissio-nais que variam de 11 anos (caso de D. Hél-der Câmara, sagrado bispo apenas meses an-tes da criação da Conferência e indicado ao posto) a 45 anos. Ou seja, de todo percur-so entre a ordenação sacerdotal e a eleição para dirigir a cúpula da Igreja. A média de idade dos religiosos eleitos secretários-gerais até o presente é 49 anos. Até meados da dé-cada de 1980, era 44 anos. Isto é, indivíduos com não muitos anos de experiência episco-pal, apesar de longos percursos como sacer-dotes. No caso dos presidentes, a média de idade é bem mais elevada, 59 anos. Metade dos presidentes chegou ao posto acima dos 60 anos de idade.

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O exame dos percursos escolar e de car-reira dos dirigentes católicos indica for-te predomínio de religiosos ligados ao po-lo mais intelectual do episcopado. Com as-censão rápida na carreira, encontram-se, em sua grande maioria, entre o grupo de bispos que realizaram estudos precocemente no ex-terior e não raro foram ordenados padres fo-ra do país, obtiveram doutorado e retorna-ram ao Brasil para servir em seminários ou faculdades em postos de ensino, orientação espiritual e direção, antes de receberem no-meação como bispos e assumirem, assim, o comando de dioceses pelo país.

A circulação pelo exterior para estudar é especialmente marcante entre os bispos se-cretários-gerais da CNBB. Apenas o primei-ro secretário da Conferência (1952-1964), D. Hélder Câmara (1909-1999), não realizou estudos fora do país. Entre os presidentes, somente os dois primeiros não contam estu-dos no exterior.

O exame do conjunto de bispos membros da diretoria da CNBB (presidente, vice-pre-sidente e secretário-geral) revela que, até o presente, pelo menos dois terços tiveram passagem de estudos pelo exterior antes de alcançar o episcopado, segundo informações disponíveis. No entanto, tomando em conta apenas os dirigentes do período posterior ao ano de 1964, percebe-se concentração ain-da maior de indivíduos com experiências es-colares fora do país; ou seja, de 21 bispos, 18 circularam internacionalmente na condi-ção de estudante. Dentre esses, encontra-se D. Agnelo Rossi, futuro arcebispo e cardeal de São Paulo, enviado a Roma em 1933, aos 20 anos de idade, para estudar teologia na Pontifícia Universidade Gregoriana (PUG). Instalado inicialmente no Colégio Pio Lati-no-americano, em 1934 compõe o grupo de 33 alunos que inaugura o Pio Brasileiro, on-de recebe a matrícula de n. 1. Nessa mes-

ma estada em Roma, o então seminarista es-pecializa-se em “protestantismo na Améri-ca Latina”, também pela PUG; dez anos mais tarde, conclui nova especialização, dessa vez na Argentina, em temática ligada a uma de suas principais frentes de atuação, a “Ação Católica”. Já na condição de bispo de Barra do Piraí (RJ), D. Agnelo ainda realiza curso de especialização em “catequese” na univer-sidade texana de San Antonio.

Do atual grupo de religiosos à testa da CNBB (2007-2011), todos apresentam estu-dos em grandes centros mundiais em seus currículos. Como grande parte dos bispos dirigentes, o atual presidente da conferên-cia, D. Geraldo Lyrio Rocha, após terminar a filosofia em Belo Horizonte, teve longa es-tada em Roma para graduar-se em teologia (Pontifícia Universidade Gregoriana), rea-lizar mestrado em filosofia (Universidade Santo Tomás de Aquino) e finalmente es-pecializar-se em liturgia (Pontifício Institu-to Santo Anselmo). Seu vice, D. Luiz Soa-res Vieira, também teve percurso semelhan-te, embora menos longo e menos rentável em termos de diplomas. Após conclusão da filosofia no Seminário Central de São Pau-lo, vai a Roma para seguir formação em te-ologia na PUG, durante cuja estada é orde-nado sacerdote.

Por fim, tem-se um caso atípico de car-reira sacerdotal bem sucedida ao se exami-nar o itinerário do membro de maior poder efetivo na instituição, o secretário-geral, - caso que talvez indique do modo mais cla-ro os rumos da recomposição do alto clero no Brasil. Nascido no interior de Minas, an-tes de iniciar a formação religiosa obteve ti-tulação em Engenharia Eletrônica pelo ITA - Instituto Tecnológico de Aeronáutica, em São José dos Campos, cidade em que atuou como engenheiro no Instituto de Ativida-des Espaciais e na Ericsson do Brasil. Seu

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ingresso no sistema escolar da Igreja dá-se, portanto, após aquisição de um dos diplo-mas superiores mais valorizados do país e de experiências profissionais em um centro de excelência tecnológica e em uma empre-sa multinacional do ramo. Assim, depois de cumprido o percurso básico de estudos de filosofia e teologia, somente aos 32 anos de idade é ordenado padre e pouco tempo mais tarde tem a chance de estudar no exterior ao ser enviado para obter doutorado em te-ologia sistemática pela Universidade Gre-goriana de Roma. Credenciava-se, indiscu-tivelmente, aos mais altos postos da Igre-ja. Aos 47 anos, 15 deles como profissional da religião, é nomeado bispo auxiliar do Rio de Janeiro. Quatro anos mais tarde, elege-se secretário-geral da CNBB.

Relativamente jovens (entre 43 e 54 anos de idade), alta titulação escolar e estudos no exterior, com menores responsabilidades sobre uma diocese e poucos anos de experi-ência como bispos, porém já familiarizados com encargos importantes e próximos a di-rigentes experientes e notabilizados: tais as características dos religiosos que têm sido designados para assumir a frente de um ór-gão institucional extremamente ativo e fa-lar e negociar em nome de um dos grupos socialmente mais reconhecidos no Brasil.

6 Conclusões: estudos na mesa e caminhos para o episcopado

Numa perspectiva mais ampla sobre o conjunto dos níveis de análise e indicadores envolvidos nesta pesquisa, ao se examinar a relação entre os recursos escolares interna-cionalizados e os princípios de estruturação do episcopado nacional, os resultados obtidos têm viabilizado a distinção entre duas princi-pais polarizações a presidir a distribuição re-lacional de poder no seio daquele espaço.

De um lado, um polo ao qual se atrelam itinerários associados ao exercício de fun-ções mais intelectualizadas e de alta admi-nistração, tais como reitor de seminário, di-retor de faculdade, professor, superior pro-vincial, administrador de ordens e congre-gações, passagem por altos cargos da CNBB regional e nacional, incluindo postos fora do país e assessorias especializadas. Com-posto pelos agentes melhor dotados de títu-los escolares resultantes de estadias de lon-ga duração (meses ou anos) no exterior ou, em menor escala, frutos de uma migração mais precoce para os centros de excelência em formação religiosa no Brasil, suas áre-as de estudo concentram-se predominante-mente em temas religiosos (teologia, espi-ritualidade, pastoral, história eclesiástica, catequese). Com menor envolvimento (ou apenas passageiro) em funções paroquiais, também entre eles encontram-se aqueles que, uma vez sagrados bispos, tendem mais rapidamente a serem indicados para dioce-ses e arquidioceses de grandes capitais (es-pecialmente próximas dos círculos hierár-quicos geograficamente centrais) ou delega-dos, com maior freqüência, para integrar e/ou coordenar comissões e organismos im-portantes dentro e fora do país (CNBB, CE-LAM, Cáritas nacional e internacional, con-selhos pontifícios), onde têm oportunidade de concentrar um forte capital de relações pessoais importantes. Nesse pólo também estão os que mais escrevem livros e/ou pu-blicam artigos e os mais propensos a reali-zar manifestações públicas em nome da hie-rarquia a respeito de temáticas não necessa-riamente enquadradas em assuntos consa-grados de espiritualidade.

Em outro polo, numericamente supe-rior na população dos prelados nascidos no Brasil, encontram-se os percursos predo-minantemente pautados pela ocupação de

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cargos de gestão de bens religiosos e admi-nistração pastoral ordinária. Abrigando os futuros prelados menos privilegiados em termos escolares, que apresentam os títulos de especialização de menor prestígio, rara-mente contam com especializações impor-tantes e experiências institucionais de rele-vo no exterior (quando muito, dispõem de passagens de curta duração – em geral cur-sos de aperfeiçoamento). Formados predo-minantemente nas regiões de onde são ori-ginários, são os que demoram mais tempo entre a ordenação sacerdotal e episcopal (o que explica em alguns casos o rol extenso de atividades exercidas que exibem), perío-do em que podem adquirir novos títulos es-colares, realizando combinações mais pecu-liares e diversificadas entre os temas e áre-as de estudos profanos e religiosos. À se-melhança de suas funções como sacerdo-tes, após a ascensão ao episcopado, esses religiosos são mais facilmente engajados em tarefas de expansão e manutenção ins-titucional de suas dioceses periféricas, po-dendo exercer cargos nos níveis regionais e, em muitos casos, é somente na condição de bispos que obtêm sua primeira experi-ência internacional. Concentrando os agen-tes menos dotados de um forte capital de relações pessoais, seus itinerários, em geral mais áridos, realizam-se mediante um con-junto de etapas trabalhosas que permitem a aquisição lenta e progressiva de recursos culturais e simbólicos distintivos.

Obviamente, dada a pluralidade crescen-te de postos e as possibilidades de composi-ção de percursos religiosos que conduzem ao episcopado, tais polarizações não delimi-tam carreiras homogêneas entre si, mas in-dicam regularidades que permitem observar elementos em comum. Frente a elas, deve--se compreender que os trunfos que sepa-ram os dominantes dos dominados, as car-

reiras de maior ou menor prestígio, resul-tam de uma combinação complexa e in-terdependente de propriedades, recursos e estratégias levadas a cada por cada agen-te sem que, para tanto, tenha pleno domí-nio dos mecanismos cujo domínio prático é condição do êxito. Por fim, outra observa-ção importante, mas que não pôde ser sufi-cientemente explorada aqui, diz respeito à diversificação das modalidades de combi-nação de títulos demonstrada pelo perfil dos estudos do episcopado. Esta indicação ex-pressa o efeito produzido não somente pe-la ampliação e maior estruturação da ofer-ta de estudos básicos de filosofia e teologia, mas também a forte expansão dos cursos de pós-graduação conhecida no Brasil a partir da década de 90 em todas as áreas, incluin-do as religiosas.

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Nota Sobre oS aUtoreS

Ernesto Seidl é graduado em Ciências Sociais, mestre e doutor em Ciência Política pela UFR-GS. Pesquisador do Laboratório de Estudos do Poder e da Política (LEPP), Universidade Federal de Sergipe.

Wheriston Neris é Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Sergipe e membro do Laboratório de Estudos do Poder e da Política (LEPP/UFS).

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recebido em: 04.04.11aprovado em: 08.06.11

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dossiê

reSUMo O texto se insere na problemática da diver-sidade de recursos e princípios de legitima-ção no espaço escolar e, conseqüentemente, no recrutamento de sua “elite”. Porém, se circunscreve à apresentação de resultados da análise das relações entre o processo de obtenção do título de doutor em sociologia e o ingresso na condição de professor de ensino superior. Mais especificamente, o recorte empírico está centrado nas relações entre a posição do respectivo curso de atu-ação profissional do novo doutor e daquele do orientador e dos componentes da banca examinadora da tese. A hipótese geral é a de que nessas relações entre a obtenção do título de doutor e o ingresso na carreira en-tra em pauta tanto a concorrência entre tí-tulos e capital escolar como o capital de re-lações sociais.

PalavraS-Chave Capital de relações sociais. “Elites” escola-res. Universidade e hierarquia profissio-nal. Estrutura universitária. Clientelismo universitário.

abStraCt This article relates to the issues of resource diversity and principles of legitimacy with-in school environment and consequently, the recruitment of its “elite”. However, it is limited to present analysis results of the re-lationship between the process of obtaining a doctoral degree in sociology and the ad-mission as a university professor. More specifically, the empirical material focuses on the relationship between the position of the respective professional path of the new doctor and that of his supervisor and mem-bers of his thesis examination board. The general hypothesis is that these relations between obtaining a doctoral degree and starting the career consider both competi-tion between titles and school capital as so-cial relations capital.

KeywordSSocial relations capital. School “elite”. University and professional hierarchies. University structures. Academic patronage.

Odaci Luiz Coradini

TITULAÇÃO ESCOLAR, MERCADO E CAPITAL SOCIAL NA HIERARQUIzAÇÃO ESCOLAR: AS RELAÇõES ENTRE A OBTENÇÃO DO TíTULO DE DOUTOR EM SOCIOLOGIA E O INGRESSO NA CARREIRA

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1 o problema investigado

O espaço universitário constitui um ca-so extremo e exemplar no confronto simul-taneamente contraditório e complementar de recursos e de princípios de legitimação e de hierarquização concorrentes (BOUR-DIEU, 1984, p. 23). Mas representa também um caso extremo do confronto entre esque-mas de análise e interpretações. O presente artigo se inscreve nessa problemática mais geral da diversidade de recursos e princí-pios de legitimação no espaço escolar, mas se circunscreve à apresentação de resulta-dos da análise das relações entre o processo de obtenção do título de doutor em socio-logia e o ingresso na condição de professor de ensino superior. Mais especificamente, o recorte empírico está centrado nas relações entre a posição do respectivo curso de atu-ação profissional e daquele do orientador e dos examinadores e componentes da banca examinadora da tese.

A hipótese geral é a de que nessas rela-ções entre a obtenção do título de doutor e o ingresso na carreira entra em pauta tan-to a concorrência entre capital escolar e tí-tulos e, portanto, mercado, como capital de relações sociais. Mais especificamente, essa passagem da condição de aluno para a de profissional constitui um dos pontos ou si-tes nas respectivas trajetórias onde se con-frontam e se complementam de modo mais direto os recursos e princípios com base no capital escolar e no capital de relações so-ciais, dentre outros.

Ao mesmo tempo em que essa hipóte-se geral tem em vista a análise de condi-ções empíricas concretas e, portanto, rela-tivamente particulares, está ancorada nu-ma longa série de trabalhos sobre o proble-ma. Em geral, os confrontos teóricos que têm como objeto o problema da análise dos

significados da escolarização e da titulação na hierarquização social remontam, par-ticularmente, às formulações de M. Weber (1984, p. 738) relativas aos processos de ni-velamento social e, por outro lado, aos efei-tos das diferenças culturais e educacionais na formação de grupos de status. Porém, ao mesmo tempo em que as referências às for-mulações de Weber são recorrentes, também são objeto de interpretações e de apropria-ções com base em posições epistemológicas, teóricas e conceituais divergentes. Por ou-tro lado, algumas dessas apropriações reco-nhecem e destacam as ambivalências e con-tradições dessas formulações, como é o ca-so de Bourdieu (1989, p. 537), que enfatiza a importância atribuída por Weber aos efei-tos da titulação escolar e dos concursos e, simultaneamente e de modo analiticamente não completamente resolvido, nos proces-sos de “democratização” através da especia-lização profissional. É como resultado das apropriações dessas formulações de Weber com ênfase nos aspectos de diferenciação e fechamento social que são fundamentadas posições teóricas específicas, como é o caso do credencialismo (COLLINS, 1979).

Essas questões quanto às relações en-tre recursos de ordem mais simbólica (co-mo aqueles que constituem os grupos de status) ou econômica (como a estrutura de classes) e os efeitos da escolarização e da profissionalização, que geralmente remon-tam às formulações de M. Weber (1984), nas últimas décadas têm sido apropriadas e re-formuladas com base em diferentes funda-mentos teóricos e conceituais. Embora não caberia detalhar aqui essas reapropriações, para o que está em pauta é necessário des-tacar algumas delas e suas conseqüências analíticas. Uma dessas reformulações que cabe destacar tem como origem o trabalho de Bourdieu (1984; 1989) e, mais especifi-

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1. Para uma discussão dos significados das noções de capital social de Bourdieu e de Coleman e suas apro-priações e usos, ver Coradini (2010).

camente, no problema das relações entre o capital econômico e o capital cultural e es-colar na estruturação social do capitalismo atual. Correlativamente a essas relações en-tre o montante e essas espécies de recursos como constitutivas da posição social, deve ser destacado também o caráter de princí-pio de legitimação do capital escolar, no ca-pitalismo central, especialmente através das ideologias associadas ao meritocratrismo escolar e ao dom.

Em termos concretos, essas relações en-tre a titulação escolar e as estruturas de po-der e de dominação, pelo menos para o caso dos países centrais, se manifestam nos dife-rentes usos da titulação escolar conforme a respectiva posição social e na esfera de ati-vidade (empresa privada familiar, empre-sa burocrática pública ou privada, “grandes corpos” do Estado, espaço universitário) e nas regras de recrutamento para as posições dominantes. Dentre essas regras e critérios de ingresso no recrutamento para posições dominantes destacam-se as afinidades cul-turais e de estilos de vida na avaliação da “pessoa total” em escolas de “elite” e sua as-sociação com o capital de relações sociais. Esse capital de relações sociais, apesar de altamente multiforme por definição, mani-festa-se, especialmente, nas relações consti-tuídas nos trajetos escolares e profissionais e de parentesco (BOURDIEU, 1989, p. 450; GARRIGOU, 2001).

O capital de relações sociais, na defi-nição de Bourdieu (1980; 1989), consti-tui uma espécie de recurso que apresen-ta condições muito próprias relativamen-te às demais espécies de capital. Diferente-mente das definições de capital social ins-critas nas abordagens derivadas da teoria

do capital humano1 , o capital de relações sociais para Bourdieu consiste numa espé-cie de recurso cuja legitimação nas moder-nas estruturas de dominação, baseadas no espaço escolar, nas burocracias e na pró-pria economia de mercado, somente ocor-re por denegação. Ou seja, diferentemen-te do capital econômico, escolar, etc., em síntese, daquelas espécies de capital ins-critas num determinado campo, que se ob-jetivam socialmente num determinado es-paço social estruturado conforme seu res-pectivo princípio de legitimação, em geral tendo num determinado título de equiva-lência geral ou de universal e alguma san-ção oficial, o capital de relações sociais mantém um caráter necessariamente par-ticularístico e, portanto, clandestino. Dis-so resulta uma série de dificuldades ana-líticas, na medida em que, apesar da de-finição precisa desse capital social, como o “conjunto de recursos atuais ou poten-ciais ligados à posse de uma rede de re-lações mais ou menos institucionalizadas de interconhecimento e de reconhecimen-to” (BOURDIEU, 1980, p. 2), cujo montan-te depende, portanto, da quantidade e da qualidade das relações, sua apreensão en-contra obstáculos nas próprias condições de sua objetivação e legitimação social, o que inclui os dados estatísticos.

Em todo caso, para o que está em pauta, o mais importante a destacar é esse caráter ambivalente por definição do capital de re-lações sociais, simultaneamente tendo efei-tos diretos no recrutamento e nas posições de dominação, mas nunca integrando os universais que legitimam as demais formas de recursos com as quais interagem, como o capital escolar.

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Outra vertente teórica que está na ba-se da formulação do problema de pesqui-sa em pauta está associada à chamada nova sociologia econômica. Essa corrente apre-senta uma série de problemas conceituais e, simultaneamente, de avanços técnicos na análise dos efeitos do capital social. O prin-cipal problema conceitual decorre da defi-nição do capital social por oposição ao mer-cado, no limite, como se consistisse em algo residual às relações de mercado2.

Sendo assim, além da noção de capi-tal social, que para os principais formula-dores dessa corrente consiste nos recursos “embebidos” nas redes de relações, a pró-pria definição de mercado entra em pauta como um problema conceitual. A noção de mercado na análise de recursos vinculados à escolarização vem sendo utilizada tanto em seu sentido metafórico como conceitu-al. Em termos conceituais, o principal uso da noção de mercado tem como vertente a teoria do capital humano que, como des-dobramento de determinada posição teóri-ca, toma a própria escolarização como aná-loga ao mercado econômico, o que resulta em sua unidimensionalidade (BOURDIEU, 1989, p. 391). No que tange especificamen-te à chamada nova sociologia econômica, o principal denominador comum consiste em tomar as relações de mercado como único contraponto àquelas do capital social “em-bebido” nas redes de relações externas a es-se mercado. Desse modo, além desse mer-cado econômico ser tomado como unívo-co, são excluídas as dimensões e as relações de poder.

Seja como for, além daquela de Bour-dieu, essa corrente constitui a principal ba-se para formulações relativas ao capital so-cial na hierarquização do espaço escolar. As apropriações correntes das proposições da nova sociologia econômica e a incorpora-ção de outras proposições, no entanto, são completamente distintas ou contrárias. Pa-ra o presente trabalho, dessas apropria-ções da nova sociologia econômica, aque-la que interessa mais diretamente é o tra-balho de Burris (2004). Para Burris (2004, p. 244) existem muitas redes sociais atra-vés das quais o “prestígio” do departamento circula como forma de capital social, mas a mais importante consiste na troca de douto-res e de empregos entre departamentos. Na hierarquia acadêmica,

a troca entre departamentos pode ser vis-ta como ato simbólico de afirmação mútua, mas também um processo pelo qual o capi-tal social é usado para obter acesso privile-giado para o capital econômico (emprego para alguém titulado), o qual, por seu tur-no, promove o fundamento para promover a acumulação de capital social (na forma de uma rede estendida de ligações instituciona-lizadas de pessoas empregadas na disciplina) (BURRIS, 2004, p. 244).

Evidentemente, essa definição de ca-pital social contido nas estruturas escola-res pode ser demasiadamente restrita, visto que as “trocas” entre departamentos consti-tuem em apenas uma parte das possibilida-des de usos do capital social. Em todo caso, nada indica que essas “trocas” não constitu-

2. Uma boa síntese das formulações e de algumas aplicações dessa abordagem pode ser consultada em Lin, Cook e Burt (2008). Para um confronto com outras definições de capital social ver Coradini (2010). Sobre a noção de “mercados múltiplos”, ver Zelizer (1992) e sobre o “mercado regulado”, ver Bourdieu e Christin (1990).

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am parte fundamental do capital social usa-do nesse meio, cuja apreensão do conjunto não é possível apenas com o material empí-rico disponível.

Nesse trabalho de Burris, no entanto, apesar da abordagem estar baseada no es-quema de análise de redes originário da no-va sociologia econômica, inclusive de al-guns trabalhos específicos sobre o merca-do de trabalho para determinados títulos es-colares e de toda a modelização matemáti-ca característica, os fundamentos teóricos e conceituais são apropriados nas formu-lações de Bourdieu e de M. Weber. A idéia central é a de que embora seja comum “fa-lar em ‘mercado acadêmico’, muitos obser-vadores reconhecem que as forças de mer-cado exercem um papel restrito na acade-mia comparativamente a outras profissões” (BURRIS, 2004, p. 244).

Porém, além dos problemas conceituais na análise das relações de mercado e de ca-pital social no recrutamento e na hierarqui-zação do espaço escolar, é necessário ter em consideração as diferenças entre configura-ções nacionais distintas. Isso pode ter efei-tos, inclusive, na existência e nas formas de coleta e difusão de dados e informações per-tinentes. Se para Bourdieu (1989) o capital de relações sociais na hierarquização escolar e nas burocracias privadas e públicas con-siste especialmente num problema das rela-ções entre estruturas de dominação com ide-ologias tecnocráticas, para Burris (2004) a questão analítica central gira em torno do “prestígio” (uma categoria, ao que tudo in-dica, central tanto na sociologia como no senso comum norte-americano). Nesse caso, no rank do “prestígio” analisado por Burris (2004) os critérios são externos ao controle oficial, ou seja, diferentemente do caso ana-lisado no presente trabalho, são formulados e operados por uma organização em nome

da própria categoria. No caso em pauta no presente trabalho é necessário ter em consi-deração que não se trata apenas de uma si-tuação periférica, com menor grau de pro-fissionalização do espaço escolar, mas tam-bém com muito maior peso de organismos oficiais no estabelecimento do rank dos cur-sos e respectivos professores. Por outro lado, diversamente do meritocratismo francês e a conseqüente importância histórica dos con-cursos públicos ou do profissionalismo nor-te-americano, na situação estudada a exis-tência generalizada do concurso como regra de ingresso no magistério do ensino superior é recente, posterior à Constituição de 1988. Ou seja, no período anterior o recrutamento com base em redes de capital de relações so-ciais consistia na regra geral. Na nova situa-ção, ao que tudo indica, o capital de relações sociais passa a constituir um pólo ou com-ponente que se opõe, complementarmente, embora sempre de modo contraditório, aos universais da oficialização das regras buro-crática. Por outro lado, esse maior peso ofi-cial, do qual decorre inclusive a geração dos dados utilizados, também contempla uma forte interdependência relativamente a inte-resses organizados no próprio espaço escolar e nas associações profissionais, além das re-des das quais dependem as relações dos dou-torandos, com os orientadores, com os com-ponentes da banca examinadora e com os empregadores em potencial.

Seja como for, a exemplo do trabalho de Burris (2004), no presente trabalho o proble-ma analítico central consiste no capital so-cial embutido nas trocas entre os cursos for-necedores e os recrutadores dos novos dou-tores. Porém, seguindo a indicação de Gode-chot e Mariot (2003), além do curso de atu-ação profissional do doutorando e do orien-tador, foi incluído o curso de atuação dos componentes da banca de defesa da tese.

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2 os dados disponíveis e indicadores utilizados

Em termos gerais, as fontes de dados dis-poníveis para o estudo dos efeitos do capital social na hierarquização escolar, ou temas co-nexos, são muito restritos e de qualidade pre-cária. Uma das principais razões disso é que o esquema de coleta de informações estatísti-cas exclui esse tipo de interesse e preocupação, inclusive porque essas informações não estão centradas em categorias normalmente utiliza-das. Para o trabalho em pauta, a exemplo de outros que tomam as relações entre os proces-sos de titulação universitária e o ingresso no mercado de trabalho (BURRIS, 2004, GODE-CHOT; MARIOT, 2003), a principal fonte des-se tipo de informação são as avaliações ten-do em vista a hierarquização dos cursos. Con-tudo, como já mencionado, uma das princi-pais diferenças, particularmente em compara-ção com as fontes utilizadas por Burris (2004), cuja coleta dos dados e estabelecimento de hierarquias entre os cursos estão a cargo de as-sociações profissionais, para o caso em pauta as fontes têm um caráter mais oficial. Trata-se do Banco de Teses da Capes, em conjunto com o rank dos cursos conforme as avaliações da própria Capes. Essas fontes foram complemen-tadas com a coleta de dados para cada indiví-duo nos arquivos disponíveis, particularmen-te, na Internet.

Em todo caso, comparativamente ao tra-balho de Burris (2004), os dados disponí-veis são muito mais precários e cobrem uma quantidade bem menor de indicadores. No Banco de Teses, disponível na versão ele-trônica para o período posterior a 2000, as principais variáveis com dados disponíveis com algum interesse são as que seguem: o orientador da tese e os componentes da banca com os respectivos vínculos institu-cionais e o enquadramento nas avaliações

da Capes. Complementarmente podem ser usadas informações relativas ao tipo de ins-tituição (pública ou privada), tamanho do curso de pós-graduação (através da explo-ração de outros arquivos da própria Capes) e o ano de defesa da tese, dentre alguns pou-cos mais. As informações relativas ao em-prego do doutorando, seus vínculos institu-cionais e demais indicadores desse tipo fo-ram obtidos, especialmente, nos arquivos disponíveis na Internet. Isso resulta numa diferença muito grande comparativamente à quantidade de indicadores utilizados por Burris (2004), que incluem as trocas entre os departamentos através da contratação de novos doutores, as publicações de artigos, citações, financiamento para pesquisa, arti-gos publicados qualificados, publicação de livros e o tamanho da faculdade.

Porém, além da precariedade das fon-tes, a menor quantidade de indicadores no caso estudado decorre também do esquema de coleta e armazenamento desse tipo de informação. Ocorre que, como o rank dos cursos tem um caráter oficial, alguns indi-cadores que nos Estados Unidos aparecem separadamente, como a produtividade me-dida através de publicações ou das citações, no caso em pauta são incorporados como critérios para o estabelecimento do próprio rank oficial.

Contudo, o mais importante é que, ape-sar de todas essas restrições quanto ao ma-terial empírico, os indicadores disponíveis contemplam o núcleo central do problema em análise, ou seja, as relações entre os cur-sos e respectivas posições na rank na for-mação e no recrutamento de doutores.

A fonte original constituída pelo Banco de Teses da Capes possibilita tomar o con-junto das teses defendidas no período pos-terior a 2000, em qualquer área de conhe-cimento. Como um primeiro ensaio, no en-

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tanto, foram tomados apenas os classifica-dos como sendo de sociologia (que inclui outras denominações, como ciências so-ciais, dentre outras), a exemplo do trabalho de Burris (2004). Contudo, diferente de Bur-ris (2004), não foram incluídos os cursos de história e de ciência política como contra-prova. O plano de continuidade do trabalho inclui, além desses cursos complementares, outros em condições distintas no que tange ao mercado e ao grau de consolidação e re-gulamentação profissional. A hipótese per-seguida nesse caso, ainda não contemplada na presente fase, é a de que, mais que o con-teúdo da área, pesam as relações com as es-truturas de poder e o grau de consolidação e a capacidade de organização e defesa de in-teresses profissionais.

Como a quantidade de teses defendidas na área recortada, a sociologia, por ano, não chega a ser muito elevada, foram in-cluídos diversos anos no recorte (2000; 2001; 2004; e 2005). Desse modo, foi in-cluído um total de 3.543 teses defendi-das, distribuídas do seguinte modo: 653 de 2000; 691 de 2001; 1122 de 2004; e 1077 de 2005. Mas, se tomado em separa-do qualquer um desses anos os resultados não se alteram significativamente.

No que tange às informações sobre o emprego dos novos doutores, de um total de 3.543 incluídos no universo, foram conse-guidas para 2.652. Apesar de não ser o ide-al, pode ser tomada uma quantidade estatis-ticamente representativa.

Exatamente na mesma direção dos re-sultados obtidos por Burris (2004), a pri-meira tendência que se sobressai é a for-te associação do destino ocupacional do doutorando, particularmente no que tan-ge ao conceito do curso de pós-graduação em que atua e aquele do orientador e dos componentes da banca examinadora. A se-

gunda tendência que se sobressai é a for-te associação entre os conceitos do curso do orientador, com componentes da ban-ca examinadora e do doutorando, em geral, sendo do mesmo nível ou ainda mais fre-qüentemente, o curso de atuação do douto-rando sendo de nível imediatamente abai-xo daquele do orientador e dos componen-tes da banca examinadora. Entretanto, so-mente em casos excepcionais o conceito do curso de atuação do doutorando é superior àquele do curso do orientador ou dos com-ponentes da banca examinadora. Confor-me Burris (2004, p. 244), no caso por ele estudado, “embora os departamentos mais prestigiosos raramente contratem doutores dos com posição inferior o contrário não é verdadeiro”. Isso ocorre porque os departa-mentos com posição intermediária preten-dem enfraquecer o princípio da exclusivi-dade social que garante o status de honra dos departamentos mais prestigiosos. Além disso, os departamentos de “elite” têm in-teresse em “colonizar” os menos bem po-sicionados e esses últimos estão ansiosos para trocar seu capital econômico (posi-ções na faculdade e salários) pelo aumen-to de prestígio que esperam obter empre-gando os novos doutores dos departamen-tos melhor posicionados. Com isso os de-partamentos pior posicionados podem ob-ter vantagens decorrentes da melhor inser-ção em redes institucionais e o capital so-cial correspondente, do que resultam outras possibilidades de trocas desiguais (confe-rências, publicações, participação em asso-ciações) com os melhor posicionados.

Quanto às principais técnicas estatísti-cas utilizadas, num primeiro momento fo-ram exploradadas conjuntamente todas as variáveis com algum interesse, através de análise de correspondência múltipla. Nesse tipo de teste fica evidente a forte associa-

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ção entre o rank ou conceito do curso de doutoramento com aquele do destino pro-fissional do doutorando. Fica evidente tam-bém a forte associação entre o conceito do curso do orientador, dos examinadores ou componentes da banca e demais indicado-res disponíveis.

Num segundo momento, a exemplo do trabalho de Burris (2004), foi elaborada uma tabela de mobilidade, tendo em vista o exa-me mais detalhado das relações entre os cur-sos de doutoramento ou então de atuação dos componentes da banca e o respectivo conceito e aquele de atuação do doutoran-do. Como parece evidente, a exemplo dos re-sultados da análise de correspondência múl-tipla, essa tabela apresenta de modo muito contundente as principais tendências.

Por fim, foram aplicados testes de regres-são, mas diversamente daqueles utilizados por Burris (2004) regressão OLS - (Ordinary Least Squares) tendo em vista as condições

dos dados disponíveis, o mais adequado pa-receu serem os testes de regressão ordinal e multinomial. Além disso, também diferente-mente do trabalho de Burris, não foram utili-zados os esquemas da network analysis. Nu-ma primeira exploração através de teste de análise de correspondência múltipla com to-das as variáveis com algum interesse, ficam evidentes algumas polarizações que abran-gem outros aspectos além da vinculação ins-titucional e posição do respectivo curso na hierarquização através de conceitos3.

Num primeiro eixo um pólo é constitu-ído de modo mais direto pelos orientado-res e examinadores vinculados aos cursos com conceitos mais altos (com o concei-to sete na posição extrema superior e, em menor grau, com o conceito seis). Algo ho-mólogo ocorre com a instituição ou curso onde o doutorando atua, com os concei-tos mais baixos também posicionados nes-se pólo. Em termos mais específicos, nes-

3. Além dos testes com objetivos exploratórios, naquele usado mais diretamente, como variáveis ativas fo-ram incluídos os conceitos dos respectivos cursos de atuação, do orientador, dos componentes da banca exa-minadora e do doutorando, ou seja, apenas três variáveis, com cinco categorias cada. O grau de associação é muito elevado. O primeiro eixo atinge 23,37% da variância (0,6761 de valor próprio), o segundo eixo ou-tros 18,82% (0,5445 de valor próprio) e o terceiro eixo 15,32% da variância (0,4432 de valor próprio). Além do forte grau de associação em geral, os resultados desse teste evidenciam a intensa correspondência entre os conceitos em diferentes níveis, dos cursos de atuação do orientador, dos componentes da banca exa-minadora e do curso de atuação do doutorando. No primeiro eixo se configura um primeiro pólo no qual se destacam aqueles orientadores, componentes de banca e doutorandos que atuam em cursos com conceito máximo, ou seja, sete. No pólo oposto se situam os orientadores e componentes de banca examinadora que atuam em cursos com conceito cinco e quatro. Embora possa parecer que se trata de conceitos intermediá-rios e próximos, podem ser considerados como do extremo inferior, visto que aqueles abaixo de quatro pra-ticamente não são estatisticamente representativos, até porque, pelas normas burocráticas, os abaixo de três são excluídos. Quanto ao conceito do curso de atuação dos doutorandos, nesse pólo inferior do primeiro ei-xo se destacam os sem informações, que equivalem àqueles que não atuam em curso de pós-graduação e, portanto, não há conceito.No segundo eixo se repete essa oposição entre conceitos, num nível inferior. Nesse caso, no pólo positivo se situam os com conceito cinco, tanto para o curso do orientador como para os dos componentes da banca e do doutorando. No pólo oposto, novamente, se destacam os orientadores e os componentes de banca que atuam em curso com conceito inferior àquele, ou seja, quatro e, no que tange ao curso de atuação do dou-torando, se destacam os sem conceito, visto não haver vínculo profissional com curso de pós-graduação. Em todo caso, também nesse segundo eixo o que mais se destaca é o forte grau de correspondência entre con-

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se pólo se situam os cursos institucional-mente mais centrais, particularmente os programas de pós-graduação da UFRJ, da USP e do IUPERJ. No que tange ao vín-culo institucional do doutorando o leque de programas e respectivas instituições é mais amplo, abrangendo especialmente a UERJ, FIOCUZ, UFPLA, SENAS, UFV, FE-SO, UFF, UNDESC, UFPR, ESES, UCB/RJ, UFRJ, IBASE, ISER, dentre outros, em ge-ral, com conceito inferior a sete ou, então, sem conceito (não se aplica). Outro aspecto que se destaca nesse primeiro pólo é a de-nominação dos cursos, sendo que no ex-tremo positivo se situam os de sociologia e antropologia, seguidos pelos de sociologia. No extremo oposto desse eixo se situam os cursos no pólo com conceitos mais baixos, particularmente os com conceito cinco. Em termos mais específicos, nesse pólo se destacam cursos de vínculo do orientador ou dos examinadores como o da PUC/SP, UERJ, UFSC, UNESP, UFRRJ, dentre outros. Quanto ao curso de atuação profissional do doutorando, ocorre muita dispersão numa enorme quantidade, mas são quase todos são cursos em posição periférica, em cujo extremo se destaca a PUC/SP, UNISANTOS, UNICSUL, UAM, PUC/CAMPINAS, UNIP, ISCA, UESPI, UNITAU, dentre outros. No que tange ao nome do curso, nesse pólo se destacam os cursos de ciências sociais. Por fim, quanto ao controle institucional, nes-se segundo pólo predominam as institui-ções privadas, em oposição às públicas, si-tuadas no extremo oposto.

No segundo eixo, em seu primeiro pólo se destacam os orientadores e cursos com con-ceito seis e em menor grau, conceito quatro e conceito três. Em termos específicos, nesse pólo, como instituição do orientador se des-tacam o curso da UNICAMP, da UFRGS, da UFPE e em menor grau, da UNB e da UFBA, dentre outros. Como instituições de atuação do doutorando nesse pólo se destacam cursos como o da UFRGS, PUCRS, UNISINOS, FAIT, UNIFOR, UFBA, UFSC. UFES, UNB, UNISC, UNESP, várias ONGs, UNIJUÍ, dentre outras. Ou seja, a exemplo dos demais pólos, os dou-torandos estão vinculados a instituições do mesmo nível e principalmente de nível in-ferior àquela do curso de doutorado e a or-ganizações externas ao espaço universitário. Esse primeiro pólo do segundo eixo também está mais diretamente associado com o cará-ter público da instituição. No extremo opos-to, como segundo pólo desse eixo destacam--se os cursos com conceito máximo, ou seja, sete, mas também alguns com conceito cinco. Especificamente, nesse pólo se destacam cur-sos como o da PUC/SP, UFRJ, IUPERJ, UERJ, dentre outros, a maior parte situada também no primeiro pólo do eixo anterior. Quanto às instituições do curso de atuação do doutoran-do, nesse pólo se destacam ao FAAP, FECAP, UFRJ, PUC/RJ, FEMATH, em síntese, um con-junto bem heterogêneo, mas com predomi-nância das que ocupam posições periféricas. Quanto ao caráter institucional, apesar da forte presença de organizações públicas, nes-se pólo há maior grau de associação com ins-tituições privadas.

ceitos do curso de atuação do orientador, dos componentes da banca examinadora e do doutorando. A úni-ca exceção é a posição de destaque dos doutorandos que não atuam em curso de pós-graduação, numa po-sição inferior. Mas a não existência de correspondência nesse caso decorre da falta da mesma categoria pa-ra os orientadores e componentes da banca, visto que, por definição, todos atuam em curso com conceito.

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Em todo caso, o que mais se destaca nes-ses resultados da análise de correspondên-cia múltipla tomando apenas os concei-tos (do curso de atuação do doutorando, do orientador e dos examinadores) é sua linea-ridade. Sendo assim, há uma forte tendência de as associações ocorrerem na mesma dire-ção. Sinteticamente, no extremo de um dos pólos do primeiro eixo se situam os orienta-dores cujo curso tem conceito sete (conceito máximo), seguidos pelos cujo curso de atu-ação do doutorando também tem conceito sete e os examinadores cujo curso tem con-ceito seis e, em menor grau, conceito cinco. Ou seja, há uma relação assimétrica na qual boa parte dos examinadores pertence a cur-sos com conceito relativamente mais bai-xo. No extremo do pólo oposto nesse pri-meiro eixo se destacam os orientadores cujo curso tem conceito cinco, seguidos pelos com conceito quatro e pelos doutorandos e orientadores que também atuam em cursos com conceito quatro.

Além de análise de correspondência múl-tipla e de tabelas cruzadas, algumas variá-veis foram submetidas a testes de regressão. Porem, diferentemente de Burris (2004), que utiliza teste de OLS (Ordinary Least Squa-re) incluindo o tamanho do curso represen-tado pelo da “faculty” servindo como vari-ável instrumental, no caso em pauta pare-ce mais adequada a utilização de testes de regressão ordinal, cujos resultados são mui-to semelhantes aos de regressão multino-mial. Diversamente do constatado por Bur-ris (2004), o tamanho do curso mantém um forte grau de correlação com o conceito e com o destino ocupacional dos novos dou-tores (embora as unidades de análise possam ser um tanto distintas, faculty e programa de pós-graduação). Porém, ao que tudo indica esse alto grau de associação entre o tama-nho do curso, no caso, tomado pela quan-

tidade de professores permanentes, e o con-ceito é altamente redundante. Ocorre que há forte correlação entre o tamanho do curso e outros indicadores, como sua antiguidade, e assim por diante. Ao que tudo indica, trata--se de um caso de “causalidade circular” que não pode ser tomado como decorrência ape-nas da dependência ou da relação causal de apenas uma variável relativamente a algu-ma outra.

Em todo caso, no teste de regressão ordi-nal tomando o conceito do curso do orien-tador como variável dependente e o tama-nho do programa de pós-graduação medido pelo número de professores permanentes, o grau de associação é dos mais altos (Pseudo R Quadrado de Cox e Snell de 0,541%). To-mando o conceito do curso de atuação dos novos doutores como variável dependente e o tamanho do programa de pós-gradua-ção como variável independente o grau de associação continua muito alto, embora um tanto menor que aquele obtido para o curso do orientador (Pseudo R Quadrado de Cox e Snell de 0,192).

Quanto ao conceito do curso do orienta-dor como variável dependente, relativamente apenas ao conceito do curso de atuação dos novos doutores, o grau de associação no tes-te de regressão ordinal, apesar de considerá-vel, não chega a ser muito alto (Cox e Snell 0,102). Porém, ao incluir o conceito do curso dos examinadores conjuntamente com aque-le dos novos doutores o grau de associação é muito alto (Pseudo R Quadrado de Cox e Snell de 0,325). Além de menor quantidade daqueles com dados disponíveis para os no-vos doutores, esse forte aumento do grau de associação decorre da alta correlação entre o conceito do curso do orientador e dos exami-nadores. Ou seja, via de regra, os examinado-res atuam em curso com o mesmo conceito do orientador ou em nível próximo.

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Conseqüentemente, ao tomar o conceito do curso do orientador relativamente àque-le dos examinadores o grau de associação é dos mais altos (Pseudo R Quadrado de Cox e Snell de 0,325). Com a inclusão dessas variáveis principais, tomando conceito do curso do orientador como variável depen-dente e o conceito do curso de atuação dos novos doutores e do curso dos examinado-res, além do tamanho do curso, é possível montar um modelo cujo grau de associação e quantidade da variância “explicada” são muito altos (Pseudo R Quadrado de Cox e Snell de 0,695).

Como pode ser constatado no respecti-vo quadro, nas relações entre o conceito do curso do orientador e do orientado a pri-meira tendência mais forte é a coincidência de nível ou conceito. A segunda tendência, complementar àquela, é de o doutorando atuar num curso de nível ou conceito mais baixo (exatamente como o constatado por Burris, 2004). No caso da inclusão dos que não atuam em curso de mestrado ou douto-rado, ocorre a tendência de atuação somente em curso de graduação ou em outras ativi-dades. Essas atividades consistem principal-mente na atuação apenas em cursos de gra-duação ou, então, em organizações do setor público ou, ainda, não governamentais.

Do total de novos doutores com orien-tador vinculado a curso com conceito se-te (máximo), quase três vezes mais que o previsto pela probabilidade (12,17% contra 4,50%) atua em curso também com concei-to sete. O conceito imediatamente abaixo (seis) recebe um pouco mais que o previs-to pela probabilidade de novos doutores ti-tulados em curso com conceito sete (6,96% contra 5,0%). Todos os cursos com conceito inferior recebem menos novos doutores ti-tulados em curso com conceito máximo (se-te). Com os novos doutores cujo orientador

está vinculado a curso com conceito seis ocorre algo semelhante. A maior concen-tração é dos que atuam em curso também com conceito seis (12,90% contra 2,70% previstos). Mas nesse caso ocorre também o destino a cursos com conceito sete (6,45% contra 2,43% do esperado), mas com uma forte concentração na faixa imediatamen-te inferior à do curso de titulação, ou seja, aqueles com conceito cinco (27,42% contra 20,22% esperados). As mesmas tendências ocorrem com os novos doutores vinculados a curso com conceito cinco, porém de mo-do muito mais acentuado. Nesse caso ne-nhum novo doutor que obteve o título em curso com conceito cinco trabalha em cur-so com conceito sete (embora a probabili-dade seja de 9,59 indivíduos) e uma quanti-dade ínfima obteve emprego em curso com conceito seis (1,63% ou quatro indivíduos quando a probabilidade é de mais do dobro, ou seja, 10,65 indivíduos). Nesse mesmo ní-vel do conceito cinco ocorre o inverso, ou seja, a quantidade dos que mantêm empre-go é um tanto maior que o previsto (88 in-divíduos ou 35,92% contra 79,89 indivídu-os previstos). Mas o grande fluxo e maior concentração do destino ocupacional dos que obtiveram o título de doutor em cur-so com conceito cinco são os cursos com conceito quatro, (com 153 indivíduos ou 62,45% contra 144,87 indivíduos espera-dos). No que tange aos novos doutores titu-lados em curso com conceito quatro, o mais baixo considerado, também, não há qual-quer ocorrência de atuação profissional em curso com conceito sete ou seis. Uma quan-tidade menor que a prevista atua em cur-so com conceito cinco (quatro indivídu-os contra 12,39 previstos) e também nesse caso ocorre maior concentração no mesmo nível, ou seja, cursos com conceito quatro (134 indivíduos contra 22,47 esperados).

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Essas relações entre a posição do cur-so do orientador e do doutorando abran-gem também aqueles que não atuam em al-gum programa de pós-graduação e, portan-to, os conceitos não se aplicam. Do total de 3543 doutorados concluídos em sociolo-gia nos anos em consideração, foram obti-das informações sobre o destino ocupacio-nal para 1097 indivíduos. Desses, como já mencionado, apenas 18 (0,94%) atuam em algum curso com conceito sete, uma pro-porção semelhante (20 ou 1,0%0 em curso com conceito seis, uma quantidade muito maior (150 ou 7,87%) com conceito cinco, outra parte maior ainda (272 ou 14,26%) com conceito quatro e, por fim, uma pro-porção semelhante (222 ou 11,64%) atua em curso com conceito três. Porém, qua-se metade (48,14%) desses novos doutores atua somente em curso de graduação e uma pequena parte restante (4,30%) em cur-so sem nota, além de mais da décima parte (11,80%) que não tem ligação ocupacional com o magistério. O mais importante a des-tacar é que a quase metade que atuam so-mente em curso de graduação tende a ob-ter o título de doutor em curso com concei-to inferior à média.

Tomando as relações entre o conceito do curso dos examinadores e do curso de atuação profissional do novo doutor ocorre algo fortemente homólogo aos resultados relativos ao curso do orientador. Os novos doutores que não atuam em curso de mes-trado ou de doutorado que tiveram, na ban-ca, examinadores vinculados a curso com conceito sete mantêm uma proporção dos que também atuam em curso com conceito sete muito alta e concentrada (11 indivídu-os para uma previsão pela probabilidade de 2,83). Para a faixa do conceito seis do cur-so dos examinadores a quantidade dos que obtiveram o título com o curso dos exami-

nadores vinculados a curso com conceito sete os resultados são muito próximos, mas ainda com quantidade maior que a prevista (seis indivíduos para 4,16 esperados). Para o conceito cinco também ocorre uma rela-tiva aproximação entre os que obtiveram o título com examinadores vinculados a cur-so com conceito sete e o destino ocupacio-nal no mesmo nível cinco (30 indivíduos contra 26,83 previstos). Por fim, no nível mais baixo considerado, aquele do conceito quatro, ocorre uma proporção bem menor de destino ocupacional dos titulados com banca cujos examinadores são vinculados a curso com conceito sete (42 indivíduos pa-ra 55,18 previstos).

Ao tomar os cujo examinador é prove-niente de curso com conceito seis ocorre al-go praticamente idêntico. A maior concen-tração de destino ocupacional dos novos doutores ocorre nesse mesmo nível seis (três indivíduos contra a previsão de 2,7) e mais ainda, no mesmo nível do conceito seis (seis indivíduos, contra a previsão de 3,04). Em-bora com muito maior quantidade em ter-mos absolutos, as proporções para os cujos examinadores são de curso com conceito cinco são semelhantes (25 indivíduos para uma previsão de 19,60), mas mesmo assim, é menor que a prevista. Para o conceito qua-tro do curso dos examinadores essa diferen-ça para menos aumenta (31 indivíduos para uma previsão de 40,30).

Quanto aos cujo examinador é de cur-so com conceito cinco ocorre somente um caso de destino ocupacional do novo dou-tor em curso com conceito sete (contra 7,42 de previsão). No nível do conceito seis a di-ferença entre a previsão e a ocorrência qua-se se anula (oito casos contra a previsão de 10,88), ocorrendo algo semelhante relativa-mente ao conceito quatro (68 casos contra a previsão de 70,25). Relativamente aos cujos

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examinadores são vinculados a curso com conceito cinco a maior concentração é dos novos doutores que atuam em curso com conceito quatro (156 casos para a previsão de 144,45).

Por fim, aqueles cujos examinado-res são de curso com conceito quatro, ne-nhum dos quais tem destino ocupacional em curso com conceito sete. Uma quanti-dade bem menor que a prevista pela proba-bilidade atuam em curso com conceito seis (dois casos para a previsão de 3,92) e no ní-vel do conceito cinco essa diferença diminui muito (19 casos para a previsão de 25,32). Por fim, no nível do conceito quatro ocorre maior concentração daqueles cujo exami-nador também é de curso do mesmo nível do conceito quatro (63 casos para a previ-são de 52,08).

Quanto aos novos doutores que atuam somente em cursos de graduação, portanto, não havendo conceito da Capes, represen-tam mais da metade do universo. Ao tomar conjuntamente com os que atuam em cur-sos de pós-graduação representam a maior parte daqueles com informações disponí-veis quanto ao destino ocupacional (918 casos ou 57,20% do total). Mas, a exem-plo dos que atuam em curso com conceito, sua distribuição relativamente ao conceito do curso do examinador também é muito significativa. Daqueles cujo examinador é de curso com conceito sete, menos da me-tade (46,25%) atua somente em curso de graduação e ao tomar os cujo examinador é de curso com conceito seis essa propor-ção se eleva consideravelmente (54,78%) e continua se elevando para o conceito cin-co (59,12%). Para os cujo examinador é de curso com conceito quatro essa proporção dos que atuam apenas em curso de gradu-ação se eleva ainda mais e passa dos dois terços (70,63%).

3 Considerações finais

Apesar de empiricamente centrado nas relações entre a condição de aluno de douto-rado em sociologia e o destino ocupacional, esse trabalho se inscreve numa problemáti-ca ampla e analiticamente controvertida. Em termos gerais, trata-se do problema dos efei-tos da titulação escolar nas estruturas e nos princípios de hierarquização profissional e social. Na multiplicidade de esquemas de abordagem desse problema postos em práti-ca pelas ciências sociais, num pólo pode-se sublinhar o uso da noção de mercado e cate-gorias conexas. No pólo oposto se destacam aquelas abordagens que têm na titulação es-colar um recurso para o fechamento social, seja como credencial, como status ou como formação de redes de interdependência com base no capital de relações sociais. A hipó-tese perseguida no presente trabalho é a de que esses recursos e princípios de legitima-ção, com base no mercado ou no capital de relações sociais não são excludentes. Ape-sar de contraditórios, podem se complemen-tar e interagir.

A exemplo da bibliografia corrente so-bre o tema em outras condições históricas e sociais, no caso em pauta também, o des-tino ocupacional dos novos doutores, bem como suas respectivas posições nas hierar-quias profissionais estão fortemente asso-ciados com a posição do orientador da tese e dos componentes da banca examinadora. Como parece evidente, isso indica no senti-do de que tanto o ingresso no mercado es-colar como de trabalho são condicionados pela inserção prévia em redes estruturadas com base no capital de relações sociais.

Por outro lado, apesar desse forte grau de associação entre o destino ocupacional e a posição na hierarquia profissional dos alu-nos de doutorado e os respectivos orienta-

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dores e componentes da banca examinado-ra, uma série de questões e desafios ou limi-tes desse tipo de trabalho ficam em aberto. Um dos mais imediatos desses limites con-siste na própria origem e no caráter dos da-dos disponíveis, de natureza administrativa e apenas indiretamente pertinentes ao trata-mento do problema. Essas limitações quanto aos dados, no entanto, estão vinculadas ao problema mais geral das próprias condições de constituição dos usos do capital de rela-ções sociais no espaço escolar e, particular-mente, para sua “elite”, em problema de pes-quisa. Dito de outro modo, a transformação dos usos do capital de relações sociais pe-la “elite” escolar requer muita autonomia da própria sociologia.

Por fim, ainda quanto a limites, os dados disponíveis não permitem examinar a inter-dependência desse tipo de uso do capital de relações sociais relativamente a outros, tí-picos de situações periféricas como aque-las em pauta. Por exemplo, é sabido que a hierarquização “profissional” da sociologia, a exemplo de outras áreas, depende direta-mente do capital de relações sociais acu-mulado na representação de interesses, se-ja nas burocracias universitárias e governa-mentais em geral, ou nas associações de ca-da área. Porém, frente aos limites de dados, não é possível examinar as relações desse tipo de capital de relações sociais em suas interações com aquele presente nas relações de orientação, formação de banca examina-dora e obtenção de emprego. Do modo se-melhante, por falta de dados mais sistemá-ticos e longitudinais, não é possível exami-nar se esse forte efeito do capital de relações sociais no universo escolar depende do ní-vel da escolarização. Por exemplo, tudo in-dica que para os níveis inferiores do merca-do escolar, até o ingresso no curso universi-tário, os critérios de seleção são mais mas-

sivos e anônimos, tornando-se mais depen-dentes de redes de capital de relações sociais na medida em que há mais proximidade do topo, ou da “elite” escolar.

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Nota Sobre o aUtor

Odaci Luiz Coradini é Doutor em antropologia social e professor de ciências sociais na Uni-versidade Federal do Rio Grande do Sul. Atu-almente suas pesquisas estão centradas parti-cularmente em temas ligados ao recrutamento e composição de elites culturais e políticas e ao engajamento e militantismo.

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recebido em: 10.01.11aprovado em: 08.06.11

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dossiê

reSUMo Utilizando arquivos privados e entrevistas como suporte da discussão, este artigo ana-lisa uma genealogia, publicada em 1970, que retraça, seletivamente, uma longa histó-ria de famílias de Minas Gerais que contro-laram recursos políticos ligados aos postos da administração do Estado, desde o Impé-rio, passando pela República e por ditaduras, até os anos 1960. Examinando as formas es-colhidas pelo autor para construir a genea-logia - em especial a escolha de uma mulher (e não de um casal) para a origem de uma família que agrupa pessoas dispersas em muitas linhagens masculinas, e que não po-deriam ser ligadas de outra forma – e , ao mesmo tempo, estudando minuciosamente as alianças matrimoniais cumulativas, o es-tudo dessa genealogia dá uma visão do que permitiu a estas famílias, durante mais de cento e cinquenta anos, disputar com suces-so num campo de forças tão instável como a política. Dessa maneira, o artigo vai além do estudo genealógico propriamente dito, per-mitindo compreender o que assegura a de-terminados grupos a força necessária para agir, com êxito, nas transformações do espa-ço político.

PalavraS-Chave Genealogia como instrumento político. Alianças matrimoniais. Famílias de políti-cos. Controle de recursos políticos. Acu-mulação de capital político e social. Pro-dução simbólica.

abStraCt Using private archives and interviews to give support to the discussion, this paper analyses a genealogy book, published in 1970, which presents the account of kin-ship of several families from the State of Minas Gerais whose members participat-ed actively in politics and government administration from the independence of Brazil up until the 1960s. By examining the choices of the author on building the genealogy – in particular the choice of a woman as the origin of the family in or-der to embrace many male lines that wouldn’t be connected otherwise – and studying the cumulative marriage alli-ances, the review of this genealogy helps to unfold this family history, over more than 150 years, observing what enabled all those different lineages to act success-fully on a power field as instable as this of politics. Thereby, the paper goes be-yond the mere genealogical review, by al-lowing the reader to understand what en-sures certain groups the necessary strength to succeed despite the transfor-mations of the political space.

KeywordSGenealogy. Marriage alliances. Political family. Command of political resources. Accumulation of political and social capital. Political means.

Letícia Bicalho Canêdo

UM CAPITAL POLíTICO MULTIPLICADO NO TRABALHO GENEALÓGICO1

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1 Introdução

Biografias, entrevistas e crônicas lite-rárias são algumas das fontes comumente utilizadas pelos historiadores para funcio-nar como princípio de avaliação do poder da elite política mineira durante o Império (1822-1889) e, em especial, sob a Repúbli-ca: seis presidentes da República, numero-sos ministros (entre os das pastas mais im-portantes), oito vice-presidentes da Repú-blica, uma forte representação nas princi-pais comissões de finanças e de justiça no Congresso Nacional, e as principais funções em todos os ministérios. Desde o início da Nova República, nos anos 1980, a forma-ção política de três presidentes sobre cinco foi realizada em Minas Gerais.

No Segundo Seminário de Estudos Mi-neiros, promovido pela Universidade Federal de Minas Gerais, em 1956, numa provocati-va conferência intitulada Famílias Governa-mentais de Minas Gerais, Cid Rebelo Horta mostrou os laços dessa elite atados numa re-de de 27 famílias controlando a política do Estado, do nível local ao nacional. O autor, que também se entrosa nas famílias matrizes que o texto fixou, viu seu texto passar a fi-gurar como texto clássico, muito citado em estudos de ciências sociais, mas raramente solicitada nos trabalhos dos cientistas políti-cos. O texto foi retomado em 1990 por Fran-ces Hagopian na sua tese sobre política tra-dicional e mudança de regime no Brasil con-temporâneo (HAGOPIAN, 1996). Ela mostra os membros dessas famílias nos postos mais elevados da administração durante o gover-no militar de 1964-1982 e também influen-ciando a transição negociada para a demo-

cracia, o que lhes assegurou a manutenção de posições proeminentes no pós-autori-tarismo permitindo-lhes manter o contro-le clientelístico, seu mais importante recur-so político.

Estas informações não têm a intenção de relançar debates sobre o arcaísmo ou a mo-dernidade política, ligados à uma concepção convencional da modernização em política e sim dar uma visão das estratégias de acu-mulação do capital social e político das fa-mílias de Minas Gerais que controlam o re-cursos políticos no nível de Minas e no do Estado Federal. O artigo traz elementos ca-pazes de ajudar a pensar as formas como es-te poder se expande no trabalho genealógi-co que, paradoxalmente, suprime, corta e se apoia nas mulheres, sujeito e objeto dessas dinastias políticas, na expressão usada por Michel Offerlé para apresentar a primeira versão deste artigo (1998, p. 2).

Uma observação do antigo deputado mineiro Eugênio Klein Dutra me orientou para esta fonte de pesquisa. Face à minhas dificuldades para apreender a natureza dos mandatos eletivos dos mineiros, ele me disse: “O político mineiro não escreve nunca. Os arquivos da política mineira se encontram na memória”. (DUTRA, 1986). Contrariamente a esta afirmação, descobri que os políticos mineiros escreveram as suas memórias, que se encontram escon-didas nos meandros da genealogia. Na ge-nealogia escolhida para estudo, os mode-los de casamentos aí desenhados ordenam uma visão do mundo. A regularidade nas escolhas dos cônjuges, e também da ativi-dade profissional, indica, na prática, uma lógica que garante a permanência de uma

1. Este artigo é uma versão retrabalhada do artigo publicado na revista Genèses, Paris, Belin, n° 31, junho 1998, p. 4-28. A pesquisa foi, inicialmente, financiada pelo CNPq, nos anos 1990, e o artigo se tornou possível com o apoio da FAPESP.

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Um capital político multiplicado no trabalho genealógico 57

ordem política baseada sobre o poder da burocracia do Estado. Isto porque se tra-ta de uma genealogia na qual muitas das pessoas aí registradas são conhecidas por suas atividades na função pública.2 Duas outras fontes foram igualmente utilizadas nesta pesquisa: as entrevistas e documen-tos de arquivos familiares.3

Alguns fatos contribuíram mais de perto para a escolha da genealogia construída pe-lo advogado Waldemar Alves Pequeno co-mo objeto de estudo:

- Os políticos aí inscritos pertencem to-dos a uma das 27 famílias governamentais citadas por Cid Rebelo Horta;

- Esta linhagem retoma os três ele-mentos sublinhados por Francês Hago-pian como essenciais para a ascensão da elite mineira no centro político: raí-zes oligárquicas, a vocação para a função pública e a competência técnica de seus membros;

- A genealogia foi publicada por uma editora oficial do Estado de Minas Gerais e não por uma editora privada;

- Ela apresenta na conclusão uma síntese

biográfica de personalidades escolhidas pelo genealogista;

- A data da publicação do livro (1970) coincide com um dos períodos de decadência vivido por este grupo familiar no seu suces-so político. O fato de a família ter tido inte-resse em publicar esta genealogia, foi tomado como hipótese de ela ter sido utilizada como uma arma na luta pela perenidade política de um grupo familiar que exerce poder político desde a independência do Brasil.

A primeira parte do artigo sublinha, com base em dados históricos, o jogo dos interes-ses familiares ligados aos postos da adminis-tração do Estado, desde o Império até a Re-pública. Por meio de um estudo das alianças matrimoniais cumulativas, demonstro o que permitiu a este grupo, durante mais de cen-to e cinquenta anos, jogar com sucesso num campo de forças tão instável como a política.

A segunda parte é dedicada à constru-ção genealógica como instrumento políti-co, examinando a forma escolhida pelo au-tor para marcar a solidez do poder político e social da família à qual ele próprio perten-ce.4 Mais do que um instrumento construído

2. Raízes Mineiras e Cearenses (PEQUENO, 1970). O trabalho sobre a genealogia consistiu numa transposição de dados sobre fichas individuais. Os dados foram completados interrogando pessoas aí registradas. Foram cataloga-das 1692 pessoas, 1036 estudos em diferentes níveis, 575 profissões, 266 postos na carreira política. A partir daí foram relacionados 3 espaços sociais: o espaço familiar, (onde as estratégias de educação e de casamento são co-locadas em prática), o espaço escolar (onde são preparados os portadores do saber necessário aos diferentes mo-mentos do processo social) e o espaço das agências governamentais, com os postos e as posições de poder aí es-tabelecidas.3. As entrevistas foram realizadas com pessoas inscritas na genealogia. Duas delas são políticos, 13 são altos téc-nicos da administração do Estado (um deles era no momento da entrevista presidente do Clube de Engenharia, uma organização nacional). Com o testemunho de 15 mulheres da linhagem, foi possível aceder a um bom núme-ro de documentos familiares, como cartas e folhetos celebrando seus parentes. Os arquivos de um ramo dessa fa-mília encontram-se na Fundação Henrique Hastenreiter, em Muriaé, MG. Foram recolhidos também testemunhos de outros políticos que aparecem em livros escritos por jornalistas e historiadores, tais como: Pio Soares Canêdo ( ver ASSEMBLÉIA, 1966), Tancredo Neves: a trajetória de um liberal ( ver SILVA; DELGADO, 1985), Artes da Po-lítica-Diálogo com Amaral Peixoto (ver CAMARGO et al, 1986), Uma vida para a história (ver VAZ, 1966).4. W. Alves Pequeno (1892-1988) era filho de um médico diplomado na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, mas originário do Crato, no Ceará. A ideia de escrever tal obra, como ele próprio diz no primeiro capítulo, lhe veio após a leitura de um artigo intitulado “Famílias ilustres de Barbacena”, publicado no Jornal do Commercio, do Rio

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para celebrar políticos, a presença da editora reafirma os laços da família do genealogista com as atividades do serviço do Estado.

Dessa maneira, o interesse do estudo re-alizado a partir da genealogia está na ava-liação dos recursos de um grupo político em momentos de reestruturação política.

2 o tempo na genealogia: família e poder político

Uma genealogia se apresenta ao sócio- historiador sob um duplo aspecto. De um lado, como os arquivos históricos, ela es-tá organizada de forma cronológica. Des-sa maneira, reúne e ordena informações so-bre nascimento, morte, casamentos etc., os quais, interpretados, servem de base às aná-lises históricas, sociológicas e políticas. De outro lado, ela contém toda uma dimensão simbólica, resultado de uma maneira própria de conceber o real. Ela dá uma identidade à família, estabelecendo uma origem que rom-pe com tudo que a precedeu. O traçado re-gular, cronológico e cumulativo da trajetória familiar garante a continuidade e a coesão da família. A genealogia encerra e modela as práticas individuais e coletivas do presen-te, mas as mostra como que fazendo parte de um quadro herdado que se projeta num fu-turo: ela torna presente o passado, pensan-do-os num futuro imutável. Por estas razões, o sócio-historiador não pode trabalhar sobre as informações brutas, tais como elas foram organizadas pelo genealogista, sob pena de

tornar-se prisioneiro de evidências.Para dar conta desse duplo aspecto, a ge-

nealogia em estudo foi utilizada como fonte de dados históricos, e principalmente, anali-sada como uma categoria da prática política, ou melhor, como um instrumento de uso so-cial e político.

É nesses termos que percebemos Alves Pequeno reconstituir a descendência de sua trisavó, Balbina Honória Severina Augus-ta Carneiro Leão (1797-1874), “até nossos dias”. Desde a introdução de sua obra, o ge-nealogista nos faz entrever o duplo aspec-to mencionado acima. Em primeiro lugar, a coesão das gerações é feita a partir de uma mulher, e não de um casal. É a trisavó que dá início a uma descendência em que, se-gundo as próprias palavras do genealogista, se encontram personagens masculinos “da mais alta extração social e política”. Ela é apresentada como irmã mais velha do mar-quês do Paraná, célebre estadista brasileiro, responsável pela formação do Gabinete da Conciliação (1853-1857) e pela reforma elei-toral que, em 1855, dividiu as províncias em distritos eleitorais (círculos), cada uma ele-gendo um deputado.

Ora, na sociedade ocidental, a descen-dência está assentada no poder masculino que se afirma por meio da patrilinearidade. Só o pai transmite o nome. Em consequên-cia, a descendência da trisavó Balbina está registrada na genealogia sob os nomes mais diferentes. Na página de rosto da publicação se lêem todos os nomes reconhecidos pelo

de Janeiro, no final dos anos 40. O autor do artigo era o então senador Nestor Massena. Alves Pequeno após notar incorreções á propósito da descendência de sua trisavó Balbina Honória, decidiu corrigi-las, acrescentando novos da-dos e incluindo sínteses biográficas de alguns parentes “que tiveram grande importância na vida social, política e cul-tural do país”. O objetivo era “salvaguardar o prestígio de famílias saídas de um mesmo tronco”.5. A raridade de nomes não portugueses na genealogia está de acordo com a realidade de Minas Gerais que rele-ga ao imigrante somente as atividades econômicas. Barbosa (1960, p. 235) observa a dificuldade da elite política mineira em absorver os elementos estrangeiros. O grande memorialista Pedro Nava faz também observações inte-ressantes sobre casamentos realizados fora de Minas Gerais. Ver, em especial, Galo das Trevas (1987).

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autor: famílias Carneiro Leão, Canêdo, Oli-veira Penna, Oliveira Diniz, Moreira Penna, Almeida Magalhães… Aí, a questão da co-esão interna do grupo torna-se mais cla-ra, porque o genealogista, sem ser explici-to, atribuiu a uma mulher, irmã de um ho-mem célebre, a primazia dos laços de paren-tesco a fim de garantir uma identidade fa-miliar a grupos nomeados diferentemente a partir de uma linhagem masculina. É exata-mente a esta identidade familiar que o autor faz referência em sua introdução:

[...] compreende essa descendência, efetiva-mente, personagens da mais alta expressão social e política: chefes de Estado, ministros, secretários, senadores, advogados, médicos, banqueiros, escritores, professores, militares, comerciantes, industriais, agricultores, jorna-listas, sacerdotes etc. (PEQUENO, 1970, p.13).

Apesar do caráter atemporal, e de apa-rência ilusória, esta citação, pela forma co-mo as experiências profissionais foram or-ganizadas, permite concretizar os valores que orientaram a conduta da descendência. O serviço do Estado e a representação políti-

ca vêm em primeiro lugar. Em seguida, vêm as profissões. As atividades de produção e a religião são relegadas ao fim. As atividades preferenciais enumeradas não dão, pois, pri-mazia ao sucesso econômico, indicando, ao contrário, a valorização de um tipo de ajus-tamento às exigências do campo político.

Entretanto, banqueiros e industriais não foram encontrados na descendência regis-trada. Os banqueiros citados por Alves Pe-queno eram homens que ocuparam pos-tos elevados nos bancos do Estado. Da mes-ma forma, o conjunto de advogados e médi-cos não se distinguiu por seu papel de pro-fissionais liberais, e sim pelo gosto que de-monstraram pelo serviço público. Entre as 575 ocupações identificadas na genealogia, 327 (56,9%) estavam ligadas à função públi-ca. Pode-se igualmente observar que os de-putados e os senadores desta família ocupa-ram também os postos de responsabilidade na administração do Estado onde a compe-tência técnica era exigida.

Mas até que ponto a construção dos la-ços dentro deste grupo familiar foi elabora-do tendo em vista a função pública?

Quadro 1

Perfil profissional da descendência de balbina honória

Profissão <1890 1890-1930 1931-1945 1946-1964 1964-1970* total Nº % Nº % Nº % Nº % Nº % Nº %

Altos funcionários 20 55,6 43 76,8 50 67,6 90 62,9 124 46,6 327 56,9

Profissionais 4 11,1 6 10,7 13 17,6 35 24,5 71 26,7 129 22,4Liberais

Grandes 1 2,8 1 1,8 4 5,4 2 1,4 4 1,5 12 2,1empresários

Pequenos/médios - - - - 1 1,4 3 2,1 14 5,3 18 3,1 empresários

Executivos da - - 3 5,4 3 4,1 11 7,7 46 17,3 63 11,0iniciativa privada

Proprietários de 3 8,3 3 5,4 3 4,1 2 1,4 7 2,6 18 5,1terra

Cargos honoríficos 8 22,2 - - - - - - - - 8 1,4

a genealogia foi lançada em 1970.

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2.1 a organização do poder político na sociedade mineira durante a primeira metade do século XIX

O casamento de Balbina Honória com Manoel da Silva Canêdo, analisado de acordo com os dados selecionados pelo genealogista, não é desprovido de sentido. Aconteceu em Barbacena, no ano de 1814, às vésperas da elevação da colônia brasi-leira à categoria de Reino Unido a Portu-gal e a Algarves, durante o processo de in-dependência.

Barbacena situa-se na montanha da Mantiqueira e o desenvolvimento do seu po-voamento foi rápido no século XVIII, pois era etapa obrigatória na ligação comercial da região das minas de ouro com o Rio de Janeiro, então capital da colônia. No início do século XIX, Barbacena era uma impor-tante cidade comercial.

O casamento de Balbina, diante das trans-formações vividas pela sociedade com o fim da glória do ouro, revela dois aspectos. De um lado, o interesse da família por formar alianças com portugueses brancos capazes de alargar as redes de amizade e as relações com as as-sociações de comerciantes.5 De outro, uma lu-ta para manter laços burocráticos nos espaços urbanos após a decadência do ouro e o início do movimento para a zona rural.

Balbina vinha de uma família de gran-des comerciantes. Seu tio, Brás Carneiro Leão, era proprietário de uma empresa de exportação, no Rio de Janeiro. Era por in-termédio desta empresa que seu pai abaste-cia a região das minas (MASSENA, 1985). Junto a outros comerciantes portugueses,

ele estava imbricado numa rede de paren-tesco e trocas informais de extensão inter-nacional (KUZNESOF, 1988; LINHARES, 1979; NEVES, 2011). O marido de Balbina era conselheiro municipal em Barbacena, e português de nascimento.

A aliança de Balbina com um influente local rompeu com a regularidade dos casa-mentos endogâmicos do lado Carneiro Leão e colocou esta família de comerciantes na via do poder político. Esta via não era difícil para este conselheiro municipal. Filho de um capitão português, ele aprendeu cedo a ser obedecido sem discussão.6

Para compreender o significado do ca-samento da filha de um comerciante inter-nacional com o filho de um homem deten-tor de um título da Coroa portuguesa, é pre-ciso ter em conta o fato de que a socieda-de mineira, com atividade econômica base-ada na exploração do ouro de aluvião, pro-duziu uma camada social dominante mais instável do que, por exemplo, aquela dos senhores do açúcar. A produção do açúcar no nordeste brasileiro permitiu a emergên-cia de uma espécie de nobreza baseada na propriedade da terra. Em Minas, o “enobre-cimento” dependeu diretamente dos laços com a burocracia do Estado português (HO-LANDA, 1960, p. 18).

Em Minas Gerais, a urbanização e a buro-cratização são anteriores à “ruralização”. Ao mesmo tempo em que um importante con-tingente populacional e um crescimento ur-bano sem precedente redesenhavam o espa-ço das minas, a Coroa portuguesa foi crian-do dispositivos administrativos para contro-lar a região mais rica do Império Colonial.

6. Os capitães eram escolhidos pelo governador português a partir de uma lista de três nomes; apresentados pela câmara de sua jurisdição. Eles eram designados tendo em vista “sua nobreza e riqueza” e deviam ser obedecidos sem discussão (ver KUZNESOF, p. 41). Este título era outorgado desde 1766, junto ao de nobreza, como via de acesso ao poder local (ver PEREGALLI, 1986).

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O efeito para os comerciantes foi a perda da autonomia; o comércio se fazia pelos cen-tros administrativos, as mercadorias eram transportadas de Portugal ao Rio de Janei-ro por barcos controlados e escolhidos pe-la administração portuguesa. Por este fato, uma parte da burocracia tinha o sentimento de pertencer a um grupo influente politica-mente, conforme bem estudou Schwartzman (1982 p. 27).

Um dos resultados imediatos do tipo de investimento social e político feito pela fa-mília dos grandes comerciantes Carneiro Leão com o casamento de Balbina foi a in-serção política precoce do irmão mais no-vo, Honório Hermeto, na Corte brasileira. Ele havia feito seus estudos de direito em Coim-bra, o que lhe permitiu atingir, com a ida-de de 25 anos, o mais alto cargo da magis-tratura brasileira, o de desembargador. Pou-cos anos mais tarde, recebeu os títulos de visconde e depois marquês de Paraná, já na carreira política. Foi senador, ministro da Justiça, presidente das províncias do Rio de Janeiro e da de Pernambuco até, finalmente, exercer a presidência do Conselho de Minis-tros, coroada pelo sucesso da sua política no Gabinete da Conciliação (1853-1855). Ajun-ta-se a isso o título de comendador do Im-pério acordado, em 1853, a Manoel Canêdo, o marido de Balbina. Dois filhos de Balbina foram gratificados com o mesmo título, as-sim como o seu genro.

Com a penúria do ouro, a partir dos anos 1780, a “ida para a roça”, as Gerais, ficou presa à ideia de decadência, de queda so-

cial, associada ao enfraquecimento dos con-tatos nos meios urbanos, as Minas. Desen-volveu-se no meio rural o sentimento de au-sência de influência e, portanto, de poder.7

A terra existia em quantidade e era de aces-so fácil (VIOTTI, 1979, p. 127). O poder po-lítico, ao contrário, exigia um investimento muito mais custoso, dada a concorrência no seio da Corte portuguesa. Os proprietários de terras de Minas Gerais reverenciavam esta classe de burocratas. Eles reconheciam nela a mesma importância social que os funcio-nários públicos se atribuíam (BLASENHEIN, 1982, p. 82).

2.2 o progresso dos membros da família na burocracia do Império

A fim de defender seus privilégios, os agentes da burocracia central, após a in-dependência (1822), acentuaram a concep-ção do bem público, reorganizando a pro-teção dos interesses do Estado contra os ti-tulares dos postos locais monopolizados pe-los proprietários de terra. Em 1841, uma in-terpretação dada à Lei do Código Criminal centralizou o Império nas mãos do Ministro da Justiça. Na expressão célebre de um de-putado liberal, Tavares Bastos, o ministro da Justiça passou a comandar “um exército de funcionários hierárquicos, desde o presiden-te da província até o inspetor de quarteirão” (BASTOS,1937, p. 159).

Essa lei, da qual um dos redatores foi o marquês de Paraná, irmão de Balbina, criou uma magistratura profissional dependente

7. A nova configuração histórica de Minas Gerais (de urbana para rural) só se mostrou claramente no início do século XIX. Não se tratava de uma economia agrícola de plantation, pois não estava orientada para exportação. O isolamento frente ao mercado externo, a diversificação e a auto-suficiência eram suas principais características. Foi pela presença desses traços que a temática dá decadência ganhou terreno. Para um estudo, não da decadência econômica, que parece não ter havido em Minas Gerais, mas da decadência existente no imaginário mineiro, ver Arruda (1989). Sobre a economia de Minas no século XIX, Martins (1984), na sua tese com sugestivo título Gro-wing in Silence, Vanderbilt University, Nashville.

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do governo central, por meio do poder de nomeação. Os descendentes de Balbina ti-raram um enorme proveito dela, seguindo a carreira clássica dos diplomados em direito: juiz municipal, procurador geral, juiz em primeira instância, desembargador. Muito desses diplomados entraram na magistratu-ra ao mesmo tempo em que ocupavam pos-tos de representação (deputado, senador). Nesses últimos postos, sua formação pro-fissional os levava a participar da elabora-ção das leis do Estado. O fato foi observa-do com espanto pelo conde de Strater Pon-thos, um financista belga: “No Brasil, os re-presentantes da Nação são ao mesmo tem-po aqueles do Estado, e os fiscais do gover-no são os seus próprios funcionários”. (HO-LANDA, 1960, p. 83).

Os arquivos de António Augusto da Sil-va Canêdo, neto de Balbina, permitem com-preender o espanto desse visitante, porque eles esclarecem dois aspectos, aparentemen-te contraditórios, da maneira como se ten-tou centralizar o Império: disciplinar o po-der local por meio do Ministério da Justiça e ao mesmo tempo utilizá-lo em favor da cen-tralização, por meio de um recrutamento fiel que seguia os laços de parentesco e de ami-zade. Neste arquivo encontram-se os rascu-nhos de várias sentenças que ele, como juiz na Zona da Mata proferiu para apaziguar brigas de família dos senhores locais, na dé-cada de 60 do século XIX. Encontram-se aí também as cartas do Ministro da Justiça pe-dindo informações sobre pessoas a nomear, bem como o rascunho as respostas:

São Paulo do Muriahé, 11 de março de 1872 Tive a honra de receber a prezada carta con-fidencial que V. Excia. me dirigiu pedindo--me a indicação dos nomes dos cidadãos que

eu julgasse idôneos para ocupar os cargos de Substitutos dos Juízes Municipais dos Ter-mos desta comarca. Satisfazendo a V. Ex-cia, envio as relações juntas porque, além da [incompreensível] a Termo desta Comarca, compreende também o Termo de Barbacena e o de Rio Novo, por cujas nomeações eu me interesso. Quanto aos Termos dessa comarca V. Excia. está lembrada de que solicitei em muitas cartas que V. Excia. aguardasse a mi-nha proposta, pois eu me empenhava pelas nomeações de alguns de meus amigos. Ago-ra, enviando os nomes dos que proponho, não só peço a V. Excia. que escolha dentre eles os que tem de nomear, como também peço com a maior insistência que em caso nenhum nomeie para qualquer cargo dos lu-gares o Português naturalizado X. A nome-ação dele importaria em desonra para mim e me causaria profundo desgosto (...). Sou fi-lho de Barbacena, tendo ali família e pro-priedade e muito me interesso pelo [incom-preensível] daquele lugar. Por isso também me empenho com V. Excia. pelas nomeações daquele Termo. Os primeiros propostos são meus parentes (...)8

Tal influência só se tornou possível gra-ças aos laços matrimoniais da família com pessoas bem implantadas no comércio. An-tónio Augusto casou-se com uma prima Car-neiro Leão e sua testemunha de casamen-to foi o marquês de Paraná. Sua irmã, a filha mais velha de Balbina, casou-se com um ri-co comerciante de Barbacena - João Fernan-des de Oliveira Penna - quatro vezes depu-tado provincial e chefe do partido Liberal da região. Seus dois outros irmãos, diplomados em direito, casaram-se com suas próprias so-brinhas, filhas de João Fernandes e sua irmã.

8. Arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro, São José 17/11/1850, 5°, 201v. Agradeço a Paulo Carneiro da Cunha as indicações para este documento.

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Antonio Augusto, além de magistrado, foi também deputado à Assembleia Geral do Im-pério pelo Partido Conservador.

A filiação deste grupo familiar aos dois parti-dos políticos existentes, Liberal e Conservador, o manteve no poder durante todo o Império.

Os casamentos no meio de comercian-tes prósperos permitiram às novas gerações a ascensão às custosas escolas de elite que

preparavam para a função pública. O qua-dro 2 mostra a monopolização dos postos públicos, que asseguraram a certos descen-dentes de Balbina uma participação nos três níveis do governo: o executivo, o legislativo e o judiciário. Para compreende-lo, é preciso não esquecer que os períodos 1931 -1945 e 1964-1982, foram períodos de governo au-toritário, em que as eleições foram raras.

Quadro 2

Perfil da carreira política da descendência de balbina honória

<1890 1890-1930 1931-1945 1946-1964 1964-1970* total

POSTOS ELETIVOS 10 14 3 13 9 49

Prefeitos e vereadores 2 4 1 6 3 16

Senadores e deputados 7 8 1 7 5 28

Governadores e vices 1 1 1 0 1 4

CARGOS ExECuTIVOS 5 15 29 40 78 166

Cargos técnicos diversos no Estado 2 0 11 28 43 84

Segurança pública 0 1 1 2 0 4

Sec. de Estado, Chefe de gabinete 0 6 4 2 3 15

Interventor municipal e estadual 0 0 7 0 0 7

Dirigente de corp. profissional 0 2 0 1 5 8

Ministro, Chefe de gabinete 2 3 1 0 7 13

Dirigentes técnicos do Estado 0 3 5 7 20 35

OuTROS CARGOS 4 8 8 17 14 51

Juristas 4 7 8 12 8 39

Cargos culturais (reitor, editor...) 0 1 0 5 6 12

TOTAL 18 73 40 70 101 266

2.3 os casamentos fora da descendência e seu impacto político durante o período republicano

Na segunda metade do século XIX, o alar-gamento da rede de instituições e de postos políticos deu nascimento à necessidade de es-tender a rede familiar, a fim de atender ob-jetivos políticos (KUZNESOF,1988). Tal fa-to pôde ser comprovado quando foram con-

frontados os tipos de casamento realizados pela descendência de Balbina, após a tercei-ra geração, com os realizados em outras fa-mílias, como a dos grandes proprietários de terra, que são depositários de capitais e inte-resses econômicos. Estabelecida a compara-ção entre as alianças familiares, as estratégias de casamento, reconstruídas a partir do estu-do desta genealogia, foram interpretadas co-mo trunfos. Trunfos a serem utilizados no jo-

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go da política, isto é, no enfrentamento dos imprevistos.

Nas famílias de proprietários de ter-ra, tanto no Brasil como em outros países, a persistência de casamentos consangüíne-os se explica pelo interesse da família em manter o seu patrimônio de terras (POUR-CHER, 1987). É o caso da família Junqueira (BRIOSCHI, 1984), uma dos maiores proprie-tárias de terra de Minas Gerais que, no iní-cio no século XIX, seguindo os rios, alargou o cumprimento de suas propriedades para além dos limites de Minas com esses casa-mentos consanguíneos. Na segunda meta-de do século XIX, uma parte dos Junqueira já tinha atingido São Paulo, outra parte ca-minhou em direção à Zona da Mata de Mi-nas. Entretanto, nenhum membro da família Junqueira conseguiu alargar o poder políti-co fora desses territórios.

A família de Balbina Honória não seguiu o caminho dos rios. Ela acompanhou a ro-ta dos postos políticos, a rota conduzindo ao Rio de Janeiro. A diferença fundamental en-tre as duas famílias está no fato de que, pa-ra uma, a terra tinha valor de investimen-to econômico, enquanto que a outra a via somente como instrumento para atingir os principais postos do Estado. Na genealogia em estudo, não existe menção a terras, o in-verso acontecendo nas genealogias estuda-das por Brioschi, onde a base do poder apa-rece fundado na filiação à terra.

Duas estratégias matrimoniais se distin-guem na descendência organizada por Al-ves Pequeno durante a primeira Repúbli-ca (1889-1930): 1) alianças múltiplas entre grupos preferenciais; 2) alianças opostas.

As alianças múltiplas são os casamentos entre dois ou três irmãos de uma família com duas ou três irmãs de outra família. Mostra o interesse dos membros do grupo em se fechar neles mesmos como se organizassem uma no-

va família. A terceira geração desta genealogia conta com 20% de casamentos consanguíneos fora da descendência. Na quarta, este número decresce para 14%.

Os agrupamentos familiares que realiza-ram este tipo de casamento são aqueles que puderam preservar o poder no nível federal. Neste conjunto de alianças múltiplas, que são mais raros, pode-se enumerar um presi-dente da República, um governador de Esta-do, ministros, deputados federais, assessores de gabinetes ministeriais, deputados estadu-ais, um presidente do Banco do Brasil, entre outros postos públicos.

As alianças opostas são uma prática de casamento que se tornou regular a partir da Primeira República, isto é, a partir da descentralização política. Os filhos diplo-mados se casam com filhas de proprietá-rios de terra, sobretudo de café, enquanto as filhas são destinadas ao casamento com políticos ou com funcionários bem coloca-dos na hierarquia.

Nenhuma das seis filhas de Balbina Ho-nória casou com proprietário de terra. Ao contrário, a crônica familiar celebra o casa-mento de uma delas, Balbina Augusta, com o Dr. Joaquim Bento de Oliveira. Na verda-de, ela se casou com um membro de uma família influente de Barbacena, diploma-do em direito e deputado geral na Assem-bleia nacional do Império, e também sabida-mente tuberculoso. Ele morreu desta doen-ça enquanto ocupava o posto de presidente da província do Paraná. “Ser doutor com um anel no dedo era melhor do que ser santo”, disse a respeito D. Maria Isabel Novaes, so-brinha da viúva Balbina Augusta.

O fato de dar suas filhas a funcionários bem colocados na hierarquia, ou a políti-cos de carreira, exprime o interesse da famí-lia na monopolização das funções de repre-sentação política, jurídica Por meio deste ar-

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ranjo matrimonial elas podiam, entretanto, trazer para a linhagem talentos masculinos pertencentes a uma elite hábil, presa ao cor-po dos dirigentes do Estado.

De outro lado, casar seus filhos bacha-réis com filhas de proprietários de terra era uma maneira de garantir a base política da família no lugar onde ela havia fixado a sua zona eleitoral.

A primeira lei eleitoral republicana (Lei 35 de 25 de janeiro de 1892) favoreceu este fenômeno ao dividir os estados da federação em distritos para eleger seus deputados, à semelhança do que havia tentado o marquês de Paraná, nos anos 1855. O voto, no ní-vel dos distritos, deveria quebrar a estrutura monolítica das grandes formações políticas do Império e fortificar as facções republica-nas. Para tal, a lei excluiu a intervenção das autoridades judiciárias no processo de qua-lificação eleitoral e manteve a interdição do voto ao analfabeto. Na prática eleitoral, is-to significou que a força da comunidade lo-cal poderia, por pressão sobre as autoridades da comissão municipal encarregada da qua-lificação, alargar as exclusões, ou mudar seu sentido, melhor dizendo, aumentar ou dimi-nuir o número de eleitores. A preocupação dos políticos voltou-se, assim, para o recru-tamento de eleitores interessados em votar, numa sociedade onde 80% dos eleitores po-tenciais, os analfabetos, estava excluída des-se direito. Esta situação abriu caminho a um sistema de inscrição eleitoral controlado por agentes “oficiosos” que redigiam e assina-vam demandas de inscrições para os analfa-betos. Para justificar esta inscrição, um de-putado de Minas Gerais escreveu:

Nos distritos muito disseminados, ninguém quer ser qualificado, ninguém se importa com a qualificação. Ora, o político interessa-do na qualificação terá que dirigir-se à casa de todos os eleitores a pedir a assinatura para

requerimentos; mas a maior parte fará os re-querimentos, assinará e hão de ser reconhe-cidas as firmas. É melhor que a junta quali-fique as pessoas que reconhecer estarem nas circunstâncias do que deixar-se esta brecha para a fraude (RESENDE, 1982, p. 89)

A descentralização das instituições re-publicanas exigiu, assim, uma presença di-reta dos membros da família em estudo na esfera municipal de poderes, mas sem mo-dificações no modelo das relações entre os políticos desta família e o espaço social que eles representavam: somente alguns paren-tes habitavam a região eleitoral e eles pró-prios continuaram uma carreira profissional na capital do Estado ou da Federação, fato que Martins Filho (2009) e Wirth (1977) já haviam assinalado.

Políticos nacionais no Império atingi-ram os mais altos cargos nacionais republica-nos. Sobreviveram ao sistema de partidos re-gionais da República e foram agentes ativos na montagem de uma estrutura de domina-ção oligárquica. Neste sistema de dominação, o fato chave na defesa dos interesses de Mi-nas na esfera federal foi a unificação do gru-po de deputados mineiros no Congresso Na-cional (RESENDE, 1982, p.166). Sob este pris-ma, eles foram todos aliados, contribuindo ao sucesso da “política dos governadores” idea-lizada pelo presidente da República Campos Sales, cujo funcionamento pode ser compre-endido com a ajuda do esquema utilizado por Francisco Iglesias:

O presidente da República estabelece acor-dos com os presidentes dos estados, de mo-do a obter o total apoio de todos os seus atos: os presidentes dos estados apoiariam o da República, bem como levariam os se-nadores e deputados obedientes às suas or-dens. Em troca desse apoio, que garantia ao governo livre ação, o presidente da Repú-

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blica apoiava toda a política dos estado, o que significava sobretudo a nomeação dos funcionários em cada local feita por indi-cação dos chefes regionais: Justiça, polícia, escola e mais atividades eram assim esco-lhas de gente de confiança absoluta do pre-sidente do estado. Este por sua vez, compu-nha-se com os chefes municipais, usando o mesmo artifício; apoio irrestrito em troca de apoio, ou melhor, de favores. [...] chega--se assim á forma ideal de conciliação dos estabelecidos no poder, um acordo baseado não em programas ou ideias, mas em conti-nuísmo: uma transação, um negócio (IGLÉ-SIAS, 1993, p. 208).

Corolário normal da política dos gover-nadores é o coronelismo, o sistema políti-co nacional baseado nas negociações entre o governador e os coronéis, isto é, os chefes municipais, seja proprietários de terra, sejam influentes locais.

Deste ponto de vista, os casamentos analisados a partir da genealogia tornam claras as estratégias que tornaram possível a adaptação dos políticos desta família aos desafios suscitados pelo sistema, que estava baseado na troca de favores, ou ainda, no compromisso.

De um total de 68 casamentos das bis-netas presentes na genealogia, somente 3, das 32 mulheres, casaram-se com filhos de proprietários de terra. Por outro lado, 12 dos 24 homens casaram-se com filhas de fazen-deiros. Mas é preciso sublinhar que quan-do houve interesse para a consolidação do poder em regiões específicas (os Canêdo em Muriaé, os Moreira Pena em Santa Bárbara), aumenta a porcentagem de homens casados com filhas de coronéis (70%).

Os influentes locais detinham as funções de administração da municipalidade, a ges-tão local das relações clientelísticas e a ins-

crição nas listas eleitorais. Em troca, eles de-pendiam da mediação dos políticos da capital para abrir as portas dos cofres da Federação. Sem esta intermediação, ficariam sem recur-sos para as obras públicas e para os emprésti-mos necessários às plantações sempre em cri-se (MARTINS FILHO, 2009). É preciso tam-bém pensar nas vantagens pessoais que o sis-tema coronelístico trazia para o poder local, porque o controle dos postos públicos tem um sentido que vai além do sentido político. Um coletor de impostos podia, por exemplo, por uma ação, ou por uma ausência de ação, atingir diretamente as margens de interesse de um coronel. Da mesma maneira, a nome-ação de uma determinada professora primá-ria importava na preservação de valores in-dispensáveis à sustentação do sistema (CAR-VALHO, 1977).

O casamento dos filhos do ramo Canêdo com as filhas de proprietários de café da Zona da Mata esclarecem as estratégias de alianças opostas. Do lado maternal, os Canêdo criaram laços com os titulares de postos municipais, os influentes locais, os proprietários de terra. Pelo lado paternal, ao contrário, eles mantiveram, por intermédio dos casamentos da ascendên-cia feminina com políticos ou altos funcioná-rios estatais, o seu lugar na administração cen-tral do Estado, com um controle estrito nas re-giões eleitorais. O trecho da entrevista abai-xo, realizada com representante político da re-gião da Zona da Mata, mostra bem este aspec-to quando o entrevistado explica o início da sua carreira:

Em Muriaé eu tinha os dois lados. Do lado de minha mãe, havia o coronel Chico Pereira e o coronel Chico Theodoro [...]. O coronel Chico Theodoro era filho do Coronel Francisco The-odoro, pai de minha mãe, chefe político des-sa região [...]. Digamos que eu comecei minha vida política sob a proteção dos coronéis [...]. Havia [do lado paternal] meu tio Agenor, de-

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putado estadual até 1930 e amigo íntimo do presidente Antonio Carlos e que se elegeu de-putado tendo Muriaé por base eleitoral. Meu pai participava da política local e teve aí uma influência política. Ele era primo em primeiro grau de Afonso Pena Jr. (CANÊDO, 1986a).

O comentário do irmão deste político explica melhor as vantagens em ter “os dois lados”, o lado paternal, ligado ao po-der central, e o maternal, ligado ao po-der local:

Ah! Papai não deixou por menos. Quando eles [os opositores] quiseram impedir a posse do Chico Pereira [na prefeitura], papai telefo-nou imediatamente ao Dornelles, parente do Getúlio, casado com nossa prima. Como Dor-nelles era chefe de polícia do estado, o Chico Pereira tomou posse (CANÊDO, 1988). É importante insistir que as alianças des-

critas aqui só foram possíveis porque foram assumidas por pessoas que estavam dispos-tas a elas, pessoas que tinham interesse em assumi-las em razão de investimentos fami-liares anteriores. No caso dos proprietários de terra, por exemplo, tudo indica que, ocu-pados em gerir uma produção ameaçada por crises seguidas, eles imaginavam ser possí-vel reencontrar a glória efêmera dos antigos tempos do ouro por meio do casamento de suas filhas com políticos pertencentes a fa-mílias unidas em torno de valores que elas próprias se davam, a partir do lugar adquiri-do junto ao poder do Estado.

Diferentemente dos senhores de ter-ra paulistas, os mineiros assumiam o ar de não se preocuparem com o dinheiro, sendo mesmo capazes de jogar todo o lucro ad-quirido no ano precedente: “Isso os man-tinha numa dependência sistemática em relação ao aparelho de crédito do Estado” (BLASENHEIM, p. 48). O deputado da re-

gião, casado com a filha de um desses fa-zendeiros, servia de intermediário junto ao Banco do Brasil, a partir de uma rede fa-miliar de empregados nos diversos órgãos públicos. Ainda que a genealogia não re-gistre postos inferiores, foi possível iden-tificar, a partir dos anos 1910, com a aju-da de entrevistas, 16 coletores de impos-tos, dois funcionários do Tribunal eleito-ral, 15 funcionários do Banco do Brasil, 3 fiscais de renda, três delegados de polícia, 8 diretores de hospitais públicos, entre ou-tros postos públicos.

2.4 os laços de parentesco e as condições de exercícios do poder político

O mais importante a considerar é o fato de que estas estratégias matrimoniais deram nascimento a um tipo de político muito par-ticular a Minas Gerais, que se tornou muito cedo político a tempo integral, um profissio-nal praticando a atividade política de manei-ra contínua. Ele possui um nome fácil de ser identificado no campo político, sem possuir laços econômicos diretos com a produção ru-ral. Entretanto, estando ligado à região rural por meio de alianças com os proprietários que constituíam a elite local, passou a desempe-nhar dois papéis decisivos: o de mediador e o de protetor. O de mediador entre a municipa-lidade, o governo estadual e o governo fede-ral é o mais importante. É esta mediação que consolida, eleição após eleição, o poder des-sas linhagens políticas: desses políticos que acumularam poder junto ao aparelho de es-tado, os eleitores esperam uma melhor distri-buição dos recursos públicos para a localida-de onde vivem. Tais recursos podem ser tanto materiais (proteção policial, saúde, emprego, subsídios para as obras urbanas e rurais, etc.) quanto simbólicos (defesa da honra de uma facção política, por exemplo).

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A tarefa de mediador entre o Estado e o setor produtivo já era exercida desde o Im-pério, mas a de proteção foi reforçada a par-tir de 1946. Foi o momento no qual, para-doxalmente, os partidos políticos se torna-ram mais importantes no jogo da sucessão e no qual o contingente da parentela em-pregada na burocracia do Estado se elevou. Um crescimento advindo da necessidade de competência técnica imposta pelo desenvol-

vimentismo nos anos 50 e pela tecnocracia dos anos 70, Considerando o quadro que se segue, pode-se compreender que as escolhas dos estudos realizados pêlos membros des-sa família em estudo repousava nas necessi-dades políticas do momento: direito duran-te o período de construção do Estado, enge-nharia durante o desenvolvimentismo, eco-nomia e informática como preparação para a tecnocracia dos anos 70.

Quadro 3

estudos superiores da descendência de balbina honória.*

GeraÇÃo terceira Quarta Quinta Sexta total

Direito 4 11 16 33 64

Medicina 1 3 11 14 29

Engenharia 1 1 19 55 76

Economia/administração 0 0 3 8 11

Informática 0 0 1 6 7

Outros 0 0 21 52 73

Sem especificação 21 57 148 550 776

Total 27 72 219 716 1036

até 1970, quando a genealogia foi publicada. Na genealogia não tem especificado a formação escolar como foram colo-cados os títulos. a linha “sem especificação” inclui crianças e mulheres. os estudos destes não interessam ao genealogista.

A partir dos anos 70, a urbanização ace-lerada e o crescimento das demandas por serviço e equipamentos sociais aumenta-ram a importância desses grupos familia-res. Eles passaram a se valer dos bens e dos conhecimentos tecnológicos adquiridos no serviço público para se manter no merca-do político.

As mudanças impostas pelo regime au-toritário (1964-1985) consolidaram a hege-monia financeira da União que, responsável pelo surgimento de programas especiais pa-ra municípios, fez proliferar as agências res-ponsáveis por esses programas e pelas trans-ferências de recursos. A luta no campo ad-

ministrativo passou a exigir negociação e poder de barganha de agentes políticos es-pecíficos, capazes de levar adiante não só planejamentos urbanos, como colocá-los di-retamente no interior das agências burocrá-ticas estatais de financiamento. A rede fami-liar existente nessas agências tornou os polí-ticos dessas famílias indispensáveis à popu-lação (CANEDO, 1991).

3 a genealogia como objeto político

Quando um genealogista traça os casa-mentos, ele cria uma realidade social visan-do legitimar uma descendência susceptível

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de assegurar a continuidade e a coesão de muitas gerações submetidas a um mesmo trabalho de socialização dentro de um uni-verso organizado em torno da divisão em famílias. Para tal, o genealogista filtra os elementos da experiência coletiva que um grupo familiar determinado procura lem-brar e quer ver lembrado e os transforma em símbolos. Estes símbolos equivalem às experiências sociais percebidas como im-portantes. São experiências que devem ser transmitidas por meio de exemplos concre-tos e que têm o poder de reunir pessoas a partir de uma mesma visão do mundo, mar-cando uma determinada identidade. Isto se torna possível porque o genealogista só ce-lebra o que já foi reconhecido na prática.

Para o caso da genealogia estudada, o desejo das pessoas em deixar traços foi pro-porcional ao poder de barganha detido pelos agentes desses grupos políticos, medidos em função de sua coesão interna.

3.1 as mulheres como trunfos na construção genealógica

Uma das práticas mais significativas en-contradas no estudo destas famílias ordena-das por Alves Pequeno foi o uso do nome do marquês de Paraná para lembrar o lugar a ser ocupado na sociedade. Este nome serve também de identificação aos políticos do ra-mo Canêdo, denominados por Rebelo Horta “sobrinhos do marquês de Paraná” (HORTA, 1956). Mas é uma entrevista com uma Ca-nêdo, nascida em 1937, que esclarece a uti-lização desta imagem do passado para acu-mulação do capital político por meio do ca-samento:

Em Barbacena, eu sempre ouvia de minhas pri-mas que deveria tomar cuidado para não me di-minuir frente aos meus namorados, porque afi-nal eu era sobrinha do marquês de Paraná. E o

doutor Galdino (casado com a prima da entre-vistada) quando escutava isto dizia: “Bah! Ser sobrinha de marquês não enche barriga de nin-guém”. (DESCENDENTE, 1988)

Testemunhos de outras mulheres incor-poradas à genealogia demonstram os efeitos da estratégia de casamento no jogo familiar onde elas são utilizadas como trunfos para a acumulação do poder político. Elas revelam uma vida oculta, introvertida, avaliada pelos poderes daqueles que regem os casamentos, as mortes, as leis. Paradoxalmente, manifes-tam ser dotadas de força para agir no mundo exterior: seja conservando a ordem, graças aos casamentos esperados ou a aceitação do celibato; seja contestando a ordem, ao recu-sar os casamentos esperados ou mesmo pre-ferindo a morte. É o que conta D. Isabel No-vaes, uma bisneta de Balbina:

Minha prima gostava de um farmacêutico. Mas como ele era muito moreno, seu pai im-pediu o noivado. Ela se chamava Ernestina e era muito bonita, [ela mostra o nome no livro onde está escrito que a moça morreu solteira] ela dizia que se suicidaria se seu pai não a dei-xasse se casar com o farmacêutico. Ela acabou se suicidando, pois tinha longos cabelos que atingiam os pés. Todas as tardes ela os lavava e dormia com eles molhados. Ela teve tubercu-lose e morreu. (NOVAES, 1989).

Sob este ponto de vista, não é estranha a constatação da exclusão de todo o tipo de informação que possa perturbar a constru-ção da realidade social proposta pelo genea-logista, que a ordenou em torno dos grandes nomes masculinos. No que concerne às mu-lheres, esta realidade coincide com o tipo de educação que lhes era inculcada. Desde Bal-bina, pode-se perceber, pela letra e o estilo da escrita, que todas elas tiveram um bom nível de instrução. D. Isabel Novaes, sem re-

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cursos para pagar professores particulares, conta que assistia o curso de francês de suas primas. Os estudos realizados nas prestigio-sas escolas religiosas, sob a supervisão se-vera dos pais (“É preciso que minhas filhas sejam instruídas, para o bem delas e orgu-lho meu”, escreveu Afonso Pena à sua mu-lher Mariquinhas, neta de Balbina), não lhes oferecia nenhuma preparação para vida ru-ral, tornando claro o desejo de lhes preservar um estilo de vida capaz de incorporar valo-res urbanos e um bom casamento na alta es-fera do Estado.

Assim torna-se compreensível o fato de que o sentimento de pertencimento à famí-lia estava sempre associado a um lugar (Bar-bacena, Muriaé, Santa Bárbara ou Paraíba do Sul) e ao reconhecimento dos políticos da região. Era um sentimento que não se ligava à preservação do patrimônio fundiário, co-mo foi expresso na resposta de uma delas à pergunta da entrevistadora:

As terras de Paraíba do Sul? Não sei nada a este respeito. Minha mãe queria viver no Rio de Janeiro. Ela abandonou as terras. Não sei o que elas se tornaram. Mas eu tinha o costume de passar minhas férias na casa de meu avô, na fazenda de Paraíba. Os Canêdo são de Mu-riaé, não é? Quando eu era pequena, conheci dois que vinham também à fazenda duran-te as férias, com a Yayá, a que tocava harpa. (RIBAS, 1988).

Junto com as narrativas e as fotos de via-gem, que mostram e falam de mundos no-

vos, valoriza-se a vida familiar fechada aos estranhos à família. Dessa maneira, elas eram protegidas de laços com pessoas situa-das fora dos limites dos interesses familiares, ou de alguma união com alguém que mani-festasse uma vida “muito livre”.9

A impossibilidade de um casamen-to dentro do esperado - e isto era frequen-te nos grupos familiares que sofriam perdas econômicas ou queda de prestígio social - implicava para a mulher, conforme escreve uma delas, “o retorno a Muriaé, onde resi-diu durante sua mocidade e até hoje na ca-sa de seus Pais. Com o falecimento dos seus Pais, continuou convivendo com sua irmã Maria Isabel na mesma residência à Rua Dr. Alves Pequeno”.10 A estas tantas soltei-ras, impedidas de se casar “para baixo” ou “para a liberdade”, para não dilapidar o ca-pital político familiar, cabia a dura incum-bência de preservar dentro da “casa antiga”, que conheceu mortes e nascimentos, a me-mória familiar, o lugar da transmissão do sentimento de possuir um nome e garantir a união entre as gerações (FONSECA, 1989). Cabia a elas “cumprir seu dever”. Evitar o que muitas primas fizeram: escolher “um marido inadequado” e desaparecer para seus familiares. Em outras palavras, desapa-recer da genealogia porque as uniões reco-nhecidas pelo genealogista são aquelas re-colhidas pelos membros da parentela E a fa-mília prefere não se lembrar das “más alian-ças”. No caso das solteiras, elas realizam um sacrifício que não as eternizam além do “li-

9. Uma das bisnetas de Balbina, Eunice Pena, se serviu desta expressão ( ver PENA, 1989). Solteira, ela se lembrava de sua atração por Pedro Nava, nos anos 20 e de porque um namoro não foi possível entre eles. O próprio Pedro Nava conta esta atração por ela num de seus livros de memória, Galo das Trevas, (ver NA-VA, 1987, p. 420).10. Extrato da resposta de um questionário enviado a algumas das mulheres da genealogia que tinham ultrapas-sado 80 anos. Esta resposta é interessante porque está escrita na terceira pessoa e a palavra Pais começa sempre com uma maiúscula.

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vro da família”. Sem descendência elas não são mais úteis após a morte.

Assim, o genealogista se limita a construir a identidade feminina a partir dos interesses dos homens políticos da família. As mulheres da genealogia não são quaisquer mulheres, mas mulheres dispostas a participar da gestão para a acumulação e a transmissão dos di-versos capitais (social, escolar, simbólico po-lítico, etc.), necessários ao sucesso dos indi-víduos selecionados pela família para entrar na via da profissionalização política. O papel ativo desempenhado por elas através de tan-tos “café servidos, telegramas enviados, mu-danças de residência”, como escreveu Alice Canêdo, esposa do deputado Agenor Canêdo, não é valorizado.11 Ou ainda através de um afastamento afetivo dos filhos e do marido, a fim de realizar as tarefas necessárias à ativi-dade política de hoje:

A Consola [esposa de um Secretário de Mi-nas Gerais] até aceitou o cargo de Secretária Municipal [Secretaria da Cultura e de Espor-tes de Muriaé]. Ela não queria este cargo, pois seria preciso deixar o Titi [seu marido] sozi-nho em Belo Horizonte. Mas as eleições estão chegando. Ela disse que, nesta secretaria, vai poder promover eventos e organizar melhor a campanha, pois não confia nas agências de propaganda. Ela diz que as agências não co-nhecem o sentimento dos eleitores, o que dá muito trabalho. O Titi não pode se afastar de Belo Horizonte para fazer campanha. Ela dis-se que o sistema de saúde que ele está im-plantando está funcionando bem, e ele está com muito trabalho [...]. O problema são os meninos, é por isso que ela não queria acei-tar. Mas eles disseram que vão ajudar. (CA-NÊDO, 1997).

Este papel ativo das mulheres está su-bentendido numa das sínteses biográficas existentes no fim da genealogia que traz a carta de um ex-senador da República à sua sobrinha, explicitando tal papel em alguns conselhos:

A primeira qualidade de uma mulher, aquela que poderia dispensar muitas outras, aquela sem a qual todas as outras não valem nada é a brandura de gênio, a suavidade das manei-ras, a delicadeza de tato, o bom humor cons-tante, ainda mesmo no meio de atribulações, um sorriso permanente, que concilia afeições e faz amigos. (...) Parece à primeira vista que estes conselhos dão à mulher um papel mui-to humilde no casal. Seja como for, a verdade é que eles lhe dão a felicidade, e a troco deste benefício ela pode fazer algumas concessões de seu amor próprio.Mas nem estas se fazem; porque a mulher, que assim proceder, em vez de rebaixar-se se eleva e cresce na estima e consideração de seu marido e no respeito de todo o mundo. (PEQUENO, p.258).

3.2 os descendentes úteis numa relação es-tratégica com o passado

Progressivamente as descendências inú-teis à acumulação do capital político, inclu-sive a dos homens, são excluídas, como é o caso do filho de D. Isabel Novaes. Sobre esta exclusão e sua relação com os primos céle-bres, ele respondeu que não freqüentava tais parentes: “Quando se aproxima de um pa-rente importante, ele já pensa que estamos querendo lhe pedir alguma coisa”.

Havendo tais exclusões, como tantos talentos masculinos puderam ser intro-

11. Fragmento de uma carta de Alice Canêdo a Afonso Pena Júnior. Muriaé, 12/11/1922. (Carta f 127 do arquivo de Afonso Pena Júnior, Fundação Casa de Rui Barbosa).

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duzidos na linhagem familiar? A respos-ta pode ser dada por meio dos casamen-tos realizados numa relação estratégica com o passado, que pode ser vista no tra-çado vertical da genealogia. Neste traça-do, o passado está presente no futuro que as alianças realizadas estão construindo. Estas últimas são fatores decisivos para a acumulação de todo o capital que os indi-víduos em questão precisam para perma-necer membro da família.

Dentro desta ideia, outro genealogista - António Carlos de Valadares - evidencia a importância do casamento do presiden-te Afonso Pena com uma “sobrinha do mar-quês do Paraná”. Isto explicaria o impulso dado à sua carreira política, quando ele era um modesto advogado do interior. Depois do casamento, sem que houvesse mudança de regime - monarquia depois república - ele ocupou vários cargos prestigiosos: ministro do Império, conselheiro do Império, presi-dente de Minas Gerais, presidente da Repú-blica, e outros mais:

[Afonso Pena] doutorou-se [na Faculdade de Direito de São Paulo], mas não seguiu o magistério universitário, indo modestamen-te advogar para Santa Bárbara, sua cidade natal.Mais tarde transferiu o seu escritório foren-se para a urbe mineira de Barbacena, aonde desposou a 23 de janeiro de 1875, Dona Ma-ria Guilhermina de Oliveira Pena, filha do co-mendador João Fernandes de Oliveira Pena e sobrinha do marquês de Paraná, “político muito influente no tempo do Império”, con-forme o nosso próprio biografado escreveu na sua já citada carta autografada que pos-suo. (VALADARES, 1978, p. 71)

Outros homens introduzidos na genea-logia graças a casamentos com descenden-tes de Balbina Honória também contribuí-

ram para transformar a construção genea-lógica em capital ao mesmo tempo social e simbólico. Entre eles, temos Benedito Vala-dares. Morreu em 1978. Era conhecido co-mo o homem de Getúlio Vargas em Minas, durante o Estado Novo (1937 -1945). Apeli-dado de “a grande raposa mineira”, foi pre-sidente do poderoso PSD na década de cin-quenta e sempre fez parte da direção nacio-nal deste partido, até a extinção do sistema pluripartidário em 1965. Pio Canêdo, bisne-to de Balbina, ele mesmo homem político in-fluente em Minas, argumenta que a ascen-são de Benedito Valadares se deve a seu ca-samento com uma bisneta de Balbina Honó-ria. Odete, a esposa de Benedito, tinha uma irmã casada com sobrinho de Getúlio Var-gas, Ernesto Dorneles - chefe da polícia de Minas, depois do golpe de 1930. Antes do casamento, Valadares era desconhecido. Co-mo escolhido de Getúlio, garantiu o sucesso dos projetos do Estado Novo em Minas, que estava politicamente dividida entre as anti-gas oligarquias.

O lançamento do Benedito como interventor não foi bem recebido, quer pela circunstância de ele não ser da primeira linha política de Mi-nas, quer pelo fato de ser relativamente desco-nhecido à época, quer porque tomou o, lugar que se supunha ser do Capanema. (...) Todos nós achávamos que o Capanema, apesar de muito moço, deveria suceder ao Olegário. Daí porque o Benedito teve grandes dificuldades em gover-nar Minas, no início de sua interventoria. Na verdade, a escolha do Benedito se deu por ra-zões familiares. A sua mulher, dona Odete, que era da família Maldonado de Barbacena, tinha uma irmã casada com Ernesto Dorneles, que era primo do Getúlio, e que depois ocupou cargos importantes aqui em Minas. O Ovídio de Abreu costumava dizer que a política mineira era fei-ta por laços de família. O Carlos Luz deu todo o apoio ao Milton Campos, em 1947, porque foi

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casado, em primeiras núpcias, com uma de do-na Déia, mulher do Milton. O Tancredo tinha uma tia que foi casada com um irmão do Ernes-to Dorneles. O Zezinho Bonifácio e o Bias Fortes eram concunhados, assim como o Juscelino e o Gabriel Passos. (VAZ, 1996, p. 181).

Quando o entrevistado cita as alian-ças matrimoniais, ele decifra a união do mundo político com o mundo social, mas também permite uma reflexão sobre uma gestão familiar suficientemente eficaz pa-ra permitir que seus membros resistam às idas e vindas da vida política e também às mudanças no jogo político. Pois não é sur-preendente que todas as pessoas citadas tenham conquistado os cargos mais altos da República e tenham podido transmiti--los a seus descendentes ou a seus afilha-dos. E eles o fizeram dentro dos mais dife-rentes partidos políticos.12

Pio Canêdo, sublinha, ainda, na sua esco-lha para líder do PSD na Câmara, em 1955, o fato de se tratar de seu primeiro mandato co-mo deputado, e de ele estar ausente da reu-nião que o designou líder (VAZ, 1996, p.181). Depois do golpe de Estado de 1964, ele foi eleito, pela oposição ao governo militar, pa-ra o cargo de vice-governador junto a Isra-el Pinheiro, governador, também herdeiro de tradicional família política. Eles foram consi-derados confiáveis. Minas foi o único estado que elegeu opositores ao regime militar. Isto foi visto como resultado do constrangimento imposto pelas “raposas mineiras” aos projetos de estabilização econômica e desenvolvimen-

to dos governos militares que herdaram o pa-drão de mediação entre o Estado e a socieda-de desenvolvido por elas e dele necessitaram como suporte ordenado da política, em es-pecial para as eleições simbólicas do período (HAGOPIAN, 1996). Entretanto não se vêm aí as mulheres obscuras que se engajaram pa-ra gerar o capital técnico, político e social ne-cessário à impulsão destas carreiras, contri-buindo para que fossem fiáveis nos momen-tos de reestruturação do espaço político.

Assim, a escrita genealógica, ou seja, a pro-va escrita de um capital acumulado por gera-ções, legitima o poder da família nas ativida-des políticas. Para os agentes interessados, ela se transforma num importante trunfo do jogo político; inscreve a família numa continuidade e marca, desta maneira, a solidez de seu poder social e político, seu domínio do tempo e sua capacidade de adaptação.

12. Carlos Luz, PSD; Milton Campos, UDN; Tancredo Neves, PSD, MDB, PMDB; Zequinha Bonifácio, UDN (a fa-mília Bonifácio de Andrada no Império pertencia ao Partido Liberal); Juscelino Kubitschek, PSD; Gabriel Passos, UDN.

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Nota Sobre a aUtora

Letícia Bicalho Canêdo é graduada em Histó-ria pela Universidade Federal do Rio de Janei-ro com mestrado em História Econômica pela Universidade de São Paulo e doutorado em Ci-ências Humanas pela Universidade de São Paulo. É professora titular na Faculdade de Educação, UNICAMP.

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recebido em: 25.03.11aprovado em: 08.06.11

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dossiê

reSUMo O texto discute processos de instituciona-lização de trajetórias de membros da elite, buscando iluminar os investimentos de que são objeto os acervos pessoais desses personagens. A idéia é analisar o papel de instituições de memória na atribuição de “valor histórico” aos acervos sob sua guar-da, atentando para os efeitos dessa dinâ-mica na construção de recursos simbólicos de legitimação e consagração associados às trajetórias dos homens públicos, bem como aos próprios projetos institucionais que tomam essas memórias como foco de investimento. Recorrendo a alguns casos concretos, o texto pretende desnaturalizar o discurso preservacionista que justifica a criação desses lugares de memória e vê-los como estratégias de atualização do capital político dos atores sociais em jogo.

PalavraS-Chave Memória. Acervo. Elite política. Lugar de memória. Darcy Ribeiro. Fernando Henrique Cardoso.

abStraCt The article discusses the institutionaliza-tion of elite´s members trajectories, seeking to shed a light upon the investments made in their personal document collections. The idea is to analyze the role of memory insti-tutions in the attribution of “historical val-ue” to the document collections under their guard, considering the effects of this dy-namic in the construction of symbolic re-sources of legitimation and reconnaissance associated to the public men´s trajectories, as well as to the institutional projects de-voted to their memories. Seeking support in some concrete cases, the text aims at de-naturalizing the preservationist discourse that justify the creation of memory places and look to them as strategies to update the social actor´s political capital.

KeywordSMemory. Archive. Political elite. Sites of memory. Darcy Ribeiro. Fernando Henri-que Cardoso.

Luciana Quillet Heymann

MEMÓRIAS DA ELITE: ARQUIVOS, INSTITUIÇõES E PROJETOS MEMORIAIS

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1 Introdução

Nas últimas décadas, assistimos a uma intensificação dos investimentos na me-mória, fenômeno que já foi analisado co-mo uma reação à aceleração do tempo pre-sente e à perda de referenciais por parte das coletividades (NORA, 1984). Essa inten-sificação já foi explicada, também, como um fenômeno associado à crise das gran-des narrativas homogeneizantes e à va-lorização das experiências de grupos so-ciais até então silenciados, cujas memó-rias não encontravam meios de expres-são na cena pública. Nessa última chave, por um lado, novos espaços foram erigi-dos para a preservação de um passado tor-nado mais plural e diversificado e, por ou-tro, movimentos de valorização de memó-rias traumáticas, ligadas a crimes e viola-ções, resultaram de lutas empreendidas por grupos atingidos visando à assunção, por parte do Estado e da sociedade, de um “de-ver” com relação a essa memória (LALIEU, 2001; KATTAN, 2002; HEYMANN, 2007).

Segundo o historiador Henry Rousso (1998), um sistema de referências teria se imposto nos últimos anos, tendo como cen-tro a memória, transformada em valor. Nes-sa nova conjuntura, lembrar-se - por parte do indivíduo ou do grupo - teria se asso-ciado a uma postura positiva, enquanto o esquecimento teria se tornado socialmen-te inaceitável, sistema cujo corolário se-ria a interdição a qualquer destruição, vis-ta doravante como “suspeita”, bem como a multiplicação de políticas memoriais leva-das a cabo por governos e grupos sociais.

As elites sempre erigiram lugares pa-ra preservar a sua memória, tanto co-letivamente, em espaços e manifesta-ções consagrados a determinados gru-pos, como individualmente, situação na

qual o foco é colocado sobre uma traje-tória pessoal. Se tomarmos esses luga-res de memória na acepção que lhes con-feriu Pierre Nora (1984) – lugares fun-cionais, simbólicos e materiais – pode-mos elencar uma variedade de institui-ções, celebrações e dispositivos, dos me-moriais às biografias, dos livros didáti-cos aos monumentos, por meio dos quais, de maneira geral, as elites registram, ce-lebram e preservam a sua memória.

Se, nos últimos anos, seria legítimo afir-mar que grupos de elite tradicionais tiveram que ceder espaço a novos sujeitos políticos no que diz respeito aos lugares e às políti-cas de memória, nada nos autoriza a pen-sar que elas foram excluídas do movimen-to geral de valorização do passado e de ‘ar-dente obrigação’ do patrimônio (HARTOG, 2006, p. 266), com suas exigências de con-servação, de reabilitação, e de comemora-ção. Nesse sentido, ainda que a disputa por recursos e reconhecimento social possa ter recrudescido, em um contexto de prolifera-ção de discursos memoriais, espaços vol-tados para a preservação da memória das elites continuam a ser criados, benefician-do-se, junto a outros segmentos, do dis-curso generalizado de “culto” à memória.

Nesse texto, nossa atenção estará volta-da para instituições de memória consagra-das à elite política, com destaque para os processos de conversão de acervos pesso-ais em “patrimônio”. Especial atenção será dada ao papel desempenhado por essas ins-tituições na produção e na atualização de uma noção de legado associada a um per-sonagem e à sua trajetória. Em outras pa-lavras, tomaremos a organização de luga-res de memória como uma modalidade de invenção discursiva desses legados, aten-tando para diferentes estratégias e recursos mobilizados nesses empreendimentos, en-

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tre os quais se destaca o investimento nos acervos e em seu valor de “testemunho”.

Já foi observado que o movimento ge-ral de valorização da memória e o inves-timento nos acervos a ele associado vem produzindo um “desejo de arquivo” (AR-TIÈRES, 2005, p. 6), um desejo que apon-ta não apenas para uma multiplicação e uma especialização de locais de arquiva-mento, alterando a paisagem arquivística, mas também para uma nova relação da so-ciedade com os arquivos, uma relação que, doravante, não envolve apenas historiado-res e arquivistas, mas sinaliza para uma va-lorização mais generalizada desses artefa-tos. Uma dimensão importante desse pro-cesso residiria no fato de tal “reconfigura-ção” do arquivo no espaço público - que inclui, sem dúvida, uma dimensão de de-mocratização dos espaços de arquivamen-to -, não significar a sua dessacralização. Ao contrário, em torno do arquivo, como em torno da memória, novos cultos esta-riam se desenvolvendo a partir da idéia de que “tudo é arquivo” e deve ser conservado.

Os arquivos pessoais de homens públicos ocupam lugar de destaque em projetos ins-titucionais voltados para a preservação da “memória nacional”; projetos que, ao mes-mo tempo em que valorizam o “patrimô-nio” do qual são depositários, os instituem como meios de acesso “autênticos” e “fide-dignos” ao legado que pretendem preservar.

O texto pretende caminhar de uma pers-pectiva mais geral para uma mais etnográ-fica. Inicialmente, abordaremos procedi-mentos de transferência de arquivos pesso-ais para instituições de guarda, discutindo algumas situações concretas de “produção” de memórias associadas a personagens da vida pública brasileira. A seguir, buscare-mos descrever modalidades diferenciadas de gestão e de apresentação de legados de

alguns membros da elite política. Com es-se movimento, a idéia é sugerir caminhos de pesquisa que, com foco nos acervos e na memória, ajudem a iluminar estratégias de aquisição de capital simbólico por par-te dos homens públicos e seus herdeiros, bem como mecanismos concretos por meio dos quais a memória histórica é construída.

2 a elite nas instituições de memória

Seria impossível tentar dar conta do campo das instituições de memória volta-das para a elite, no Brasil, sobretudo se in-cluirmos nessa categorização os museus, cujo papel na monumentalização da memó-ria de membros da elite já foi objeto de estu-do (ABREU, 1996). Nos limites desse artigo, vamos privilegiar as instituições voltadas para acervos documentais (que também es-tão presentes nos museus, vale lembrar, ain-da que esse tipo de acervo seja preferencial-mente depositado em instituições arquivís-ticas ou até em bibliotecas) e, dentro desse vasto campo, aquelas que explicitamente se definem como espaços dedicados à memória de determinado grupo ou membro das eli-tes. Não vamos nos ocupar, portanto, de ins-tituições cujo propósito declarado seja o de preservar a memória administrativa do país (caso do Arquivo Nacional e, por extensão, dos arquivos estaduais e municipais), ainda que a guarda dos documentos que resultam das atividades desenvolvidas pelos órgãos de governo possa ser vista, também, como um mecanismo de preservação da memória das elites dirigentes. Também não estamos considerando, para os objetivos desse tex-to, a guarda de arquivos privados, institu-cionais ou pessoais, nessas instituições pú-blicas, ainda que seja comum encontrar fun-dos documentais dessa natureza nos espaços dedicados à “memória da Nação”.1

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Nesse ponto, vale lembrar que o reco-lhimento de arquivos privados não é regu-lado por dispositivo legal - diferentemen-te do que ocorre com os arquivos de natu-reza pública, cuja tutela pertence ao Estado -, o que coloca em jogo a questão do des-tino de cada arquivo privado.2 Seu encami-nhamento a uma instituição de guarda de-penderá, assim, em primeiro lugar, do de-sejo do proprietário – no caso de um ar-quivo pessoal, o próprio titular ou um her-deiro; no caso de um arquivo institucional, o(s) proprietário(s) - de fazer uma doação ou de vender o acervo a uma instituição ar-quivística ou, nos casos em que em que is-so se mostra factível, criar uma instituição para abrigá-lo.

No caso do encaminhamento a uma ins-tituição de guarda, o destino do arquivo se-rá definido por meio de uma negociação envolvendo proprietário e instituição. Nes-se sentido, para fazer a passagem do do-mínio privado ao público, o acervo tem de ser oferecido pelo primeiro no mercado de bens culturais e ser aceito, um gesto que se-rá tão mais legitimador do seu capital sim-bólico quanto maior prestígio tiver a ins-tituição. Ou o arquivo poderá ter sua doa-ção ou compra sugeridas e mesmo solicita-das, evidenciando-se assim o capital de que é dotado. Neste caso, opera-se uma valori-

zação que vai do arquivo à instituição, já que possuir determinados arquivos confe-re prestígio, funcionando como elemento de legitimação institucional. Dessa forma, instituições arquivísticas e centros de do-cumentação funcionam como espaços pri-vilegiados de avaliação e de atribuição de “valor” aos acervos, já que são instituições voltadas para a preservação daquelas me-mórias reconhecidas como “históricas”.

No universo das instituições - arquivos, centros de documentação, institutos, funda-ções - dedicadas especificamente à memó-ria das elites, seria possível propor uma dis-tinção entre dois modelos: aquelas que abri-gam mais de um arquivo ou fundo docu-mental e que se definem como espaços de guarda de acervos particulares relativos a uma área específica de atuação ou conhe-cimento e, por outro, aquelas dedicadas à memória de um personagem, cuja linha de acervo tem como referência exclusiva, ou como eixo de sentido, a trajetória de um único indivíduo.

Ainda que possam existir instituições dedicadas à memória de quaisquer seg-mentos da elite, tradicionalmente, no Bra-sil, as instituições de memória que abri-gam acervos pessoais concentram-se em três áreas: política, ciência e literatura.3

No primeiro caso, seria possível citar, por

1. Arquivos (ou fundos) privados são conjuntos de documentos produzidos e acumulados por entidade co-letiva de direito privado, família ou pessoa física. (Cf. http://www.arquivonacional.gov.br/download/dic_term_arq.pdf )2. A definição e regulamentações relativas aos arquivos públicos e privados se encontra na Lei n. 8.159, de 8 de janeiro de 1991, conhecida como “Lei de Arquivos” e no Decreto 4.073, de 3 de janeiro de 2002, que a regulamenta.3. Essa especialização de locais de arquivamento encontra paralelo na própria definição de arquivos pes-soais. Em obra consagrada no campo da Arquivologia, lê-se: “A conceituação de arquivos pessoais está embutida na própria definição geral de arquivos privados, quando se afirma tratar-se de papéis produzi-dos/recebidos por entidades ou pessoas físicas de direito privado. (...) São papéis ligados à vida familiar, civil, profissional e à produção política e/ou intelectual, científica, artística de estadistas, políticos, artis-tas, literatos, cientistas etc.” (ver BELOTTO,2004, p. 256, grifo nosso).

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exemplo, o Instituto Histórico e Geográfi-co Brasileiro, localizado no Rio de Janeiro (bem como os Institutos Históricos e Geo-gráficos estaduais e municipais, criados à semelhança do primeiro), cujo acervo reú-ne “valioso patrimônio documental: docu-mentos manuscritos, oficiais e particula-res, entre raríssimos, interessantes (sátiras políticas), sobretudo importantes ao co-nhecimento da história brasileira”, consti-tuído por mais de uma centena de arqui-vos e coleções particulares.4

Para as elites científicas, duas institui-ções são referência no Rio de Janeiro. O Ar-quivo História da Ciência, unidade do Mu-seu de Astronomia e Ciências Afins (MAST), que “se dedica à preservação de parte da memória científica brasileira” e possui um acervo composto por cerca de trinta arqui-vos pessoais de cientistas e alguns arquivos de instituições ligadas à ciência e à tecno-logia5 , e a Casa de Oswaldo Cruz, unidade da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Nes-se caso, o acervo arquivístico, composto por mais de uma centena de fundos e coleções é definido como “repositório singular da me-mória e da história da saúde no Brasil”. A Casa abriga arquivos de cientistas, sanita-ristas, médicos e técnicos que participaram da formulação e execução de políticas pú-blicas na área da saúde, merecendo desta-que os arquivos de Oswaldo Cruz, patrono da Fiocruz, e de Carlos Chagas.6

No campo das Letras, seria necessário ci-tar algumas instituições que se definem co-

mo unidades voltadas especificamente pa-ra a preservação da memória literária bra-sileira. A mais emblemática é, sem dúvida, a Academia Brasileira de Letras, situada no Rio de Janeiro, cujo acervo é composto pe-lo Arquivo dos Acadêmicos e pelo Arqui-vo Institucional.7 Chama atenção o fato de a ABL manter no Arquivo dos Acadêmicos conjuntos documentais relativos a todos os seus membros, ou seja, além dos arquivos pessoais doados pelos titulares que decidem encaminhar seus acervos para a instituição, a própria ABL se encarrega de constituir “coleções pessoais” para aqueles acadêmi-cos que, por alguma razão, não destinaram seus documentos à Academia. Essa política institucional remete à “obrigação” de reve-renciar a trajetória de todos os seus mem-bros, vivos e mortos, mas também à impor-tância, para a ABL, de ser reconhecida como espaço dedicado à guarda e preservação da “memória” literária brasileira. Esse investi-mento pode ser atestado pela implantação, em 1997, no âmbito das comemorações pe-lo centenário de sua fundação, do Centro de Memória da ABL, visto como uma forma de ampliar a visibilidade da instituição e de atrair um maior número de pesquisadores. (OLIVEIRA, 2009)

Não parece casual que essa preocupação tenha emergido no final dos anos 1990, pe-ríodo que já foi caracterizado como de “in-flação” (HUYSSEN, 2000) e de “saturação” (ROBIN, 2003) de memórias. A despeito das demais funções exercidas pela Academia,

4. Cf. http://www.ihgb.org.br/acervo3.php (acesso em 1/5/2011).5. Cf. http://www.mast.br/nav_h03.htm (acesso em 1/5/2011). 6. Cf. http://www.coc.fiocruz.br/patrimonio/index.php?option=com_content&view=article&id=90&Itemid=85 (acesso em 1/5/2011).7. Outras instituições são o Arquivo-Museu de Literatura Brasileira, instalado na Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro; o Instituto de Estudos Brasileiros (IEB), ligado à USP, e o Acervo de Escritores Mineiros da Faculdade de Letras da UFMG, em Belo Horizonte.

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que se define como uma instituição volta-da para “a cultura da língua e da literatura nacional”, ela tem investido na imagem de instituição de memória que reúne, preser-va e disponibiliza acervos de interesse pa-ra a pesquisa histórica.8 As duas dimensões, evidentemente, não são antagônicas, mui-to pelo contrário: a “recuperação” e a “pre-servação” da memória - termos recorrentes nesse tipo de projeto- se justificam pela ne-cessidade de proteger a “literatura nacional” e a de tornar disponíveis fontes que alimen-tem estudos e pesquisas nesse campo. Estes, por sua vez, acabam por confirmar a ima-gem de instituição de referência projetada pelos dirigentes da ABL.

Todas as instituições mencionadas cons-tituem “lugares de memória” das elites. Na verdade, cada uma dessas instituições po-deria servir de base a um estudo específi-co, que buscasse perscrutar as histórias e os agentes envolvidos na criação de cada uma delas, os formatos institucionais adotados, as formas de colecionamento e de captação de acervos privilegiadas, os critérios esta-belecidos para definir o que pode integrar cada um dos espaços, as estratégias de fi-nanciamento, os mecanismos de divulgação das atividades, enfim, uma série de aspectos que, ao explicarem a natureza e o funciona-mento de tais entidades, ajudariam a ilumi-nar mecanismos de legitimação institucio-nal, de consagração de trajetórias conside-radas “exemplares” e, finalmente, de cons-trução da memória histórica no país.

Não é nossa intenção apresentar um pai-nel institucional, mas chamar atenção para um investimento generalizado e crescente na constituição de espaços memoriais “pre-

enchidos” por acervos documentais. Vamos nos deter em alguns casos particulares, cen-trando nossa atenção em projetos voltados para a memória de personagens da elite po-lítica brasileira contemporânea.

3 os lugares dos arquivos e os arquivos nos lugares

A possibilidade de criar uma instituição para abrigar um arquivo pessoal específico coloca em jogo o prestígio do titular ou de seus “herdeiros” - entendidos aqui não ape-nas como familiares, mas também como de-positários da herança memorial do persona-gem. O sucesso do projeto institucional de-penderá do capital político dos agentes en-volvidos e das redes de relações que consi-gam mobilizar em torno do empreendimen-to. O discurso articulado nesses contextos recorre sempre à “retórica da perda”, para usar a feliz expressão de Gonçalves (1996), segundo a qual o presente é narrado como uma situação de perda progressiva e inexo-rável em relação à qual ganham sentido as práticas de colecionamento e exposição. As iniciativas voltadas para a preservação de arquivos pessoais de homens públicos cha-marão sempre atenção para a “necessidade” de recuperação desses acervos, para o ris-co da perda e do esquecimento, e para a im-portância dessa recuperação para a “memó-ria nacional”, categoria na qual cumpre in-cluir a memória do titular e os objetos que a simbolizam.

Alguns exemplos podem ser úteis para iluminar possibilidades e estratégias de ação associadas à institucionalização da memó-ria de determinados homens públicos. No

8. Cf. http://www.academia.org.br/abl/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?sid=5 (acesso em 14/5/2011).

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primeiro caso, os limites individuais e tem-porais inicialmente estabelecidos pelo acer-vo cuja preservação serviu de justificativa para o empreendimento foram extrapola-dos, diluindo-se em grande medida o cará-ter personalista do projeto; em outros, mais recentes, a persona do titular parece mais incontornável.

Pode ocorrer de um arquivo pessoal ser acolhido por uma instituição cuja relação com o titular antecede a doação, caso, por exemplo, do arquivo de Getulio Vargas, do-ado por sua filha, Alzira Vargas do Ama-ral Peixoto à Fundação Getulio Vargas, em 1973, dezenove anos após a morte de seu pai, e quando a FGV já contava com quase trinta anos de existência. Nesse caso, a re-cepção do arquivo de Vargas, presidente da República que criou a FGV como instituição central de um projeto administrativo colo-cado em curso pelo governo, remete ao ca-pital simbólico do arquivo do ex-presiden-te, às conexões históricas com a instituição, bem como aos contatos da doadora com os dirigentes da Fundação.9 Embora não fosse uma instituição arquivística, a FGV concor-dou em criar um centro de pesquisa e docu-mentação para abrigar o acervo, o Centro de Pesquisa e Documentação de História Con-temporânea do Brasil (CPDOC), que seria di-rigido pela filha de Alzira, a socióloga Celi-na Vargas do Amaral Peixoto.

A idéia era que, a partir da doação do arquivo de Vargas e tendo à frente sua ne-ta, o Centro conseguiria atrair arquivos de ex-ministros e colaboradores, permitindo constituir um acervo que alimentasse novas análises sobre a história recente do Brasil. Isso de fato ocorreu. Vários arquivos foram

doados à FGV nos anos seguintes, e as pes-quisas iniciadas nesse acervo deram origem a uma vasta produção acadêmica. O Centro tornou-se referência para pesquisadores in-teressados na história recente do país e, ao mesmo tempo, ganhou respeitabilidade jun-to à elite política, sendo visto como destino almejado para o arquivo pessoal de muitos homens públicos. Por outro lado, a criação e a trajetória do CPDOC mudaram o perfil da FGV, que passou a contar com uma unidade voltada para o campo da história, agregan-do, por sua vez, ao seu capital institucional, o diferencial de preservar “bens públicos” de valor para a memória nacional.

Dessa brevíssima história, importa re-ter o fato de que o arquivo Getulio Vargas, por iniciativa de suas herdeiras, tornou-se o germe de um projeto institucional duradou-ro. Nesse caso, a doação e a organização do arquivo não serviram apenas à pesquisa acadêmica, mas constituíram a base de uma série de projetos editoriais e de divulgação histórica, que alimentaram o capital insti-tucional do Centro e o capital, acadêmico e social, dos agentes envolvidos nessas ini-ciativas. Nesse mesmo movimento, o capital simbólico do arquivo e do próprio persona-gem era atualizado.10

Mas há casos, também, em que o acervo de um dado personagem é a razão de ser da criação de uma instituição. Aqui, não se tra-ta de acomodar registros documentais a um espaço já existente – seja integrando-o a um acervo maior, seja criando um ambiente novo para abrigá-lo dentro de uma estrutura insti-tucional anterior – mas de fundar uma ins-tituição cuja missão será preservar e valori-zar o “legado” do personagem. Nesses casos,

9. Para uma análise do processo de doação do arquivo à FGV ver Nedel (2010).

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é bom frisar, a existência de um acervo é con-dição fundamental para o sucesso do projeto, e entre os acervos que podem evocar a traje-tória de um indivíduo – fotografias oriundas de agências de publicidade ou de imprensa, recortes de jornais, coleções de documentos doados por terceiros - o arquivo pessoal ocu-pa um lugar de destaque. Quanto mais “origi-nal”, “único” e “pessoal” o acervo, mais fortes os argumentos que justificam a sua preserva-ção, organização e acesso.

O exemplo da Fundação Mário Covas (FMC), inaugurada em abril de 2001, um ano após a sua morte, pode ser interessante para pensarmos tanto nas vicissitudes que podem marcar a constituição de um arqui-vo pessoal como no lugar de destaque que ele assume em projetos memoriais. Criada por meio de doações de mais de mil pesso-as físicas e jurídicas, a FMC tem como pa-trimônio o arquivo de Covas e outros docu-mentos doados por terceiros, como fitas de vídeo, fotos e objetos. Sua missão é: “Con-tribuir para a valorização da cidadania, pa-ra o aperfeiçoamento da gestão pública se-gundo os princípios da inovação, da ética e da probidade administrativa, estimular e apoiar iniciativas de ação comunitária e di-fundir o ideário de Mario Covas para as no-vas gerações”.11 A Fundação tem, portanto, dimensão memorial e política, pretenden-do atuar como gestora do legado de Covas

e como uma escola de governo. Na verda-de, essas dimensões se informam reciproca-mente: o legado, consubstanciado no acer-vo, ao preservar a memória de Covas, con-fere legitimidade à escola que propaga o seu ideário, enquanto essa última atualiza e dis-semina a trajetória do homem público, res-significando a sua memória.

Um dos eixos da Fundação é o seu Cen-tro de Memória, instalado em 2007, a par-tir da execução do projeto “Cultura, Políti-ca e Cidadania – organização da memória Covas”, que contou com apoio da Lei Rou-anet. Além de organizar e tornar disponí-vel o arquivo Mario Covas, o Centro de Me-mória tem como metas desenvolver projetos culturais e educativos, montar exposições, e incentivar ações que visem à preservação de acervos relevantes para a história brasileira.

A memória de Covas, imediatamente após sua morte, foi investida por parte de seus antigos colaboradores (secretários de governo, assessores, secretários particula-res) do capital associado à noção de “lega-do”, cuja preservação deveria ser garanti-da mediante a mobilização de recursos e a execução de projetos, o mais importante de-les sendo a criação da própria Fundação. No entanto, vale a pena investir um pouco na história do arquivo Mario Covas.

O grupo que se articulava em torno do governador, antes do agravamento da sua

10. Para ficar apenas nas exposições realizadas pelo CPDOC em torno da figura de Vargas, que contaram com a sua curadoria ou consultoria histórica, há que mencionar: A Revolução de 30 (1980), Revolução de 32, a fotografia e a política (1982), Getúlio Vargas, 1983 (pelo centenário de nascimento de Vargas), Es-tado Novo: a construção de uma imagem (1997), Getúlio Vargas (exposição permanente no Memorial Ge-túlio Vargas, em Volta Redonda, 1999), Eu, Getúlio (consultoria histórica, 1999), Volta Redonda, uma de-cisão política (exposição permanente no Memorial Getúlio Vargas, em Volta Redonda, 2001) e as mais re-centes, montadas no cinqüentenário do suicídio, em 2004, Getúlio – Presidente do Brasil (curadoria, no Museu da República) e Getúlio e o Rio (curadoria iconográfica, no Memorial Getúlio Vargas, no Rio de Ja-neiro).11. Cf. http://www.fundacaomariocovas.org.br/ (acesso em 14/5/2011).

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doença e de sua morte, trabalhava com vis-tas à candidatura de Covas à Presidência da República. Como ele próprio nunca ha-via se preocupado em acumular documen-tos, sua assessoria política trabalhava en-tão para constituir um arquivo que cobrisse toda a sua trajetória, desde a vereança em Santos. Um setor especialmente organiza-do no Palácio dos Bandeirantes se ocupa-va de pesquisar, localizar e reproduzir do-cumentos que estivessem arquivados em órgãos públicos ou guardados com tercei-ros. A idéia era criar uma “memória polí-tica” que pudesse ser mobilizada em uma futura campanha presidencial. A morte de Covas frustrou as expectativas desse grupo que, no entanto, conseguiu operar a con-versão do projeto político-partidário em projeto “político-memorialístico”: o que era um acervo dotado de “valor político” para a disputa eleitoral tornou-se um acervo dota-do de “valor histórico”.

Não se deve perder de vista que os in-vestimentos na memória - projetos institu-cionais, comemorações, homenagens -, vi-sam ancorar no passado as posições que os protagonistas desses investimentos ocupam no presente ou pretendem ocupar no futu-ro, sejam eles os próprios titulares ou não. O acervo documental reunido pela assesso-ria de Covas foi convertido em arquivo pes-soal de modo a valorizar a documentação e

reforçar as justificativas para a sua preser-vação. O fato do arquivo não ter sido acu-mulado pelo próprio titular – critério essen-cial para a identificação do conjunto como “arquivo pessoal” – foi apagado. A morte de Covas dignificou o acervo, e sua institu-cionalização, aos olhos de seus colaborado-res, tornou-se a melhor forma de preservar o seu legado e de dar continuidade ao pro-jeto político que ele havia capitaneado.

Se, nos dois casos citados, Vargas e Co-vas, a criação de espaços memoriais foi protagonizada por herdeiros, nos dois ca-sos a seguir os projetos institucionais foram concebidos e iniciados pelos próprios titu-lares, que assumiram, eles próprios, o dis-curso do “legado”.

4 Fernando henrique Cardoso e o iFhC

No caso de Fernando Henrique Cardo-so, a criação de um instituto para abrigar o seu acervo, bem como a publicação de li-vros analisando a sua trajetória política fo-ram tarefas que o ex-presidente assumiu pessoalmente.12 O Instituto Fernando Hen-rique Cardoso (iFHC) é o seu projeto desde que deixou a Presidência da República. Na realidade, o projeto teve início bem antes, durante seu primeiro mandato como presi-dente, quando o destino de seu arquivo co-meçou a preocupá-lo.13 Data de 1996 a rea-

12. Apenas três anos após deixar a Presidência, FHC publicou um livro de mais de 600 páginas, A arte da po-lítica: a história que vivi, além de The accidental President of Brazil: a memoir, publicado apenas nos Estados Unidos, com prefácio de Bill Clinton, e Cartas a um jovem político: para construir um país melhor.13. Os acervos de presidentes da República, desde 1991, são objeto da Lei n. 8.394, que “dispõe sobre a preservação, organização e proteção dos acervos documentais privados dos presidentes da República e dá outras providências”. Segundo esse dispositivo legal, tais acervos são considerados de interesse público, o que, na prática, significa que, em caso de venda, a União deve ter prioridade na compra, e que os acervos não podem ser alienados para o exterior sem manifestação expressa da União. Ainda que incentive a pre-servação e disponibilização desses acervos, não há nenhuma menção à criação de instituições voltadas pa-ra sua guarda. A decisão sobre o destino de tais acervos permanece como responsabilidade dos titulares ou seus herdeiros legais.

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lização de uma pesquisa ampla cujo objeti-vo era subsidiar a decisão quanto ao forma-to que deveria assumir a instituição que iria abrigá-lo (HEYMANN, 2009). Por indicação do então presidente, a assessora do gabinete da Secretaria Geral da Presidência da Repú-blica visitou instituições brasileiras detento-ras de arquivos de ex-presidentes e institui-ções estrangeiras.14 A viagem internacional teve como primeiro destino os Estados Uni-dos e as bibliotecas presidenciais (John F. Kennedy, em Boston; Lyndon B. Johnson, em Austin; Jimmy Carter, em Atlanta; Ge-orge Bush, pai, em College Station, no Te-xas, e Ronald Reagan, em Simi Valley, na Califórnia), depois a França, onde o Arqui-vo Nacional e o Instituto François Mitterand foram visitados e, por último, Portugal e a Fundação Mário Soares (FMS), considerada a melhor alternativa.

Segundo Fernando Henrique, a Funda-ção Mário Soares pareceu mais apropria-da como modelo de instituição do ponto de vista de suas dimensões, menores e mais adaptadas à realidade brasileira se compa-radas às das bibliotecas presidenciais nor-te-americanas, verdadeiros monumentos, aonde “eles guardam tudo” (HEYMANN, 2009, p. 57). Além disso, seu perfil pare-cia adequar-se perfeitamente aos propósi-tos de Fernando Henrique: a Fundação Má-rio Soares, mais do que um lugar de memó-ria, um centro de documentação, é um es-paço de debate sobre temas contemporâne-os, um think tank por meio do qual Mário Soares mantém-se presente na cena pública

de seu país. Pode-se imaginar, ainda, que a projeção de uma identidade com o estadis-ta cuja trajetória se confunde com a con-solidação da democracia portuguesa e com quem Fernando Henrique escreveu O mun-do em português: um diálogo possa ter exer-cido influência na decisão de tomar a Fun-dação Mário Soares como parâmetro para a criação do Instituto.

A inauguração do IFHC ocorreu em 22 de maio de 2004, em um seminário inter-nacional que reuniu políticos e intelectu-ais nacionais e estrangeiros, entre os quais Bill Clinton e Manuel Castells. As palavras de Fernando Henrique confirmam a opção por um perfil “duplo”: “Quis que ele fos-se não só um centro de memória históri-ca, mas também um lugar de debates sobre a democracia e o desenvolvimento, duas causas com as quais estive envolvido des-de muito cedo. Desempenhando um ou ou-tro papel, a missão do Instituto para mim é uma só: contribuir para ampliar a compre-ensão e disseminar conhecimento sobre o país e seus desafios, com os olhos abertos para o mundo.”15

Sem pretender analisar o acervo FHC, bastante rico e complexo, gostaria de cha-mar atenção para um único ponto. A orga-nização do arquivo dividiu a documentação em três grandes conjuntos: período pré-pre-sidencial, período presidencial e período pós-presidencial. Essa “ordem”, reproduzida no Guia dos Arquivos disponível no site do iFHC, coloca como centro de sua atuação a Presidência da República, produzindo a im-

14. No Brasil, foram visitadas a Fundação José Sarney, no Maranhão; o Memorial Juscelino Kubitschek, em Brasília, que, à época, não continha o acervo documental do ex-presidente, mas apenas seu túmulo e uma pequena exposição; o CPDOC, o Museu da República e o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), no Rio de Janeiro. (Cf. Entrevista de Danielle Ardaillon concedida à autora em 12/01/2007).15. Cf. http://www.ifhc.org.br/index.php?module=conteudo&class=fixo&event=ver&id_conteudo=8 (acesso em 14/5/2011).

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pressão de que tudo o que vem antes é uma preparação para esse momento. Essa classi-ficação, que é também uma forma de nar-rar a vida do titular, produz uma linearida-de que sabemos construída ex post facto. Ao produzir esse ordenamento, a classificação dota a narrativa de um sentido dado des-de o início, assemelhando-se à estrutura do discurso hagiográfico, analisado por Certe-au (2002, p. 273): “Enquanto que a biogra-fia visa colocar uma evolução e, portanto, as diferenças, a hagiografia postula que tu-do é dado na origem com uma “vocação”, com uma “eleição” ou como nas vidas da Antiguidade, com um ethos inicial.”

Se os perigos associados à “ilusão bio-gráfica” (BOURDIEU, 1989), à lógica de ra-cionalização das trajetórias de vida, há tem-pos coloca questionamentos aos estudos que, no campo das ciências sociais, traba-lham com autobiografias e biografias, tais críticas muitas vezes não alcançam os ar-quivos pessoais e seus enquadramentos. Talvez por força das associações que ainda prevalecem entre arquivo e vestígio do pas-sado, por força de um olhar que, em algu-ma medida, naturaliza a fonte documental - ainda que critique o documento seguindo os cânones da disciplina histórica – não se observa, de maneira geral, atenção ao tipo de narrativa tácita que os arquivos pesso-ais podem construir e que as divisões do ar-quivo Fernando Henrique tão bem expressa.

Além do arquivo do ex-presidente, o acervo compreende, ainda, o arquivo pes-soal de Ruth Cardoso (1930-2008) e docu-mentos do arquivo de Sergio Motta, minis-

tro das Comunicações de janeiro de 1995 até seu falecimento, em abril de 1998. O desejo de Fernando Henrique, expresso no site do Instituto, é incorporar arquivos e coleções documentais de pessoas que compuseram seus dois governos (1995-2002).16 Com es-sas aquisições, naturalmente, o capital insti-tucional do iFHC se ampliaria, consolidan-do-se sua vocação de instituição de guar-da da memória histórica do país. A inten-ção de reunir arquivos de seu período de go-verno pode também ser interpretada como uma tentativa de consolidação de um espaço que, sob a chancela “FHC”, funcionaria co-mo local de referência e identificação de um determinado grupo político. Não se pode es-quecer que o Instituto é o projeto de Fernan-do Henrique hoje. Com uma intensa progra-mação de debates sobre temas da atualida-de brasileira, latino-americana e internacio-nal, o iFHC atualiza a presença do ex-presi-dente na cena pública, e a reunião de acer-vos de outros personagens de destaque sob a égide do Instituto só faria aumentar o ca-pital da instituição e o capital social de seu fundador.17

Instituições criadas para preservar a me-mória têm sempre caráter político, na medi-da em que a memória é instrumento capaz de criar identidades, de produzir um discur-so sobre o passado e projetar perspectivas para o futuro. A memória confere legitimi-dade ao projeto institucional e aos agentes que a ele se dedicam. Para além dessa di-mensão, o iFHC – assim como a Fundação Mario Covas - visa, explicitamente, à inter-venção no campo da política. Nesse senti-

16. Cf. http://www.ifhc.org.br/index.php?module=conteudo&class=fixo&event=ver&id_conteudo=564 (acesso em 14/5/2011).17. A relação de debates realizados no iFHC está disponível na site do Instituto, sendo possível verificar a diversidade de temáticas e o grande número de palestrantes convidados. Cf. http://www.ifhc.org.br/index.php?module=conteudo&class=debate (acesso em 15/5/2001).

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do, o patrimônio que se encontra sob sua guarda atua como lastro, qualificando, de maneira simbólica e material, o empreendi-mento institucional.

Um último projeto será mencionado nes-sa breve reflexão. Nesse caso, foi a proximi-dade da morte e o desejo de ultrapassar a fi-nitude e o esquecimento que ela encerra que impulsionaram o projeto memorial.

5 darcy ribeiro e a FUNdar

A Fundação Darcy Ribeiro (FUNDAR) foi oficialmente instituída em janeiro de 1996, cerca de um ano antes da morte de seu fundador, mas tem uma história que começa alguns anos antes, quando Darcy Ribeiro, ao saber que estava gravemen-te doente, decide criar uma instituição ca-paz de dar continuidade ao trabalho que vi-nha desenvolvendo. A Fundação deveria se concentrar na execução de projetos que vi-sassem os seguintes objetivos: a solidarie-dade aos povos indígenas e caboclos brasi-leiros; a defesa da Amazônia e do Pantanal; o desenvolvimento artístico do país; o pla-nejamento e implantação de universidades, bem como a reforma das já existentes; a re-novação da rede pública de ensino, a elabo-ração de currículos e a produção de filmes educativos para 1º. e 2º. graus; a promoção de ensino à distância e, finalmente, a reedi-ção das obras de Darcy Ribeiro.

O projeto da Fundação parecia estar cen-trado na continuidade do “legado” político--ideológico de Darcy, como atesta de forma clara um documento de seu arquivo pessoal:

Quando me sugeriram criar uma Fundação com meu nome, a idéia me deu medo de es-

tar fazendo nascer mais uma instituição ve-tusta: Fundação Getúlio Vargas, Fundação Roberto Marinho. A minha seria uma po-bre fundaçãozinha Zé da Silva, sem poder e sem dinheiro para crescer e florescer. Qual seria o seu propósito? Louvar-me, dizendo que eu fui bonito e inteligente? Gosto mui-to de elogios, mas não tanto que me dis-ponha a criar uma máquina de elogiar, co-mo aquelas que os monges do Himalaia têm para rezar pedalando. Acabei caindo em mim de que precisava mesmo criar a tal Fundação Darcy Ribeiro – FUNDAR. Tenho mesmo que transferir a al-guém ou a alguma instituição tarefas que, bem ou mal, eu venho cumprindo a vida in-teira e que, sem mim aí para cuidar delas, fi-cariam aos azares do acaso. (...)18

A análise das minutas de estatuto da Fundação indica que, durante a fase de pla-nejamento, o patrimônio da instituição foi sendo ampliado, passando a abarcar – além dos direitos autorais das obras de Darcy – sua biblioteca, objetos de arte e móveis. A inclusão dos direitos autorais das obras de sua primeira mulher, a antropóloga Berta Gleiser Ribeiro, bem como de sua bibliote-ca e outros bens móveis, foi feita à mão em uma das versões do documento, sinalizando que a idéia de uma instituição que abrigasse o acervo dos dois foi sendo formatada com o tempo. A menção explícita aos arquivos de Darcy e Berta Ribeiro, a serem instalados na sede da Fundação “para uso acadêmico”, aparece pela primeira vez em uma versão do estatuto de 1995.

Chama atenção o fato do arquivo pesso-al de Darcy não aparecer nos primórdios do

18. Esse documento, sem data, integra o dossiê “FUNDAR” do Arquivo Darcy Ribeiro. A pesquisa no ar-quivo foi realizada no contexto da elaboração de minha tese de doutorado, “De arquivo pessoal a patri-mônio nacional: reflexões acerca da construção social do ‘legado’ de Darcy Ribeiro”.

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projeto institucional, voltado para a reedi-ção de suas obras e para o desenvolvimen-to de projetos. O mesmo não acontecia, po-rém, com sua biblioteca que, a seus olhos, tinha grande importância: por meio de seus 20 mil livros Darcy considerava que se-ria possível reconstituir os caminhos da sua formação. Essa perspectiva explicaria o de-sejo, várias vezes declarado, de que sua bi-blioteca não fosse desmembrada após a sua morte, bem como as démarches para com-prar os volumes que estariam faltando pa-ra torná-la completa e fiel às suas referên-cias teóricas.19

A despeito de definir-se como ‘homem de ação’, Darcy lamentava não ser reconhe-cido como intelectual e homem de idéias: ‘Temo muito ser recordado no futuro mais por meus empreendimentos que por minhas idéias, o que será uma injustiça’ (RIBEIRO, 1997, p. 521). Nesse trecho, escrito em 1996, quando a proximidade da morte o motivara, também, a escrever um livro de memórias, fica clara a preocupação com a forma como seria lembrado e o desejo de ser reconhecido como intelectual. Mais do que isso, Darcy expressa o sentimento de impotência na de-finição da memória que seu nome evocaria quando ele não mais pudesse assumir o pro-tagonismo de sua própria interpretação. A criação da FUNDAR, a escrita de suas me-mórias e o cuidado com sua biblioteca po-dem ser interpretados, nesse contexto, como

tentativas de controlar a imponderabilidade que cerca a interpretação histórica.

Essa preocupação não parece ser prer-rogativa de Darcy. É o próprio Fernando Henrique Cardoso quem a expressa de for-ma clara e contundente: “Talvez seja essa a sensação agônica a pagar por quem se lan-ça na vida pública: o juízo que conta é o da História, e a ele os personagens não assis-tem. Quando a grande mestra dos homens sentencia, o veredicto recai nos mortos.” (CARDOSO, 2006, p. 24). Escrever autobio-grafias e investir em projetos memoriais surgem, nessa perspectiva, como estratégias das quais os homens públicos lançam mão para lidar com a apreensão causada pela in-determinação dos juízos históricos.

Se Darcy Ribeiro, a princípio, não via seus documentos como um acervo dotado de “valor”, o interesse expresso por pesquisa-dores de diversas áreas em consultar a docu-mentação, após a morte do titular, e a pos-siblidade de angariar recursos para o desen-volvimento de projetos que tinham o arqui-vo como objeto deixou claro para os diri-gentes da FUNDAR o capital simbólico asso-ciado ao acervo.20 Eles logo perceberam que, por meio da preservação e disponibilização do arquivo, seria possível não apenas apro-ximar a Fundação da comunidade acadêmi-ca, mas aumentar o capital institucional.

Além de fonte de pesquisa valoriza-da nos campos da história, da antropolo-

19. As informações sobre a visão de Darcy a respeito de sua biblioteca e de seu arquivo nos foram pres-tadas por sua segunda mulher, Claudia Zarvos, em 6/6/2008. Segundo ela, Darcy não vislumbrava no ar-quivo “um valor em si”, ou um patrimônio que pudesse interessar à posteridade.20. A Fundação Darcy Ribeiro assinou dois convênios com o objetivo de prover recursos para a organiza-ção do arquivo: o primeiro com a Faperj, em 2000, e o segundo com a Fundação Cesgranrio, em 2002. Já em 2008, a FUNDAR encaminhou ao Conselho Nacional de Arquivos – CONARQ a solicitação de classifi-cação dos arquivos Darcy e Berta Ribeiro como “arquivos privados de interesse público e social”, obtendo pareceres técnicos favoráveis à classificação. Nesse mesmo ano, um projeto de digitalização dos dois ar-quivos foi encaminhado ao BNDES para concorrer a um edital voltado para a área de acervos, tendo sido contemplado.

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gia e da educação, o arquivo tem alimenta-do uma série de projetos desenvolvidos pe-la FUNDAR nos últimos anos. Na linha edi-torial, a Fundação propôs a publicação de mais de uma dezena de livros com base no material dos acervos de Darcy e Berta. Al-guns são projetos do próprio titular, como os quatro volumes de Os Cronistas France-ses, projeto iniciado nos anos 1980, cujos originais encontram-se no arquivo e que, após diversas tentativas, foram publicados em 2009.21 Há propostas, ainda, para a pu-blicação de coletâneas de documentos - au-las, cartas do exílio, prefácios que Darcy escreveu para inúmeras publicações, arti-gos e diários de campo inéditos – deixan-do entrever o potencial do arquivo para a geração de produtos que atualizam o “lega-do” de Darcy ao mesmo tempo em que im-pulsionam e dão visibilidade ao acervo e à Fundação. Não é demais lembrar que a no-ção de legado alimenta a memória dos mor-tos aos quais se associa, mas a titularidade das ações empreendidas em seus nomes e os dividendos que sejam capazes de produzir pertencem aos vivos.

6 legados contrastivos

Darcy escreveu as suas Confissões, cien-te de que a morte se aproximava, para sa-ber e sentir como chegou a ser o que era, buscando comover os seus leitores. (RIBEI-RO, 1997, p. 11). Fernando Henrique escre-veu Arte da política: a história que vivi, ao deixar a Presidência, mas planejando man-ter-se na cena pública, para explicar ao lei-

tor a sua atuação, mostrando-lhe “a com-plexidade, a rugosidade do real”. (CARDO-SO, 2006, p.13). A distância de propósitos – “comover” e “explicar” - e estilos entre os dois livros é enorme, bem como a nature-za dos dois acervos e das instituições que os abrigam, para não falar em trajetórias e es-tilos políticos. Não é nossa intenção, para finalizar esse artigo, comparar os dois pro-jetos memoriais, mas apenas sugerir que as imagens projetadas por seus titulares para si próprios contaminam e informam as visões de “legado” alimentadas por suas institui-ções de memória. As identidades da FUN-DAR e do iFHC incorporam e reproduzem as personas de seus fundadores, colocando li-mites à associação tradicional entre institu-cionalização e impessoalidade.

Nas palavras de Paulo Ribeiro, sobrinho de Darcy e atual presidente da FUNDAR, o tio teria planejado a Fundação com a idéia de aglutinar um grupo de pessoas que ele considerava capazes de dar continuidade às suas “lutas”. Ao comentar as suas motiva-ções, Paulo assim se expressa:

Darcy tinha uma preocupação permanente, o tempo todo ele falava assim: ‘Quantos mul-tiplicadores eu vou deixar? Eu estou multi-plicando uma luta que foi de Anísio [Teixei-ra]; eu sou um dos multiplicadores da idéia de [Cândido Mariano da Silva] Rondon, e quem é que vai continuar essa luta? Quantos eu vou deixar?’22

Para Paulo Ribeiro, para fazer jus ao projeto de Darcy, a FUNDAR deve reunir pessoas que, tendo trabalhado com ele, ten-

21. O primeiro volume da coleção Os Franceses no Brasil foi publicado em setembro de 2009, sob o títu-lo Nicolas Durand de Villegagnon e outros (1542-1569):correspondência. (http://finsdetardespoeticas.blogspot.com/2009/09/fundacao-darcy-ribeiro-lanca-colecao-os.html. Acesso em 10/02/2011).22. Entrevista de Paulo Ribeiro concedida à autora em 27/05/2008.

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do participado de seus projetos, permanece-ram, de alguma forma, imbuídas das suas idéias. Essa imagem nos dá acesso a uma di-mensão importante da cultura institucional da FUNDAR: a mesma “paixão” exigida pa-ra trabalhar com Darcy, uma paixão que ti-nha nele a sua origem e que “contaminava” aqueles que participavam de seus projetos, continua a ser exigida, hoje, de quem traba-lha na Fundação.

Eu acho que pelo menos o sonho da uto-pia está vivo aqui dentro. E as pessoas que trabalham aqui, se não tiverem tesão e pai-xão não conseguem trabalhar. (...) Eu falo que é paixão. A nossa missão é a educação? Não. Nós temos uma paixão pela educação e compromisso histórico com isso. E o exem-plo dele, vivo, extremamente vivo. Todo dia ele é lembrado aqui, dezenas de vezes ele é lembrado. ‘E aquele projeto, você lembra que ele falou isso?’

A “presença” de Darcy na FUNDAR, sua constante lembrança, mais do que sim-ples fonte de inspiração, parece confor-mar o ambiente de uma instituição na qual a singularidade de Darcy, a sua “genialida-de”, é relembrada e reconhecida cotidiana-mente.23 A sua “presença” alimenta um am-biente institucional que se define na chave da paixão: a paixão que Darcy devotava a seus projetos e que caracterizou a sua ima-gem e o seu padrão de atuação pública con-tinua a impulsionar a sua Fundação, pois constitui parte do seu “legado”. Darcy mol-

dou a FUNDAR à sua semelhança, trans-feriu-lhe as suas tarefas, e até hoje parece prevalecer a lealdade a essa marca original, o que significa tanto uma agenda como um estilo de trabalho.

A Fundação reúne antigos colaborado-res, que lembram Darcy “todo dia”, que são movidos pelas suas paixões e buscam recu-perar os seus projetos. A partir do momen-to em que a morte fecha definitivamente o leque dos possíveis modos de expressão da sua personalidade, a memória de Darcy se torna lição, diretriz, pois tudo o que ele dis-se e fez tem a sua marca, e deve ser conti-nuado. Há, portanto, uma “literalidade” no legado de Darcy, tal como ele é vivenciado na FUNDAR.

O depoimento de Paulo Ribeiro revela um padrão de institucionalização que carre-ga uma forte dose de afetividade: a dimen-são pública do empreendimento, nesse caso, não garante impessoalidade. Ao contrário, a FUNDAR, além de não poder ser “vetus-ta” sob o risco de trair o seu fundador, tem muito, até hoje, de familiar, de pessoal, ca-racterísticas que são reforçadas pelo fato de funcionar em uma casa cercada de árvores, em Santa Teresa, cujas paredes são cober-tas pela biblioteca de Darcy e Berta Ribei-ro, e cujo salão é composto de móveis, qua-dros e várias peças de cultura popular que pertenceram a Darcy. Seu retrato, sorrindo em uma foto de grandes dimensões, parece recepcionar o visitante. Não há tratamen-to musealizado do ambiente, vitrines ou le-

23. Na entrevista, Paulo menciona a singularidade intelectual do tio, aproximando-a do atributo da ousa-dia, entendida tanto como falta de limite à imaginação sociológica como no sentido da coragem de en-frentar os padrões acadêmicos: “No Brasil, não teve nenhum intelectual – é lógico que vários serviram de alicerce a ele – com tamanha ousadia. ‘Eu vou explicar para o mundo inteiro por que o mundo é tal co-mo é.’ E ele explica a humanidade inteira. Depois, explica o que aconteceu com a América Latina (...) e de-pois explica o Brasil: por que nós estamos nessa situação. Não teve ninguém, nenhum intelectual – eu não conheço –, que teve essa ousadia, não é?.(...) Porque a crítica, dentro da área acadêmica, é muito grande.”

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gendas que identifiquem ou contextualizem as peças. Tudo está disposto como se o dono da casa pudesse chegar a qualquer momen-to. Essa pessoalidade tem efeitos na gestão e nos usos dos documentos do arquivo, vistos mais como fonte de inspiração para a atua-ção da Fundação do que como material de natureza histórica.

Nesse ponto, pode ser sugestivo lançar mão das reflexões do historiador Stephen Greenblatt (1991) a respeito de dois mo-dos distintos de exibição das obras de arte – uma centrada na ressonância e outra no “maravilhamento” (wonder) – para, a par-tir daí, propor duas formas distintas de re-presentação institucional dos legados. Pa-ra Greenblatt, a idéia de ressonância está li-gada a uma forma de exibição dos objetos que evoca o universo mais amplo de rela-ções sociais e de forças culturais das quais o objeto teria emergido e em relação às quais, no contexto de exibição, ele seria o repre-sentante. Por “maravilhamento”, o autor pretende designar a modalidade de apresen-tação que mantém o expectador focado no objeto, restrito aos seus limites, com o obje-tivo de produzir um sentido de singularida-de e de encantamento. No primeiro caso, a idéia é provocar no expectador a consciên-cia da construção histórica e culturalmente contingente dos objetos, é chamar atenção para os processos de negociação e escolha que resultaram nas práticas representacio-nais em exibição; no segundo, a força esta-ria centrada no poder visual de cada obra, na exaltação do seu carisma e da geniali-dade artística do seu criador. A ressonân-cia dá acesso a toda uma época e todo um contexto no qual o objeto foi criado; o “ma-ravilhamento” mantém o expectador focado unicamente no objeto.

Essa distinção pode ser interessante pa-ra pensar em diferentes modos de represen-

tar os legados e, por conseguinte, em dife-rentes culturas de instituições a eles dedica-das. Levando em consideração que todo in-vestimento na construção de um legado se-gue um padrão geral que confere protago-nismo à ação do personagem ao qual se as-socia, ou seja, partindo da premissa de que existe sempre uma centralidade atribuída à sua trajetória, seria possível distinguir for-mas diferentes de evocação da memória. No caso de Darcy Ribeiro, a ênfase está no self, no gesto criador, na singularidade. É o cará-ter excepcional do personagem, a sua “pai-xão” que ocupa a cena, havendo pouco es-paço para o contexto e para as contingên-cias. Darcy era e continua sendo represen-tado como a fonte de onde emana a energia que impulsiona os seus seguidores, é o “ma-ravilhamento”, a admiração, que alimenta o seu legado.

No caso de outros personagens que cria-ram uma instituição para abrigar o seu acer-vo, ou que foram objeto desse tipo de inves-timento, ainda que haja sempre a constru-ção de um protagonismo, a ênfase pode es-tar mais no contexto, nos vínculos sociais e na historicidade da ação. Fernando Hen-rique Cardoso, por exemplo, ao construir a sua imagem como estadista – e não como gênio – parece apontar diretamente para o contexto, para as condições dadas pela sua época, para a capacidade de negociação e de articulação que o distinguiria como ho-mem público. Por meio de Fernando Henri-que e de seu arquivo é a conjuntura e o con-texto que se descortinam.

O desejo do ex-presidente, de incorpo-rar ao acervo do iFHC arquivos e coleções de políticos que participaram da vida públi-ca brasileira entre 1995 e 2002 também si-naliza para uma ênfase no contexto, para a “complementaridade” que existiria entre esses acervos. O “modelo” do CPDOC, ins-

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tituição que reuniu um importante acervo de arquivos pessoais de homens públicos e se constituiu em referência nacional para o estudo da “Era Vargas”, pode estar no ho-rizonte de Fernando Henrique. Dentro des-sa modesta tipologia, o CPDOC poderia ser visto também como um “lugar de memória” que aciona a ressonância: o arquivo de Var-gas sempre foi representado como ponto de partida para um acervo maior, que lhe seria complementar e por meio do qual seria pos-sível aceder ao contexto político-social bra-sileiro dos anos 1930-1950.

Um passeio pelo Instituto Fernando Hen-rique Cardoso, localizado no Edifício CGI- Esplanada, no vale do Anhangabaú, no cen-tro de São Paulo, onde ocupa um andar e dois subsolos revela, em primeiro lugar, o investimento substantivo na elegante e só-bria decoração do espaço dedicado às ativi-dades da instituição e na infra-estrutura das áreas de armazenamento, dotadas de exce-lentes condições de preservação documen-tal. Na área social do Instituto, vitrines com documentos e peças tridimensionais, perfei-tamente identificadas por legendas e placas, sinalizam o “valor histórico” do acervo que é ali custodiado.

Os objetos acumulados pelo ex-presi-dente – sobretudo cartas recebidas de perso-nalidades nacionais e internacionais e pre-sentes ganhos de chefes de Estado em via-gens oficiais – funcionam como os “semió-foros” analisados por Pomian (1984), ou se-ja, objetos que, tendo perdido seu valor de uso, foram dotados de valor simbólico e fa-zem a mediação entre o mundo “visível” e o “invisível”. As peças expostas no iFHC re-

alizam o intercâmbio entre o expectador e duas dimensões do “invisível”, um tempo passado e as esferas de poder. O que as pe-ças cuidadosamente exibidas atestam, antes de qualquer coisa, é o prestígio de Fernando Henrique, suas relações pessoais, sua pró-pria condição de “semióforo” por meio do qual se pode aceder a várias dimensões da história e da memória nacionais.24

Uma comparação entre o iFHC e a FUN-DAR teria que levar em conta diferenças or-ganizacionais e orçamentária que separam as duas instituições, bem como o fato do iFHC contar, ainda, com o prestígio de seu instituidor, que trabalha na sede do Insti-tuto e congrega um grupo de colaborado-res, entre os quais vários empresários, que ajudam a levantar fundos para a instituição. Assumir uma perspectiva de análise compa-rativa exigiria um investimento que não te-mos a pretensão de realizar. No momento, interessa-nos apenas apontar para um con-traste entre as duas instituições capaz de iluminar distintas perspectivas que atuam na gestão e na representação desses dois le-gados pessoais.

Evidentemente, esse contraste deve ser matizado: o acervo de Darcy Ribeiro permi-te restituir contextos políticos e intelectuais mais amplos, e o acervo de Fernando Henri-que constrói a sua centralidade em momen-tos importantes da história brasileira. Esta-mos querendo chamar atenção, no entanto, para ênfases distintas, para formas de repre-sentar os legados que reforçam, em um caso, a “excepcionalidade”, mantendo o foco no objeto único do qual emana a força criado-ra; em outro, a “excelência”, garantidora da

24. Pomian (1984, p. 74) sugere que reis, imperadores, o papa ou o presidente de uma república são, eles próprios, “homens-semióforos”, cujo papel é representar o invisível: “Em geral, quanto mais alto se está situado na hierarquia dos representantes do invisível, maior é o número de semióforos de que se está ro-deado e maior também o seu valor.”

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Nota Sobre a aUtora

Luciana Quillet Heymann é doutora em Socio-logia pelo IUPERJ, professora da Escola de Ci-ências Sociais e do Programa de Pós-Graduação em História, Política e Bens Culturais (PPHPBC), ambos da FGV. Coordena o Programa de Histó-ria Oral do CPDOC/FGV. Tem desenvolvido suas reflexões no campo da sociologia da memória, da construção social dos acervos, e das políticas memoriais.

capacidade de análise da realidade, de arti-culação e negociação.

Os acervos, como vimos, são objetos centrais de projetos institucionais de dife-rentes formatos e matizes e sua “produção” nos ambientes institucionais nos quais são preservados deve ser levada em considera-ção. Nesse sentido, a cultura e a estrutura institucionais nas quais são construídas – mais do que preservadas – as memórias da elite podem constituir um material rico para pesquisas interessadas nos mecanismos pe-los quais se constrói a grandeza dos homens políticos.

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dossiê

reSUMoA crise financeira recente permite obser-var alguns pontos normalmente não evi-dentes tanto da anatomia quanto da dinâ-mica das sociedades contemporâneas, pondo em relevo a produção de sentido não só sobre a sua atividade econômica, mas também sobre os seus dilemas mais gerais. No presente texto tento demonstrar essa virtualidade empírica e analítica a partir de uma análise cronológica dos im-pactos da crise no Brasil do final do gover-no Lula (2009-10)

PalavraS-ChaveS Sociologia das finanças. Crise financeira. Elites. Guerra cultural.

abStraCt The recent financial crisis allows us to lay eyes over aspects usually not evident in contemporary society’s anatomy and dy-namics, exposing the production of mean-ing not only about its economic activities but also about its more general dilemma. This paper attempts to demonstrate this empiric and analytic virtuality trough a chronological analysis of the crisis im-pacts in Brazil at the end of President Lu-la’s term.

KeywordSSociology of finances. Financial crisis. Elites. Cultural war.

Roberto Grün

AS DISPUTAS E CONVERGÊNCIAS DAS ELITES BRASILEIRAS DIANTE DA CRISE FINANCEIRA DE 2009: CONSEQüÊNCIAS EMPíRICAS E ANALíTICAS*

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1 Introdução

A faceta brasileira da recente crise fi-nanceira internacional permite observar al-guns pontos que normalmente não apare-cem à luz do dia tanto no âmbito da socio-logia das finanças quanto dos estudos mais gerais sobre elites econômicas e políticas. O primeiro deles diz respeito à existência e à capacidade heurística de uma configu-ração que chamo de “campo financeiro”, que engloba não só os mercados financei-ros propriamente ditos, mas também am-plos setores das elites tradicionais e recen-tes. Na normalidade dos últimos anos que antecederam a crise, podíamos justapor o campo financeiro ao campo do poder, tal era a centralidade que a configuração go-zava no Brasil contemporâneo. Subitamen-te, o campo financeiro perdeu o tradicio-nal controle da narrativa sobre a economia e os dilemas do Brasil e essa circunstância fez diminuir consideravelmente sua capaci-dade de enquadrar outros atores, em espe-cial vários ramos do Executivo federal que anteriormente, na linguagem abusada dos mercados, “comiam em suas mãos”. Tan-to para os estudos sociais sobre as finan-ças, quanto para aqueles que se analisam a dinâmica mais geral das elites contempo-râneas, esse caso mostra o caráter funda-mentalmente cultural da dominação finan-ceira ou, da chamada “financeirização” das sociedades atuais. O predomínio financei-ro observado nos últimos anos foi possível graças a uma capacidade de “dizer o Brasil” – instituir as categorias cognitivas através

das quais a sociedade pensa sua história, seu presente, seus problemas e suas possi-bilidades. O travamento momentâneo des-sa situação que nos acostumamos nos últi-mos anos fez calar os sábios tradicionais e habilitar atores que não gozavam de crédi-to junto às elites. Evidentemente, nada nos permite dizer que a mudança na relação de forças seja definitiva ou mesmo durável, mas os eventos em torno da crise financei-ra nos permitem firmar a hipótese acima e abrem uma avenida ao mesmo tempo teóri-ca e empírica para estudos posteriores sobre os dois temas. A dimensão cultural da do-minação econômica é crucial e mesmo ins-tituidora. É através dela que podemos com-preender a dinâmica social da contempora-neidade e, em particular, o sistema de for-ças multidimensional que constitui o cam-po do poder e sua relação com o espaço fi-nanceiro. É assim que pretendo, através de uma primeira análise da cronologia da cri-se financeira no Brasil do final da década de 2000, mostrar essa situação sui generis e o potencial desse encadeamento de eventos em esclarecer pontos talvez pouco explici-tados dos dois espaços analíticos.

2 a crise

Olhando com os olhos do cotidiano, po-demos dizer que a crise financeira que co-meçou no início do segundo semestre de 2008 desafiou o mundo das finanças. Será ele capaz de contê-la e manter sua autono-mia? Os diversos credores dos bancos deve-riam ter seus prejuízos aliviados pela inter-

* Esse artigo foi escrito a partir de pesquisas financiadas pelo CNPq e pela Fapesp. Agradeço o apoio das duas enti-dades. Uma primeira versão do texto foi apresentada na Reunião da Anpocs de 2010, no seminário temático sobre Elites. Agradeço as críticas e sugestões dos participantes daquele evento, aos pareceristas da Revista Pós-Ciências So-ciais e também ao professor Igor Grill pela leitura crítica e sugestões da última versão. Mais uma vez, os jovens pes-quisadores do Nesefi/UFSCar forneceram o estímulo intelectual e pessoal para fazer a análise andar.

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venção estatal ou, ao contrário, os gover-nos deveriam deixar os bancos “quebra-rem” para manter o “moral hazard”1? O di-nheiro gasto foi subtraído de outras possí-veis despesas? Ele será recuperado? O pre-ço pelo qual os bancos combalidos ou seus ativos foram vendidos posteriormente refle-tia o valor justo ou o interesse público? O custo do salvamento do sistema financeiro é maior ou menor do que os benefícios que ele aportou à sociedade? Seria melhor apro-veitar a fraqueza momentânea do sistema e estatizar aquelas instituições, já que o crédi-to, dadas as suas repercussões sobre a eco-nomia e a sociedade, deve ser conceituado como uma função eminentemente social?

O “bom senso” financeiro instituiu uma série de verdades praticamente indiscutí-veis, um senso comum compartilhado na sociedade, sobre como os governos, as em-presas, os indivíduos, as organizações da sociedade civil devem se portar, destacan-do-se um determinado tipo de rigor orça-mentário, que privilegia algumas despesas e formas de cálculo sobre outros. Acima de tudo os Estados devem ter credibilida-de para manter as condições de rolar a dívi-da pública: os credores financeiros do Esta-do, aqueles que lhe emprestam dinheiro ou simplesmente poderiam fazê-lo, jamais de-vem ter dúvidas sobre a capacidade e dese-jo do Estado em cumprir rigorosa e priori-tariamente as obrigações que com eles con-traíram. A cautela na manutenção de al-tas taxas de juros para os empréstimos pú-blicos que garanta com alguma folga que os investidores continuem emprestando ao

Estado sobrepuja a eventual necessidade de gastos públicos nas diversas aplicações não-financeiras.

O Estado, diante da necessidade de ar-bitrar a alocação de seus recursos entre pa-gamento e rolagem de sua dívida e políticas públicas renuncia a praticar diversos tipos de política social, de infra-estrutura, de saúde ou de segurança pública, mesmo que os efei-tos negativos dessas omissões terminem cus-tando muito mais aos cofres públicos do que se as despesas fossem efetuadas no momento adequado. O horizonte temporal e a priorida-de máxima são os do repactuamento da dívi-da pública. Levando mais adiante essa idéia--força, os ideólogos das finanças propõem (e executam) o Estado mínimo com o caixa va-zio (GUEX, 2003).

3 o campo financeiro

A resposta às questões pode ser deduzida da formação do campo financeiro no Bra-sil. A lógica dessa construção social vem da constatação contra-intuitiva de que o cam-po financeiro engloba e dá sentido para a ação e forma as sensibilidades das elites na-cionais bem além dos financistas propria-mente ditos (GRÜN, 2005 ). A análise da gê-nese e desenvolvimento das chamadas “fer-ramentas financeiras estratégicas” – aquelas que transformam significativamente o es-paço organizacional em que são aplicadas - especialmente a governança corporativa - abrem a janela desse jogo intrincado e na-da óbvio de competição e cooperação entre os diversos setores das elites, que desembo-

1. Segundo o dicionário econômico de “The Economist”: One of two main sorts of MARKET FAILURE of-ten associated with the provision of INSURANCE. The other is ADVERSE SELECTION. Moral hazard me-ans that people with insurance may take greater risks than they would do without it because they know they are protected, so the insurer may get more claims than it bargained for. (ver ECONOMIST, 2009)

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ca nas inovações financeiras. Elas são tam-bém inovações sociais, que uma vez postas a funcionar serão plataformas para altera-ções importantes nos habitus e nas formas de sociabilidade vigentes no espaço que es-tudamos (GRÜN, 2005 ).

Uma armadilha oblitera a análise da ló-gica de funcionamento e dinâmica de espa-ços como o nosso campo financeiro: é a pres-suposição espontânea de que o seu principal produto é simplesmente a produção de rique-za material ou a sua transferência de uns para outros. Para entender esse espaço precisamos reforçar outro ponto teórico pouco intuitivo: Como quaisquer outros campos, o financei-ro, antes de qualquer coisa, e prioritariamen-te, produz sentido. É esse sentido que permite a acumulação de riquezas e confere legitimi-dade e, portanto, estabilidade, para os ganhos econômicos. E finalmente, a identificação do campo financeiro com o campo do poder é uma boa medida da capacidade de fazer es-praiar esse sentido ali produzido pela socie-dade e assim produzir a hegemonia cultural das finanças, da qual a opulência dos finan-cistas é uma consequência, e não a causa.

Mas como se produz esse sentido? Não é evidente que nossos financistas sejam pro-dutores culturais, nem tampouco que su-as vidas sejam vistas como epopéias dignas de serem glorificadas pelos profissionais da mídia e seguidas pelo resto da população. Muito menos que a intrincada engenharia financeira que se tornou o fundo de comér-cio específico dos financistas nos tempos atuais seja vista como o apogeu das realiza-ções científicas ou intelectuais da humani-dade2. Mas o que está em jogo não é a gla-morização direta do espaço, de seus perso-nagens e de seus feitos e sim a sua capaci-

dade de impor uma maneira de representar a sociedade brasileira, seus problemas, po-tenciais, e, principalmente a própria defini-ção do que é progresso e de como alcan-çá-lo. É por isso que é interessante acom-panhar a história recente daqueles disposi-tivos criados na esfera financeira e a sua di-fusão pela sociedade. Eles embutem os pres-supostos comportamentais da antropologia filosófica que vigora no mundo financei-ro. E a partir da aceitação tácita das mu-danças comportamentais que se dão quando os dispositivos são aceitos, diversos setores da sociedade vão sendo colonizados cogni-tivamente e se acostumando a entender o bom senso da convivência financeira como o senso comum que deve reger a totalidade das relações sociais (GRÜN, 2009a).

4 a guerra cultural e sua cronologia recente

A colonização imposta pela predomi-nância financeira não é, evidentemente, uma via de mão única. Ela convive dina-micamente com outras tendências no seio de um processo de guerra cultural que pro-duz resultantes contingentes que se alteram no tempo e espaço. Apanhamos essa nu-ance através do conceito de “guerra cultu-ral” (GRÜN, 1999). Na operacionalização da idéia na crise é possível traçar diversas cro-nologias. Aqui opto por um sequenciamen-to “curto”, que vai do início de 2003, e do primeiro governo Lula, até meados de 2009, que está mais diretamente ligado a alguns resultados recentes & surpreendentes da cri-se financeira na cena econômica brasileira. No primeiro momento temos uma situação de submissão do senso comum ao bom sen-

2. Ainda que os intelectuais “orgânicos” das finanças tentem, com afinco, afirmar essa realização. Aos meus olhos o melhor exemplo, devidamente traduzido e publicado no Brasil é (BERNSTEIN, 1992; 2007).

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so produzido nos mercados financeiros, no qual o principal marco é a discussão da PEC (proposta de emenda constitucional) 192 de 2003, a chamada PEC do mercado financei-ro, ocasião em que o primeiro governo Lu-la claramente se curvou diante da força cul-tural daquele bom senso (LEONEL, 2003; GRÜN, 2004). Um segundo momento pode ser caracterizado quando, diante da ofensi-va escandalizadora antigovernamental que começa em 2004, observamos uma oscila-ção inesperada, na qual a defesa possível do governo começa a alterar as linhas de for-ça culturais prevalecentes, enfraquecendo a doxa econômica (ALENCAR, 2006; GRÜN, 2008a). Um pouco mais adiante, no mo-mento quente das eleições presidenciais de 2006 mais uma oscilação, que representou o aprofundamento da inflexão do quadro imediatamente anterior (CHICO DE GOIS, 2007; GRÜN, 2008b).

Sustento aqui que a sequência é forte-mente explicativa dos desenvolvimentos que se produziram a partir da crise finan-ceira internacional. Diversas mudanças que surpreenderam o os analistas de “de bom senso”, locutores do senso comum até então prevalecente nos mercados, tiveram a sua semente plantada na sequência de episódios acima e são incompreensíveis sem levar em conta a inflexão de antes da crise. É inte-ressante também notar que os economistas e comentaristas ortodoxos até então consa-grados como donos da verdade econômica sentiram e registraram claramente o golpe anterior que realinhou as linhas de força da disputa simbólica (LAMUCCI, 2006).

5 o internacional e o nacional na domina-ção financeira e na sua contestação

Podemos dar conta fenômeno da domi-nação financeira que impera sobre a socie-

dade brasileira mostrando como ele se rea-liza através da atração de diversos segmen-tos importantes das suas elites para dentro do circuito dos mercados. Talvez o alcance e os mecanismos através dos quais essa inte-gração esteja se efetivando não sejam mui-to claros, pois eles são denunciados na dis-puta política, e realmente se assemelham, a fenômenos já tradicionalmente descritos pe-la literatura. Mas, sustento eu, as diferenças também são importantes, e particularmente para a análise do campo financeiro e da crise recente. Na esfera política, ela é a forma atu-al de realização do alongamento dos circui-tos do poder e de sua legitimação no atual estágio do capitalismo internacional (BOUR-DIEU, 1989). Esse processo é menos eviden-te e é facilmente confundido com a simples cooptação, descrita pela teoria clássica das elites. Entretanto, o seu resultado não é só a incorporação de novos grupos no campo do poder, mas também de diversos interesses e sensibilidades dos recém-chegados e a prin-cipal consequência dessa especificação, que dificilmente poderia ser negligenciada pela análise sociológica, é a alteração e sofisti-cação do modo de dominação prevalecente (BOURDIEU, 1976; GRÜN, 2009a).

Um exemplo central da vitalidade des-se capitalismo “tardio” está justamente no desenvolvimento da governança corporati-va. De início ela era um conjunto de dispo-sitivos engendrados no mercado financei-ro, destinados a fortalecer as posições dos acionistas minoritários das empresas dian-te de seus administradores ou dos acionistas majoritários. Nesse sentido, ela já ensaiava alguma polissemia, pois atraía os diversos operadores de fundos de pensão oriundos do movimento sindical e esses flexionavam o sentido original, conferindo uma dimen-são política e moral mais ampla à “demo-cracia dos acionistas”, que ultrapassa a in-

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tenção original de tornar o mercado de ca-pitais atraente para pequenos investidores e passa a ser uma cruzada pela domesticação do “capitalismo selvagem” (JARDIM, 2007). Posteriormente, ela alarga ainda mais o seu espectro, acrescentando as questões de res-ponsabilidade social e sustentabilidade am-biental. Nessa segunda interação, ela insta-la os “balanços sociais”, discute o “Índice de Sustentabilidade Empresarial” e por esse ca-minho, ela incorpora os líderes de ONGs so-ciais e ambientais, que serão os fiadores e, muitas vezes, também os operadores e das novidades. E nessa nova configuração, mui-tas das preocupações e críticas formuladas por esse grupo de agentes são traduzidas e incorporadas ao mundo empresarial (GRÜN, 2005; BOLTANSKI; CHIAPELLO, 1999).

Ao incorporar as demandas sociais e ambientais através de alguns dos seus por-ta-vozes, a ordem financeira perde a rigidez que muitos lhe atribuem, mas ganha força em dois planos: 1) privando os setores que normalmente se opõem a ela de seus por-ta-vozes já reconhecidos; 2) incorporando parte de suas demandas e assim diminuindo o possível clamor anti-financeiro da popu-lação em geral. É claro que nem tudo “são rosas” no caminho das implantação da go-vernança corporativa no Brasil. Os solavan-cos desse trajeto são percebidos através do acompanhamento da guerra cultural que enunciei acima. A análise da polissemia so-cial que é produzida, ampliando e alteran-do o significado da governança corporativa e demais instrumentos financeiros, podem ser explorados para mostrar as fissuras, li-mites e especificidade da dominação finan-ceira que incide sobre a sociedade brasilei-ra (GRÜN, 2009a). Mas de início, é mais im-portante deixar clara a “força cultural” dos dispositivos financeiros, que produzem e re-forçam as convenções cognitivas que dão

consistência à dominação. Se há uma ma-neira de “fazer coisas com palavras” (AUS-TIN, 1962) na sociedade, na economia e na esfera política, estamos diante dela.

6 os desafios à autonomia do campo

Quando a crise financeira internacional passou a ser manchete obrigatória na im-prensa brasileira, a primeira caracterização, tributária da guerra cultural interna, foi a de criticar e ridicularizar o diagnóstico do Pre-sidente Lula, em especial sua frase dizen-do que seus efeitos sobre a economia nacio-nal não passariam de umas “marolinhas”, que foi repercutido à exaustão (GALHARDO, 2008). Afinal, a crise se anunciava interna-cional e gigantesca e dizer que o Brasil po-deria ser poupado só poderia ser uma pro-funda incompreensão da economia mundial.

Um pouco mais tarde, fomos informa-dos de outras provas inequívocas da baixa compreensão de Lula sobre a situação. Tal-vez a mais expressiva tenha sido a crítica à sua tirada sobre a crise ter sido provoca-da por “gente loira de olhos azuis” (GODOY, 2009b). Outro episódio marcante ocorreu em torno da divulgação de prejuízos subs-tanciais de algumas grandes firmas nacio-nais com derivativos cambiais, causados pelas alterações súbitas nos valores relati-vos das moedas nacionais que a crise pro-vocou, desvalorizando a moeda brasilei-ra depois de um período longo de valoriza-ção em relação ao dólar. Os responsáveis fi-nanceiros das empresas apostavam na con-tinuidade da valorização da moeda brasilei-ra, mas a crise recolocou o papel de “refú-gio de valor em última instância” da mo-eda norte-americana, desvalorizando subi-tamente o Real. E nesse momento aparece mais uma rodada de críticas, dessa vez à sua reprimenda aos empresários que perderam

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nas posições com derivativos cambiais (NI-NIO, 2009). Essa sequência de críticas re-força a pretendida visão rústica que Lula te-ria da cena financeira internacional e mos-traria que os desafios mais recentes ao bom--senso financeiro perpetrados por diversos membros do governo federal não passariam de aventuras irresponsáveis.

No âmbito mais interno do campo fi-nanceiro, corroborando o argumento da sua forma seminal de legitimidade, as perdas das empresas com os papéis cambiais foram atribuídas à falta de boa governança corpo-rativa. A ação individual independente ou desimpedida de alguns executivos finan-ceiros que agiram sem consultar os acionis-tas teria causado o problema. Os financistas das empresas teriam assumido riscos mui-to maiores do que poderiam e os acionis-tas não teriam sido devidamente informa-dos dos níveis de exposição cambial/finan-ceira que as empresas estavam incorrendo. Assim, se a governança corporativa estives-se funcionando como se deve e espera, tais passos comprometedores seriam evitados e as empresas teriam evitado os grandes per-calços que posteriormente foram obrigadas a fazer frente, numa cadeia causal muito mais “sofisticada” do que atribuir o proble-ma (e não “à ganância dos empresários” que teria, segundo Lula, causado as dificuldades (NINIO, 2008; 2009)). É claro que não nos interessa discutir substantivamente a juste-za desses diagnósticos e julgamentos, mas sim a invocação da “boa governança cor-porativa” como critério de conduta empre-sarial legítima no período em que estamos atravessando. Isso sem falar na corolária ri-dicularização da posição de Lula, que não convergia integralmente com a crença en-gendrada no campo.

As dificuldades mais expressivas fo-ram anunciadas pelo grupo Votorantim, pe-

la empresa Aracruz Celulose e pela empre-sa agroindustrial Sadia, todos gigantes in-dustriais de reputação consagrada e muito se especulou sobre outras empresas que teriam enveredado pelo mesmo caminho (VALOR ONLINE, 2008; RIBEIRO, 2009b; FRIEDLAN-DER, 2008). Nas três empresas, operações fi-nanceiras mal sucedidas por causa da súbita reversão de expectativas puseram em xeque a solidez tradicional dos negócios. E o “er-ro” apontado, aceito pelos seus porta-vozes e largamente divulgado na mídia, foi a falta de boa governança corporativa das empre-sas (SALLES, 2009; VIEIRA, 2009b; VIEIRA, 2008a). Dificilmente encontraríamos mani-festações mais expressivas e evidentes da impregnação desse dispositivo financeiro no espaço das discussões econômicas e, portan-to, na cultura econômica brasileira recente.

7 o fantasma do comunismo

Uma vez que a crise foi deflagrada pelos mercados financeiros, parece que ela põe em questão os mecanismos de governan-ça econômica e social que esses últimos de-linearam ou apoiaram. Evidentemente que esse desfecho é possível, mesmo se a análi-se sociológica do espaço das finanças apon-ta que ele não é muito provável. Sem se fiar nas salvaguardas da sociologia, os financis-tas cheiram um perigo, real ou imaginário, e reagem a ele. E aí, no espaço nacional, ve-mos a ação, entre outros, de Gustavo Fran-co (FRANCO, 2008) e Dionísio Dias Carneiro (CARNEIRO, 2008), dois economistas/finan-cistas do núcleo duro do pensamento domi-nante, oriundos do Curso de Economia da PUC/RJ. E o fantasma do comunismo acaba despertando, sob o curioso estímulo cruza-do dos defensores mais ferozes da ordem fi-nanceira precedente e dos seus críticos mais acerbos (ZELENY, 2009; HEFFER, 2008).

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O despertar do velho fantasma não é ape-nas uma curiosidade dos tempos da crise. O espectro do comunismo, em parte provocado ou justificado pela crítica esquerdista mais aguda é utilizado nas disputas econômicas centrais da crise, que dizem respeito à socia-lização dos prejuízos do sistema financeiro e à apropriação dos eventuais lucros produzi-dos nas operações de salvamento e nos mo-mentos posteriores a elas. Como devem ser contabilizados os enormes montantes dis-ponibilizados pelos governos aos agentes fi-nanceiros? Como aporte de capital? Como aquisição dos chamados “ativos podres”, ou “ativos tóxicos?” Como uma injeção provi-sória, contabilizada à parte para não diluir o valor das ações e o patrimônio dos acio-nistas originais das organizações? Como fi-cam as remunerações dos dirigentes das or-ganizações que foram ou serão socorridas pelo Estado? E as remunerações anteriores? Deverão ser devolvidas? Enormes transfe-rências de renda serão realizadas num sen-tido ou noutro, dependendo de quais crité-rios prevalecerem. Mesmo os mais fervoro-sos crentes da racionalidade econômica te-rão de admitir que estamos na era da “con-tabilidade política”. E o fantasma do comu-nismo é uma peça fundamental nas tentati-vas de “passar o mico”: essa expressão que tem origem no jogo infantil e que os finan-cistas usam muito quando se trata de repas-sar os prejuízos de sua ação. A acusação de “comunismo” para a ação pública previ-ne formas de contabilização que desfavore-cem os financistas originais. Nesse contex-to a idéia de objetividade econômica se mos-tra uma fantasia distante. A crise revela que a “racionalidade econômica” é um produ-to intelectual engendrado pelas disputas so-ciais e se altera no mesmo sentido que suas linhas de força, produzindo enquadramen-tos cognitivos específicos, que nos condu-

zem a conferir racionalidade a determinadas proposições e condutas e a refutar outras. E uma das maiores manifestações de força da dominação é a de conferir a verossimilhan-ça de racionalidade para os produtos atuais do campo financeiro (LORDON, 2008). Con-cretamente isso significa induzir a sociedade a esquecer de cobrar dos agentes financeiros os prejuízos coletivos provocados pela der-rocada de diversos grupos e esquemas.

8 os solavancos e a aceleração das dispu-tas no espaço financeiro do brasil

No espaço situado do Brasil, o primeiro momento da crise foi uma verdadeira “ben-ção” para os banqueiros tradicionais, que na situação encontraram boas justificati-vas para avançarem no processo de concen-tração bancária. Reparemos que os críticos do spread bancário – o principal mecanis-mo de remuneração dos bancos – apontam justamente a oligopolização do crédito co-mo a causa estrutural e fundamental para explicar o fato de o Brasil ser o “campeão mundial do spread bancário”: apresentar a maior diferença entre a remuneração dos investidores que aplicam seus capitais nos bancos e a remuneração dos bancos aufe-rida pelos empréstimos propiciados por es-ses aportes (GODOY, 2009). É então que vi-mos, no início da crise, a aquisição das car-teiras de empréstimos dos pequenos bancos pelos bancos maiores com o dinheiro an-tes imobilizado dos depósitos compulsórios recolhidos no Banco Central (NAKAGA-WA, 2008; GRINBAUM, 2008; MARTELLO, 2009). Outro movimento na mesma direção foi o anúncio da fusão entre os Bancos Itaú e Unibanco (FOLHA ONLINE, 2008a), segui-da da esperada “resposta” de outros gigan-tes, como o Banco do Brasil, que se apres-sou em negociar a aquisição da “Nossa Cai-

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xa” (FOLHA ONLINE, 2008b) e um pouco mais cedo, a mídia nos fez tomar nota da fusão entre o Banco Santander e o Banco Real, que estava em banho-maria depois da aquisição da matriz do segundo pela do pri-meiro (RIBEIRO, 2008). Passaram assim pe-los nossos olhos processos ineditamente rá-pidos e intensos de concentração bancária, que em outros momentos seriam questiona-dos e possivelmente impedidos.

No outro lado do tabuleiro montado por essa mesma conjuntura, vemos que os porta--vozes da indústria passam a criticar uma no-va elevação do spread bancário e do outro, o próprio Presidente da República alça o tom da crítica contra os bancos a um nível iné-dito (ALENCAR, 2009; REHDER, 2009). Mas o novo estágio da concentração bancária se instalou e sua reversão não parece estar na ordem do dia, pelo menos enquanto a crise se fizer presente, já que o entendimento pre-valecente é que a concentração em torno de poucos bancos muito capitalizados produz a necessária solidez para o sistema financeiro do Brasil. E, diante da crítica à concentração, Roberto Setubal, Presidente do Banco Itaú declara sem aparente oposição que “a maioria dos países tem quatro ou cinco bancos de va-rejo. É normal” (DEZEM, 2009).

Numa ação oposta, surgem duas evidên-cias sobre a “ofensiva” do governo federal contra o spread bancário. A primeira foi a substituição do presidente do Banco do Bra-sil, tido como excessivamente focado na rentabilidade do banco e, portanto, contrá-rio à política desejada (GALVÃO, 2009; RI-BEIRO, 2009a). Mais surpreendente foi o im-provável engajamento público do Presidente do Banco Central na causa do rebaixamento dos juros, já que sua biografia pregressa de “homem do mercado” o afastaria dessa pre-gação, tida como “populista” pelo bom-sen-so financeiro (ROSAS, 2009).

É interessante notar que a postura go-vernamental, mais aguda e sistemática e aparentemente dissonante em relação ao seu comportamento dos seis anos anterio-res, visto como conivente com os interes-ses do mercado financeiro, pode ser consi-derada uma tentativa de retomada de uma tendência inicial. Recuperemos então a nos-sa cronologia, que começa em (T1) com o episódio da malsucedida tentativa de alterar a ordem financeira que o primeiro governo Lula ensaiou logo no seu início (OLIVEIRA, 2003; LEONEL, 2003; GRÜN, 2004).

Aparentemente, diante da falta de apoio para a iniciativa, o governo teria “jogado a toalha” naquele momento, se conformando com um padrão de convivência com a es-fera econômica que preservaria os privilé-gios que os “players” têm extraído da eco-nomia nacional nas duas últimas décadas (GRÜN, 2007b). Mas olhando a sequência da micro-história do período somos obriga-dos a ir mais além. Naquele momento apa-receu de maneira bastante clara uma sequ-ência iniciada pelas tentativas governamen-tais de regulamentação, seguida das críticas cada vez mais elevadas e diversas tentativas de acordo sugeridas pelo governo, que na verdade eram episódios de capitulação par-cial (OLIVEIRA, 2003; LEONEL, 2003). E es-se tango foi sendo jogado num pano de fun-do caracterizado pelo estado aparentemen-te catatônico dos possíveis apoiadores do governo, imobilizados diante da violência simbólica perpetrada pelos críticos ligados ao mercado financeiro. Naquele episódio, as linhas de força da disputa cultural fizeram a sociedade enxergar as tentativas gover-namentais como a simples tentativa de “ta-belar os juros” – fazer valer a Lei da Usura (Decreto nº 22.626 de 07.04.33), que existe não regulamentada desde a década de 1930, pretensão “jurássica”, descabida, regressista

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e reveladora de um pensamento econômi-co medieval, segundo os comentaristas, fi-nancistas e economistas midiáticos. E tam-bém podemos registrar naquela ocasião um ótimo exemplo da capacidade de imposição das representações surgidas no campo fi-nanceiro sobre o resto da sociedade e assim a pouco intuitiva produção de sentido que ele produz, no “duplo sentido” de significa-ção propriamente dita e de um enquadra-mento da situação que favorece a atividade financeira (GRÜN, 2004).

9 o fantasma do comunismo: versão brasileira

No episódio recente da troca de coman-do do Banco do Brasil a primeira reação do “mercado” é atacar as pretensões governa-mentais invocando o fantasma da “ingerên-cia política”, que estaria abalando a credibi-lidade econômica do banco estatal e do go-verno como um todo (CAMBA, 2009). Aí a dinâmica cultural que subsume as disputas econômicas e políticas mostra sua enverga-dura. Surge então com toda a força a ver-são brasileira do fantasma do comunismo. Ela estava apenas sugerida no final de 2008, mas o episódio da mudança de comando do Banco do Brasil permite que nossos comen-taristas retirem esse recurso de sua caixa de ferramentas culturais.

O banco dito estatal, mas tendo acionis-tas minoritários privados, pode imprimir à sua ação uma lógica menos diretamente en-tendida como financeira? Há uma lógica fi-nanceira de maximização dos ganhos “pa-ra o acionista” que é geralmente aceita co-mo correta, no seio da qual o espaço para ações de fomento econômico são muito re-duzidas. A rotina da política brasileira nos acostumou a aceitar o atendimento de al-guns grupos de pressão, ditos incontorná-

veis, como os grandes proprietários agrí-colas que se beneficiam do crédito rural e, em especial, de condições privilegiadas de refinanciamento de dívidas passadas. Ain-da que tal “desvio” não encontre guarida em termos doutrinários, ele é costumeira-mente aceito como uma compensação ra-zoável para o fato de que os bancos esta-tais estão protegidos da falência pela garan-tia em última instância que o governo fede-ral lhes aporta. É claro que cabe uma dis-cussão sobre as causas da tolerância em be-neficiar esse grupo específico das elites que são os grandes proprietários rurais, em ge-ral próximos dos principais protagonistas dos partidos políticos mais tradicionais, co-mo pelo menos indicam as revelações saí-das dos escândalos periódicos que o tema suscita (RIBEIRO, 2009d; TENÓRIO, 2006). No momento da crise, o governo pede ao Banco uma ação bem mais ampla, que al-tera as linhas mais gerais das atividades nas esferas da economia em geral e financeira em particular: que ele rebaixe suas taxas de juros nos empréstimos em geral, de manei-ra a deflagrar uma dinâmica concorrencial que obrigaria os bancos privados a realiza-rem reduções análogas. Como os bancos es-tatais manejavam naquele momento quase 40% do total da oferta de crédito, essa soli-citação, se cumprida, poderia efetivamente afetar o mercado de dinheiro.

Até o deflagrar da crise a resposta a essa demanda seria um sonoro NÃO, amplamen-te apoiado por todos os intermediários cul-turais que costumam intervir em situações análogas. A sociologia das finanças con-temporânea insiste no papel desses interme-diários culturais ou diretamente financei-ros na constituição do espaço social favorá-vel àquela atividade. Esses agentes que ga-nharam evidência nos estudos sobre a in-ternacionalização dos diversos espaços so-

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ciais são responsáveis não só pela tradu-ção de conteúdos oriundos de línguas dife-rentes, mas também de linguagens oriun-das de espaços profissionais e culturais an-teriormente incomunicáveis. Os mais co-nhecidos são as chamadas agências de “ra-ting”, que avaliam a solidez e desempenho dos diversos emissores de títulos financeiros a partir de pressupostos que, supostamente, são os da avaliação prudencial que privile-gia a solidez dos entes avaliados e portan-to a minimização das perdas dos investido-res (SINCLAIR, 2005). Mas, além desse gru-po que faz a tradução explícita (e, evidente-mente, enviesada), há também os consulto-res empresariais em áreas que vão desde as relações públicas até a governança corpora-tiva, que circulam tanto entre diversos ra-mos econômicos como nos países e o enor-me contingente de comentaristas oriundos das academias e da mídia. Até o deflagrar da crise, eles exerciam um papel muito for-te de ventríloquos da razão financeira. Não por acaso, um dos maiores contenciosos do momento diz respeito à continuidade ou ruptura dessa situação (LORDON, 2008).

É interessante notar que a crise diminuiu a eficiência das “ações práticas” dos inter-mediários. Em tempos pré-crise, assistirí-amos a uma sequência já conhecida. Nela, os economistas e comentaristas econômi-cos ridicularizariam as pretensões do gover-no, que seria caracterizada como jurássica e resquício do negro passado socialista do Partido dos Trabalhadores, surgiriam boatos de que o rating do banco iria se degradar e, finalmente, a própria burocracia interna dos bancos se identificaria com o bom sen-so profissional dos financistas, derrubando a pretensão do governo federal na ponta fi-nal do processo onde ele deveria ser viabi-lizado. E num primeiro momento, a presi-dência do banco manteve a postura espe-

rada. Deviam prevalecer os interesses dos acionistas e o ganho do governo relativo à propriedade majoritária das ações do Ban-co corresponde fundamentalmente aos divi-dendos que sua atividade gera ou a venda de suas ações.

Mas, e no novo panorama que tem a cri-se financeira internacional como pano de fundo? Os exemplos do “1º Mundo” que até agora forneciam os scripts de atuação “ra-cional” parecem ter perdido o encanto cos-tumeiro. Isso significa que a violência sim-bólica tradicional perdeu um pouco da sua eficácia. Não foi então surpreendente ano-tar que nesse momento se reforçam as argu-mentações “genuinamente nacionais”. A te-se da insegurança jurisdicional é recuperada com toda a força e assistimos a uma reitera-ção de seu enunciado e, principalmente, da ênfase nos indícios que ajudam a lhe con-ferir verossimilhança e na tentativa de con-trolar as fontes de informação sobre o te-ma. Já que a “inadimplência” é considerada como o principal componente do custo dos empréstimos, não é por acaso que se expli-cita nesse momento uma disputa em torno do controle das informações sobre a quali-dade do crédito bancário, em especial, so-bre quem são os “bons pagadores” (ESTA-DO, 2009). Rapidamente se forma um con-tencioso sobre o famoso “cadastro dos bons pagadores”. Ele deveria ser operado pelo governo federal ou por um consórcio for-mado pelos bancos e suas associações pa-tronais (IGLESIAS; D’AMORIM, 2009)?

10 os efeitos perversos

No momento delicado para a legitimida-de do sistema, aparece uma variante apro-priada da tradicional retórica dos “efeitos perversos da ação governamental volun-tarista” descritos por (HIRSCHMAN, 1991).

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Em que pese a sua boa-vontade e a neces-sidade social reconhecida, do preço do di-nheiro abaixar no país, em especial nes-se período de crise, ... “se o governo insistir com essa medida antinatural de tentar for-çar os juros para baixo, apenas criará uma ainda maior escassez de crédito” (SCIAR-RETTA, 2009).

Mais adiante, quando a pressão gover-namental se intensifica e a magia tradicio-nal se mostra cada vez menos eficiente, o setor financeiro deu mostras – depois sou-bemos, provisórias - de se conformar com a situação simbólica. Ainda que o spre-ad tenha se mantido, parece que começa-mos a entrar numa nova situação em que essa forma básica de remuneração da in-termediação bancária terá que se inclinar para baixo (SAFATLE, 2009; IGLESIAS; D’AMORIM, 2009).

O conformismo não durou. Em segui-da, aparece outra série de atores, os “gran-des homens do mercado” do momento e re-conhecidos na sociedade. Primeiro, Ar-mínio Fraga, uma espécie de herói dos jo-vens financistas, agora investido na condi-ção de Presidente do conselho da nova en-tidade que reúne a Bolsa de Valores e sua homóloga de Mercadorias & Futuros, para cobrar do governo federal que ele “desma-me o mercado”, diminuindo as atividades comerciais do BNDES, que balizam e limi-tam as taxas de juros para empréstimos de prazo mais longo (CIARELLI, 2009). E, lo-go em seguida, o Presidente do Banco Itaú, outra voz considerada moderada, e mesmo porta-voz das elites tradicionais vem com-pletar a homília, nos lembrando que “a re-dução do spread de bancos públicos não é sustentável”(LEOPOLDO, 2009).

Mas, no mesmo dia, eis que também fi-camos sabendo de outros dados. O primei-ro é que o setor bancário como um todo não

chega a estar descontente com a atuação governamental, já que, por exemplo, apare-ce a revelação que os bancos médios “de va-rejo” estão satisfeitos, pois o governo fede-ral alterou as regras para a outorga de cré-dito consignado, de maneira a ampliar essa carteira de crédito, fonte de lucro pratica-mente garantido para o setor (CARVALHO, 2009; MOREIRA, 2009). O segundo é que o mesmo BNDES prepara um “fundo garanti-dor de investimentos”, que diminui o risco que os bancos incorrem ao emprestarem pa-ra os pequenos empresários, substituindo as tradicionais taxas astronômicas por valores mais alinhados com as médias internacio-nais (ROMERO, 2009). O terceiro, que diante de outra manobra dessa aparente ofensiva governamental contra o spread, a tentati-va de diminuir as taxas diretas que os ban-cos cobram pelos serviços que prestam aos clientes, esses últimos estavam recorrendo ao seu anteparo mais tradicional, o Partido Democratas, ex-PFL (ULHÔA, 2009).

E por fim, outra subsérie de movimentos pouco previsível: Depois de uma defesa ve-emente da ação financeira governamental pelo Presidente do BNDES, no dia seguinte à declaração de Setúbal, o Ministro da Fa-zenda contradiz diretamente nosso Presi-dente do Itaú na questão central do spre-ad bancário: “BB vai pressionar e fazer ban-cos privados ‘comerem poeira’, diz Mante-ga” (CIARELLI, 2009; CUCOLO, 2009; CA-MAROTTO, 2009).

11 Conclusão

Traçado o quadro geral, vemos que a cri-se recente recoloca uma tendência ao repú-dio da “criatividade financeira” e a tentati-va de volta a períodos anteriores, nos quais “ao invés da sociedade servir os financistas, esses é que serviam a todos”. Essa temáti-

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ca é recorrente nos períodos de crise aguda e nos imediatamente posteriores (COWING, 1965). Mas o campo financeiro tem uma ló-gica incontornável, que entrelaça seus par-ticipantes e seus destinos. A complacência taxonômica não surge por acaso. Diversas inovações tecnológicas recentes foram pro-piciadas por formas de investimento inova-doras, realizadas pelos financistas de van-guarda – chamado “Venture Capital”. No espaço especificamente brasileiro, o pro-cesso de privatização das estatais nos anos 1990 também dependeu de uma complexa engenharia financeira inexistente até então. Evidentemente, podemos pensar que os go-vernos e suas agências de fomento poderão ocupar esse espaço, como já vemos atual-mente o BNDES atuar através da BNDESpar, que centraliza as participações do banco em investimentos de risco, principalmente atra-vés de private equities. Boa parte do capi-tal amealhado para financiar o boom recen-te dos biocombustíveis, uma das principais políticas de fomento do governo Lula, é fi-nanciada ou alavancada pelo banco atra-vés dessa engenharia financeira comple-xa (MUNDO NETO, 2008). Num plano com-plementar, assistimos recentemente os fun-dos de pensão das empresas estatais, diri-gidos por ex-sindicalistas próximos do go-verno Lula, aceitar e incorporar a inovação das private equities, após um longo período de desconfiança e também depois que esse dispositivo financeiro se “tropicalizou” nas mãos de financistas com sensibilidade dife-rente do famigerado Daniel Dantas (FORTU-NATO, 2003; MARTINS, 2006). Nesse qua-dro, não parece uma suposição razoável pensar que as inovações financeiras possam ser postas de lado. E tampouco imaginar que elas possam ser postas em prática sem a colaboração de membros da “vanguarda financeira”, ela mesma já suficientemente

diferenciada para incorporar a dinâmica, a demanda e as sensibilidades dos outros su-bespaços do campo (GRÜN, 2009b). E assim se colocam os limites e os nexos principais da crise financeira e seus efeitos na socieda-de brasileira.

Podemos então notar a ação persistente do campo financeiro, moldando e explican-do as ações e configurações recentes. Não importando muito suas afinidades ou desa-venças iniciais, ele enlaça os indivíduos e grupos e produz sentido. Esse sentido en-gendra e legitima produtos, posturas e car-reiras, além de induzir e justificar tomadas de posição e inflexões de fora para dentro do campo financeiro. O sentido não é inte-gralmente compartilhado, mas quando exa-minamos eventos como a crise financeira internacional, é sociologicamente necessá-rio dar ênfase à parcela de consenso que ele engendra. Reparemos que as duas soluções polares, normalmente expostas pelas cor-rentes de direita e de esquerda não integra-das ao campo financeiro, podem ser lança-das, mas o campo trabalha para descartá--las. A tradicional postura direitista de fazer funcionar o “moral hazard”, posta em práti-ca pelo governo republicano norte-america-no de Bush para o caso Lehmann Brothers é registrada sistematicamente como deflagra-dor ou, pelo menos, como um dos princi-pais complicadores da crise atual (SORKIN, 2008). A postura inicial análoga do governo conservador alemão diante da crise também foi estigmatizada e “enquadrada” (DEMP-SEY, 2009). Do outro lado do tabuleiro, a estatização dos serviços financeiros, típico reflexo das esquerdas tradicionais, também está no rol das posturas “insensatas” e, co-mo vimos no nosso exemplo do Banco do Brasil e em diversos momentos do debate internacional sobre a crise, contra ela se jo-ga a memória negativa do comunismo.

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Vemos então, de maneira geral, que o campo financeiro é uma realidade solida-mente enraizada no panorama social. Mas também que a magia que faz uma parcela enorme da riqueza social escorrer para as mãos de seus integrantes depende de uma dinâmica cultural, de uma produção de sen-tido que aparece justamente quando ela fa-lha. Daí a necessidade de investigar melhor a anatomia desse espaço financeiro que é bem mais amplo e complexo do que os vo-ciferados “mercad que pode ser acessada justamente pelas produções de sentido que instituem os bons sensos, as chamadas do-xas sociais.

Nota Sobre o aUtor

Doutor em Ciências Sociais pela Unicamp. Professor do Departamento de Engenharia de Produção da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e pesquisador do Núcleo de Estudos em Sociologia Econômica e das Fi-nanças (Nesefi).

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recebido em: 02.05.11aprovado em: 08.06.11

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artig

o

Edmilson Lopes

A CORRUPÇÃO NA AGENDA DA NOVA SOCIOLOGIA ECONôMICA

reSUMo A reflexão sociológica sobre a corrupção no Brasil pode ser enriquecida se incorporar a perspectiva analítica da Nova Sociologia Econômica. Essa é a proposição central do presente texto. Essa idéia central é apoiada na apresentação de proposições teóricas e problemáticas de pesquisa.

PalavraS-Chave Moralidades. Redes sociais. Campo. Escân-dalos de corrupção. Sociologia moral.

abStraCt The sociological thought about the corrup-tion in Brazil can be enriched if incorpo-rates the analytical perspective of the New Economic Sociology. This is the core prop-osition of this text. This central Idea is su-ported by presenting theoretical and prob-lematic propositions of research.

KeywordSMoralities. Social networks. Field. Corrup-tion scandals. Moral sociology.

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1 Introdução

Max Weber é, dentre os autores consi-derados clássicos da sociologia, a princi-pal referência para o campo da Nova So-ciologia Econômica (NSE). Algumas das su-as proposições teóricas funcionam como aportes para investigações substanciais so-bre dimensões da vida econômica. A tra-dução dessa relação privilegiada com o le-gado weberiano se expressa, muito parti-cularmente, na assunção prática, assumi-da por muitos dos que se identificam com a NSE, de que cabe à análise sociológica “compreender interpretativamente a ação social e assim explicá-la em seu curso e em seus efeitos”. (WEBER, 1998, p. 3). Adicio-nalmente, embora não seja uma perspecti-va teórica exatamente unânime no campo, o individualismo metodológico, tão caro à sociologia weberiana, encontra aqui um porto seguro. Tanto que o postulado webe-riano de que “ação como orientação com-preensível pelo sentido do próprio compor-tamento sempre existe para nós unicamen-te na forma de comportamento de um ou vários indivíduos” (WEBER, 1998, p. 8) tem se constituído em uma base segura para o lançamento de incursões analíticas da vi-da econômica para muitos investigadores.

Os ganhos analíticos potencializados por essa afiliação teórica são evidentes para to-dos quantos tenham tido algum contato com alguns dos trabalhos da agora vasta litera-tura sociológica produzida pelo “movimento teórico” (ALEXANDER, 1998) que é a NSE. Mas eles podem ser maiores ainda caso pos-samos articular os seus aportes com aqueles oriundos de trabalhos que buscam apreender não apenas os valores que subjazem às esco-lhas e preferências individuais, mas também como eles são mobilizados pelos atores so-ciais para dar sentido às suas ações.

O acima exposto serve de bússola para o exercício que segue. Nele, buscamos apon-tar algumas trilhas para uma análise socio-lógica da corrupção. Para tanto, aliamos aportes teóricos e metodológicos já consoli-dados no campo da NSE com outros advin-dos de movimentos teóricos paralelos. Den-tre os últimos, destacamos a sociologia dis-posicional de Bernard Lahire e a sociologia moral de Luc Boltansky e Laurent Thévenot.

2 Princípio de neutralização, habilidades e sentidos

Em instigante texto, Mark Granovet-ter assesta as baterias analíticas contra as apreensões da corrupção assentes no sen-so comum. Não raramente, essas apreen-sões são contrabandeadas para supostas análises científicas da vida política. Es-se o caso daquela visão tradicionalmen-te aceita que apreende a corrupção como uma “traição”. Traição a uma responsabi-lidade ou função pública.

Granovetter (2006), tomando como refe-rência uma das definições de corrupção es-posadas pelo dicionário Oxford, qual seja a de que aquela seria a “perversão ou destrui-ção da integridade no cumprimento de de-veres públicos, através de suborno ou fa-vor”, propõe-se a problematiza o que sejam as práticas de corrupção. Para tanto, aborda--as como transações econômicas específicas. E, enquanto tais, passíveis de serem com-preendidas a partir dos quadros interpreta-tivos da sociologia econômica, os quais, co-mo sabemos, caracterizam-se, quase sempre, por levar em conta a imersão das ações eco-nômicas em um universo social. Ou seja, as práticas de corrupção também seriam apre-ensíveis a partir de uma análise das gramá-ticas sociais e culturais dos universos nos quais estão inseridas.

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A corrupção na agenda da nova sociologia econômica 117

Um primeiro ganho possibilitado pela abordagem de Granovetter é uma relativi-zação da definição de “integridade” na fun-ção pública, um dos pilares sobre o qual se constrói comumente a definição de corrup-ção. Haja vista, por exemplo, o arsenal re-tórico mobilizado por organizações como a Transparência Brasil, ou por atores deter-minados como determinados setores do Mi-nistério Público brasileiro, para subsidiar os seus diagnósticos e proposições a respeito da corrupção no nosso país. Nessas abor-dagens pululam avaliações moralistas e a - históricas. Caminho diametralmente oposto segue Granovetter:

[...] o que vem a ser “integridade” no cumpri-mento de deveres públicos ou outros é algo que se define por normas sociais e profissio-nais que variam no tempo e no espaço. E o significado de “suborno” é negociável e elás-tico (2006, p. 11).

Um segundo importante aporte forne-cido pela abordagem proposta por Grano-vetter é o de nos lembrar a importância de incorporarmos, na análise sociológica das práticas de corrupção, a noção de habilida-de social. Esta é uma noção abordada mais profundamente por Neil Fligstein. Para es-te que é um dos pesquisadores de referên-cia no campo da NSE, a habilidade social diz respeito à habilidade de um ator em pro-duzir situações de cooperações com outros (FLIGSTEIN, 2001). De forma concreta, tra-duz-se na capacidade em interpretar situa-ções criadas no curso de uma ação. Inter-pretação essa que pode ser encimada tanto pelo objetivo de garantir interesses quanto a afirmação de princípios e/ou valores refe-rentes a uma identidade pessoal ou coletiva.

Embora não se detenha mais profunda-mente na discussão sobre habilidade social nas práticas de corrupção, Granovetter mo-biliza fortemente essa noção na sua análise. Assim, apoiado em trabalho etnográfico de-senvolvido pelo antropólogo Akhil Gupta1 a respeito de uma tentativa fracassada de cam-poneses pobres indianos em subornarem fun-cionários públicos, aponta que uma das ha-bilidades fundamentais a ser mobilizada nas práticas de corrupção é a de neutralizar os si-nais de “deficiência moral” de suas ações.

A habilidade também está relacionada à capacidade de lidar com interlocutores situ-ados em posições sociais distintas. No ca-so de suborno, por exemplo, saber o que podem fazer e como se comportar agentes ativos ou passivos de um suborno. Embo-ra a linha demarcatória entre inabilidade do ator e contexto de risco seja muito tê-nue. No Brasil dos últimos anos, gravações de suborno exemplificam fortemente essa assertiva. Pensemos, por exemplo, no ca-so daquele funcionário dos Correios, flagra-do por uma câmera de vídeo recebendo R$ 3.000,00 de um suposto agente corruptor, fato que deu suporte ao pedido de instala-ção da CPI dos Correios (a que acabou sen-do o desaguadouro do chamado “Escândalo do Mensalão”, em 2005).

Antes de prosseguir, vale a pena nos de-termos um pouco na proposição de que as transações tidas como corruptas são reali-zadas, em parte, pela mobilização, por parte dos atores, do “princípio de neutralização”. Eis como Granovetter (2006, p. 12) o define:

[...] os indivíduos cientes das ações em ques-tão aceitam o que chamo de um “princípio de neutralização”: um registro que reconhece a relação causal entre um pagamento e um

1. Para um contato com o instigante trabalho etnográfico sobre corrupção desenvolvido por esse autor, ver Gupta (2005).

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serviço, ou que favores foram recebidos em função de uma posição ocupada, mas suge-re que dadas as circunstâncias específicas do caso, não houve nenhuma violação moral.

Implícita a essa proposição, encontra-se uma apreensão muito disseminada na so-ciologia, aquela de que as ações desenvol-vidas pelos atores expressariam, de algum modo, uma gramática generativa consoli-dada pela in-corporação de um habitus ao longo de toda uma trajetória. Tudo se pas-saria, como se, nos casos de corrupção, por algum momento, os princípios fossem “sus-pensos”. O problema aqui é menos de equí-voco na resolução do tradicional “proble-ma” da relação indivíduo-sociedade e mais de limitação para lidar com situações nas quais os arsenais mobilizados para a apre-ensão da socialização parecem-nos desloca-dos. Por isso mesmo, vale a pena, mesmo que de forma aligeirada, problematizar um pouco os limites da noção de habitus para a compreensão do comportamento dos atores envolvidos em práticas de corrupção.

Nesse sentido, é que as elaborações do sociólogo francês Bernard Lahire, mesmo se direcionadas a abordagem de fenômenos distintos daqueles tratados, aqui, fornecem importantes aportes para uma sofisticação da análise da corrupção. Lahire é um pes-quisador que tem buscado construir um re-lacionamento produtivo (crítico e criativo, e não exatamente de veneração, como sói ocorrer com freqüência nos últimos tempos) das elaborações basilares de Pierre Bour-dieu. Em especial, ao focalizar sobre as dis-posições dos atores, tem iluminado cami-nhos para a análise de transações em situ-ações de incertezas. Pensamos, em especial, naquelas transações por atores situados em posições sociais distanciadas. A esse respei-to, vale a pena reter a citação abaixo:

Em vez de pressupor a influência de um pas-sado incorporado necessariamente coerente sobre os comportamentos individuais, mais do que imaginar que todo o nosso passado, como um bloco ou uma síntese homogênea (sob a forma de um sistema de disposições ou valores), pesa a todo momento sobre to-das as nossas situações vividas, o sociólogo pode indagar-se sobre o desencadeamento ou não desencadeamento, a implementa-ção ou a estagnação, pelos diversos contex-to de ação, de disposições de competências incorporadas. A pluralidade de disposições e de competências, por um lado, a varieda-de de contextos de sua efetivação, por outro, e que podem explicar sociologicamente a va-riação de comportamento de um mesmo in-divíduo ou de um mesmo grupo de indivídu-os, em função de campos de práticas, de pro-priedades dos contextos ou de circunstâncias mais singulares da prática. (LAHIRE, 2006, p. 19, grifo nosso).

Na medida em que há uma incorporação progressiva dos aportes da sociologia bour-dieusiana nas análises sociológicas da vida econômica e, em conseqüência, o conceito de habitus vai se tornando mais e mais de uso comum, torna-se fundamental um passo adiante na produção nesses estudos. E pro-posições, como a de Lahire acima exposta, apontam novos e excitantes desafios para a análise sociológica da vida econômica. E alguns objetos de análises, como as intera-ções de troca comumente identificadas sob a rubrica de corrupção, oferecem excelente oportunidades para esse tipo de exercício.

3 a corrupção e o habitus: mais além da leitura culturalista

Em uma das obras nas quais suas propo-sições se apresentam com inigualável clare-

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za e capacidade persuasiva, Bourdieu, pela enésima vez, apresenta a função e o sentido da noção de habitus. A citação a seguir, um tanto longo, faz-se necessária:

Uma das funções principais da noção de ha-bitus consiste em descartar dois erros com-plementares cujo princípio é a visão esco-lástica: de um lado, o mecanismo segundo o qual a ação constitui o efeito mecânico da coerção de causas externas; de outro, o fi-nalismo segundo o qual , sobretudo por cau-sa da teoria da ação racional, o agente atua de maneira livre, consciente e, como dizem alguns utilitaristas, with full undestanding, sendo a ação o produto de um cálculo das chances e dos ganhos. Contra ambas as teo-rias, convém ressaltar que os agentes sociais são dotados de habitus , inscritos nos corpos pelas experiências passadas: tais sistemas de esquemas de percepção, apreciação e ação permitem tanto operar atos de conhecimento prático, fundados no mapeamento e no reco-nhecimento de estímulos condicionais e con-vencionais a que os agentes estão dispostos a reagir, como também engendrar, sem posi-ção explícita de finalidades nem cálculo ra-cional de meios, situadas porém nos limites das constrições estuturais de que são o pro-duto e que as definem (BOURDIEU, 2001, p. 169, grifo do autor)

Que a noção de habitus é um recurso po-deroso, desde que convenientemente empre-gado, para a produção de interpretações so-bre as ações sociais, eis uma afirmação que traduz o posicionamento de não poucos dos que se situam hoje no campo da NSE. Mas é preciso ajuntar outros instrumentos à essa noção tão cara ao universo analítico bour-dieusiano. Isso porque há todo um mundo de coordenações de ações e de regas morais que as conformam (e fornecem modelos pa-ra julgá-las e interpretá-las) que necessitam

de outros elementos para serem analisadas. Em verdade, elas se situam aquém e além não apenas do “efeito mecânico das coer-ções externas” e do “finalismo (...) da teoria da escolha racional”, mas também das possi-bilidades explicativas do habitus.

E não se trata, por certo, de recorrermos, como tem sido usual em parte de nossa inte-lectualidade fazê-lo, a certo viés culturalista para encontrar na escolaridade uma maior ou menor tolerância em relação à corrup-ção. Não se consegue ultrapassar a den-sa nuvem de fumaça do senso comum por esse caminho. Talvez seja mais interessan-te, e mais produtivo no sentido de produ-zir interpretações mais sofisticadas, abordar as práticas de corrupção a partir da apre-ensão de que mundos morais elas remetem. Dessa forma, e contrariando certa tendên-cia da análise sociológica influente, o cami-nho a ser seguido é menos o de inquirir a respeito da sub-socialização de determina-das normas de condução diante do público e da coisa pública, e, mais, o de questionar-mos sobre os regimes morais (ou “mundos morais”) tais práticas remetem. E essa pers-pectiva, nós sabemos de há muito, por indi-cação de um clássico sempre muito atual, só é possível quando nos colocamos o desafio de tentar apreender o sentido atribuído pe-los atores aquilo que fazem.

A consecução de análise das práticas de corrupção que coadune o sentido da ação para os atores e os mundos morais que legi-timam tais práticas não implica esconjurar a noção de habitus, mas relevatizar o seu pe-so, abrindo espaço para questões relaciona-das à “situações”. E é exatamente nessa di-reção que se tornam pertinentes as questões formuladas por Luc Boltansky:

Como podemos pensar a coordenação en-tre pessoas, cuja socialização realizou-se em contextos de experiências diferentes e que,

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no entanto, podem encontrar terrenos de aproximação sem invocar o ‘acordo espon-tâneo dos habitus’? Ou ainda, que tipo de re-lação devemos estabelecer, de um lado, en-tre os motivos explícitos e, particularmen-te os motivos normativos, aos quais as pes-soas associam as suas ações, e, de outro, os esquemas interiorizados e amplamente in-conscientes, aos quais o observador exterior confere um poder determinante na geração das condutas? (BOLTANSKY, 2005, p. 163).

O que questões como essas legitimam, no que diz respeito à inquirição sobre as práticas de corrupção, é a investigação so-bre os fundamentos morais (ou, para sermos mais cuidadosos, as “justificações”) mobi-lizados pelos atores para fornecer sentidos a tais práticas. Uma tradução imediata des-sa assunção é a de que as organizações so-ciais (coloco sob essa rubrica, aqui, por fins práticos, instituições e órgãos do Estado) são atravessadas por ordens morais diver-sas. Esse atravessamento se expressa, coti-dianamente, no que Lauren Thévenot, com propriedade, denomina de “tensões críticas” (THÉVENOT, 2001) das organizações.

Com esses aportes, podemos nos acer-car analiticamente das práticas de corrupção ocorridas no Brasil dos últimos sem os gri-lhões pesados de noções e conceitos oriundos da sociologia da socialização. E, ao avançar nessa senda, distanciamo-nos também de al-gumas das armadilhas do hiper-bourdeusia-nismo quando aplicado para re-problemati-zar a oposição “público”X”privado”, que, se-gundo muitos bem pensantes, estruturaria a sociedade brasileira.

Assim, indo além da análise centrada no habitus, a análise das práticas de corrupção pode se tornar mais complexa, especialmen-te no que diz respeito à abordagem dos “es-cândalos de corrupção” do Brasil dos últi-

mos anos. Para tanto, faz-se necessário le-varmos em conta os móveis e as particulari-dades das diversas ordens morais que entre-cruzam-se nas instituições lócus de tais prá-ticas. Essas ordens expressam-se não apenas em modos distintos, e não raro contraditó-rios, de coordenação das ações dos atores, mas também, o que é mais importante, em objetivos e “objetos” diferentes e singulares.

A exposição acima não autoriza, entre-tanto, certa proposição, também comum en-tre diversos analistas do mundo político bra-sileiro, de oposição entre uma “ordem fami-liar e/ou patrimonial” e a “ordem pública”. Trata-se de algo distinto aqui. Mais concre-tamente, de universos de referências morais que são pragmaticamente mobilizados pelos atores em situações concretas. Ou, nos ter-mos da sociologia moral de Laurent Théve-not, de “ordens de grandeza” diferenciadas.

Ora, se temos ordens de grandeza diver-sas atravessando as organizações, expres-sam, antes de tudo, momentos de negociação de ordens morais. Ora, as práticas de corrup-ção, não raro se desenvolvem como mostra-mos acima, e como o confirmam estudos co-mo o de Akhil Gupta, em ambientes de incer-teza. Nesses casos, como aqueles da negocia-ção de suborno, o habitus é importante pa-ra apreender como os atores incorporam (ou não) as habilidades sociais para identificar as “ordens” em jogo, mas não é uma noção que contribua para interpretar a forma como o ator “joga”. Para fazer um jogo de palavras, as “disposições incorporadas” não explicam os dispositivos usados efetivamente.

4 a corrupção, os limites da socialização e as redes sociais

Em memorável “manifesto” no qual pro-duziu um libelo em defesa da sociologia re-lacional, Mustafá Emirbayer alertava para

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a importância epistemológica e política da ruptura com a “análise substancialista” do mundo social. As abordagens sociológicas substancialistas, não por acaso mais facil-mente caucionadas pela chamada “opinião pública”, as ações sociais são preferencial-mente interpretadas a partir dos atributos dos atores. A perspectiva relacional, que rompe com o senso comum, centra a análi-se nas relações, e, por isso mesmo, conspira contra as cristalizações de atributos.

Em poucos ramos das ciências sociais a análise relacional implica em uma lufada de ar tão renovadora quanto na interpretação sociológica da corrupção. Não apenas pelas óbvias implicações políticas, mas também, e é isso aqui que nos interessa mais fortemen-te, pelo fato de que a apreensão dos atores e eventos identificados como corruptos tor-nam-se mais nuançados.

Outro importante filão teórico diz res-peito à dimensão performativa da defini-ção de corrupção. Não por acaso, o termo é quase sempre intercambiável com aquele de crime organizado. Ora, corrupção crime or-ganizado, não raramente, são termos mobi-lizados como expressões de realidades tan-gíveis, facilmente identificáveis. Em traba-lho anterior, procurarei apontar que a defi-nição de crime organizado é ambígua o su-ficiente para ser enquadrada como uma ca-tegoria classificatória do mundo social. (LO-PES JR, 2009). E, como tal, aberta a disputas políticas e ideológicas. Trata-se, em verda-de, de uma categoria que ao mesmo tempo descreve e contribui para constituir aquilo que procura significar.

Por outro lado, corrupção e crime organi-zado expressam-se em práticas sociais, even-tos e formas de coordenação nas quais os atores envolvem-se nem sempre por “intei-ro”. Daí melhor entendê-los como processos, como continuum. Por isso mesmo, aportan-

do aqui outro importante recurso a ser mobi-lizado na análise sociológica da corrupção, é que tão decisivo a apreensão das redes sociais envolvidas na produção dos eventos identifi-cados como. Isso porque o engajamento dos atores nas redes sociais é distinto em grau e profundidade. A conseqüência prática dessa proposição é nos levar a romper com a pos-tura, muito presente em material produzido pela imprensa e em não poucos analistas do mundo social, de tratar indiferenciadamente os atores participantes de (ou envolvidos por) uma “rede criminosa”.

Obviamente, a própria noção de rede so-cial contém limitações importantes no que diz respeito à análise de fenômenos como a corrupção e o crime organizado. Refiro-me ao fato de que, em que pese a importância da network analysis para modelar relacio-namentos, a noção, algumas vezes, embute uma assunção de compatibilidade das liga-ções. Ora, quando analisamos, por exemplo, o Relatório da CPI dos Correios, o que so-bressai, acima de tudo, é a diferenciação ex-trema nos níveis de engajamento dos atores na produção dos eventos identificados como “Escândalo do Mensalão”.

5 reflexividade e auto-objetivação na aná-lise da corrupção

As proposições acima não implicam ape-nas em uma relativização do peso da no-ção de habitus na análise das ações econô-micas. Em alguma medida, elas apontam a necessidade de problematizarmos com mais acuidade os contextos e situações nos quais se desenvolvem as transações econômicas. Implícita a esta assunção encontra-se uma percepção crítica do que poderíamos deno-minar de visão hiper-socializada do ator.

A corrupção é quase uma construção to-têmica. A sua abordagem, assim como aque-

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la do seu irmão siamês, o crime organiza-do, oscila entre a sedução e a repulsa. Não raro, referentes para fantasias cinematográ-ficas ou para enquetes teatrais picarescas, a corrupção, para bater em velha e desgastada tecla, é uma construção social. Dessa forma, tais narrativas não deixam de carregar um quantum significativo de mito. Não por ou-tro motivo, muitas vezes, as narrativas sobre alguns dos seus, digamos, fatos exemplares, assemelham-se mais a enredos cinematográ-ficos do que a reportagens do “mundo real”. Tais fatos funcionam, não raro, como refe-rências às quais recorremos para dar sentido às nossas apreensões sobre as transgressões e atividades delituosas com as quais nos de-paramos, material ou virtualmente.

Enquanto objeto de análise sociológica, a corrupção impõe-nos algumas pré-condi-ções para levarmos a bom termos o desa-fio de a tomarmos como isso, como objeto. Uma primeira exigência é aquela do exercí-cio da reflexividade epistemológica, defen-dida por Pierre Bourdieu, a qual implica, em primeiro lugar, em uma prática de investi-gação sociológica que efetive uma ruptura com as noções e dados apreendidos pela ex-periência ordinária (BOURDIEU, 1998). As-sim, é importante sempre lembrar as muitas e profundas questões relacionadas às fron-teiras mesmas que separam os mundos le-gais e àqueles comumente identificados (não sem a mobilização de elaborações fan-tasiosas) de “subterrâneos”.

Mas se o exercício de reflexividade for radicalizado, trata-se também de colocar em dúvida a idéia mesma da existência de um fenômeno, facilmente definível, passí-vel de ser apreendido sob a rubrica de cor-rupção. Daí que esse exercício de investi-gação enfrenta uma “resistência de análise” (BOURDIEU, 2002, p. 13) que advém menos do campo e mais do universo de referência

e das “categorias impensadas” do próprio pesquisador. Referimo-nos aqui, dentre ou-tras coisas, à naturalização da corrupção como uma atividade “nas sombras”, execu-tada por organizações similares aos grupos mafiosos. Essa resistência, espécie de “me-canismo de defesa” próprio do universo so-cial ao qual pertence o pesquisador, pode impedir que o investigador asseste suas ba-terias analíticas em outras direções. Espe-cialmente às forças e representações sociais que fornecem referências e demandas para as transações de corrupção.

A nossa hipótese é a de que mais frontei-ras porosas do que muros separam o mun-do oficial e legal daquele das ações identi-ficadas como “corruptas”. Se existem “evi-dências” que corroboram as imagens de um “mundo da corrupção”, alicerçado em redes sociais de confiança rigidamente hierarqui-zadas, e construído sob a égide de normas e regras muito próprias, trata-se de não tomar tais dados impressionistas da realidade sem muito cuidado e parcimônia. As articulações entre as redes sociais diretamente implicadas nas atividades de corrupção com as redes que transitam pelo mundo “legal” pode ser uma alternativa a ser seguida por uma prática de pesquisa social a qual busque se credenciar como sociologia reflexiva dos escândalos de corrupção no Brasil.

Se a proposição de que esse tipo de co-nexão, entre redes “submersas” e legais, en-contra respaldo no senso comum (e, não por acaso, é alimentadora de fantasias conspi-rativas), trata-se de questionar sobre a na-tureza mesma dessas interações assim como a respeito da lógica social que lhe serve de substrato. Trata-se, também, e esse é outro desafio da análise sociológica das práticas de corrupção, de produzir ferramentas ana-líticas que potencializem a apreensão des-sas conexões.

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Para alcançar tal grau de cognoscitivi-dade da corrupção como fenômeno econô-mico, propomos que uma alternativa é a re-alização de um exercício analítico que se apóie na presunção da existência de “redes de confiança” as quais atravessam extensa-mente as interações de mercado. Mesmo nas sociedades mais complexas e nas quais as transações econômicas se desenrolariam de forma “desencaixada”. Essa assunção nos aproxima da releitura que Mark Granovet-ter faz da noção de “imersão” (embedded-nes), apresentada inicialmente na obra de Karl Polanyi (GRANOVETTER, 1985). Ora, as redes de confiança fornecem importan-tes suportes para que as dimensões “não--contratuais do contrato” possam se efeti-var. (TILLY, 2004). Essas redes, no caso do Brasil, servem de base para muitas das nos-sas interações de mercado.

6 Corrupção, capitalismo e liminaridade

É importante realçar: se as atividades identificadas como corruptas envolvem ato-res em postos chaves e cobrem extensos ter-ritórios sociais, como parece ser um amplo consenso entre cientistas sociais brasileiros, não é, então, desprezível o seu peso na for-matação da esfera econômica brasileira con-temporânea. Isso porque essas atividades econômicas “subterrâneas” subvertem, as-sim como a apropriação privada dos fundos públicos na leitura de Chico de Oliveira2, a lógica de acumulação capitalista.

Seguindo um caminho analítico alterna-tivo ao seguido por Oliveira, e centrando-se nas relações e nas configurações contingen-tes que são resultados (nem sempre preme-ditados) das intervenções dos atores sociais,

a investigação sociológica das transações identificadas como corruptas nos escândalos pode explicitar, dentre outros aspectos, co-mo os atores sociais não sucumbem, como nas narrativas sociológicas sutilmente beha-vioristas, diante das “lógicas sistêmicas”, e, mais que isso, conseguem inserir criativida-de e remodelação de scripts nos lugares so-ciais mais inesperados.

Atores sociais envolvidos e posiciona-dos em redes sociais, ressaltemos. Algumas dessas redes, não esqueçamos, pré-existen-tes ao “campo” específico do nosso “obje-to”. As ramificações “subterrâneas” des-sas redes, os braços operacionais das tare-fas de ponta dessas atividades, assentam--se, não raro, em laços familiares e em leal-dades derivadas do pertencimento aos mes-mos lugares. Já as redes “legais” possibili-tam aos seus atores o transito, sem sobres-saltos, nas amplas regiões sociais nas quais o “fundo de comércio” de um cargo ou con-tato na Comissão de Orçamento da Câmara dos Deputados ou no Tribunal de Contas da União pode ajuntar.

É a liminaridade desse campo, espécie de zona fronteiriça situada entre a trans-gressão e o exercício “natural” daquilo que Marshal Berman apreendeu como a dimen-são “fáustica” do ethos capitalista (Berman, 1987), que o torna sociologicamente insti-gante. Sobretudo porque pode potenciali-zar novas leituras de atividades econômicas que transitam da margem para o centro da vida econômica brasileira.

7 Considerações finais

Em texto seminal, anteriormente men-cionado, Mark Granovetter, um dos pilares

2. Ver Oliveira (1990).

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da Nova Sociologia Econômica (NSE), pro-blematiza noções comumente aceitas a res-peito da corrupção nas narrativas sociológi-cas mais populares. Esposando uma perspec-tiva analítica explicitamente crítica, Grano-vetter (2006) formulou um desafio para todos quantos se interessam pelo desenvolvimento da análise sociológica da vida econômica: a necessidade de incorporar o crime e a corrup-ção como objetos de investigação sociológi-ca. Indicação importante e que deve nos ani-mar em novas aventuras de pesquisa que re-avivem a imaginação sociológica na segunda década do século XXI.

Eis uma tarefa excitante, desafiadora e que pode se traduzir em uma importante re-novação das narrativas sociológicas sobre corrupção e criminalidade. Isso porque, não raro, quando se aventuram em incursões investigativas sobre esses terrenos panta-nosos, os sociólogos o fazem seja apelando para os modelos tradicionais fornecidos pe-las abordagens macro-estruturais e holistas ou, o que começa a se tornar mais comum, ancorando-se nos modelos derivados da te-oria da escolha racional (TER). A NSE po-de fornecer muito mais para uma interpre-tação sofisticada desses fenômenos, essa a nossa aposta e o que, de forma ainda espe-culativa, procuramos apresentar.

Uma análise das práticas de corrupção que coadune a interpretação do sentido da ação para os atores envolvidos, as redes sociais que dão suporte às transações e os mundos morais que as legitimam, essa uma tarefa que a NSE tem condições de enfren-tar no Brasil.

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Nota Sobre o aUtor

Edmilson Lopes é professor do Departamento de Ciências Sociais da UFRN, professor e orientador no Programa de Pós-Graduação em Ciências So-ciais da mesma universidade e é ainda docente co-laborador do mestrado em Desenvolvimento e Meio Ambiente (PRODEMA)

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Rodrigo Salles Pereira dos Santos

REDES DE PRODUÇÃO GLOBAIS (RPGS): CONTRIBUIÇõES CONCEITUAIS PARA A PESQUISA EM CIÊNCIAS SOCIAIS1

reSUMo O objetivo deste artigo é apresentar um modelo teórico-metodológico apropriado à investigação empírica de contextos intera-tivos complexos em ciências sociais – a partir do texto fundador da abordagem, publicado nesta edição. O modelo das re-des de produção globais (RPGs) avança na compreensão daqueles contextos ao prover uma abordagem multicêntrica, isto é, ca-paz de lidar com a variedade dos agentes econômicos, políticos e sociais que carac-terizam os fenômenos econômicos globais. Assim, o artigo apresenta a referida abor-dagem e destaca suas principais contribui-ções conceituais no que concerne às di-mensões econômica, política e social da organização global das atividades de pro-dução, circulação e consumo de bens e serviços. Nesse sentido, as questões relati-vas à criação, aumento e captura de valor; às formas de acúmulo e exercício do po-der; e, sobretudo, aquelas concernentes às relações sociais nas quais as atividades econômicas estão imersas são considera-das centrais.

PalavraS-Chave Redes de produção globais. Agentes. Valor. Poder. Enraizamento.

abStraCt The aim of this paper is to present a theo-retical-methodological model appropriate to the empirical investigation of complex interactive contexts in social sciences - from the founding text of the approach, published in this issue. The global produc-tion networks (GPNs) approach advances the understanding of those contexts to pro-vide a multi-centric approach, which is able to handle the variety of the economic, political and social agents that characterize the global economic phenomena. Thus, this paper presents this approach and high-lights its main conceptual contributions in relation to the economic, political and so-cial dimensions of the global organization of activities of production, circulation and consumption of goods and services. In this sense, these are the central issues: value creation, enhancement and capture; the forms of accumulation and exercise of power; and especially those pertaining to the social relations in which economic ac-tivities are embedded.

KeywordSGlobal production networks. Agents. Va-lue. Power. Embeddedness.

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1 Introdução

A publicação do artigo de Henderson et al. (2002) nesta edição da Revista Pós Ciências Sociais oportuniza ao público leitor em lín-gua portuguesa o primeiro contato com um quadro teórico e um ferramental analítico de grande valia para a análise dos padrões e for-mas das interações concretas entre firmas, Estado e sociedade – excepcionalmente cap-tados pela ciência social brasileira (CARNEI-RO, 2008; RAMALHO, 2005).

O artigo de Henderson et al. (2002), Global production networks and the analysis of eco-nomic development, é o que se pode chamar de manifesto fundador da abordagem das re-des de produção globais (RPGs)2, estabelecen-do suas categorias conceituais (valor, poder e enraizamento) e dimensões (firmas, setores, redes e instituições) essenciais.

No referido artigo, publicado original-mente na Review of International Political Economy, os autores transcenderam, de um lado, as posições fundamentalmente teóri-cas3 que marcaram o debate acerca da glo-balização em seus passos iniciais; e de ou-tro, as principais abordagens conducentes à pesquisa empírica sobre a organização glo-bal das atividades de produção, circulação e consumo de bens e serviços – no que con-

cerne especificamente à dimensão econômi-ca do fenômeno.

Desde meados da década de 1990, a par-tir da publicação de Gereffi e Korzeniewicz (1994), o referencial teórico-metodológico das global commodity chains (GCCs) ou ca-deias de commodity globais (CCGs)4 deu azo a uma profusão de trabalhos setoriais orbi-tando uma ou mais mercadorias. Dessa for-ma, a atividade de pesquisa conduzida sob a égide intelectual das CCGs, ao enfatizar a es-cala analítica global, disponibilizou descri-ções, até então raras, dos modos concretos de reorganização das atividades econômicas no contexto da integração funcional e dis-persa que caracteriza a globalização econô-mica (GEREFFI, 1994, p. 96).

A maior amplitude descritiva – obtida através da ‘simples’ integração sequencial e interdependente de atividades de produção, distribuição e consumo – assim como as im-portantes implicações políticas carreadas por esse referencial – influindo, por exemplo, em ações da Organização Internacional do Tra-balho (OIT) (HENDERSON et al., 2002, p. 441) –, foram, no entanto, obliteradas principal-mente pela centralidade analítica do agen-te econômico (firma), em detrimento de uma ampla variedade de agentes sociais e do Esta-do, principalmente.

1. Este artigo se apóia em parte da discussão do primeiro capítulo da tese de doutoramento do autor ( ver SANTOS, 2010), apresentada ao Programa de Pós Graduação em Sociologia e Antropologia (UFRJ) da Uni-versidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Agradeço às contribuições do Prof. Dr. José Ricardo Ramalho (UFRJ), orientador da tese; do Prof. Dr. Huw Beynon (Cardiff University) e; dos membros da banca Prof. Dr. Cristiano Monteiro (UFF) e Prof. Dr. Marcelo Carneiro (UFMA).2. O contato e a incorporação da literatura das RPGs ocorreram durante o Doutorado Sandwich (2008-2009), realizado na Cardiff University, País de Gales, sob a supervisão do Prof. Dr. Huw Beynon. O autor agradece ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), que o contemplou com uma bolsa de pesquisa ao longo do período.3. As posições hiperglobalista, cética e transformacionista, nos termos de Held e McGrew (2001).4. Posteriormente redefinidas nos termos do modelo das global value chains (GVCs) ou cadeias de valor globais (CVGs). Para uma discussão crítica das características de cada um destes modelos teórico-metodo-lógicos e sua comparação com a abordagem das RPGs, ver Santos (2010), capítulo 1.

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Ao substituir o Estado pela firma – em especial, as corporações multinacio-nais (MNC) e transnacionais (TNCs) – co-mo agente analítico privilegiado na análi-se da dimensão econômica da globalização, o paradigma das CCGs converteu-se, funda-mentalmente, em um modelo explicativo da ação e relação exclusivamente econômicas. (WEBER, 2003) Nesse sentido, foi limitada a sua integração à pesquisa empírica empre-endida sobre a globalização econômica no âmbito das ciências sociais – pesquisa es-ta que se defronta com a multiplicidade dos agentes e suas estratégias em contextos in-terativos complexos.

O objetivo deste artigo, introdutório ao texto de Henderson et al. (2002) publicado nesta edição, é, nesse sentido, apresentar um modelo de investigação empírica tanto teoricamente sofisticado quanto analitica-mente fecundo. O modelo das RPGs avan-ça na compreensão destes contextos inte-rativos ao prover uma abordagem multi-cêntrica, ou seja, capaz de lidar com a va-riedade dos agentes econômicos, políticos e sociais e; de outro, ao afirmar a impor-tância analítica da espacialidade de sua agência (multiescalaridade). Nesse sentido, as RPGs trazem ao centro da análise a di-mensão global de fenômenos tais como o desenvolvimento, o trabalho e o meio am-biente5, proporcionando maiores escopo e plasticidade analítica.

Entretanto, o artigo destaca fundamen-talmente, certas contribuições-chave da abordagem das RPGs para a pesquisa em ci-ências sociais no que concerne às dimen-sões econômica, política e social da orga-nização global das atividades de produção, circulação e consumo de bens e serviços. Nesse sentido, as questões relativas à cria-ção, aumento e captura de valor; às formas de acúmulo e exercício do poder; e, sobre-tudo, aquelas concernentes às relações so-ciais nas quais as atividades econômicas es-tão imersas são consideradas centrais.

2 o paradigma das redes de produção globais (rPGs)

O paradigma das redes de produção glo-bais (RPGs) surgiu no início dos anos 2000 na Escola de Meio Ambiente e Desenvolvi-mento (SED) da Universidade de Manches-ter, Reino Unido. Os autores da chamada Escola de Manchester desenvolveram esta abordagem no âmbito do debate sobre a re-lação entre sistemas transnacionais de pro-dução6 e desenvolvimento econômico.

Este quadro conceitual emergente foi posto em prática com o projeto de pesquisa Making the Connections: global production networks in Britain, east Asia and eastern Europe, liderado pelo Prof. Peter Dicken7 e financiado pelo Conselho de Pesquisa Eco-nômica e Social (ERSC) do Reino Unido. Es-

5. Faz-se aqui, referência aos temas-chave que estruturam a investigação realizada no âmbito do Grupo de Pesquisa Desenvolvimento, Trabalho e Ambiente (DTA), na UFRJ.6. A noção de sistemas transnacionais de produção se apropria aqui, do sentido que lhe emprestam Coe & Hess (2007), ou seja, conjuntos de atividades econômicas funcionalmente integradas, embora territorialmen-te dispersas, cujos modelos analíticos seriam, dentre outros, a cadeia de valor, a cadeia de commodity glo-bal, a cadeia de valor global e a rede de produção global. Gereffi (1994, p. 96) também emprega a noção.7. A contribuição seminal de Dicken para o debate sobre a globalização econômica, Global Shift, foi pu-blicada em 1986, e já se encontra em sua sexta edição em língua inglesa – com o subtítulo Mapping the Changing Contours of the World Economy (2011). A tradução para a língua portuguesa, realizada a partir da quinta edição (2007), foi empreendida por Teresa Cristina Felix de Sousa, com consultoria, supervisão

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te projeto enfocou a transformação das re-lações econômicas entre a Europa Ocidental – particularmente o Reino Unido e a Alema-nha, de um lado, e o Leste Asiático e a Euro-pa Oriental, de outro.

Para Dicken (2007, p. 7), mudanças qua-litativas associadas aos processos de produ-ção, distribuição e consumo de bens e ser-viços que caracterizam a globalização eco-nômica estariam moldando essa transfor-mação. E essas mudanças engendrariam, por sua vez, redes de produção globais, isto é, formas genéricas de organização econômica global (COE; DICKEN; HESS, 2008, p. 272) que conectariam estes territórios. Mais espe-cificamente, a Escola de Manchester define a rede de produção global como:

[...] um quadro conceitual que é capaz de apreender as dimensões social e econômica globais, regionais e locais dos processos en-volvidos em muitas (embora de modo algum todas as) formas da globalização econômi-ca. Redes de produção – o nexo de funções e operações interligadas através das quais bens e serviços são produzidos, distribuídos e consumidos – tornaram-se tanto organi-zacionalmente mais complexas quanto ca-da vez mais globais em sua extensão geo-gráfica. Essas redes não apenas integram fir-mas (e partes de firmas) em estruturas que obscurecem fronteiras organizacionais tra-dicionais – por meio do desenvolvimen-

to de diversas formas de relações de equi-dade e não-equidade –, mas também inte-gram economias nacionais (ou partes dessas economias) de formas que possuem implica-ções colossais para seu bem-estar. Ao mes-mo tempo, a natureza e a articulação preci-sas das redes de produção centradas na fir-ma são profundamente influenciadas pelos contextos sociopolíticos dentro dos quais elas estão enraizadas. O processo é especial-mente complexo porque enquanto os últi-mos são essencialmente específicos ao ter-ritório (principalmente, embora não exclu-sivamente, ao nível do Estado-nação), as re-des de produção em si não o são. Elas ‘atra-vessam’ as fronteiras estatais de formas alta-mente diferenciadas, influenciadas em parte, por barreiras regulatórias e não-regulatórias e por condições socioculturais locais, para criar estruturas que são ‘descontinuamente territoriais’. (HENDERSON et al., 2002, p. 8)

Os resultados empíricos do projeto de pes-quisa foram divulgados em 2005 (DICKEN; HENDERSON, 2005). No entanto, seus funda-mentos teóricos já vinham sendo desenvol-vidos anteriormente e sê-lo-iam por toda a década, formando um corpo literário funda-dor significativo (COE; DICKEN; HESS, 2008; COE; HESS, 2007; DICKEN, 2007; HESS; YEUNG, 2006; HESS, 2004; COE et al., 2004; HENDERSON et al., 2002).8

e revisão técnica de Helio Henkin. Esta edição foi publicada pela editora Bookman, de Porto Alegre, com o seguinte nome: Mudança Global: mapeando as novas fronteiras da economia mundial (2010). A tradu-ção do artigo de Henderson et al. (2002) leva à frente no entanto, a tarefa de divulgação da abordagem das RPGs, tornando sua trabalho fundador plenamente acessível.8. Os autores ‘fundadores’ são Henry Wai-Chung Yeung, Martin Hess, Neil M. Coe e Peter Dicken, da SED, e Jeffrey Henderson, membro do quadro docente da Manchester Business School (MBS) até 2008 e desde en-tão, integrante do Centre for East Asian Studies (CEAS), da Universidade de Bristol, Reino Unido. Alguns dos principais autores que vêm desenvolvendo o modelo das RPGs, tais como Gavin Bridge e Khalid Nadvi, da SED, e Richard Whitley, da MBS, continuam a justificar a denominação de Escola de Manchester. Desta lite-ratura fundadora, o único trabalho ao qual o autor não obteve acesso foi Coe (2009).

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A abordagem da rede de produção glo-bal se desenvolveu inicialmente, a partir da combinação de algumas ideias das aborda-gens das CCGs e das CVGs com as da teoria do ator-rede (TAR) e da literatura das varie-dades de capitalismo. No modelo das redes de produção globais, no entanto, os agen-tes e escalas dos sistemas transnacionais de produção são múltiplos, e as noções de valor e poder assumem novas dimensões em rela-ção àquelas empregadas pelas correntes que a precedem. Ademais, as RPGs foram res-ponsáveis por introduzir a noção de enrai-zamento – cara à sociologia econômica – no debate sobre a globalização.

Esta abordagem se distingue de suas congêneres inicialmente, pela sua escolha terminológica. A escolha de produção, em detrimento de commodity, deve-se a dois fa-tores. De um lado, o termo commodity refe-re-se a bens indiferenciados (padronizados)9

– o que não reflete a variedade contempo-rânea dos bens/serviços disponíveis em sis-temas transnacionais de produção. De ou-tro, o termo produção remete aos processos sociais envolvidos nas atividades de (re)pro-dução das formas e dos agentes das ativi-dades econômicas, rejeitando a reificação econômica ortodoxa e a desumanização da mercadoria, das quais padecem as aborda-gens precedentes.

No tocante à opção por rede, em detri-mento do termo cadeia, há múltiplos fato-res envolvidos. Primeiramente, a rede evoca maior complexidade da integração – em de-trimento de encadeamento – das atividades econômicas, formando gelosias de ativida-des. Outra vantagem da noção de rede sobre a de cadeia é a sua amplitude, empiricamen-te mais adequada, sobre mercados interme-

diários e finais de bens e serviços. Assim, o conceito de rede abre a possibilidade de con-siderar a influência e multidirecionalidade dos fluxos de valor, poder e enraizamento, permitindo maior variação sócio-espacial no que concerne à ação economicamente rele-vante (WEBER, 2003), isto é, influência so-bre o processo de produção.

O elemento fundamental no tocante à complexidade e dimensionalidade das abor-dagens das redes de produção globais e das cadeias de commodities ou valor globais diz respeito à autonomia dos agentes no interior da estrutura na qual se inserem. Fundamen-talmente, o poder quase ilimitado da firma lí-der ou dominante nas CCG/CVGs – estrutu-ra (coordenação) e macro-estrutura (contro-le) de governança – produz configurações de cadeia virtualmente imutáveis via ação autô-noma dos agentes periféricos. Desse modo, a ‘superagência’ das firmas centrais produz a superestrutura da cadeia.

Diferentemente, a noção de rede frag-menta a agência, a partir da incorpora-ção de uma multiplicidade de agentes-cha-ve em estruturas (estática) e processos (di-nâmica) assimétricos em função de ações e relações econômicas (valor), políticas (po-der), e sociais (enraizamento) em sentido la-to. Segundo Henderson et al. (2002), o mo-delo das RPGs reconhece que agentes diver-sos, oriundos igualmente de quadros sócio--institucionais variados, possuem priorida-des diferentes e por isso, são dotados de au-tonomia. Desse modo, a lógica da rede in-fluencia, mas não determina a ação e as re-lações entre os agentes, o que altera funda-mentalmente suas implicações para o re-sultado em termos de posicionamento dos agentes nas redes.

9. No caso da indústria siderúrgica, por exemplo, apenas alguns poucos produtos, o ferro gusa e placas de aço, por exemplo, podem ser considerados commodities propriamente.

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Além disso, a noção de global, comum à maioria dos modelos fundados nas noções de rede e de cadeia, tem origem em preo-cupações com a precisão analítica do mo-delo. Os termos concorrentes, internacional e transnacional, derivam de discursos esta-do-cêntricos, apresentando dificuldades em apreender processos inespecíficos a lugares e suas relações com processos específicos a estes últimos (relações global-locais). Nesse sentido, o paradigma das RPGs é caracteri-zado pela multiescalaridade e pela multia-gência assimétrica em termos de poder, va-lor e enraizamento.

Dentre as inovações analíticas do mo-delo, este artigo introdutório opta por cen-trar-se em sua dimensão multicêntrica, e na possibilidade aberta por ela de discutir as relações complexas entre os diversos tipos de agentes influentes em processos econô-micos, políticos e sociais complexos e seus recursos específicos, o valor, o poder e o en-raizamento.

O modelo teórico-metodológico das RPGs atribui, ainda, privilégio analítico10 aos agentes políticos e, em especial, econô-micos – em detrimento dos agentes sociais. Entretanto, a abertura analítica propiciada pelo modelo à incorporação destes últimos torna possível, mediante investigação empí-rica, o estabelecimento de relações de cau-salidade entre sua ação e fenômenos econô-micos complexos.

3 Categorias conceituais: valor, poder e enraizamento

Henderson et al. (2002) estabelecem as categorias conceituais fundamentais para este modelo – o valor, o poder e o enraiza-mento. Desse modo, apresentam uma evo-lução teórico-metodológica efetiva em re-lação aos seus predecessores e concorren-tes contemporâneos por manter e complexi-ficar as categorias tradicionais (valor e po-der) de análise dos fenômenos economica-mente relevantes (WEBER, 2003), oferecen-do uma tipologia de seus tipos e processos – e por adicionar uma terceira categoria: a de enraizamento.

3.1 valor

A propriedade, o controle e a mobiliza-ção de recursos econômicos dos mais diver-sos tipos são invariavelmente considera-dos como fontes cruciais das vantagens que os agentes econômicos desfrutam sobre os agentes políticos e, principalmente, sobre os agentes sociais no que diz respeito à auto-nomia relativa de suas estratégias e ações. No que concerne propriamente à importân-cia destes recursos e a de seus agentes re-presentativos – econômicos, o paradigma das RPGs propõe uma definição ampla do valor, compreendendo o conjunto das vá-rias formas da renda econômica.

10. O ponto de vista aqui adotado acerca da importância relativa dos diferentes agentes no âmbito deste modelo tripartite é eminentemente empírico. Nesse sentido, a atribuição de prioridade analítica a certos agentes, em detrimento de outros, constitui essencialmente, uma questão de investigação. No entanto, considerada a matriz disciplinar do modelo das RPGs, a saber, oriundo da geografia econômica, este arti-go considera necessário um exercício de ‘sociologização’ das redes de produção, de modo a dar conta da maior fragmentação e capacidades diferenciais de controlar e mobilizar recursos econômicos, políticos e sociais por parte dos agentes sociais.

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As chamadas formas do valor ou da ren-da chamam atenção para as diversas ex-pressões assumidas pelos recursos econômi-cos. A firma constitui então, o eixo sobre o qual recursos ou rendas tecnológicas, rela-cionais, organizacionais, de marca e de po-lítica comercial se sobrepõem ao núcleo de sua geração de valor: o processo de traba-lho. Nesse sentido, o valor é também, neste modelo, associado à definição marxiana de mais-valia.11

No entanto, a discussão de processos econômicos, políticos e sociais concretos, tipicamente multicêntricos, pois que carac-terizados pela presença de múltiplos agen-tes, demanda a apreensão dos processos que se relacionam ao valor. Isto porque, uma análise que pretenda captar a complexida-de da integração funcional dispersa que ca-racteriza a globalização econômica, como o modelo das RPGs, deve incorporar à discus-são dos fenômenos estritamente econômi-cos uma compreensão dos fenômenos eco-nomicamente relevantes (WEBER, 2003), is-to é, dos eventos que, ao incorporar agentes e relações não econômicos, produzem efei-tos importantes no âmbito da economia.

Nesse sentido, o exame das fontes e ex-pressões do valor é complementada, no pa-radigma das RPGs, pela análise dos planos da criação, da ampliação e da captura do valor. Os padrões através dos quais o valor é criado, ampliado e/ou capturado são nesse

sentido, duplamente econômicos e econo-micamente relevantes. Nesse sentido, con-siderada a sua geração material via proces-so de trabalho, e expressa, por exemplo, nos padrões tecnológico, organizacional, co-mercial, etc. de operação de firmas e setores, o valor pode ser também, ampliado e captu-rado – seja por agentes econômicos e não--econômicos.

Em primeiro lugar, no que concerne espe-cificamente à criação de valor, o modelo des-taca o tema da conversão da força de traba-lho em trabalho real via processo de traba-lho, com ênfase sobre suas condições de pro-dução e reprodução. Nesse sentido, importam em grande medida as estruturas de emprego e qualificação profissional, as condições de tra-balho12 e as tecnologias de produção, dentre outros temas-chave, que trazem à tona a im-portância dos agentes políticos e, principal-mente, sociais nas condições de criação do valor desfrutadas pela firma.

De outro, a criação das diversas formas da renda – influenciada pela geração do va-lor em si – diz respeito fundamentalmente, às condições de acesso a e controle sobre recursos econômicos de diferentes tipos e como as estruturas de mercado e regimes de competição valorizam os referidos recursos.

Por sua vez, o aumento ou a ampliação de valor depende dos contextos institucio-nais influentes sobre a ação e as relações en-tre os agentes econômicos e não econômi-

11. A relação entre a geração de valor via processo de trabalho e as diversas formas assumidas pela renda econômica concerne também à pesquisa empírica, já que diz respeito, dentre outras questões, às formas ma-terial e imaterial do valor e às dimensões operacional e financeira do comportamento da firma, setorialmen-te diversificadas. A incorporação da noção marxiana de mais-valia no modelo reequilibra duplamente as fontes e as expressões do valor, assim como as esferas da produção e da circulação econômicas.12. A produção guseira na Amazônia Oriental, por exemplo, particularmente no que concerne às diferentes condições de trabalho que caracterizam seus principais sub-nodos – carvoejamento, mineração de ferro e produção de gusa propriamente dita – é decisiva para a apreensão da RPG liderada pela norte-americana Nu-cor Co. porque representa um formato, possivelmente único, de geração e captura de valor (HENDERSON et al., 2002, p. 8), instituindo, possivelmente, um padrão de acumulação oriental-amazônico.

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cos, importando questões acerca do nível de transferência de tecnologia intra e inter-re-des, o nível de cooperação intra-rede com vistas à sofisticação de produtos, o nível de sofisticação dos processos de trabalho e o nível de autonomia das firmas locais para a criação de valor (HENDERSON et al., 2002).

Por fim, a captura de valor, envolve cer-tamente questões de política governamen-tal,13 por sua vez condicionados por ma-nifestações da crítica social (CARNEIRO, 2008). Sendo assim, a captura de valor diz respeito essencialmente ao padrão relacio-nal estabelecido entre agentes econômicos e não econômicos nas variadas dimensões – em especial nos planos local, subnacional e nacional. A captura de valor incorpora tam-bém questões relativas à propriedade da fir-ma que envolvem dicotomias relativas à na-cionalidade (estrangeira x nacional14) e regi-me administrativo (privada x pública) e de governança corporativa em escala nacional.

O modelo das RPGs não considera, en-tretanto, quaisquer possibilidades de multi-plicação financeira do valor, cuja importân-cia progressiva para firmas industriais vem sendo demonstrada, ao menos conjuntural-mente, no que concerne à elaboração de su-as decisões de investimento e de operação. Nesse sentido, ainda há sérias dúvidas a res-peito de um processo de financeirização em curso de firmas industriais, ao menos nos setores ‘duros’ de bens intermediários, como a mineração e a siderurgia (SANTOS, 2010).

No entanto, não parece inverossímil que suas estratégias (nível da agência) e condições (nível da estrutura) de crescimento ou conso-lidação, por exemplo, no sentido da estabi-lização de mercados (PIORE; SABEL, 1984) passem, cada vez mais, por avaliações e ope-rações financeiras como variáveis de equilí-brio e complemento às atividades operacio-nais que as firmas desempenham.

3.2 Poder A categoria poder, apreendida pelo para-

digma das CCGs/CVGs como controle e co-mo coordenação, é também considerada de-cisiva para o modelo das RPGs. As fontes e formas do poder na rede são decisivas tan-to para o aumento quanto para a captura de valor. Esta categoria remete especificamen-te a um conjunto de agentes não econômi-cos, particularmente relacionados a esferas político-institucionais formais.

No entanto, a capacidade que um ou mais agentes têm de influenciar o compor-tamento de outros agentes em um sentido previamente estabelecido é partilhada de forma assimétrica entre seus diferentes ti-pos. Nesse sentido, agentes econômicos, po-líticos e sociais podem influenciar e ser in-fluenciados em contextos interativos. As-sim, o paradigma das RPGs estabelece fun-damentalmente, três fontes/formas de po-der: corporativo, institucional e coletivo (HENDERSON et al., 2002, p. 450-1).

13. A disputa em curso entre a mineradora brasileira Vale e o Departamento Nacional de Produção Mi-neral (DNPM) em torno da definição de novos valores para a Compensação Financeira pela Exploração de Recursos Minerais (CFEM) demonstra como, na mineração de ferro, por exemplo, a apropriação de royal-ties é, nesse sentido, decisiva ( ver MONTEIRO, 2004).14. O processo de privatização de setores-chave da economia brasileira, como a siderurgia e a mineração, ilustram a necessidade de análises acuradas sobre a nacionalidade da propriedade e do controle aos níveis da firma e do setor (ver DOERING; SANTOS, 2011), mas também da economia como um todo, e seus efei-tos sobre o comportamento dos agentes econômicos.

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Para os autores, o poder corporativo é definido como capacidade de influência eficaz sobre as decisões corporativas (ação econômica) de outros agentes (econômicos). No entanto, a influência do poder corpora-tivo – suportado pelo acesso diferencial a recursos econômicos – se expressa funda-mentalmente, nas relações sociais e políti-cas tanto com agentes econômicos quanto não econômicos.

O poder institucional é exercido, dife-rentemente, por agentes não econômicos diversos, incluindo organizações e agências estatais, agências interestatais, as institui-ções de Bretton Woods, agências da Orga-nização das Nações Unidas (ONU) e agên-cias de classificação de risco. Sua ação, po-lítica e/ou simbólica, influencia direta e in-diretamente, e de forma assimétrica, ações econômicas.

O poder coletivo, por fim, é exercido, tan-to direta quanto indiretamente, por agentes coletivos (sociais) com vistas a influenciar agentes econômicos e não econômicos (po-líticos e institucionais). As abordagens em termos de crítica (BOLTANSKI; CHIAPELLO, 2009) e contestação social (HOMMEL; GO-DARD, 2001) apreendem, em consonância, a influência exercida pelos agentes sociais e suas coalizões15 sobre as estratégias e ações de agentes econômicos e políticos.

Ainda que a modelagem espacial do pa-radigma das RPGs tenda a privilegiar certos agentes (econômicos) em detrimento de ou-

tros, em função de suas (i)mobilidades rela-tivas, a fixidez da ação local dos agentes so-ciais, quando combinada a formas específi-cas de conversão de suas estratégia e cos-movisão em interesses coletivos, é capaz de proporcionar graus de poder bastante impre-vistos a estes agentes. Em dados contextos, pode inclusive ‘bloquear’ a agência de ope-radores econômicos no território.

O município de São Luís, capital do es-tado do Maranhão, não possui nenhuma si-derúrgica implantada. No entanto, em 2004 um projeto siderúrgico de grande porte – ca-pitaneado pela Vale e pela chinesa Baosteel Group Co. – constituiu um evento cultural que explicitou o confronto entre as formas corporativa, institucional e coletiva do po-der. O projeto foi contestado por um conjun-to de movimentos sociais – dentre os mais notáveis, o Movimento Reage São Luís e o Fórum Carajás – que se empenhou na des-construção do discurso desenvolvimentista das elites políticas e econômicas locais e es-taduais (LIMA, 2009), de modo que a refe-rida decisão de investimento fosse avaliada, também moralmente, em termos técnicos – propriamente ambientais – e públicos, espe-cificamente sociais.

Concretamente, a imagem construída de um evento futuro – a instalação de um par-que siderúrgico – alterou fundamentalmen-te, as capacidades relativas de ação de in-divíduos, grupos, organizações e institui-ções envolvidos na disputa de poder. A ação

15. Indivíduos, grupos, organizações e instituições não econômicas, isto é, não concebidas em função de uma motivação econômica dominante, importam, em uma variedade de situações concretas. Por exemplo, camadas médias urbanas e sua preocupação contemporânea com os efeitos socioambientais de empreen-dimentos industriais constituem coalizões anti-desenvolvimentistas, por sua vez capazes de influenciar decisões empresariais de operação e, mesmo de investimento. Dessa forma operam também, grupos de in-teresse organizacionalmente constituídos com vistas à representação de categorias profissionais e popula-ções tradicionais, como pescadores artesanais, agricultores familiares, metalúrgicos, grupos indígenas e quilombolas, etc.

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de grupos de interesse (por exemplo, a clas-se média urbana de São Luís) e de organiza-ções sociais (como o Movimento Reage São Luís) que a representam, em associação com camadas populares potencialmente impacta-das, acabou por transformar o risco poten-cial em uma imagem socialmente penetrante apta a produzir efeitos práticos em termos de bloqueio da agência de agentes ‘poderosos’, como a Baosteel e a Vale.

Em outros termos, os movimentos so-ciais, isto é, os agentes economicamente re-levantes representados pelo Movimento Re-age São Luís, mediando e construindo um projeto desenvolvimentista-preservacio-nista, transmutaram uma cosmovisão ur-bana em interesse coletivo. Ao fazê-lo, fo-ram capazes de atrair indivíduos e organi-zações políticos relevantes, particularmente em âmbito estadual, em uma ampla coali-zão. O resultado foi o bloqueio de uma de-cisão de investimento. O exercício do poder coletivo adquiriu preeminência, nesse caso, sobre o poder institucional, e sobrepôs-se às estratégias dos agentes econômicos (cor-porativos).

3.3 enraizamento

Finalmente, ações, organizações e insti-tuições econômicas são, por definição, for-mas específicas de relações sociais e, por-tanto, estão enraizadas em configurações

sociais. O enraizamento (embeddedness)16 é, então, concebido como a capacidade de in-fluência das relações sociais lato sensu so-bre a atividade econômica e seus agentes. (HESS, 2004)

Assim, a herança sócio-cultural dos agen-tes – ou seja, suas relações com os territórios dos quais se originam –, a natureza de sua in-serção em uma ou mais redes, assim como os tecidos sociais nos quais estes se inserem in-fluenciam de modo crucial o seu comporta-mento. Os pontos de partida e de chegada da ação econômica concreta são interligados por trajetórias híbridas (inerciais, embora mutá-veis), em parte reflexivas dos contextos só-cio-culturais nos quais se produz a ação eco-nômica (dependência de trajetória), assim co-mo são influenciados pela configuração sin-crônica das redes .

Na formulação original das RPGs, Hen-derson et al. fazem referência a duas formas básicas de enraizamento: territorial, que se refere às diferentes formas de ancoragem espacial e; de rede, concernente às relações inter-firmas em rede (2002, p. 452). A es-tas formas, Hess (2004)17 soma uma tercei-ra, particularmente importante, o enraiza-mento social, que se refere à história e às origens sócio-culturais dos agentes – eco-nômicos e não econômicos a partir da pers-pectiva aqui adotada.

O primeiro tipo, o enraizamento territo-rial, constitui uma relação de condiciona-

16. O trabalho de Mark Granovetter (1985) estabeleceu a idéia de que a ação econômica é enraizada em redes de relações sociais contínuas. Desde então, o léxico de redes e enraizamento domina a sociologia econômica, os estudos organizacionais e a gestão estratégica, concorrendo para a produção de trabalhos teóricos e empíricos sobre a relação entre enraizamento de rede e a formação e desempenho da firma ( ver HESS; YEUNG, 2006). Hess e Yeung (2006, p. 1193) assumem as perspectivas de rede e enraizamento na economia e sociologia das organizações de meados dos anos 1980 como uma das quatro matrizes teórico--conceituais do paradigma das RPGs.17. Essa novidade – em face dos demais trabalhos fundadores desta abordagem, muitos deles posterio-res a esta publicação – não foi até o momento, no entanto, incorporada explicitamente ao modelo for-mal das RPGs.

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mento mútuo entre a ação econômica e as dinâmicas sociais, políticas e econômicas localizadas. A partir desta definição, Coe et al. (2004) chamam atenção para os graus e formas diversos de enraizamento territorial aos quais os agentes se encontram subme-tidos. Desse modo, a distinção entre agen-tes locais e não locais (extralocais)18 impor-ta diretamente para os processos de distri-buição de valor e de poder.

O enraizamento territorial refere-se à importância do plano de destino (anco-ragem territorial ou de lugar) na modela-gem da atividade econômica. Hess afirma que as dinâmicas econômicas e sociais já existentes podem ser absorvidas19 por e res-tringir ou constranger os agentes econômi-cos na rede. Sustenta também que proces-sos de enraizamento territorial podem criar novas redes de relações sociais e econômi-cas, reorganizando os agentes existentes e/ou atraindo novos agentes, assim concor-rendo para a transformação de todo o siste-ma econômico.

A intensidade e modo do enraizamento territorial importam para o desenvolvimen-to porque possibilitam e restringem, em combinações diversas, as redes e seus agen-tes, influenciando suas ações – principal-mente suas decisões locacionais (atração x repulsão). Organizações políticas (governos em diferentes níveis) e sociais (associações de representação de interesses de trabalha-dores, por exemplo) são agentes de enraiza-mento territorial cruciais. Por fim, o enrai-zamento territorial é um processo dinâmi-

co, podendo implicar no limite, em rever-são – desenraizamento territorial. Os pro-cessos do valor são especialmente afetados, portanto, pela intensidade e modo do en-raizamento territorial.

O enraizamento de rede refere-se à im-portância das relações entre agentes in-dividuais ou coletivos na rede – indepen-dentemente das relações temporais (com a sua própria história) e espaciais (ancora-gem territorial específica). Essas relações podem ser classificadas quanto à arquite-tura, forma (formal x informal), duração e equilíbrio (estável x instável) (HENDER-SON et al., 2002, p. 453), e são impactantes nas esferas do enraizamento individual20 do agente à rede e do enraizamento estrutural da rede (estrutura e evolução da rede co-mo um todo). No primeiro caso, centra-se no agente individual (em especial a firma) e no segundo, na rede (incorporando agentes não econômicos).

Hess acredita que o enraizamento de re-de é produto da construção de confiança entre os agentes. Isto é, acredita que as pro-priedades de externalidade e coercividade da rede derivam de uma variante específica – confiança – das relações econômicas en-tre agentes. Mesmo em âmbito intra-firma, a confiança é parte fundamental das rela-ções entre unidades de firmas, tanto quanto em arranjos coletivos, como os de tipo joint venture. (HESS, 2004)

O enraizamento social refere-se, por sua vez, à importância do plano de origem (ou ‘código genético’) que modela a ação indi-

18. Na primeira categoria enquadram-se, por exemplo, a força de trabalho e o Estado, e na última, as TNCs e o capital financeiro. A força de trabalho, por exemplo, permanece atada a mercados locais de trabalho, embora se internacionalize via alianças inter-institucionais e organizações internacionais.19. A absorção é exemplificada pela integração de clusters de pequenas e médias empresas (com redes so-ciais e mercados de trabalho locais) e das redes de subcontratação e subsidiarização de firmas líderes.20. Hess refere-se a este subtipo como relacional, embora seja, na verdade, individual.

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vidual e coletiva. A noção de ‘social’ é en-tendida em sentido amplo (cultural, políti-co, etc.). Hess afirma que este modo de en-raizamento se assemelha ao sentido original do conceito, proposto por Karl Polanyi. Isto significa, para Hess, a influência da história constitutiva (sócio-cultural) do agente sobre o seu comportamento. Ele critica também a inespecificidade da noção de cultura e a concebe amplamente como a herança de um agente que o conecta à sociedade da qual es-te emana. Para ele, as formações culturais tanto possibilitam (enable) como restringem (constrain) os agentes (a ação) – assim como as estruturas de rede. O enraizamento social também refletiria a estrutura regulatória e institucional21 que afeta (e por vezes, deter-mina) o comportamento – tanto em nível in-dividual quanto ao nível da firma.

4 Conclusão

O principal postulado subjacente à dis-cussão aqui empreendida diz respeito à na-tureza matricial dos fenômenos econômicos de grande magnitude, capazes de polarizar uma série diversa de agentes – econômi-cos, políticos e sociais – em torno de recur-sos específicos e complementares. O mode-lo das RPGs, dentre outras inovações analí-ticas não tratadas no artigo, explicita a na-tureza dos referidos recursos – valor, poder e enraizamento.

Nesse sentido, o modelo provê uma es-trutura teórico-metodológica apta a dar conta das interações complexas entre agen-

tes diversificados operando sobre recursos igualmente variados – sobre os quais reivin-dicam legitimidade privilegiada – e sua mo-bilização contextual. As redes de produção globais têm, pois a possibilidade de superar as matrizes unitárias de explicação dos fe-nômenos econômicos, representadas ora pe-la firma, ora pelo Estado.

Nesse sentido, o artigo centrou-se nas referidas categorias conceituais de modo a explicitar sua contribuição para a pesquisa na área de ciências sociais, destacando, em particular, o papel dos agentes sociais em inúmeros processos definidos como econô-micos, mas essencialmente relacionados à formação, acúmulo e mobilização do valor, do poder e do enraizamento.

Estes agentes, a partir de seus recursos específicos e complementares exercem uma influência constante e profunda sobre as es-tratégias e ações dos agentes econômicos e políticos. A especificidade de sua influência, assim como a fragmentação desta em uma miríade de agentes concretos certamente são desafios a serem transpostos no âmbito da pesquisa empírica. No entanto, esta in-fluência, pois que específica e fragmentada, não é menos decisiva na compreensão dos fenômenos multidimensionais – com frequ-ência considerados estritamente econômi-cos – dos quais tratam as ciências sociais.

Aqui, a despeito da assimetria estru-tural postulada pelo modelo das RPGs en-tre os agentes econômicos e não econômi-cos, considera-se que é um critério eminen-temente empírico que deve nortear a ênfa-

21. Um dos desafios epistemológicos do modelo diz respeito à incorporação das variedades de capitalismo em seu quadro. A variação das economias nacionais concretas (organizações empresariais e industriais, es-truturas institucionais, níveis de integração à economia global), permanece ou um problema estrutural inexplorado ou um pano de fundo contextual. O modelo das redes de produção globais busca dar conta das variedades de capitalismo através de uma análise em termos de enraizamento social (HESS; YEUNG, 2006).

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se analítica sobre determinadas dimensões dos fenômenos econômicos que relacionam tais agentes diversificados nas diversas es-calas espaciais. No contexto brasileiro con-temporâneo, a apreensão da dimensão so-cial de tais fenômenos, em particular no que concerne a sua relevância econômica, pare-ce ser bastante promissora.

Nota Sobre o aUtor

Rodrigo Salles Pereira dos Santos é doutor em Ciências Humanas (Sociologia) pelo PPGSA/UFRJ e Pesquisador do Grupo de Pesquisa De-senvolvimento, Trabalho e Ambiente (DTA), li-derado pelo Prof. Dr. José Ricardo Ramalho e pela Profa. Dra. Neide Esterci (UFRJ).

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recebido em: 15.04.11aprovado em: 08.06.11

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artig

o

Jeffrey Henderson Peter Dicken Martin Hess

Neil CoeHenry Wai-Chung Yeung

REDES DE PRODUÇÃO GLOBAIS E A ANáLISE DO DESENVOLVIMENTO ECONôMICO1

reSUMo Este artigo descreve um modelo para a análise da integração econômica e sua re-lação com as assimetrias do desenvolvi-mento econômico e social. Consciente-mente rompendo com formas estado-cên-tricas de ciência social, defende uma agen-da de pesquisa que seja mais adequada às exigências e consequências da globaliza-ção do que tradicionalmente tem sido o caso nos ‘estudos sobre o desenvolvimen-to’. Baseando-se em tentativas anteriores de analisar as atividades transfronteiriças das firmas, suas configurações espaciais e consequências para o desenvolvimento, este artigo vai além destas ao propor o modelo da ‘rede de produção global’ (RPG). Ele explora os elementos conceituais en-volvidos neste modelo com algum porme-nor e depois passa a esboçar um exemplo estilizado de uma RPG. O artigo termina com uma breve indicação dos benefícios que poderiam ser obtidos pela pesquisa in-formada pela análise da RPG.

PalavraS-Chave Globalização. Desenvolvimento econômico. Redes de negócios. Instituições. Enraiza-mento2.

abStraCt This article outlines a framework for the analysis of economic integration and its relation to the asymmetries of economic and social development. Consciously breaking with state-centric forms of social science, it argues for a research agenda that is more adequate to the exigencies and consequences of globalization than has traditionally been the case in ‘devel-opment studies’. Drawing on earlier at-tempts to analyse the cross-border activi-ties of firms, their spatial configurations and developmental consequences, the ar-ticle moves beyond these by proposing the framework of the ‘global production net-work’ (GPN). It explores the conceptual el-ements involved in this framework in some detail and then turns to sketch a stylized example of a GPN. The article concludes with a brief indication of the benefits that could be delivered by re-search informed by GPN analysis.

KeywordSGlobalization. Economic development. Bu-siness networks. Institutions. Embedded-ness.

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1 Introdução

A análise do desenvolvimento econô-mico tem sido perturbada por uma série de disjunções analíticas que resultaram em tra-balhos seja aos níveis macro ou meso de abstração ou; onde as investigações empí-ricas examinaram processos ao nível micro, o quadro analítico mais amplo tem estado frequentemente ausente, meramente im-plícito, ou na melhor das hipóteses, pouco desenvolvido. Embora haja notáveis exce-ções a esta regra geral (por exemplo, AR-MSTRONG; MCGEE, 1985) por trás dela jaz pouco mais de meio século de conhecimen-to em economia do desenvolvimento (in-dependentemente da sua vertente paradig-mática) e em economia política e sociolo-gia do desenvolvimento.3 Ademais, desde os primórdios das abordagens ‘dependen-tistas’ acerca do desenvolvimento na déca-da de 1940, passando pelos debates sobre os respectivos papéis de Estados e mercados no ‘milagre’ do leste asiático e seu recente desfecho, o Estado tem sido frequentemente concebido como o agente central no desen-volvimento, seja a avaliação do seu papel positiva ou negativa.4 Embora a importân-

cia dos movimentos trabalhistas, de gênero e de outros movimentos sociais, bem como de agências internacionais como o FMI e o Banco Mundial, no que concerne ao desen-volvimento tenha figurado em análises ra-dicais, o espaço analítico dado a outros ato-res do desenvolvimento além destes, tem si-do limitado.

Em lugar algum esta relativa ausência é mais óbvia do que com respeito à firma. Embora haja uma longa história de traba-lhos sobre investimento estrangeiro e de-senvolvimento (resumida, por exemplo, em JENKINS, 1987; DICKEN, 1998), esta ten-deu a lidar em grande medida com o pa-pel das corporações transnacionais (CTNs) e baseou-se principalmente em dados secun-dários para erigir seus fundamentos empí-ricos. Uma pequena parte dela examinou a dinâmica organizacional das subsidiárias das CTNs à medida que surgiam, evoluíam e geravam impactos sobre economias espe-cíficas e, uma parte menor ainda tratou das firmas domésticas, sejam elas associadas ou não a companhias estrangeiras.5

Há, naturalmente, uma quantidade con-siderável de pesquisas sobre firmas que vem sendo conduzida por sociólogos do trabalho

1. Traduzido por Rodrigo Santos, Doutor em Sociologia e Antropologia pelo PPGSA/UFRJ, traduzido do original ‘Global production networks and the analysis of economic development’. In: Review of Interna-tional Political Economy, v. 9, n. 3, p. 436-464, 2002. 2. Os termos enraizamento, incrustação, imersão, imbricação e encaixe são utilizados pela literatura so-ciológica para traduzir o original embeddedness.3. Para os fins deste artigo, o nosso engajamento intelectual é em grande medida com as contribuições à economia política do desenvolvimento, estejam eles sob disfarces ‘sociológicos’, ‘geográficos’, ‘econômi-cos’, ou ‘da ciência política’.4. Temos em mente aqui os argumentos da suposta panacéia do ‘livre’ mercado como ferramenta de de-senvolvimento, por um lado, passando pela ênfase em iniciativas estatais industriais, de outro, bem como aqueles que vêem a relação Estado-mercado como simbiótica para fins de desenvolvimento. Em todos es-ses casos, no entanto, o peso analítico tende a ser colocado sobre a natureza e aplicação da política eco-nômica estatal ( ver EVANS, 1992).5. As poucas monografias notáveis aqui (como GEREFFI, 1983; HENDERSON, 1989; DONER, 1991; SKLAIR, 1993) apenas servem para sublinhar a regra geral.

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e das organizações e por especialistas em estudos de gestão. No entanto, esta tem es-tado, em grande medida, confinada às em-presas em economias desenvolvidas e nas antigas sociedades socialistas de Estado da Europa Central e Oriental, e, onde foi reali-zada por especialistas em gestão, se mante-ve alheia à ciência social atual e, portanto, tem falhado amplamente em influenciar (ou ser influenciada por) narrativas mais ge-rais. Onde trabalhos dessa natureza foram conduzidos no mundo em desenvolvimen-to, estes foram realizados em grande parte por pesquisadores feministas e tenderam a se envolver mais com questões ligadas ao gênero do que com as questões mais amplas de organização industrial e desenvolvimen-to econômico (ver, por exemplo, HEYZER, 1986; MITTER; ROWBOTHAM, 1995).

Uma disjunção analítica adicional – e, dadas as circunstâncias contemporâneas, talvez fatal – é que a pesquisa sobre o de-senvolvimento econômico (como aconte-ce com a maior parte das ciências sociais) tem sido estado-cêntrica em seus pressu-postos e análises.6 Ainda que a teoria do sis-tema-mundo tenha proporcionado um qua-dro analítico que promete superar essas li-mitações, ela é uma estrutura que, contudo, tem de agir como um guia significativo pa-ra o trabalho empírico sobre os problemas contemporâneos do desenvolvimento. Nes-te contexto, o Estado nacional continua a ser a unidade convencional de análise pa-ra a maior parte dos estudos sobre a econo-mia mundial. No entanto, a atenção exclu-siva a este nível de agregação está se tor-nando menos útil em função das mudanças

ocorridas na organização de atividades eco-nômicas que tendem cada vez mais a atra-vessar as fronteiras do Estado, ainda que es-tejam desigualmente contidas dentro delas.

De fato, Castells argumentou que o mun-do está sendo transformado de um ‘espaço de lugares’ em um ‘espaço de fluxos’ (CAS-TELLS, 2000a; 2000b). Mais precisamen-te, talvez, o mundo é agora constituído tan-to por um espaço de lugares quanto por um espaço de fluxos e, portanto, a natureza da relação dialética entre esses espaços e das consequências dessa relação tornou-se uma questão fundamental.

A fim de entender a dinâmica do desen-volvimento em um determinado local, te-mos então, de compreender como lugares estão sendo transformados por fluxos de capital, trabalho, conhecimento, poder, etc., e como, ao mesmo tempo, lugares (ou mais especificamente seus tecidos institucionais e sociais) estão transformando aqueles flu-xos à medida que se localizam em domínios específicos ao lugar. A globalização (por-que é a abreviação para as nossas preocupa-ções) solapou a validade das formas de ci-ência social tradicionais, centradas no Es-tado, e com isso, as agendas que até agora têm orientado a vasta maioria das pesquisas sobre desenvolvimento econômico e social. A investigação apropriada ao estudo da glo-balização e de suas consequências demanda dos cientistas sociais a elaboração de qua-dros analíticos e de programas de pesquisa que, simultaneamente, ponham em primeiro plano a dinâmica do desenvolvimento de-sigual em níveis transnacional, nacional e subnacional. Tais investigações nos obri-

6. Nós não queremos negar a pertinência de algumas contribuições estado-cêntricas para a análise da glo-balização e de seus problemas e como estes poderiam ser resolvidos. Alguns trabalhos sobre a crise do leste asiático, (por exemplo, CHANG, 1998; HENDERSON, 1999; WEISS, 1999), são casos em questão.

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gam a focalizar os fluxos e lugares e suas conexões dialéticas à medida que essas sur-gem e são percebidas, igualmente nos países desenvolvidos e em desenvolvimento. Além disso, se o objeto de nossos esforços são as possibilidades para o desenvolvimento eco-nômico e a prosperidade, então devíamos reconhecer que, de modo a falar com auto-ridade sobre estas questões, precisamos es-tudar o que as firmas fazem, onde o fazem, porque o fazem, porque são autorizadas a fazê-lo, e como organizam este fazer atra-vés de diferentes escalas geográficas.

Neste artigo nós delineamos um qua-dro analítico que, acreditamos, nos ajuda a compreender alguns destes processos de forma mais eficaz. O modelo que propomos é o da “rede de produção global” (RPG). Em-bora a RPG não esteja desenvolvida como uma estrutura totalizante capaz de apreen-der as complexidades incontáveis da globa-lização econômica, acreditamos que é capaz de proporcionar um melhor poder de análi-se acerca da mutável distribuição interna-cional da produção e consumo – e a viabi-lidade de diferentes estratégias de desenvol-vimento às quais se relaciona – do que foi possível previamente.

Começamos com algumas breves refle-xões críticas sobre os precursores mais rele-vantes ao nosso trabalho. Em seguida, deli-neamos os elementos conceituais da RPG e, ao fazê-lo, realçamos as razões de sua su-perioridade analítica sobre modelos concor-rentes. Em penúltimo lugar, nós apresenta-mos um exemplo estilizado de uma RPG e concluímos com um breve comentário sobre os benefícios que a pesquisa de RPGs pode-ria produzir.

2 reflexões críticas sobreabordagens relacionadas

Nos últimos 20 anos ou mais, uma infi-nidade de estudos têm surgido fazendo uso de uma variante ou outra do conceito de ca-deias ou redes.7 O resultado é um conside-rável grau de confusão no uso e significa-do das terminologias empregadas (STUR-GEON, 2001). Embora as abordagens muitas vezes se sobreponham umas às outras, elas derivam de diferentes campos intelectuais e, portanto, trazem consigo um tipo diferente de ‘bagagem’ intelectual. Uma diferença en-tre estas abordagens está entre aquelas que resultam da literatura de gestão empresarial e aquelas que evoluíram dentro de um qua-dro econômico-desenvolvimentista. Uma segunda diferença está entre aquelas que utilizam a metáfora de ‘cadeia’ e aquelas que adotam uma perspectiva de ‘rede’ (em-bora a distinção não esteja sempre clara).

2.1 Conceitos de Cadeia

A cadeia de valor ou cadeia de adição de valor é um conceito de longa data estabe-lecido na economia industrial e na litera-tura de estudos de negócios. Tem sido usa-do de forma mais proeminente por Michael Porter (1985, 1990) e tem obtido aceitação muito ampla na comunidade gerencial. Co-mo em todos os usos da metáfora da cadeia, seu valor reside em sua ênfase na estrutu-ras sequenciais e interligadas das atividades econômicas, com cada elo ou elemento na cadeia adicionando valor ao processo (valor sendo definido em termos da remuneração da firma). Para os nossos propósitos, a con-

7. Ver, por exemplo, Gereffi (1995, 1999a); Gereffi e Korzeniewicz (1994); Sklair (1995) e o IDS Bulletin (32/3, 2001), que se concentra totalmente nas cadeias globais de valor.

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ceituação de Porter tem uma utilidade limi-tada porque é delimitada pela firma ou rede inter-firma e não presta atenção a questões de poder corporativo, aos contextos institu-cionais de – e influências sobre – atividades baseadas na firma, ou aos arranjos territo-riais (e suas profundas assimetrias econômi-cas e sociais), nas quais as cadeias estão en-raizadas. Como conseqüência, ela tem pou-ca relevância para o estudo do desenvolvi-mento econômico.

De maior importância é o conceito de fi-lière, que é definido como um sistema de agentes que produzem e distribuem bens e serviços para a satisfação de uma deman-da final. Desenvolvido na década de 1970 por economistas franceses a fim de alcan-çar uma compreensão mais estruturada de processos econômicos dentro de sistemas de produção e distribuição (LENZ, 1997, p. 21), o conceito deriva de uma tradição predomi-nantemente empírica, cujos principais ob-jetivos são mapear fluxos de mercadorias e identificar os agentes e atividades dentro do filière (RAIKES et al, 2000, p. 404). Ao fazê--lo, relações hierárquicas entre agentes po-dem ser identificadas, permitindo uma aná-lise detalhada da dinâmica da integração e desintegração econômicas.

É difícil identificar um núcleo teóri-co distinto para a abordagem do filière. Na verdade, há uma pluralidade de teorias im-plícitas nas análises de filière recentes, par-ticularmente as da regulação e a da teoria das convenções.8 Embora a abordagem do filière focalize agentes dentro do sistema, bem como a dependência e a distribuição de poder, ela concentra-se principalmente em dois tipos de agente – grandes firmas e ins-tituições estatais (nacionais) – e como seus

âmbitos de atividade são limitados por res-trições tecnológicas. Daí que o espectro de agentes em redes de produção, seu papel em modelar essas redes e, portanto, de influen-ciar o desenvolvimento em diferentes esca-las, é apenas parcialmente tratado.

De longe a mais útil das conceituações de cadeia acerca das atividades econômicas é a cadeia global de commodity (CGC) de Gary Gereffi. As características do modelo da CGC têm sido amplamente descritas tanto nos pró-prios escritos de Gereffi (ver, por exemplo, GEREFFI; KORZENIEWICZ, 1994; GEREFFI, 1995, 1999a) quanto em apreciações de ou-tros (ver, por exemplo, DICKEN et al., 2001; CZABAN; HENDERSON, 1998; WHITLEY, 1996) de modo que não há necessidade de recuperá-las aqui. É importante, no entanto, compreender a linhagem intelectual do con-ceito de CGC de Gereffi e em que medida ele pode satisfazer as nossas necessidades.

O trabalho de Gereffi está situado na (am-plamente definida) tradição analítica da de-pendência. Concentrando-se na dinâmica da organização global de produção, contudo, possui uma afinidade especial com os traba-lhos no final dos anos 1970 e na década de 1980 sobre a emergência de uma ‘nova divi-são internacional do trabalho’ e suas conse-qüências econômicas e sócio-espaciais (FRÖ-BEL et al., 1980; HENDERSON; CASTELLS, 1987; HENDERSON, 1989). Tal como aconte-ce com o trabalho de Fröbel e seus colegas, a contribuição de Gereffi consistiu em uma tentativa explícita de operacionalizar algu-mas das categorias dos sistemas-mundo para o estudo empírico das transações transfron-teiriças baseadas na firma e sua relação com o desenvolvimento (GEREFFI, 1995). Diferen-temente do trabalho daqueles, no entanto,

8. Sobre o primeiro ver, por exemplo, a coletânea de Jessop (2001) com alguns contribuições seminais. Sobre o último ver Storper e Salais (1997, particularmente o capítulo 10).

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rompeu com as categorias espaciais estáticas (e agora empiricamente redundantes) da tipo-logia núcleo / semiperiferia / periferia e, co-mo tal, tornou-se mais capaz de apreender a realidade das ‘novas’ formas de organização industrial que se tornaram objeto de atenção acadêmica nas décadas de 1980 e 1990.

Para Gereffi et al (1994, p.2), as cadeias globais de commodities consistem de:

[...] conjuntos de redes interorganizacionais agrupados em torno de uma mercadoria ou produto, ligando residências, empresas e Es-tados uns aos outros dentro da economia--mundo. Estas redes são situacionalmen-te específicas, construídas socialmente e in-tegradas localmente, ressaltando o enraiza-mento social da organização econômica.

Com exceção dos sindicatos e outras or-ganizações não governamentais, esta defi-nição incorpora a maioria dos elementos re-levantes para a organização da firma e de redes inter-firma e sua relação com as pos-sibilidades de desenvolvimento econômico e social. No entanto, apenas alguns destes elementos foram seguidos empírica ou ana-liticamente por Gereffi, seus colaboradores, ou outras pessoas que têm trabalhado nes-ta vertente.9 Em particular, o foco tem se li-mitado esmagadoramente à questão da es-fera de governança da CGC e, dentro dela, a uma distinção bimodal entre CGCs dirigidas por produtores e compradores. Esta distin-ção, entretanto, é grosseira e conduz a al-guns problemas.

Primeiramente, embora a lógica pa-ra essa distinção resida nas barreiras dife-

renciais à entrada em mercados de produ-tos diversos (DICKEN et al, 2001), é claro que a distinção pretende referir-se a reali-dades empíricas específicas, setorial e orga-nizacionalmente. Não é, então, uma cons-trução típico-ideal.

Em segundo lugar, muitos dos trabalhos da tradição da CGC tem se preocupado com cadeias contemporâneas. Dificilmente qual-quer um deles procura re-construir a histó-ria da natureza e das implicações das ca-deias. Esta é uma omissão importante, por-que as relações sociais incorporadas nas ca-deias em um dado momento impõem uma dependência de trajetória10 e condicionam os cursos futuros de desenvolvimento da cadeia. Por exemplo, os contextos institu-cionais e arranjos sociais do período socia-lista de Estado persistem e circunscrevem de formas importantes o potencial para o de-senvolvimento econômico e político nas economias ‘de transição’ da Europa Oriental (STARK, 1992; HAUSNER et al, 1995; CZA-BAN; HENDERSON, 1998).

Em terceiro lugar, houve poucas tentati-vas de compreender a importância da pro-priedade da firma (doméstica ou estrangei-ra, e neste último caso, por nacionalidade) para o desenvolvimento econômico e social em sociedades específicas. Embora este ‘si-lêncio’ possa ser um produto da preocupa-ção primária do projeto da CGC com as ca-deias dirigidas por compradores, há clara-mente uma necessidade de reconhecer que a ‘nacionalidade’ da propriedade da firma pode ser um elemento-chave no progresso econômico e social.11

9. Dificilmente algum trabalho tem sido feito, por exemplo, sobre as famílias, os Estados e a reprodução da força de trabalho dentro da perspectiva das CGCs.10. Path-dependency no original.

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A quarta questão problemática para o modelo da CGC é o fato de que cadeias de commodity ligam não somente firmas em diferentes locais, mas também os contex-tos sociais e institucionais específicos ao nível nacional (por vezes subnacional), fo-ra dos quais todas as firmas surgem, e den-tro dos quais – ainda que em graus diferen-tes – continuam enraizadas. A implicação do modelo da CGC parece ser que firmas são principalmente reflexos do modo como da-das cadeias de commodity são organizadas e dos requisitos estruturais que isto impõe sobre o seu funcionamento em qualquer lo-cal. Neste esquema de coisas as firmas pa-recem ter pouca autonomia para desenvol-ver estratégias relativamente independen-tes (embora isto pareça crucial para as pers-pectivas do desenvolvimento sustentável). Além disso, parece haver pouco espaço para compreender de onde vêm as diferenças na-cionais e locais na organização do mercado de trabalho, das condições de trabalho, etc. Em nossa opinião estas questões não podem ser efetivamente teorizadas a menos que se-ja entendido que redes inter-firma ligam so-ciedades que exibem variação social e ins-titucional significativa, incorporam diferen-tes regimes de proteção social e têm diferen-tes capacidades para a gestão econômica es-tatal: em suma, representam diferentes va-riedades de capitalismo (BOYER; DRACHE, 1996; WHITLEY, 1999; COATES, 2000).

Como uma teoria emergente do desen-volvimento, no entanto, a perspectiva da CGC tem muito a recomendá-la. Não me-nos importante, ela ajudou a gerar impor-tantes trabalhos empíricos sobre calçados, vestuário, eletrônicos, horticultura, turismo e autopeças, por exemplo, e forneceu a ló-gica analítica para o que poderiam tornar--se novas iniciativas políticas da Organiza-ção Internacional do Trabalho (OIT)12. Ela leva adiante a tarefa de transcender as limi-tações de formas de análise estado-cêntri-cas e, ao fazê-lo, destaca as restrições sobre o desenvolvimento da firma – e, portanto, econômicas e sociais – que surgem a par-tir da estrutura de poder corporativo enrai-zado nas redes intra e inter-firma que cir-cundam o globo. Ajudando a mostrar que as capacidades de gerar valor são assimetrica-mente distribuídas em função da estrutura das CGCs, a perspectiva aponta para a exis-tência de novas formas de ‘desenvolvimen-to dependente’, bem como para as possíveis formas de transcender essas limitações.

2.2 Conceitos de rede

Uma cadeia mapeia a sequência vertical de eventos que levam à produção, consumo e conservação de bens e serviços – reconhecen-do que várias cadeias de valor frequentemen-te compartilham atores econômicos comuns e são dinâmicas de modo que são reutilizadas e

11. Ver, por exemplo, o trabalho sobre o mercado ‘reservado’ brasileiro para computadores de uso pesso-al (EVANS, 1986; SCHMITZ; HEWITT, 1992).12. Ver, por exemplo, os ensaios reunidos em Gereffi e Korzeniewicz (1994) e a edição especial do IDS Bulletin (32/3, 2001). Ver também Clancy (1998); Dolan e Humphrey (2000); Bonacich e Appelbaum (2000) e Kaplinsky (2000), entre outros. O instituto de pesquisa da OIT, o Instituto Internacional de Estu-dos do Trabalho, patrocinou um programa sobre ‘cadeias globais de commodity’ na década de 1990. A contínua atenção da mídia às condições de trabalho exploradoras evidentes nas empresas fornecedoras in-tegradas em cadeias como as da Nike e da Gap, por exemplo, sublinha a utilidade do modelo da CGC pa-ra agências como a OIT.

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reconfiguradas de forma contínua – enquan-to uma rede destaca a natureza e extensão das relações inter-firma que ligam conjuntos de firmas dentro de agrupamentos econômi-cos maiores. (STURGEON, 2001, p. 10)

Uma fraqueza expressiva da abordagem da ‘cadeia’ é sua conceituação dos processos de produção e distribuição como sendo es-sencialmente verticais e lineares. Na verda-de, esses processos são mais bem conceitua-dos como sendo estruturas em rede altamen-te complexas em que existem conexões in-tricadas – horizontais, diagonais, bem como verticais – formando gelosias multidimen-sionais e multicamadas de atividade econô-mica. Por essa razão, uma abordagem expli-citamente relacional e centrada na rede pro-mete oferecer uma melhor compreensão dos sistemas de produção.

Tal abordagem é a teoria ator-rede (TAR), que enfatiza o caráter relacional de ambos objetos e agência em redes hetero-gêneas (‘materialidade relacional’), indi-cando que entidades em redes são formadas por, e só podem ser compreendidas atra-vés de suas relações e conectividade com outras entidades (LAW, 1999, p. 4). Para o estudo das redes de produção globais, is-to significa que espaço e distância não po-dem ser vistos em termos absolutos e eucli-dianos, mas como ‘campos espaciais’ e es-copos relacionais de influência, poder e co-nectividade (HARVEY, 1969; MURDOCH, 1998). Dentre outras coisas, isto tem impli-

cações importantes para a conceituação de ‘global’ e de ‘globalização’.13

Outro aspecto importante da TAR é a re-jeição de dualismos artificiais como as tra-dicionais dicotomias global-local e estru-tura-agência. Finalmente, a TAR conceitua redes como coletividades híbridas de agen-tes humanos e não-humanos e, portanto, permite levar em consideração importan-tes elementos tecnológicos que subjazem e influenciam as atividades econômicas. No entanto, enquanto a TAR oferece uma me-todologia interessante, que já foi adotada para o estudo da globalização e das redes de produção (ver, por exemplo, WHATMO-RE; THORNE, 1997), sua contribuição pa-ra a análise do desenvolvimento econô-mico é limitada pelo fato de que carece de uma apreciação das condições estruturais e das relações de poder que, inevitavelmente, formam as redes de produção (DICKEN et al, 2001, p. 107).

Uma contribuição com uma afinida-de direta com o nosso trabalho é a versão da rede de produção global de Dieter Ernst. Desenvolvida contemporaneamente, mas de modo independente de nosso trabalho,14 Ernst concebe a RPG como um tipo parti-cular de inovação organizacional, nomea-damente aquele que “combina a dispersão concentrada da cadeia de valor através da firma e das fronteiras nacionais, com um processo paralelo de integração de cama-das hierárquicas dos participantes da rede (ERNST; KIM, 2001, p. 1)

13. Especificamente implica a rejeição do termo ‘global’ como uma construção geográfica simplista (ver a nossa discussão posterior). Da mesma forma, a ‘globalização’ econômica se refere à extensão de atividades econômicas funcionalmente integradas (e, portanto, socialmente relacionais) além das fronteiras nacionais (ver DICKEN, 1998, p. 5). A implicação disso para a conceituação das RPGs é que elas passam a ser vistas co-mo tipologias dinâmicas que potencialmente mudam de forma e aplicação ao longo do tempo.

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A lógica fundamental para as firmas es-tabelecerem RPGs desta natureza é, supos-tamente, acessar fornecedores flexíveis e especializados em locais de baixo custo. A RPG é vista como substituta da multinacio-nal como a forma mais eficaz de organiza-ção industrial, uma mudança que emergiu em resposta a três processos constitutivos da globalização, ou seja, a ascendência de políticas de liberalização, a aceitação rápi-da de tecnologias de informação e comuni-cação, bem como o aparecimento da com-petição ‘global’.

A evidência empírica utilizada para ilus-trar esta suposta mudança de larga escala na organização industrial é anedótica e quase exclusivamente retirada das indústrias ele-trônica e de tecnologia da informação. Por conseguinte, ao invés de ter desenvolvido uma categoria explicativa de relevância ge-ral, Ernst tendeu a destacar apenas uma for-ma particular de organização industrial; e uma forma que parece ter sido extraída de uma variação setorialmente restrita. O tra-balho de Ernst é particularmente útil, no en-tanto, à medida que destaca uma série de problemas-chave que têm dificultado a pes-quisa prévia nesta área.

Primeiro, ele critica a tendência a con-centrar-se estritamente no papel da firma ‘líder’ dentro de RPGs em detrimento da re-de de fornecedores que estão há mais de uma camada distantes da firma ‘líder’. Em segundo lugar, ele observa que, no mapea-

mento da dispersão das unidades de produ-ção, a pesquisa tem negligenciado frequen-temente a ampla gama de funções de ser-viço (do design ao marketing e além) que são cruciais para a viabilidade das RPGs. Em terceiro lugar, Ernst observa uma pre-ocupação com P&D formal e transferên-cias de tecnologia, o que pode impedir uma apreciação da importância da difusão de formas menos codificadas de conhecimen-to. Na verdade, grande parte da investiga-ção de Ernst sob a bandeira da RPG tem se preocupado com o potencial para diferen-tes formas de conhecimento (que ele de mo-do variado cunha como ‘encerebrada’15, ‘en-raizada’, ‘enculturada’16), a serem difundi-das a partir de RPGs em localidades em paí-ses em desenvolvimento e, assim, estimular o aperfeiçoamento17 da indústria local (ver, por exemplo, ERNST, 2000).

3 redes de produção globais

O conceito da rede de produção global (RPG) desenvolvido no restante deste artigo baseia-se em muitos aspectos nos trabalhos descritos na seção anterior. Em particular, ele se baseia no trabalho de Gereffi e de seus co-laboradores, mas leva a sério as críticas que têm sido formuladas contra ele. Concomitan-temente, o modelo tem por objetivo propor-cionar uma conceituação aplicável de mo-do mais geral da RPG do que a de Ernst. An-tes de elaborarmos a natureza da RPG, no en-

14. Embora ele já houvesse trabalhado com a noção de ‘rede de produção internacional’, Ernst usou o ter-mo ‘rede de produção global’ primeiramente em um trabalho apresentado em conferência em 1999 ( ver ERNST, 1999). Nossa primeira tentativa de elaborar um modelo da RPG apareceu em uma proposta de pes-quisa do mesmo ano (ver DICKEN; HENDERSON, 1999).15. Embrained no original.16. Encultured no original.17. Upgrading no original. Optou-se por não utilizar o termo modernização pelas conotações socioeconô-micas conceituais e ideológicas que evoca.

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tanto, é preciso explicar nossas preferências pelos termos ‘produção’, em detrimento de ‘commodity’, e de ‘rede’, em vez de ‘cadeia’. Precisamos também indicar a nossa própria compreensão de ‘global’.

No uso contemporâneo a expressão ‘commodity’ conota geralmente produtos padronizados e, com isso, a fixidez de sua produção no tempo e no espaço. Enquanto esta continua a ser a realidade de algumas formas de produtos e de atividades produti-vas (parte da agricultura, parte da indústria pesada e da extração mineral, por exem-plo), é evidente que não captura adequada-mente as formas pós-fordistas de atividade que caracterizam muitas das indústrias que o modelo da CGC, por exemplo, foi conce-bido para analisar. Mais importante, talvez, nossa preferência por um discurso de ‘pro-dução’ põe ênfase sobre os processos sociais envolvidos na produção de bens e serviços e na reprodução de conhecimento, capital e força de trabalho. Não obstante a descons-trução definitiva e a interrogação de Marx sobre a mercadoria (na parte I do primeiro volume de O Capital), o discurso das merca-dorias foi capturado pela economia ortodo-xa, independentemente do paradigma. Co-mo consequência, ela se transmutou em um léxico reificado e despojado de seu conteú-do social. Há uma necessidade, portanto, de reorientar a atenção para as circunstâncias sociais sob as quais as mercadorias são pro-duzidas e consumidas e, assim, evitar o pe-rigo constante de deslizar para uma percep-ção das mercadorias como blocos de cons-trução desumanizados envolvidos na pro-dução de outras mercadorias.

A metáfora da cadeia dá a impressão de um processo de atividades essencialmente linear que conduz, finalmente, a uma mer-cadoria pronta, em detrimento de um pro-cesso no qual os fluxos de materiais, produ-

tos semi-acabados, design, produção, servi-ços de marketing e financeiros são organi-zados de forma vertical, horizontal e diago-nal em configurações complexas e dinâmi-cas. Adicionalmente, a metáfora da cadeia – consistente com o discurso da mercadoria – parece ter dificuldades em incorporar a de-vida atenção às questões da reprodução, etc. Além disso, a metáfora da cadeia vai contra a possibilidade de conceber as firmas indivi-duais incorporadas em um sistema de pro-dução como tendo espaço para a ação au-tônoma dentro desse sistema, apesar do fato de que tal autonomia é fundamental para as possibilidades de aperfeiçoamento industrial e, portanto, desenvolvimento econômico sustentado. Como consequência destas difi-culdades, consideramos o discurso de redes mais abrangente, empiricamente adequado e, portanto, analiticamente mais fértil.

A adoção de um discurso de rede também oferece outros benefícios potenciais. Em par-ticular, contanto que a ‘produção’ seja ex-pressa amplamente para incluir mercados in-termediários e finais e que a dinâmica de po-der e conhecimento entre os atores e as ins-tituições sejam compreendidos de modo não--determinístico e multidirecional, então o modelo da RPG permite uma complexidade e variação geográficas muito maiores nas re-lações produtor-consumidor do que a abor-dagem da CGC, por exemplo, tem alcançado. Especificamente, este modelo deve facilitar a nossa capacidade de revelar como certos sa-beres fundamentais ‘circulam’ entre produ-tores, consumidores e intermediários, ao in-vés de mover-se de forma unidirecional – um insight crucial da crescente literatura sobre ‘culturas de commodity’ (por exemplo, COOK; CRANG, 1996; JACKSON, 1999). Além disso, esta abordagem deve também permitir geo-grafias sociais mais complexas a serem reve-ladas, no sentido de que os agentes em uma

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variedade de locais podem se combinar para influenciar o processo de produção.18

Finalmente, embora agora esteja na mo-da denominar como ‘global’ fenômenos e práticas que, até recentemente, teriam mais chances de ser chamados de ‘internacio-nais’ ou ‘transnacionais’, nossa adoção do primeiro termo é impulsionada por nossas preocupações com a precisão analítica. Es-pecificamente, os termos ‘internacional’ e ‘transnacional’ derivam de discursos essen-cialmente centrados no Estado. Assim, em-bora incorporem noções de atividade trans-fronteiriça de muitos tipos, eles não expres-sam adequadamente o modo pelo qual pro-cessos não específicos a lugares penetram e transformam, por sua vez, processos es-pecíficos a lugares, e vice-versa. Não aju-dam, portanto, a libertar as sensibilidades imaginativas necessárias à compreensão da dialética das relações global-local que ago-ra são uma pré-condição para a análise da globalização econômica e de suas consequ-ências assimétricas.

A rede de produção global tal como pro-posta aqui, é um quadro conceitual que é capaz de apreender as dimensões social e econômica globais, regionais e locais dos processos envolvidos em muitas (embora de modo algum todas as) formas da globaliza-ção econômica.19 Redes de produção – o ne-xo de funções e operações interligadas atra-vés das quais bens e serviços são produzi-dos, distribuídos e consumidos – tornaram--se tanto organizacionalmente mais com-plexas quanto cada vez mais globais em sua extensão geográfica. Essas redes não apenas integram firmas (e partes de firmas) em es-

truturas que obscurecem fronteiras organi-zacionais tradicionais – por meio do desen-volvimento de diversas formas de relações de equidade e não-equidade –, mas também integram economias nacionais (ou partes dessas economias) de formas que possuem implicações colossais para seu bem-estar. Ao mesmo tempo, a natureza e a articula-ção precisas das redes de produção centra-das na firma são profundamente influen-ciadas pelos contextos sociopolíticos den-tro dos quais elas estão enraizadas. O pro-cesso é especialmente complexo porque en-quanto os últimos são essencialmente espe-cíficos ao território (principalmente, embo-ra não exclusivamente, ao nível do Estado--nação), as redes de produção em si não o são. Elas ‘atravessam’ as fronteiras estatais de formas altamente diferenciadas, influen-ciadas em parte, por barreiras regulatórias e não-regulatórias e por condições sociocul-turais locais, para criar estruturas que são ‘descontinuamente territoriais’.20

O modelo da RPG reconhece explicita-mente que:

- firmas, governos e outros atores econô-micos de diferentes sociedades às vezes têm prioridades diferentes vis-à-vis à lucrativida-de, ao crescimento, ao desenvolvimento eco-nômico, etc. (como foi claramente demons-trado, por exemplo, nos comentários em tor-no da crise da Ásia Oriental, por exemplo, Chang, 1998 e Henderson, 1999), e conse-quentemente, as implicações da rede de pro-dução para a firma e para o desenvolvimen-to econômico em cada local não podem ser ‘mensuradas’ a partir da lógica de organiza-ção da rede e da distribuição de poder cor-

18. Ver, por exemplo, o estudo de Hughes (2000) do comércio de flores de corte.19. É improvável que seja de particular ajuda, por exemplo, para a análise de algumas formas de capital financeiro, tais como empréstimos bancários e de investimento de portfólio.20. Para uma discussão da política regional e de redes de produção, consulte Cabus e Hess (2000).

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porativo dentro dela. A perspectiva da RPG, em outras palavras, atribui um grau de auto-nomia relativa às firmas nacionais, governos e outros atores econômicos (por exemplo, os sindicatos, se for o caso), cujas ações têm po-tencialmente implicações significativas para os resultados econômicos e sociais das redes nos locais em que se incorporam;

- estruturas insumo-produto dentro das redes têm uma importância central, até por-que são estas que constituem os lugares on-de o valor é gerado e onde as enormes va-riações nas condições de trabalho que exis-tem ao redor do mundo são produzidas. Consequentemente quaisquer trabalhos so-bre redes intra e inter-firma devem prestar atenção significativa a estas estruturas e a suas consequências;

- um entendimento da ‘territorialidade’ das redes de produção – a saber, como se constituem e são re-constituídas por arran-jos econômicos, sociais e políticos dos luga-res nos quais se localizam – é fundamental para uma análise das perspectivas de desen-volvimento ao nível local;

- a distinção entre redes ‘dirigidas por produtores’ e ‘dirigidas por compradores’ é mais fluida do que o trabalho de Gereffi le-va em conta, com combinações de ambas nas mesmas áreas de produto e, de fato, em alguns casos no mesmo setor (por exemplo, autopeças e eletroeletrônicos), e;

- em alguns setores (produtos farma-cêuticos e alguns eletrônicos, por exemplo) alianças tecnológicas e acordos de licencia-mento são as formas de associação inter-fir-ma que podem ter implicações significativas para o desenvolvimento. Consequentemen-te, eles exigem a atenção por si próprios.

Metodologicamente, então, a perspecti-va da RPG dirige a atenção para:

- as redes de firmas envolvidas em P&D, design, produção e comercialização de um

determinado produto, e como estas estão organizadas em níveis global e regional;

- a distribuição do poder corporativo no in-terior dessas redes, e alterações nas mesmas;

- a importância do trabalho e dos pro-cessos de criação e transferência de valor;

- as instituições – em particular, agên-cias governamentais, mas também, em al-guns casos, sindicatos, associações patro-nais e ONGs – que influenciam a estratégia da firma nos locais específicos integrados na cadeia de produção; e

- as implicações de todos estes fatores no que tange ao aperfeiçoamento tecnológico, à adição e captura de valor, à prosperidade econômica, etc., para as diferentes firmas e sociedades integradas nas cadeias.

Mais especificamente os componentes do modelo da RPG podem ser desagregados – para fins de elaboração – por referência à fi-gura 1. Enquanto elaboramos esses compo-nentes abaixo, vale à pena referir-se aqui à nossa concepção de ‘tecnologia’ no esquema. Enquanto algumas contribuições reconhe-cem o papel central da mudança tecnológi-ca e das tecnologias de informação e comuni-cação (TIC) na formação e transformação das redes globais, nós rejeitamos ‘tecnologia’ co-mo uma categoria separada. Em vez disso, as TICs são mais propriamente apreendidas co-mo um elemento inerente das RPGs, subja-centes ao desenvolvimento e à manutenção das conexões da rede. A tecnologia, como uma das forças motrizes da globalização, in-fluencia os processos de criação de valor em diferentes locais, igualmente transformando os meios pelos quais o poder é exercido. Além disso, ela afeta as possibilidades dos agentes de enraizar-se em, e de desenraizar-se de re-des e territórios específicos.

Uma visão semelhante é tomada da no-ção de espacialidade. Configurações espa-ciais específicas são características ineren-

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tes a todas as redes; cada RPG pode ser ma-peada ao ‘posicionar’ seus agentes e esboçar suas conexões mútuas. Pela mesma razão, toda forma de enraizamento tem sempre um caráter espacial intrínseco.

Há, no entanto, outros aspectos da espa-cialidade a serem considerados. Em primeiro lugar, há a questão de escalaridade. Todas as RPGs têm de ser consideradas como multies-calares, estendendo-se dos planos local e re-gional aos níveis nacional e global, e retor-nando novamente.21 Tais redes multiescala-res são construídas e transformadas ao longo do tempo por uma multiplicidade de agentes com influência e poder assimétricos. Isso le-

va a outra importante faceta da espacialida-de; a saber, o caráter limitado das atividades de rede, por exemplo, dentro do espaço políti-co do Estado nacional (ou em contextos fede-rais, subnacional).

Enquanto os agentes empresariais são ca-pazes de transcender as fronteiras políticas ou outras (culturais, por exemplo) entre os terri-tórios, a maioria das instituições não econô-micas são limitadas – e, portanto, restritas – por seus contextos espaciais em diferentes es-calas geográficas. Isto, naturalmente, tem di-versas implicações para o desenvolvimento, especialmente em termos da distribuição do poder e da criação e captura de valor.

21. Em outras obras, um continuum de escalas (ver Swyngedouw, 1997; Dicken e Malmberg, 2001).

Figura 1

Um modelo para a análise da rPG

Categorias Valor- Criação- Ampliação- Captura

Poder- Corporativo- Coletivo- Institucional

Enraizamento- Territorial- Em rede

Valor EstruturasDimensões

Firmas- Propriedade- “Arquitetura”

Instituições- Governamental- Semi-governamental- Não governamental

Redes (Empresariais/Políticas)- “Arquitetura”- Con�g. de Poder- Governança

Setores- Tecnologias- Produtos/Mercados

Desenvolvimento

Con�guraçãoCoordenação

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3.1 Categorias Conceituais

Há três elementos principais sobre os quais a arquitetura do modelo da RPG se er-gue. O primeiro deles é:

- Valor: por ‘valor’ queremos nos referir tanto às noções marxianas de mais-valia e a outras mais ortodoxas associadas com ren-da econômica. Assim, estamos interessados nos seguintes temas.

- A criação inicial de valor dentro de ca-da uma das firmas incorporadas a uma da-da RPG. As questões significativas aqui in-cluem as condições sob as quais a força de trabalho é convertida em trabalho real atra-vés do processo de trabalho; e as possibili-dades para a geração de diversas formas de renda. Na primeira, os temas do emprego, qualificação, condições de trabalho e tecno-logia de produção são importantes, bem co-mo as circunstâncias nas quais são reprodu-zidos (conectando, portanto, estas questões a temais sociais e institucionais mais am-plos). Na última (ver KAPLINSKY, 1998; GE-REFFI, 1999b) as questões consistem em se uma firma determinada pode gerar rendas a partir de (a) um acesso assimétrico a tecno-logias-chave de produto e processo (‘rendas tecnológicas’); (b) de qualificações organiza-cionais e gerenciais, como técnicas de pro-dução ‘just-in-time’ e ‘controle de qualida-de total’, etc. (‘rendas organizacionais’); (c) relações inter-firma variadas que podem en-volver a gestão dos vínculos de produção com outras firmas, o desenvolvimento de alianças estratégicas, ou a gestão das rela-ções com os clusters de pequenas e médias empresas (‘rendas relacionais’); ou (d) do es-tabelecimento de proeminência de marca22

nos principais mercados (‘rendas de marca’). Em certos setores e circunstâncias (e) rendas adicionais podem advir para algumas firmas como consequência das carências de produ-to criadas por políticas comerciais protecio-nistas (‘rendas de política comercial’), em-bora esta seja outra questão que conecta as questões de criação de valor aos contextos institucionais (nacional e internacional, nes-te caso) dentro dos quais as firmas operam.

- As circunstâncias nas quais o valor po-de ser ampliado. As questões aqui envolvi-das incluem: (a) a natureza e a extensão das transferências de tecnologia tanto de den-tro quanto de fora de dada rede de produ-ção; (b) a extensão em que as firmas líderes e outras empresas principais dentro da rede colaboram com fornecedores e subcontrata-das para melhorar a qualidade e a sofistica-ção tecnológica dos seus produtos; (c) como consequência, ou demandas por habilidades em determinados processos de trabalho au-mentam com o tempo; (d) ou firmas locais podem começar a criar rendas organizacio-nais, relacionais e de marca próprias. Em to-dos esses casos, as influências institucionais nacionais às quais as firmas estão sujeitas (agências governamentais, sindicatos, asso-ciações patronais, por exemplo) podem ser decisivas para as possibilidades de amplia-ção de valor.23

- As possibilidades que existem para o valor ser capturado. Uma coisa é o valor ser criado e ampliado em determinados locais, mas pode ser outra bem diferente que ele seja capturado para o benefício desses locais. Os temas pertinentes aqui, em parte, envolvem (a) questões de política governamental, mas também envolvem (b) questões de proprieda-

22. Brand-name prominence no original.23. Há uma crescente literatura que aborda tais preocupações em relação às diferentes ‘qualidades’ do in-vestimento externo direto. Veja, por exemplo, Turok (1993, AMIN et al, 1994; YOUNG et al, 1994).

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de da firma e (c) da natureza da governança corporativa em determinados contextos na-cionais. No primeiro caso, a natureza dos di-reitos de propriedade e, portanto, as leis que regem as estruturas de propriedade e a repa-triação de lucros podem ser importantes, en-quanto na segunda a extensão em que as fir-mas são de propriedade estrangeira total, de propriedade inteiramente doméstica, ou en-volvem capital partilhado como em arranjos do tipo joint-venture, continua a ser determi-nante, como uma longa tradição na econo-mia política do desenvolvimento tem argu-mentado, e a experiência recente na Grã-Bre-tanha, por exemplo, tem sublinhado.24 No ter-ceiro caso, a extensão na qual a governança corporativa se baseia nos princípios das par-tes interessadas, em vez de no domínio dos acionistas (e exigida pelo estatuto legal) pode ter consequências importantes para determi-nar se o valor gerado em um determinado lo-cal é mantido lá e realmente usado para o be-nefício do bem público.25 O problema da cap-tura de valor, então, ressalta a importância da variedade nacional do capitalismo – e, por-tanto, de questões de expectativas, direitos e obrigações – para as questões do desenvolvi-mento econômico e social.

- Poder: a fonte de poder dentro das RPGs e as formas nas quais é exercido são decisi-

vas para a ampliação e captura de valor e, portanto, para as perspectivas de desenvol-vimento e prosperidade.26 Há três formas de poder que são significativas aqui.

- Poder corporativo. Aqui temos em men-te a extensão na qual a firma líder na RPG possui capacidade de influenciar decisões e alocações de recursos – vis-à-vis a outras firmas na rede – decisiva e consistentemen-te em seus próprios interesses. Nossa adoção de um discurso de rede implica a rejeição de uma concepção de poder de soma zero, de modo que as firmas raramente, ou nun-ca, têm um monopólio do poder corporati-vo. Ao invés, enquanto o poder é com frequ-ência assimetricamente distribuído em redes de produção, firmas menores às vezes (e por motivos contingentes) têm autonomia sufi-ciente para desenvolver e exercitar suas pró-prias estratégias para aperfeiçoar suas ope-rações, etc. Além disso, pelo menos em prin-cípio, firmas menores incorporadas às redes têm a possibilidade de se combinar com ou-tras empresas de pequeno porte para melho-rar a sua situação coletiva dentro da RPG (como quando clusters de PMEs constituídos como distritos industriais são incorporados a RPGs).27

- Poder institucional. Nossa referência aqui é o exercício do poder: (a) pelos Estados

24. Temos em mente o contínuo des-investimento em subsidiárias britânicas (com efeitos em cadeia para os fornecedores locais) por empresas estrangeiras. Desde 1998, estes incluíram, no mínimo: Siemens, Samsung, LG e Motorola (na eletrônica), BMW, Ford e General Motors (em automóveis) e Corus (siderurgia).25. A Alemanha, de um lado, e a Grã-Bretanha e os EUA, de outro, constituem pólos opostos neste senti-do. Neste último caso, os acionistas têm poder supremo sobre a disposição de lucros e ativos, enquanto no primeiro os proprietários são obrigados a considerar os interesses de outras partes interessadas e da força de trabalho em particular (LANE, 1989). Com efeito, na Alemanha, os titulares de propriedade têm a obri-gação constitucional de exercer os seus direitos no interesse do bem público (HUTTON, 2001).26. Apesar de não teorizada em termos de poder, a discussão de Humphrey e Schmidt (2001) sobre as es-truturas de governança de ‘cadeias de valor’ é um importante complemento, neste momento, ao nosso tra-balho.27. Castells desenvolve idéias semelhantes a essas no que diz respeito ao exercício das políticas econômi-ca e externa por parte dos Estados nacionais absorvidos em ‘Estados rede’ (da qual a União Européia é o protótipo). Ver Castells (2000b, cap. 5) e também Carnoy e Castells (2001).

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nacional e locais (neste último caso, quando o Estado nacional é constituído como um go-verno federal), (b) por agências interestadu-ais internacionais que vão desde a cada vez mais integrada União Européia de um lado, até confederações mais frouxas como a ASE-AN ou a NAFTA, por outro lado, (c) pelas ins-tituições de ‘Bretton Woods’ (Fundo Monetá-rio Internacional, Banco Mundial) e a Orga-nização Mundial do Comércio; (d) pelas di-versas agências das Nações Unidas (especial-mente a OIT); e (e) pelas agências de classifi-cação de crédito (Moodys, Standard and Po-or, etc.), que exercem uma forma única de poder institucional privado. A capacidade de exercer poder para influenciar o investimen-to e outras decisões de firmas líderes e ou-tras empresas integradas à RPG é inevitavel-mente assimétrica e varia tanto dentro quan-to entre estas cinco categorias. Assim, no que diz respeito aos Estados nacionais, alguns de-les na Ásia Oriental (em especial a Coréia do Sul e Taiwan, mas, mais recentemente, a Chi-na) vêm sendo percebidos nas últimas déca-das, como estando entre os mais capazes de influenciar empresas privadas com vistas à industrialização e ao desenvolvimento (den-tre uma literatura enorme ver WADE, 1990; HENDERSON, 1993), enquanto Estados tão díspares quanto os da Grã-Bretanha e Indo-nésia tem sido muito menos capazes de fa-zê-lo.28 O poder das agências interestaduais é potencialmente considerável – principalmen-te no caso da UE – embora permaneça pouco desenvolvido em qualquer outro lugar. O po-der das instituições de Bretton Woods, embo-ra possa ser considerável, é exercido indire-

tamente e causa impactos sobre as empresas, forças de trabalho e comunidades através das políticas econômicas e sociais que os gover-nos nacionais são obrigados a implementar. O poder das agências da ONU é de menor im-portância do que qualquer dos outros à me-dida que sua influência sobre as firmas é não apenas indireta, mas também apenas mo-ral e consultiva. A importância das agências de classificação de crédito é potencialmen-te considerável, tanto diretamente para mui-tas empresas líderes e, indiretamente, através de suas avaliações de risco de crédito dos go-vernos nacionais. No entanto, ainda sabemos pouco sobre as formas em que a sua influên-cia é exercida (contudo, ver SASSEN, 1999).

- Poder coletivo. Por esta forma de poder compreendemos as ações de agentes cole-tivos que procuram influenciar companhias em localidades específicas das RPGs, seus respectivos governos e, por vezes, agências internacionais (mais recentemente, o FMI e a OMC, em particular). Exemplos de tais agentes coletivos incluem sindicatos, asso-ciações patronais e organizações que pro-movem determinados interesses econômi-cos (por exemplo, as de pequenas empre-sas), ONGs preocupadas com os direitos hu-manos, questões ambientais, etc. Estes or-ganismos podem ser nacionais ou locais, ou podem ser organizados internacionalmente, como alguns sindicatos (por exemplo, o In-ternational Metal Workers) ou organizações de direitos humanos (como a Anistia Inter-nacional). Na maioria dos casos em que es-sas agências estão engajadas, elas tentam exercer poder de contraposição, seja direta-

28. Este obviamente não é o lugar para explicar tais discrepâncias, exceto para marcar que as respostas parecem estar em uma combinação de vontade política (ou sua ausência) e de diferentes capacidades ins-titucionais para a governança econômica. Para os casos britânico e indonésio ver Hutton (1995) e Hill (1996), respectivamente. Para mais descrições gerais e teóricas da relação entre as capacidades do Estado e o desenvolvimento econômico ver Evans (1995) e Evans e Rauch (1999).

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mente sobre firmas ou grupos particulares dentro de determinadas redes, ou indireta-mente, sobre os governos nacionais ou as agências internacionais.

- Enraizamento: RPGs não apenas co-nectam funcional e territorialmente as fir-mas, mas também conectam aspectos dos arranjos sociais e espaciais nos quais aque-las firmas estão enraizadas e que influen-ciam suas estratégias e os valores, priorida-des e expectativas dos gestores, trabalha-dores e comunidades afins. As formas nas quais os diferentes agentes estabelecem e desempenham suas conexões com os outros e as especificidades dos processos de enrai-zamento e desenraizamento se baseiam, em certa medida, na ‘herança’ e na origem des-ses agentes. Empresas – sejam elas multi-nacionais ou pequenas empresas locais – surgem dos, e continuam a ser influencia-das pelos, tecidos institucionais e contex-tos sociais e culturais de variedades parti-culares de capitalismo (ou, no caso da Eu-ropa Oriental, China, etc. antes da década de 1980, variedades específicas de socialismo de Estado) em seus países de origem. Embo-ra a natureza dos sistemas educacional, de formação profissional e trabalhista e as fon-tes e organização do financiamento sejam importantes, a natureza da política de Es-tado e do quadro legal constituem priorida-des e estratégias de especial relevância para o desenvolvimento da firma (cf. ZYSMAN, 1983; HUTTON, 1995; WHITLEY, 1999).

As empresas locais que emergiram de contextos sociais e institucionais evoluem ao longo do tempo sobre as bases de trajetó-rias que são, em parte, um reflexo destes con-textos. Como muitos estudiosos têm aponta-do que diz respeito às sociedades previamen-te socialistas de Estado da Europa Oriental, estes percursos são ‘dependentes de trajetó-ria’ e, portanto, em certa medida, historica-mente restritos (por exemplo, STARK, 1992; HAUSNER et al., 1995; CZABAN; HENDER-SON, 1998). Embora seja importante reco-nhecer que tais restrições não são imutáveis e que sua influência pode estar diminuindo – e não devido à globalização – também é im-portante reconhecer que algumas firmas lí-deres, ao investir no exterior, podem levar a ‘bagagem’ institucional de suas bases domés-ticas com elas. Mas outras podem também tender a operar no, ou próximas do mínimo denominador comum que as políticas domés-ticas e estruturas jurídicas permitirão.29

Entre as diferentes dimensões e aspectos do enraizamento,30 há duas formas conexas de enraizamento de firma e de rede que são de interesse aqui. A primeira forma, territo-rial, lida com a ‘ancoragem’ das diversas fir-mas da RPG em lugares diferentes (do Esta-do-nação ao nível local), que afeta as pers-pectivas para o desenvolvimento desses lo-cais. A segunda forma, enraizamento de re-de, refere-se à estrutura de rede, ao grau de conectividade dentro de uma RPG, à estabi-lidade das relações de seus agentes e à im-

29. As empresas japonesas, por exemplo, nunca ofereceram contratos de ‘emprego permanente’ aos fun-cionários de suas filiais estrangeiras. Da mesma forma, as empresas alemães, embora determinadas pelas legislações nacional e da UE a consultar amplamente os funcionários antes de instituir programas de de-missão, nunca fizeram o mesmo em países onde tais leis não se aplicam. Desinvestimentos recentes na Grã-Bretanha pela Siemens e pela BMW são casos em questão.30. Como Oinas (1997), Markusen (1999) e Pike et al. (2000), entre outros, apontaram, a noção de embe-ddedness continua bastante vaga e portanto, necessita de aperfeiçoamento conceitual. No entanto, sua im-portância para a compreensão da organização econômica é amplamente reconhecida, mesmo por vozes críticas (ver, por exemplo, Sayer, 2000).

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portância da rede para os participantes. Am-bas as formas, naturalmente, são o resultado de processos essencialmente sociais e espa-ciais de ‘enraizamento’.

- Enraizamento territorial. RPGs não se li-mitam a localizar-se em lugares particulares. Eles podem enraizar-se ali, no sentido de que eles absorvem e, em alguns casos, são cons-trangidos, pelas atividades econômicas e di-nâmicas sociais que já existem nesses locais. Um exemplo aqui é a maneira pela qual as RPGs de firmas líderes específicas podem ti-rar proveito dos clusters de pequenas e mé-dias empresas (com suas redes sociais e mer-cados de trabalho locais decididamente im-portantes) que antecedem o estabelecimento de operações de subcontratação ou de subsi-diárias daquelas firmas. Além disso, a locali-zação de firmas líderes em lugares específicos pode gerar uma nova rede local ou regional de relações sociais e econômicas, envolven-do as firmas já existentes, bem como atrain-do novas empresas. O enraizamento torna--se, então, um elemento-chave no crescimen-to econômico regional e na captura de opor-tunidades globais (HARRISON, 1992; AMIN; THRIFT, 1994).31 As vantagens obtidas em termos de criação de valor, etc., podem resul-tar em ‘bloqueio’32 espacial para aquelas fir-mas com implicações em cadeia para outras partes da RPG dessa firma (ver GRABHER, 1993; SCOTT, 1998). Da mesma forma, polí-ticas governamentais nacionais e locais (pro-gramas de formação profissional, incenti-vos fiscais, etc.) podem funcionar para enrai-zar partes específicas da RPG em determina-das cidades ou regiões, a fim de apoiar a for-

mação de novos nós em redes globais, ou o que Hein (2000) descreve como ‘novas ilhas de uma economia-arquipélago’. Mas os efei-tos positivos do enraizamento em um deter-minado lugar não podem ser tidos como cer-tos ao longo do tempo. Por exemplo, uma vez que uma firma líder corte seus laços dentro de uma região (por exemplo, via desinvesti-mento ou fechamento da instalação), um pro-cesso de desenraizamento ocorre (PIKE et al., 2000, p. 60), potencialmente minando a base anterior de crescimento econômico e captu-ra de valor. Do ponto de vista do desenvolvi-mento, então, o modo de enraizamento terri-torial ou o grau de comprometimento de uma firma da RPG a uma localidade particular, é um fator importante para a criação, amplia-ção e captura de valor.

- Enraizamento de rede. RPGs são carac-terizadas não apenas por seu enraizamen-to territorial, mas também pelas conexões entre membros da rede, independentemen-te do seu país de origem ou da ancoragem local em lugares específicos. É, sobretudo, a ‘arquitetura’, durabilidade e estabilidade destas relações, tanto formais como infor-mais, que determina o enraizamento de rede individual dos agentes (enraizamento ator--rede), bem como a estrutura e a evolução da RPG como um todo. Enquanto o primei-ro se refere às relações do indivíduo ou da firma com outros atores, este último consis-te não apenas dos agentes econômicos33 en-volvidos na produção de um determinado bem ou serviço, mas também leva em con-ta as redes institucionais mais amplas, in-cluindo agentes não econômicos (por exem-

31. Há também um lado negativo. A natureza das redes locais e relações socioeconômicas em determina-das circunstâncias pode gerar uma incapacidade de captar oportunidades globais e levar à recessão eco-nômica regional (OINAS, 1997, p. 26). Enraizamento forte, portanto, não é necessariamente uma qualida-de ‘boa’ ou positiva das redes ou de seus agentes.32. Lock-in no original.

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plo, organizações governamentais e não--governamentais). O enraizamento de rede pode ser considerado como o produto de um processo de construção de confiança entre os agentes da rede, o que é importante para relacionamentos bem sucedidos e estáveis. Mesmo dentro de redes intra-firma, onde as relações são estruturadas pela integração e controle de propriedade, a confiança entre as diferentes unidades da firma e as diferen-tes partes interessadas34 envolvidas poderá ser um fator crucial, como no caso de joint ventures (YEUNG, 1998).

3.2 dimensões conceituais

As categorias esboçadas acima são ‘energizadas’ e ‘nutridas’ através de uma variedade de dimensões conceituais. Estas constituem as estruturas através das quais o valor é criado, o poder é exercido e as ins-tituições enraízam, etc., produzindo efeitos concretos em termos de iniciativas particu-lares e políticas. Há quatro grandes catego-rias que são de importância.35

3.2.1 Firmas

Uma firma claramente não é o mesmo que outra. As empresas, mesmo dentro do mes-mo setor, diferem em termos de suas priorida-des estratégicas, suas atitudes acerca das re-

lações de trabalho, a natureza de suas rela-ções com fornecedores, etc. Como consequ-ência seria de se esperar que, embora possa haver semelhanças entre as formas nas quais firmas no mesmo setor operam (geram valor, exercem seu poder sobre fornecedores, etc.), haverá ainda importantes diferenças específi-cas da firma, sendo não menos relevantes as que concernem aos locais onde firmas líde-res decidem investir ou estabelecer conexões com fornecedores e subcontratadas. Estas di-ferenças podem resultar da natureza do regi-me de propriedade (arranjos de capital36, e/ou ‘nacionalidade’), capricho gerencial ou po-dem derivar de valores incorporados na evo-lução da firma.37 Independentemente da fon-te dessas diferenças, é provável que tenham implicações para as formas nas quais suas RPGs são construídas (caso sejam firmas lí-deres) ou para as formas nas quais participam (procuram desenvolver e exercer autonomia, por exemplo) na RPG de outra firma (caso se-jam fornecedores e subcontratados).

3.2.2 Setores

Enquanto RPGs têm características que são específicas da firma, firmas que ope-ram no mesmo setor estão inclinadas a criar RPGs que têm algum grau de similaridade. As razões para isso são que as tecnologias similares, produtos e restrições de merca-

33. Business agents no original.34. Stakeholders no original.35. Este parágrafo foi bastante modificado, considerando as dificuldades de entendimento do original: “The categories sketched above are ‘energized’ and ‘live’ through a number of conceptual dimensions. These constitute the frameworks through which value is created, power exercised or institutional embed-dedness etc. given concrete effect in terms of particular initiatives and policies. There are four broad di-mensions that are of significance” (pg. 453).36. Equity arrangements no original.37. Exemplos na Grã-Bretanha incluem a postura ética de empresas como o Co-operative Bank e a Bo-dy Shop.

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do são suscetíveis de conduzir a formas se-melhantes de criar vantagem competitiva e, portanto, arquiteturas de RPG muito seme-lhantes. Assim, para nossos propósitos, um setor precisa ser definido por outros crité-rios que não a mera classificação estatística. Além de ser uma estrutura única de concor-rência e tecnologia, firmas no mesmo setor econômico normalmente compartilham uma ‘linguagem’ comum e uma estrutura parti-cular de comunicação específica àquele sec-tor (Hess, 1998). Um setor inclui não ape-nas uma gama de empresas, dos produtores líderes do setor a fornecedores de diferen-tes elementos, incluindo funções de serviço, mas a sua estrutura de governança é mui-tas vezes complementada por organizações feitas sob medida38, tais como grupos indus-triais de pressão (por exemplo, associações patronais e laborais), instituições de forma-ção profissional ou outros. Estas particula-ridades setoriais criam ambientes regulató-rios específicos ao setor, onde determinadas questões são abordadas por políticas gover-namentais em diferentes escalas. Exemplos destes incluem o acordo multifibras supra-nacional para o setor têxtil e de vestuário e políticas ‘setoriais’ nacionais para fomentar a inovação e competitividade (como é o caso das políticas industriais automobilística e de eletrônicos de alguns países asiáticos).

3.2.3 Redes

É dentro das várias redes que questões es-pecíficas de governança surgem. Como as ma-

neiras pelas quais o poder é mobilizado e exer-cido são suscetíveis de variação em razão de uma combinação de motivos específicos à fir-ma e ao setor, é razoável esperar que a arqui-tetura da governança provavelmente, apresen-te considerável variação. Como consequência, é provável que haja variação significativa, por exemplo, na extensão em que firmas secundá-rias em uma determinada rede são capazes de exercer certo grau de autonomia que lhes per-mitiria mover-se em direção a atividades de maior valor agregado39 com suas implicações mais positivas para o desenvolvimento econô-mico. Até que se realizem mais pesquisas sen-síveis a essas variações, é prematuro avançar para uma concepção fechada de estruturas de governança de rede.

3.2.4 Instituições

Em princípio, os arranjos institucionais causam impactos tanto local quanto global-mente sobre as RPGs.40 Eles podem ser de grande importância na geração de valor lo-calmente, em sua ampliação e na sua captu-ra. Além disso, eles podem ser de maior im-portância no estabelecimento de normas (in-cluindo o tom moral) para as relações de tra-balho, condições de trabalho e níveis sala-riais. Eles são, em outras palavras, centrais para a questão de saber se RPGs podem pro-duzir desenvolvimento social e econômi-co sustentado nos locais que incorporam. É importante reconhecer, naturalmente, que as consequências que as instituições têm para as RPGs e suas operações e implicações locais e

38. Purpose-built organizations no original.39. Value-added no original.40. Da perspectiva da teoria ator-rede, RPGs seriam instituições por si mesmas. No entanto, esta não é a po-sição adotada aqui. Ao contrário, as instituições são percebidas como formações sociais e políticas – sejam elas subnacionais, nacionais ou internacionais – com histórias associadas, valores e práticas culturais que têm consequências para o modo como RPGs se formam e se desenvolvem ao longo tempo.

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internacionais, podem ser positivas ou nega-tivas. No último caso, o tecido institucional da Rússia pós-socialista, por exemplo, pare-ce ser um caso em questão, para todo tipo de redes criminosas (ver Castells, 2000b: capítu-los 1 e 3), como são algumas das decisões de política recente do FMI (em relação à crise do leste asiático, por exemplo) e da OMC.

3.3 Categorias e dimensões da rPG: um exemplo estilizado

Como uma indicação de como as RPGs po-dem ser visualizadas e analisadas, nós desen-volvemos a seguir uma técnica de mapeamen-to que nos permite destacar e comparar os seus principais elementos e ligações. Nós a aplica-mos a um exemplo estilizado41, a fim de su-blinhar a potencial importância do modelo da RPG para a análise das conexões inter-organi-zacionais e sua relação com o desenvolvimen-to econômico nas regiões, Estados e localida-des afetadas pela RPG em questão.

Na Figura 2, esboçamos uma RPG ope-rando em quatro ‘regiões’ e composta de di-ferentes tipos de firmas e envolvendo orga-nizações de escopos variados, da influência local ao poder global. Em cada uma das re-giões, sejam elas arenas geográficas (como a Europa Oriental), blocos econômicos (tais como a União Européia), Estados-nação ou territórios subnacionais, o valor é criado e capturado, mas em graus diferentes. A Re-gião A, por exemplo, demonstra altos graus de geração e de captura de valor, sem con-ter muito dos fluxos materiais da rede. Es-

41. Esse exemplo é generalizado e, portanto, de modo algum abrangente; RPGs reais, naturalmente, têm muito mais vínculos e agentes do que poderiam ser esboçados aqui. Por exemplo, devido a restrições grá-ficas, os fluxos de rede intra-firma da empresa líder não são mostrados na Figura 2.42. Branch plant no original.43. Non-firm institutions no original.

te poderia ser o caso de uma firma líder com atividades fortes de P&D, design, marketing e outros serviços retidos em seu país de ori-gem, enquanto dispersa seus processos de produção de baixo valor agregado para ou-tros países. Em contraste, a Região C é um local de criação de valor, mas é incapaz de capturar grande parte dele como resulta-do, por exemplo, da propriedade externa de muitos dos fornecedores de primeira e se-gunda camadas lá presentes e das transfe-rências de lucros às respectivas sedes corpo-rativas fora da região.

Dois exemplos de baixa criação de va-lor são as Regiões B e D. A última demons-tra pouca ou nenhuma capacidade de cap-turar qualquer valor que esteja sendo criado dentro da região, como muitas vezes tem si-do o caso de circunstâncias puramente do ti-po ‘planta filial’42. Nem o baixo valor agrega-do em termos de produtos ou tecnologia, nem o fortalecimento de competências (valor sob a forma de conhecimento) são incomuns nes-te tipo de situação. As implicações positivas para o desenvolvimento de serem integradas em uma RPG, sob tais circunstâncias, portan-to, são bastante limitadas. Na região B, por outro lado, embora não seja criado muito va-lor, a maior parte dele é capturada na região. Neste caso, a capacidade de capturar valor é reforçada pelas instituições não econômi-cas43, apresentadas na Figura 1. Essa capaci-dade, naturalmente, é fortemente relaciona-da às questões do poder e de sua distribuição.

O poder exercido dentro da RPG po-de ser apresentado como fluxos não ma-

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Região B

Ex.: MF Nacional

Ex.: Legislação deTransferência de Lucro

Ex.: Prefeitura

Ex.: Sindicato

Firma Central

Região A

Ex.: FMI

Ex.: P&D Conjunto para Sistemas Especí�cos

Firma Central, Setor Diverso

Região D

Região C

Ex.: Grupo Ambiental Nacional Ex.: OEM

Instituições: In�uência/Alcance

global

nacional

local/regional

Firmas: Produtor Final/ Montador (�rma central)Subsidiária/Planta Filial

OEM

Relações/Fluxos:

Espaço/Lugar:

Imaterial:Poder/informação(Direção, Intensidade) Material:

Captura de Valor

Criação de Valorbaixa

baixa

alta

alta

Input/Output (Quantidade/Importância)

Relação Mútua

Relação Dominada

Cor:

Setor x

Setor y

Distribuidor/Varejista

não estatal

semi-estatal

estatalTipo:

Membro da rede de 1a CamadaMembro da rede de 2a Camada

Figura 2

Mapeamento de redes de produção globais – um exemplo estilizado

legenda

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44. Scale-transcending no original.

teriais entre diferentes agentes (firmas, as-sim como outras organizações). O proces-so de geração e captura de valor na Região B, por exemplo, é fortemente determinado pelo poder de instituições globais (FMI, por exemplo) e agências governamentais na-cionais, aqui representadas pelo Ministério da Fazenda (MF) influenciando as transfe-rências de lucros de subsidiárias de proprie-dade estrangeira. Um caso real em questão seria a RPG de montadoras automotivas es-trangeiras na China, onde o poder do go-verno é usado para influenciar a localiza-ção da produção e, por conseguinte, o pro-cesso de geração e captura de valor, in-cluindo os aspectos de emprego, competên-cias e transferência de tecnologia.

O poder corporativo de algumas firmas sobre seu ambiente regional, por outro la-do, é exemplificado pela firma líder afetan-do a administração local da Região A, como mostrado na Figura 2, enquanto o poder co-letivo é exercido pelo sindicato. Há muitos exemplos onde uma companhia ou um gru-po de firmas são capazes de moldar o am-biente institucional e regional em seu favor, especialmente nos níveis local e nacional, como em regiões economicamente fracas e ansiosas para atrair ou reter o investimen-to externo.

O enraizamento territorial da rede em questão não é imediatamente dedutível, mas pode ser representado pela densidade e in-tensidade das conexões locais/regionais, ou nacionais, entre os diferentes agentes. Fir-mas e organizações na Região D, por exem-plo, têm poucas relações, e bastante fracas, umas com as outras. Lá, então, o enraiza-mento territorial é limitado. Ligações com outros agentes fora da região, por outro la-

do, são comparativamente fortes, indicando um alto grau de enraizamento de rede.

Em suma, a técnica de mapeamento da RPG demonstrada aqui fornece a possibili-dade de visualizar os agentes econômicos e sociais, bem como destacar as dimensões estrutural e espacial das redes, setores, e das ligações entre eles. Ela nos permite visua-lizar as implicações da RPG para o desen-volvimento em lugares diferentes dentro do alcance territorial da RPG, e os principais agentes responsáveis por essas implicações. O que não pode ser mostrada, claro, é a evo-lução da RPG ao longo do tempo (depen-dência de trajetória) e as pré-condições es-truturais que a conformam (tais como dife-rentes capitalismos nacionais ou modos na-cionais de regulação). Todavia, o que temos aqui é um modelo transcendente de esca-las44 das redes de produção globais que pro-porciona um sentido de suas prováveis im-plicações para o desenvolvimento econômi-co e social.

4 Conclusão

Neste artigo, foi delineado um quadro conceitual para o mapeamento e análise de certos aspectos da globalização econômica – aqueles relacionados à produção e ao con-sumo – e suas consequências em termos de desenvolvimento. Ao fazê-lo, temos em pri-meiro plano as formas pelas quais as em-presas se organizam e controlam suas ope-rações globais, as maneiras pelas quais elas são (ou podem ser) influenciadas por Esta-dos, sindicatos, ONGs e outras instituições em determinados locais e as implicações que as combinações resultantes de agentes e processos podem ter para o aperfeiçoamen-

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Nota Sobre oS aUtoreS

Jeffrey Henderson é PhD pela University of Warwick, Reino Unido, Professor de Desen-volvimento Internacional e Diretor do Centre for East Asian Studies (CEAS), University of Bristol, Reino Unido.

Peter Dicken é PhD pela Uppsala University, Suécia, e Professor Emérito de Geografia da School of Environment and Development (SED), University of Manchester, Reino Unido.

Neil Coe é PhD pela University of Durham, Reino Unido, e Professor de Geografia Econô-mica da School of Environment and Develop-ment (SED), University of Manchester.

Martin Hess é PhD pela University of Munich, Alemanha, e Professor de Geografia Humana da School of Environment and Development (SED), University of Manchester.

Henry Wai-Chung Yeung é Phd pela Universi-ty of Manchester, Reino Unido, e Professor de Geografia Econômica da National University of Singapore.

to industrial, maior valor agregado, etc. e, finalmente, para as perspectivas de redução da pobreza e/ou de prosperidade generali-zada nesses locais.

O modelo que propusemos – da rede de produção global – é uma tentativa explícita de romper com conceituações estado-cen-tradas de um lado, e de estender significa-tivamente a utilidade analítica e política de formulações congêneres, de outro. A prova do sucesso, no entanto, vai depender de se o modelo da RPG estimula pesquisas que pro-piciem análises que sejam tanto empírica quanto teoricamente mais ricas que as atu-ais. Mais importante, porém, ela vai depen-der de se o modelo ajuda a produzir pesqui-sas que contribuam de forma mais eficaz à tarefa de melhorar a condição humana na era da turbulência econômica e geopolítica na qual vivemos.

agradecimentos

Este artigo baseia-se no trabalho reali-zado sob os auspícios do projeto do Econo-mic and Social Research Council, Making the Connections: Global Production Ne-tworks in Europe and East Asia (Grant R # 000 238535). Estamos gratos ao ESRC por seu apoio e a Dieter Ernst, John Humphrey, Alisdair Rogers, a três revisores anônimos e aos participantes na Conferência Anual da Associação de Estudos Globais (Manchester, julho de 2001) por seus comentários sobre uma versão anterior.

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recebido em: 03.04.11aprovado em: 08.06.11

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Gabriela da Silva TaroucoRafael Machado Madeira

ESQUERDA E DIREITA NO BRASIL: UMA ANáLISE CONCEITUAL1

reSUMo Após ter ocupado ao longo de boa parte do século XX um papel central como sistema classificatório de partidos políticos, a esca-la esquerda/direita passa, nos últimos vinte anos, por uma reavaliação de seu potencial explicativo. Contudo, esta tendência a um enfraquecimento (ou reconfiguração?) des-ta escala não possui as mesmas causas em todos os países. Além de ter variado imen-samente ao longo da história, a definição de esquerda e de direita também varia confor-me a história e o contexto cultural de cada país. O objetivo aqui é inventariar os prin-cipais elementos constitutivos destes con-ceitos na bibliografia nacional e internacio-nal. Pretende-se também discutir a aplica-bilidade da escala proposta pelo Manifestos Research Group aos partidos brasileiros e propor categorias de análise mais profícuas para o exame deste sistema partidário.

PalavraS Chave Partidos políticos. Ideologia. Sistema partidário.

abStraCt After having a central role, during a great part of the XX century, as an explanatory system for political parties, the right/left scale is going through a revaluation of its explanative potential in the last 20 years. However, this tendency towards a weaken-ing (or reconfiguration?) of this scale does not have the same causes in all countries. Besides having had a great variation throughout history, the definition of left and right also varies according to the his-torical and cultural context of each coun-try. The aim of this paper is to describe the main elements constituting these concepts on national and international bibliography. The applicability of the Manifestos Re-search Group`s scale to the Brazilian politi-cal parties is also discussed, and more fruitful categories to analyse this party system are debated.

KeywordSPolitical party. Ideology. Party system.

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1 Introdução

Após ter ocupado, desde a Revolução Francesa e ao longo dos séculos XIX e XX, um papel central como sistema classifica-tório de partidos políticos, a escala esquer-da-direita passa, nas últimas duas décadas, por uma reavaliação de seu potencial expli-cativo. O surgimento das questões pós-ma-terialistas, a queda do muro de Berlim e o colapso da União Soviética impactam pro-fundamente o cenário político internacio-nal, contribuindo com uma sensação cres-cente de indiferenciação dos partidos políti-cos. Esta polêmica se materializa, por exem-plo, no debate entre N. Bobbio (1995) e A. Giddens (1996) sobre a possível dissolução dos conceitos de esquerda e de direita.

Também no Brasil, se identifica clara-mente esta sensação de crescente indiferen-ciação ideológica entre os principais parti-dos políticos, tanto no nível do senso co-mum e no discurso dos próprios políticos, quanto nos discursos jornalísticos. Um dado objetivo a partir do qual este aspecto é iden-tificado são as alianças eleitorais e de gover-no que caracterizaram os mandatos de Fer-nando H. Cardoso e Lula. Contudo, tal fenô-meno não ocorre somente no Brasil. Anali-sando esta questão, Mair (2001) afirma:

There are many different factors that can be cited to account for this increasing promis-cuity in processes of government formation, including the two cited immediately abo-ve. Whatever the explanation, however, the trend is undeniable. In Italy, for example, the first Olive Tree coalition joined the former Communist Party with senior figures from the former Christian Democrats, two par-

ties whose mutual rivalry had served to de-fine the parameters of the Italian party sys-tem from 1948 through to the early 1990s. Ireland recently witnessed the first ever co-alition between Fianna Fáil and Labour, as well as the first-ever coalition joining Fine Gael and the Democratic Left. The Netherlan-ds in 1994 saw the first ever government to be formed that excluded the religious mains-tream: the first secular government in mo-dern Dutch history. In Spain, Catalan coa-lition shifted its support from the Socialist Party to the Popular Party. In Germany, the Greens have emerged as an alternative junior partner for the Social Democrats, opening up new government formation formulae in that country for the first time in thirty years. Mo-re options are open, and the question of who gets into government becomes much more a matter of short-term bargaining and contin-gent choice. (MAIR, 2001, p. 26)

É preciso ter sempre presente que es-ta tendência a um enfraquecimento (ou re-configuração?) da escala esquerda/direita (identificada nacional e internacionalmen-te) não possui as mesmas causas em todos os países. Além de terem variado imensa-mente ao longo do tempo, os conteúdos das definições de esquerda e de direita também variam conforme a história e o contexto cultural de cada país.

Tendo este complexo cenário como pa-no de fundo, o objetivo deste artigo consiste em inventariar e sistematizar os critérios e os elementos constitutivos dos conceitos de Esquerda e Direita, identificados na biblio-grafia nacional e internacional. Ao realizar esta tarefa, pretende-se discutir a aplicabi-

1. Resultados parciais da pesquisa “Esquerda e Direita no Sistema Partidário Brasileiro” em andamento com o apoio financeiro do CNPq.

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lidade da escala esquerda-direita proposta pelo Manifesto Research Group2 (BUDGE et al, 2001; VOLKENS,2001) aos partidos bra-sileiros e propor categorias de análise mais profícuas para o exame específico deste sis-tema partidário.

Exemplo desta questão é a enorme dis-crepância que se observa quando os crité-rios elaborados por pesquisas que têm co-mo objeto principal de análise partidos eu-ropeus são aplicados para classificar parti-dos políticos de outras regiões, como o Bra-sil (TAROUCO, 2008). A escala definida, por exemplo, pelo Manifestos Research Group (BUDGE et al, 2001; VOLKENS,2001) in-clui, entre os elementos constitutivos da po-sição política de esquerda, a defesa do in-ternacionalismo e a busca da paz entre paí-ses, e, entre elementos constitutivos da po-sição política de direita, a defesa do consti-tucionalismo e de liberdades e direitos hu-manos. Tais critérios fazem pouco sentido na política de países que não passaram pe-los mesmos processos históricos revolucio-nários que moldaram as visões da política nos países europeus. O resultado é que, apli-cados a realidades como a brasileira, aque-las escalas produzem classificações no mí-nimo esdrúxulas. Como afirmam Benoit e Laver (2006):

We emerged from the chapter with an im-portant result that may surprise some rea-ders. People are accustomed to talking easi-ly about left and right within any one coun-

try, and talking as if the meaning of these terms was clearly understood by all. Within any one country, our results do not suggest there is anything wrong with doing this. Ho-wever, our results also suggest quite stron-gly that the substantive meaning of left and right is a poor international traveler. Temp-ting as it might be to compare the right in the United States, for example, with the ri-ght in Britain (or Russia or Japan) this com-parison likely rests on very shaky founda-tions. The substantive meanings of left and right are without doubt very different in the-se different political settings. “Yes, yes”, we hear everyone cry, “we knew that already!” But careful reading of a surprising amount of cross national research in political scien-ce suggests, notwithstanding this knowled-ge, that such comparisons can sneak into an analysis in a host of unexpected ways. Fur-thermore the fact that cross-country compa-risons of left and right are of dubious validi-ty raises the possibility, rarely considered by political scientists, that cross-temporal com-parisons (i.e. time series) of left-right posi-tions in the same country may also be inva-lid – as the substantive meaning of left and right changes over time. We simply don’t know, if we observe movement, whether it is the positions of the parties, the meaning of the scale, or both, that is changing over ti-me. We offer no solution to this conundrum other than advising the use of great modesty when making claims that derive from obser-

2. Programa criado em 1979 pelo European Consortium for Political Research que resultou em um vasto banco de dados, mantido atualmente pelo Comparative Manifestoes Project, em Berlim. Para se ter uma idéia da extensão deste trabalho, consultar as seguintes obras: analise de 1018 manifestos de partidos em 19 democracias entre 1945 e 1983: Budge, Robertson e Hearl (1987); Revisão, em 1992, das 54 categorias inicialmente elaboradas: Laver e Budge (1992); Pesquisa comparativa da relação entre manifestos e gas-tos governamentais em 10 democracias durante 40 anos no pós 2ª Guerra: Klingemann et al. (1994); Ma-peamento de preferências políticas de partidos, eleitores e governos em 25 democracias entre 1945 e 1998: Budge et al. (2001). Ampliação da base de dados, passando a abranger países do Leste Europeu, OECD e União Européia: (KLINGEMANN, 2006)

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ving time series movements in the left-right policy positions of key political actors. (BE-NOIT; LAVER, 2006 p. 219).

O presente artigo está estruturado em três partes. Em um primeiro momento, pro-põe-se estabelecer uma discussão sobre a definição do conteúdo substantivo dos con-ceitos de esquerda e direita, tanto no cená-rio brasileiro, quanto no âmbito interna-cional. Chama-se a atenção para o fato de que o amplo uso que se faz destes conceitos (por parte da população em geral, dos ato-res políticos, dos jornalistas) sem um esfor-ço para a definição de seus conteúdos, ge-ra o risco de a própria academia fazer uso dos mesmos sem se questionar quais são os seus significados em um país e períodos es-pecíficos. Logo a seguir, pretende-se discu-tir até que ponto é possível a utilização des-tes conceitos em análises comparativas en-volvendo países com histórias e dinâmicas sócio-econômicas e políticas próprias a par-tir de uma análise dos pressupostos e con-seqüências da perspectiva teórica adotada. Finalmente, apresenta-se um debate acer-ca das limitações metodológicas envolvidas, mais especificamente, acerca do contraste entre comportamento estratégico e identifi-cação político-ideológica.

2 esquerda e direita: conceitos auto-explicativos?

Em trabalho anterior (TAROUCO; MA-DEIRA, 2009), identificou-se que em vários países e nos últimos dois séculos, Esquer-da e Direita são categorias constantemen-te utilizadas como referência para mapear espacialmente a posição de diferentes par-tidos políticos de um mesmo sistema parti-dário. No entanto, identifica-se também que paralelamente à manutenção da utilização

destes conceitos, os seus respectivos signi-ficados variam ao longo deste período. Na reunião dos Estados Gerais na França, por exemplo:

Delegados identificados com igualitarismo e reforma social se sentavam à esquerda do rei; delegados identificados com aristocracia e conservadorismo, à direita. A distinção ori-ginal entre defesa da ordem ou da mudança correspondia a uma disposição espacial e ao longo do século XIX na Europa a distinção entre esquerda e direita passa a ser associada com a distinção entre liberalismo e conser-vadorismo. Com a expansão do movimento operário e a difusão da perspectiva marxis-ta o conteúdo da posição de esquerda passa a incorporar a defesa dos interesses da clas-se proletária. Com os debates da social-demo-cracia no final do século XIX e a revolução russa de 1917, a defesa do capitalismo des-loca a burguesia para a direita. A emergência do keynesianismo a partir da década de 1930, por sua vez, e dos estados de bem estar social com suas políticas redistributivas, reforçaram a oposição entre a liberdade de mercado e o Estado interventor, deslocando também o li-beralismo para a direita (TAROUCO; MADEI-RA, 2009, p.3).

Pretende-se chamar a atenção para algo aparentemente trivial, mas que corre o ris-co, muitas vezes, de passar despercebido: o significado substantivo de esquerda-direita não é, necessariamente, dado a priori. Ao analisar esta questão no âmbito internacio-nal, Benoit e Laver (2006) afirmam que:

[…]the left-right scale in a given political sys-tem can be seen as having to do with eco-nomic policy – where economic policy might include policies on the trade-offs between lo-wer taxation and higher public spending, for example, or between the regulation and dere-gulation of business and industry. It may also

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be seen as having to do with “social” policy on matters such as abortion, gay rights and euthanasia. The left-right scale might be seen as having a bearing on foreign and defense policy on matters such as military spending, overseas aid, and dealings with international organizations such as the United Nations. In other words, there is a lot of substantive po-licy content that people typically regard as being natural to associate with the left-right spectrum in politics, and one approach to de-fining and estimating a left-right scale is to construct this scale from its substantive con-tent. (BENOIT; LAVER, 2006, p. 189).

Tomando o caso brasileiro como exem-plo: após o final do regime autoritário, a de-finição do significado de esquerda-direita estava intimamente relacionada ao envolvi-mento, ou não, de partidos e grupos políti-cos com o antigo regime. Esta, talvez, seja a origem do fenômeno (identificado ainda hoje no Brasil) denominado como “direita envergonhada” (SOUZA, 1988). Analisando este fato, Power e Zucco (2009) levantam a hipótese de que a auto-definição de atores políticos membros de partidos considerados de direita (notadamente PDS/PPB/PPR/PP e PFL/DEM), como sendo de centro é con-dizente com o esforço de boa parte destes grupos políticos para desvincular a sua ima-gem do antigo regime autoritário.

A atual distribuição dos principais par-tidos políticos brasileiros na escala também é coerente com o grau de aproximação/dis-tância com relação ao regime autoritário. Os partidos considerados de direita (PP e DEM) foram os principais apoiadores do re-gime, os partidos de centro (PMDB e PS-DB) representam em linhas gerais a oposi-ção (sub-dividida entre moderados e autên-ticos) permitida pelo regime e os principais partidos de esquerda (PDT e, claramente o

PT) sendo mais representativos das forças políticas que não atuavam dentro do mar-co institucional montado pelo regime (sen-do que parcela significativa destes grupos teve atuação na clandestinidade e se cons-titui em um dos principais alvos da repres-são do regime militar).

Este fato, juntamente com a identifica-ção do fenômeno da “direita envergonha-da”, pode ser considerados como indicador da relevância do período autoritário na con-figuração do multipartidarismo atual. Con-tudo, ao longo dos anos 1990, o debate po-lítico/ideológico recolocou na agenda polí-tica temas (privatização, desregulamentação da economia, por exemplo) que se aproxi-mam mais dos critérios clássicos de distin-ção entre esquerda e direita. O que se iden-tifica aqui é, talvez, uma mudança na prin-cipal dimensão utilizada para definir o con-teúdo dos conceitos de esquerda-direita no Brasil: de uma dimensão mais propriamen-te histórico-política (apoio/oposição ao re-gime) para uma dimensão econômica (des-regulamentação/privatização). Ao analisar a posição de presidentes e partidos políticos de 18 países da América Latina em várias di-mensões, Wiesenhomeier e Benoit (2007) identificam que no caso brasileiro, a dimen-são constitui-se em um dos temas estrutu-rantes da agenda política.

In Brazil, the dimensions privatization, glo-balization, and individual liberties reach the same score, while in the Dominican Repu-blic, globalization and economic coopera-tion share the same importance. In general, economic issues are the most salient ones; privatization is judged the most important dimension in 5 countries (Brazil, Guatemala, Paraguay, Uruguay and Venezuela), deregu-lation in 3 countries (Argentina, Chile, and Peru), as are economic cooperation (Cos-ta Rica, Dominican Republic, and Panama)

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and the issue of globalization (Bolivia, Bra-zil, and the Dominican Republic). Contrary to results found for western European coun-tries surveyed in Benoit and Laver (2006), the dimension of economic policy - taxes vs. spending - hardly ever reaches a score of more than 1.0 and is never estimated to be most important in any country under inves-tigation. Security questions as captured by our individual liberties dimension are jud-ged to be most important in Brazil, Colom-bia, Honduras, and El Salvador, as could be expected from the individual country’s se-curity situation. The religion dimension re-aches the highest scores in the cases of Me-xico and Nicaragua. (WIESENHOMEIER; BE-NOIT, 2007, p. 15).

Duas questões merecem ser destacadas ainda sobre este ponto. A primeira é que por se tratar de um período histórico es-pecífico, a influência do regime autoritá-rio tende a diminuir com o passar do tem-po. E o ritmo desta diminuição pode ser mensurado a partir, por exemplo, do ritmo de substituição dos remanescentes do an-tigo regime por novas gerações sem vín-culos com aquele período. Em estudo an-terior (MADEIRA, 2006) tal análise foi re-alizada tendo-se como foco a Câmara dos Deputados e identificou-se que o percentu-al de remanescentes da ARENA e do MDB3 entre os deputados federais brasileiros foi de 82% em 1982, 61% em 1986, 47% em 1990, 33% em 1994, 26% em 1998 e 20% em 2002.

Em seu estudo sobre as clivagens ideoló-gicas entre os partidos políticos representa-dos na Câmara dos Deputados, Power (2008) identifica exatamente o mesmo processo.

The persistence of authoritarian-era clea-vages colored Brazilian politics for at least the first decade after the transition to demo-cracy, but the Plano Real and the election of Cardoso in 1994 inaugurated a new phase of economic and political management. The Plano Real ended hyperinflation, the allian-ce between the PSDB and PFL united forces that were on opposite sides of the coup of 1964, a broad reform agenda reshaped the overall development model in significant ways, and Cardoso’s effective manipulation of “coalitional presidentialism” rewrote the playbook for the management of interparty alliances and power sharing. These changes had the effect of “rebooting” the democra-tic regimes in the mid-1990’s sharply dimi-nishing the relevance of the authoritarian--era cleavages that had shaped, for exam-ple, the writing of Brazil’s new constitution in the late 1980s. This process has been rein-forced by intergenerational population re-placement within the political class: simply put, older politicians have died and youn-ger ones have taken their place. The new recruits do not carry the baggage of 1964. (POWER, 2008, p. 84).

Se a análise empreendida por Benoit e Laver (2006) tivesse incluído o caso brasi-leiro seria, talvez, mais fácil encontrar a res-posta para a questão de qual dimensão de-veria ser adotada para a definição de es-

3. A análise definiu como remanescentes somente os deputados federais eleitos entre 1982 e 2002 que pos-suíram filiação formal, seja à ARENA, seja ao MDB. Cabe salientar também que o ritmo de substituição de remanescentes por não-remanescentes foi significativamente mais lento entre as lideranças partidárias, o que significa afirmar que embora em constante diminuição, até o final da década de 1990, o grupo dos re-manescentes manteve – via de regra – o controle sobre os postos de liderança no interior da Câmara dos Deputados.

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querda-direita no Brasil. Como não foi este o caso, a presente análise toma como parâ-metro o que estes autores denominaram co-mo “definição clássica” de esquerda-direita, privilegiando a dimensão econômica (grau de ingerência do estado na economia, por exemplo) como critério de análise. Chama--se a atenção do leitor para o fato que es-ta escolha tem como objetivo propor a dis-cussão sobre qual dimensão/critério oferece maior potencial explicativo para a definição de esquerda-direita no Brasil.

Este debate sobre o caso brasileiro per-mite identificar um componente relevante na definição de esquerda-direita: o aspec-to relacional. Aqui, é a análise da agenda política específica de um país, ou conjunto de países, que se constitui em profícuo ins-trumento para se mensurar até que ponto as definições de esquerda e direita variam (en-tre países e em um mesmo país ao longo do tempo), bem como quais são os principais elementos que definem esquerda e direi-ta em um determinado contexto. Em traba-lho anterior (TAROUCO; MADEIRA, 2009), identificou-se que:

Este significado de esquerda e direita, entre-tanto, não está isento de controvérsias. Con-tribuem para a polêmica a distinção entre li-beralismo econômico e liberalismo político, a freqüente confusão com a dimensão pro-gressista-conservador, os partidos religiosos na Europa, as peculiaridades do sistema par-tidário norte-americano, o fundamentalismo, o fascismo, o esmorecimento das fronteiras entre as bases sociais de classe dos partidos,

e mais recentemente, o neoconservadorismo e a dificuldade de enquadrar as chamadas questões pós-materialistas, tais como a ques-tão ambiental e as questões étnicas e de na-cionalidades, por exemplo. (TAROUCO; MA-DEIRA, 2009 p. 4)

Benoit e Laver (2006) examinam es-ta questão em âmbito internacional toman-do como base para a análise a avaliação de especialistas acadêmicos em diversos países, principalmente, da Europa. Para além da di-mensão esquerda-direita, os autores pergun-tam aos especialistas quais seriam as outras dimensões relevantes que pautam a agen-da política de seus respectivos países e a par-tir das quais as distinções programáticas en-tre os partidos podem ser identificadas. Co-mo exemplo da complexidade desta questão, apontou-se a dificuldade de se relacionar a dimensão esquerda-direita e a dimensão libe-ral-conservador. A dificuldade existente em alguns países europeus de enquadrar conser-vadores (que levantam bandeiras como a le-aldade à nação, uma visão orgânica da socie-dade e uma forte religiosidade) e liberais (to-mados aqui no sentido clássico do termo, is-to é: liberalismo econômico) em um mesmo grupo (no caso: direita), como se não houves-se diferenças ideológicas entre ambos,4 é dig-na de nota.

Ao mensurar esquerda-direita com ba-se na posição dos partidos em dimensões de políticas econômicas e de políticas sociais, a análise aponta que na maioria dos paí-ses analisados (oeste europeu, Estados Uni-

4. Ao realizarmos a escolha de priorizar na nossa análise a dimensão econômica na definição de esquerda--direita, nós não podemos identificar estas nuances no interior de cada partido e trataremos cada partido co-mo se fosse um grupo coeso e sem significativas diferenciações internas. No entanto, cabe ressaltar que es-ta dificuldade seria bem mais séria se tivéssemos como objeto a posição ideológica dos membros dos parti-dos políticos, uma vez que a análise do posicionamento individual abre uma ampla margem para diferencia-ções entre os entrevistados (diferenciações estas que seriam bem mais difíceis de classificar na dimensão es-

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dos, Canadá e Austrália) é possível identi-ficar a correlação entre as referidas dimen-sões. Isto é: nestes países a dimensão es-querda-direita é suficiente para predizer a posição dos partidos nas principais ques-tões que pautam a agenda política de seus respectivos países. Contudo, a análise de-monstra também que no leste europeu e em países como Japão, Israel e Turquia a so-breposição não é automática.

Aqui os autores identificam que a cha-mada definição “clássica” de esquerda-direi-ta não pode ser usada de forma indiscrimi-nada. E o uso indiscriminado da definição “clássica” de esquerda-direita é problemáti-co por dois motivos principais. O primeiro é que alguns países possuem questões histó-ricas específicas de grande relevância para a configuração de seus respectivos sistemas partidários e que não se sobrepõem necessa-riamente à dimensão econômica (exemplos do fenômeno que os autores denominam co-mo local policy dimensions5 são: a identida-de nacional no Japão, a religião na Turquia e a questão palestina em Israel). O segundo fator diz respeito à importância relativa de cada uma das dimensões anteriormente cita-das (política econômica e política social) na definição do conteúdo de esquerda-direita em cada país.

Comparing the coefficient for economic po-licy with the coefficient for social policy – the only two independent variables in each analysis – gives us a measure of the relative impact of economic and social policy posi-

tions on predictions of left-right policy posi-tions. […] Figure 6.1 shows us that the subs-tantive meaning of left and right, at least in the minds of country specialists who are pro-bably sources as authoritative as any on such matters, is indeed very different in different countries. At the top section of each region, where the taxes-spending bars are longest, we find countries such as Cyprus, Iceland, Norway, the Ukraine, Belarus, Latvia, and Estonia, for which left-right positions are al-most entirely explained by economic policy. At the bottom of the table we find countries such as Portugal, Austria, Hungary, Japan, and Turkey, for which left-right positions are by contrast dominated by positioning on so-cial policy. Between these extremes, we find countries such as Germany, Britain, Poland, Israel, the United States, and Australia, for which economic and social policy contribute to left-right positions in relatively equal me-asure (BENOIT; LAVER, 2006, p. 194).

A definição do conteúdo dos conceitos es-querda-direita é auto-evidente e estes con-ceitos podem, portanto, ser empregados em comparações entre diferentes países sem ris-cos de um resultado inadequado? Ou, por ou-tro lado, o caráter relacional dos conceitos e a influência da agenda política e da trajetória específica de um país na definição dos conte-údos de esquerda-direita não permitem o em-prego dos mesmos em análises comparativas? Nem tanto ao céu, nem tanto a terra. A saí-da para este dilema se encontra em um pon-

querda-direita. Como a presente análise leva em consideração os programas partidários, cada partido será to-mado como unidade básica de análise. Isto é, ao ter como foco de análise documentos oficiais do partido co-mo um todo, o presente estudo não capta as diferenciações internas aos mesmos.5. A influência do regime militar no Brasil ao longo da década de 1980 e da primeira metade da década de 1990 pode ser considerada como um exemplo de local policy dimension. É curioso notar que também no caso brasileiro a dimensão econômica não se sobrepõe de forma automática à clivagem entre apoiado-res e opositores do regime militar (ver POWER, 2008).

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to intermediário entre estas duas perspecti-vas. Parte-se aqui do pressuposto de que, des-de que se preste atenção para a existência de possíveis local policy dimensions e para o pe-so relativo de cada dimensão (políticas social, econômica, étnica, etc) em cada país, é possí-vel a realização de uma análise comparativa. No que tange à presente análise, não há a ne-cessidade de se encontrar este “ponto ideal” dado que a mesma se restringe ao exame dos partidos políticos brasileiros. Mas, pela rele-vância do tema, não nos furtaremos a propor a discussão sobre este ponto.

3 Saliency theory e estudo dos manifestos

A referência para esta tentativa de clas-sificação ideológica dos partidos políticos brasileiros, tomando-se como objeto os pro-gramas partidários, encontra-se em estu-dos comparativos que buscam classificar os partidos políticos em vários países, também com base na escala esquerda-direita. Utili-za-se aqui, como estratégia para ilustrar es-te debate em suas linhas gerais, o debate metodológico entre duas das principais es-tratégias empregadas para propor a classi-ficação dos partidos: o julgamento de aca-dêmicos/especialistas e a análise dos textos (manifestos) produzidos pelos próprios par-tidos políticos. Benoit e Laver (2006) cons-tituem-se como representantes da primei-ra estratégia, dado que seu estudo toma co-mo referência a opinião de acadêmicos so-bre o posicionamento e a importância rela-tiva que cada partido político dá a diferen-tes aspectos (dimensões) da agenda política de seus respectivos países. A segunda estra-tégia é representada pelo Manifesto Resear-ch Group, lançado em 1979 e mantido atu-almente pelo CMP - Comparative Manifes-tos Project (Berlim) - e tem como parâmetro o estudo dos manifestos dos partidos polí-

ticos europeus desde o pós Segunda Guer-ra Mundial.

A análise do conteúdo dos manifestos baseia-se na chamada Saliency Theory. De acordo com esta teoria, a disputa político--partidária e eleitoral não pode ser apreen-dida em sua complexidade apenas em ter-mos “downsianos”. As análises inspiradas em Downs seriam por demais simplórias ao assumir que as estratégias partidárias se re-sumiriam na tomada de posição dos dife-rentes partidos em relação a um conjunto de temas da agenda política (sendo que estas estratégias seriam influenciadas por uma força centrípeta dado que para alcançar o maior número de eleitores, os partidos ten-deriam a adotar um discurso moderado). A Saliency Theory (ROBERTSON, 1976; BUD-GE, 1999) questiona esta abordagem (que seria por demais reducionista) e busca com-plexificar a análise ao afirmar que as dis-putas partidárias e eleitorais não se resu-miriam ao processo de tomada de posição. Através do exame da manifestação dos par-tidos (analise dos manifestos, por exemplo) seria possível identificar não somente o po-sicionamento dos partidos, mas também a sua estratégia no sentido de realizar uma escolha seletiva dos temas abordados no de-bate político-eleitoral. Destarte, tão impor-tante quanto o posicionamento de um de-terminado partido (a favor ou contra) so-bre um tema x é o questionamento sobre as causas que levaram este partido a lançar no debate o tema x e não o tema y ou z.

Assim, os partidos não ofereceriam pa-ra o eleitorado apenas posicionamentos di-ferentes sobre os mesmos temas, mas tam-bém agendas políticas diferentes uma vez que cada partido teria incentivos para pro-por temas sobre os quais se presumiria que o mesmo tivesse vantagens em relação aos seus competidores (de acordo com este ra-

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ciocínio, o partido que tivesse condições de impor a sua agenda no debate eleitoral so-bre a agenda adversária teria uma significa-tiva vantagem em relação aos demais com-petidores).

Ao identificar a disputa, não só entre di-ferentes posições, mas também entre dife-rentes propostas de pauta da agenda políti-co-eleitoral, esta abordagem permite (assim como o estudo de BENOIT; LAVER, 2006) conceber a disputa político-partidária como um espaço multidimensional. As mudanças identificadas na agenda política nas últimas duas ou três décadas e expressas, por exem-plo, na inclusão das chamadas questões pós-materialistas na pauta da agenda polí-tica dos países em que as questões distribu-tivas baseadas em conflitos de classe foram significativamente resolvidas (etnia, identi-dade nacional, meio ambiente – TAROUCO, 2007) atestariam a relevância de uma abor-dagem multidimensional.

Até aqui, tanto Benoit e Laver (2006), quanto os estudos do CMP podem servir co-mo parâmetro para se discutir a definição de esquerda-direita com base em uma visão multidimensional sempre que a análise for comparativa. Outra característica comum é que (por caminhos diferentes) seria possível mensurar em ambas as abordagens a im-portância relativa de cada dimensão em ca-da partido/país analisado (no primeiro ca-so o critério para a hierarquização das di-mensões é a opinião dos entrevistados, no segundo caso, é a freqüência com que ca-da dimensão aparece nos manifestos). Cabe aqui chamar a atenção para os riscos carac-terísticos a cada uma das abordagens.

Com relação ao primeiro caso, cabe-se perguntar até que ponto a opinião de espe-

cialistas é isenta. Benoit e Laver (2006) ale-gam que os estudos que buscam mensurar a posição política de partidos utilizando pes-quisas com eleitores, ou pesquisas com eli-tes políticas, não gerariam resultados con-fiáveis dado que é plausível esperar que a posição e os interesses particulares dos res-pondentes tenham impacto nas respostas. Embora correta, qual seria a razão para que a mesma medida de cautela não seja adota-da quando se entrevistam os acadêmicos de um determinado país? Não é razoável pen-sar que parcela significativa dos estudiosos tenha inclinação, ou mesmo uma ligação orgânica com determinados partidos e pos-sam responder aos questionários motivados também por estes fatores?6 Na realidade, em qualquer um dos três casos (pesquisas de opinião com eleitores, elites políticas ou es-pecialistas), é possível traçar estratégias pa-ra diminuir este risco e buscar aumentar o grau de confiabilidade dos dados.

A análise dos manifestos não teria tal problema uma vez que a mesma toma como parâmetro documentos oficiais dos próprios partidos. Como afirma Budge (1999):

To meet the theoretical requirement for an unambiguous source of collective party pre-ferences we have to turn to the only collec-tive policy statement parties, as such, make - their election programme. No other source represents the combined views of all levels of the party as an organization. To see why the manifesto has this unique position, we have to consider the process wherebye it is prepa-red by the leadership and endorsed by a re-presentative gathering of the party, someti-mes in an elaborate procedure going down to the grass roots and back up (Budge, Robert-son, Hearl et al, 1987, p18 and passim). Con-

6. Para uma discussão sobre as deficiências da pesquisa com especialistas, ver Pennings e Keman (2002).

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veniently collected together, therefore, we have a review of party views on the current political situation and reactions to it, consti-tuting a formal expression of collective par-ty preferences absolutely distinct from sub-sequent strategic behaviour or actual policy outcomes. It has the additional advantage of being unambiguously located at one point in time. But it is also comparable with ear-lier or later expressions of the same party’s preferences, with earlier or later expressions of other party’s preferences, domestically or cross-nationally and with later government declarations and policy outcomes (BUDGE, 1999, p. 5).

Com relação ao CMP, o problema que se coloca é o da codificação dos manifestos. A abrangência deste projeto e os custos sig-nificativos de tempo e pessoal na codifica-ção dos manifestos inviabilizaria, de acor-do com Benoit e Laver (2006) a revisão do trabalho, fato este que aumentaria sobre-maneira o risco de a análise ficar compro-metida por eventuais erros humanos na co-dificação dos manifestos. Talvez mais sério do que este problema é o fato de que o con-junto de dimensões analisado nos estudos do CMP é fixo. Desta forma, a análise esta-ria engessada e não poderia captar as novas dimensões/temas característicos da agen-da política. Tal ponto é levantado por Gabel e Huber (2000), por Schmitter (2001) e por Benoit e Laver (2006) para explicar as in-congruências identificadas na comparação dos resultados das pesquisas.

Drawing on our general knowledge about the parties listed in this table, there are cle-arly some that have been located incorrec-tly on at least one of the left-right scales. We have not identified any particular pat-tern that explains these differences, althou-gh several of the outliers in Table 4.2 seem

to be parties for which immigration, natio-nalism, or the environment are important is-sues. Because none of these issues are com-ponents of the CMP left-right scale used in Mapping Policy Preferences, it is possible that CMP scores for parties emphasizing the-se issues could differ from the corresponding expert survey estimates of their left-right po-sitions. For instance, it might explain why the CMP ranked as centrist the Austrian Gre-ens and Belgian Ecolo parties, whereas our expert survey scores placed these parties on the left. Likewise, the CMP ranked as left-of--center several nationalist parties such as the Belgian VB and the New Zealand First Party, which are scored as right-wing by our ex-perts. In nearly all cases such as this where the two independent measures disagree, and while readers are entitled to draw their own conclusions, we feel quite confident that our expert estimates come closer to what most observers would regard as the “correct” po-licy positions that the CMP’s manifesto-ba-sed estimates. To put it crudely, when me-asures disagree, we are happier with a me-asure that puts the Italian Communist Party and the Austrian Greens on the left (as does our measure) rather than on the right (as do-es the CMP). Similarly, we are happier wi-th a measure that puts Spain’s Partido Popu-lar or Greece’s New Democracy on the right (as does our measure) rather than on the left (as does the CMP). We can find no off-diago-nal case in which our expert survey measure appears to give the “wrong” answer, in this sense. (BENOIT; LAVER, 2006, p. 144).

4 Posição ideológica versus comportamen-to estratégico

Além deste fato, uma das hipóteses le-vantadas pelo presente estudo é a de que através da Saciency Theory não é possível

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afirmar com certeza quais seriam todas as dimensões priorizadas por um determinado partido político. Como dito anteriormente, tal abordagem pressupõe um elemento es-tratégico, qual seja: cada partido busca va-lorizar aqueles temas em que julga que o seu posicionamento é semelhante ao posi-cionamento da maioria do eleitorado. Den-tro deste cálculo eleitoral, quando um deter-minado partido possui uma posição forte-mente estabelecida e contrária a da maioria do eleitorado em uma determinada questão x, o principal interesse deste partido será o de não trazer a questão x ao debate eleito-ral. Neste caso hipotético, o tema x prova-velmente não constará no manifesto deste partido, mesmo podendo ser um tema cen-tral no interior do mesmo.

Por outro lado, Tarouco (2007) identifi-cou que:

O argumento de que a competição partidária se dá por diferentes ênfases programáticas encontra apoio nos dados: as análises empí-ricas feitas a partir dos dados do MRG reve-lam que os níveis em que os partidos colo-cam ênfase nas diferentes questões políticas distinguem-nos claramente uns dos outros e que as políticas prioritárias dos governos são consideravelmente previsíveis pelas agendas apresentadas pelos partidos (KLINGEMANN et al., 1994; BUDGE, et al., 2001 apud TA-ROUCO, 2007, p. 25).

Conciliando estes dois pontos aparente-mente contraditórios, afirma-se aqui que os manifestos se constituem em documentos relevantes no contexto europeu dado que os partidos, uma vez no poder, tendem efetiva-mente a implementar as principais medidas contidas nos manifestos (este ponto também é salientado por BENOIT; LAVER, 2006, p. 98). Contudo, nem tudo aquilo que os parti-dos pretendem implementar uma vez no po-

der terá sido, necessariamente, defendido em seus respectivos manifestos.

A decisão de declarar ou de omitir prefe-rências nos documentos programáticos em função de interesses eleitorais deve ser consi-derada como um possível problema da variá-vel issue saliency como válida para expressar o posicionamento político de um partido. En-tretanto, outras abordagens também apresen-tam o problema do viés do comportamento es-tratégico. Referimo-nos às mensurações de po-sicionamento político através da atuação par-lamentar, por exemplo.

Uma das críticas mais contundentes às análises que tomam a votação em plenário como parâmetro para se mensurar a posição ideológica das bancadas dos partidos polí-ticos se constitui no fato de que no proces-so de tomada de decisão dos parlamentares a posição ideológica é apenas uma das vari-áveis levadas em consideração. Tomar o re-sultado das votações como medida de posi-ção ideológica seria desconsiderar o aspecto estratégico inerente a este processo de toma-da de decisão (ZUCCO 2009; POWER; ZUC-CO 2009). Aspectos como o cálculo eleitoral ou a relação entre coalizão governista ver-sus partidos de oposição constituem-se em variáveis que não poderiam ser desconside-radas (LYNE, 2005; MAIR, 2001). Aqui, tal-vez tão importante quanto a posição ideo-lógica do partido, seja a posição do partido (no governo ou na oposição), até mesmo em função do fato de que parcela significativa das votações em plenário não envolve deba-te de cunho programático/ideológico (MA-DEIRA, 2006)7.

Por outro lado, é importante salientar a existência de estudos que apontam na di-reção contrária. Ao tomar como parâmetro para a análise da coerência ideológica dos partidos a votação individual dos deputados federais ao longo da década de 1990, Leo-

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ni (2002) identifica que, utilizando-se a di-mensão esquerda-direita, seria possível pre-ver com acerto 85% das votações em plená-rio. Como afirma o autor:

Este artigo procurou estimar as posições ide-ológicas dos deputados a partir das preferên-cias expressas por eles nas votações nomi-nais. A análise revelou uma estrutura ideoló-gica basicamente unidimensional, que prediz corretamente mais de 85% dos votos. A lo-calização dos partidos nos mapas espaciais não está em conflito com a percepção usu-al do quadro partidário na Câmara. A van-tagem óbvia é que temos não só as posições dos partidos como um todo, mas de cada membro específico, dos líderes e do Executi-vo. Os deputados em geral não mudam muito de posição espacial de uma legislatura para outra, ou seja, a estrutura é estável. (LEONI, 2002, p. 382).

Transferindo esta discussão para o MRG, a identificação do ponto anteriormente ci-tado permite questionar também a utiliza-ção das análises de conteúdo dos manifes-tos realizadas na Europa pelo CMP. Dife-rentemente do caso brasileiro (onde os pro-gramas partidários não são lançados a cada eleição), na Europa os partidos se caracte-rizam por lançar tais documentos (manifes-tos) em cada período eleitoral. Portanto, na comparação entre os programas dos partidos políticos brasileiros e os manifestos anali-sados pelo CMP, cabe-se perguntar em qual dos dois casos a influência de aspectos con-junturais e estratégicos (cálculo eleitoral, por exemplo) é maior.

Dito com outras palavras, o que se levanta aqui como hipótese é que no caso brasileiro, a elaboração dos textos produzidos pelos par-

tidos, por não estar intimamente relacionada a uma eleição específica, é menos “contami-nada” pelo comportamento estratégico e por variáveis conjunturais. O outro lado da mo-eda é que justamente por não tratar de uma conjuntura específica, os programas partidá-rios no Brasil tenderiam a se caracterizar por um excessivo grau de generalidade. Um indí-cio deste ponto é a identificação (TAROUCO, 2007) de um percentual significativo de fra-ses dos programas dos partidos políticos bra-sileiros que não se enquadraram em nenhu-ma das categorias utilizadas pelo CMP. Se es-ta interpretação estiver correta, o alto índice de frases não classificadas pode ser resultado não somente da inadequação das categorias utilizadas pelo CMP ao caso brasileiro, mas também do caráter excessivamente abran-gente dos programas partidários no Brasil. Conclui-se esta discussão sugerindo que ou-tra hipótese para explicar este ponto se cons-titui no fato de que na conjuntura da redemo-cratização, os partidos políticos utilizam par-cela significativa dos textos para ressaltar o seu papel na transição para a democracia.

7. Como forma de resolver esta dificuldade, uma estratégia profícua se constitui na escolha de um conjun-to de votações em que o debate ideológico/programático esteja presente.

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Nota Sobre oS aUtoreS

Gabriela da Silva Tarouco é doutora em Ciên-cia Política (Ciência Política e Sociologia) pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro. Professora adjunto da Universidade Federal de Pernambuco.

Rafael Machado Madeira é doutor em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Atua como professor e pesqui-sador do Programa de Pós-Graduação em Ci-ências Sociais da PUC-RS.

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recebido em: 26.04.10aprovado em: 22.06.10

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entre

vista

Paulo Keller entrevista Ricardo Gomes Lima

ARTESANTO EM DEBATE

O antropólogo Ricardo Gomes Lima, pes-quisador do Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular (CNFCP/IPHAN/Minis-tério da Cultura), concedeu entrevista ao Professor Dr. Paulo Keller do Departamen-to de Sociologia e Antropologia da UFMA, no Museu de Folclore Edison Carneiro, no bairro do Catete, no Rio de Janeiro, em 21/12/2010. Ricardo G. Lima é doutor em Antropologia Cultural pelo PPGSA/IFCS/ UFRJ (2006), Professor Adjunto do Institu-to de Artes e do Programa de Pós-Gradu-ação em Artes da UERJ e Pesquisador do Centro Nacional de Folclore e Cultura Po-pular (IPHAN/MinC). Atualmente dirige o Departamento Cultural da UERJ e, no CN-FCP, coordena a Sala do Artista Popular

e o PROMOART - Programa de Promoção do Artesanato de Tradição Cultural. Nes-ta entrevista, Paulo Keller conversa com Ricardo G. Lima sobre artesanato. No ini-cio, o antropólogo conta a origem de seu interesse pelo artesanato, fala da impor-tância do tema e de seu valor sociocultu-ral e econômico para, a seguir, falar sobre a heterogeneidade do artesanato e de su-as dimensões socioculturais e econômicas. Conversam ainda sobre políticas públicas e ações de agências de fomento voltadas para o artesanato, sobre as relações do ar-tesanato com o mercado e sobre a questão ambiental. E no fim da entrevista Ricar-do fala sobre o Programa PROMOART e a questão do trabalho no artesanato.

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Paulo - Primeiro eu queria que você me falasse sobre como surgiu o seu interesse em estudar o artesanato?

Ricardo - Esta é uma longa história. Parte está narrada neste livro: Objetos - percursos e escritas culturais que acabo de lançar pe-lo Centro de Estudos da Cultura Popular da Fundação Cultural Cassiano Ricardo, de São José dos Campos, SP. Como expliquei, o li-vro fala de objetos artesanais e seus percur-sos, da produção ao consumo, do mercado local ao nacional, dos trânsitos pelo mun-do rural e urbano, por pequenas e grandes cidades, por feiras e museus. Paralelamen-te, narra também meu percurso pelo mun-do do artesanato. Eu me interessei pelo ar-tesanato muito cedo. O caminho dos obje-tos se revelou para mim quando eu ainda era estudante. Fui fazer Ciências Sociais na UFF e no segundo semestre da faculdade, fui es-tagiar no Setor de Etnografia do Museu Na-cional da UFRJ. Eu adentrei naquele mun-do dos objetos artesanais e o Setor de Etno-grafia foi decisivo em minha vida. Porque eu fiquei ali, embevecido por aquelas gavetas, aqueles armários repletos de milhares de ob-jetos do mundo todo: dos esquimós e dos la-pões, da África e da Oceania, dos índios bra-sileiros, dos então registrados genericamente como “índios brasileiros”, de diferentes po-vos da América Latina, da Ásia, do Japão... Tudo ali me encantou e me fez ficar den-tro daquele setor durante onze anos, convi-vendo com os objetos e com mestres como Maria Heloísa Fénelon Costa, Berta Ribeiro e Luis de Castro Faria. Depois de onze anos de trabalho no Museu Nacional, fui convidado por Lélia Coelho Frota, para vir para cá, pa-ra o CNFCP, que à época se denominava Ins-tituto Nacional do Folclore, o INF, para tra-balhar na reformulação do Museu de Folclo-re Édison Carneiro, de suas galerias de expo-

sição permanentes, como se dizia então, ter-mo que hoje passa a ser substituído por ex-posição de longa duração. Aquele início dos anos 1980 foi um momento de grande mu-dança na instituição, a antiga Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro, posteriormen-te transformada no INF, filiado à Funarte. Enfim, a instituição era conhecida como “a casa dos folcloristas”, do Movimento Folcló-rico tão bem estudado pelo antropólogo Luis Rodolfo Vilhena e exposto no livro Proje-to e missão: o movimento folclórico bra-sileiro. Era o espaço da tradição dos estudos que o folclore vinha empreendendo no Bra-sil desde a criação da Comissão Nacional de Folclore, em 1947. Quando eu chego, foi em meio, e em decorrência, de um processo de mudança conceitual da instituição, quer di-zer, naquele momento a vertente do folclo-rismo deixava de ser ali tão forte e os proje-tos institucionais passavam a ter a antropo-logia como linha mestra de orientação, ca-pitaneada por Lélia Coelho Frota. Lélia as-sume em 1982 e começa a levar antropólo-gos para trabalharem ali; e eu vim especifi-camente para pensar a questão dos objetos e do Museu de Folclore que é uma das partes que compõem o CNFCP. Então é isso: assim, se deu meu envolvimento com o campo que vem desde aquele tempo, do estudante que, de repente, se viu dentro do setor de etno-grafia de um grande museu, quase que por acaso, mas que ali se definiu para ele o mun-do dos objetos.

Paulo - Gostaria que você me falasse da importância e da riqueza do artesanato brasileiro da heterogeneidade e da diver-sidade do artesanato, o que você pode di-zer sobre isto?

Ricardo - A riqueza do artesanato brasilei-ro passa pela diversidade do fazer artesa-

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nal. Ele é diverso e é rico tanto pelas maté-rias primas que emprega, quanto pelas téc-nicas segundo as quais os objetos são con-feccionados e também, devido às realida-des que são vividas por aqueles que o pro-duzem. O artesanato apresenta um quadro de diversidade impressionante. E só hoje em dia não. Sempre. Vejamos: o que é o arte-sanato no mundo? Durante milênios foi o único modo que se tinha de fazer objetos. O mundo humano foi feito à mão. Se pensar-mos no volume de objetos que já se produ-ziu, manualmente, percebemos que é uma coisa impressionante e incalculável mes-mo, porque acompanha o tempo da pró-pria humanidade. Eu gosto muito do fil-me “2001 Uma Odisseia no Espaço” porque, para mim, Stanley Kubrick registra o sur-gimento da humanidade, associado à cria-ção dos objetos. Ele demonstra simbolica-mente como o homem surge quando aque-le primata, ao golpear o rival com um os-so, conceitualmente, processa uma mudan-ça que alterou toda a história da espécie. Ele transforma um simples osso, elemento da natureza, numa arma, um objeto, elemen-to da cultura. Ao criar o primeiro objeto, ele se cria como homem. E ele lança o os-so para o ar e surge a nave espacial. A sín-tese entre o primeiro e o último objeto cria-do pelo homem. No decurso de tempo, da-quele momento primeiro até hoje, o que se criou na humanidade, de modo artesanal, foi muita coisa. Porque a revolução indus-trial é muito recente na história, se pensar-mos na longa duração que tem a humanida-de. Enfim, o objeto feito pela máquina é ou-tro modo de se fazer objetos. Então, se olha-mos para o tempo de existência do artesa-nato, vemos que essa classe de objetos foi crucial para toda humanidade, que foi assim que a humanidade se fez, com objetos fei-tos à mão, fosse uma casa, uma colher, uma

arma, qualquer adorno, ou qualquer outra coisa, até surgir a indústria com a capacida-de de a máquina também criar objetos. En-tão, a importância do artesanato é a impor-tância da própria vida do homem. E a rique-za do artesanato também é impressionan-te. São muitas técnicas, muitas matérias pri-mas, como falei, e ao mesmo tempo muitos campos de significado, muitos contextos em que esses objetos estão inseridos. Por que se faz ou para que se faz um objeto artesa-nal? Vai desde a necessidade mais imediata de sobrevivência, desde o instrumento que é feito para o trabalho ou para o conforto: como um prato, uma colher, uma cama, até objetos de significados muito mais amplos, como a imagem de um sobrenatural, de um santo, um objeto religioso. Tudo isso refle-te uma diversidade muito grande e no Brasil esse campo também é extremamente rico. Só para exemplificar: o Promoart (sei que vamos falar sobre esse programa depois) re-alizou, por esses dias, o Mercado Brasil de Artesanato Tradicional, um evento aqui no Parque do Palácio do Catete, que constou de exposição e venda dos produtos dos 65 pó-los com que viemos trabalhando e trouxe-mos alguns artesãos. Foi muito bonito ver a rendeira de Florianópolis, ao lado de uma rendeira de Raposa, Maranhão, e outra de Morros da Mariana, no Piauí. E as três sen-tadas, cada uma com sua almofada de bil-ro, fazendo sua renda ali no parque. E a mo-ça do Maranhão falou assim: - “Olha, eu já fui para várias feiras, mas essa é a primei-ra vez que eu vejo assim. Eu sabia que em Santa Catarina fazia renda, mas eu não sa-bia que era assim, e eu estou gostando mui-to, que eu estou vendo que ela faz a mesma coisa que eu faço só que ela faz diferente.” Aí eu comecei a conversar com elas e fui percebendo que a de Santa Catarina esta-va fazendo um tipo de renda que se chama

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“tramóia”, e ela dizia orgulhosa que estava fazendo tramóia, e a rendeira do Maranhão falava: “Ah, essa eu não conhecia, porque na minha terra não faz assim”. E a do Piauí já falava outra coisa. Então, essa possibili-dade que temos de ver no artesanato a mes-ma coisa e ao mesmo tempo essa coisa ser diferente, isso é que dá riqueza a esse fazer. Porque para nós, que somos de fora, olhan-do as três rendeiras que faziam renda de bil-ro, só víamos que faziam renda. Agora, para elas, elas faziam rendas de bilro que guar-davam especificidades e também, ao mesmo tempo, construíam suas identidades. Enfim, é a riqueza das rendas no Brasil que, quan-do é de bilro, é muito diversa, e também tem a renascença, a irlandesa, o filé, o labirin-to, a singeleza, e tantas outras modalidades que são, ao mesmo tempo, tudo igual – são rendas – e, ao mesmo tempo, é tudo mui-to diferente. Então essa riqueza está dada. E quando você pergunta sobre a importância do artesanato, pensamos também em ter-mos quantitativos. Há cálculos que definem que são oito milhões de artesãos no Brasil. Eu não tenho certeza dessa cifra, até porque há mais de duas décadas que eu ouço falar isto. Só não sei qual é a fonte desse levan-tamento, e neste país que cresce continua-mente, já era para esse dado ter sido muda-do com certeza, não é? Numa perspectiva, mudar para mais, porque o país cresce dia a dia, em população; e em outro sentido, mu-dar para menos, porque há uma previsão de fim do artesanato, de que, com o tempo, o artesanato vai desaparecer; que a indústria e a globalização do mundo contemporâ-neo levarão fatalmente à morte dessa forma de fazer. Eu não tenho certeza disto. Acho que algumas técnicas tendem sim a desapa-recer. Por exemplo, eu venho notando isto em relação à tecelagem manual. A cada dia eu vejo menos comunidades fazendo tecela-

gem. O que era algo tão rico no Centro Oes-te brasileiro, na região do triângulo mineiro, em geral em todo o oeste de Minas, em Goi-ás e Tocantins. Hoje, você busca comunida-des que há 20, 30 anos eu conheci fazen-do tecelagem e já não há mais. Acabaram, as últimas tecelãs morreram, os jovens não aprenderam. Acho que existe uma explica-ção: o produto artesanal, a colcha tecida em tear, tem um custo do fazer que resulta num preço muito difícil de competir com a col-cha da indústria. Quando surgiu a colcha de chenille no Brasil, decretou-se a morte da colcha tecida em tear, porque não dá para competir em preço, em durabilidade. Outros produtos, como as rendas, não. Eu acho que estão se firmando muito bem. Os objetos de madeira se conservam bastante, a cerâmica se conserva bastante. Alguns produtos estão conseguindo nichos de mercado e se consa-grando como produtos perenes ao lado dos produtos industriais. Agora, alguns tendem a desaparecer sim.

Paulo - O artesanato têm dimensões so-cioculturais e também dimensões econô-micas, então, eu queria que você falasse da importância do artesanato tanto para a cultura quanto também para a economia, principalmente a economia popular.

Ricardo - Se tomamos como um dado de re-alidade a existência de oito milhões de arte-sãos no país, e multiplicamos isso, por uma média de 5 a 6 pessoas por grupo familiar, teremos um número enorme de pessoas que hoje vive e sobrevive do artesanato. Então, a importância econômica do setor é muito grande realmente. Embora eu duvide des-sas cifras, acho que elas são calculadas por baixo. Se houvesse um inventário realmen-te, o IBGE fazendo um censo do artesana-to no Brasil, eu tenho quase certeza que se

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iria descobrir muito mais coisa. Até porque há o lado informal da economia do artesa-nato, que é difícil de ser dimensionado, até porque nem todo mundo vive do artesana-to como profissão, embora se faça artesa-nato com grande extensão no país. Há ou-tro lado, pelo qual o artesanato é visto co-mo atividade de segunda ordem na vida do indivíduo e não é referido no momento em que a pessoa, esse artesão, é entrevistada. Por exemplo, junto às populações rurais: o artesanato é um modo de fazer objeto mui-to presente no meio rural brasileiro, os indi-víduos fazem colheres de pau, fazem game-las, fazem grande parte dos objetos da lida diária: cestos, peneiras, redes de pesca, im-plementos agrícolas de lidar com os animais e com a terra, a mulher tece, borda, costu-ra. Muitas vezes tudo isso é visto apenas co-mo algo secundário ao fato de o indivíduo ser um agricultor, um trabalhador rural, um pescador ou uma dona de casa. Na condu-ção do PROMOART agora, tínhamos deter-minadas oficinas a fazer em comunidades de Minas Gerais que foram suspensas por-que acabaram coincidindo exatamente com o momento de plantio. A população é basi-camente rural e faz o artesanato na entres-safra. Isso é muito comum no Brasil: no pe-ríodo da seca, não dá para você cuidar da roça, da terra, então você vai para o artesa-nato. Agora, choveu, a primeira coisa que você faz: pára o artesanato e vai plantar, porque se você perde essa primeira chuva você perde o feijão, o milho, o arroz do ano todo. O plantio tem época certa de aconte-cer. E é isso que norteia o ritmo de vida do agricultor, que parou o plantio, parou a co-lheita, então se dedica a fazer artesanato. Is-so que, às vezes, é desaparecido nos censos. O que mais você tinha perguntado? Em re-lação ao econômico?

Paulo - A importância da dimensão cultu-ral e econômica do artesanato.

Ricardo - Na economia, o artesanato tem uma importância enorme, muitas vezes me-nosprezada. Ela não aparece tanto quanto deveria, mas na verdade está aí numa esca-la enorme. Com relação ao cultural é a mes-ma coisa, o artesão produz a partir de uma cultura e o produto que faz, o objeto artesa-nal, tem esse duplo caráter: é uma mercado-ria por um lado, mas é também um produ-to cultural resultante do significado da vida daquela pessoa. Quanto a isto, tenho vivido experiências, relatos impressionantes mes-mo. Por exemplo, no norte da Bahia há um município chamado Rio Real onde se pro-duz uma louça belíssima. São potes, jarras, moringas, mealheiros, feitos com excelente barro e depois revestidos com engobo ver-melho e decorado com o branco da tabatin-ga. Peças realmente muito bonitas. E lá mo-ra uma senhora já de idade, chamada Dona Nitinha. Uma ocasião eu estive lá e ela me relatou que o órgão estadual que desenvol-ve a política de artesanato na Bahia, o Ins-tituto Mauá, costumava ir à casa dela, re-gularmente, de tantos em tantos meses para adquirir peças. Ela vendia para a vizinhan-ça, para as famílias próximas à casa dela, para o mercado regional, mas o verdadeiro mercado era o Instituto Mauá, que compra-va e comercializava suas peças por todo o Brasil, principalmente em feiras estaduais, e nas lojas que tem em Salvador. Só que hou-ve uma época em que o Mauá levou mui-to tempo sem ir a Rio Real. Segundo ela, no começo continuou a produzir normalmen-te, como sempre fazia, foi fazendo potes, fa-zendo moringas, até que já tinha produzi-do uma quantidade de louça suficiente pa-ra atender ao Mauá. Resolveu então parar à espera do caminhão do Mauá. E aí, ela ob-

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servou que foi entristecendo, entristecendo. Que acordava de manhã e ficava na cama um tempo, parada, e pensando: “o que vou fazer hoje? Levantar pra quê? Pra fazer o quê?”. Que ela não tinha o que fazer por-que o dia dela era ocupado no serviço do-méstico, no preparo da comida, no cuidar da criação, mas o principal era fazer a louça e, como não tinha mais para que fazer lou-ça, sobrava muito tempo do dia. E ela viu que foi ficando doente, e aí percebeu que ou ela mudava esse quadro ou morreria. E ela tomou a decisão: “Sabe de uma coisa? Vou voltar a fazer minha louça, ocupar meu tempo”.Foi assim que eu cheguei lá, junto com o caminhão do Mauá, e encontrei a ca-sa dela abarrotada de louça. Quase não se tinha como andar pela casa tomada por pe-ças. Sala, quartos, eram pilhas de coisas, só ficou uma passagenzinha estreita para cir-culação pelos cômodos e, para todo lado que você olhava, havia potes. A varanda era to-da tomada, o quintal tinha montes de potes cobertos com plástico à espera do caminhão do Mauá. Naquele dia o caminhão apareceu e ela voltou a vender sua louça. Você tem aí a dimensão da importância desse fazer pa-ra aquela mulher. Uma mulher que perce-be que ou faz o objeto ou morre. Então es-se objeto não pode ser reduzido a uma mer-cadoria simplesmente. Ele é sua vida. Houve outro caso, também no Nordeste, que não foi vivido por mim, mas me foi relatado, e me impressionou bastante. Era um projeto que se voltava pra produzir objetos de acor-do com um design moderno, contemporâ-neo, enfim, era uma comunidade de borda-deiras que tradicionalmente bordavam no pano branco flores altamente coloridas, ra-mos de flores azuis, amarelas, vermelhas, etc., ramagens bastante coloridas e boni-tas segundo a estética nativa. Só que eram produtos difíceis de venda fora do merca-

do, digamos, popular porque não atendiam ao gosto de segmentos dos grandes centros orientados por outros princípios estéticos. A fim de atingir esse outro segmento do mer-cado, as bordadeiras foram orientadas a de-senvolver um tipo de trabalho mais de acor-do com o gosto urbano, gosto esse definido a partir de uma pesquisa de mercado feita em São Paulo. Segundo a pesquisa, elas de-veriam seguir a tendência do momento em que vigoravam os tons sobre tons. O proje-to providenciou a matéria prima “correta”: tecidos e linhas harmonizadas. Comprou-se linho verde garrafa e linhas em matizes de verde pra bordar sobre o verde garrafa, se comprou linho azulão com linhas em dife-rentes tons de azul para a mulher bordar o ramo de flor azul sobre o tecido azul. E por aí foi, de modo a ela fazer jogos america-nos, como se dizia, “de fino gosto”. Uma das pessoas que trabalhava no projeto relatou--me que, um dia, chegou à cidade e foi vi-sitar uma artesã. Quando passou em fren-te à janela, ele a viu sentada na sala, bor-dando, e percebeu que ela, ao vê-lo che-gando, escondeu alguma coisa por baixo de uma almofada, no sofá. Ele entrou, cumpri-mentou-a, se sentou e começou a conversar, mas sempre intrigado com o quê ela teria escondido. Ele então pediu um copo d’água e ela se levantou e foi buscar. Aí ele foi lá e suspendeu a almofada e debaixo estava um pano, dos antigos panos que ela bor-dava cheios de coloridos. Quando ela vol-tou, ele perguntou: “por que a senhora es-condeu esse pano de mim?” Ela ficou muito desconcertada e respondeu: “Ah, o senhor me perdoe, eu sei que o senhor não gosta, não quer que eu borde assim, mas eu tenho muita saudade dos meus bordados. Então eu tava bordando um pano para mim”. Is-so fez surgir dentro dele uma tremenda cri-se, e ele me dizia: “não é isso que eu que-

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ro para ela, nem para mim”. É politicamen-te correto fazer com que essa mulher negue a estética dela, a cultura dela, os valores de-la, pra atender a um mercado que quer ou-tra coisa? Porque, para essa mulher, o bor-dar não é só atender um mercado. Quando essa mulher está bordando, ela está bordan-do algo que preenche também parte da vida dela, a bordadeira não executa mecanica-mente uma estética sobre um pano. Ela co-loca ali a percepção dela de cor, de sentido de estética, de harmonia de concepções que vão muito além do ato mecânico de enfiar uma linha numa agulha e com ela transpas-sar o tecido para cima e para baixo. Ela bor-da ali também sua visão de mundo. E isso tudo tem a ver com a vida dela, quer dizer, essa mulher também poderia estar morren-do, como Dona Nitinha, se não fizesse aqui-lo que, eu diria, o coração dela pedia. Não é só o que o mercado pede. São sobre coisas como essa que eu me bato, às vezes, nesse mundo do artesanato: que se percebam es-sas nuances da vida das camadas popula-res, porque há uma política no Brasil volta-da pro artesanato que prega que o artesão brasileiro não tem competência, que ele não domina o mercado e que temos que formar o artesão para o mercado. Eu contesto isto e proponho sempre que temos de formar o mercado para o objeto artesanal, o merca-do é que tem que perceber que esses obje-tos não são mera mercadoria, que há uma cultura embutida neles. Que existe uma do-na Nitinha. Que existe uma bordadeira no nordeste que é feliz quando executa os bor-dados que gosta. Então é esse o nosso papel como antropólogos voltados para o campo do artesanato. Eu me considero, como diria o Roberto Cardoso de Oliveira, “um antro-pólogo da ação”, que está voltado pra inter-vir na realidade e brigar pelos valores cultu-rais dos próprios artesãos e por uma estéti-

ca nativa e pelo respeito que se tem que ter com essas formas culturais que não podem estar sujeitas às regras do mercado somente.

Paulo - Tem outra questão, que eu acho que complementa o que você vem falando. Atualmente existem várias políticas públi-cas voltadas para o fomento do artesana-to, desde o Programa do Artesanato Bra-sileiro, o PAB do Ministério do Desenvol-vimento Indústria e Comércio, como tam-bém as políticas do SEBRAE, as políticas do Ministério do Desenvolvimento Agrá-rio como o Projeto Talentos do Brasil, po-deria enumerar aqui várias políticas e pro-jetos voltadas para o artesanato, o que eu queria ouvir de você é: quais seriam os li-mites e possibilidades dessas políticas pú-blicas, hoje?

Ricardo - Grosso modo, eu diria que os li-mites são aqueles que são dados pela pró-pria cultura e as possibilidades são também aquelas dadas pela cultura. Isto é, eu acho que existem muitas políticas públicas para o artesanato, assim como existem muitos ti-pos de artesanato. Eu defendo que artesa-nato é aquele modo de fazer objetos que se configura basicamente pelo uso das mãos. Nesse sentido, eu não defino que artesana-to se opõe à arte, coisa que muitos fazem. Para mim, artesanato se opõe ao que é fei-to pela máquina, à indústria. Tudo que é fei-to pela mão é artesanal, e quando eu estou falando de artesanato eu estou me referin-do a processos de feitura de objetos. Por is-so a oposição para mim é dada pelos obje-tos feitos à máquina, que são os objetos in-dustriais. Agora, falando do campo do arte-sanato, temos uma realidade infinita de coi-sas. Temos o artesanato de cunho tradicio-nal, feito em comunidades e que reflete a realidade daqueles locais, daquelas pesso-

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as, daquelas famílias, que respeita um fa-zer que vem passando de geração em gera-ção; geralmente é um artesanato transmiti-do de pai para filho, muito mais pelo ver fa-zer que pelo processo formal de ensino; é vendo a mãe fazer panelas e brincando com os restinhos de barro que a menina aprende o ofício. É brincando que ela faz sua primei-ra panela. E a segunda, a terceira, e quando se vê, brincando de fazer panelas, ela virou uma artesã. O olhar ensina muito, é o modo como se aprende a fazer, como na renda de bilro; os relatos são muitos, da mulher que diz: “Ah, eu aprendi vendo minha mãe fa-zer. Ela ficava lá, na almofada, eu olhando. Quando ela distraía, saia pra alguma coisa, eu sentava ali e fazia. Aí eu fazia errado, ela vinha e me batia, dizia que era para eu não mexer, mas eu era insistente e queria fazer e foi assim que eu fui aprendendo”. Deste tipo de relato eu tenho muitos, quer dizer, o ver fazer para aprender a fazer. Esse é um arte-sanato radicalmente diferente de outro tipo de artesanato, do que faz uma mulher que, premida pela necessidade de gerar renda para sua sobrevivência, numa zona urbana, por exemplo, com dificuldade de inserção no mercado de trabalho, procura uma revis-ta na banca de jornal ou um cursinho de ar-tesanato para aprender a fazer bonequinhos de porcelana fria para vender no shopping, que é também um tipo de artesanato; ou do jovem que, na década de 1960, aprendeu a cortar couro, fazer cinto, sandália, etc., que faz um artesanato classificado como hippie, e que hoje já velho, continua a fazer isto co-mo modo de vida. Enfim, todas as formas de trabalhar com a mão são formas artesanais. Sobre políticas públicas, então, eu acho que tem inúmeras políticas públicas que se vol-tam legitimamente a apoiar esses diferentes tipos de artesanato. Então quando você cita o MDIC, por exemplo, eu acho que o MDIC

tem um compromisso com o fazer artesa-nal globalizado no Brasil. Deve estar volta-do para pensar esse universo de maneira ge-ral, atendendo aos mais diferentes segmen-tos do fazer artesanal. Agora, quando penso este programa dentro do Ministério da Cul-tura, acho que é um problema, porque há todo um segmento com que o MDIC atua, que são os artesãos que não têm a tradição cultural do fazer, que fazem objetos orien-tados por um mercado urbano e de acordo com as tendências ditadas pela moda, que ficarão desguarnecidos dentro do MinC. Então, esse artesanato urbano que hoje o MDIC apóia - ou que teria o compromisso de apoiar por intermédio do PAB, o Progra-ma do Artesanato Brasileiro - seja porcela-na fria, sejam os bótons e imãs de geladeira feitos em resina, as caixinhas de MDF, se-ja o que for, esses produtos e seus produto-res não vão encontrar espaço no Ministério da Cultura porque o MinC está preocupado, ou deveria estar preocupado, com modos de fazer que tenham a ver com a questão da identidade de grupos e a tradição do fazer desses grupos. Então eu acho que o PAB es-tá bem onde está. Talvez o que lhe falte seja melhores condições de atuação. Agora, te-mos que definir competências; você cita o SEBRAE, essa para mim é uma das agên-cias mais problemáticas, embora séria tam-bém, no mexer com o artesanato. Eu pen-so que o SEBRAE andou investindo muito na transformação, a meu ver muito violenta e rápida, de comunidades tradicionais, que-rendo inseri-las no mercado. Janete Costa, uma arquiteta que usava muito o artesana-to brasileiro em projetos de decoração, fale-cida recentemente, usava uma frase que eu considero perfeita. Ela dizia que no artesa-nato brasileiro tradicional, você tem que in-terferir sem ferir, tomar o cuidado de nun-ca desrespeitar os valores, os princípios das

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comunidades produtoras. O que a gente ve-rifica pelo Brasil é, muitas vezes, muitas in-terferências que feriram radicalmente as co-munidades, que mutilaram mesmo, se é que não mataram muitas comunidades no seu fazer criativo, onde o designer chegava e apelando para o discurso da competência, a partir de um domínio de classe muito forte, implantava uma verdade que era dele: “eu sou aquele que sabe, eu sou o representan-te de uma camada social que tem o domínio do saber e o artesão é o representante da ca-mada social que tem a habilidade no fazer”. Quer dizer, aquela velha dicotomia entre o pensar e o fazer, pela qual cabe a mim pen-sar, criar, conceber a coleção, projetar a co-leção, porque eu domino o que o mercado quer, domino as novas tendências, fui pa-ra Milão, fui ver o desfile na Itália, então, esse saber é meu, e eu projeto e você vai fazer, você é artesão, você é extremamen-te habilidoso, você domina a técnica, você vai executar o que eu projetar. Então va-mos realizar um ótimo casamento, porque vou pensar super bem, vou definir as coisas, você vai executar e ninguém vai nos bar-rar. E, juntos, vamos conquistar o mundo. Este discurso, aqui inventado por mim, na verdade não é tão inventado assim. Eu ou-vi mais ou menos isto de um designer es-panhol, trazido por uma agência para ensi-nar design aqui no Brasil. E ele chegou aqui nesta instituição, nesta mesma sala em que a gente está, para me pedir justamente uma relação de endereços de artesãos, de comu-nidades pelo Brasil onde pudessem atuar. O discurso era este: que ele, europeu, domina-va a tendência que o mercado queria e que o brasileiro era muito destro. Então, que a parceria entre a Espanha e o Brasil poria o artesanato brasileiro no top do mundo, por-que ele sabia o que o brasileiro deveria exe-cutar para ganhar o mercado internacional;

o que é um discurso classista, elitista, co-lonialista, para não dizer coisa pior. Ago-ra, se a gente olhar em torno, veremos que esse discurso está presente não só no desig-ner espanhol que me procurou. Está presen-te aqui no Brasil, no discurso de muitos pro-fissionais formados no país e que acham ter a primazia do gosto, o domínio do merca-do e que o artesão brasileiro é mera mão de obra. Isto não passa daquela visão de que as classes subalternas só sabem fazer e só à eli-te pensante cabe programar as coisas a se-rem feitas.

Paulo - Aí já vem uma questão que é a continuação da sua fala também, quer di-zer, o artesanato ele é pensado nesse bi-nômio: tradição e mudança. No seu tra-balho você fala da questão da mudança no artesanato e eu coloco a questão: em que medida o artesão ou a artesã partici-pa do processo de mudança? Porque não é que a mudança seja negada e sim: co-mo se dá a mudança, quem são os agentes sociais neste processo, o artesão é atuante no processo de mudança?

Ricardo - Eu acho que sim. Primeiro, a questão da tradição e mudança. Muitas ve-zes se tem uma visão errada do que seja tra-dição, porque tradição pressupõe mudan-ça. A condição básica para algo ser tradicio-nal é que mude, porque se não muda, vai se cristalizar no tempo e vai morrer, vai virar um fato histórico e não tradicional. O que é o tradicional? É o que está vivo, presen-te hoje na sociedade. E para estar presente hoje, como arte do passado, se pressupõe a mudança, porque a sociedade muda perma-nentemente. Então, se você observar, todo elemento tradicional é uma expressão que vem mudando no tempo. Então, a mudan-ça é algo intrínseco à tradição que vai se re-

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criando o tempo todo. A mudança não se opõe absolutamente à tradição. A tradição pressupõe a mudança.

Paulo - O que você pensa da questão do de-sign no artesanato? uma questão: seria pos-sível uma intervenção consciente? A Profa. Raquel Noronha, que trabalha no Departa-mento de Design da uFMA, ela fala sempre daquele modelo que o Wright Mills critica muito, que é o design no centro e ela coloca outro paradigma que seria o design ao lado, ou de mãos dadas, parceiro.

Ricardo - Concordo plenamente com a pro-fessora. Acho que é isto. É possível mudar esse quadro se você tirar o modelo de de-sign no centro ou, eu diria, de design em ci-ma, que se julga a cabeça que vai pensar o processo de criação do objeto. Se o desig-ner se coloca ao lado do artesão, esse qua-dro muda totalmente. Eu lido o tempo to-do com um tipo de artesanato, que é o cha-mado artesanato tradicional, ou artesana-to de raiz, ou artesanato cultural, etc. Não com outros tipos de artesanato, que pa-ra mim são tão legítimos quanto, enquan-to expressão de mercado, para ganho, ge-ração de renda, ocupação de mão de obra, etc. Mas, o artesanato tradicional demanda do designer uma preocupação a mais: o de-signer que vai trabalhar com uma comuni-dade tradicional, que é portadora de um sa-ber cultural que vem de gerações passadas, há que ter muito respeito por essa popu-lação da qual se aproxima. Não pode che-gar intervindo de forma avassaladora na-quilo que o artesão faz, porque as popula-ções elaboram formas que foram consagra-das no tempo. O papel do designer nesse ca-so é dar suporte para a produção dos obje-tos. Tradicionalmente os objetos da tradição são feitos para atender o consumo local, do

próprio grupo familiar, ou de vizinhança, e neste circuito ele pode estar perfeito, nesse ambiente em que ele vive. Agora, a socieda-de de hoje cresceu, foi se globalizando, etc., então a gente quer que esse objeto também atenda a um público maior, que ele saia do circuito local, regional e atinja um merca-do nacional ou internacional mesmo. Para isso, podem faltar algumas condições a es-se objeto, como, por exemplo, a condição de transporte. É o caso das cerâmicas. No con-texto tradicional, o indivíduo faz a cerâmi-ca na casa dele e, quando chega a manhã de sábado, pega o burro, o jumento, põe sobre ele os caçoais em que vai acomodando as peças, protegendo-as com capim, com fo-lha de bananeira, de coqueiro e toca o bur-rinho até o mercado para vender sua lou-ça. Agora, quando essa louça tem que sair, pegar a estrada, de caminhão ou de avião, como é que se embalam as peças? Como é que se faz uma embalagem que permita es-sa louça não quebrar? Esse é um campo que o designer tem que trabalhar bem: a emba-lagem do produto. Na feira/exposição do Mercado Brasil de Artesanato Tradicional, uma quantidade enorme de peças que vie-ram de Tracunhaém- PE chegou quebrada. Mais de 60% de peças de Lagoa da Canoa--AL, também quebrou. Muitas peças de do-na Irinéia, de Muquém, também quebraram. Idem de Taubaté, SP. Então precisamos do designer de embalagens para ir a essas co-munidades e, a partir das condições locais, desenvolver projetos para que essas peças possam chegar ao destino bem. De preferên-cia, que ele desenvolva sua proposta com materiais que são dados na própria locali-dade. Eu tive uma vez a experiência de um projeto para cerâmica em que a pessoa con-tratada propunha, como forma de embala-gem, umas caixas de papelão reforçado, to-talmente inviável do ponto de vista finan-

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ceiro para a comunidade de baixa renda ad-quirir. A caixa sairia muito mais cara que o próprio objeto. E ainda mais: ele propunha usar como elemento de embalagem, no in-terior da caixa, pipoca. Sugeria que a co-munidade plantasse milho, pra colher o mi-lho, estourar a pipoca para com ela acon-dicionar as peças. Isto numa região do se-miárido, sequíssimo, onde seria muito difícil a população ter bom resultado no plantio. E se o conseguisse, as pessoas iriam comer a pipoca e não usá-la como isopor natural, como era proposto. Esse é um dos campos em que o designer podia se somar ao arte-são tradicional, desenvolvendo embalagens, tanto para transporte das peças quanto pa-ra apresentação delas. Desenvolver material de informação sobre o objeto. O artesão que sempre fez aquela peça para vender em seu próprio meio sociocultural, não tem preocu-pação com uma etiqueta que informe o que é aquele produto, sua procedência, quem o fez ou como foi feito. Então, cabe ao desig-ner desenvolver tags, folders que informem que aquele objeto foi feito por seu Fulano, em tal lugar, que ele vem de uma tradição X, Y ou Z. Enfim, agregar ali o tal do valor que essas informações são capazes de evi-denciar para que o consumidor tenha di-mensão de que esses objetos também parti-cipam do mundo da cultura. Outra questão que vejo como importante do designer tra-balhar é quando os objetos não funcionam bem. Há um texto meu que trata disto, onde falo das jarras pra água de Irará na Bahia, que para mim, têm uma forma perfeita, que já foi testada e consagrada gerações após gerações como uma forma boa para conter e servir água. Agora, o que vinha aconte-cendo? Você comprava a jarra, que chamam caboré, e punha água. Dali a pouco, a água vazava toda. Porque havia um problema ali que não estava na forma do objeto, mas tal-

vez no modo como tinha sido feito, ou no tipo de matéria prima usada. Aí se foi in-vestigar e se verificou que, como os arte-sãos falavam, “o barro estava fraco”. Na re-alidade, a reserva de barro estava acabando. Então, o barro que os artesãos estavam co-lhendo já não era um barro de boa qualida-de. É em casos como este que nos cabe in-tervir. Cabe-nos investigar qual é o proble-ma do barro, o que seria bom adicionar a ele para recuperar sua boa qualidade. E le-var ao artesão essa informação. Jamais vou querer mexer na forma dessa vasilha porque é uma vasilha cuja forma me basta, mas sua função não me satisfaz. É nesse campo que o designer pode ajudar a trabalhar e nunca mexer na asa do jarro, no biquinho do jarro, que é onde se comete muita violência, on-de se fere, na interferência. Agora, é possí-vel se fazer intervenções conscientes sim, se você chega a trabalhar com essas comuni-dades em pé de igualdade, lado a lado, não se achando superior a elas, mas respeitando todo o saber que está ali armazenado e ofe-recendo seu saber no que possa somar com o saber da comunidade. Quando uma comu-nidade produtora de artesanato tradicional tem problemas, estes são geralmente decor-rentes de mudanças, como estes que eu ci-tei. Quer dizer, a louça agora tem que ser deslocada para o mercado distante e a co-munidade não domina o conhecimento de embalagem de modo que chegue intacta a seu destino. Em sua tradição o artesão não tem resposta ao problema, pois sempre fez louça e vendeu na porta de casa e, de repen-te, tem que encaixotar a produção e mandar para longe.

Paulo - É outro mercado?

Ricardo - Exato. E aí, quando há essa mu-dança, verifico que o artesão nem sempre

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domina a novidade. É o mesmo com a ma-téria prima, a questão do esgotamento das fontes naturais. Aí depende de um conheci-mento outro, que muitas vezes ele não tem.

Paulo - Então aí você está falando des-sa relação com o mercado. O que tu achas que muda nessa transição do mercado lo-cal para o mercado nacional e mesmo in-ternacional? Em um texto você fala da possibilidade de haver produção artesanal com linhas de produtos diferentes, uma linha mais tradicional e uma linha mais inovadora.

Ricardo - Fizemos isso com as cuias de San-tarém, aquelas cuias tão comuns nos lares da Amazônia e que são muito usadas pa-ra se tomar tacacá. Em Santarém, elas são produzidas principalmente em comunida-des das áreas de várzea, no Aritapera, às margens do Amazonas. Percebemos que as cuias desenhadas, “rascunhadas” como di-zem na região, com incisões, estavam de-saparecendo. Aí fomos saber o que estava havendo e descobrimos que a dúzia da cuia vendida toda preta custava três reais. As artesãs, as chamadas “cuieiras”, faziam as cuias e as vendiam aos regatões, a três reais a dúzia para que as revendessem em merca-dos como Santarém e Belém. Ali, essas cuias eram então rascunhadas por outras pessoas ou vendidas ao consumidor final, sem de-coração. Se as cuieiras rascunhavam a cuia toda, o que demandava um tempo muito maior de trabalho, isto só acrescia R$0,50 ao preço da dúzia que passava a ser vendi-da a R$3,50. Ora, do ponto de vista do tra-balho, não tinha sentido estar rascunhando cuia. Daí só ter cuia preta. Nós, aqui no CN-FCP nos preocupamos com isso, porque es-sas cuias vêm de uma tradição enorme. Ale-xandre Rodrigues Ferreira, no século 18,

quando esteve na região, observou esse tra-balho que já era feito pelas índias de Mon-te Alegre. Em Portugal há uma coleção be-líssima das cuias coletadas por ele. Resol-vemos então, num projeto coordenado pela antropóloga Luciana Gonçalves, incentivar as mulheres a voltar a rascunhar as cuias e, para isso acontecer, era necessário que nós garantíssemos o mercado. Então passamos a promover exposições fora da região, de mo-do que elas tivessem um mercado mais van-tajoso do que aquele oferecido pelo regatão. Só que muitas delas já tinham perdido a re-ferência dos desenhos. Então, recuperamos junto aos museus de Folclore e Nacional, aqui no Rio, o MAE em São Paulo e o Goel-di em Belém, os padrões das cuias que esta-vam nos acervos destas instituições. Edita-mos uma cartilha e levamos para elas, para que tivessem inspiração nos desenhos an-tigos das cuias. Só que a tradição, como já falamos, é mudança também, e estava fa-zendo muito efeito um tipo de rascunho que é chamado de decoração “étnica”, que era transpor padrões geométricos de culturas indígenas para as cuias. Ao invés de terem figuras como flores e arabescos, padrões criados antigamente, eram encontradas no mercado cuias decoradas com grafismos in-dígenas. Em Belém, na Praça da República, onde tem uma feira de domingo que vende muita cuia, no ver-o-peso, em lojas de pro-dutos amazônicos, podiam ser encontradas cuias com padrões geométricos da cerâmica arqueológica marajoara e também de gru-pos indígenas, que nada tinham a ver com a realidade do Aritapera. Eram padrões dos Camaiurá do Xingu, dos Carajás do Ara-guaia, copiados para as cuias. E as artesãs queriam fazer também isto, pois o mercado estava valorizando muito esse tipo de cuia. Aí conversamos com elas e indagamos so-bre o que elas teriam de similar na realida-

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de mais próxima delas mesmas e chegamos à cerâmica arqueológica de Santarém. Fi-zemos então um levantamento dos padrões gráficos dessa cerâmica, também nos acer-vos dos museus e levamos para elas um re-pertório desses padrões que poderiam ser transpostos para as cuias. A coisa não pa-rou aí. Qual não foi nossa surpresa, ao rece-ber cuias aqui no Centro, enviadas por elas, para venda no espaço de comercialização da Sala do Artista Popular e verificar que, além dos motivos tradicionais e dos padrões geométricos, as cuieiras haviam rascunha-do cuias com figuras de peixe-boi, tamba-qui, piranha, jacaré. E quando fomos lá, elas nos falaram: - “Ah, resolvemos criar uma outra linha!” Uma linha naturalista com re-produções da fauna amazônica. E elas brin-cavam com a gente, dizendo que agora ti-nham três linhas de cuias: os desenhos tra-dicionais, os das flores tradicionais, os de-senhos étnicos e também os desenhos que eram os animais. Isto é a tradição das cuias, com total inovação. A partir de uma provo-cação nossa de não se perder o desenho tra-dicional, mas também de respeitar o anseio que elas viam no mercado atual, que que-ria coisa mais “étnica”, que eram os dese-nhos indígenas, o grafismo indígena, che-gamos a uma proposição delas de transfor-mar os rascunhos das cuias em um tercei-ro tipo, que eram os animais da Amazônia, pois elas perceberam claramente que havia aí também um grande mercado, por ser a Amazônia, e que muitos indivíduos se inte-ressariam em comprar exatamente por isto. Eu não acho que isto fere em nada a ques-tão da tradição e acho que é este o modo de se caminhar, com respeito aos produtores, no campo do artesanato.

Paulo - Essa concepção sua de que a tradi-ção seria recriada, reinventada, que não se

opõe ao processo de mudança, que é mui-to interessante na sua abordagem do arte-sanato tradicional e do cultural. Mas, exis-te outra realidade que me chama atenção que é a do artesanato do ambiente urbano. Eu fui, por exemplo, em uma feira de arte-sanato em São Luis do Maranhão onde me deparei com uma artesã que trabalha com material reciclado, que é diferente daque-la que usa uma matéria prima natural, ela usava plástico, papelão, enfim, um artesa-nato que tem seu valor também. Então: o que você pensa sobre esta realidade? Elas se envolvem também com a capacidade de criar utilizando esses materiais reciclados. Seria uma nova tradição sendo criada ou inventada? Como é que você pensa o arte-sanato no ambiente urbano?

Ricardo - É novo porque se trata do em-prego de uma matéria prima nova. É tam-bém aquele ponto do Hobsbawn: as tradi-ções são resultado de criações e reinvenções frequentes. Tudo que estamos falando so-bre artesanato tradicional, um dia esse ti-po de artesanato não era tradicional. Um dia ele foi criado, inventado. Por outro la-do, a própria reciclagem é um tema bastan-te tradicional na criação do objeto artesa-nal. Se olharmos para trás veremos as bru-xinhas de pano, feitas de aproveitamento de pano, os produtos feitos de pneu, de bor-racha. O Nordeste é riquíssimo nisto: lixei-ras, ancoretas, bacias feitas de pneu, as san-dálias feitas de solado de pneu, as lampari-nas, não sei no Maranhão como se chama, se candieiro, fifó, lamparina, feitas do apro-veitamento de lata. Aqui no Museu de Fol-clore temos uma peça que acho fantástica: é uma lamparina feita de uma lâmpada ve-lha queimada. O artesão pegou a lâmpada que tinha queimado, tirou o filamento in-terno, botou outro bocal e um pavio e essa

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lâmpada voltou a dar luz. A reciclagem não é uma invenção de agora. No Brasil existe uma tradição enorme de trabalhos de rea-proveitamento de lixo. Penso que ela cres-ceu nos últimos tempos, porque a gente está produzindo muito mais lixo e porque exis-te uma consciência, uma luta, uma preocu-pação com isto, o que fazer com tanta gar-rafa pet, com tanto plástico, com tanto pa-pel, etc., como reaproveitar estas coisas. En-tão há a recriação disto tudo aí que acom-panha uma tradição do produto artesanal. O homem, o artesão, sempre aproveitou o que o meio ambiente lhe deu para criar ob-jetos. Se estiver na zona rural, e tem madei-ra ou uma boa fonte de barro, ele vai fazer gamelas, pilões ou potes e panelas com bar-ro. Se estivermos no mundo urbano, onde a matéria prima abundante é o lixo, o pet, o papel, etc., com certeza estas matérias serão reaproveitadas para se criar com elas ou-tras coisas: os objetos da reciclagem. O que pode acontecer é algo totalmente novo co-mo o pet. De repente, você começa a encon-trar muita coisa feita de pet, que pode vir a se transformar numa tradição efetivamente, igual aos objetos feitos de borracha e lam-parinas feitas de lata, ou a bruxinha de pa-no feita de restos de tecido.

Paulo - Repensar até a própria idéia do li-xo, não como a coisa que tem que se jogar fora, mas como uma matéria que pode ser reaproveitada?

Ricardo - Exatamente. É interessante que a questão do lixo, da sucata, da reciclagem é sempre pensada a partir de dois vieses: por um lado é associada a uma economia da po-breza, quer dizer, a ausência de recursos faz o indivíduo lançar mão do lixo para criar seus objetos porque ele não tem dinhei-ro pra comprar materiais nobres. Então ele

se apropria do lixo e cria os objetos porque não teria opção de trabalho com outro ma-terial. Outra maneira de se ver a reciclagem é pelo viés político: o indivíduo se apropria do lixo, do que foi descartado, como protes-to contra a sociedade de consumo, contra o desperdício, como preocupação ecológica. Trata-se de uma ação política, um ato polí-tico. Ou é a total falta de recurso ou é uma ação política que está presente na ação de reaproveitamento.

Paulo - Pode até ter as duas dimensões?

Ricardo - O processo criativo pode ter as duas dimensões. Eu não sei se você conhe-ce, no Paraná, uma mulher chamada Efigê-nia Rolim. É uma grande artista do lixo e a história dela é muito interessante. Ela é uma mineira que migrou para o Paraná, com o marido e uma penca de filhos. Uma famí-lia de origem rural, portanto. Ela saiu do in-terior de Minas para o interior do Paraná e, por falta de mercado de trabalho, acabou parando na periferia de Curitiba. E ela vi-veu o azar de o marido ficar doente, total-mente impossibilitado em cima de uma ca-ma, cabendo a ela ter que prover a família. Ela passou então a sair pelas ruas de Curi-tiba pedindo, catando coisas para poder ali-mentar o marido, os filhos, aquele sofri-mento todo. Ela narra que um dia ia pela rua, já morta de fome, sem saber o que fa-zer, sabendo que em casa não tinha nada de comida para os filhos, que estavam to-dos com fome e o marido em cima da ca-ma e ela desesperada. Ela diz que chegou um momento, já de tamanho sofrimento e fome, que passou a ter visões e ela olhou uma coisa que brilhava no chão. Ela achou que fosse uma jóia e saiu correndo para pe-gar. Quando viu, era apenas um pedaço de papel, um papel de bala. Ela conta que deu

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um desespero muito grande, que se sentou no meio fio e começou a chorar, de fome, de desespero, pensando no que poderia fa-zer, chorando, chorando e mexendo naque-le papel na mão. Quando ela olhou, ela ha-via feito um aro, um anel com o papel. E aí ela teve o grande insight: que era catar pa-péis pelo chão e criar coisas. Ela viu que ti-nha feito uma forma e poderia fazer outras, como bichinhos e tentar vender esses bichi-nhos que alguém compraria. E assim ela fez e hoje é considerada uma artista fantástica, que vive de reciclagem. Tem casa própria, tem, como se diz, “condição financeira”, não é uma pessoa rica, mas conseguiu criar a família dela e ter uma situação estabiliza-da. Para cada coisa que cria com os papéis, ela conta uma história, tudo tem uma his-tória, tem um sentido. E ela vive disto, dos objetos que cata no lixo: papel de bala, pa-pel de bombom, sapato velho, aos quais dá forma e acrescenta uma história, uma esté-tica. Seus objetos passaram a ser disputados num certo mercado. Ela cria do lixo coisas que partiram da pobreza, do desespero, mas, tenho certeza, seu processo criativo não fi-cou preso à carência de meios. Hoje, Efigê-nia teria total condição de construir uma obra plástica que não precisasse mais de li-xo, mas, no entanto ela tem a opção de tra-balhar com essa matéria prima, como ex-pressão de arte, o que é uma coisa fantás-tica. Aqui no Rio, em Santa Tereza, temos o Getúlio Damada, que os irmãos Campana definem como o grande artista contempo-râneo brasileiro. Getúlio realiza uma obra fantástica, toda na base da sucata, do lixo, do pet, do plástico, do resto de madeira, pe-ças de computador, etc. Fez uma exposição no ano passado na Alemanha, maravilho-sa, onde as pessoas reverenciaram sua obra. Ele tem um trabalho enorme, fantástico, to-talmente descensurado. Ele não se preocu-

pa em esconder nada do que faz, o material de sucata que utiliza está ali, presente na peça que cria por vezes o frasco de sham-poo traz ainda a etiqueta de preço com que foi adquirido no supermercado.

Paulo - É possível você ter um artesanato criativo, que cria outra cultura, uma cul-tura nova, que tem um valor cultural, as-sim como o tradicional?

Ricardo - Certamente. E isso acontece a to-do o momento. As obras de Efigênia Rolim, de Getúlio Damada e de tantos outros são exemplos disto.

Paulo - Agora falando novamente do ob-jeto tradicional e cultural e dos artesãos e artesãs que trabalham com a fibra do bu-riti, que é o tema da minha pesquisa. Este artesanato esta presente, não só no Mara-nhão, mas em outras regiões do Brasil: Mi-nas, Goiás, Bahia, etc. Você mesmo já pes-quisou, já trabalhou com regiões que utili-zam o buriti. Gostaria que você falasse da importância da fibra vegetal e da fibra do buriti. Qual a importância do artesanato a base da fibra de buriti no Brasil?

Ricardo - Eu posso até falar um pouco, mas o tema é seu, você que é o pesquisador do buriti. O buriti é uma palmeira muito im-pressionante, porque dela se aproveita tu-do, do caule à folha, do fruto à flor. Outro dia eu tomei um licor feito da flor do buri-ti. E há o doce do fruto, a palha que cobre a casa, faz também a parede, a bolsa e a es-teira. O talo da folha faz o brinquedo, a cai-xa e faz a cadeira, a mesa, a cama e toda a mobília de uma casa. Seu tronco ergue a ca-sa e por aí vai. Isso numa extensão grande pelo país. Por onde se passa, e que se vê bu-riti, você encontra um artesanato ligado a

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essa palmeira. Em Barreirinhas, por exem-plo, há uma produção de objetos que é úni-ca. São bolsas, chapéus e muitas outras pe-ças de excelente feitura e de um estilo pró-prio, todo especial. É um tipo de artesana-to de buriti que, onde você o encontra, lo-go identifica como sendo de Barreirinhas, do Maranhão. Por causa do tratamento da-do à seda, que lá é chamada de linho. Linho de buriti. Em outros lugares é chamado se-da. O que acho muito interessante também é que grande parte das comunidades que co-nheço, quase que a totalidade, que traba-lha com buriti, tem um conhecimento muito grande sobre o manejo da espécie. A histó-ria do olho do buriti, de onde sai o linho ou a seda, que só pode tirar um, depois tem que deixar nascer e crescer outro, senão mor-re a palmeira. Há pessoas que ficam muito preocupadas que a extração contínua aca-be com as espécies vegetais. Eu nunca con-duzi um projeto que fosse a longo prazo nu-ma localidade, que me permitisse acompa-nhar as espécies locais e saber se, realmen-te, a população tem esse cuidado com o ma-nejo. Sei, no entanto, que o conhecimento existe e se revela no discurso dos artesãos: a necessidade de se cuidar da espécie an-tes que ela desapareça, que se você extrair muito daquele pé você vai matar o pé, então você tem que estar tirando o olho do buriti com bastante cuidado e atenção. Mas este é um tema muito mais seu do que meu.

Paulo - É uma consciência ambiental?

Ricardo - É sim. Só que, às vezes, pode não haver consciência em outras espécies de ar-tesanato. Por exemplo, uma coisa que é mui-to difícil no Brasil é a consciência dos arte-sãos de barro. Há uma concepção de que o barro não acaba nunca, suas reservas seriam inesgotáveis. Eu converso com muitos arte-

sãos que falam: ”Não, o senhor está enga-nado, isso aqui já tinha no meu tempo, vai ter no meu filho, no meu neto, como tinha no tempo do meu pai, no meu avô, meu bi-savô. Barro sempre existiu e sempre vai ter, porque ele brota debaixo da terra, ele brota com a lua e ele vai sempre nascendo mais.” As comunidades, por exemplo, de Apiaí, no sul de São Paulo, divisa com o Paraná, di-zem que “barro é encante”, que ele brota do solo durante a noite. Ele cresce e fica ali es-condido debaixo da terra. Basta você desco-bri-lo. Se você souber olhar a natureza di-reito, você vai ao lugar certo, cava e vai en-contrar o barro. Que não vai acabar nunca. As paneleiras de Goiabeiras, em Vitória, no Espírito Santo, cujo ofício foi declarado pa-trimônio imaterial do país, primeiro bem de-clarado patrimônio imaterial brasileiro, por exemplo, tem essa concepção: de que a re-serva, o barreiro, ali não acaba nunca, en-quanto o trabalho científico está mostrando que o barreiro está se esgotando. Vai che-gar uma hora em que a reserva do Vale do Mulembá, onde extraem a argila, vai acabar. Para as “paneleiras”, não, aquilo não acaba nunca, há sempre barro mais embaixo, que vai brotando, vai aflorando na superfície. Vai chegar o dia em que vai acabar sim. Isto já acontece em algumas comunidades onde dizem que o barro já não é o mesmo, que “o barro está fraco”.

Paulo - E depende da produção. Se for uma produção mais intensa o barro pode acabar?

Ricardo - Pois é, corre-se esse risco quan-do se intensifica o ritmo de produção. Te-mos que reconhecer que, em algumas loca-lidades há muito desperdício. Às vezes, se retira o barro de qualquer jeito, se joga fo-ra muito barro e não há preocupação com

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a conservação já que se acredita ser um re-curso inesgotável. Então isso me preocupa junto às comunidades brasileiras que lidam com barro, embora seja muito difícil mudar a concepção, porque muitos me dizem: “- Não, no caso, o senhor está enganado, isso não vai acabar nunca, porque barro nasce aí debaixo, a gente tira e nasce mais”. Co-mo dizem em Apiaí: “barro é encante”.

Paulo - Essa consciência ambiental ela é importante não só na fibra vegetal como também no barro?

Ricardo - Ah, sim, em todos os recursos na-turais. Agora em alguns casos, vejo que os artesãos estão mais conscientes, outros me-nos. Eu passei este ano por Aracati, no Ce-ará, onde fazem aqueles trabalhos com gar-rafas de areia. Os artesãos estão bastante preocupados, porque eles vêem limites no que fazem, que uma hora vão-se acabar as minas de areia colorida. É tudo muito difí-cil. Por um lado há os organismos estatais que estão fiscalizando, e que podem impedir que o artesão retire areia por se tratar de um manancial natural que precisa ser preserva-do. Por outro lado, há a especulação imobi-liária ocupando as falésias, áreas que estão sendo loteadas, mansões sendo construídas em cima das falésias onde está a areia co-lorida. Hoje, há apenas uma área em Ara-cati onde eles ainda têm acesso para retirar areia, mas retiram com muito cuidado, com medo, porque se o órgão governamental de uma hora para outra proíbe a retirada de areia ali, eles ficam sem a principal maté-ria prima com que lidam. E os artesãos estão sendo espremidos ali enquanto vêem aque-las grandes mansões sendo erguidas nas fa-lésias, murando tudo, impedindo o acesso e ninguém se impondo contra a especulação imobiliária. E a matéria prima vai ali desa-

parecendo, como aconteceu em Tibau, no Rio Grande do Norte. Daí os artesãos come-çam a por anilina e pigmento da marca xa-drez na areia, para poder pintar a areia com que vão trabalhar, porque os tons naturais estão desaparecendo. Então a consciência e as dificuldades variam de acordo com a ma-téria prima. O caso da madeira, por exem-plo, é dificílima em muitas regiões, já que não há o hábito do plantio, do manejo das espécies. Essa questão não diz respeito ape-nas aos artesãos, como sabemos. É um caso de política, e de polícia, nacional. O desma-tamento no país fala por si mesmo.

Paulo - Fale sobre o programa que você coordena hoje: o PROMOART.

Ricardo - O Promoart – Programa de Pro-moção do Artesanato Tradicional – atua di-retamente em 65 polos espalhados pelo pa-ís. É o resultado e a continuidade de experi-ências na área, levadas a efeito pelo Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular, que tiveram início há alguns anos. Contando a história toda: em 1983, o CNFCP abriu um espaço chamado Sala do Artista Popular, que se pretendia um espaço de exposição e venda de artesanato qualificado, porque vi-nha acompanhado de uma pesquisa que si-tuava quem eram aqueles indivíduos que faziam aqueles objetos, como é que esses objetos eram feitos, em que locais, em que situações ou contextos, a importância deles pra aquelas comunidades produtoras enfim, era todo um tratamento novo dado ao obje-to artesanal no Brasil. O campo do artesa-nato que ainda vigorava no país, numa cer-ta concepção de folclore, era visto como composto de objetos que refletiam “a alma do povo brasileiro” e, portanto, como obje-tos coletivos eram também anônimos. Fei-tos pelo povo, pelas comunidades, a partir

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de saberes coletivos em que a autoria não era importante. O importante é que eles ex-pressassem a realidade de uma “alma nacio-nal”. Em 1983, pretendemos mudar essa vi-são, mostrando que o artesanato brasileiro era resultado de formas bem concretas de produção, em que havia comunidades pro-dutoras, indivíduos produtores desses obje-tos e que viviam em situações concretas, produziam em situações concretas. Tudo is-so implicou em a gente abrir a Sala do Ar-tista Popular, a SAP, como é mais conheci-da, onde passamos a fazer exposições dos trabalhos de indivíduos e comunidades que convidávamos a expor. Para isso realizáva-mos pesquisa e documentação fotográfica em campo e editávamos catálogos como re-gistro da realidade desses agentes. Falo no passado, mas o projeto SAP está em pleno funcionamento e hoje é subvencionado pela Caixa Econômica Federal. Acredito que seja um dos espaços desta natureza mais antigos do país. É um projeto que vem resultando em grande sucesso. Não conheço muitos es-paços como este, que tenham durado tanto ao longo do tempo. Enfim, se convida uma comunidade, faz-se o trabalho de campo, edita-se o catálogo e o expositor exibe e vende sua produção por um período de 30 a 40 dias, definindo livremente o preço das peças sobre o qual se acrescenta uma taxa de 20%, dizendo que essa taxa contribui, por exemplo, para a contratação da pessoa que faz as vendas, inclusive aos sábados, domingos e feriados, já que o espaço abre também nesses dias. Na verdade, os 20% es-tão longe de cobrir as despesas do espaço, mas é uma forma de não botar o artesão nu-ma situação passiva diante do que poderia ser “assistencialismo” do Estado. Quer dizer, bancar parte da exposição, mesmo que de forma quase simbólica, dá ao artesão outro estatuto na relação com o Estado: ele não é

o indivíduo que vai receber as benesses do Estado assistencialista. Enfim, a gente pas-sou a fazer essas exposições e praticamente, toda a produção que chega, é vendida du-rante o período de permanência da mostra. Então, expor na SAP representava uma óti-ma oportunidade para a comunidade que depois ficava querendo voltar. Só que temos por norma que o grupo expositor não volta porque há muitas comunidades pelo país esperando a oportunidade de expor. Mas a insistência era grande demais. Daí, volta e meia, criávamos um artifício como uma co-letiva de presépios, ou uma mostra de ima-ginária sacra, ou de brinquedos, convidan-do a todos que trabalhavam com o tema. Mas isso não resolvia o problema porque eram chances eventuais. Resolvemos então criar um espaço que chamávamos “lojinha” para que as comunidades que haviam pas-sado pela SAP e que, portanto, estavam do-cumentadas com catálogo, fotografias, etc., pudessem comercializar sua produção de forma mais permanente, e com informações para que pudéssemos atender ao público com dados mais qualitativos sobre os obje-tos e seus autores. Começamos a comercia-lizar então os produtos em forma de consig-nação. Todos que passaram pela Sala po-diam expor e vender permanentemente seus produtos aqui. Só que observamos que as exposições eram inauguradas, as comuni-dades vendiam, mas, que apesar do sucesso, algumas delas não mais encaminhavam seus produtos. Aí vinha o público e falava: “Olha, vocês fizeram uma exposição da te-celagem de Berilo, lá do Vale do Jequitinho-nha. Eu comprei uma colcha e queria com-prar outra porque gostei muito ou queria dar de presente, mas nunca mais vocês ven-deram”. Aí entrávamos em contato com a comunidade para saber por que não manda-vam novas peças e ouvíamos que estavam

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com problemas para isso. Se era uma comu-nidade de cerâmica, por exemplo, eu ouvia: “Ah, o barro ficou muito difícil de a gente conseguir, porque era tirado na terra de uma fazenda que foi vendida e o novo pro-prietário não deixa tirar mais.” Enfim, co-meçamos a ver que havia problemas que não estavam no nível da comercialização, mas da produção. Problemas que impediam os produtores de prosseguir fazendo seus objetos. Aí montamos um projeto chamado PACA (Programa de Apoio a Comunidades Artesanais) de modo a poder ir a campo, diagnosticar o que estava acontecendo e a partir daí, com os artesãos, desenvolver ações que ajudassem a viabilizar o fluxo da produção. Esse projeto foi feito na década de 1990 e como não tínhamos recurso, ficou uns dois anos engavetado, até que fomos procurados, no governo Fernando Henri-que, pela equipe da primeira dama, a antro-póloga Ruth Cardoso, que queria investir no campo do artesanato. Havia no Brasil uma tradição de as primeiras damas trabalharem com artesanato. Existiu a LBA que sempre era presidida por primeiras damas, onde o artesanato ocupava um papel muito espe-cial. Ruth Cardoso vinha organizando a Co-munidade Solidária. Havia a Alfabetização Solidária, a Universidade Solidária, a Capa-citação Solidária e ela queria também intro-duzir o ramo do Artesanato Solidário, mas não queria trabalhar na forma que tradicio-nalmente se trabalhava do assistencialismo, do clientelismo, da troca do apoio pelo vo-to. Queria uma forma mais respeitosa de se lidar com as comunidades tradicionais pro-dutoras de artesanato e nos buscou naquela época, justamente, pela experiência que a instituição tinha acumulado ao longo dos tempos no trato com o artesanato. O casa-mento foi perfeito, porque tínhamos o PA-CA, uma metodologia na gaveta, esperando

oportunidade. Acabamos abrindo mão do nome PACA e foi criado o Artesanato Soli-dário, que foi testado no pólo do Candeal, no município mineiro de Cônego Marinho, que acabou se transformando em minha te-se de doutorado. A metodologia foi adapta-da, funcionou, e chegamos ao modelo que se implantou como Artesanato Solidário. Trabalhamos com 26 comunidades naquela época. O Artesanato Solidário vigorou, co-mo uma ação do governo até o final do go-verno Fernando Henrique, quando foi trans-formado numa OSCIP (Organização da So-ciedade Civil de Interesse Público), porque dona Ruth temia que, com a mudança de governo, o programa desaparecesse. O Arte-Sol existe ainda hoje, com sede em São Pau-lo, e atua em vários pólos artesanais pelo país. Nós permanecemos aqui, no CNFCP, órgão do IPHAN/MinC e criamos então, esse novo programa chamado PROMOART, que é um programa de apoio a comunidades tra-dicionais, de produção de artesanato tradi-cional, com recursos do Mais Cultura e aporte do BNDES. Estamos atuando, nesta primeira fase, em 65 comunidades de 22 Es-tados do país. É através do Promoart que es-tamos no Maranhão, nos municípios de Barreirinhas, apoiando as artesãs do buriti, em Raposa, apoiando as rendeiras do bilro e em São Luis, com os bordados criados a partir do bumba meu boi. É um programa que tem como princípio o não direcionismo em termos de ações. Atuamos orientados por um rol de possibilidades que é discutido com cada comunidade, a partir de um diag-nóstico inicial e de reuniões com os arte-sãos. Através desses mecanismos se definem quais os problemas daquela comunidade, em que linha se vai atuar, como atuar, etc. É um programa muito aberto, que pode atuar tanto no apoio à produção como na comer-cialização ou na divulgação. Podemos de-

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senvolver ações como compra de equipa-mentos, facilidades de acesso a matéria pri-ma, compra de matéria prima, promover oficinas de gestão, organização de grupo, associativismo, repasse de saber, em que os mais velhos, os mestres, transmitem seu co-nhecimento para os mais novos, oficinas do que chamamos identidade cultural, em que se discute o valor dos ofícios artesanais. Muitas vezes, as comunidades não têm consciência da importância daqueles obje-tos que produzem e elas mesmas se admi-ram: – “Mas seu Ricardo, o senhor saiu do Rio pra vir aqui ver essas coisas! O quê o se-nhor vê de bonito nisso? Isso não vale na-da.” Então você discute com eles toda a im-portância do seu fazer, do conhecimento que está contido ali. Realizamos ações como doação de computador, para aquelas comu-nidades que já estão mais estruturadas e querem realizar, por exemplo, venda pela internet, elaboração de catálogos de produ-tos, exposições, documentários etnográficos para divulgação dos pólos, elaboração de si-te, embalagens, enfim, as linhas de ação são muitas e o programa atua dependendo da comunidade, a partir do que se planeja de comum acordo com os artesãos.

Paulo - O PROMOART é um programa per-manente?

Ricardo - Esta primeira fase que começou no ano passado, 2009, vai até o ano que vem. Estamos numa fase inicial, portanto, vendo como a coisa vai prosseguir. É uma fase que está em teste, na verdade. Tudo foi muito difícil no início, porque estamos su-jeitos a uma legislação pública muito árdua e difícil de lidar, em especial para você me-xer com artesanato no país, pois a legisla-ção pública tem pressupostos que exigem uma sociedade organizada. E o setor artesa-

nal geralmente não está organizado nas ba-ses que a legislação entende por organiza-ção. E nem sei se deveria estar. A legislação pressupõe, por exemplo, que você só pode aplicar recursos em obras, como construir ou reformar uma oficina, se ela não for uma propriedade privada. Ora, na grande maio-ria, as oficinas artesanais acontecem em ca-sa dos mestres. É ali que se dá todo o pro-cesso de transmissão de saber, todo apren-dizado e toda a produção. A legislação, no entanto, cria obstáculos a que eu possa re-formar essa oficina para que o grupo tenha melhores condições de produção. Então fi-camos amarrados em estruturas como asso-ciações e cooperativas que, por vezes, ine-xistem junto aos grupos com os quais atu-amos. É preciso que se reconheça que a for-ma de organização familiar, por exemplo, é uma forma tão legítima como a associação. É o que venho defendendo: obrigar uma co-munidade que está estruturada em núcle-os familiares de produção de artesanato a se transformar numa associação com CNPJ, pra eu poder apoiá-la, é um contrassenso. É negar os princípios culturais da organiza-ção artesanal. Se eu reconheço que o valor da produção artesanal está no modo como seus produtores fazem as coisas, em sua vi-são de mundo, seus valores, sua cultura en-fim; por que eu tenho que transformá-los numa associação com CNPJ? Mas, infeliz-mente, é isso que a lei exige.

Paulo - Famílias e grupos também, grupos de vizinhança?

Ricardo - Grupos de vizinhança, exato. Por que eu não posso reconhecer esses grupos como legítimos? Eu não posso, por exem-plo, investir recursos do programa pa-ra consertar um forno de queima de louça, de cerâmica, em determinada comunidade,

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porque o forno, embora atenda a um núme-ro grande de artesãos, está construído no terreno de Dona Fulana. Pela legislação, pa-ra eu arrumar esse forno, que está deterio-rado, por mais simples que seja a ação co-mo, por exemplo, cobri-lo, fazendo uma co-bertura de modo que o grupo possa fazer a queima da louça sem o risco de perder to-da a produção com a chegada repentina de chuva, durante uma sessão de queima, eu tenho que transformar esse grupo numa as-sociação. Paralelamente, a dona do quintal onde o forno comunitário foi erguido tem que dimensionar aquele terreno, ir ao cartó-rio, doar esse terreno para a associação. Só então eu poderei investir dinheiro público e consertar esse bem, que é um bem de um grupo constituído, mas não reconhecido pe-la legislação pública. É uma situação ridícu-la, pois, muitas vezes, a solução do proble-ma do grupo não chega a 200 reais e eu não posso aplicar um real sequer na ação de sal-vaguarda desse bem.

Paulo - Acaba tendo que fazer uma inter-venção?

Ricardo - O tempo todo é assim. Então aca-ba sendo muito árduo. Estamos perdendo muito tempo numa burocracia de meio pa-ra poder realizar uma ação lá no fim. Sin-to-me como se negasse o valor que aquela forma de cultura tem, e que no discurso eu valorizo. Eu digo que o grande valor cultu-ral do artesanato de cunho tradicional está no modo como os indivíduos, seus produto-res, se organizam para produzi-lo. São gru-pos familiares ou de vizinhança, de compa-drio, etc. Agora, na hora de eu apoiar esses grupos isso tudo não vale nada, eu tenho que transformá-los, e eles têm que ser uma associação ou uma cooperativa com CNPJ, porque eu não posso aplicar dinheiro públi-

co em formas organizacionais senão aquelas que a administração pública tacanha define como legítimas. Cansa ter que vencer difi-culdades como a que enfrentamos numa de-terminada comunidade na Bahia onde, pa-ra retirar o barro, lá nas gripas de um mor-ro, as mulheres passavam por grande sacri-fício. São pessoas idosas que dependem de alguém que extraia o barro e o transporte lá de cima para baixo. A solução apontada pe-la própria comunidade, que facilitaria mui-to a vida das artesãs, seria comprar um ju-mento. Isto evitaria que as pessoas tivessem que descer a serra com o barro pesado nas costas. E como você compra um jumento, a partir de princípios que vêem o uso de um jumento como índice de atraso, de não de-senvolvimento? Aí, as “instituições” falam: “Ah, não seria mais aconselhável doar um helicóptero? Será que elas não gostariam de um helicóptero? Ou seria mais producente construir um teleférico? Será que um tele-férico não resolve o problema?” É claro que estou exagerando, mas a situação vivida foi quase esta. Quero dizer que o grau de dife-rença de lógica, as escalas de valor são mui-to distintas. E nós, gestores públicos ou “an-tropólogos da ação” temos que descobrir caminhos para lidar com a legislação. Te-mos que encontrar mecanismos, formas de driblar essas dificuldades sem cair na ilega-lidade, para poder executar projetos. Com isto você perde um tempo enorme e o tesão pelo que faz. Há um desgaste enorme e, o que é pior para mim, você desmerece exata-mente aquela cultura que quer valorizar. É a forma de organização familiar que permi-te fazer aquela louça. Para apoiar os produ-tores tenho que transformá-los numa asso-ciação, negando aquela forma de organiza-ção, de vida, que entendo como a riqueza a ser preservada.

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Paulo - É uma dificuldade do programa?

Ricardo - Do programa em relação à legis-lação que vigora no Brasil hoje, que pare-ce que é feita a partir do pressuposto de que você quer burlá-la a todo tempo, de que vo-cê é sempre um desonesto, que quer lidar com as coisas de modo escuso. Então, so-mos subordinados a uma legislação res-tritiva, porque em princípio somos deso-nestos. Então nada é possível fazer. Esse é um problema seriíssimo que dificulta mui-to na condução de políticas públicas que li-dam com comunidades tradicionais de bai-xa renda, que seguem princípios organiza-tórios outros que não aqueles defendidos pelo Estado “racional” moderno. Fazer ar-tesanato não é uma ação isolada. É aqui-lo que falávamos no início: o objeto artesa-nal tradicional não é mera mercadoria, tem a ver com a cultura, tem a ver com o modo como as pessoas são. O indivíduo não faz o objeto só porque precisa ganhar dinhei-ro. E isto não pode ser ignorado e, portanto, nas ações voltadas para o setor, não dá pa-ra pensar isoladamente nisto, porque muitas coisas dependem de outros fatores. O ide-al seria a reunião de várias instâncias pú-blicas para se trabalhar. Eu conheço comu-nidades que produzem artesanato excelen-te, mas que para lidar com elas, tenho que atuar também na questão da cidadania, por-que as pessoas não têm um documento, são analfabetas, têm problemas de saúde, mo-ram em terras sobre as quais não têm qual-quer título de propriedade ou posse. Então, se eu quero apoiar o modo como produzem, tenho que atacar esses males. Não adianta eu querer a produção de uma comunidade onde as mulheres estão doentes. Eu preci-so do Ministério da Saúde junto, para trans-formar essas pessoas em pessoas saudáveis para poder produzir o artesanato. Eu quero

levar essas pessoas para expor o que fazem, em Brasília, em São Paulo, aqui no Rio, pe-lo Brasil, mas as pessoas não têm documen-tação para viajar, não posso trazê-las aqui porque não têm identidade, não têm CPF, eu não consigo comprar uma passagem de avião e embarcá-las. Então é preciso resol-ver a questão da cidadania, é preciso docu-mentar essas pessoas. Se são analfabetas, como é que vão tomar conta do processo de suas vidas como artesãs? É o que eu gosta-ria que acontecesse, que elas se estruturas-sem e vivessem do que sabem fazer. Mas aí eu esbarro no analfabetismo, esbarro muito na questão do alcoolismo junto a camadas de baixa renda e isto é um problema sério. Esbarro no problema da ausência de títulos de propriedade em comunidades que ocu-pam áreas há centenas de anos. E com elas eu não posso aplicar um tostão do dinheiro público. É como se, para o Estado brasilei-ro, elas não fossem cidadãs, não existissem.

Paulo - A questão é que tem vários pro-blemas na realidade social dos artesãos.

Ricardo - Há situações dramáticas. Há co-munidades de baixa renda, com necessi-dades grandes, um nível de fome extrema, de carência absoluta. Aí você implemen-ta a questão do artesanato e eles produzem, aí você faz uma exposição e gera um mon-tante de recursos. E você fala: “-Que ma-ravilha! Venderam tudo, agora vai entrar um dinheiro grande lá.” Num caso verídi-co, quando o dinheiro chegou à comunida-de, qual foi a primeira coisa que os artesãos fizeram? Saíram e foram comprar comida para casa. Só que antes da comida, compra-ram a bebida, a cachaça. E aí voltaram pa-ra casa, aonde não chegaram. Isso eu pre-senciei, pessoas caídas à beira da estrada, com as compras ao lado, abraçadas à garra-

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fa de cachaça. Totalmente alcoolizadas não conseguiam chegar a casa. Em determina-das comunidades, em conseqüência do ál-cool, há muita violência. Quanto mais di-nheiro entra, mais se bebe, por uma ques-tão social e cultural que é muita séria, que não dá para um antropólogo sozinho resol-ver. Porque essa comunidade da qual estou falando tem o hábito da bebida muito arrai-gado em sua maneira de viver. As crianças começam a beber muito cedo. Os pais têm o hábito de, a partir de dois meses de idade do bebê, pegar meio copo d’água, misturar uma colherinha de cachaça, umedecer um paninho e dar ao bebê para chupar. “- Não tem problema não, ele fica calminho, dorme a noite toda, é só uma coisinha pra criança acalmar e dormir bem à noite”. A partir de dois meses eles chupam cachaça com água, então o grau de alcoolismo na comunidade é enorme, acredito que 98% da comunidade é alcoólatra. Eu não sei como lidar com is-so. É preciso o pessoal da saúde junto. En-tão as políticas públicas para o artesanato, a meu ver, carecem disto: precisam do entro-samento de diferentes setores, de diferentes ministérios, para atuar em todos os planos, da cidadania, à saúde, educação e cultura.

Paulo - Precisa de um esforço conjunto?

Ricardo - Enquanto política pública isto se pressupõe.

Paulo - A última questão Ricardo é a ques-tão dos trabalhadores do artesanato.

Ricardo - É uma questão séria, a da pro-fissão. Já há um tempo que se discute isso. Lembro-me, há uns vinte anos atrás, eu in-do a Brasília para reuniões de discussão so-bre a matéria. A questão da profissionali-zação, da carteira de artesão, a questão da

contribuição, da aposentadoria. É um pon-to complexo porque é uma categoria muito ampla, você tem hoje desde esse artesão ur-bano formado em cursos do SENAC, SENAI ou ligados ao SEBRAE, que é uma gama de pessoas que vêm pensando o artesanato co-mo mercado, artesãos discutindo questões de incubadoras, de estratégias de inserção no mercado, até o trabalhador rural que faz o artesanato na hora vaga, na entressafra. Então é uma categoria de produção muito complexa. Pensar o artesanato como profis-são e com contribuição... Vou te dizer, al-guns quererão fazer isto, se tornar profissio-nais, outros recusarão, não quererão contri-buir. Até mesmo porque vivem num limiar, porque há muito artesão cuja renda é muito pequena realmente. Menos que um salário mínimo mensal. Esse não tem condições pa-ra contribuir. Eu conheço artesãos aqui no Rio, o artesão urbano, que vive de fazer bi-juterias e bolsas, que tem interesse em ter o artesanato como profissão, de modo que possa contribuir, ter seus direitos, inclusi-ve à aposentadoria. Muitas vezes, essas pes-soas encontram formas de contribuir como autônomos e garantir direitos.

recebido em: 30.05.11aprovado em: 08.06.11

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Eliana Tavares dos Reis

INTELECTUAIS EUROPEUS: TRANSAÇõES CULTURAIS, CIRCULAÇÃO DE IDÉIAS E DISPUTAS EM TORNO DA DE-FINIÇÃO DE “INTELECTUAL”.

SAPIRO, Gisèle (Org.). L’espace intellectuel en Europe: de la formation des États-nations à la mondialisation (XIX-XXI siècle). Paris: La Découverte, 2009. 402 p.

A coletânea L’espace intellectuel en Eu-rope: de la formation des États-nations à la mondialisation (XIX-XX siècle), organiza-da por Gisèle Sapiro, é um empreendimento coletivo de pesquisadores de distintas áre-as das ciências humanas e sociais que pos-suem uma série de características em co-mum. Dentre elas, destaca-se o fato de te-rem “origem européia”; de estarem vincula-dos a diferentes instituições de ensino e pes-quisa, notadamente na França, Alemanha e Itália; de serem associados (maior parte de-les) ao Centre de Sociologie Européenne, em Paris; de realizarem pesquisas que têm re-fletido sobre o campo da produção cultural a partir de diferentes objetos de estudo; e de compartilharem um referencial analíti-co cujas bases foram concebidas por Pier-re Bourdieu.

Vale destacar que a consagração de Bourdieu e de sua obra está no centro dos engajamentos científicos e políticos da “re-de européia” (articulada pelos autores em questão, entre outros) que investe em ativi-dades e projetos variados, divulgando seus posicionamentos. Institucionalizada no Es-pace pour les Sciences Sociales Européen (ESSE), criado entre 2004 e 2009, esta rede visa garantir a interlocução entre seus pares e também parece ser uma organização de luta pelo reconhecimento dos “intelectuais europeus”, haja vista o caráter de manifesto dos “princípios e proposições para refletir a formação de um espaço europeu”, anexado ao final do livro.

Na introdução, Sapiro antecipa o sentido da retomada e sustentação do lugar central da Europa na definição das profissões inte-

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lectuais e suas formas legítimas de interven-ção, em oposição à hegemonia norte-ame-ricana e aos poderes temporais na interna-cionalização do conhecimento. Assim, dian-te os riscos (“da introdução de métodos de administração do ensino e da pesquisa às di-ferentes formas de censura exercidas pelos grandes grupos de comunicação”) que cir-cundam a autonomia da produção intelectu-al historicamente conquistada, o “espaço in-telectual europeu poderia oferecer um lugar onde se organizaria a resistência coletiva a esse perigo”. O que não prescindi de um “re-torno reflexivo crítico sobre seu funciona-mento e sobre os saberes que produz, os in-teresses que beneficiam, os valores que vei-culam, as questões que excluem” (p.25).

A autora defende a adesão à perspectiva comparativa para melhor empreender uma análise estrutural do sistema mais amplo de relações nas quais estão inseridas as dinâ-micas específicas. Assim, para ela, é neces-sário proceder a uma “ruptura com o nacio-nalismo metodológico que continua a pre-valecer na história intelectual” para reforçar a dimensão comparativa entre Estados Na-cionais (p.10). O que não significa dizer que não seja imprescindível a “reconstituição minuciosa dos espaços de referencia” (p. 12), uma vez que, conforme realça Heilbron no capítulo final do mesmo livro, “o espa-ço internacional se constrói historicamente a partir das estruturas nacionais, e ele pode ter por efeito tanto o de reforçar as especifi-cidades nacionais como de desnacionalizar as práticas de pesquisa” (p. 310).

As discussões apresentadas na coletâ-nea estão, então, inseridas numa agenda de pesquisas e em estratégias de edificação e preservação das fronteiras do campo inte-lectual/científico esboçadas por Bourdieu que, não fortuitamente, aparece no primei-ro e distinguido artigo da obra. Neste, ele

propõe uma reflexão sobre as condições so-ciais de circulação internacional das idéias, enfatizando o potencial político e analíti-co de se perceber a construção desse lugar de produção (e transação) que extrapola o arbitrário das fronteiras nacionais. Político, porque combina a descrença no laissez-fai-re das trocas internacionais em matéria de cultura, que levaria frequentemente a “fazer circular o pior e a impedir o melhor de cir-cular”, com uma convicção de cientista de que quando se conhece os mecanismos so-ciais se amplia as chances de dominá-los. Analítico, porque suscita questões primor-diais para se pensar sobre as transferências culturais ou trocas internacionais, ponde-rando e transpondo os entraves decorrentes de fatores estruturais criadores de equívocos raramente levados em conta nas apropria-ções de modelos alienígenas. Com efeito, é necessário lembrar que “os textos circulam sem seu contexto”, ou seja, estão desconec-tados do “campo de produção do qual são o produto”, o que permite aos receptores to-má-los orientados pela estrutura do campo no qual estão inscritos (p. 30).

Por isso, o sociólogo apostava (na oca-sião da conferencia de inauguração do Frankreich-Zentrum da universidade de Fri-burgo, que deu origem ao texto em questão, centro que foi por ele mesmo estimulado na sua relação com Joseph Jurt) na “importân-cia de um programa de pesquisa científica européia sobre as relações científicas eu-ropéias” (p. 29). Em consonância como es-sa perspectiva, Victor Karady (cap. 1) indi-ca a necessidade de se fazer investimentos sistemáticos em “pesquisas cooperativas so-bre vários países”, buscando as regularida-des na história social dessas disciplinas, a transnacionalização das relações que esta-belecem desde o século XIX, considerando igualmente as resistências e heterodoxias

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que se manifestam “no seio mesmo das prá-ticas intelectuais reconhecidas como legíti-mas” (p. 67). É neste sentido que, em sua contribuição, oferece um mapeamento dos processos de afirmação de vários pólos cen-trais de formulação e produção de conheci-mentos no âmbito das ciências sociais, que compunham, mediante as relações que esta-belecem entre si e com outros pontos mais ou menos periféricos, o espaço europeu des-ses saberes. Para tanto, expõe quadros de-mográficos e institucionais, sublinhando que o trabalho é intrincado, pela existência de diferentes ritmos de transformações, ao longo do tempo, das relações entre as posi-ções dominantes neste espaço e aqueles que estão em sua órbita, bem como não neces-sariamente são coincidentes com a ocorrên-cia de modificações das disciplinas específi-cas das ciências sociais.

As transformações históricas e geográfi-cas, políticas e intelectuais, ocorridas des-de o século XIX em diferentes países da Eu-ropa revelam interdependências e processos de adaptação das inserções e representações dos agentes, profissionais da manipulação de bens simbólicos, sobre o mundo social e sobre o seu lugar e papel nesse mundo. É nesta direção que Christophe Charle (cap. 2) evidenciou o “nascimento dos intelectu-ais” na França e a difusão, adoção e rejeição deste neologismo em configurações como a alemã, a inglesa e a russa. O autor explo-ra os condicionantes históricos de diversifi-cação de um mercado de bens culturais que incide na evolução social das condições de vida do intelectual; de redefinição das ativi-dades e posições que ocupam, notadamen-te nos domínios estatais ou na dependên-cia em relação ao “mercado de massa”; e de reconfiguração das relações entre o campo intelectual e o campo político evidenciada com o affaire Dreyfus, cujas lutas resulta-

ram na emergência da categoria “intelectu-al” como portadora de uma identidade cole-tiva fundada na reivindicação de sua auto-nomia e seu papel de contestação do Estado e das elites políticas.

Seguindo a lógica cronológica que pre-sidiu a distribuição dos capítulos desta pri-meira parte do livro, composta por cinco textos que têm como eixo os processos de “desintegração e reintegração do espaço in-telectual na Europa”, Gisèle Sapiro (cap. 3) focaliza um fenômeno que marcou a pri-meira metade do século XX. Trata-se do impacto dos conflitos e clivagens políti-cas, no período entre as duas guerras mun-diais, em termos de organização profissio-nal e militante, bem como para a circulação internacional e concorrencial dos agentes. Momento, portanto, singular de articula-ção das estratégias de afirmação dos inte-lectuais em bases nacionais – consolidando representações culturais e geopolíticas co-mo modelos centrais – e de sua constitui-ção como grupo no espaço internacional, no qual disputam a posição e imposição de sua hegemonia cultural. A autora destaca o empenho na universalização das paixões, sustentadas em justificações letradas, e rei-vindicações de autonomia do campo inte-lectual, inclusive em relação ao “interes-se nacional”, como critério de avaliação de seus produtos; e a fixação da noção de cul-tura como categoria de intervenção públi-ca, forjada na luta ideológica (contra o fas-cismo, por exemplo) que os intelectuais es-tiveram envolvidos, atesta os contornos da politização do mundo intelectual, as con-dições de profissionalização das suas ativi-dades e da difusão internacional dos seus “modelos de organização”.

Deste modo, como demonstrou An-na Boschetti (cap. 4), as disputas e alinha-mentos do mundo depois da segunda guer-

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ra mundial (pós-45), como não poderia dei-xar de ser, repercutiram na recomposi-ção do campo intelectual internacional até o início dos anos 1960, com uma politiza-ção significativa dos posicionamentos dos agentes. Tal politização é apreendida em re-lação às posições por eles ocupadas no cam-po intelectual e deste em relação ao cam-po do poder, testando indicadores pertinen-tes para a análise dos determinantes con-junturais e estruturais que pesaram sobre a formação do espaço internacional de in-serção intelectual. Sem desconsiderar as ló-gicas e hierarquias dos campos específicos que o compõem e que se traduzem no lu-gar que ocupam na hierarquização transna-cional, ou seus efeitos na “circulação trans-nacional dos homens, das obras e das repre-sentações” (p. 152).

A propagação e a consagração de arti-culações contestatórias aparecem como re-sultante de uma forma de associação entre politização e internacionalização, assim co-mo demonstrou Ingrid Gilcher-Holtey (cap. 5) para a proliferação de movimentos rei-vindicatórios que se ergueram em diferentes contextos nos anos 1960 e que, em conso-nância, promoveram uma “subversão cog-nitiva” das bases da esquerda em termos mundiais. Movimentos esses com caracte-rísticas distintas, porém com “raízes euro-péias” (mais diretamente o ‘maio de 68’). A autora parte da caracterização deste período como sendo um “momento crítico”, oportu-nizado pela “crise estrutural das universida-des” e, na cena internacional, pelas inter-pelações da guerra do Vietnã. Conjugam-se a isso, os princípios de democratização e o crescimento das modalidades de participa-ção que aparecem como uma retomada das propostas da Primavera de Praga, ativan-do “idéias força” como as de “democracia participativa”, de “autogestão”, de “co-de-

cisão” ou “paridade”. Desta forma, contri-buindo para a subversão das percepções em voga acerca do mundo social e a formação de uma “nova esquerda intelectual” (p. 185).

Sendo assim, as perturbações políticas, econômicas e culturais que afetaram as di-ferentes configurações históricas que com-põem a Europa, resultaram em re-acomo-dações das fronteiras móveis e vulneráveis que delimitam o mapa de espaços, competi-ções e colaborações entre os diferentes do-mínios de intervenção (intelectual e/ou mi-litante) dos agentes. A segunda parte do li-vro é dedicada à discussão mais específica sobre os efeitos dessas transformações no campo literário.

Para a apreensão das estratégias de in-ternacionalização da literatura ou de cons-tituição de um campo literário europeu, é preciso verificar as suas origens nacionais, mais particularmente, como sugere Joseph Jurt (cap. 6), cabe observar as intersecções entre as produções ou os usos da literatu-ra com a formação ou os reconhecimentos das nações modernas. Ou seja, a literatura pode exercer um papel tanto para o funda-mento de uma realidade nacional, impres-cindível, sobretudo para situações de “au-sência de estruturas políticas nacionais” (p. 231); como se constituir apenas em um atributo da nação, um dos seus elemen-tos de valorização, sendo distintas as fei-ções destas relações para as distintas “rea-lidades nacionais”. Sem dispensar o exame dos confrontos entre possíveis subcam-pos regionais que compõem o campo lite-rário nacional e suas hierarquias (segun-do a lógica centro/periferia), tributários do maior ou menor prestígio gozado pelos di-ferentes domínios lingüísticos, Jurt subli-nha que a singularidade francesa reside na invenção de uma literatura nacional com pretensão universalista.

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Com efeito, mesmo que a “literatura na-cional” seja uma categoria histórica, não universal, há escritores que proclamam o caráter universal de suas obras, recusan-do seu enraizamento em “tradições nacio-nais”, como estratégia de legitimação que podem fundamentar a constituição de um campo literário europeu. Para Pascale Casa-nova (cap. 7), a existência de uma “litera-tura européia” somente pode ser ponderada levando-se em conta um denominador co-mum ou um “traço trans-histórico” que jus-tifica que esta se apresente como um con-junto coerente pela existência de unidade política e cultural, qual seja: as rivalidades e lutas que incessantemente opõem os espa-ços nacionais entre si. Paradoxalmente, se-ria justamente nesses conflitos e concorrên-cias que se constituiria a unificação literá-ria da Europa. Por isso, sublinha que “essa história seria aquela dos modelos e contra--modelos, dos domínios e das dependências, das imposições e das resistências, em resu-mo, dessas lutas específicas que são ao mes-mo tempo perpétuas e implacáveis” (p. 234).

Pode-se conceber que tais embates e confrontos se expressem no desenho de um mercado de tradução que permite a expres-são e conquista de assento da “literatura na-cional” (dominante) num possível campo internacional. Gisèle Sapiro (cap. 8) apon-ta o lugar de destaque que a Europa ocupa no estabelecimento de um mercado mundial da tradução e nos processos de reconfigura-ção da geografia das trocas intelectuais. Di-ferentemente da importação massiva de li-vros, tal como ocorre nos E.U.A, a Europa conquista uma posição central neste merca-do, mormente no que diz respeito à densida-de e à diversidade das trocas devido à con-vergência de vários fatores, dentre os quais: a “antiguidade das tradições intelectuais”; a “anterioridade do desenvolvimento do mer-

cado do livro”; a “difusão do modelo das identidades nacionais na Europa do sécu-lo XX”; as “novas vias e o quase monopó-lio que assegurou a colonização aos editores europeus nos seus domínios lingüísticos” (p. 287). Cabe ressaltar que, evidentemente, os fluxos das traduções variam em função do tipo de obra, cortando esse espaço em dois pólos que opõe as produções com difusão mais ampla, como os best-sellers, ensaios, biografias, guias turísticos, etc.; e aquelas com difusão mais restrita, como a literatura e as ciências humanas e sociais.

No que diz respeito às ciências sociais, a terceira parte do livro ora resenhado concentra-se no lugar dessas ciências que, a um só golpe, apreendem e são apreendi-das nas inscrições nacionais e internacio-nais, realçando que elas contribuem deci-sivamente para a existência de estados e de nações.

Johan Heilbron (cap. 9) desenvolve sua discussão voltada para a relação entre as tra-dições nacionais e as ciências sociais, grifan-do que, em muitos lugares, esta nasce como uma “ciência de governo”, isto é, como pro-dutora de “saberes administrativos e políti-cos a serviço dos estados nacionais emergen-tes” (p.306). Desta forma, antes de se fortale-cer no século XX como disciplina universitá-ria, conquistando condições profissionais que garantem a produção de conhecimento com relativa autonomia frente à demanda estatal, as ciências sociais tinham seus saberes pau-tados pela relação com os Estados. Além dis-so, as próprias formas de sua institucionaliza-ção foram condicionadas pelo “papel central das estruturas estatais”, o que sugere a per-tinência de se “comparar a estrutura políti-ca das ciências sociais conforme os países e, mais particularmente, a considerar os efeitos do grau de centralização ou de descentraliza-ção dos estados nacionais” (p.307).

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Realizando uma “história transnacio-nal das ciências sociais”, este mesmo autor, juntamente como Nicolas Guilhot e Lau-rent Jeanpierre (cap. 10), apreendem justa-mente os processos de institucionalização que se intensificam, notadamente a partir dos anos 1960, acompanhados de diferen-tes formas de migração intelectual, espe-cialmente no que tange à circulação trans-nacional de estudos universitários; à articu-lação de redes transnacionais entre institui-ções internacionais; e à importância atribu-ída às “políticas de trocas transnacionais” por instituições estatais e privadas. Acon-tece que os mecanismos que colaboraram de forma contundente para o trânsito inter-nacional de indivíduos e idéias, assim co-mo para a mundialização das ciências so-ciais, ocorreram de modo muito desigual e segundo uma “estrutura extremamente as-simétrica, [que] consagra a hegemonia dos países ocidentais, estando em primeiro lu-gar os Estados Unidos” (p. 345). Além disso, tal estrutura se manifesta no conteúdo e nos campos de aplicação disseminadas no âm-bito das ciências sociais, pois estão geral-mente vinculados ao aparelho administrati-vo e político, responsáveis pela reprodução daquela assimetria.

Em vista desses aspectos, é possível pro-blematizar a existência de uma idéia estável de “sociologia européia”. Heilbron (cap. 11) ressalta exatamente as múltiplas definições que tal categoria assume ao longo de consi-deráveis variações históricas, decorrentes de modificações geopolíticas abrangentes, des-de sua gênese na Europa; passando por pe-ríodos de afirmação das instituições de en-sino no final do século XIX e início do sé-culo XX; e de sua expansão entre a primei-ra e a segunda guerra mundial, coincidindo com a consolidação da hegemonia america-na. A segunda metade do século XX cor-

responderia a um momento em que a “so-ciologia européia” estaria reconstruindo seu universo de referências, necessitando enri-quecer a inserção dos diferentes “sociólogos nacionais” (em revistas qualificadas, por exemplo).

A partir da década de 1980, ocorre uma maior intensificação das trocas interna-cionais e intra-européias, mesmo que, co-mo ressaltam Yves Gingras e Heilbron (cap. 12), comparativamente às chamadas “ciên-cias da natureza”, os esforços no sentido de uma contínua e veemente internacionaliza-ção das ciências humanas e sociais não te-riam a mesma notabilidade na divulgação e transnacionalização dos seus produtos. Os autores se debruçam sobre um material pre-ciso que são os artigos publicados em revis-tas catalogadas no Web of Science, compro-vando a persistência da hegemonia anglo--americana no campo das ciências humanas e sociais no âmbito internacional. No tocan-te às cooperações intra-européias, notabili-zam-se os pesquisadores na Grã Bretanha, que estabelecem redes de colaboração “mais fortes com países não europeus do que com países europeus” (p. 378), sendo que os re-sultados demonstram que boa parte da pro-dução científica em ciências sociais perma-nece local e nacional.

A problemática que mobiliza os autores e textos presentes na obra em pauta, sem dúvidas, está relacionada às condições his-tóricas e disciplinares nas quais estão inse-ridos, bem como aos princípios de concor-rência intelectual que se lançam em oposi-ção a outros modelos centrais de gestão da produção mundial de bens simbólicos. Sus-citam discussões sobre o peso das relações centro/periferia na legitimação e circula-ção desses bens, bem como das modalida-des de trocas intelectuais passíveis de serem estabelecidas em diferentes níveis nacio-

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nais e internacionais. Acima de tudo, o livro traz contribuições à reflexão sobre dimen-sões, indicadores, estratégias metodológi-cas e analíticas pertinentes aos estudos dos “intelectuais” que podem servir como ponto de partida para se extrapolar a circunscri-ção das trocas no “espaço europeu” ou in-tra-ocidental. Tomando-as, então, como ar-senal para a investigação das dinâmicas ór-fãs, nos termos de Badie e Hermet, por um lado, é possível apreender as definições, pa-péis e disputas que envolvem os profissio-nais da manipulação de bens simbólicos no âmbito nacional em diferentes e sucessivas fases históricas e de concorrência (entre eles e com outros agentes sociais). Por outro, re-lacioná-los às estratégias e condições mais amplas de circulação e inscrição no chama-do espaço transnacional.

Nota Sobre a aUtora

Eliana Tavares dos Reis é mestre e doutora em Ciência Política pela UFRGS. Professora do DESOC e PPGCSoc-UFMA, coordena o Labo-ratório de Estudos sobre Elites Políticas e Cul-turais - LEEPOC.

recebido em: 30.05.11aprovado em: 08.06.11

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reSUMo Essa dissertação versa sobre os movimen-tos de defesa da moradia em São Luís, en-tendendo-os enquanto construção social de uma causa legítima, em processo de consagração estatal, relacionada às déca-das de 1970 e 1980. Buscou apreender co-mo os principais conflitos, atores, catego-rias e discursos envolvidos em torno da “questão da moradia” caracterizaram um processo social que só pode ser entendido por uma lógica relacional que considere tanto as principais características sociais e históricas das décadas analisadas quan-to as alianças e disputas existentes entre agentes do mesmo ou de diferentes estra-tos sociais, localizados no referido con-texto. Dessa forma, o engajamento mili-tante foi problematizado na perspectiva da estrutura de oportunidades. Assim, buscamos relacionar as trajetórias indivi-duais dos principais porta-vozes com contexto histórico e, também, com al-guns repertórios acionados e discursos,

Jesus Marmanillo Pereira

ENGAJAMENTO MILITANTE E “LUTA PELA MORADIA” EM SÃO LUíS ENTRE AS DÉCADAS DE 1970 E 1980

acionados pelos agentes. Para tanto, arti-culamos um referencial teórico da Socio-logia histórica e da Sociologia reflexiva com dados, coletados por meio de pesqui-sas de arquivo e entrevistas e analisados por meio dos métodos sociográfico, ico-nográfico e comparativo.

Palavras-chave: Conflitos. Ação coletiva. Tra-jetórias.

Ano de defesa: 2011

Número de páginas: 199

Banca Examinadora: Profa. Dra. Eliana Tavares dos Reis (Orientadora-PPGCSoc/UFMA); Prof. Dr. Igor Gastal Grill (DESoc/UFMA); Prof. Dr. Marcelo Kun-rath (UFRGS)

Data e Local da Defesa da Dissertação: 24/02/11, às 15hs, na sala de aula do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, no Centro de Ciências Humanas.

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reSUMo A atual pesquisa se direcionou à compreen-são dos mecanismos e condições sociais que proporcionaram a configuração de uma parte da elite econômica maranhense do fi-nal do século dezenove e início do vinte, analisando os processos de recrutamento e seleção de seus membros. Isso se deu a par-tir da principal instituição de representação dos agentes dedicados ao comércio e indús-tria do período, a Associação Comercial do Maranhão - ACM. Foram estudadas as ca-racterísticas sociais e trajetórias desses agentes, bem como os recursos utilizados para a estruturação de suas carreiras “pro-fissionais”. Identificou-se padrões e fre-qüências próprias para a conformação do grupo dirigente em evidência e, no mesmo sentido, a reprodução de práticas apontadas como inerentes ou pertencentes a outros segmentos da própria elite econômica, in-clusive tidos como aparentemente antago-nistas, tornando-as corriqueiras e inter-cambiais. Por conclusão, foi constatado que os vínculos de reciprocidade e parentesco,

Diogo Gualhardo Neves

ASSOCIAÇÃO COMERCIAL DO MARANHÃO: RECRUTAMENTO E ATUAÇÃO POLíTICA DA LIDERANÇA EMPRESARIAL, 1880/1940

ou outros a esses equivalentes ou relaciona-dos, são elementos determinantes para se pensar os processos de formação do seg-mento em pauta e as tomadas de posição apresentadas no jogo de disputa e domínio das posições de poder na arena econômica e política do Maranhão do entresséculos.

Palavras-chave: Seleção e recrutamento. Elite econômica. Maranhão. Século dezenove. Sécu-lo vinte.

Ano de defesa: 2011

Número de páginas: 192

Banca Examinadora: Prof. Dr. Igor Gastal Grill (Orientador-PPGCSoc/UFMA); Profa. Dra. Letí-cia Bicalho Canêdo (UNICAMP); Profa. Dra. Elia-na Tavares dos Reis (DESoc/UFMA).Data e Local da Defesa da Dissertação: 28/02/11, às 15hs, na sala de aula do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, no Centro de Ciências Humanas.

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reSUMo Esta pesquisa parte do interesse na com-preensão das relações dos profissionais da carpintaria naval artesanal de Raposa – MA com a natureza e recursos naturais. A partir do estudo do trabalho e cotidiano de profissionais buscou-se entender o que de-termina o uso da natureza na produção naval artesanal, em que medida os profis-sionais utilizam os recursos disponíveis na região e o que impede ou facilita tal processo. O uso da etnografia permitiu a que se explorasse o modo como represen-tam seus espaços e meios de trabalho e co-mo traduzem suas experiências em rela-ção à produção, à natureza e aos recursos, questões que são discutidas sob o prisma do etnoconhecimento, da sustentabilidade e da instituição de novas territorialidades na Amazônia Legal.

Raíssa Moreira Lima Mendes

MEIOS E AMBIENTES: NATUREzA E PRODUÇÃO NA CARPINTARIA NAVAL ARTESANAL DE RAPOSA - MA

Palavras-chave: Carpintaria naval. Artesanato tradicional. Usos sociais dos recursos naturais.

Ano de defesa: 2011

Número de páginas: 114

Banca Examinadora: Prof. Dr. Horácio Antunes de Sant’Ana Júnior (Orientador-PPGCSoc/UFMA); Profa. Dra. Denise Machado Cardoso (UFPA); Prof. Dr. Paulo Fernandes Keller (DESoc/UFMA).

Data e Local da Defesa da Dissertação: 28/02/11, às 15hs, na sala de Projeção I, no Centro de Ciências Humanas.

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reSUMo Estudo da construção sócio-política e dis-cursiva dos movimentos de direitos huma-nos no Maranhão, considerando proces-sos, agentes, agendas e relações com o Es-tado, tomando como referentes empíricos a Sociedade de Defesa dos Direitos Huma-nos e o Conselho Estadual de Defesa dos Direitos Humanos. Objetiva descrever e analisar a emergência e as formas de atu-ação desses movimentos e organizações, entre 1970 e 1990, partindo de uma per-cepção dos direitos humanos enquanto construção histórica, conflitiva, expansi-va e que abriga em seu interior uma tensão entre universalidade e particularidade, que se desenvolve, fundamentalmente, a partir de reivindicações e lutas da socieda-de civil. O trabalho foi realizado a partir de enfoque multidisciplinar, privilegiando no âmbito da Sociologia, teorias dos novos movimentos sociais e processo político. Na pesquisa mobilizou-se fontes bibliográfi-cas, documentais e entrevistas. Observou--se que esses movimentos emergem em meio a processos de intensas mobilizações sociais, inicialmente contra a ditadura e progressivamente ampliadas para deman-das sócio-econômicas, culturais e ambien-tais. Com as mudanças institucionais, de-correntes da Constituição de 1988, e polí-ticas estaduais, provocadas por mudanças dos grupos governamentais, em 2006,

Roseane Gomes Dias

DIREITOS HUMANOS NO MARANHÃO: CONCEPÇõES, AGENTES E INSTITUCIONALIzAÇÃO

abriram-se oportunidades para novas for-mas de intervenção da sociedade civil, que sai de um patamar de oposição sistemática ao Estado para ações em parceria, sem prejuízo da capacidade crítica e de denún-cia, valendo-se da atuação em rede com outros movimentos locais, nacionais e in-ternacionais. Ao longo desse processo houve incremento das mobilizações so-ciais e das políticas públicas de direitos humanos, ainda que modestas em face das violações aos direitos sócio-econômicos, políticos e culturais identificados no Ma-ranhão.

Palavras-chave: Direitos humanos. Institucio-nalização. Movimentos sociais. Maranhão.

Ano de defesa: 2011

Número de páginas: 135

Banca Examinadora: Profa. Dra. Arleth Santos Borges (Orientadora-PPGCSoc/UFMA); Profa. Dra. Maristela de Paula Andrade (DESoc/UF-MA); Prof. Dr. Ernesto Seidl (UFS).

Data e Local da Defesa da Dissertação: 06/05/11, às 15hs, na sala de aula do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, no Centro de Ciências Humanas.

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Resumos 221

reSUMo Trata-se da análise sobre a Lei nº. 10.639 de 2003, que obriga a inclusão nos currí-culos escolares da educação básica das te-máticas História e Cultura Afro-brasileira e Africana. A sanção da referida Lei é apresentada é resultante da relação social entre, por um lado, as reivindicações do Movimento Negro em busca de reconheci-mento étnico-racial e combate ao racismo, e por outro, a posição do Estado brasileiro mediante tais reivindicações multicultu-rais. Fazendo parte do contexto de ações afirmativas no Brasil, esta Lei traz proble-matizações específicas referentes à forma-ção histórica da nação brasileira, tais co-mo: o que foi negado e silenciado na histó-ria do país, o que afirmou-se e valorizou--se como integrante da cultura hegemôni-ca, dentre outras questões. Discute-se, as-sim, neste estudo os processos sociais e discursivos que levaram à existência des-ta Lei: a construção da identidade nacional brasileira, que culminou na representação da nação enquanto uma democracia ra-cial; e a história do movimento negro, marcada por lutas que incidiram sobre a educação escolar como possibilidade de enfrentamento do racismo e da discrimi-

Débora de Jesus Lima Melo

EDUCAÇÃO E RECONHECIMENTO ÉTNICO-RACIAL: UM ESTUDO SOBRE A LEI Nº. 10.639/03

nação no país. Buscando refletir sobre es-tas questões e outras que trazem os docu-mentos legais que regulamentam a imple-mentação desta inclusão, analisa-se, ain-da, os efeitos, os limites e os discursos re-lacionados à Lei no Maranhão, a partir da Secretaria de Educação do estado, respon-sável por implementar ações de orientação e divulgação da Lei no estado.

Palavras-chave: Lei 10.639/03. Relações étni-co-raciais. Educação. Reconhecimento.

Ano de defesa: 2011

Número de páginas: 129

Banca Examinadora: Prof. Dr. álvaro Roberto Pires (Orientador-PPGCSoc/UFMA); Prof. Dr. Carlos Be-nedito Rodigues da Silva (DESoc/UFMA); Prof. Dr. Acildo Leite da Silva (Departamento de Educação/UFMA).

Data e Local da Defesa da Dissertação: 20/05/11, às 9hs, na sala de aula do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, no Centro de Ciências Humanas.

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222 R. Pós Ci. Soc. v.8, n.15, jan./jun. 2011

reSUMo A análise da construção da chamada res-ponsabilidade social empresarial no âmbi-to da atividade siderúrgica desenvolvida na região de Carajás constitui-se como o principal objetivo do presente trabalho dissertativo. Nesse sentido, busca compre-ender o processo de constituição do Insti-tuto Carvão Cidadão (ICC), entidade criada por parte das empresas siderúrgicas de Ca-rajás para lidar com a existência de situa-ções de trabalho escravo na produção de carvão vegetal na cadeia de produção de ferro gusa. Nesse trabalho ressalta-se o processo de construção do discurso de res-ponsabilidade social engendrado a partir da mobilização de atores sociais objeti-vando responder à crítica social, dado os impactos socioambientais ocasionados em decorrência da atuação dessas empresas.

Karla Suzy Andrade Pitombeira

A CONSTRUÇÃO DA RESPONSABILIDADE SOCIAL EMPRESARIAL NO PÓLO SIDERÚRGICO DE CARAJáS: O CASO DO INSTITUTO CARVÃO CIDADÃO

Palavras-chave: Trabalho Escravo. Responsabi-lidade Social Empresarial. Mobilização.

Ano de defesa: 2011

Número de páginas: 125

Banca Examinadora: Prof. Dr. Marcelo Sampaio Carneiro (Orientador-PPGCSoc/UFMA); Prof. Dr. Paulo Fernandes Keller (DESoc/UFMA); Prof. Dr. Juarez Lopes de Carvalho Filho (DESoc/UF-MA).

Data e Local da Defesa da Dissertação: 31/05/11, às 9hs, na sala de aula do Centro de Ciências Humanas.

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Resumos 223

reSUMo Análise das dinâmicas de socialização do povo Awá, tomando como referência o processo de territorialização (OLIVEIRA, 1999) que ora vivenciam. Busca compre-ender como os Awá, em face da dinâmica de colonialidade do poder e do saber (LAN-DER, 2005) exercida pelo Estado, constro-em suas estratégias de formação e manu-tenção da identidade, levando em conside-ração que este processo caracteriza um modo próprio de socialização, responsável por sua reprodução enquanto povo. As fontes utilizadas foram a literatura produ-zida dobre os Awá e os registros de campo efetuados em diferentes etapas pesquisa, no período de 2008 a 2009. A análise fo-caliza especialmente o cotidiano Awá, pri-vilegiando as atividades de caça, agricul-tura, coleta e pesca.

Leonardo Barros Ferreira

A (RE) PRODUÇÃO DO MODO DE SER AWá: DINâMICAS DE SOCIALIzAÇÃO NA ALDEIA JURITI

Palavras-chave: índios. Socialização. Territo-rialização.

Ano de defesa: 2011

Número de páginas: 113

Banca Examinadora: Profa. Dra. Elizabeth Maria Beserra Coelho (Orientadora-PPGCSoc/UFMA); Prof. Dr. Mercio Pereira Gomes (UFRJ); Profa. Dra. Katiane Ribeiro da Cruz (PPGPP/UFMA).

Data e Local da Defesa da Dissertação: 10/06/11, às 15hs, na sala de aula do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, no Centro de Ciências Humanas.

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224 R. Pós Ci. Soc. v.8, n.15, jan./jun. 2011

reSUMo Este estudo analisa processos de mudan-ças e/ou permanências nos papéis de gêne-ro a partir das vivências familiares de mu-lheres, na faixa etária de 60 a 75 anos, que participam dos grupos Gerenciamento do Envelhecimento Natural (GEN) e Universi-dade da Terceira Idade (UNITI), ambos lo-calizados na cidade de São Luís, Mara-nhão. Através da articulação entre Memó-ria e da História de Vida, enquanto recur-sos técnico-metodológicos, Rosário, Joa-na, Francisca e Rosa registram variados episódios e contextos percorridos ao longo da passagem do tempo. Resgatam reminis-cências que consideraram significativas em suas trajetórias de existência e desta-cam, sobretudo, diferenças entre os modos nos quais homens e mulheres são sociali-zados diante dos “padrões sociais” de con-duta de cada época. Nesse sentido, as nar-rativas ressaltam a configuração de um sistema binário de relações de gênero que, em geral, preconiza o masculino e o femi-

Carla Maria Lobato Alves

(EN)GENDRAMENTO NA PASSAGEM DO TEMPO: VIVÊNCIAS DE MULHERES

nino a atributos demarcados como opostos e excludentes em relação às vivências no casamento, ou outras formas de conjugali-dade, criação e orientação de filhos, cuida-dos com a saúde, conhecimento das mu-danças corporais e práticas da intimidade.

Palavras-chave: Mulheres. Memória. Velhice. Relações de Gênero.

Ano de defesa: 2011

Número de páginas: 210

Banca Examinadora: Profa. Dra. Sandra Maria Nascimento Sousa (Orientadora-PPGCSoc/UF-MA); Profa. Dra. Verônica Cavalcante (UFPI); Prof. Dr. álvaro Roberto Pires (DESoc/UFMA).

Data e Local da Defesa da Dissertação: 24/06/11, às 9hs, na sala de aula do Centro de Ciências Humanas.

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Resumos 225

reSUMo Cadernos Negros é uma antologia que sur-giu na década de 1970, especificamente em 1978, no bojo do Movimento Negro brasileiro, com a perspectiva de luta e de organização, a partir de uma abordagem poética. Acredita-se que o exercício poéti-co do negro brasileiro, trata-se de um exercício de engajamento e de resistência, capaz de suscitar em seu leitor um encon-tro com as origens, com sua formação e com sua africanidade, a partir de um pro-cesso de identificação e reconhecimento. As poesias de Cadernos Negros trabalha-das neste texto rompem os contratos dis-cursivos ditados pelos cânones literários do colonizador, em busca das formas de expressão que valorizam a cultura do afrodescendente, que por muito tempo foi marginalizada e esquecida. Esta Disserta-ção investiga, através dos textos mais re-presentativos, as formas discursivas de resgate da identidade realizada pelos auto-res. Evidencia-se a valorização dos temas comuns, a contextualização social e histó-

Carolina da Silva Portela

CADERNOS NEGROS: UM DISCURSO LITERáRIO SOBRE IDENTIDADE NEGRA

rica dos negros no Brasil, bem como, a to-mada de consciência e a formação de um eu enunciador. Para tais discussões utili-za-se: Bakhtin (2009), Kabengele Munan-ga (2009), Florestan Fernandes (2007;2008), David Brookshaw (1983), Zila Bernd (1988), Cuti (2009), Frantz Fanon (2008) e Derrida (2009).

Palavras-chave: Cadernos Negros. Identidade Negra. Literatura Negra.

Ano de defesa: 2011

Número de páginas: 93

Banca Examinadora: Prof. Dr. Carlos Benedito Ro-drigues da Silva (Orientador-PPGCSoc/UFMA); Prof. Dr. João Batista de Jesus Félix (UFTO); Prof. Dr. álvaro Roberto Pires (DESoc/UFMA).

Data e Local da Defesa da Dissertação: 28/06/11, às 15hs, na sala de aula do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, no Centro de Ciências Humanas.

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norm

as p

ara

public

ação

1. INForMaÇÕeS aoS aUtoreS

A Revista Pós-Ciências Sociais é uma pu-blicação produzida pelo Programa de Pós--Graduação em Ciências Sociais da Univer-sidade Federal do Maranhão (UFMA).

Aceitamos trabalhos sob a forma de ar-tigos/ensaios, entrevistas, traduções, rese-nhas e instrumentos de trabalho (informa-ções sobre arquivos, bibliotecas, fontes pri-márias etc.).

Os trabalhos enviados serão apreciados pelo Conselho Editorial e encaminhados a consultores conceituados na área/tema do texto em questão. Os autores serão avisa-dos via correspondência (correio ou e-mail) da aceitação ou recusa de seus trabalhos. Os trabalhos submetidos para a publicação, quando não aceitos, ficarão à disposição dos autores. Os autores dos textos publicados re-ceberão, via correio, três exemplares da RE-VISTA PÓS CIÊNCIAS SOCIAIS em que sua colaboração foi publicada.

Para efeito de padronização gráfica, os trabalhos enviados deverão seguir rigorosa-mente as normas abaixo especificadas sob o risco de não serem aceitos.

REVISTA PÓS CIÊNCIAS SOCIAISNORMAS PARA PUBLICAÇÃO

1.1 Sobre o material

Todo o material deve ser encaminhado em envelope contendo:

a) Três cópias impressas em papel A4 (210 x 297 mm), sendo uma cópia fiel ao original e duas sem identificação de auto-ria que devem ser remetidas ao endereço da revista, a saber: Revista Pós Ciências Sociais / Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais – UFMA – Av. dos Portugueses, s/n. Prédio do CCH bloco 6, sala 3 – Campus do Bacanga – São Luís – MA – CEP 65085-580. Fone: (098) 3301-8352/ 8353; recebemos também as contribuições por correio eletrô-nico: [email protected] ;

b) Estar gravado em CD-ROM;c) Os textos devem ter a seguinte forma-

tação: editor Word for Windows 6.0 ou su-perior, fonte Times New Roman, tamanho 12, espaço entre linhas 1.5 e com margens superior e esquerda de 3 cm e inferior e di-reita 2 cm;

d) Os textos devem ser enviados após uma rigorosa revisão ortográfica;

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1.2 Quanto ao texto

Quanto ao texto, exige-se:

Nas citações textuais, recomenda-se as normas da Associação Brasileira de Nor-mas Técnicas (ABNT): NBR 6023/2002 (re-ferências) e NBR 10520/2002 (citações). A entrada de autores nas referências deverá ser idêntica da citação no texto. O sobreno-me do autor deverá ser escrito somente com a primeira letra maiúscula seguido do ano da publicação da literatura utilizada, caso o nome do autor esteja inserido no contexto, como no exemplo:

Caso o nome(s) do(s) autor(es) esteja(m) inserido(s) no contexto:

Com um autor: Monteiro (1988)Com dois autores: Monteiro e Vilhena (1990)Com até três autores: Monteiro, Vilhena e Cavalcante (1995)Com mais de três autores: Monteiro et al. (1999)

Caso o nome do autor e o ano estejam entre parênteses, deverão estar separados por vírgula, em letras maiúsculas como no exemplo:

Com um autor: (MONTEIRO, 1988)Com dois autores: (MONTEIRO; VILHENA, 1990)Com até três autores: (MONTEIRO; VILHE-NA; CAVALCANTE, 1995)Com mais de três autores: (MONTEIRO et al., 1999)

As citações diretas que contenham até três (3) linhas não serão destacadas em blo-cos, devendo permanecer com a mesma fonte do texto e entre aspas. Deverão, tam-

bém, conter a indicação do sobrenome do autor em letras maiúsculas, seguido do ano de publicação e da página utilizada, como no exemplo: (MONTEIRO, 1988, p. 10).

As citações diretas de mais de três (3) li-nhas deverão vir destacadas em blocos e re-cuadas, coincidindo a margem esquerda com a entrada de parágrafo e a margem di-reita com o texto.

Deverá ser usada a mesma fonte do tex-to, porém em tamanho menor (10), sem as-pas e espaçamento simples.

Os quadros, as tabelas e as figuras de-verão ser numerados em algarismos arábi-cos (com suas respectivas legendas), de pre-ferência incluídos no texto.

Os pontos gráficos e as linhas não de-verão ser coloridos; deverão estar legíveis e simplificados para facilitar a redução;

As notas devem constar no rodapé de cada página (fonte Times New Roman 10, entrelinhas 1).

O título do artigo deve ser escrito em Ti-mes New Roman, corpo 12, negrito, utili-zando caixa alta. Caso houver, o subtítulo virá separado do título por dois pontos (:), sem negrito e em caixa-baixa.

Exemplo:

REDES, ESTRATÉGIAS E DESENVOLVIMEN-TO: caminhos da renovação da Sociologia Econômica no Brasil

Sobre as seções que compõem o artigo:As seções primárias devem vir em negri-

to, caixa alta, numeradas sem ponto.Exemplo:

2 BREVE HISTÓRICO

As seções secundárias devem vir em negrito, caixa alta e baixa, numeradas e separando se-ção primária e secundária por um ponto.

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Normas para publicação 229

Exemplo:

2.1 Idade Média

As seções terciárias devem vir sem ne-grito, caixa alta e baixa, numeradas e sepa-radas por ponto.

Exemplo:

2.1.1 Igreja Católica

As imagens, além de inseridas no arqui-vo do texto (WORD), devem ser enviadas in-dividualmente e os formatos aceitos são JPG, TIFF, PNG, com resolução de 300 dpi, em co-res ou tons de cinza, com tamanho mínimo de 9x13cm. Gráficos, infográficos e mapas devem ser enviados em arquivos abertos, gerados em softwares vetoriais (arquivos CDR, AI).

As referências, contendo somente os autores citados no trabalho, deverão ser apresentadas em ordem alfabética ao final do trabalho, de acordo com as normas da ABNT-NBR 6023/2002 (Referências) e/ou as normas para publicação da UFMA.

2. Normas específicas artigos

a) Os textos dos artigos devem conter entre 15 e 30 laudas.b) Solicita-se uma cópia em CD-ROM;c) Os trabalhos devem apresentar a seguinte seqüência:– Título;– Resumo informativo conforme ABNT/NBR 6028/2003 (de 100 a 250 palavras);– Palavras-chave (no máximo de 06 pala-vras, separadas por ponto e com inicial mai-úscula);– Abstract;– Keywords;

– Texto;– Referências.

resenhas a) Os textos direcionados a essa seção não de-vem ultrapassar o limite de seis (06) laudas.b) Solicita-se uma cópia em CD-ROM.c) São aceitos textos referentes a obras edita-das no Brasil e no exterior há no máximo 03 e 06 anos, respectivamente.d) As resenhas devem apresentar a seguinte seqüência:– Título;– Nome do resenhista;– Instituição a que pertence;– Referências completas da obra (Título da obra. Cidade: Editora, Ano. Nº de páginas. Sobrenome e nome do autor);– Texto.

documentos O número de laudas não deve ultrapassar dez (10). a) Os trabalhos devem apresentar a seguin-te seqüência:– Título;– Palavras-chave: no máximo de 03 palavras;– Apresentação esclarecendo a relevância e a procedência dos documentos;– Texto.

entrevistas O número de laudas não deve ultrapassar vinte (20).a) Os trabalhos devem apresentar a seguinte seqüência:– Título;– Nome do Entrevistado e do Entrevistador;– Apresentação;– Transcrição.

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230 R. Pós Ci. Soc. v.8, n.15, jan./jun. 2011

Esta publicação foi composta na família tipográfica Rotis e impressa em papel

off-set 75g, pela Gráfica Halley.

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