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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ
CENTRO DE SÓCIOEDUCAÇÃO DE CURITIBA: A UNIDADE E OS INTERNOS
Curitiba - Paraná
2007
2
Miguel Rodrigues da Silva Junior
CENTRO DE SÓCIOEDUCAÇÃO DE CURITIBA: A UNIDADE E OS INTERNOS
Monografia apresentada ao Setor de
Ciências Humanas, Departamento de
História da Universidade Federal do Paraná
– UFPR. Sob orientação da Profª. Drª.
Judite Trindade.
Curitiba - Paraná
2007
3
SUMÁRIO
Introdução.................................................................................................................. 4
A Instituição............................................................................................................. 14
Os Internos............................................................................................................... 24
A Trajetória.............................................................................................................. 38
Conclusão................................................................................................................. 43
Bibliografia............................................................................................................... 44
4
INTRODUÇÃO
A forma com que o adulto trata a infância e a adolescência constitui-se num processo
de constante e lenta transformação, o qual se poderia observar, possivelmente, desde a
existência do homem enquanto ser social. Entretanto, analisando os registros que temos da
história deste processo, pode-se dizer que o homem adquire uma consciência cada vez maior
da importância de se chegar ao modo ideal de promover o desenvolvimento da criança e do
adolescente; pois disto depende a solução, ou persistência, de grande parte de seus problemas
sociais.
Até o século XVII, na Europa, não se havia formado, segundo a historiografia, um
“sentimento da infância”. Surgido a partir deste momento então, foi este sentimento que
inspirou toda a educação dada às crianças, até o século XX; tanto nas cidades como no
campo, tanto entre a burguesia como entre o povo.
O apego à infância passou a se exprimir através do interesse psicológico – no sentido
de entender psicologicamente esta fase para melhor trata-la - e da preocupação com a
formação moral dos indivíduos, antes da fase adulta. Era preciso conhecer melhor a infância
para corrigi-la. Tentava-se penetrar na mentalidade da infância para, assim, adaptar melhor a
ela os métodos de educação. Segundo Ariès, “pois as pessoas se preocupavam muito com as
crianças, consideradas testemunhas da inocência batismal, semelhantes aos anjos e
próximas de Cristo, que as havia amado.”1
Outro elemento importante deste processo, segundo Ariès, é o surgimento do termo
“adolescência”. Até o século XVIII, não se reconhecia uma fase intermediária entre a
infância e a fase adulta. Até este momento, a adolescência foi confundida com a infância. O
autor afirma ainda que esta fase, mal percebida pelo antigo regime, distingue-se em grande
medida através da conscrição e, mais tarde, do serviço militar.
Portanto, na sociedade européia, entre os séculos X e XI, a criança assumia as
mesmas funções dos adultos muito precocemente. Assim, a infância era um período de
transição logo ultrapassado, e cuja lembrança também era logo perdida.
Entretanto, Ariès afirma que as crianças, na sociedade medieval, não eram
negligenciadas, abandonadas ou desprezadas. Porém, assim que podiam viver sem a
solicitude da mãe ou de sua ama, elas ingressavam na sociedade dos adultos e não se
1 ARIÉS, P. História social da criança e da família. Rio de Janeiro : LTC, 1981. p. 163.
5
distinguiam mais destes. Essa indeterminação se estendia a todas as atividades sociais: aos
jogos e brincadeiras, às profissões, às armas.2
Merece destaque também o papel da escola e, dentro dela, da disciplina. Segundo o
autor, no início dos tempos modernos a escola se torna um meio de isolar, cada vez mais, as
crianças durante um período de formação tanto moral quanto intelectual. Período dentro do
qual se poderia adestrá-las, graças a uma disciplina mais autoritária, e, desse modo, separa-
las da sociedade dos adultos.
A escola teve papel fundamental no desenvolvimento da relação dos adultos com a
infância, no sentido de que, para tornar esta instituição mais eficiente em seus novos
objetivos, era necessário estratificá-la; em conseqüência, era necessário um olhar mais
criterioso em relação à criança. O período da segunda infância/adolescência foi distinguido
graças, também, ao estabelecimento progressivo e tardio de uma relação entre a idade e a
classe escolar. Durante muito tempo, no século XVI e até mesmo no século XVII, essa
relação foi muito incerta.3
Entretanto, ainda segundo Ariès, antes do século XV, o estudante não estava
submetido a uma autoridade disciplinar extra corporativa, a uma hierarquia escolar. A
instituição escolar não tinha um poder ativo/dever sobre a criança. Geralmente, o estudante
pertencia a uma sociedade ou a um bando de companheiros, no qual uma “camaradagem” às
vezes brutal, porém real, regulava a sua vida quotidiana, muito mais do que a escola e seu
mestre, e, porque essa camaradagem era reconhecida como fator social legítimo pelo senso
comum, ela era provida de um valor moral.
Porém, estas novas idéias (noção de fraqueza da infância e o sentimento de
responsabilidade moral dos mestres) não podiam ser difundidas no modelo de escola
medieval, no qual o mestre não se interessava pelo comportamento dos alunos fora da sala de
aula. Seria o governo hierarquizado e autoritário dos colégios que permitiria, a partir do
século XV, o estabelecimento e o desenvolvimento de um sistema disciplinar cada vez mais
rigoroso. Sendo, este sistema, segundo o autor, composto de três características principais: a
vigilância constante; a delegação erigida em princípios de governo e de instituição, e a
aplicação ampla de castigos corporais.
Philippe Ariès identifica o pensamento segundo o qual era necessário distinguir e
melhorar a infância e este objetivo seria alcançado através da humilhação. Esta idéia só se
2 Ibid., p. 156. 3 Ibid., p. 177.
6
atenuaria ao longo do século XVIII; e a história da disciplina escolar nos permite
acompanhar a mudança da consciência coletiva em relação a esta questão.4
Como referencial teórico, farei uso também das idéias de Michel Foucault que destina
uma das quatro partes em que se divide sua obra - “Vigiar e Punir” - ao estudo da disciplina.
Neste trabalho o autor analisa e faz apontamentos sobre as transformações que o conceito de
punição sofreu através da história e sobre os mecanismos de controle criados pelo homem,
acompanhando as mudanças na forma de punir. Através destes apontamentos se pode fazer
um paralelo entre as idéias de Foucault e Áries; e considerá-las complementares.
Em Vigiar e Punir, Foucault analisa a transformação no sistema penal da Europa,
ocorrida entre o fim do século XVIII e começo do XIX. A punição, a partir deste momento,
deixa de se constituir em espetáculos de horror extremo para se transformar, ao menos em
tese, em uma forma de corrigir, reeducar e de “curar” o infrator; tratou-se de transformar o
castigo em uma expiação do mal, transformação que libertava os magistrados do “vil ofício
de castigadores”.
Assim como faz Ariès em relação às mudanças observadas na instituição escolar,
Foucault afirma que estas transformações punitivas sofreram grande influência das
transformações econômicas. Segundo Foucault, para esta sociedade que entra no século XIX
dentro do contexto da revolução industrial, o corpo só se torna útil se é ao mesmo tempo
corpo produtivo e submisso. Assim, cresce a importância da disciplina, responsável por
promover a “docilidade” dos corpos. Segundo o autor, é dócil um corpo que pode ser
submetido, que pode ser utilizado, que pode ser transformado e aperfeiçoado. Utilizando o
exemplo do militarismo, mostrando a rígida e detalhista disciplina adotada pelos militares,
Foucaut conceitua a disciplina:
“...esses métodos que permitem o controle minucioso das operações do corpo, que realizam a sujeição
constante de suas forças e lhes impõe uma relação de docilidade-utilidade, são o que podemos
chamar de as “disciplinas”.5
A disciplina, então, nesse contexto, tem a contraditória função de aumentar a força do
corpo, ao mesmo tempo em que o tornam mais submisso.
Ariès nos aponta ainda dois fenômenos sócio-estruturais importantes no processo de
transformação da instituição escolar. O primeiro dá-se a partir do século XVII. Trata-se do
surgimento da separação do ensino por idades. O segundo fenômeno ocorreu no século
XVIII e se constitui na separação social dos alunos, através do surgimento de dois tipos de
4 Ibid,. p. 179. 5 FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Petrópolis : Vozes, 1997. p. 119.
7
ensino: um para as crianças do povo e outro para os filhos das camadas burguesas e
aristocráticas. Ariès afirma, então:
“Em minha opinião, existe uma relação entre os dois fenômenos. Eles foram uma manifestação a uma
tendência geral ao enclausuramento, que levava a distinguir o que estava confundido, e a separar o
que estava apenas distinguido: uma tendência que não era estranha à revolução cartesianas das
idéias claras, e que resultou nas sociedades igualitárias modernas, em que uma compartimentação
geográfica rigorosa, substituiu as promiscuidades das antigas hierarquias.”6
É levantada a hipótese de que estes processos de inclusão da disciplina no ambiente
escolar, e, também, de separação social na estrutura da escola, refletiam as necessidades do
mercado de trabalho que, em processo de revolução industrial, necessitava de corpos
disciplinados e de uma escola que respeitasse a distância social que se acentuava na Europa
neste momento. 7
Este processo de constante e lenta transformação, constituído pela forma com que o
adulto trata a infância e a adolescência, também se reproduz no Brasil, desde a sua
colonização; porém, é claro, contando com algumas particularidades sócio-estruturais como,
por exemplo, a presença da criança negra e da criança indígena.
Um dos campos mais significativos deste processo, e do qual se obter uma melhor
percepção de como ele ocorre no país, é o estudo de como ele lida com seus “piores”.
Analisar exemplos de como se trata da relação criança e criminalidade é fundamental para
medir a importância dada ao problema; isso pode ajudar a entender qual é a visão que se tem,
em um dado momento, da fase infantil e da adolescência e, até mesmo, para compreender o
processo de mudança desta visão, através da análise da constante transformação dos
conceitos de “infância”, “maioridade”, “criança”, “adolescente”, “menor” e outros, a estes
relacionados.
A historiografia recente nos fornece alguns elementos importantes para esta análise.
Segundo Marco Antonio Cabral dos Santos, em seu artigo Criança e Criminalidade no
Início do Século, o Código Penal do Império rezava, em seu artigo 10 que “(...) não se
julgarão criminosos (...) os menores de 14 anos”. Porém, estabelecia que aqueles garotos
que, mesmo não atingindo a idade mínima de 14 anos, tivessem agido de forma consciente,
ou seja, tivessem agido com “discernimento”, deveriam ser encerrados em uma casa de
correção. Já o Código Penal da Republica, bem similar ao antigo, não considerava
criminosos os “menores de nove anos completos” e os “maiores de nove anos e os menores
de 14, que obrarem sem discernimento”.
6 ARIÉS, P. História social da criança e da família. Rio de Janeiro : LTC, 1981. p. 183. 7 Ibid., p. 191.
8
A recuperação desses menores, segundo o autor, dava-se não somente pelo simples
encerramento numa instituição de correção, mas sim pela disciplina de uma instituição de
caráter industrial, deixando transparecer a pedagogia do trabalho coato como principal
recurso para regeneração daqueles que não se enquadravam no regime produtivo vigente.
A capacidade de “obrar com discernimento”, então, era o fator determinante da
possível aplicabilidade das penas sobre os menores na faixa dos nove a 14 anos, sendo
motivo de muita polêmica entre juristas e pais dos delinqüentes, os quais, na esperança de
que seus filhos fossem soltos, de tudo faziam para comprovar a incapacidade mental e a
conseqüente irresponsabilidade dos mesmos.
Pode-se entender melhor o caminho social que leva o menor à delinqüência no início
da República, analisando o panorama, desenhado por Cabral dos Santos, deste processo, na
cidade de São Paulo. Segundo o autor, assim como o menor iniciava-se precocemente na
atividade produtiva que o mercado de trabalho proporcionava; desta maneira também o
roubo, o furto, a prostituição e a mendicância tornaram-se instrumentos pelos quais estes
menores provinham à própria sobrevivência e a de suas famílias. Segundo o autor, a
vadiagem – prevista como crime nesta época - era o motivo mais recorrente da prisão de
menores. O trabalho informal era a principal atividade exercida pelos menores, uma vez que
o mercado formal não era capaz de absorver toda a mão-de-obra disponível.
Conseqüentemente, nas palavras do autor,
“as ruas se tornavam palco de inúmeras prisões motivadas pelo simples fato de as “vítimas” não
conseguirem comprovar, perante a autoridade policial, sua ocupação.(...) A correção que o Estado
imputava passava necessariamente pela pedagogia do trabalho.”8
Desde o século XIX, São Paulo já contava com institutos privados de recolhimento
de menores. Porém, estes institutos eram fundados, normalmente, por congregações
religiosas, ligadas à indústria e ao comércio. Forneciam ensino profissional e eram
destinados aos filhos de operários e comerciantes. Entretanto, estes institutos se negavam a
receber meninos e meninas que de alguma forma tivessem sido incriminados judicialmente.
Dessa forma, por exigência do Código Penal instituído em 1890, como também pela
pressão dos juristas e autoridades policiais, em 1902, é elaborada a lei nº 844, que autoriza o
governo a fundar um instituto disciplinar e uma colônia correcional. Esta se destinaria ao
enclausuramento e correção, pelo trabalho, “dos vadios e vagabundos” condenados com base
na lei. Assim, o Instituto Disciplinar destinar-se-ia não só a todos os criminosos menores de
21, como também aos pequenos mendigos, vadios, abandonados, maiores de nove e menores
8 SANTOS, Marco Antonio Cabral. Criança e criminalidade no início do século. In: PRIORE, Mary Del (org). História das crianças no Brasil. São Paulo : Contexto, 2002. p. 220-222.
9
de 14 anos, que lá deveriam ficar até completarem 21 anos. Sobre o funcionamento da
instituição, o autor ressalta que “após breve período de adaptação, o jovem era
imediatamente integrado às frentes de trabalho, que naquele momento inicial era
essencialmente agrícola”. A seguir, no artigo, há um trecho em que o autor comenta o
funcionamento da instituição, no qual podemos perceber a presença da disciplina como
mecanismo de adestramento, visando a tornar os menores mais aptos para um crescente
mercado de trabalho. De outra forma, mostrando a proximidade entre este discurso e as
idéias de Foucault, poderíamos dizer que se tratava de um mecanismo que impunha uma
“docilidade”, voltada para as necessidades do mercado. “Por meio de contínuas seções de
exercícios físicos, tentava-se doutrinar o jovem para uma vida mais regrada e condizente
com os anseios de uma cidade pautada pela lógica da produção”.9
Sobre história do menor no Brasil, pode-se citar ainda a visão geral de Edson Passetti
sobre o assunto, a qual se encontra em seu artigo O Menor no Brasil Republicano. Segundo o
autor, a questão do menor só passou a ser realmente enfrentada a partir de 1970, em
conseqüência da pressão exercida pela imprensa, através de denúncias da situação em que se
encontravam as crianças do país, principalmente após o golpe de 64 e o fracasso do milagre
econômico. 10
Passetti lembra que 1978 foi indicado como Ano Internacional da Criança. Segundo o
autor, somente a partir de então, a história da criança passou a ser pesquisada. Estas
pesquisas desencadearam um processo que levou à formação de diversas associações que se
articularam a outras na defesa dos direitos das crianças e que acabaram influenciando a
criação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), de 1990.
O autor também apresenta um breve histórico jurídico em relação à criança no Brasil.
Segundo Passetti, o Código brasileiro de 1820 isentava da criminalidade os menores de 14
anos, quando não era provado o discernimento do fato, recolhendo-os às casas de correção
até completarem 17 anos. No Código de 1890, ficavam estabelecidas as fases da infância que
marcavam o sujeito no ato da infração penal – os de idade inferior a 9 anos eram
considerados inimputáveis; aqueles cujas idades estavam entre 9 e 17 anos eram recolhidos
quando apresentavam discernimento; e os que estavam entre 14 e 21 anos, pelo fato de ainda
não terem chegado à maoiridade, eram beneficiados com atenuantes. Esse código somente
foi alterado com a lei 4242 de 5/1/1921 que prescreveu a imputabilidade até 14 anos,
9 Ibid., p. 224 - 225. 10 PASSETTI, Edson. O menor no Brasil republicano. In: PRIORE, Mary Del (org). História das crianças no Brasil. São Paulo : Contexto, 1991. p. 148.
10
processo especial para os que estavam na faixa de 14 a 18 anos e manteve os atenuantes para
os de 18 a 21 anos. Em 7/12//1940, com decreto lei 2848 é que foi fixada a idade de 18 anos
como marco que separa a menoridade da responsabilidade penal.
No plano do direito constitucional, somente a partir da Constituição de 1934 surge a
proibição do trabalho de menores de 14 anos que não tivessem permissão judicial e ao
trabalho noturno antes dos 16 anos – e nas indústrias insalubres, aos menores de 18 anos. A
Constituição de 1946, por sua vez, manteve as proibições, ampliando para 18 anos a idade de
aptidão para o trabalho noturno. A Emenda Constitucional nº 1, de 1969, vem proibir, no
governo militar, o trabalho aos menores de 12 anos e trás a obrigatoriedade do ensino
primário público àqueles entre 7 e 14 anos. Por fim, na Constituição de 1988, a idade mínima
para o trabalho é aos 14 anos com garantias trabalhistas e previdenciárias, igualdade na
relação processual e, quando necessária, brevidade para o cerceamento à liberdade.
Passetti menciona, também, a Política Nacional do Bem-Estar do Menor, introduzida
através da lei 4.513 de 1/12/164, a qual é apresentada em setembro de 1965, nove meses
após a criação da Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor – FUNABEM. A lei invoca a
participação da comunidade para que junto ao governo participem da “tarefa urgente” de
procurar soluções para o problema do menor no Brasil.
No Brasil, porém, há problemas peculiares de ordem social que perpassam pela
questão da infância e da adolescência. Nesse sentido, no artigo: “crianças negras” e
“Crianças Problemas” no pensamento de Nina Rodrigues e Artur Ramos” , Martha Abreu
atenta para outros componentes da questão. A autora faz um estudo sobre as ideologias
racistas presentes no país e, para isto utiliza, como exemplo, Nina Rodrigues – um autor do
final do século XIX e início do XX ; e Artur Ramos, autor influente na década de 1930. Em
seu artigo, Marta Abreu define bem, no parágrafo a seguir, o pensamento de Nina Rodrigues,
amplamente aceito na época e cujos resquícios são combatidos até hoje:
“Citando autoridades internacionais, Nina Rodrigues pondera que as crianças representantes das
“raças inferiores” seriam tão aptas ao aprendizado quanto a das “raças superiores”. Mas, a partir
dos 12 anos, aproximadamente, as primeiras interrompiam seu desenvolvimento, enquanto as últimas,
herdando de seus antepassados uma organização “mais avançada”, alcançariam os “estágios
superiores”.11
Assim, Marta mostra que Nina Rodrigues, pré-condenava jovens “negros e mestiços”
a partir do seguinte argumento: se nas “raças superiores” o “verniz de civilização” era
11ABREU. Martha. “Crianças negras” e “crianças problemas” no pensamento de Nina Rodrigues e Artur Ramos. In: RIZZINI, Irma (org). Crianças desvalidas, indígenas e negras no Brasil : Cenas da colônia, do império e da república. Rio de Janeiro : Santa Úrsula, 2000. p. 128.
11
“frágil” no período da puberdade, ele ficaria “reduzido a nada” entre os
”mestiços” na mesma fase.
A autora mostra que, da mesma forma, a crença sobre o poder da hereditariedade para
definir os criminosos, marca do pensamento da época, não vinha apenas associada aos
descendentes de “negros e mestiços”. Os males hereditários do alcoolismo, da sífilis ou da
loucura, por exemplo, eram vistos como estando presentes em meios de miséria social, onde
reinaria a decadência dos costumes, os vícios e o desleixo das famílias, que deixavam os seus
filhos crescerem na ociosidade e sem educação. Todas estas idéias numa articulada
combinação entre natureza tropical, biologia, meio social e moral estavam presentes e
generalizadas no meio intelectual, médico e jurídico da época.
Nesse contexto, Marta Abreu menciona um trabalho da pesquisadora Adriana de
Resende B. Viana12, no qual ela analisa o tema polícia e menoridade no Rio de Janeiro, entre
1910-1920. Neste estudo, a autora conseguiu evidenciar que quando da detenção de menores
pela polícia, a “cor” apontada pela documentação poderia ser um elemento importante na
escolha do destino a ser dado ao “menor”. Os que eram encaminhados à Colônia Correcional
de Dois Rios, na Ilha Grande – a maior parte formada por não-brancos – pareciam ter um
destino mais negativo, pois a instituição caracterizava-se fortemente pelo seu caráter
punitivo. Assim, a autora afirma que os preconceitos raciais e sociais do seleto grupo de
médicos e juristas, especialmente o racismo, pareciam penetrar no cotidiano da ação policial,
em suas prisões e encaminhamentos.
A este pensamento, Marta Abreu contrapõe o de Artur Ramos que, nos anos 1930,
afirmava que o melhor caminho para a correção e superação seria o esclarecimento dos pais
e professores em relação aos motivos das delinqüências infanto-juvenis, que eram
independentes de “cor” e, em geral, ligados a uma privação material e afetiva. Na educação,
residiria a solução para o problema.
Ao final do artigo, porém, a autora afirma que:
“A ironia desta história é que Artur Ramos, um dos maiores estudiosos da “cultura negra” e um dos
maiores críticos do pensamento racista, contribuiu para afastar a reflexão sobre as possíveis
especificidades, em termos de preconceitos, que foram impostas à vida e à educação da criança
“negra”.13
12 VIVIANA, Adriana de Resende B. O mal que se adivinha: polícia e menoridade no Rio de Janeiro. In: ABREU. Martha. “Crianças negras” e “crianças problemas” no pensamento de Nina Rodrigues e Artur Ramos. In: RIZZINI, Irma (org). Crianças desvalidas, indígenas e negras no Brasil : Cenas da colônia, do império e da república. Rio de Janeiro : Santa Úrsula, 2000. 13 Ibid., p. 139.
12
A questão da infância e da adolescência é extremante complexa e ainda há muito a
ser feito para que se possa considerá-la solucionada. Ao menos hoje, o problema já não é
mais reconhecer a importância das políticas públicas, mas sim a forma que estas ações irão
tomar. O problema da criança e do adolescente envolvidos na criminalidade é, talvez, o ramo
mais urgente da questão, pois implica na solução imediata de muitos problemas, inclusive o
da violência, o qual é hoje sentido por todas as classes sociais.
No Paraná, legisla-se sobre o tema desde 1857 – quando uma lei que tratava do
ensino autorizou o governo a criar, para ambos os sexos, asilos de indigentes ou mistos. Já
nesta época, o governo paranaense e os legisladores associavam o trabalho à educação.
Assim, no estado, acompanhou-se as mudanças na legislação brasileira, tentando enquadrar-
se nos ideais que vêem se aprimorando através do reconhecimento de equívocos; porém,
sempre esbarrando, estas ações públicas, na permanência de conceitos ultrapassados, através
do componente humano, que é sempre resistente a mudanças.
O interesse inicial em trabalhar com o tema das crianças e menores em conflito com a
lei em Curitiba foi despertado em mim pelo fato de estar, há aproximadamente um ano,
trabalhando em uma unidade de abrigamento de menores infratores.
Quando se está em contato direto com esta realidade há uma tendência, observada na
maioria das pessoas que exercem funções que exigem esse contato, em julgar a delinqüência
a partir dos valores ditados pelo senso comum. Uma vez que se tenta abstrair estes valores e
olhar para o problema de uma forma mais técnica e imparcial, percebe-se a sua gravidade e a
sua complexidade. A partir do reconhecimento dessa complexidade, acredito ser de grande
importância conhecer, na prática, o tratamento dispensado aos menores abrigados nesta
instituição que, atualmente, é conhecida pelo nome de Centro de Socioeducação (CENSE)
Curitiba – uma das unidades de atendimento a menores infratores que fazem parte do
IASP/Instituto de Ação Social do Paraná.
Este trabalho se produzirá através da análise de fontes inéditas que compõem
processos de internação e acompanhamento de menores no CENSE. Estas fontes constituem
três processos - representativos de cada uma das três fases atravessadas pela instituição,
desde a sua criação – colhidos por mim no arquivo morto da unidade, o qual fica no mesmo
espaço físico, em uma sala a ele reservada. Estes documentos representam o histórico de
cada menor que passa pela instituição. Neles verificam-se perfis sociais básicos dos internos
e os motivos que os levaram ao internamento. Também se encontram, anexados aos
processos, os pedidos de encaminhamentos do menor, permitindo assim analisar a trajetória
do menor durante todo o processo. Dois dos casos analisados, trazem relatórios produzidos
13
por funcionários da unidade, nos quais se faz uma análise do comportamento do menor
durante o internamento. Os processos se encontram arquivados em grupos de
aproximadamente 20 unidades, armazenados em caixas de papelão, próprias para arquivos,
as quais se dividem pelo ano de entrada do menor na instituição. Geralmente, a primeira
folha dos relatórios se constitui numa ficha, na qual são preenchidos dados básicos dos
menores, no momento da chegada dos mesmos à unidade. Nota-se que estas fichas sofreram
mudanças com o decorrer dos anos. Entretanto, pode-se afirmar que nelas sempre se
encontram informações básicas como: nome; idade; filiação; endereço; características físicas
e tipo de delito.
Acredito que, analisar detalhadamente estes casos, seja sim um modo de dar uma
pequena e humilde contribuição ao entendimento deste processo social. Assim caracterizo o
meu objetivo que é de, através da observação destes históricos, analisar a trajetória dos
menores, desde a chegada, até o momento em que se desligam da instituição. Acredito que
esta análise seja útil para perceber o tipo de trato dado ao problema. Conseqüentemente, será
ainda possível obter uma melhor visão sobre a questão de ter, ou não, a unidade, ao longo de
sua história, atingido seus objetivos ou, em outras palavras, apontar se a instituição
conseguiu ressocializar os menores, que por ela foram atendidos.
O trabalho está, então, dividido em três capítulos aos quais se soma a conclusão. O
primeiro trata da instituição em si, apresentando um histórico das instituições para menores,
no Brasil e do CENSE. A aquisição destas informações foram difícil, pois a unidade
praticamente não tem registros das mudanças ocorridas na unidade e a sede da secretaria
(IASP) dificulta bastante o acesso.
O segundo capítulo trata dos internos da instituição. Neste capítulo, exploro as
informações pessoais encontradas nos três casos selecionados, as quais permitem uma
análise mais específica do perfil social destes menores. Faço uso também de um banco de
dados que produzi com as informações constantes nas fichas de recebimento dos menores de
todos os processos que deram entrada na unidade no ano de 1976, localizados no arquivo
morto. O ano de 1976 marcou a data em que a unidade começou a funcionar no endereço em
que se localiza até hoje.
No terceiro capítulo, o foco de atenção é a trajetória seguida pelos menores desde a
sua entrada na instituição até o seu desligamento.
14
A Instituição
O conceito de adolescência em situação de risco social e penal – que engloba os
adolescentes abandonados, desvalidos e infratores – está associado à construção de um
discurso nacional de representação específica da criança no Brasil; acompanhando as
mudanças na forma de ver e lidar com este conceito, tem-se um acervo de políticas sociais e
de regulamentações jurídicas.
Já no Brasil Colônia, as crianças abandonadas nas ruas, recém nascidas e expostas,
motivaram o surgimento das primeiras instituições preocupadas com a infância. A partir de
então, temos a construção de políticas de atenção às crianças desvalidas, que copiaram o
modelo português (e europeu) de assistência, com reforço das Santa Casas de Misericórdia.14
Esta preocupação, a partir do início do século XX, configura-se em duas formas de
atuação, de acordo com a idade do menor. Uma estrutura de apoio assistencial é oferecida às
crianças; enquanto aos adolescentes infratores é destina uma legislação punitiva, uma
estrutura correcional, pois a adolescência ainda não existia historicamente. Assim, às
crianças era destinado o tratamento caridoso, dado por instituições ligadas, em sua maioria, à
Igreja Católica. Então, com a República, esse modelo foi questionado pela filantropia, que
propôs uma assistência científica, porém esta se identificou mais com as propostas de
correção, enquanto que a caridade enveredou exclusivamente para as obras preventivas.
Nesse contexto, uma nova ordem legal iniciou a distinção entre o adolescente e o adulto;
surgiram as primeiras instituições estatais para menores infratores e abandonados.
Assim, pode-se dizer que é com a República que se criam as primeiras instituições
em que as atividades eram menos para melhorar as chances de igualdade do adolescente e
mais como antídoto à ociosidade e à criminalidade. A partir de então o adolescente infrator
brasileiro ganha o epíteto de menor delinqüente ou simplesmente menor. O termo menor,
então, foi incorporado pela sociedade e consagrado pelas ciências sócias e jurídicas com a
significação de menino pobre, desarranjado da família, desviado e potencialmente bandido.
O melhor remédio para esses menores seria uma escola que os reformasse, incutisse o gosto
pelo trabalho e disciplina moral, ou seja, um lugar para uma terapia recuperadora, antes que
se tornassem adultos incorrigíveis.
14 COLOMBO, Irineu. Adolescência infratora paranaense: história, perfil e prática discursiva. Brasília : UNB. 2006.
15
No Brasil, a diferença entre adolescente infrator e adolescente pobre ou abandonado
passou a ser considerada somente a partir da segunda metade do século XX, quando se
deixou de confundir e tratar o pobre como infrator. Isso se dará na medida da ampliação do
reconhecimento histórico da adolescência, na descoberta da singularidade jurídica do infrator
e da importância com a qual ele será tratado pela estrutura estatal.
No início do século XX, o Estado do Paraná se adiantou às outras regiões mais
urbanizadas do país e, em 1909, a legislação do Estado previu a criação da colônia infantil e
do Juizado de Menores; porém, tal colônia e juizado somente foram efetivamente criados em
1925.
Seguindo o Código Penal vigente, os delitos cometidos por crianças e adolescentes no
Paraná, no início do século XX, eram analisados e julgados a luz do Código Penal: ao aplicar
a pena, cabia ao juiz observar a capacidade de discernimento do menor em relação à infração
cometida. Menores de 9 eram inimputáveis e os delinqüentes de idade entre 9 e 14 anos,
julgados pelo juiz como tendo agido com discernimento, seriam detidos e encaminhados para
uma instituição reformadora. Porém, de acordo com as regras legais, esse apenamento
deveria acontecer em ambiente próprio para a sua recuperação. No Paraná, ainda não havia
um disciplinatório, fato que levou o Desembargador Manoel Cavalcante Filho, Chefe de
Polícia, em Relatório ao Secretário de Estado dos Negócios do Interior, Justiça e Instrução
Pública, a recomendar em 1913, a criação de um Disciplinário Industrial para Menores.
Segundo o desembargador, a Justiça encontrava-se impotente, pela falta de estabelecimento
próprio para reclusão dos menores delinqüentes.15
O Ministério da Agricultura, em 1918, estimula a criação de Patronatos Agrícolas.
Estes eram instituições nas quais se punha em prática a idéia da transmissão da educação e
disciplina, através do ensinamento e prática do trabalho rural. Estes locais, criados anexos a
fazendas modelo, foram destinados aos filhos de famílias pobres e às crianças abandonadas;
ao mesmo tempo em que serviam para a “correção”, com um caráter humanizante, de
adolescentes infratores.
Em 1919, é criado o Departamento Nacional da Criança. Através dele, os menores
pobres, abandonados ou delinqüentes passam a ser tutelados pelo Estado, que os tira da rua
15 PARANÁ. Relatório do Desembargador Manoel B. Vieira Cavalcanti Filho, Apresentado ao Exmo. Dr. Marins Alves de Camargo, Secretário de Estado dos Negócios do Interior, Justiça e Instrução Pública. Curitiba: A República, 1913b. In: COLOMBO, Irineu. Adolescência infratora paranaense: história, perfil e prática discursiva. Brasília : UNB. 2006
16
ou de seus familiares, para colocá-los em reformatórios, ao invés de prisões. Dessa forma, as
condições materiais e morais vão definir as crianças que passam a ser então filhos do estado.
Esta nova proposta de como lidar com a questão do menor chega ao Paraná e, no
mesmo ano de 1919, é criado no Estado o Instituto Disciplinar, junto ao campo de
experiência agrícola do Bacacheri; pertencente à recém criada Escola Agronômica do
Paraná.
Assim, estavam sendo seguidos os conceitos sociopedagógicos produzidos por
desembargadores que, cumprindo a tarefa de aplicar a reclusão aos infratores, enfatizavam a
necessidade de ambiente apropriado, com uma abordagem educacional, de instrução
industrial ou agrícola; utilizando, então, a ação “educativa e regeneradora” que este tipo de
instrução produz. Na visão de Irineu Colombo, percebe-se aqui não uma preocupação não
com a criação de escolas nos moldes da retórica republicana, mas sim com o objetivo de um
adestramento para que aqueles menores se tornassem mão-de-obra nos ofícios reservados aos
pobres, ou seja, preparavam-se os menores para serem operários ou peões na agropecuária.
“Nesta superposição de abordagem policial, jurídica, assistencial e educacional, na prática, passou
a predominar aquela que eliminava as crianças das ruas e punia os adolescentes infratores, ou seja,
a abordagem policial (...) Está claro o objetivo do governo desde então, de colocar a pobreza num
lugar específico e discipliná-la pelo trabalho”16
Em 1923, no Distrito Federal, foi criado o primeiro Juizado de Menores, para o qual
o Dr. Dr. José Cândido Albuquerque Mello Mattos consagra-se como o primeiro Juiz de
Menores. Ele foi o redator do Código de Menores, além de ter sido muito influente na sua
elaboração; motivo pelo qual este documento passou a ser conhecido como Código Mello
Mattos.
Em 1924, aprovou-se por decreto o Conselho de Assistência e Proteção dos Menores,
que mais tarde faria parte do Capítulo V, da parte especial, do Código de Menores. É a
primeira vez que um texto jurídico, no Brasil, cita o termo adolescência. A historiografia
registra este fato como decorrente do surgimento do adolescente, neste momento, com
importância histórica e da preocupação dos juristas e do governo em disciplina-lo.
Pode-se dizer, então, que a década de 1920 marca o início da judicialização do
adolescente no Brasil. Esta demarcação é reconhecida pela ocorrência de três fatos.
Primeiramente, o surgimento da primeira declaração dos direitos da criança (a Declaração de
16 Ibid., p. 79.
17
Genebra, em 1923). Depois a criação do Juízo Privativo dos Menores Abandonados e
Delinqüentes, em 1924 e a promulgação do primeiro Código de Menores, em 1927.
Em Curitiba, o primeiro Juizado Privativo de Menores foi instalado na esquina da
Rua Marechal Floriano Peixoto com a Avenida Sete de Setembro. Criado em 1925, passou a
atender somente a partir de 1926. Este foi o Terceiro Tribunal de Menores implantado no
Brasil, antecipando-se a regiões com processo de urbanização até mais adiantado. De acordo
com os preceitos sóciopedagógicos vigentes, pretendia-se regenerar os adolescentes pelo
trabalho educativo – neste local, em particular, pelo trabalho industrial. Assim, em 1926, por
determinação do Juiz de Menores, foi criada a Escola de Reforma e Preservação Masculina
do Juizado a qual teve, em 1927, instaladas suas oficinas de alfaiataria, sapataria e ferraria.
Em 1928, seus ocupantes são transferidos para o Instituto Disciplinar junto ao Campo
Experimental do Bacacheri. Neste ano, o conjunto formado pela Colônia Infantil, mais o
Patronato Agrícola, mais o instituto Disciplinar e as crianças e adolescentes vindas da Escola
de Reforma e Preservação de Curitiba, passa a se chamar Escola de Trabalhadores Rurais
Carlos Cavalcanti. Desta, sairão os adolescentes abandonados, vadios e infratores para
constituir, mais ao norte, na Granja do Canguiri, a Escola de Reforma. Esta também
receberá, mais tarde, os adolescentes da instituição conhecida Ilha das Cobras. Esta, instalada
na ilha de mesmo nome, localizada no litoral paranaense, no Município de Paranaguá, em
1936, recebia menores infratores e abandonados de todo o Paraná, enviados pelo judiciário.
Em 1955, porém, a instituição foi desativada devido a denúncias de maus tratos aos menores.
Por influência do Código de Menores, em 1927, no Paraná, nasce a Escola de
Reforma do Canguiri. Propunha-se também a regenerar os infratores através do trabalho
educativo; predominando, neste caso, a atividade agrícola.
No Paraná, na maioria dos casos, optou-se pelo trabalho educativo rural como fator
regenerador. Prova disto é fato de que, somente no mandato do governador Manoel Ribas,
foram construídas dez escolas rurais. A primeira delas, instalada na Granja do Canguiri em
1933, recebeu os adolescentes da Escola de Trabalhadores Rurais Carlos Cavalcanti (Campo
Experimental do Bacacheri).
Após a Revolução de 1930, Getúlio Vargas, os olhos do Estado se voltaram para o
urbano e com isso os interesses dos industriais se aproximaram aos do Estado; demandando,
assim, a cooptação de operários. Nesse contexto, os industriais passaram a pressionar o
governo no sentido de agir para promover mudanças na Constituição e no Código de
Menores com o objetivo de permitir que crianças menores de 14 anos trabalhassem.
18
“Querem mão-de-obra com capacidade de se adaptar às novas tecnologias de produção, de forma
rápida e prática, sem precisar passar pela escola.”.17
Este apoio do governo aos interesses dos empresários resultará na criação do SENAI
(Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial), em 1942 e no SENAC (Serviço Nacional de
Aprendizagem Comercial) em 1946.
O governo Vargas procurou distribuir a força estatal por todo o território nacional,
homogeneizando o poder; movimento este que permitiu pensar em sistemas articulados de
ações públicas nos vários segmentos da administração como segurança, industrialização,
política trabalhistas e sindicais, entre outros.
Neste contexto, o Serviço de Assistência ao Menor (SAM) foi o órgão criado para
tentar uniformizar o serviço assistencial ao menor em todo o país. Entretanto, através da
atuação do SAM, o governo se dedicou mais ao controle da ordem social e menos à
assistência. O SAM estava vinculado ao Ministério da Justiça e aos Juizados de Menores,
com a incumbência de fiscalizar educandários, buscar menores para fins de internação,
proceder a exames medico-psico-pedagógicos e estudar a questão do menor.
A partir de 1944, o SAM adquire caráter nacional mantendo contrato com instituições
privadas, fazendo triagem, sistematizando e orientando os serviços de assistência e
internação aos desvalidos e infratores.
A falta de locais adequados para abrigar os menores infratores em muitos municípios,
transformou em prática cotidiana da justiça e da polícia a detenção dos menores em
delegacias, prisões junto dos adultos ou mesmo a colocação de sentenciados em liberdade.
Através da Constituição de 1937, foram dadas garantias especiais ao processo de
educação da criança e da juventude; porém, as práticas institucionais de atendimento a este
público eram voltadas ao trabalho, desde a criação destas instituições, no início da república.
Nesse momento, observava-se um contrataste que gerava conflitos e contradições: ao
passo que juizes comemoravam as ações do governo Vargas, na linha de pensamento do
Código Mello Mattos, tentando sobrepor a educação e a correção à punição de adolescentes;
observava-se, de outro lado, a postura de organismos nacionais encaminhando menores de 18
anos sem autorização judicial. Dificultando o trabalho dos magistrados, o SAM passou a
ficar subordinado diretamente ao Ministério da Justiça, ficando, os juízes de menores, sem
um órgão efetivo para administrar, executar e fiscalizar suas sentenças.
17 id.ibid., p. 62
19
Com o fim da Segunda Guerra Mundial, ocorreram vários debates, em países como
França, Alemanha e Estados Unidos, sobre o atendimento à infância e várias teses foram
discutidas; fator este que o que influenciou o aparecimento, junto ao trabalho do judiciário,
da figura do assistente social e, posteriormente, a do psicólogo. 18
No Brasil, como reflexo destes debates, ocorreram várias tentativas de reformulação
do Código de 1927, porém todas elas fracassaram, pois os conflitos políticos internos,
acirrados pela conjuntura internacional da Guerra Fria, não possibilitavam o consenso.
A partir de 1950, a atuação do SAM passou a receber fortes críticas da imprensa. A
rede, formada por instituições oficiais e particulares, articulada por ele, foi acusada de maus
tratos aos internos, que incluíam castigos corporais, alimentação inadequada, ociosidade,
superlotação, falta de higiene e violência sexual.
Assim, em 1964, o SAM foi extinto e, em substituição, foi criada, então, a Fundação
Nacional do Bem-Estar do Menor (FUNABEM). Caberia a ela formular e implantar a
política nacional do menor, com estudos, planejamento, orientação, coordenação e
fiscalização das entidades.
Com o golpe militar, criou-se no país um complexo sócio-industrial aliando o Estado
ao capital multinacional. Nesse contexto, a criação da FUNABEM revigorou o controle
social, em nome da segurança. A instituição criou a Política do Bem-Estar do Menor,
fazendo a articulação entre o estatal e o privado e mobilizando uma parcela da sociedade
para esse fim com articulações regionais; através das Fundações Estaduais de Bem-Estar do
Menor (FEBEMs). Retoma-se a idéia de sistemas fechados, mas de cunho autoritário, com o
desenvolvimento de saberes e práticas a partir da unidade modelo situada no Rio de Janeiro.
Assim, as instituições de abrigamento de menores foram repassadas pelo governo
federal aos estados com a denominação de FEBEMs. Entretanto, o Paraná não teve uma
unidade com esse nome, pois a Escola para Menores Professor Queiroz Filho estava em
construção pelo governo do estado e seria mantida por ele, observando as diretrizes
nacionais. Entre estas, estava a triagem, que vinha sendo feita em Curitiba e Londrina, e,
também, a orientação para a separação entre meninos e meninas e entre abandonados e
infratores. A unidade Queiroz Filho atenderia somente meninos infratores. A triagem seria
feita pelo Instituto de Assistência ao Menor (IAM). Tratarei deste mais adiante.
18 MORELLI, Ailton José. A inimputabilidade e a impunidade em São Paulo. In: Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 19, n. 37, p. 125-156, 1999.
20
“A intensa ocupação do território paranaense, a metropolização de Curitiba e o acirramento dos
conflitos sociais no estado determinaram o aumento da estrutura e especialização policial adotada
pelo governo do Paraná, entre 1950 e 1970. Isso antecipou as ações no estado em relação ao restante
do país. A construção de uma nova unidade de internamento de infratores acompanhou as mudanças
de ordem demográfica, mais intensas no Paraná que em outros estados. Em outras Unidades da
Federação a adaptação a esta nova política nacional acarretou o surgimento das famosas unidades
da FEBEM, enquanto no Paraná uma unidade com as mesmas características já estava em
construção. Por isso chamou-se Escola para Menores Professor Queiroz Filho e não de Unidade da
FEBEM.” 19
Após a Declaração Universal dos Direitos da Criança, em 1979, é elaborado o
segundo Código de Menores. A necessidade de reformulação da legislação - que era baseada
no Código Mello Mattos de 1927 – era discutida desde o final da década de 1960.
Na década de 1980, vários movimentos organizados passaram a exigir mudanças no
ordenamento jurídico, policial e social de atendimento à infância. Entre estas organizações se
encontravam o Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua (MNMMR) e a Pastoral
do Menor. Todos estes movimentos visavam a combater a violação dos direitos da criança,
frequentemente cometida pela polícia e FEBEMs mantidas pelo governo.20 A pressão que
estes movimentos promoveram levou à aprovação de uma emenda popular à Constituição de
1988, na forma do artigo 277, garantindo direitos à criança e ao adolescente.
Finalmente, em 1990, foi aprovado o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
Em conseqüência, a FUNABEM – de tantos erros e tão poucos acertos - foi extinta. As
políticas assistenciais passaram a ser direcionadas ao atendimento de toda criança que delas
necessitasse. Sentia-se que a criança passava de objeto a sujeito do Direito.21 O ECA fez
desaparecer o termo “menor” e, em seu lugar, colocou os termos “criança” e “adolescente”;
considerando-os como sujeitos de direito, como cidadãos, e propugnando a doutrina da
proteção integral
Apesar da euforia com que o ECA foi recebido, as políticas públicas para a infância
continuaram a ser feitas de forma descontínua, pontual e sem eficiência. Observa-se, então, o
19 COLOMBO, Irineu. Adolescência infratora paranaense: história, perfil e prática discursiva. Brasília : UNB. 2006. p. 68. 20
MARCÍLIO, Maria Luiza. História social da criança abandonada. São Paulo: Hucitec, 1998. In: COLOMBO, Irineu. Adolescência infratora paranaense: história, perfil e prática discursiva. Brasília : UNB. 2006. 21 Ibid., p. 73.
21
início de uma municipalização dos atendimentos, fazendo com que no Paraná surjam outras
instituições para cuidar dos infratores, além da Queiroz Filho.
O Instituto de Assistência ao Menor (IAM), citado acima, foi criado, no Paraná, em
16 de julho de 1962, pela Lei n° 4.167 e regulamentado mais tarde pelo Decreto n° 17.954,
de 27 de abril de 1965. Tratava-se de uma autarquia e de um órgão relevante da Secretaria de
Saúde Bem-Estar Social do Estado do Paraná.
“Era [o IAM] uma entidade autárquica estadual, com personalidade jurídica dotada de autonomia
administrativa e financeira, para cuidar de menores em situação irregular (abandonados, carentes,
delinqüentes), em suas unidades do interior e da capital, após triagem nos Centros de Estudos,
Diagnóstico e Indicação de Tratamento (CEDIT), localizados em Curitiba e Londrina.”22
A sede do IAM-PR ficava em Curitiba, existindo, paralelamente, cerca de 20
escritórios regionais, distribuídos em todo o Estado. As atividades desenvolvidas pelo IAM
seguiam os princípios definidos nas Diretrizes da Política de Bem-Estar do Menor no Estado
do Paraná, aprovadas em 13 de julho de 1984, consubstanciadas nas cinco grandes diretrizes:
internamento, como medida de último recurso; melhoria da qualidade dos serviços;
participação comunitária; educação emancipadora; utilização de recursos e equipamentos
públicos e comunitários existentes – operacionalizadas mediante dois programas:
“Assistência e Proteção ao Menor Órfão Abandonado e Infrator” e “Municipalização dos
Serviços de Bem-Estar do Menor”. 23
O ano de 1976, então, marca a criação do Centro de Estudo, Diagnóstico e Indicação
de Tratamento (CEDIT) – já no endereço onde, hoje, encontra-se o Centro de Socioeducação
(CENSE) Curitiba; cujo arquivo utilizei para a realização deste trabalho. O CEDIT atendia a
crianças e adolescentes carentes, órfãos e abandonados, apreendidos pela polícia por estarem
perambulando nas ruas, ou, também, aos que eram levados pelas próprias famílias. A unidade
atendia inclusive a bebês, os quais eram, muitas vezes, encaminhados à adoção. Os menores
acolhidos pela instituição permaneciam em estudo pelo período de 90 dias; posteriormente,
recebiam um encaminhamento, mediante aprovação judicial, o qual podia se dar para
internatos, semi-internatos, repúblicas, trabalho, creches, escolas, hospitais psiquiátricos,
22 Ibid., p. 104. 23 PAULA, Vera Cecília Abagge de. Diretrizes para uma política de bem-estar do menor: a experiência do Estado do Paraná antes da regulamentação do Estatuto da Criança e do Adolescente. Curitiba : Revista da Faculdade de Direto da UFPR. http://calvados.c3sl.ufpr.br/ojs2/index.php/direito/article/view/1747/1444 (27/09/07).
22
escolas especiais, etc. Inicialmente, o CEDIT era composto por apenas uma ala, sendo, esta,
feminina; somente em janeiro de 1979, é criada, então, a ala masculina.24
No mesmo endereço, em 1982, é criada a Unidade de Triagem do Infrator (UTI), que
funcionava junto à Delegacia de Proteção ao Menor e que atendia a todos os menores que
eram levados pela polícia, permanecendo (a UTI) com os infratores, até que fossem feitos
os estudos de caso e encaminhamentos. Já em 1987, o UTI passa a se chamar SETREM -
Serviço de Recepção e Triagem de Menores de Curitiba.
Na prática, havia um programa que separava o infrator dos demais adolescentes,
conforme preconizava a lei. Tanto o CEDIT como o SETREM faziam a pré-triagem e
triagem para determinar o encaminhamento de cada criança ou adolescente. Na pré-triagem,
quando se tratava de menor infrator ou com participação em infração penal, a equipe fazia o
encaminhamento à autoridade policial. A triagem propriamente dita, funcionava todos os
dias úteis, para emitir laudo e pesquisa de antecedentes dos adolescentes a pedido do Juizado
de Menores.
“O CEDIT estava para as crianças assim como o SETREM estava para os adolescentes, ambos na
lógica da tutela dos menores pelo Estado, sob o manto legislativo do Código de Menores de 1979 e
centralizado nacionalmente pela orientação programática da FUNABEM.”25
No mesmo ano da mudança de UTI para SETREM (1987), o IAM fora extinto e, por
decreto, foi instituída a Fundação de Ação Social do Paraná - FASPAR, nos termos da Lei nº
8.485, de 03 de junho. Tratava-se de uma entidade da administração indireta do Poder
Executivo Estadual, vinculada á Secretaria de Estado do Trabalho e da Ação Social, com
personalidade jurídica de direito privado, patrimônio próprio e autonomia administrativa e
financeira; com a possibilidade de contratar funcionários pelo regime CLT. A FASPAR era
resultado da união do IAM com a Fundação de Promoção Social do Paraná – PROMOPAR.
Esta, também uma entidade criada com o objetivo de executar programas sociais para
necessitados maiores de idade.
Em junho de 1994, pelo decreto nº 959, a FASPAR passa a se chamar Instituto de
Ação Social do Paraná – IASP.
Em 1995, o SETREM é transformado em CIAADI - Centro Integrado de
Atendimento ao Adolescente Infrator – um complexo construído pelo IASP, utilizando o
24 Membro da diretoria de planejamento do Cense, em resposta à entrevista feita por e-mail. 25 COLOMBO, Irineu. Adolescência infratora paranaense: história, perfil e prática discursiva. Brasília : UNB. 2006. p. 110.
23
mesmo espaço físico antes destinado ao CEDIT. O CIAADI é a materialização de um
programa que visa à agilizar o atendimento social do adolescente, ao qual se tenha atribuída
a autoria de um ato infracional. Este complexo é composto pelo Juizado da Infância e da
Juventude; Ministério Público; Defensoria Pública; Delegacia do Adolescente e pelo Serviço
de Atendimento Social (SAS), funcionando, até hoje, num mesmo local. Cabia, então, ao
SAS, que era a Unidade do IASP integrada ao programa, a realização da recepção, triagem e
internação provisória deste adolescente.
Em 2006, através de um decreto que altera o nome de todas as unidades do IASP,
excluindo as que deixaram de existir e incluindo as novas, o CIAADI passa a se chamar
Centro de Sócio Educação (CENSE) Curitiba, que é a denominação vigente. Esta foi a
instituição escolhida para a realização desta pesquisa. Ela faz parte de uma rede complexa de
entidades voltadas ao tratamento do problema dos menores.
24
Os Internos
Antes de iniciar a pesquisa, utilizando os três processos analisados na íntegra, aos
quais tive acesso no arquivo morto da unidade, produzi um pequeno banco de dados com as
informações básicas de todos os processos constantes neste mesmo arquivo, referentes aos
menores que deram entrada na unidade no ano de 1976. Este é ano de início de
funcionamento da unidade; naquele momento, com a denominação CEDIT, mas já no
endereço onde hoje se encontra o CENSE.
Para a produção desse banco de dados, utilizei não os relatórios completos de cada
menor, mas apenas uma ficha de entrada, com dados básicos do adolescente, a qual é
preenchida no ato da recepção do mesmo. Ao analisar estes documentos, nota-se que estas
fichas de entrada sofreram mudanças com o decorrer dos anos, no que se refere ao formato
(de pequeno fichário em branco até as fichas padronizadas) e à forma de preenchimento (de
caneta para preenchimento à máquina). Entretanto, pode-se afirmar que, em geral, nestas
fichas se encontram as informações básicas do menor como: nome; idade; filiação; endereço;
características físicas; o destino tomado ao sair da unidade e o estado físico, ao chegar.
O arquivo é formado por relatórios que se encontram separados em grupos de
aproximadamente 20 processos, armazenados em caixas de papelão, próprias para arquivos,
as quais se dividem pelo ano de entrada do menor na instituição. Os processos estão, em sua
maioria, em folhas A4, porém a ficha de entrada que por mim foi utilizada, possui a metade
deste tamanho e é feita, geralmente, em papel cartolina.
Os processos arquivados estão enumerados pela ordem da chegada dos menores na
instituição. Assim, seguindo essa numeração, verifica-se que o último processo do ano de
1976 tem a numeração 747. Logo, identifica-se que deram entrada na unidade, no ano de
1976, 747 menores. Porém, alguns destes processos se perderam. A numeração muitas vezes
não segue a seqüência ordinal e nem são encontrados, estes processos faltantes, no restante
do arquivo, nas caixas referentes a datas posteriores. Efetivamente, encontram-se neste
arquivo, 517 processos, referentes à entrada de menores na instituição no ano de 1976.
Logicamente, a análise do trabalho é feita com base nestes 517 processos e as conclusões
aqui sugeridas, levam em conta esta defasagem. Porém, como esta defasagem foi aleatória,
ou seja, a falta dos processos extraviados é sentida de forma quase que regular, ao longo de
todo o período e não de forma concentrada, pode-se considerar que os 517 processos
25
representam, praticamente, um total de 70 % dos processos registrados; margem esta que
fornece um bom nível credibilidade às conclusões a que chego nesta pesquisa.
Em uma primeira análise, nota-se que a unidade, no ano de 1976, serviu, em maior
medida, ao abrigamento de meninas, mas não exclusivamente ao delas. Menores do sexo
masculino formam um número que representa aproximadamente 20% do contingente
abrigado pela instituição, no período citado. Esta característica se defronta, então, com a
informação fornecida pela diretoria de planejamento do IASP, segundo a qual o CEDIT,
criado em 1976, permaneceu até 1979 com sua estrutura física formada por apenas uma ala,
sendo esta dedicada apenas ao abrigamento feminino. Logo, conclui-se que, na prática, a
unidade era formada, naquele momento, por um alojamento misto.
Outro ponto que a documentação permite analisar é a procedência destes menores.
Logo no primeiro contato com as fichas, chama a atenção o grande número de menores cuja
procedência é de fora da cidade de Curitiba.
Nesta questão, porém, utilizo não o número total de processos localizados, ou seja,
os 517, mas sim faço uma verificação por amostragem regular ou, em outras palavras,
pegando um processo a cada cinco, de forma que todos os processos tenham a mesma chance
de serem selecionados. Dessa forma, procuro manter a credibilidade da informação
produzida, uma vez que se aceita que o processo de amostragem permite o conhecimento das
informações contidas nos documentos, em uma proporção menor, sem comprometer a
confiabilidade desse conhecimento.
Assim, nessa amostragem, identifiquei que 48% dos menores que deram entrada no
CEDIT, em 1976, vinham de fora de Curitiba. Mesmo sem uma análise mais profunda dos
casos, na qual seria necessário o levantamento dos motivos pelos quais cada menor chega até
esta instituição – tarefa inviável para esta pequeno banco de dados de caráter introdutório a
este estudo – tendemos a imaginar que este número está relacionado com o processo de
êxodo rural; que ocorre com grande força no Paraná, no período em que está inserido este
estudo – a década de 1970; devido à crise do café. Porém, outro dado constante nas fichas
não permite que se faça pecar por precipitação. Estas fichas trazem a informação do destino
Divisão por gênero, dos processos de menores que adentraram à unidade no ano de 1976
Número de processos Porcentagem
Sexo Masculino 113 22%
Sexo Feminino 404 78%
26
dado ao menor, após a saída da instituição. Verificando este campo, percebe-se que, dos 48%
de menores que vêm de fora de Curitiba, 16% são “recambiados” (expressão utilizada nos
documentos) para suas cidades de origem. Assim, percebe-se que estes são menores cujas
famílias, até então, não haviam migrado para a capital.
Um detalhe que pode apontar uma explicação para esses números: desses 16% de
menores recambiados, 100% é formado por meninas, maiores de 14 anos. Sugiro que estes
números podem representar que a instituição, naquele momento, estava respondendo a uma
demanda, por parte do interior do Estado, de uma instituição para “correção” destas menores.
E estas, por sua vez, devem respondem à parâmetros de seleção, exigidos pela unidade, para
serem aceitas. Assim, as maiores de 14 anos constituiriam os casos mais graves, merecendo,
então, o internamento nessa nova unidade.
Fixando o estudo ainda nos 48% do total de processos, número que representa os
menores que vêm de fora de Curitiba, observa-se outro dado importante: destes 48, 6% é
composto de menores que procedem de fora do Estado do Paraná. Nesta condição,
encontram-se menores procedentes dos Estados do Ceará, Bahia, São Paulo, Santa Catarina e
Rio Grande do Sul. São Paulo vem na frente, como o Estado que mandou o maior número
de menores para a unidade: com 4, dos 6% indicados acima. As duas cidades paulistas que
compõem esta marca são: São Paulo (com 3%) e Mauá (1%). Em segundo, vem o Estado do
Rio Grande do Sul que mandou 2%, dos 6 já citados (todos da cidade de Porto Alegre). Em
terceiro, vem o Estado de Santa Catarina, ajudando a compor essa porcentagem com 1% de
Joinville e 1% da cidade de Caçador. Os outros Estados compõem esta estatística com 1%
cada.
Entretanto a grande maioria dos menores que provêm de fora de Curitiba foi
formada mesmo por paranaenses. Eles constituem 42% dos não curitibanos, recolhidos pelo
CEDIT, em 1976. Esta porcentagem está dividida entre as cidades de Arapongas, Cascavel,
Coronel Vivida, Francisco Beltrão, Foz do Iguaçu, Ibaiti, Avaeté, Marialva, Maringá,
Paranavaí, Rolandia, São Luis, Toledo, Diamantina, Guarapuava, Faxinal, Colombo e São
Jose dos Pinhais. Por um motivo aparentemente óbvio (por ser a mais próxima), São José dos
Pinhais aparece liderando esta lista, sendo a cidade que mais contribuiu para a formação
desse contingente de não curitibanos – 6%. Porém, acredito que não se pode aceitar essa
justificativa sem a confirmação através de estudos mais detalhados, pois o fator distância
pode ter sua relevância diminuída, uma vez que se observa que a diferença entre número de
menores provindos de São José dos Pinhais e Porto Alegre é de apenas 4%.
27
A 250 km de Curitiba, Guarapuava foi a segunda cidade na lista das que mais
enviaram menores à unidade, em 1976. Dos 42% de menores vindos de fora da capital, 3%
vieram de Guarapuava. Em seguida, nesta lista, vem a cidade de Faxinal, contribuindo com
2%, nestes 42, citados.
Ainda em relação à procedência, a documentação permite analisar outro ponto da
questão. Fixando o estudo nos casos de menores procedentes da própria capital paranaense,
pode-se apontar os bairros de onde foram mandados menores à unidade, com maior
freqüência. Entretanto, muitas das fichas não vêm preenchidas no campo “Bairro”. Assim, ao
se lançar conclusões sobre a questão, é necessário considerar essa defasagem.
Conforme afirmação feita anteriormente, 52% dos menores recebidos pelo CEDIT,
em 1976, provêm de Curitiba. Porém, a metade destes processos não traz a especificação de
bairro. O que se pode afirmar é que os menores cujos processos informam o endereço de
procedência, dividem-se em moradores dos bairros: Água Verde, Atuba, Boqueirão,
Capanema, Capão Raso, Centro, Cristo Rei, Hugo Langue, Portão, Parado Velho, São Braz,
Santa Cândida, Uberaba, Vila São Pedro, Vila Tinguí e Vilas Oficinas.
O Centro da cidade de Curitiba foi, em 1976, a região que forneceu o maior
contingente de menores ao CEDIT – 20% dos processos de menores curitibanos, cujo
endereço fornecia a especificação de bairro.
Em segundo lugar nesta lista, vem o bairro Água Verde fornecendo 12 % dos
menores curitibanos, com endereço informado nos processos. Em terceiro vêm os bairros
Capanema e Vilas Oficinas com 8% cada. Os outros bairros citados encaminharam menores
à unidade a uma taxa praticamente igual, em torno de 4%, cada.
As fichas possuem ainda um campo denominado “Cútis” ou “Cor da pele”. Tentei,
então, utilizar este dado para fornecer mais elementos à composição do perfil destes
menores. Entretanto, como se sabe, esta matéria é bastante complexa, compreendendo muitas
variantes, devido a sua subjetividade. Este campo, nos documentos, foi preenchido com as
expressões: “branca”, “morena”, “morena clara”, “castanha”, “morena parda”, “morena
escura”, “preta” e “parda” (estas foram as classificações encontradas nos 517 processos
localizados, referentes ao ano de 1976). Ao analisar os documentos, percebe-se que as
expressões são usadas por um tempo e foram sendo substituídas, no decorrer do período de
1976; o que indica alternância dos funcionários da unidade, no exercício da função de coleta
destas informações. Vale dizer que as mudanças se dão apenas nas expressões utilizadas para
designar a pele escura. A expressão “branca”, para determinação da pele clara, não sofre
nenhuma mudança durante todo o período.
28
Fazendo uma análise lógica, conclui-se que a determinação do ítem - cor de pele
dos menores - poderia ser feita de duas formas: através da avaliação feita pelo funcionário ou
pelo registro da condição na qual o menor se declarava. Devido ao fato de que muitos eram
menores de 8 anos, provavelmente o primeiro procedimento fosse adotado como padrão.
Dessa forma, faço aqui um levantamento de dados, levando em conta as
informações como aparecem nos documentos. Dos processos analisados por amostragem,
76% vêm preenchidos, no campo destinado à cor da pele, com a expressão “branca”. O
restante das fichas está divido entre outras expressões da seguinte forma: 21% são
classificados como “morena”; 1% “morena-escura”; 1% como “morena parda” e 2%
classificados com a expressão “preta”.
Na coleta inicial de dados, feita nas fichas, anotava-se a escolaridade dos menores.
Muitas fichas, entretanto, não mencionavam esta escolaridade. Desconsiderando os casos de
menores sem a idade para alfabetização, deve-se atentar para a possibilidade de uma
porcentagem desse número de casos cuja a escolaridade não foi mencionada ser formada por
analfabetos.
Em dois por cento dos processos, os menores vêm classificados como analfabetos.
Um por cento, traz a expressão “alfabetizado”. Entretanto, 19% dos processos são de
menores em idade escolar, mas cujos campos “escolaridade” não foram preenchidos.
Dois por cento das fichas, vêm com o item “escolaridade” indicado como
“supletivo”. Estes 2%, são formados por meninas a partir de 11 anos de idade.
Nas fichas, era anotado, também, o destino do menor, ao sair da unidade. A
entrega do menor a um maior de idade, que o fosse buscar na unidade, recebia as seguintes
classificações: “Entregue ao genitor”; “Entregue à família” ou “Entregue ao responsável”. A
instituição usava também a expressão “desligado”, a qual podemos considerar tratar-se
também de um procedimento de entrega ao responsável, uma vez que encontram-se
processos de menores de 5 anos preenchidos com esta expressão. Assim, mesmo somando-se
estas quatro classificações, observa-se que apenas 36% dos menores que deram entrada na
unidade no período estudado, foram buscados por algum tipo de responsável.
Como já foi dito, o ano estudado é o primeiro ano de funcionamento da unidade.
Talvez esse caráter incipiente justifique que 11% dos menores, que deram entrada no
período, evadiram-se da unidade. Entretanto, este é um dado que pode revelar a falência da
instituição, desde a sua fase inicial; uma vez que se entenda que, sendo ela uma instituição
voltada ao menor, deveria fazer parte de seu ideal de existência, ser capaz de, além de dar a
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formação, profissionalização e educação, suprir, este público particular, de todas suas
necessidades fisiológicas e emocionais.
O primeiro relatório que analiso na íntegra, entretanto, diz respeito a um menor
cuja entrada na instituição se deu 12 anos após o início de seu funcionamento. O menor, para
o qual adoto aqui a denominação M. S., foi recolhido pela instituição em 08/06/1988; um ano
após a mudança de nome do Instituto de Assistência ao Menor (IAM) para Fundação de
Ação Social do Paraná (FASPAR) – conforme cito no capitulo anterior. Nesse momento, já
se percebe um avanço em termos padronização dos relatórios, em comparação ao primeiro
ano de funcionamento. Os processos vêm em papel timbrado, com o brasão do Estado do
Paraná, com as indicações da Secretaria do Estado e da Ação Social e o nome da entidade:
Fundação de Ação Social do Paraná.
Em 1988, então, os processos possuíam uma folha de rosto padronizada,
preenchida a máquina, na qual se propunha montar o perfil social básico do menor. O menor
M. S., então, ao ser recolhido, apresentava as seguintes características: oito anos de idade;
sexo masculino; com domicílio no município de Quatro Barras, na cidade Curitiba-Pr. Neste
item, as especificações de endereço (bairro, rua e número) não foram preenchidas.
Esta folha de rosto apresenta um campo denominado “quadro familiar”,
padronizado, no qual se enumeram todos os familiares que viviam com o menor, relatando
qual o vínculo familiar daqueles com o mesmo. Seguindo uma “ordem de gênero” listava-se
primeiro o pai, depois a mãe; logo após, vinham todos os irmãos homens, do mais velho para
o mais novo e, não importando a idade em relação aos irmãos homens, vinham relatadas, por
último, as irmãs. Este quadro permitia uma visualização rápida e bastante abrangente da
situação social na qual vivia a família do menor. Entretanto, o uso desta folha foi
abandonado nos anos seguintes e outros mecanismos passaram a ser adotados.
O menor M. S., então, de acordo com este perfil social, era filho de mãe viúva -
com 33 anos de idade, na ocasião da apreensão. No campo escolaridade, ela recebeu a
classificação “alf.”, que se refere ao indivíduo alfabetizado; não há pistas, nos processos, da
forma como se identificava esta situação escolar. Em entrevista respondida a mim, Antonio
Prestes, funcionário desta secretaria há 29 anos (em 1988, quando do internamento do menor
M. S., Prestes exercia a função de educador social no SETREM) informa que esta
verificação era feita pelos assistentes sociais que, após a internamento do menor, dirigiam-se
até a residência do mesmo para levantamento da situação social do interno.
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O campo “ocupação” vem preenchido, para a mãe do menor, com a denominação
“do lar”, logo, não exercia atividade remunerada. M. S. possuía 5 irmãos. O mais velho, com
18 anos de idade, no item escolaridade, recebia também a classificação que designa os
alfabetizados. Único familiar a exercer atividade remunerada, tem sua ocupação relatada
como “pintor”; o campo para preenchimento de salário, neste caso, não informa o valor. O
segundo irmão mais velho era uma menor, com 16 anos na ocasião. Única mulher dentre os
irmãos, ela vem enumerada por último na lista dos familiares; apesar de ser a pessoa de mais
alto nível escolar da família – seu campo relativo à escolaridade vem preenchido com o
indicativo de 4ª série primária. O terceiro irmão mais velho possuía 11 anos de idade na
ocasião. No caso deste, o campo escolaridade indica 2ª série primária. Logo, este desacordo
entre idade e nível serial demonstra uma vida escolar irregular. Sintomaticamente, também o
menor M. S., apesar de estar com apenas 8 anos de idade na ocasião, já apresentava vida
escolar irregular, pois, no campo “nível de instrução”, recebe a classificação de 1ª série
primária. Os dois últimos irmãos do menor, segundo relato na ficha, possuíam
respectivamente 3 anos e 1 ano de idade.
No canto esquerdo desta folha de rosto, colocadas de forma improvisada (a folha
não possuía campo específico para esse assunto), vinham as características físicas básicas do
menor: cabelos castanhos; cútis morena e olhos castanhos. Neste ponto, pode-se fazer uma
observação em relação ao item “cútis”, para a qual este processo serve de ilustração. Já nos
processos que analisei, referentes ao primeiro ano de funcionamento da instituição, percebe-
se que expressões eram utilizadas eufemisticamente para designar os indivíduos de pele
escura. Este fator torna impossível uma classificação quanto à etnia, devido à imprecisão das
informações. Assim, não se pode concluir, por exemplo, se M. S. era negro, devido a
imprecisão da expressão que foi utilizada para classificá-lo: “cútis – morena”.
Este processo apresenta ainda um pequeno histórico social, escrito à mão, cujo
objetivo prático é o de fazer a triagem do menor conforme sugere o nome da instituição, o
qual vem timbrado na folha na qual se encontra este texto – Serviço de Recepção e Triagem
de Menores - SETREM. Este histórico serviu também com a justificativa para o
internamento. Do texto, podem-se extrair elementos que revelam a falta de estrutura social
sofrida pelo menor. Transcrevo abaixo alguns trechos mais expressivos do relato.
“O menor junto com seu irmão J. M. deram entrada no Setrem (...) estes menores já há 1 semana
foram encontrados na BR 116, por uma senhora que ficou com pena e os levou para casa (...)
somente hoje que esta senhora deu parte ao modulo policial. M.S. e J. M. dizem ter saído de casa
31
porque o irmão mais velho batia neles, rasgava seus cadernos etc. São 7 irmãos que moravam com
a mãe, pois o pai é falecido. Uma das irmãs foi embora, saiu de casa e informaram que a mãe não
foi procurar; que tem 3 irmãos que trabalham e 2 menores. M. S. está na 1ª série, diz saber
escrever”.
No verso da folha em que consta este histórico, encontra-se outro pequeno texto,
escrito também à mão, no qual se faz uma análise do caso. Nele, pode-se perceber como o
caráter policial desta unidade se destacava em detrimento ao caráter sócio-institucional neste
momento; a unidade se identifica mais como delegacia do que como Serviço de Recepção e
Triagem de Menores. Outro fator que chama a atenção é o despreparo profissional observado
em relação à pessoa a quem foi incumbida a tarefa de fazer esta análise, uma vez que em
uma observação que faz, com o objetivo de dar um “parecer”, faz juízo de valor sobre a mãe
do menor. Em outras palavras, chama a atenção o fato de um funcionário de emprego
público, sentado atrás de sua mesa, considerar possível julgar a atitude pessoal de alguém
que está inserido em um contexto de extrema penúria social, baseando-se apenas nos relatos
dos menores. Logicamente, o erro está no fato de que mesmo que o funcionário conseguisse
realizar a dificílima tarefa se imaginar inserido naquele contexto, com todas as suas
variantes, seria ainda impossível prever qual seria a sua reação diante dele. Hoje em dia,
vinte anos depois, acredito, como funcionário desta instituição, que este tipo de conceito e de
sensibilidade social já estejam mais difundidos entre a sociedade como um todo, mas,
infelizmente, não a ponto de estarmos totalmente livres deste tipo de conduta. A seguir,
transcrevo os trechos mais significativos desta “análise”, com grifos meus.
“Tendo em vista que já há 1 semana estão fora de casa, a mãe ainda não os procurou, pelo menos
nesta Delegacia; Enfatizamos também que sua irmã saiu de casa e que a mãe não foi procura-la.
Parecer: De acordo com o relato dos menores, a mãe parece não se incomodar muito com os
filhos como também deve ter sérios problemas de relacionamentos familiares.”
Em contra partida, o processo apresenta, na seqüência, um documento denominado
“Termo de Encaminhamento”, emitido desta vez pelo Centro de Estudo, Diagnostico e
Indicação de Tratamento – CEDIT, que registra a visita domiciliar feita à casa do menor. No
verso deste documento, encontra-se um texto, também escrito à mão, que fornece maiores
detalhes da condição social do menor, enfocando, principalmente, a situação da mãe do
menor, com imparcialidade. Seguem os trechos mais significativos.
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“A mãe tem 7 filhos. Quatro moram com ela (...) faz quatro anos que o marido faleceu, viveu
maritalmente com Defensor, morando com este 15 dias e engravidou do último filho, no momento
vive sozinha, os menores já fugiram várias vezes de casa, recebe a pensão do INPS. do seu marido,
não trabalha fora, a casa tem duas peças não paga aluguel, não tem luz elétrica, água encanada
fora de casa.”
Sintomaticamente, seis meses depois (12/01/1989) – após várias pequenas
passagens pela instituição, durante aquele período, por uso de entorpecente (cola) - o menor
dá entrada no SETREM, para internamento, desta vez por ter cometido um delito. O ocorrido
está registrado à mão, numa folha timbrada pelo SETREM. Transcrevo, então, trechos que
permitem entender o fato, na versão dos funcionários do juizado de menores que,
provavelmente, obtiveram as informações da polícia; que foi quem obteve a confissão dos
menores.
“Em contato telefônico com Angélica do Juizado de Menores de Piraquara fomos
informados que o menor, bem como seu irmão participaram de vários furtos e arrombamentos na
referida comarca. Que chegaram a furtar um trator e ainda matar um boi com o auxílio de um
arame, e com a ajuda do Valmir de onze anos.
Os três menores encontravam-se no interior de uma residência quando foram detidos,
segundo o menor, o Valmir foi liberado (...) esclareceu ainda o menor que pretendiam furtar a
residência, mas foram impedidos com a chegada dos policiais.(...) Esclareceu ainda o menor que
retiraram arame de uma cerca para matar o boi, que enrolaram no pescoço do animal e
começaram a puxar até matá-lo. Quanto ao trator, chegaram a conduzi-lo por alguns metros com
a ajuda do Valmir. E arrombavam as residências com o auxílio de um ferro.”
O segundo processo é referente ao menor S. A., que, aos 16 anos de idade, deu
entrada na instituição, em 25/03/97. Natural de Curitiba, morador do bairro Tatuquara, S. A.
não possuía histórico de passagens anteriores na unidade. Segundo o processo, o motivo da
apreensão do menor foi roubo.
Conforme o histórico feito no primeiro capítulo, em 1997, a unidade estudada
possuía a denominação: Serviço de Atendimento Social – SAS. Ela fazia parte então do
CIAADI - Centro Integrado de Atendimento ao Adolescente Infrator – um complexo
construído pelo IASP, utilizando o mesmo espaço físico antes destinado ao CEDIT.
Este processo vem com um padrão mais moderno em relação ao primeiro
estudado, de 1988 (feito em computador), além de vir timbrado com as inscrições: Governo
do Estado do Parná, Secretaria de Estado da Criança e Assuntos da Família, Centro Integrado
33
de Atendimento ao Adolescente Infrator - CIAADI; Serviço de Atendimento Social –
SAS/IASP.
A mudança mais visível no processo, pós Estatuto da Criança e do Adolescente (de
1990), é a adoção de um formulário de avaliação (anexado ao processo), produzido por um
setor de psicologia, através do qual todas as equipes de funcionários que tinham contato com
o adolescente avaliavam-no quanto a suas características individuais, relacionamento inter-
pessoal, participação nas atividades e cumprimento às normas e à disciplina. Nesta avaliação,
de acordo com opções possíveis de serem marcadas pelos funcionários, S. A. era, na
unidade, um adolescente tranqüilo, calmo, tímido e que aceitava e cumpria bem a disciplina
imposta. Na verdade, esta avaliação compunha um conjunto de procedimentos adotados pelo
setor psicológico, o qual visava a um levantamento do estado mental do adolescente.
Pretendia-se atingir este objetivo através, também, de entrevista, acompanhamento e
investigação da história pregressa junto aos familiares.
O processo possui, então, um histórico social do adolescente, composto pelos sub-
itens: entrevista com o adolescente e vista domiciliar. A este histórico, foram somados os
itens: avaliação psicológica; informe pedagógico e conclusão. Estas informações, então, são
concentradas num texto bem escrito por uma assistente social, uma psicóloga e assinado por
um “técnico em programas educacionais”.
De acordo com este texto, S. A. morava com a mãe, quatro irmãos menores e o
padrasto (que vivia maritalmente com a mãe do adolescente há 5 anos). Desconhecia o nome
e o paradeiro do pai biológico, o qual abandonara sua mãe antes de seu nascimento. O
padrasto, então, exercia a profissão de pedreiro, apesar de – quando da apreensão do menor -
estar desempregado há 4 meses; sobrevivendo neste período, a família, dos pequenos
serviços que ele arrumava, com o dinheiro que recebera do acordo com a firma e do fundo de
garantia; quantia que foi investida em alimento.
Em sua entrevista, S. A. relata que sua vivencia pelas ruas começou aos 08 anos de
idade, quando começou a se envolver com entorpecentes; inicialmente substancia inalante e,
depois, maconha. Passou por projetos de iniciativas municipais, como o Pequeno Jornaleiro e
o Projeto Piá, que não surtiram mudanças significativa em sua vida nem em sua conduta.
Segundo a mãe do adolescente, por este motivo ela o mandou a São Paulo, para a casa de sua
irmã (tia de S. A). Lá, ele permaneceu durante um ano aproximadamente, período no qual
trabalhou temporariamente em sub-empregos. Segundo o adolescente, nesse período ele se
manteve longe das drogas, mas, segundo sua mãe, lá, ele continuou a sair de casa e
apresentar-se desobediente; sendo, então, mandado de volta, aproximadamente em março de
34
1996. Segundo a mãe, desde o seu retorno, o menor vinha apresentando bom
comportamento, trabalhando esporadicamente e não saindo de casa. Relata também, a mãe,
que o S. A. sempre manteve um bom relacionamento familiar. Segundo o menor, sua rotina,
quando da apreensão, consistia em trabalhos esporádicos, auxílio no cuidado com os irmãos
e, nos fins de semana, freqüentar festas na região, ocasião em que fazia uso de bebidas
alcoólicas.
A mãe do adolescente relatou que, quando o mesmo tinha 9 anos, procurou
tratamento psicológico para o menino, em uma clínica do INAMPS, devido ao mesmo
apresentar dificuldades na aprendizagem, por chorar muito e pelas constantes evasões do lar.
A mãe o acompanhou a alguns atendimentos, mas S. A. desistiu de dar continuidade ao
tratamento. Segundo o relato da mãe, a partir dos 10 anos, as fugas do menor passaram a ser
mais freqüentes; fato que a mãe atribui as suas cobranças para que S. A. fosse à escola,
agravadas pelo fato de ela deixa-lo sozinho em casa para que ela pudesse trabalhar.
No item “informe pedagógico” são fornecidas as seguintes informações:
“S. A., com 16 anos, apresenta uma defasagem escolar elevada pois cursou até a 3ª série. Embora
goste de realizar as atividades não tem bom raciocínio e sua compreensão é limitada. Informou-
nos que não estuda há mais de 5 anos. O último contato ‘escolar’ o teve nos programas da
ASSOMA.(...) Tem consciência de sua limitação escolar (por abandono) e por isso seus propósitos
para o futuro são bem modestos. Fala pouco sobre essas possibilidades. Parece conformado com a
situação”
Baseado, nestas informações, o grupo técnico, então, elabora uma conclusão que
parece servir de plano de ação para o caso do adolescente; plano este que, muito
provavelmente, surtiria efeitos consideráveis, caso tivesse sido mesmo seguido.
“(...) identificou que este [S. A.] pertence a grupo familiar, que apesar das dificuldades
econômicas, possui estrutura para orientar e referenciar uma integração social favorável. (...)
Identificou-se ainda, limitações individuais no adolescente que serão passíveis de superação,
através de acompanhamento sistemático que reforce uma preparação profissional, e o ampare em
seus propósitos de manter-se junto aos familiares.”
Para que se possa entender o motivo da internação, transcrevo aqui o ocorrido,
baseado no histórico da infração feito pela instituição e pela denúncia do Ministério Público
que constam no processo.
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S. A. foi encaminhado à Internação Provisória, em função da prática de vários
roubos ocorridos na Vila Santa Rita, no bairro Tatuquara. Segundo denúncia do Ministério
Público, o menor e mais 5 adolescentes, dois do sexo masculino e três do sexo feminino,
realizaram um “verdadeiro ARRASTÃO” no bairro Tatuquara, promovendo uma madrugada
de terror a todos os moradores.
Assim, segundo a denúncia, em 22.03.97, às 04:50 horas da manhã, os
adolescentes fizeram a primeira vítima. Arrombando a porta da frente, entraram em uma
residência. Dois dos menores (inclusive S. A.) estavam portando armas de fogo; o terceiro
adolescente portava uma arma branca. A dona da residência recebeu voz de assalto dos três
adolescentes, enquanto as três meninas davam cobertura do lado de fora. A vítima foi
obrigada a deitar no chão e, em seguida, recebeu chutes e coronhadas, visando
principalmente à cabeça. Após danificarem a residência os adolescentes fugiram, levando
consigo uma jaqueta e um botijão de gás. Aproximadamente dez minutos após, os menores
fizeram mais uma vítima. À chutes e pauladas, arrombaram a porta da frente da segunda
residência; quebrando também os vidros das janelas da frente da casa. A vítima (dono da
casa) ao tentar saber o que estava acontecendo, foi atacada por um dos menores, com um
golpe tipo “gravata”. Este menor também desferiu três golpes de faca, contra a vítima: um
golpe atingiu a região esquerda do rosto da vítima, outro, pernas e outro, nádegas. Outro
morador da residência (homem) também foi atacado, tendo o nariz fraturado. A esposa do
dono da casa também foi atacada por um dos adolescentes com um golpe de ripa de madeira.
Além de danificar a residência, desta, roubaram um toca-fitas e um aparelho de som 3 em 1.
Na mesma noite, aproximadamente 10 minutos após (05:10), houve uma terceira vítima. Esta
também teve a porta de sua residência arrombada a chutes e pauladas. A vítima também foi
espancada pelos menores e, de sua residência, foram levados, pelos adolescentes, um
aparelho de som e um vídeo cassete.
Segundo o histórico da infração, relatado pela equipe técnica da instituição,
“S. A. foi apreendido em uma casa abandonada, no bairro onde ocorreram os fatos, juntamente
com os adolescentes L. (sexo masculino), O. (sexo masculino), os quais também encontram-se
neste Serviço e das colegas P. (sexo feminino), S. (sexo feminino) e G. (sexo feminino), local
onde haviam passado a noite. (...) Em relação aos fatos, S. A. relata que chegou na casa
abandonada às 23:00 horas, juntamente com seus colegas e após ingerir certa quantidade de
bebida alcoólica (vinho) adormeceu. Por volta das 06:00 horas foram surpreendidos pela
Polícia Militar, que passou a efetuar uma revista geral no local, vindo encontrar apenas um
rádio que pertencia a sua colega P. e um garrafão de vinho.
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Quanto aos roubos ocorridos no dia 22.03.97 que determinaram a sua internação provisória, é
negado pelo adolescente, que jamais admitiu sua participação, apesar de algumas vítimas, tê-lo
reconhecido como um dos autores.”
O terceiro processo analisado é o do adolescente M. G., o qual deu entrada na
instituição em 04/09/2006. Durante um breve período do ano de 2006, a unidade passou a se
chamar Unidade de Socioeducação de Curitiba – USEC; este processo é deste período. Logo,
depois a unidade passou a ter o nome pelo qual é conhecida de hoje: CENSE. No primeiro
contado com o processo, percebe-se que o caráter criminal/policial passa novamente a se
sobressair sobre o sócio-educativo. Não há mais relatórios de acompanhamento e avaliação
do menor, emitidos por um setor psicológico (ao menos, se foram feitos, não foram
arquivados – o que pode representar uma considervel queda de importância dada a eles).
Assim, o processo se compõe, principalmente, de boletins de ocorrência, denúncia do
Ministério Público e depoimentos dos envolvidos; colhidos na delegacia. São escassas as
informações, por exemplo, sobre o quadro social do adolescente.
Os dados cadastrais, histórico e relatório social, deste processo, foram colhidos
utilizando o mesmo tipo de relatório que é usado atualmente. Os dados são colhidos de forma
rápida, no ato da chegada do menor à unidade, por um “técnico” (psicólogo ou assistente
social) ou, na falta deste, por um educador social que, muitas vezes, não tem segundo grau
completo. Dessa forma, dezesseis anos depois do ECA, percebe-se um relaxamento na busca
por seguir os ideais deste estatuto. Já não há uma preocupação real em entender o caráter
social e psicológico do delito, para então, com este diagnostico, propor um plano de ação
visando à ressocialização do menor.
Com os poucos dados disponíveis, pode-se afirmar que o adolescente M. G. tinha
17 anos de idade, quando da sua apreensão – a qual resultou na sua primeira passagem pela
instituição. O adolescente era branco, morador e natural do município de Campo Largo/Pr.
Não estava trabalhando, mas já possuía experiência de trabalho na lavoura. Morava com os
pais biológicos. Abandonou os estudos na sexta série do ensino fundamental, há dois anos,
desde que iniciou o uso de drogas. Ao ser questionado sobre o seu relacionamento com a
família, o adolescente relatou que possui relacionamento regular com o pai, devido ao
mesmo ser alcoólatra. Afirmou, também, que o pai, desempregado, estava providenciando
internamento para tratamento. A mãe é do lar. O menor possuía então 7 irmãos e toda a
família morava em uma casa própria, de alvenaria.
37
Analisando os depoimentos das testemunhas e envolvidos e a denúncia do
Ministério Público, é possível compreender o ocorrido. Transcrevo-o aqui para que seja
possível conhece-lo. No dia 23 de agosto de 2006, por volta da das 06:00 horas, o menor M.
G., na companhia de dois amigos, entrou num barracão abandonado, o qual se situa à
margem da BR 277, no km 09, e, de lá, furtaram uma máquina de cortar azulejos e a
quantidade aproximada de 18 kg de fio de cobre. Ao evadirem-se do loção, passaram em
frente a um posto de gasolina, onde um policial militar trabalhava à paisana, como vigilante.
Este solicitou apoio de uma viatura da polícia militar e rendeu os menores, levando-os à
delegacia.
Do exposto nos três processos analisados na íntegra, uma consideração se torna
possível e necessária. Alguns fatores são comuns à história de vida dos três menores: a
pobreza; a ausência do pai (quando presente, não serve de referência positiva); relativa
desarmonia no convívio familiar e o abandono escolar precoce.
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A Trajetória
Neste capítulo, tento analisar todo o caminho percorrido pelos menores citados no
capítulo anterior, a partir do momento em que eles são apreendidos. Dessa forma, procuro
tornar mais visível o processo de internação na unidade estudada, fornecendo mais elementos
à questão; o que possibilitará, também, uma melhor análise geral, ao final do trabalho.
O primeiro processo analisado no capítulo anterior foi o do menor M. J.,
recolhido pela instituição em 08/06/1988. Nesta data, quando da apreensão, o menor era
encaminhado primeiramente ao Serviço de Recepção e Triagem de Menores – SETREM, o
qual fazia a pré-triagem e triagem para determinar o encaminhamento de cada criança ou
adolescente. Na pré-triagem, quando se tratava de menor infrator ou com participação em
infração penal, a equipe fazia o encaminhamento à autoridade policial.
No processo da criança M. J., depois do quadro social, o primeiro documento
arquivado é um oficio de encaminhamento ao CEDIT, emitido pelo SETREM e datado de
08/06/1988. Conforme cito no capítulo anterior, o menor M. J. tinha 8 anos de idade na
ocasião e o motivo do seu primeiro internamento foi a vivência em abandono, devido à fuga
de casa. Assim, quando do internamento do menor, o seu primeiro contato com a instituição
foi através do SETREM, o qual fez a triagem do seu caso e, verificando que se tratava de
uma criança abandonada, encaminhou-o ao CEDIT.
Sete dias depois do internamento (15/06/1988), o CEDIT emitiu um termo de
encaminhamento, com o qual o menor foi levado de volta a sua residência. O documento
informa a filiação do menor, o seu endereço, informa que o menor foi entregue à genitora e
confirma a entrega com a assinatura do responsável; neste caso, a mãe. É no verso deste
documento que se encontra, escrito à mão, um panorama das condições sociais em que vive a
família do menor – condições, estas, que explicito no segundo capítulo. Um outro
documento intitulado “folha de ocorrência”, emitido pelo CEDIT, também em 15/06/1988,
serve para informar que o menor foi encaminhado à família, registrando que o Juizado de
Menores não foi comunicado, conforme solicitação feita através de ofício da Vara de
Menores de Curitiba.
Seis meses após, em 13/01/1989, conforme explicito no capítulo anterior, o
menor é apreendido por cometer delito. A Vara de Menores de Curitiba emite um documento
através do qual ela encaminha novamente o menor M. J. ao CEDIT para que se faça, ali, um
39
estudo de caso do menor, com posterior comunicação ao juiz daquela vara. O ofício vem
assinado por uma assistente social.
Novamente, o menor cumpre o mesmo trajeto. Ele vai para o SETREM o qual
emite um ofício, em 13/01/1989, encaminhando o menor ao CEDIT, com duas observações
adicionais: a primeira informando que o menor vem encaminhado pela Comarca de
Piraquara, para apresentação em juízo e, a segunda, informa que apesar de se tratar de menor
infrator, não foi possível encaminha-lo à Delegacia de Proteção ao Menor, devido a sua
idade ser inferior a 12 anos.
Um documento arquivado em seqüência trata da certidão de um promotor de
justiça de Curitiba, certificando que recebeu o menor, encaminhado pelo juiz da comarca de
Piraquara, e que o menor deve ali (na capital) permanecer, até deliberação do juiz de
Piraquara.
Datado de 16/01/1989, há um documento no processo, emitido pelo CEDIT,
encaminhado ao juiz da comarca de Piraquara, comunicando que, nesta mesma data, o menor
M. J. evadiu-se da unidade. Em seqüência, encontra-se um ofício, datado de 05/10/1989,
através do qual se envia um informativo completo de todas as passagens dos menores M. J. e
de seu irmão J. M.. Segundo o que consta no próprio ofício, este documento foi emitido em
resposta a uma solicitação feita por telefone, pela assistente social do fórum de Piraquara.
Através destes documentos, percebemos, então, que a criança M. J. deu entrada
na instituição, primeiramente, em junho de 1988; por estar vivendo nas ruas como menor
abandonado, após ter fugido de casa. Sete dias depois, foi encaminhada novamente a sua
residência. Seis meses depois, a criança, junto de seu irmão (também menor de idade – 12
anos), foi presa por cometer delito. A apreensão se deu em Piraquara (município da região
metropolitana de Curitiba). Pelo fato de se tratar de uma criança de 8 anos (segundo
classificação feita pelo ECA, é considerado criança o indivíduo menor de 12 anos), o juiz
desta comarca encaminhou a mesma à Vara de Menores de Curitiba, pelo fato de a comarca
não possuir um local destinado ao abrigamento de crianças infratoras. O juiz desta Vara,
então, encaminha a criança ao Serviço de Recepção e Triagem de Menores – SETREM, o
qual faz a triagem do caso do menor e o encaminha ao CEDIT. Três dias depois de sua
chegada a esta instituição, M. J. se evadiu do local. O processo termina com os documentos
enviados ao juiz da comarca de Piraquara, pelo CEDIT, dando mais informações sobre as
passagens de M. J. e de seu irmão, pela unidade.
O segundo caso analisado no capítulo anterior foi o do menor S. A. cuja entrada
na unidade se deu em 25/03/97. Conforme histórico apresentado no primeiro capítulo, no
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ano de 1997, a unidade fazia parte de um complexo denominado Centro Integrado de
Atendimento ao Adolescente Infrator (CIAADI), construído pelo IASP, utilizando o mesmo
espaço físico antes destinado ao CEDIT. Este complexo era composto, então, pelo Juizado da
Infância e da Juventude; Ministério Público; Defensoria Pública; Delegacia do Adolescente e
pelo Serviço de Atendimento Social (SAS).
O menor S. A. foi recebido, então, pelo SAS, em 25/03/97. Na mesma data, o Juiz
da Comarca de Curitiba, da Vara da Infância e da Juventude – Setor de Infratores – expediu
um ofício encaminhando S. A. ao diretor do SAS, para que, ali, o menor fosse internado
provisoriamente, por um prazo que poderia se estender até 45 dias.
Nesse período, o menor teve duas audiências com este juiz, as quais se
reconhecem pelos ofícios de encaminhamento a estas audiências, emitidos pelo diretor do
SAS e enviados ao Juiz da Vara da Infância e da Juventude, nas datas de 03 e 14 de abril de
1997.
Uma terceira audiência foi realizada na data de 30 de abril do mesmo ano e,
nesta, o adolescente foi sentenciado a cumprir medida sócio educativa na Unidade Social
Educandário São Francisco, localizado no município de Piraquara, na região metropolitana
de Curitiba. Em 1997, como ocorre até hoje, a sentença a ser encaminhado ao Educandário
São Francisco era a penalidade máxima que um menor infrator da região leste do Estado
poderia receber. Uma vez no Educandário, o adolescente cumpre um prazo mínimo de 6
meses de internação, depois do qual a unidade emite um relatório ao respectivo juiz do caso
para que, sob análise desse relatório, o mesmo descida se o menor pode ser liberado ou se o
período de internação deve se prorrogar por mais 6 meses.
Faço aqui uma breve descrição do que é o Educandário São Francisco, “visto de
dentro”, baseado no contato que tive com a unidade: a grande construção da unidade, mal
conservada, lembra um grande presídio, ao estilo “Carandiru”. Pedaços de vidros quebrados
se espalham pelos paralelepípedos que revestem o chão do pátio. O clima tenso é confirmado
pelos olhares cansados e abatidos, porém atentos, dos funcionários mais antigos. Estes,
muitas vezes sozinhos, acompanham grupos de 30 meninos até a cancha de futsal coberta e,
lá, vigiam (se é que isto é possível), sozinhos, todo o grupo; fato que demonstra uma extrema
fragilidade no esquema de segurança. Todos demonstram perceber, a todo momento, esta
fragilidade e as trocas de olhares e os sorrisos discretos entre os menores aumentam o clima
tenso.
Os adolescentes são instalados em “alojamentos” – celas de aproximadamente 2 x
4 m2 – as quais abrigam, cada uma, aproximadamente 12 adolescentes; segundo os antigos
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funcionários, antes da grande rebelião que lá ocorreu em 2004 (quando 7 adolescentes foram
mortos pelos próprios internos), eram colocados até 30 adolescentes em cada alojamento.
Cada galeria (corredor) contém aproximadamente 9 alojamentos. A unidade possui 4
galerias, sendo duas no mesmo prédio. Um dos alojamentos de uma das galerias é utilizado
para o abrigamento dos recém chegados (se já se souber que algum recém chegado tem
algum desafeto na unidade, o “novato” tem de ser transferido para uma galeria de segurança,
fora do prédio, mas ainda dentro dos muros da unidade). Neste alojamento, os recém
chegados são hostilizados pelos adolescentes mais antigos na unidade e há casos de estupro.
A unidade possui, entretanto, ambientes de atividades profissionalizantes, como curso de
elétrica e tapeçaria. Porém, destes cursos, participam somente os mais “confiáveis”, na visão
do educador. Há uma galeria de segurança, também para aqueles menores que dão muito
trabalho e que, também, já têm um tamanho que oferecerá perigo aos funcionários quando da
necessidade de conte-los ou aplicar-lhes castigo (como o de retirar-lhe o colchão durante o
dia). Os espancamentos entre adolescentes são constantes e, atualmente, vem ocorrendo com
certa, alarmante, freqüência o espancamento também de funcionários (educadores). A
maioria destes, mesmos os que entraram há apenas um ano, já apresentam problemas
psicológicos, devido ao alto nível de stress que têm de enfrentar.
Foi, então, para este ambiente que, a 12 de maio de 1997, encaminhou-se, através
de oficio, emitido pelo diretor do SAS (hoje CENSE) e enviado ao diretor da Unidade Social
Educandário São Francisco, o menor S. A. para que o mesmo cumprisse medida sócio-
educativa, ou seja, para que fosse “ressocializado”.
Emblematicamente, o processo do menor S. A. é finalizado com a fotocópia da
matéria de capa do jornal policial Tribuna do Paraná de 23/11/1999. Em letras garrafais, o
jornal destaca: “JOVEM MORTO COM TIRO NO PEITO – ASSASSINATO/ drogas, mais
uma vez foram o motivo”; no canto direito da reportagem, cuja foto central mostra os pés do
jovem caído morto, vê-se a foto do menor S. A., a mesma foto 3x4 que foi anexada à capa do
processo do menor, arquivado no SAS. S. A. foi baleado por outro jovem de 22 anos, para o
qual S. A. devia uma quantia em dinheiro pela compra de drogas. Após discussão dos dois ao
saírem da casa de um amigo em comum, o tiro foi disparado contra o peito de S. A. Segundo
o jornal, a polícia informou, após investigações preliminares e contato com a mãe do menor,
que o mesmo era viciado em crack e cocaína, havia 5 anos. Segundo a reportagem, a mãe de
S. A. sempre fazia tentativas de levá-lo à igreja, para as quais recebia do filho a resposta:
“Não adianta, eu não tenho recuperação!”.
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Apesar de o processo ser finalizado com a fotocópia desse artigo de jornal, o
documento não fornece informações a respeito da passagem do menor pelo Educandário São
Francisco. Essa falta de informação revela a falta de intercomunicação entre as unidades;
fator que demonstra uma falta de organização que, com certeza, influenciaria negativamente,
caso este menor tivesse passado por um acompanhamento sério, com intenção real de
recupera-lo.
O terceiro processo analisado no capítulo anterior foi o do adolescente M. G., o
qual deu entrada na instituição em 04/09/2006. O menor era morador de Campo Largo,
município da região metropolitana de Curitiba. A exemplo do segundo caso, nesta região
também não havia local destinado ao abrigamento de menores infratores, o Juiz do Foro
Regional de Campo Largo, do Cartório de Família e Anexos, então, encaminhou ofício ao
diretor do SAS, pedindo para enviar o menor M. G., para internamento provisório, enquanto
seria feita a “instrução dos autos de Ação Sócio Educativa”. A solicitação foi respondida em
01 de setembro de 2006 e o encaminhamento do menor se deu no dia 04 do mesmo mês. O
boletim de ocorrências feito pela Delegacia Regional de Polícia Civil de Campo Largo foi
preenchido em 23/08/2006 (data do delito). Como ocorre até hoje, o menor aguardou pelo
encaminhamento, preso na cadeia pública local (junto com adultos) até que fosse feito o
encaminhamento. Este fato é confirmado pelo ofício feito pelo promotor de justiça de Campo
Largo, enviado ao Juiz da Vara da Infância e da Juventude da cidade, solicitando, o envio de
ofício ao IASP, em caráter de urgência, para que providenciem vagas para os adolescentes
infratores, visto que a cadeia publica local não tinha as mínimas condições para abriga-los.
Assim, em ofício enviado ao diretor do SAS, pelo Juiz da Comarca de Campo
Largo, foi informado que a audiência do menor foi marcada para 06/10/2006. Como não há
mais nenhum encaminhamento neste processo após esta data, conclui-se que o menor foi
liberado após 45 dias de internamento no SAS.
Pelas trajetórias analisadas nesse capítulo, principalmente pelas duas primeiras,
percebe-se que a passagem pela instituição não produz mudança significativa na vida dos
menores. O último caso não dá informações sobre o destino do menor, porém isto pode
dever-se ao fato de o menor ter passado pela instituição já no final do ano em que tinha a
idade de 17 anos. Após esta passagem, se M. G. se envolveu novamente com o crime,
respondeu já como adulto. Dessa forma, a reincidência do primeiro, avançando da situação
de abandonado para a de infrator na segunda passagem; e a morte do segundo menor,
ocorrida após seu desligamento, motivada pelo seu envolvimento com drogas, são evidências
de que a unidade não dá conta da complexidade dos casos.
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CONCLUSÃO
O estudo desta instituição permitiu perceber que ela é mais uma entidade
governamental praticando um assistencialismo dentro do sistema capitalista. Desde a sua
criação, ela vem remando, lentamente, contra a maré, na busca, ao menos no discurso, de se
tornar um mecanismo que promova mudanças significativas nas vidas dos menores
desafortunados, que por ela passaram.
Na pratica, analisando as fontes disponíveis, o que salta aos olhos é a
desorganização e o despreparo de funcionários; fatores demarcadores do período incipiente.
No momento seguinte, observa-se um avanço, ao menos intelectual, da forma de ver o menor
e de tratar o problema; entretanto nada muda muito quando observamos o que ocorre na
prática, “fora do mundo das idéias”. Esse avanço, então, diminui bastante a velocidade num
momento seguinte, chegando até a regredir no nível de desenvolvimento.
Percebe-se que, se necessária, a justificativa da existência da unidade passará,
invariavelmente, pela ingenuidade de pensar que se dará conta do problema da exclusão
social (fator catalisador da violência), sem alterar o contexto no qual estes menores estão
inseridos: desestruturação familiar, pobreza, falta de educação e de profissionalização. Uma
outra opção será a de justificar a existência pela confessa incapacidade do Estado em lidar
com a questão. Quem sabe, ainda, a existência da unidade se justifique pela mistura desses
dois fatores. Entretanto, uma afirmação é certa: a instituição nunca, em sua história,
conseguiu ser o que pretendia, ou seja, um local que promovesse a ressocialização de
menores infratores que por ela passaram. Nesse sentido, os dois primeiros casos são
emblemáticos. Dois casos de menores que, após a passagem pela instituição, aumentaram a
intensidade de sua relação com o crime.
Em outras palavras, a unidade não ressocializa; apenas ameniza o anseio de
justiça, por parte das vítimas que, por sua vez, pressionam o Estado. O Estado sabe dessa
forma não se resolve o problema, mas, na incapacidade de solucionar os impasses sociais
maiores, causadores e inspiradores da grande maioria dos delitos, exime-se da acusação de
nada fazer a respeito, simulando acreditar num mecanismo como esse.
Assim, conclui-se que o discurso que o Estado apresenta em relação à função da
unidade é o da ressocialização; entretanto, na prática, percebe-se que a passagem dos
menores pela instituição colabora para um processo de criminalização do menor – uma vez
que a unidade não representa, para estes menores, nada além de um ambiente hostil (muito
pouco diferente do de uma cadeia para adultos), o qual não promove nenhuma alteração na
conjuntura social que os levou até ali.
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BIBLIOGRAFIA
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2000.